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DIÁRIO
DE UM GAGO
“Diário de um Cavaleiro Iluminado
da Sagrada Ordem dos Mentecaptos”
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A Saulo Lebre, por representar o verdadeiro perfil daqueles
brasileiros, que comem pão com açúcar e água fria, mas não ficam
sem o “esoterismo nosso de cada dia”.
À Neusinha C., amiga, cujos caminhos de conduta refletem a
grandeza de sua alma.
ÍNDICE
Prólogo ........................................................................ 04
Como Tudo Começou ................................................ 11
A Partida ....................................................................... 23
Um Novo Engano .......................................................... 29
O Encontro Com O Guia .............................................. 36
Que Atrapalhada! ......................................................... 43
Rumo Certo .................................................................. 50
Pernas Pra Que Te Quero ............................................. 56
Contando Estrelas ........................................................ 63
Um Tiro Certeiro ........................................................... 70
Cidade À Vista .............................................................. 77
Esse Tal de Chupa Cabra ............................................ 85
Uma Antiga Ordem ...................................................... 96
Uma Velha História Pra Contar ................................... 104
Traído Pelo Destino ..................................................... 115
Todos Contra Mim ...................................................... 121
Ritual de Energização Positiva .................................. 132
Exorcisando o Mal ....................................................... 137
Lagoa dos Milagres .................................................... 148
Uma Dessas Festas do Interior ................................... 155
Milagres da Sagrada Ordem ....................................... 162
Na Encruzilhada do Destino ...................................... 162
Perfeitamente Louco ................................................... 179
No Nosocômio de São Bento ...................................... 186
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Um Guia Roqueiro ....................................................... 195
Verdade Ou Mentira .....................................................201
Sempre Fiel À Ordem .................................................. 210
Outro Guia A Menos .................................................... 210
Mais Uma Provação .................................................... 216
Sem Futuro ...................................................................225
Verdades e Mentiras ................................................... 231
Ladrão Rouba Ladrões ................................................ 247
Epílogo ........................................................................ 261
PRÓLOGO.
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__ Como assim, largar do seu pé? Eu não estou
segurando o pé de ninguém -- argumentou o Gorila,
ironicamente.
Além de sensível, ele também era burro. Procurei ser
mais claro e conciso:
__ Eu pe-perguntei o que vo-você quer de-de mim?
__ Ah! sim. A minha missão é atrapalhar a sua vida,
colocar o máximo de obstáculos em seu caminho. A ordem
é para não te destruir, não te matar. Entende? Você terá
uma segunda chance de tocar na Esfinge Dourada. Se você
conseguir transpor todas as barreiras de sua saga e,
finalmente, tocar na borboleta, sua gagueira desaparecerá.
Seus sonhos resplandecerão, serão vívidos, e o Poder
estará em suas mãos.
Encantado com aquelas palavras finais do Mensageiro,
meus olhos brilharam comovidos pela possibilidade de
poder realizar o meu sonho: curar minha gagueira e me
transformar num poderoso líder. Criei coragem e indaguei:
__ Como eu con-conseguirei tocar na-na Esfinge se ela
es-está no meio da-da lagoa?
__ Veja! -- exclamou o Mensageiro, apontando em
direção ao lago.
Subitamente um redemoinho surgiu no meio do lago e
sorveu a gaiola, levando consigo a Esfinge Dourada.
__ E a-agora?
__ Agora, meu caro amigo -- prosseguiu o Gorila, pondo
as mãos em meu ombro --, se você quiser tocá-la terá que
realizar uma peregrinação entre as cidades de Varginha e
São Tomé das Letras. O que eu tenho a lhe desejar é má
sorte. Estarei com você, ao seu lado, atrapalhando essa sua
árdua missão. Até breve -- despediu-se o Gorila rubro,
desaparecendo entre os galhos das árvores.
Ouvi o grito do Mentor. Corri até ele. Seus olhos estavam
abertos; seu corpo, arroxeado e pálido.
De repente, ouvi a voz fraca e deformada do Mentor, que
consumou o ritual:
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__ Em nome da Ordem dos Mentecaptos, eu te nomeio
Cavaleiro iluminado dos caminhos ocultos.
__ O quê?
__ Não diga absolutamente nada. A partir de agora você
tem que seguir o seu destino. Não há tempo para
explicações. Meu corpo cósmico está se desintegrando.
__ O que está a-acontecendo com o a-amado Mentor? --
inquiri, preocupado.
__ Estou morrendo seu idiota. Você falhou em sua
missão; pois, não estava preparado para tocar a Esfinge
Dourada. O seu coração impuro, obcecado pelo poder,
enfraqueceu e permitiu a ação de seu demônio particular.
Os cocos que caíram sobre minha cabeça romperam a
minha energia cósmica, e sem energia meu corpo se
enfraqueceu. Procure pelos membros da Ordem; eles dirão
o que deve ser feito.
__ Fa-fazer o quê?
__ Só posso lhe adiantar que sua missão é encontrar a
Esfinge Dourada -- disse o Mentor, fracamente.
__ O que de-devo fa-fazer pa-para encontrá-la? --
perguntei sôfrego.
__ Ouça o seu anjo. Chame por ele. A sua missão
começa na cidade de Varginha e seu destino final será São
Tomé das Letras -- declarou o Mentor.
__ O Go-gorila também disse a mes-mesma coisa pa-
para mim.
__ Não importa o quê digam a você. Caminhe de mãos
dadas com seu anjo. Deixe ele guiar seu caminho e
escrever sua história. E muito cuidado com aqueles que o
circundam. Ouça a voz de seu anjo e o deixe ajudá-lo.
__ Então, em quem eu-eu devo con-confiar para me gui-
guiar?
__ Procure pelo seu Guia! -- revelou o Mentor.
__ Guia! -- exclamei pálido ao deparar-me com uma
densa névoa, que surgiu misteriosamente.
Afastei-me um pouco do Mentor. Em poucos minutos,
encontrava-me totalmente perdido naquela neblina de uma
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aparência estranha que parecia com gelo seco. Não
conseguia enxergar um palmo a minha frente. Com as mãos
apalpava o ar a esmo, com a esperança de encontrar algo
em que pudesse me apoiar.
Preso naquela floresta, no alto da Mina da Colônia de
Monte Belo, coberto por aquela estranha nebrina, senti
minha mão ser espetada por um espinho. Um arrepio de
medo atravessou o meu corpo inerme; meu coração pulsava
cada vez mais forte, já me sentindo totalmente arrependido
de estar naquele local. E minha gagueira? O Mentor morrera
por minha causa, para me curar da minha gaguez, e nada
pude fazer para salvá-lo. Tinha que honrar meu
compromisso com a Ordem, ser fiel à ela e cumprir minha
missão.
Antes, porém, que eu pudesse dar um passo à frente, um
coco caiu em minha cabeça, e desmaiei.
CAPÍTULO I
COMO TUDO COMEÇOU
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O processo era simples: com as mãos, e, olhando para
as estrelas, exaltavam as forças ocultas da natureza, sua
beleza e energia. Após uns dez minutos de concentração,
um dos Iluminados, em transe, se afastava do círculo e
derrubava uma árvore a machadadas. Da árvore
despedaçada pelo vigor do Cavaleiro, fazia-se uma fogueira
e todos formavam um novo círculo em torno do Elemento
Primordial.
O Mentor acendia a Tocha Santa e, após beber algumas
canecas de uma água ardente, punha-se a dançar ao redor
do fogo. De repente, parava. Neste momento ele estava
sendo energizado pela Consciência Cósmica. Todos os
Cavaleiros deveriam manter absoluto silêncio enquanto o
mentor se encontrasse naquele estado especial. Então, o
líder da Ordem olhava para o fogo em sua Tocha, e
passava a ter revelações especiais que tão somente ele
podia vislumbrar.
A piromancia geralmente era rápida (principalmente se o
Mentor estivesse com fome), indicando ao líder dos
Mentecaptos qual o novo membro que deveria ser intimado
a fazer parte da sociedade secreta.
O Mentor dirigia-se, então, a um dos Cavaleiros e,
apontando a Tocha em sua direção, ordenava-lhe que
partilhasse com ele a visão do futuro Cavaleiro.
__ Ide agora e trazei em breve o eleito -- eram as
palavras proferidas pelo Mentor, as quais obrigavam seu
destinatário a encontrar e trazer, no prazo máximo de quatro
horas, o novo membro cuja face apenas ele e o Mentor
conheciam.
Enquanto aguardavam o retorno do emissário, os
Mentecaptos aproveitavam o fogo e faziam um
churrasquinho de carne bovina e suína, ambas provenientes
de uma das fazendas do tarólogo da Ordem.
Foi assim que Albertinus, meu guia, havia partido em
buca de mim, a fim de ser levado até o secreto lugar do
Ritual.
Lembro-me até hoje como se deu nosso encontro.
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Morava na roça, num casebre simples de três cômodos.
Tinha acabado de ouvir uma fita de um malandro chamado
Dr. Ribero, o qual prometia que qualquer um podia ter o que
quisesse na vida, desde que comprasse seus livros e seu
Kit com 49 fitas cassetes que desvendavam os segredos do
sucesso. Até aquele dia eu já havia ouvido trinta e duas fitas
e nada. Aliás, até meu cachorro sarnento me abandonara
por causa da cadela da vizinha. Quando eu o via, do outro
lado da cerca, ele dava as costas, empinava o rabo e ia
rebolando para dentro da casa da mulher. Eu estava numa
pior. E gago, como era, ninguém na cidade me dava
emprego. Foi então, naquela noite, que eu ouvi uns
gemidos esquisitos vindos lá pros lados da casa da vizinha.
Na briga do medo com a curiosidade, a última levou
vantagem e me fez sair de casa e chegar perto da cerca. Vi
que meu cachorro e a cadela da vizinha estavam
namorando e não davam nem bola para a barulheira que
vinha de dentro da casa. Como os gritos e gemidos
pareciam estar mais fortes ainda, pulei a cerca e corri até a
casa da moça, com o maior medo de ela estar sendo
atacada pelo Chupa-cabra.
Dei o maior pontapé na porta e saltei para dentro da casa
a fim de ajudar minha vizinha.
__ Mas o que é isso? -- perguntou um estranho que
encontrava-se deitado de costas no chão com a minha
vizinha por cima dele.
_ Ora se não é o jumento do Saulo Lebre, meu vizinho
gago -- ironizou a moça, parecendo pouco se importar com
a minha presença.
__ É que-que eu pe-pensei que você tava se-sendo
atacada pe-pelo Chupa-cabra. E co-como seu pai não tá-tá
em ca-casa esses dias, eu vim te de-defender.
__ E eu lá preciso de alguém pra me defender? Meu
negócio é atacar, seu intrometido.
__ Me de-desculpe. É me-melhor eu voltar pra ca-casa.
Já é qua-quase meia-noite.
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__ Meia-noite! __ exclamou o estranho. __ Já faz quase
quatro horas. O que eu faço agora?
__ Onde você pensa que vai, hein? -- intimidou-o minha
vizinha. __ Eu ainda tô faminta.
__ Se vo-você quiser, lá em ca-casa tem um po-pouco de
feijão. Eu po-posso trazer pra ma-matar tua fome.
__ Vai te catá, sua coisa.
Mas antes que a moça me insultasse mais, o estranho
empurrou ela de lado, ajeitou as roupas, me puxou pelo
braço e saímos correndo daquela casa.
__ Pega, cachorro! Pega!
Sorte nossa que meu cão e a cadela da moça
continuavam namorando, pouco valor dando aos gritos da
vizinha.
__ Santa Energia! Faltam dez minutos pro Ritual
recomeçar -- disse o estranho apreensivo. Depois ele olhou
bem pra mim e continuou: __ Cara, hoje é teu dia de sorte.
__ Sorte! Eu ne-nem sei o que-que é isso mais.
__ Vem comigo que eu te explico tudo pelo caminho.
Fiquei sabendo que ele se chamava Albertinus e que sua
mãe era uma mulher muito formosa e querida em sua
cidade, no interior de São Paulo. Relatou-me também que
havia sido escolhido para ser Cavaleiro Iluminado da Ordem
Esotérica dos Mentecaptos há uns dois anos. Disse-me que
estava em missão especial para encontrar o novo membro
da Ordem quando minha vizinha apareceu no meio do mato,
contou-lhe uma história triste e o levou até sua casa,
desviando-o assim de seu objetivo. O pior era que ele havia
se esquecido de que dispunha do prazo de quatro horas
para encontrar e levar a pessoa que foi revelada através do
fogo sagrado até o local do Ritual.
__ E aonde eu entro ne-nesta his-história? -- quis saber,
tentando entender aquelas coisas estranhas que Albertinus
me contava.
__ Você vai ser o novo membro da Ordem dos
Mentecaptos.
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__ Quê? Ma-mas foi o me-meu rosto que vo-você viu no
fogo?
__ Que nada, cara. Nem eu nem o Mentor vimos rosto
nenhum. Trata-se tudo de uma grande encenação para
iludir os imbecis que acreditam nestas coisas.
__ Co-como?
__ Não tente entender nada agora. Com o tempo, se
você for perceptivo, vai ver o porquê de as pessoas terem
necessidade destas baboseiras. Agora aperte o passo
senão vou me dar mal.
Era exatamente meia-noite quando eu e Albertinus, após
atravessarmos um denso matagal, nos aproximamos do
lugar do Ritual.
Na hora que chegamos, um dos Cavaleiros desligou o
rádio que tocava um pagode e, logo em seguida, deu ordem
para todos pararem de beber e comer.
Meio cambaleantes, os Eleitos foram vagarosamente
formando um círculo ao redor da fogueira. Um som
proveniente de uma corneta antecedeu a entrada teatral do
Mentor no Solo Sagrado.
__ Aproximai o emissário! -- exclamou o Mentor, um
homem trajando uma espécie de hábito monástico branco,
com um capuz repleto de estrelas vermelhas bordadas.
__ Trouxe nosso novo membro. Eis o eleito! -- disse
Albertinus num tom de voz bem diferente do habitual.
Conduziu-me para o centro do círculo, entre a fogueira e o
Mentor. Este, fitou-me longamente, antes de estender seus
braços para mim e me beijar na testa.
__ Como os mortais te chamam, meu filho? -- inquiriu-me
o velho encapuzado.
__ Sa-Saulo Lebre -- respondi, tremendo feito uma vara
verde.
O Mentor parecia incomodado com minha gagueira. O
sutil olhar de reprovação que lançou em direção a Albertinus
me deu a entender isto.
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__ Percebi, caro filho, que o invólucro de sua alma
apresenta uma deficiência na diccão. Quereis ficar curado
desta limitação, nobre Eleito?
__ Cla-claro -- respondi sem hesitar.
__ Se assim o desejais, assim haverá de acontecer.
Amanhã de manhã, guiado por Albertinus, seu guia
espiritual, irás a um outro Solo Sagrado, onde curarei você
desta guagueira e te introduzirei na Sagrada Ordem
Esotérica dos Mentecaptos. Aceitai esta benção, meu filho,
e verás como tudo se transformará em sua vida.
De gago tornei-me mudo, completamente embevecido
pela promessa daquele homem que aparentava ser tão
sério e dotado de um extraordinário poder sobrenatural.
Ademais, o ambiente que me envolvia evocava meu lado
místico, gerando uma profunda confiança naquelas pessoas
que, em breve, tornariam-se meus companheiros e guias no
caminho que haveria de trilhar em busca de minha cura e de
meu sucesso pessoal.
Lembro-me ainda, que aquela noite terminou num clima
de grande esperança, o que me impulsionou a assinar
alguns papéis que os bondosos membros da Ordem me
deram.
Assim foi como tudo começou.
CAPÍTULO II
A PARTIDA
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As pessoas têm que lutar pelos seus objetivos, custe o
que custar e doa a quem doer. Meu objetivo era curar minha
gagueira, e graças à Ordem dos Mentecaptos, sentia-me
mais do que nunca fortalecido e iluminado pela coragem,
perseverança e entusiasmo. No caminho que iria seguir não
sabia o que havia de encontrar pela frente, mas tinha plena
convicção que venceria, pois só os fortes e sábios vencem.
A sabedoria da Ordem era elementar para vencer os
obstáculos que os Mensageiros impunham. Era sabido que
tanto existiam Mensageiros bons, cavaleiros iluminados,
como também existiam os Mensageiros demoníacos,
cavaleiros das trevas -- conhecidos também, erroneamente,
por Mensageiros da Libertação.
Que fique bem claro que os bons Mensageiros são os
nossos guias iluminados, cabendo a eles conduzir nossos
caminhos. Contudo, tinha a obrigação de seguir os
ensinamentos da Ordem dos Mentecaptos -- a verdadeira
receita para uma vida mais tranqüila, livre e feliz.
Na Ordem pude aprender que, em nossas vidas, o
dinheiro deve ficar em planos inferiores, apesar de que no
mundo material ele reina absoluto. Mas este conceito se
torna uma ilusão a partir do momento que crescemos nos
ensinamentos da Ordem; nossa aura se expande à medida
em que avançamos os graus iluminados da mesma,
ampliando nossas fronteiras energéticas.
Antes de fazer parte da Ordem, meu objetivo era tão
somente o de substituir minha gagueira por uma voz
persuasiva, com o intuito de me transformar num grande
líder, numa espécie de poderoso chefão, rico,
multimilionário. Então eu também buscava a perfeição da
minha aura, e para isso tinha que curar minha gagueira. A
importância de curar minha voz passara a planos
energéticos. Com o meu canto, dotado de uma dicção mais
harmoniosa, eu poderia atingir o âmago das vibrações
cósmicas, e por conseguinte, minha aura poderia atingir o
nível máximo da perfeição.
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Todas essas coisas maravilhosas a que me referi,
aprendi com o Mentor. Acreditava ser uma pessoa
iluminada. Além de ter sido escolhido pelo destino, assimilei
muito conhecimento no pequeno espaço de tempo que
permaneci na Ordem. Prova disso foi minha ordenação de
Cavaleiro, que só não fora concluída porque, realmente, eu
não estava preparado no momento para tal grau.
Lamentava a perda do Mentor, o qual teve seu corpo
todo enrolado por faixas brancas, assim como eram
envoltos os eternos imperadores mumificados.
À noite, reunimos todos os membros da Sagrada Ordem
dos Mentecaptos para a realização do Ritual de
Mumificação e Consagração Energética, coordenado por
Albertinus. O ato sagrado foi realizado no quintal de minha
casa.
Por tradição da Ordem, o momento mais importante do
ritual deveria ser executado por uma moça virgem, e a
pessoa escolhida foi a minha vizinha, que de virgem não
tinha nada -- nem mesmo o próprio signo. A idéia iluminada
tinha sido de Albertinus, que conseguiu convencer os
demais membros a respeito da pureza da moça.
Meia-noite, debaixo de uma lua cheia exorbitante,
próximos à fogueira, iniciamos o Ritual, estendendo as
mãos em direção ao corpo nu do Mentor, que estava
deitado sobre um cobertor de pele de carneiro. O meu
cachorro e a cadela da vizinha assistiam tudo passivamente,
sentados juntos um do outro, formando um casal perfeito.
Albertinus entregou uma faixa para cada membro e pediu
para que, um de cada vez, enrolasse o Mentor, iniciando
assim o processo de mumificação.
Em poucos minutos o corpo nu do Mentor havia sido todo
coberto pelas tiras brancas. Albertinus pediu para minha
vizinha se aproximar dele. Depois, sob o olhar atônito do
grupo, tirou um medalhão azul do bolso de sua camisa
estampada e pôs-se a orar:
__ Em nome da Sagrada Ordem dos Mentecaptos,
atribuo a mim os poderes iluminados da Ordem, por possuir
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a maior graduação em relação a todos que aqui estão
presentes, e venho através dessa virgem invocar a aura do
nosso Mentor, cuja energia extra-corporal será armazenada
no Medalhão Azul de safira. Tome, virgem. Faça o que tem
de ser feito -- disse Albertinus de supetão, entregando o
medalhão para a moça.
Verusa Nandis, a minha vizinha, filha de um político
viúvo, administrador da fazenda em que eu trabalhava,
pegou o medalhão em suas mãos quentes e ficou a admirá-
lo. Ela parecia hipnotizada. Seus olhos, estatelados; seus
gestos, inertes.
Albertinus, com a voz alterada, entrando em estado de
alfa, prosseguiu com as instruções:
__ Coloque o medalhão sobre o terceiro olho do Mentor,
ou seja, na testa dele. Isso, muito bem, Verusa. Agora, com
os olhos fechados e as mãos estendidas, iremos invocar a
aura do Mentor, que será sorvida pelo medalhão. Não
abram os olhos, senão a luz da transmutação poderá cegá-
los para sempre. Ouçam apenas o ruído sagrado do fluxo
energético, deixando-o contagiar as suas mentes para
neutralizar as forças negativas que estão destruindo as suas
vidas.
O ruído era algo inusitado, parecendo com o estalido de
galhos sendo devorados pelo fogo brando de uma
preguiçosa fogueira. Senti um calafrio que atravessou o
meu corpo dos pés à cabeça. Minha intuição dizia que algo
de muito estranho estava ocorrendo ao meu redor. Era
como se houvessem várias pessoas se movimentando, indo
de um lado para o outro, ao nosso redor. De repente, uma
luz forte refletiu-se em minhas pálpebras, como se uma
lanterna estivesse mirada nelas. A ansiedade consumia
minha curiosidade; eu queria ver o momento mágico da
transmutação energética.
Poucos minutos depois daquela luz intensa refletindo em
minhas pálpebras, ouvi a voz de Albertinus, que ordenou.
__ Agora, todos podem abrir os olhos, calmamente.
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O corpo mumificado do Mentor havia desaparecido.
Verusa encontrava-se em posição de meditação
transcendental no centro da roda, e segurava o Medalhão
Azul com suas mãos estendidas em direção à lua. Ela
estava totalmente desfigurada: o cabelo bem solto, uma
maquiagem e roupas diferentes, parecendo mais um bruxa
do que uma deusa. Nós, membros da Ordem Sagrada dos
Mentecaptos, olhamos uns para os outros, boquiabertos,
perplexos, maravilhados.
Albertinus aproximou-se de mim, pôs suas mãos santas
em meu ombro, e revelou:
__ Saulo Lebre, você foi escolhido para matar dois
coelhos com uma cajadada só. Logo que o sol despontar,
você partirá para Varginha, e levará contigo o Medalhão
Azul que contém a aura do Mentor. Sua incumbência é
encontrar a Esfinge Dourada e levá-la até a cidade de São
Tomé da Letras, para onde o corpo do Mentor foi
teletransportado.
__ Em que lo-local da cidade ele e-está?
__ Cabe somente a você descobrir onde está a múmia
do Mentor. Sem ele você nunca irá se curar de sua
gagueira. Isso só vai acontecer quando você passar ao grau
e título absoluto de Cavaleiro Iluminado. E somente o seu
Mentor poderá concluir esse ritual de graduação. Pegue o
medalhão, coloque-o em seu pescoço e, aproveitando a
ocasião, vamos festejar a sua partida.
Aquela madrugada passou como um relâmpago. O
churrasco estava muito animado: dançamos forró, bebemos
e comemos de tudo. Lá pelas duas da manhã, inventamos
uma nova brincadeira: caça Verusa. A minha vizinha corria
para o mato, e aquele que conseguisse capturá-la ganhava
um ponto. Repetimos a caçada por várias vezes. O
vencedor da brincadeira foi Albertinus, computando 15
pontos.
Antes do sol nascer, despedi-me do meu cachorro e fui
acompanhado pelos membros da Ordem até a precária
estação ferroviária da Colônia. Albertinus disse-me que eu
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não precisaria levar nada para a viagem, a não ser uma
mochila com roupas e algum alimento e o próprio Medalhão.
Ele me garantiu que os guias estavam cientes de minha
peregrinação, e tudo o mais que eu precisasse, era só pedir
a eles.
__ Mas co-como eles sa-saberão quem so-sou eu? --
indaguei, temeroso.
__ Você irá encontrá-los usando o poder do Medalhão.
Ah! muito cuidado. Não esqueça, em momento algum, que a
aura do seu Mentor está fixada no interior dele. Por isso,
não o perca e nem o destrua; ele é a sua única esperança
de curar sua gaguez.
Verusa, com um ar tristonho, tinha os olhos inchados de
lágrimas que escorriam pelo seu rosto maquilado.
Aproximei-me dela e pedi-lhe, num tom de despedida:
__ Mi-minha querida vi-vizinha, não cho-chore. Não há
pe-perigo. Você não vai-vai ficar so-sozinha. O A-Albertinus
vai ficar mo-morando em minha ca-casa. Eu já-já entreguei
a ele as cha-chaves da minha ca-casa e do meu co-cofre.
__ E quem poderá me salvar das pessoas maldosas que
porventura venham assaltar minha casa. Juro que estou
morrendo de medo; é por isso que choro -- murmurou
Verusa, toda trêmula.
__ O Albertinus, é cla-claro. Ele pro-prometeu cuidar do
meu cão-cãozinho, cortar a gra-grama, e ficar res-
responsável por sua se-segurança, até eu re-retornar.
Albertinus olhou confiante e sorriu para Verusa, a qual
usava um decote muito avançadinho. Ela parecia ter
concordado. Aliás, não havia tempo para mais nada. A
Maria-fumaça parou na modesta estação da Colônia. O
maquinista, grosseiramente, gritou:
__ Vamos logo com essa moleza. Se tiver algum
passageiro que entre logo, porque já estou partindo --
avisou tocando a buzina à vapor do trem.
Ligeiro, pulei no degrau e segurei-me na porta do trem.
Antes da Maria-fumaça partir, acenei para meus amigos da
Ordem. Albertinus, abraçado com Verusa, consolava a
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pobre moça, que naquele instante parecia mais rir do que
chorar.
O trem partiu; a estação foi se distanciando dos meus
olhos. Entrei no vagão de passageiros, meio ressabiado;
assustado com aquela gente estranha, sisuda ...
***
__ ... Agora, es-estou aqui, pro-procurando o meu-meu
guia. Vo-você é o último passageiro que-que faltava para eu
con-contar essa hi-história que es-estou fa-farto de na-
narrar. E en-então? O que vo-você me diz? É ou não é o
meu gui-guia? -- indaguei ao sujeito sentado no banco
individual da última fileira, no fundo do vagão.
CAPÍTULO III
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UM NOVO ENGANO
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E se depender deste gesto o sucesso ou o fracasso de sua
jornada?
As palavras do Pastor Willian (ou talvez do Cavaleiro
Iluminado disfarçado) me gelaram. Concordei então a trocar
de roupa com ele.
__ Só mais uma coisa, caro amigo -- falou-me o homem
antes que eu entrasse no banheiro. __ Você não está
carregando mesmo dinheiro ou qualquer outro objeto de
valor consigo?
__ Não me-mesmo. Só a ro-roupa do corpo, conforme
me fo-foi ordenado -- respondi tentando proteger o
medalhão.
__ Tudo bem. Tire suas roupas e passe elas para mim.
Depois eu tiro a minha e te passo.
Dúvidas mil invadiam minha cabeça enquanto tirava
minha jaqueta de couro e o restante das roupas. Estaria
mesmo sendo submetido a uma prova pelos membros da
Ordem com a intenção de avaliarem minhas capacidades?
__ To-tome minhas ro-roupas -- disse ao Pastor Willian,
entregando-lhe meu vestuário pela porta entreaberta.
__ Tirou tudo? -- perguntou-me num tom mais áspero do
que de costume.
__ Só to-tô de cueca -- respondi, escondendo-me por
detrás da porta.
__ Pois então fique aí até eu te chamar.
Estava tremendo de frio dos pés à cabeça. E o tempo
passava e nada do pastor entregar suas roupas.
Entreabri a porta de onde estava, corri o olhar pelo
corredor do vagão e só então chamei o homem que estaria
trocando de roupa no banheiro em frente ao meu.
Nenhuma resposta.
__ Pa-pastor Willian! Me-me dá o te-terno -- supliquei
atormentado pelo frio e pela vergonha de me encontrar
naquela situação constrangedora.
Novamente, nada.
Estiquei minha perna e dei um estrondoso pontapé na
porta do banheiro defronte ao meu.
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__ A-abra, por fa-favor! -- clamei, já bem temeroso.
Estava perdendo as esperanças quando, timidamente, a
porta se abriu. Fiquei, então, pasmo: era uma mulher gorda
olhando-me de cima a baixo.
__ Tarado! Socorro! -- desesperou-se a mulher correndo
pesadamente pelo corredor até o vagão de passageiros.
Tranquei-me dentro do banheiro, encolhendo-me de frio
e medo.
Segundos depois bateram em minha porta.
O que iria dizer? Acreditariam em mim?
Trêmulo, destravei a porta, abrindo-a vagarosamente.
Para maior espanto meu, um Gato pulou para dentro,
sentando-se na tampa da privada.
__ Nem bem começaste a peregrinação e já te meteste
em encrenca?
Quando encontrava-me a ponto de enlouquecer,
reconheci a voz do bicho: era a mesma do Gorila que
aparecera em meu Ritual de Ingresso na Ordem, no dia
anterior.
__ Vo-você é ...
__ O Mensageiro da Libertação -- disse, completando a
afirmação com um miado estridente.
__ Ma-mas vo-você não e-era um Go-gorila? -- gaguejei
atônito.
O Gato torceu o nariz, e só então respondeu-me:
__ Eu posso encarnar em qualquer espécie animal
inferior. Bem, isto não importa. O que eu quero saber é o
que aconteceu com você, Saulo Lebre?
Com dificuldade, contei ao gato o que ocorrera.
__ Quer dizer então que o sujeito te trapaceou?
__ Não é po-possível. E-ele pa-parecia tão bom.
O Gato mostrou os afiados dentes, como que
desaprovando o que eu dissera.
__ Saulo Lebre, lição número um: nunca confie em
alguém se baseando apenas em sua agradável aparência e
refinados modos.
__ Quer di-dizer que ...
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__ Quero dizer que o sujeito te engrupiu e sumiu com
suas roupas.
Ouvi a buzina apitar e senti o trem parar. Uma marcha de
passos firmes foi se aproximando do banheiro. Percebi,
então, que deixara a porta entreaberta quando o
Mensageiro da Libertação entrou.
__ Quem é o senhor? -- perguntou-me um jovem fardado.
__ E o que tá fazendo só de cueca com um gato neste
banheiro? -- inquiriu-me o condutor do trem.
__ E o que o senhor pretendia fazer com minha mulher?
-- interrogou-me furiosamente um brutamontes ao lado da
mulher gorda do banheiro.
Acuado, olhei para o Gato. Ele parecia sorrir.
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CAPÍTULO IV
O ENCONTRO COM O GUIA
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__ Tu-tudo bem, vo-você po-pode se-ser gi-gigante, ma-
mas não é do-dois. Po-porque não en-encara um do se-seu
ta-tamanho? -- falei num tom áspero, peitando o
brutamontes. __ E a-ai de vo-você se re-relar ou-outra ve-
vez no Ga-gato.
__ Isso só pode ser uma piada! -- exclamou o
brutamontes, voltando-se para sua esposa. __ Margarida,
meu amor, você deve estar brincando comigo! Esse sujeito
é gago. Veja com seus próprios olhos; ouça com seus
próprios ouvidos. Isso não faz mal pra ninguém.
A mulher, mais tranqüila, aproximou-se de mim e,
levando as mãos à boca, fitou meu corpo da cabeça aos
pés. Depois fez biquinho, tornou a olhar novamente, tomou
um ar duvidoso e presumiu:
__ É, Ricardinho, você tem razão. Ele não é lá essas
coisas! Ainda mais usando essa cueca de bolinhas
amarelinhas. Eu, hein? Vamos embora daqui!
__ Vamos, então, meu amor -- disse o sujeito pegando
sua amada nos braços. __ Temos coisas melhores para
fazer na vida do que ficar discutindo com esse tipo de gente.
O casal deixou o vagão. Suspirei fundo, aliviado. A única
coisa que me intrigava era o tal maquinista que segurava
com as mãos uma saco de feijão, aberto. O saco era grande
o suficiente para cobrir o meu corpo quase nu. Era só fazer
um buraco que coubesse o meu pescoço e o meu problema
de indumentária estaria resolvido. Com aquele saco daria
para fazer uma camisa bem comprida, cobrindo-me até o
joelho.
__ Dá-dá o sa-saco pra eu me co-cobrir -- pedi ao
maquinista, estendendo-lhe as mãos.
Entretanto, ele não atendeu minha súplica; continuava a
olhar em direção ao Gato. O que será que havia visto no
pobre animal? Fetiche? Enchi os pulmões de ar, dei um
passo à frente e berrei:
__ E-ei, es-escuta-me. O-olha eu a-aqui!
__ Não me perturbe. Se eu fosse você eu permaneceria
onde está.
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__ Por-por que vo-você tá o-olhando a-assim pa-para o
Ga-gato? -- indaguei preocupado com o olhar estranho
daquele sujeito.
__ É que eu quero capturá-lo. Agora cale essa boca e
não espante o animal, senão você vai se ver comigo.
__ Ma-mas por-por que vo-você quer ca-capturá-lo?
__ Eu vou derretê-lo no tacho pra fazer sabão. Tá
satisfeito, agora? Tá? -- revelou o maquinista irritadíssimo,
sem largar o saco um só minuto.
__ Sa-sabão?
De súbito, um anão, segurando uma vassoura, entrou
apressado no vagão esbarrando em tudo o que via pela
frente. Depois, aproximou-se do maquinista e, cansado,
disse-lhe:
__ Rodnaldo, aqui está a vassoura.
__ Ainda bem que você chegou, Peteleco! -- suspirou o
maquinista, ainda com o saco nas mãos.
__ O que eu faço com a vassoura? -- quis saber o
pigmeu sentando numa poltrona.
__ Cutuque o Gato. Vá, derrube-o do teto.
Nas pontas dos dedos Peteleco ergueu a vassoura e
pôs-se a batê-la no Gato, o qual tinha suas garras
fortemente fincada no forro do vagão.
Sem dó ou piedade, o anão bateu a vassoura de um lado
para o outro. O Mensageiro não conseguiu se manter preso
no teto e despencou, caindo dentro do enorme saco do
maquinista Rodnaldo.
Tudo havia ocorrido muito rapidamente. Quando pensei
em impedir o anão de derrubar o Gato com a vassoura, já
era tarde demais. O maquinista amarrou a boca do saco
com uma tira e correu abraçar o anão:
__ Conseguimos. Nós conseguimos -- gritava Rodnaldo,
loucamente.
Ambos pulavam de uma lado para o outro, numa alegria
de euforia descomunal. Aproveitei a oportunidade e, sem os
dois perceberem, abri o saco de feijão. O Gato saiu feito um
vento.
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Antes, porém, de fugir do local, o Mensageiro da
Libertação olhou para mim e disse-me em tom irônico:
__ Saulo Lebre, lição número dois: nunca dê uma
segunda chance para seu inimigo; você poderá estar dando
a ele a sua vitória.
Num chispo, o Gato passou por debaixo das pernas do
maquinista, fintou o anão e saltou para fora do trem,
desaparecendo-se logo em seguida. Eu não havia
entendido direito o significado daquela “lição número dois”;
mas havia ficado muito feliz pelo Mensageiro da Libertação
ter escapulido das garras do sujeito que queria transformá-lo
em sabão.
Com uma mordida, abri um largo buraco no saco, o qual
serviu-me muito bem como uma camisa improvisada.
Caminhei até a saída do trem, para onde Peteleco e
Rodnaldo haviam se encaminhado às pressas, e dei de cara
com eles na porta do vagão.
__ Maldição! Você estragou tudo. Que raios de membro
é você? Desça logo desse vagão e venha até aqui --
ordenou o maquinista, colérico.
Vestido no saco, desci o degrau do vagão e pisei na
calçada de pedras lascadas da estação ferroviária de
Varginha. As pessoas que transitavam pelo local, quando
olhavam em minha direção, arregalavam os olhos e riam
displicentemente, como se eu fosse um palhaço.
As pessoas sempre acharam graça de minha gagueira.
Mas por quê elas riam de mim se sequer havia dito alguma
palavra? Talvez, seja porque o maquinista berrava comigo.
__ Você estragou tudo -- disse o maquinista, pegando-
me pelo braço. __ Seu idiota! Você ajudou o seu demônio
particular fugir do meu saco de feijão.
__ Ma-mas o se-senhor di-disse que-que ia fa-fazer sa-
sabão de-dele. Eu fi-fiquei com dó do po-pobrezinho -- falei,
justificando o meu ato generoso.
Rodnaldo suspirou fundo, e balançou a cabeça de um
lado para outro, esquisitamente. Por quê será que ele
estava tão irritado comigo? Aliás, eu não o conhecia e
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nunca o havia visto em lugar algum. Será que eu havia
encontrado o meu guia? Não foi nem preciso perguntar, a
resposta veio de imediato.
__ Tudo bem. O que passou, passou, e ponto final --
disse o maquinista Rodnaldo falando sozinho. Depois
voltou-se para mim e apresentou-se: __ Como vai. Meu
nome é Rodnaldo Luz, sou maquinista de profissão e Guia
da Sagrada Ordem dos Mentecaptos nas minhas folgas.
__ Gui-guia! -- exclamei, abraçando-o.
O anãozinho, que acompanhava Rodnaldo, ficou
enciumado e murmurou:
__ Ih! Vê se precisa disso. O gaguinho é muito
sentimental.
__ Que-quem é sen-sentimental? -- indaguei, encarando
o pigmeu Peteleco.
__ Cale a boca! Sou eu que vou falar agora. Vamos
andando, que já perdemos muito tempo à toa.
Mansamente, obedecemos a ordem de Rodnaldo.
Peteleco não parava de me encarar com aquele olhar de
inveja e indignação. Saímos da estação, e seguimos em
direção ao subúrbio da cidade. A vegetação densa, ladeava
a pacata cidade de Varginha, que em suas montanhas
escondia os misteriosos aparecimentos de extra-terrestres,
provavelmente atraídos pela concentração energética
daquela região sagrada.
Depois de uma breve caminhada em silêncio, Rodnaldo,
mais cativante, iniciou um novo diálogo comigo.
__ Então você entrou para o Ordem do meu amigo
Albertinus?
__ Co-como vo-você sa-sabe?
__ Ora essa, eu sou o seu Guia. Sei tudo da sua vida e
das pessoas com quem você convive. Pelo que vejo em
você, Saulo Lebre, a sua aura ainda é muito atrofiada,
atrasada no que diz respeito ao Crescimento Iluminado.
__ A-atrasada? -- inquiri não compreendendo o que o
meu Guia havia dito.
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__ Antes de me dizer qual rota que pretende seguir no
Caminho de São Tomé das Letras, gostaria de saber a
quanto tempo você está na Ordem Sagrada dos
Mentecaptos?
__ Vo-você disse que sa-sabia tu-tudo so-sobre mi-minha
vida, en-então não pre-preciso responder à per-pergunta.
__ Saulo, Saulo. Nunca questione minhas perguntas; aja
como deve agir um Cavaleiro Iluminado. Responda todas as
dúvidas de seu Guia, sem delongas ou mentiras.
Naquele momento senti uma paz imensa nas palavras
proferidas por Rodnaldo. Ao meu lado, o anão me olhava
com um ar de riso e deboche. Não me preocupei com
aquele ser inferior, enchi os pulmões do ar puro da cidade e
disse:
__ Fa-faz po-pouco ma-mais de um di-dia que e-eu en-
entrei na O-ordem.
__ Então você não conhece nenhum dos exercícios
sagrados?
__ E-exercícios?
__ Pelo jeito, não sabe mesmo. Vamos caminhar mais
rápido que estamos um pouco atrasado. Quando
chegarmos no Albergue da Ordem, depois do jantar, eu lhe
explico tudo.
Exercícios? A coisa que eu mais odiava na escola eram
as aulas de educação física. Esse negócio de exercício já
estava me incomodando.
Pelo caminho, Rodnaldo deu-me algumas instruções:
antes de começar a peregrinação na busca pela Esfinge
Dourada, eu teria que escolher uma rota, partindo de
Varginha, até a cidade de São Tomé das Letras. Esse
caminho seria escolhido por mim, num Ritual que era
realizado nas dependências do Albergue da Ordem.
A tarde caía, gradativamente. O Albergue despontou logo
à frente, em contraste com o apaixonante crepúsculo. Senti-
me feliz por estar naquele lugar sagrado ao lado de
Rodnaldo, meu Guia, e de Peteleco, o anão invejoso.
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CAPÍTULO V
QUE TRAPALHADA!
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__ O-ora, os Me-mensageiros não vi-viram bichos
quando que-querem se co-comunicar com as pe-pessoas,
hein, do-dona la-lagartixa?
__ Mas que diabos você está falando, homem?
Foi então que virei meu pescoço, notando que a voz
provinha de um sujeito trajando um enorme casaco preto
que se encontrava ao lado de uma armadura medieval, no
fundo da sala, oculto pela escuridão do lugar.
__ Me-me de-desculpe -- falei envergonhado pelo meu
engano. __ É que e-eu confundi o se-senhor com u-uma la-
lagartixa.
A emenda ficou pior que o soneto. O cara do casaco
preto fez uma cara feia, coçou sua barba branca e saiu da
biblioteca, não falando mais nada.
Enquanto eu pensava no fora que eu dei, Peteleco
entrou pela porta lateral e pediu-me para acompanhá-lo até
o escritório do Albergue.
Quando abri a porta, avistei Rodnaldo com feições nada
agradáveis.
__ O que você é? Um terrorista islâmico ou algo
parecido?
Sem entender o motivo de tanta fúria, envergonhado e
confuso, indaguei-lhe a respeito do fato.
__ Não se faça de bobo, Saulo Lebre. Você expulsou o
Grão-mestre do Albergue e ainda quer dar uma de idiota.
Aliás, idiota você realmente é. Ah, se você não estivesse
com o medalhão portador da aura do Mentor, eu nem sei o
que seria capaz de fazer com você agora.
__ Ma-ma-mas o que-que e-eu fi-fiz? -- gaguejei
tremendamente diante daquela chuva de acusações sem
sentido.
Rodnaldo trocou olhares comigo e com Peteleco, o qual
se mantinha imóvel próximo à porta do escritório.
__ Será possível? -- perguntou meu Guia a Peteleco.
__ Olha, ou este cara é o mais tonto ou é o mais azarado
do mundo. __ Depois de uma rápida pausa, completou: __
Ou então é as duas coisas juntas.
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Não agüentei mais. Tive de falar.
__ Vo-vocês que-querem me e-explicar o que tá a-
acontecendo?
Rodnaldo sentou-se e Peteleco puxou uma poltrona para
que eu também pudesse sentar.
Então vieram as explicações.
__ Saulo, esta noite você seria submetido a um Ritual de
Bênçãos Energéticas. Este Ritual Sagrado iria iluminar sua
mente e através dele você saberia qual o caminho a seguir
até São Tomé das Letras.
__ E po-por quê não va-vai ter mais e-este Ritual? --
indaguei.
__ Na Ordem dos Mentecaptos tão somente uma pessoa
tem poderes e autorização especial para realizar o Ritual. E
esta pessoa é justamente o Cavaleiro Iluminado que você,
de alguma forma, ofendeu e fez com que fosse embora
enfurecido do Albergue.
__ E a-agora? -- perguntei, sabendo de antemão que a
resposta não seria nada favorável.
Rodnaldo esfregou os olhos com as palmas das mãos e
levantou-se, caminhando até a janela do escritório.
__ Agora, tudo depende de você -- afirmou num tom
vacilante.
__ Não é possível, Mestre -- exclamou Peteleco
despertando de sua postura de estátua. __ Este cara não é
capaz de cuidar nem das próprias roupas do corpo, quanto
mais do medalhão sagrado.
__ Eu sei, eu sei -- replicou Rodnaldo impacientemente.
__ Mas não resta outra alternativa, senão essa: Saulo
Lebre, seu ingresso à Ordem, a aura do Mentor e o próprio
futuro de nossa Instituição Sagrada, dependem unicamente
de você.
Engoli umas cinco vezes. Meus olhos ficaram vagando
sem rumo pelo aposento. Meu coração (e outro órgão)
ficaram comprimidos.
__ Mas há uma esperança que você obtenha êxito em
sua empreita: eu irei acompanhá-lo no primeiro dia de sua
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caminhada; nos outros dias, manterei contato com os mais
nobres Cavaleiros da Ordem, e espero que eles venham te
acompanhar, pelo menos por um dia, até você chegar ao
seu destino.
__ E a rota que ele irá seguir? -- perguntou Peteleco,
pouco satisfeito com a solução de Rodnaldo.
__ Isso, infelizmente, apenas o ... bom-senso dele é que
poderá determinar.
Peteleco desmaiou.
Rodnaldo começou a chorar.
Uma tempestade desabou repentinamente lá fora, com
fortes rajadas de vento e estrondosos trovões.
Lembrei-me das palavras do Dr. Ribero, em uma das
fitas: __ “A sorte está lançada. Se vira, cara”.
O jantar, instantes depois, realizou-se em absoluto
silêncio. Parecíamos três fantasmas, invisíveis uns aos
outros.
__ Devo ensinar-lhe o primeiro exercício necessário ao
seu crescimento espiritual -- falou Rodnaldo após a
refeição, enquanto subíamos os degraus da larga escadaria
do Albergue.
__ Que ti-tipo de e-exercício é este? -- perguntei,
disposto a colaborar em tudo com meu Guia, a fim de
amenizar a situação difícil que havia gerado.
__ Vamos até o seu aposento que eu lhe ensinarei.
Ordenou-me o Guia que eu me deitasse na cama, com
os braços estendidos paralelamente ao tronco, deixando as
palmas das mãos voltadas para cima.
Sentado ao lado da cabeceira de meu leito, Rodnaldo me
mandou iniciar o exercício através de uma profunda
respiração, procurando assim, concentrar minha atenção e
aliviar minhas tensões.
__ Agora, Saulo Lebre, visualize uma escada com dez
degraus.
__ Que ti-tipo de es-escada?
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__ Qualquer tipo. Agora, silencie seu coração, mantenha
a respiração profunda e torne a visualizar a escada com dez
degraus.
O tom de voz do Guia era grave e suave, quase
hipnótico. Tive de obedecer suas instruções, e, assim,
imaginei uma escada rolante com degraus de borracha, do
jeito que um dia eu vira numa loja da cidade.
__ Neste instante, Saulo, veja a sua imagem no alto
desta escadaria, no décimo degrau.
__ Tô-tô vendo.
__ Fique quieto. Apenas me ouça e obedeça
mentalmente o que eu lhe falo.
Depois de um bufo enraivecido e um suspiro desgostoso,
meu Guia prosseguiu:
__ Você, neste instante, está movendo o pé direito nesta
imagem mental. Sinta isto. Perceba como é real. Este pé
está agora no nono degrau. Seu joelho está flexionando
neste momento. Seu pé esquerdo se move, e você o coloca
ao lado do outro, no nono degrau, e a cada degrau que
você desce, Saulo, você vai atingindo níveis mais profundos
em sua mente.
__ Che-cheguei.
__ Quê! Como assim?
__ Já-já cheguei lá em ba-baixo -- afirmei feliz pela minha
rapidez.
__ Mas você está apenas no nono degrau -- argumentou
meu Guia, espantado com minha afirmação.
__ É que-que eu imaginei u-uma e-escada rolante --
justifiquei-me.
Felizmente estava de olhos fechados e não pude ver o
que era aquela barulheira toda de coisas se quebrando
perto de mim.
Ouvi a respiração de Rodnaldo tornar-se menos intensa.
Ele continuou:
__ Saulo, você é meu discípulo até amanhã à noite. Eu
estou vendo que isto será uma eternidade, mas, por favor,
faça o que eu lhe determinar. Fique quieto e deixe a paz
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deste Albergue lhe envolver. Ouça-me apenas. Você está
numa escada normal, não rolante, com os dois pés no nono
degrau. Respire profundamente e sinta quanta paz vai para
o seu interior. Você, neste instante, está flexionando o
joelho direito bem devagar. Seu pé direito está se
deslocando serenamente. Você acaba de colocá-lo no
oitavo degrau. Um nível mais profundo em sua mente está
sendo atingido e ...
__ Caí.
__ Caiu? O que você quer dizer?
__ Pe-perdi o e-equilíbrio. Ro-rolei pe-pela escada e ca-
caí de bu-bunda no chão.
Parecia que meu Guia estava chutando a parede, tal o
tremor que eu sentia na cabeceira da cama.
__ Tá legal, você já tá lá em baixo. Agora, você está
terminantemente proibido de falar ou fazer qualquer coisa
que não seja o que eu mandar. Pois bem, você está de pé
e diante de si encontra-se uma tela branca. Nela, seu
subconsciente estará liberando imagens ocultas.
Estimulado pela força sugestiva do Guia, comecei ver
coisas na tal tela mental.
__ Segredos estão sendo revelados a ti, neste momento,
Saulo. Sua mente, fragmento do Universo, está conectando
você a imagens sagradas, escondidas dos mortais não
pertencentes à Ordem. Agora, diga-me o que te é revelado.
__ A-ai, que bom! -- exclamei, não conseguindo falar
mais nada.
__ Eu posso entender que são revelações maravilhosas,
encantadoras. Partilhe elas com seu Guia, Saulo.
__ É bom de-demais.
__ O que é bom, Saulo?
__ O que eu tô fazendo.
__ Saulo, você não está mais gaguejando. Você está
sendo energizado pela Consciência Superior. O quê ela
está te revelando, Saulo?
__ A Verusa.
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__ Verusa? Deve ser alguma entidade superior de outra
dimensão.
__ Não.
__ Então, quem é ela? Pergunte a ela, Saulo. E
descreva-me o quê de tão maravilhoso esta Verusa está
fazendo com você.
__ Amor.
__ Você tá fazendo amor com um anjo?
__ Não. Com minha vizinha.
As únicas coisas que ainda me lembro é que senti uma
forte pancada em minha cabeça e adormeci profundamente.
Estranho mesmo é que amanheci com um baita galo no
meio da testa no dia seguinte.
CAPÍTULO VI
RUMO CERTO
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Parei de ficar olhando para o espelho igual um idiota, e
fui atrás de respostas para minhas dúvidas. Passei pela sala
de espera, onde tinha uma antiga televisão colorida à
válvula: a imagem distorcida, o som rouco.
Não havia ninguém na sala, e a poltrona próxima ao
aparelho estava coberta por uma manta xadrez. Cheguei
mais próximo do televisor e girei o seletor, mudando de
canal. Um sujeito de terno fino surgiu na tela segurando
uma Bíblia na mão, e várias pessoas de aparência humilde
o rodeavam. O local parecia com o recinto de um circo.
Mexi em todos os botões do televisor até melhorar a
imagem e o som: foram dez minutos de muita paciência,
palavrões e desconhecimento técnico.
Com a imagem nítida e o som mais puro, consegui
identificar o sujeito que não parava de falar um só instante.
Era nada mais, nada menos, do que o safado do Pastor
Willian. Minhas mãos começaram a suar, meu coração
disparou. Tive vontade de sentar uma cadeirada na tela do
televisor. Aquele mentiroso duma figa continuava a fazer
suas indefesas vítimas.
O pastor, que tinha ao seu lado um homem se debatendo
ao chão, segurou uma moça pelo braço, e disse em tom
ávido, olhando friamente para a lente da câmera:
__ Vejam, meus irmãos, a vida desta mulher é um
verdadeiro inferno. O marido dela, que está aqui ao meu
lado rolando no chão, quando chega em casa é um
verdadeiro horror: quebra tudo o que vê pela frente, agride a
pobrezinha, e ainda xinga ela de vagabunda. O que está
acontecendo com seu marido, minha senhora?
A mulher, meio sorrindo, disse ao microfone:
__ Tudo isso o que você disse sobre ele é verdade,
pastor. Só que o senhor esqueceu de dizer que ele tem
muitas dores nas costas ...
__ Ah, sim! -- exclamou o pastor, suspirando. __ Vejam
meus irmãos, o poder que o demônio tem. Ele está alojado
nas costas deste homem. E com o nosso poder, junto
vamos libertá-lo desse mal. Talvez sua vida também seja
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um verdadeiro inferno. Por isso procure um de nossos
pastores para ajudar a você se libertar de seus males. Neste
instante, quero que prestem muita atenção neste homem.
Em nome do Senhor, vocês irão me ajudar a expulsar o
demônio que encontra-se hospedado nas costas dele.
Num gesto sinistro, o Pastor Willian montou no sujeito e,
como se fosse um verdadeiro peão, passou a cavalgar no
dorso do pobre homem, que não parava de rosnar. As
pessoas ao seu redor ficaram eufóricas, estendiam os
braços e gritavam num tom áspero, repetidamente:
__ Sai. Sai .
Após um breve e teatral galope, o pastor passou uma
rasteira, atirando o homem ao chão. A multidão foi ao
delírio: sapateavam, gritavam, e esperneavam.
De repente, o tal sujeito levantou-se do chão sorridente
e falou ao microfone:
__ Pastor! Você me libertou. Não sinto mais nada nas
minhas costas. Estou muito feliz; feliz mesmo. O senhor é
um homem santo -- e pôs-se a beijar o Pastor Willian.
Naquele momento, aproximei-me mais da tela da
televisão e pude notar que a roupa que aquele homem
usava, era a roupa que o pastor havia roubado de mim.
Enfurecido com tudo aquilo que ocorria próximo aos
meus olhos, mas longe de mim, dei um chute certeiro na
tela do aparelho. Desequilibrei-me e caí sobre a poltrona
que estava coberta pela manta xadrez. Senti algo mole por
debaixo de mim pedindo por socorro. Entretanto, eu mal
conseguia me levantar.
Rodnaldo apareceu na sala, atraído pelos gritos.
__ Mas o que está ocorrendo aqui, Saulo Lebre? A
televisão está toda espatifada no chão e você está sentado
sobre o Peteleco. Saia já daí!
__ Socorro! -- gritava o anão, com voz e corpo
espremidos.
__ E-eu nã-não co-consigo.
Rodnaldo parou diante de mim e com muita dificuldade
estendeu-me a mão. Num puxão violento, saltei da poltrona
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caindo sobre o meu Guia, que tinha pés e braços
enfaixados.
__ Ai. Saia de cima de mim, seu verme! -- berrou
Rodnaldo, ferindo meus tímpanos.
Quando consegui levantar, senti algo me puxando pela
calça. Olhei para trás e vi o anão segurando uma vassoura
em suas mãos. Não esperei por nada e saí em retirada,
trancando-me no banheiro.
__ Abra essa porta! -- vociferava Peteleco, batendo a
vassoura na porta.
Sentei-me no vaso sanitário. Segurei o medalhão e
comecei a chorar como uma criança birrenta. Dessa vez eu
havia passado dos limites e não teria mais uma segunda
chance. Temia que Rodnaldo me expulsasse da Ordem,
indo por água abaixo a esperança de ser curado da gaguez.
__ Abra essa porta, senão vou arrombá-la -- gritou
novamente o anão, batendo firmemente na porta.
__ Pare com isso, Peteleco -- berrou Rodnaldo, talvez
anunciando uma trégua. __ Saulo Lebre, abra esta porta.
Não vamos fazer nada com você. Seja bonzinho. Como
Guia, devo respeitar seu modo de ser, e minha função é
orientar o caminho que você deve seguir em sua vida. Abre
logo esta porta, que hoje iremos começar a sua
peregrinação.
Eu continuava em silêncio, com receio de abrir a porta e
ser surpreendido com algum tipo de repreensão.
Rodnaldo, continuava a insistir:
__ Saulo Lebre, você está me ouvindo? Olhe, eu garanto
que nada vai lhe acontecer. Se você não confia em seu
Guia, então, em quem você vai confiar? No Mensageiro da
Libertação?
Por muito pouco eu não respondi “sim”.
Soltei o medalhão de minhas mãos, levantei do vaso
sanitário e encostei na porta. Rodnaldo falou mais uma vez:
__ É sua última chance. Ou isso acaba tudo numa boa,
você sai e a gente te perdoa, ou vamos arrombar a porta, e
você arcará com as conseqüências. O que você prefere?
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__ É ga-garantido que vo-vocês não irão fa-fazer nada
co-comigo? -- inquiri, quase confirmando o acordo.
__ Pode crer -- disse Peteleco, estranhamente.
__ Positivo, Saulo. Palavra de honra -- selou Rodnaldo,
conciso.
Criei coragem, abri um sorriso maroto e abri a porta de
supetão.
Desta vez, acordei deitado em cima de um morro, com
uma forte luz solar incidindo diretamente em meus olhos. O
galo que havia se formado em minha testa era ainda maior.
A cidade havia ficado para trás, bem distante dos meus
olhos inchados.
Aquele local era muito agradável. Ao redor havia uma
densa mata, a qual parecia um mar verde com ondas
gigantescas.
Levantei-me da rocha e avistei o meu Guia, que estava
virado de costas para mim, colocando gravetos numa
fogueira. Aproximei-me dele, meio sonolento, meio zonzo.
Rodnaldo percebeu minha presença, e segurando um
graveto em chamas, admirou-se:
__ Ah! Até que enfim o senhor resolveu acordar. Estou
preparando o almoço. Logo mais vamos partir.
O meu Guia parecia tão dócil. Talvez aquilo tudo teria
sido um sonho. Mas como explicar o galo na minha testa?
Procurei ser mais cauteloso e evitei interrogá-lo a respeito
do que havia ocorrido pela manhã.
__ O que te-temos pra co-comer?
__ Cobra peçonhenta. Segure. Tá uma delícia.
A contragosto, mas para bajular o meu Guia,
experimentei um pedaço. Que horror! Todavia, fiz cara de
quem gostou e ainda pedi outro pedaço.
Depois do almoço, Rodnaldo apagou a fogueira e
orientou-me:
__ Creio que você deva estar preparado para escolher o
seu caminho. Tome o mapa e faça a sua rota.
Peguei a caneta e o mapa da região. Com muita
paciência localizei a cidade de Varginha, a qual estava
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assinalada com um círculo azul. A dedo, fui escolhendo meu
caminho até São Tomé das Letras: Carmo da Cachoeira,
Ingaí, Luminária, S. Bento Abade e Três Corações.
Entreguei o mapa ao meu Guia, que ficou furioso comigo.
__ Quem falou pra você rabiscar o meu mapa. Era só pra
escolher as cidades. Não era para riscar o caminho.
__ De-desculpa, Ro-rodnaldo. Eu pe-pensei que ...
__ Pensou errado.
Eu não agüentava mais a curiosidade e inquiri:
__ Po-por que vo-você tá to-todo enfaixado?
__ Cale essa boca, e me siga -- replicou Rodnaldo,
finalizando.
Caminhamos alguns metros e achamos uma trilha no
cume do morro, feita pelo gado. Seguimos a trilha morro a
baixo. Havia muitas pedras soltas pelo íngreme, estreito e
sinuoso caminho.
Houve um momento em que não consegui me equilibrar
e escorreguei numa pedra. Por muito pouco não despenquei
do morro. Segurei firmemente num pequeno arbusto.
Levantei e dei de cara com Rodnaldo, o qual soltou uma
debochada gargalhada.
__ Rhá, rhá, rhá. Isto é pra você aprender a ser mais
aplicado nos ensinamentos da Ordem. Por acaso você
nunca ouvir falar do Exercício da Pedra?
__ Nu-nunca -- respondi, ainda assustado com o tombo.
__ Eu já havia me esquecido desse detalhe: faz poucos
dias que você entrou para a Ordem. Como sendo seu Guia,
vou lhe ensinar o Exercício da Pedra.
Não conseguia nem imaginar como seria esse tal
exercício. Eu só tinha consciência de que odiava fazer
qualquer tipo de atividade física. Todavia, se o sacrifício
valesse a cura de minha gagueira, eu não poderia fugir dele.
Caminhando lentamente, Rodnaldo pôs-se a explicá-lo:
__ O exercício é simples, Saulo Lebre. São os
Mensageiros da Libertação quem colocam os obstáculos em
nossas vidas. Esses empecilhos prejudicam e até mesmo
destroem a vida das pessoas. Acredite nisto. E preste
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atenção no que vou lhe ensinar: a partir deste momento
você irá praticar o Exercício da Pedra: toda pedra que você
encontrar em sua caminho, pegue com as mãos, e depois,
com bastante força, arremesse para trás. Entendeu? É
muito simples.
O exercício parecia ser muito fácil. Após aquelas santas
explicações, continuamos a descer o morro, seguindo a
trilha do gado. Não via a hora de encontrar uma pedra
importunando meu caminho, visto que a partir daquele
trecho não encontrara mais nenhuma.
CAPÍTULO VII
PERNAS PRA
QUE TE QUERO
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__ Como não? Se você não tivesse acertado um cacho
de marimbondos e o touro da boiada com as pedras, não
estaríamos nessa situação.
Que coisa! Quando não obedecia as ordens era criticado;
quando obedecia -- naquele caso, jogando as pedras que
eu encontrava para trás, com bastante força -- era nova
vítima das severas admoestações do Guia.
__ E o que a gente faz agora? -- suplicou Rodnaldo
angustiado, ao depararmos com um brejo rodeado por uma
densa e fechada vegetação.
Diminuindo o ritmo, olhei para trás e vi que a boiada
comandada pelo touro com o olho inchado pela pedrada se
aproximava cada vez mais. Acima dela, parecendo uma
rajada de metralhadora, uma constelação de nervosos
maribondos vinha em disparo frontal em nossa direção.
__ Va-vamos por a-aqui, Guia. De ma-mato eu en-
entendo.
Contornamos o brejo, deslizando por sua lamacenta
margem, e entramos com enorme dificuldade naquela mata
virgem.
__ Ai, ai, ai -- gritava meu Guia, lamentando-se dos
pontiagudos espinhos que o feriam por todo o corpo.
__ Ca-calma que lo-logo vai me melhorar -- consolei-o,
apiedando-me das cicatrizes que os espinhos formaram em
seu rosto.
__ Ai. Ui. Ai -- continuava meu Guia resmungando.
Pequenos sulcos de sangue podiam ser observados em seu
outrora rostinho de neném.
Foi mesmo uma pena que Rodnaldo optara por vir de
shorts e camiseta. Caso ele estivesse de botas, calça
comprida e jaqueta jeans como eu, certamente ele não teria
sofrido tanto, mas ...
__ Ve-veja, Guia. De-depois daquelas tre-trepadeiras tem
um de-descampado. A-ali podemos de-descansar
tranqüilos.
__ Não tô vendo mais nada. Você tem certeza?
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__ De ma-mato eu e-entendo -- insisti, indignado com a
desconfiança de Rodnaldo.
Minutos e suspiros depois, chegamos ao descampado,
saindo da dolorosa mata espinhenta.
__ Graças aos Anjos Cabalísticos escapamos daquela
adversidade. Que isto lhe sirva de lição, Saulo Lebre: nunca
deixe de confiar nas forças esotéricas que nos conduzem.
Era interessante notar aquele homem de pé e mão
enfaixados, rosto, braços e pernas arranhados e feridos
pelos espinhos, falar-me coisas tão positivas. Realmente,
ele merecia ser um nobre Guia da Ordem dos Mentecaptos.
__ Hoje, antes de partirmos, li meu horóscopo, e foi-me
dito que superaria todos os meus obstáculos, tendo um dia
feliz e agradável. É incrível como os astros lá em cima
regem nossas vidas e cuidam de nóooosss ...
Meu Guia escorregou e caiu dentro do brejo. Segundos
depois, a boiada surgiu por uma estrada de terra que havia
por perto, e junto com ela, o exército de marimbondos.
__ Seu estúpido. Você fez a gente andar em círculos e
voltar ao brejo.
O touro de olho inchado olhou para cima, acenado com o
pescoço aos marimbondos. Posteriormente, fez o mesmo
aceno, agora para o resto da boiada. Juntos, bois, vacas e
marimbondos se lançaram em direção ao meu Guia, no
brejo.
Sem saber o que fazer, escondi-me atrás de uma
trepadeira, e procurei mentalizar os astros, clamando que
protegessem meu Guia.
Cerca de quinze minutos depois, com o fim do infernal
barulho que vinha do brejo, parei com minha mentalização
energética, saí de trás da trepadeira e fui ver se os astros
realmente haviam protegido meu Guia, tornando seu dia
feliz e agradável, conforme relatado em seu horóscopo.
Bem, pode acontecer que uma criança ou uma pessoa
mais sensível leia meu Diário e fique abalada pro resto de
sua vida se eu relatar o estado físico de meu Guia após
aquele ... incidente. Assim sendo, digo apenas que eu entrei
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no brejo e arrastei meu Guia agonizante até debaixo da
sombra da trepadeira. Abri meu cantil, e como estava
morrendo de sede, tomei quase toda a água. Lembrei-me
então do Guia, dei mais duas goladas, e dei o restinho de
água para aquele valente Cavaleiro Iluminado da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos.
Percebi, porém, que Rodnaldo não havia melhorado
muito. Achei estranho, já que sempre ouvira falar que a
água é um santo remédio.
Uma chuva fina começou a cair, limpando a lama que
cobria todo o corpo do Guia. Um trovão fez-me bolar outro
jeito para reanimar aquele bom homem.
Abri minha mochila, retirando dela meu antigo guarda-
chuva de ponta de ferro. Tirei o cabo de borracha,
descasquei um fio que também levara comigo, fazendo uma
emenda na porta do guarda-chuva. Subi numa trepadeira,
ajeitando-o num galho alto, deixando a ponta para cima,
como uma espécie de pára-raio. Descendo cuidadosamente
da árvore, parei por um instante, admirando a beleza da
mata beijada delicadamente pelos grossos pingos da chuva.
Um assustador raio caído a poucos metros de onde
estávamos despertou-me. Pulei da trepadeira, peguei o fio e
pus-me a descascar a outra ponta. Para meu azar, na hora
que estava enrolando o fio na mão desfigurada do Guia, um
raio caiu nos eletrocutando.
Eu, que pretendia reanimar Rodnaldo através da
descarga elétrica, conforme vira um médico fazendo uma
vez num filme com seu aparelho, fiquei tão desacordado
quanto ele.
Não lembro quanto tempo fiquei naquele estado. Apenas
me recordo que acordei, ainda bastante zonzo, com a língua
babenta de uma Vaca me lambendo.
__ De novo, não -- murmurou meu Guia, em estado de
choque, profundamente abalado pela visão da Vaca.
Mesmo transtornado pelo choque, fiquei feliz por ver
Rodnaldo, estirado ao meu lado no chão, mais reanimado.
__ Em que você se meteu agora, Saulo Lebre?
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Fiquei confuso. A Vaca falava comigo. Seria alucinação
provocada pelo choque?
__ Assim não dá, Saulo. Como é que eu vou fazer meu
trabalho e atrapalhar sua caminhada se você mesmo se
atrapalha?
Reconheci a voz. Era o Mensageiro da Libertação, o ser
maligno incumbido de prejudicar minha missão.
__ Vo-você não e-era um gato? Ou u-um go-gorila? --
indaguei à Vaca babenta.
__ Eu já lhe disse que posso assumir qualquer forma
animal inferior, Saulo.
Meu Guia começou a soluçar, tremendo e se revirando
todo no chão, abaladíssimo por ver a Vaca falando comigo.
__ É, acho que vou ter de quebrar as regras -- disse-me
a Vaca enquanto fitava-nos com um olhar desanimado.
__ Co-como assim? -- perguntei, ao mesmo tempo que
exalava uma fumaça pela minha boca torta pelo raio.
__ Vou ter que ajudar vocês. -- Depois de um suspiro
desgostoso, completou: __ Sei que é um absurdo um
Mensageiro auxiliar seus inimigos, mas se não fizer isto não
terei como te atrapalhar.
Depois de uma crise convulsiva, Rodnaldo, exausto, ficou
paralisado. Eu, igualmente, não conseguia me mexer.
Parecia que a Vaca estava nos hipnotizando com seu olhar
sonso.
__ Pronto. Vocês não estão cem por cento, mas dá pro
gasto. E veja se não se mete em nova enrascada, Saulo.
Até a próxima.
A Vaca deu um mugido e entrou dentro do brejo,
desaparecendo por completo.
Eu e Rodnaldo ficamos sentados até o cair da noite,
procurando nos reabilitar dos últimos incidentes.
Quando estávamos novamente em um estado favorável,
pegamos nossas mochilas e continuamos nosso caminho,
driblando a mata e o brejo.
Alcançamos uma estrada de terra. Rodnaldo pegou seu
celular de dentro da mochila e conversou com Peteleco,
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dizendo-lhe para enviar o próximo Guia, já que nos
encontrávamos no lugar previamente combinado para a
troca de guias.
Claro que, vez ou outra, tentava conversar com
Rodnaldo, dizendo-lhe que não foi culpa minha tudo aquilo
que ocorrera, mas ele não me dava ouvidos.
Paramos num certo lugar; Rodnaldo acendeu a fogueira
e jantamos salsichas assadas.
Logo, um sujeito com um cajado apareceu. Rodnaldo
pulou aos seus pés, beijando-os com uma intensa e
incompreensível paixão.
__ Que é isso companheiro? -- perguntou o nosso Guia,
não entendendo o que se passava com Rodnaldo.
__ Perdoe-me, Andson -- disse Rodnaldo, levantando-se
do chão. __ É que você não sabe quão alegre estou em te
ver.
__ Eh, tá me estranhando, Rodnaldo. Eu sou muito
homem, viu?
Pouco se importando com as palavras do outro Guia,
Rodnaldo abraçou-o, deu-lhe um sonoro beijo, pegou sua
mochila e, sem se despedir de mim (o que muito me
magoou), foi embora cambaleante.
Andson, meu novo Guia, pasmo com as atitudes de
Rodnaldo, e espantado com o estado deplorável dele,
perguntou-me o que acontecera.
__ Na-nada. Só um pe-pequeno in-incidente -- respondi
com a consciência tranqüila.
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CAPÍTULO VIII
CONTANDO ESTRELAS
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Após atravessarmos uma pequena trilha lamacenta e
coberta pelos bambuzinhos, chegamos no rancho; um
monte de madeira arranjada de uma forma insegura
constituía a parede e o teto daquele esconderijo de
pererecas.
Meu coração disparou no exato momento em que
Andson abriu a frágil portinha do rancho, saltando sobre nós
aqueles pequenos animais gelados, de olhos arregalados;
dóceis, mas amedrontadores. Saiu perereca correndo para
todo lado. Uma delas caiu dentro de minha calça, e por
muito pouco não despenquei barranco abaixo.
Estava sendo um sacrifício danado tirar aquele bicho da
minha calça.
Andson, segurando uma faca nas mãos, gritou:
__ Não deixe a perereca escapar. Ela será o nosso jantar
desta noite.
Jantar? Que coisa mais horrível! Era melhor ficar sem
jantar do que ter que comer aquele ser nojento.
Andson aproximou-se de mim e apontou a faca na
direção onde a perereca se mexia em minha calça.
__ De-deixa que eu pe-pego a pe-perereca. Tô-to qua-
quase co-conseguindo -- falei, antes que o meu Guia
resolvesse partir com a faca em cima da perereca.
__ Pegue, vamos! A carne é uma delícia -- afirmou
Andson com água na boca.
Ligeira, a perereca escorregou pela minha perna e saiu
pela barra da calça. Andson despencou uma carreira atrás
do dócil anfíbio anuro, o qual conseguiu escapulir de seu
predador. Senti-me completamente aliviado.
Enquanto Andson continuava a procurar uma perereca
no meio do mato, acendi uma vela que trazia na mochila e
adentrei o rancho. Dentro havia dois colchões, palhas de
arroz amontoadas num canto, uma mesa de madeira de lei
ladeada por três tocos pretos, muita poeira, teias de aranha,
umas cartas que falava sobre um tal colecionador de
borboleta, várias varas de pesca, alguns latões vazios, uma
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vassoura e vários pedaços de fumo presos no teto, os quais
me despertaram interesse.
Peguei a vassoura e cutuquei os fumos. Para minha
surpresa, os fumos não eram fumos; eram morcegos, e dos
grandes. Soltei a vela e saí em disparada do rancho,
seguido pelo vulto e farfalhejo dos morcegos.
Por sorte, Andson vinha galopante, todo eufórico,
segurando em suas mãos duas pererecas mortas. Antes
que eu dissesse algo, o Guia foi logo se gabando.
__ Olha aqui que maravilha de jantar! Encontrei-as
escondidas nas taiobas. Caçador de perereca igual a mim
não existe em lugar algum na região de Varginha.
__ São bo-bonitas e grandonas me-mesmo. Ma-mas ...
__ Agora, caro amigo -- interrompeu-me o Guia --, vamos
preparar uma grande fogueira para assar estas gostosuras.
Ande logo, Saulo. Vá procurar os gravetos -- ordenou
Andson, beijando sua caça freneticamente.
Senti um cheiro de queimado e indaguei ao Guia:
__ Vo-você tá se-sentindo che-cheiro de que-queimado?
__ Seu idiota! Você colocou fogo no rancho.
Olhei para trás e havia muita fumaça saindo pelas frestas
das tábuas que recobriam o rancho. Em poucos segundos,
o rancho ficou completamente em chamas; logo, totalmente
em cinzas.
Andson olhava para mim com um semblante colérico. Ele
não poderia me culpar pelo ocorrido; aquilo tinha sido um
acidente, e todo acidente é um mero acidente, não algo
premeditado, realizado por querer, por satisfação pessoal.
Aliás, nem eu mesmo sabia o que havia originado o
incêndio.
Pedi desculpas várias vezes ao Guia. Porém ele me
disse que só aceitaria meu pedido, se eu comesse uma das
rãs e parasse com aquela falação. A contragosto, aceitei a
imposição de Andson e devorei o pobre animal tostado.
Diga-se de passagem, uma delícia. Mesmo assim, fiz cara
feia, esperneei e resmunguei, não dando o braço a torcer.
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Após o jantar inusitado, usando folhas de taboa,
tomamos um pouco de água gelada de uma nascente
cristalina das proximidades.
O nosso novo acampamento era muito desconfortável e
ao relento. Às margens do rio, próximo a uma grande
árvore, Andson fez apenas uma cama com capins e folhas
de taboa. A princípio achei que a cama seria para mim, mas
depois de pronta, o Guia atarefou-me:
__ Saulo, cuide da fogueira, que eu vou dormir um
pouco. Ah, não! É melhor deixar a fogueira apagada, senão
é perigoso você incendiar a mata toda. Você vai ficar
acordado até terminar o exercício da Ordem que vou lhe
ensinar.
Fiquei empolgado com a história de aprender mais um
exercício. Antes, porém, que ele me ensinasse o novo
exercício, indaguei-lhe a respeito do cartaz que havia no
rancho. Com uma voz sonolenta, respondeu de mau gosto:
__ Amanhã a gente conversa sobre isso. Preste atenção
no que tenho a te ensinar. O exercício é o seguinte: respire
e inspire profundamente durante cinco minutos ...
__ Ma-mas eu não te-tenho relógio -- interrompi,
preocupado com o tempo estipulado.
__ Não se preocupe com precisão. Não precisa ser
exatamente cinco minutos, entende? -- advertiu Andson,
com um tom de voz irado. __ Continuando: na próxima e
última etapa, você terá que contar quantas estrelas existem
no céu. É tão simples que qualquer criança de cinco anos
faria o exercício com os olhos fechados. Ah! não aponte o
seu dedo para as estrelas, senão eles se encherão de
verrugas.
__ Ve-verrugas? Eu o-odeio ve-verrugas! -- admiti com
um certo receio de realizar o perigoso exercício.
__ E tem mais uma coisa. Eu não quero ser incomodado
por nada nesta vida. Será que eu fui bem claro?
__ Tu-tudo bem.
Andson deitou em sua aconchegante cama, cobrindo-se
com algumas folhas secas.
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Uma brisa trazia o frio para às margens do rio. Olhei para
todos os lados; a única coisa que eu via era uma imensa
escuridão. Naquela noite não havia lua, só trevas. O barulho
irritante da correnteza, o chilrear do grilo, os pernilongos e o
intenso frio, incomodavam-me na realização do Exercício da
Contagem. Não consegui me concentrar naqueles pontos
luminosos no céu. Senti medo. Sacudi o Guia, acordando-o.
__ O que você quer? Já não disse que não quero ser
incomodado? -- irritou-se Andson.
__ É que e-eu tô com me-medo -- justifiquei-me.
__ Medo de quê?
__ Se as pe-pererecas me a-atacarem, o que e-eu faço?
A-aliás, o-odeio o ba-barulho irritante desses gri-grilos. E se
a-aparecer alguma ji-jibóia?
__ Cale a boca! -- berrou Andson, completamente fora de
si. __ Se vira, meu. O problema é todo seu. Deixa eu dormir
em paz e comece logo o Exercício da Contagem.
__ Um, do-dois, três ... -- iniciei o exercício, cabisbaixo.
__ Conte em pensamento, seu ... seu Saulo Lebre --
interrompeu o Guia, colérico. __ Da próxima vez que você
me interromper vou lançá-lo no rio. Entendeu?
__ Posso fa-fazer uma última pe-pergunta? -- inquiri,
docilmente.
__ Faça.
__ Tá muito fri-frio. Tô co-congelando. Vo-você de-deixa
eu a-acender uma fo-fogueira? -- supliquei, quase caindo
aos pés do Guia.
__ Faça, e não torre mais minha paciência -- finalizou
Andson, cobrindo-se novamente com as folhas secas.
Recolhi alguns gravetos, peguei uma tábua do rancho
com sua metade em brasa e acendi minha fogueira. Sentei-
me ao redor dela e aqueci minhas mãos geladas.
Em absoluto silêncio, passei a contar as estrelas:
__ Uma, du-duas, três, qua-quatro, ... cinco mil e do-
doze, cinco mil e tre-treze ... o que são a-aquelas lu-luzes
no ce-céu? -- falei fracamente, interrompendo minha
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contagem, abismado com a fulgente luz que vinha em
minha direção.
Permaneci com minha atenção voltada naquele
fenômeno encantador. Seria uma nave extra-terrestre?
As luzes se aproximavam cada vez mais,
gradativamente, aumentando de intensidade. Meu coração
começou a pulsar forte. Não havia mais como fugir daquela
fosforescência. Abaixei-me, e ela passou sobre minha
cabeça. Naquele momento, pude notar que tratava-se de
uma nuvem de pirilampos. Era realmente maravilhoso!
Sublime!
Eu havia pensado em acordar o Guia para ele partilhar
comigo aquele momento mágico. Todavia, lembrei-me da
promessa: se o importunasse, lançar-me-ia no rio. Desisti da
idéia e deleitei-me com aquela cena incomum.
A nuvem passou veloz e seguiu seu caminho,
acompanhando as margens do rio. Fiquei a observar aquele
brilho intenso distanciando-se do meu olhar estupefato, até
o último ponto luminoso, que desapareceu na escuridão.
Novamente, sentei ao redor da fogueira, e reiniciei o
Exercício de Contagem da estaca zero:
__ Uma, du-duas, três ...
Algo muito interessante estava ocorrendo. À medida que
o tempo avançava rumo ao alvorecer, parecia diminuir a
quantidade de estrelas.
Na proporção que aumentava a intensidade luminosa no
horizonte, diminuíam as estrelas no céu. Instantes antes do
sol aparecer, não havia mais do que meia dúzia de estrelas;
e quando ele despontou com toda força no horizonte,
desapareceram todas.
Aquele fato curioso deixou-me intrigado. E agora?
Quantas estrelas existiam no céu?
Não demorou muito e Andson acordou de seu sono
profundo. Esfregou os olhos, bocejou e me chamou até ele.
__ Bom-dia. Do-dormiu be-bem? -- indaguei ao Guia com
um largo sorriso.
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__ Muito bem. Parece que você se comportou direitinho.
Saulo, é assim que deve agir um bom membro da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos. E como recompensa, hoje, nós
iremos atrás da Esfinge Dourada. Eu sei onde mora o tal
colecionador de borboletas; e talvez, quem sabe, ele possa
nos ajudar a localizá-la.
__ Tá fa-falando sé-sério?
__ Ah! Antes de partirmos, diga-me quantas estrelas
você contou no céu?
__ Mu-muitas e ne-nenhuma -- respondi empolgado.
__ Como assim? Não entendi.
__ É que eu estava con-contando as estrelas; de re-
repente, elas co-começaram a su-sumir, e não restou ne-
nenhuma.
Sem dizer mais nada, o Guia pegou sua mochila e pediu-
me para segui-lo pela trilha do brejo.
CAPÍTULO IX
UM TIRO CERTEIRO
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O sol já queimava nossa pele com todo o ardor quando
chegamos na casa do rancho onde íamos encontrar o
colecionador de borboletas.
Era uma cabana rústica, pequena; como se servisse de
abrigo a viajantes ou peregrinos.
__ Êpa! Estou estranhando este lugar -- falou o Guia,
com ares de dúvida em seu semblante.
Eu não disse nada. Queria manter um santo silêncio a fim
de mostrar a Andson minhas qualidades pessoais.
Avançamos um pouco mais e paramos diante da porta da
cabana.
__ Já sei como tirar isto a limpo. Aliás, Saulo, vou
aproveitar a oportunidade e lhe ensinarei os segredos
ocultos nas cartas do Tarô.
Minha língua pulava descontroladamente em minha
boca. Contive, porém, meu desejo de conversar, mantendo
uma postura monástica.
Andson retirou de sua mochila um baralho com figuras
engraçadas envolto num pano de linho bege. Desenrolou o
embrulho, embaralhou as cartas, e ficando de cócoras,
espalhou-as em cima do tecido.
__ Ah, que alívio! Parece que está tudo certo, Saulo. As
cartas garantiram que meu êxito nesta peregrinação com
você será total. Agora, Saulo, sente-se aqui no chão, que eu
vou ler o seu destino através das sagradas cartas do Tarô.
Estava super-excitado. Iria descobrir meu futuro, meu
destino. Concentrei minha atenção naquele momento
mágico.
__ Céus, Saulo! -- admirou-se o Guia ao distribuir as
cartas. __ O Tarô está me revelando que você será uma
pessoa de grande sorte. Um afortunado pelas energias
ocultas que nos regem.
__ Ve-verdade? -- espantei-me, quebrando meu silêncio.
__ Claro que é verdade. As cartas não mentem jamais. E
quer saber mais? Todos os dias de sua peregrinação serão
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repletos de paz e bênçãos esotéricas. Nada afligirá nem
você nem seus companheiros de jornada. Não é o máximo?
__ É li-lindo. Nu-nunca ninguém me di-disse nada tão a-
animador -- afirmei com a alma levinha, levinha.
__ Saiba, nobre homem, que é uma honra para mim
conduzi-lo até sua felicidade.
Aquele gesto de amizade me comoveu. Fiquei
completamente seduzido por aquelas palavras tão cheias de
conforto e ânimo.
__ E como você haverá de tornar-se um Cavaleiro da
Ordem, gostaria de lhe pedir um favor, de irmão para irmão.
__ Pe-peça, a-amigo.
__ Estou passando por certas dificuldades financeiras
e ... fico até envergonhado de te pedir, mas, se você
pudesse me ajudar, adiantando-me uma pequena soma de
dinheiro, ser-lhe-ia eternamente agradecido.
Expliquei-lhe que eu era pobre, mas tinha algum
dinheirinho guardado, em caso de necessidade.
Infelizmente, argumentei com o coração pesado, não ter
como dar-lhe este dinheiro, vez que estava longe de casa.
__ Você não teme que alguém entre em sua casa e
roube o seu tão sofrido dinheiro? -- perguntou-me o Guia,
preocupado comigo.
__ Na-não mesmo. O di-dinheiro está bem e-escondido.
A-além de tudo, Albertinus e-está to-tomando conta de
minha ca-casa. Inclusive, ele e-está com a cha-chave de
meu cofre.
__ Albertinus! Você deu a chave de seu cofre para
aquele sacana? Quero dizer, para aquele homem tão
ocupado.
__ E-ele me ga-garantiu que to-tomaria conta de tudo pra
mim.
__ E você acreditou?
__ Ora, e-ele pa-parece tão se-sério. Co-como poderia
de-desconfiar de alguém a-assim?
Uma rajada enfurecida de tiros sobrevoou nossas
cabeças, deixando-nos estupefatos.
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__ Vocês são os bandoleiros que queimaram minha
casa? -- interrogou-nos, de longe, um sujeito portando uma
velha garrucha.
__ Léo, sou eu, Andson.
__ Andson? Por que você botou fogo em minha casa?
__ Mas eu não botei fogo em casa alguma -- retrucou
meu Guia, olhando para mim de um modo estranho.
__ Não minta, homem. Meu cachorro e eu seguimos as
pegadas dos dois bandidos que destruíram minha casa, e
elas acabam em vocês.
__ Léo, foi um acidente. Eu iria pernoitar na sua cabana
que abriga os peregrinos da Ordem, mas acho que me
enganei e entrei em sua casa por um lamentável equívoco.
__ Vo-você errou? Um Guia e-erra? -- perguntei,
admirado com aquela assombrosa descoberta.
__ Quem é este gago que está com você? -- indagou o
homem com cara feia, mantendo uma distância nada
amistosa.
__ É um peregrino da Ordem. Ele está atrás da Esfinge
Dourada. Como você é um grande entendido em borboletas,
eu o trouxe até sua casa para ...
__ Esta aí não é minha casa -- interrompeu o sujeito com
a arma ainda apontada em nossa direção. __ Minha casa
vocês queimaram ontem, junto com tudo o que eu tinha.
Andson ameaçou aproximar-se amigavelmente do
colecionador de borboletas, mas o latido feroz do cão que
acompanhava o homem intimidou o Guia.
__ Léo, você sabe que eu jamais faria isso por querer.
Foi um infeliz acidente. Se você quiser, pode mudar-se para
alguma das minhas fazendas em Goiás.
Pobre Guia! Ele, que me pediu dinheiro emprestado
momentos antes, deveria ser um fazendeiro em
dificuldades. E assim mesmo oferecia uma de suas
propriedades para o infeliz cuja casa queimou-se
acidentalmente. Que bom homem era meu Guia!
__ Eu vou pras suas terras, sim. Mas vou pra enterrar o
que sobrar de você e desse peregrino idiota.
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O homem soltou o cachorro em cima de nós, e começou
a atirar em nossa direção.
Corremos como dois cabritos selvagens, ora desviando
da boca do cão, ora dos tiros do homem enraivecido.
__ Ai! -- berrou o Guia, tomado de dor.
__ O que fo-foi? -- indaguei-lhe, diminuindo a marcha.
__ O Léo me acertou um tiro.
__ O-onde?
Andson não respondeu. Limitou-se a ficar de costas e
mostrar-me os furos que havia em sua calça, bem na altura
de seu bumbum.
Os latidos do cachorro chegavam cada vez mais perto,
anunciando um destino bem diferente daquele apontado
nas cartas do Tarô.
Dei uma rápida olhada em volta e vi uma porteira.
Próximo a ela, um cercado. Puxei meu Guia pelo braço, e
corremos até o local.
__ O que tem do lado de lá? -- perguntou-me Andson,
com a cara expressando uma grande dor causada pelo tiro
no traseiro.
__ Na-não sei. Pule. Na-não te-temos outra a-alternativa.
Andson pulou; depois, eu.
Ouvimos o cachorro aproximar-se latindo. Percebemos
que ele deu umas cheiradas e saiu em disparada. O motivo,
descobrimos a seguir.
__ Saulo, isto aqui é um chiqueiro.
__ E na-não é que é me-mesmo -- concordei com a
perspicácia do Guia.
Ficamos ali, naquela lamaçal porquento, observados por
uns simpáticos leitões, por algumas horas.
Em agonia profunda, meu Guia virou-se de lado, já que
não conseguia ficar sentado; seu desconforto, contudo, não
tinha fim, vez que tanto de um lado como de outro, havia
uma infinidade de moscas que o molestavam.
Felizmente, cinco horas depois, sua agonia terminou. Um
homem, provavelmente o dono daquele chiqueiro, abriu o
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portão do cercado e despejou algumas latas de lavagem
perto de nós.
__ Quem são ocêis? -- perguntou um caboclo alto, meio
desdentado.
Não foi fácil explicar, mesmo assim o sujeito ajudou-nos:
pegou um regador de plantas e, do lado de fora do
chiqueiro, foi nos aguando, limpando a sujeira de nossas
roupas.
__ É só ocêis tomá um belo dum banho no sábado que
vão ficar umas belezinhas.
O caboclo estava com razão. Fedíamos mais que
banheiro de rodoviária, porém não tínhamos outra maneira
senão a de retornar nosso caminho.
__ A-ainda está do-doendo? -- indaguei meu Guia
enquanto seguíamos pela estrada de terra.
__ Só quando respiro -- respondeu-me lacônico.
__ Ah, que bo-bom! -- suspirei aliviado.
Pelo caminho fiquei pensando o que faria sem o auxílio
do Léo, o colecionador de borboletas. Seria, sem dúvida
alguma, muito difícil para eu encontrar a Esfinge Dourada
sem a sua orientação. A única coisa que me confortava
eram as predições do Tarô que Andson me dissera.
À beira da estrada, almoçamos mais salsichas assadas,
tomando alguns goles do vinho que o Guia trouxera
consigo.
Andson, o tempo todo em pé, gemia angustiado.
Querendo ajudá-lo, sugeri:
__ Vo-você deve re-respirar me-menos.
__ Por quê?
__ A-assim não se-sente dor.
Andson enrubesceu de cólera e partiu para cima de mim,
tentando esgoelar-me. Quando viu o medalhão em meu
peito, parou contrariado.
Eu estava assustado com as atitudes incompreensíveis
do Guia. Por outro lado, na medida que continuávamos
nossa jornada, eu ficava muito chateado pelos seus
gemidos de dor.
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Então tive uma das idéias mais brilhantes de minha vida.
__ Vo-você tem me-mesmo de continuar me a-
acompanhando?
__ Infelizmente tenho que te acompanhar até a noite,
quando outro Guia virá me substituir.
__ Te-tenho uma idéia pra vo-você não mais ge-gemer a
ca-cada passo que de-der.
__ Idéia? Você pensa?
Sem entender a admiração do Guia, expliquei-lhe minha
idéia:
__ Te-tem um rio que co-corre pa-paralelo à estrada. Se
fo-formos na-nadando, além de li-limpar nossa su-sujeira,
você não pre-precisará forçar os músculos e se-sentir dor.
Andson acatou minha sugestão. Claro, era brilhante.
Colocamos as mochilas em nossas cabeças e entramos
no rio. A suave correnteza ia nos conduzindo paralelamente
à estrada de terra, sem precisarmos fazer força.
__ Até que enfim você deu uma dentro, Saulo.
Não deu tempo para ficar feliz com o reconhecimento do
Guia. A correnteza foi aumentando até não podermos mais
vencê-la. Felizmente consegui agarrar-me a uma pedra
próxima à margem. O Guia ...
No início da noite, o novo Guia encontrou-me na beira do
rio.
__ Você está sozinho? Onde está o Andson?
__ E-ele te-teve de ir um po-pouco mais ce-cedo -- disse-
lhe olhando para a enorme cachoeira onde morria o rio.
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CAPÍTULO X
CIDADE À VISTA
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__ Com muito orgulho. Apesar de ter perdido um pouco
do sotaque, de ter nascido no norte e vivido apenas a
infância no sul, eu ainda me considero gaúcha. Mas vamos
deixar essa conversa mole de lado e me diga o que tu tá
achando do cristal? Não é maravilhoso? -- inquiriu Cledite,
com a voz mais dócil.
__ Fo-formidável -- concluí, procurando não contrariá-la
__ Eu sabia que tu ias gostar. Ele combinou muito bem
com o seu medalhão: o verde, a esperança; o azul, a
certeza. Ou seja, a certeza de realizar aquilo que tu tens
mais esperança de conseguir. Não é maravilhoso?
__ Fo-formidável -- repeti, crédulo nos poderes do cristal.
__ Já estamos prontos para continuar a sua
peregrinação. Temos muito o que caminhar até chegar na
cidade de Carmo da Cachoeira.
__ Ca-caminhar a no-noite toda?
__ Todinha. Sem uma pausa sequer. Pare de resmungar
e siga-me.
Peguei minha mochila, que estava todo molhada, e segui
Cledite na escuridão, caminhado por uma trilha às margens
do rio.
Naquele início de noite a escuridão já era intensa.
Segurei na mão áspera de Cledite com receio de errar o
caminho e acabar caindo no rio. A lanterna da Guia pouco
iluminava a trilha, e naquela noite não existiam estrelas no
céu, que estava todo coberto por nuvens.
Mais uma vez o cricrilar do grilo torrava minha paciência.
Se eu pudesse estrangular um por um, faria com o maior
prazer. Meus ouvidos não suportavam mais aqueles ruídos
irritantes. Não via a hora de sair daquela selva e chegar na
cidade de Carmo da Cachoeira. A primeira coisa que eu iria
fazer seria beijar o primeiro chão de cimento que visse pela
frente.
Se não bastassem os grilos, na mata haviam também
mosquitos de toda espécie; desde os borrachudos, até os
malditos pernilongos. E os marimbondos? As abelhas? Os
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arapuás? As formigas? Tinha formiga cabeçuda, lava-pé de
todo gênero e número.
Meus pés latejavam, e meu medo era pisar num desses
formigueiros. Uma vez havia lido numa revista uma matéria
muito interessante que dizia: “As formigas trabalham à
noite; principalmente as cabeçudas. Elas migram bem
longe, fazendo trilhas, em busca de alimento para todo o
formigueiro. É sabido que as formigas, assim como as
abelhas, formam uma sociedade perfeita; e, infelizmente,
esta sociedade está muito distante da complexa sociedade
dos humanos”.
Eu tinha minha opinião à respeito daquela matéria: os
homens tinham que exterminar todas as formigas do
planeta, uma vez que são um bicho que não serve para
nada; a não ser para ferroar a gente.
Albertinus, numa das reuniões, dissera que todo e
qualquer membro da Ordem Sagrada dos Mentecaptos teria
que proteger a flora e fauna: “A natureza é tão importante
para a Ordem como a Ordem para a natureza”. A princípio
eu não havia entendido aquelas palavras mágicas; mas logo
minha dúvida fora sanada por Albertinus. Lembro-me como
se fosse hoje -- apesar da ausência das estrelas e da lua
cheia -- : “ ... devemos viver em harmonia com a natureza;
extrairmos dela o alimento essencial para nossa
sobrevivência. Sugarmos dela a energia que precisamos
para caminharmos na peregrinação em busca da perfeição
cosmo-energética ...”.
Quando eu me lembrava daquelas palavras, meu
coração enchia-se de encanto e meu corpo se arrepiava
todo. Como o Albertinus estava fazendo uma falta danada
para mim! Ele compreendia o meu jeito de ser. Era meu
irmão primogênito da Ordem, e somente a ele eu confiava
meus segredos, meus desejos.
Se eu pudesse desistir de tudo e retornar o mais rápido
possível para a minha casa, voltaria. Mas o Albertinus havia
dito que queria me ver curado, totalmente liberto da
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gagueira; e o pedido dele era uma ordem. A saudade era
tanta que me sentia cansado.
Cledite continuava abrir caminho pelo mato com o facão.
Belisquei-a e a resposta veio no ato:
__ Como ousas a fazer isso, hein? Já lhe avisei que eu
sou sua Guia. Não uma qualquer. E se beliscar minha
bunda mais uma vez, eu lhe capo. Entendeu? -- avisou
Cledite, iluminando o facão com a lanterna.
__ De-desculpa. Eu só que-queria de-descansar um
pouco. Va-vamos pa-parar de ca-caminhar. Não agüento
ma-mais. Va-vamos sentar um po-pouco -- pedi
suplicantemente.
__ Tá bom. Só cinco minutos. É muito perigoso ficar
parado no meio do matagal. Podemos ser atacados pelo
Chupa-sangue.
__ Ah! Os sa-sanguessugas são uns bi-bichinhos
inofensivos. A ge-gente ma-mata eles.
__ Pelo jeito tu não os conhece. Sente-se -- ordenou
Cledite, também sentando num monte de terra. __ O
Chupa-sangue é um bicho muito perigoso. Em determinadas
regiões ele é conhecido como o Chupa-cabra, Chupa-chupa
... Enfim, o tal bicho chupa todo o sangue dos animais que
ele ataca.
__ Cre-credo! Que ho-horror! -- exclamei, pasmo.
__ Não precisa fazer essa cara de sonso. Na verdade os
Chupa-sangue não são uma espécie de animal que sofreu
mutação, como alguns cientistas afirmam ser, e, muito
menos, é fruto da imaginação humana. A Ordem Sagrada
dos Mentecaptos, desde os seus primórdios, reconheceram
os Chupa-sangue como sendo manifestações cosmo-
energéticas -- revelou Cledite olhando profundamente em
meus olhos.
__ Co-como assim? -- indaguei coberto de dúvidas.
__ Pense comigo.
__ Tô pe-pensando -- disse, obedecendo a ordem da
Guia.
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__ A cada certo período o mundo vive em determinada
época, ou seja, Era. Nesse intervalo de tempo-espaço as
pessoas adquirem comportamentos natos da Era de sua
existência. Esses comportamentos têm vínculos políticos,
religiosos e energéticos. As pessoas nunca compreenderão
a política ou até mesmo a religião, se não se adequarem à
energia radioativa de sua Era. Entendeu?
__ A-acho que sim. Ma-mas e o Chu-chupa-sangue?
__ O Chupa-sangue, como já lhe falei, trata-se de uma
manifestação de vínculo cosmo-energética. Isso ocorre
porque há um desajuste, uma desarmonia no conhecimento
humano a respeito da política, da religião e do cosmo.
__ De-desarmonia? Co-como a-assim?
__ Parece que tu não anda praticando os Exercícios da
Ordem. Acho que vou ter que ensinar o Exercício do
Despertar -- proferiu Cledite com simpatia, levantando-se do
monte de terra.
Fiquei animado. Não tinha nada para fazer naquela noite,
a não ser andar, andar e mais andar por aquele matagal na
beira do rio. Um exercício da Ordem seria muito bem vindo.
Cledite ordenou que continuássemos a caminhada, pois
estávamos atrasados, e pelo caminho ela explicaria o
procedimento do exercício.
A ansiedade era tanta que nem me importei em
acompanhar as largas passadas da Guia. Pelo caminho,
Cledite ensinou-me o exercício, que tinha por objetivo abrir
minha mente para o conhecimento universal da Ordem
Sagrada dos Mentecaptos. Segundo a Guia, eu tinha a
mente bitolada num mundo imundo, diminuto e medíocre.
Com o Exercício do Despertar minha mente se libertaria de
toda a ignorância humana, se fortalecendo numa nova e
expressiva capacidade de pensamento intuitivo e dedutivo.
O exercício era assim: eu teria que encontrar sete
formigueiros, de preferência de formiga cabeçuda, e,
seminu, sentar sobre eles cerca de cinco minutos.
Sentar até que era fácil, o difícil foi encontrar os
formigueiros no escuro, com ajuda apenas de uma lanterna.
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Durante toda a noite eu já havia sentado em seis
formigueiros e nenhuma formiga havia me picado. Seria
sorte? Ou as formigas estavam dormindo em seus ninhos
maternos?
Cledite estava estarrecida, pasma, admirada.
__ Impossível. Esse é o sexto formigueiro que tu sentas
e até agora não sofreu nenhuma picada? Pelo que estudei
na Ordem, isto quer dizer que tu és uma pessoa abençoada
pelo cosmo.
__ A-abençoada! -- exclamei, absorto.
__ Exatamente. Eu posso ver em seus olhos o brilho
energético, a energia mais radiante do universo. Tu foste
escolhido para substituir o seu Mentor. E tem mais: todas
aqueles pessoas que estiverem ao seu lado estarão
protegidas de qualquer fruto do mal. Por isso sinto-me feliz
por estar com você -- disse Cledite, emocionada,
abraçando-me fortemente.
O abraço foi tão forte que eu me sentia como uma
jaboticaba pisoteada. A Guia não parava de rir sozinha de
tanta felicidade. Quase sem palavras, disse-me:
__ Saulo Lebre, tu és um anjo em pessoa. O próximo
formigueiro que a gente encontrar pelo caminho, eu sento
nele por ti.
Achei estranho aquela bajulação toda. Continuamos a
caminhar pelo matagal e, não demorou muito, vimos na
planície as luzes de uma pequena cidadezinha. Cledite foi
logo anunciando:
__ Veja, Saulo. É Carmo da Cachoeira, a cidade que lhe
dará a primeira pista da Esfinge Dourada. Não é linda?
__ Li-lindona -- respondi pulando de alegria.
A cidade estava muito próxima. Era só descer o morro.
No horizonte, apareceram os primeiros raios de sol, mas
ainda estava muito escuro na mata.
Cledite puxou-me pelo braço no meio do morro, e
apontou para um formigueiro enorme.
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__ Saulo Lebre, vou provar a minha fidelidade a sua
pessoa -- disse a Guia, abaixando as calças e sentando no
formigueiro.
Minutos depois a pobrezinha aprontou um berreiro.
Inúmeras formigas saíram do formigueiro atacando Cledite.
Ela pulava, esperneava. De repente, escorregou numa
pedra solta no chão e desceu rolando, ladeira abaixo.
Sem dúvida era uma maneira inconveniente, porém mais
rápida, para chegar até a cidade de Carmo da Cachoeira.
CAPÍTULO XI
ESSE TAL DE CHUPA-CABRA
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Peguei o cristal que ela me dera e coloquei-o na saliência
formada entre os galos em sua testa. Certamente a força
invisível do cristal iria restaurar sua consciência e curar seus
machucados.
Logo, uma multidão curiosa, vinda das casas próximas,
achegou-se junto de nós.
Um rapaz de camisa xadrez perguntou:
__ Uai, seu moço. Que é que aconteceu com esse
homem aí no chão?
__ Ca-caiu lá de ci-cima -- respondi, apontando para a
trilha formada por Cledite ao despencar pela encosta do
morro.
__ Viche! Então ele deve de tá bem mal, hein?
__ Não é e-ele. É e-ela. É a Cledite, mi-minha Guia.
__ Vamos chamar um médico pra ela, então -- interveio
uma senhora, preocupada.
__ Na-não precisa. O cri-cristal em sua te-testa vai cu-
curá-la.
A multidão, que não parava de crescer, parecia incrédula.
__ Como que uma pedra brilhante há de poder sarar a
pobrezinha? -- inquiriu uma senhora ao meu lado com um
terço nas mãos.
Nisto, um homem de terno e gravata, abrindo caminho à
força entre o povo, aproximou-se e, num tom autoritário,
quis saber o motivo daquela incomum aglomeração.
__ Eu e mi-minha Guia vínhamos pe-peregrinando pela
be-beira do rio. Aí nós pa-paramos e e-ela co-começou a
falar do Chu-chupa-cabra e ...
Uma perturbadora inquietação tomou conta daquelas
pessoas. Algumas saíram correndo aos gritos e trancaram-
se em suas casas; outras começaram a tremer assustadas,
desviando sua atenção da Cledite para a encosta do morro.
__ Quer dizer então que o chupa-cabra atacou esta
mulher? -- interrogou-me o homem engravatado (que mais
tarde soube ser o prefeito da cidade).
Percebi que haviam interpretado mal a minha narrativa.
Procurei ser mais claro.
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__ Mi-minha Guia e-está toda que-quebrada por ca-
causa do tombo que le-levou quando fo-foi mordida no tra-
traseiro.
__ O chupa-cabra mordeu o bumbum da mulher? --
indignou-se o prefeito, gesticulando a todo vapor enquanto
falava. __ Esses E.Ts. não respeitam nem pessoas agora.
Um engomadinho murmurou no ouvido do prefeito.
__ Do que você está falando?
__ Hoje é domingo. É só entrarmos em contato com o
programa do Sílvio Santos e eles vêm voando pra cá fazer
uma reportagem. E melhor: o senhor ganha fama e melhora
sua imagem pras próximas eleições de deputado.
O prefeito ajeitou graciosamente a gravata, deu um
sorriso inexplicável e depois de fitar rapidamente Cledite,
argumentou ao seu secretário.
__ Pois faça isto já. E se não houver nenhum E.T. eu
invento uma história qualquer, falo bonito e todo mundo
acredita em mim.
Preguiçoso, o sol despertava e lançava seus raios para
todos os cantos da pacata cidade mineira.
Um mundaréu de gente passava a todo instante por mim,
dava uma rápida olhada na Cledite, ainda estirada no chão,
e corria até o morro, escalando com toda prudência, a fim
de ver o tal do Chupa-cabra.
O calor aumentava. E nada da Guia despertar. Até
parecia que o Poder Misterioso do cristal não estava
fazendo efeito. Claro, tudo não deveria passar de uma mera
impressão.
Nisto, um senhor vestido todo de branco, passou por nós
e deu meia volta. Perguntou-me com feições sonolentas o
que acontecera com a Guia.
__ E-ela caiu lá de ci-cima. Ma e-está me-melhorando --
declarei convicto.
__ Como? Esta pessoa veio rolando pelo morro e o
senhor tem a audácia de dizer-me que tudo está bem! O
senhor, por acaso, é parente do Cândido de Voltaire?
__ Na-não. Sou fi-filho do Zé-zéca Bo-boiadeiro.
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O velho de branco franziu a testa. Agachou e pôs-se a
examinar minha querida Guia.
__ O se-senhor é médico?
__ Sou -- respondeu secamente, enquanto apalpava
Cledite. __ Esta mulher precisa ser levada para a Santa
Casa imediatamente.
O médico pegou seu celular e pediu uma ambulância
com urgência. Esta veio realmente rápido e levou a Guia
para o hospital.
__ Vou socorrer esta mulher imediatamente -- falou-me o
médico já dentro do veículo. __ O senhor me procure na
Santa Casa logo que puder. Preciso fazer-lhe algumas
perguntas.
Fiquei observando a ambulância abrindo caminho entre o
povo que vinha em massa até o morro. Indignado com
aquele gesto de incredulidade da ciência diante do poder
inquestionável do cristal, dirigi-me até uma agradável praça
e tomei meu lanche da manhã.
Ao dar a última dentada em meu pão, ouvi uma voz
distante que me soava familiar. Guardei minhas coisas na
mochila e fui até atrás do coreto a fim de matar minha
curiosidade.
Qual não foi meu espanto ao deparar-me com o Pastor
Willian, óculos escuros, de violão na mão, cantando para
uma meia dúzia de pessoas.
__ Creiam-me, amigos. Hoje irá acontecer um milagre
aqui que irá mostrar aos descrentes o valos dos crentes.
__ Aleluia, irmão! -- exclamou alguém dentre os
espectadores. __ Eu creio que tens o poder de operar
milagres maravilhosos. Mostra-nos o seu poder.
O Pastor Willian começou a tocar freneticamente o
violão. De repente, levantou-se, atirou o instrumento para
longe, esticou os braços para frente e começou a andar
como um bêbado pelo palco onde exibia seu “show”.
__ Se vocês realmente tiverem fé, povo de Deus, vocês
se tornarão no canal das bênçãos para aqueles que
convivem consigo.
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__ Nós cremos, pastor. Nós cremos -- disse eufórico o
mesmo cara no meio dos fiéis espectadores do pastor.
Ao chegar mais perto daquele grupo de pessoas,
constatei que o crente eufórico era justamente o homem de
quem vi o pastor expulsar um demônio pela tevê
Interessante mesmo era que ele estava usando a roupa que
foi roubada de mim no trem.
__ Desde quando eu nasci eu sempre fui cego -- bradou
o pastor ao grupo que começava a aumentar. __ Hoje
recebi uma revelação de que serei curado.
__ Oh! -- exclamaram os simples moradores da cidade.
__ E não será apenas isto. Todos aqueles que estiverem
junto de mim receberão a benção da prosperidade vinda
diretamente dos céus.
__ Nós vamos ficar ricos -- agitou o sujeito com minhas
roupas dentre o povo.
__ Sim. Todos que tiverem fé em mim ficarão ricos e
prósperos.
__ E o que devemos fazer, pastor? -- tornou a perguntar
o exorcisado.
__ Como prova de fé, devem ofertar o seu dinheiro e
todos os objetos valiosos que tiverem, depositando-os nesta
caixa aqui do meu lado -- explicou o Pastor Willian,
apontando diretamente para a urna da coleta.
__ Eu creio no senhor, pastor. Vou lhe dar mil reais.
O cara com minhas roupas pegou sua carteira e jogou-a
na caixa. Ato contínuo, ajoelhou-se piedosamente e
começou a orar emocionado.
Influenciado pela atitude despojada do sujeito, várias
outras pessoas repetiram o gesto. As demais, eufóricas,
correram até suas casas para trazer dinheiro e outras coisas
de valor.
Um helicóptero sobrevoou a praça naquele instante.
Pude ler a sigla de uma emissora de tevê estampada na
lateral do aparelho.
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__ É o pessoal do Gugu que veio filmar o Chupa-cabra --
esclareceu uma jovem toda empetecada passando correndo
por mim em direção ao morro.
Creio que Carmo da Cachoeira nunca esteve tão
movimentada como naquele dia. Viam-se pessoas correndo
de um lado para o outro; alguns querendo aparecer na tevê,
outros querendo ficar ricos através da benção da
prosperidade do pastor.
Que difícil escolha para aquele povo tão sortudo, pensei
enquanto fui me aproximando do palco onde o pastor
mantinha seus braços erguidos para cima.
__ Se-seu pa-pastor -- disse encostando no palco. __ Po-
por que o se-senhor ro-roubou mi-minhas roupas?
O Pastor Willian olhou para mim assustado. Seu
companheiro, percebendo a gravidade da situação,
começou a orar mais alto, gritando feito um doido.
__ Uai, sô. Como é que pode o pastor cego encarar esse
rapaz aí? -- espantou-se um fiel atrás de mim.
Preparado para tudo, o pastor não hesitou:
__ Estou curado. Aleluia! Estou curado -- e jogou o
óculos escuro no chão.
Seu companheiro completou:
__ Aleluia! Venham todos ver. O pastor foi curado da
cegueira.
__ Sim, irmãos. Fui curado. Tragam logo seus objetos de
valor e coloquem na caixa. Sinto que os céus já estão
derramando bênçãos sobre nós.
Tentei falar, mas não consegui. Emocionado, o povo
berrava, chorava, sorria, gesticulava, pulava.
Muitas coisas foram lançadas dentro da urna de coleta,
com grande euforia.
O pastor me olhou de relance, proferindo em alto e bom
som aos fiéis que se multiplicavam:
__ Agora vão para suas casas e fiquem em vigília de
oração por três horas. Não saiam de casa neste período.
Somente quem ficar trancado em sua casa orando por três
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horas é que vai receber a benção da prosperidade e tornar-
se rico.
Foi um empurra-empurra dos diabos. Sem conseguir
impedir, fui empurrado por um bando de gente até dentro de
uma casa. As pessoas da casa estranharam minha
presença, mas, obedientes cegamente às palavras do
pastor, ignoravam-me rapidamente e começaram a orar.
Ao sair daquela casa, parei diante da tevê e vi o prefeito
da cidade dando uma entrevista a uma repórter famosa.
__ É verdade que o senhor prendeu o Chupa-cabra?
__ E não só isso -- respondeu o engravatado com o
sorriso confiante. __ Eu conversei com os extraterrestres
que o trouxeram até nosso planeta.
__ Que coisa formidável! -- admirou-se a repórter
loiríssima de feições tolas.
__ Sim, e eles me revelaram segredos incríveis.
__ Quais segredos?
__ Infelizmente não poderei revelá-los, por enquanto.
__ Por que não?
__ Porque tenho uma missão a realizar.
__ De que forma?
__ Como deputado eleito nas próximas eleições poderei
resolver o problema da fome, da miséria e do desemprego
utilizando estes conhecimentos superiores.
Intrigado com o que ouvi, desliguei a tevê e saí da casa.
Lembrei-me de minha Guia e, após informar-me com um
velho a respeito do local, fui até a Santa Casa.
Pelo caminho, notei que a cidade estava deserta. Nem
cachorro se via pelas ruas.
No hospital, tentei conversar com as recepcionistas. Tudo
em vão. Uma não tirava os olhos da televisão, e a outra,
braços erguidos para o céu, não parava de repetir para o
seu estranho deus lhe mandar muito dinheiro.
__ Ei, você. Venha aqui.
Segui pelo corredor até o médico que me chamou. Era
aquele que levara Cledite para o hospital.
__ Co-como ela e-está, doutor?
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__ Ela quebrou cinco costelas, um braço e todos os
dedos dos pés. Está toda ralada e esfolada, mas não corre
risco de vida.
Suspirei aliviado. O cristal havia salvado a vida da minha
Guia.
__ Só há um problema maior.
__ Qual, do-doutor?
__ Não sei como, mas ela tinha uma pedra de cristal
grudada na testa.
__ Que bo-bom pra e-ela, né?
__ Bom! Isto quase matou a pobre coitada. Os raios do
sol tiveram sua intensidade ampliada ao passar pelo cristal
e quase que abriram um buraco na cabeça dela.
Saí meio desapontado da Santa Casa. Como é que um
cristal, uma pedra de poderes incríveis, poderia ter feito mal
à minha Guia? Certamente foi o médico, com sua ciência
ineficiente, que interpretou errado a situação.
Fiquei sentado no banco da praça o resto do dia. Lá,
nem sinal do Pastor Willian e seu companheiro.
No início da noite, um moço de voz fina abordou-me:
__ Oi, gato. Você que é o Saulinho? Nem precisa me
responder. Eu te reconheci por estes músculos gostosos.
Meu nome é Dedé, seu novo Guia. Espero passar
momentos inesquecíveis com você, amorzinho.
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CAPÍTULO XII
UMA ANTIGA ORDEM
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Procurei controlar os ânimos. Ele era um membro da
Ordem Sagrada dos Mentecaptos; merecia respeito e
atenção. Num lampejo, veio um plano em minha mente.
__ E-estou mu-muito feliz em co-conhecê-lo. Os Gui-
guias da Ordem são to-todos le-legais e e-estão me le-
levando no ca-caminho certo. Tam-também são muito re-
receptivos e be-bem humorados, co-como você, é cla-claro
-- papariquei Dedé, com um tom de voz intencionalmente
parecido com o do Guia. A única forma de não ser flertado
por ele era afeminar a voz e falar como bicha.
__ Como você fala fino. Eu pensei que ...
__ Pe-pensou o quê? -- gritei com minha voz verdadeira,
estragando o meu plano.
__ Nossa, que vozeirão! Desse jeito você me mata do
coração.
Não havia saída. O único jeito foi aceitar aquela situação
embaraçosa em que eu me encontrava preso.
__ E-então, Dedé. Pra o-onde a ge-gente vai?
__ Saulinho, essa noite vamos nos embrenhar no
matagal, rumo à cidade de Iguaí. Vamos partir logo, pois
você tá muito lerdo em sua peregrinação. O Mentor
Regional de Escalas da Ordem disse-me que você já
deveria estar na metade do caminho. Isso significa que você
tá muito mole. Felizmente eu conheço um exercício que vai
te deixar eletrizado -- prometeu Dedé, olhando-me de alto a
baixo.
Atrasado? Como? Desde a cidade de Varginha eu vinha
seguindo o ritmo dos meus Guias. Se eles paravam de
caminhar, eu parava; se corriam, eu corria; se tomavam
água, eu tomava; enfim, nunca deixei de ser uma fiel
sombra de meus Guias. O Dedé estava com algum parafuso
solto na sua cabeça.
Não havia gostado da idéia de ter que caminhar
novamente pelo matagal. Ainda mais à noite, arriscando ser
atacado por pererecas, mosquitos, cobras; e agora, esse tal
de Chupa-cabra.
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__ Pe-pelo ma-mato eu não vo-vou -- disse ao Dedé,
cruzando os braços.
__ Como não vai, Saulinho? Você não escolhe nada; sou
eu, seu Guia, quem tem o poder de decidir o seu caminho.
Mas como eu gostei do seu ... quero dizer, da sua pessoa,
vou abrir uma exceção. Por onde iremos? -- inquiriu Dedé,
andando em direção à rua.
__ Eu pre-prefiro ir pe-pela es-estrada de te-terra do que
pe-pelo mato.
__ Só que tem um probleminha. Pela estrada o caminho
é mais longo e monótono. Mas se prefere assim, por você
eu faço esse sacrifício.
__ Vo-você sa-sabe onde ve-vende pilha? -- indaguei ao
Guia, segurando minha lanterna.
__ Siga-me, Saulinho.
Na periferia da cidade paramos num armazém antigo que
tinha na fachada uma placa com a legenda: Venda do
Chico.
O armazém estava abarrotado de quinquilharias. Um
homem magro de barbas brancas veio nos atender no
balcão do estabelecimento. Dedé não parava de olhar para
o alto, onde haviam várias peças de lingüiças dependuradas
por arames. Fiquei de água na boca quando vi uma peça de
mortadela próxima às lingüiças. Aquilo me fez lembrar do
meu tempo de criança, quando minha turma roubava cascos
de refrigerantes no depósito da padaria do turco Ozias, e
com o dinheiro da venda das garrafas, comprávamos
lanches feito de pão com mortadela na própria padaria.
Coisas de pivete, não é mesmo?
__ Os senhores desejam alguma coisa? -- inquiriu o
homem de bigodes brancos.
__ Queremos sim, seu Chico. Somos peregrinos da
Ordem Sagrada dos Mentecaptos e viemos comprar algum
coisa pra gente comer pelo caminho -- disse o Guia
mostrando ao homem uma carteirinha azul.
__ Fiquem à vontade. O que é da Ordem é de Deus. O
que vocês gostariam de levar? -- indagou o dono do
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armazém, segurando uma caderneta e uma caneta nas
mãos.
__ Uma peça daquela lingüiça, pilhas para a lanterna,
dois refrigerante e ... mais alguma coisa, Saulinho? --
perguntou-me o Guia, com aquele olhar cativante.
__ Nã-não tô com muita fo-fome. Só a li-lingüiça e o re-
refrigerante tá ó-ótimo -- disse ao Guia tentando escapar
daquele olhar insinuante.
Peguei as pilhas e coloquei-as na lanterna. Seu Chico
embrulhou a lingüiça e pediu para que o Dedé assinasse o
seu nome na caderneta. Depois, saímos do armazém e
seguimos viagem pela escura estrada de terra.
O céu escuro não tinha o brilho das estrelas, e a lua
estava coberta por nuvens gigantescas.
Fazia muito frio. O fraco foco de luz da lanterna, pouco
clareava o caminho de terra.
Após duas horas de caminhada, paramos próximo a uma
porteira vermelha para descansar um pouco. Sentei sobre
um toco, enquanto Dedé preparava uma fogueira para assar
a lingüiça. Em poucos minutos ela já estava assada.
Sentamos em volta da fogueira, comendo e bebendo à
vontade. E que delícia de lingüiça tostada! Ficamos
naquele local cerca de meia hora, depois continuamos com
a peregrinação.
Num determinado momento, Dedé segurou-me pelo
braço e disse-me:
__ Saulinho, acho que chegou o momento de você
aprender o Exercício do Esfrega-esfrega. Vai ser bom pra
você, vai ser ótimo pra mim. Tome esse comprimido mágico.
Engula ele inteirinho -- ordenou o Guia, dando-me o
comprimido.
__ Eu nã-não consigo e-engolir co-comprimido desse ta-
tamanho -- resmunguei com receio daquilo ser alguma
espécie de tranqüilizante.
__ Saulinho, não tem problema. Vou partí-lo ao meio. Eu
fico com uma parte e você com a outra metade. É mágico.
Ou será que você não confia nem em seu próprio Guia?
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Com aquela pressão psicológica, o jeito foi tomar a seco
o tal do comprimido; por pouco ele não ficou entalado na
garganta. Senti o meu corpo estranho, uma vontade enorme
de me esfregar no meu Guia. Não demorou muito tempo,
não resisti à tentação. Colamos um ao corpo do outro e
fomos nos esfregando pelo caminho afora. O frio que eu
sentia havia se transformado num calor infernal.
De repente, batemos com a cabeça numa espécie de
porta dura como pedra. Meio zonzo, como que sonhando,
levantei-me do chão e iluminei o local com a lanterna. No
alto da pedra havia um pedaço de madeira, onde se lia
nitidamente: “Gruta da Ordem dos Malignos -- pronuncie a
palavra sagrada para que a porta se abrirá”. Que espécie de
Ordem era aquela? Perguntei ao Guia, que não tirava as
mãos da cabeça. Reclamando de dores por todo o corpo,
revelou-me o significado daqueles escritos.
__ Saulinho, estamos diante da Gruta da Ordem dos
Malignos. Era uma Ordem que existiu no século passado e
tinha um lema totalmente inverso ao da nossa Ordem
Sagrada. Os membros dela eram ladrões, matadores de
aluguel; realizavam rituais de bruxaria e magia negra. Em
1863 todos os membros dessa Ordem foram destruídos pela
Energia Purificada de um cometa invisível que caiu num
lugar desconhecido da Terra. Esse tal cometa se
transformou numa caverna e aprisionou dentro de si as
almas impuras de todos os Membros da Ordem dos
Malignos.
__ E-então a-achamos o co-cometa -- concluí, admirado
pela descoberta.
__ Você quer dizer que encontramos a caverna que se
originou do cometa. A lenda diz que quem conseguir roubar
os poderes das almas impuras tornar-se-á um semideus.
Mas como vamos conseguir descobrir a palavra que faz
abrir essa droga de caverna, hein, Saulinho? Você tem
alguma idéia?
Na parte inferior do pedaço de madeira haviam cinco
pontinhos em seqüência. Talvez poderia significar alguma
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coisa. O tal do comprimido parecia ter acelerado o meu
raciocínio, e muitas palavras surgiam em minha mente.
Depois de pensar, pensar, lembrei-me de que no nosso
alfabeto existem apenas duas letras que possuem um
pingo. São elas: “i” e “j”. Resolvei tentar a sorte e proferi em
voz alta, pausadamente:
__ A pa-palavra é i-ijiji, i-ijiji -- repeti duas vezes, mas a
porta de pedra não se abriu.
__ O que você disse, Saulinho? -- indagou Dedé,
absorto.
__ Eu a-acho que tô quase de-descobrindo a pa-palavra
má-mágica.
__ Então, diga qual é a palavra. Não vejo a hora de
poder roubar os poderes daqueles vermes. Vamos,
Saulinho, diga logo -- suplicou o Guia, agitadíssimo.
Respirei fundo com o intuito de não gaguejar. Talvez
fosse por isso que a palavra não estava funcionando. Tomei
coragem e gritei bem alto:
__ A pa-palavra é i-ijiji ...
__ ... ijiji! -- exclamou Dedé, pronunciando a palavra
corretamente.
Naquele momento o chão estremeceu e a porta da
caverna se abriu como um passo de mágica.
Dedé me empurrou para dentro da caverna e seguiu
atrás de mim. Com a lanterna iluminei o estreito corredor
que tinha o chão escorregadio e as paredes com infiltrações
d’água. Calmamente, íamos avançando corredor a dentro.
__ Tá muito escuro, Saulinho. Se aparecer alguma alma
penada você jura que me protege? -- indagou o Guia,
amedrontado, agarrando-se em meu braço.
__ Po-pode co-contar co-comigo. É a-apenas uma ca-
caverna abandonada. Tá de-deserta -- disse ao Guia,
tentando tranqüilizá-lo.
Logo à frente encontramos um pátio de grandes
dimensões. No centro havia uma pedra que parecia mais
com um trono real. Bem devagar, girei o corpo, iluminando
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os quatro cantos do pátio, e nem sinal das tais almas dos
Membros da Ordem dos Malignos.
Já estava acreditando que aquela história toda era uma
farsa do meu Guia, que talvez, tinha outras intenções em
me levar para um local tão deserto quanto aquele. Todavia,
um fato curioso e surpreendente ocorreu diante de meus
olhos. Misteriosamente, várias velas de todas as cores
começaram a surgir do nada, acendendo-se pelos quatro
cantos do pátio da caverna.
Dedé tremia feito vara verde.
Quando pensávamos em correr, um homem baixo,
barbudo, apareceu no centro do pátio, sentado no trono de
pedra como um verdadeiro rei. Não contive o medo e
desmaiei.
Acordei com um banho de água fria em meu rosto. Olhei
ao meu redor, mais zonzo do que já me encontrava, e vi
várias pessoas estranhas, mal-encaradas, de cabelos
compridos, mal vestidas, que flutuavam acima das velas. Ao
meu lado, Dedé, bem descontraído, jogava damas com um
daqueles indivíduos esquisitos, e nem se deu conta de que
eu havia acordado.
O homem baixo e barbudo que eu tinha visto
anteriormente, encontrava-se na minha frente, sentado no
trono de pedra. Segurando um prato nas mãos, disse-me:
__ Até que enfim o senhor acordou, seu Saulo Lebre.
Tome a sua sopa, está uma delícia.
__ Que ho-horas são? -- indaguei, ainda sonolento.
__ Mais de meio-dia, dorminhoco. Tome logo sua sopa --
ordenou o homem barbudo, entregando-me uma cuia.
A sopa estava quente e tinha uma coloração marrom, da
cor da terra. Que raio de comida seria aquela? Foi o que lhe
perguntei:
__ O que é i-isso que está me-mexendo aqui de-dentro
da so-sopa?
O homem soltou uma gargalhada displicente e revelou:
__ É muito nutritivo. Seu Guia adorou e repetiu três
vezes a sopa de minhoca ...
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__ Mi-minhoca? Cru-cruz-credo, isso de-deve ser ho-
horrível, é co-comida de pe-peixe, não de ge-gente --
redargüi, sentindo muita ânsia de vômito.
__ Como, Saulinho? É uma delícia! -- interveio Dedé,
com um brilho diferente nos olhos. __ Mas antes, quero lhe
apresentar o Mestre Superior da Ordem dos Malignos, o
maquiavélico Jeremias.
O homem baixo de barbas brancas estendeu-me as
mãos. Ele estava com o meu medalhão em seu pescoço.
Fiquei boquiaberto, sem saber o que fazer. Aproximei-me
dele e com uma voz firme pedi o meu medalhão.
__ De-devolva o meu me-medalhão.
__ Como? Será que eu ouvi direito? -- ironizou Jeremias.
__ Eu que-quero meu me-medalhão -- repeti, enfurecido.
__ Querido Saulo, eu não sou surdo. Ouvi perfeitamente.
Quero deixar bem claro que a partir de agora, você, assim
como seu Guia, é meu escravo.
Num gesto intempestivo atirei a sopa no rosto de
Jeremias. Todavia, o liquido atravessou-lhe sem sequer ficar
uma gota em seu corpo. Eu estava diante de alguma
espécie de alma penada.
__ Saulo, não faça birrinha, meu garotinho. Não é
sempre que temos uma sopa como essa nesta caverna tão
aconchegante. Mas voltando ao nosso assunto, fiquei
sabendo que você é membro de uma tal Ordem dos
Mentecaptos. Saiba que há algum tempo atrás eu era o
Mestre de uma das Ordens mais respeitadas e atuantes de
todos os tempos. Mas ocorreu um incidente, e fomos
aprisionados nesta caverna por uma força cósmica
intensamente positiva. Que horror! Entretanto, hoje é um dia
muito especial para nós. Você é o nosso herói, conseguiu
desfazer o encanto que envolvia a porta de pedra. Já enviei
alguns de meus discípulos para fazerem um investigação de
campo em busca de informações a respeito do que está
ocorrendo do lado de fora.
__ Ele quer saber como são as pessoas do final do
século vinte; se elas são solidárias, inofensivas e conhecem
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a Ordem dos Malignos -- interveio Dedé, que parecia muito
bem informado e adaptado naquele lugar nefasto.
Não demorou muito e apareceu o primeiro discípulo da
Ordem, todo estraçalhado dos pés a cabeça. Jeremias,
pasmo, inquiriu-lhe:
__ O que acorreu com você, Cataclismo?
__ Eu fui engolido por um tubo, e caí num pequeno saco
que ficava dentro de uma caixa preta. Depois atiraram-me
ao fogo.
__ Mas como isso tudo aconteceu? -- quis saber
Jeremias com mais detalhes.
Antes, porém, de Cataclismo responder, outro discípulo
adentrou o pátio, rolando entre as velas.
__ Mestre. Mestre ... -- gritava o discípulo, delirante. __ O
mundo está uma verdadeira loucura. Se eu fosse o senhor
não punha os pés lá fora. Tá a maior bagunça. Ninguém
respeita a gente. Fui atacado de vassoura por uma mulher
ranzinza. Depois, um pivete acertou uma pedra em minha
cabeça, e ...
__ Chega! -- berrou Jeremias. __ Cuidem desses dois,
seus incompetentes. Deixe que eu vou ver isso de perto.
__ É muito perigoso, Mestre -- avisou Cataclismo, pondo-
se à frente do seu Mestre.
__ Saia da minha frente. Eu volto logo.
Enquanto esperávamos pelo retorno de Jeremias, sugeri
ao meu Guia um plano de fuga. Mas o Dedé repudiou minha
idéia e teve a audácia de me dizer que não sairia daquele
local nem por um milhão de dólares. O que será que ele
havia visto de tão atraente na caverna? Seria a sopa de
minhoca? Ou talvez o exército de discípulos da
fantasmagórica Ordem dos Malignos? Permaneci sentado,
próximo ao Guia, que continuava o seu jogo de damas com
um dos mal-encarados.
Após uma longa espera, o Mestre adentrou a caverna,
dizendo palavrões e chutando tudo o que via pela frente.
Aproximou-se de mim, pegou-me pelo pescoço, e disse:
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__ Desapareça daqui, seu verme! Lacre a porta de pedra
e queime a tábua que está sobre ela. Por obséquio! --
suplicou Jeremias, com os olhos arregalados e atordoados.
Era a chance de recuperar o meu medalhão, de me livrar
daquele Guia maluco e sair da caverna.
__ De-devolva meu me-medalhão.
__ Pegue-o. É todo seu -- disse, entregando-me o
medalhão com as mãos trêmulas.
__ Eu vou ficar. Quero ficar -- berrou Dedé, abraçado
com o tal sujeito com que jogava dama.
A sorte estava do meu lado. Tinha me livrado do Guia e
conseguido meu medalhão de volta.
A despedida foi rápida. Saí sozinho da caverna e parei
diante da porta de pedra. Enchi os pulmões de ar e proferi
bem alto.
__ i-ijiji, i-ijiji.
Nem sinal da porta se mexer. Concentrei-me na minha
fala, e procurei não gaguejar.
__ ijiji -- soletrei corretamente a palavra mágica.
Antes da porta se fechar totalmente, ouvi gritos de alegria
que vinham do interior da caverna. O passo seguinte foi
fazer uma fogueira e queimar a placa de madeira onde
estava escrito o enigma.
Algo muito curioso ocorreu. Concomitante à queima da
madeira, a caverna foi desaparecendo lentamente diante
dos meus olhos.
O sol do meio-dia ardia minha pele. Senti uma sonolência
e deitei sobre o mato à beira do caminho.
Acordei com algo mole, quente e úmido, massageando o
meu rosto. Abri os olhos; era começo da noite, e deparei-me
com uma égua arreada numa carroça.
Levantei assustado e senti uma mão estranha no meu
ombro.
__ Você acordou, meu netinho? -- disse uma velha que
estava atrás de mim.
__ A-acho que sim -- respondi, um pouco zonzo.
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__ Como vai? Eu sou a sua nova Guia. Não ando muito
boa das pernas, e por isso vim de carroça. Ah! cadê o
Dedé?
__ O Dedé? E-ele já fo-foi embora -- respondi distraído.
__ Aquele garoto é sempre apressadinho -- disse a
velhinha subindo na carroça. __ Venha, meu netinho.
Vamos continuar a peregrinação.
CAPÍTULO XIII
UMA VELHA HISTÓRIA
PRA CONTAR
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Nem ousava imaginar uma coisa daquelas. Um mundo
sem Guias, sem gurus, sem gente sabida que dissesse o
que os outros deveriam fazer deveria de ser um tormento.
__ Pois então, Saulo -- continuou a Guia, depois de tossir
e cuspir algumas vezes. __ Por obra do destino fui visitar
uma irmã minha que tinha uma casa de polacas lá na
Baixada Fluminense. E não é que dei de cara com o tal do
Presidente? Ele ficou morrendo de medo, aliás como todo
político desse país supersticioso.
__ Po-por que e-ele ficou com me-medo, Guia? --
indaguei envolvido no relato de Dona Genoveva.
__ Ora, Saulo. Ele achava que eu tinha algum poder
oculto, já que eu previra sua eleição. E como quem deve,
teme, ele me levou pro canto da sala e me fez uma proposta
que mudou minha vida.
__ O que o Pre-presidente disse?
__ Disse pra eu não entender errado, que ele táva lá só
visitando os amigos eleitores. Mas como meu olhar não
indicava ter sido ludibriada, ele me disse que podia ajeitar
minha vida pra sempre. Que porcaria duma azia! Um dia ela
acaba comigo. Bem, Saulo, noutro dia ele me apresentou
um amigo dele. Era um homem magérrimo de gestos
nervosos e falava igual a um papagaio gripado.
__ Quem e-era e-ele?
__ Era um panaca, quero dizer, um homem ... ilustre. Foi
ele que fundou a Ordem dos Mentecaptos.
Quem diria? Estava diante de uma mulher que conhecera
o Fundador da Ordem. Aquela honra me comoveu
profundamente, a ponto de, com grande dificuldade, reprimir
um choro emocionado por tamanha felicidade.
A Guia ficou em silêncio por alguns minutos. Quando
reiniciou a narrativa, notei que falava com certa prudência.
__ Tornei-me então a secretária do cara, tendo como
missão a de encontrar e recrutar pessoas para a sociedade
secreta que pretendia fundar. Em compensação, o
Presidente me deu uma casa no Leblon, de frente para o
mar, e me mandava flores toda a semana com um bilhetinho
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que dizia sempre a mesma coisa: “O silêncio vale ouro. Teu
silêncio poderá te valer muito mais que ouro”.
__ E-então, o Pre-presidente era amigo do Fu-fundador
da Ordem?
__ Pelo que sei eles tinham um certo negocinho em
comum. E como o Fundador ajudou o Presidente em certas
ocasiões, nada mais justo que o Presidente retribuísse o
favor auxiliando-o a formar uma seita no país.
__ E co-como foi que se-senhora re-recrutou os pri-
primeiros Membros da O-Ordem? -- perguntei curioso.
__ Como lhe disse, minha irmã tinha uma casa na
Baixada onde moravam muitas moças boas. E elas eram
tão boas que recebiam visitas freqüentes de importantes
personalidades da indústria, comércio e, é claro, da política.
__ Que mu-mulheres bo-boas deviam ser e-elas! --
exclamei extasiado.
Dona Genoveva conteve uma gargalhada. Cuspiu, tossiu,
xingou e prosseguiu:
__ Pois é. As polaquinhas procuravam se inteirar da vida
de seus ... amiguinhos; e aqueles que atendiam os
requisitos estabelecidos pelo Fundador, eu, sutilmente,
entrava em contato. Diante de certas argumentações, eles
não tinham outra alternativa senão a de entrarem para a
Ordem e a servirem espiritual e financeiramente.
Dona Genoveva engasgou quando disse a última palavra
e não falou mais nada até chegarmos em Iguaí.
A cidade mineira era bem simpática. Limpa, ordeira e
repleta de crianças andando de bicicleta e jogando bola em
todo canto.
Minha nobre Guia parou a carroça defronte a um
empório, deu-me algum dinheiro e mandou-me comprar
algumas ervas que usaria posteriormente em um Ritual
Sagrado fora da cidade.
Quando entrei na venda, um forte odor quase que me
derrubou no chão. Felizmente, mantive minha habitual
postura de firmeza, dirigindo-me até o balcão.
__ Bo-boa tarde. Eu que-queria comprar uma e-erva.
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__ Fala baixo -- murmurou o vendedor, com olhar aflito.
__ Qual erva você quer?
Tentei me lembrar do nome esquisito que a Guia me
falara, mas não conseguia. Como não queria que ela se
ofendesse comigo se eu fosse perguntar o nome da planta,
disse incisivamente:
__ A da-da boa. A me-melhor que ti-tiver.
__ E qual a quantidade?
__ Dá um pa-pacote.
__ Um pacote inteiro?
__ É pra Do-dona Ge-genoveva, lá fo-fora -- expliquei
apontando para a Guia encurvada na carroça.
O homem da venda entrou num quartinho escuro, nos
fundos do empório, e instantes depois voltou com o pacote.
__ E-essa é bo-boa mesmo? -- perguntei ao sujeito
dando-lhe o dinheiro.
__ Garanto que a velha da carroça vai voar como
passarinho com essa erva aqui, companheiro.
De volta à carroça, andamos vagarosamente pelas ruas
da alegre cidade até pararmos debaixo de uma árvore com
uma enorme copa.
Lá, ficamos até o entardecer, conversando sobre a
Esfinge Dourada, a peregrinação e sobre alguns aspectos
de minha vida particular.
__ Quer dizer então que você deixou o Albertinus
tomando conta de sua casa e de seu cofre? -- perguntou-me
Dona Genoveva com feições de um certo interesse.
__ De-deixei -- respondi, abrindo um largo sorriso. __ E-
ele é um gra-grande amigo.
__ E o cofre, Saulo? Por acaso o Albertinus sabe como
abri-lo?
Achei a pergunta estranha. O interesse dela estava mais
aguçado que de costume.
__ Na-não. Mas a co-combinação secreta do co-cofre
está e-escondida debaixo do me-meu colchão. Se e-ele
precisar gua-guardar alguma co-coisa no co-cofre, tá fá-fácil
de achar.
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__ E como ele vai achar esta maldita combinação? Ou
melhor, como você disse, se ele quiser guardar algum
objeto pessoal de valor no cofre, de que jeito ele vai
conseguir se não sabe onde está o segredo?
Era realmente de se admirar como uma mulher com
aquela idade fosse tão lúcida e solidária. Esta constatação
deixou-me novamente emocionado.
__ A se-senhora tem ra-razão. É di-difícil mesmo.
__ Mas eu tenho a solução. Tome este papel e caneta
que eu trago aqui em meu bornal. Agora escreva onde está
a combinação, por favor. Ótimo. Deixe-me ver onde eu
tenho um envelope. Ah, aqui está. Saulo, querido, coloque o
seu endereço no envelope e ponha a carta naquela caixa do
correio perto daquela farmácia, sim?
Fui cegamente obediente às palavras da Guia. Sentia-me
intimamente satisfeito por estar fazendo uma obra de
caridade, ainda mais junto com uma das fundadoras da
Ordem, e em favor de um dos homens mais respeitáveis
que conheci, Albertinus.
__ Só e-espero que te-tenha lugar no meu co-cofre pras
co-coisas do Albertinus -- disse ao voltar de minha Missão.
__ Seu cofre está cheio, filho? -- inquiriu-me a Guia, com
o mesmo olhar de outrora.
__ E-está lo-lotado.
__ Que bom! -- exclamou, soltando uma estranha
gargalhada rouca.
Prosseguimos nossa jornada até pararmos defronte à
igreja de Iguaí. A praça da matriz estava deserta, muito
provavelmente por se tratar da hora da janta.
__ Vamos aproveitar e entrar na igreja.
__ A ge-gente vai re-rezar?
__ Que rezar que nada. Nós da Ordem dos Mentecaptos
não perdemos nosso tempo com isso. Nosso negócio é
mentalização energética positiva. O resto é lorota.
__ O que nó-nós va-vamos fazer, então? -- interroguei-a
quando entramos na igreja.
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__ Nós vamos fazer o próximo exercício de sua
purificação pessoal: o Ritual do Odor Magnético.
Subimos pela cansativa escadaria lateral até chegarmos
na torre da igreja, logo acima do relógio barulhento da
matriz.
Os joelhos de Dona Genoveva não paravam de estralar,
e a Guia murmurava baixinho, lançando fortes imprecações
naquele lugar santo.
__ Ai, não suporto mais esta vida. O que a gente não faz
pra tapear os otários e ganhar um dinheirinho.
__ O que a se-senhora di-disse?
__ Nada, nada. Deixa-me descansar um pouco antes de
começarmos o Ritual.
Enquanto a nobre Guerreira da Ordem descansava
sentada numa cadeira velha que havia na torre, eu fiquei em
posição de lótus e procurei entrar em alfa, seguindo os
ensinamentos de Rodnaldo, no Albergue.
Já havia caído três vezes da escada mental que
memorizei, quando senti um cheiro estranho. Tentei inspirar
mais profundamente, mas meus esforços foram em vão.
Devia estar com o nariz congestionado, graças talvez às
tosses freqüentes de minha Guia. Sim, deveria estar com
um milhão de vírus passeando em meu corpo, e aquela era
a hora do recreio dos danadinhos -- e bem em minhas vias
respiratórias.
__ Que cheiro bom! Não transo uma fumacinha assim
desde os anos cinqüenta.
Abri meus olhos e o que vi me chocou. Apenas com as
roupas de baixo, Dona Genoveva dançava ao redor de um
treco que soltava uma fumaça esverdeada. Ao lado, o
pacote que comprei no empório estava aberto e
completamente vazio.
__ Sinto que posso voar, Saulo. Isto, eu posso voar.
Dona Genoveva estava fora de si. Abriu a janela de
madeira podre que tinha no lugar, e com inigualável
versatilidade ficou de pé no pequeno parapeito da janela.
__ Cu-cuidado. A se-senhora po-pode cair.
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A Guia estava alucinada. Dizia que era a mulher
maravilha e que iria voar.
__ Não. Pa-pare -- gritei, segurando-a pelos tornozelos.
Ela inspirou outra vez, soltou outra de suas gargalhadas
e pulou. E eu fui junto com ela.
Eram sete e vinte e cinco. Sei disso porque eu fiquei
pendurado pelo colarinho da camisa no ponteiro das sete,
enquanto minha Guia ficou pendurada pelo sutiã, no
ponteiro dos cinco.
__ Veja, Saulo. Que vista linda! -- exclamou Dona
Genoveva, pouco se importando com a gravidade da
situação.
Meu coração já estava na garganta quando algo tornou
meu medo ainda maior. Uma displicente coruja veio voando
do nada e pousou em meu ombro direito. Que mal
presságio!
__ Assim não dá, Saulo Lebre. Você está sempre se
metendo em encrencas.
Seria alucinação ou o pássaro estava conversando
comigo de verdade?
__ Não é alucinação e estou falando com você de
verdade. Ah, e consigo ler seus pensamentos também.
Era o Mensageiro da Libertação, meu demônio pessoal.
__ Algo me diz que a velhinha ali vai se dar mal --
ironizou a Coruja.
Realmente, o ponteiro dos minutos descia lentamente, e
certamente ao chegar no número seis, minha Guia iria
voar ... para o chão.
__ Me-mensageiro, sa-salve-a! -- supliquei à Coruja que
me encarava com seus enormes olhos.
__ Acho que você se esqueceu que minha tarefa é
atrapalhar sua jornada, Saulo.
__ Mas a Do-dona Ge-genoveva não tem na-nada a ver
com i-isso -- argumentei desesperado com o ponteiro que
lentamente ia se deslocando.
__ Talvez possamos fazer um acordo, Saulo. Que
achas?
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__ A-acordo? Que a-acordo?
__ Dá-me seu medalhão e eu salvo você e sua Guia num
piscar de olhos. Que tal?
Desviei minha visão da Coruja e olhei para o ponteiro
onde Dona Genoveva encontrava-se presa pelo sutiã. Eram
sete e vinte e nove. Tinha menos de um minuto para decidir
o que fazer.
CAPÍTULO XIV
TRAÍDO PELO DESTINO
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continha justamente a sua aura, a energia vital, a alma que
seria transmutada para o seu corpo mumificado através do
Ritual de Re-mumificação, que deveria ser realizado na
cidade de São Tomé das Letras.
Era muita falta de sorte mesmo. Além de não ter
encontrado a Esfinge Dourada, eu havia acabado de perder
o medalhão. Naquele momento de bondade mútua, em que
troquei o meu medalhão pela vida de Dona Genoveva,
ainda me restava uma esperança.
A Coruja fez, então, uma nova proposta:
__ Saulo, se você quiser seu medalhão de volta, terá que
ser uma pessoa bondosa para com os outros que o
circundam.
__ Ma-mas eu não so-sou ma-mau -- retruquei ao
Mensageiro, que me olhava de uma maneira estranha,
assim como o meu pai fazia quando ele estava irritado
comigo.
__ Realmente, sinto que não existe maldade em seu
coração; mas você é uma pessoa muito desengonçada,
desastrada, desligada, descuidada ...
__ Ma-mas eu so-sou assim de-desde que na-nasci. É
me-meu je-jeito de se-ser -- interrompi a Coruja, defendendo
minha integridade moral.
__ Isso não é desculpa para continuar sendo o que você
é. Todos nós podemos mudar nossa maneira de agir, de
pensar, de viver, de se comportar. É preciso um esforço
próprio, uma iniciativa que parta de si mesmo, uma visão
ampla que dê um novo sentido para a vida.
__ Po-por que você está me fa-falando esta co-coisas?
Não é um Me-mensageiro da Li-libertação? -- inquiri, meio
ressabiado com a lição de vida que a Coruja estava me
expondo.
__ Tente compreender, Saulo. Eu fui escolhido dentre
tantos Mensageiros para seguir seus passos e atrapalhar a
sua peregrinação; porém, até o momento, você não me
concedeu o prazer de cumprir com a minha missão. A única
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coisa que lhe peço é que me dê uma chance. Poxa, será
que você não entende?
Os olhos da Coruja se encheram de lágrimas. Meu
coração partiu ao meio de tanta dó da pobrezinha.
Comovido, também chorei. Prometi a mim mesmo que iria
fazer de tudo para ajudar o Mensageiro a cumprir sua
missão.
A Coruja foi embora, levando consigo o medalhão azul e
minha esperança de curar da gagueira.
Nos braços, peguei a Guia que continuava desacordada.
Com muita dificuldade, desci a escadaria da torre da igreja.
Olhei em todas as direções à procura de alguém que
pudesse nos ajudar. Todavia, a rua estava completamente
deserta. Caminhei mais alguns metros e parei. Parecia que
alguém se aproximava aos berros, e ... Bummm! Trombei
violentamente com uma mulher histérica.
A mulher sapateava, gritava e puxava seus próprios
cabelos. Deixei Dona Genoveva desmaiada no chão e fui
socorrer a histérica.
__ Pá-pára de gri-gritar. O que tá-tá a-acontecendo? Não
te-tenha medo, eu e-estou aqui pra pro-proteger a se-
senhora -- proferi resolutamente, tentando acalmá-la de sua
doidice.
A mulher, mais calma, levantou-se do chão e agarrou
fortemente meu braço.
__ Moço, eles estão me perseguindo -- disse a mulher
ofegante. __ Uma pequena nave espacial acabou de dar
um vôo rasante a centímetros de minha cabeça.
__ Na-nave? Que na-nave?
__ Ora, a sonda espacial de pesquisa dos E.Ts.! Ela
tinha duas luzes brilhantes, parecida com os olhos de
coruja, e, mais embaixo, havia uma brilho forte feito um
cristal -- revelou a mulher com os lábios trêmulos de
emoção.
Olhei para o alto e não vi nada, a não ser as estrelas e a
fulgência da lua cheia. Aquela mulher deveria estar com
algum problema muito sério para dizer aquela asneira toda.
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Fazendo-me de bobo, apontei a esmo para o céu e
gesticulei:
__ O-olhe a so-sonda indo em di-direção às mo-
montanhas.
__ Onde? Por favor, mostre pra mim -- suplicou a mulher,
eufórica e crédula de que realmente eu estava avistando a
suposta sonda.
__ À e-esquerda. Ma-mais em ci-cima ... su-sumiu --
finalizei, contendo o riso.
__ Ah, droga! -- exclamou a mulher, ainda com a
esperança de poder ver a imaginária sonda partir. __ Se ao
menos eu estivesse com minha máquina fotográfica para
registrar esse momento tão lindo ...
__ Do-dona ... -- interrompi, acabando de vez com aquela
conversa tola. __ Qual é me-mesmo o no-nome da se-
senhora?
__ Em primeiro lugar, eu não sou senhora coisa alguma.
E meu nome é Marialva, sou professora e leciono na
creche. E você, quem é?
__ Meu no-nome é Sa-saulo Lebre. So-sou um me-
membro e pe-peregrino da O-ordem dos Mentecaptos.
Aquela se-senhora que e-está ca-caída no chão é mi-minha
Guia. Se-será que vo-você sa-sabe onde fi-fica o ho-
hospital?
A mulher, sem prolongar a conversa, foi muito atenciosa
e prestativa. Pegou uma ficha telefônica em sua bolsa de
couro e ligou para o hospital. Pediu para que eu aguardasse
um pouco; depois, se despediu dando-me três beijinhos em
meu rosto.
Não demorou muito e a ambulância chegou. O médico,
acompanhado de duas enfermeiras bonitonas, dirigiu-se até
a Guia. Fiquei à meia distância observando tudo. As
enfermeiras encurvaram-se tanto que não pude deixar de
notar suas calcinhas lilás. Depois puseram Dona Genoveva
na maca, e a levaram para o interior da ambulância.
A voz do médico não me era estranha. Aproximei-me
dele e, para minha surpresa, era o mesmo que socorrera a
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Guia Cledite na cidade de Carmo da Cachoeira. Para
confirmar minha suspeita, indaguei-lhe:
__ O se-senhor tá le-lembrado de mi-mim?
Com os olhos arregalados e desconfiados, o médico
fitou-me dos pés a cabeça.
__ Você não é o gaguinho que acompanhava a moça
que saiu rolando a montanha, e que tinha na testa um
pedaço de cristal?
__ So-sou eu mesmo -- respondi, com toda satisfação e
orgulho próprio.
__ Dessa vez você não escapa. Entre na ambulância que
vamos ter uma conversinha no hospital.
Conversinha? Que história mais esquisita era aquela?
Não me lembrava de ter feito nada de errado. Aliás, alguma
coisa de errado estava acontecendo. Até aquele momento,
como de costume, ao anoitecer, o meu novo Guia ainda
não havia aparecido.
Sem alternativas, acompanhei o médico até o
ambulatório de emergência.
O hospital era muito modesto, com uma sala de espera
que mal cabia um sofá, uma mesa de revistas antigas e um
televisor monocromático de dez polegadas.
Permaneci sozinho naquele local à espera de notícias de
dona Genoveva. Nem sinal do médico que havia dito que
queria ter uma conversa muito séria comigo. Olhei para o
relógio; passava das onze e meia da noite. Folheei algumas
revistas, e para minha surpresa, em cada página havia a
foto de uma mulher pelada. A falta de moral num lugar
público deixou-me indignado.
O jeito foi ligar a televisão para passar o tempo. Mas
nenhum canal me interessou, até que no último apareceu
na telinha o grande carrasco de minha peregrinação: o
salafrário do Pastor Willian segurando um copo d'água nas
mãos.
Minha vontade foi de jogar o sofá no televisor, mas se eu
fizesse aquilo não estaria cumprindo o compromisso com o
Mensageiro: só teria de volta o medalhão azul se eu me
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comportasse como um anjinho. Mordi os lábios, dei
cabeçadas na parede, belisquei-me todo, tudo no sacrifício
de conter meus ânimos. Depois, relaxei no sofá e passei a
ouvir a pregação daquele evangelizador duma figa.
__ Meu irmão, beba agora esta água que acabei de
abençoar. Em nome do senhor meu deus, você será curado
de todos os seus males: vícios, falta de dinheiro, doenças,
infelicidade no lar. E para isso ocorrer é necessário provar a
sua fé. Não preciso ficar repetindo milhões de vezes a
mesma coisa: seja fiel em sua contribuição diária,
entregando ao pastor de sua igreja o escravo dinheiro para
ser abençoado e revertido em benefício dos nossos irmãos
mais necessitados. Antes de terminar o programa, gostaria
de avisar a todos, irmãos, tios, mães, mulheres, filhos,
amigos de presos, que amanhã à noite eu estarei visitando
a cadeia da cidade de Iguaí. Conto com a presença de
todos para testemunhar a Benção de Libertação dos presos.
Vocês foram escolhidos para testemunhar milagres nunca
vistos nos quatro cantos da Terra. Ah! um último recado:
não esqueçam de levar um maço de velas e sua bondosa
contribuição para ser colocada na cesta santa ...
Antes, porém, que o Pastor Willian dissesse mais uma
palavra, mudei o canal. O filme era romântico, repleto de
mela-mela. Aos poucos fui cochilando, cochilando,
cochilando e ... dormi.
Sonhei que estava sozinho num barco em alto mar. Eu
havia escapado do naufrágio de um transatlântico há dois
dias, e aquele pequeno barco fazia parte de um pacote de
seguro do navio. Toda a tripulação morreu. Por sorte,
consegui me agarrar à canoa, e agora estava à procura de
terra firme.
Sentia sede, mas a água salgada era horrível de se
beber. Sentia fome, mas não havia nada para comer. Assim,
permaneci por mais dois dias navegando sobre as calmas
ondas do mar, exausto, morto de sede e fome. À noite, era
o frio que incomodava. Durante o dia, era o calor do brilho
CAPÍTULO XV
TODOS CONTRA MIM
CAPÍTULO XVII
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EXORCISANDO O MAL
CAPÍTULO XVIII
LAGOA DOS MILAGRES
CAPÍTULO XXI
NA ENCRUZILHADA
DO DESTINO
CAPÍTULO XXII
PERFEITAMENTE LOUCO
CAPÍTULO XXIV
UM GUIA ROQUEIRO
CAPÍTULO XXVII
OUTRO GUIA A MENOS
CAPÍTULO XXIX
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SEM FUTURO?
CAPÍTULO XXXI
gutole@bol.com.br 233 http://lergratis.cjb.net
LADRÃO ROUBA LADRÕES
FIM