Sei sulla pagina 1di 257

Luís Augusto Lé

gutole@bol.com.br

http://lergratis.cjb.net

http://gutole.vila.bol.com.br

Cinício T. Roque Jr.

DIÁRIO
DE UM GAGO
“Diário de um Cavaleiro Iluminado
da Sagrada Ordem dos Mentecaptos”

Toda e qualquer semelhança de personagens e situações deste


romance com personagens e situações da vida real será mera
coincidência.

gutole@bol.com.br 2 http://lergratis.cjb.net
A Saulo Lebre, por representar o verdadeiro perfil daqueles
brasileiros, que comem pão com açúcar e água fria, mas não ficam
sem o “esoterismo nosso de cada dia”.
À Neusinha C., amiga, cujos caminhos de conduta refletem a
grandeza de sua alma.

ÍNDICE
Prólogo ........................................................................ 04
Como Tudo Começou ................................................ 11
A Partida ....................................................................... 23
Um Novo Engano .......................................................... 29
O Encontro Com O Guia .............................................. 36
Que Atrapalhada! ......................................................... 43
Rumo Certo .................................................................. 50
Pernas Pra Que Te Quero ............................................. 56
Contando Estrelas ........................................................ 63
Um Tiro Certeiro ........................................................... 70
Cidade À Vista .............................................................. 77
Esse Tal de Chupa Cabra ............................................ 85
Uma Antiga Ordem ...................................................... 96
Uma Velha História Pra Contar ................................... 104
Traído Pelo Destino ..................................................... 115
Todos Contra Mim ...................................................... 121
Ritual de Energização Positiva .................................. 132
Exorcisando o Mal ....................................................... 137
Lagoa dos Milagres .................................................... 148
Uma Dessas Festas do Interior ................................... 155
Milagres da Sagrada Ordem ....................................... 162
Na Encruzilhada do Destino ...................................... 162
Perfeitamente Louco ................................................... 179
No Nosocômio de São Bento ...................................... 186

gutole@bol.com.br 3 http://lergratis.cjb.net
Um Guia Roqueiro ....................................................... 195
Verdade Ou Mentira .....................................................201
Sempre Fiel À Ordem .................................................. 210
Outro Guia A Menos .................................................... 210
Mais Uma Provação .................................................... 216
Sem Futuro ...................................................................225
Verdades e Mentiras ................................................... 231
Ladrão Rouba Ladrões ................................................ 247
Epílogo ........................................................................ 261

PRÓLOGO.

__ E que, após tocar na Esfinge Dourada, a sua voz se


torne pura e vívida, tão melíflua que será o acorde de sua
vitória perante os seus inimigos, e sua lábia seja tão vultosa
e fértil, que seus bolsos se tornarão pequenos para guardar
o dinheiro que serão lançados aos montes pelas pessoas
iludidas por suas palavras.
O Mentor, com suas famigeradas mãos santas, ergueu a
pequena gaiola onde a Esfinge encontrava-se presa, e, com
um golpe sutil, abriu a portinha de bambu, iniciando o ritual
da Ordem dos Mentecaptos. Usando de boa camaradagem,
chacoalhou a gaiola numa euforia inimaginável. A pobre
Esfinge Dourada, uma espécie rara de borboleta, fruto da
imensa diversidade cosmo-energética, permanecia presa
firmemente de cabeça para baixo no alto da gaiola, com as
asas fechadas e fulgentes.
Eu sentia que o momento de minha transformação
estava próximo. Assim como a borboleta sofre metamorfose,
eu precisava apenas tocar na Esfinge Dourada para que
gutole@bol.com.br 4 http://lergratis.cjb.net
minha voz sofresse uma brusca mudança, e deste modo
libertar-me da minha gagueira e me transformar num novo
homem, com uma voz cativante, poderosa, persuasiva.
Desde o momento em que eu entrei para a Ordem dos
Mentecaptos, o meu Mentor prometeu abrir meus caminhos
usufruindo da energia cosmo-energética presente no corpo
vítreo da cristalina Esfinge Dourada.
O Mentor, em sua bondade ímpar, aproximou a gaiola na
altura do meu peito, ordenando para eu estender a minha
mão direita e apanhar a borboleta. Transmutado pelo
impulso ganancioso que tomou minha mente, ergui um
vasto sorriso mentecapto. Olhei para o alto de um coqueiro,
para o lago à minha esquerda, estendi meus braços em
direção à abertura da gaiola, abrindo minhas mãos, e antes
de tocar na Esfinge Dourada, uma seqüência inusitada de
cocos despencou sobre a cabeça de meu Mentor. A gaiola,
que tinha forma oval, rodopiou e rolou favorecida pelo
desnível do terreno, seguindo rumo ao lago.
Elevei as mãos à cabeça. A minha sorte estrava indo por
água abaixo. A esperança de me libertar da gagueira tinha
se transformado em pesadelo. O Mentor, desmaiado,
estirado ao chão, nada poderia fazer para salvar a Esfinge
Dourada. Se ao menos eu tivesse tocado nela, a energia
cosmo-energética teria curado minha gagueira, e minhas
cordas vocais seriam energizadas, fortalecendo minha voz
com o dom da persuasão.
Deixei o Mentor desacordado e caminhei em direção às
margens do lago. Aproximei-me de um emaranhado de
galhos secos à beira daquela água cristalina. A muito custo,
depois de ferir as mãos, consegui retirar um ramo de
aproximadamente quatro metros.
A gaiola boiava na água calma do lago. A Esfinge
Dourada continuava dependurada, num sono eterno. Com
muito cuidado e perícia, procurando não agitar a água,
segurei fortemente o galho e o estendi rumo à gaiola.
Poucos centímetros separavam o galho da gaiola. Um
espaço tão curto, insignificante, mas que significava uma
gutole@bol.com.br 5 http://lergratis.cjb.net
questão vital; um anseio que emanava do meu interior
obcecado pelos deleites inerentes ao Poder. A Esfinge
Dourada dotar-me-ia de uma nova voz; uma voz harmoniosa
e sedutora, capaz de iludir o povo com promessas
mirabolantes, com palavras de fé, de cura, injetando uma
dose de encanto aos olhos frágeis, aos corações derretidos
daquelas pessoas fáceis de serem dominadas; eu poderia
até chegar a ser um grande líder. Imagine! Imperador da
Terra! Dono de tudo e de todos.
Dei um passo à frente, ficando com os pés dentro d’água.
Foi o suficiente para alcançar a gaiola com o galho. Quando
me preparava para puxá-la até a margem, vi uma sombra
gigantesca refletida na água. Olhei para trás e, de súbito,
dei um berro, caindo de costas dentro do lago.
As ondas formadas pela minha queda, conduziram a
gaiola em direção à outra margem. Debatia-me no raso do
lago e gritava por socorro. O estranho ser que havia me
assustado, estendeu suas peludas e fortes mãos. Depois,
puxou-me da água, salvando minha vida.
__ Que-quem é vo-você? -- indaguei pasmo, olhando de
alto a baixo o robusto gorila rubro.
__ Mui me impressiona sua bravura. Eu sou o
Mensageiro da Libertação.
__ Li-libertação? Vo-você é um de-de ...
__ Mui esperto, gaguinho. Como você descobriu que eu
sou o seu demônio? -- revelou o gorila, admirado.
__ De-demônio? Eu ia di-dizer de-debilóide. Mas que
his-história e-estranha é essa? -- inquiri.
__ Será que eu errei de endereço? Aqui na minha
agenda diz: gago, um metro e setenta, nem muito gordo
nem muito magro, membro da Ordem dos Mentecaptos, o
lugar seria uma floresta próxima a um lago, estaria
realizando o culto da Esfinge Dourada à sós com seu
Mentor ... -- descreveu o Gorila rubro.
__ Es-espere aí. Isso tu-tudo que vo-você está di-dizendo
tá es-escrito na-na sua agenda? -- interrompi, incrédulo.
__ Tome. Veja com seus próprios olhos.
gutole@bol.com.br 6 http://lergratis.cjb.net
Peguei a agenda em minhas mãos e, com muita
dificuldade, li aqueles garranchos. O que o tal Mensageiro
da Libertação havia dito correspondia com o que estava
escrito na sua agenda. O curioso era que na última linha
havia o meu nome grafado. Minha curiosidade foi tanta que
não contive a indagação:
__ O que o me-meu nome e-está fazendo a-aqui?
__ Ah! Então você é Saulo Lebre, a quem eu procuro?
__ Se-sei lá. Eu nu-nunca o vi em to-toda minha vi-vida.
Por-por quê vo-você haveria de me pro-procurar? --
interroguei, afastando-me um pouco do estranho ser que
dizia ser o Mensageiro da Libertação.
__ Deixe eu esclarecer os fatos: toda pessoa tem o seu
anjo e o seu demônio. Entende? Eu sou o seu demônio
particular. Minha função é te acompanhar a vida toda. Aliás,
eu tenho a missão de lhe importunar e fazer de tudo para
que você não trilhe o caminho do bem. Entende? Sabe de
uma coisa, eu não gosto muito do serviço que faço. Meu
sonho era ser um anjo para poder realizar coisas boas às
pessoas. Mas, infelizmente, o que me cabe é apenas
obedecer ordens -- revelou o dócil Mensageiro.
__ Desse je-jeito eu vou fi-ficar ma-maluco. Você acabou
de des-destuir o so-sonho de mi-minha vida.
__ Ora, seu tonto. Eu não acabei de lhe dizer que sou o
seu demônio particular e minha única e exclusiva função é
bagunçar a sua vida. Eis-me aqui, honrando meu serviço --
esclareceu o Gorila rubro. __ Só pra você ter uma idéia de
minha maldade, fui eu quem atirou os cocos na cabeça do
otário de seu Mentor.
A minha ganância era tanta que eu havia esquecido do
Mentor. O pobre coitado continuava desmaiado, estirado ao
chão, relegado pelo seu egoísta servo. Indefeso, abri um
sorriso maroto e especulei o Mensageiro.
__ Tu-tudo bem. Você ve-veio pa-para me des-destruir. O
que eu te-tenho que-que fazer pa-para que você largue do-
do meu pé?

gutole@bol.com.br 7 http://lergratis.cjb.net
__ Como assim, largar do seu pé? Eu não estou
segurando o pé de ninguém -- argumentou o Gorila,
ironicamente.
Além de sensível, ele também era burro. Procurei ser
mais claro e conciso:
__ Eu pe-perguntei o que vo-você quer de-de mim?
__ Ah! sim. A minha missão é atrapalhar a sua vida,
colocar o máximo de obstáculos em seu caminho. A ordem
é para não te destruir, não te matar. Entende? Você terá
uma segunda chance de tocar na Esfinge Dourada. Se você
conseguir transpor todas as barreiras de sua saga e,
finalmente, tocar na borboleta, sua gagueira desaparecerá.
Seus sonhos resplandecerão, serão vívidos, e o Poder
estará em suas mãos.
Encantado com aquelas palavras finais do Mensageiro,
meus olhos brilharam comovidos pela possibilidade de
poder realizar o meu sonho: curar minha gagueira e me
transformar num poderoso líder. Criei coragem e indaguei:
__ Como eu con-conseguirei tocar na-na Esfinge se ela
es-está no meio da-da lagoa?
__ Veja! -- exclamou o Mensageiro, apontando em
direção ao lago.
Subitamente um redemoinho surgiu no meio do lago e
sorveu a gaiola, levando consigo a Esfinge Dourada.
__ E a-agora?
__ Agora, meu caro amigo -- prosseguiu o Gorila, pondo
as mãos em meu ombro --, se você quiser tocá-la terá que
realizar uma peregrinação entre as cidades de Varginha e
São Tomé das Letras. O que eu tenho a lhe desejar é má
sorte. Estarei com você, ao seu lado, atrapalhando essa sua
árdua missão. Até breve -- despediu-se o Gorila rubro,
desaparecendo entre os galhos das árvores.
Ouvi o grito do Mentor. Corri até ele. Seus olhos estavam
abertos; seu corpo, arroxeado e pálido.
De repente, ouvi a voz fraca e deformada do Mentor, que
consumou o ritual:

gutole@bol.com.br 8 http://lergratis.cjb.net
__ Em nome da Ordem dos Mentecaptos, eu te nomeio
Cavaleiro iluminado dos caminhos ocultos.
__ O quê?
__ Não diga absolutamente nada. A partir de agora você
tem que seguir o seu destino. Não há tempo para
explicações. Meu corpo cósmico está se desintegrando.
__ O que está a-acontecendo com o a-amado Mentor? --
inquiri, preocupado.
__ Estou morrendo seu idiota. Você falhou em sua
missão; pois, não estava preparado para tocar a Esfinge
Dourada. O seu coração impuro, obcecado pelo poder,
enfraqueceu e permitiu a ação de seu demônio particular.
Os cocos que caíram sobre minha cabeça romperam a
minha energia cósmica, e sem energia meu corpo se
enfraqueceu. Procure pelos membros da Ordem; eles dirão
o que deve ser feito.
__ Fa-fazer o quê?
__ Só posso lhe adiantar que sua missão é encontrar a
Esfinge Dourada -- disse o Mentor, fracamente.
__ O que de-devo fa-fazer pa-para encontrá-la? --
perguntei sôfrego.
__ Ouça o seu anjo. Chame por ele. A sua missão
começa na cidade de Varginha e seu destino final será São
Tomé das Letras -- declarou o Mentor.
__ O Go-gorila também disse a mes-mesma coisa pa-
para mim.
__ Não importa o quê digam a você. Caminhe de mãos
dadas com seu anjo. Deixe ele guiar seu caminho e
escrever sua história. E muito cuidado com aqueles que o
circundam. Ouça a voz de seu anjo e o deixe ajudá-lo.
__ Então, em quem eu-eu devo con-confiar para me gui-
guiar?
__ Procure pelo seu Guia! -- revelou o Mentor.
__ Guia! -- exclamei pálido ao deparar-me com uma
densa névoa, que surgiu misteriosamente.
Afastei-me um pouco do Mentor. Em poucos minutos,
encontrava-me totalmente perdido naquela neblina de uma
gutole@bol.com.br 9 http://lergratis.cjb.net
aparência estranha que parecia com gelo seco. Não
conseguia enxergar um palmo a minha frente. Com as mãos
apalpava o ar a esmo, com a esperança de encontrar algo
em que pudesse me apoiar.
Preso naquela floresta, no alto da Mina da Colônia de
Monte Belo, coberto por aquela estranha nebrina, senti
minha mão ser espetada por um espinho. Um arrepio de
medo atravessou o meu corpo inerme; meu coração pulsava
cada vez mais forte, já me sentindo totalmente arrependido
de estar naquele local. E minha gagueira? O Mentor morrera
por minha causa, para me curar da minha gaguez, e nada
pude fazer para salvá-lo. Tinha que honrar meu
compromisso com a Ordem, ser fiel à ela e cumprir minha
missão.
Antes, porém, que eu pudesse dar um passo à frente, um
coco caiu em minha cabeça, e desmaiei.

CAPÍTULO I
COMO TUDO COMEÇOU

A Sagrada Ordem dos Mentecaptos constiuía-se em uma


espécie de sociedade secreta cujos membros eram
escolhidos através de um criterioso procedimento
ritualístico.
De três em três meses, no primeiro dia de cada estação,
o Mentor se reunia com os Cavaleiros Iluminados da Ordem
e escolhiam um novo membro para integrar os Eleitos.

gutole@bol.com.br 10 http://lergratis.cjb.net
O processo era simples: com as mãos, e, olhando para
as estrelas, exaltavam as forças ocultas da natureza, sua
beleza e energia. Após uns dez minutos de concentração,
um dos Iluminados, em transe, se afastava do círculo e
derrubava uma árvore a machadadas. Da árvore
despedaçada pelo vigor do Cavaleiro, fazia-se uma fogueira
e todos formavam um novo círculo em torno do Elemento
Primordial.
O Mentor acendia a Tocha Santa e, após beber algumas
canecas de uma água ardente, punha-se a dançar ao redor
do fogo. De repente, parava. Neste momento ele estava
sendo energizado pela Consciência Cósmica. Todos os
Cavaleiros deveriam manter absoluto silêncio enquanto o
mentor se encontrasse naquele estado especial. Então, o
líder da Ordem olhava para o fogo em sua Tocha, e
passava a ter revelações especiais que tão somente ele
podia vislumbrar.
A piromancia geralmente era rápida (principalmente se o
Mentor estivesse com fome), indicando ao líder dos
Mentecaptos qual o novo membro que deveria ser intimado
a fazer parte da sociedade secreta.
O Mentor dirigia-se, então, a um dos Cavaleiros e,
apontando a Tocha em sua direção, ordenava-lhe que
partilhasse com ele a visão do futuro Cavaleiro.
__ Ide agora e trazei em breve o eleito -- eram as
palavras proferidas pelo Mentor, as quais obrigavam seu
destinatário a encontrar e trazer, no prazo máximo de quatro
horas, o novo membro cuja face apenas ele e o Mentor
conheciam.
Enquanto aguardavam o retorno do emissário, os
Mentecaptos aproveitavam o fogo e faziam um
churrasquinho de carne bovina e suína, ambas provenientes
de uma das fazendas do tarólogo da Ordem.
Foi assim que Albertinus, meu guia, havia partido em
buca de mim, a fim de ser levado até o secreto lugar do
Ritual.
Lembro-me até hoje como se deu nosso encontro.
gutole@bol.com.br 11 http://lergratis.cjb.net
Morava na roça, num casebre simples de três cômodos.
Tinha acabado de ouvir uma fita de um malandro chamado
Dr. Ribero, o qual prometia que qualquer um podia ter o que
quisesse na vida, desde que comprasse seus livros e seu
Kit com 49 fitas cassetes que desvendavam os segredos do
sucesso. Até aquele dia eu já havia ouvido trinta e duas fitas
e nada. Aliás, até meu cachorro sarnento me abandonara
por causa da cadela da vizinha. Quando eu o via, do outro
lado da cerca, ele dava as costas, empinava o rabo e ia
rebolando para dentro da casa da mulher. Eu estava numa
pior. E gago, como era, ninguém na cidade me dava
emprego. Foi então, naquela noite, que eu ouvi uns
gemidos esquisitos vindos lá pros lados da casa da vizinha.
Na briga do medo com a curiosidade, a última levou
vantagem e me fez sair de casa e chegar perto da cerca. Vi
que meu cachorro e a cadela da vizinha estavam
namorando e não davam nem bola para a barulheira que
vinha de dentro da casa. Como os gritos e gemidos
pareciam estar mais fortes ainda, pulei a cerca e corri até a
casa da moça, com o maior medo de ela estar sendo
atacada pelo Chupa-cabra.
Dei o maior pontapé na porta e saltei para dentro da casa
a fim de ajudar minha vizinha.
__ Mas o que é isso? -- perguntou um estranho que
encontrava-se deitado de costas no chão com a minha
vizinha por cima dele.
_ Ora se não é o jumento do Saulo Lebre, meu vizinho
gago -- ironizou a moça, parecendo pouco se importar com
a minha presença.
__ É que-que eu pe-pensei que você tava se-sendo
atacada pe-pelo Chupa-cabra. E co-como seu pai não tá-tá
em ca-casa esses dias, eu vim te de-defender.
__ E eu lá preciso de alguém pra me defender? Meu
negócio é atacar, seu intrometido.
__ Me de-desculpe. É me-melhor eu voltar pra ca-casa.
Já é qua-quase meia-noite.

gutole@bol.com.br 12 http://lergratis.cjb.net
__ Meia-noite! __ exclamou o estranho. __ Já faz quase
quatro horas. O que eu faço agora?
__ Onde você pensa que vai, hein? -- intimidou-o minha
vizinha. __ Eu ainda tô faminta.
__ Se vo-você quiser, lá em ca-casa tem um po-pouco de
feijão. Eu po-posso trazer pra ma-matar tua fome.
__ Vai te catá, sua coisa.
Mas antes que a moça me insultasse mais, o estranho
empurrou ela de lado, ajeitou as roupas, me puxou pelo
braço e saímos correndo daquela casa.
__ Pega, cachorro! Pega!
Sorte nossa que meu cão e a cadela da moça
continuavam namorando, pouco valor dando aos gritos da
vizinha.
__ Santa Energia! Faltam dez minutos pro Ritual
recomeçar -- disse o estranho apreensivo. Depois ele olhou
bem pra mim e continuou: __ Cara, hoje é teu dia de sorte.
__ Sorte! Eu ne-nem sei o que-que é isso mais.
__ Vem comigo que eu te explico tudo pelo caminho.
Fiquei sabendo que ele se chamava Albertinus e que sua
mãe era uma mulher muito formosa e querida em sua
cidade, no interior de São Paulo. Relatou-me também que
havia sido escolhido para ser Cavaleiro Iluminado da Ordem
Esotérica dos Mentecaptos há uns dois anos. Disse-me que
estava em missão especial para encontrar o novo membro
da Ordem quando minha vizinha apareceu no meio do mato,
contou-lhe uma história triste e o levou até sua casa,
desviando-o assim de seu objetivo. O pior era que ele havia
se esquecido de que dispunha do prazo de quatro horas
para encontrar e levar a pessoa que foi revelada através do
fogo sagrado até o local do Ritual.
__ E aonde eu entro ne-nesta his-história? -- quis saber,
tentando entender aquelas coisas estranhas que Albertinus
me contava.
__ Você vai ser o novo membro da Ordem dos
Mentecaptos.

gutole@bol.com.br 13 http://lergratis.cjb.net
__ Quê? Ma-mas foi o me-meu rosto que vo-você viu no
fogo?
__ Que nada, cara. Nem eu nem o Mentor vimos rosto
nenhum. Trata-se tudo de uma grande encenação para
iludir os imbecis que acreditam nestas coisas.
__ Co-como?
__ Não tente entender nada agora. Com o tempo, se
você for perceptivo, vai ver o porquê de as pessoas terem
necessidade destas baboseiras. Agora aperte o passo
senão vou me dar mal.
Era exatamente meia-noite quando eu e Albertinus, após
atravessarmos um denso matagal, nos aproximamos do
lugar do Ritual.
Na hora que chegamos, um dos Cavaleiros desligou o
rádio que tocava um pagode e, logo em seguida, deu ordem
para todos pararem de beber e comer.
Meio cambaleantes, os Eleitos foram vagarosamente
formando um círculo ao redor da fogueira. Um som
proveniente de uma corneta antecedeu a entrada teatral do
Mentor no Solo Sagrado.
__ Aproximai o emissário! -- exclamou o Mentor, um
homem trajando uma espécie de hábito monástico branco,
com um capuz repleto de estrelas vermelhas bordadas.
__ Trouxe nosso novo membro. Eis o eleito! -- disse
Albertinus num tom de voz bem diferente do habitual.
Conduziu-me para o centro do círculo, entre a fogueira e o
Mentor. Este, fitou-me longamente, antes de estender seus
braços para mim e me beijar na testa.
__ Como os mortais te chamam, meu filho? -- inquiriu-me
o velho encapuzado.
__ Sa-Saulo Lebre -- respondi, tremendo feito uma vara
verde.
O Mentor parecia incomodado com minha gagueira. O
sutil olhar de reprovação que lançou em direção a Albertinus
me deu a entender isto.

gutole@bol.com.br 14 http://lergratis.cjb.net
__ Percebi, caro filho, que o invólucro de sua alma
apresenta uma deficiência na diccão. Quereis ficar curado
desta limitação, nobre Eleito?
__ Cla-claro -- respondi sem hesitar.
__ Se assim o desejais, assim haverá de acontecer.
Amanhã de manhã, guiado por Albertinus, seu guia
espiritual, irás a um outro Solo Sagrado, onde curarei você
desta guagueira e te introduzirei na Sagrada Ordem
Esotérica dos Mentecaptos. Aceitai esta benção, meu filho,
e verás como tudo se transformará em sua vida.
De gago tornei-me mudo, completamente embevecido
pela promessa daquele homem que aparentava ser tão
sério e dotado de um extraordinário poder sobrenatural.
Ademais, o ambiente que me envolvia evocava meu lado
místico, gerando uma profunda confiança naquelas pessoas
que, em breve, tornariam-se meus companheiros e guias no
caminho que haveria de trilhar em busca de minha cura e de
meu sucesso pessoal.
Lembro-me ainda, que aquela noite terminou num clima
de grande esperança, o que me impulsionou a assinar
alguns papéis que os bondosos membros da Ordem me
deram.
Assim foi como tudo começou.

CAPÍTULO II
A PARTIDA

gutole@bol.com.br 15 http://lergratis.cjb.net
As pessoas têm que lutar pelos seus objetivos, custe o
que custar e doa a quem doer. Meu objetivo era curar minha
gagueira, e graças à Ordem dos Mentecaptos, sentia-me
mais do que nunca fortalecido e iluminado pela coragem,
perseverança e entusiasmo. No caminho que iria seguir não
sabia o que havia de encontrar pela frente, mas tinha plena
convicção que venceria, pois só os fortes e sábios vencem.
A sabedoria da Ordem era elementar para vencer os
obstáculos que os Mensageiros impunham. Era sabido que
tanto existiam Mensageiros bons, cavaleiros iluminados,
como também existiam os Mensageiros demoníacos,
cavaleiros das trevas -- conhecidos também, erroneamente,
por Mensageiros da Libertação.
Que fique bem claro que os bons Mensageiros são os
nossos guias iluminados, cabendo a eles conduzir nossos
caminhos. Contudo, tinha a obrigação de seguir os
ensinamentos da Ordem dos Mentecaptos -- a verdadeira
receita para uma vida mais tranqüila, livre e feliz.
Na Ordem pude aprender que, em nossas vidas, o
dinheiro deve ficar em planos inferiores, apesar de que no
mundo material ele reina absoluto. Mas este conceito se
torna uma ilusão a partir do momento que crescemos nos
ensinamentos da Ordem; nossa aura se expande à medida
em que avançamos os graus iluminados da mesma,
ampliando nossas fronteiras energéticas.
Antes de fazer parte da Ordem, meu objetivo era tão
somente o de substituir minha gagueira por uma voz
persuasiva, com o intuito de me transformar num grande
líder, numa espécie de poderoso chefão, rico,
multimilionário. Então eu também buscava a perfeição da
minha aura, e para isso tinha que curar minha gagueira. A
importância de curar minha voz passara a planos
energéticos. Com o meu canto, dotado de uma dicção mais
harmoniosa, eu poderia atingir o âmago das vibrações
cósmicas, e por conseguinte, minha aura poderia atingir o
nível máximo da perfeição.

gutole@bol.com.br 16 http://lergratis.cjb.net
Todas essas coisas maravilhosas a que me referi,
aprendi com o Mentor. Acreditava ser uma pessoa
iluminada. Além de ter sido escolhido pelo destino, assimilei
muito conhecimento no pequeno espaço de tempo que
permaneci na Ordem. Prova disso foi minha ordenação de
Cavaleiro, que só não fora concluída porque, realmente, eu
não estava preparado no momento para tal grau.
Lamentava a perda do Mentor, o qual teve seu corpo
todo enrolado por faixas brancas, assim como eram
envoltos os eternos imperadores mumificados.
À noite, reunimos todos os membros da Sagrada Ordem
dos Mentecaptos para a realização do Ritual de
Mumificação e Consagração Energética, coordenado por
Albertinus. O ato sagrado foi realizado no quintal de minha
casa.
Por tradição da Ordem, o momento mais importante do
ritual deveria ser executado por uma moça virgem, e a
pessoa escolhida foi a minha vizinha, que de virgem não
tinha nada -- nem mesmo o próprio signo. A idéia iluminada
tinha sido de Albertinus, que conseguiu convencer os
demais membros a respeito da pureza da moça.
Meia-noite, debaixo de uma lua cheia exorbitante,
próximos à fogueira, iniciamos o Ritual, estendendo as
mãos em direção ao corpo nu do Mentor, que estava
deitado sobre um cobertor de pele de carneiro. O meu
cachorro e a cadela da vizinha assistiam tudo passivamente,
sentados juntos um do outro, formando um casal perfeito.
Albertinus entregou uma faixa para cada membro e pediu
para que, um de cada vez, enrolasse o Mentor, iniciando
assim o processo de mumificação.
Em poucos minutos o corpo nu do Mentor havia sido todo
coberto pelas tiras brancas. Albertinus pediu para minha
vizinha se aproximar dele. Depois, sob o olhar atônito do
grupo, tirou um medalhão azul do bolso de sua camisa
estampada e pôs-se a orar:
__ Em nome da Sagrada Ordem dos Mentecaptos,
atribuo a mim os poderes iluminados da Ordem, por possuir
gutole@bol.com.br 17 http://lergratis.cjb.net
a maior graduação em relação a todos que aqui estão
presentes, e venho através dessa virgem invocar a aura do
nosso Mentor, cuja energia extra-corporal será armazenada
no Medalhão Azul de safira. Tome, virgem. Faça o que tem
de ser feito -- disse Albertinus de supetão, entregando o
medalhão para a moça.
Verusa Nandis, a minha vizinha, filha de um político
viúvo, administrador da fazenda em que eu trabalhava,
pegou o medalhão em suas mãos quentes e ficou a admirá-
lo. Ela parecia hipnotizada. Seus olhos, estatelados; seus
gestos, inertes.
Albertinus, com a voz alterada, entrando em estado de
alfa, prosseguiu com as instruções:
__ Coloque o medalhão sobre o terceiro olho do Mentor,
ou seja, na testa dele. Isso, muito bem, Verusa. Agora, com
os olhos fechados e as mãos estendidas, iremos invocar a
aura do Mentor, que será sorvida pelo medalhão. Não
abram os olhos, senão a luz da transmutação poderá cegá-
los para sempre. Ouçam apenas o ruído sagrado do fluxo
energético, deixando-o contagiar as suas mentes para
neutralizar as forças negativas que estão destruindo as suas
vidas.
O ruído era algo inusitado, parecendo com o estalido de
galhos sendo devorados pelo fogo brando de uma
preguiçosa fogueira. Senti um calafrio que atravessou o
meu corpo dos pés à cabeça. Minha intuição dizia que algo
de muito estranho estava ocorrendo ao meu redor. Era
como se houvessem várias pessoas se movimentando, indo
de um lado para o outro, ao nosso redor. De repente, uma
luz forte refletiu-se em minhas pálpebras, como se uma
lanterna estivesse mirada nelas. A ansiedade consumia
minha curiosidade; eu queria ver o momento mágico da
transmutação energética.
Poucos minutos depois daquela luz intensa refletindo em
minhas pálpebras, ouvi a voz de Albertinus, que ordenou.
__ Agora, todos podem abrir os olhos, calmamente.

gutole@bol.com.br 18 http://lergratis.cjb.net
O corpo mumificado do Mentor havia desaparecido.
Verusa encontrava-se em posição de meditação
transcendental no centro da roda, e segurava o Medalhão
Azul com suas mãos estendidas em direção à lua. Ela
estava totalmente desfigurada: o cabelo bem solto, uma
maquiagem e roupas diferentes, parecendo mais um bruxa
do que uma deusa. Nós, membros da Ordem Sagrada dos
Mentecaptos, olhamos uns para os outros, boquiabertos,
perplexos, maravilhados.
Albertinus aproximou-se de mim, pôs suas mãos santas
em meu ombro, e revelou:
__ Saulo Lebre, você foi escolhido para matar dois
coelhos com uma cajadada só. Logo que o sol despontar,
você partirá para Varginha, e levará contigo o Medalhão
Azul que contém a aura do Mentor. Sua incumbência é
encontrar a Esfinge Dourada e levá-la até a cidade de São
Tomé da Letras, para onde o corpo do Mentor foi
teletransportado.
__ Em que lo-local da cidade ele e-está?
__ Cabe somente a você descobrir onde está a múmia
do Mentor. Sem ele você nunca irá se curar de sua
gagueira. Isso só vai acontecer quando você passar ao grau
e título absoluto de Cavaleiro Iluminado. E somente o seu
Mentor poderá concluir esse ritual de graduação. Pegue o
medalhão, coloque-o em seu pescoço e, aproveitando a
ocasião, vamos festejar a sua partida.
Aquela madrugada passou como um relâmpago. O
churrasco estava muito animado: dançamos forró, bebemos
e comemos de tudo. Lá pelas duas da manhã, inventamos
uma nova brincadeira: caça Verusa. A minha vizinha corria
para o mato, e aquele que conseguisse capturá-la ganhava
um ponto. Repetimos a caçada por várias vezes. O
vencedor da brincadeira foi Albertinus, computando 15
pontos.
Antes do sol nascer, despedi-me do meu cachorro e fui
acompanhado pelos membros da Ordem até a precária
estação ferroviária da Colônia. Albertinus disse-me que eu
gutole@bol.com.br 19 http://lergratis.cjb.net
não precisaria levar nada para a viagem, a não ser uma
mochila com roupas e algum alimento e o próprio Medalhão.
Ele me garantiu que os guias estavam cientes de minha
peregrinação, e tudo o mais que eu precisasse, era só pedir
a eles.
__ Mas co-como eles sa-saberão quem so-sou eu? --
indaguei, temeroso.
__ Você irá encontrá-los usando o poder do Medalhão.
Ah! muito cuidado. Não esqueça, em momento algum, que a
aura do seu Mentor está fixada no interior dele. Por isso,
não o perca e nem o destrua; ele é a sua única esperança
de curar sua gaguez.
Verusa, com um ar tristonho, tinha os olhos inchados de
lágrimas que escorriam pelo seu rosto maquilado.
Aproximei-me dela e pedi-lhe, num tom de despedida:
__ Mi-minha querida vi-vizinha, não cho-chore. Não há
pe-perigo. Você não vai-vai ficar so-sozinha. O A-Albertinus
vai ficar mo-morando em minha ca-casa. Eu já-já entreguei
a ele as cha-chaves da minha ca-casa e do meu co-cofre.
__ E quem poderá me salvar das pessoas maldosas que
porventura venham assaltar minha casa. Juro que estou
morrendo de medo; é por isso que choro -- murmurou
Verusa, toda trêmula.
__ O Albertinus, é cla-claro. Ele pro-prometeu cuidar do
meu cão-cãozinho, cortar a gra-grama, e ficar res-
responsável por sua se-segurança, até eu re-retornar.
Albertinus olhou confiante e sorriu para Verusa, a qual
usava um decote muito avançadinho. Ela parecia ter
concordado. Aliás, não havia tempo para mais nada. A
Maria-fumaça parou na modesta estação da Colônia. O
maquinista, grosseiramente, gritou:
__ Vamos logo com essa moleza. Se tiver algum
passageiro que entre logo, porque já estou partindo --
avisou tocando a buzina à vapor do trem.
Ligeiro, pulei no degrau e segurei-me na porta do trem.
Antes da Maria-fumaça partir, acenei para meus amigos da
Ordem. Albertinus, abraçado com Verusa, consolava a
gutole@bol.com.br 20 http://lergratis.cjb.net
pobre moça, que naquele instante parecia mais rir do que
chorar.
O trem partiu; a estação foi se distanciando dos meus
olhos. Entrei no vagão de passageiros, meio ressabiado;
assustado com aquela gente estranha, sisuda ...

***
__ ... Agora, es-estou aqui, pro-procurando o meu-meu
guia. Vo-você é o último passageiro que-que faltava para eu
con-contar essa hi-história que es-estou fa-farto de na-
narrar. E en-então? O que vo-você me diz? É ou não é o
meu gui-guia? -- indaguei ao sujeito sentado no banco
individual da última fileira, no fundo do vagão.

CAPÍTULO III
gutole@bol.com.br 21 http://lergratis.cjb.net
UM NOVO ENGANO

__ Estive pensando bem nas coisas estranhas que você


me disse -- falou-me o homem que se encontrava sentado
ao meu lado, na última fileira de poltronas do trem. __ Creio
que poderei lhe ajudar, meu caro amigo.
Seria ele o meu guia? Em minha ingenuidade caipira
fiquei atento ao que ele me dizia.
__ Eu sou o Pastor Willian, missionário da Terceira Igreja
Reformada dos Contra Reformadores e vim a estas bandas
para anunciar o evangelho e arrecadar almas para a minha
comunidade.
__ O se-senhor é pa-pastor? Não sa-sabia que se in-
interessava por co-coisas deste tipo em que es-estou
envolvido.
O homem ajeitou sua gravata brilhante e adotou uma
postura bem persuasiva ao meu lado.
__ Eu fui agraciado com o dom divino de perceber uma
boa oportunidade em minha vida. Oportunidade missionária,
é claro.
__ E o que de-devo fazer?
__ Em nossa existência temos necessidade da
assistência e solidariedade dos estranhos que cruzam
nossos caminhos. Mas, nada vem de graça. Para que o
milho cresça e o milharal dê boas espigas, é preciso plantar
e cuidar das sementes. Antes, porém, é necessário comprá-
las.
__ De-desculpa, mas não en-entendi.
__ Minha gratuita solidariedade requer alguma espécie
de recompensa. Caso contrário, meus esforços serão em
vão. Não é verdade, meu filho?
Aquela conversa, não sei direito o porquê, fez-me
lembrar das palestras em fita cassete do Dr. Ribero, que há
semanas ouvia também em vão. Naquele momento, porém,
gutole@bol.com.br 22 http://lergratis.cjb.net
considerei ser mais prudente não fazer nenhuma menção à
inusitada coincidência.
__ Co-como de-devo a-agir? -- Minha ansiedade era tão
intensa que minha gagueira aumentara repentinamente.
O homem de terno azul e gravata brilhante ergueu as
sobrancelhas, abriu um vistoso sorriso e colocou sua
bronzeada mão, ornada com um belo anel, em meu ombro.
__ Não tenhas tantas preocupações, bom homem. Olhai
os lírios dos campos e as aves dos céus. Veja como nunca
lhes falta aquilo que lhe é necessário para sua
sobrevivência. E sabe por quê? Simplesmente porque
alguém cuida deles. E eu cruzei seu caminho justamente
para cuidar de você.
Fiquei cativado pela atenciosa preocupação daquele
estranho para comigo. Sentia-me protegido, amparado. Não
pude, assim, resistir a tamanha intenção em aceitar seu
auxílio.
__ O se-senhor é muito bom. Pa-parece até um Me-
Mensageiro do Bem.
O pastor conteve educadamente uma gargalhada.
Deveria estar envergonhado pelo meu elogio.
__ É, você está com a razão. Abandonei tantas coisas
nesta vida tão somente para ser um mensageiro do bem.
Quantas renúncias! Quanto sacrifício! E o pior, meu bom
amigo, é que as pessoas me vêem com este fino terno de
linho e acham que eu exploro a boa vontade dos humildes.
__ Que ca-calúnia! -- indignei-me diante da desoladora
afirmação do pastor.
__ Realmente. Veja você que estou indo para Varginha a
fim de cuidar das almas do povo pobre da periferia. E eu
tenho certeza que serei vítima dessa difamação por aqueles
que me virem de terno entrando nas casas simples dos
filhos de Deus. Ah, se alguém pudesse me ajudar!
O homem bondoso colocou a Bíblia em seus olhos e,
discretamente, começou a chorar.
Prontifiquei-me a retribuir sua ajuda e atenção,
colocando-me à sua disposição para o que precisasse.
gutole@bol.com.br 23 http://lergratis.cjb.net
__ Quanta bondade encontro em seu coração, meu caro
amigo. Eu ainda nem lhe fiz nada e você já vem querendo
recompensar meus esforços. Eu vou orar por você, nobre
amigo, e tenha certeza de que atingirá seus objetivos.
Agora, antes que eu possa dedicar-lhe minha assistência,
queira me acompanhar até o vagão de trás, por obséquio.
Atravessamos algumas cabines pelo estreito corredor
que terminava nos banheiros do trem. O Pastor Willian, em
voz baixa, na porta do banheiro, disse-me que ficaria
eternamente agradecido se eu trocasse de roupa com ele,
pois assim poderia realizar seu trabalho missionário de um
jeito mais simples, afastando os obstáculos produzidos pela
maldade daqueles que o caluniavam.
Achei bem estranho o pedido, e inclusive argumentei
dizendo-lhe que minhas roupas também eram peças finas,
as melhores que eu tinha, compradas após meses e meses
de uma estóica economia.
__ Eu nem havia notado que suas roupas são também
finas -- falou o pastor. __ Mas, pelo menos, não são de linho
de primeira, como é meu terno.
__ Não que e-eu nã-não queira a-ajudar o se-senhor.
Como o se-senhor sa-sabe, eu a-ainda te-tenho um longo
ca-caminho pela frente e vai ser be-bem difícil pra mim ir de
te-terno por aí.
O Pastor Willian pegou a Bíblia que estava debaixo de
seu braço e colocou-a na frente dos olhos, começando a
chorar; agora com mais ênfase.
Perturbado com a situação, sem saber o que fazer, tentei
explicar ao homem que não era má vontade de minha parte,
pelo contrário, estava imensamente agradecido por ele ter
se disposto a me ajudar, mas para eu viajar de terno, ficaria
muito incomodado, principalmente por não saber ao certo se
teria de caminhar por matas e montanhas até chegar ao
meu destino.
__ E se eu for realmente um de seus guias? E se você
estiver sendo testado em relação ao seu espírito fraternal?

gutole@bol.com.br 24 http://lergratis.cjb.net
E se depender deste gesto o sucesso ou o fracasso de sua
jornada?
As palavras do Pastor Willian (ou talvez do Cavaleiro
Iluminado disfarçado) me gelaram. Concordei então a trocar
de roupa com ele.
__ Só mais uma coisa, caro amigo -- falou-me o homem
antes que eu entrasse no banheiro. __ Você não está
carregando mesmo dinheiro ou qualquer outro objeto de
valor consigo?
__ Não me-mesmo. Só a ro-roupa do corpo, conforme
me fo-foi ordenado -- respondi tentando proteger o
medalhão.
__ Tudo bem. Tire suas roupas e passe elas para mim.
Depois eu tiro a minha e te passo.
Dúvidas mil invadiam minha cabeça enquanto tirava
minha jaqueta de couro e o restante das roupas. Estaria
mesmo sendo submetido a uma prova pelos membros da
Ordem com a intenção de avaliarem minhas capacidades?
__ To-tome minhas ro-roupas -- disse ao Pastor Willian,
entregando-lhe meu vestuário pela porta entreaberta.
__ Tirou tudo? -- perguntou-me num tom mais áspero do
que de costume.
__ Só to-tô de cueca -- respondi, escondendo-me por
detrás da porta.
__ Pois então fique aí até eu te chamar.
Estava tremendo de frio dos pés à cabeça. E o tempo
passava e nada do pastor entregar suas roupas.
Entreabri a porta de onde estava, corri o olhar pelo
corredor do vagão e só então chamei o homem que estaria
trocando de roupa no banheiro em frente ao meu.
Nenhuma resposta.
__ Pa-pastor Willian! Me-me dá o te-terno -- supliquei
atormentado pelo frio e pela vergonha de me encontrar
naquela situação constrangedora.
Novamente, nada.
Estiquei minha perna e dei um estrondoso pontapé na
porta do banheiro defronte ao meu.
gutole@bol.com.br 25 http://lergratis.cjb.net
__ A-abra, por fa-favor! -- clamei, já bem temeroso.
Estava perdendo as esperanças quando, timidamente, a
porta se abriu. Fiquei, então, pasmo: era uma mulher gorda
olhando-me de cima a baixo.
__ Tarado! Socorro! -- desesperou-se a mulher correndo
pesadamente pelo corredor até o vagão de passageiros.
Tranquei-me dentro do banheiro, encolhendo-me de frio
e medo.
Segundos depois bateram em minha porta.
O que iria dizer? Acreditariam em mim?
Trêmulo, destravei a porta, abrindo-a vagarosamente.
Para maior espanto meu, um Gato pulou para dentro,
sentando-se na tampa da privada.
__ Nem bem começaste a peregrinação e já te meteste
em encrenca?
Quando encontrava-me a ponto de enlouquecer,
reconheci a voz do bicho: era a mesma do Gorila que
aparecera em meu Ritual de Ingresso na Ordem, no dia
anterior.
__ Vo-você é ...
__ O Mensageiro da Libertação -- disse, completando a
afirmação com um miado estridente.
__ Ma-mas vo-você não e-era um Go-gorila? -- gaguejei
atônito.
O Gato torceu o nariz, e só então respondeu-me:
__ Eu posso encarnar em qualquer espécie animal
inferior. Bem, isto não importa. O que eu quero saber é o
que aconteceu com você, Saulo Lebre?
Com dificuldade, contei ao gato o que ocorrera.
__ Quer dizer então que o sujeito te trapaceou?
__ Não é po-possível. E-ele pa-parecia tão bom.
O Gato mostrou os afiados dentes, como que
desaprovando o que eu dissera.
__ Saulo Lebre, lição número um: nunca confie em
alguém se baseando apenas em sua agradável aparência e
refinados modos.
__ Quer di-dizer que ...
gutole@bol.com.br 26 http://lergratis.cjb.net
__ Quero dizer que o sujeito te engrupiu e sumiu com
suas roupas.
Ouvi a buzina apitar e senti o trem parar. Uma marcha de
passos firmes foi se aproximando do banheiro. Percebi,
então, que deixara a porta entreaberta quando o
Mensageiro da Libertação entrou.
__ Quem é o senhor? -- perguntou-me um jovem fardado.
__ E o que tá fazendo só de cueca com um gato neste
banheiro? -- inquiriu-me o condutor do trem.
__ E o que o senhor pretendia fazer com minha mulher?
-- interrogou-me furiosamente um brutamontes ao lado da
mulher gorda do banheiro.
Acuado, olhei para o Gato. Ele parecia sorrir.

gutole@bol.com.br 27 http://lergratis.cjb.net
CAPÍTULO IV
O ENCONTRO COM O GUIA

O meu coração batia cada vez mais forte. Não havia


como escapulir daquela situação embaraçosa em que eu
havia me envolvido. A janela do banheiro era muito
pequena, e nem mesmo o Gato seria capaz de atravessá-la.
Eu não conseguia dizer uma só palavra; era como se o gato
tivesse comido a minha língua.
Ninguém iria acreditar na minha história; ainda mais eu
sendo um sujeito estranho naquela cidade. Mas havia uma
esperança de acabar com o mal-entendido. A única pessoa
que poderia me tirar daquela enrascada era o meu Guia.
Mas onde será que aquele membro da Ordem dos
Mentecaptos havia se metido?
Maldito pastor! Caí feito uma barata tonta na conversa
dele. Levou meu terno novinho e só não fiquei sem minha
cueca por muita sorte -- se é que posso chamar isso de
sorte.
A mulher gorda, ainda assustada, escondida atrás do
maquinista, olhava-me de longe. O homem forte aproximou-
se de mim e agarrou-me pelo medalhão.
__ Pa-pare com-com i-isso! Eu não tô-tô con-
conseguindo re-respirar -- implorei meio esgoelado.
O sujeito monstruoso soltou-me e, com muita fúria, pisou
no rabo do Gato. O coitado do Mensageiro da Libertação
pulou para o alto e fincou suas garras no teto, ficando de
cabeça para baixo. Tomei coragem e encarei o sujeito de
frente:

gutole@bol.com.br 28 http://lergratis.cjb.net
__ Tu-tudo bem, vo-você po-pode se-ser gi-gigante, ma-
mas não é do-dois. Po-porque não en-encara um do se-seu
ta-tamanho? -- falei num tom áspero, peitando o
brutamontes. __ E a-ai de vo-você se re-relar ou-outra ve-
vez no Ga-gato.
__ Isso só pode ser uma piada! -- exclamou o
brutamontes, voltando-se para sua esposa. __ Margarida,
meu amor, você deve estar brincando comigo! Esse sujeito
é gago. Veja com seus próprios olhos; ouça com seus
próprios ouvidos. Isso não faz mal pra ninguém.
A mulher, mais tranqüila, aproximou-se de mim e,
levando as mãos à boca, fitou meu corpo da cabeça aos
pés. Depois fez biquinho, tornou a olhar novamente, tomou
um ar duvidoso e presumiu:
__ É, Ricardinho, você tem razão. Ele não é lá essas
coisas! Ainda mais usando essa cueca de bolinhas
amarelinhas. Eu, hein? Vamos embora daqui!
__ Vamos, então, meu amor -- disse o sujeito pegando
sua amada nos braços. __ Temos coisas melhores para
fazer na vida do que ficar discutindo com esse tipo de gente.
O casal deixou o vagão. Suspirei fundo, aliviado. A única
coisa que me intrigava era o tal maquinista que segurava
com as mãos uma saco de feijão, aberto. O saco era grande
o suficiente para cobrir o meu corpo quase nu. Era só fazer
um buraco que coubesse o meu pescoço e o meu problema
de indumentária estaria resolvido. Com aquele saco daria
para fazer uma camisa bem comprida, cobrindo-me até o
joelho.
__ Dá-dá o sa-saco pra eu me co-cobrir -- pedi ao
maquinista, estendendo-lhe as mãos.
Entretanto, ele não atendeu minha súplica; continuava a
olhar em direção ao Gato. O que será que havia visto no
pobre animal? Fetiche? Enchi os pulmões de ar, dei um
passo à frente e berrei:
__ E-ei, es-escuta-me. O-olha eu a-aqui!
__ Não me perturbe. Se eu fosse você eu permaneceria
onde está.
gutole@bol.com.br 29 http://lergratis.cjb.net
__ Por-por que vo-você tá o-olhando a-assim pa-para o
Ga-gato? -- indaguei preocupado com o olhar estranho
daquele sujeito.
__ É que eu quero capturá-lo. Agora cale essa boca e
não espante o animal, senão você vai se ver comigo.
__ Ma-mas por-por que vo-você quer ca-capturá-lo?
__ Eu vou derretê-lo no tacho pra fazer sabão. Tá
satisfeito, agora? Tá? -- revelou o maquinista irritadíssimo,
sem largar o saco um só minuto.
__ Sa-sabão?
De súbito, um anão, segurando uma vassoura, entrou
apressado no vagão esbarrando em tudo o que via pela
frente. Depois, aproximou-se do maquinista e, cansado,
disse-lhe:
__ Rodnaldo, aqui está a vassoura.
__ Ainda bem que você chegou, Peteleco! -- suspirou o
maquinista, ainda com o saco nas mãos.
__ O que eu faço com a vassoura? -- quis saber o
pigmeu sentando numa poltrona.
__ Cutuque o Gato. Vá, derrube-o do teto.
Nas pontas dos dedos Peteleco ergueu a vassoura e
pôs-se a batê-la no Gato, o qual tinha suas garras
fortemente fincada no forro do vagão.
Sem dó ou piedade, o anão bateu a vassoura de um lado
para o outro. O Mensageiro não conseguiu se manter preso
no teto e despencou, caindo dentro do enorme saco do
maquinista Rodnaldo.
Tudo havia ocorrido muito rapidamente. Quando pensei
em impedir o anão de derrubar o Gato com a vassoura, já
era tarde demais. O maquinista amarrou a boca do saco
com uma tira e correu abraçar o anão:
__ Conseguimos. Nós conseguimos -- gritava Rodnaldo,
loucamente.
Ambos pulavam de uma lado para o outro, numa alegria
de euforia descomunal. Aproveitei a oportunidade e, sem os
dois perceberem, abri o saco de feijão. O Gato saiu feito um
vento.
gutole@bol.com.br 30 http://lergratis.cjb.net
Antes, porém, de fugir do local, o Mensageiro da
Libertação olhou para mim e disse-me em tom irônico:
__ Saulo Lebre, lição número dois: nunca dê uma
segunda chance para seu inimigo; você poderá estar dando
a ele a sua vitória.
Num chispo, o Gato passou por debaixo das pernas do
maquinista, fintou o anão e saltou para fora do trem,
desaparecendo-se logo em seguida. Eu não havia
entendido direito o significado daquela “lição número dois”;
mas havia ficado muito feliz pelo Mensageiro da Libertação
ter escapulido das garras do sujeito que queria transformá-lo
em sabão.
Com uma mordida, abri um largo buraco no saco, o qual
serviu-me muito bem como uma camisa improvisada.
Caminhei até a saída do trem, para onde Peteleco e
Rodnaldo haviam se encaminhado às pressas, e dei de cara
com eles na porta do vagão.
__ Maldição! Você estragou tudo. Que raios de membro
é você? Desça logo desse vagão e venha até aqui --
ordenou o maquinista, colérico.
Vestido no saco, desci o degrau do vagão e pisei na
calçada de pedras lascadas da estação ferroviária de
Varginha. As pessoas que transitavam pelo local, quando
olhavam em minha direção, arregalavam os olhos e riam
displicentemente, como se eu fosse um palhaço.
As pessoas sempre acharam graça de minha gagueira.
Mas por quê elas riam de mim se sequer havia dito alguma
palavra? Talvez, seja porque o maquinista berrava comigo.
__ Você estragou tudo -- disse o maquinista, pegando-
me pelo braço. __ Seu idiota! Você ajudou o seu demônio
particular fugir do meu saco de feijão.
__ Ma-mas o se-senhor di-disse que-que ia fa-fazer sa-
sabão de-dele. Eu fi-fiquei com dó do po-pobrezinho -- falei,
justificando o meu ato generoso.
Rodnaldo suspirou fundo, e balançou a cabeça de um
lado para outro, esquisitamente. Por quê será que ele
estava tão irritado comigo? Aliás, eu não o conhecia e
gutole@bol.com.br 31 http://lergratis.cjb.net
nunca o havia visto em lugar algum. Será que eu havia
encontrado o meu guia? Não foi nem preciso perguntar, a
resposta veio de imediato.
__ Tudo bem. O que passou, passou, e ponto final --
disse o maquinista Rodnaldo falando sozinho. Depois
voltou-se para mim e apresentou-se: __ Como vai. Meu
nome é Rodnaldo Luz, sou maquinista de profissão e Guia
da Sagrada Ordem dos Mentecaptos nas minhas folgas.
__ Gui-guia! -- exclamei, abraçando-o.
O anãozinho, que acompanhava Rodnaldo, ficou
enciumado e murmurou:
__ Ih! Vê se precisa disso. O gaguinho é muito
sentimental.
__ Que-quem é sen-sentimental? -- indaguei, encarando
o pigmeu Peteleco.
__ Cale a boca! Sou eu que vou falar agora. Vamos
andando, que já perdemos muito tempo à toa.
Mansamente, obedecemos a ordem de Rodnaldo.
Peteleco não parava de me encarar com aquele olhar de
inveja e indignação. Saímos da estação, e seguimos em
direção ao subúrbio da cidade. A vegetação densa, ladeava
a pacata cidade de Varginha, que em suas montanhas
escondia os misteriosos aparecimentos de extra-terrestres,
provavelmente atraídos pela concentração energética
daquela região sagrada.
Depois de uma breve caminhada em silêncio, Rodnaldo,
mais cativante, iniciou um novo diálogo comigo.
__ Então você entrou para o Ordem do meu amigo
Albertinus?
__ Co-como vo-você sa-sabe?
__ Ora essa, eu sou o seu Guia. Sei tudo da sua vida e
das pessoas com quem você convive. Pelo que vejo em
você, Saulo Lebre, a sua aura ainda é muito atrofiada,
atrasada no que diz respeito ao Crescimento Iluminado.
__ A-atrasada? -- inquiri não compreendendo o que o
meu Guia havia dito.

gutole@bol.com.br 32 http://lergratis.cjb.net
__ Antes de me dizer qual rota que pretende seguir no
Caminho de São Tomé das Letras, gostaria de saber a
quanto tempo você está na Ordem Sagrada dos
Mentecaptos?
__ Vo-você disse que sa-sabia tu-tudo so-sobre mi-minha
vida, en-então não pre-preciso responder à per-pergunta.
__ Saulo, Saulo. Nunca questione minhas perguntas; aja
como deve agir um Cavaleiro Iluminado. Responda todas as
dúvidas de seu Guia, sem delongas ou mentiras.
Naquele momento senti uma paz imensa nas palavras
proferidas por Rodnaldo. Ao meu lado, o anão me olhava
com um ar de riso e deboche. Não me preocupei com
aquele ser inferior, enchi os pulmões do ar puro da cidade e
disse:
__ Fa-faz po-pouco ma-mais de um di-dia que e-eu en-
entrei na O-ordem.
__ Então você não conhece nenhum dos exercícios
sagrados?
__ E-exercícios?
__ Pelo jeito, não sabe mesmo. Vamos caminhar mais
rápido que estamos um pouco atrasado. Quando
chegarmos no Albergue da Ordem, depois do jantar, eu lhe
explico tudo.
Exercícios? A coisa que eu mais odiava na escola eram
as aulas de educação física. Esse negócio de exercício já
estava me incomodando.
Pelo caminho, Rodnaldo deu-me algumas instruções:
antes de começar a peregrinação na busca pela Esfinge
Dourada, eu teria que escolher uma rota, partindo de
Varginha, até a cidade de São Tomé das Letras. Esse
caminho seria escolhido por mim, num Ritual que era
realizado nas dependências do Albergue da Ordem.
A tarde caía, gradativamente. O Albergue despontou logo
à frente, em contraste com o apaixonante crepúsculo. Senti-
me feliz por estar naquele lugar sagrado ao lado de
Rodnaldo, meu Guia, e de Peteleco, o anão invejoso.

gutole@bol.com.br 33 http://lergratis.cjb.net
CAPÍTULO V
QUE TRAPALHADA!

Tomei um saboroso banho, coloquei a roupa que


Rodnaldo me dera e desci do meu quarto até a biblioteca do
Albergue, aguardando o início do Ritual secreto que iria
indicar-me o caminho da peregrinação até São Tomé das
Letras.
Pus-me a olhar os livros: a literatura era majoritariamente
de cunho esotérico e místico. Detive minha atenção em um
escrito de capa marrom que relatava as secretíssimas
cerimônias de uma antiga seita.
__ Vejo que se interessa por textos sagrados -- ouvi
nitidamente uma grave voz, sem contudo ver quem a
pronunciara.
Uma lagartixa de rabo comprido apareceu no vazio
deixado pelo livro que eu retirara da estante e ficou a me
observar.
Teria sido ela quem me falou? Muito provavelmente
deveria ser outro Mensageiro transmutado em animal, vez
que sua voz era distinta do demônio que eu vira em meu
Ritual de Iniciação e posteriormente no banheiro do trem.
__ Vo-você é também um Me-mensageiro? -- inquiri a
lagartixa, olhando fixamente em seus miúdos olhos.
__ Por que me dizes isto?

gutole@bol.com.br 34 http://lergratis.cjb.net
__ O-ora, os Me-mensageiros não vi-viram bichos
quando que-querem se co-comunicar com as pe-pessoas,
hein, do-dona la-lagartixa?
__ Mas que diabos você está falando, homem?
Foi então que virei meu pescoço, notando que a voz
provinha de um sujeito trajando um enorme casaco preto
que se encontrava ao lado de uma armadura medieval, no
fundo da sala, oculto pela escuridão do lugar.
__ Me-me de-desculpe -- falei envergonhado pelo meu
engano. __ É que e-eu confundi o se-senhor com u-uma la-
lagartixa.
A emenda ficou pior que o soneto. O cara do casaco
preto fez uma cara feia, coçou sua barba branca e saiu da
biblioteca, não falando mais nada.
Enquanto eu pensava no fora que eu dei, Peteleco
entrou pela porta lateral e pediu-me para acompanhá-lo até
o escritório do Albergue.
Quando abri a porta, avistei Rodnaldo com feições nada
agradáveis.
__ O que você é? Um terrorista islâmico ou algo
parecido?
Sem entender o motivo de tanta fúria, envergonhado e
confuso, indaguei-lhe a respeito do fato.
__ Não se faça de bobo, Saulo Lebre. Você expulsou o
Grão-mestre do Albergue e ainda quer dar uma de idiota.
Aliás, idiota você realmente é. Ah, se você não estivesse
com o medalhão portador da aura do Mentor, eu nem sei o
que seria capaz de fazer com você agora.
__ Ma-ma-mas o que-que e-eu fi-fiz? -- gaguejei
tremendamente diante daquela chuva de acusações sem
sentido.
Rodnaldo trocou olhares comigo e com Peteleco, o qual
se mantinha imóvel próximo à porta do escritório.
__ Será possível? -- perguntou meu Guia a Peteleco.
__ Olha, ou este cara é o mais tonto ou é o mais azarado
do mundo. __ Depois de uma rápida pausa, completou: __
Ou então é as duas coisas juntas.
gutole@bol.com.br 35 http://lergratis.cjb.net
Não agüentei mais. Tive de falar.
__ Vo-vocês que-querem me e-explicar o que tá a-
acontecendo?
Rodnaldo sentou-se e Peteleco puxou uma poltrona para
que eu também pudesse sentar.
Então vieram as explicações.
__ Saulo, esta noite você seria submetido a um Ritual de
Bênçãos Energéticas. Este Ritual Sagrado iria iluminar sua
mente e através dele você saberia qual o caminho a seguir
até São Tomé das Letras.
__ E po-por quê não va-vai ter mais e-este Ritual? --
indaguei.
__ Na Ordem dos Mentecaptos tão somente uma pessoa
tem poderes e autorização especial para realizar o Ritual. E
esta pessoa é justamente o Cavaleiro Iluminado que você,
de alguma forma, ofendeu e fez com que fosse embora
enfurecido do Albergue.
__ E a-agora? -- perguntei, sabendo de antemão que a
resposta não seria nada favorável.
Rodnaldo esfregou os olhos com as palmas das mãos e
levantou-se, caminhando até a janela do escritório.
__ Agora, tudo depende de você -- afirmou num tom
vacilante.
__ Não é possível, Mestre -- exclamou Peteleco
despertando de sua postura de estátua. __ Este cara não é
capaz de cuidar nem das próprias roupas do corpo, quanto
mais do medalhão sagrado.
__ Eu sei, eu sei -- replicou Rodnaldo impacientemente.
__ Mas não resta outra alternativa, senão essa: Saulo
Lebre, seu ingresso à Ordem, a aura do Mentor e o próprio
futuro de nossa Instituição Sagrada, dependem unicamente
de você.
Engoli umas cinco vezes. Meus olhos ficaram vagando
sem rumo pelo aposento. Meu coração (e outro órgão)
ficaram comprimidos.
__ Mas há uma esperança que você obtenha êxito em
sua empreita: eu irei acompanhá-lo no primeiro dia de sua
gutole@bol.com.br 36 http://lergratis.cjb.net
caminhada; nos outros dias, manterei contato com os mais
nobres Cavaleiros da Ordem, e espero que eles venham te
acompanhar, pelo menos por um dia, até você chegar ao
seu destino.
__ E a rota que ele irá seguir? -- perguntou Peteleco,
pouco satisfeito com a solução de Rodnaldo.
__ Isso, infelizmente, apenas o ... bom-senso dele é que
poderá determinar.
Peteleco desmaiou.
Rodnaldo começou a chorar.
Uma tempestade desabou repentinamente lá fora, com
fortes rajadas de vento e estrondosos trovões.
Lembrei-me das palavras do Dr. Ribero, em uma das
fitas: __ “A sorte está lançada. Se vira, cara”.
O jantar, instantes depois, realizou-se em absoluto
silêncio. Parecíamos três fantasmas, invisíveis uns aos
outros.
__ Devo ensinar-lhe o primeiro exercício necessário ao
seu crescimento espiritual -- falou Rodnaldo após a
refeição, enquanto subíamos os degraus da larga escadaria
do Albergue.
__ Que ti-tipo de e-exercício é este? -- perguntei,
disposto a colaborar em tudo com meu Guia, a fim de
amenizar a situação difícil que havia gerado.
__ Vamos até o seu aposento que eu lhe ensinarei.
Ordenou-me o Guia que eu me deitasse na cama, com
os braços estendidos paralelamente ao tronco, deixando as
palmas das mãos voltadas para cima.
Sentado ao lado da cabeceira de meu leito, Rodnaldo me
mandou iniciar o exercício através de uma profunda
respiração, procurando assim, concentrar minha atenção e
aliviar minhas tensões.
__ Agora, Saulo Lebre, visualize uma escada com dez
degraus.
__ Que ti-tipo de es-escada?

gutole@bol.com.br 37 http://lergratis.cjb.net
__ Qualquer tipo. Agora, silencie seu coração, mantenha
a respiração profunda e torne a visualizar a escada com dez
degraus.
O tom de voz do Guia era grave e suave, quase
hipnótico. Tive de obedecer suas instruções, e, assim,
imaginei uma escada rolante com degraus de borracha, do
jeito que um dia eu vira numa loja da cidade.
__ Neste instante, Saulo, veja a sua imagem no alto
desta escadaria, no décimo degrau.
__ Tô-tô vendo.
__ Fique quieto. Apenas me ouça e obedeça
mentalmente o que eu lhe falo.
Depois de um bufo enraivecido e um suspiro desgostoso,
meu Guia prosseguiu:
__ Você, neste instante, está movendo o pé direito nesta
imagem mental. Sinta isto. Perceba como é real. Este pé
está agora no nono degrau. Seu joelho está flexionando
neste momento. Seu pé esquerdo se move, e você o coloca
ao lado do outro, no nono degrau, e a cada degrau que
você desce, Saulo, você vai atingindo níveis mais profundos
em sua mente.
__ Che-cheguei.
__ Quê! Como assim?
__ Já-já cheguei lá em ba-baixo -- afirmei feliz pela minha
rapidez.
__ Mas você está apenas no nono degrau -- argumentou
meu Guia, espantado com minha afirmação.
__ É que-que eu imaginei u-uma e-escada rolante --
justifiquei-me.
Felizmente estava de olhos fechados e não pude ver o
que era aquela barulheira toda de coisas se quebrando
perto de mim.
Ouvi a respiração de Rodnaldo tornar-se menos intensa.
Ele continuou:
__ Saulo, você é meu discípulo até amanhã à noite. Eu
estou vendo que isto será uma eternidade, mas, por favor,
faça o que eu lhe determinar. Fique quieto e deixe a paz
gutole@bol.com.br 38 http://lergratis.cjb.net
deste Albergue lhe envolver. Ouça-me apenas. Você está
numa escada normal, não rolante, com os dois pés no nono
degrau. Respire profundamente e sinta quanta paz vai para
o seu interior. Você, neste instante, está flexionando o
joelho direito bem devagar. Seu pé direito está se
deslocando serenamente. Você acaba de colocá-lo no
oitavo degrau. Um nível mais profundo em sua mente está
sendo atingido e ...
__ Caí.
__ Caiu? O que você quer dizer?
__ Pe-perdi o e-equilíbrio. Ro-rolei pe-pela escada e ca-
caí de bu-bunda no chão.
Parecia que meu Guia estava chutando a parede, tal o
tremor que eu sentia na cabeceira da cama.
__ Tá legal, você já tá lá em baixo. Agora, você está
terminantemente proibido de falar ou fazer qualquer coisa
que não seja o que eu mandar. Pois bem, você está de pé
e diante de si encontra-se uma tela branca. Nela, seu
subconsciente estará liberando imagens ocultas.
Estimulado pela força sugestiva do Guia, comecei ver
coisas na tal tela mental.
__ Segredos estão sendo revelados a ti, neste momento,
Saulo. Sua mente, fragmento do Universo, está conectando
você a imagens sagradas, escondidas dos mortais não
pertencentes à Ordem. Agora, diga-me o que te é revelado.
__ A-ai, que bom! -- exclamei, não conseguindo falar
mais nada.
__ Eu posso entender que são revelações maravilhosas,
encantadoras. Partilhe elas com seu Guia, Saulo.
__ É bom de-demais.
__ O que é bom, Saulo?
__ O que eu tô fazendo.
__ Saulo, você não está mais gaguejando. Você está
sendo energizado pela Consciência Superior. O quê ela
está te revelando, Saulo?
__ A Verusa.

gutole@bol.com.br 39 http://lergratis.cjb.net
__ Verusa? Deve ser alguma entidade superior de outra
dimensão.
__ Não.
__ Então, quem é ela? Pergunte a ela, Saulo. E
descreva-me o quê de tão maravilhoso esta Verusa está
fazendo com você.
__ Amor.
__ Você tá fazendo amor com um anjo?
__ Não. Com minha vizinha.
As únicas coisas que ainda me lembro é que senti uma
forte pancada em minha cabeça e adormeci profundamente.
Estranho mesmo é que amanheci com um baita galo no
meio da testa no dia seguinte.

CAPÍTULO VI
RUMO CERTO

Levantei-me da cama e fui direto ao banheiro lavar o


rosto, pentear o cabelo; enfim, fazer as primeiras
necessidades do dia. Mal conseguia ver o meu reflexo
naquele espelho velho, todo riscado e embaçado pelo
tempo. Fixei o olhar em minha testa que ainda doía muito.
Teria sido o tombo da escada? Era muito provável que não,
pois naquele momento que eu caí, não senti nada, a não
ser aquela infinita paz tomando conta de minha mente.
Ah! Já ia me esquecendo da misteriosa pancada que
levei na testa ... Será que havia caído algum vaso de
samambaia? Não me lembrava de ter visto algum vaso
dependurado nas paredes do escritório do Albergue. Talvez
tudo aquilo teria sido um sonho. Mas o galo na minha testa
não era um sonho, era um inchaço dolorido bem real. Ou
talvez eu tivesse despencado da cama. Mas isto era pouco
provável: a cama era um colchonete estendido no chão.

gutole@bol.com.br 40 http://lergratis.cjb.net
Parei de ficar olhando para o espelho igual um idiota, e
fui atrás de respostas para minhas dúvidas. Passei pela sala
de espera, onde tinha uma antiga televisão colorida à
válvula: a imagem distorcida, o som rouco.
Não havia ninguém na sala, e a poltrona próxima ao
aparelho estava coberta por uma manta xadrez. Cheguei
mais próximo do televisor e girei o seletor, mudando de
canal. Um sujeito de terno fino surgiu na tela segurando
uma Bíblia na mão, e várias pessoas de aparência humilde
o rodeavam. O local parecia com o recinto de um circo.
Mexi em todos os botões do televisor até melhorar a
imagem e o som: foram dez minutos de muita paciência,
palavrões e desconhecimento técnico.
Com a imagem nítida e o som mais puro, consegui
identificar o sujeito que não parava de falar um só instante.
Era nada mais, nada menos, do que o safado do Pastor
Willian. Minhas mãos começaram a suar, meu coração
disparou. Tive vontade de sentar uma cadeirada na tela do
televisor. Aquele mentiroso duma figa continuava a fazer
suas indefesas vítimas.
O pastor, que tinha ao seu lado um homem se debatendo
ao chão, segurou uma moça pelo braço, e disse em tom
ávido, olhando friamente para a lente da câmera:
__ Vejam, meus irmãos, a vida desta mulher é um
verdadeiro inferno. O marido dela, que está aqui ao meu
lado rolando no chão, quando chega em casa é um
verdadeiro horror: quebra tudo o que vê pela frente, agride a
pobrezinha, e ainda xinga ela de vagabunda. O que está
acontecendo com seu marido, minha senhora?
A mulher, meio sorrindo, disse ao microfone:
__ Tudo isso o que você disse sobre ele é verdade,
pastor. Só que o senhor esqueceu de dizer que ele tem
muitas dores nas costas ...
__ Ah, sim! -- exclamou o pastor, suspirando. __ Vejam
meus irmãos, o poder que o demônio tem. Ele está alojado
nas costas deste homem. E com o nosso poder, junto
vamos libertá-lo desse mal. Talvez sua vida também seja
gutole@bol.com.br 41 http://lergratis.cjb.net
um verdadeiro inferno. Por isso procure um de nossos
pastores para ajudar a você se libertar de seus males. Neste
instante, quero que prestem muita atenção neste homem.
Em nome do Senhor, vocês irão me ajudar a expulsar o
demônio que encontra-se hospedado nas costas dele.
Num gesto sinistro, o Pastor Willian montou no sujeito e,
como se fosse um verdadeiro peão, passou a cavalgar no
dorso do pobre homem, que não parava de rosnar. As
pessoas ao seu redor ficaram eufóricas, estendiam os
braços e gritavam num tom áspero, repetidamente:
__ Sai. Sai .
Após um breve e teatral galope, o pastor passou uma
rasteira, atirando o homem ao chão. A multidão foi ao
delírio: sapateavam, gritavam, e esperneavam.
De repente, o tal sujeito levantou-se do chão sorridente
e falou ao microfone:
__ Pastor! Você me libertou. Não sinto mais nada nas
minhas costas. Estou muito feliz; feliz mesmo. O senhor é
um homem santo -- e pôs-se a beijar o Pastor Willian.
Naquele momento, aproximei-me mais da tela da
televisão e pude notar que a roupa que aquele homem
usava, era a roupa que o pastor havia roubado de mim.
Enfurecido com tudo aquilo que ocorria próximo aos
meus olhos, mas longe de mim, dei um chute certeiro na
tela do aparelho. Desequilibrei-me e caí sobre a poltrona
que estava coberta pela manta xadrez. Senti algo mole por
debaixo de mim pedindo por socorro. Entretanto, eu mal
conseguia me levantar.
Rodnaldo apareceu na sala, atraído pelos gritos.
__ Mas o que está ocorrendo aqui, Saulo Lebre? A
televisão está toda espatifada no chão e você está sentado
sobre o Peteleco. Saia já daí!
__ Socorro! -- gritava o anão, com voz e corpo
espremidos.
__ E-eu nã-não co-consigo.
Rodnaldo parou diante de mim e com muita dificuldade
estendeu-me a mão. Num puxão violento, saltei da poltrona
gutole@bol.com.br 42 http://lergratis.cjb.net
caindo sobre o meu Guia, que tinha pés e braços
enfaixados.
__ Ai. Saia de cima de mim, seu verme! -- berrou
Rodnaldo, ferindo meus tímpanos.
Quando consegui levantar, senti algo me puxando pela
calça. Olhei para trás e vi o anão segurando uma vassoura
em suas mãos. Não esperei por nada e saí em retirada,
trancando-me no banheiro.
__ Abra essa porta! -- vociferava Peteleco, batendo a
vassoura na porta.
Sentei-me no vaso sanitário. Segurei o medalhão e
comecei a chorar como uma criança birrenta. Dessa vez eu
havia passado dos limites e não teria mais uma segunda
chance. Temia que Rodnaldo me expulsasse da Ordem,
indo por água abaixo a esperança de ser curado da gaguez.
__ Abra essa porta, senão vou arrombá-la -- gritou
novamente o anão, batendo firmemente na porta.
__ Pare com isso, Peteleco -- berrou Rodnaldo, talvez
anunciando uma trégua. __ Saulo Lebre, abra esta porta.
Não vamos fazer nada com você. Seja bonzinho. Como
Guia, devo respeitar seu modo de ser, e minha função é
orientar o caminho que você deve seguir em sua vida. Abre
logo esta porta, que hoje iremos começar a sua
peregrinação.
Eu continuava em silêncio, com receio de abrir a porta e
ser surpreendido com algum tipo de repreensão.
Rodnaldo, continuava a insistir:
__ Saulo Lebre, você está me ouvindo? Olhe, eu garanto
que nada vai lhe acontecer. Se você não confia em seu
Guia, então, em quem você vai confiar? No Mensageiro da
Libertação?
Por muito pouco eu não respondi “sim”.
Soltei o medalhão de minhas mãos, levantei do vaso
sanitário e encostei na porta. Rodnaldo falou mais uma vez:
__ É sua última chance. Ou isso acaba tudo numa boa,
você sai e a gente te perdoa, ou vamos arrombar a porta, e
você arcará com as conseqüências. O que você prefere?
gutole@bol.com.br 43 http://lergratis.cjb.net
__ É ga-garantido que vo-vocês não irão fa-fazer nada
co-comigo? -- inquiri, quase confirmando o acordo.
__ Pode crer -- disse Peteleco, estranhamente.
__ Positivo, Saulo. Palavra de honra -- selou Rodnaldo,
conciso.
Criei coragem, abri um sorriso maroto e abri a porta de
supetão.
Desta vez, acordei deitado em cima de um morro, com
uma forte luz solar incidindo diretamente em meus olhos. O
galo que havia se formado em minha testa era ainda maior.
A cidade havia ficado para trás, bem distante dos meus
olhos inchados.
Aquele local era muito agradável. Ao redor havia uma
densa mata, a qual parecia um mar verde com ondas
gigantescas.
Levantei-me da rocha e avistei o meu Guia, que estava
virado de costas para mim, colocando gravetos numa
fogueira. Aproximei-me dele, meio sonolento, meio zonzo.
Rodnaldo percebeu minha presença, e segurando um
graveto em chamas, admirou-se:
__ Ah! Até que enfim o senhor resolveu acordar. Estou
preparando o almoço. Logo mais vamos partir.
O meu Guia parecia tão dócil. Talvez aquilo tudo teria
sido um sonho. Mas como explicar o galo na minha testa?
Procurei ser mais cauteloso e evitei interrogá-lo a respeito
do que havia ocorrido pela manhã.
__ O que te-temos pra co-comer?
__ Cobra peçonhenta. Segure. Tá uma delícia.
A contragosto, mas para bajular o meu Guia,
experimentei um pedaço. Que horror! Todavia, fiz cara de
quem gostou e ainda pedi outro pedaço.
Depois do almoço, Rodnaldo apagou a fogueira e
orientou-me:
__ Creio que você deva estar preparado para escolher o
seu caminho. Tome o mapa e faça a sua rota.
Peguei a caneta e o mapa da região. Com muita
paciência localizei a cidade de Varginha, a qual estava
gutole@bol.com.br 44 http://lergratis.cjb.net
assinalada com um círculo azul. A dedo, fui escolhendo meu
caminho até São Tomé das Letras: Carmo da Cachoeira,
Ingaí, Luminária, S. Bento Abade e Três Corações.
Entreguei o mapa ao meu Guia, que ficou furioso comigo.
__ Quem falou pra você rabiscar o meu mapa. Era só pra
escolher as cidades. Não era para riscar o caminho.
__ De-desculpa, Ro-rodnaldo. Eu pe-pensei que ...
__ Pensou errado.
Eu não agüentava mais a curiosidade e inquiri:
__ Po-por que vo-você tá to-todo enfaixado?
__ Cale essa boca, e me siga -- replicou Rodnaldo,
finalizando.
Caminhamos alguns metros e achamos uma trilha no
cume do morro, feita pelo gado. Seguimos a trilha morro a
baixo. Havia muitas pedras soltas pelo íngreme, estreito e
sinuoso caminho.
Houve um momento em que não consegui me equilibrar
e escorreguei numa pedra. Por muito pouco não despenquei
do morro. Segurei firmemente num pequeno arbusto.
Levantei e dei de cara com Rodnaldo, o qual soltou uma
debochada gargalhada.
__ Rhá, rhá, rhá. Isto é pra você aprender a ser mais
aplicado nos ensinamentos da Ordem. Por acaso você
nunca ouvir falar do Exercício da Pedra?
__ Nu-nunca -- respondi, ainda assustado com o tombo.
__ Eu já havia me esquecido desse detalhe: faz poucos
dias que você entrou para a Ordem. Como sendo seu Guia,
vou lhe ensinar o Exercício da Pedra.
Não conseguia nem imaginar como seria esse tal
exercício. Eu só tinha consciência de que odiava fazer
qualquer tipo de atividade física. Todavia, se o sacrifício
valesse a cura de minha gagueira, eu não poderia fugir dele.
Caminhando lentamente, Rodnaldo pôs-se a explicá-lo:
__ O exercício é simples, Saulo Lebre. São os
Mensageiros da Libertação quem colocam os obstáculos em
nossas vidas. Esses empecilhos prejudicam e até mesmo
destroem a vida das pessoas. Acredite nisto. E preste
gutole@bol.com.br 45 http://lergratis.cjb.net
atenção no que vou lhe ensinar: a partir deste momento
você irá praticar o Exercício da Pedra: toda pedra que você
encontrar em sua caminho, pegue com as mãos, e depois,
com bastante força, arremesse para trás. Entendeu? É
muito simples.
O exercício parecia ser muito fácil. Após aquelas santas
explicações, continuamos a descer o morro, seguindo a
trilha do gado. Não via a hora de encontrar uma pedra
importunando meu caminho, visto que a partir daquele
trecho não encontrara mais nenhuma.

CAPÍTULO VII
PERNAS PRA
QUE TE QUERO

Pulamos uma cerca em vão. A boiada derrubou-a com a


maior facilidade, e os marimbondos ignoraram-na por
completo.
__ Seu maluco. Incompetente -- berrava Rodnaldo com
voz ofegante, enquanto corríamos feito onça no cio.
__ Ma-mas eu só se-segui su-suas instruções -- tentei
justificar-me. __ Eu não te-tenho culpa do que-que a-
aconteceu.

gutole@bol.com.br 46 http://lergratis.cjb.net
__ Como não? Se você não tivesse acertado um cacho
de marimbondos e o touro da boiada com as pedras, não
estaríamos nessa situação.
Que coisa! Quando não obedecia as ordens era criticado;
quando obedecia -- naquele caso, jogando as pedras que
eu encontrava para trás, com bastante força -- era nova
vítima das severas admoestações do Guia.
__ E o que a gente faz agora? -- suplicou Rodnaldo
angustiado, ao depararmos com um brejo rodeado por uma
densa e fechada vegetação.
Diminuindo o ritmo, olhei para trás e vi que a boiada
comandada pelo touro com o olho inchado pela pedrada se
aproximava cada vez mais. Acima dela, parecendo uma
rajada de metralhadora, uma constelação de nervosos
maribondos vinha em disparo frontal em nossa direção.
__ Va-vamos por a-aqui, Guia. De ma-mato eu en-
entendo.
Contornamos o brejo, deslizando por sua lamacenta
margem, e entramos com enorme dificuldade naquela mata
virgem.
__ Ai, ai, ai -- gritava meu Guia, lamentando-se dos
pontiagudos espinhos que o feriam por todo o corpo.
__ Ca-calma que lo-logo vai me melhorar -- consolei-o,
apiedando-me das cicatrizes que os espinhos formaram em
seu rosto.
__ Ai. Ui. Ai -- continuava meu Guia resmungando.
Pequenos sulcos de sangue podiam ser observados em seu
outrora rostinho de neném.
Foi mesmo uma pena que Rodnaldo optara por vir de
shorts e camiseta. Caso ele estivesse de botas, calça
comprida e jaqueta jeans como eu, certamente ele não teria
sofrido tanto, mas ...
__ Ve-veja, Guia. De-depois daquelas tre-trepadeiras tem
um de-descampado. A-ali podemos de-descansar
tranqüilos.
__ Não tô vendo mais nada. Você tem certeza?

gutole@bol.com.br 47 http://lergratis.cjb.net
__ De ma-mato eu e-entendo -- insisti, indignado com a
desconfiança de Rodnaldo.
Minutos e suspiros depois, chegamos ao descampado,
saindo da dolorosa mata espinhenta.
__ Graças aos Anjos Cabalísticos escapamos daquela
adversidade. Que isto lhe sirva de lição, Saulo Lebre: nunca
deixe de confiar nas forças esotéricas que nos conduzem.
Era interessante notar aquele homem de pé e mão
enfaixados, rosto, braços e pernas arranhados e feridos
pelos espinhos, falar-me coisas tão positivas. Realmente,
ele merecia ser um nobre Guia da Ordem dos Mentecaptos.
__ Hoje, antes de partirmos, li meu horóscopo, e foi-me
dito que superaria todos os meus obstáculos, tendo um dia
feliz e agradável. É incrível como os astros lá em cima
regem nossas vidas e cuidam de nóooosss ...
Meu Guia escorregou e caiu dentro do brejo. Segundos
depois, a boiada surgiu por uma estrada de terra que havia
por perto, e junto com ela, o exército de marimbondos.
__ Seu estúpido. Você fez a gente andar em círculos e
voltar ao brejo.
O touro de olho inchado olhou para cima, acenado com o
pescoço aos marimbondos. Posteriormente, fez o mesmo
aceno, agora para o resto da boiada. Juntos, bois, vacas e
marimbondos se lançaram em direção ao meu Guia, no
brejo.
Sem saber o que fazer, escondi-me atrás de uma
trepadeira, e procurei mentalizar os astros, clamando que
protegessem meu Guia.
Cerca de quinze minutos depois, com o fim do infernal
barulho que vinha do brejo, parei com minha mentalização
energética, saí de trás da trepadeira e fui ver se os astros
realmente haviam protegido meu Guia, tornando seu dia
feliz e agradável, conforme relatado em seu horóscopo.
Bem, pode acontecer que uma criança ou uma pessoa
mais sensível leia meu Diário e fique abalada pro resto de
sua vida se eu relatar o estado físico de meu Guia após
aquele ... incidente. Assim sendo, digo apenas que eu entrei
gutole@bol.com.br 48 http://lergratis.cjb.net
no brejo e arrastei meu Guia agonizante até debaixo da
sombra da trepadeira. Abri meu cantil, e como estava
morrendo de sede, tomei quase toda a água. Lembrei-me
então do Guia, dei mais duas goladas, e dei o restinho de
água para aquele valente Cavaleiro Iluminado da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos.
Percebi, porém, que Rodnaldo não havia melhorado
muito. Achei estranho, já que sempre ouvira falar que a
água é um santo remédio.
Uma chuva fina começou a cair, limpando a lama que
cobria todo o corpo do Guia. Um trovão fez-me bolar outro
jeito para reanimar aquele bom homem.
Abri minha mochila, retirando dela meu antigo guarda-
chuva de ponta de ferro. Tirei o cabo de borracha,
descasquei um fio que também levara comigo, fazendo uma
emenda na porta do guarda-chuva. Subi numa trepadeira,
ajeitando-o num galho alto, deixando a ponta para cima,
como uma espécie de pára-raio. Descendo cuidadosamente
da árvore, parei por um instante, admirando a beleza da
mata beijada delicadamente pelos grossos pingos da chuva.
Um assustador raio caído a poucos metros de onde
estávamos despertou-me. Pulei da trepadeira, peguei o fio e
pus-me a descascar a outra ponta. Para meu azar, na hora
que estava enrolando o fio na mão desfigurada do Guia, um
raio caiu nos eletrocutando.
Eu, que pretendia reanimar Rodnaldo através da
descarga elétrica, conforme vira um médico fazendo uma
vez num filme com seu aparelho, fiquei tão desacordado
quanto ele.
Não lembro quanto tempo fiquei naquele estado. Apenas
me recordo que acordei, ainda bastante zonzo, com a língua
babenta de uma Vaca me lambendo.
__ De novo, não -- murmurou meu Guia, em estado de
choque, profundamente abalado pela visão da Vaca.
Mesmo transtornado pelo choque, fiquei feliz por ver
Rodnaldo, estirado ao meu lado no chão, mais reanimado.
__ Em que você se meteu agora, Saulo Lebre?
gutole@bol.com.br 49 http://lergratis.cjb.net
Fiquei confuso. A Vaca falava comigo. Seria alucinação
provocada pelo choque?
__ Assim não dá, Saulo. Como é que eu vou fazer meu
trabalho e atrapalhar sua caminhada se você mesmo se
atrapalha?
Reconheci a voz. Era o Mensageiro da Libertação, o ser
maligno incumbido de prejudicar minha missão.
__ Vo-você não e-era um gato? Ou u-um go-gorila? --
indaguei à Vaca babenta.
__ Eu já lhe disse que posso assumir qualquer forma
animal inferior, Saulo.
Meu Guia começou a soluçar, tremendo e se revirando
todo no chão, abaladíssimo por ver a Vaca falando comigo.
__ É, acho que vou ter de quebrar as regras -- disse-me
a Vaca enquanto fitava-nos com um olhar desanimado.
__ Co-como assim? -- perguntei, ao mesmo tempo que
exalava uma fumaça pela minha boca torta pelo raio.
__ Vou ter que ajudar vocês. -- Depois de um suspiro
desgostoso, completou: __ Sei que é um absurdo um
Mensageiro auxiliar seus inimigos, mas se não fizer isto não
terei como te atrapalhar.
Depois de uma crise convulsiva, Rodnaldo, exausto, ficou
paralisado. Eu, igualmente, não conseguia me mexer.
Parecia que a Vaca estava nos hipnotizando com seu olhar
sonso.
__ Pronto. Vocês não estão cem por cento, mas dá pro
gasto. E veja se não se mete em nova enrascada, Saulo.
Até a próxima.
A Vaca deu um mugido e entrou dentro do brejo,
desaparecendo por completo.
Eu e Rodnaldo ficamos sentados até o cair da noite,
procurando nos reabilitar dos últimos incidentes.
Quando estávamos novamente em um estado favorável,
pegamos nossas mochilas e continuamos nosso caminho,
driblando a mata e o brejo.
Alcançamos uma estrada de terra. Rodnaldo pegou seu
celular de dentro da mochila e conversou com Peteleco,
gutole@bol.com.br 50 http://lergratis.cjb.net
dizendo-lhe para enviar o próximo Guia, já que nos
encontrávamos no lugar previamente combinado para a
troca de guias.
Claro que, vez ou outra, tentava conversar com
Rodnaldo, dizendo-lhe que não foi culpa minha tudo aquilo
que ocorrera, mas ele não me dava ouvidos.
Paramos num certo lugar; Rodnaldo acendeu a fogueira
e jantamos salsichas assadas.
Logo, um sujeito com um cajado apareceu. Rodnaldo
pulou aos seus pés, beijando-os com uma intensa e
incompreensível paixão.
__ Que é isso companheiro? -- perguntou o nosso Guia,
não entendendo o que se passava com Rodnaldo.
__ Perdoe-me, Andson -- disse Rodnaldo, levantando-se
do chão. __ É que você não sabe quão alegre estou em te
ver.
__ Eh, tá me estranhando, Rodnaldo. Eu sou muito
homem, viu?
Pouco se importando com as palavras do outro Guia,
Rodnaldo abraçou-o, deu-lhe um sonoro beijo, pegou sua
mochila e, sem se despedir de mim (o que muito me
magoou), foi embora cambaleante.
Andson, meu novo Guia, pasmo com as atitudes de
Rodnaldo, e espantado com o estado deplorável dele,
perguntou-me o que acontecera.
__ Na-nada. Só um pe-pequeno in-incidente -- respondi
com a consciência tranqüila.

gutole@bol.com.br 51 http://lergratis.cjb.net
CAPÍTULO VIII
CONTANDO ESTRELAS

Acompanhei meu novo Guia rumo a um rancho à beira


de um rio, onde íamos pernoitar. Aquele som estridente dos
grilos incomodava meus ouvidos. Se eu pudesse pegar um
por um e torcer o pescocinho, juro que torceria. Bem que
aqueles sons eram conhecidos; todavia, haviam outros
barulhos enigmáticos que surgiam no meio do matagal
iluminado apenas pela lanterna de Andson.

gutole@bol.com.br 52 http://lergratis.cjb.net
Após atravessarmos uma pequena trilha lamacenta e
coberta pelos bambuzinhos, chegamos no rancho; um
monte de madeira arranjada de uma forma insegura
constituía a parede e o teto daquele esconderijo de
pererecas.
Meu coração disparou no exato momento em que
Andson abriu a frágil portinha do rancho, saltando sobre nós
aqueles pequenos animais gelados, de olhos arregalados;
dóceis, mas amedrontadores. Saiu perereca correndo para
todo lado. Uma delas caiu dentro de minha calça, e por
muito pouco não despenquei barranco abaixo.
Estava sendo um sacrifício danado tirar aquele bicho da
minha calça.
Andson, segurando uma faca nas mãos, gritou:
__ Não deixe a perereca escapar. Ela será o nosso jantar
desta noite.
Jantar? Que coisa mais horrível! Era melhor ficar sem
jantar do que ter que comer aquele ser nojento.
Andson aproximou-se de mim e apontou a faca na
direção onde a perereca se mexia em minha calça.
__ De-deixa que eu pe-pego a pe-perereca. Tô-to qua-
quase co-conseguindo -- falei, antes que o meu Guia
resolvesse partir com a faca em cima da perereca.
__ Pegue, vamos! A carne é uma delícia -- afirmou
Andson com água na boca.
Ligeira, a perereca escorregou pela minha perna e saiu
pela barra da calça. Andson despencou uma carreira atrás
do dócil anfíbio anuro, o qual conseguiu escapulir de seu
predador. Senti-me completamente aliviado.
Enquanto Andson continuava a procurar uma perereca
no meio do mato, acendi uma vela que trazia na mochila e
adentrei o rancho. Dentro havia dois colchões, palhas de
arroz amontoadas num canto, uma mesa de madeira de lei
ladeada por três tocos pretos, muita poeira, teias de aranha,
umas cartas que falava sobre um tal colecionador de
borboleta, várias varas de pesca, alguns latões vazios, uma

gutole@bol.com.br 53 http://lergratis.cjb.net
vassoura e vários pedaços de fumo presos no teto, os quais
me despertaram interesse.
Peguei a vassoura e cutuquei os fumos. Para minha
surpresa, os fumos não eram fumos; eram morcegos, e dos
grandes. Soltei a vela e saí em disparada do rancho,
seguido pelo vulto e farfalhejo dos morcegos.
Por sorte, Andson vinha galopante, todo eufórico,
segurando em suas mãos duas pererecas mortas. Antes
que eu dissesse algo, o Guia foi logo se gabando.
__ Olha aqui que maravilha de jantar! Encontrei-as
escondidas nas taiobas. Caçador de perereca igual a mim
não existe em lugar algum na região de Varginha.
__ São bo-bonitas e grandonas me-mesmo. Ma-mas ...
__ Agora, caro amigo -- interrompeu-me o Guia --, vamos
preparar uma grande fogueira para assar estas gostosuras.
Ande logo, Saulo. Vá procurar os gravetos -- ordenou
Andson, beijando sua caça freneticamente.
Senti um cheiro de queimado e indaguei ao Guia:
__ Vo-você tá se-sentindo che-cheiro de que-queimado?
__ Seu idiota! Você colocou fogo no rancho.
Olhei para trás e havia muita fumaça saindo pelas frestas
das tábuas que recobriam o rancho. Em poucos segundos,
o rancho ficou completamente em chamas; logo, totalmente
em cinzas.
Andson olhava para mim com um semblante colérico. Ele
não poderia me culpar pelo ocorrido; aquilo tinha sido um
acidente, e todo acidente é um mero acidente, não algo
premeditado, realizado por querer, por satisfação pessoal.
Aliás, nem eu mesmo sabia o que havia originado o
incêndio.
Pedi desculpas várias vezes ao Guia. Porém ele me
disse que só aceitaria meu pedido, se eu comesse uma das
rãs e parasse com aquela falação. A contragosto, aceitei a
imposição de Andson e devorei o pobre animal tostado.
Diga-se de passagem, uma delícia. Mesmo assim, fiz cara
feia, esperneei e resmunguei, não dando o braço a torcer.

gutole@bol.com.br 54 http://lergratis.cjb.net
Após o jantar inusitado, usando folhas de taboa,
tomamos um pouco de água gelada de uma nascente
cristalina das proximidades.
O nosso novo acampamento era muito desconfortável e
ao relento. Às margens do rio, próximo a uma grande
árvore, Andson fez apenas uma cama com capins e folhas
de taboa. A princípio achei que a cama seria para mim, mas
depois de pronta, o Guia atarefou-me:
__ Saulo, cuide da fogueira, que eu vou dormir um
pouco. Ah, não! É melhor deixar a fogueira apagada, senão
é perigoso você incendiar a mata toda. Você vai ficar
acordado até terminar o exercício da Ordem que vou lhe
ensinar.
Fiquei empolgado com a história de aprender mais um
exercício. Antes, porém, que ele me ensinasse o novo
exercício, indaguei-lhe a respeito do cartaz que havia no
rancho. Com uma voz sonolenta, respondeu de mau gosto:
__ Amanhã a gente conversa sobre isso. Preste atenção
no que tenho a te ensinar. O exercício é o seguinte: respire
e inspire profundamente durante cinco minutos ...
__ Ma-mas eu não te-tenho relógio -- interrompi,
preocupado com o tempo estipulado.
__ Não se preocupe com precisão. Não precisa ser
exatamente cinco minutos, entende? -- advertiu Andson,
com um tom de voz irado. __ Continuando: na próxima e
última etapa, você terá que contar quantas estrelas existem
no céu. É tão simples que qualquer criança de cinco anos
faria o exercício com os olhos fechados. Ah! não aponte o
seu dedo para as estrelas, senão eles se encherão de
verrugas.
__ Ve-verrugas? Eu o-odeio ve-verrugas! -- admiti com
um certo receio de realizar o perigoso exercício.
__ E tem mais uma coisa. Eu não quero ser incomodado
por nada nesta vida. Será que eu fui bem claro?
__ Tu-tudo bem.
Andson deitou em sua aconchegante cama, cobrindo-se
com algumas folhas secas.
gutole@bol.com.br 55 http://lergratis.cjb.net
Uma brisa trazia o frio para às margens do rio. Olhei para
todos os lados; a única coisa que eu via era uma imensa
escuridão. Naquela noite não havia lua, só trevas. O barulho
irritante da correnteza, o chilrear do grilo, os pernilongos e o
intenso frio, incomodavam-me na realização do Exercício da
Contagem. Não consegui me concentrar naqueles pontos
luminosos no céu. Senti medo. Sacudi o Guia, acordando-o.
__ O que você quer? Já não disse que não quero ser
incomodado? -- irritou-se Andson.
__ É que e-eu tô com me-medo -- justifiquei-me.
__ Medo de quê?
__ Se as pe-pererecas me a-atacarem, o que e-eu faço?
A-aliás, o-odeio o ba-barulho irritante desses gri-grilos. E se
a-aparecer alguma ji-jibóia?
__ Cale a boca! -- berrou Andson, completamente fora de
si. __ Se vira, meu. O problema é todo seu. Deixa eu dormir
em paz e comece logo o Exercício da Contagem.
__ Um, do-dois, três ... -- iniciei o exercício, cabisbaixo.
__ Conte em pensamento, seu ... seu Saulo Lebre --
interrompeu o Guia, colérico. __ Da próxima vez que você
me interromper vou lançá-lo no rio. Entendeu?
__ Posso fa-fazer uma última pe-pergunta? -- inquiri,
docilmente.
__ Faça.
__ Tá muito fri-frio. Tô co-congelando. Vo-você de-deixa
eu a-acender uma fo-fogueira? -- supliquei, quase caindo
aos pés do Guia.
__ Faça, e não torre mais minha paciência -- finalizou
Andson, cobrindo-se novamente com as folhas secas.
Recolhi alguns gravetos, peguei uma tábua do rancho
com sua metade em brasa e acendi minha fogueira. Sentei-
me ao redor dela e aqueci minhas mãos geladas.
Em absoluto silêncio, passei a contar as estrelas:
__ Uma, du-duas, três, qua-quatro, ... cinco mil e do-
doze, cinco mil e tre-treze ... o que são a-aquelas lu-luzes
no ce-céu? -- falei fracamente, interrompendo minha

gutole@bol.com.br 56 http://lergratis.cjb.net
contagem, abismado com a fulgente luz que vinha em
minha direção.
Permaneci com minha atenção voltada naquele
fenômeno encantador. Seria uma nave extra-terrestre?
As luzes se aproximavam cada vez mais,
gradativamente, aumentando de intensidade. Meu coração
começou a pulsar forte. Não havia mais como fugir daquela
fosforescência. Abaixei-me, e ela passou sobre minha
cabeça. Naquele momento, pude notar que tratava-se de
uma nuvem de pirilampos. Era realmente maravilhoso!
Sublime!
Eu havia pensado em acordar o Guia para ele partilhar
comigo aquele momento mágico. Todavia, lembrei-me da
promessa: se o importunasse, lançar-me-ia no rio. Desisti da
idéia e deleitei-me com aquela cena incomum.
A nuvem passou veloz e seguiu seu caminho,
acompanhando as margens do rio. Fiquei a observar aquele
brilho intenso distanciando-se do meu olhar estupefato, até
o último ponto luminoso, que desapareceu na escuridão.
Novamente, sentei ao redor da fogueira, e reiniciei o
Exercício de Contagem da estaca zero:
__ Uma, du-duas, três ...
Algo muito interessante estava ocorrendo. À medida que
o tempo avançava rumo ao alvorecer, parecia diminuir a
quantidade de estrelas.
Na proporção que aumentava a intensidade luminosa no
horizonte, diminuíam as estrelas no céu. Instantes antes do
sol aparecer, não havia mais do que meia dúzia de estrelas;
e quando ele despontou com toda força no horizonte,
desapareceram todas.
Aquele fato curioso deixou-me intrigado. E agora?
Quantas estrelas existiam no céu?
Não demorou muito e Andson acordou de seu sono
profundo. Esfregou os olhos, bocejou e me chamou até ele.
__ Bom-dia. Do-dormiu be-bem? -- indaguei ao Guia com
um largo sorriso.

gutole@bol.com.br 57 http://lergratis.cjb.net
__ Muito bem. Parece que você se comportou direitinho.
Saulo, é assim que deve agir um bom membro da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos. E como recompensa, hoje, nós
iremos atrás da Esfinge Dourada. Eu sei onde mora o tal
colecionador de borboletas; e talvez, quem sabe, ele possa
nos ajudar a localizá-la.
__ Tá fa-falando sé-sério?
__ Ah! Antes de partirmos, diga-me quantas estrelas
você contou no céu?
__ Mu-muitas e ne-nenhuma -- respondi empolgado.
__ Como assim? Não entendi.
__ É que eu estava con-contando as estrelas; de re-
repente, elas co-começaram a su-sumir, e não restou ne-
nenhuma.
Sem dizer mais nada, o Guia pegou sua mochila e pediu-
me para segui-lo pela trilha do brejo.

CAPÍTULO IX
UM TIRO CERTEIRO
gutole@bol.com.br 58 http://lergratis.cjb.net
O sol já queimava nossa pele com todo o ardor quando
chegamos na casa do rancho onde íamos encontrar o
colecionador de borboletas.
Era uma cabana rústica, pequena; como se servisse de
abrigo a viajantes ou peregrinos.
__ Êpa! Estou estranhando este lugar -- falou o Guia,
com ares de dúvida em seu semblante.
Eu não disse nada. Queria manter um santo silêncio a fim
de mostrar a Andson minhas qualidades pessoais.
Avançamos um pouco mais e paramos diante da porta da
cabana.
__ Já sei como tirar isto a limpo. Aliás, Saulo, vou
aproveitar a oportunidade e lhe ensinarei os segredos
ocultos nas cartas do Tarô.
Minha língua pulava descontroladamente em minha
boca. Contive, porém, meu desejo de conversar, mantendo
uma postura monástica.
Andson retirou de sua mochila um baralho com figuras
engraçadas envolto num pano de linho bege. Desenrolou o
embrulho, embaralhou as cartas, e ficando de cócoras,
espalhou-as em cima do tecido.
__ Ah, que alívio! Parece que está tudo certo, Saulo. As
cartas garantiram que meu êxito nesta peregrinação com
você será total. Agora, Saulo, sente-se aqui no chão, que eu
vou ler o seu destino através das sagradas cartas do Tarô.
Estava super-excitado. Iria descobrir meu futuro, meu
destino. Concentrei minha atenção naquele momento
mágico.
__ Céus, Saulo! -- admirou-se o Guia ao distribuir as
cartas. __ O Tarô está me revelando que você será uma
pessoa de grande sorte. Um afortunado pelas energias
ocultas que nos regem.
__ Ve-verdade? -- espantei-me, quebrando meu silêncio.
__ Claro que é verdade. As cartas não mentem jamais. E
quer saber mais? Todos os dias de sua peregrinação serão
gutole@bol.com.br 59 http://lergratis.cjb.net
repletos de paz e bênçãos esotéricas. Nada afligirá nem
você nem seus companheiros de jornada. Não é o máximo?
__ É li-lindo. Nu-nunca ninguém me di-disse nada tão a-
animador -- afirmei com a alma levinha, levinha.
__ Saiba, nobre homem, que é uma honra para mim
conduzi-lo até sua felicidade.
Aquele gesto de amizade me comoveu. Fiquei
completamente seduzido por aquelas palavras tão cheias de
conforto e ânimo.
__ E como você haverá de tornar-se um Cavaleiro da
Ordem, gostaria de lhe pedir um favor, de irmão para irmão.
__ Pe-peça, a-amigo.
__ Estou passando por certas dificuldades financeiras
e ... fico até envergonhado de te pedir, mas, se você
pudesse me ajudar, adiantando-me uma pequena soma de
dinheiro, ser-lhe-ia eternamente agradecido.
Expliquei-lhe que eu era pobre, mas tinha algum
dinheirinho guardado, em caso de necessidade.
Infelizmente, argumentei com o coração pesado, não ter
como dar-lhe este dinheiro, vez que estava longe de casa.
__ Você não teme que alguém entre em sua casa e
roube o seu tão sofrido dinheiro? -- perguntou-me o Guia,
preocupado comigo.
__ Na-não mesmo. O di-dinheiro está bem e-escondido.
A-além de tudo, Albertinus e-está to-tomando conta de
minha ca-casa. Inclusive, ele e-está com a cha-chave de
meu cofre.
__ Albertinus! Você deu a chave de seu cofre para
aquele sacana? Quero dizer, para aquele homem tão
ocupado.
__ E-ele me ga-garantiu que to-tomaria conta de tudo pra
mim.
__ E você acreditou?
__ Ora, e-ele pa-parece tão se-sério. Co-como poderia
de-desconfiar de alguém a-assim?
Uma rajada enfurecida de tiros sobrevoou nossas
cabeças, deixando-nos estupefatos.
gutole@bol.com.br 60 http://lergratis.cjb.net
__ Vocês são os bandoleiros que queimaram minha
casa? -- interrogou-nos, de longe, um sujeito portando uma
velha garrucha.
__ Léo, sou eu, Andson.
__ Andson? Por que você botou fogo em minha casa?
__ Mas eu não botei fogo em casa alguma -- retrucou
meu Guia, olhando para mim de um modo estranho.
__ Não minta, homem. Meu cachorro e eu seguimos as
pegadas dos dois bandidos que destruíram minha casa, e
elas acabam em vocês.
__ Léo, foi um acidente. Eu iria pernoitar na sua cabana
que abriga os peregrinos da Ordem, mas acho que me
enganei e entrei em sua casa por um lamentável equívoco.
__ Vo-você errou? Um Guia e-erra? -- perguntei,
admirado com aquela assombrosa descoberta.
__ Quem é este gago que está com você? -- indagou o
homem com cara feia, mantendo uma distância nada
amistosa.
__ É um peregrino da Ordem. Ele está atrás da Esfinge
Dourada. Como você é um grande entendido em borboletas,
eu o trouxe até sua casa para ...
__ Esta aí não é minha casa -- interrompeu o sujeito com
a arma ainda apontada em nossa direção. __ Minha casa
vocês queimaram ontem, junto com tudo o que eu tinha.
Andson ameaçou aproximar-se amigavelmente do
colecionador de borboletas, mas o latido feroz do cão que
acompanhava o homem intimidou o Guia.
__ Léo, você sabe que eu jamais faria isso por querer.
Foi um infeliz acidente. Se você quiser, pode mudar-se para
alguma das minhas fazendas em Goiás.
Pobre Guia! Ele, que me pediu dinheiro emprestado
momentos antes, deveria ser um fazendeiro em
dificuldades. E assim mesmo oferecia uma de suas
propriedades para o infeliz cuja casa queimou-se
acidentalmente. Que bom homem era meu Guia!
__ Eu vou pras suas terras, sim. Mas vou pra enterrar o
que sobrar de você e desse peregrino idiota.
gutole@bol.com.br 61 http://lergratis.cjb.net
O homem soltou o cachorro em cima de nós, e começou
a atirar em nossa direção.
Corremos como dois cabritos selvagens, ora desviando
da boca do cão, ora dos tiros do homem enraivecido.
__ Ai! -- berrou o Guia, tomado de dor.
__ O que fo-foi? -- indaguei-lhe, diminuindo a marcha.
__ O Léo me acertou um tiro.
__ O-onde?
Andson não respondeu. Limitou-se a ficar de costas e
mostrar-me os furos que havia em sua calça, bem na altura
de seu bumbum.
Os latidos do cachorro chegavam cada vez mais perto,
anunciando um destino bem diferente daquele apontado
nas cartas do Tarô.
Dei uma rápida olhada em volta e vi uma porteira.
Próximo a ela, um cercado. Puxei meu Guia pelo braço, e
corremos até o local.
__ O que tem do lado de lá? -- perguntou-me Andson,
com a cara expressando uma grande dor causada pelo tiro
no traseiro.
__ Na-não sei. Pule. Na-não te-temos outra a-alternativa.
Andson pulou; depois, eu.
Ouvimos o cachorro aproximar-se latindo. Percebemos
que ele deu umas cheiradas e saiu em disparada. O motivo,
descobrimos a seguir.
__ Saulo, isto aqui é um chiqueiro.
__ E na-não é que é me-mesmo -- concordei com a
perspicácia do Guia.
Ficamos ali, naquela lamaçal porquento, observados por
uns simpáticos leitões, por algumas horas.
Em agonia profunda, meu Guia virou-se de lado, já que
não conseguia ficar sentado; seu desconforto, contudo, não
tinha fim, vez que tanto de um lado como de outro, havia
uma infinidade de moscas que o molestavam.
Felizmente, cinco horas depois, sua agonia terminou. Um
homem, provavelmente o dono daquele chiqueiro, abriu o

gutole@bol.com.br 62 http://lergratis.cjb.net
portão do cercado e despejou algumas latas de lavagem
perto de nós.
__ Quem são ocêis? -- perguntou um caboclo alto, meio
desdentado.
Não foi fácil explicar, mesmo assim o sujeito ajudou-nos:
pegou um regador de plantas e, do lado de fora do
chiqueiro, foi nos aguando, limpando a sujeira de nossas
roupas.
__ É só ocêis tomá um belo dum banho no sábado que
vão ficar umas belezinhas.
O caboclo estava com razão. Fedíamos mais que
banheiro de rodoviária, porém não tínhamos outra maneira
senão a de retornar nosso caminho.
__ A-ainda está do-doendo? -- indaguei meu Guia
enquanto seguíamos pela estrada de terra.
__ Só quando respiro -- respondeu-me lacônico.
__ Ah, que bo-bom! -- suspirei aliviado.
Pelo caminho fiquei pensando o que faria sem o auxílio
do Léo, o colecionador de borboletas. Seria, sem dúvida
alguma, muito difícil para eu encontrar a Esfinge Dourada
sem a sua orientação. A única coisa que me confortava
eram as predições do Tarô que Andson me dissera.
À beira da estrada, almoçamos mais salsichas assadas,
tomando alguns goles do vinho que o Guia trouxera
consigo.
Andson, o tempo todo em pé, gemia angustiado.
Querendo ajudá-lo, sugeri:
__ Vo-você deve re-respirar me-menos.
__ Por quê?
__ A-assim não se-sente dor.
Andson enrubesceu de cólera e partiu para cima de mim,
tentando esgoelar-me. Quando viu o medalhão em meu
peito, parou contrariado.
Eu estava assustado com as atitudes incompreensíveis
do Guia. Por outro lado, na medida que continuávamos
nossa jornada, eu ficava muito chateado pelos seus
gemidos de dor.
gutole@bol.com.br 63 http://lergratis.cjb.net
Então tive uma das idéias mais brilhantes de minha vida.
__ Vo-você tem me-mesmo de continuar me a-
acompanhando?
__ Infelizmente tenho que te acompanhar até a noite,
quando outro Guia virá me substituir.
__ Te-tenho uma idéia pra vo-você não mais ge-gemer a
ca-cada passo que de-der.
__ Idéia? Você pensa?
Sem entender a admiração do Guia, expliquei-lhe minha
idéia:
__ Te-tem um rio que co-corre pa-paralelo à estrada. Se
fo-formos na-nadando, além de li-limpar nossa su-sujeira,
você não pre-precisará forçar os músculos e se-sentir dor.
Andson acatou minha sugestão. Claro, era brilhante.
Colocamos as mochilas em nossas cabeças e entramos
no rio. A suave correnteza ia nos conduzindo paralelamente
à estrada de terra, sem precisarmos fazer força.
__ Até que enfim você deu uma dentro, Saulo.
Não deu tempo para ficar feliz com o reconhecimento do
Guia. A correnteza foi aumentando até não podermos mais
vencê-la. Felizmente consegui agarrar-me a uma pedra
próxima à margem. O Guia ...
No início da noite, o novo Guia encontrou-me na beira do
rio.
__ Você está sozinho? Onde está o Andson?
__ E-ele te-teve de ir um po-pouco mais ce-cedo -- disse-
lhe olhando para a enorme cachoeira onde morria o rio.

gutole@bol.com.br 64 http://lergratis.cjb.net
CAPÍTULO X
CIDADE À VISTA

__ Muito prazer em conhecê-lo, Saulo Lebre -- disse o


Guia, estendendo-me as mãos. __ Meu nome é Cledite, e
acredite que os meus cristais possuem poderes mágicos de
purificar os caminhos dos mortais. Tome ele e o pressione
no meio de sua testa.
Peguei o pequeno cristal verde em minhas mãos suadas.
A princípio achei estranho o nome do Guia, que parecia ser
de mulher: Cledite.
Os cabelos curtos, a voz grave, as botas sete-léguas, o
casaco de pele, o rosto sisudo, sem brincos ou anéis e os
músculos atléticos espalhados uniformemente pelo corpo,
denotavam que o Guia era um homem. Mesmo assim uma
dúvida pairava no ar: Cledite, homem ou mulher?
__ Por que me olha desse jeito, Saulo? Tá esperando o
quê?
Assustado com aquele vozeirão, cumpri a ordem de
Cledite. O cristal ficou colado na minha testa, como se
fizesse parte de meu corpo. Todavia, a dúvida me
importunava. Criei coragem e perguntei:
__ De-desculpa a pe-pergunta, mas você é ho-homem ou
mu-mulher?
__ Desde já fique sabendo que eu sou muito mulher. E ai
de ti se querer abusar de mim. Eu lhe capo -- avisou Cledite,
golpeando no ar um canivete dourado. __ Tem mais uma
coisa. Sou uma Guerreira Iluminada da Ordem Sagrada dos
Mentecaptos do extremo sul brasileiro.
__ Ga-gaúcha? -- palpitei meio assustado com as
atitudes e gestos masculinizados de Cledite.

gutole@bol.com.br 65 http://lergratis.cjb.net
__ Com muito orgulho. Apesar de ter perdido um pouco
do sotaque, de ter nascido no norte e vivido apenas a
infância no sul, eu ainda me considero gaúcha. Mas vamos
deixar essa conversa mole de lado e me diga o que tu tá
achando do cristal? Não é maravilhoso? -- inquiriu Cledite,
com a voz mais dócil.
__ Fo-formidável -- concluí, procurando não contrariá-la
__ Eu sabia que tu ias gostar. Ele combinou muito bem
com o seu medalhão: o verde, a esperança; o azul, a
certeza. Ou seja, a certeza de realizar aquilo que tu tens
mais esperança de conseguir. Não é maravilhoso?
__ Fo-formidável -- repeti, crédulo nos poderes do cristal.
__ Já estamos prontos para continuar a sua
peregrinação. Temos muito o que caminhar até chegar na
cidade de Carmo da Cachoeira.
__ Ca-caminhar a no-noite toda?
__ Todinha. Sem uma pausa sequer. Pare de resmungar
e siga-me.
Peguei minha mochila, que estava todo molhada, e segui
Cledite na escuridão, caminhado por uma trilha às margens
do rio.
Naquele início de noite a escuridão já era intensa.
Segurei na mão áspera de Cledite com receio de errar o
caminho e acabar caindo no rio. A lanterna da Guia pouco
iluminava a trilha, e naquela noite não existiam estrelas no
céu, que estava todo coberto por nuvens.
Mais uma vez o cricrilar do grilo torrava minha paciência.
Se eu pudesse estrangular um por um, faria com o maior
prazer. Meus ouvidos não suportavam mais aqueles ruídos
irritantes. Não via a hora de sair daquela selva e chegar na
cidade de Carmo da Cachoeira. A primeira coisa que eu iria
fazer seria beijar o primeiro chão de cimento que visse pela
frente.
Se não bastassem os grilos, na mata haviam também
mosquitos de toda espécie; desde os borrachudos, até os
malditos pernilongos. E os marimbondos? As abelhas? Os

gutole@bol.com.br 66 http://lergratis.cjb.net
arapuás? As formigas? Tinha formiga cabeçuda, lava-pé de
todo gênero e número.
Meus pés latejavam, e meu medo era pisar num desses
formigueiros. Uma vez havia lido numa revista uma matéria
muito interessante que dizia: “As formigas trabalham à
noite; principalmente as cabeçudas. Elas migram bem
longe, fazendo trilhas, em busca de alimento para todo o
formigueiro. É sabido que as formigas, assim como as
abelhas, formam uma sociedade perfeita; e, infelizmente,
esta sociedade está muito distante da complexa sociedade
dos humanos”.
Eu tinha minha opinião à respeito daquela matéria: os
homens tinham que exterminar todas as formigas do
planeta, uma vez que são um bicho que não serve para
nada; a não ser para ferroar a gente.
Albertinus, numa das reuniões, dissera que todo e
qualquer membro da Ordem Sagrada dos Mentecaptos teria
que proteger a flora e fauna: “A natureza é tão importante
para a Ordem como a Ordem para a natureza”. A princípio
eu não havia entendido aquelas palavras mágicas; mas logo
minha dúvida fora sanada por Albertinus. Lembro-me como
se fosse hoje -- apesar da ausência das estrelas e da lua
cheia -- : “ ... devemos viver em harmonia com a natureza;
extrairmos dela o alimento essencial para nossa
sobrevivência. Sugarmos dela a energia que precisamos
para caminharmos na peregrinação em busca da perfeição
cosmo-energética ...”.
Quando eu me lembrava daquelas palavras, meu
coração enchia-se de encanto e meu corpo se arrepiava
todo. Como o Albertinus estava fazendo uma falta danada
para mim! Ele compreendia o meu jeito de ser. Era meu
irmão primogênito da Ordem, e somente a ele eu confiava
meus segredos, meus desejos.
Se eu pudesse desistir de tudo e retornar o mais rápido
possível para a minha casa, voltaria. Mas o Albertinus havia
dito que queria me ver curado, totalmente liberto da

gutole@bol.com.br 67 http://lergratis.cjb.net
gagueira; e o pedido dele era uma ordem. A saudade era
tanta que me sentia cansado.
Cledite continuava abrir caminho pelo mato com o facão.
Belisquei-a e a resposta veio no ato:
__ Como ousas a fazer isso, hein? Já lhe avisei que eu
sou sua Guia. Não uma qualquer. E se beliscar minha
bunda mais uma vez, eu lhe capo. Entendeu? -- avisou
Cledite, iluminando o facão com a lanterna.
__ De-desculpa. Eu só que-queria de-descansar um
pouco. Va-vamos pa-parar de ca-caminhar. Não agüento
ma-mais. Va-vamos sentar um po-pouco -- pedi
suplicantemente.
__ Tá bom. Só cinco minutos. É muito perigoso ficar
parado no meio do matagal. Podemos ser atacados pelo
Chupa-sangue.
__ Ah! Os sa-sanguessugas são uns bi-bichinhos
inofensivos. A ge-gente ma-mata eles.
__ Pelo jeito tu não os conhece. Sente-se -- ordenou
Cledite, também sentando num monte de terra. __ O
Chupa-sangue é um bicho muito perigoso. Em determinadas
regiões ele é conhecido como o Chupa-cabra, Chupa-chupa
... Enfim, o tal bicho chupa todo o sangue dos animais que
ele ataca.
__ Cre-credo! Que ho-horror! -- exclamei, pasmo.
__ Não precisa fazer essa cara de sonso. Na verdade os
Chupa-sangue não são uma espécie de animal que sofreu
mutação, como alguns cientistas afirmam ser, e, muito
menos, é fruto da imaginação humana. A Ordem Sagrada
dos Mentecaptos, desde os seus primórdios, reconheceram
os Chupa-sangue como sendo manifestações cosmo-
energéticas -- revelou Cledite olhando profundamente em
meus olhos.
__ Co-como assim? -- indaguei coberto de dúvidas.
__ Pense comigo.
__ Tô pe-pensando -- disse, obedecendo a ordem da
Guia.

gutole@bol.com.br 68 http://lergratis.cjb.net
__ A cada certo período o mundo vive em determinada
época, ou seja, Era. Nesse intervalo de tempo-espaço as
pessoas adquirem comportamentos natos da Era de sua
existência. Esses comportamentos têm vínculos políticos,
religiosos e energéticos. As pessoas nunca compreenderão
a política ou até mesmo a religião, se não se adequarem à
energia radioativa de sua Era. Entendeu?
__ A-acho que sim. Ma-mas e o Chu-chupa-sangue?
__ O Chupa-sangue, como já lhe falei, trata-se de uma
manifestação de vínculo cosmo-energética. Isso ocorre
porque há um desajuste, uma desarmonia no conhecimento
humano a respeito da política, da religião e do cosmo.
__ De-desarmonia? Co-como a-assim?
__ Parece que tu não anda praticando os Exercícios da
Ordem. Acho que vou ter que ensinar o Exercício do
Despertar -- proferiu Cledite com simpatia, levantando-se do
monte de terra.
Fiquei animado. Não tinha nada para fazer naquela noite,
a não ser andar, andar e mais andar por aquele matagal na
beira do rio. Um exercício da Ordem seria muito bem vindo.
Cledite ordenou que continuássemos a caminhada, pois
estávamos atrasados, e pelo caminho ela explicaria o
procedimento do exercício.
A ansiedade era tanta que nem me importei em
acompanhar as largas passadas da Guia. Pelo caminho,
Cledite ensinou-me o exercício, que tinha por objetivo abrir
minha mente para o conhecimento universal da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos. Segundo a Guia, eu tinha a
mente bitolada num mundo imundo, diminuto e medíocre.
Com o Exercício do Despertar minha mente se libertaria de
toda a ignorância humana, se fortalecendo numa nova e
expressiva capacidade de pensamento intuitivo e dedutivo.
O exercício era assim: eu teria que encontrar sete
formigueiros, de preferência de formiga cabeçuda, e,
seminu, sentar sobre eles cerca de cinco minutos.
Sentar até que era fácil, o difícil foi encontrar os
formigueiros no escuro, com ajuda apenas de uma lanterna.
gutole@bol.com.br 69 http://lergratis.cjb.net
Durante toda a noite eu já havia sentado em seis
formigueiros e nenhuma formiga havia me picado. Seria
sorte? Ou as formigas estavam dormindo em seus ninhos
maternos?
Cledite estava estarrecida, pasma, admirada.
__ Impossível. Esse é o sexto formigueiro que tu sentas
e até agora não sofreu nenhuma picada? Pelo que estudei
na Ordem, isto quer dizer que tu és uma pessoa abençoada
pelo cosmo.
__ A-abençoada! -- exclamei, absorto.
__ Exatamente. Eu posso ver em seus olhos o brilho
energético, a energia mais radiante do universo. Tu foste
escolhido para substituir o seu Mentor. E tem mais: todas
aqueles pessoas que estiverem ao seu lado estarão
protegidas de qualquer fruto do mal. Por isso sinto-me feliz
por estar com você -- disse Cledite, emocionada,
abraçando-me fortemente.
O abraço foi tão forte que eu me sentia como uma
jaboticaba pisoteada. A Guia não parava de rir sozinha de
tanta felicidade. Quase sem palavras, disse-me:
__ Saulo Lebre, tu és um anjo em pessoa. O próximo
formigueiro que a gente encontrar pelo caminho, eu sento
nele por ti.
Achei estranho aquela bajulação toda. Continuamos a
caminhar pelo matagal e, não demorou muito, vimos na
planície as luzes de uma pequena cidadezinha. Cledite foi
logo anunciando:
__ Veja, Saulo. É Carmo da Cachoeira, a cidade que lhe
dará a primeira pista da Esfinge Dourada. Não é linda?
__ Li-lindona -- respondi pulando de alegria.
A cidade estava muito próxima. Era só descer o morro.
No horizonte, apareceram os primeiros raios de sol, mas
ainda estava muito escuro na mata.
Cledite puxou-me pelo braço no meio do morro, e
apontou para um formigueiro enorme.

gutole@bol.com.br 70 http://lergratis.cjb.net
__ Saulo Lebre, vou provar a minha fidelidade a sua
pessoa -- disse a Guia, abaixando as calças e sentando no
formigueiro.
Minutos depois a pobrezinha aprontou um berreiro.
Inúmeras formigas saíram do formigueiro atacando Cledite.
Ela pulava, esperneava. De repente, escorregou numa
pedra solta no chão e desceu rolando, ladeira abaixo.
Sem dúvida era uma maneira inconveniente, porém mais
rápida, para chegar até a cidade de Carmo da Cachoeira.

CAPÍTULO XI
ESSE TAL DE CHUPA-CABRA

Desci a encosta com o máximo cuidado. Quando cheguei


próximo da Guia, fiquei boquiaberto ante o estado
deplorável em que se encontrava.

gutole@bol.com.br 71 http://lergratis.cjb.net
Peguei o cristal que ela me dera e coloquei-o na saliência
formada entre os galos em sua testa. Certamente a força
invisível do cristal iria restaurar sua consciência e curar seus
machucados.
Logo, uma multidão curiosa, vinda das casas próximas,
achegou-se junto de nós.
Um rapaz de camisa xadrez perguntou:
__ Uai, seu moço. Que é que aconteceu com esse
homem aí no chão?
__ Ca-caiu lá de ci-cima -- respondi, apontando para a
trilha formada por Cledite ao despencar pela encosta do
morro.
__ Viche! Então ele deve de tá bem mal, hein?
__ Não é e-ele. É e-ela. É a Cledite, mi-minha Guia.
__ Vamos chamar um médico pra ela, então -- interveio
uma senhora, preocupada.
__ Na-não precisa. O cri-cristal em sua te-testa vai cu-
curá-la.
A multidão, que não parava de crescer, parecia incrédula.
__ Como que uma pedra brilhante há de poder sarar a
pobrezinha? -- inquiriu uma senhora ao meu lado com um
terço nas mãos.
Nisto, um homem de terno e gravata, abrindo caminho à
força entre o povo, aproximou-se e, num tom autoritário,
quis saber o motivo daquela incomum aglomeração.
__ Eu e mi-minha Guia vínhamos pe-peregrinando pela
be-beira do rio. Aí nós pa-paramos e e-ela co-começou a
falar do Chu-chupa-cabra e ...
Uma perturbadora inquietação tomou conta daquelas
pessoas. Algumas saíram correndo aos gritos e trancaram-
se em suas casas; outras começaram a tremer assustadas,
desviando sua atenção da Cledite para a encosta do morro.
__ Quer dizer então que o chupa-cabra atacou esta
mulher? -- interrogou-me o homem engravatado (que mais
tarde soube ser o prefeito da cidade).
Percebi que haviam interpretado mal a minha narrativa.
Procurei ser mais claro.
gutole@bol.com.br 72 http://lergratis.cjb.net
__ Mi-minha Guia e-está toda que-quebrada por ca-
causa do tombo que le-levou quando fo-foi mordida no tra-
traseiro.
__ O chupa-cabra mordeu o bumbum da mulher? --
indignou-se o prefeito, gesticulando a todo vapor enquanto
falava. __ Esses E.Ts. não respeitam nem pessoas agora.
Um engomadinho murmurou no ouvido do prefeito.
__ Do que você está falando?
__ Hoje é domingo. É só entrarmos em contato com o
programa do Sílvio Santos e eles vêm voando pra cá fazer
uma reportagem. E melhor: o senhor ganha fama e melhora
sua imagem pras próximas eleições de deputado.
O prefeito ajeitou graciosamente a gravata, deu um
sorriso inexplicável e depois de fitar rapidamente Cledite,
argumentou ao seu secretário.
__ Pois faça isto já. E se não houver nenhum E.T. eu
invento uma história qualquer, falo bonito e todo mundo
acredita em mim.
Preguiçoso, o sol despertava e lançava seus raios para
todos os cantos da pacata cidade mineira.
Um mundaréu de gente passava a todo instante por mim,
dava uma rápida olhada na Cledite, ainda estirada no chão,
e corria até o morro, escalando com toda prudência, a fim
de ver o tal do Chupa-cabra.
O calor aumentava. E nada da Guia despertar. Até
parecia que o Poder Misterioso do cristal não estava
fazendo efeito. Claro, tudo não deveria passar de uma mera
impressão.
Nisto, um senhor vestido todo de branco, passou por nós
e deu meia volta. Perguntou-me com feições sonolentas o
que acontecera com a Guia.
__ E-ela caiu lá de ci-cima. Ma e-está me-melhorando --
declarei convicto.
__ Como? Esta pessoa veio rolando pelo morro e o
senhor tem a audácia de dizer-me que tudo está bem! O
senhor, por acaso, é parente do Cândido de Voltaire?
__ Na-não. Sou fi-filho do Zé-zéca Bo-boiadeiro.
gutole@bol.com.br 73 http://lergratis.cjb.net
O velho de branco franziu a testa. Agachou e pôs-se a
examinar minha querida Guia.
__ O se-senhor é médico?
__ Sou -- respondeu secamente, enquanto apalpava
Cledite. __ Esta mulher precisa ser levada para a Santa
Casa imediatamente.
O médico pegou seu celular e pediu uma ambulância
com urgência. Esta veio realmente rápido e levou a Guia
para o hospital.
__ Vou socorrer esta mulher imediatamente -- falou-me o
médico já dentro do veículo. __ O senhor me procure na
Santa Casa logo que puder. Preciso fazer-lhe algumas
perguntas.
Fiquei observando a ambulância abrindo caminho entre o
povo que vinha em massa até o morro. Indignado com
aquele gesto de incredulidade da ciência diante do poder
inquestionável do cristal, dirigi-me até uma agradável praça
e tomei meu lanche da manhã.
Ao dar a última dentada em meu pão, ouvi uma voz
distante que me soava familiar. Guardei minhas coisas na
mochila e fui até atrás do coreto a fim de matar minha
curiosidade.
Qual não foi meu espanto ao deparar-me com o Pastor
Willian, óculos escuros, de violão na mão, cantando para
uma meia dúzia de pessoas.
__ Creiam-me, amigos. Hoje irá acontecer um milagre
aqui que irá mostrar aos descrentes o valos dos crentes.
__ Aleluia, irmão! -- exclamou alguém dentre os
espectadores. __ Eu creio que tens o poder de operar
milagres maravilhosos. Mostra-nos o seu poder.
O Pastor Willian começou a tocar freneticamente o
violão. De repente, levantou-se, atirou o instrumento para
longe, esticou os braços para frente e começou a andar
como um bêbado pelo palco onde exibia seu “show”.
__ Se vocês realmente tiverem fé, povo de Deus, vocês
se tornarão no canal das bênçãos para aqueles que
convivem consigo.
gutole@bol.com.br 74 http://lergratis.cjb.net
__ Nós cremos, pastor. Nós cremos -- disse eufórico o
mesmo cara no meio dos fiéis espectadores do pastor.
Ao chegar mais perto daquele grupo de pessoas,
constatei que o crente eufórico era justamente o homem de
quem vi o pastor expulsar um demônio pela tevê
Interessante mesmo era que ele estava usando a roupa que
foi roubada de mim no trem.
__ Desde quando eu nasci eu sempre fui cego -- bradou
o pastor ao grupo que começava a aumentar. __ Hoje
recebi uma revelação de que serei curado.
__ Oh! -- exclamaram os simples moradores da cidade.
__ E não será apenas isto. Todos aqueles que estiverem
junto de mim receberão a benção da prosperidade vinda
diretamente dos céus.
__ Nós vamos ficar ricos -- agitou o sujeito com minhas
roupas dentre o povo.
__ Sim. Todos que tiverem fé em mim ficarão ricos e
prósperos.
__ E o que devemos fazer, pastor? -- tornou a perguntar
o exorcisado.
__ Como prova de fé, devem ofertar o seu dinheiro e
todos os objetos valiosos que tiverem, depositando-os nesta
caixa aqui do meu lado -- explicou o Pastor Willian,
apontando diretamente para a urna da coleta.
__ Eu creio no senhor, pastor. Vou lhe dar mil reais.
O cara com minhas roupas pegou sua carteira e jogou-a
na caixa. Ato contínuo, ajoelhou-se piedosamente e
começou a orar emocionado.
Influenciado pela atitude despojada do sujeito, várias
outras pessoas repetiram o gesto. As demais, eufóricas,
correram até suas casas para trazer dinheiro e outras coisas
de valor.
Um helicóptero sobrevoou a praça naquele instante.
Pude ler a sigla de uma emissora de tevê estampada na
lateral do aparelho.

gutole@bol.com.br 75 http://lergratis.cjb.net
__ É o pessoal do Gugu que veio filmar o Chupa-cabra --
esclareceu uma jovem toda empetecada passando correndo
por mim em direção ao morro.
Creio que Carmo da Cachoeira nunca esteve tão
movimentada como naquele dia. Viam-se pessoas correndo
de um lado para o outro; alguns querendo aparecer na tevê,
outros querendo ficar ricos através da benção da
prosperidade do pastor.
Que difícil escolha para aquele povo tão sortudo, pensei
enquanto fui me aproximando do palco onde o pastor
mantinha seus braços erguidos para cima.
__ Se-seu pa-pastor -- disse encostando no palco. __ Po-
por que o se-senhor ro-roubou mi-minhas roupas?
O Pastor Willian olhou para mim assustado. Seu
companheiro, percebendo a gravidade da situação,
começou a orar mais alto, gritando feito um doido.
__ Uai, sô. Como é que pode o pastor cego encarar esse
rapaz aí? -- espantou-se um fiel atrás de mim.
Preparado para tudo, o pastor não hesitou:
__ Estou curado. Aleluia! Estou curado -- e jogou o
óculos escuro no chão.
Seu companheiro completou:
__ Aleluia! Venham todos ver. O pastor foi curado da
cegueira.
__ Sim, irmãos. Fui curado. Tragam logo seus objetos de
valor e coloquem na caixa. Sinto que os céus já estão
derramando bênçãos sobre nós.
Tentei falar, mas não consegui. Emocionado, o povo
berrava, chorava, sorria, gesticulava, pulava.
Muitas coisas foram lançadas dentro da urna de coleta,
com grande euforia.
O pastor me olhou de relance, proferindo em alto e bom
som aos fiéis que se multiplicavam:
__ Agora vão para suas casas e fiquem em vigília de
oração por três horas. Não saiam de casa neste período.
Somente quem ficar trancado em sua casa orando por três

gutole@bol.com.br 76 http://lergratis.cjb.net
horas é que vai receber a benção da prosperidade e tornar-
se rico.
Foi um empurra-empurra dos diabos. Sem conseguir
impedir, fui empurrado por um bando de gente até dentro de
uma casa. As pessoas da casa estranharam minha
presença, mas, obedientes cegamente às palavras do
pastor, ignoravam-me rapidamente e começaram a orar.
Ao sair daquela casa, parei diante da tevê e vi o prefeito
da cidade dando uma entrevista a uma repórter famosa.
__ É verdade que o senhor prendeu o Chupa-cabra?
__ E não só isso -- respondeu o engravatado com o
sorriso confiante. __ Eu conversei com os extraterrestres
que o trouxeram até nosso planeta.
__ Que coisa formidável! -- admirou-se a repórter
loiríssima de feições tolas.
__ Sim, e eles me revelaram segredos incríveis.
__ Quais segredos?
__ Infelizmente não poderei revelá-los, por enquanto.
__ Por que não?
__ Porque tenho uma missão a realizar.
__ De que forma?
__ Como deputado eleito nas próximas eleições poderei
resolver o problema da fome, da miséria e do desemprego
utilizando estes conhecimentos superiores.
Intrigado com o que ouvi, desliguei a tevê e saí da casa.
Lembrei-me de minha Guia e, após informar-me com um
velho a respeito do local, fui até a Santa Casa.
Pelo caminho, notei que a cidade estava deserta. Nem
cachorro se via pelas ruas.
No hospital, tentei conversar com as recepcionistas. Tudo
em vão. Uma não tirava os olhos da televisão, e a outra,
braços erguidos para o céu, não parava de repetir para o
seu estranho deus lhe mandar muito dinheiro.
__ Ei, você. Venha aqui.
Segui pelo corredor até o médico que me chamou. Era
aquele que levara Cledite para o hospital.
__ Co-como ela e-está, doutor?
gutole@bol.com.br 77 http://lergratis.cjb.net
__ Ela quebrou cinco costelas, um braço e todos os
dedos dos pés. Está toda ralada e esfolada, mas não corre
risco de vida.
Suspirei aliviado. O cristal havia salvado a vida da minha
Guia.
__ Só há um problema maior.
__ Qual, do-doutor?
__ Não sei como, mas ela tinha uma pedra de cristal
grudada na testa.
__ Que bo-bom pra e-ela, né?
__ Bom! Isto quase matou a pobre coitada. Os raios do
sol tiveram sua intensidade ampliada ao passar pelo cristal
e quase que abriram um buraco na cabeça dela.
Saí meio desapontado da Santa Casa. Como é que um
cristal, uma pedra de poderes incríveis, poderia ter feito mal
à minha Guia? Certamente foi o médico, com sua ciência
ineficiente, que interpretou errado a situação.
Fiquei sentado no banco da praça o resto do dia. Lá,
nem sinal do Pastor Willian e seu companheiro.
No início da noite, um moço de voz fina abordou-me:
__ Oi, gato. Você que é o Saulinho? Nem precisa me
responder. Eu te reconheci por estes músculos gostosos.
Meu nome é Dedé, seu novo Guia. Espero passar
momentos inesquecíveis com você, amorzinho.

gutole@bol.com.br 78 http://lergratis.cjb.net
CAPÍTULO XII
UMA ANTIGA ORDEM

A Cledite era mulher, mas parecia homem. Ao contrário,


o Dedé era homem e parecia mulher. Realmente o mundo
havia virado de cabeça para baixo. Talvez seria o reflexo da
tal da globalização que andavam dizendo por ai. Há algum
tempo atrás, eu vi na televisão que nos Estados Unidos os
homossexuais podiam se casar. O pessoal daqui gostou da
idéia dos americanos, e estavam lutando para que esse laço
matrimonial também fosse possível no Brasil. Será que o
canalha do Pastor Willian apoiaria uma coisa destas?
O jeito foi enfrentar a realidade e aceitar o Dedé como o
meu novo Guia. Se era a vontade da Ordem, eu teria que
me impor ao sacrifício, deixando de lado o meu justo
preconceito. Porque homem que é homem, tem que ser
muito macho. E, mulher que é mulher, tem que ser muito
fêmea.
__ E aí, gatinho. Estou todo a seu dispor. Não vai dizer
nada? -- indagou Dedé, esfregando-se em mim.

gutole@bol.com.br 79 http://lergratis.cjb.net
Procurei controlar os ânimos. Ele era um membro da
Ordem Sagrada dos Mentecaptos; merecia respeito e
atenção. Num lampejo, veio um plano em minha mente.
__ E-estou mu-muito feliz em co-conhecê-lo. Os Gui-
guias da Ordem são to-todos le-legais e e-estão me le-
levando no ca-caminho certo. Tam-também são muito re-
receptivos e be-bem humorados, co-como você, é cla-claro
-- papariquei Dedé, com um tom de voz intencionalmente
parecido com o do Guia. A única forma de não ser flertado
por ele era afeminar a voz e falar como bicha.
__ Como você fala fino. Eu pensei que ...
__ Pe-pensou o quê? -- gritei com minha voz verdadeira,
estragando o meu plano.
__ Nossa, que vozeirão! Desse jeito você me mata do
coração.
Não havia saída. O único jeito foi aceitar aquela situação
embaraçosa em que eu me encontrava preso.
__ E-então, Dedé. Pra o-onde a ge-gente vai?
__ Saulinho, essa noite vamos nos embrenhar no
matagal, rumo à cidade de Iguaí. Vamos partir logo, pois
você tá muito lerdo em sua peregrinação. O Mentor
Regional de Escalas da Ordem disse-me que você já
deveria estar na metade do caminho. Isso significa que você
tá muito mole. Felizmente eu conheço um exercício que vai
te deixar eletrizado -- prometeu Dedé, olhando-me de alto a
baixo.
Atrasado? Como? Desde a cidade de Varginha eu vinha
seguindo o ritmo dos meus Guias. Se eles paravam de
caminhar, eu parava; se corriam, eu corria; se tomavam
água, eu tomava; enfim, nunca deixei de ser uma fiel
sombra de meus Guias. O Dedé estava com algum parafuso
solto na sua cabeça.
Não havia gostado da idéia de ter que caminhar
novamente pelo matagal. Ainda mais à noite, arriscando ser
atacado por pererecas, mosquitos, cobras; e agora, esse tal
de Chupa-cabra.

gutole@bol.com.br 80 http://lergratis.cjb.net
__ Pe-pelo ma-mato eu não vo-vou -- disse ao Dedé,
cruzando os braços.
__ Como não vai, Saulinho? Você não escolhe nada; sou
eu, seu Guia, quem tem o poder de decidir o seu caminho.
Mas como eu gostei do seu ... quero dizer, da sua pessoa,
vou abrir uma exceção. Por onde iremos? -- inquiriu Dedé,
andando em direção à rua.
__ Eu pre-prefiro ir pe-pela es-estrada de te-terra do que
pe-pelo mato.
__ Só que tem um probleminha. Pela estrada o caminho
é mais longo e monótono. Mas se prefere assim, por você
eu faço esse sacrifício.
__ Vo-você sa-sabe onde ve-vende pilha? -- indaguei ao
Guia, segurando minha lanterna.
__ Siga-me, Saulinho.
Na periferia da cidade paramos num armazém antigo que
tinha na fachada uma placa com a legenda: Venda do
Chico.
O armazém estava abarrotado de quinquilharias. Um
homem magro de barbas brancas veio nos atender no
balcão do estabelecimento. Dedé não parava de olhar para
o alto, onde haviam várias peças de lingüiças dependuradas
por arames. Fiquei de água na boca quando vi uma peça de
mortadela próxima às lingüiças. Aquilo me fez lembrar do
meu tempo de criança, quando minha turma roubava cascos
de refrigerantes no depósito da padaria do turco Ozias, e
com o dinheiro da venda das garrafas, comprávamos
lanches feito de pão com mortadela na própria padaria.
Coisas de pivete, não é mesmo?
__ Os senhores desejam alguma coisa? -- inquiriu o
homem de bigodes brancos.
__ Queremos sim, seu Chico. Somos peregrinos da
Ordem Sagrada dos Mentecaptos e viemos comprar algum
coisa pra gente comer pelo caminho -- disse o Guia
mostrando ao homem uma carteirinha azul.
__ Fiquem à vontade. O que é da Ordem é de Deus. O
que vocês gostariam de levar? -- indagou o dono do
gutole@bol.com.br 81 http://lergratis.cjb.net
armazém, segurando uma caderneta e uma caneta nas
mãos.
__ Uma peça daquela lingüiça, pilhas para a lanterna,
dois refrigerante e ... mais alguma coisa, Saulinho? --
perguntou-me o Guia, com aquele olhar cativante.
__ Nã-não tô com muita fo-fome. Só a li-lingüiça e o re-
refrigerante tá ó-ótimo -- disse ao Guia tentando escapar
daquele olhar insinuante.
Peguei as pilhas e coloquei-as na lanterna. Seu Chico
embrulhou a lingüiça e pediu para que o Dedé assinasse o
seu nome na caderneta. Depois, saímos do armazém e
seguimos viagem pela escura estrada de terra.
O céu escuro não tinha o brilho das estrelas, e a lua
estava coberta por nuvens gigantescas.
Fazia muito frio. O fraco foco de luz da lanterna, pouco
clareava o caminho de terra.
Após duas horas de caminhada, paramos próximo a uma
porteira vermelha para descansar um pouco. Sentei sobre
um toco, enquanto Dedé preparava uma fogueira para assar
a lingüiça. Em poucos minutos ela já estava assada.
Sentamos em volta da fogueira, comendo e bebendo à
vontade. E que delícia de lingüiça tostada! Ficamos
naquele local cerca de meia hora, depois continuamos com
a peregrinação.
Num determinado momento, Dedé segurou-me pelo
braço e disse-me:
__ Saulinho, acho que chegou o momento de você
aprender o Exercício do Esfrega-esfrega. Vai ser bom pra
você, vai ser ótimo pra mim. Tome esse comprimido mágico.
Engula ele inteirinho -- ordenou o Guia, dando-me o
comprimido.
__ Eu nã-não consigo e-engolir co-comprimido desse ta-
tamanho -- resmunguei com receio daquilo ser alguma
espécie de tranqüilizante.
__ Saulinho, não tem problema. Vou partí-lo ao meio. Eu
fico com uma parte e você com a outra metade. É mágico.
Ou será que você não confia nem em seu próprio Guia?
gutole@bol.com.br 82 http://lergratis.cjb.net
Com aquela pressão psicológica, o jeito foi tomar a seco
o tal do comprimido; por pouco ele não ficou entalado na
garganta. Senti o meu corpo estranho, uma vontade enorme
de me esfregar no meu Guia. Não demorou muito tempo,
não resisti à tentação. Colamos um ao corpo do outro e
fomos nos esfregando pelo caminho afora. O frio que eu
sentia havia se transformado num calor infernal.
De repente, batemos com a cabeça numa espécie de
porta dura como pedra. Meio zonzo, como que sonhando,
levantei-me do chão e iluminei o local com a lanterna. No
alto da pedra havia um pedaço de madeira, onde se lia
nitidamente: “Gruta da Ordem dos Malignos -- pronuncie a
palavra sagrada para que a porta se abrirá”. Que espécie de
Ordem era aquela? Perguntei ao Guia, que não tirava as
mãos da cabeça. Reclamando de dores por todo o corpo,
revelou-me o significado daqueles escritos.
__ Saulinho, estamos diante da Gruta da Ordem dos
Malignos. Era uma Ordem que existiu no século passado e
tinha um lema totalmente inverso ao da nossa Ordem
Sagrada. Os membros dela eram ladrões, matadores de
aluguel; realizavam rituais de bruxaria e magia negra. Em
1863 todos os membros dessa Ordem foram destruídos pela
Energia Purificada de um cometa invisível que caiu num
lugar desconhecido da Terra. Esse tal cometa se
transformou numa caverna e aprisionou dentro de si as
almas impuras de todos os Membros da Ordem dos
Malignos.
__ E-então a-achamos o co-cometa -- concluí, admirado
pela descoberta.
__ Você quer dizer que encontramos a caverna que se
originou do cometa. A lenda diz que quem conseguir roubar
os poderes das almas impuras tornar-se-á um semideus.
Mas como vamos conseguir descobrir a palavra que faz
abrir essa droga de caverna, hein, Saulinho? Você tem
alguma idéia?
Na parte inferior do pedaço de madeira haviam cinco
pontinhos em seqüência. Talvez poderia significar alguma
gutole@bol.com.br 83 http://lergratis.cjb.net
coisa. O tal do comprimido parecia ter acelerado o meu
raciocínio, e muitas palavras surgiam em minha mente.
Depois de pensar, pensar, lembrei-me de que no nosso
alfabeto existem apenas duas letras que possuem um
pingo. São elas: “i” e “j”. Resolvei tentar a sorte e proferi em
voz alta, pausadamente:
__ A pa-palavra é i-ijiji, i-ijiji -- repeti duas vezes, mas a
porta de pedra não se abriu.
__ O que você disse, Saulinho? -- indagou Dedé,
absorto.
__ Eu a-acho que tô quase de-descobrindo a pa-palavra
má-mágica.
__ Então, diga qual é a palavra. Não vejo a hora de
poder roubar os poderes daqueles vermes. Vamos,
Saulinho, diga logo -- suplicou o Guia, agitadíssimo.
Respirei fundo com o intuito de não gaguejar. Talvez
fosse por isso que a palavra não estava funcionando. Tomei
coragem e gritei bem alto:
__ A pa-palavra é i-ijiji ...
__ ... ijiji! -- exclamou Dedé, pronunciando a palavra
corretamente.
Naquele momento o chão estremeceu e a porta da
caverna se abriu como um passo de mágica.
Dedé me empurrou para dentro da caverna e seguiu
atrás de mim. Com a lanterna iluminei o estreito corredor
que tinha o chão escorregadio e as paredes com infiltrações
d’água. Calmamente, íamos avançando corredor a dentro.
__ Tá muito escuro, Saulinho. Se aparecer alguma alma
penada você jura que me protege? -- indagou o Guia,
amedrontado, agarrando-se em meu braço.
__ Po-pode co-contar co-comigo. É a-apenas uma ca-
caverna abandonada. Tá de-deserta -- disse ao Guia,
tentando tranqüilizá-lo.
Logo à frente encontramos um pátio de grandes
dimensões. No centro havia uma pedra que parecia mais
com um trono real. Bem devagar, girei o corpo, iluminando

gutole@bol.com.br 84 http://lergratis.cjb.net
os quatro cantos do pátio, e nem sinal das tais almas dos
Membros da Ordem dos Malignos.
Já estava acreditando que aquela história toda era uma
farsa do meu Guia, que talvez, tinha outras intenções em
me levar para um local tão deserto quanto aquele. Todavia,
um fato curioso e surpreendente ocorreu diante de meus
olhos. Misteriosamente, várias velas de todas as cores
começaram a surgir do nada, acendendo-se pelos quatro
cantos do pátio da caverna.
Dedé tremia feito vara verde.
Quando pensávamos em correr, um homem baixo,
barbudo, apareceu no centro do pátio, sentado no trono de
pedra como um verdadeiro rei. Não contive o medo e
desmaiei.
Acordei com um banho de água fria em meu rosto. Olhei
ao meu redor, mais zonzo do que já me encontrava, e vi
várias pessoas estranhas, mal-encaradas, de cabelos
compridos, mal vestidas, que flutuavam acima das velas. Ao
meu lado, Dedé, bem descontraído, jogava damas com um
daqueles indivíduos esquisitos, e nem se deu conta de que
eu havia acordado.
O homem baixo e barbudo que eu tinha visto
anteriormente, encontrava-se na minha frente, sentado no
trono de pedra. Segurando um prato nas mãos, disse-me:
__ Até que enfim o senhor acordou, seu Saulo Lebre.
Tome a sua sopa, está uma delícia.
__ Que ho-horas são? -- indaguei, ainda sonolento.
__ Mais de meio-dia, dorminhoco. Tome logo sua sopa --
ordenou o homem barbudo, entregando-me uma cuia.
A sopa estava quente e tinha uma coloração marrom, da
cor da terra. Que raio de comida seria aquela? Foi o que lhe
perguntei:
__ O que é i-isso que está me-mexendo aqui de-dentro
da so-sopa?
O homem soltou uma gargalhada displicente e revelou:
__ É muito nutritivo. Seu Guia adorou e repetiu três
vezes a sopa de minhoca ...
gutole@bol.com.br 85 http://lergratis.cjb.net
__ Mi-minhoca? Cru-cruz-credo, isso de-deve ser ho-
horrível, é co-comida de pe-peixe, não de ge-gente --
redargüi, sentindo muita ânsia de vômito.
__ Como, Saulinho? É uma delícia! -- interveio Dedé,
com um brilho diferente nos olhos. __ Mas antes, quero lhe
apresentar o Mestre Superior da Ordem dos Malignos, o
maquiavélico Jeremias.
O homem baixo de barbas brancas estendeu-me as
mãos. Ele estava com o meu medalhão em seu pescoço.
Fiquei boquiaberto, sem saber o que fazer. Aproximei-me
dele e com uma voz firme pedi o meu medalhão.
__ De-devolva o meu me-medalhão.
__ Como? Será que eu ouvi direito? -- ironizou Jeremias.
__ Eu que-quero meu me-medalhão -- repeti, enfurecido.
__ Querido Saulo, eu não sou surdo. Ouvi perfeitamente.
Quero deixar bem claro que a partir de agora, você, assim
como seu Guia, é meu escravo.
Num gesto intempestivo atirei a sopa no rosto de
Jeremias. Todavia, o liquido atravessou-lhe sem sequer ficar
uma gota em seu corpo. Eu estava diante de alguma
espécie de alma penada.
__ Saulo, não faça birrinha, meu garotinho. Não é
sempre que temos uma sopa como essa nesta caverna tão
aconchegante. Mas voltando ao nosso assunto, fiquei
sabendo que você é membro de uma tal Ordem dos
Mentecaptos. Saiba que há algum tempo atrás eu era o
Mestre de uma das Ordens mais respeitadas e atuantes de
todos os tempos. Mas ocorreu um incidente, e fomos
aprisionados nesta caverna por uma força cósmica
intensamente positiva. Que horror! Entretanto, hoje é um dia
muito especial para nós. Você é o nosso herói, conseguiu
desfazer o encanto que envolvia a porta de pedra. Já enviei
alguns de meus discípulos para fazerem um investigação de
campo em busca de informações a respeito do que está
ocorrendo do lado de fora.
__ Ele quer saber como são as pessoas do final do
século vinte; se elas são solidárias, inofensivas e conhecem
gutole@bol.com.br 86 http://lergratis.cjb.net
a Ordem dos Malignos -- interveio Dedé, que parecia muito
bem informado e adaptado naquele lugar nefasto.
Não demorou muito e apareceu o primeiro discípulo da
Ordem, todo estraçalhado dos pés a cabeça. Jeremias,
pasmo, inquiriu-lhe:
__ O que acorreu com você, Cataclismo?
__ Eu fui engolido por um tubo, e caí num pequeno saco
que ficava dentro de uma caixa preta. Depois atiraram-me
ao fogo.
__ Mas como isso tudo aconteceu? -- quis saber
Jeremias com mais detalhes.
Antes, porém, de Cataclismo responder, outro discípulo
adentrou o pátio, rolando entre as velas.
__ Mestre. Mestre ... -- gritava o discípulo, delirante. __ O
mundo está uma verdadeira loucura. Se eu fosse o senhor
não punha os pés lá fora. Tá a maior bagunça. Ninguém
respeita a gente. Fui atacado de vassoura por uma mulher
ranzinza. Depois, um pivete acertou uma pedra em minha
cabeça, e ...
__ Chega! -- berrou Jeremias. __ Cuidem desses dois,
seus incompetentes. Deixe que eu vou ver isso de perto.
__ É muito perigoso, Mestre -- avisou Cataclismo, pondo-
se à frente do seu Mestre.
__ Saia da minha frente. Eu volto logo.
Enquanto esperávamos pelo retorno de Jeremias, sugeri
ao meu Guia um plano de fuga. Mas o Dedé repudiou minha
idéia e teve a audácia de me dizer que não sairia daquele
local nem por um milhão de dólares. O que será que ele
havia visto de tão atraente na caverna? Seria a sopa de
minhoca? Ou talvez o exército de discípulos da
fantasmagórica Ordem dos Malignos? Permaneci sentado,
próximo ao Guia, que continuava o seu jogo de damas com
um dos mal-encarados.
Após uma longa espera, o Mestre adentrou a caverna,
dizendo palavrões e chutando tudo o que via pela frente.
Aproximou-se de mim, pegou-me pelo pescoço, e disse:

gutole@bol.com.br 87 http://lergratis.cjb.net
__ Desapareça daqui, seu verme! Lacre a porta de pedra
e queime a tábua que está sobre ela. Por obséquio! --
suplicou Jeremias, com os olhos arregalados e atordoados.
Era a chance de recuperar o meu medalhão, de me livrar
daquele Guia maluco e sair da caverna.
__ De-devolva meu me-medalhão.
__ Pegue-o. É todo seu -- disse, entregando-me o
medalhão com as mãos trêmulas.
__ Eu vou ficar. Quero ficar -- berrou Dedé, abraçado
com o tal sujeito com que jogava dama.
A sorte estava do meu lado. Tinha me livrado do Guia e
conseguido meu medalhão de volta.
A despedida foi rápida. Saí sozinho da caverna e parei
diante da porta de pedra. Enchi os pulmões de ar e proferi
bem alto.
__ i-ijiji, i-ijiji.
Nem sinal da porta se mexer. Concentrei-me na minha
fala, e procurei não gaguejar.
__ ijiji -- soletrei corretamente a palavra mágica.
Antes da porta se fechar totalmente, ouvi gritos de alegria
que vinham do interior da caverna. O passo seguinte foi
fazer uma fogueira e queimar a placa de madeira onde
estava escrito o enigma.
Algo muito curioso ocorreu. Concomitante à queima da
madeira, a caverna foi desaparecendo lentamente diante
dos meus olhos.
O sol do meio-dia ardia minha pele. Senti uma sonolência
e deitei sobre o mato à beira do caminho.
Acordei com algo mole, quente e úmido, massageando o
meu rosto. Abri os olhos; era começo da noite, e deparei-me
com uma égua arreada numa carroça.
Levantei assustado e senti uma mão estranha no meu
ombro.
__ Você acordou, meu netinho? -- disse uma velha que
estava atrás de mim.
__ A-acho que sim -- respondi, um pouco zonzo.

gutole@bol.com.br 88 http://lergratis.cjb.net
__ Como vai? Eu sou a sua nova Guia. Não ando muito
boa das pernas, e por isso vim de carroça. Ah! cadê o
Dedé?
__ O Dedé? E-ele já fo-foi embora -- respondi distraído.
__ Aquele garoto é sempre apressadinho -- disse a
velhinha subindo na carroça. __ Venha, meu netinho.
Vamos continuar a peregrinação.

CAPÍTULO XIII
UMA VELHA HISTÓRIA
PRA CONTAR

Preguiçosamente, a obsoleta carroça de Dona


Genoveva, minha Guia, chegou em Iguaí.
gutole@bol.com.br 89 http://lergratis.cjb.net
Pelo caminho, porém, a senhora de idade avançada,
entre tosses e xingamentos, conversou comigo a respeito
de sua vida.
__ Eu entrei pra Ordem dos Mentecaptos na época da
Revolução.
__ Se se-sessenta e qua-quatro?
__ Não. A Revolução Comunista de 1917. Minha família
perdeu as fazendas que tinha na Rússia e tivemos que fugir
para o Brasil, senão a gente ia parar na Sibéria.
__ E co-como a se-senhora conheceu a Ordem?
__ Maldição de joelho. Tá doendo que é uma me ... Ah,
sim. Eu era meio meninota ainda, mas ganhava a vida lendo
as mãos das pessoas. Um dia estava num boteco do Rio
tomando uma cachaça e não é que pra mal dos pecados
apareceu por lá dois políticos figurões. Fiquei de butuca no
meu canto só escutando o que eles falavam. Ai, minhas
costas. Que p... duma dor.
__ A senhora parece do-doente.
__ Doente? Eu tô mais entrevada do que os economistas
do governo. Mas isto não vem ao caso. Continuando a
história, eu ouvi que um deles dizia que já tinha subornado
um tantão de gente graúda pra apoiar o sujeito nas eleições
pra presidente, só que ainda tava meio inseguro. Foi então
que eu dei o bote.
__ O que a se-senhora fez? -- perguntei cheio de
curiosidade por aquela versão original da História.
__ Eu convenci o homem e consegui ler a mão dele.
Disse algumas coisas de costume, aquelas asneiras que
todo otário gosta de escutar, e dei o golpe de misericórdia:
disse que ele seria eleito Presidente na eleição que ia
acontecer. E não deu outra: o cara ganhou mesmo.
__ A se-senhora de-deve ser uma gra-grande vidente --
afirmei convencido de estar ao lado de outra nobre pessoa
que a Ordem me destinara.
__ Ah, jovens! Tão crédulos. O que seria de gente como
eu se não existissem pessoas como vocês?

gutole@bol.com.br 90 http://lergratis.cjb.net
Nem ousava imaginar uma coisa daquelas. Um mundo
sem Guias, sem gurus, sem gente sabida que dissesse o
que os outros deveriam fazer deveria de ser um tormento.
__ Pois então, Saulo -- continuou a Guia, depois de tossir
e cuspir algumas vezes. __ Por obra do destino fui visitar
uma irmã minha que tinha uma casa de polacas lá na
Baixada Fluminense. E não é que dei de cara com o tal do
Presidente? Ele ficou morrendo de medo, aliás como todo
político desse país supersticioso.
__ Po-por que e-ele ficou com me-medo, Guia? --
indaguei envolvido no relato de Dona Genoveva.
__ Ora, Saulo. Ele achava que eu tinha algum poder
oculto, já que eu previra sua eleição. E como quem deve,
teme, ele me levou pro canto da sala e me fez uma proposta
que mudou minha vida.
__ O que o Pre-presidente disse?
__ Disse pra eu não entender errado, que ele táva lá só
visitando os amigos eleitores. Mas como meu olhar não
indicava ter sido ludibriada, ele me disse que podia ajeitar
minha vida pra sempre. Que porcaria duma azia! Um dia ela
acaba comigo. Bem, Saulo, noutro dia ele me apresentou
um amigo dele. Era um homem magérrimo de gestos
nervosos e falava igual a um papagaio gripado.
__ Quem e-era e-ele?
__ Era um panaca, quero dizer, um homem ... ilustre. Foi
ele que fundou a Ordem dos Mentecaptos.
Quem diria? Estava diante de uma mulher que conhecera
o Fundador da Ordem. Aquela honra me comoveu
profundamente, a ponto de, com grande dificuldade, reprimir
um choro emocionado por tamanha felicidade.
A Guia ficou em silêncio por alguns minutos. Quando
reiniciou a narrativa, notei que falava com certa prudência.
__ Tornei-me então a secretária do cara, tendo como
missão a de encontrar e recrutar pessoas para a sociedade
secreta que pretendia fundar. Em compensação, o
Presidente me deu uma casa no Leblon, de frente para o
mar, e me mandava flores toda a semana com um bilhetinho
gutole@bol.com.br 91 http://lergratis.cjb.net
que dizia sempre a mesma coisa: “O silêncio vale ouro. Teu
silêncio poderá te valer muito mais que ouro”.
__ E-então, o Pre-presidente era amigo do Fu-fundador
da Ordem?
__ Pelo que sei eles tinham um certo negocinho em
comum. E como o Fundador ajudou o Presidente em certas
ocasiões, nada mais justo que o Presidente retribuísse o
favor auxiliando-o a formar uma seita no país.
__ E co-como foi que se-senhora re-recrutou os pri-
primeiros Membros da O-Ordem? -- perguntei curioso.
__ Como lhe disse, minha irmã tinha uma casa na
Baixada onde moravam muitas moças boas. E elas eram
tão boas que recebiam visitas freqüentes de importantes
personalidades da indústria, comércio e, é claro, da política.
__ Que mu-mulheres bo-boas deviam ser e-elas! --
exclamei extasiado.
Dona Genoveva conteve uma gargalhada. Cuspiu, tossiu,
xingou e prosseguiu:
__ Pois é. As polaquinhas procuravam se inteirar da vida
de seus ... amiguinhos; e aqueles que atendiam os
requisitos estabelecidos pelo Fundador, eu, sutilmente,
entrava em contato. Diante de certas argumentações, eles
não tinham outra alternativa senão a de entrarem para a
Ordem e a servirem espiritual e financeiramente.
Dona Genoveva engasgou quando disse a última palavra
e não falou mais nada até chegarmos em Iguaí.
A cidade mineira era bem simpática. Limpa, ordeira e
repleta de crianças andando de bicicleta e jogando bola em
todo canto.
Minha nobre Guia parou a carroça defronte a um
empório, deu-me algum dinheiro e mandou-me comprar
algumas ervas que usaria posteriormente em um Ritual
Sagrado fora da cidade.
Quando entrei na venda, um forte odor quase que me
derrubou no chão. Felizmente, mantive minha habitual
postura de firmeza, dirigindo-me até o balcão.
__ Bo-boa tarde. Eu que-queria comprar uma e-erva.
gutole@bol.com.br 92 http://lergratis.cjb.net
__ Fala baixo -- murmurou o vendedor, com olhar aflito.
__ Qual erva você quer?
Tentei me lembrar do nome esquisito que a Guia me
falara, mas não conseguia. Como não queria que ela se
ofendesse comigo se eu fosse perguntar o nome da planta,
disse incisivamente:
__ A da-da boa. A me-melhor que ti-tiver.
__ E qual a quantidade?
__ Dá um pa-pacote.
__ Um pacote inteiro?
__ É pra Do-dona Ge-genoveva, lá fo-fora -- expliquei
apontando para a Guia encurvada na carroça.
O homem da venda entrou num quartinho escuro, nos
fundos do empório, e instantes depois voltou com o pacote.
__ E-essa é bo-boa mesmo? -- perguntei ao sujeito
dando-lhe o dinheiro.
__ Garanto que a velha da carroça vai voar como
passarinho com essa erva aqui, companheiro.
De volta à carroça, andamos vagarosamente pelas ruas
da alegre cidade até pararmos debaixo de uma árvore com
uma enorme copa.
Lá, ficamos até o entardecer, conversando sobre a
Esfinge Dourada, a peregrinação e sobre alguns aspectos
de minha vida particular.
__ Quer dizer então que você deixou o Albertinus
tomando conta de sua casa e de seu cofre? -- perguntou-me
Dona Genoveva com feições de um certo interesse.
__ De-deixei -- respondi, abrindo um largo sorriso. __ E-
ele é um gra-grande amigo.
__ E o cofre, Saulo? Por acaso o Albertinus sabe como
abri-lo?
Achei a pergunta estranha. O interesse dela estava mais
aguçado que de costume.
__ Na-não. Mas a co-combinação secreta do co-cofre
está e-escondida debaixo do me-meu colchão. Se e-ele
precisar gua-guardar alguma co-coisa no co-cofre, tá fá-fácil
de achar.
gutole@bol.com.br 93 http://lergratis.cjb.net
__ E como ele vai achar esta maldita combinação? Ou
melhor, como você disse, se ele quiser guardar algum
objeto pessoal de valor no cofre, de que jeito ele vai
conseguir se não sabe onde está o segredo?
Era realmente de se admirar como uma mulher com
aquela idade fosse tão lúcida e solidária. Esta constatação
deixou-me novamente emocionado.
__ A se-senhora tem ra-razão. É di-difícil mesmo.
__ Mas eu tenho a solução. Tome este papel e caneta
que eu trago aqui em meu bornal. Agora escreva onde está
a combinação, por favor. Ótimo. Deixe-me ver onde eu
tenho um envelope. Ah, aqui está. Saulo, querido, coloque o
seu endereço no envelope e ponha a carta naquela caixa do
correio perto daquela farmácia, sim?
Fui cegamente obediente às palavras da Guia. Sentia-me
intimamente satisfeito por estar fazendo uma obra de
caridade, ainda mais junto com uma das fundadoras da
Ordem, e em favor de um dos homens mais respeitáveis
que conheci, Albertinus.
__ Só e-espero que te-tenha lugar no meu co-cofre pras
co-coisas do Albertinus -- disse ao voltar de minha Missão.
__ Seu cofre está cheio, filho? -- inquiriu-me a Guia, com
o mesmo olhar de outrora.
__ E-está lo-lotado.
__ Que bom! -- exclamou, soltando uma estranha
gargalhada rouca.
Prosseguimos nossa jornada até pararmos defronte à
igreja de Iguaí. A praça da matriz estava deserta, muito
provavelmente por se tratar da hora da janta.
__ Vamos aproveitar e entrar na igreja.
__ A ge-gente vai re-rezar?
__ Que rezar que nada. Nós da Ordem dos Mentecaptos
não perdemos nosso tempo com isso. Nosso negócio é
mentalização energética positiva. O resto é lorota.
__ O que nó-nós va-vamos fazer, então? -- interroguei-a
quando entramos na igreja.

gutole@bol.com.br 94 http://lergratis.cjb.net
__ Nós vamos fazer o próximo exercício de sua
purificação pessoal: o Ritual do Odor Magnético.
Subimos pela cansativa escadaria lateral até chegarmos
na torre da igreja, logo acima do relógio barulhento da
matriz.
Os joelhos de Dona Genoveva não paravam de estralar,
e a Guia murmurava baixinho, lançando fortes imprecações
naquele lugar santo.
__ Ai, não suporto mais esta vida. O que a gente não faz
pra tapear os otários e ganhar um dinheirinho.
__ O que a se-senhora di-disse?
__ Nada, nada. Deixa-me descansar um pouco antes de
começarmos o Ritual.
Enquanto a nobre Guerreira da Ordem descansava
sentada numa cadeira velha que havia na torre, eu fiquei em
posição de lótus e procurei entrar em alfa, seguindo os
ensinamentos de Rodnaldo, no Albergue.
Já havia caído três vezes da escada mental que
memorizei, quando senti um cheiro estranho. Tentei inspirar
mais profundamente, mas meus esforços foram em vão.
Devia estar com o nariz congestionado, graças talvez às
tosses freqüentes de minha Guia. Sim, deveria estar com
um milhão de vírus passeando em meu corpo, e aquela era
a hora do recreio dos danadinhos -- e bem em minhas vias
respiratórias.
__ Que cheiro bom! Não transo uma fumacinha assim
desde os anos cinqüenta.
Abri meus olhos e o que vi me chocou. Apenas com as
roupas de baixo, Dona Genoveva dançava ao redor de um
treco que soltava uma fumaça esverdeada. Ao lado, o
pacote que comprei no empório estava aberto e
completamente vazio.
__ Sinto que posso voar, Saulo. Isto, eu posso voar.
Dona Genoveva estava fora de si. Abriu a janela de
madeira podre que tinha no lugar, e com inigualável
versatilidade ficou de pé no pequeno parapeito da janela.
__ Cu-cuidado. A se-senhora po-pode cair.
gutole@bol.com.br 95 http://lergratis.cjb.net
A Guia estava alucinada. Dizia que era a mulher
maravilha e que iria voar.
__ Não. Pa-pare -- gritei, segurando-a pelos tornozelos.
Ela inspirou outra vez, soltou outra de suas gargalhadas
e pulou. E eu fui junto com ela.
Eram sete e vinte e cinco. Sei disso porque eu fiquei
pendurado pelo colarinho da camisa no ponteiro das sete,
enquanto minha Guia ficou pendurada pelo sutiã, no
ponteiro dos cinco.
__ Veja, Saulo. Que vista linda! -- exclamou Dona
Genoveva, pouco se importando com a gravidade da
situação.
Meu coração já estava na garganta quando algo tornou
meu medo ainda maior. Uma displicente coruja veio voando
do nada e pousou em meu ombro direito. Que mal
presságio!
__ Assim não dá, Saulo Lebre. Você está sempre se
metendo em encrencas.
Seria alucinação ou o pássaro estava conversando
comigo de verdade?
__ Não é alucinação e estou falando com você de
verdade. Ah, e consigo ler seus pensamentos também.
Era o Mensageiro da Libertação, meu demônio pessoal.
__ Algo me diz que a velhinha ali vai se dar mal --
ironizou a Coruja.
Realmente, o ponteiro dos minutos descia lentamente, e
certamente ao chegar no número seis, minha Guia iria
voar ... para o chão.
__ Me-mensageiro, sa-salve-a! -- supliquei à Coruja que
me encarava com seus enormes olhos.
__ Acho que você se esqueceu que minha tarefa é
atrapalhar sua jornada, Saulo.
__ Mas a Do-dona Ge-genoveva não tem na-nada a ver
com i-isso -- argumentei desesperado com o ponteiro que
lentamente ia se deslocando.
__ Talvez possamos fazer um acordo, Saulo. Que
achas?
gutole@bol.com.br 96 http://lergratis.cjb.net
__ A-acordo? Que a-acordo?
__ Dá-me seu medalhão e eu salvo você e sua Guia num
piscar de olhos. Que tal?
Desviei minha visão da Coruja e olhei para o ponteiro
onde Dona Genoveva encontrava-se presa pelo sutiã. Eram
sete e vinte e nove. Tinha menos de um minuto para decidir
o que fazer.

CAPÍTULO XIV
TRAÍDO PELO DESTINO

__ To-topo -- respondi, faltando menos de dez segundos


para o ponteiro grande marcar meia hora.
Como um relâmpago, entreguei o medalhão à Coruja e ...
Trom! -- soou por uma vez o sino.
Estávamos a salvo no interior da torre da igreja. A
escuridão era tanta que eu não conseguia encontrar minha
Guia. Peguei a lanterna na mochila e acendi. Dona
Genoveva encontrava-se sentada na cadeira velha da torre,
com o pescoço caído no ombro, totalmente desacordada. A
Coruja sentou-se no parapeito da janela da torre e,
voltando-se para mim, disse:
__ Não se preocupe com o seu medalhão, Saulo.
Prometo que vou cuidar muito bem dele. Aliás, vou dar a
você uma chance para consegui-lo de volta.
__ Cha-chance! -- exclamei empolgado com a
generosidade do Mensageiro.
O medalhão azul era tão importante para mim quanto a
Esfinge Dourada. Não adiantaria absolutamente nada eu
possuir apenas um deles. A única chance de me curar da
gagueira era trazer de volta o meu Mentor; e o medalhão

gutole@bol.com.br 97 http://lergratis.cjb.net
continha justamente a sua aura, a energia vital, a alma que
seria transmutada para o seu corpo mumificado através do
Ritual de Re-mumificação, que deveria ser realizado na
cidade de São Tomé das Letras.
Era muita falta de sorte mesmo. Além de não ter
encontrado a Esfinge Dourada, eu havia acabado de perder
o medalhão. Naquele momento de bondade mútua, em que
troquei o meu medalhão pela vida de Dona Genoveva,
ainda me restava uma esperança.
A Coruja fez, então, uma nova proposta:
__ Saulo, se você quiser seu medalhão de volta, terá que
ser uma pessoa bondosa para com os outros que o
circundam.
__ Ma-mas eu não so-sou ma-mau -- retruquei ao
Mensageiro, que me olhava de uma maneira estranha,
assim como o meu pai fazia quando ele estava irritado
comigo.
__ Realmente, sinto que não existe maldade em seu
coração; mas você é uma pessoa muito desengonçada,
desastrada, desligada, descuidada ...
__ Ma-mas eu so-sou assim de-desde que na-nasci. É
me-meu je-jeito de se-ser -- interrompi a Coruja, defendendo
minha integridade moral.
__ Isso não é desculpa para continuar sendo o que você
é. Todos nós podemos mudar nossa maneira de agir, de
pensar, de viver, de se comportar. É preciso um esforço
próprio, uma iniciativa que parta de si mesmo, uma visão
ampla que dê um novo sentido para a vida.
__ Po-por que você está me fa-falando esta co-coisas?
Não é um Me-mensageiro da Li-libertação? -- inquiri, meio
ressabiado com a lição de vida que a Coruja estava me
expondo.
__ Tente compreender, Saulo. Eu fui escolhido dentre
tantos Mensageiros para seguir seus passos e atrapalhar a
sua peregrinação; porém, até o momento, você não me
concedeu o prazer de cumprir com a minha missão. A única

gutole@bol.com.br 98 http://lergratis.cjb.net
coisa que lhe peço é que me dê uma chance. Poxa, será
que você não entende?
Os olhos da Coruja se encheram de lágrimas. Meu
coração partiu ao meio de tanta dó da pobrezinha.
Comovido, também chorei. Prometi a mim mesmo que iria
fazer de tudo para ajudar o Mensageiro a cumprir sua
missão.
A Coruja foi embora, levando consigo o medalhão azul e
minha esperança de curar da gagueira.
Nos braços, peguei a Guia que continuava desacordada.
Com muita dificuldade, desci a escadaria da torre da igreja.
Olhei em todas as direções à procura de alguém que
pudesse nos ajudar. Todavia, a rua estava completamente
deserta. Caminhei mais alguns metros e parei. Parecia que
alguém se aproximava aos berros, e ... Bummm! Trombei
violentamente com uma mulher histérica.
A mulher sapateava, gritava e puxava seus próprios
cabelos. Deixei Dona Genoveva desmaiada no chão e fui
socorrer a histérica.
__ Pá-pára de gri-gritar. O que tá-tá a-acontecendo? Não
te-tenha medo, eu e-estou aqui pra pro-proteger a se-
senhora -- proferi resolutamente, tentando acalmá-la de sua
doidice.
A mulher, mais calma, levantou-se do chão e agarrou
fortemente meu braço.
__ Moço, eles estão me perseguindo -- disse a mulher
ofegante. __ Uma pequena nave espacial acabou de dar
um vôo rasante a centímetros de minha cabeça.
__ Na-nave? Que na-nave?
__ Ora, a sonda espacial de pesquisa dos E.Ts.! Ela
tinha duas luzes brilhantes, parecida com os olhos de
coruja, e, mais embaixo, havia uma brilho forte feito um
cristal -- revelou a mulher com os lábios trêmulos de
emoção.
Olhei para o alto e não vi nada, a não ser as estrelas e a
fulgência da lua cheia. Aquela mulher deveria estar com
algum problema muito sério para dizer aquela asneira toda.
gutole@bol.com.br 99 http://lergratis.cjb.net
Fazendo-me de bobo, apontei a esmo para o céu e
gesticulei:
__ O-olhe a so-sonda indo em di-direção às mo-
montanhas.
__ Onde? Por favor, mostre pra mim -- suplicou a mulher,
eufórica e crédula de que realmente eu estava avistando a
suposta sonda.
__ À e-esquerda. Ma-mais em ci-cima ... su-sumiu --
finalizei, contendo o riso.
__ Ah, droga! -- exclamou a mulher, ainda com a
esperança de poder ver a imaginária sonda partir. __ Se ao
menos eu estivesse com minha máquina fotográfica para
registrar esse momento tão lindo ...
__ Do-dona ... -- interrompi, acabando de vez com aquela
conversa tola. __ Qual é me-mesmo o no-nome da se-
senhora?
__ Em primeiro lugar, eu não sou senhora coisa alguma.
E meu nome é Marialva, sou professora e leciono na
creche. E você, quem é?
__ Meu no-nome é Sa-saulo Lebre. So-sou um me-
membro e pe-peregrino da O-ordem dos Mentecaptos.
Aquela se-senhora que e-está ca-caída no chão é mi-minha
Guia. Se-será que vo-você sa-sabe onde fi-fica o ho-
hospital?
A mulher, sem prolongar a conversa, foi muito atenciosa
e prestativa. Pegou uma ficha telefônica em sua bolsa de
couro e ligou para o hospital. Pediu para que eu aguardasse
um pouco; depois, se despediu dando-me três beijinhos em
meu rosto.
Não demorou muito e a ambulância chegou. O médico,
acompanhado de duas enfermeiras bonitonas, dirigiu-se até
a Guia. Fiquei à meia distância observando tudo. As
enfermeiras encurvaram-se tanto que não pude deixar de
notar suas calcinhas lilás. Depois puseram Dona Genoveva
na maca, e a levaram para o interior da ambulância.
A voz do médico não me era estranha. Aproximei-me
dele e, para minha surpresa, era o mesmo que socorrera a
gutole@bol.com.br 100 http://lergratis.cjb.net
Guia Cledite na cidade de Carmo da Cachoeira. Para
confirmar minha suspeita, indaguei-lhe:
__ O se-senhor tá le-lembrado de mi-mim?
Com os olhos arregalados e desconfiados, o médico
fitou-me dos pés a cabeça.
__ Você não é o gaguinho que acompanhava a moça
que saiu rolando a montanha, e que tinha na testa um
pedaço de cristal?
__ So-sou eu mesmo -- respondi, com toda satisfação e
orgulho próprio.
__ Dessa vez você não escapa. Entre na ambulância que
vamos ter uma conversinha no hospital.
Conversinha? Que história mais esquisita era aquela?
Não me lembrava de ter feito nada de errado. Aliás, alguma
coisa de errado estava acontecendo. Até aquele momento,
como de costume, ao anoitecer, o meu novo Guia ainda
não havia aparecido.
Sem alternativas, acompanhei o médico até o
ambulatório de emergência.
O hospital era muito modesto, com uma sala de espera
que mal cabia um sofá, uma mesa de revistas antigas e um
televisor monocromático de dez polegadas.
Permaneci sozinho naquele local à espera de notícias de
dona Genoveva. Nem sinal do médico que havia dito que
queria ter uma conversa muito séria comigo. Olhei para o
relógio; passava das onze e meia da noite. Folheei algumas
revistas, e para minha surpresa, em cada página havia a
foto de uma mulher pelada. A falta de moral num lugar
público deixou-me indignado.
O jeito foi ligar a televisão para passar o tempo. Mas
nenhum canal me interessou, até que no último apareceu
na telinha o grande carrasco de minha peregrinação: o
salafrário do Pastor Willian segurando um copo d'água nas
mãos.
Minha vontade foi de jogar o sofá no televisor, mas se eu
fizesse aquilo não estaria cumprindo o compromisso com o
Mensageiro: só teria de volta o medalhão azul se eu me
gutole@bol.com.br 101 http://lergratis.cjb.net
comportasse como um anjinho. Mordi os lábios, dei
cabeçadas na parede, belisquei-me todo, tudo no sacrifício
de conter meus ânimos. Depois, relaxei no sofá e passei a
ouvir a pregação daquele evangelizador duma figa.
__ Meu irmão, beba agora esta água que acabei de
abençoar. Em nome do senhor meu deus, você será curado
de todos os seus males: vícios, falta de dinheiro, doenças,
infelicidade no lar. E para isso ocorrer é necessário provar a
sua fé. Não preciso ficar repetindo milhões de vezes a
mesma coisa: seja fiel em sua contribuição diária,
entregando ao pastor de sua igreja o escravo dinheiro para
ser abençoado e revertido em benefício dos nossos irmãos
mais necessitados. Antes de terminar o programa, gostaria
de avisar a todos, irmãos, tios, mães, mulheres, filhos,
amigos de presos, que amanhã à noite eu estarei visitando
a cadeia da cidade de Iguaí. Conto com a presença de
todos para testemunhar a Benção de Libertação dos presos.
Vocês foram escolhidos para testemunhar milagres nunca
vistos nos quatro cantos da Terra. Ah! um último recado:
não esqueçam de levar um maço de velas e sua bondosa
contribuição para ser colocada na cesta santa ...
Antes, porém, que o Pastor Willian dissesse mais uma
palavra, mudei o canal. O filme era romântico, repleto de
mela-mela. Aos poucos fui cochilando, cochilando,
cochilando e ... dormi.
Sonhei que estava sozinho num barco em alto mar. Eu
havia escapado do naufrágio de um transatlântico há dois
dias, e aquele pequeno barco fazia parte de um pacote de
seguro do navio. Toda a tripulação morreu. Por sorte,
consegui me agarrar à canoa, e agora estava à procura de
terra firme.
Sentia sede, mas a água salgada era horrível de se
beber. Sentia fome, mas não havia nada para comer. Assim,
permaneci por mais dois dias navegando sobre as calmas
ondas do mar, exausto, morto de sede e fome. À noite, era
o frio que incomodava. Durante o dia, era o calor do brilho

gutole@bol.com.br 102 http://lergratis.cjb.net


intenso do sol sobre meu corpo inerme. A agonia daquele
sono se encaminhava para um terrível pesadelo.
A minha situação era tão drástica que eu mal conseguia
me levantar na canoa. De repente, como um vulto, surgiu
um gigantesco peixe em alto mar. A imensa onda virou a
canoa. Desesperado, gritava por socorro; mas quem
poderia me salvar? Era tarde demais, a Baleia me engoliu.
Para minha surpresa, ainda não era o meu fim. Dentro da
boca daquele peixe enorme, deparei-me com um casal nu,
rolando num emaranhado de algas marinhas.
__ Que-quem são vo-vocês? -- indaguei ao estranho
casal.
Tapando-se com as algas, aproximaram-se de mim meio
que assustados com minha presença.
__ O que estás a fazer na boca da Mobi? -- inquiriu a
mulher.
__ Como ousas atrapalhar meus momentos de folga? --
perguntou o homem, com tom áspero.
__ Eu me sa-salvei de um na-naufrágio. Estava co-
conduzindo a minha ca-canoa, quando a-apareceu uma ba-
baleia e me e-engoliu. Não que-quero in-incomodar ni-
ninguém. Eu só que-queria chegar em te-terra firme.
O casal se entreolhou abismado. Depois de vestirem
umas roupas estranhas e obsoletas, ofereceram-me uma
sopa de algas. Diga-se de passagem, estava uma delícia.
Depois levaram-me até uma ilha deserta, onde haviam
muitas frutas e vários pássaros. Eles me disseram que
tinham em seus corações a chave da imortalidade; e que a
antiga dona da ilha era uma tal de Rute, Sogra de um
sujeito chamado Jonas. Bem, isso não importava, o que
realmente valia era que eu estava vivo e salvo: o pesadelo
havia se transformado num sonho.
E como tudo que é bom dura pouco, acordei sem ao
menos saber o nome do casal que me acolheu com
estima e mordomias.
__ Acorda. Acorda -- gritava uma voz áspera,
chacoalhando os meus ombros.
gutole@bol.com.br 103 http://lergratis.cjb.net
Abri meus olhos e dei de cara com o médico. Seria ele o
meu novo Guia?
__ Acorda, dominhoco. Já são oito horas da manhã.
__ O-oito horas?
__ Sim, oito horas. E vamos começar aquela convesinha
que eu prometi a você.
__ Por acaso o senhor é um Guia? -- inquiri, secamente.
__ Guia? Eu não queria falar sobre isso, mas eu tenho
de dizer. Ouça, rapaz: há muito tempo eu trabalhava como
Guia para essa inescrupulosa Ordem dos Mentecaptos. Se
eu pudesse destruí-la faria com o maior prazer. Só mediquei
a sua Guia porque tenho de cumprir com o dever de minha
profissão. Mas um dia espero conseguir me vingar dessa
gentinha; bem, é bom parar com essa conversa, estou me
arriscando muito dizendo estas coisas para você.
__ Que co-coisas? -- indaguei, não compreendendo as
palavras ditas pelo médico que parecia inquieto.
__ Vamos fazer um trato. Você esquece tudo o que eu
disse e te libero para ir embora. Certo?
Mais perdido que cachorro em tiroteio, correspondi ao
gesto do médico, dando-lhe um forte aperto de mão.
__ Tu-tudo bem.
__ Um dia quem sabe nos encontramos novamente pra
falar mais sobre essas coisas -- disse o médico, abrindo a
porta de saída.
Compreendendo o gesto do médico, saí do hospital meio
constrangido de ele não ser o meu Guia.
Assim, como naquele sonho esquisito, eu estava com
uma fome danada. Sem dinheiro no bolso, sem o amparo
de um Guia, sentia-me sozinho no mundo como um
mendigo qualquer. Pensei em roubar um pão que o padeiro
havia deixado sobre o muro de uma casa, mas logo veio a
imagem do Mensageiro que ecoava: "Seja bonzinho,
bonzinho". Desisti da idéia e segui para a praça central da
cidade, próxima à igreja.
Sentei num banco e fui abordado por um sujeito
maltrapilho de boné, segurando uma faca e um abacaxi.
gutole@bol.com.br 104 http://lergratis.cjb.net
__ Como vai, freguês. Meu nome é Luizinho. Sou da
conhecidíssima cidade de Abacaxidóviski, terra do abacaxi.
Tome um pedaço, é uma delícia -- disse o vendedor,
cortando uma fatia caldosa de abacaxi para mim.
Sem hesitar, engoli a fatia num ato desesperador de
fome. A acidez do fruto parecia o mel doce das colméias de
abelhas jataí. Pedi mais um pedaço, e ele me deu o abacaxi
inteiro.
__ É promoção da semana: leve três abacaxis por
apenas cinco reais. Se o senhor não tiver dinheiro
aceitamos cheque. Se não tiver cheque, não tem problema,
daqui a duas semanas voltaremos para cá. Eu e meu chefe
vamos trampar nessa região por um mês.
__ Tá-tá uma de-delícia! -- exclamei, lambendo o caldo
que escorria de meus dedos.
__ E então? Vai ficar com os abacaxis? A camionete tá
ali, é só ir lá e escolher.
__ É que e-eu não te-tenho di-dinheiro. A-aliás, não so-
sou daqui. So-sou um pe-peregrino da Ordem dos Me-
mentecaptos. E-estou à pro-procura da Esfinge Do-dourada,
uma borboleta. Sa-sabe co-como é, né?
__ Borboleta? Você procura uma borboleta? -- indagou
Luizinho, eufórico.
__ Si-sim. Uma bo-borboleta. Po-por quê? Você vi-viu
alguma?
__ Venha cá que vou lhe mostrar. Deve ser a borboleta
que você procura.
Acompanhei o vendedor de abacaxis até a cabine de sua
camionete. No meio do banco, próximo ao câmbio, havia
uma pequena caixa de madeira com uma tampa de vidro.
__ Pegue a caixa pra mim, seu moço. Eu tenho medo
desse bicho nojento. O Tião, meu chefe, capturou ela ontem
mesmo no banheiro do posto de gasolina. Se quiser ela pra
você, pode levar, que depois eu me viro com o meu chefe.
É um favor que estará fazendo pra mim.

gutole@bol.com.br 105 http://lergratis.cjb.net


Meu coração começou a pulsar forte. Seria mesmo a
Esfinge Dourada? Com muito cuidado peguei a caixa em
minha mãos. Suspirei fundo e olhei para o vidro da caixa.
__ É e-ela! É a E-esfinge Do-dourada -- gritei eufórico,
feliz da vida.
Num gesto sutil e instintivo dei um beijo no rosto do
Luizinho e saí correndo pelas ruas da cidade com a caixa
na mão.
Mais calmo, sentei-me numa sarjeta e pus-me a refletir.
Agora que tinha a Esfinge Dourada em minhas mãos, só
faltava o medalhão para completar os elementos
necessários para dar vida à múmia do Mentor.
Num lampejo, surgiu a brilhante idéia de ir à procura do
Mensageiro da Libertação.
Adentrei várias casas à procura de animais: cachorros,
gatos, pássaros, galinhas ... mas nenhum deles sabia
conversar como o Mensageiro. Bem que tive que correr de
alguns cães, abrir algumas gaiolas, soltar algumas galinhas;
enfim, fuçar nos quatro cantos da cidade.
Na última casa que entrei, havia um sabiá preso na
gaiola que cantava como gente. Logo, imaginei que fosse o
Mensageiro. Assim que abri a gaiola, um sujeito alto e gordo
veio por trás de mim e pegou-me pelos braços. Olhei para
trás e, para minha surpresa, o homem era um policial.
__ Encoste na parede. Você está preso -- ordenou o
policial, dando-me um safanão. __ Tem direito de procurar
um advogado e tudo que disser poderá ser usado contra
você no tribunal -- finalizou.
Em poucos segundos a casa estava cercada por vários
policiais e pessoas curiosas. Saí algemado e vaiado pela
multidão. Entrei no carro da polícia meio atordoado, sem
compreender o que estava ocorrendo comigo.
Quando cheguei na delegacia mandaram-me direto para
a sala do delegado.
__ Que tipo de gente é você, hein, gaguinho? Um louco?
Um debilóide? Um maníaco por animais? -- inquiriu-me o
delegado esmurrando a mesa.
gutole@bol.com.br 106 http://lergratis.cjb.net
Estremeci.
O delegado segurou a caixa de madeira e esclareceu:
__ Isto aqui, meu filho, é o maior crime que se possa
fazer contra a natureza. Essa borboleta está em extinção
em nossa região. Saiba que existe uma lei que proíbe esse
tipo de prática esportiva. Todos nós gostamos de
borboletas, elas são bonitas, mas devemos deixá-las viver
em paz e em harmonia com seu habitat natural. Será que
eu fui claro, seu ...? Como é mesmo seu nome?
__ Sa-saulo Le-lebre -- respondi apreensivo.
__ Então, seu Saulo não sei o quê, o que você tem a
dizer em sua defesa?
Havia chegado o momento de colocar tudo em pratos
limpos. Mas será que o delegado iria acreditar na minha
história?

CAPÍTULO XV
TODOS CONTRA MIM

__ Não quero ouvir mais nada. Pare de falar.


O ímpeto das palavras da autoridade policial gelou meu
sangue, contraiu meus músculos, estremeceu meus ossos.
Isso, porém não foi nada. O pior mesmo foi que molhei
minhas calças.

gutole@bol.com.br 107 http://lergratis.cjb.net


O delegado levantou-se de sua macia poltrona e
encarou-me de um modo mais assustador ainda.
__ Escuta, aqui, seu Saulo Febre...
__ Le-lebre -- corrigi, com um sorriso amarelo.
_ Eu não mandei você falar. Cale a boca. Não penses
que pelo fato de aqui ser uma pacata cidade do interior você
vai fazer o que quer.
__ O se-senhor não entendeu di-direito.
__ O quê? Você está achando que eu sou idiota? Claro
que entendi direito. Você é um destes psicóticos que andam
por aí maltratando animais. Seu crápula.
O duro mesmo não era ser coagido pelo delegado; antes,
era agüentar o bafo de onça doente que provinha do
homem da lei e da ordem de Iguaí.
__ E quer saber mais? Eu vou te mandar pra cadeia
agora mesmo.
__ A-ainda be-bem -- disse, aliviado.
__ Quê? Você está me gozando? Pois vou te mandar pra
solitária.
Respirei saborosamente quando fui levado por um
brutamontes para longe do bafo de enxofre do delegado.
Minha mente, contudo, continuava atordoada pelos seus
impropérios sem fundamento.
E a Esfinge Dourada? Aliás, seria a borboleta presa na
caixa aquele que eu tanto procurava.
Estes pensamentos perturbavam-me violentamente.
Sentia-me desamparado sem um Guia ao meu lado,
determinando o que era certo ou errado. Estranha sensação
aquela. Desde que entrara para a Sagrada Ordem dos
Mentecaptos sentia-me inseguro e confuso quando não
tinha algum membro da Ordem comigo.
De repente, o brutamontes parou de empurrar-me.
Olhou-me fixamente e indagou se eu queria ser liberto.
__ Vo-você não vai me pre-prender? -- perguntei
confuso.

gutole@bol.com.br 108 http://lergratis.cjb.net


__ Que nada, brother. Meu nome é Arieto. Sou Cavaleiro
do Primeiro Grau da Ordem dos Mentecaptos. Estou aqui
pra te salvar.
Fiquei em profundo êxtase por sentir-me novamente
protegido por um Mentecapto.
Lembrei-lhe, então, da borboleta dentro da sala do
delegado. Como iríamos pegá-la?
Arieto, uma enormidade de crioulo de mais de cem
quilos, coçou a cabeça com uma chave e ficou pensativo
por alguns segundos. Depois, com uma expressão própria
de quem sabia o que ia fazer, pediu que eu esperasse na
sala localizada à nossa frente. Ele iria dar um jeito e tirar a
borboleta do delegado.
__ Entre aí e não saia por nada deste mundo, tá legal?
__ Tá co-combinado -- assenti totalmente submisso ao
Guia.
Fechei cuidadosamente a porta atrás de mim. Dei de
cara com uma cena inimaginável para uma cadeia. Era o
pátio interno do presídio; nele, via-se de tudo: pipoqueiro,
sorveteiro, carrinho de cachorro quente. No entanto, o que
mais atraía as várias pessoas que ali estavam era uma
barraquinha onde se vendiam velas.
__ Venham, amigos -- chamava a moça das velas. __
Comprem antes que acabem. E aproveitem a promoção: na
compra de três maços de vela Calvino, você terá direito a
uma sessão grátis de exorcismo com o Pastor Willian.
Fiquei estupefato. Quem estava por trás daquele
comércio doido era justamente um dos maiores salafrários
que já vira em minha vida.
__ Vai uma pipoquinha aí, irmão? -- perguntou-me um
rapaz com uma cicatriz de cada lado do rosto.
__ De-desculpa. E-estou sem di-dinheiro -- expliquei,
notando que o moço usava uma algema nos punhos.
Ele riu.
__ E quem tá falando em grana, camada? Ah, já sei.
Você deve ser calouro, né mesmo? Então tá desculpado.

gutole@bol.com.br 109 http://lergratis.cjb.net


Toma este saquinho de amendoim. No fim do mês você me
dá uma cheirosa e tamos acertado.
Fui andando pelo pátio comendo os amendoins torrados.
Na realidade, parecia que eu estava numa festa de arraial,
tamanha a animação e descontração existente no ambiente
interno do presídio.
Pessoas não paravam de chegar. Os presos, algemados,
não paravam de vender.
__ Eu não tenho dinheiro, não -- justificou um homem de
queixo quadrado ao preso que lhe vendia pipoca.
__ Sem problema. É só me trazer uma ervinha na
próxima visita que estamos quites -- negociou o preso com
um sorriso desdentado.
Estranhamente estava me acostumando com aquele
exotismo. Era como se fizesse parte daquele bando de
gente que cada vez mais proliferava pelo pátio. Seria -- por
acaso -- um sinal do destino?
__ Elementos detentos, aproximem-se. O show de fé já
vai começar.
De susto engoli todos os amendoins que se encontravam
em minha boca. Motivo: era o Pastor Willian que, do alto de
uns caixotes, convocava os presentes para assistirem sua
encenação pseudo-religiosa.
Muito a contragosto acabei sendo levado pela multidão
de presos e visitantes até o local do culto. Uma raiva
tremenda fez ferver meu sangue; tendo oportunidade, acho
que eu esganaria o sujeito em cima do caixote. O que me
conteve foi a promessa de me comportar direito feita ao
Mensageiro, senão ...
__ Antes de darmos início a mais um emocionante
momento de bênçãos celestiais, gostaria de saber quem
comprou as velas Calvino.
A grande maioria ergueu suas velas para o alto. O pastor
demonstrou estar satisfeito com o negócio.
__ Aleluia. Vejo que hoje muitos serão libertos aqui --
disse o pastor, enfatizando cada palavra com uma retórica

gutole@bol.com.br 110 http://lergratis.cjb.net


que me encheu de inveja. __ Digam-me, irmãos: que
quereis de mim?
__ Liberdade -- disseram muitos.
__ Libertação -- anunciaram muitos outros.
__ Banheiro -- gemeu um moço perto do carrinho de
amendoim.
Aproveitei a oportunidade, ganhei coragem e bradei em
alta voz:
__ Mi-minhas ro-roupas.
O pastor embranqueceu. A multidão emudeceu. Os
poucos policiais que observavam do alto de uma guarita
apontaram suas armas para mim.
Por que será? Eu estaria tão fora do esquema assim?
__ Um ser maligno está entre nós. Vamos eliminá-lo --
ordenou o homem em cima dos caixotes apontando para
mim.
Encontrava-me em maus lençóis. Todos contra mim.
Felizmente, como prova do valor da Ordem, o meu Guia
apareceu correndo não sei de onde, agarrou-me pelo braço
e puxou-me em direção a outra porta existente no pátio. Em
sua mão esquerda pude notar que carregava uma caixa
repleta de furos na tampa: era a Esfinge Dourada.
__ Quem pegar aqueles cafajestes será recompensado --
berrava o delegado irritado atrás de nós, incitando aquela
massa inquieta de pessoas a iniciar uma verdadeira caçada
em nosso encalce.
Após fechar a porta, Arieto, meu Guia salvador, empurrou
um pesado armário em sua frente. Em seguida, tomou uma
arma em seu colete e deu três tiros na janela da sala em
que estávamos. Pulamos ela e rapidamente entramos no
jipe da polícia estacionado ao lado de um carrão importado.
__ Tome, Saulo -- falou o Guia me entregando o revólver.
__ Estou sem fôlego. Dê-nos cobertura na fuga.
__ E-eu não sei u-usar isto na-não -- justifiquei-me
trêmulo com a arma nas mãos.
Arieto parecia não me ouvir. Não estava conseguindo dar
partida no jipe.
gutole@bol.com.br 111 http://lergratis.cjb.net
__ Fique na direção, Saulo. Eu vou empurrar essa joça.
Enquanto o Guia tentava quase sem fôlego empurrar o
jipe, o delegado e um sem número de pessoas enfurecidas
apareceram na janela destroçada pelos tiros dados por
Arieto.
__ Parem em nome da lei -- exclamou de um modo nada
simpático o delegado de Iguaí.
O jipe, nada de pegar. Nem no tranco.
Enquanto isto, algumas pessoas pularam a janela e
correram em nossa direção, fortemente sugestionadas e
dominadas pelas palavras do pastor e do delegado.
__ Saulo, atire. Atire para cima pra assustá-los.
Nunca em minha vida toda havia pegado em uma arma.
Muito menos tinha disparado um único tiro. Mas não restava
outra alternativa. Mirei para cima e disparei quatro tiros.
Até hoje não entendi direito o que fiz; só sei que os
quatro tiros acabaram com o carro importado do delegado
parado próximo ao jipe, além é claro, de espantar as
pessoas que partiam para cima da gente.
Felizmente, também, o jipe funcionou. Arieto pulou para
dentro, acelerou e saiu velozmente pelas estreitas ruas da
pacata Iguaí.
__ Abram os portões! Soltem todos os presos. Quem
matar eles primeiro será solto e recompensado com fartura.
Aquelas palavras excitadas do delegado foram as últimas
que ouvi antes de nos distanciarmos da cidade.
Olhei para o meu Guia que dirigia com presteza incrível;
depois demorei-me a observar a caixa com a Esfinge
Dourada, a solução de meus problemas. Suspirei aliviado.
Tudo parecia estar na mais perfeita paz.

gutole@bol.com.br 112 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XVI
RITUAL DE
ENERGIZAÇÃO POSITIVA

__ E a-agora, o que va-vamos fazer? Os pre-presos


estão a-atrás de nó-nós. Se e-eles nos encontrarem e-
estaremos fri-fritos! -- exclamei temeroso.
__ Calminha, brother. Aquele delegado é mesmo um
imbecil. A maioria dos presos são irmãos de comunidade,
entendeu? Bem que meia dúzia deles é puxa-saco do
homem da lei, mas isso é insignificativo ...
__ Quer di-dizer que vo-vocês são bandidos -- concluí
arrependido por pegar carona com o Guia.
__ Absolutamente. Não confunda âmbar com angu,
brother. Pelo contrário, nossa filosofia de vida é muita paz,
gutole@bol.com.br 113 http://lergratis.cjb.net
entendeu? -- esclareceu Arieto, fazendo uma manobra
radical com o jipe.
__ Mas po-por quê eles fo-foram presos?
__ Porque o delegado é um safado -- afirmou Arieto,
exacerbado. __ A nossa comunidade vive da venda de
artesanato, e o canalha do homem da lei persegue meus
brothers, autuando-os por prática ilegal de comércio em via
pública. Daí, eles são encaminhados para a prisão --
justificou-se Arieto, agitado.
Fiquei comovido com os argumentos do meu Guia. Que
delegado mais cruel e mesquinho! Ainda bem que existia a
Ordem dos Mentecaptos que tinha pessoas tão
maravilhosas como Albertinus, Rodnaldo, Andson, Cledite,
Dona Genoveva e Arieto.
A estrada de terra, que percorríamos com o jipe, era
muito irregular. Havia muito cascalho, além da irregularidade
do terreno com subidas, descidas e desfiladeiros. A
paisagem era exuberante e sublime. Depois de passar um
sufoco danado na cidade, era muito gostoso estar ali,
respirando o ar puro do fim da tarde. Arieto estava certo,
aquele local inspirava-me muita paz. Mais paz do que eu
senti quando realizei o exercício da escada que o Rodnaldo
me ensinara.
Ao cair da noite, chegamos ao acampamento. Arieto me
disse que fazia parte de uma pequena Comunidade Hippie
desde os seus quinze anos, e que adorava aquela vida
sossegada e primitiva. A renda da comunidade provinha do
artesanato. Nas horas vagas, trabalhava de Guia para a
Ordem, podendo assim ganhar uns "troquinhos" para
comprar a matéria prima do incenso, que depois de
manufaturado, era vendido nas cidades.
A comunidade ficava a poucos quilômetros de Luminária,
e a cidade podia ser avistada do alto da Montanha Sagrada,
local onde a comunidade encontrava-se instalada.
Desci do jipe e olhei em volta. A pequena vila tinha a
semelhança de uma aldeia indígena. As cabanas de bambu,
cobertas por barro, tinham o telhado feito de um capim
gutole@bol.com.br 114 http://lergratis.cjb.net
parecido com o sapé. Algumas crianças rolavam na lama
formada pela bica d'água que escorria de um barranco
próximo a um dos barracos. As indumentárias que as
pessoas daquela comunidade usavam, eram algo de se
admirar: amarrotadas, sujas, rasgadas e disformes.
Arieto levou-me até o seu barraco, iluminado à luz de
lampião, e apresentou-me a sua esposa:
__ Querência, amorzinho. Este é Saulo, um peregrino da
Ordem.
__ Mu-muito prazer, dona Querência -- cumprimentei-lhe,
estendo a mão.
__ Que prazer o quê, paixão. É paz, amor e muito axé --
retrucou a mulher.
__ A-axé?
__ Sim, axé. Somos migrantes baianos. Arieto, há dez
anos, conheceu o Jurandir, o nosso chefe espiritual, no
carnaval de Salvador, e este ser abençoado trouxe-nos para
este ponto energético do planeta.
__ Vamos deixar de blá-blá-blá, Querência. Tô morrendo
de fome -- interrompeu Arieto, dirigindo-se até a mesa da
cozinha.
A mulher pegou-me pelo braço e me arrastou até a mesa.
Sentei num toco duro de madeira do lado oposto ao
Guia, deixando a caixa com a Esfinge sobre a mesa. A
mulher posicionou-se atrás de mim e colocou as mãos em
meus ombros, massageando-me.
__ Nossa, que homem mais cheiroso! -- exclamou
Querência, aspirando o meu pescoço.
__ Che-cheiroso? Fa-faz quase uma se-semana que não
to-tomo banho -- argumentei, não compreendendo a
intenção da mulher.
__ Amanhã bem cedo vamos preparar um banho pra
você, brother. Senão a mulherada da comunidade não vai
largar do seu pé, entendeu? -- interveio Arieto, tirando as
botinas.
__ É, cheirosinho. Que mau gosto esse de tomar banho,
né? -- murmurou Querência, afastando-se de mim.
gutole@bol.com.br 115 http://lergratis.cjb.net
Não demorou muito e um zunzunzum tomou conta do
lado de fora da cabana. Ouvia-se assobios, gritos, e um
coro de vozes agudas que imploravam:
__ Queremos o cheirosinho! Queremos o cheirosinho ...
O barraco começou a estremecer como se estivesse sido
atingido por um terremoto. Arieto correu até a janela, pôs a
cabeça para fora e berrou:
__ Sumam daqui, suas canibais duma figa! Vão já pra
suas casas, senão vou exigir que tomem banho duas vezes
por dia. Não se esqueçam de que o nosso Guia Espiritual
está viajando, e fui escolhido pelo conselho para substituí-lo
durante a sua ausência. Será que eu fui claro?
Um silêncio assustador tomou conta do lugar. Arieto
retornou à mesa e explicou o que havia ocorrido:
__ Mulheres são todas iguais. Não podem sentir um
cheirinho novo na comunidade que ficam todas agitadinhas.
Amanhã bem cedo vamos preparar um banho para você.
Mas hoje à meia noite iremos fazer um ritual, somente com
os homens, de purificação energética positiva -- avisou o
Guia pegando uma porção de farinha que havia sobre a
mesa.
__ Que ri-ritual é esse? -- indaguei, coberto de dúvidas.
A esposa do Arieto preparava o jantar no fogão à lenha.
O cheiro era muito agradável e dava água na boca.
Enquanto a refeição não vinha, o Guia esclareceu minhas
dúvidas:
__ Se liga, Saulo. O Ritual da Purificação é a coisa mais
importante para os membros da Ordem. É como se
formasse uma película de espelho revestindo a sua aura, a
qual refletirá toda espécie de energia negativa para bem
longe de você . É axé puro, brother. Em poucas palavras, o
seu corpo estará impermeabilizado contra os maus fluidos,
magias negras ... essas coisas, sabe? -- assegurou Arieto,
pegando com as mãos mais uma porção de farinha.
__ E o Gui-guia? Po-por quê eu fiquei se-sem ne-
nenhum, ontem?

gutole@bol.com.br 116 http://lergratis.cjb.net


__ Nem te conto, Saulo. Quero dizer ... foi uma provação
da Ordem, sabe? -- justificou-se Arieto, meio confuso. __
Mas vamos deixar essa conversa de lado. Saco vazio não
pára em pé ...
__ Olha a sopinha chegando. Tá uma delícia --
interrompeu Querência, colocando uma panela sobre a
mesa.
Arieto encheu o seu prato com a farinha de mandioca,
pegou uma fatia de pão torrado e, usando a concha,
completou com a sopa. Querência sentou-se à mesa, e
antes de se servir, ofereceu-me o jantar:
__ Não está com fome, jovem peregrino? O jantar está
uma delícia. Pode se servir à vontade. A casa é sua.
__ Só que-quero um po-pouquinho dessa so-sopa de-
de ...
__ Mandruvá com canela -- arrematou a mulher, sorrindo
para mim.
__ Tô se-sem fome, Do-dona Querência -- argumentei
impulsivamente, quase vomitando.
__ Experimente, cheirosinho: é uma delícia -- insistiu a
mulher, enchendo meu prato com a tal sopa.
__ Se eu fosse você, brother, não recusaria essa
sopinha. O Mandruvá tem um poder de cura inefável.
Qualquer que seja a doença que você tenha, ele cura.
Acredite, brother. Aliás, essas não são palavras de um
homem comum, mas de um discípulo da Ordem -- interveio
Arieto, persuadindo-me a experimentar a tal sopinha.
Sob o olhar contagiante de Querência, tomei coragem e
experimentei a sopa de mandruvá. Até que ela tinha um
sabor agradável. Aos poucos fui me habituando ao gosto
amargo da lagarta, e como minha fome era tanta, até repeti
a sopa.
Arieto, a todo tempo, olhava para mim e sorria.
Querência segurava a pequena caixa e ficava a admirar
a borboleta pela abertura de ar, talvez hipnotizada pela
beleza peculiar da Esfinge Dourada.

gutole@bol.com.br 117 http://lergratis.cjb.net


__ Cheirosinho, eu nunca tinha visto uma borboleta tão
linda quanto esta. Ela deve valer muito dinheiro no mercado
negro de animais silvestres -- disse a mulher, num tom de
voz decrescente.
__ Co-como? -- indaguei, ainda não compreendendo as
palavras de Querência.
__ Ela disse, brother, que é muito perigoso você ficar
andando com a Esfinge Dourada por aí -- argumentou
Arieto, sabiamente. __ Alguém poderá roubá-la. É melhor
deixar a borboleta aos cuidados de Querência. Ela tem uma
mão santa para cuidar de pequenos animais.
__ É uma bo-boa idéia. Ma-mas eu preciso le-levá-la até
a ci-cidade de São To-tomé das Le-letras comigo, para de-
depois uni-la com o me-medalhão, e a-assim tra-trazer de
volta à vi-vida o me-meu Me-mentor. So-somente ele po-
poderá cu-curar minha ga-gagueira -- falei ao Guia,
esclarecendo-o a respeito da situação em que me
encontrava envolvido.
__ Sem problemas, brother. A borboleta fica com a
gente, e quando você chegar a São Tomé das Letras o seu
última Guia lhe entregará a Esfinge em suas mãos, sã e
salva. Entendeu? -- propôs Arieto, com um sorriso cativante.
Convencido com a generosidade do Guia, concordei com
a sua brilhante idéia: eu deixaria de correr o risco de ser
roubado, ou talvez de deixar a Esfinge escapulir da
pequena caixa. Aliás, Querência havia me prometido que
iria dar um tratamento de princesa à borboleta, com direito a
uma refeição balanceada com muitos nutrientes, vitaminas e
sais minerais.
Depois do jantar, dormi uma soneca numa das redes que
havia pendurada pelos modestos cômodos da cabana do
Guia.
Pouco antes da meia-noite, Arieto acordou-me com um
balde d'água.
__ Socorro! -- gritei, saltando da rede.
__ Calminha, brother. A partir deste ato, inicia-se o Ritual
de Purificação. Não diga mais nada, e fique em silêncio,
gutole@bol.com.br 118 http://lergratis.cjb.net
senão as mulheres da comunidade poderão despertar do
sono que denominamos Musgo. Pra que você entenda o
que isso significa, saiba que quando realizamos um Ritual
dessa magnitude, nós, homens da comunidade, fazemos
nossas mulheres tomar um chá de musgo silvestre para que
elas caiam num profundo sono, e não venham nos
importunar. Certo?
__ Ce-certo -- respondi quase afônico.
Acompanhei meu Guia até uma enorme fogueira que
havia no centro da vila. O curioso era que ao lado da
fogueira havia um imenso caldeirão, ladeado por vários
gravetos. Sentamos no chão duro em volta da fogueira.
No céu, muitas estrelas e nem sinal da lua. Uma brisa
suave cobria toda a vila, inundando-nos com um frescor
agradável. Aos poucos chegaram os homens que
participariam do Ritual, trazendo nas mãos um incenso de
almíscar.
Arieto levantou-se e pegou um tacho, encheu-o de água
e atirou algumas batatas que haviam dentro de um saco.
Depois, pediu ajuda a um dos homens para colocar o tacho
numa chapa que existia numa das extremidades da
fogueira. Rapidamente a água entrou em processo de
fervura.
O Guia retornou ao seu lugar e só então iniciou sua
explanação chamando a atenção de todos que
participavam do Ritual.
__ Axé, brothers.
__ Axé -- responderam os participantes, num coro
sonoro.
__ Está aqui ao meu lado um membro da mais etérea e
iluminada Ordem do planeta. Ele é um peregrino e busca a
cura de sua gagueira, e conseqüentemente, a ascensão em
sua vida profissional.
Cada pausa na fala de Arieto era seguida de aplausos.
Senti-me orgulhoso de estar naquele lugar, tendo ao meu
lado pessoas maravilhosas, das mais puras intenções.
Naquele momento, lembrei-me de um velho ditado: "Quem
gutole@bol.com.br 119 http://lergratis.cjb.net
encontra um amigo, encontra um tesouro". Todavia, eu não
tinha somente um amigo, mas vários. Por isso, pude
concluir que eu não havia encontrado apenas um tesouro,
mas uma montanha toda.
O Guia continuou com a sua explanação:
__ Mas, infelizmente, existe uma força negativa berrante
que está deteriorando sua aura energética. Nesta noite
iremos anular essa força oriunda de agentes
tetradimencionais. Saulo, a única coisa que você deve fazer
é ouvir e obedecer tudo o que dissermos. Em hipótese
alguma interrompa o Ritual. Entendeu, brother? Seja
bonzinho -- esclareceu Arieto, voltando-se para mim com um
olhar desfigurado.
__ Tu-tudo bem. Eu se-sei como de-devo me comportar.
O Me-mensageiro me garantiu que se eu fi-ficasse
bonzinho, ele me de-devolveria o me-medalhão.
__ Quem é esse tal de Mensageiro, brother?
__ O-ora, é me-meu demônio pa-pariticular. E e-eu
precisava e-encontrá-lo pa-para pedir de vo-volta o meu
me-medalhão -- expliquei ao Guia, confiante que ele
pudesse me ajudar a encontrar o Mensageiro da Libertação.
__ Nunca faça um pacto com seu demônio particular.
Isso é loucura -- respondeu Arieto, secamente. __ Seja
durão com ele, e não o deixe se aproximar de você.
Segundo o que li num manual de treinamento dos Guias da
Ordem, a única forma de destruir o seu demônio é descobrir
o nome dele. Entendeu, brother?
__ E-entendi -- repliquei, pasmo.
__ Vamos iniciar logo o Ritual. Vejo que você está mais
carregado negativamente do que eu imaginava.
Arieto pediu para que todos os homens que circundavam
a fogueira acendessem os incensos de almíscar. Depois,
caminhou até o tacho e trouxe uma enorme batata dentro
de um recipiente de madeira.
__ Agora, quero invocar as forças energéticas positivas
para esta batata queimante. Todas as forças negativas
alojadas na aura do nosso irmão Saulo serão atraídas e
gutole@bol.com.br 120 http://lergratis.cjb.net
anuladas pelas forças positivas da batata. Em nome da
Sagrada Ordem dos Mentecaptos, eu invoco a energia
cosmo-energética para carregar positivamente esta batata
queimante. Em nome da Ordem, batata, carregue
positivamente -- berrou Arieto, em absoluto transe.
__ Carregue. Carregue -- gritavam eufóricos os demais
membros.
Permaneci com os olhos fechados por alguns momentos.
__ Abra os olhos, brother. Chegou o momento de segurar
a batata. Tenha fé. E descarregue a energia negativa que
está dentro de você -- pediu Arieto, afavelmente.
Abri os olhos e de supetão peguei a batata queimante
com as mãos.
__ A-ai -- gritei, atirando a batata para o alto, a qual caiu
no meio da fogueira, onde as chamas estavam mais fortes.
Um alvoroço tomou conta das pessoas em volta da
fogueira. Todos, ao mesmo tempo, queriam me abraçar, me
cumprimentar, por ter conseguido descarregar as minhas
forças negativas na batata queimante. Porém, eu mal podia
dar as mãos aos meus novos amigos porque elas estavam
doloridas e repletas de bolhas.
Após o Ritual fomos dormir. Arieto me parabenizou pela
minha coragem e o sucesso da energização positiva, e
ofereceu a sua melhor rede para eu deitar. Antes de apagar
a luz do lampião, o Guia me fez algumas recomendações:
__ Saulo, antes do sol nascer, eu vou ter que ir para
Luminária. É que eu vou trabalhar na preparação da festa
de casamento da filha do prefeito com o filho de um
senador. Ah, eu já ia me esquecendo do seu banho,
brother. Pode ficar frio que eu já deixei tudo avisado com
meus companheiros. Deixe eu tirar uma soneca, que daqui
a pouco tenho que acordar. Bom sono, brother. Muito axé e
energia positiva pra você -- desejou Arieto, afastando-se
nas pontas dos pés.
__ O-obrigado -- agradeci, abaixando o tom de voz.
Aos poucos o sono foi tomando conta de mim. Não
conseguia pensar noutra coisa a não ser em encontrar o
gutole@bol.com.br 121 http://lergratis.cjb.net
Mensageiro. Eu estava cumprindo com minha parte; já
conseguia controlar meus nervos diante da pessoa do
Pastor Willian; aliás, meu coração já o havia perdoado.
A noite passou como um relâmpago. Dormi como uma
pedra ...
__ Amarre-o pelas pernas, mulheres -- ouvi uma voz
sussurrando em meus ouvidos.
Meio sonolento, senti meu corpo apertado. Abri os olhos
e, para minha surpresa, haviam várias mulheres ao redor da
rede onde eu dormia. Não conseguia me levantar. Foi
quando percebi que meus braços e pernas estavam
amarrados.
Querência, com um sorriso malicioso, aproximou-se de
mim e esclareceu a situação:
__ Cheirosinho, você amanheceu mais gostoso. Vamos
levá-lo para tomar o seu banho.
__ I-isso só po-pode ser uma bri-brincadeira --
argumentei, meio confuso com aquela agitação toda.
__ Isso, cheirosinho. É o que você quiser ...
__ Querência. Querência. Já terminamos de amarrar
todos os homens como você nos pediu -- interveio uma
moça, entrando porta a dentro.
Aquilo havia me deixado mais confuso ainda. Por que as
mulheres haviam amarrado os homens da comunidade?
Que coisa mais revoltante! Seria um complô contra o sexo
masculino?
__ O que tá-tá a-acontecendo, Que-querência? -- inquiri
aquela maluca da mulher do Arieto.
__ Cheirosinho, cale a boca. Seja gentil, e não pergunte
nada. Tá bom? -- pediu Querência, num tom áspero. __
Meninas, levem-no para o banho.
Algumas mulheres estavam armadas com espetos em
suas mãos. Será que elas iriam fazer algum churrasco?
No caminho para o tal banho as mulheres realizaram
uma espécie de procissão, levando-me nos ombros.
Algumas delas beliscavam e mordiam partes do meu corpo.
Seria um Ritual novo de Purificação Energética?
gutole@bol.com.br 122 http://lergratis.cjb.net
Não demorou muito, subiram um escada, atirando-me
para dentro do enorme caldeirão cheio d'água que
encontrava-se próximo à fogueira onde foi realizado o Ritual
de madrugada. Fiquei coberto pela água até o pescoço.
Do lado de fora ouviam-se gritos, berros, assobios; enfim,
uma algazarra total.
__ Cheirosinho. Gostosinho. Cheirosinho. Gostosinho --
bradavam em coro.
Sobre a água gelada flutuavam algumas fatias de
legumes. Abri a boca e mordi uma rodela de cenoura;
mastiguei e engoli com uma fome de leão. Até que o banho
seria divertido se eu não estivesse amarrado pelas cordas.
De repente, vi uma fumaceira cobrindo o gargalo do
enorme recipiente no qual me encontrava preso.
Gradativamente, a água começou a esquentar, esquentar ...

CAPÍTULO XVII
gutole@bol.com.br 123 http://lergratis.cjb.net
EXORCISANDO O MAL

__ Me ti-tirem daqui -- berrei em pânico. __ Mi-minha pele


está que-queimando.
Risos. Nenhuma ajuda.
Desesperei-me.
__ Po-por fa-favor. Me sa-salvem. Não e-estou
agüentando ma-mais.
Uma algazarra ensurdecedora se fez ouvir do lado de
fora do caldeirão.
Naquele instante sombrio, Querência gritou
freneticamente e as mulheres pararam com a algazarra.
__ Eu evoco as forças ocultas da Natureza para nos
conceder o Supremo Poder -- proclamou parecendo uma
bruxa.
Uma sinfonia sinistra de assobios tomou conta do lugar.
__ Poder! Poder! Poder! -- exclamaram todas juntas num
ritmo tenebroso.
A água tornava-se insuportavelmente quente. O calor me
consumia o corpo; o som tenebroso abatia meus sentidos.
__ Poder! Poder! Poder! -- continuavam as moças cada
vez mais extasiadas.
__ Misteriosa Natureza -- disse Querência com uma voz
estranha. __ Nós te oferecemos em sacrifício este homem
limpo e puro que o Destino, vosso filho, nos presenteou. Em
troca, damos o Poder de termos o que quisermos na vida.
Estava quase perdendo os sentidos quando, de repente,
uma majestosa tempestade de um vento geladíssimo
invadiu o local do estranho Ritual.
Felizmente o fogo apagou. A água, misteriosamente,
tornou-se fria como a neve, suavizando minhas dores e
pondo fim ao meu suplício.
__ Venha, Saulo. Dá-me sua mão.

gutole@bol.com.br 124 http://lergratis.cjb.net


Instintivamente estendi meu braço a quem me pedia.
Verifiquei, para meu espanto, que não me encontrava mais
amarrado.
Lentamente fui puxado para fora do tacho por uma
enorme mão peluda. Suavemente a mão amiga colocou-me
no chão, ao lado do tacho infernal.
Olhei em volta e espantei-me com o que via: as mulheres
da comunidade -- antes, minhas algozes -- estavam todas
espalhadas pelo chão, cobertas de folhas secas,
completamente desacordadas.
__ O que a-aconteceu? -- perguntei perplexo.
__ Não se deve brincar com o desconhecido,
principalmente quando se deseja usurpar sua força oculta
com intentos puramente egoístas.
Só então virei-me e notei que uma Preguiça pendurada
em uma árvore conversava comigo.
__ Me-mensageiro? -- indaguei desconfiado.
__ Certamente não sou um desses idiotas com os quais
convive, Saulo. Aliás, você continua convivendo com gente
da mais baixa espécie, hein?
__ São a-amigos do me-meu Guia.
__ Guia? Você ainda está nessa, Saulo? Não é possível
que não percebeu que seus Guias são um bando de idiotas
que se apóiam em vãs ilusões.
Ao ouvir aquele desrespeito enorme, indignei-me
profundamente com o Mensageiro. Lembrei-me que Arieto
havia me dito para ser duro com meu demônio pessoal, não
cedendo às suas investidas.
__ Ca-cale a bo-boca, seu i-imundo du-duma figa. Se-seu
porco su-sujo. Su-sua preguiça e-estúpida. Ni-ninguém o-
ofende assim me-meus Guias.
Preguiçosamente o Bicho riu de uma maneira
nitidamente irônica.
__ Saulo Lebre, como és iludido. Como é fácil te
enganar.
__ Ni-ninguém me e-engana. Eu te-tenho opinião pró-
própria.
gutole@bol.com.br 125 http://lergratis.cjb.net
__ Peregrino, pode até ser que estes a quem você
chama de Guias tentem te enganar, mas não faça isso
consigo mesmo. Esta irracionalidade é a mais baixa
degradação que um mortal pode atingir.
__ Su-suma daqui, sua be-besta. Te-tenho condições de
ca-caminhar por mi-minhas pró-próprias pernas. Se-sei me
cu-cuidar.
__ Sabe se cuidar? Quisera ter vindo sob a forma de
uma hiena. Riria um dia inteiro sem parar por causa do que
acabou de me dizer.
__ Co-como assim?
__ Saulo, se não fosse por mim, você, a esta hora, já
estaria frito. Verdadeiramente frito. Essas mulheres da
comunidade são tão doidas quanto os homens que a
fundaram. Dizem palavras bonitas, mas, no fundo, no fundo,
querem todos fugir da Realidade, criando um mundo mais
alienante do que aquele do qual fugiram. E quer saber mais
de uma coisa? Criticam a sociedade tradicional, porém,
inconscientemente, querem destruí-la e dominá-la.
Pretendem substituir uma situação negativa por outra pior
ainda, principalmente porque não possuem um dom
fundamental: o da autocrítica.
O Mensageiro parecia mais um chato vigário de vilarejo
passando um entediante sermão aos raros paroquianos que
ainda insistiam em perder tempo com tais lorotas.
Eu sabia, por outro lado, que estava certo. Meu caminho
era o único verdadeiro. A Sagrada Ordem dos Mentecaptos
era o único instrumento de purificação capaz de me tornar
um espírito livre das minhas contingências e me conceder
as forças necessárias para ser feliz.
__ Saulo, não esqueça de que leio os pensamentos.
Estou profundamente chocado por notar que você está se
tomando mais um deles.
__ Um de-deles? Ouça be-bem seu ser i-imundo: a O-
ordem dos Me-mentecaptos é de-detentora da verdade. E
se-sempre seguirei o que os me-meus Guias ma-mandarem.

gutole@bol.com.br 126 http://lergratis.cjb.net


__ Bem, acho que não terei mais que discutir com você.
Pelo que percebi, você não precisa ser atrapalhado ou
iludido por mim. Seus Guias -- e você mesmo -- farão com
que se tome mais um fanático requintado no mundo. É uma
pena, pois já estava gostando de te ajudar.
Ao dizer as últimas palavras, ele e a árvore em que
estava pendurado foram engolidos por uma fresta que
rapidamente surgiu e desapareceu no solo.
Logo em seguida, as mulheres da comunidade
acordaram e foram se levantando. Suas fisionomias
revelavam, com nítida clareza, que estavam confusas e
desorientadas.
__ Que aconteceu?
__ O que estamos fazendo aqui?
__ Meu cabelo está cheio de folhas. Que horror!
Querência aproximou-se de mim e perguntou se eu sabia
o que ocorrera, já que ela apenas se lembrava de haver
tomado um chá esverdeado na noite anterior; dali em
diante, tudo era um grande mistério para ela.
Acalmei-a, e para não criar caso, afirmei que também
não me recordava de nada.
Nisto, os homens da comunidade chegaram no local do
Ritual. Estavam desamarrados e confusos.
Na realidade, achei a amnésia coletiva algo muito bom,
pois assim evitaria aborrecimentos a todos. Pelo menos o
Mensageiro da Libertação fizera alguma coisa boa depois
de tantos problemas ter causada em minha Peregrinação.
Em sua casa, já reabilitado, Querência serviu-me um
refrescante chá gelado de hortelã. Algumas rosquinhas de
cogumelo com erva cidreira completaram o meu desjejum.
__ O Arieto deixou este bilhete para você, cheirosinho --
disse Querência, entregando-me um papel bastante
amassado. Nele, meu Guia me orientava quanto ao
caminho a seguir até Luminária, onde ele estaria me
esperando para a próxima etapa da jornada. No entanto, o
mais interessante foi que ele me relatou que eu deveria
fazer um certo exercício iniciatório pelo caminho, e eu seria
gutole@bol.com.br 127 http://lergratis.cjb.net
instruído por uma menina -- que eu encontraria sentada à
beira da estrada -- acerca do referido exercício.
Excitado por mais um dia de peregrinação, tomei a
mochila e me despedi de minha anfitriã.
__ Nu-nunca esquecerei de su-sua bondade e ge-
gentileza. Que os po-poderes ocultos da na-natureza te a-
acompanhem se-sempre.
A esposa de Arieto deu-me um beijo, um abraço e uma
ralada. Garantiu-me por fim para eu ficar despreocupado, já
que ela iria cuidar muito bem da Esfinge Dourada.
Suspirei fundo, admirado de ter conhecido uma pessoa
tão boa (em todos os sentidos).
Ao sair de sua casa, voltei-me uma última vez para a
caridosa nortista e lhe disse, num tom simpático:
__ Querência do norte. Nunca me esquecerei de você.
Com os olhos invadidos por lágrimas deixei a
comunidade hippie, um raro lugar de harmonia e
desprendimento.
Andei horas atormentado pelo impieodoso sol e nada da
menina que iria me ensinar um novo exercício.
Cheguei mesmo a cometer o grave erro de duvidar das
palavras de Arieto. Felizmente fui inteligente o bastante para
impedir que esta dúvida me inquietasse, afinal de contas
meu Guia era um ser iluminado, um místico detentor de
preciosos conhecimentos ocultos, um verdadeiro e digno
membro da Sagrada Ordem dos Mentecaptos.

CAPÍTULO XVIII
LAGOA DOS MILAGRES

gutole@bol.com.br 128 http://lergratis.cjb.net


Bem próximo de Luminária, sentei numa pedra no alto do
morro e fiquei a observar a cidade, que parecia muito
agitada. Daquele local iluminado dava para ver as pessoas
movimentando-se pelas ruas da cidade; proporcionalmente,
figurava-se ao trabalho alvoroçado das formigas. Pontos
luminosos eram vistos em todos os cantos da cidade; talvez
fossem o reflexo dos adornos, dos apetrechos, dos
preparativos para a tal festa de casamento em que Arieto
havia ido trabalhar.
Naquele momento, uma aura fresca e suave tomou conta
de meu frágil corpo exposto ao sol quente. Senti uma paz
infinita invadindo minha alma. Meu corpo havia entrado em
ressonância e perfeita harmonia com aquele lugar sagrado
e iluminado. Era como se eu flutuasse, deitado sobre uma
nuvem branca e macia.
Fechei os olhos, inspirei fundo o ar puro e iniciei o
exercício da escada, que Rodnaldo havia me ensinado em
minha passagem pelas terras mágicas de Varginha.
Dessa vez, apareceu em minha mente uma escada
enorme. Mas não era uma escada qualquer; os degraus
eram mais altos do que eu, cerca de cem metros de altura
por dois de largura.
A escada estava encoberta por uma espessa neblina.
Uma voz feminina chamava por mim:
__ Saulo, venha amorzinho ... suba logo, amorzinho ...
estou louquinha para curar sua gagueira ... venha, meu
brotinho de milho ... sua deusa está de braços abertos a sua
espera ...
Aquela voz melíflua incitava meus ânimos. Com muita
dificuldade, tomei distância e pulei para o alto, alcançando
a base do próximo degrau. Era como se houvesse um muro
sobre o outro.
Aos trancos e barrancos, fui subindo a colossal escada.
Já havia subido vinte degraus, mas a neblina encobria o
topo da escada -- se é que ela tinha fim.
Arfante, deitei no chão de pedra do degrau, abri os
braços e procurei permanecer numa posição de total
gutole@bol.com.br 129 http://lergratis.cjb.net
relaxamento. A voz, com um tom mais áspero, já não me
encantava mais.
__ Saulo, seu chocho. Levante e continue subindo. Falta
muito pouco para você conseguir chegar até mim. Você não
quer se libertar de sua gagueira? Então venha logo. Agora.
Já!
Continuei deitado no chão, completamente cansado e
desanimado. Mal conseguia me levantar; nem mesmo tinha
forças para abrir as mãos. Senti meu corpo pesado, muito
pesado, como se a pedra em que eu havia sentado sobre o
morro estivesse por cima de mim.
__ Acovardou-se, gaguinho? -- indagou a voz com um
tom autoritário e escabroso. __ Como ousa desrespeitar a
ordem de sua deusa? Serás, então, castigado em nome da
Sagrada Ordem dos Deuses.
Naquele instante, ouvi um ruído estrondoso, como se
alguém abrisse as barragens de acumulação de alguma
represa gigantesca. O som tornava-se cada vez mais forte e
mais próximo, até que uma queda d'água me atingiu em
cheio. Saí rolando escada abaixo, carregado pela forte
correnteza, como se estivesse sendo arrastado por uma
cachoeira em plena queda livre, até que ... bummm! A
correnteza se acalmou, mas eu continuava coberto pela
água e não conseguia mais respirar; estava afogando.
Impulsionando as pernas e os braços tentei emergir para
fora d'água. Esforço inútil: era tarde demais.
__ Rhá, rhá, rhá ... -- ouvi ao longe, quase desfalecendo.
__ Cóf, cóf, cóf -- tossi, engasgado pela água.
De súbito, voltei a mim. Levantei-me. Para minha
surpresa, quando abri os olhos, eu me encontrava dentro de
um pequeno lago, com água na altura do joelho. A pedra
em que eu havia sentado encontrava-se acima do lago.
Curiosamente, havia uma fresta na pedra, de onde
escorria uma água cristalina e gelada, dando origem àquele
lago raso.

gutole@bol.com.br 130 http://lergratis.cjb.net


__ Como vai, meu peregrino? Tomando um banho para
espantar as moscas ... quero dizer, o calor? -- inquiriu
alguém que se encontrava atrás de mim.
Olhei para trás e vi uma menina toda maquiada, de
cabelos loiros e longos, cheia de correntinhas no pescoço,
de calça jeans e camiseta estampada.
__ Quem é você? -- indaguei, sem gaguejar.
Espantei-me. Saí da lagoa, abismado e perplexo por não
ter gaguejado. Será que aquela água era mágica?
A menina aproximou-se de mim e apresentou-se:
__ Meu nome é ... Meneca. É isso aí, Saulo. Sou sua
nova Guia; a mais nova da Ordem.
__ Rhá, rhá, rhá -- gargalhei, lembrando-me de uma
passagem em minha peregrinação.
__ Tá rindo de quê? -- irritou-se a Guia, alterando o tom
de voz.
__ É que Meneca lembra perereca. E perereca me faz
lembrar o Andson.
__ Andson? E Rodnaldo não lhe faz lembrar de nada?
__ Faz. Ele é um santo homem ...
__ Espere aí, gaguinho! ... quero dizer, Saulinho. Você
não era gago? -- interrompeu minha nova Guia, surpresa
pela mutação de minha voz.
Aliás, eu também procurava uma explicação pelo súbito
sumiço de minha gagueira. Seria um milagre?
__ Será que a água desse lago é milagrosa, Meneca?
Minha gagueira desapareceu -- perguntei à Guia, meio
confuso.
__ Você é uma pessoa iluminada, Saulo. Acabou de
encontrar a fonte dos milagres do morro santo de Luminária.
A água curou-lhe a gagueira. Abençoada seja a Sagrada
Ordem dos Mentecaptos. Agora, que seu sonho se realizou,
entregue o Medalhão Azul -- pediu Meneca, estendendo as
mãos.
__ Medalhão Azul?
__ É, Saulo Lebre. O Medalhão Azul que o Albertinus lhe
entregou antes de você iniciar sua peregrinação. Lembra?
gutole@bol.com.br 131 http://lergratis.cjb.net
Você já foi curado. Sua obrigação é devolvê-lo a quem lhe
pertence.
__ Mas, o medalhão foi roubado -- esclareci, apreensivo.
__ Como roubado? Quem ousaria fazer uma coisa
dessas?
__ O Mensageiro da Libertação -- revelei, tentando
contornar a situação.
__ Mensageiro? Deixe de conversa fiada. Depois a gente
conversa sobre o medalhão. Agora, siga-me.
Segui minha Guia, caminhando por uma trilha, descendo
morro abaixo.
Pelo caminho, Meneca disse que estava me levando
para um cemitério, onde eu iria realizar o exercício de
agradecimento pelos ensinamentos da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos, denominado Exercício da Escavação. Teria
de escolher sete covas, entre treze indicadas pela pequena
Guia; depois, coletar as jóias e peças de valor no interior
dos túmulos para uma posterior purificação energética que
seria realizada por Membros da Ordem.
Meneca assegurou que essa purificação era realizada a
cada três luas cheias, e, após o ritual, os pertences dos
mortos eram devolvidos um a um para seus respectivos
donos. Se era para o bem de todos, e como forma de
agradecimento pelo milagre que a Ordem havia operado em
mim, eu não seria ingrato de desconsiderar o convite da
Guia. Iria realizá-lo com muito orgulho e consideração.
Quando chegamos no cemitério, na planície do morro,
bem próximo ao subúrbio de Luminária, não encontramos o
coveiro responsável pelo local. A Guia me disse que todos
os moradores da cidade estavam ajudando na festa do
casamento. O prefeito havia prometido à população
construir uma pequena praia, caso todos se empenhassem
ao máximo nos adornos da rua, das praças e da capela.
Pelo visto, a comunidade desejava imensamente essa
prainha, e até o coveiro havia aderido ao mutirão.
Entramos pelo pequeno portão de madeira, que mais
parecia uma porteira. O cemitério era bem pequeno, tinha o
gutole@bol.com.br 132 http://lergratis.cjb.net
muro baixo, algumas covas de mármore, noutras apenas um
monte de terra com uma cruz fincada. O que mais se via
espalhado pelas covas eram algumas moitas de espinho,
roseiras e margaridas. Duas árvores ao fundo faziam
sombra numa capelinha em construção. E era só; um
silêncio profundo, cortado pelo vento que arrastava algumas
folhas secas caídas no chão.
Meneca parou logo na primeira quadra e, olhando para
mim de uma maneira estranha, indagou-me:
__ Onde foi mesmo que você escondeu a chave de seu
cofre?
__ Chave? -- respondi, meio confuso.
__ Ora, a chave do seu cofre. Aliás, a chave que abre a
outra porta que há em seu cofre.
__ Como eu sou um burro, mesmo. Ah! meu Deus. O
Albertinus deve estar uma fera comigo. Quando a dona
Genoveva me perguntou sobre a primeira chave, eu deveria
ter falado para ela sobre a segunda. Como eu sou distraído!
-- lamentei, levando as mãos à cabeça.
__ Realmente, o Albertinus está uma fera com você. E
então, onde está a chave? -- quis saber Meneca, ansiosa.
__ Tá na coleira do meu querido cachorrinho -- revelei à
Guia, sorrindo.
Meneca anotou algo numa caderneta que levava consigo
e, depois, voltou a falar:
__ Deixe eu ver. Tenho mais uma coisa para dizer a
você, Saulo.
__ Diga, diga -- pedi, eufórico.
__ É sobre o medalhão. Albertinus mandou uma ordem
para eu pedir que você devolva o medalhão.
__ Devolver o medalhão? -- inquiri, pasmo.
Meneca tirou do bolso um embrulho feito com jornal.
Dentro dele, retirou um novo medalhão. Não conseguia
compreender a razão daquilo. A Guia esclareceu minha
dúvida:

gutole@bol.com.br 133 http://lergratis.cjb.net


__ Tome. Aqui está o seu novo medalhão. Você chegou
na metade do caminho de sua peregrinação; e quando isso
ocorre, o medalhão deve ser trocado por outro.
Peguei o medalhão e o coloquei em meu pescoço.
A Guia tornou a insistir:
__ Agora devolva o outro medalhão.
__ Não posso. O Mensageiro da Libertação o roubou de
mim.
__ O quê? Foi roubado? Dê-me de volta esse medalhão
-- ordenou Meneca, com os olhos turvos de raiva.
Sem hesitar, assustado, devolvi o medalhão à Guia.
__ Enquanto você não devolver à Ordem o outro
medalhão não receberá este aqui, e uma maldição terrível
cairá sobre o seu destino. Certo?
Caí de joelhos aos pés de Meneca.
__ Não fale uma coisa destas. Perdoe-me. Perdoe-me --
supliquei incansavelmente.
__ Sua única saída é devolver o medalhão, Saulo. Não
há outra maneira de escapar da maldição eterna da Ordem.
Não adianta ficar se lamentando. Levante-se e não diga
mais nada, apenas ouça o que tenho para lhe falar, e
obedeça minhas ordens. Certo?
Procurei me controlar. Apesar de Meneca ser uma
criança, eu tinha que respeitá-la e obedecê-la. Ela era um
membro da Sagrada Ordem dos Mentecaptos, uma menina
iluminada e responsável em me auxiliar na minha
peregrinação.
__ Tome a pá e comece a realizar o Exercício da
Escavação, Saulo. Vou lhe mostrar os treze túmulos. Você
terá que escolher apenas sete deles, entendeu? --
esclareceu a Guia, secamente.
__ Entendi, Meneca.
__ Ah! não tenha medo. Os mortos não vão lhe fazer mal
algum. E você não vai nem precisar abrir o caixão;
normalmente os objetos preciosos são guardados dentro de
uma caixinha, e postos ao lado do caixão. Isso é costume

gutole@bol.com.br 134 http://lergratis.cjb.net


do povo dessa região. Certo? -- revelou Meneca, sentada
num monte de tijolos, debaixo da sombra de uma árvore.
Após escolher os sete túmulos -- coincidência ou não,
eram todos de mármore --, iniciei o Exercício da Escavação,
e escavei a primeira sepultura em meia hora de muita terra
no olho e suor. Como a Guia havia dito, nem precisei abrir o
caixão. Realmente havia uma caixinha dentro da sepultura.
Peguei a caixinha dourada e entreguei para Meneca.
__ Você tá muito lerdo, Saulo. O Exercício deve ser
completado antes do anoitecer -- alertou a Guia num tom
áspero e autoritário.
Passei a tarde toda cavando as covas de mármore. A
Guia negou-me até mesmo um copo d'água. Mas, como
aprendi com meus Guias, quando se trata de um exercício
da Sagrada Ordem dos Mentecaptos, temos que vencer
tudo que estiver nos importunando para realizá-lo da
maneira mais perfeita possível.
Na maioria das covas havia mais de três caixinhas
douradas próximas ao caixão. Meneca me garantiu que
quanto mais caixinhas eu encontrasse, mais grandioso e
feliz seria o meu futuro. Com a chegada do crepúsculo
terminei o exercício, e meus olhos brilhavam de entusiasmo
e felicidade. Eu havia coletado, no total, exatamente dezoito
caixinhas douradas. A Guia me disse que era um recorde;
nunca ninguém tinha alcançado tamanha quantidade. Disse
mais: que eu iria entrar para o Livro dos Recordes da
Ordem, e meu futuro seria algo espantoso e maravilhoso.
Meneca pôs as caixinhas dentro de uma sacola; depois,
aproximou-se de mim com um sorriso maroto e disse:
__ Não pense que o Exercício da Escavação acabou. Pra
finalizar, você deve escolher uma das sete covas abertas,
entrar dentro dela, fechar os olhos e proferir as palavras
mágicas por cerca de dez minutos.
__ Que palavras são essas? -- berrei, eufórico.
__ As palavras são estas: Sou Perfeito. Gozo de
Felicidade. Fui Curado e Devo Minha Vida à Ordem. Certo?

gutole@bol.com.br 135 http://lergratis.cjb.net


Num piscar de olhos, escolhi uma túmulo de mármore
enorme, dotado de seis gavetas e uma porta de ferro cheia
de furinhos no centro da sepultura, que serviam para
ventilar o interior daquele lugar sombrio.
Entrei, totalmente orgulhoso por ingressar para o Livro
dos Recordes da Ordem.
Meneca fechou a porta e soltou uma gargalhada
ensurdecedora. Só poderia ser o sinal para que eu
começasse a dizer as palavras mágicas: Sou Perfeito. Gozo
de Felicidade. Fui Curado e Devo Minha Vida à Ordem.
Entusiasmado, repeti as palavras sem delongas, com o
peito estufado e um tom de voz bem firme.
Dez minutos se passaram como um relâmpago. Ergui os
braços e tentei abrir a porta. Mas ela parecia estar travada.
Usei toda minha força, mas a porta não queria abrir. Gritei:
__ Meneca. Por favor, abra a porta. Já acabei o
exercício.
Será que a Guia tinha ido embora? Naquele momento,
meu coração disparou. Gritei, berrei e nada de Meneca.
Olhei em minha volta e me vi envolvido entre três caixões.
Senti medo. Medo de ter sido abandonado naquele local
mórbido e amedrontador. Imagine eu passar a noite ali?
Com certeza morreria de sede, fome, ou até mesmo, de
medo.
A claridade ia diminuindo sensivelmente os pequenos
furos da porta. Agitado, tornei a gritar:
__ Meneca ... ti-tire-me da-daqui. So-socorro! A-alguém
me a-ajuda.
Como se fosse uma maldição, voltei a gaguejar. Eu
estava perdido. Não havia saída nem escapatória. A
maldição do medalhão havia caído sobre mim. Desalentado
e cansado, sentei-me no chão e pus-me a chorar.
De repente, ouvi o barulho de passos vindo em direção
do túmulo em que eu me encontrava aprisionado. Eis que
surgiu uma voz embriagada:

gutole@bol.com.br 136 http://lergratis.cjb.net


__ Maldita sogra! Óia, sua véia. Eu bebo sim e estou
vivendo; quem não bebe é quem está morrendo. Óia, sua
língua de sapo, toma o que você merece ...
Naquele momento, um respingo d'água saltou dos
pequenos furos da porta, caindo sobre mim. Tinha um forte
cheiro de urina. Gritei:
__ So-socorro, tire-me da-daqui!
__ Óia! A véia tá se afogando! Afoga, sua véia maldita.
Tome mais isto ... -- disse o sujeito, tropeçando nas sílabas
com aquele voz ébria.
Tomei um novo banho daquela água estranha. Que raio
de gente estaria visitando a sepultura? Batendo na porta
com força, insisti:
__ So-socorro. A-abra a po-porta. Sa-salve-me.
Após um demorado silêncio, a porta foi aberta e eu pude
sair daquele local mórbido. Abracei o sujeito que havia me
salvado. Ele segurava uma garrafa de pinga na mão, e
estava completamente embriagado.
Eu precisava retornar ao lago mágico antes do anoitecer.
Era minha única chance de curar novamente minha
gagueira.
__ Óia, que ocê táva fazendo aí dentro, espírito do
além? -- indagou-me o bêbado de supetão.
__ Ve-venha, vamos de-deixar isso de la-lado. Não so-
sou ne-nenhum espírito do a-além. Meu no-nome é Sa-
saulo. Agradeço mu-muito pe-pelo senhor ter a-aberto a po-
porta do tú-túmulo. É que e-eu tô com mu-muita pressa pra
su-subir o mo-morro.
__ Óia, seu gago do além. Você sabe onde fica a
cidade?
Fiquei morrendo de pena daquele sujeito que mal podia
parar em pé. Aliás, ele havia me salvado. Eu lhe devia um
favor.
__ Si-siga-me -- disse ao bêbado.
Com muita dificuldade o homem foi cambaleando ladeira
acima, tomando a pinga de gole em gole. Do alto do morro,
a cidade de Luminária estava toda iluminada. A noite caía
gutole@bol.com.br 137 http://lergratis.cjb.net
lentamente sobre o lugarejo. Apressei o passo e aproximei-
me da margem da lagoa. Tirei a camisa, depois a calça e
pulei na água santa.
O bêbado tomou o último gole de pinga e estrebuchou-se
no chão. Meio zonzo, conseguiu se sentar numa pedra.
Voltando-se para mim, indagou-me:
__ Óia. Eu não sabia que assombração tomava banho.
Rhá, rhá, rhá.
Procurei me controlar. Na verdade, meu desejo era de
poder curar novamente a minha gagueira.
Mergulhei na água fria da lagoa por várias vezes, até
sentir meu corpo flutuando na superfície daquela água
purificada.
Saí da lagoa calmamente. Coloquei minhas roupas, e só
então arrisquei falar algo:
__ Você sabia que a água dessa lagoa é milagrosa? Tá
vendo, curou minha ga-gueira ... ma-maldição!
__ Óia, seu Gago do Além. Esse negócio de lagoa
milagrosa é psicológico. Rhá, rhá, rhá -- argumentou o
bêbado num tom irônico.
De súbito o sangue me subiu pela cabeça. Avancei no
bêbado, agarrando-o pelo pescoço, com ira e ódio por não
ter sido curado da gagueira. Num gesto intempestivo,
empurrei aquele ébrio imundo morro abaixo.

gutole@bol.com.br 138 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XIX
UMA DESSAS
FESTA DO INTERIOR

Devo ter ficado umas três horas no alto do morro,


choroso e profundamente angustiado. Aliás, penso que
talvez ficasse a noite toda por lá, caso um barulho irritante
não tivesse despertado minha atenção.
O helicóptero que sobrevoava o morro passou por mim
velozmente e seguiu rumo à cidade.
Fiz o mesmo. Com a suja mochila nas costas fui
descendo o morro quase sem ânimo.
Mal coloquei os pés no asfalto rústico de Luminária e
uma tempestade colorida de fogos de artifício irrompeu no
céu estrelado.
Logo a seguir, alguns aviões de pequeno porte cruzaram
o céu e empreenderam precisas manobras de pouso num
descampado atrás de umas casas. Surpreendi-me com o

gutole@bol.com.br 139 http://lergratis.cjb.net


fato de uma cidade tão pequena quanto aquela ter um
aeroporto, mas lembrei-me que no vilarejo onde nasci, um
traficante de cocaína comprou uma chácara e fez um
aeroporto nela. Para quê? Certamente os negócios com a
mocidade do vilarejo compensavam.
Um ônibus buzinando como doido parou ao meu lado.
Um sorridente motorista de olhos vermelhos e espessas
sobrancelhas ofereceu-me carona até o galpão onde estava
se realizando os festejos do casamento.
Já estava com um pé no degrau do ônibus quando uma
ambulância de sirenes ligadas freou ao lado do coletivo.
__ Você vem com a gente, amigo -- falou um sujeito de
chapéu me tirando do ônibus e me jogando dentro da
ambulância.
__ Que e-está a-acontecendo?
__ Desculpa os meus modos, mineiro. É que o ônibus
que você tava entrando é da Prefeitura local. Sabe, ele é
usado pra transportar nossos estudantes até Varginha,
onde eles estudam.
Não entendi nada da justificativa do cara de chapéu.
Enquanto a ambulância trafegava feito um carro de fórmula
um pelas ruas com paralelepípedo da cidade, arrisquei outra
pergunta para o motorista aloprado.
__ Por que vo-você me trouxe pa-para esta a-
ambulância?
__ Ora, mineiro. O ônibus é da Prefeitura, uai. Foi
comprado pelo prefeito a pouco tempo. Já esta belezinha
aqui foi adquirida na administração anterior, quando os da
oposição tavam no poder. Entendeu, gente boa?
__ Não -- respondi lacônico.
__ Êta, sô. O motorista do ônibus, o Ligmarzinho, é
vereador do Prefeito Inocêncio. E eles querem impressionar
o Senador levando um bocado de gente na condução deles
até a festa. Mas nós, da oposição militante, não deixamos
isso barato, não. Tomamos as conduções que a gente
conseguiu em nosso governo e estamos fazendo a nossa
lotação até a festa.
gutole@bol.com.br 140 http://lergratis.cjb.net
__ Co-como uma a-ambulância vai co-conseguir levar
ma-mais gente pra fe-festa do que o ô-ônibus?
O motorista de chapéu de boiadeiro fez uma curva
ousadíssima, desviou-se de três pessoas, não desviou de
outras cinco, e continuou o rali até o galpão.
Respondeu-me, então:
__ É que você não tá muito por dentro da política local,
mineiro. A turma do Prefeito Inocêncio está com o ônibus
dos estudantes, uma viatura de polícia e dois tratores. A
gente, da oposição militante, tamos com esta belezinha
aqui, o caminhão dos bombeiros, um caminhão de lixo e
uma máquina de obras, com guindaste. É pau a pau, gente
boa.
Depois de outra manobra radical, o sujeito da ambulância
freou bruscamente em frente de uma barraca. Abriu a porta,
deu a volta no carro correndo, puxou-me para fora da
ambulância e jogou-me no chão, perto de um cara sentado
num caixote.
__ Mais um, Valter. Quanto tá a disputa agora?
__ Três mil e quinze pro prefeito e três mil e duzentos pra
vocês.
O motorista boiadeiro deu um grito eufórico, ajeitou seu
chapéu e pulou dentro da ambulância, partindo para outra
emocionante carona.
Indignado, levantei-me do chão rachado e perguntei pro
sujeito do caixote se conhecia alguém chamado Arieto.
__ O hippie doidão? Claro que conheço. Ele é assim com
o Pablito, o dono do aeroporto.
__ Quem é e-este Pa-pablito? -- quis saber, interessado.
__ Você não sabe? -- O sujeito abaixou o tom de voz,
olhou para os lados, e só então respondeu-me: __ É um dos
chefões do cartel da branquinha.
__ Ca-cartel da bra-branquinha? Que é i-isso, homem?
Não tive resposta. O ônibus do Ligmarzinho, o vereador
do Prefeito Inocêncio, estacionou e uma leva de gente com
alto teor alcoólico no sangue e no hálito desceu e me
empurrou pra dentro do galpão.
gutole@bol.com.br 141 http://lergratis.cjb.net
Aquilo mais parecia um parque do que festa de
casamento. Roda-gigante, barca viking, carrossel, barracas
de jogos. Mais adiante havia um sem número de bares, um
ao lado do outro, dando bebida grátis para todo mundo. O
ar estava tão contaminado que se alguém acendesse um
fósforo haveria, certamente, uma explosão imediata.
Continuei caminhando no meio da multidão animada até
deparar-me com uma enorme fila. Um senhor à minha
frente, segurando duas galinhas debaixo dos braços,
inquiriu-me a respeito do presente que eu iria dar ao
Senador.
__ Eu não te-tenho pre-presente nenhum -- justifiquei-me
meio constrangido.
__ Então, pra modo de quê o senhor entrou na fila do
beijo?
Fila do beijo? Que raio de fila -- e de beijo -- era aquilo?
Mais uma vez não tive minhas dúvidas esclarecidas. Foi
um tal de entrar gente na fila, que me vi totalmente
espremido e empurrado pela multidão generosa e nervosa.
Com certa rapidez a fila ia andando e se aproximando de
um mesa onde haviam alguns homens engravatados e
algumas mulheres lindamente trajadas.
Quando chegou a vez do sujeito das galinhas à minha
frente, uma moça aproximou-se dele e dirigiu uma pergunta
pouco comum:
__ O que é o que é que perfeito é, bom sempre foi e
ótimo sempre será?
O sujeito das galinhas, sem hesitar, respondeu com
alegria:
__ O Senador Genildo.
As pessoas da mesa, com exceção do homem ao centro,
levantaram-se e aplaudiram as palavras do dono das
galinhas. Só então o Senador levantou-se, abriu os braços e
pediu para o homem se aproximar.
__ Que bom, vou ganhá um abraço do meretíssimo
Senador -- falou o homem, emocionado.

gutole@bol.com.br 142 http://lergratis.cjb.net


__ Que nada, filho. Dá-me as duas galinhas e vai-te
embora daqui. Tem mais gente querida querendo me
presentear.
Era minha vez.
As pessoas da mesa comprida tornaram a sentar. A
moça, cumprindo o protocolo, aproximou-se de mim e
repetiu a pergunta:
__ O que é o que é que perfeito é, bom sempre foi e
perfeito sempre será?
Nunca tinha visto o Senador em minha vida. Nos últimos
tempos fiquei só ouvindo as fitas do Dr. Ribero, a fim de
superar as minhas contingências pessoais. Assim, não
podia dizer quem era o tal do Senador Genildo.
__ Moço, responda, por favor.
Não resisti às sedutoras palavras da moça que proferiu o
estranho enigma.
Respondi com convicção:
__ A Sa-sagrada O-ordem dos Me-mentecaptos.
Alguns caras mal-encarados que estavam ao lado do
Senador levantaram, abriram seus paletós, e, cada qual,
apontou uma arma para mim.
Suspirei frio. O que havia falado de errado?
__ Oba. Vai ter tiroteio -- alegrou-se um dos que estavam
na fila.
__ Esta festa tava um saco mesmo, compadre. Vamos
botar fogo nela agora -- anunciou um outro sujeito da fila.
Estes dois, depois seguidos por outros, começaram a
atirar para cima, gerando uma gritaria e um empurra-
empurra infernal.
São nestes momentos de aperto e dificuldade que se
pode compreender o valor místico superior da Ordem dos
Mentecaptos. No meio da confusão dei de topa com meu
Guia, o Venerável Arieto.
__ Saulo! Por que você demorou tanto? E que balbúrdia
danada é esta?
Tentei esclarecer, mas o galpão parecia mais um filme de
faroeste. Desviamos de algumas balas perdidas e saímos
gutole@bol.com.br 143 http://lergratis.cjb.net
do recinto do terror. Interessante é que mais gente entrava
do que saía do galpão. Bom, tem gosto para tudo neste
mundo ...
Fui com meu Guia até uma bilheteria ao lado da
montanha-russa. Mais sossegado, expliquei
pormenorizadamente os fatos a Arieto.
__ Não acredito. Você disse ao Senador que a Ordem é
o que há de mais perfeito no mundo?
Confirmei.
__ Vamos sumir daqui agora mesmo.
Sem entender bem o porquê, segui Arieto até uma
barraca de brinquedos, na entrada do recinto da festa.
Arieto abriu uma tampa escondida por serragem no chão da
barraca. Havia uma escada, por onde descemos. Andamos
por um túnel todo iluminado, cheio de saquinhos com pó
branco espalhados por várias prateleiras, até outra escada.
Subimos, e entramos numa sala repleta de sandálias,
pulseiras e outros objetos confeccionados por hippies.
__ Olha pela janela pra ver como as coisas estão. Eu vou
tirar o jipe da garagem e pará-lo em frente da casa.
Enquanto meu Guia pegava o jipe, entreabri a janela do
lugar e observei a bagunça generalizada que tomara conta
da festa. Pessoas, do alto da roda gigante, atiravam nas
que estavam na montanha russa. Garrafas eram atiradas
para o alto e uma enxurrada de balas de espingarda
desfaziam-nas em pedacinhos. E mais e mais gente
chegava na festa, para o desespero do sujeito do caixote,
que mal podia contabilizar a entrada do pessoal no recinto.
__ Vamos embora, Saulo -- gritou Arieto de seu jipe,
parado em frente da casa.
Pulei a janela, montei no carro e fugimos daquele velho
oeste generalizado.
Fora da cidade, aproveitei a ocasião e quis saber de meu
Guia qual o motivo da atitude dos capangas do Senador em
relação à minha resposta.
__ É que a Ordem dos Mentecaptos também tem alguns
membros infiltrados na política. Para purificá-la, é claro. E
gutole@bol.com.br 144 http://lergratis.cjb.net
um de nossos membros é justamente o governador do
estado, o inimigo número um do Senador Genildo.
Olhando as estrelas, suspirei desolado ao saber que
haviam políticos desonestos neste país. Evidentemente não
eram membros da Ordem, a Guardiã Única do Bem e da
Verdade.
Com luz alta, o jipe de Arieto, que por duas vezes nos
salvara de situações embaraçosas, nos levava até o lugar
onde eu deveria me encontrar com meu próximo Guia.
Nisto, o celular de Arieto tocou. Ele atendeu, e uma
conversa cheia de exclamações e interjeições se
desenrolou, até que ele guardou novamente o telefone no
porta-luvas.
__ A-algum pro-problema? -- interroguei-o, atormentado
pelo silêncio que sucedeu ao telefonema.
__ O Peteleco me ligou do Albergue da Ordem me
informando que algo terrível aconteceu.
__ Que ho-houve? -- perguntei aflito.
__ O Albertinus foi ferozmente atacado por um cão e
uma cadela. Fizeram pedacinhos dele. Parece que está
hospitalizado em estado de choque. Que coisa, hein?
Engasguei. Só então falei:
__ Co-coisas terríveis a-acontecem ho-hoje em dia --
respondi, não dizendo mais nada até chegarmos ao nosso
destino.

gutole@bol.com.br 145 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XX
MILAGRES DA
SAGRADA ORDEM

Naquela madrugada fria, em que as estrelas brilhavam


intensamente e a lua cheia iluminava todo o descampado,
ficamos parados, sãos e salvos do inusitado tiroteio que se
formou em Luminária. De longe víamos a cidade toda
iluminada, quando de repente tudo se apagou. Teria
ocorrido um black-out na rede elétrica? Arieto parecia
apreensivo e preocupado com o misterioso cessar das luzes
de Luminária. Correu até o jipe e retornou trazendo uma
caixa nas mãos.
__ Brother, eu tenho que me mandar pra Luminária. Algo
de terrível deve ter acontecido por lá. Mas antes de partir,
gostaria de desabafar contigo.
__ De-desabafar? -- indaguei absorto.
Arieto olhou profundamente para mim e, para minha
surpresa, os seus olhos se encheram de lágrimas. Fiquei
boquiaberto e perplexo com aquela cena comovente. Com
toda sinceridade, não sabia o que fazer naquele momento.
O Guia, segurando a pequena caixa, estendeu-me as mãos
e, soluçando, disse:
__ Tome, brother. Pegue a sua borboleta e seja feliz.
Não se assuste se você nunca viu um homem chorar. Essas
lágrimas, brother, quer dizer muito ... muito além do que
você possa imaginar. Nunca em toda minha vida eu
encontrei um cara tão bacana quanto você.
__ O-obrigado, A-arieto. Eu não me-mereço tan-tantos e-
elogios assim -- interrompi, procurando ser modesto.
__ Não fale nada, brother, deixe eu terminar o que tenho
a dizer -- murmurou Arieto, completamente tomado pela

gutole@bol.com.br 146 http://lergratis.cjb.net


emoção. __ Leve consigo essa sua energia positiva,
espalhando-a para todos que cruzarem seu caminho. Você
foi a melhor pessoa que eu já guiei em toda minha vida.
Você é uma pessoa iluminada; soube honrar e defender a
Sagrada Ordem dos Mentecaptos na presença de inimigos,
como o Senador, e o mais incrível, foi o único dos
peregrinos a conseguir realizar o Exercício da Purificação
com magnitude e determinação nunca antes alcançadas.
São pessoas como você, brother, que me estimulam a
prosseguir com a missão de Guia. Agora, tome a sua
Esfinge Dourada e prossiga a sua peregrinação.
Depois de tanto corre-corre, eu nem me lembrara da
Esfinge. Tomei a caixa das mãos de Arieto, feliz pelas
palavras abençoadas de meu Guia.
Apesar de estar um pouco distante de São Tomé das
Letras, eu continuava muito animado com minha jornada.
Quantas coisas boas e novas eu já havia aprendido com
meus Guias. Pelo caminho já percorrido, eu havia
encontrado somente pessoas boas e maravilhosas, como
Rodnaldo, Andson, Dedé, Cledite, Genoveva, Meneca,
Querência e Arieto. Esperava poder encontrá-los
novamente. Quem sabe quando eu terminasse minha
peregrinação?
Era uma honra para mim ter sido tão lisonjeado por
Arieto. Por duas vezes ele me salvou. A primeira, quando fui
preso injustamente, e depois, na confusa noite ocorrida na
festa de casamento do filho do Senador.
Aquela noite parecia ser um sonho para mim. Sentia-me
muito feliz por Albertinus, naquela noite iluminada, ter me
encontrado e me encaminhado para o Ritual de Novos
Membros da Ordem. No início da viagem, eu andava muito
aborrecido em ter deixado para trás o meu querido
cachorrinho, a minha modesta residência, a obrigação de
proteger a minha vizinha Verusa; todavia, valeu a pena
abandonar tudo e encarar o desafio da peregrinação. Já
estava começando a colher os frutos da minha
perseverança, da obstinação em cumprir minha missão.
gutole@bol.com.br 147 http://lergratis.cjb.net
As palavras sinceras de Arieto deram-me mais forças
para continuar com minha caminhada. Só faltava encontrar
o Mensageiro da Libertação para recuperar o meu
Medalhão Azul e, somado à Esfinge Dourada, rumar para
São Tomé das Letras para transmutar a múmia do meu
Mentor, trazendo-o de volta à vida.
Arieto enxugou suas lágrimas com um lenço azul e disse:
__ Saulo, leve esse lenço consigo. Minhas lágrimas
estavam carregadas de energia positiva. Essa energia
poderá ser usada por você em sua peregrinação. Quando
se sentir abatido diante de um perigo busque forças nas
lágrimas cristalizadas neste lenço azul.
Agraciado, tomei o lenço das mãos de meu Guia e o
guardei no bolso. Mais uma vez agradeci ao Guia:
__ O-obrigado, A-arieto. Eu não me-merecia tu-tudo isso.
Sou um pa-pagão e te-tenho muito que a-aprender com os
Gui-guias da O-Ordem. A-aliás, ca-cadê meu no-novo Guia?
-- indaguei preocupado, temendo ter que ficar sozinho
naquela estrada de chão escura e deserta.
__ Já é bem tarde, brother. Daqui a pouco o seu Guia
deverá aparecer. Talvez ele se atrase um pouco, mas tenha
a certeza de que ele não vai deixar de vir.
__ Ma-mais uma ve-vez, A-arieto, não se-sei como
agradecer pela sua in-infinita bondade. Man-mande lem-
lembranças para o A-albertinus. Pe-pena que o-ocorreu uma
co-coisa tão te-terrível com e-ele. Te-tenho certeza de que
e-ele vai se-ser cu-curado pela co-corrente de e-energia
cósmo-energética, que somente os me-membros da Sa-
sagrada Ordem dos Me-mentecaptos po-possuem.
__ Com a graça da Ordem, brother. É chegado o
momento de ir. Boa-sorte, Saulo -- disse Arieto, abraçando-
me fortemente. Depois, entrou em seu jipe e partiu.
Fiquei observando o jipe de meu Guia até perdê-lo de
vista.
Sentei no barranco da estrada de terra e fiquei
esperando o meu novo Guia. Apesar da luminosidade do
luar, sentia muito medo de ficar sozinho naquele lugar
gutole@bol.com.br 148 http://lergratis.cjb.net
deserto. E se aparecesse alguma nave extra-terrestre? O
que eu iria fazer?
Diziam os boatos que os homenzinhos verdes
capturavam pessoas para serem analisadas em laboratórios
que existiam dentro de suas naves espaciais. A pessoa era
atingida por um raio e desmaiava. Quando acordava do
sono profundo, deparava-se deitada numa superfície reta e
dura (como se fosse feita de mármore), rodeada por
curiosos e gentis seres espaciais, que filtravam e
energizavam o sangue da pessoa, acrescentando poderes
de cura e energização impossíveis de serem alcançados
pelos homens comuns. Depois de uma longa conversa e
instruções, os homenzinhos verdes traziam de volta a
pessoa ao lugar onde fora encontrada, pedindo para que
transmitisse a todos os conhecimentos que aprendera. Eu
achava aquilo formidável. Uma história cativante e
encantadora.
Um dos meus sonhos era um dia poder receber essa
energia cósmica, etérea e verdadeira. A primeira coisa que
eu iria fazer, logicamente, seria curar minha gagueira.
Contudo, até aquele momento eu ainda não havia
encontrado nenhuma pista dos etês. Quando chegasse o
meu novo Guia pretendia interrogá-lo a respeito desse
assunto tão misterioso.
Parei de olhar as estrelas, abri a mochila e peguei uma
lanterna.
Liguei a lanterna e mirei o foco de luz no rumo de meus
pés. Várias formigas caminhavam apressadamente em fila
indiana, carregando pequenos pedaços de folhas de capim
verde. Achei interessante aquela movimentação toda, e
passei a observar o trabalho incomum daqueles seres tão
insignificantes.
As formigas caminhavam muito perto umas das outras, a
ponto de esbarrarem naquelas que vinham em sentido
contrário. Havia algumas formigas maiores que, em vez de
ajudar as menores carregarem as folhas, ficavam zanzando
de um lado para outro, na maior folga.
gutole@bol.com.br 149 http://lergratis.cjb.net
__ Seu bi-bicho inútil, va-vagabundo -- murmurei,
levantando os pés em direção de uma daquelas vadias, que
curiosamente tinha os olhos brilhantes.
__ Não faça isso! -- gritou a formiga que eu estava
prestes a pisotear. __ Saulo, sou eu: o Mensageiro.
__ Me-mensageiro? É vo-você mesmo que-quem eu e-
estava pro-procurando. De-devolva o meu me-medalhão ou
se con-considere uma fo-formiga morta -- ameacei o
Mensageiro, mirando o pé na direção dele.
__ Tudo bem, Saulo. Eu devolvo o seu medalhão, mas
pare com essa sua chantagem idiota.
__ De-devolva o meu me-medalhão -- pedi
insistentemente.
__ Calminha, Saulo. A vida é longa para se ter tanta
pressa assim. Mas antes de devolver o seu medalhão, eu
gostaria de contar a você um segredo.
__ Fa-fale lo-logo.
__ Eu nunca havia me transformado numa formiga em
toda minha existência de Mensageiro da Libertação. No
regimento interno da Entidade a qual pertenço é
expressamente proibido a gente se transformar em
determinados animais. Formiga é um desses animais
proibidos pelas leis severas de minha Entidade. Mas resolvi
experimentar algo novo, que fizesse com que eu saísse da
rotina de ficar atormentando a vida dos outros. Desde o
nosso primeiro encontro, quando eu apareci sob a forma de
Gorila, minha vida vem se modificando substancialmente.
Isso, porque, somado ao meu fracasso em atrapalhar sua
peregrinação, a observação contínua de suas atitudes
diante das pessoas que cruzaram seu caminho, percebi que
a maldade não é a única porta que existe no universo.
Aprendi que a bondade reflete em nosso espírito um paz
profunda e uma satisfação que nunca são alcançadas por
quem pratica o mal. Será que você me compreende?
__ Nã-não. Eu só que-quero o meu me-medalhão de vo-
volta -- resmunguei, com a paciência esgotada por ouvir
aquelas asneiras todas. __ Eu te-tenho a E-esfinge Do-
gutole@bol.com.br 150 http://lergratis.cjb.net
dourada co-comigo, só fa-falta o me-medalhão. E-entregue-
o pra mi-mim, co-coisa do ma-mal.
__ Não diga uma bobagem destas, Saulo. Depois que eu
falar tudo o que tenho a dizer a você, devolvo o seu
medalhão -- replicou o Mensageiro, com um tom de voz
suave e cordial.
__ Então fa-fale lo-logo, que eu tô-tô de sa-saco cheio de
fi-ficar te ou-ouvindo.
__ Depois que me transformei em formiga, passei a
conviver com elas por um pequeno período. Foi o suficiente
para perceber o quanto as formigas são unidas e trabalham
com um objetivo comum: manter a integridade do
formigueiro, garantindo a sobrevivência da espécie. A
comunidade é tão organizada que me fascinou.
__ Que gra-gracinha! -- exclamei em tom de deboche.
__ É verdade, Saulo. A comunidade das formigas, assim
como a das abelhas e dos marimbondos, são as mais
perfeitas do mundo. Devíamos seguir o exemplo delas.
__ Vo-você tá é ma-maluco. Os marimbondos são ma-
maldosos e en-encheram o po-pobre do Ro-rodnaldo de fe-
ferroadas -- redargüi, discordando plenamente do
Mensageiro. __ E te-tem ma-mais, seu Me-mensageiro não-
se-sei-do-quê: quando eu de-descobrir o se-seu nome, vo-
você se-será destruído. Isso que-quem di-disse foi o A-
arieto, o me-meu Gui-guia.
__ Saulo, será que você não compreende. Você está me
destruindo dia-a-dia. Já não sou mais como antes; a
qualquer momento eu poderei ser expulso de minha
Entidade. Tenho mais é que agradecer por tudo o que você
fez por mim.
__ Não que-quero sa-saber de na-nada. Mo-mostre onde
e-está o me-medalhão, que eu tô fi-ficando sem pa-
paciência -- falei, tremendo de raiva.
__ Tá bom, Saulo, você é um caso perdido mesmo. Siga-
me -- pediu o Mensageiro.
__ Co-como? Vo-vocês fo-formigas são to-todas iguais.
Dessa fo-forma vou pe-perdê-lo de vi-vista – resmunguei.
gutole@bol.com.br 151 http://lergratis.cjb.net
__ Tenho uma idéia. Vou carregar em minhas costas
aquela semente ali, e você não vai ter problema algum; é so
me seguir pela trilha com sua lanterna. O medalhão não
está muito longe daqui.
O Mensageiro, com certa dificuldade, pegou a semente e
caminhou em direção às formigas que faziam o transporte
das folhas de capim.
Com muita paciência e tolerância acompanhei o andar
lerdo e ritmado do Mensageiro. Entrei mato adentro,
seguindo atentamente a trilha de formigas. Depois de
muitas curvas, e de caminhar por cerca de um quilômetro,
retornamos à mesma estrada de terra. Dez metros à frente,
próximo a um buraco de tatu, no barranco da estrada, havia
um enorme formigueiro; definitivamente, havíamos chegado
ao nosso destino.
__ Ufa! Chegamos -- suspirou o Mensageiro, deixando
cair no chão a semente.
__ Ca-cadê o me-medalhão? -- inquiri, sentindo uma
incômoda dor na coluna por ter permanecido um longo
tempo encurvado com a lanterna apontada para a trilha de
formigas.
__ Tá escondido debaixo desse feixe de mato seco.
Pegue. É todo seu.
Mais do que ligeiro, avancei no feixe compulsivamente.
Era um milagre. Um milagre da Ordem dos Mentecaptos.
Peguei o medalhão em minhas mãos, beijando-o várias
vezes. Nunca estivera tão próximo da minha cura. Com o
medalhão e a Esfinge Dourada em mãos, eu já poderia
rumar direto para São Tomé das Letras e realizar o sonho
da minha vida: curar minha gagueira.
__ Satisfeito agora? -- indagou-me o Mensageiro.
__ Não te in-interessa, se-seu a-abelhudo. Vá cu-cuidar
de se-seus amiguinhos in-insignificantes, e de-deixe eu se-
seguir meu ca-caminho em paz -- retruquei, colocando o
medalhão em meu pescoço.

gutole@bol.com.br 152 http://lergratis.cjb.net


__ Tudo bem, Saulo. Faça o que achar melhor. Adeus,
tenho mais o que fazer da vida -- disse o Mensageiro,
adentrando o formigueiro com a semente nas costas.
Feliz da vida, reiniciei minha caminhada.
Ao longe, avistei um ponto luminoso. Parei e passei a
observá-lo com certo temor.
Aquela luz aproximava-se cada vez mais. Aos poucos foi
tomando um aspecto vermelho. A princípio pensei que se
tratava de um E.T. Mas minha dúvida foi logo sanada. Era o
meu novo Guia que se aproximava suspirando:
__ Até que enfim te encontrei, Paulo -- disse o novo
Guia.
__ Pa-paulo, não! É Sa-saulo -- corrigi.
__ Ah!, sim. Sa-saulo. Desculpe, é que estou morrendo
de sono. Muito prazer em conhecê-lo. Eu sou o famosíssimo
Guia da Luz Vermelha -- apresentou-se o Guia.
__ Esse a-apelido é de-devido a co-cor da sua lan-
lanterna? -- inquiri, segurando para não rir.
__ É, isso mesmo. Sa-saulo. Mas vamos deixar de
conversa. Ainda temos de caminhar uma hora até a casa da
Luz Vermelha, onde iremos pernoitar -- finalizou o Guia.

CAPÍTULO XXI
NA ENCRUZILHADA
DO DESTINO

Lindoro, meu novo Guia, era realmente uma pessoa


peculiar. Um iluminado. Um homem de mente aberta e de
visão ampla. Perceptivo, comunicativo, inteligente. Em
suma, mais um digno membro dos Mentecaptos.

gutole@bol.com.br 153 http://lergratis.cjb.net


Na estrada por onde caminhávamos até a Casa da Luz
Vermelha, Lindoro, com uma eloqüência de fazer inveja ao
próprio Color, desfiava uma série de sábios ensinamentos
para mim, um humilde iniciante nos caminhos secretíssimos
da Ordem.
__ Tudo é muito simples, Sa-Saulo -- dizia-me o Guia,
cuja mão segurava firmemente a lanterna que nos guiava
pela escura estrada na qual andávamos. __ O que é a vida
senão uma oportunidade que o Cosmos nos concede para
nos auto-aperfeiçoarmos? Sim, meu caro peregrino. A vida
é isto mesmo. Uma mescla de escuridão com luz; deste
combate, que nos cabe travar, tão somente aqueles que se
aliam aos Mistérios Ocultos é que podem vencer.
Aquelas palavras pronunciadas com autoridade
deixavam-me completamente seduzido pela verdade do
Guia. Aliás, não a do Guia. A da Ordem. Ou, a própria
verdade em seu sentido mais puro e real.
__ Passávamos perto de um brejo iluminado por vaga-
lumes e sonorizado por agudos coaxares, quando meu Guia
continuou sua exposição reveladora.
__ No fundo, no fundo, vos digo, Sa-Saulo: somente o
novo tem poder e energia para sustentar o mundo. Por isto
a necessidade que temos de divulgar os princípios de nossa
amada Ordem, a fim de que, conhecendo-a melhor, mais e
mais pessoas a ela adiram e por ela se deixem conduzir.
Nós representamos o novo num mundo rodeado por velhas
e obsoletas doutrinas. No terceiro milênio, tenho a certeza,
nos tornaremos na mais cativante filosofia de vida da era de
Aquários.
Suavam minhas mãos de tanta emoção pelo fato de fazer
parte daquela nova era que Lindoro tanto falava. E aquilo
vinha diretamente de encontro aos meus objetivos mais
nobres: curar-me da gagueira e ser um líder das massas
através do poder persuasivo de minhas palavras. Que coisa
maravilhosa ser um Mentecapto!
Fazia já cerca de meia hora que percorríamos o caminho
até nosso destino de pernoite, quando, para nosso espanto,
gutole@bol.com.br 154 http://lergratis.cjb.net
a lanterna de Lindoro fez-se refletir nos olhos claros de um
animal deitado no chão a poucos metros de nós.
__ Não temas, Sa-Saulo -- acalmou-me o Guia,
segurando com suave firmeza o meu braço. __ Não há de
ser nada. Um filhote de tatu, talvez. Sigamos nossa jornada.
__ Vo-você quem ma-manda -- falei tranqüilizado pelas
acaloradas palavras do Guia.
Continuamos nosso caminho quando o animal levantou
sua cabeça, e seus olhos arregalados refletiram mais
fortemente a rubra luz da lanterna.
__ Tome a lanterna, peregrino. Mostre-me sua coragem e
siga na frente.
Achei estranho a provação a que meu Guia estava me
submetendo, mas, obediente, fiz como ele mandara,
tomando a lanterna e seguindo adiante na direção
daqueles estranhos olhos vermelhos.
A cabeça do bicho tornou a se mexer, ocasião em que
ouvimos nitidamente um barulho como o de um chocalho de
criança. Coisa esquisita; o que seria?
__ A-ai! A-ai! -- gritei tomado de uma dor indescritível.
__ O que foi, Sa-Saulo?
__ O bi-bicho me mo-mordeu.
Fiquei tão zonzo que apoiei-me no ombro de Lindoro. A
lanterna caiu no chão e iluminou o bicho que me atacara.
Era uma cobra pintada que, após o bote, se afastara de
nós.
__ Co-como po-pode acontecer u-uma coisa de-destas?
E e-eu não e-estava protegido? -- perguntei aflito ao Guia,
com uma dor cuja intensidade muito ultrapassava as minhas
dúvidas.
__ Fica quieto, Sa-Saulo. Você não deve questionar a
Ordem nem tampouco seus Cavaleiros Iluminados. Agora
agüente firme que a Casa da Luz Vermelha está próxima.
Lá cuidaremos de você.
Embora zonzo e dolorido, senti-me bem por saber que
alguém se importava comigo e estava disposto a me ajudar.

gutole@bol.com.br 155 http://lergratis.cjb.net


Assim, apoiado pelo ombro amigo de Lindoro, caminhei até
o lugar que ele chamava de a Casa da Luz Vermelha.
Batucada infernal. Gritos e sons estridentes. Do meio das
trevas que nos envolvia naquela trágica estrada, surgiu,
como um oásis no deserto, uma casa com altos muros e
imponente portão.
__ Você trouxe dinheiro, amigo? -- interrogou-nos um
mulato trajando roupas e calçado branco.
__ Qual é a sua, Itamar? Sou eu, o Lindoro. Trouxe um
peregrino que precisa de ajuda.
O mulato abriu o portão de imediato. Foi outra prova do
poder de meu Guia. Tive até um pequeno momento de
ânimo, ambicionando ter, algum dia, tamanha autoridade e
persuasão.
__ O que aconteceu com ele? -- perguntou Itamar,
segurando-me pelo outro braço.
__ Parece que foi picado por cobra -- esclareceu Lindoro.
__ Então ocorreu em boa hora. Tu tá ouvindo a
batucada?
__ Faz um tempão. Que é isso, Itamar?
__ Hoje é noite de despacho espiritual. A casa tá assim
de gente com grana alta, todos querendo que o pai de santo
que veio lá de Sampa faça alguma coisa por eles.
__ É, quem sabe ele pode curar o Sa-Saulo aqui, hein?
Quase com os pés arrastando, fui conduzido por Lindoro
e o mulato Itamar até os fundos da casa. Embora com a
visão turva, pude constatar a presença de umas cem
pessoas, todas de branco dos pés à cabeça, reunidas em
pequenos círculos. De mãos dadas umas às outras, as
pessoas gritavam, cantavam, sacolejavam-se, pulavam.
Fora dos círculos, um sujeito bem gordo, igualmente de
branco, apenas se diferenciando dos demais pelo uso de
uma espécie de turbante, ia passando a mão nas cabeças
das pessoas que estavam nos círculos.
__ Que-quem é e-ele? -- indaguei quase sem forças.

gutole@bol.com.br 156 http://lergratis.cjb.net


__ É o pai-de-santo Boboleto -- respondeu-me Itamar. __
Veio lá de São Paulo pra dar um jeito na vida da gente
daqui.
__ Além do que ele também é um Mentecapto --
completou Lindoro, aumentando minha confiança por aquele
homem.
__ Vamos lá que ele vai te curar. Ah, vai te custar
duzentinho -- disse Itamar.
Quase desmaiei. Como seria possível um abnegado
místico, seguidor do esoterismo e apóstolo da nova era
cobrar pelos seus serviços energéticos?
Lindoro, compreendendo minha leve indignação,
esclareceu-me de que o dinheiro seria utilizado pela Ordem
para ajudar os necessitados.
__ É o mínimo que podemos fazer pelos deserdados da
sorte -- justificou Lindoro, com um olhar e tom de voz
profundamente comoventes.
Adoraria ter aquela importância no momento. Mas não
trouxera dinheiro comigo. Não havia como emprestar
dinheiro ao poderoso pai-de-santo a fim de que ele, depois,
pudesse utilizá-lo em benefício dos pobres. Mas a dor era
tanta ... e meus músculos começavam a enrijecer ...
__ Eu pa-pago de-depois. Levem-me até e-ele -- clamei
desnorteado.
Mal enxergava o rosto de meu iluminado Guia; tão
somente a luz vermelha de um holofote ainda permanecia
visível para mim. A batucada, porém, havia me invadido por
completo, atordoando mais ainda os meus fracos sentidos.
__ Oh, grande filho de Ogum e afilhado de Oxóssi. Te
trouxemos este peregrino para que possas curá-lo da
picada de cobra que ele sofrera a pouco.
As formais palavras de Itamar pareceram-me distantes
mil anos luz. Uma sensação de estar sendo queimado por
dentro me consumia naquele momento. Minha última
esperança era, justamente, o caridoso pai-de-santo que se
encontrava diante de mim.

gutole@bol.com.br 157 http://lergratis.cjb.net


O poderoso homem de turbante murmurou alguma coisa.
Não pude ouvir nada, a não ser certas palavras
entrecortadas proferidas por Lindoro. Algo do tipo: "ele vai te
pagar depois. Pode confiar".
Depois pude entender que aquela breve discussão entre
meus acompanhantes e o pai-de-santo se justificava.
Tratava-se de mera atitude previdente do homem de
turbante, desejoso de que eu lhe desse dinheiro para ajudar
suas obras de caridade em troca de seu poder curativo.
Nada mais justo.
Senti uma mão pousar sobre minha cabeça; alguma
invocação proferida em voz mediana; um líquido estranho
sendo despejado em minha goela ...
Quando recobrei os sentidos, encontrava-me deitado em
um quarto escuro cuja janela estava semi-aberta. Minha
visão melhorara, tanto que conseguia distinguir o brilho das
estrelas penetrarem pela fresta da janela.
Levantei-me. Sentia-me melhor. Sem dúvida, outro
milagre graças a uma pessoa iluminada e graduada da
Sagrada Ordem dos Mentecaptos.
Lentamente caminhei até à janela. Percebi que o
batuque, embora menos intenso, continuava. Não foi
possível eu ver o que estava acontecendo no terreiro atrás
da casa, vez que minha janela se situava na outra
extremidade da construção.
Contudo, notei a presença de muitos carros novos
estacionados dentro da propriedade. Este fato foi mais um
alento para mim, vez que ficou-me claro a prosperidade
advinda de quem trilhava tais rumos. Sim, o Universo
deveria recompensar os homens e mulheres que se
ocupavam em seguir os caminhos ocultos do esoterismo.
Estava suspirando pela quarta vez quando um som alto e
ensurdecedor de sirenes se fez ressoar cada vez mais
próximo e intenso. Em poucos segundos observei que
vários carros de polícia pararam do lado de fora do portão.
De um dos carros, um policial fardado segurando um

gutole@bol.com.br 158 http://lergratis.cjb.net


megafone saltou da viatura. Ao seu lado, terno e gravata, o
Pastor Willian com um livro debaixo do braço.
__ Abram o portão ou vamos invadir! -- anunciou o
policial, para meu espanto e surpresa. __ Estamos com um
mandado judicial. É melhor que o pai-de-santo Boboleto se
entregue por bem, caso contrário haverá confusão.
Confusão? Que confusão?

CAPÍTULO XXII
PERFEITAMENTE LOUCO

Num esforço descomunal, um homem gigantesco de


boné azul, calças largas e tênis sem cadarço, arrombou o
portão usando suas próprias mãos. Pulei a janela e me
refugiei atrás de um tambor metálico. O que estaria
acontecendo?
Meu coração disparou naquele instante de tensão. O
latido dos cães que os policiais traziam consigo me
amedrontava. Minha vontade era sair correndo e pular no
pescoço daquele imundo ser que era o pastor. Mas se eu
fizesse isso, com certeza seria preso. Procurei controlar
meus ânimos. Lembrei-me de um dos exercícios de
relaxamento que havia numa das fitas do Dr. Ribero, na
qual o sujeito dava algumas cabeçadas na parede para

gutole@bol.com.br 159 http://lergratis.cjb.net


aliviar as tensões. Foi o que eu fiz: dei três cabeçadas no
tambor cheio d’água.
Mais calmo, olhei novamente. Itamar se dirigiu até o
portão, segurando em suas mãos um velha garrucha. A
arma parecia muito com aquela que o Andson fora
metralhado pelo Léo, o caçador de borboletas.
Itamar postou-se à frente e encostou o cano da garrucha
no nariz do Pastor Willian.
__ Alto, seu gravatinha! -- exclamou Itamar. __ Se pensar
em se mexer leva um tiro nesse seu narigão de seda.
__ Sai pra lá, coisa imunda -- berrou o pastor,
empurrando o coitado do Itamar. __ Guarde essa sua arma
infernal e se renda às leis divinas.
__ E às leis dos homens -- interveio um homem barbudo,
trajando o meu terno que fora roubado.
O Pastor Willian olhou feio para o sujeito, o qual
interrompeu seu diálogo e continuou a falar:
__ Tenho em minhas mãos um mandado judicial com a
autorização de acabar com essa indecência humana, com
essa zona de prostituição financeira, com esse imundo lugar
de exorcismo e magia negra.
__ Como ousa falar uma coisa destas da minha casa
Iluminada? -- indagou Itamar encarando sem medo o Pastor
Willian.
Vários policiais mal encarados, armados com
metralhadoras, apreciavam o desenrolar do amistoso
diálogo que estava sendo travado entre o pastor e Itamar.
O sujeito de terno e gravata, acompanhado de dois
policiais que seguravam duas algemas, aproximou-se de
Itamar e esclareceu:
__ Eu sou delegado da polícia federal. Vocês estão
sendo acusados por consumo de entorpecentes, abuso de
menores, sacrifício de animais silvestres, charlatanismo e
outras coisas mais. Oficiais, prendam-no -- ordenou o
homem da lei.
Sem resmungar, Itamar foi algemado e ficou sob a
guarda dos dois policiais que o prenderam.
gutole@bol.com.br 160 http://lergratis.cjb.net
__ Nossa! Que maravilha! Quantos carros importados
temos aqui! -- admirou-se o Pastor Willian, falando na
direção de Itamar que sorria inexplicavelmente. __
Delegado, mande o pessoal contornar a casa pela
esquerda, que a gente vai pela direita.
__ Tudo bem, Pastor Willian, seja feita a sua vontade --
disse o delegado, curvando-se diante do seu líder religioso.
Do local onde eu estava não dava para ver os fundos da
casa de Itamar. E não havia como avisar as demais pessoas
sobre o ataque surpresa que estava para ocorrer. Todavia,
meu coração dizia que nada de mal iria ocorrer com nenhum
membro da Sagrada Ordem dos Mentecaptos. O Cruzeiro
do Sul se posicionava em sua melhor angulação
astronômica, espalhando harmonia, sorte e energia para
aquele terreiro iluminado.
Os policiais contornaram à esquerda. O pastor e o
delegado, acompanhados por dois cachorros e pelos
policiais que levavam o Itamar, passaram bem próximos ao
tambor atrás do qual eu estava escondido.
Um dos cachorros veio em minha direção, farejando o
chão. Arrepiei-me todo quando dei de cara com aquele
monstro peludo. Não sabia se gritava ou corria. Permaneci
imóvel, estatelado, sem sequer movimentar os olhos,
prendendo a respiração a todo custo. O animal cheirou
meus pés, e num gesto fugaz, fez xixi na minha perna e foi-
se embora. Um alívio tremendo invadiu minha alma. Que
sufoco! O único cachorro que eu gostava era o meu
Totozinho, que havia deixado aos cuidados de Verusa,
minha querida vizinha.
Quando o Pastor Willian e sua corja contornaram a casa,
sumindo de minha visão, pulei dentro do tambor d’água para
lavar o xixi que o cachorro havia feito em minha perna. Só
então notei que aquela água era branca feito leite.
Num pulo de gato, saltei do tambor ligeiro. Meu corpo
estava todo coberto pela cal. Uma coceira de arrancar os
pelos das pernas espalhou-se por todo o meu corpo de pele
sensível e delicada.
gutole@bol.com.br 161 http://lergratis.cjb.net
__ Á-água! -- bradei, desnorteado.
__ Fogo! -- soou um forte grito, vindo da direção dos
fundos da casa de Itamar.
Um tiroteio ensurdecedor tomou conta daquele lugar.
Parecia a virada do ano novo, com direito a fogos de artifício
atirados para o alto. Uma verdadeira confusão!
Era gente correndo para todos os lados; cachorro latindo,
policiais berrando, gravatinhas se arrastando pelo chão ...
um verdadeiro rebuliço.
O jeito foi permanecer escondido atrás do tambor. O
medo de levar um tiro era tanto que eu havia esquecido da
coceira.
Aos poucos, as pessoas foram se acalmando e se
aglomeraram próximas ao portão. Abrindo caminho pela
multidão, apareceu o Pastor Willian, acompanhado do
delegado e do pai-de-santo Boboleto. Mas, e o Itamar? E o
meu Guia? Onde será que o Lindoro havia se metido?
O pastor, com aquele olhar fingido, segurando uma Bíblia
nas mãos, pôs-se a narrar:
__ Primeiro Javé fez o homem, depois a mulher ... droga,
não é isso que eu queria dizer. Deixa pra lá, esqueçam o
que eu disse, mas ouçam com muita atenção o que eu
tenho a dizer a vocês, homens e mulheres pagãs -- bradou
o pastor, apontando suas mãos bem cuidadas na direção
daquelas pessoas bem vestidas.
Muitas ajoelharam-se no chão como se suplicassem por
perdão.
O Pastor Willian pôs a mão sobre a cabeça do pai-de-
santo Boboleto, que permanecia estranhamente calado.
__ Veja esse homem aqui. Ele é um pecador. Ele é o
Guia dos demônios e vocês estão entregando sua alma e
seu dinheiro santo a este ser impuro. Mas eu vim aqui neste
local para salvá-los da perdição. Depois de muita insistência
consegui arrancar do juiz essa autorização que vos libertará
dos caminhos das trevas. Esse homem, que se diz
curandeiro, pai-não-sei-do-quê, será preso. E vocês, apesar

gutole@bol.com.br 162 http://lergratis.cjb.net


de minha bondade, de meu esforço, nunca mais serão
perdoados. Mas há uma chance ...
__ Que chance? -- interrompeu um sujeito de terno azul
marinho, ajoelhando-se aos pés do Pastor Willian.
__ A chance de se libertar dos demônios. A chance de
sucesso profissional. A chance de multiplicar suas riquezas.
A chance que só Terceira Igreja Reformada dos Contra-
Reformadores poderá lhes conceder -- revelou o pastor.
__ Perdoai-nos. Perdoai-nos -- gritaram as pessoas em
coro.
Fiquei indignado, sem poder fazer nada contra aquele ser
diabólico e abominável. Dei mais três cabeçadas no tambor
para controlar meu ímpeto.
__ Ah! tem mais uma coisa. Tem algum deputado aqui?
Vários se identificaram levantando a mão, inclusive
mulheres.
__ Então não se esqueçam de votar contra aquele
projeto que proíbe o culto após as 22 horas. Será que eu fui
claro?
__ Sim, Pastor Willian -- berraram os ambiciosos
políticos.
O fato que mais me chamou a atenção foi o estado de
calmaria em que Boboleto se encontrava diante daquele
mórbido episódio. Ele permanecia calado, indiferente, ao
invés de proteger a integridade da Ordem, de debater os
argumentos do pastor que estava arruinando com a Casa
da Luz Vermelha. No entanto, para minha surpresa, o pai-
de-santo subiu no capô de um Diplomata de luxo e
redargüiu:
__ Amados filhinhos de Ogum. Não creiam nas palavras
proferidas por esse homem profano, de má índole. Ele sim
que é um charlatão. Conheço esse homem como a palma
das minhas mãos. Quando ele era um bebê, sua mãe o
levou no meu terreiro para eu dar um passe no pobrezinho.
Ele tinha problemas com vermes intestinais, e minha
oração, minhas mãos sensitivas e curandeiras, meus

gutole@bol.com.br 163 http://lergratis.cjb.net


incensos purificadores, curaram-no dos parasitas que
tomavam conta de seus intestinos.
__ Como ousa dizer um absurdo desta natureza? --
interveio o pastor, irado.
__ Calminha, Willian Castilho -- replicou Boboleto,
seguido de um sorriso indecoroso. __ O nosso amigo
pastor, aqui presente, em sua terra natal, a pouco tempo
atrás, era o braço direito do renomado Pastor Cléber,
guardião das inúmeras almas que freqüentavam a Segunda
Igreja Reformada dos Contra-Reformadores. Mas a ambição
de possuir um ramo próprio fez com que o canalha do
Willian traísse o seu chefe, criando a Terceira Igreja
Reformada dos Contra-Reformadores. Vejam então, meus
amigos. Eu, com minha infinita bondade, acolhi o Pastor
Willian em meu terreiro e o transformei num novo homem.
__ Cale a boca seu macumbeiro duma figa -- berrou o
pastor. __ Chega com essa sua ladainha. Policiais, retirem
esse mentecapto de perto de mim. E os demais tratem logo
de fazer seus cheques acerca da contribuição de perdão,
que o delegado irá passar recolhendo. E ai de vocês se não
forem fiéis à sua fé. Será que eu fui claro?
Três policiais subiram no capô do Diplomata, seguraram
fortemente o pai-de-santo Boboleto, arrastando-o para os
fundos da casa.
De repente, senti uma mão fria tocando o meu pescoço.
Virei-me assustado e dei de cara com o sorriso maroto do
meu Guia Lindoro.
__ Fica na boa, Sa-saulo. Fale baixo. Eu vim aqui para
avisá-lo que vou ter de sair pela tangente.
__ Sa-sair pela tan-tangente?
__ É, isso mesmo. Sair pela tangente é escapulir de
algum perigo. Fugir. Tô com uns probleminhas com os
federais. Coisinhas à toa, insignificantes; mas eu não quero
arriscar minha pele. Não é sempre que esse tipo de gente
está de bom humor, não é mesmo?
__ Ah! sim, eu com-compreendo -- exclamei, preocupado
com o perigo que meu Guia corria.
gutole@bol.com.br 164 http://lergratis.cjb.net
__ Mas o que aconteceu com você. Está todo branco.
__ É u-uma história mu-muito longa. Se-será que vo-você
sa-sabe onde teria um po-pouco d’água para eu me ba-
banhar? -- inquiri ansiosamente.
__ É só virar à esquerda que ali tem um córrego bem
raso.
__ Mu-muito obrigado pe-pela informação.
__ Já ia me esquecendo de algo muito importante, Sa-
Saulo. Não se preocupe que eu peço para alguém te
entregar a Esfinge Dourada e o medalhão; eles se
encontram guardados num lugar bem seguro. Até breve,
bravo peregrino -- despediu-se Lindoro dando-me um forte
abraço. Depois, partiu mato adentro.
A coceira havia retornado. Com muito cuidado, olhando
atentamente à minha volta, caminhei pela sombra até
chegar ao córrego. Pulei naquela água gelada e relaxei um
pouco. Que maravilhosa sensação de bem-estar! Era como
se eu estivesse dentro de uma banheira de hidromassagem,
tendo a água da bica massageando minhas costas.
Acima do córrego havia uma horta. Levantei-me da água
gelada e caminhei em direção dos canteiros. Apalpando
com as mãos, procurei pelas cenouras. Puxei um ramo
qualquer, mas infelizmente era uma beterraba. Quando
voltei-me para o canteiro de cima, ouvi um ruído de folhas
secas sendo pisoteadas. Escondi-me atrás de algumas
moitas de arruda.
Não demorou muito e o Pastor Willian aproximou-se da
cerca da horta acompanhado pelo pai-de-santo Boboleto e
Itamar. O que os santos membros da Ordem dos
Mentecaptos estariam fazendo ali com aquele ser infernal?
Decidi permanecer escondido, aguardando o desenrolar
dos fatos.
O Pastor Willian tirou três charutos do bolso do seu
paletó, e entregou um para o Boboleto e outro para o
Itamar; depois, segurando um isqueiro, falou:

gutole@bol.com.br 165 http://lergratis.cjb.net


__ Vamos acender as chamas da vitória, irmãos
mentecaptos. O delegado já me informou a respeito da
coleta dos cheques.
__ Quanto arrecadamos, Willian? -- quis saber Itamar,
eufórico.
__ Tenho apenas o resultado parcial do montante ...
__ Diga logo, Willian -- interrompeu Boboleto, impaciente.
__ Próximo a vinte mil reais -- disse o pastor de boca
cheia. __ Esse povo é mesmo idiota. Gostam de ser
enganados. Na verdade gente dessa espécie não sabe no
que acreditar; são verdadeiras marionetes, massinhas de
modelar e manipular. Como podem crer em vários deuses
ao mesmo tempo?
__ É verdade, Willian. E se não fosse esse tipo de gente,
o que seria de nós da Ordem dos Mentecaptos? -- indagou
Boboleto num tom irônico.
__ E da Terceira Igreja Reformada dos Contra-
Reformadores? -- completou o pastor. __ A Ordem foi a
maior farsa que já inventaram na face da Terra ...
Naquele momento não suportei os meus ímpetos. Nem
mesmo todo o meu conhecimento a respeito das fitas e dos
livros do Dr. Ribero faria com que eu me controlasse diante
daquela blasfêmia proferida pelo pastor. Imagine? A
Sagrada Ordem dos Mentecaptos uma farsa? Aquilo para
mim foi o fim da picada.
Pulei a cerca de arame da horta como um garanhão
selvagem e agarrei o Pastor Willian pelo pescoço.
__ Socorro! Solte-me, eu estou sufocando -- disse o
pastor, quase afônico.
Boboleto e Itamar saíram correndo cada qual para uma
direção.
__ Eu a-acabo com su-sua ra-raça, seu ma-maldito! --
gritei, apertando cada vez mais o pescoço daquele sujeito
imundo. __ Vo-você hipnotizou os me-meus amigos e estão
u-usando eles co-como cobaias em su-suas pe-
perversidades.

gutole@bol.com.br 166 http://lergratis.cjb.net


__ Solte-me. Não estou conseguindo mais respirar.
Prometo que faço tudo o que você pedir -- suplicou o pastor
Willian, quase agonizando.
__ Pro-promete?
__ Prometo.
Soltei minhas mãos do pescoço daquele verme humano.
Engraçado, naquele momento tive a sensação de que
conhecia o Pastor Willian bem antes de ter me defrontado
com ele no vagão do trem, a caminho de Varginha.
Arrependi-me profundamente por ter dado mais uma
chance a ele. Num grito descomunal, o Pastor Willian pediu
por socorro. Rapidamente, os policiais cercaram-me pelos
quatro cantos, e não havia como escapulir.
__ O que está acontecendo aqui? -- inquiriu o delegado,
inquieto.
__ Esse sujeito é louco! Ele queria me matar enforcado
usando suas próprias mãos. Eu acho que ele precisa de
tratamento e acompanhamento psicológico. Que tal se o
levarmos para o Manicômio de São Bento Abade? --
insinuou o pastor.
Tentei fugir. Foi preciso vários policiais para conseguir
me algemar e conduzir até um dos camburões. Levei tanta
pancada de porrete que fiquei zonzo, desorientado, meio
lelé.
Quando chegamos no tal manicômio, os primeiros raios
de sol despontavam brilhantes no horizonte de São Bento.
A viagem até aquele local não fora muito confortável.
Minhas costas estavam doendo, e as algemas pareciam que
iam arrancar meu braço.
Saltei do camburão e fui levado pelos policiais até o
enorme e enferrujado portão do tal hospital. Três homens
vestidos de branco já nos aguardavam defronte ao portão.
O delegado retirou as algemas do meu braço e disse:
__ Não tenha medo, bom homem. Você será bem
cuidado neste local. Isto que estamos fazendo é para o seu
bem.

gutole@bol.com.br 167 http://lergratis.cjb.net


Olhei feio para o delegado. Ameacei atacá-lo pelo
pescoço, mas fui agarrado pelos três homens de branco,
que me arrastaram portão à dentro. Depois não vi mais
nada. Quando acordei estava deitado na solidão de um
pequeno quarto, tendo as mãos e os pés amarrados na
cama.

gutole@bol.com.br 168 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XXIII
NO NOSOCÔMIO
DE SÃO BENTO

Encontrava-me imóvel. Não conseguia movimentar um


músculo sequer. Em vão foram os esforços para me
desvincilhar das amarras que me mantinham preso.
Resignei-me temporariamente à situação. Passei, então,
a observar o quarto para onde havia sido levado. Era um
cubículo de cerca de cinco metros quadrados. Teto baixo,
paredes brancas e uma minúscula janela com três grossas
barras de ferro. O calor era insuportável; a ventilação,
inexistente. Se ficasse mais alguns minutos naquele lugar
certamente morreria sufocada.
Desesperado, gritei.
__ Fica de bico fechado, louquinho -- resmungou
violentamente um enfermeiro entrando pela porta do quarto.
__ E-estou com fa-falta de ar -- expliquei.
__ Que falta de ar que nada. Você tá é com
malandragem pra cima de mim. Cala sua boca ou te faço
engolir um litro de calmante. Tá falado?
O rude enfermeiro bateu a porta, deixando-me
novamente só.
Tentei tirar o máximo de forças do meu interior, mas era
impossível romper as amarras em meus membros. E o ar
mantinha-se parado, pesado.
Senti que meu fim estava próximo. Eu, nobre peregrino
da Ordem dos Mentecaptos, que tivera a honra de conviver
com os mais iluminados membros das forças ocultas,
rendia-me ao intransponível obstáculo que o destino

gutole@bol.com.br 169 http://lergratis.cjb.net


preparara para mim. Não havia escapatória. Fechei os olhos
e aguardei em silêncio o meu fim.
__ Hora do banhinho. Venha com a titia Lalá, novato.
Abri os olhos e encarei espantado uma loira de branco,
em cujo avental lia-se Danila Balio.
__ Vamos soltar aqui ... aqui e agora aqui.
A enfermeira me deixou completamente solto. Isto me fez
sentir um profundo alívio.
__ Ah, amorzinho. Eu sei que é seu primeiro dia aqui, por
isso te aviso: se você tem amor aos seus membros
inferiores, por favorzinho, não tente nada. Eu vim lá da
Bahia, da cidade de Brejão, e quando garotinha passava
horas e horas jogando futebol com os meninos. E você sabe
o que era a bola? Eram cocos verdes que a gente apanhava
do coqueiro.
__ Não-não co-compreendo.
__Ah, louquinho da titia. Eu quis dizer que se eu chutava
coco duro lá em Brejão, eu posso muito bem chutar uns
cocos por aqui também. E se você quiser minhas
credenciais, vá na enfermaria. Lá tem três doidinhos em
estado de coma provocado pelos meus chutes certeiros.
Agora, vamos lá. Eu vou dar banhinho em você.
A enfermeira segurou em meu pulso e foi me puxando
pelos corredores do lugar. Passamos por diversos quartos
onde se podiam ouvir gritos horríveis, como se as pessoas
estivessem sendo tremendamente torturadas.
__ Que gritos são e-esses? -- perguntei assustado.
__ Gritos? Que gritos? Eu não estou ouvindo nada. Ah,
deixe eu te avisar algo: Aqui dentro quem diz que ouve
coisas que não deve ouvir é submetido a tratamento de
choque. Você nem queira saber o que acontece com quem
segue este tratamento.
Ela me olhou com mais firmeza e indagou-me sutilmente:
__ Você ainda está ouvindo gritos, amorzinho?
__ Na-não. E-está um si-silêncio imenso por a-aqui.
__ Que bom! Continue assim e tudo vai dar certinho pra
você, louquinho da titia Lalá. Agora, pro banheiro.
gutole@bol.com.br 170 http://lergratis.cjb.net
O banheiro era um imenso aposento com uns vinte
chuveiros. Curioso mesmo é que haviam três caras
algemados por trás sendo banhados por três esculturais
enfermeiras; todos, nus.
Danila, a mulher que estava comigo, começou a tirar
minha roupa. Sua destreza era de espantar: em dez
segundos estava completamente pelado. O bom aconteceu
logo em seguida. Segurando seu avental pela extremidade
inferior, em três segundos tirou a roupa, deixando-me
petrificado diante de sua nudez digna de quadro.
__ Louquinho querido, vamos tomar banhinho agora. Só
um lembrete: a titia Lalá não vai te algemar porque eu confio
muito em meu chute certeiro. Por isso, nada de deixar o
sabonete cair e me pedir pra pegar, estamos combinados?
Naquela hora eu queria mesmo era tomar banho por
umas três horas seguidas, tamanha minha excitação. Mas ...
um leve probleminha aconteceu.
__ Danila, emergência -- disse um negrão gordão que
entrou no banheiro de repente. __ O Doutor Dercinho
mandou você ir imediatamente até a sala de cirurgias.
__ Tudo bem, Janjão. Mas dá pra você fazer um
favorzinho pra mim? Dá um banhinho bem demorado nesse
paciente aqui, tá certo? E não precisa ter pressa, viu?
Mais um pouco e meu queixo bateria no piso do
banheiro. Meus olhos tremeram quando viram Danila se
vestir e sair do lavatório. Meu coração parou quando o
negro tirou sua roupa e veio em minha direção.
__ O que vai ser, gente fina? -- indagou-me Janjão com
sua voz rouca. __ Serviço completo ou lavagem geral?
Só me lembro de ter me inclinado para frente e
estatelado a testa no piso molhado do banheiro. Depois, vi
tudo preto -- bem menos do que podia ter visto, felizmente.
Recobrei os sentidos em um local com intenso odor de
formol e éter. Ao virar a cabeça para os lados senti um
latejar infernal em minhas têmporas. Levei a mão até a testa
e percebi que havia um enorme galo logo acima do nariz. E
como doía!
gutole@bol.com.br 171 http://lergratis.cjb.net
__ Pelos anéis de saturno! -- exclamou uma voz feminina
próxima a mim. Com uma baita dor de cabeça olhei de lado
e notei que havia uma cama não muito distante da minha.
Nela, uma moça sorrindo pra mim.
__ O que fo-foi? -- indaguei.
A jovem virou-se para mim e ergueu os dois braços para
cima. De repente eles começaram a tremer fazendo com
que suas pulseiras emitissem um terrível som agudo quase
explodindo minha cabeça.
__ Eu sei quem tu és. Sei de onde vieste e para onde
haveis de ir.
O estranho anúncio da jovem foi proclamado ao mesmo
tempo em que seus braços, ainda trêmulos, foram baixados
e pousaram esticados em suas pernas cruzadas. Sua
postura era semelhante a de um guru ou líder espiritual das
massas perdidas. Por esta razão, identifiquei-me logo com
ele.
__ Resta-me venerar-te, ó pioneira dos caminhos ocultos.
Embora fosse sorridente e falasse coisas semelhantes
àquelas que meus guias pronunciavam, achei-a meio doida.
Teria sido mera impressão?
__ Helena Blavatski, eu, Maga Márcia Taia, vos saúdo
nesta forma inferior que aprouveste assumir para me visitar.
Não entendi nada. Minha testa ainda doía, mas aquilo
que a jovem me dizia era tão diferente, que me cativou.
Após reverenciar-me dobrando o tronco por cinco vezes,
a sorridente jovem de tranças pretas me encarou
jovialmente e tornou a falar suas encantadoras e
incompreensíveis palavras. Parecia até uma Mentecapta.
__ Desceste da Dimensão Energética da Luz para
atender meus clamores. Obrigada, mil vezes obrigada,
minha mãe e mestra.
__ De-desculpa, moça. Si-sinto desapontá-la, mas me-
meu nome é Sa-saulo Lebre.
Minha intenção não surtiu efeito. A jovem Maga Márcia
Taia continuou eufórica, reverenciando-me como outrora.

gutole@bol.com.br 172 http://lergratis.cjb.net


Até então, contudo, tudo estava bem. De repente, outras
pessoas que encontravam-se nos leitos daquela enfermaria
puseram-se a gritar, saltar da cama e pular, uivar e um até a
babar verde.
__ Fechem suas matracas, seus doidos varridos. O
Ministro da Saúde está visitando o nosocômio e eu não
quero saber de barulho por aqui. Senão, vocês já sabem:
tratamento de choque.
Todos se calaram ao ouvir as advertências de Lalá que
havia entrado furiosamente na enfermaria ao escutar a
baderna que tomara conta do lugar.
Momentos depois entraram dois médicos e um senhor de
terno de linho. Deduzi certeiro que o homem bem vestido
era o tal do Ministro da Saúde que a enfermeira Lalá
anunciara instantes antes.
__ Que coisa, Doutor Dercinho -- exclamou o ministro
fumando um malcheiroso charuto. __ Quantos potenciais
eleitores estão confinados em seu hospital. Que ato de anti-
cidadania é esta, doutor?
O médico era loiro e sua fisionomia era patética. Se não
fosse pela roupa, qualquer um poderia confundi-lo com um
maluco do hospício.
__ Sabe o que é, seu Ministro? A verdade é que não
posso fazer nada. Nada mesmo. Ora é a polícia que chega
de camburão e despeja meia dúzia. Ora é a família que vem
se justificando que não dá mais e joga outros tantos. Que
eu posso fazer, hein?
O Ministro da Saúde deu algumas tragadas em seu
charuto e, sem titubear, respondeu:
__ Liberdade. Vamos mandar embora todos os casos
que não são crônicos. Antes, é claro, seus pacientes
precisarão assinar um contratinho simples, comprometendo-
se a votar, junto com a família, em mim. O senhor concorda
ou concorda, Doutor Dercinho?
__ Concordo -- respondeu o médico sonsamente.
__ Pois bem, vamos analisar estes casos aqui. Depois
vamos dar uma olhadela por aí e vamos mandar os loucos
gutole@bol.com.br 173 http://lergratis.cjb.net
pra casa. E pras urnas também, é claro. Aliás, doutor, o que
seria da democracia se não fossem os doidos?
O outro médico deu a pasta que trazia consigo para o
Ministro. Este, tragou seu charuto outra vez, abriu a pasta, e
começou a caminhar pela enfermaria.
__ Vejamos este aqui -- falou o Ministro, parando em
frente ao leito de um interno. __ Cleptomaníaco; condenado
onze vezes por estelionato; sonegador compulsivo. Ora,
Doutor Dercinho. Este homem é normal. Deveria era estar
trabalhando no meu partido, em Brasília. Vamos liberá-lo
imediatamente.
Era justamente o doido que babava verde. Deu um salto
acrobático da cama, abraçou o Ministro e saiu da
enfermaria carregando a carteira do político.
__ Eh, eh. Este é dos bons. Vai ter futuro certo na
capital.
Assim, um a um, o Ministro da Saúde foi analisando os
casos dos pacientes e os foi liberando.
Chegou, então, a vez da minha vizinha de leito, a Maga
Márcia Taia.
__ Honra vos dedico, patrona-mor do Ocultismo. Bem-
iluminada Helena Blavatski, ouviste meus clamores e vieste
até mim, sua humilde serviçal. Dize o que queres de mim, e
hei de cumprir sua elevada vontade, rainha dos espíritos da
Dimensão da Luz.
Voltada para o Ministro, a jovem maga, toda sorridente e
cândida, repetiu os mesmos gestos de reverência que antes
havia dirigido a mim.
Levando um lenço grená até os olhos, o Ministro
enxugou as lágrimas que deslizavam pela sua face. Depois,
mais contido, disse:
__ Como é que o senhor pode manter uma criatura tão
linda, tão comunicativa, tão educada, neste nosocômio,
doutor? E ainda mais: ela é uma mística. O lugar dela é nas
ruas, junto do povo. Meu povo precisa de alguém assim.

gutole@bol.com.br 174 http://lergratis.cjb.net


O político beijou a jovem, deu-lhe discretamente um
santinho, e determinou ao Doutor Dercinho que ela fosse
colocada em liberdade.
Enfim, chegara minha vez.
__ Deixe-me ver o prontuário deste último paciente.
Saulo Lebre, vinte e seis anos, está aqui a menos de vinte e
quatro horas. Foi internado porque tentou esgoelar um
pastor qualquer . Se diz peregrino da ... Ordem dos
Mentecaptos! O quê? Doutor Dercinho, o senhor atina o
tamanho do erro que está cometendo ao manter um
Mentecapto no hospício?
__ Bem ... o senhor sabe, não é? Os federais chegaram,
deixaram ele aí e se mandaram. O que eu podia fazer mais?
__ É do seu conhecimento que recebi uma gorda
colaboração financeira dos Mentecaptos na última eleição?
Se não sabe é hora de ficar sabendo. E soltem o mais
rápido possível este eleitor.
O Ministro não me abraçou nem tampouco estendeu-me
a mão. Em compensação deu uma tragada no charuto e
soltou a fumaça em minha direção. Como Mentecapto -- ou
quase --, entendi o gesto como prova de sua firmeza e
inteligência.
Minutos depois, roupa no corpo e mochila nas costas,
estava na rua.
E agora, para onde iria?

CAPÍTULO XXIV
UM GUIA ROQUEIRO

Mais uma vez, caminhava sozinho, sem a companhia


agradável dos Guias da Sagrada Ordem dos Mentecaptos.
Parei numa pequena praça, sentei num banco de madeira

gutole@bol.com.br 175 http://lergratis.cjb.net


debaixo da sombra de uma árvore, peguei meu caderno de
anotações e comecei a anotar tudo o que eu lembrava dos
acontecimentos que ocorreram em minha peregrinação,
desde minha partida até aquele momento.
Nas primeiras folhas narrei o episódio de como eu entrei
para a Ordem. O encontro com o Mentor na Mina da Colônia
Monte Belo, o aparecimento do Mensageiro da Libertação
na forma de Gorila, o porquê de minha peregrinação com
destino a São Tomé das Letras; enfatizei os exercícios que
aprendi com os meus Guias, o que, certamente, seria uma
contribuição para o bem da humanidade.
Sentia-me um pouco zonzo de tanto pensar e escrever.
Olhei para o relógio e já passavam das cinco da tarde. O
céu estava coberto por enormes nuvens cinzentas. Meu
caderno ainda continha seis folhas, e foi o suficiente para
narrar a minha passagem pelo Nosocômio de São Bento.
Terminei minha narrativa com a seguinte frase: “... então
corri para debaixo da sombra de uma árvore da praça
principal de São Bento e passei a redigir tudo o que havia
acontecido comigo até aquele ponto de minha
peregrinação”. Só não escrevi mais, porque restava-me
somente dez linhas em branco da última folha do meu
caderno, que passei a chamá-lo de meu diário -- Diário de
um Gago.
No momento em que guardei o Diário na mochila, um
sujeito estranho, com apenas uma mecha de cabelo
colorido que cortava a cabeça transversalmente, usando
brincos no nariz, com várias tatuagens nas pernas, braços e
rosto, aproximou-se de mim e indagou-me:
__ Você é um poeta?
__ Po-poeta? Nã-não. Eu so-sou um pe-peregrino da O-
ordem -- respondi, segurando para não rir daquela figura
singular e estranha.
__ Muito prazer, legal. Meu nome é Xexéu. Tu deves ser
o tal do Saulo Lebre.
__ Sim. So-sou eu me-mesmo.

gutole@bol.com.br 176 http://lergratis.cjb.net


O sujeito sentou no banco, e estendendo o seu braço
tatuado sobre o meu ombro, disse:
__ És tu mesmo que estou procurando, Legal. Sou seu
novo Guia e faço parte de um grupo de rock da cidade. Eu
tenho um exercício porreta pra te ensinar. Garanto que você
vai gamar. Sentiu, Legal?
Que Guia mais maluco! Ele dizia umas coisas difíceis de
compreender. A todo tempo fazia gestos com as mãos,
como se elas fossem sua própria boca. Que maneira
estranha de se comunicar! E as tatuagens, então? Era uma
mais horrenda do que a outra. No braço esquerdo havia a
figura de um bicho estanho todo esquartejado,
ensangüentado; no direito, um leão devorando um elefante,
e assim sucessivamente.
__ Co-como é se-seu no-nome mesmo? -- inquiri meio
confuso, depois de permanecer horas e horas escrevendo.
__ Xexéu, legal. Como já lhe disse, sou cantor de um
grupo de rock. Tô meio disfarçado, senão as mina me ataca,
sacô? -- salientou o Guia, com aquele bafo horrível
atingindo o meu nariz.
__ Pa-parece que eu ouvi vo-você falar em e-exercício?
__ É isso aí, Saulo Lebre. Mas isso você aprenderá logo
mais à noite, em frente à nova boate da cidade que será
inaugurada após o show apresentado pela minha banda .
Certo, legal?
__ Ce-certo, legal -- assenti, apertando fortemente as
mãos tatuadas do meu Guia.
Xexéu tinha uma aparência muito estranha, mas no
fundo ele parecia ser uma boa pessoa, dessas que dos
mais simples gestos, roubam um sorriso de nosso
semblante flácido e cansado. Ele me fazia lembrar do Arieto,
um Guia cujos ensinamentos e exemplo de vida vou levar
comigo para o resto de minha vida.
Próximo a completar duas semanas, não contive a
curiosidade e questionei o meu Guia:

gutole@bol.com.br 177 http://lergratis.cjb.net


__ Xe-Xexéu, falta mu-muito para che-chegarmos em Sã-
São Tomé das Le-Letras? Estou mu-muito ansioso para me
re-reencontrar com o Me-Mentor.
__ Mentor? Ah, sim! Aquele bicho malandro do pa ...
quero dizer, o iluminado Mestre da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos. Não falta muito; mais alguns dias de
caminhada, creio que você chegará a tempo de cumprir com
o seu destino, legal -- assegurou-me Xexéu, com aquele
seu jeito confuso de se comunicar.
__ Sa-sabe, eu já co-consegui encontrar a Esfinge Do-
dourada. Ma-mas no mo-momento não e-estou com e-ela.
Tivemos alguns pro-problemas na Ca-casa da Luz Ve-
vermelha, e o Lindoro está co-com a Bo-borboleta e com o
me-meu me-medalhão. Ele me pro-prometeu devolvê-los
ma-mais adiante.
__ Ah, sim. A borboleta de plástico ... quero dizer prata ...
não! dourada. Pode ficar tranqüilo que ela está em boas
mãos -- garantiu Xexéu. __ Mudando de assunto, legal, eu
tenho uma outra coisa para te falar.
Xexéu continuava a pronunciar coisas estranhas, sem o
menor sentido. Por minha vez, eu mantinha uma série de
dúvidas em minha dolorida cabeça: Como será que eram
escolhidos os Guias da Ordem? Seria através de um ritual,
assim como me tornei peregrino e Cavaleiro Iluminado?
Aproveitei a presença do Guia e questionei-o a respeito de
minha dúvidas.
O Guia, surpreso por minhas indagações, redargüiu:
__ Pô, Saulo Lebre. Essas coisas eu não estou
autorizado a dizer. Na Ordem existe um regulamento a ser
seguido. Se não estou enganado, legal, no parágrafo cinco,
inciso terceiro, do capítulo que se refere aos Deveres dos
Membros da Ordem, está escrito que não é permitido em
hipótese alguma comentar a respeito dos segredos da
Sagrada Ordem dos Mentecaptos sem a autorização do
Mestre Supremo.
Fiquei estarrecido com a resposta do meu Guia. Ele
deveria estar enganado. Com certeza, Xexéu deveria estar
gutole@bol.com.br 178 http://lergratis.cjb.net
com o salário atrasado, pois isto deixa qualquer pessoa de
mal-humor e desorientada.
__ Os Gui-guias recebem sa-salário? -- inquiri, num ar
de dúvida.
__ Não é bem um salário. Esse tipo de informação não
estou autorizado a dizer. Mas, já que você insiste, o que eu
posso falar é que somos uma espécie de voluntários
gratificados. Eu, por exemplo, trabalho como Guia, e a
Ordem, num gesto de generosidade, mantém a minha
banda, que é a minha vida. Sacou, legal?
__ Sa-saquei -- respondi, tentando me adaptar ao seu
linguajar.
O Guia permaneceu indiferente. Abriu uma pequena
bolsa e pegou uma agenda. Consultou-a rapidamente e
falou-me:
__ Você é uma pessoa que me impressiona, Saulo
Lebre. Poucos peregrinos chegaram tão longe como você
chegou. Só pra você ter uma idéia, mais de setenta por
cento dos idio..., digo, dos peregrinos, não completaram a
metade do caminho iluminado de São Tomé das Letras; e
somente um por cento concluiu sua caminhada. Você é
dotado de uma personalidade forte, impenetrável. Pelo jeito
você deve ser muito importante, além de estar dando um
gasto danado pra Ordem ...
__ Ga-gasto? -- interrompi, apreensivo.
Depois de uma breve pausa, Xexéu prosseguiu.
__ Sim, legal. Gasto de sabedoria. Somente os bons
peregrinos consomem o máximo de sabedoria dos Guias da
Sagrada Ordem dos Mentecaptos. Você está provando que
é um autêntico Cavaleiro Iluminado.
Aquelas palavras dóceis me conduziram ao orgasmo
emocional. Derreti-me todo de orgulho de mim mesmo. Era
lindo demais ser tão lisonjeado pelo meu Guia. Aquilo me
dava ânimo para prosseguir em minha peregrinação. Os
meus olhos refletiam um peculiar brilho de felicidade.
__ É por isso que estou aqui bem ao lado de uma pessoa
sábia como você. A Ordem, em nome do Albertinus, está
gutole@bol.com.br 179 http://lergratis.cjb.net
muito triste com seus atos, Saulo Lebre. Eu preciso que
você me diga o código da terceira porta do seu cofre --
pediu Xexéu, meigamente.
__ O A-Albertinus? Co-como ele está pa-passando? O
Arieto fa-falou que ele fo-foi mordido por ca-cachorros --
indaguei, apreensivo.
__ Ele já está passando bem, em compensação o seu
cachorro ...
__ O que te-tem o me-meu Totó? -- interrompi,
preocupado.
__ Tá uma belezinha de cãozinho, legal! Mas, voltando
ao assunto do cofre, eu recebi um recado do Albertinus a
noite passada. Ele me pediu para perguntar a você onde
está o código da terceira porta do seu cofre.
__ Ah! meu De-deus, o A-Albertino deve estar pro-
procurando a conta do te-telefone; e com ce-certeza, e-ele
deve estar pe-pensando que a co-conta está dentro do co-
cofre -- presumi, estarrecido. __ Co-coitadinho! No co-cofre
eu gua-guardo minhas economias, alguns ca-cartões de
crédito e um pa-pacote que o me-meu patrão, o
administrador da colônia onde mo-moro, pediu-me pa-para
eu guardar até ele vo-voltar das su-suas longas fé-férias.
__ Não importa o interesse do Albertinus em abrir o seu
cofre. Eu já lhe avisei que uma ordem nunca deverá ser
questionada, sacô, legal -- replicou Xexéu, secamente.
__ Tu-tudo, be-bem. Não ve-vejo mal a-algum em re-
revelar o se-segredo do meu co-cofre para o A-Albertinus.
A-anota aí.
Ligeiro feito um Leopardo, o Guia abriu a sua agenda e
anotou o código do cofre.
__ No-nove à direita, ze-zero à esquerda, ci-cinco à di-
direita, o-oito à esquerda, ze-zero à direita, do-dois à e-
esquerda e trê-três à di-direita. A-anotou?
__ É isso, Legal. Venha comigo -- ordenou Xexéu.
__ Pa-para onde?
__ Para o local onde minha banda vai se apresentar logo
mais à noite.
gutole@bol.com.br 180 http://lergratis.cjb.net
Segui meu Guia até o seu carro, um Fusca 69,
totalmente borrado de tinta. Parecia mais um carro
carnavalesco, desses usados por foliões. Xexéu entrou no
carro, fechou a porta, abriu a janela e disse:
__ Legal, vou te ensinar o exercício que lhe prometi. Vai
ser teta! O meu carro acabou a gasolina, e você vai
empurrá-lo para mim até o posto do Celso, que é logo ali,
virando a esquina. Certo, Saulo Lebre?
__ Ce-certo -- respondi, empolgado.
__ Garanto que esse exercício vai fazer você perder uns
quilinhos, legal. Vamos, logo. Empurre.
Xexéu colocou uma fita cassete de rock no teipe do carro
e aumentou o volume no último.
Para minha sorte, a rua era plana e o asfalto bem liso.
Não tive muitas dificuldades em empurrar o Fusca. Depois
de empurrá-lo por mais de cinco quarteirões, chegamos ao
posto do Celso. Uma moça, usando uma mini-blusa e um
mini-short, aproximando-se da janela do carro segurando
uma mangueira na mão, indagou ao Xexéu:
__ Gasolina?
__ É lógico, Margarida. Você não tá reconhecendo o seu
Xexeuzinho?
__ É você, seu maldito? Fora daqui! -- berrou a moça,
afastando-se do carro. __ Seu caloteiro duma figa; vou
chamar o Pedrão ...
__ Mão na massa, Legal. Empurra logo o bagulho que o
bicho pegô -- ordenou-me o Guia, inquieto.
A moça seguiu em direção à administração do posto.
Reuni todas as minhas forças e empurrei o Fusca para
bem longe dali.
__ Para onde vamos, Xexéu? -- indaguei ao Guia, parado
numa bifurcação.
__ Legal, à direita. Mais dois quarteirões e a gente chega
no local do show. Se apresse, porque parece que as nuvens
vão despencar.
Olhei para o alto e alguns pingos d’água caíram em meus
olhos. Apressei-me em empurrar o Fusca; e a chuva veio
gutole@bol.com.br 181 http://lergratis.cjb.net
forte e gelada. A minha sorte era que o vento estava a meu
favor, e soprava na direção em que eu conduzia o veículo
do meu Guia.
Mais três quarteirões e chegamos ao local do show.
Corremos para debaixo do palco, onde havia camarins,
uma montanha de fios e equipamentos. Os integrantes da
banda realizavam um ensaio improvisado, ensurdecedor.
__ Galera, cheguei! -- berrou Xexéu, indo abraçar e
apertar as mãos de seus amigos de banda.
A troca de energia, a vibração energética que partilharam
entre si, era algo de se admirar e invejar. Todos se
cumprimentaram numa euforia incomum.
__ Quem é esse sujeito que mais parece um pinto
molhado? -- inquiriu uma mulher de trajes extravagantes.
__ É um peregrino, Tetéia -- esclareceu Xexéu.
A mulher me fitou por inteiro, abriu um sorriso e disse ao
Guia:
__ Eu acho que ela vai quebrar um galhão pra gente
essa noite. O Venâncio, nosso baterista, foi em cana, e esse
peregrino daria um excelente baterista. Que você acha da
idéia, Xexeuzinho?
__ Melhor impossível, Tetéia -- concordou o Guia.
__ Ma-mas eu nu-nunca to-toquei numa ba-bateria! --
exclamei, trêmulo.
__ Isso não faz diferença, legal. Rock é isso aí: energia.
Sacou? -- argumentou Xexéu, batendo as mãos em minhas
costas. __ Pode ficar tranqüilo, a Tetéia vai dar uma geral
em você. Amor, leve ele para o camarim e faça o serviço.
__ É pra já, meu Xexeuzinho.
__ Mas ... -- murmurei.
__ Nem mais nem menos. Venha comigo, peregrino.
Aliás, qual é o seu nome? -- indagou-me a mulher.
__ Sa-Saulo Lebre -- respondi, acompanhado Tetéia até
o camarim.
Sentei numa poltrona rasgada e me acomodei naquele
cubículo cercado por cortinas. Havia uma prateleira repleta

gutole@bol.com.br 182 http://lergratis.cjb.net


de tintas, agulhas e uma grande variedade de crânio
humano modelados em gesso.
__ Não temos tempo a perder, Saulo Lebre. Que figura
você prefere para tatuar? Todo peregrino pede para tatuar a
Esfinge Dourada. Particularmente, eu acho a borboleta
muito bonita -- sugeriu a mulher.
__ Ta-tatuagem? Eu a-acho feio, e isso de-deve doer
mu-muito -- resmunguei, surpreso.
__ Você não sabe o que está perdendo. É uma
oportunidade única de você ter em seu corpo a energia mais
etérea do cosmo. A Esfinge Dourada representa a vibração
mais perfeita do universo. Ela lhe trará muita sorte em sua
vida. Acredite, Saulo -- argumentou Tetéia, segurando em
suas mãos algumas agulhas.
Já que era para o meu bem, aceitei em fazer a tatuagem.
__ Em que parte do seu corpo devo tatuar? -- quis saber
Tetéia, quase caindo por cima de mim.
__ Na ma-mão -- pedi.
__ Acho que não vai ficar bem. A mão é uma coisa suja,
cheia de bactéria. Eu acho que ficaria melhor abaixo do
umbiguinho. Que tal? Pode ir abrindo a braguilha da calça.
Ah! Devo lembrá-lo que você não tem outra escolha. Outro
lugar, não faço! Certo, Saulo?
Não havia como discordar de Tetéia. Concordei com ela
e, depois de duas horas e meia, a tatuagem estava pronta.
Tetéia havia feito um trabalho excepcional. As mãos
delas eram mágicas e a Esfinge Dourada parecia uma
verdadeira obra-prima da natureza. Levantei-me da poltrona
e parei diante de um enorme espelho. Fiquei a admirar a
borboleta como se fosse um presente divino.
Naquele momento, Xexéu entrou no camarim e avisou:
__ Vamos nessa, legal. A rua tá abarrotada de gente; o
show vai começar.

gutole@bol.com.br 183 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XXV
VERDADE OU MENTIRAS

Em meus vinte e seis anos de então eu já havia feito


muita coisa na vida, mas ser baterista de uma banda de
rock era algo inédito. Aliás, nunca tive nenhum talento
musical, e isto descobri bem cedo, quando engoli um apito
que ganhei de meu pai. Por sinal o raio do apito até hoje
está em minha barriga, já que não saiu por onde deveria
sair. Quando sinto fome, por exemplo, minha barriga não
ronca, apita. E a desgraça da dor de barriga, então? É só
dar uma dorzinha que o apito mais parece uma chaminé.
Atormentado por minhas más sucedidas experiências
musicais, fiquei tomado de uma dúvida cruel: ou seria fiel à
Ordem e obedeceria cegamente meu Guia como todo
iniciado ou me deixava vencer pelo trauma de infância.
Fechei lentamente a braguilha, demorando meu olhar na
tatuagem feita por Tetéia. Ora, a Esfinge Dourada era um
símbolo que iria me acompanhar para o resto de minha
vida, tivesse eu êxito ou não em minha missão. A borboleta
inspirou-me fazendo irromper uma misteriosa energia de
meu interior místico. Troquei rapidamente de camisa,

gutole@bol.com.br 184 http://lergratis.cjb.net


vestindo uma camiseta preta com uma pirâmide branca
desenhada no lado do coração, respirei fundo e segui meus
companheiros à nova empreita.
Juro que nunca vi tanto mineiro num lugar só. Caso
alguém jogasse um queijo rolando no meio da multidão seria
uma loucura geral.
Loucura mesmo, porém, foi quando me assentei atrás de
uma parafernália de tambores e outros instrumentos
completamente estranhos para mim. Parecendo um iniciado
em transe, fiquei de boca aberta, olhos e membros
paralisados. Um verdadeiro alienado.
__ Toma aqui, legal. Segura as batutas e dá o maior
som.
Trêmulo, tomei dois pedaços de madeira das mãos de
Xexéu. Guaguejando mais que de costume perguntei-lhe o
que deveria fazer.
__ Se importa, não, cara. Qualquer barulhinho é festa pra
moçadinha de hoje. Capricha, peregrino.
Xexéu dirigiu-se até o centro do palco, fez meia dúzia de
gestos obscenos para o público e começou a detonar sua
guitarra. Os demais membros da banda seguiram seu líder,
cheios de energia.
__ Vai, Saulo -- exclamou Tetéia ao meu lado,
arrebentando no teclado supersônico. __ Toca esta bateria
duma vez.
Sem o menor sincronismo, comecei a agitar a bateria.
Mas batia tão sem força que o público começou a vaiar.
__ Tira esse mariquinha da bateria -- gritou um rapaz de
olhos vermelhos quase subindo no palco de tanta raiva.
__ Queremos som. Mais barulho, seu panaca -- advertiu
outro sujeito dentre a multidão que se acotovelava próxima
ao palco.
Levantei meus olhos e confirmei a origem de minha
dúvida. O homem que me chamara de panaca era o Pastor
Willian, de roupas civis e abraçado a duas loiríssimas que
trajavam camisas escuras de mangas compridas abotoadas

gutole@bol.com.br 185 http://lergratis.cjb.net


até o pescoço. Estranho era que estavam sem calças, isto
é, apenas usavam um finíssimo fio dental.
Aquilo foi a gota d’água. Num acesso de fúria incontida,
imaginei a cara cínica do pastor rindo para mim em cada
instrumento que estava a minha frente. E comecei a bater ...
A força de minha batida teve duplo efeito: primeiro, a
moçada vibrou totalmente alucinada com o som infernal que
eu estava provocando; segundo, em poucos minutos
arrebentei com todos os instrumentos da bateria. A multidão
foi ao delírio.
Não sei bem como, mas as milhares de pessoas que se
encontravam por lá começaram a destruir tudo o que viam
pela frente. Era como se eu tivesse transferido minha raiva
para aqueles jovens receptíveis. Será mesmo?
Bancos da praça, árvores, lojas, bares, tudo estava
sendo literalmente destruído pelo povo.
__ De-desculpa. Na-não foi mi-minha intenção --
justifiquei-me perante o olhar reprovador dos integrantes da
banda.
__ Isto vai pegar mal pra caramba pra gente -- disse o
baixista.
__ Ninguém mais vai querer nos contratar -- queixou-se
Tetéia voltada para seu amor.
Naquele momento insano, algo inexplicável aconteceu.
Xexéu jogou sua guitarra no chão, enfiou e tirou o dedo do
nariz, parando a pouco centímetros de mim.
__ Quer saber de uma coisa, seu coisa? Suma de minha
frente antes que eu acabe com sua raça.
__ Xe-Xexéu! Não-não me fa-fala tal coisa. Vo-você é um
Guia da O-ordem.
__ Que Ordem que nada. Se manca, cara. A Ordem é
um bando de gente que só se interessa por dinheiro,
sacou? Nós nos aproveitamos da ingenuidade dos
inteligentes e das carências dos ignorantes só pra gente
lucrar em cima, cara.
__ Oh, que sa-sacrilégio! -- pasmei ante tamanho ato de
desrespeito proferido pelo Guia.
gutole@bol.com.br 186 http://lergratis.cjb.net
__ A gente só te tolerou até agora, Saulo Lebre, porque
nós tínhamos interesse por baixo do pano. E te digo mais ...
Felizmente a Energia Absoluta, Suprema condutora da
Natureza, mãe de todos, desabou-se em lágrimas de gelo
advindas do céu. A tempestade, conduzida por ventos
velocíssimos, derrubou as caixas de som e estremeceu o
palco.
Aproveitando a ocasião, corri para bem longe daquele
falso profeta que quis me afastar do reto caminho que só as
sociedades místicas podem indicar à humanidade.
Abriguei-me em uma espécie de cocheira, onde dois
cavalos velhos e um burrico desdentado se comprimiam
assustados.
Sentei no feno, próximo do burro. Graças a um oportuno
bloqueio mental, não conseguia mais pensar nas insolentes
palavras de Xexéu, o joio da Ordem; o Judas dos místicos.
__ Não pensar agora pode te trazer graves problemas
adiante, Saulo.
Levantei de supetão. De onde viera aquela voz
estranha?
O burrico desdentado foi até mim. Percebi, então: era o
Mensageiro da Libertação.
__ Já te di-disse que não que-quero mais te ve-ver --
ameacei o burro.
__ Você está certo, Saulo. É duro admitir isto, mas você
está coberto de razão. Não é necessário que nos
encontremos mais. Aliás, já deve ter notado que há um bom
tempo eu não mais apareço para você.
A provação que o Destino me reservara para aquele dia
era algo digno de heroísmo. Não me deixar abalar pela
infâmia do herético Guia e não sucumbir ante às
insinuações do Mensageiro exigiram o máximo de minha
crença. Se os ideais da Ordem não estivessem fortemente
inculcados em mim, certamente não resistiria.
__ Estava até com saudades, Saulo -- continuou o burro
com um ar de certo deboche. __ Infelizmente fui seriamente
castigado por meu chefe. Ele acha que estou ficando bom,
gutole@bol.com.br 187 http://lergratis.cjb.net
dá pra acreditar? Também, que mais podia eu ter feito
senão te salvar das enrascadas em que se meteu? Ora, pra
te atrapalhar eu precisava te ajudar pra depois te atrapalhar,
entendeu?
Que bicho burro. Não falava coisa com coisa. Se não
fosse a tempestade que desabava violentamente lá fora,
certamente já teria dado às costas ao Mensageiro e me
afastado dali.
__ Quer saber de uma coisa, Saulo? Mesmo depois do
castigo a que fui submetido, guardo comigo uma emoção
estranha, diferente de tudo o que já senti. Será isto
bondade?
Que palavras mais idiotas. Até o Xexéu sabia pronunciar
coisas mais convincentes. Quer dizer ... até momentos
atrás.
__ E é tão bom ser bom. É tão gostoso este bem-estar
íntimo que nada -- nem mesmo meu castigo -- pode apagar.
É incrível não ter de se preocupar em ter poder; em
manipular pessoas para que façam aquilo que atenda aos
meus ideais particulares; em ser simples. Como é
maravilhoso ser simples, Saulo.
O burro estava maluco. Só mesmo um demônio para
dizer tais asneiras. Eu é que não aceitaria um tipo de vida
sem poder nem reconhecimento. Imagine então em ser
simples? Ora, o saber oculto da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos era por demais profundo e complexo para
admitir a insanidade da simplicidade. Que burro mais burro!
__ Você já pensou, Saulo, em ter paz no coração? Uma
paz e equilíbrio tão intimamente reais que você nem
precisaria sair por aí, buscando em diferentes e estranhos
caminhos, o que está tão próximo de ti? Olhe ao seu redor,
Saulo, com serenidade, sem complexos e preconceitos, e
encontrará a Verdade que tanto buscas.
Verdade? Ora, verdade era uma só, aquela revelada pelo
Ocultismo e Esoterismo, sob diversos prismas, é claro. Se
houvesse mesmo esta Verdade que o Mensageiro da

gutole@bol.com.br 188 http://lergratis.cjb.net


Libertação me anunciava, significaria que meus caminhos
eram enganosos. Não. Isto eu jamais admitiria.
__ É uma pena, Saulo, que és tão influenciável pelos
modismos de sua época, e nem se dá conta disto. A
bondade que agora sinto me faz ficar perplexo diante de
sua insistência em trilhar continuamente caminhos errados
em sua vida. Eu também errei. Creio que um dia você irá
acordar para a vida e se libertará desse sonho imbecil de
curar sua gagueira de uma maneira tão medíocre e ínfima ...
__ Ca-cala a boca -- explodi raivoso e indignado. __ De
u-uma vez por to-todas, su-suma da mi-minha frente.
__ Acaso tens medo do conflito que pode emergir em tua
mente, Saulo. Temes o amadurecimento?
__ Ca-calado. Su-suma. Vá pró i-inferno.
O burro se afastou de mim e dirigiu-se tranqüilamente até
a entrada da cocheira. Continuava a chover intensamente.
Ele ficou olhando a chuva por algum tempo, depois virou a
cabeça em minha direção, e pronunciou sua últimas
palavras:
__ Irônico, Saulo, não achas? Será que o burro vai ou
fica? Deixe pra lá. Algo me diz fundo no coração que
havemos de nos encontrar uma última vez. Que assim seja,
Saulo. Até breve.
O Mensageiro deixou a cocheira e sumiu de vista. De
tudo o que me disse só ficou aquele estranho vaticínio de
que haveríamos de nos ver uma vez mais.
Quando a chuva enfraqueceu, montei em um dos cavalos
e saí de fininho da cidade. Sei que o animal não me
pertencia, mas como me ensinaram na Ordem, quando eu
precisasse de algo que não fosse meu, em nome dos
Mentecaptos, poderia tomá-lo emprestado, já que era um
Iluminado, uma pessoa especial.
Em poucas horas já estava a meio caminho de meu
próximo destino: Três Corações.

gutole@bol.com.br 189 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XXVI
SEMPRE FIEL À ORDEM

Já estava amanhecendo, quando acabou a pilha da


minha lanterna. Eu caminhava pelo acostamento da vicinal
que interligava as cidades de São Bento Abade e Três
Corações. Mais uma madrugada em minha peregrinação
estava no fim. Sentia que o grande momento, a minha
chegada a São Tomé das Letras, estava próximo de
acontecer. Não via o momento de me reencontrar com o
Mentor, aquele Mestre Iluminado purificado pela Energia
Cosmo-Energética.
Contudo, o que mais me preocupava era o sumiço de
Lindoro, o qual havia prometido me entregar o Medalhão e
a Esfinge Dourada antes de eu chegar a São Tomé das
Letras. Bem que a tatuagem da Borboleta feita pela Tetéia
era energética e, talvez, poderia substituir a original. Mas
isto era uma preocupação boba, sonsa; eu sabia que no
momento certo, Lindoro iria aparecer trazendo aqueles
elementos energéticos, essenciais para a realização do
Ritual de Cura da minha gagueira.
Desde a minha saída de São Bento Abade, poucos
carros passaram pela vicinal. Quando eu percebia algum
veículo se aproximando, procurava me esconder atrás de
alguma moita de capim. Não estava a fim de carona. Queria
caminhar para aliviar minha mente dos pensamentos de
insulto à Sagrada Ordem dos Mentecaptos. Queria mesmo
esquecer, definitivamente, tudo que Xexéu e o Burro haviam

gutole@bol.com.br 190 http://lergratis.cjb.net


me dito com o intuito de denegrir a imagem e a austeridade
da Ordem.
Dez minutos de caminhada; avistei o sol se despontando
timidamente no horizonte. Um pouco mais à direita, estava a
cidade de Três Corações, coberta por uma fina camada de
neblina, naquele alvorecer refrescante.
Senti uma paz imensa invadir minha alma. Inspirei fundo
o ar puro da mata que margeava a vicinal. Extasiei-me com
o som da monumental orquestra formada por pássaros de
várias espécies. Bebi da água cristalina que gotejava de
uma nascente em pleno barranco.
Parecia que eu era uma daquelas pessoas que
contracenavam com o Dr. Ribero, numa de suas fitas de
relaxamento espiritual. A euforia tomou conta de mim.
Saltitante, caminhei de um lado para o outro, colhendo
flores silvestres nas margens da estrada. Passei, então, a
me equilibrar na faixa central de mão dupla da pista.
Imaginei-me um equilibrista caminhando sobre um estreito
parapeito do cume da torre Eifel. Realmente, eu me
encontrava em outro mundo, cheirando o aroma das flores
campestres, numa infinita paz.
De repente, ouvi o som forte de uma buzina. Olhei para
trás e pude ver um veículo vindo em minha direção em alta
velocidade. Incrível! Era o Fusca do Xexéu. Não deu tempo
para mais nada. Tentei correr para o acostamento. Pulei
e ...
Acordei com uma leve dor de cabeça. Eu estava deitado
numa cama alta, com travesseiro e lençol brancos. Ao lado
da cama, havia um pedestal, de onde descia uma fina
mangueira que vinha até o meu antebraço. Foi quando
percebi que aquilo era soro, e aquele lugar tratava-se de
uma sala de recuperação de algum hospital. Pelo menos,
dessa vez, eu não me encontrava amarrado.
À minha direita havia outra cama, onde uma pessoa
repousava vestida toda de branco. Pelo comprimento e
brilho do cabelo, parecia ser uma moça clara e bonita.

gutole@bol.com.br 191 http://lergratis.cjb.net


A sala era pequena, limpa, repleta de estranhos
aparelhos. À minha esquerda, havia uma porta, e ao lado
dela, uma imensa janela de vidro, que dava para ver o
movimento de pessoas pelo corredor. Às vezes algum
curioso parava diante da vidraça e ficava a olhar, por algum
instante, na direção da moça.
Sentia-me um pouco tonto, com o corpo mole, sem muita
vontade de levantar. Permaneci, então, deitado na cama.
Queria conversar com alguém para espantar a solidão
daquele quarto tão silencioso e monótono. Virei-me em
direção à moça e chamei:
__ E-ei, mo-moça. Vo-você tá me-me ouvindo? A-acorde
mo-moça. O seu so-soro tá a-acabando. Mo-moça, vo-você
não tá me e-escutando? Meu no-nome é Sa-Saulo Lebre.
So-sou um pe-peregrino da O-ordem dos Me-mentecaptos.
O que vo-você tá se-sentindo? Se vo-você quiser eu po-
posso te a-ajudar com uns e-exercícios que a-aprendi com
me-meus Guias. É uma be-beleza para cu-curar stress ...
__ Stress? -- interrompeu-me uma voz conhecida.
Olhei para o lado e vi o médico que havia socorrido a
Cledite em Carmo da Cachoeira.
__ Vo-você de no-novo aqui? -- inquiri, surpreso.
__ Dessa vez, Saulo, vamos ter uma conversa muito
séria. Você está indo longe demais, peregrino. Essa
borboleta tatuada em sua barriga é o emblema de uma das
gangues de maior periculosidade do Brasil. Até mesmo a
Interpol está atrás desses criminosos. Você corre sério risco
de vida. O pouco tempo que trabalhei como Guia para a
Ordem deixou-me marcado para toda a minha vida. Naquela
época eu era um jovem aventureiro, feito você. Meu nome
era Fernando Mosca e ainda fazia cursinho para prestar o
vestibular. Com o passar do tempo, minha euforia inicial foi
dando espaço à uma sensação estranha que nascia em
mim: a honestidade de consciência. Tudo porque tive a
coragem de perceber o quanto estava errado ao me
envolver com empreendimentos vis. Claro, ganhava rios de
dinheiro, mas minha ética pessoal começou a bater cada
gutole@bol.com.br 192 http://lergratis.cjb.net
vez mais forte em minha consciência. Quando pedi dispensa
da Ordem, comecei a ser perseguido, dia e noite. Eu corria
sério risco de vida. A única forma que encontrei para zelar
por minha vida, foi desaparecer do mapa com minha família
para um país distante. Lá mudei meu nome e me formei em
medicina. Agora estou de volta ao país, esperando uma
oportunidade para destruir esses malfeitores. Por isso,
preciso de sua ajuda.
__ Vo-você tá é ma-maluco! Pre-precisa se i-internar num
no-nosocômio -- exclamei incisivamente.
Minha vontade era saltar da cama e sumir de perto
daquele herege. Mas, como eu me sentia meio zonzo, mal
conseguia me levantar.
__ Calma, Saulo -- disse o médico. __ Eu só estou
querendo lhe ajudar. Se não fosse por mim, nesse momento
você estaria na prisão.
__ Pri-prisão? -- inquiri, espantado.
__ Sim. Eu lancei um boletim médico falso para o
delegado, dizendo que você tem que permanecer em
observação por mais dois dias. Quando você receber alta, o
seu destino será a cadeia.
__ Ca-cadeia? Ma-mas po-por quê? Eu não fiz nada de
e-errado -- gritei, injuriado.
__ Eu sei disso. Mas essa tatuagem em sua barriga
significa que você é um membro deles -- esclareceu o
médico.
__ De-deles quem?
__ A gangue, Saulo. Queira ou não, você está em
minhas mãos. Agora fique quieto e deixe eu falar o que
tenho a lhe dizer. Faça um leve esforço e me ouça. É para o
seu bem.
Não havia outra escolha. O jeito foi ouvir os argumentos
daquele médico ateu, enquanto eu idealizava um plano de
fuga.
__ Em primeiro lugar, se você me auxiliar, eu prometo
que o levo para um grande amigo meu fonoaudiólogo que
irá dar um jeito em sua gagueira.
gutole@bol.com.br 193 http://lergratis.cjb.net
__ Só a O-Ordem po-poderá me cu-curar. Já fu-fui em
vá-vários médicos, ma-mas nenhum te-teve a ca-
capacidade de me cu-curar -- repliquei.
__ Calma, Saulo. Você ainda não encontrou um médico
sério, que se empenhasse em descobrir uma forma de curar
sua gagueira. Como em toda profissão, existem os bons e
os maus profissionais. Confie em mim, esse meu colega
médico é excelente. Dou todas as garantias que você vai se
curar.
__ Tá bo-bom. Me en-engana que eu go-gosto. Mu-
mudando de a-assunto, quem é e-esta pe-pessoa que tá
de-deitado na ca-cama ao la-lado? -- indaguei, tentando
fugir daquele assunto indigesto.
O médico pegou uma confortável cadeira, sentou-se
próximo à minha cama e disse:
__ Pelo jeito nossa conversa vai ser longa demais ... É
uma moça. Pobrezinha, tem apenas quinze anos e está
correndo sérios riscos de vida. Ela tem problemas nos rins e
precisa de um transplante urgente. O quadro dela é muito
sério. Pra piorar ainda mais, ela foi adotada por uma família
que a abandonou nessa situação, porque se recusaram a
assumir os gastos do hospital.
__ Isso é mu-muito tri-triste. Eu ta-também fu-fui adotado.
Quando eu ti-tinha meus o-onze anos, fu-fugi de casa. Meu
pa-pai a-adotivo, o Zéca Boiadeiro, me ba-batia muito; e po-
por isso resolvi fu-fugir -- revelei, num tom de tristeza e
revolta.
__ Já que entramos nesse assunto, você seria capaz de
doar um rim para salvar a moça? Eu realizei alguns exames
em você, e constatei que sua saúde é de ferro. Seus órgãos
estão todos perfeitos e parecem que foram gerados ontem
mesmo -- aferiu o médico secamente.
__ Do-doar? Vo-você tá é ma-maluco! Vo-vocês pe-
pegam no-nossos ó-órgãos e depois ve-vendem eles a pre-
preços astronômicos. Pe-pensa que eu so-sou otário? --
redargüi, pasmo com aquela proposta horripilante.

gutole@bol.com.br 194 http://lergratis.cjb.net


__ Em parte você tem razão, Saulo. Mas se todos
pensarem assim dessas pessoas que precisam de um
transplante, poucas terão uma nova chance de viver ou de
ter uma vida normal. Sei que existem muitas falcatruas. É
sabido que isso sempre existirá. É por isso que temos que
estar atentos e lutar para dificultar esse tipo de abuso. Isso
sempre vai existir, hoje, amanhã, sempre; assim como
abortos, corrupção, roubos também existirão, até o
momento em que nós, seres humanos, aprendermos a
valorizar tudo aquilo que realmente tem valor para a vida,
entendeu?
__ Nã-não entendi. Nã-não quero e-entender. Te-tenho
raiva de que-quem entende! -- murmurei rispidamente.
__ Saulo. Se não começarmos a mudar a nós mesmos
agora, nunca mudaremos nada. Toda mudança tem um
efeito cascata, acumulativo, majoritário. Se começarmos
hoje, talvez o mundo só mude daqui cinco, dez, cem anos;
mas fizemos a nossa parte. Enquanto o povo não exigir
seus direitos perante os órgãos públicos e o governo, não
teremos uma democracia, mas sim uma “escravocracia”
artisticamente camuflada de liberdade. A saúde e a
educação estão numa verdadeira palhaçada. Inventam
impostos à reveria, e argumentam que é para isso e para
aquilo outro, mas tudo continua da mesma forma como
antes. Às vezes a situação até piora. É inaceitável que
muitos cachorrinhos dos políticos sejam bem mais cuidados,
alimentados, vestidos, do que muita criança por aí ...
__ O go-governo não tem cu-culpa de nada -- gritei,
saltando da cama, não contendo a tensão. __ Quem nasceu
com azar na vida tá amarrado por algum elemento cósmico.
Seja por magia, por um nome energeticamente negativo,
por um astro vigente, por uma numerologia imperfeita, por
falta de cristais em casa, ou até mesmo pelo genótipo GNA,
os genes da nossa aura -- expliquei ao médico.
__ Você só pode ter aprendido essas asneiras todas na
Ordem, certo?

gutole@bol.com.br 195 http://lergratis.cjb.net


__ Que di-diabos de a-asneiras o quê? -- berrei, pegando
o médico pelo pescoço.
Com força, empurrei-o no chão e abri a porta da saleta.
__ Seu idiota. Você não tem como fugir. Policiais estão te
aguardando na recepção do hospital. Mas eu vou te ensinar
um caminho, desde que prometa me ajudar -- propôs o
médico, caído no chão.
__ Pro-prometo -- confirmei, cruzando os dedos sem que
ele visse.
O médico me deu roupas novas e ensinou-me o caminho.
Em poucos minutos já estava na rua. Saí pelos fundos do
hospital e segui em direção a uma aglomeração de pessoas
que estavam mais adiante. Já era noite e um intenso luar
reluzente destacava-se dos infinitos pontos luminosos do
céu negro.
Era um estádio de futebol. Uma fila enorme contornava
todo o estádio, atravessava a rua, indo parar no calçadão
de uma praça. Pessoas de todo tipo se misturavam umas às
outras, numa euforia descomunal, levando nas mãos fogos
de artifício, bandeiras, lancheiras e outras bugigangas.
Fiquei atônito diante de tamanha confusão.
Numa das extremidades da praça, uma luminosidade
intensa chamou-me a atenção. Havia duas pessoas
isoladas de toda aquela aglomeração, rodeadas por velas
de todas as cores. Um dos sujeitos usava trajes
semelhantes aos do pai-de-santo Boboleto.
__ Bo-boa-noite. Tá fri-frio, não é me-mesmo? --
indaguei, puxando conversa.
__ Você é Tricordiano, ou Coringatano? -- inquiriu-me o
homem com o dedo no meu nariz.
__ Tricordiano -- respondi, de súbito, pouco consciente
do que falava.
__ Muito prazer, amigo. Meu nome é Azulão, sou pai-de-
santo e estou fazendo um servicinho para ajudar o time Co-
coraçãozense vencer a final de hoje. Tô fazendo o serviço
de graça; só porque a diretoria do Coringatano tá me

gutole@bol.com.br 196 http://lergratis.cjb.net


devendo uns bons trocados por um serviço não pago. São
um bando de caloteiros duma figa.
__ Ah! si-sim.
O outro sujeito ficou me olhando de longe. Azulão pediu
para ajudá-lo a acender as velas que trouxera consigo.
Como bom peregrino, ajudei o pai-de-santo com muito
prazer.
__ É empresário? Posso fazer um trabalhinho para sua
empresa ter mais lucros? -- quis saber Azulão, cujos olhos
encontravam-se brilhando.
__ Nã-não.
__ Ah! já sei. Deve ser um banqueiro?
__ Nã-não. Sou um pe-peregrino da O-ordem dos Me-
Mentecaptos -- respondi com peito estufado de orgulho.
__ Peregrino da Ordem? -- inquiriu-me o sujeito que até
aquele momento só me olhava de longe. __ Pois eu tenho
um primo que se chama Calão e ele faz uns bicos como
Guia dessa Ordem ... Olha ele chegando ali -- disse o rapaz,
apontando para o tal Guia.
Calão era meio desengonçado. Tropeçou na sarjeta,
manquitolou e por muito não caiu sobre as velas acesas.
__ Gustavo, nem pra me segurar. Que primo, hein! --
disse Calão, dirigindo-se ao seu primo. __ Já demos um
jeito no quadro de árbitros. Só precisamos arrumar um novo
juiz para o jogo, e tudo ficará como planejamos.
__ Calão, queria lhe apresentar ... Qual é mesmo o seu
nome? -- indagou-me Gustavo.
__ Sa-Saulo Lebre.
__ Saulo Lebre, peregrino da Ordem dos Mentecaptos --
completou o jovem ao meu lado.
__ A essa hora não, Gustavo! Hoje é meu dia de folga e,
infelizmente, não estou nem um pouco disposto a fazer
hora extra -- resmungou Calão.
__ Ele não veio à sua procura, primo. Tava aqui de
passagem ...
__ Por que você não me disse isso antes, hein, Gustavo?
Mas talvez ele possa nos ajudar. Quer ser o juiz do jogo?
gutole@bol.com.br 197 http://lergratis.cjb.net
__ Ju-juiz! -- exclamei, pasmo. __ Eu nu-nunca a-apitei
ne-nenhum jo-jogo na mi-minha vida. Po-posso até ter um a-
apito na mi-minha barriga, mas ele só se-serve pra me i-
irritar.
__ Isso não é um pedido, peregrino. É uma ordem. Não é
mesmo, Gustavo?
__ É isso ai, Calão. Tô com você, primo.
Azulão, indiferente ao nosso diálogo, permanecia
concentrado em seu trabalho de macumba fazendo uma
barulheira danada que, felizmente, impedia que outras
pessoas ouvissem nossa conversa.
Não havia outra saída a não ser aceitar o convite. Eu
havia aprendido na Ordem que não poderia discordar de
nenhum desejo dos meus Guias. Para mim, era uma virtude
obedecer todos os preceitos da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos.
E foi justamente o que fiz.

CAPÍTULO XXVII
OUTRO GUIA A MENOS

__ Dá uma olhada no corredor, Gustavo -- pediu Calão


ao meu lado, já no vestiário dos árbitros. __ Se a coisa ficar
preta, avisa a gente. Tá Legal, Gustavo?

gutole@bol.com.br 198 http://lergratis.cjb.net


Enquanto Gustavo ficou do lado de fora, eu e o Guia
entramos e nos dirigimos até o armário onde estavam os
uniformes dos juízes e bandeirinhas.
__ O que eu de-devo fa-fazer? -- inquiri meu Guia ao
mesmo tempo em que me vestia.
__ Você vai marcar três pênaltis a favor do Coringatano e
expulsar dois jogadores do time da casa.
__ Ma-mas não e-era pra a-ajudar o Co-Coraçãozense?
-- expus minha dúvida enquanto calçava as chuteiras.
Calão arregalou os olhos vermelhos, abaixou o tom de
voz, e explicou-me que realmente era para ajudar o time da
cidade, mas depois de ajeitar as coisas com o juiz e seus
auxiliares, um velhinho de cabelo grisalho, presidente do
Coringatano, abordou-o com uma maleta preta e fez uma
contra-proposta irrecusável.
__ É dinheiro sagrado, peregrino -- esclareceu Calão,
constatando minha perplexidade frente ao fato. __ Foi a
Energia Cósmica Superior que o colocou em minhas mãos,
a fim de que eu, na qualidade de Guia da Ordem dos
Mentecaptos, possa distribuí-lo entre os necessitados.
Que homem! Que bondade imensurável! Somente um
iluminado iniciado nos mistérios ocultos poderia ser sábio o
suficiente para pensar em reverter o sujo dinheiro do
Coringatano para um fim tão caridoso.
Fui até o Calão, abracei-o e choramos juntos. Pude sentir
a energia vibrante da aura do Guia, e fiquei profundamente
satisfeito pelo destino ter me permitido conhecer aquela
santa alma encarnada.
__ Vamos, Saulo. Os dois bandeirinhas já estão na boca
do túnel te esperando. Fique tranqüilo que eles são
torcedores do Coringatano e estão a par do negócio. Abre a
porta, Gustavo. Estamos prontos.
Próximo à boca do túnel, Calão e Gustavo se despediram
de mim e me desejaram boa-sorte. Fiquei emocionadíssimo
com o apoio e sincero incentivo de meus novos amigos.
__ Eu e o Gustavo vamos ficar no banco do
Coraçãozense -- falou Gustavo mantendo seu semblante
gutole@bol.com.br 199 http://lergratis.cjb.net
fraternal e alegre. __ Somos membros da diretoria do time e
queremos apoiar nosso time bem de perto.
Calão piscou-me. Entendi que ele não queria que seu
primo soubesse da trama. Claro, nós, Mentecaptos,
devíamos manter nossos segredos apenas entre nós.
__ Fi-fica tranqüilo, Ca-calão. Farei de tu-tudo para que o
ti-time da ca-casa vença.
__ É isso aí, peregrino. Vamos, Gustavo. É bom irmos
pro nosso lugar pra podermos comemorar nossa vitória. Tá
certo, Gustavo?
Meus dois amigos seguiram seu caminho pelo corredor
abraçados. Fiquei observando e admirando como é bela a
verdadeira amizade entre as pessoas sinceras.
__ Ô, juiz -- falou-me um dos bandeirinhas. __ É hora de
nós entrá.
Bola na mão, apito pendurado no pescoço, uniforme e
chuteiras pretas. Ao lado de meus auxiliares desfilei pelo
gramado esburacado do estádio até o círculo central do
campo.
Então, dei-me conta de como o campo estava
superlotado. Dei um giro de olhar pelo estádio e fiquei um
tanto quanto inquieto com o que observei: em todos os
cantos do só se via torcedores do Coraçãozense. Deveriam
ser umas vinte mil pessoas, todas com bandeiras, camisas,
flâmulas ou faixas do time de casa. Será que elas ficariam
chateadas com o que eu estava prestes a fazer?
Uma tempestade ensurdecedora de gritos e fogos de
artifício tomou conta do estádio quando o Coraçãozense
entrou no campo. Ao contrário, ao entrar o time adversário,
foi um verdadeiro furacão de impropérios e pedras lançadas
para cima dos jogadores visitantes.
__ Seu juiz -- disse um atleta do Coringatano com a faixa
de capitão no braço. __ Três dos nossos jogadores foram
atingidos pelas pedras. Tão sangrando mais que o país.
Faça alguma coisa ou vai ser um massacre.
Se eu não tivesse a firme convicção do valor de minha
missão como esotérico, certamente sucumbiria ao medo e
gutole@bol.com.br 200 http://lergratis.cjb.net
ao pavor diante da situação adversa. Porém, minha
consciência em ser um peregrino da Ordem falou mais alto.
Mandei substituir os três jogadores machucados e acalmei o
time do Coringatano, afirmando-lhes que tudo iria sair certo.
__ E a polícia, seu juiz? Cadê os policiais?
A apreensão do capitão do Coringatano se justificava.
Corri até à beira do gramado e perguntei ao gandula onde
estava o corpo policial.
__ O corpo do Zé Mané tá caído ali perto do alambrado --
respondeu o menino, apontando para um sujeito com
cassetete estirado próximo ao alambrado do estádio. __
Não se preocupa, não seu juiz. Foi só uma tijolada no saco.
Até o fim do jogo ele se recupera.
__ E os o-outros po-policiais?
__ Outros? Aqui no campo é só o Zé Mané que toma
conta, seu juiz.
Fiquei paralisado por alguns segundos. Olhei assustado
para o banco do Coraçãozense onde Calão e Gustavo
encontravam-se sentados. Ambos sorriram para mim e
gesticularam amigavelmente. Aquilo me fez despertar
novamente e correr até o meio do gramado pra começar a
peleja.
Apitei. O jogo começou.
Com toda a sinceridade, nunca vi tanta perna de pau
num mesmo lugar. Até os trinta minutos do primeiro tempo
nenhum time chutou a bola contra o gol do adversário; nem
sequer tiveram a capacidade de invadir a área do outro
time.
Eram quase trinta e cinco e nada de se criar uma
situação de gol. Bem, de alguma maneira eu teria de marcar
um pênalti a favor do Coringatano. E eis que a oportunidade
surgiu: o goleiro do Coraçãozense foi bater o tiro de meta e,
com muito esforço, conseguiu fazer com que a bola
chegasse até a meia-lua de sua área. Na hora em que o
zagueiro foi até a bola, enroscou o pé no buraco e caiu de
testa em cima dela. Não vacilei. Marquei penalidade máxima
e expulsei o zagueiro e o goleiro do Coraçãozense.
gutole@bol.com.br 201 http://lergratis.cjb.net
Até hoje é difícil para mim entender a reação da torcida e
do time local. Não sei o porquê, mas ficaram todos
completamente enfurecidos.
Os torcedores derrubaram o alambrado e, junto com os
jogadores de Três Corações, partiram para cima de mim.
Talvez não tenha sido a reação mais sensata, mas saí
correndo em direção ao meus amigos Calão e Gustavo.
O Guia, curiosamente, segurando a tal da mala preta,
saiu em disparada até o vestiário do Coringatano. Como
bom e fiel discípulo, segui-o. Infelizmente não consegui me
safar. Os jogadores do banco de reservas do time local me
seguraram.
A multidão armada de paus e pedras fez um círculo em
volta de mim. Juro que nunca vi fisionomias tão animalescas
em toda a minha vida.
__ Antes que a gente te mate, conte quem do
Coringatano te subornou, fedorento -- disse irado um dos
brutamontes que me segurava.
Aquilo não deveria estar acontecendo. Um místico
protegido pelas forças sobrenaturais não poderia entrar em
uma enrascada na vida. Claro, deveria ser um teste a que a
Ordem estava me submetendo. Sim, só podia ser isto. Mas,
qual atitude tomar? Contar a verdade seria delatar meu
Guia; negá-la ou escondê-la seria mentir. Pensei bem e
entendi que um ocultista é instrumento da verdade, e assim
optei por revelar toda a trama aos meus supostos algozes.
__ Como? Quer dizer que foi o Calão que te mandou
passar a mão no nosso time? -- indagou-me espantado o
técnico de Três Corações. __ Não acredito. Agora é que eu
vou te estripar mesmo.
__ Nã-não. É a pu-pura ve-verdade. O Ca-Calão tá lá no
ve-vestuário do Co-Coringatano com a ma-mala preta.
Em questão de segundos trouxeram o Calão arrastado e
segurando a mala do dinheiro.
__ Não acredito -- admirou-se o técnico do
Coraçãozense. __ Você fez isto, Calão? Não dá pra crer.
__ É tudo mentira. Não é, Saulo?
gutole@bol.com.br 202 http://lergratis.cjb.net
Não podia voltar atrás. Tinha de manter minha postura de
guardião da verdade. Certamente esta deveria ser minha
atitude a fim de ser aprovado no teste da Ordem.
__ É a ma-mais pu-pura verdade -- confirmei minhas
declarações certo de que seria aprovado pela Ordem com
tal gesto.
__ Vamos acabar com a raça dele, gente -- agitou o
brutamontes me largando. Logo, todos estavam em volta do
Calão fingindo estar desferindo-lhe algumas pauladas. Ele
até que representava bem, gritando desesperado como se
estivesse apanhando de verdade.
Sem ser notado, desci as escadas do vestiário onde
troquei de roupa. Em seguida, saí do estádio e me sentei
em um banco de concreto existente em um ponto de táxi no
quarteirão ao lado do campo. Comprei um saco de pipocas
e fiquei esperando o Guia vir até mim parabenizar-me pelas
minhas reações ao teste iniciativo.
Calão não deu as caras, mas três ambulâncias, com as
sirenes ligadas no último, estacionaram perto de onde
estava. Tiraram as macas pelas portas traseiras dos
veículos e entraram correndo no estádio. Será que alguém
se machucara naquela brincadeira, pensei, enquanto dirigi-
me até uma das ambulâncias onde havia um médico de
costas.
__ Que a-aconteceu, doutor? -- perguntei ao médico,
tocando-lhe o ombro.
__ Saulo Lebre. A ganância e a desonestidade
desmedidas de sua seita acabaram de fazer mais vítimas.
Já é hora de acabarmos de uma vez por todas com isto.
Fiquei sem palavras diante do estarrecedor anúncio do
médico do hospital de Três Corações.
Que diabos ele queria de mim?

gutole@bol.com.br 203 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XXVIII
MAIS UMA PROVAÇÃO

__ Não tenha medo, Saulo. Eu não vou lhe fazer nada de


mal. Eu só queria lhe ajudar. Mostre-me o local onde vocês
se reúnem, que nunca mais irei importuná-lo -- pediu-me o
médico, pondo as mãos em meu ombro.
Naquele instante senti um calafrio percorrer todo o meu
corpo. Eu não acreditava nas palavras proferidas pelo
médico. Por outro lado, talvez ele havia se arrependido de
todas aquelas asneiras que havia falado a respeito da
Sagrada Ordem, e estaria a fim de conhecer o maravilhoso
mundo dos Mentecaptos. Que notícia maravilhosa!
Mudei o tom de voz, inquirindo-lhe docemente:
__ No mo-momento não se-sei de na-nada. A ú-unica
co-coisa que se-sei, é que te-tenho um en-encontro com o
Me-Mentor.
__ Quem é esse Mentor? -- quis saber o médico,
encostando-se na ambulância.
gutole@bol.com.br 204 http://lergratis.cjb.net
__ O Me-Mentor é o me-meu Me-Mestre. É a ú-única
pessoa que po-pode cu-curar mi-minha gagueira. Po-porém,
antes de eu ir ao encontro de-dele, tenho que te-ter em mã-
mãos a Esfinge Do-Dourada o Me-medalhão Azul --
esclareci, preocupado com a demora de Lindoro.
__ E onde estão esses objetos? -- inquiriu-me o médico,
curioso.
__ E-estão com o Gui-guia Lindoro. E-ele pro-prometeu
que me e-entregaria esses a-amuletos antes que e-eu me e-
encontrasse com o Me-mentor. E-entendeu?
__ Certo. Recapitulando: você terá um encontro com o
seu Mentor mas, antes disto, terá que ter em mãos essa tal
Esfinge e esse tal Medalhão Azul ...
__ Ce-Certo -- interrompi, empolgado com o interesse do
médico a respeito dos rituais da Ordem.
A Ordem era fantástica. As pessoas a criticavam -- por
falta de informações -- porque nunca tiveram a coragem de
participar de um Ritual, de se entregar de corpo e alma aos
exercícios tão relaxantes e envolventes. Tratavam-se de
indivíduos que temiam descobrir seu verdadeiro “eu”, e
preferiam viver uma vida de prazeres, diferente daquela que
eu estava vivenciando em minha peregrinação.
A felicidade refletia em minha aura. Como peregrino, eu
tinha o dever de testemunhar as maravilhas, de multiplicar a
legião de Mentecaptos na Terra. E esse objetivo eu estava
começando a alcançar. O médico seria a primeira pessoa
que eu traria para o imenso rebanho da Ordem. Aliás, ele
seria conduzido de volta ao santo lugar de onde nunca
deveria ter saído.
__ Pegue esse papel -- pediu-me o médico, estendendo
a mão. __ É o número do meu celular. Quando você souber
o local e hora exata desse seu encontro com o Mentor, ligue
para mim. Eu estou ansioso para poder sentir de perto toda
essa energia que a Ordem irradia às pessoas que estão à
sua volta.
__ Po-pode, co-contar comigo. O se-senhor será meu co-
convidado de ho-honra. Ou me-melhor, se-será o meu pa-
gutole@bol.com.br 205 http://lergratis.cjb.net
padrinho no Ritual de Cu-cura, que me abençoará com a e-
espada de Ca-cavaleiro Iluminado -- assegurei, fazendo um
honroso convite ao médico.
__ Formidável, Saulo Lebre. Por nada no mundo não
perderei esse momento tão importante em sua vida. Agora,
em nome dos Mentecaptos, corra que a polícia vem aí --
avisou-me o médico, preocupado com minha segurança.
Olhei em direção à portaria do estádio e vi que uma
multidão se aproximava, tumultuando o portão de saída.
Dois carros de polícia estacionaram próximos a um orelhão
na calçada do campo do Coraçãozense.
Tratei logo de ouvir o conselho do médico -- aquele bom
homem, que demonstrava o nítido ensejo de se tornar
novamente um membro iluminado da Sagrada Ordem.
Segui meu caminho até São Tomé das Letras muito feliz
por ter conseguido arrebanhar uma nova ovelha para o
rebanho dos Mentecaptos.
Quando saí da cidade de Três Corações, ouvi ao longe
as doze badaladas do relógio da Matriz. Era meia-noite. O
céu continuava estrelado, e a pequena estrada de terra,
iluminada pelos gordos raios refletidos pela lua cheia.
Aquela região era muito montanhosa. Já não agüentava
mais subir e descer tantas serras. Mas o sacrifício fazia
parte da peregrinação. Somente através do sacrifício, do
suor resultante de meu esforço diário, seria recompensado.
Para mim, a recompensa seria a cura da minha
gagueira. E este momento estava cada vez mais próximo.
Eu sentia uma energia vibrante percorrendo todo o meu
corpo. Até mesmo o apito que eu havia engolido estava
produzindo um som menos irritante, mais harmônico e
melodioso.
Depois de algumas horas de caminhada, no alto de um
morro, deparei-me com uma fina camada de neblina. Um
chuvisco gelado molhava o meu corpo desprotegido. Se ao
menos eu tivesse algum plástico para cobrir minha
cabeça ... A única coisa que tinha em mãos era minha

gutole@bol.com.br 206 http://lergratis.cjb.net


mochila. Mas dentro dela encontrava-se o meu diário, que
talvez um dia, pudesse ser transformado num livro.
Vasculhei todo o local em busca de algum abrigo para
me proteger do chuvisco que aumentava de intensidade
paulatinamente.
Segui por uma estreita trilha, descendo o morro. O chão
escorregadio, repleto de cascalhos, trazia uma maior
insegurança em caminhar por aquele terreno desconhecido.
Imagine se eu escorregasse morro abaixo! Aquele lugar era
tão deserto, ainda mais naquela madrugada envolvida pelo
nevoeiro, que seria impossível alguém me encontrar ali.
Caminhei mais alguns metros, e avistei um pouco à
frente uma fraca claridade de cor vermelha, fosca pela
neblina. Aproximei-me do local, sempre guiado pelas
minhas mãos que deslizavam pela encosta do morro.
A luz provinha do interior de uma gruta. Será que ali
morava alguém?
__ Bo-boa-noite, mo-morador. Po-posso entrar? Tá mu-
muito gelado a-aqui fora -- chamei, tremendo de frio.
Tentei outra vez:
__ Te-tem alguém a-aí?
Sem sucesso novamente.
O jeito foi adentrar a gruta e descobrir a origem daquela
luz vermelha.
Depois de passar por entre várias teias de aranhas,
encontrei-me diante de uma cena inusitada. Um velho
homem, barbudo, de roupas largas, segurava em sua mão
uma pena e olhava atentamente para dentro de uma
vasilha, de onde advinha uma luz vermelha de brilho
intenso. Apoiado numa estreita mesa de madeira, escrevia
alguma coisa numa folha, depois tornava a olhar para o
vasilhame, em seguida voltava a escrever ... a olhar ... a
escrever ... num ritmo bem alucinado; tão desmedido, que o
homem nem ao menos notou minha presença.
__ Bo-boa-noite! -- disse dirigindo-me ao homem.
__ Quem é você? Como ousa me importunar? -- advertiu-
me o homem
gutole@bol.com.br 207 http://lergratis.cjb.net
Apreensivo, com receio do que poderia ocorrer daquele
momento em diante, tratei logo de me apresentar :
__ Eu que-queria lhe pe-pedir de-desculpas por i-invadir
sua gru-gruta. Eu cha-chamei, mas nin-ninguém respondeu,
e então, co-como estava cho-chovendo, re-resolvi entrar.
Não se pre-preocupe que eu não so-sou ladrão. Meu no-
nome é Sa-Saulo Lebre, e so-sou um pe-peregrino da
Sagrada O-Ordem dos Me-Mentecaptos. Mu-muito pra-
prazer em conhecê-lo -- falei, estendendo-lhe a mão.
O homem olhou de uma forma estranha para mim, e sem
retribuir meu gesto, disse-me:
__ Sente-se naquela pedra. Eu sou um profeta. Vivo
sozinho nesta gruta, pensando nas coisas que irão ocorrer
com a humanidade num futuro bem próximo ...
__ Que coisas são essas? Diga uma por exemplo --
interrompi, ansioso por saber sobre o futuro.
__ Ora, são tantas coisas. Por exemplo, de uma forma
resumida, haverá no futuro grandes pássaros voadores
criados pelos homens, que serão usados para vários fins;
até mesmo para guerras -- exemplificou o homem.
__ Mas i-isso já e-existe. É do a-avião que o se-senhor
está fa-falando -- esclareci, admirado pela burrice daquele
velho homem.
__ Impossível. As únicas coisas que eu ainda conheço
que avoam são os pássaros. Esse tal de avião, por acaso, é
alguma espécie de bisnau? -- inquiriu-me o velho.
__ De-deixa pra lá. E-esquece o que e-eu disse. Só me
di-diga qual é o no-nome do se-senhor.
__ Nostra -- respondeu o velho homem, secamente.
__ Nostra! -- exclamei, surpreso. __ Você é meu ídolo. Li
todos os seus livros. Vi todos os seus documentários. Será
que você não poderia prever quando eu irei deixar de ser
gago?
__ Gago?
__ É. Gago -- respondi, desconfiado que Nostra era meio
lelé da cuca.
__ Ah, sim! Voltar a ficar gago ...
gutole@bol.com.br 208 http://lergratis.cjb.net
__ Não. Deixar de ser gago -- repliquei.
__ Como deixar de ser gago, se nesse momento a sua
voz é perfeita?
__ Minha voz ... ora, não estou mais gaguejando --
espantei, prestando atenção em minha fala. __ Mas eu
gaguejo desde o início da minha puberdade. Quer ver como
eu gaguejava: i-isto é um e-exemplo, e-entendeu?
__ Deixe de ser otário, Saulo. Até mesmo uma criança
sabe imitar um gago: vo-você é me-mesmo um i-idiota. Você
não parece muito normal. Se não tiver passando bem um
sei fazer um chazinho que é tiro e queda. Cura qualquer
anormalidade.
Só de encontrar-me nas montanhas de São Tomé das
Letras, como por um milagre, minha gagueira havia
desaparecido. Bendita terra energética!
Aproximei-me de Nostra, e pus-me a relatar-lhe alguns
fatos ocorridos na história mundial que, os estudiosos das
suas profecias, davam como concretizadas. Falei-lhe, então,
sobre a morte dos presidentes americanos, sobre as
nuances da Segunda Guerra Mundial, a chegada do homem
à lua, os etês, as catástrofes e turbulências mundiais, enfim
tudo o que eu havia lido e assistido sobre as profecias dele.
De boca aberta, perplexo com tudo aquilo que eu havia
relatado, Nostra engoliu em seco, pegou a folha na qual
escrevia seus pensamentos, picotou-a com toda ira, e
depois atirou os pedacinhos dentro do vasilhame.
Olhei dentro do vasilhame e, para minha surpresa, vi que
aquilo era uma espécie de fogão à carvão, muito parecido
com uma churrasqueira. A vasilha sem fundo prendia uma
pequena peneira que ficava sobre o buraco na pedra, onde
era colocado a brasa. Sob a peneira, havia dois peixes
partidos ao meio, quase totalmente dourados pela brasa.
Deveria ser o jantar ou o café da manhã?
__ Eu não previ nada o que já estava previsto --
murmurou o profeta.
__ Mas eu acredito no senhor. Neste momento, o que o
senhor está fazendo com essa pena nas mãos, olhando
gutole@bol.com.br 209 http://lergratis.cjb.net
para o vasilhame, e escrevendo nessa folha de papel sobre
a mesa? Não são suas profecias? -- inquiri, meio confuso
com a insanidade momentânea de Nostra.
__ Rapaz, eu estou vigiando o meu peixe para que ele
não passe do ponto, entendeu? Enquanto ele não fica
pronto, eu passo o tempo emendando letras, escrevendo
poemas ...
__ Poemas que são profecias, correto? -- interrompi
completando a explanação do velho profeta.
__ Saulo Lebre, a imaginação humana não tem limites.
Aprenda uma coisa: você não precisa ser uma pessoa
especial para poder prever o que irá ocorrer no futuro. A
natureza sempre está em constante mudança. Catástrofes,
guerras, enfermidades, invenções, sempre existirão. O ser
humano com sua capacidade de raciocínio, de abstração,
de compreensão das leis que atuam no universo,
conseguirá chegar onde nunca poderíamos imaginar.
Logicamente, qualquer coisa que eu imagino poderá ocorrer
mais cedo ou mais tarde. Entendeu? -- esclareceu Nostra,
deixando escapar de seu semblante um sorriso maroto.
__ Mas os estudiosos, as pessoas que analisaram as
suas profecias, relacionaram-nas com vários
acontecimentos que vêm se desencadeando desde as suas
primeiras previsões.
__ As pessoas não sabem o que falam. A verdade, na
maioria das vezes, passa pela tangente dos nossos olhos.
Na realidade, inconscientemente ou não, adoramos ser
enganados; adoramos ouvir historinhas que narrem cenas
emocionantes e finais felizes. Gostamos mesmo é de ser
iludidos, trapaceados. Pois, é mais fácil deixar a onda nos
guiar para onde ela quiser, do que fazermos algum esforço
para remarmos contra ela, no momento em que a onda está
contrária à nossa consciência -- disse Nostra, usando
algumas metáforas incompreensíveis para mim.
__ Não entendi -- respondi, impaciente.
__ Saulo, talvez nesse momento você não compreenda
que a maioria das pessoas parecem surfistas
gutole@bol.com.br 210 http://lergratis.cjb.net
esquizofrênicos, que entram em qualquer onda que vêem
pela frente. Todavia, espero que algum dia você tenha a
clara convicção de que a vida vale mais do que qualquer
outra coisa no mundo. O respeito deve existir entre nações
e pessoas. Não podemos suportar a escravidão e
manipulação humanas: a pior de todas as chagas da
humanidade --advertiu-me Nostra, mergulhando a pena no
tinteiro.
__ E suas profecias? Elas são importantes para a
humanidade toda.
__ Importantes? Não vejo importância alguma. Pelo
pouco que conheci de você, dá pra sentir que o mundo
continua como antes: caminhando para sua própria
destruição, graças à erudita ignorância que guia as
pessoas.
__ Discordo plenamente do senhor. Hoje em dia, para
quem tem um pouco de dinheiro, a vida é quase um paraíso
-- redargüi, lembrando do meu patrão que estava de férias.
__ O dinheiro é a maior maldade humana. Ele desperta
no ser humano a ganância. O dinheiro é manipulável, é
poder ... muito poder. Quem o tem, tem o poder. Mas
dinheiro é uma coisa tão abstrata, tão simbólica que é difícil
imaginar como ele pôde chegar ao ponto de controlar o
mundo. Os primeiros habitantes do planeta não precisavam
de dinheiro para viver; eles se juntavam em pequenos
grupos para garantir a sobrevivência de todos. Vejo em seu
rosto que é pelo dinheiro que essa tal de Ordem dos
Mentecaptos está te manipulando; fazendo-o peregrinar
como idiota, arriscando sua vida em troca de mentiras --
objetou Nostra.
Aquele assunto estava tomando rumos inesperados.
Falar mal da Ordem era o mesmo que xingar minha mãe
com um palavrão. Procurei me controlar, pois eu
encontrava-me diante de um grande ídolo, muito embora
começasse a duvidar de sua verdadeira identidade.

gutole@bol.com.br 211 http://lergratis.cjb.net


O velho profeta soltou a pena, deixando a tinta borrar a
folha de papel, olhou no vasilhame e, esfregando as mãos,
festejou:
__ Que delícia! O filé de peixe já está no ponto exato.
Pegue aquele pano e o estenda sobre a mesa -- ordenou-
me o velho.
O cheiro de peixe fez com que eu salivasse. Estendi a
toalha sobre a mesa e coloquei um filé num prato feito de
madeira. Fazia algum tempo que eu não me alimentava, e
aquele peixe apareceu na hora certa.
__ Bom fosse se todos pudessem partilhar desse peixe
em sua mesa. Neste mundo onde a desigualdade é
prioridade, em que momento de nossas vidas poderemos
viver todos em paz e felizes? -- inquiriu Nostra, com um
olhar cansado.
Aquele velho profeta estava certo. Somos nós quem
construímos o futuro, quem comandamos as rédeas de
nosso destino.
Após o modesto banquete, senti-me cansado. Aos
poucos fui adormecendo, deitando naquele chão duro e
gelado da gruta onde Nostra passava o seu tempo
escrevendo seus poemas.
Acordei com uma leve dor de cabeça. O sol quente
daquela manhã irritava os meus olhos. Levantei-me da
grama molhada onde eu me encontrava deitado, e caminhei
à esmo, no alto de uma montanha à procura da gruta onde
havia encontrado o velho que supunha ser Nostra. Contudo,
não a encontrei.
Ao longe avistei um aglomerado de pessoas. Alegre por
saber que não estava sozinho naquele local solitário,
caminhei até elas.

CAPÍTULO XXIX
gutole@bol.com.br 212 http://lergratis.cjb.net
SEM FUTURO?

Mesmo que timidamente aproximei-me do grupo. Suas


vestes brancas inspiravam-me uma profunda paz e
quietude, revelando serem pessoas do bem, muito embora
ainda não as conhecesse.
O homem que se encontrava em pé na frente do grupo
notou minha presença e veio até mim.
__ Que você tá querendo aqui, cara? Não vê que a gente
tá se exercitando para atingir nosso nirvana pessoal.
Achei estranho que uma pessoa vestida com trajes
brancos, livres e soltos, falasse comigo naquele tom de voz
nada amistosa.
O problema devia ser eu. Procurei redimir o mal-
entendido.
__ Meu no-nome é Saulo Le-lebre. E-estou em pe-
peregrinação até São To-tomé das Le-letras. Lá encontrarei
o Me-mentor da Ordem dos Me-mentecaptos.
__ Você é um Mentecapto? -- interrogou-me o sujeito
abrindo um radiante sorriso por debaixo de seu farto bigode.
__ É um prazer conhecê-lo, amigo. Eu mantenho alguns
negócios comerciais com a Ordem já há algum tempo.
__ Na re-realidade a-ainda sou apenas um i-iniciado. Se
tu-tudo continuar co-correndo bem, se-serei aceito em bre-
breve como Cavaleiro I-iluminado da Ordem.
__ Faço votos que o seja, amigo. Por quê você não se
junta ao grupo e participa de nosso exercício de
relaxamento?
__ Que bo-bom. Estou me-mesmo com u-uma baita de u-
uma canseira.
__ Então venha -- convidou-me o sujeito, abraçando-me
fraternalmente. __ Após o exercício de equilíbrio energético
dos chacras, o grupo participará de uma sessão de
regressão a vidas passadas.
gutole@bol.com.br 213 http://lergratis.cjb.net
__ Me-mesmo? Eu se-sempre quis fa-fazer algo a-assim.
Ouvi fa-falar que dá a-até pra ser cu-curado dos pro-
problemas que a ge-gente tem.
__ Sem dúvida. Com a regressão você pode conhecer a
causa de alguma enfermidade que possui e assim curá-la.
Entusiasmado com a nova porta que se abrira diante de
mim, a qual descortinava um passado misterioso, segui o
Guru até sentar-me confortavelmente em um colchonete à
frente das pessoas que participavam daquele incrível ato de
energização coletiva.
__ A turma já está terminando os exercícios de
revitalização dos chacras. Em breve começaremos a fazer a
regressão mental -- esclareceu-me o Guru bigodudo.
__ E-eu não vou pre-precisar fa-fazer a re-revitalização
também? -- perguntei-lhe com profundo respeito.
__ Que nada, isto não serve pra porcaria nenhuma,
quero dizer, estes exercícios lhe serão desnecessários já
que você é um principiante no ocultismo.
Ser um peregrino era mesmo uma generosa dádiva da
natureza. Nem precisaria me preparar para a regressão, vez
que já era um iluminado. Este fato encheu-me de orgulho e
uma imensa sensação de poder e superioridade.
Segundos se passaram rapidamente e todos os demais
membros do grupo terminaram sua revitalização.
O Guru pôs-se de pé e iniciou a regressão fazendo uso
de um tom de voz simplesmente inebriante.
__ Fechem seus olhos. Fechem suavemente. Sintam a
escuridão advinda deste afastamento da realidade, do
mundo. Vocês não estão mais aqui; tão somente a matéria
que conduz vossos espíritos peregrinos aqui permanece.
Imaginem agora um relógio. São duas horas neste relógio
mental. Agora mentalizem o ponteiro das horas se
movimentando lentamente para trás.
__ É o pe-pequeno ou o gra-grande? -- perguntei.
__ O que foi? -- indagou o Guru indignado com a
interrupção.

gutole@bol.com.br 214 http://lergratis.cjb.net


__ O po-ponteiro das ho-horas é o pe-pequeno ou o gra-
grande?
Um abafado sussurro fez-se ouvir atrás de mim. Não
liguei. Era um iniciado, alguém superior àqueles pobres
mortais que ali se achavam.
__ Peregrino, o ponteiro das horas é o pequeno. Agora
faça o favor de não mais atrapalhar nossa regressão.
O Guru sacudiu nervosamente o bigodão ao terminar de
falar. Parecia até estar bravo com alguma coisa.
__ Novamente vamos nos concentrar. Lentamente vamos
fechar os olhos ... respirar profundamente ... visualizar o
relógio mental ... o ponteiro das horas vai regredindo, vai
tomando cada vez mais forte o sentido anti-horário.
Meu ponteiro até que se mexeu um pouco, mas parou no
onze e ali ficou. O Guru não parava de falar e estava difícil
para mim acompanhá-lo. Imaginei então o parafuso atrás do
relógio e comecei a dar corda para ver se assim ele
desemperrava de uma vez. Piorou. O raio do ponteiro
pequeno foi avançando no sentido horário, passou o doze, o
um, o dois e não parava de avançar para frente.
Desesperei-me. Dei mais corda no parafuso mas, para o
cúmulo do azar, ele quebrou e os ponteiros ficaram doidos,
avançando velozmente no sentido horário. O ritmo era
infernal, indescritível. Em que fim daria aquilo?
Abruptamente, instantes depois, os ponteiros pararam.
Ambos estavam no seis. Meio tonto, meio enjoado, abri os
olhos que pareciam pesar uma tonelada.
Não avistei mais ninguém no local. Eu era o único que se
encontrava no topo da montanha. Ergui-me com imensa
dificuldade e segui um forte impulso interior que me
ordenava descer o morro e caminhar até a cidade de São
Tomé das Letras.
Segui meu instinto interior sem a mínima hesitação e
reflexão. Logo já me achava na cidade, meta e destino final
de meu peregrinar.
Foi deveras estranho (sonho, talvez?). Vi centenas de
homens e mulheres seminus, com apenas leves pedaços de
gutole@bol.com.br 215 http://lergratis.cjb.net
tecido transparente cobrindo alguma parte do corpo. Suas
expressões faciais eram terríveis, comparáveis a funestas
figuras de filmes de terror. Seu andar era cansado, pesado.
Suas peles, assustadoramente pálidas, se assemelhavam
mais a uma frágil folha de papel, tamanha a sua delicadeza.
Surpreendeu-me quando uma brisa mais insistente fez com
que a frágil pele fosse comprimida, jogada para trás.
Observei atentamente e notei que era como se aquelas
pessoas fossem vazias por dentro. Fato realmente
intrigante.
Continuei a caminhar e vi outra coisa que me chamou a
atenção. Quando aquelas pessoas se dirigiram umas às
outras para conversar, erguiam uma máscara que
carregavam consigo, e, segurando numa vareta toda
contorcida, colocavam a máscara na frente de seus rostos
inexpressivos e, de uma hora para outra, maravilhosamente,
tornavam-se em homens e mulheres de agradável e
atraente aspecto. Fato curioso, bem curioso.
À medida que prosseguia andando sentia-me mais e
mais inquieto e angustiado. Um paradoxo me oprimia:
sentia-me deslocado naquele mundo louco, mas ao mesmo
tempo sentia uma vontade irresistível de ser como eles.
Esta última vontade não parava de crescer; contudo, minha
cabeça, bem no centro da testa, não parava de latejar e
doer. Coração e Consciência se digladiavam em meu
íntimo; um, feroz e agressivo; outra, assustada e
desgastada.
Sentia-me mal demais, quando percebi que uma
numerosa multidão se aglomerou atrás de mim e sutilmente
foi me empurrando até chegarmos a uma construção com
ornamentos dourados contornando portas e janelas.
Entrei. Era minha casa. Só que mais pobre e rústica do
que era. Estava repleta de pirâmides, cristais, pedras
estranhas, gnomos e um baralho com figuras esquisitas
espalhado pela mesa. O odor era podre. A única expressão
de vida eram as aranhas que haviam tomado conta do local,
enchendo a casa com teias de fios pretos.
gutole@bol.com.br 216 http://lergratis.cjb.net
Voltei meu olhar e encarei algumas das pessoas que me
empurraram até a casa. Seus rostos eram de dar dó.
Totalmente sem vida. De repente colocaram suas máscaras
e se transformaram. Eram agora novas criaturas,
sorridentes, belas, inspirando confiança e amizade.
Ao sentir atração pelos seus novos visuais, minha cabeça
tornou a dar uma forte pontada. Tonto, apoiei-me num
móvel próximo. Minha visão ficou novamente boa e olhei
para o móvel. Era minha velha penteadeira. Ergui o olhar e
passei a mão no espelho empoeirado. Ao fazer isto, as
pessoas que estavam dentro da casa saíram correndo.
Olhei-me no espelho. Nunca dei um grito tão assustador
como aquele.
__ Calma, Saulo Lebre -- ouvi uma voz fina, conhecida,
ser pronunciada próxima ao meu ouvido.
Abri os olhos e verifiquei estar novamente no topo da
montanha, sentado no colchonete. Virei o pescoço para
ambos os lados e não encontrei nenhuma das pessoas que
antes estavam naquele lugar.
A única pessoa era ...
__ Fui enviado pelo Venerável Mestre da Ordem para
acompanhá-lo até seu destino final -- falou-me Peteleco, o
Mentecapto anão que eu havia conhecido no Albergue da
Ordem, bem no início da minha jornada.
Sabia que Peteleco, por razões desconhecidas, não ia
muito com minha cara. Ousei, então, fazer-lhe uma
pergunta:
__ Po-por que vo-você?
O anão soltou uma gargalhada.
__ Isto você saberá em breve. Agora pegue sua mochila
e vamos. Já está na hora de acabar esta história.

gutole@bol.com.br 217 http://lergratis.cjb.net


CAPÍTULO XXX
VERDADES E MENTIRAS

Seguindo pela estreita trilha que contornava a montanha


até a periferia de São Tomé das Letras, Peteleco não
parava de tagarelar. Às vezes resmungava e não dizia coisa
com coisa. O que mais me agradou foi a notícia de que eu
estava à caminho do encontro com o Mentor; bem próximo
gutole@bol.com.br 218 http://lergratis.cjb.net
da cura de minha gagueira. O Ritual da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos seria realizado na Gruta Iluminada, o local
mais energético daquela região mineira.
A respeito da Esfinge Dourada e do medalhão, Peteleco
havia garantido que o Lindoro estava com eles, aguardando
a nossa vinda na praça da Igreja Matriz. Eu tinha certeza de
que Lindoro não deixaria de cumprir com sua palavra
quando me havia dito para não me preocupar com a
borboleta e com o medalhão, que eles seriam entregues
para mim num momento oportuno.
Peteleco também me disse que nesse Ritual haveriam de
estar presente todos os meus Guias, com exceção de
Andson e de dona Genoveva que não haviam sido
encontrados em lugar algum.
Não via o momento de chegar na cidade e correr para um
orelhão, só para avisar o médico que eu havia convidado
para ser meu padrinho no Ritual de Graduação de Cavaleiro
iluminado da Sagrada Ordem dos Mentecaptos. Contudo,
isso seria uma surpresa para o Mentor, e por isso nem
Peteleco nem outro Guia poderiam saber disso.
São Tomé das Letras fazia jus a sua fama. Aquele local
transmitia muita paz, e a descida da montanha era um
sonho. O ar puro da floresta provocava um profundo
relaxamento interior; a paisagem encantadora do rio, que
difundia a luz solar em feixes luminosos e coloridos,
transmitia uma profunda paz, vibrando em harmonia com
minha aura.
Por volta das dez horas chegamos na periferia de São
Tomé das Letras. Em passos largos e silenciosos, seguimos
em direção ao centro da cidade. Parecia ser domingo. O
comércio local estava completamente fechado; apenas os
estabelecimentos essenciais encontravam-se de portas
abertas. A todo momento cruzávamos com ônibus luxuosos
de outras cidades. Lembro-me de ter visto um ônibus de
Florianópolis, outro de Natal, dois do Rio de Janeiro e vários
do Estado de São Paulo. Com certeza, deveriam ser

gutole@bol.com.br 219 http://lergratis.cjb.net


excursões de peregrinos e turistas que vieram colher os
frutos espirituais daquela terra sagrada.
Meia hora de caminhada e chegamos na praça central.
Paramos próximos a um canteiro de lírio. Sentei num banco
de madeira, deixando o corpo bem solto e relaxado sobre o
encosto. Mesmo assim, eu ainda era maior do que Peteleco,
aquele anão de cara amarrada e carrancudo.
__ Não mova um palmo sequer desse lugar que eu vou
atrás daquele idiota do Lindoro. Onde será que se meteu
aquele anta? -- indagou o Guia com um olhar irado e um
tom de voz arrogante.
__ Va-vamos e-esperá-lo aqui. Tá tão go-gostoso
sentado na so-sombra dessa fi-figueira -- sugeri, encantado
com as flores que coloriam e perfumavam os canteiros da
praça.
Peteleco, indiferente ao meu pedido, engrossou a voz e
advertiu-me:
__ Cale a boca, seu peregrino impertinente. Eu faço o
que eu quero de minha vida. Portanto, não saia daqui que
eu vou atrás do Lindoro. Aquele beberrão deve estar
socado em algum botequim de quinta categoria por aí.
Entendeu?
__ E-entendi -- respondi a contragosto, com uma vontade
louca de agarrá-lo pelo pescoço e, depois, torcê-lo assim
como se faz para destroncar o pescoço de uma galinha.
Ligeiro, Peteleco seguiu na direção do vento,
contornando o canteiro de lírios, e desaparecendo atrás de
uma banca de revistas. Havia chegado o momento de eu
agir. Olhei atentamente para todos os lados à procura de
um telefone público. Bem atrás de mim havia um orelhão.
Não perdi tempo e corri até ele. Abri minha agenda e
procurei o número do celular do médico. Achei uma ficha
caída na minha mochila e a usei para telefonar.
Tummm! -- soou o primeiro toque. Só no quinto sinal o
médico atendeu seu telefone.
__ Alô? Quem fala? Fale logo que estou realizando um
parto -- disse o médico, arfante.
gutole@bol.com.br 220 http://lergratis.cjb.net
__ So-sou eu. Sa-Saulo Le-lebre. Tô te-telefonando para
a-avisá-lo sobre o lo-local que será re-realizado o Ri-ritual
de Cu-cura da Ordem -- elucidei, entusiasmado.
__ Que maravilha, meu garoto! Diga logo onde será. Não
tenho muito tempo a perder. A criança já está quase saindo
-- pediu o médico, incisivo.
Comecei a suar, pois não sabia o endereço exato da
Gruta. Repeti o que Peteleco havia me falado.
__ O Ri-ritual va-vai ser re-realizado na Gru-gruta
Iluminada. Sa-sabe onde fi-fica?
__ Sei muito bem. Agüenta mais um pouco, mulher ...
__ O quê? -- interrompi, não compreendendo aquelas
palavras.
__ Nada, não. Diga-me que horas será realizado o
Ritual?
__ Da-daqui a pouco -- respondi meio confuso.
__ Como daqui a pouco? Não dá mais para esperar. Só
um instantinho ...
Naquele momento ouvi alguns gritos e gemidos no
telefone seguidos de um ensurdecedor choro de bebê.
__ Nasceu. Nasceu. É uma linda menina -- informou-me
o médico, retornando ao telefone. __ E então, diga-me a
hora.
O jeito foi chutar uma hora qualquer:
__ Daqui a du-duas ho-horas.
__ Ótimo. Deixe eu desligar que ainda tenho de cortar o
cordão umbilical. Até breve, Saulo Lebre -- finalizou o
médico, desligando o telefone.
Tornei ao banco da praça e abri meu diário. Enquanto
esperava Peteleco e Lindoro, continuei a redigir o meu
diário. De repente, senti algo quente tocar em meu ombro
esquerdo. Ergui o pescoço e vi uma enorme mulher diante
de mim. Ela usava trajes ciganos e segurava um paco de
panfletos.
__ Que rapaz de olhos tão lindos! -- admirou a mulher,
pegando a palma de minha mão.

gutole@bol.com.br 221 http://lergratis.cjb.net


Sem que eu dissesse uma palavra sequer, a cigana
colocou um crucifixo na palma de minha mão, e disse:
__ Qual é o seu nome?
__ Sa-saulo Lebre .
__ Saulo Lebre, hoje será um dia muito especial pra você
...
__ É me-mesmo? -- interrompi, empolgado.
__ Vejo que tudo o que você programou para esse dia
dará certo. Encontrará uma jovem clara que estará olhando
para você. Ela irá te proporcionar momentos inesquecíveis.
Mas para isso, terá que chegar nela e apostar em
extravasar toda sua sensualidade masculina. Certo?
__ Ce-certo.
__ Vejo várias coisas nas linhas de suas mãos. Mas se
você quiser saber de algo mais, eu atendo meus clientes
nesse endereço aqui -- disse-me a cigana, entregando um
panfleto.
__ Mu-muito obrigado ...
__ Mãe Dinda, a seu inteiro dispor -- completou a cigana .
__ Até breve, gatinho.
Estranhamente, a mulher de trajes largos, afastou-se de
mim cantarolando uma animada música funk.
Talvez, depois do Ritual, eu fosse ao encontro de Mãe
Dinda para saber mais sobre o meu destino. Ela parecia ser
uma boa quiromante, além de exibir um corpo robusto e
imponente, algo inacreditável para a idade que aparentava
possuir.
Nem bem peguei na caneta, e uma folha de jornal,
trazida pelo vento, veio a se engastalhar entre minhas
pernas. Para a minha surpresa, a página trazida pelo vento
era sobre assuntos esotéricos. A parte superior da folha
datava de “Domingo, 26 de outubro 1997”, e, logo abaixo,
havia o horóscopo do dia. Procurei por Peixes, que dizia: “O
alinhamento do planeta Júpiter, com a Estrela Dóris da
Galáxia G-9, proporcionará um excelente dia para viajar,
para realizar um sonho antigo ou mais recente”.

gutole@bol.com.br 222 http://lergratis.cjb.net


Pulei de alegria. Os astros também estavam ao meu
favor. Respirei fundo e aliviado. O momento mais esperado
de minha vida estava bem próximo de ocorrer.
Não demorou muito e Peteleco apareceu com Lindoro,
que trazia em suas mãos santas o medalhão e a caixa
contendo a Esfinge Dourada. Sob o sol quente daquela
manhã de domingo em São Tomé das Letras, meus olhos
brilhavam de emoção e meu corpo, todo arrepiado, já sentia
uma forte presença do Mentor.
__ Saulo Lebre, que saudades de você, companheiro --
disse Lindoro com um sorriso estranho, entregando-me a
Esfinge e o Medalhão.
__ Levante logo desse banco, e vamos acabar de uma
vez com essa história -- resmungou Peteleco, mal-humorado
como sempre.
__ Li-lindoro, você é o me-meu Guia pre-preferido. O-
obrigado por cu-cuidar pa-para mim da bo-borboleta e do
me-medalhão -- agradeci, dando-lhe um forte abraço.
__ Isso faz parte do ofício -- falou-me o Guia, cuja
aparência estava um pouco diferente de quando o conheci.
Parecia até que havia levado uma baita surra da mulher.
__ Vamos parar com esse blá-blá-blá, que estamos
atrasados para o nosso compromisso. Entremos logo
naquele carro, pois não temos tempo a perder -- ordenou o
anão, com aquela cara de quem chupou limão com sal.
Entramos num Santana quatro portas, preto, pára-
choques brancos e pneus radiais. Um luxo de carro! Lindoro
foi dirigindo e Peteleco sintonizou uma rádio local. O locutor
conversava com uma ouvinte que dizia estar à procura de
um homem diferente, especial. Anotei o telefone dela para
que quando minha fala se tornasse melíflua e sensual, eu
pudesse conquistar aquela mulher com o mel de minha voz.
Lindoro não respeitava muito os sinais de trânsito:
andava na contramão, passava em sinal vermelho; às vezes
subia na calçada e tirava fina de alguns veículos
estacionados próximo à sarjeta. Esquisito mesmo era que
ele demonstrava não saber direito o caminho até nosso
gutole@bol.com.br 223 http://lergratis.cjb.net
destino, pois, volta e meia, fazia perguntas sobre a rota ao
Peteleco. Contudo, chegamos inteiros na Gruta Iluminada,
sem nenhum arranhão ou atraso. Quando saltamos do
carro, fiquei pensando como o Guia era um excelente
motorista, demonstrando muita destreza no caminho que
percorremos até à Gruta, no subúrbio da cidade.
Seguimos Peteleco, subindo uma íngreme escadaria
que contornava um morro. Mais ou menos no meio do morro
havia uma sacada de onde tínhamos uma visão privilegiada
de São Tomé das Letras.
Adentramos a Gruta passando por uma estreita porta de
madeira. Estava uma escuridão danada. Não dava para
enxergar um palmo sequer.
De súbito, as luzes do interior da Gruta acenderam-se, e
para minha surpresa, caiu sobre minha cabeça uma chuva
de pétalas de rosa. Ao meu redor pude ver os Guias me
aplaudindo, recebendo-me com um cativante sorriso no
rosto. Eles usavam as mesmas indumentárias dos monges,
com direito ao capuz cobrindo a cabeça.
No centro do imenso salão da Gruta, havia uma mesa
onde o Mentor encontrava-se deitado, mumificado. Corri até
ele, levando comigo a Esfinge Dourada e o Medalhão Azul.
Antes, porém, de eu tocá-lo, Albertinus gritou-me, sentado
numa cadeira de rodas.
__ Não o toque, Saulo. Ainda não é o momento.
__ A-albertinus, que bo-bom vê-lo no-novamente. O que
a-aconteceu com vo-você? -- indaguei-lhe, preocupado com
seu terrível estado físico.
__ Isso não importa, agora. Faça apenas o que eu tenho
para lhe dizer. Vamos iniciar o Ritual da Desmumificação
antes das doze badalas, certo? -- replicou Albertinus,
aproximando-se de mim com uma espada nas mãos.
Dei um giro completo para ver quem estava presente no
Ritual. Pude ver o Rodnaldo com os braços enfaixados,
sentado tristonho numa cadeira; Cledite, com uma cicatriz
no meio da testa, além de estar toda encurvada; Dedé,
reaparecido, com as pernas cruzadas e passando esmalte
gutole@bol.com.br 224 http://lergratis.cjb.net
nas unhas; Arieto, acenando com um largo sorriso nos
lábios; Meneca, cujas feições me fizeram lembrar um
anjinho, encostada na parede, segurando algo parecido
com incenso; Xexéu, com aquela cara deslavada, parecia
meio agitado, balançando a cabeça de um lado para outro e
segurando entre as pernas um tambor. Lindoro sentou-se
ao lado do Dedé; Peteleco, de Rodnaldo. Em seguida,
vestiram as indumentárias de monges.
__ Agitem o incenso e o tambor que o Ritual vai começar
-- anunciou Albertinus, em meio à batucada e à neblina que
se formou devido ao incenso.
Peteleco distribuiu para cada membro uma tocha
apagada, deixando uma acesa sobre um pedestal próximo à
mesa onde se encontrava o Mentor. Depois, apagou todas
as luzes e pediu para cada um dos Guias acenderem a sua
tocha, fazendo um círculo ao meu redor.
Albertinus pediu-me para pôr o Medalhão no pescoço e
deixar a caixa com a Esfinge Dourada no chão. Em seguida,
entregou-me a Espada da Sagrada Ordem dos
Mentecaptos. Ela representava a coragem, a bravura de um
Cavaleiro Iluminado diante de seus inimigos. Naquele
momento, eu lutava contra a minha gagueira, e esfreguei
por sete vezes a espada no meu pescoço, assim como regia
o Ritual.
Os Guias se movimentavam de um lado para o outro,
segurando as tochas, num vaivém cambaleante mas
majestoso. O Medalhão Azul brilhava em meu peito, e eu
continuava segurando a espada para o alto, no centro da
roda, cercado pelas bênçãos dos Guias.
__ Este primeiro passo, Saulo Lebre, é para neutralizar
todas as suas forças negativas que estão sendo
consumidas pelas chamas das tochas -- esclareceu
Albertinus, orientando o Ritual. __ Agora, as tochas serão
colocadas nos pedestais que contornam toda a extensão da
Gruta. Os Guias se ajoelharão, num semicírculo, diante da
mesa, e você, Saulo Lebre, pegará esse escudo dourado e
entregará para mim a espada.
gutole@bol.com.br 225 http://lergratis.cjb.net
Sentia-me mais leve, flutuando nas nuvens. Fiz tudo o
que Albertinus me pediu. Segurei o escudo enquanto que
ele, sentado na cadeira de rodas, atacou-me com a espada.
__ Defenda-se, Saulo. Defenda-se -- gritava Albertinus,
euforicamente. __ Você foi ótimo, excelente. Agora, solte o
escudo no chão, pegue a caixa com a Esfinge Dourada e
aproxime-se da múmia do Mentor.
Os Guias -- com exceção de um que não pude identificar
quem era -- continuavam ajoelhados, de cabeça baixa
coberta pelo capuz. Aproximei-me diante do corpo do
Mentor, o qual continuava todo enfaixado, imóvel,
adormecido.
__ Pegue o Medalhão e o coloque sobre o chacra frontal
do Mentor -- determinou Albertinus. __ Isso, Saulo Lebre.
Agora, feche os olhos e sinta a vibração da alma do Mentor
transmutando do medalhão para o corpo dele.
Senti um calor danado ladeando todo o meu corpo, como
se eu estivesse envolto às chamas de um fogueira infernal.
Algo, porém, deixava-me mais inquieto ainda: por quê será
que o médico estava demorando para chegar? Por tê-lo
escolhido para ser o meu padrinho no Ritual, eu queria tanto
que ele me abençoasse naquele momento magnânimo, tão
importante em minha vida.
__ Abra o olho, vagarosamente -- disse Albertinus.
O Mentor encontrava-se sentado diante de meus olhos.
Fiquei emocionado, e quase chorei de tanta alegria em
poder vê-lo vivo. Albertinus pediu-me para desenrolar a
faixa do Mentor. Com muito cuidado fui desenrolando,
desenrolando ... até que o corpo dele ficou livre daquela
faixa branca. A barba, o bigode e o cabelo pareciam ter
crescido um pouco mais.
__ Onde estou? -- indagou o Mentor, espreguiçando-se e
abrindo os olhos lentamente.
__ E-está a-aqui, a-amado Mestre -- respondi, cheio de
charme. __ Tro-trouxe-lhe a E-esfinge Dourado.
__ É você, Saulo Lebre? Você conseguiu realizar o
caminho de Varginha a São Tomé das Letras? Que
gutole@bol.com.br 226 http://lergratis.cjb.net
maravilha! Será um Cavaleiro Iluminado com o poder da
cura e da bravura. Porém, antes de eu passar esses
poderes à você, terá que responder algumas perguntas. Se
mentir, tudo estará perdido; e de nada valerá a sua
peregrinação -- acrescentou o Mentor, pegando em suas
mãos a caixa com a Esfinge Dourada.
__ Pro-prometo que di-direi so-somente a verdade, senão
quero ver meu cãozinho morto quando retornar à minha
morada -- garanti, beijando os dedos em cruz.
__ Tudo bem, Saulo Lebre. Quem tem direito à pergunta
é o cerimoniário deste culto, que no momento é o
Albertinus. Mas antes dele lhe inquirir algo, vamos até
àquela pequena janela soltar a Esfinge Dourada -- ordenou-
me o Mentor.
Segui ele até a pequena janela. O Mentor com uma das
mãos tocou em minha garganta, e com a outra, abriu a
caixa, deixando a Esfinge Dourada escapulir, tomando o
céu azul de São Tomé das Letras.
__ Já so-sou um Ca-caveleiro I-Iluminado? -- indaguei-
lhe, ansiosamente.
__ Só depois que você responder à indagação do
Albertinus. Está realmente pronto para dizer toda a
verdade?
__ Cla-claro, Me-mentor.
__ Então, deite na mesa e responda com toda
sinceridade, sem delongas.
Segui as Ordens do Mentor e deitei-me na mesa. Os
Guias, apesar de continuarem calados, levantaram-se do
chão e permaneceram em pé em volta da mesa. Albertinus
aproximou-se de mim sentado na cadeira de rodas e
inquiriu-me:
__ A pergunta é a seguinte, Saulo Lebre: Onde você
escondeu o Ursinho cor-de-rosa que o pai da Verusa lhe
deu?
Sim, eu havia me esquecido do tal do ursinho que o meu
patrão havia me entregado no dia que foi viajar. Rômulo
Nandis era administrador da fazenda onde eu morava. Ele
gutole@bol.com.br 227 http://lergratis.cjb.net
tinha uma vida muito agitada, vivia viajando para o exterior e
tinha pouco tempo para ficar com a coitadinha de sua filha
Verusa, minha vizinha.
__ O u-ursinho! -- exclamei. __ O Doutor Rô-rômulo
pediu-me pa-para man-mantê-los no local mais se-seguro
possível.
__ E o que você fez com o ursinho, Saulo Lebre?
Responda. Responda -- inquiriu-me o Mentor com um olhar
colérico não muito estranho.
__ Fi-fiquei assustado com a-aquilo dentro do me-meu
co-cofre, e segui os co-conselhos do Dr. Ri-ribero, o qual di-
dizia em suas fi-fitas para a ge-gente se livrar de qualquer o-
objeto estranho que ti-tivéssemos dentro de no-nossa casa.
Poderia ser ma-macumba ...
__ Seja conciso em suas respostas, peregrino. Diga
apenas o que você fez com o ursinho cor-de-rosa? --
indagou-me o Mentor com um tom de voz áspero.
Por que será que o Mentor estava tão alterado daquela
forma? Não parecia a mesma pessoa, tinha os olhos
arregalados e vermelhos, o semblante franzido e tosco. O
que será que estava acontecendo de errado? Respirei
fundo. Procurei me manter calmo e o mais tranqüilo
possível. Logo imaginei a escada de dez degraus do
exercício que o Rodnaldo havia me ensinado em Varginha.
Mas não deu nem para eu subir o primeiro degrau; o Mentor
bufou novamente em minha orelha:
__ Saulo Lebre, se você quiser se tornar um Cavaleiro
Iluminado, se quiser curar sua gagueira, responda logo a
minha pergunta. Não estou aqui para brincadeiras,
peregrino.
__ De-desculpe-me, Me-mentor. Naquele me-mesmo dia,
à no-noite, eu do-doei o ursinho pa-para uma criança po-
pobre que ba-bateu às po-portas de minha ca-casa pedindo
co-comida. Co-coitadinha. O se-senhor pre-precisava ver
co-como ela ficou con-contente ...
__ Seu imbecil! -- vociferou o Mentor.

gutole@bol.com.br 228 http://lergratis.cjb.net


__ Com licença, meus filhinhos -- disse uma mulher
entrando no recinto e aproximando-se apressadamente da
mesa onde eu me encontrava deitado.
Virei a cabeça, e notei que a mulher que havia invadido a
Gruta era a Mãe Dinda, a cigana que tinha lido minhas
mãos na praça central de São Tomé das Letras. Ela foi logo
distribuindo seus panfletos para os Guias.
__ Como ousa me importunar, sua gorducha -- berrou o
Mentor, postando-se à frente de Mãe Dinda.
A cigana, num ar de espanto, deixou seus panfletos
caírem no chão, e num delírio incomum, investiu no Mentor,
gritando eufórica:
__ Pastor Willian. A quanto tempo eu espero por esse
momento! Eu sou vidrada em você, meu pastorzinho
querido.
__ Maldita mulher, você estragou tudo __ berrou o
Mentor, aliás, o Pastor Willian, empurrando a mulher para
longe de si. __ Maldição, você arrancou minha barba e
minha peruca. Estragou meu disfarce. Homens, matem essa
desgraçada.
Os Guias agarraram Mãe Dinda e a amarraram nas
pernas da mesa. Imediatamente, antes que eu tivesse
alguma reação, também me amarraram fortemente sobre a
mesa. Fechei o olho, tentando acreditar que aquilo tudo era
uma miragem.
__ I-isso é um so-sonho! Só po-pode ser um so-sonho.
So-solte-me daqui -- implorei, não acreditando na enrascada
em que eu havia me intrometido.
Infelizmente, não era um sonho. Quando abri os olhos, a
pessoa que eu mais amava havia se transformado naquela
que eu mais odiava. O Mentor era mesmo o Pastor Willian.
Mas por quê ele havia me enganado o tempo todo? Disso
fiquei sabendo logo após ter levado um balde d’água fria na
cara.
Peteleco encontrava-se em pé num banquinho ao meu
lado direito, e segurava na mãos um vidro cheio de molho
de pimenta.
gutole@bol.com.br 229 http://lergratis.cjb.net
__ Deixe de brincadeira, Saulo Lebre, e diga logo onde
você escondeu o ursinho -- esbravejou o Pastor Willian,
apontando uma arma em minha direção.
Se eu desmaiasse seria pior. Não havia como fugir da
realidade. Permaneci mudo. Pasmo. Sem forças para dizer
uma palavra sequer. Se eu tivesse forças para arrebentar
aquelas cordas, juro que estrangularia aquele tirânico do
Pastor. Eu deveria ter ouvido o Mensageiro da Libertação;
apesar de ser meu demônio particular ele demonstrava ter
um coração bondoso, verdadeiro, humano. Por minha culpa,
por ter a cabeça dura em buscar no imaginário subterfúgios
para esconder meus fracassos, divaguei aquele tempo todo,
caindo como trouxa na conversa daqueles bandidos. Mas,
por quê será que eu era tão importante para a Ordem?
Seria só por causa do tal ursinho cor-de-rosa?
O Pastor Willian, sentou-se numa cadeira, e frente ao
meu olhar frio, esclareceu minhas dúvidas.
__ Antes de eu matá-lo, Saulo Lebre, gostaria de lhe
contar uma historinha.
Permaneci mudo, tentando pensar em alguma estratégia
de fuga -- o que seria muito difícil naquele momento.
Todos me olhavam com ira, como se eu fosse um tirano.
O Pastor iniciou sua explanação:
__ A Sagrada Ordem dos Mentecaptos é uma
organização mafiosa que age nos quatro cantos do mundo
e em cada local ela tem um nome específico. No Brasil, eu
sou o Representante dessa organização; e há algum tempo
estamos atrás de um rubi muito valioso, denominado “O
Grande Buba”. Seu patrão, o Dr. Rômulo Nandis -- que
Deus o tenha em seu descanso eterno -- ficou encarregado
de fazer o transporte do rubi. Talvez encantado pela beleza
peculiar do Grande Buba, ele resolveu permanecer com a
pedra preciosa. Depois de um dia inteiro de tortura, o Dr.
Rômulo nos disse que o rubi estava escondido no interior de
um ursinho cor-de-rosa, dentro do cofre de um empregado
de confiança chamado Saulo Lebre. Não foi por acaso que

gutole@bol.com.br 230 http://lergratis.cjb.net


o Albertinus apareceu na casa de Verusa. Aquela história
que ele lhe contou foi tudo mentira.
__ Mentira, Saulo Lebre. Essa é verdadeira filosofia da
Ordem. Rhá, rhá, rhá -- interrompeu Albertinus, caindo na
gargalhada, sentado na cadeira de rodas.
Fiquei boquiaberto. Completamente bestificado.
__ Os Rituais, a mumificação, tudo não passou de truque
de mágica. Pura ilusão de ótica ...
__ Mentira! -- intervi, acordando de minha mudez. __ O
Me-mensageiro da Libertação é re-real. Ele é um de-
demônio de ve-verdade, e se transforma em qualquer ti-tipo
de a-animal.
__ O único animal que ele se transforma é num Gorila,
não é mesmo Peteleco? É a única fantasia que temos para
enganar os babacas -- acrescentou o Albertinus.
__ Eu sou o Gorila -- confirmou Peteleco, atirando
algumas gotas do molho de pimenta em meus olhos. __
Mas eu não me lembro de ter aparecido para esse
gaguinho, não -- disse o anão, num tom decrescente,
tomado de dúvidas.
Aquilo ardia mais do que a pele queimada pelo sol.
Contive a dor, procurando manter-me calado. Quanto
menos eu falasse seria melhor para mim. Talvez a tortura
fosse mais amena. Naquele momento aprendi que não
importava o que os outros me diziam, pois a verdade estava
dentro de mim; e isso era o que realmente importava.
__ Quando roubei-lhe a roupa, eu procurava a chave de
seu cofre. Mas não encontrei nada naquele trapo velho.
Então, os Guias entraram em ação. Logo que conseguimos
a chave do cofre, pensamos que tudo estaria resolvido --
continuou o Pastor Willian. __ Mas, o tal cofre tinha outra
porta e mais outra. Por fim, o jeito foi explodi-lo. Mas,
ocorreu um imprevisto, e o Albertinus acabou tendo alguns
problemas e foi parar na cadeira de rodas.
__ Maldito. Você pagará por isso -- avisou Albertinus,
segurando um pé-de-cabra.

gutole@bol.com.br 231 http://lergratis.cjb.net


O Pastor Willian, sentou-se sobre a mesa, quase sobre
minhas pernas. Encostou a arma no meu peito, tornou a
levantar e prosseguiu com o relato:
__ Todavia, o ursinho cor-de-rosa que procurávamos não
estava no cofre. Enquanto eu te acompanhava de perto,
exercendo minhas funções pastorais, deixamos você
prosseguir com essa sua peregrinação imbecil, até
planejarmos um novo plano. Desde o início minha intenção
era torturá-lo, mas o Albertinus achou melhor a gente agir
com mais cautela e tranqüilidade. Bastava você dizer onde
escondera o ursinho, mas, de repente apareceu essa
víbora, gorducha, e estragou tudo. É, Saulo Lebre, parece
que você foi traído pela sua própria crença!
__ Não minta, Saulo Lebre. Diga onde está o ursinho de
uma vez por todas -- insistiu Albertinus, desconfiando de
minhas palavras.
__ Eu já fa-falei. De-deixe-me em pa-paz. O u-ursinho eu
dei pa-para uma me-menina pobre -- repeti, com os nervos
à flor da pele.
Peteleco atirou mais algumas gotas do molho de
pimenta em meus olhos. Contorci-me de dor. Aquilo não
mais ardia, queimava. Não conseguia enxergar mais nada.
__ Maldito. Você vai morrer, agora -- berrou o Pastor
Willian.
Naquele momento veio a lembrança daquela moça que
estava na UTI do hospital de Três Corações, precisando
urgente de um transplante de rim. Talvez, eu tinha o direito
de um último desejo antes de morrer.
__ Posso fa-fazer um último pe-pedido antes de pa-partir
desse mun-mundo? -- inquiri, cegamente.
__ Rhá, rhá, rhá -- gargalharam em coro.
__ Então o gaguinho tem um último desejo -- ironizou o
Pastor. __ Diga qual é, que o cano já está engatilhado para
disparar bem no meio de sua testa. Rhá-rhá-rhá.
___Pri-primeiramente, eu que-queria que vo-vocês
degolassem essa ca-cafajeste da Mãe Di-dinda. Ela ha-

gutole@bol.com.br 232 http://lergratis.cjb.net


havia me fa-falado que hoje eu te-teria um di-dia
inesquecível.
__ É esse o seu último desejo? -- inquiriu-me o Pastor.
__ Te-tem mais uma co-coisa.
__ Diga logo que já estou perdendo paciência.
__ Po-pode me ma-matar. Mas não a-atire no me-meu
rim. Eu que-quero que e-ele seja do-doado para uma mo-
moça de Três Co-corações ...
__ Tarde demais, a moça já morreu — lamentou-se uma
voz de longe, em meio a uma generalizada surpresa que
tomou conta do lugar.

CAPÍTULO XXXI
gutole@bol.com.br 233 http://lergratis.cjb.net
LADRÃO ROUBA LADRÕES

Na entrada da Gruta, um sujeito de trajes brancos


apareceu rodeado por quatro homens com colete da polícia
federal; estes, com cara de poucos amigos, apontavam
potentes armas para dentro do recinto.
__ Enfim nos encontramos novamente, seu salafrário --
afirmou num tom vingativo o médico encarando
corajosamente o Pastor Willian.
Imperceptivelmente, o pseudo Mentor sinalizou para
Albertinus, na cadeira de rodas.
__ Não tentem nada, senhores -- exclamou um dos
policiais, dando um passo à frente. __ Estes meus colegas
são a elite dos federais e não hesitarão em abrir fogo contra
quem quer que seja. Agora, encostem todos na parede e
coloquem suas armas no chão.
O clima era tenso. Os policiais pareciam dominar a
situação mas eu sabia que os Mentecaptos poderiam reagir
a qualquer momento.
Sempre trocando misteriosos olhares com seu chefe, os
Guias colocaram algumas armas que traziam consigo no
chão gelado da caverna. Em seguida, se puseram junto à
parede da gruta.
__ Você também, engomadinho -- esbravejou o policial
no comando ao notar que o Pastor Willian mantinha-se
imóvel.
__ Só um momento, Tenente Eliseu -- interrompeu o
médico, caminhando na direção do mafioso líder da Ordem
Esotérica. __ Seu calhorda, eu sabia que ainda teria a
oportunidade de um dia voltar a ficar frente a frente com
você.
As extremidades da boca do Mentor se expandiram. Era
como se ele esboçasse um sarcástico sorriso ao médico
que outrora fora um dos membros da Ordem.
gutole@bol.com.br 234 http://lergratis.cjb.net
__ É uma pena perceber que ainda acredita nos valores
tradicionais de nossa sociedade, meu velho.
As palavras do pastor foram logo retrucadas com um
tapa desferido pelo médico na cara do líder ocultista.
Os Guias se agitaram e alguns ameaçaram pegar
novamente as armas que se encontravam no chão.
O Tenente Eliseu interviu no caso, a fim de evitar um
confronto.
__ Fiquem todos quietos. Doutor, venha cá. E quanto a
você, Willian Castilho, coloque as mãos na cabeça e
permaneça ao lado dos demais.
Vagarosamente, e com uma certa expressão de domínio
da situação, o mentiroso mafioso obedeceu a ordem dada
pelo Tenente Eliseu.
__ Igor, solte aqueles dois.
Com o olhar e a metralhadora voltadas para os
Mentecaptos, seguindo as determinações dadas pelo
Tenente, o policial soltou a mim e a Mãe Dinda do local
onde nos achávamos amarrados.
__ Muito bem, rapaz -- cumprimentou-me o Tenente
Eliseu ainda com bastante seriedade. __ Graças a você,
depois de anos de investigações, conseguimos chegar até à
cúpula dessa quadrilha de bandidos. Fique certo de que
será devidamente recompensado por isto.
A promessa do federal não me animou. Claro que estava
imensamente decepcionado com a Ordem que, até então,
havia me cegado, iludido e ludibriado com suas fantasias.
Contudo, minha maior frustração -- que recompensa alguma
poderia suprir -- era a de ter de continuar com minha
incômoda gagueira.
__ E a senhora, como está? -- perguntou o policial à Mãe
Dinda, a doida cigana presa pelos Mentecaptos.
Dona de uma expressão estranha, a mulher levantou a
manga de seu vestido e olhou rapidamente para um relógio
de ouro puríssimo, despertando a admiração de todos na
Gruta.

gutole@bol.com.br 235 http://lergratis.cjb.net


__ Estou bem, obrigada. Mas acho que daqui a uns cinco
minutinhos estarei bem melhor.
Ninguém, quero dizer, quase ninguém, entendeu o
estranho significado das palavras da cigana. Todavia, isto
não importava tanto naquele momento.
__ O cofre. Mostre-nos onde esconde as riquezas dos
tolos que caem em seu charlatanismo, Willian -- disse o
Tenente, ávido por ver a fortuna que a Ordem Esotérica
mantinha em sua posse.
__ Mostre a eles, Arieto -- falou o Mentor, com uma fria
tranqüilidade que me deixava apreensivo.
__ Mas ...
__ Não há problemas, Arieto. Tudo sairá bem. Puxe o
pedestal da tocha, rapaz, e deixe os policiais se deliciarem
com nossa fortuna.
Obediente ao mestre, e sob a mira constante dos
policiais, Arieto dirigiu-se até uma das tochas fixas na
parede da caverna e puxou-a para baixo. Ato contínuo, um
engenhoso mecanismo fez com que se deslocasse uma
parte da parede, deixando à vista de todos o reluzente
esplendor dourado advindo do interior do local onde os
esotéricos mantinham guardados os despojos de seus
engodos.
Quase babei ao ver tanto dinheiro e objetos preciosos
juntos. Aquilo parecia mais a mina do Rei Salomão.
__ Admirados, senhores? -- indagou o pastor, sarcástico.
__ Tenho a absoluta certeza de que nem se vocês
trabalhassem por quinhentos anos seguidos conseguiriam
obter tamanha riqueza. Ah, tenho certeza de que o senhor,
Tenente Eliseu, e seus homens, terão uma vida muito mais
confortável e cheia de regalias se aceitarem de presente
algumas destas peças de ouro que temos aqui. Caso ainda
estejam com dúvida, quero garantir-lhes que outras
autoridades, bem mais graduadas que os senhores, não
recusaram anteriormente a minha tentadora oferta. Claro
que, em contrapartida, seria bom que todos esquecêssemos
este pequeno incidente de hoje e seguíssemos nossas
gutole@bol.com.br 236 http://lergratis.cjb.net
vidas como se nada houvesse acontecido. Evidente,
também, que o médico, o gaguinho e a cigana terão que
ficar por nossa conta. Então, senhores policiais? Aceitam a
minha oferta?
Não sei se os federais sucumbiriam àquela proposta do
diabólico Mentecapto, mas, naquele instante, as luzes da
Gruta se apagaram e, cerca de cinco segundos depois, uma
luminária com lâmpadas de emergência vermelhas se
acendeu no teto da Gruta.
Tudo parecia estar como antes ... com uma única
exceção: com uma bazuca de grosso calibre apontada em
direção dos policiais, Lindoro demonstrava claramente a
inversão da situação a favor dos marginais dos mafiosos.
__ Muito bem, Lindoro -- disse o Pastor Willian
alegremente. __ Não sei de onde você tirou esta arma, mas
acho que não vamos precisar de violência. Certamente
nossos estimados amigos da polícia vão aceitar nossa
oferta, como tantos outros já o fizeram, e tudo ficará
resolvido.
__ Engana-se, Mentor. Agora é que eu vou começar a
acertar as coisas.
A cigana, rebolando sensualmente, chegou perto de
Lindoro, deu-lhe um sonoro beijo no rosto e postou-se ao
seu lado.
O Tenente Eliseu, por sua vez, revelava estar
atormentado com o fato.
__ Sua voz ... eu a conheço. Mas não é possível.
__ Sim, Eliseu. Este mundo dá muitas voltas. Nele tudo é
possível.
Depois de pronunciar estas palavras de teor enigmático,
Lindoro tirou a peruca e o óculos que usava, deixando o
chefe dos federais petrificado como se estivesse olhando
para um fantasma.
Para aumentar nossa surpresa, a cigana levou as mãos
até a altura de sua nuca e soltou o colchete que prendia seu
vestido. Desceu o zíper e deixou cair o vestido, revelando o
corpo magro e bem modelado de uma jovem trajando uma
gutole@bol.com.br 237 http://lergratis.cjb.net
camiseta e shorts. Quando tirou a peruca da cabeça, notei
que se tratava de uma moça igualmente disfarçada.
Mas quem eram eles, afinal?
Foi o próprio Tenente Eliseu quem desfez a dúvida
generalizada.
__ Sidísio! Dagmérica!
O sujeito confirmou:
__ Sim, Eliseu. Somos nós.
Willian Castilho, o falso Mentor, intrometeu-se no caso.
__ Que história é esta? Quem são estas pessoas?
__ É bom ficar quieto, pastor -- replicou o tal de Sidísio.
__ Creio que sua situação não seja nada favorável nesta
história dos ilustres presentes. Gostaria que o senhor,
Tenente, ordenasse aos seus auxiliares que depusessem
suas armas em cima desta mesa no centro da Gruta.
Intimidados pela arma, os policiais seguiram à risca o
mando do sujeito disfarçado naquele que outrora fora meu
Guia.
__ Muito bem. Agora que estão todos dominados, é bom
esclarecer suas dúvidas antes de tomar o avião. Dagmérica
-- disse, voltando-se para a jovem ao seu lado --, pegue as
chaves em meu bolso e prepare o aparelho para nossa
partida.
__ Venha logo, meu bem.
__ Irei, sim. Logo que pegar alguns presentinhos.
Depois que a moça foi rebolando para fora da caverna,
Sidísio iniciou sua longa explicação.
__ Com exceção do Tenente Eliseu aqui presente, acredito
que mais nenhum de vocês me conheçam. Meu nome é
Sidísio Peixera, e a questão de alguns anos saí do país
levando comigo o “Grande Buba”, o segundo rubi mais raro
do mundo. Alguns dizem que foi um furto, mas eu vejo de
outro modo. No meu entender, foi a recompensa que o
destino me concedeu após anos e anos de luta contra o
crime, já que eu era um detetive particular em São Paulo.
“Alguns meses atrás, entretanto, um indivíduo me
localizou na Austrália, onde eu e a Dag morávamos. Mas fui
gutole@bol.com.br 238 http://lergratis.cjb.net
mais esperto do que ele e deixei que ele levasse um rubi
falso, escondido no ursinho de pelúcia de minha ... ah,
amiga.
__ E por quê diabos você veio se infiltrar em nossa
organização? -- perguntou enfurecido o Mentor.
__ Foi mais outra destas felizes coincidências que a vida
nos proporciona. Dagmérica ficou dias sem dormir, tudo pro
causa do roubo de seu ursinho. Outra alternativa não restou
a nós senão a de voltar ao Brasil à procura do bichinho de
pelúcia. Como eu sabia o nome do sujeito que levou o
ursinho, e usando minha vasta experiência em encontrar
pessoas escondidas, foi bem fácil para mim descobrir onde
o sujeito morava e, através de uma trama bem sucedida,
recuperar o ursinho.
Curioso, intervi na exposição do detetive bandido.
__ Mas quem e-era a cri-criança que foi a-até a mi-minha
casa cho-chorando e para quem e-eu de-dei o u-urso?
Sidísio sorriu.
__ Esta foi uma das raras idéias que a Dag teve em sua
vida. Quando localizei a casa do sujeito que estava com o
bichinho, disfarcei-me de peão e fui até lá. Descobri, então,
através de sua filha, que um rapaz de nome Lindoro, na
noite anterior, foi até à casa de seu pai e que, após uma
longa conversa, os dois saíram às pressas, ocasião em que
seu pai pegou o famigerado ursinho e o levou até à casa de
seu vizinho e empregado, um gago chamado Saulo Lebre.
__ É ve-verdade -- confirmei, feliz por ter aparecido na
narrativa do eloqüente detetive bandido.
Naquele momento todos ouvimos o ronco forte do motor
de um avião soando do lado de fora da Gruta. Após um
sorriso de satisfação por ter ouvido tal barulho, Sidísio
prosseguiu:
__ Eu sabia, então, onde e com quem estava o ursinho
da Dag, mas meu faro policial percebeu que havia algo
estranho no ar.
__ De-devia ser a Ve-Verusa -- esclareci. __ E-ela não
co-costuma tomar ba-banho to-todos os dias.
gutole@bol.com.br 239 http://lergratis.cjb.net
__ Eu que o diga -- completou estranhamente Albertinus
em sua cadeira de rodas.
__ Não é bem disto que estou falando -- continuou
Sidísio. __ O que mais me intrigava era como eu havia sido
localizado pelo pai da Verusa, vez que nem os federais
brasileiros nem tampouco a Interpol conseguiu me achar por
todos estes anos. Ou este homem era um gênio -- e por se
tratar de um mineiro, duvidava muito -- ou fazia parte de
uma poderosa organização mafiosa. Foi então que máfia
me lembrou dinheiro; dinheiro me lembrou a ilha que a Dag
tanto queria ... e não pude resistir.
“Continuei conversando com a Verusa, mas notei que ela
estava meio desconfiada. Havia me resolvido a sair daquela
casa quando, inesperadamente, a moça fechou a porta e
me disse que estava disposta a contar tudo o que sabia dos
negócios de seu pai, desde que eu cedesse aos seus ...
caprichos femininos.
__ Não e-entendi -- falei tomado de dúvidas em minha
cabeça.
__ É mesmo um otário -- disse novamente Albertinus do
outro lado da Gruta.
__ Sem entrar em maiores detalhes quanto a este
cansativo pormenor, cabe-me esclarecer que a moça
realmente me contou tudo o que sabia, inclusive
importantes detalhes acerca da Ordem dos Mentecaptos, da
qual seu pai era membro.
“Depois de horas, quase me arrastando, deixei aquela
casa e fui até meu carro escondido no mato, onde relatei
tudo a Dag. Como Verusa me disse que seu vizinho era
meio trouxa, Dagmérica bolou um plano: colocaria roupas
infantis e, fingindo-se de criança chorona, iria até onde o
sujeito morava, inventaria qualquer desculpa e pegaria seu
ursinho. E não é que deu certo!
Senti o peso do olhar de reprovação do médico que
estava ao meu lado. Será que tinha feito algo de errado?
A narrativa de Sidísio teve continuidade.

gutole@bol.com.br 240 http://lergratis.cjb.net


__ Não obstante Dag estar com seu ursinho, segui os
passos de uns membros da Ordem esotérica por alguns
dias. Escutando a conversa de um senhor de barba branca,
dias atrás, com outro membro da Ordem, descobri que havia
um peregrino que estava realizando uma jornada até São
Tomé das Letras, onde haveria uma espécie de Ritual no
qual ele seria admitido na Ordem. Isto, porém, se ...
__ Se nos revelasse o segredo do seu maldito cofre --
esbravejou o pastor esotérico, cujos olhos estavam rubros
de cólera.
__ Exatamente -- anuiu Sidísio. __ Ao que me parece, ao
longo de toda a peregrinação e até agora, este valente
rapaz aqui, não contou aos Guias aquilo que a Ordem tanto
desejava.
__ Quer dizer então que a gente tá todo machucado à
toa? -- indagou um dos Guias com os braços enfaixados
como um múmia.
__ Sim -- confirmou Sidísio. __ O urso não estava com o
gaguinho desde antes de ele iniciar sua jornada até aqui.
Isto, é claro, sem contar com o fato de o “Grande Buba”
verdadeiro jamais ter retomado ao país, tal como vocês
acreditavam.
Os Mentecaptos ficaram revoltosos. A ira de cada um dos
moribundos Guias convergiu para a pessoa de seu líder,
Willian Castilho.
Sidísio disparou um assustador projétil de sua bazuca,
abrindo um enorme buraco na parede da Gruta, deixando
todos os presentes completamente imóveis.
__ É melhor que mantenham seus ânimos sob controle,
senhores -- advertiu o detetive. __ Aliás, seria interessante
que seus homens, Tenente Eliseu, façam uso destas
algemas que carregam na cintura e imobilizem nossos
camaradas aqui presentes. Ah, e nada de truques, policiais.
Quando vocês estavam no jardim de infância eu já
perseguia bandidos muito mais espertos que cada um de
vocês.

gutole@bol.com.br 241 http://lergratis.cjb.net


A elite da polícia federal não pôde contestar os fortes
argumentos de Sidísio, e algemaram cada qual dos
esotéricos da Ordem presentes na Gruta -- não sem a
resistência do líder dos Mentecaptos.
__ Senhores, senhores. Vamos esquecer nossas
divergências. Se partilharmos nosso tesouro, todos
ficaremos satisfeitos e nenhum de nós se decepcionará.
__ Sidísio, o avião está prontinho, prontinho, pra gente ir
-- anunciou Dagmérica, a falsa cigana, entrando no recinto
com seu shortinho cujo efeito era mais devastador que a
bazuca do detetive.
Novamente Sidísio sorriu, plenamente dono da situação.
Ordenou aos federais que virassem os Mentecaptos de
frente às paredes da Gruta, postando cada um deles abaixo
dos vários pedestais de tochas que circundavam o local.
Depois, mandou que erguessem os braços dos marginais
ocultistas e encaixassem as correntes das algemas nos
pedestais, imobilizando assim os meus ex-Guias.
__ Muito bem. Senhores, o avião dos Mentecaptos, que
pegarei emprestado, já está pronto para minha partida. Por
obséquio, façam-me um último favor, ou melhor, retribuam-
me as centenas de vezes que colaborei com a polícia
quando estava na ativa. Peguem estas carriolas que estão
encostadas naquele canto e as encham com o tesouro do
Pastor Willian.
__ Desgraçado. Maldito seja.
Sidísio riu-se. Demonstrava estar se deliciando com a
virada de mesa provocada por sua perspicácia genial.
Dagmérica tomou a metralhadora outrora usada pelo
Mentor e pôs-se a supervisionar as ordens dadas pelo
detetive aos federais.
__ Uma última advertência, caros policiais. Apesar de a
cara da Dag expressar pouca inteligência e esperteza --
fato que tem meu aval --, em nossa estada de alguns meses
no Japão, ela tornou-se mestre samurai com graduação
máxima. Será pouco conveniente que tentem qualquer

gutole@bol.com.br 242 http://lergratis.cjb.net


coisa, vez que, garanto a vocês, trará conseqüências muito
dolorosas a quem a fizer.
Os federais, temerosos, submeteram-se a Sidísio e
Dagmérica. Enchiam as carriolas com dinheiro e objetos
preciosos contidos no cofre secreto da Ordem e, sob a mira
da metralhadora do pastor, agora empunhada pela jovem de
shortinho provocante, despejavam continuamente o tesouro
no compartimento de cargas do avião.
Com os policiais ocupados e os Mentecaptos
imobilizados, eu, o médico, o Tenente e Sidísio, travamos a
última conversa no interior daquele novo subterrâneo da
verdade.
__ Algo ainda me intriga, Sidísio -- disse o Tenente. __
Como você se infiltrou na Ordem e como conseguiu estar
hoje aqui?
__ Com as informações obtidas em minha investigação,
conheci alguns Guias da Ordem. Numa destas ocasiões, em
um pequeno estabelecimento comercial, ouvi a conversa
travada entre dois sujeitos ligados à organização. Descobri
que o primeiro era um cara do “departamento religioso” da
Ordem. Ele acompanhava o Pastor Willian, e sob diferentes
disfarces, simulava situações como sendo uma pessoa do
povo que recebia algum tipo de benefício através do
suposto poder do pastor “capetalista”. O sujeito contava que
estava, junto com o pastor, acompanhando de longe a
peregrinação de um iniciado. De acordo com seu relato, o
peregrino chamava-se Saulo Lebre, e o seu interesse aos
esotéricos consistia no fato de ele ter em seu poder --
supostamente -- um precioso rubi escondido no interior de
um urso de pelúcia, o qual encontrava-se em seu cofre
particular. Cabia aos Guias utilizar todo seu conhecimento
de psicologia de abordagem esotérica para, ao mesmo
tempo em que iludissem o pobre rapaz, conseguissem dele
a senha secreta de seu cofre a fim de se pegar o rubi.
Enquanto Sidísio continuava a falar feito político em
palanque de eleição, fui percebendo o quanto acabei sendo
ludibriado aquele tempo todo, totalmente manipulado e
gutole@bol.com.br 243 http://lergratis.cjb.net
seduzido pela crença de fachada daqueles marginais. Foi
então que passei a dar valor às coisas que o Mensageiro da
Libertação me dissera.
O detetive, como papagaio, concluiu suas explicações.
__ O homem que conversava com o ajudante do pastor
chamava-se Lindoro e, segundo narrava ao outro, havia
sido escalado para guiar o peregrino daí a dois dias até seu
destino final. Quando ele afirmou aquilo, logo me veio uma
idéia: disfarçar-me-ia como sendo tal sujeito e, após
imobilizá-lo, bastaria utilizar de toda a minha habilidade
cênica e representar seu papel no Ritual da Gruta.
__ E, realmente, mais uma vez você enganou a todos --
avaliou reverentemente o Tenente Eliseu.
__ Com a ajuda preciosa da Dag, é claro. Ela disfarçou-
se de uma cigana quarentona para me auxiliar. Primeiro,
travou contato com Saulo Lebre, aqui na cidade, a fim de
termos certeza se a pessoa toda suja e desengonçada que
entrou na cidade acompanhada de Peteleco era o tão
esperado peregrino. Segundo, conforme combinamos, ao
entrar distribuindo panfletos na Gruta, no momento do
Ritual, com o intuito de desviar a atenção de todos,
possibilitando-me tirar esta belezinha de arma que está
aqui, da minha pasta, montá-la rapidamente e escondê-la
atrás de uma das carriolas, a fim de usá-la no tempo
necessário.
__ Mas se não fosse pelas luzes apagadas, você talvez
não tivesse a oportunidade de virar a situação seu favor, a
menos que ...
Como de costume, Sidísio riu-se da observação do
policial.
__ Sim, Eliseu. Suas suspeitas estão corretas. Eu
preparei um dispositivo para cortar a energia e acender as
luzes de emergência. Foi fácil. Cheguei antes de todos, bem
cedo, vasculhei o local e desenvolvi esta estratégia de ação.
Parece que funcionou.
__ Si, querido -- exclamou sorridente a moça samurai de
coxas sedutoras. __ Fizemos como você pediu. Agora
gutole@bol.com.br 244 http://lergratis.cjb.net
vamos embora que eu tô louquinha pra te recompensar por
ter recuperado meu ursinho.
__ É, senhores, a conversa estava boa, mas os mares do
sul clamam por mim. É hora de partir. Grato pelo esforço
realizado, amigos policiais. Por gentileza, queiram entrar
dentro da passagem secreta, sim? Isto, ótimo. Dag, querida,
acione o mecanismo para fechar a porta do cofre. Muito
obrigado, amor. Agora, amigos, façam-me o favor de
acompanhar-nos até o avião para nos conceder suas
cordiais despedidas.
Sem outra alternativa, seguimos o casal até a escadaria
do jatinho dos Mentecaptos. Pela última vez mirei meu olhar
nas nádegas vistosas da moça, que subiu as escadas,
entrou no aeroplano e posicionou-se na cabine de pilotagem
do aparelho.
__ Caso não saiba, Tenente, orientei Dag para inutilizar
todo o sistema de comunicação existente em suas viaturas,
além de furar os pneus dos carros, é claro. Contudo, não
fique irritado, amigo. Foi mera precaução. Até vocês
descerem este morro e chegarem na cidade, mesmo que
contatem os órgãos competentes -- se é que isto existe no
Brasil --, já estarei fora do espaço aéreo brasileiro. Por
outro lado, não fique preocupado: tem em suas mãos os
ardilosos membros de uma das mais perigosas
organizações mafiosas do país, que sob a dócil fachada de
uma seita esotérica da Era de Aquários, corrompe pessoas
financeira e moralmente. Parabéns, meu amigo. Espero que
da próxima vez que nos virmos você já seja capitão.
__ Que ho-homem mais bo-bom -- argumentei debaixo
do olhar de reprovação do oficial federal.
__ Ah, já ia me esquecendo. Do outro lado do avião há
um presentinho meu para vocês.
__ Presentinho? -- perguntou o médico assustado.
__ Sou um ladrão bom e honesto. Creio que vocês três o
merecem já que tiveram muita dor de cabeça por causa
destes ilusionistas Mentecaptos.

gutole@bol.com.br 245 http://lergratis.cjb.net


O Tenente Eliseu deu um passo à frente e interrogou
pelo última vez o ex-detetive:
__ Sidísio, por quê?
Compreendendo o sentido e a profundidade do
questionamento, o sujeito baixou a bazuca e respondeu
num tom amigável, como que relembrando os tempos idos:
__ Eliseu, acho que mereço alguma recompensa por
tantos anos de luta a favor da dignidade e da justiça. Quem
há de me condenar? As autoridades corruptas com discurso
de bonzinho que têm neste pobre país? O povo ávido por
dinheiro e escravo dos contra-valores transmitidos pela
tevê?
__ Além do mais, ladrão que rouba ladrão tem mil anos
de perdão -- completou Dagmérica, puxando Sidísio para
dentro e fechando a porta do avião.
Minutos depois, o aparelho cruzava as nuvens,
escondendo-se de nossa visão.
__ Santo Deus! -- exclamou o médico.
A poucos metros de nós havia uma carriola, repleta de
notas de dinheiro, moedas e objetos preciosos.
Era a parte que nos cabia.

gutole@bol.com.br 246 http://lergratis.cjb.net


EPÍLOGO

Permaneci, ainda, por cerca de dez dias em São Tomé


das Letras. Fiquei morando numa das casas de aluguel do
médico, a qual estava desocupada e ficava na periferia da
cidade.
Toda manhã eu ia até à delegacia. Um batalhão de
policiais federais me interrogavam a respeito de tudo o que
eu sabia sobre a Ordem dos Mentecaptos. Já não
agüentava mais ter de olhar para aquele tal de Tenente
Eliseu. Por outro lado, quanto mais perguntas me eram
feitas, mais coisas sobre a Ordem eu conseguia relembrar.
Quando chegava em casa, corria pegar minha agenda, e
anotava tudo o que havia contado para os policiais. À noite,
dirigia-me ao hospital, onde eu estava me consultando com
um psicanalista, amigo do médico.
O psicanalista parecia estar perdendo a paciência
comigo. Ele disse que meu problema era muito sério, e
desconfiava de que se tratava de um trauma de infância.
Quando indaguei-lhe a respeito de quanto tempo demoraria
o tratamento de minha gagueira, ele garantiu que no prazo
de dois anos eu estaria completamente curado.
gutole@bol.com.br 247 http://lergratis.cjb.net
De malas prontas, naquela manhã de garoa fina, depois
de ser liberado pelos policiais e ter desistido da longa
terapia financeira, dirigi-me à estação rodoviária de São
Tomé das Letras, a fim de tomar o ônibus que partiria para
Varginha.
Pelo caminho, mais uma vez fui relembrando o trajeto de
minha peregrinação. Sem nenhuma perspectiva na vida e
aborrecido com a notícia que os policiais me deram de que
o pai de Verusa, o meu patrão, havia sido executado por
membros da Ordem, não havia outra alternativa para mim, a
não ser dar um novo rumo a minha vida. Talvez, pudesse
transformar o meu diário num livro: “Diário de um Cavaleiro
Iluminado”.
Havia poucos passageiros no ônibus; a viagem foi rápida
e tranqüila. Parei na rodoviária de Varginha e segui em
direção à estação ferroviária, de onde pegaria o trem que
me levaria até a Colônia de Monte Belo.
Entrei numa padaria para comprar biscoitos e uma lata
de refrigerante. Caminhei mais dois quarteirões e cheguei
na estação ferroviária. Poucas pessoas transitavam naquele
momento. Dirigi-me ao guichê e comprei a passagem do
trem do meio-dia. Era onze e meia e o trem já se encontrava
na estação. Entrei na fila. O bilheteiro pegou meu bilhete e
avisou-me com um sorriso debochado:
__ Caro amigo, o senhor está entrando no comboio
ferroviário errado.
__ Ma-mas e-esse trem de trem não pa-passa na Colônia
de Mo-monte Belo? -- indaguei desconfiado.
__ Passa, sim, senhor. Mas essa locomotiva está um
pouquinho atrasada.
__ Ma-mas não é só o tre-trem do meio-dia e meia que
pa-passa em Mo-monte Belo?
__ Sim, senhor. É que essa locomotiva é a de ontem.
Sabe, aqui em Minas tudo é meio devagar.
Quase caí de costas. Só me faltava essa! Era muito azar.
O jeito foi procurar um lugar para sentar.

gutole@bol.com.br 248 http://lergratis.cjb.net


Sentei num banco próximo a um pombal e abri o
saquinho de biscoitos.
De repente, uma pomba pousou sobre o encosto do
banco de madeira.
__ A quanto tempo, Saulo Lebre -- cumprimentou-me a
pomba, para minha surpresa. __ Lembra-se de mim?
__ Me-mensageiro! -- exclamei, engasgando com um
biscoito.
__ Eu mesmo, Saulo Lebre. Parece que você conseguiu
se livrar daqueles canalhas. Porém, pelo que vejo, ainda
continua gago.
__ É um ma-mal que te-terei de co-conviver pro re-resto
de minha vi-vida -- murmurei.
__ Absolutamente, Saulo. Eu tenho uma dívida com você
-- revelou o Mensageiro.
__ Dí-dívida? Que dí-dívida é essa? -- inquiri tomando
um gole de refrigerante.
__ A dívida da gratidão. Você mudou a minha vida. Fez
com que eu olhasse para mim próprio e refletisse acerca de
meus atos. Você foi o espelho que eu tinha medo de olhar.
Pude ver minha imagem, meu comportamento, minhas
maldades refletidas em você, Saulo Lebre -- esclareceu o
Mensageiro da Libertação.
__ Ma-mas eu não so-sou uma pessoa má --
resmunguei, ciente de que eu sempre fora uma boa pessoa.
__ Eu não disse que você é uma pessoa má. Apenas
falei que você serviu-me de espelho; refletindo a minha
própria imagem, não a sua. Entende? -- replicou o
Mensageiro, arrancando uma pena de sua asa. __ Tome
esta pena, Saulo.
Peguei a pena branca que o Mensageiro me ofertou e
indaguei-lhe:
__ O que e-eu vou fa-fazer com essa pe-pena branca?
__ Certas pessoas são cabeça dura mesmo. Você,
Saulo, é uma dessas pessoas. Quando lhe conheci, eu era
o seu demônio particular, o Mensageiro da Libertação;
todavia, graças a você, comecei a ver a vida de uma
gutole@bol.com.br 249 http://lergratis.cjb.net
maneira diferente. Senti algo estranho dentro de mim
quando o ajudei pela primeira vez. Lembra-se da vaca?
Aquilo que senti é o que vocês chamam de felicidade por
fazer o bem. Algo que nunca havia sentido em toda minha
jornada de Mensageiro ...
As palavras da pombinha branca me comoviam. Não
contive as lágrimas e comecei a chorar em silêncio, ouvindo
o testemunho do Mensageiro.
__ ... gostei de poder ajudar o próximo. Aquilo me fez
muito bem. A recompensa do bem é muito grandiosa
comparando-se à quinquilharia do mal – complementou,
arrepiando suas penas.
Sem sombra de dúvida, o Mensageiro era alguém que eu
poderia confiar. Apesar de tudo o que eu havia aprontado
com ele no caminho até São Tomé das Letras, dirigindo-lhe
toda minha ira e rancor, em defesa à Sagrada – aliás,
excomungada – Ordem dos Mentecaptos, o Mensageiro
viera para me agradecer algo que nunca imaginei que
pudesse ocorrer: o meu demônio particular tinha se
convertido para o bem.
Naquele momento, lembrei-me das palavras de Arieto.
Ele havia falado para eu destruir o meu demônio particular;
era só pronunciar o nome secreto do Mensageiro da
Libertação em voz alta.
__ É ve-verdade aquela história de que se eu de-
descobrisse seu ve-verdadeiro nome vo-você seria de-
destruído?
__ Que coisa mais repugnante, Saulo Lebre! Aqueles
malucos de seus Guias são as pessoas mais ignorantes que
já existiram em todo o planeta. Eles decoravam uma cartilha
da Ordem, que era o guia dos Guias, e tudo que estava
escrito nela – cujo conteúdo descortinava o fundo das
carências humanas com o objetivo de iludir as pessoas --
eles usavam para persuadir suas vítimas. Na verdade, os
Guias eram condicionados a falar e agir conforme ditava as
regras da cartilha.

gutole@bol.com.br 250 http://lergratis.cjb.net


__ Se fo-for me-mentira o que o A-arieto me di-disse,
então, diga-me o se-seu nome.
__ Saulo. Meu nome sempre foi Mensageiro da
Libertação. Agora que me transformei num novo ser,
gostaria que você tivesse a honra de escolher um novo
nome para mim – pediu a pombinha, pegando-me de
surpresa.
__ No-nome? -- perguntei, absorto.
__ Um nome para uma nova vida. Escolha um.
Senti uma profunda paz. Olhei em direção aos trilhos,
para as pessoas que esperavam o trem chegar, para
algumas borboletas que voavam sobre as flores silvestres
no barranco, e tive uma inspiração.
__ Que ta-tal, Me-mensageiro da Vi-vida? Já que você
sempre esteve próximo à mim, protegendo-me dos
perigos ...
__ Muito bom. Adorei – interrompeu a pombinha,
agitando-se toda. __ É chegado o momento de eu partir.
Vou seguir meu destino, caro amigo, Saulo Lebre. Quem
sabe nos encontramos por aí. Já cansei de me transformar
em animal; a partir de hoje vou assumir uma forma humana.
Talvez, inspirado por sua sugestão, eu me transforme num
carteiro: o Mensageiro da Vida.
Naquele momento, ouvi o som estridente de um apito. De
início, não dei muita bola, vez que o apito em minha barriga
sempre emitia sons estridentes. Porém, levantei minha
cabeça e verifiquei tratar-se do trem do meio-dia se
aproximando da estação ferroviária. O Mensageiro da Vida,
antes de partir, disse-me para eu seguir o meu coração
combinado com a minha consciência. A cura da minha
gagueira estava dentro de mim, nos meus gestos, na força
de vontade, na dedicação, no amor. Ele me dissera que eu
era uma pessoa muito só, e que precisava de uma
companheira.
Desembarquei na modesta estação da Colônia Monte
Belo à noitinha. Cumprimentei o velho bêbado da estação,

gutole@bol.com.br 251 http://lergratis.cjb.net


que estranhamente segurava suas tralhas e caminhou em
direção ao trem. Antes dele entrar no vagão, indaguei-lhe:
__ Be-Beboso, onde vo-você pensa que va-vai?
__ Óia, Gaguinho. Não tem mais ninguém nessa maldita
colônia. Todo mundo foi embora. E eu não quero ficar pra
semente nesta amaldiçoada fazenda. Certo? -- esclareceu o
bêbado, virando de um vez só em sua boca o gargalo da
garrafa de pinga que levava consigo.
__ Ma-mas por quê o pe-pessoal foi e-embora?
__ Ora essa, Gaguinho. O administrador da fazenda
sumiu do mapa, não pagou os colonos, e além do mais, a
safra de café terminou. O povão já tava morrendo de fome
nesse lugar. E eu então? Você acha que vou ficar sem
minha branquinha? Nunca. Tchau, tchau -- despediu-se
Beboso, saltando para dentro do vagão.
O trem partiu lentamente, na toada e no ritmo daquele
fim de mundo.
Será que não havia mais ninguém na colônia? Pobre
Verusa. Será que ela já sabia do destino de seu pobre pai, o
Doutor Rômulo Nandis, administrador da fazenda?
Corri até a casa onde eu morava. Tentei acender a luz,
mas não havia energia elétrica. Abri a torneira, e nem sinal
da água. Será que a Verusa havia esquecido de pagar a
conta de luz? Sem energia elétrica não havia como acender
a luz e nem ligar o motor do poço.
Deixei o saco de dinheiro próximo ao tanque, abri minha
mochila e peguei minha lanterna. Depois de acendê-la,
segui em direção à residência da minha vizinha.
Bati na porta, mas ninguém atendeu. Chamei pelo meu
cãozinho, e para minha surpresa, ouvi um latido fraco e
rouco vindo do interior da residência de Verusa. Usando de
uma força descomunal, arrombei a porta aos chutes e
pontapés.
__ Onde vo-você e-está meu cãozinho que-querido? --
gritei, entrando na sala.
Procurei por todos os cômodos. O interior da casa estava
todo revirado; uma bagunça generalizada.
gutole@bol.com.br 252 http://lergratis.cjb.net
De repente, ouvi um barulho vindo da direção do quarto
do pai de Verusa. Foi aí que me lembrei que uma das portas
do guarda-roupa dava passagem para o banheiro privativo
do quarto. Corri ligeiro para o local.
Bati fortemente na porta do guarda-roupa.
__ Te-tem alguém a-aí? -- inquiri, ansiosamente.
__ Auuuuuu. Auuuuuu -- uivou um cão.
Era o meu cãozinho. Mas o que será que ele estava
fazendo ali?
Novamente arrombei a porta aproveitando o meu
excelente condicionamento físico adquirido na árdua
peregrinação que fizera. Fiquei surpreso ao notar que a
minha vizinha também se encontrava dentro do banheiro,
toda amarrada, com um lenço envolvendo a boca.
Deixei a lanterna acesa sobre a pia e abracei meu
cãozinho. A saudade era tanta que nem me dei conta que
ele estava todo machucado. Depois, aproximei-me de
Verusa e tirei o lenço da boca dela.
A minha vizinha, meio zonza, completamente nua, olhou
para mim e falou alegremente, enquanto eu terminava de
desamarrá-la.
__ É você, Saulo? Meu herói. Que saudades de você!
__ He-herói? -- inquiri, surpreso, terminando de libertá-la
das cordas.
Ela me abraçou firmemente, rolando comigo pelo piso frio
do banheiro entre beijos e amassos.
__ Agora que estou sozinha, sem meu pai, sem rumo na
vida, você quer casar comigo, Saulo?
__ Ca-casar?
Naquele momento senti um calor infernal percorrendo
todo o meu corpo. Parecia que eu estava sendo consumido
pelas chamas de uma fornalha de uma maria-fumaça.
Casar? Aquilo tinha sido a coisa mais maravilhosa que
alguém havia me proposto até então.
Sem pensar muito, aceitei o convite de Verusa.
Antes de partirmos de Monte Belo para dar um novo
destino às nossas vidas, permanecemos sozinhos durante
gutole@bol.com.br 253 http://lergratis.cjb.net
duas semanas e meia de amor naquela colônia deserta.
Desde então, minha gagueira estava completamente
curada. Minha voz era suave como as plumas e límpida
quanto a água cristalina de uma nascente na encosta de
uma mata virgem.
Verusa contou-me que Albertinus a torturou para
descobrir onde estava o ursinho cor-de-rosa. Foi humilhada
e chorou muito quando soube do destino de seu pai.
Entretanto, ela ficou aliviada quando narrei os fatos que
ocorreram em São Tomé das Letras que culminaram com a
prisão do chefão da Ordem e de sua corja.
Partimos para Varginha. Verusa havia me convencido a
investir o dinheiro que eu havia ganho daquele ladrão tão
bonzinho -- o Sidísio -- num negócio muito rentável e
lucrativo. Alugamos um albergue e criamos a Ordem do
Cavaleiro Iluminado. Fizemos cartazes, colocamos
propaganda na rádio e em menos de uma sema já tínhamos
cerca de doze pessoas interessadas em realizar o caminho
de São Tomé. Havia interesse para tudo: abandonar o vício
do álcool e do cigarro, arrumar um emprego, emagrecer,
curar a enxaqueca, enfim, uma infinidade de males comuns
e corriqueiros na vida do brasileiro.
No albergue, a pessoa interessada em realizar o caminho
de São Tomé assistia a uma palestra ministrada por Verusa,
e, depois, seguia para o oráculo sagrado -- uma saleta onde
as pessoas compravam pequenos objetos sagrados para
serem levados durante a peregrinação.
O negócio havia se tornado tão lucrativo que, em um
ano, eu havia ampliado o albergue e contado várias
pessoas para trabalharem como Guia. Verusa, animada
com o astronômico saldo bancário de nossa conta, três
meses após o parto de uma linda menina, investiu no tarô e
passou a ler a sorte dos peregrinos, acrescentando um item
a mais no pacote da peregrinação do caminho de São
Tomé.

gutole@bol.com.br 254 http://lergratis.cjb.net


Se continuássemos naquela toada, logo seríamos mais
ricos do que muitos magnatas brasileiros que viviam às
custas da ilusão do povo.
Com o tempo fui renovando meus artigos esotéricos, à
medida em que os peregrinos iam fazendo novos e
estranhos pedidos. Alguns queriam ser tatuados pela
Esfinge Dourada, outros cobravam-me um livro de minha
autoria a respeito do caminho de São Tomé, e, outros mais
exóticos, pediam-me para mumificá-los por alguns anos, até
à chegada dos discos voadores ao planeta.
Depois de quatro anos de muito trabalho, entre os
afazeres do albergue, e servindo de pajem de Samanta
Lebre, minha filha, resolvi refugiar-me em minha mansão
para elaborar um livro. Tomei por base meu diário que
encontrava-se no quarto de despejo dentro de algumas
caixas velhas de papelão.
Em três meses de muita dedicação e revisão, o livro já
estava pronto. Procurei várias editoras para editar o Diário
de um Cavaleiro Iluminado, mas nenhuma delas quis
aceitá-lo.
Os editores argumentavam que o original tinha um teor
literário muito vago; outros diziam que o tema não se
enquadrava na linha editorial deles, e muitas outras
desculpas espalhafatosas de gente sem visão cultural.
Prometi que pagaria duas, três, quatro vezes mais do
valor que comumente era cobrado para uma primeira
edição. Mesmo assim, nenhuma editora aceitou meu livro.
Fiquei muito chateado; entretanto, lembrei-me daquele
velho ditado que dizia: há males que vem para o bem.
Criei então a Editora do Cavaleiro Iluminado. A partir
daquele momento não tive mais sossego. Meu livro disparou
em vendagem. Virei manchete nacional e galã de comercial
para tevê. Participei de várias campanhas educativas e de
promoção social. Houve, inclusive, uma infinidade de
políticos que encheram meus bolsos de dinheiro para
participar de suas campanhas politiqueiras.

gutole@bol.com.br 255 http://lergratis.cjb.net


Um ano após o lançamento do primeiro livro, com cerca
de dois milhões de exemplares
vendidos no Brasil e em alguns países europeus, lancei o
segundo; posteriormente o terceiro, o quarto ... um sucesso
total! Tudo graças ao esoterismo, a maior mina de ouro da
virada do milênio.
Após tanto tempo sofrendo com minha gagueira, havia
chegado a minha vez de ser feliz.
Felicidade que me fazia lembrar constantemente do
Mensageiro da Vida. Por onde será que ele andava?
Uma vez chegou no albergue uma peregrina chamada
Suzi, que veio acompanhada de seu filho. O nome dele era
Sávio. A mulher era fissurada em tarô e pagou três vezes
para a Verusa ler a sorte dela.
Suzi me contou que seu filho tivera alguns problemas
relacionados com entorpecentes. Mas graças às orações e
aos incensos, apareceu um carteiro misterioso que
convenceu o seu filho a se libertar das drogas. Ela contou
que o Sávio lhe disse que o tal carteiro entregou para ele
uma carta em branco. A carta significava o começo de uma
nova vida. Seria o Mensageiro da Vida que estava agindo
na forma de arteiro?
De uma coisa eu tinha certeza: o esoterismo, uma fábrica
de ilusão, era uma faca de dois gumes, com um lado yin e
outro yang. O lado bom era o retorno financeiro que
proporcionava a quem vivia de seus enormes benefícios. Ao
contrário, o lado negativo era o esvaziamento na conta
bancária que ele causava naqueles que o consumiam com a
esperança de resolver seus problemas pessoais.
,
Às vezes, surgia uma pontada bem no meio de minha
testa, como se algo me revelasse que eu estava fazendo a
mesma coisa que os Mentecaptos faziam. Contudo, sempre
que esta inquietude me atacava, Verusa, a mulher cujo
intenso amor curou minha gagueira, anestesiava minha
preocupação e me lembrava:

gutole@bol.com.br 256 http://lergratis.cjb.net


__ Não é você que está se tornando um Mentecapto,
querido. São nossos “clientes” que aceitam se tornar como
um deles.
E, após um beijo sugador, daqueles de perder o fôlego e
os sentidos, voltávamos juntos às nossas novas e dignas
atividades em prol do povo.

FIM

gutole@bol.com.br 257 http://lergratis.cjb.net

Potrebbero piacerti anche