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Meu Corpo,
Minha Prisão
Autobiografia de um transexual

Capa de ]orge Cassol


Revisora responsável: Edna Cavalcanti
Copyright óy Lorys Ádreon. Direitos para publicação adquiridos pela
Editora Marco Zero,Travessa da Paz, 15, Rio de |aneiro, CEP 20250,
Telefone 273-2337.
Este livro foi composto pela Linolivro Composições Gráficas e im-
presso pela Editora Vozes.
Editora Marco Zerc
Primeira edição em português publicada em agosto de 1985. 1985
SUMÁRIO SALVE,M LORYS ÁDREON!

Rose Marie Murarô

Salvem Lorvs Ádreon!


A pr:inreira Yez qlJe com Lorys Ádreor-r foi por telefone . U
l?ose Marie Murqro que parecia de mulher, mas cle se definiu Çomo homerir. Estav
Nota explicativa de Lorys Ádreon . . . . 9 proÍundamente deprimido e queria se matar, pois não aceitava seu
corpo masculino e quer:ia ser mulher. "Pp-1
Meu corpo, minha prisão tt I

você não escreve suã história? A gente publica por aqui. . . " Disse-
Comentários sobre o texto de L,orys Ádreon ia do meu nome lhe viera através da leitura
13rega clelirante 131 do Iivro Quecla cie Sandra Mara Herzer que l-ravia re-
centemente se
Bernadette Lyra Lói:y§ me telefouava do intcrior do Amazonas. Algtlns rncscs
Excesso (ex-sexo) melodramático 135 mais tarde comunicott-se outi:a vez comigo, mas, agora, de Londrina.
Herbert Dqniel Quanclo o vi pela primeila 1/ez, com os prinreiros rasctinhos cleste
livro, confesso que fiquei ccm medo.
A escultura do sexo .... .
Fábio P. Lacombe
.. 137
re
indefinido. nem homem nem

Um ano depois, aparece-1ne, já agora como mulher, coln os ori-


girrais reescritos e clizendo qtrerer morar ilo Ti.io. Creio que eleve ter
passado por muitas dificuldadcs, pois chegou até a ser empiegada
rkrnrésiica, ds,,rido à sua total falta de recrlrsos. Levei algum tempo
para ler os oliginais que à primeira vista me pareceram cle utn estilo
ginasiano. lrlais pareciam ulra fotonovela cheia de cha.vões. Isto, se
ftrsse uma fotonovela colnllm, mas o seu conteúdo era profirndamente
cxlrlosivo. N4EU COR.PO, MINFIA PRISÃO, a meu ver, poderia sel
unr caso importante para todos aqueles que se interessam pela sexua-
lirlrrde humana e também pelas snas implicações políticas.
Num primeiro momento pensei cm fazer csta introdilção sob
lirrrna de um seminário corn uma amiga psicanalista e outro amigo
lror116l5ss;çsu1, grande artista e teórico de sua condição. Mas, assus-
l()r-luc a reação do meu a.migo, ncgando toda a experiência de Lcrys:
"É tudo mentira", afirmava com convicção. Ora, eu não tinha esta nessas mulheres submissas tradicionais. Suas características masculi-
convicção tão forte como a dele. nas se juntam de maneira muito surpreendente às suas características
Falei depois com o Dr. Roberto Farina, famoso professor da femininas.
USP que havia se envolvido com casos de operações de transexuais Ao contrário do travesti que imita mais a parte narcisista e exibi-
no Brasil, operações estas proibidas por lei e que hayiam causado cionista da mulher, exagerando-as e caricaturando-as, o transexual
grande polêmica pública em sua época. O Dr, Farina havia exami- identifica-se mais com o lado misterioso e escondido da mulher, que
nado Lorys e me afirmou que este possuía anomalias genéticas. Era os homens nunca captam, muito menos os homossexuais, por serem
de fato um caso de psique de mulher dentro de um corpo de homem. eles os mais masculinos dos homens: aqueles que imitam a mulher
Um caso em um milhão. Além da declaração do Dr. Farina, Lorys para exorcizá-La, para se verem livres dela. O mundo homossexual é,
conseguiu mais tarde outro atestado da Universidade Federal do Rio então, um mundo puramente masculino, sem mistura dos valores fe-
de |aneiro com o mesmo laudo. mininos, que eles não conhecem; assim como o mundo homossexual
Lorys nunca desistiu de fazq a operação que mudasse seu sexo, feminino é o mais feminino dos mundos, porque a lésbica imita o
tornando seu corpo exterior identificado com aquilo que ele já eru homem pal:a se ver livre dele.
por dentro: uma mulher. Mas porque no Brasil esta operação é con- Pude viver estes dois mundos em minhas viagens aos Estados
siderada criminosa, no momento ele está tentando conseguir alguma Unidos. No mundo homossexual masculino havia uma enorme rota-
coisa no exterior. tividade de parceiros, muita relação'sexual sem envolvimento emocio-
Hoje, depois de conhecer Lorys e seu drama, queria me levantar nal, muito úso do outro, tal como os valores ditos "masculinos" tra-
contra esse crime da justiça brasileira. Ele vive uma contradição dicionalmente são vividos. Por isso, a libertação entre homossexuais
profunda entre o seu ser psíquico e o seu ser físico. Não é nem ho- masculinos, a meu ver, exige a emergência do afetivo/emocional
mossexual nem heterossexual. Não gosta de homossexuais. Quer se como valor de base. No mundo homossexual feminino, ao contrário,
casar com um heterossexual que, por definição, não gosta de. . . raramente havia um envolvimento sexual sem que houvesse envolvi-
homens. . . mento emocional e a rotatividade das parceiras era bem menor. As
Na literatura internacional sobre transexualismo afirma-se e se afeições tendiam a ser estáveis.
c-onstata que esJg.fggra -de.ser só pode. levalag.sgigdlo_ 9u à loucura. Pesquisa feita pelo psicólogo americano Neil Simon e publicada
É preciso uma força vital extraordinária como a que encontro'em em "Psichology Today" (março de 1981) revelava que 2o/o de todos
Lorys para poder vencer todas as barreiras que o levam a esta loucura os homossexuais masculinos americanos haviam tido mais de 1.000
e a esta morte. parceiros sexuais em sua vida, que mais de 80% deles havia tido
Para que se possa entender isto é preciso ter em mente a dife- inais de 100. Ao contrário, entre as homossexuais femininas não
rença do transexualismo. O homossexual, quer seja ativo ou pas- havia sido encontrada nenhuma que tivesse tido 1.000 parceiras, ape-
sivo, em ambos os casos se vê como um homem. Vê-se como um nas 2o/o havia tido mais de 100 e mais de 8Oo/o, menos de 20.
homem que tem preferência por homens (o mesmo acontece no caso
Assim, o mundo heterossexual, em sendo a fusão destes dois
das homossexuais femininas: são mulheres que têm preferência por
mundos que não se tocam, me parece muito enriquecedor pois um
mulheres). A identidade do homossexual coincide com seu físico. O
parceiro é sempre um mistério, um "continente negro", desconhecido
transexual, não. Luta terrivelmente por uma identidade que não cor-
para o outro. Para mim, por exemplo, ao contrário de Freud, são os
responde à sua estrutura física, base de toda identidade. E, para obter
desta ,identidpde, o transexual
homens que são o continente negro, o desconhecido, e não as mu-
um mínimo de equilíbrio na busca Iheres. . . Por isso, a relação homem-mulher torna-se cada vez mais
. ora.s.gg[igg (caso queaqui estamos tratando) exagera em tudo as ca-
cliativa, mais misteriosa na medida em que é aprofundada.
racterísticas de mulher em seu comportamento"..,*-".:a-'
Concordo com o Dr. Farina quando diz em seu livro sobre tran- Ora, o transexttal entra como homem dentro do mundo das
sexualismo que o transexual masculino é recatado, terno, discreto, mulheres, ao contrário do homossexual' Seus hormônios, seus genes,
submisso àquele que ama. E isso ele o faz de maneira mais exagerada Il-re permitem este dúbio privilégio. Seu problema não é só cultural,
do que o faria uma mulher tradicional. mas-físico, genético. Daí a diferença que encontrei entre Lorys e meus
Mas, ao mesmo tempo, encontrei em Lorys muita iniciativa, runrigos homossexuais.
muita criatividade, o uso de muitos expedientes que lhe permitiram Entra de
sair de circunstâncias extremamente difíceis e que não se encontram rlircito no mun ffins e no mundo das mulheres, ao mesmo

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tcmpo. É homem e mulher. Mulher e homem. Mas, segundo os nossos
valores, NÃO PODE. Vla.s, Lorys quer. Quer cleixar cle ser homem
e se tíJlnür'ruulirer. E lhe ploíberrl esslr su;r identificaçào prirnária...
I Creio que Lorys cor"o mujhér'iern nruito a Júzl.l do mundo doí
", hôtneirs e, como homem, do mundo das nrulheres. É uma das rarís-
sintas pessoas que poder'ào fazcl isst-r dtr ponto cle vista vivcncial.
!"Dáí
o cslorço quc fiz pela publici§ão clcstc'"livro e mêus maiorõ§
agradecimentos à Editora Marco Zero llor tô-lo feito. Os críticos tal-
vez possam dizer que não é bem escrito e que talvez nem seja lite-
ratllra. Mas, certamente é um libclo. Unr libelo contra o mais per-
vasivo e mais tenaz dos preconccitos: o cla soxualidade, qlle escalno-
teia os problemas do pocler.
NOTA EXPLICATIVA DE LORYS ÁDRECN
Impede-se, por exernplo, Lrnta pessoa de mlrdar de sexo, mas,
não se impedem os grandes crimes finarrceiros e a manutenção de
povos inteiros em estacio de miséria crônica. Por isso, considero Ao escrever a história de rairrha vicla, deiive meu pensamento
este livro um libelo contra esta fantástica hipocrisia de que nós todos numa firme e imutável idéia. Registrar para sempre a trajetória amar-
somos ciimplices. E minha esperança é que este livro possa ser real- ga que pcrcorri desde meu nascimento, vivendo um papel em total
menle urn leste em relação r) nossa omissão. Espero que ele aja como
discrepância çom mitrha real personalidade'
um ca.talisador na luta pela mudailqa da Iei para que pessoas como
Lorys possam viver. E, poi consoguinte na mudança de todas as outras A completa afinidade que descobri tet com o sexo fem-inino desde
leis para que todos nós possamos viver de maneira mais digna... a mais tenra idacle, me impelia sempre em direção a um Çomporta-
mento que enfocava a feminilidacle, cmbora vivesse cercada de repres-
são e violência, que visavatn meLl a,justamento compulsório a um
coinportamcnto masculino.
Ajudar a salvar Lorys é ajudar a nos5g!,varmo_s a todos!
."eM:*,..b\iffi Ao usar deliberaclamente a
terminologia masculina dut:ante o
relato na integridade do livro, ou o fiz visando colocar o leitor cm
contato colr1 um peÍsonagcm masculino condicionado a sê-lo, ao qual
Rose Marie Muraro
se anulava a outra opção, não obstante estivessc cont,icta do meu Ett
vcrdadeiro.
Proçurei omitir os nomes de lugares ou pessoas os quais me cau-
sat'am profunda má iurpressão e clor, mes rnçsmo na omissão de
outras boas e querirJas pessoas, visei o respeito por sua privacidade.
os nomes meniionaclos perteníJeli1 àquelcs que já deir-aram o Brasil
ou adormeceÍan na Morte.
Durante a difícil tarefa de registrar rninhe trristótia, com muitas
lrigrimas e profuncla depressão, a lembrança constante de outra vida
irrrlarga e tiágica coilro a de Herçuline Barbin, cognominâda Alexina,
r,lrsciãa no século passado no interior da França, qrre culminou em
suicídio, ocupava nleus íncmentos de pausa e meditação' Embora
lrrria grande diferei.iça na couformação psicossomática de cada uma
rlc nós, h/i uma afinidade enorme no drama mental sofrido, perante
(' luundo exterior e a ciência, no grande es[orço despendiclo para tentar
:;,rbreviver, ostentando a auienticidade Co Ego im.utável que se arrai-
liilvil cm cada psique.
8
Eu já não tenho mais uma família. Um caudaloso e profundo
túmulo aquático retém seus restos mortais, desde o naufrágio que
sofremos há dois ahos, mas se ainda os tivesse junto a mim, a
vida teria outro gosto. Como não os tenho mais, busco encontrar na
grande família humana, substitutos queridos, aos quais possa parti-
lhar toda a plenitude do meu amor.
Por menos que meu drama tenha algo em comum com os leito-
res que me lerem, estou certa de que, em algum ponto da leitura, MEU CORPO, MINHA PRISÃO
provarão inexplicável afinidade comigo. Por quê? Porque tudo se
resume na busca incansável pelo amor, aquele forte e verdadeiro sen-
timento, que vai muito mais além da carne frágil e tão facilmente l
perecível que envolve nossos ossos brancos. O amor, que subsiste
até a própria ausência da vida, na esperança da Ressurreição! INOCÊNCIA ULTRAIADA

Este livro é dedicado aos doutores Roberto Farina Venha comigo à terra onde é produzido o mais delicioso vinho
(do Brasil) e Harry Beniamin (dos Estados Unidos) branco do mundo! Praias bonitas que o Mediterrâneo banha no vai-
vém incessante de suas espumantes ondas. Estamos em Málaga
Espanha, em 20 de março de 1960 e acaba de nascer um bebê: -
"E
-
um menino, grita o pai, eu sabia, eu sabia! Vamos dar-lhe o nome
Lorys Ádreon
Lorys que significa 'O coroado de Louros'; os louros da vitória!"
Começa aí a história de Lorys Ádreon; numa haciendq de oli'
veiras e vinhas um pouco distante da cidade.
Desde muito cedo, fui uma criança vivaz e inteligente. Muitas
pessoas não acreditam que eu possa me lembrar minuciosamente de
fatos que ocorreram tão cedo quanto meus dois anos e meio de idade,
mas é verdade! Meus pais sempre confirmaram, espantados, as des-
crições que eu fazia de fatos, lugares ou pessoas que marcaram aquela
época.
Lembro-me, por exemplo, que ao deitarmos para dormir à noite
no enorme casarão de grossas paredes que abrigava nossa grande
família, quem fosse fechar as janelas tinha que empurrar, para fora,
os galhos de oliveira carregados de enormes azeitonas, que se proje-
tavam para dentro.
Também, ao levantarmos de manhã, a higiene oral era incre-
mentada por se comer ruidosamente uma deliciosa maçã de dar água
na boca! Leite, queijo e manteiga em abundância sempre acompanha-
vam os pães, bolos e tortillas que compunham nossas refeições.
Na colheita das uvas, os dentes chegavam a se embotar, de tantos
cachos que comíamos!
Quando completei três anos, mudamo-nos para a periferia de
Málaga, deixando para trás a querida hacienda onde"pela única
yez em minha atribulada existência provei a plena felicidade.

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Papai passou a dedicar-se à construclio civil, e mamãe a prepa- Como era excitante explorar pela visão e pelo tato aquele corlro
rar marmitas, ajudando assim a manntcncão do lar. adulto e diferente do meu, ainda tão delicado e frágil!
Corriam rumores freqüentes sobrc as pcrspectivas de uma vida Aquele homem acariciava meus genitais com curiosidade irres-
melhor na América do SuI, mais precis.mentê no Brasil, de onde trita e delirava ao ver-me tarnbém excitado até que chegou ao clímax
chegavain constantemente cartas dos iinrigos que para cá haviam emi- daquela corrida pelo prazer. Não posso afirmar se houve algum sinal
grado. A febre do "Eldorado Amazônico" estava pouco a pouco ga- de arrependimento ou culpa por parte dele, porque eu era então
nhando forca no coração de muitcls, c cntrc eles estava papai, que já pequenino demais para perceber nas I'eaÇões humanas, o certo e o
cogitava mudar-se para o país. Entrclanto não emigramos para cát errado. Só me lembro que estabeleci imediatamente um paralelo entre
antes que ocorressem os fatos rclataclos cm todo o capítulo 1 e o sêmen qtre banhava minhas inãozinhas e o leite que mamãe colocava
parte do 2. na chícara para eu tomar. Só que o prirneiro tinha saído clele. Será
Uma vez, escapando à vigilânoia dc nramãe, saltei o portão de que papai também produzia "daquilo"?
ferro, e suspirei ao rne ver do oul.ro laclo, livre para "ganhar" a rua Tudo mudou ali naquela manhã.
rumo ao desconhecido... Um mundo novo que se abria para mim. Em pouco ten.rpo eu
Não cheguei a dar três passinhos, quando um hornem moreno e estava numa dependência total ao homem que a cada dia tomava
forte chamou minha atençáo. Ele estampava um sorriso convidativo o lugar de papai em meu coração e mente !
e estendeu-me a mão, na. qual apoiei minha mãozinha trêmula. passo O fugir se tornou habitr"ral rumc aos braços daquele que magi-
a passo, fomos caminhando. Entramos em um pequeno cômodo de camente me fazia esquecer tudo e todos. . .

uma fábrica de móveis. Quando certa yez manrãe rne interceptoll em frente ao portão
A luz do sol matinal não penetrava ali. O homem, cujo nome da fábriça de móveis, o homem lhe ctrisse-cordialmente:
para mim perdeu-se na investida do tempo, falava num tom amável - "Esteia
tranqüila, senhora, garanto-lhe que seu filhinho estará mais scguro
e brando enquanto acariciava mens cabelos e rosto. Talyez procuras- aqui comigo que em qualquer outro lugar; toda vez que ele lhe fugir
se incutir em mim segllrança e confiança para, depois, dar início à tenha certeza de que está aqui comigo; muito bem protegido. . . "
manobra atrcz qLle maquinava. E a "proteção" se acentuou de tal forma que a cada vez que por
É muito impressionante para mim a nitidez com qr1e, ao rememo- um motivo ou outro a rotina da visita matinal à fábrica era quebrada,
rar tais cenas, estas revivem em minha psique agora consciente e ma- eu ficava rebelde, zangado, sinrplesmente impossível . Papai "parecia
dura. deixando-me atribulado e confuso, porque, talvez, lá nos recôn-
ter espinhos no colo", expressão trsada por mamãe para descrever
minha recusa de estar com ele.
ditos do rneu Ego, eu tente desesperadamente impedir que o garotinho
Estabeleceu-se uma incógnita em n.rinha cabeçinha:
exposto ao perigo seja violado pelo homem! Também há o pudor,
lutando contra as revelações chocantes que terei que fazet, de segre- Por que papai agia tão seca e repressivamente comigo para impe-
dos até então escondidos em meu profundo silêncio. . .
dir que eu o observasse quando se dirigia ao sanitário para urinar
ou que falasse com. ele sobre sexo? Quem agia corretamente? Fapai,
ou o homem da fábrica de móveis que "mostrava e fazia tudo"?
Papai tornou-se sócio de um honlem iovenr e bondoso que passou
Tenho diante dos meus olhinhos curiosos o corpo despido de a freqiientar nossa casa. Embora o objeto de toda minha atençio
um homem. É a primeira vez que vejc alguém nessas condições. E continuasse a ser o homem da fábrica, nrinha gra.ncle curiosidade $re
também que sinto eln meus lábios o gosto hunrano úmido e quente permitia excursionar para fora do mundo "perfumado" pelo verniz
de um beijo; só que esse "carinho tliferente" e novo despertava em e por isso numa certa ocasião em que fiquei a sós com Mário, segurei
mim um misto de medo e excitação. sens genitais pondo as mãozinhas sobre aqueias calças lar:gas pergun-
Só percebi que tinlra o corpo nu, quando senti o calor do outro tando se poderia mostrá-los a mim. Após um vigoroso NÃOl! como
corpo que ofegava! Nunca antes havia visto os genitais de um adulto resposta, recompus-me pensanclo: Este também é diferente do homem
e muito menos tocado neles, por isso fiquei perplexo quando
-aquela aquele da fábrica!
homem tomou minhas mãozinhas e as õoloCou sobre massa Durante os meses que se seguiram, descobri que havia outros
de carne curiosa e bizarra. homens no mundo que também estavam interessados em explorar

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12 15

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Q-\,rpt : \ t\r'\,1,,

mcus genitais. Tratava-se dos barbeiros (três) de uma barbearia cole- do lado de dentro da cerca, a admirar aquela festa luminosa e rica,
tiva onde papai me deixava cortando o cabelo. Um deles, chamado tentando encontrar nas nuvens que se antepunham ao sol poente,
Otávio, era o "iniciador". Assim que notava que eu entrava em formas de pessoas ou animais, e às vezes tais formas ocasionais se
eregão chamava os outros dois e
lá ficavam os três a se divertir com tornavam para mim ora em monstros ameaçadores, ora em criaturas
o que achavam tão engraçadinho tocar e espremer entre os dedos angelicais carinhosas, que aos poucos entravam para o mundo do
ásperos e nicotinados. esquecimento dissipadas pelo vento.
Eram momentos repugnantes e insuportáveis que pareciam não Numa dessas tardes que findava para dar lugar à noitinha, alguém
ter fim e eu suplicava muitas vezes chorando que me deixassem em me chamou do lado de fora da cerca de madeira. Venha comigo
paz! Que alívio quando papai entraya de novo por aquela porta para disse um rapaz adolescente, vou lhe mostrar um brinquedo de que -
me levar pra casa. . . Mais um motivo para éu préferir sempre o você vai gostar muito. Ele despregou então a parte inferior de uma
homem da fábrica, tão carinhoso e protetor. . . das ripas da cerca permitindo minha passagem para o lado de fora
Comer, beber, brincar, passear ou dormir; tudo somado, não e lá nos fomos, mão na mão. Descemos por uma ribanceira íngreme
se igualava aos momentos que se passavam na semi-obscuridade da- coberta de espessa vegetação até o fundo de um precipício escuro
quele cômodo, onde o objeto de toda a atenção era unicamente Eu. onde muitos pirilampos e vaga-lumes piscavam acompanhados pelo
Sentir, a cada manhã, o gosto quente e úmido daqueles lábios envol- som de sapos e rãs que "croqueavam" sem parar.
vendo os meus, dava vontade de viver o resto do dia! Os domingos
Essa melodia, que até entáo eu jamais tinha ouvido antes, tor- I
eram todos dias de luto para mim porque estava ausente o homem
nou-se para mim como uma "Ode ao terror" quando repentinamente I
que se tornou o sol e centro do meu universo infantil.
o jovem me agarrou pela cintura, de costas e tapou minha boca com I
A aurora antecede o ocaso, e fatalmente similar a esse fato, num uma das mãos. Com a visão já mais habituada na escuridão, pude 1
dia qualquer nos meses que se seguiram eu enfrentei a perda súbita discernir outros quatro jovens a nossa espera. Então, enquanto dois i

e repentina daquele que até então dera significado ao meu mundo. me 'seguravam firmemente tapando a boca para abafar meus gritos, i
|amais vim a saber o porquê. Nada e ninguém era capaz de preencher outro me violentava. Depois foram se revezando até todos ficarem i
o vazio que a ausência daquele homem me impunha. satisfeitos. Havia, porém, uma outra idéia "genial" concebida pelo I
líder do grupo: intioduzir no corpo violado e ferido diante deles, já i
r; "Não faça isso que yocê morre!" sem forçãs para gritar ou fugir, úma pedra escolhida num monte ao i
lado, para que o-ga-rotinho sé lembraíse de que "se contasse o ocor- i
,,1 -Essa foi a súbita reação de mamãe ao me ver segurando entre rido a alguém, lhe fariam algo ainda pior". ri,
ti os gumes da tesoura o pequenino genital do qual eu pretendia me
:, ver livre a qualquer custo aos cinco anos de idade! Mamãe recom- O executor da tarefa escolheu muito bem um pedregulho duas
;r
pôs-se calmamente, tomou a tesoura de minha mão e disse com carinho: vezes maior que um ovo grande, e após lubrificáJo com saliva, pres-
a
"Diga para mamãe por que você pretendia cortar seu sionou-o até que se instalasse fundo no canal anal . Uma dor cru-
| - ciante partindô do ânus se irradiou por minhas coxas, estendendo-se
i'pipi'." pelas pirnas até os pés. Compreendi que não podia me moler, que
I "Porque não gosto de ter isso pendurado em mim; é feio!
i;
-
Não quero isso, mamãe!" meu único remédio éra chorar. Os rapazes se afastaram rápido.
{ Meus pais tentaram de todas as formas ponderar comigo sobre Percebi que sangrava, meu pânico aumentou e irrompi em gritos
a normalidade de eu ter aqueles genitais, porém nunca mais deixei roucos desesperados. Um senhor |osé, um funileiro que morava nas
de odiáJos veementemente e de guerer me ver livre deles. imediações, óuviu, veio verificar e me achou 1á no fundo do "buracão".
Em minha restrita compreensão, "compreendi que estava numa Ele pôs-se a Íazer perguntas a mim, mas todas as respostas foram
prisão meu corpo, e sentia-me como um condenado perpétuo e sem vigorosas evasivas.
- ante uma realidade anatômica
absolvição que não correspondia à Quando ele mencionou a palavra pai, meus olhinhos se arrega-
minha psique ttaumatizada e controvertível". laram de medo suplicando que não me levasse para casa nos braços,
nem me acompanhasse até lá, mas que me deixasse tentar andar so-
zinho.
O lado norte da casa onde passamos a morar exibia, a cada fim "Olha o estado deste moleque! Bateram nele na rua, e muito!"
de tarde, um pôr-do-sol inebriantemente belo. Eu ficava sentadinho "Onde está sua camisa? Quem fez isso? Onde foi?"

t4 15
Silêncio "Vá já tomar banho! Meu Deus, o negócio foi feio! tranqüilizante e injeções de penicilina resolveram o caso. Pelo menos
- pode andar!" Mamãe
O nienino rnal contornou a raiva de papai e o caso físico, porque o psíquico, o que estava sendo abalado desdc
ele não acrescentou mais nenhuma dor em mim. a raiz, pâssava totalmente iilperceptível!
Graças a Deus, fui sozinho para o tanque e sometrte eu meslno
pude ver o filete de sangue que subia do fundo quando me sentei na
água ftia. Bem ao lado do quintal havia um grande terreno onde costu-
Não quis tomar nenhum alimento naquela noite e quando me mavam ser armados Circos e Parques de Diversões. Para mim, não
dirigi à cama já sentia os arrepios de frio de nma febre que começava. havia nada mais deliciosamente inebriante do que assistir às ence-
Que noite terrível foi aquela! Fui violentado outra dezena de vezes nações melodramáticas, tão ao gosto do pírblico daquela época, que
numa sucessão de sonhos atribulados intermináveis. não ocuitava as lágrimas copiosas ante as cerlas que se sucediam
Pela manhã, duas aspirinas infantis me ajudaram a passar o dia, naqueles fulgurantes palcos nômades. As representações exerciam em
pois não saí da cama. mim uma gostosa sensação de realizaçáo dos mais ocultos anseios,
sempre com toda minha atenção voltada para o desempenho da atriz,
Quando o sol se pôs outra vez et não estava no quintal. Sentia nunca do ator.
um calor ruborizante nas faces e no corpo, advindo da febre que Meus devaneios amorosos encontravam expressão na transfixa-
aumentava, causticando meus ossinhos e partindo meus lábios,
ressequidos. ção que ocorria quando eu me imaginava ocupando o lugar da atriz,
mesmo que o papel envolvesse dor, ódio ou desprezo. Não importa
Meus pais dirigiram-se ao quarto levando um mingau de leite
e gotas de remédio. Papai disse que no dia seguinte me levaria ao o que fizesse ou dissesse a protagonista em cena, ela o fazia por
médico. Quando eles se foiam comentando sobre o mistério daquela mim, espargindo ao público minhas vontades escondidas.
doença, entrei num pranto copioso. Uma vez, lembro-me que quase despenquei da arquibancada.
Assustei-me com o tiro de revólver do amante enciumado que matava
Movido pelo desespero, comecei a esfregar as mãozinhas sobre
o púbis achando que isso ajudaria aquela pedra a sair antes do dia a infiel.
amanhecer. E a massagem deu resultado. Coloquei-me em pé sobre a tábua e apontando com o dedinho
Arrepios de frio, dor, medo e febre se confundiam num carros- indicador em meio ao silêncio da platéia que reprimia a respiração
sel de delírio, enquanto eu ernpurrava a pedra mais e mais com as para ver o desfecho da cena, gritei para o ator:
mãozinhas e com o ventre, impelido pelo desespero de me ver de "Çsy31de, isso é coisa que se faça? Em
novo vazio e livre como antes. - não se atirasem-vergonha;
mulher nem com uma flor." Os próprios artistas não
Um jato quente de sêmen rnisturado a sangue coagulado inundou conseguiram disfarçar o riso e os espectadores irromperam em gar-
rninhas nádegas. galhadas, tornando a situação táo patética que o pano baixou antes
Meus olhos estavam embaciados de lágrimas quentes que escor- da hora ceÍta para o final daquele ato.
riam sem parar. Parece-me, reflito agora adulto, que fiz o que muitos gostariam
A respiração ofegante foi diminuindo enquanto uma sensação
de poder ter feito ali naquela hora cruel da cena homicida, ou seja,
de alívio me devolvia a calma. O tempo passou, e o frio do piso me expressar desaprovação e repugnância pelo ato ilícito de alguém julgar
fez consciente de que era hora de me levantar. Apanhei um pano de que possuía o direito de ceifar a vida de outra pessoa.
chão, e envolvi tudo aquilo indo jogar rápido na lata de lixo. Após O circo se foi. O terreno vazio se transformou num campo de
rápida lavagem na água gelacia cÍo tanque enxuguei-me e fui para a futebol e local ideal para soltar papagaios.
cama, sentindo uma alegria incontida por me ver livre daquele Embora eu não abdicasse jamais às bonecas e panelinhas, às
pesadelo! vezes ia ao campo observar os outros garotos brincarem. Após os jogos
Um sonc cansado se abateu sobre mim, e só retomei consciência e brincadeiras, formavam-se grupinhos de garotos que se sentavam
do nrundo outra vez, quando mamãe me chamou com insistência ao chão e ficavam conversando e contando estórias.
para irmos ao médico. Uma noitinha, sentei-me com eles para ouvir de que falavam.
"Algo abalou os nervos desta criança e a febre não tem motivo l
Absorto no conteúdo da conversa, não notei que se assentavam outros
aparente", disse Dr. Castelucci ao me examinar. Comprimidos de bem mais yelhos ao redor. Um jovem disse:

16 17
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"Parece que garotinho bonitinho ali já sarou as fe- tomava toda a parede, havia a mesa do professor com alguns livros,
aquele
ridas-da última v", qu€ saiu óonosco e agora voltou para nós; não é uma grande régua e um vasinho de gargalo longo donde pendiam
mesmo?" flores amarelas.
Fiquei tomado pelo medo ao reconhecer naquele jovem o líder Um sino de mão ressoou agudamente anunciando que os alunos
do grupo que me violentara meses atrás. EIe então se acercou de mim se pusessem em pé ao lado de suas carteiras. Os professores já iam
e colocando a mão sobre minha cabeça disse zombeteiramentel entrar em sala. Sustive a respiração olhando atentamente para a
"Não tenha medo, seu veadinho assustado; ninguém coloca porta enquanto podia sentir o bater apressado de meu coração sob
- em você
um dedo se eu não mandar e queremos apenas conversar a blusinha branca.
com você, cetto?" Subitamente uma sombra invadiu a soleira da porta mas estacou
"pissglsm-me que você vai entrar para a escola, verdade?" por alguns momentos do lado de fora o corpo que a projetava, aguar-
- ('Sim, na Semana que Vem." dando o segundo tinir da campainha. Novo estridente sinal encheu
I

- "§s1{ que está mesmo preparado para enfrentar a escola? o ar e um arrepio medroso me percorreu o corpinho tenso e atento
Sabe-o que a"ontece lá? O que fazem os mestres com os alunos? à porta. Entra a pessoa tão esperada! Para minha surpresa a figura
Será que você agüentaria com toda essa deliçadeza de 'pó-de-arroz'?" sorridente e cordial de uma jovem professora apareceu diante da
Não foi preciso perguntar a ele o que se passava na escola, pois classe respeitosamente imóvel a aguardar sua ordem para sentar.
prosseguiu: 'í§snfs6-se, por favor. Muito contente estou por vê-los tão
'íV6s§ se lembra bem de que introduzimos nossos pênis em - e comportados neste nosso primeiro dia de aula; meu nome
asseados
você -e, por ítltimo, uma pedra um bocado grande para seu tamanho? é Palmira e espero que além de bons e respeitosos alunos vocês
Pois bem, na escola os professores the introduzirão barras de ferro possam se tornar meus melhores amiguinhos. Está bem?"
grossas e compridas que ie você agüentar 'passará de ano' e, se não,
repetirá."
Uma deliciosa sensação de alívio invadiu meus ossos e parei
de tremer. Era realidade sim; ela estava lá no lugar exato onde o
Um pavor mórbido me devorava enquanto ele falava aquelas homem cruel e violento mestre devia, mas, graças a Deus, não veio
sórdidas e absurdas mentiras que pala mim eram terríveis e fatais a estar. . .
realidades.
Naquela noite, um homem me perseguiu me agarrando e ten-
tando mô forçar a ter relações com ele enquanto eu repetia,sem parar:
Passados c{ois anos desde que entrei para a escola, vi-me no
"§flo p.oÍ"ttot, não professor", num interminável sonho' terceiro ano primário com uma professora diferente e severamente
- Um pãozinho francês e duas bananas, a merenda que- mamãe exigente.
colocou em minha bolsa de escola no primeiro dia em que botei os Os mais banais motivos a levavam a colocar os alunos de cas-
pés numa sala de aula.
tigo na frente da sala com os braços abertos sem poder fechálos,
Fiquei imaginando, amedrontado, como e quando seria o pri- ajoelhados sobre grãos de milho ou tampinhas de garrafa voltadas
meiro 'iexame" lestial contra o qual o jovem me havia prevenido para cima.
sabendo que estava irremediavelmente condenado a me submeter'
Não obstante seu temperamento, eu apreciava sobremaneira
O interior de uma sala de aula era um mundo misterioso com ouvi-la ler os textos destinados à nossa prática diária de leitura.
o qual jamais tivera antes algum contato. Gravuras pelas paredes Sua entonação vocal, dicção e pontuação eram tão harmoniosamente
-oit.u.ráo num colorido exagerado crianças robustas, sorridentesseu§
em
perfeitas que arrebatavam, transportando-me ao mundo descrito
cenas de estudo e recreação. Elas não pareciam demonstrar em
rostos corados nenhuma aversão por aquele ambiente tão mal con- por aquela voz madura e semigrave.
ceituado entre os jovens do campinho. Os dias passaram, trazendo uma doença qualquer que nos pri-
As carteiras em madeira, semelhantes a bancos de jardim, de vou da presença diária de nossa severa mestra. Em seu lugar, entrou
ripões, comportavam dois alunos cada, e um tinteiro redondo de vidro uma substituta terrivelmente mal-humorada, que parecia querer es-
sobressaía áo centro da mesinha, havendo uma canaleta onde deve- magar os alunos entre as unhas dos polegares, como se faz com os
riam repousar as canetas e lápis. À esquerda do quadro-negro, que piolhos!

18 I9
Quantaangústiaeapreensãomecausavaaconvivênciadiária Foi-se um, veio o outro. Tão satisfeito, que nós comemoramos
uqr"lu -õlh"t ."roitudu com o mundo das crianças, pobres com um abraço, escondidcs dos outros, é claro! Dava-me muito de-
"o*
fantochês escolares entregues à sua tirania! leite sentir que ele queria ser meu protetor, visto que nunca suspeitei
que o fizesse com segundas intenções.
O fracasso .rn ,-u= prova cle matcnrática levou-me a receber
um castigo, tão excentricamente escolhido para €nvergonhar e ferir' Numa tarde quente após a aula, pediu-me que o acompanhasse
mcstri vestiu-me com uma saia até sua casa ao que acedi prontamente. A casa estava fechada, pois
àr. iã*r'it'pàderei esquecer. Minh-a
branca e um enorme laço de fita seus familiares tinham saído. Ao entrarmos, ele me conduziu ime-
;li;táã;;;ri-*átinto, uma blusa por diatamente a seu quarto. Não moveu as cortinas nem abriu as janelas
;;;;;; p;;to ào alto da cabeça Srampos e, tomando-me -pela
Àão, á"iritou comigo por toda a volta do saguão do colégio sob os mas tomou-me ambas as mãos e, fazendo-me sentar na cama, olhou-
risos e o sarcasmo cle todos os presentes! me fixamente nos olhos dizendo:
Naquela época, todos me tinham como menino e, por causa da 'Íps1 favor fique calmo, não te trouxe aqui para te ma-
chucar- ou ofender. Gosto muito de ti e sabes disso. Vamos nos
própria i-posiçao áo público, eu tinha que querer ser menino; não
iraviu out.á opçao. Poi causa disso recebi um enorme choque emo- fazer muitos carinhos que selarão nossa amizade para sempre, Por
cional ao me ver ridicularizado. favor não recuse meu amor."
Então colou aqueles lábios vermelhos nos meus. Provei imensa
Decorrente da aplicação desse castigo, surgiu entre os outros
satisfação. Uma sucessão de imagens passadas inundava minha mente
meninos um modo difàrentô de me atormentar a alma: Todos queriam
enquanto ele prosseguia me acariciando e tirando meu uniforme
ier ã gottint o de passar a mão em meu bumbum; nem que fosse uma
escolar. Pediu-me que deitasse e se deitou sobre mim peito a peito,
vez ao dia!
perguntando se eu já havia antes feito aquilo com alguém. Conteilhe
O pranto era meu único remédio. Então, a inspetora de alunos os traumas passados e ele clisse ter muita pena de mim, por isso o
me tonüva deles isolando-me no corredor dos professores que, ao que iríamos fazer ali seria em base de amor e amizade, sem violência
passarem, sempre teciam comentários maldosos.
alguma.
sentia uma dor mental tão extenuante durante aqueles momen- Pela primeira vez desde gue o grupo de rapazes me violentou,
tos passados no corredor que, às vezes, empalidecia, suava frio e dei- alguém fez sexo comigo, mas, desta, a violôncia e a maldade se man-
tava no banco, obrigando alguém do corpo docente a levar-me para tiveram totalmente ausentes. Apenas gestos carinhosos, cheios cle
,rt., áo iinut ão períoão. Mas jamáis me lembro de ter ouvido desejo permearam a atmosfera daquele quarto enquanto caía uma
"rrã
ãíde; .*"lar à mamàe as causas do meu mal-estar. Então aquele chuva pesada e rulnorosa lá fora, enquanto o quarto se enchia da
laÉirinto de opressão prosseguiu pelo resto do ano' 7uz azulada dos relâmpagos.
Senti amor, ternura e deseio pela primeira vez em minha vida.
Era enternecedor o contato de todo seu corpo com o meu na intimi-
Há sempre alguém disposto a nos proteger e confortar em.horas dade total daquele abraço sensual. Depois que tornamos a nos ves-
d. p;;ú; o, d" ,õfti-ento, por isso, -a cada investida dos maldosos tir, ele me perguntou se eu achava que "algum pouquinho daquele
cológas, um quase rapaz se interpunha- roubando-lhes o gosto sar- líquido que saíra dele tinha ficado dentro de mim", pois se ao menos
cástico'de fur", Era úuito bondoso para comigo e, por
^i "iro.r.. uma gotinha ficasse eu iria ter um bebê dele!
coincidência, no 4.o ano fomos parar na mesma classe' Ele quis ser
banco a qualquer custo' Como era por- sorteio que No dia seguinte, durante a aula, ele se aproximou com um
-t, put."i.o dedetigrados,'outio veio ocupar o lugar almeiado por olhar cheio de ternura, com um certo ar de preocupação e disse:
;;;;;; Lrrrn "Você tem certeza de que não ficou nada'daquilo' em você?
ele. - não quero ter que me separar de você."
Porque
Foi a primeira Yez que percebi o gu9 era sentir ciúmes de Um estremecedor frio me correu pelo ventre e the respondi
alguém. Nos olhos e nas reações dele. Qualquer coisa, por menor
qr", forr" o dano a mim causado qu9 o outro menino fizesse, era imediatamente:
,iiotiuo cle so6ra para que o tapaz desejasse esganáJo! A disputa 'ípg1 favor, não fique nervoso comigo, não me deixe! Preciso
- Sim, ontem ao dirigir-me para casa, meu short se inundou
prossegltitt até quê um belo dia lles combinaram trocar uma caixa de você.
dag{o à pro- 'daquilo' ao começar a andar! Acho que estou esperando um bebê!
itã"aÉ'á" lápis de cor pelo lugar ao meu lado, o garotoposição'
[.rró.u a deôculpa de que não enxergava bem daquela Meu Deus! e agora? Por favor, me ajude."

20
2t
"§frs fale mais nada, sinto muito, mas não posso ficar mais satisfeito seu objetivo homicida, fugiu em uma bicicleta. Lembro-me
com -você; meus pais me matam se sabem uma coisa dessas!" nitidamente das últimas palavras dõ Maria:
Quanto horror senti ao me dar conta de que embora ele tivesse "Ah, Sebastião, cuida dos rneus filhinhos, pelo amor de Deus!,'
"feito o bebê" em mim, eu teria que enfrentar só, o medo e a -
"certamente que sim." Então ela sorriu e fechou os olhos na morte.
vergonha de ver meu ventre crescer até ficar enorme antes do nas- Todos irromperam num choro desesperado, eu os acompanhei
cimento do filho indesejado! Meu pai, sim, é que teria toda a ruzáo -
no lamento, porém com a mente divididá entre a imagem do rosto
em me matar! horrorizado diante dos golpes de Lúcio e do sorriso iinal já sem
Dias amargos e noites de sonhos atribulados se sucediam à es- nenhum medo ou dor. Daí em diante, a palavra morte passou ã exer-
pera do pior. Mas, graças a alguma boa fada, os dias não me trouxe- cer em mim um sentimento de pavor mórbido que mà deixava de_
ram uma temida grande barriga! Quando o pesadelo se afastou, ele sequilibrado a meditar longas horas sobre o poiquê dos seres hu-
I tentou se reconciliar, mas desta vez eu o repudiei, pagando-lhe com a manos terem que ser, de um modo ou de outro, sobrepujados por ela,
mesma amarga moeda, embora soubesse que o amava e sofresse. mais cedo ou mais tarde, natural ou violentamente. . .

Havia, próximo a nossa casa, uma máquina para beneficiamento


de arrcz cujo proprietário, um senhor idoso por nome Braz, gostava
muito de mexer e brincar comigo. Às vezes eu ficava com medo das 2
caretas que ele fazia e chegava até a chorar; então ele se contorcia
de tanto rir. À PROCURA DE UM PAI
Ele tinha dois filhos casados. Sebastião, casado com Ioana e
Lúcio, casado com Maria. Num lindo e azrl domingo de manhã, fui
até a cozinha da casa de Lúcio e lá fiquei brincando com Netinho
enquanto Maria preparava o almoço. O cheiro delicioso da cebola Descobri em meu pai um ciúme infundado e doentio por minha
fritando na banha impregnava a cozinha, e Maria ia colocar o arroz mãe.
para fritar quando a voz grave de Lúcio estrondou a chamar por ela. Ela deixou até mesmo de f.azer compras para evitar problemas.
Maria continuou despejando o arroz, apenas voltou-se para atendê-lo. Infelizmente, papai era um. homem incapaz de manter ,.n diálogo,
Rápido Lúcio cravou-lhe uma enorme peixeira nas costas. Ao seu sem irromper em impropérios. Esse tipo de reação grotesca ini6ia
grito de dor, eu e Netinho começamos a gritar: em.mim qualquer iniciativa de pactuai com ele, m"rrÀo quando seu
íí§f;6 titio, não a mate, por favor, náo faça isso com ela!" gênio tempestivo parecesse estar envolto numa calmaria dô bondade.
-Acusando-a de traição, Lúcio investiu contra Maria ignorando - Nã9 que eu sentisse aversão por ele mas, visto que seus modos me
desagradavam grandemente, passêi a evitar cada iez mais sua com-
seus apelos e furava seu corpo vez após vez enquanto a panela caía
panhia, e, por último, ficar só com mamãe era um deleite para mim.
vermelha do sangue que jorrava. Eu e Netinho saímos a correr, gri-
tando por Sebastião. A meninazinha de 8 meses gritava pela mãe Dei início, então, a uma busca que tinha por escopo encontrar
no chão da cozinha. Maria correu para o quintal mas Lúcio prosse- um substituto para papai! Isso era muito contrâ meu dôsejo íntimo,
guiu golpeando-a com ódio feroz. pois em minha concepção um pai deveria ser insubstituívei. Mas eu
, Os lindos olhos azuis gue costumavam cintilar naquele rosto precisava de um homem que correspondesse a meus anseios, minhã
rosado tomaram uma cor afogueada terrivelmente assustadora. Lúcio carência afetiva e meu desejo de um pai que me governasse da forma
estava surdo e cego aos apelos. |unto a um grande portão que dava mais amorosa e pacífica que existisse! só que esse homem jamais
para a rua, Maria caiu. poderia vir a partilhar o amor de mamãe comigo, isso não!!
Sebastião, [oana e outras pessoas se acercaram dela. Jatos de Muitos pretensos pais passaram por meu escrutínio infantil du-
sangue fluíam dos orifícios abertos pela faca. Sua blusa, toda ras- rante essa árdua procura. Dei-me conta de que, por mais ideal que
gada, deixava ver os seios, ambos cravejados de furos enormes. Ela fosse o candidato escrutinado, eu não poderia tê-io por tempo iíte-
fazia esforço para chorar, os jatos aumentavam grandemente. Lúcio, gral, e isso por si só era grandemente desanimador.
,,,)
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que se escondia por trás da escala musical, liberado apenas pelo som
Aumentava o fascínio que eu sentia pelos homens, mas não se da raelodia encantadora que ele táo bem executava.
tratava de pura curiosidade em descobrir a sexualidade neles, como
aconteceu alguns anos antes. Eu já sabia como eles se comportavam Mamãe, meu modelo ideal e único, de cujas atitudes e costumes
sexualmente. Minha busca ela baseada uo arnor ágape, o tipo que eu aprendia cada pequeno detalhe anexando-o fielmente à minha per-
se fundamenta em princípios altruístas, e que independe da sexuali- sonalidade em formação, era uma mulher de origem humilde que
dade para ter êxito. nasceu para ser reprodutora, esposa e doméstica irrepreensível! Sua
beleza física era a personificação da púreza agreste, que não necessita
A procura do amor ideal tornou-se como que uma obsessão que
Ce artifícios para se realçar. Cabelos negros ondulados, nariz e lábios
eu cultivava com um orgulho ostentoso e aberto; meus atos e reações
pequenos e harrnoniosos traços faciais, Sua extrema preocupação com
tornavam manifestos os anseios escondidos em meu espírito sedento
de afeto. Um inexprimível gosto devorante, por qualquer que fosse o ganhar o necessário sustento diário da família, para que papai pu-
desse poupar para o futuro, a movia a esforços incríveis! Ela for-
a demonstração de carinho feita a mim, passou a permear meu dia-
a-dia. Um beijo, então, era um arrebatamento ao terceiro céu onde necia refeições em marmita para fora. Tinha que preparar enormes
quantidades de alimentos.
meus devaneios encontravam expressão e motivo! Cada olhar, cada
gesto meu, era cuidadosamente dócil e meigo, com o objetivo de Mas nunca a vi reclamanclo de nada! Era o símbolo da paz em
atrair a atenção do príncipe encantado de minhas fantasias amorosas. pessoa. Seu silêncio reyereirte ante as explosões de papai me marcou
para sempre.
Papai dedicava-se à construção civil. Isso lhe absorvia todo o
tempo disponível. Ele era um apaixonado pela criação de novos pro- Ela mantinha urna atitucle de total passividade e se limitava
jetos e se absorvia neles de modo quase idólatra. Saía de casa mttito a ouvir, r.rnnca replicava.
cedo de manhã, voltava ao meio-dia para um almoço rápido e ÍetoÍ- Algo rnais forte que rninha conssiência me impelia a querer ser
nava ao trabalho para voltar a casa muitas vezes após as 19 horas. a cópia fiel da personalidade fascinante dela.
Seu tipo físico era o europeu mediano, nem bonito, nem feio. Seus Quando a sós em seu quarto, envolvia-me em seu lindo xale
olhos eram azuis. português azul três tons, cantava as canções que ela gostava, diante
Era nm apaixonado pela música; dedicava-se ao acordeom, tenrlo do espelho, e saboreava com uma imaginação fértil e ansiosa o gosto
estudado em conceituadas escolas. Tocava com mestria; seus dedos cla feminilidade nos gestos e nas formas.
percorriam o teclado com a mágica rapidez macia das asas do colibri. Muitas vezes ela me surpreendia com as maçãs do rosto maisl
Eu me inebriava venclo-o tocar! que vermelhas e com batom nos lábios. Nunca esbravejava comigo,
Durante esses gostosos momentos musicais, eu sentia meu espírito mas deixava bem claro que não aprovava merr proceder, e sempre
fundir-se ao de papai; nada, exceto a música, era capaz de propiciar dizia em acréscimo que aquelas coisas não eram apropriadas para
o elo que faltava entre nós, liganclo-nos um ao outro, ainda que miÍ4.
transitoriamente e nos fazendo reconhecer ao cruzar os olhares que Mas iamais consegui abdicar de viver a ferninilidade latente que
uma força amorosa penxeava nossa vontade! Ele gostava de fechar os pulsava mais alto a cada dia.
olhos ao tocar. Outras vezes mirava o vazio do alto do teto e muitas Visto que minha procura pelo amor ideal prosseguia agora mais
vezes me piscava um olho e então sorria, intensamente, acentuava-se também minha ansiedacle em descobrir
Como eram deliciosos aqueles motnentos em que eu e papai pa- em qrtalquer rapaz aLt homem em quem eu achasse alguma simpatia,
recíamos ser um, tal era o poder misterioso que a mítsica exercia sua disposição em corresponder a minha secle de amor. Então os na-
sobre nós! morados se sucediam e sem que ao menos soubessem que eu os con-
Não lhe faltavam convites para bailes todos os fins de semana, siderava como tais, porque eu me limitava a simplesmente amá-los
e todos na região se não o conhecessem pessoalmente, pelo menos já platonicamente; nunca me lembro de ter tido coragem de me declarar
tinham ouvido falar de sua grancle aptidão musical. a algum deles.
Se para mim era um castigo meu relacionamento quotidiano Quando um homem mc denronstrava atencão, ocorria em minha
com papai devido a nossa destoância de comportamento, ett conside- lnente uma curiosa superposi<:ão de imagens que oscilava entre duas
rava castigo duplo saber que ele estava tocando em algum lugar longe impressões que se funcliam. A primeira, de carinho paternal, me ins-
dos meus olhos, impedindo-me de renovar com ele aquele amor secreto
pirava segurança e proteção. A segunda imagem me mostrava um

24 25
homem disposto a me amar e receber meu carinho independente de séculos intermináveis. Um medo frio me percorria dos pés à cabcça
qualquer ligação familiar. durante aquela espera que pressagiava transtornos. Passava das 2L
Itoras quando mamãe chegou, dirigindo-se a tneu quarto.
Como me faltasse a coragem dc tornar claros meus sentimentos
com medo de uma decepção, nunca pttdc saber ao certo se o homem famais esquecerei a visão de seu semblante grave e preocupado;
seria meu pai ou meu amado. tampouco esquecerei da melodia que tocava no rádio naquele mo-
Os dias me alcançaram no últinro ano da escola primária. A mento: "Si non avessi piü te" com Gianni Morandi. Se mamãe havia
perspectiva de ter que enfrentar o ginásio era amedrontante. chorado em presença do diretor Çomo se podia ver em seus olhos, o
assunto da palestra devia ter sido bem delicado mesmo! Ela estava
|á no ginásio, irreprecnsivclnrctrtc dcvotado a aprender com tão diferente do que costumeiramente era!
rapidez, obtinha notas invej/rvcis e scrnpre o 1." lugar em francês.
Sentou-se a meu lado, fixou seu olhar no meu e disse com a
Porém os professores notarittrt logo meu desajuste em relação aos
colegas e sem querer dcrnonstrar, discriminavam-me, tornando vãos voz entrecortada pela angústia: "Por que nunca me contou?!
os esforços que eu fazia para scr o melhor. Preferiu esconder tal coisa de mim- por tão longo tempo?! Acaso não
confiava que sua própria mãe lhe pudesse entender e tentar the ajudar
Programou-se um festival da canção franco-brasileira. Desenvol-
a levar esse fardo?! Queira Deus que, como o diretor disse, ainda
veu-se uma pesquisa para descobrir talentos musicais a fim de orga- haja tempo e nós possamos ajuciáJo e que seu problema ainda tenha
nizar o show que teria lugar num ginásio de esportes em Manaus. jeito! O diretor quer falar com você amanhã à noite, e me pediu que
Lorys Ádreor foi eleito por unanimidade, pois, segundo diziam, pos- o avisasse que você deverá contar-lhe toda a verdade sobre seu
suía belo timbre de voz, boa dicção e bons conhecimentos que o problema!"
habilitavam a apresentar alguns dos sucessos do hit-parade francês.
As palavras de mamãe ecoavam aos meus ouvidos juntamente
Absolutamente "NÃO", foi a resposta da professora organi- com aquela música tão sentimental, e foram se fixando em minha
zadoru. "Lorys é um garoto diferente em essência dos dcmais, extre- mente fazendo minha alma se oontorcer de angústia e medo.
mamente efeminado. Que diriam as pessoas acl vê-lo dublando Michel
Na noite seguinte, eram 20 horas quando rne apresentei ao di-
Polnareff, Christophe ou Bernard Sauvat?" retor. Ele falava conrigo ntlm tom calmo porém muito meloso, que ao
"Acham que teria algum sincronismo entre essa clelicacleza cor- invés de me inspirar confiar.rça me causava repulsa.
de-rosa e os másculos ídolos que acabo de çitar?" "Então você é Lorys Ádleon, o gêr.rio de nosso colégio?!"
Eu possuía um projetor de slídes de 35mm. A dirigente soube - "Sim, sou Lorys Ádreon, embora niro seja gênio"'
disso e, como consolo, inventaranr a idéia idiota de que eu ficasse -EIe rne falou sobre a reação dos professores e alunos diante do
escondido acima do palco, projetando imagens parisienses na parede meu modo de ser e disse que queria ajudar-me.
do fundo enquanto os "normais" se apresentassem orgull.rosamente. Em seguida fez algumas perguntas sobre minhas relações com
Compareci a dois ensaios, ficando em çima de uma estreita pa- os rapazes. Respondi a tudo com veracidade e convicção.
rede, tentando me equilibrar como um macaquinho com o projetor "Então você só consegue arlar os homens? Isso é o que
nas mãos. Desisti, muito abonecido e decepcionado. Não sei expri- -
quer?"
mir a dor que provei ao impacto daquela discriminação tão amarga. "Sim, desde muito pequeno aprendi a amá-los, embora meu
Mesmo porque eu já tinha dito a meus pais de minha indicacão
- maior seja encontrar um, Çom o qual possa permanecer para
desejo
como intérprete, e explicar-lhes satisfatoriamente o motivo de não sempre, q11r315|9:g*C -_respeitand-o-_q _qprno meu dono."
mais me apresentar foi bastante embaraçoso. O diretor afirmou que se eu já tinha minha posição firmada,
ele não poderia fazer mais nada com relação à minha educação sexual
Mais verdades chocantes estavam por eclodir. para desequili-
brar-me ainda mais. Numa noitinha, o diretor do colégio foi pessoal- e orclenou que eu me retirasse.
mente até nossa casa para solicitar que mamàe comparecesse em sua Pela primeira vez em toda minha vida scntj-me vitorioso. Não
sala, pois tinha um assunto mujto delicaclo a tratar com ela. mc cleixei intimidar cliante da severidade daquele homem autoritário.
Eu permaneci em casa em meu quarto, ouvindo rádio, com a Entrementes papai abriu sociedade com um homem chamado
alma em pânico, pois podia perceber que ao voltar a casa, mamãe Antônio, casado, 35 anos, pai de um casal de filhos. Papai gostava
não me traria nenhuma boa notícia. As horas tinham a duracão de muito de ir pescar com ele. Num sábado à tarde, preparavam-se para

26 27
sair quando ele se aptoximou de mim e convi<trou-me insistentemente Conversárvamos sobre a quantidade de peixes que tinham pegado
para acompanhá-los. Prpai conoordou e fui corn eles. quando ele apressou o passo alcançando-me e me abraçou com força.
Durante a viallcrn rlc canoa a rxotor, notei que ele me olhava Assustei+ne mas ele me acalmou com um beijo terno e prolongado.
de uma maneira nrtrito csllanira. Qrtanclo fomos dcscmbarcar na praia, Fiquei estupefato, sentiriclo o gosto cluctrte ciaqucla boca adulta que
ele saltou e tomour.r.rc iro colo para impedir que cu pisasse a água parecia querer engolir a minha, na fúria clo descjo que ardia naquele
ainda meio funda, pois havia o perigo de arraias venenosas em toda homem. Então ele falou nurn tor.n confiante:
í'N[su pequeno e frirgil Lorys,
aquela extensão. fique aqui, não fuja de mim,
Senti-me muito bcnr onr scLls braços e olhando por cima dos -
não fale nada, vou lhe explicar o que sinto. Quero você."
ombros dele com os braços cnvoltos em sell pescoço via papai que 'íNão, por favor não faça isso! Papai virâ a nossa procura
andava com cuidado nrais atnis dc nós. e nos- matará se vir uma coisa dessas! Pare com isso!"
Provei uma goslosa scnsação dc ploteção durante aqueles minu- Ele parecia surdo a meu pedido aflito. Beijava-me e mordia
tos que permaneci ablaçado a clc. Dcsejci que se prolongassem mais meus lábios e pesooço apettando-me contra seu peito ordenando que
tempo. Numa linguagem muda meir olhar tentava expressar-lhe meu eu me despisse, agora jei num tom quase implorante.
prazer por estar em seus braços. Acho que ele me entendeu, pois do- Continuei inflexível até que ele raciocinou um pouco sobre o
brava o pescoço yez ou outra esfregando a barba em minhas mãos. perigo daquela aventura e mudou de planos avisando-me:
Chegando à areia seca, colocou-me gentilmente no chão e apa- "preparq;qe, pois não desistirei de querer você. Você já ná9 §
nhou a mochila que oLl tazia, enquanto nos encaminhávamos para uma -pllra criarrça. O mundo já lhe cnsinoLt o prazcr da carne: não há
o lago onde iriam pescar. motivo de medo ou forma de deter o seu destino, pois foi para isso
Papai e os demais estenderam uma enorme malhadeiral fixan- que você nasceu."
do-a com varões à boca do lago para qLle os peixes ficassem presos Seguin-ros viagein. Ao chegarrr-los, papai estava ocupado virando
a ela ao tentarem fugir, assustados pelo bater dos homens na água duas jatuaranasl sobre as brasas mas alçou o olhar e não disfarçou
cofll varas e paus. ulr ar dc dúvida e reprovação pela minha longa ausência. Durante
Enquanto eies sc ocupavam disso, comecei a percorrer a praia aquela noite os homens beberam muito e comeram muitos peixes
na areia quente, divertindo-me ccm os maçaricos brincalhões, que assados, enquanto papai tocava acorcleom acompanhaclo por dois ho-
corriam assustados à minha aproximação. Vez ou outra, boiavam mens, um ao violão e olltro ao pandeiro.
botos empenhados er,r apanlrar peixes, dando espirros que se assc- Aqueles homens ativados pelo fogo da bebida, dançavam entre
nrelham aos humanos. si, numa euforia cambaleante e clesordenada. Alguma coisa estava
O sol cintilava no banzeiro que o vento erguia nas águas pardas irnpedirrdo naqnela noite que o misterioso elo de música me unisse
do Madeira. a papai.
Eu passeava, absorto no enlevo calmo da paisagem agrcste, a De repente, scm nenhum aviso, Antônio tomou-me nos braços
meditar. e saiu dançar.rclo cornigo. Ele me fixava o olhar duma forma tão pe-
|á se podia ouvir ao longe o alarido clos l-romens tangcndo os netrante, que deixava bem claro seu insinuante aviso na praia. Es-
peixes para sua armadilha fatal. tando em seus bla<;os, ser-ltindo o gostoso embalo de seu corpo ao
Segui, sabor:eando cada particularidade das maravilhas que meus dançar e o aperto forte de sua mão, eu olhava para papai e, perce-
olhos podiam ver, até que o sol ficou vermelho-larairja, e desapare- bendo que não acontecia aqucla ligação tão agradável que nos iden-
ceu Ientamente por trás da verdura encantadora da selva, do outro tificava quando ele tocava, tentei uma compensação pedindo a ele
lado do rio. Uma voz provinda da boca do igarapé à frente chamou minha valsa preferida.
por meu nome. Olhando yez para Antônio, yez paru papai, ao som daquela
Era Antônio a procurar-me, preocupado com minha longa au- música tão linda que tantas vezes me fascinou muito ao observálo
sência.. Ordenou-me que seguisse i) sua frente de volta ao tapiry2 tocando, urna realidade se mauifestou em mim.
de que já se podiam veÍ as luzes das Iampariiras acesas. Eu havia encontrado um pai substituto, carinhoso, atencioso e
bom em Antônio. Finalmente, a procura de um pai chegara ao fim.
I Rede longa de malha para prender peixes.
Casebre de madeira coberto coln palhas. t Peixe que corresponde ao "matrinchã" do Amazonas

28 29
Eu não queria ter um pai que amasse apenas inspirado pelos acordes Fiquei mudo enquanto ele me tjrava a toalha. Despiu_se de_
da música. Eu queria um que me provãsse seu àmor vinte e quatro e puxou-me para si beijando minha boca com forçai daí mor_
horas por dia. E Antônio estava ali abraçado a mim, me ofereõendo !T:li
oeu levemente meu pescoço descendo pelo corpo
tudo aquilo. até as-nádegas, as
quais-beijava e acariciaví nervosam.nà tr...rdo
Mas eu estava confuso, devido à proposta dele envolvendo re- e ofegandoi
lacionamento sexual. Não posso negar quJa sexualidade despertava
, Sentia-me tão culpado quanto quem está cometendo um sacri_
não podia fizer naãa, no fúao eu era mesmo cúmplice,
em mim desejos, mas ele me inspirava o amor paternal e um pai lé§,:1nr.:
pors sentia muito prazer naquilo. "
não deveria desejar seu filho sexualmente.
, Da penetração ao orgasmo foi bem rápido. Ao sentir o desafogo
do orgasmo, ele gr_unhiu "igual a un,
. Eu queria seus carinhos. Mas as írnicas barreiras que me difi- lu*rit ao que ;b;; ; JéL"u
cultavam o relacionamento com Antônio eram ele ser cãsado e ter me mordeu os ombro-s
que aceitar as relações sexuais. .com tanta força que mê arrancou gritos os"
quais abafei no colchão!! Ficou alguns minutos resfolegando'áeitado
Naquela noite fui dormir antes de todos. sobre mim; depois levantou-se, toriou banho ,uiu upãruauÀ.rrt..
Quando o dia clareou, eu nem sequer esperei pela merenda "
- Fiquei deitado nu sobre os lençóis amassados, sentindo_me
-Minhao
que os homens preparavam. Disse a papai que os esperaria na praia réu mais e o objeto mais sujo da face áu r"r*.
-desprezível
perto de onde a canoa estava amarrada. Durante o percurso de volta, consciência me condenava porque eu tuàira a própria casa de
meus
não esperei que Antônio me carregasse, mas fui sozinho por dentro pais e a esposa dele. por mãis inacreditável quó pu'."fu,-ãrru
d'água na frente deles e sentei-me na proa. Não ousei olhar sequer tamente meu raciocínio! euanto me doía aquelâ sensáçao
.iu
"*u-
de curpa
uma vez para trás para evitar vê-lo. que me invadia a alma? porém essa não foi ã única
vez.
Tomei a resolução de me esconder dele a cada vez que viesse Ele me levava de carro a lugares distantes e a loucura daquele
rr casa, enrbora ardesse de vontade de poder provar de novo o con- amor-proibido prosseguiu sem quJeu tivesse a mínima to.fu a"'air".
tato de seu corpo com o meu. basta !

Eu já não era absolutamente uma pura criança como ele fez Quando completei doze anos ele se afastou. Eu estava tão
questão de frisar, mas nem por isso concordava em me deixar levar acostumado a ele que era como se não soubesse
tão facilnrente por ele. Também me repugnavam as palavras dele ,:1d9. Eu o procurei num bar uma noite em que -ri, ""riiruãr vi_
havia festa na
quando disse que eu "tinha nascido para dar prazer ãos homens". cidade._Ao ver-me, chamou-me para fora e, olhando ,"u"rurrLni"
Não conseguia de lorma alguma aceitar aquele negro destino de ser meus olhos, disse: "n
í'Acabou!
mero objeto de prazer a outros e ainda mais por imposição fatalista! Minha esposa anda muito desconfiada e afinal
Evitei me defrontar com ele por um bom tempo. Num domingo,
- destruir meu lar pra ficar com você, não é?,,
não vou
porém, minha família se ausentou para um passeio mas eu fiquei ém saí dali odiando os rromens e desejando vê-los todos mortos!
casa. [urei que nunca mais acreditaria n_as palavras ae ,"nhum á.rgrãçuao
Tomava um banho quando ouvi palmas no portão. Gritei que a nem que o visse chorar lágrimas de sãngue.
pessoa aguardasse, pois
iria atender assim que saísse do banho. Ênro-
Iei-me numa toalha e fui à janela, mas nãà pude ver a pessoa, por
isso abri um pouco a porta a fim de poder atend.r ,"* sair. Sim
oue eu tivesse tempo de esboçar um gesto, Antônio empurrou a porta 3
com determinação e entrou. Rápiclo fechou a porta a chãve e abraçou-
me enquanto falava: ILUSÃO À ITALIANA
"Esperei muito por esse momento de estar a sós com você
para -poder extravasar esse grande desejo que sinto há longo tempo!,'
Arrastou-me para meu quarto. Quando me sentei sobre a cama Papai costumava ..B.
e tqntei falar, ele tapou minha boca levgmente, dizendo: _ouvir os concertos da B. C. de Londres,,
t e da "Rádio Exterior de Espafia,, de Madri.
I. - lá sei o que:vfi ã\,àrir: soú ôasádo,:J anos, pai de dois filhos,l Eu vivia trancado no quarto ouyindo concertos em
rnrírs c daí?! Que importa tudo isso? Sou infeliz, entende? Só sintol cada yez mais os amaya, pois ,eus ,"o.J., discos, e
ltvcrtlirdciro ptazer com garotos como você, entende] -
t .rut*rL
dor e o desespero uos quuis minha ulm, estuva aprisionada.
"riririàrn "
30
3t
t-
f,Fi'' l',rl: r '

Meu professor, porérn, muito cauteloso, pediu o máximo sigilo


Comecei a escrever um Diário, no qual passei a anotar tudo o
sobre o conteúdo de nossa palestra. Ademais, disse ele, "ninguém
que se passava comigo e o escondia debiixo de meu colchão' Nele
podia afirmar de primeira vista qlte eu era um paciente transexual,
.lu ,áfui, fotografiaí de meus artistas preferidos, desenhava flores
um "Bom-dia' a menos que fosse subrnetido a uma sórie de exames, e provavelmente
deca-lques. Eu o cumprimentãva co11l
"-pi"grrà
qrà.1à'o Diá.rio',
- ocorrências
'a cada manhã cluando escrevia nele as Íeitos no exterior, pois no Brasil ainda se sabia pouco sobre o transe-
xualismo",
á; ;i;;";; àespedia dele com "Êoa-noite, amigo silencioso"' quando
ia dormir. De qualquer forma havia esperança, e foi alicerçado nela que
Eu estava cursando o segundo ano ginasial. Mal conseguia su- encontrei forças de continuar vivendo.
portar ir à aula, expor-me a tantos vexames causados por meu§ co- Numa manhã chuvosa e cinzenta, eu descia por uma rua, quando,
legas de classe. inesperadamente, uma mulher que caminhava alguns passos à minha
i Eu não podia ir à toillete porque, úma vez' fui currado por um frente, caiu ao chão e começou a ter convulsões, espumando pela boca.
* bando de raóares violentos, e ãesdê e,tão tinha que suportar até o Sem perda de tempo, eu a soergui pelas costas e ajoelhando-me no
f ii"ut do per?odo sem urinar ou lavar as mãos. Via-me tão injusta- chão, apoiei seu corpo ao meu peito. Como estávamos em frente a
às quais tinha direito que uma casa onde havia uma senhora no quintal, gritei por ajuda.
f; mente privado das coisas mais simples
$ passei a desejar até a morte.
A senhora troLlxe um copo d'água e foi buscar socorro. Logo
A essa altura dos fatos, rneus pobres pais já estavam mais que voltou com dois homens que massageararn a doente com álcool can-
conscientes de que eu era unta "criança-problema"' forado e não demorou muito ela recobrou os sentidos.
Através do diretor do colégio, mamãe veio a saber que se me Um deles se ofereceu para levá-la para casa e ela aceitou. De-
aplicavam o título científico de "homossexual". Para eles e para
*iÍn, .rr" título tinha uma conotação tão sórdida e imoral, que "'
*.
;:H ,", "r1'. :, i "":?, :?: "
raramente se ousava falar nele. pcis nunca a tinha visto ant{s§ectetaila de F;r-.c.r.rr Fr,.,..rÀ- ^ .. F

Devo porém confessar que a tal medonha palavra soava bem Eta então convidou-me uf u?í,r8rr*** *dü; qre.ffi ll;Ii'#;a: Desoorr'r
1!

menos incomodativa aos meus ouvidos do que os termos populares b',IÉf§Hh[i,T,ÂiÀ{í


tais como: veado, bicha, macho-fêmea, fresco etc' que inundavam o ;:T.i,"H:,::T.",h''*:'t1,|ffi%t**1ffi ff ltr"ff
vocabulário do colégio. nclultos, senrlo qrrc uãl dot hdmens cra casado'c o otitro bstâva noivo.,
A história da piimeira operação de mudança de sexo t-* Çb#.f As mocas eram soltciras. Ser'fiu-rdq rlll.'xícara de'-.chá pom hjsloires ,- .
tine lorsetts.n ,..ndiu ttma tênue 1uz de esperança no fundo dc c enquanto prrrrha chá c,n rui, xrCdr:a.\./rli§sc quc gostou nruito de veq ;
i
nntttmE:*Embora as informações estivessem grandemente alte- rrrirrhr atitude pl'r'st0tiva diaritr-fuxert'portão.ao.socor.rgJ 4 ryEE ' , j

radas pelas lenclas absurdas que as pessoas senlpre agregam aos


fatos rôais, fui consultar urn piofessor de português, -talvez o único "Gostaria de ter uma criança assim como vocô trabalhando
,o *iesio' capaz de me dar aienção, e uma boa explicaçã. sobre o aqui -em casa me ajudando Lrm poucc. Você trabalha em algum lugar?"
assunto. "Não senhora, e ficaria muito contente porque esse seria meu
Para minha alegria, ele possuía muita matéria sobre o assunto, - emprego!"
primeiro
que ganhara um nome inteiramente inédito. o termo eta transexua-
"Está bem, fale com seus pais e, se concordarem, pode co-
l'isinã, palavra que se referia à passagem de um sexo para outro. O - amanhã mesmo às sete horas."
lneçar
prof"rrôr contoú-me em detalheí a vida do primeiro_transexual. Fui-
Voltei para casa pulando de alegria. Corri o mais que pude e ao
me identificando imediatamente com e1e. Havia solução para meu chegar contei logo a meus pais, porém lhes disse que o trabalho seria
problema!! Graças a Deus!
Décadas antes de meu nascimento, alguém já passara pelos
o de cuiclar de uma horta, porque se eles soubessem que seria serviço
doméstico, certamente não permitiriam.
,mesmos sofrimentos qlle eu e conseguira o ajustamen-to através da
cirurgia! Essa nova pérspectiva me- tornou consciente de que eu não
Na manhã seguinte, para minha grande surpresa, minha patroa
mandou qlle eu desse água na horta como primeira tarefa!! Depois,
era a-bsolutamente o "fônômeno aberrativo" que muitas vezes apli-
lembro-me muito bem, fui tomar o çafé da manhã e lavar a louça.
caya a mim mesmo. Eu não era o ítnico no mundo a apresentar total
disparidade elltre mente e sexo.
Minha falta de habilidade r-rão impediu que ela, com muito carinho,

33
32

't I
r\enSq.r
fosse me ensinando como fazer todos os seruiços domésticos. Feliz- estreitando-me contra seu peito; então acariciava todo meu corpo
mente era o mês de julho e eu estava em férias do colégio, porque dizendo palavras cheias de ternura e não escondia no brilho cinti-
sentia um cansaço tão grande devido à falta de costume, que não lante de seu olhar castanho que tinha uma sede incontrolável de
iria suportar ir às aulas à tarde. saciar seu desejo em mim, aque.te frágil ser, que lhe despertava amor
Quando as aulas recomeçaram, eu já estava bem acostumado, numa linguagem sem palavras.
e minha bondosa patroa muito satisfeita por ver meu inegável Acho que a pequenez de meu corpo que ainda nem apresentava
progresso. Como falavam somente em italiano eu ia aprendendo o sinais de puberdade, e a timidez que eu demonstrava, quando enco-
mais rápido possível. thido em seu colo, o inibiam de levar a vontade avante, embora eu
No princípio, estava um pouco inibido, porém em quatro meses não fosse tão tolo que não notasse o membro viril latejando de exci-
eu já falava o essencial num italiano clássico e bem pronunciado. Era tação sob minhas nádegas, e apalpando-o com as mãos provocasse-lhe
indizível o orgulho que eu sentia, ao ver que além do espanhol que quase sempre um estremecido orgasmo.
falava por herança e do francês que aprendia na escola, fora o por- Nunca chegamos a copular, mesmo quando saíamos a passear a
tuguês, estava acrescentando também o italiano e caminhando para algum lugar ermo. Em yez de Lorys, ele e os demais me chamavam
ser poliglota com tão pouca idade!! "Loly" que em italiano significa criança. E era a palavra Loli que
O tratamento que todos me davam naquela casa era o de um ele murmurava aos meus ouvidos enquanto mordiscava o lóbulo de
rnembro da família, não havia nenhuma discriminação. Especialmente minha orelha, beijando-me e esfregando a barba arrepiante em meu
às refeições, eu deveria estar com eles à mesa e comer muito, "senão pescoço.
não cresceria nunca". Aqueles foram dias que me trouxeram um "Loli, Loli, o que você fez para mim, que eu me tenha
pouco de alegria, ajudando-me a esquecer pelo menos temporaria- -
apaixonado dessa forma?! Ah! como eu gueria que você fosse uma
mente incomodantes problemas. menina de verdade para que eu esperasse que você crescesse e se
Com o passar do tempo, entretanto, um tipo de amizade muito tornasse minha para sempre perante Deus e os homens!!"
especial começou a se desenvolver entre o filho mais novo de minha "lllss eu sou uma menina! Senão, por que me quer assim?!
patroa e mim. Embora eu tivesse sempre em mente as decepções que - tenho que ser operado e pronto, serei uma menina como outra
Apenas
o relacionamento com os homens me acarretou, algo além de minha "
própria razáo me impelia em direção a ele.
qualquerl
"O
-'/ )
que está dizendô, minha criança tola?! Está sonhando
A demonstração de gratidão pelos serviços que eu the prestava -
acordada! Não existe tal coisa! Você será sempre assim como é, em-
era muito mais que simples agradecimento. Sempre incluía um elogio bora seja como uma menina na aparência!"
especial e carinhoso, exaltando minhas qualidades, meu modo de
Ele se recusava terminantemente a crer em mim com respeito à
fazer as coisas com atenção, que lhe agradava. Ele também demons-
cirurgia de definição sexual. Sempre que discutíamos sobre aquele
trava abertamente sua atração por mim.
assunto, ele se enervava muito, e seu aborrecimento mostrava um
Então os dias passavam e meu ceticismo diante de suas palavras indisfarçável ciúme pelo professor de português.
se mantinha duro e frio como mármore. Ademais, ele estava noivo
com uma moça de outra cidadezinha, e saber que era um homem já
"§[s pense que o 'professore' vai ter consciência como eu
comprometido, avolumava ainda mais a mttralha que se erguia entre tenho- e se controlar como eu para não se aproveitat e gozar no seu
nós. Não obstante todos esses empecilhos, havia no âmago de minha
corpo! 'Lascia stare', 'lascia stare' que um dia ele te pega de jeito,
e você vai aparecer aqui com'una faccia' deste tamanho."
mente um desejo forte e vivo, de que ele viesse um dia a provar-se o
homem ideal com o qual eu sonhava, e se desvencilhasse de tudo Eu gostava muito de Giuseppe, mas sentia tal raiva ao vê-lo
aquilo que nos separava, tornando possível nosso amor. falar daquele modo contra o professor, que às vezes o deixava fa-
Além de forte, ele era um homem muito bonito, de uma bon- lando sozinho.
dade calma e passiva. Ele seria capaz de despertar amor até na mais Ele nunca decidiu ir falar com o professor para obter uma expli-
fria e distante das mulhàies. Pfe-UeUpala+e Tlltto-com--niinha -SâAde caçáo, e assim deixar de pensar e dizer bobagens, por isso preparei-
fraca, e sempre me cômiiráva vidros de complexo vitamínico. lhe uma surpresa num sábado à tarde, que resolveu de vez o proble,ma.
Sei que ele sentia algo mais que pura attaçáo fraternal por Avisei de antemão ao professor Victor de que reservasse um
mim, porque sempre que ficávamos a sós, puxavaíme pela mão, horário no sábado à tarde, pois tinha um assunto muito importante

34 35
a tÍataÍ com e1e. Sabedor dos problemas que eu enfrentava, concor- Até que possa ser operado, terão passado pelo menos 5, e eu estarei
dou prontamente em esperar-me às quatro horas. com 40 anos. Serão 22 anos de diferença entre nós, compreende o
que isso representa?! Mais além, estarão outros problemas de ordem
Quase todas as tardes de sábado, Giuseppe me levava a dar um social que desabarão sobre nós."
pusseiÀ de caminhonete, e eSSa era a_ chance que eu _tinha de f,azê-lo
"Minha família vem de um país onde a educação tradicionalista
ôh.gu, à casa do professor. Quando passávamos bem defronte a e conservadora impera. |amais serão capazes de renunciar ao padrão
casà', pedi que paraite ali mesmo. Desci, abri sua porta e tomei-o
educacional que receberam, para se adaptarem à nossa realidade;
pela mão, puxando-o para fora.
por isso, querido Loli, estamos impedidos de sequer sonhar com um
"lg1fis cá, Giuseppe! Tenho uma grande'surpresa para você' futuro juntos. Entende agora?! Viu por que tenho motivos de sobra
-
venha!" para estar tão triste?!"
subimos a escada e bati na porta. Quando professor victor
Quando ele deu partida no veículo para voltarmos a casa, eu
abriu, Giuseppe não conteve o espanto. estava mudo e perplexo. Queria fazerJhe uma surpresa para me rir
O professor nos mandou entrar e acalmou Giuseppe, passando de sua ignorante teimosia em não aceitat minhas palavras como fato,
a relatai tudo o que havia me explicado, mostrando as provas foto- e eis-me ali, surpreso, ao ver que aquele homem escondia dentro do
ilii"r; irrefutáveis. O italianoElê quedou-se boquiaberto, custando a coração, um verdadeiro arsenal de realiclades inegáveis e autênticas,
ãr". seus olhos e ouvidos. estava agora bem consciente de sobre as quais eu jamais sequer sonhara.
qre ". airiu a verdade e isto, ao invés de o deixar alegre, o entristecia.
", Na manhã seguinte, o sol me achou ainda na cama. Um desânimo
Por quê? me calcinava os ossos, impedindo.me qualquer iniciativa. Mamãe veio
Na volta expus a Giuseppe minha dúvida. Por que ele não Íicara ao quarto com uma xícara de chá. Esboçou um sorriso sem graça e
contente ao ver que eu pod-eria ser tlma pessoa normal, podendo disse:
assim desposá-lo? 'Ípsg 20 minutos para ver sua patroa chegando aqui per-
Parou a caminhonete e disse muito emocionado: -
guntando: 'Q6s4 há sucesso?!"'r
íílslfl, tenho motivos de sobra para estar triste' Ouça com -
Eu, porém, não queria mais continuar trabalhando em sua casa,
- estoú noivo há bastante
atenção: tempô e a moça já está ficando para evitar encontrar-me com Giuseppe. Mamãe estava absolutamente
.unrádu de esperar minha decisão. Eu não a amo ' Ela é ótfá tJe certa. Palmas no portão e a yoz que eu tão bem conhecia me fizeram
pai, e sua t a" 3a é idosa. Poderá ficar só a qualquer -momento ' disparar o coração.
Continuei o namoro, porque ela parece ser muito boa, trabalhadeira' í'[,gsn giorno, signora, cosa há sncesso! Loli não apareceu
e como eu também sou ôrfão dé pai, correndo o mesmo risco que hoje!- Está doente?"
ã.t"i que deveria pensar num-casamento, para pelo menos ter Tomei a palavra de mamãe, e disse que estava com dor em
aleuém que cuidasse dé mim no futuro' Sei que não a amo'
"tr, mas
todos os ossos do corpo. [nventei a fraca desculpa de que mexer
;;i;;,'.á; a convivência, venha a nascer- amor em mim pcr ela' Esse muito con: água estava me fazendo mal, e que ela me perdoasse,
;;;Ã;;à, '-,, porém, não é'absolutamente do agrado da 'Mamma" nem
mas doravante não iria poder trabalhar mais. Que grande decepção
de mrnnas rrmas' para ela! E para mim, que grande incômodo ter qrre lhe mentir
..Quanto a etl e você, desde que começou a trabalhaf. conosco,
daquela maneira!
qr" ,., jeito meigo e carínhoso dê tratar-nos, sua intrépida - alegria Uma insuportável sensaçáo de vazio tomou então de novo conta
^;;t;r; trabalhos que
á"-frrár"à, 'Mamma' lhe ordena, sua honestidade e dos meus dias. O tédio veio rle fazer desejar poder voltar a trabalhar
; de espírito me impressionaram ' Não apenas-forte
fazendo de
atração naquela casa, onde meu destino sombrio brilhara como um raio dou-
mas operándo em minha alma uma
-ú^r.u admiradôr, rado de sol. Mas agora não me era mais possível estar lá, entre
física e espiritual por você, Loli." aquelas pessoas tão amáveis; eu não tinha coragem suficiente para
"Mas para mim, você é uma pessoa pura' Sua fragilidade física olhar nos olhos do homem que representava um encantador prêmio,
enorme
me inspira um respeiio tão grande que anula a força do des-ejo que jamais seria meu.
pulsanie em mim, a cada u7, qu" nossos corpos se tocam'"
"Também existe outro problema, grande dernais contra nós' A
I
idade! Tenho i5 anos. uoóê vai completar 73, nos próximos dias. O que aconteceu?

36
tt
Meu silencioso e discreto amigo, o Diário, voltou a ver minhas que honrou perante mim e o mundo sua afirmação de pertencer ao
lágrimas caírem sobre as linhas ao som do "Pas de deux", "None sexo forte. Comecei a pressionar meus pais a me deixarem ir para
but alonely heart" ou "Swan lake", cada vez que eu lhe escrevia Manaus.
como fora meu dia.
O tempo foi passando, e o esquecimento começava a cicatrizar
, . Concebi explicações para dar-lhes mas não me pareciam plau-
síveis até que, após várioi dias de conflitos, resolverarn que et- via-
a ferida que ficara, quando numa manhã ensolarada, um convite jaria no barco da quinta-feira, para chegar no sábado ao àmanhecer.
de casamento foi entregue a mamãe enquanto eu fui à feira. Numa Despedi-;me dos demais em casa, porém mamãe foi levar-me a
das bancas de frutas, havia um rádio a pilhas, ligado a pleno volume'
.bordo._Assim
-
que atou minha rede num lugar cuidadosamente esco-
O locutor anunciou o título de uma música, e resolvi prestar atenção. thido, livre dos ventos frios que soprariam ã noite, entregou-me uma
Era italiana, e seu título era curioso "Il maestro di violino". Parei maleta n-a qual estavam minhas roupas e uma quantia ãm dinheiro
para ouvir. que eu deveria usar para pagar a passagem e um mês de pensionato
Ao som de uma lindíssima melodia, um professor ensinava sua ao chegar em Manaui, sobrando alguns írocados puru o, aàc"s.
aluna de violino. Entre outras coisas, ele cantava num tom de lamen- Foi indizível a angústia que senti quando o sinal de bordo tocou
to, que sem que ela soubesse ele estava apaixonado, mas era tarde, p-ara que descessem as pessoas que não iam viajar. Eu e mamãe nos
porque tinha trinta anos a mais que a aluna. No final da música a abraçamos fortemente e não pudemos conter as"lágrimas.
aluna de 15 anos revela que o ama e ambos se casam!
Quando enxuguei as lágrimas dos olhos, vi o dono da banca - Assim que não mais pude ver o cais, já com o braço cansado
de tanto acenar, encolhi-me rjentro da rede a meditar sobre a incerteza
me observando ali parado.
do que viria a seguir, quando chegasse a Manaus.
Uma sensação de desolação me tomou, quando voltei e vi, sobre
a mesa da sala, o convite de casamento de Giuseppe. |oguei ao chão o A bordo havia muita gente, música, bebidas e refrigerantes; ao
paneiro que ttazia preso às costas, e corri o mais que pude em direção lado, alguns .iovens se divertiam num ruicloso iogo de ,r.ár. O barco
à beira do rio. As lágrimas me embaciavam a visão, mas não senti DAraya muitas vezes para embarcar e desembarcar pessoas e slras
vergonha das pessoas pelas quais passava. bagagens. Também rrrodutos do extrativismo local, comô a castanha,
Eu só queria, naquela hora, a cornpanhia da natuteza. Que ne- sorva. borracha, muito peixe salgado e farinha de mandioca.
nhum humano detestável e impotente como eu se acercasse para tentar Uma infinidade de animais era colocada numa parte da oopa,
me consolar. e era muito enqracado ouvir o barulho confuso deles. misturado ao
Os carapanãs ávidos de sangue que infestavam o ar me obriga- das galinhas. galos, patos e pássaros selvagens aprisionados em gaiolas.
ram a voltar para casa, quando a noite, que os índios chamam lmasine agora o convés, atravancado por um emaranhado mult!
"Ipoetona", cobriu a terta. cor de redes, cada qual com uma ou duas pessoas dentro.
Para completar meu abalo emocional, ao chegar em casa disse- Comecei a reler os escritos do Diário. mas as lembrancas do pas-
ram-me que papai iria tocar na festa dos noivos! sado me abriam de novo as çicatrizes quase fechadas pelo esrrueci-
Tranquei-me no quarto e desafoguei as lágrimas, abafando os mento. Por isso fecheio de novo e o escondi sob as roupas na maleta.
soluços no travesseiro. Quando um pouco de calma finalmente sobre- Vencido pelo cansaço, adormeci e sonhei com minha novu p"rrp""-
veio, passei a escrever no Diário, meu então único e mudo confidente. tiva de vida em Manaus, vendo-me sempre só e apreensivb entre
rostos estranhos, passando por lugares nunca antes vistos.
Um barulho de pratos e.talheres iunto à Íala alta de muitas pes-
soas me fez despertar quando o jantar estava sendo servido. o sol
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iá se tinha escondido no poente e as luzes do barco foram acesas.
F,sperei pela segunda mesa para jantar, pois a primeira estava muito
cheia de-.passageiros. Quando me sentei, notei dois passageiros de
MERGULHO NO SILÊNCIO tipo nórdico que conversavam em sueco ou alemão.
Estavam bastante animados e parece que gostaram da comida,
Tornou-se impossível para mim ter que ficar morando ali, onde, embora não conseguissem comer a farinha d'águique lhes foi servida.
pela única vez em minha vida, provei o amor genuíno de um homem, Tanto a ÍnoÇa como o rapaz eram bem joveni e tinham lindos olhos

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azuis que vez ol't oufta crúzavam com meu olhar, mas senti algum a Tavar a louça do jantar. Ela notou minha tristeza e procurôu coÍtso-
receio e limiteime a lhes sorrir yez ou outra, sem lhes dirigir a palavra. lar-me, dizendo que o tempo me presentearia com outros bons amigos
Quando terminamos de jantar, voltei para a rede e, recostado, como aqueles.
fiquei observando as tênues luzinhas das lamparinas das casas que Não era porém a partida deles que me deixava assim; era a
ficavam para trás bem longe do barranco, à medida que o barco mudança súbita de ambiente e costumes, sentindo falta das pessoas
deslizava pela água. Empurrando com a ponta do pé na parede ao com as quais estava tão acostumado a viver, que me desequilibrava
.meu lado, comecei a me embalar na rede, cantando uma das poucas
emocionalmente.
músicas que sabia em inglês, "Unchained Melody", e ao terminar Entretanto, não podia permitir que o arrependimento de ter
de cantálà ouvi a voz do rapaz bem ao meu lado perguntando se vindo encontrasse expressão a ponto de voltar atrás, pois então seria
eu falava inglês. DisseJhe que não, mas que falava italiano e conhe- um enorme fracasso. Não, eu tinha que ficar, ser forte e vencer!
cia um pouco de francês.
O passar dos dias aproximou ainda mais eu e D. Laétcia, e quem
Eles eram suíços, disse a moça, e falavam essas línguas muito me observasse convivendo tão harmoniosamente, diria que ela era
bem. Apresentamo-nos. Ele, Alain, 25 anos, joalheiro, ela, Catherine,
mesmo minha mãe. Levava-me consigo a todos os lugares que fosse;
22, estudante, ambos de Zwiçh. Fizeram-me muitas perguntas sobre tinha imenso orgulho em dizer que ganhara um novo filho, quando
a Amazônia, o modo de vida das pessoas e anotavam as informações me apresentava às pessoas.
cuidadosamente.
Como todos ela também tinha, embora oculto, um trauma passa-
Uma coisa que pude notar neles quc me causou espanto e grande
do em alguma época de sua vida que lhe deixara profundas marcas.
satisfação, foi a naturalidade com que me olhavam e falavam comigo,
sem expressar nenhuma surpresa pelo meu modo de ser ou de falar. Cada yez que ela ouvia uma canção da qual também passei a
gostar muito, chamada "La chanson du Moulin Rouge" com Connie
Conversatnos animadamente, até que os bocejos do sono que
Francis, fumava muito, nervosamente, um cigarro após outro, e não
chegava nos avisavam que era hora de irmos para a rede. Bonne Nuit,
conseguia conter as lágrimas.
mes chers! À demain!
Que segredo se escondia por trás daquela música que a abalava
Dias depois, junto com os raios de sol, surgiam as primeiras tanto os nervos?
casas de Manaus bem ao longe, na borda do rio Negro. Alguns
"§sps época de minha vida, disse-me uma vez, fui uma
passageiros desembarcaram no "Porto da Panair", onde seus parentes - casada,
mulher muito bem posicionada. Amava muito meu esposo e
e amigos os esperavam. ainda o amo. Ele tornou-se um devasso, e gastou com mulheres sol-
Depois o barco seguiu até o porto da "Escadaria dos Remédios" teiras quase tudo o que tínhamos, por isso vi-me obrigada a me
onde nós desembarcamos. Meus amigos me disseram que ficariam separar dele, tão insuportável se tornou nossa vida. Essa música que
dois dias em Manaus e depois iriam a Belém, de avião. Pusemo-nos está tocando, era nosso tema de amor, por isso me faz chorar."
a procurar um bom pensionato. Lá estava a plaquinha,com letras Choramos juntos, embora ela nem sequer imaginasse qu"
amãrelas: "Pensão da dona Laércia". Ela mesma nos atendett à porta, tão bem mais jovem que ela, já soubesse o que era sofrer por amor."i,
..
com um sorriso muito franco e natural.
Após receber uma carta cle mamãe que chegou junto com outra
Aquela bondosa senhora notou meu estado de espírito alterado endereçada a mirn, mamãe Laércia passou a manter estrita vigilância
devido ã repentina mudança de lugar e ambiente e, compreendendo
sobre mim, principalmente se me visse conversando com um homem.
minha situação, disse-me num tom maternal que eu contasse com ela Nunca vim a saber ao certo sobre o que mamãe lhe escreveu, mas
como minha própria máe, e que estava disposta a ajudar-me no que posso deduzir que logicamente o fez por extrema preocupação com
fosse preciso para minha adaptação. Avisou-me dos perigos da cidade
meu futuro e minha integridade moral, que estavam então em peri-
grande, enquanto nos servia a merenda, falando num tom seguro e
goso jogo.
bondoso, exatamente como mamãe costumava fazê'lo.
Com nossa convivência, mamãe La&cia descobriu que eu gosta-
Saí com Alain e Catherine a dar um longo passeio por Manaus va extremamente de ler, e numa tarde em que o calor sufocante nos
e yoltamos pela hora do almoço' obrigou a sair para aliviar um pouco, enquanto andávamos pela beira
Quando partiram na segunda-feira à noite, novamente invadiu- do rio Negro à espera de alguma brisa refrescante, ela teve a idéia
me uma profunda solidão que procurei disfarçar, ajudando D' Laércia de apresentar-me a um professor de francês, Gilles Normand.

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Ele morava em uma casinha simples, mas muito bonita e bem de aprender o mais que pude, para assim poder mostrarJhes orgulho-
conservada. samente meu progresso, desde que chegara do interior.
Era um homem de pouco mais de 60 anos, de estatura mediana, Avisada de antemão de que teria mais dois hóspedes extras por
cabelos grisalhos e faces rosadas que parecia sentir-se bem em viver uma semana inteira, mamãe Laércia tratou de f.azet preparativos
na solidão de sua biblioteca particular. para a acomodação e conforto deles. Por fim chegaram num sábado,
Seu traços faciais ainda ostentavam uma certa beleza européia, no mesmo barco. Essa semana me pareceu sete séculos! Eram 6h50min.
e seus modos polidos e corteses o tornavam muito desejável à pri- Eu e mamãe Laércia tomávamos apressadamente a merenda da ma-
meira vista. nhã, quando o Prof. Normand chegou, para nos acompanhar até a
A Írieza de minha mão trêmula logo denunciou meu nervosismo, Escadaria dos Remédios, na recepção a meus pais.
quando mamãe Laérçia nos apresentou. Mas Monsieur Normand logo Minha ansiedade era tanta, que só consegui comer um pequeno
me colocou à vontade com sua hospitalidade generosa. Mostrou-nos bocado do delicioso beiju de goma feito na manteiga que eu gostava
a casa de cujo quintal se avistava o rio Negro abaixo, e se deteve tanto. E lá nos fomos, os três de braços dados, alegres e andando
um bom tempo na parte que mais me interessou a biblioteca. bem depressa chamando inocentemente a atenção dos transeuntes.
-
Quando lhe foi explicado meu amor pelos livros, ele ofereceu- Eram quase 8 horas quando o barco atracou, e mal a prancha
se para ajudar no que fosse necessário ao meu enriquecimento foi estendida, saltei sobre ela e corri ao convés abraçando calorosa-
intelectual. mente mamãe, e depois papai, que logo disseram estar muito admi-
Era inexprimível minha alegria, e logo escrevi a meus pais, rados com minha radical muclança de humor.
contando-lhes tudo. Terminadas as apresentacões, fomos todos à pensão, e trocamos
Grande parte dos costumes do Sr. Normand ainda conserva- em conversa as últimas novidades, enquanto nos serviam café com
va o delicioso estilo europeu, especialmente os de relacionamento bananas pacovão fritas. Como "tudo o que é bom dura pouco" (quan-
social e os hábitos alimentares. ta verdade contém essa frase secular!). a alegria que sentia naqueles
Ele tratava todas as pessoas com respeito e carinho incomuns, gostosos dias estava pouco a pouco sendo cercada, sem que eu sou-
que as induzia a gostar dele desde o primeiro momento. Preparava besse, por dias negros e amargos.
cuidadosamente suas próprias refeições, e entregava apenas a lim- Chegara, finalimente, a hora de ir consultar o médico especialista,
peza da casa e a lavagem da roupa a uma senhora mestiça que vinha que iria desvendar qual o terrível mistério que fazia de Lorys Ádreon
três vezes por semana, à qual ele rebatizara com o nome de Marie uma criatura ímpar. e diametralmente oposta aos demais humanos.
France. Durante a caminhada até a clínica. fui sentindo eniôos, suava
Aquela jovem senhora entendia cada gesto ou olhar do Sr. Nor- frio, tremia e empalidecia como um pedaco de paoel branco. Quase
mand, e o servia à mesa, como qualquer criada européia o faria, sem nem conseguia andar agarrado ao braço de mamãe, eneuanto paoai
qualquer dificuldade. Ela falava muito pouco, embora entendesse tudo dizia que eu me acalmasse Dorque o médico era um homem muito
quanto o professor lhe falava em francês. Eu e Marie France também bom, oue tinha estudado na Eurooa e que sem dúvida iria tratar muito
logo passamos a ser bons amigos. bem de mim, curando meu misterioso mal.
Foi na biblioteca do Sr. Normand que conheci os livros de psi- Ao entrarmos. o médico pediu a meus pais oue aguardassem
canálise de Freud. na ante-sala, pois desejava ter uma conversa particular comigo antes
De repente, algo estonteante como o "Complexo de Édipo", me da consulta.
f.az ver pura e simplesmente uma faceta do psiquismo sexual humano Contei-lhe tudo o que achei que devia, mas novamente omiti
que até então eu jamais sonhara existir! E em sucessão, vêm outras os incidentes sofridos aos 3 e aos 5 anos. Eu não the contei, porque
descobertas um tanto embaraçosas para meu então pouco conheci- achava os segredos tão terríveis e tão íntimos, que ninguém teria o
mento, que o Sr. Normand ajudava-me a compreender. direito de saber deles.
Os três meses de férias escolares já chegavam ao fim, e meus Bondosamente ele me explicou que eu não tinha nenhum moti-
pais deveriam vir a Manaus para cuidar dos papéis de minha matrí- vo de receio ou vergonha, porque eu não era absolutamente o írnico
cula para o próximo ano. En_quanto_eu .aguardava com ansiosa expec- paciente no mundo que o procurava para consulta, e que para saber
tativa uma carta que me avisasse da data em que chegariam, tràtei melhor qual o tipo de tratamento indicado a meu caso, eu deveria

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tirar a roupa e deitar-me para quc ele me examinasse. Senti-me como Enquanto eu me distraí um pouco, conversando com o honrcnl
um animalzinho encurralado, incapaz de qualquer gesto de fuga. qr" uttáu, os peixes, Amadeu peãiu licença e saiu, dizendo que so
Despi-me e me deitei, tenso como um fio de aço esticado. Ao làmbrara de uma coisa importante que tinha que f'azer, na qual não
contato daquelas mãos que percorriam meu corpo curiosas, fui rela- gastaria mais que cinco minutos. Éu nem sequer olhei para onde
xando um pouco mais, enquanto respondia às perguntas que me eram ele foi.
feitas. Pouco tempo depois ele voltou muito alegre, e sentou-se. nova-
mente, perguntándo ôe eu queria mais peixe' Disse sim, e ficamos
Meus pais foram chamados à sala, e o médico solicitou que eu
-dois sentadôs até que terminamos de comer. bem
por maii rlm pouco Então
saísse, coisa com que não concordei. Que maldito mistério era aquele?t
à1" grandes copos- de refresco de taperebá
Mamãe, percebendo que eu começava a me exaltar ficando já indeli- "o*p.ou
geladinho.
cado, sussutrou-me ao ouvido:
Depois me convidou para irmos mais adiante, onde muitos meni-
il "Filho, qual foi a vez que menti para você?! Acha que me nos pulâvam n'átgua. Sentãmos sobre um enorme tronco flutuante, e
daria- algum prazff enganáJo? Por favor, seja compreensivo! Deve
ficamos achando-graça dos garotos que atiravam seus colegas à- força
haver algum motivo válido para que o médico não queira que você
participe da conversa, filho. Ele estudou tantos anos; acha que não na água, enquantõ o incansável serviço de alto-falantes transmitia os
saberia o que é bom ou Ínau Dara seus pacientes?! De qualquer modo,
apaiionados recadinhos musicais. Quando é que eu pelo menos so-
n'haria que receberia também uma declaração de_ amor, naquela ma-
eu e seu pai teremos gue lhe contar sobre o que ele disser, pois
afinal o paciente é você." nha quàte de janeiro? Foi isso mesmo que o alto-falante anunciou:
"[1sns[o senhorita Lorys sentada em algum lugar deste por-
Ponderei rapidamente, e resolvi sair, mesmo sabendo que não era -
to! Alguém muito apaixonado por você lhe oferece esta linda música
absolutamente aquilo que eu queria fazer. Passou-se mais de uma
hora de espera angustiosa. I\4eus pais saíram. Estavam chorando! lãre Ribeiro, ô-o uru á"rrtug.r, de amor, e deseja que você
"tn,
descuira sozinha quem é e1e, e possa corresponder a todo o carinho
Irrompi em perguntas.
que lhe dedica no coração!!"
"Que aconteceu, gente?! Que foi que ele disse afinal?! Tenho
Para mim, aquilo só podia ser uma brincadeira, pois desde que
cura,- ou estou conderrado a morrer?! Respondam. por favor! Para
chegara a Manaui, jamais falei com alguém que pudesse ter. desen-
vocês estarem choranrjo. deve ser uma coisa terrível, meu Deus! Que ,,rolüdo tal sentimen[o por mim. Brinçadeira ou nâo, o caso foi capaz
desgraçado sou eu!" Silêncio! falaremos sobre isso na pensão, disse
papai. de me fazer descompassar o coração, quando a mútsica realmente
bonita e sentimental começou, e após a introdução uma voz român-
Onde buscar palar.,ras a<leqrradas p^ra expressâr o caos em que
minha mente entrou denois dessa cena?! tica cantou:
Ao chegarmos à pensão. papai mandou um rapaz ir depressa à "Tens a beleza da rosa,
casa do Prof. Nornrand. para clue ele viesse urgente falar com ele.
uma das flores mais formosas.
C)uando por fim cheírot. trancaram-se os quatro adultos no ouarto.
Era demais para mim! Se eta e1, quem carregava sobre os ombros o
Tu és a flor do meu linclo jardim,
e eu a quero só Para mim.
peso da culpa por minha anomalia, por que me negavam a palavra,
quando eu mais precisava saber o que foi que o médico havia des-
O teu suave Perfume,
às vezes causa-me ciúme.
coberto?!
Ao te beijar sinto no coração
O próprio rapaz fora chamar Monsieur Normand, vendo meu
crue o pulsar da mais Pura Paixão."
desespero, ofereceu-me uma xícara de chá de capim-santo bem doce,
e depois convidou-me insistentemente para gue saísse um pouco com
ele a passear até que eu me acalmasse mais. Saímos. Descemos ao Aquela letra foi capaz de rne levar de volta a um passado não
Porto da Escadaria. muito distante e doloroso, cuia memória ainda estava viva em mim,
O alto-falante anunciava músicas que as pessoas ofereciam entre nor isso não consegui evitar que as lágrimas rolassem. Escondi o
si. Sentamos junto a uma banquinha de caixotes, onde um velhinho rosto entre as mãos com vergonha de Amadeu, que permaneceu a
recurvado vendia peixes assados. meu lado sem dizer uma única palavra.

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_ A.pessoa que eu visualizava enquanto ouvia aquela música estava me ajudá-lo a ser um homem, venha cá, não fuja, menino, venha cá'
muito longe de mim, e o impossível sonho que vivemos juntos havia espere!"
morido, mas as lembranças do que fomos um para o outro ainda ^ "Não! Não quero! Não sou homem e nilguém me fará ser;
eram um espinho em minha alma. Era muita emoção para um dia só! nunca- fui homem; eutdiaria ser um homem, eu odiãria!! Não quero!"
'r[s1nss, Lorys, seus pais já devem ter terminado a conversa Todos despertaram com meus gritos estridentes, enquanto eu
com -D. Laércia e o professor, e por certo o esperam para o almoço; rolava na cama, sem conseguir acordãr daquele pesadelo angustioso'
já passam de 12 horas. Espero que não fique zangado comigo por Mamãe colocou as mãos -ãlhrdut com água fria em minhas têmpo-
tê-lo trazido aquí e por causa da música que lhe ofereceram; saiba ,ár,-à"que abri os olhos e vendo-a abracei-me a ela chorando. Mamãe
que seria incapaz de magoar você; quero-lhe muito bem!" Laérciaàproximou-nos um copo com água doce que mamãe me deu
Amadeu se aproximou, enxugou as lágrimas do meu rosto com a beber.
ambos os polegares, e puxou-se pela mão para saltarmos ao tablado Meu pais affazoaram longamente comigo sobre a necessidade de
do flutuante. obedecer e continuar o tratamento. Para se assegurarem de que o
Eu lhe assegurei que ele me fizeta bem ao trazer-me ao porto, e faria, escreveram uma carta para o interior avisando que ficariam
que mesmo que nunca viesse a saber quem me dedicara a música, mais uma semana, e assim poderiam se certificar de que eu aceitara
eu seria para sempre grato à pessoa que o fez, pois me fizera sentir os medicamentos.
uma grande emoção da qual jamais esqueceria. Minha mente estava num caos horrível. Eu esperava que o médi-
Ao chegarmos à pensão, a mesa já estava posta, entretanto co, ao me examinar, recomendasse a meus pais Um tratamento Seme-
papai disse que o Sr. Normand iria me aplicar uma injeção antes do ttá"i" ao que prof. Victor, no interior, lera sobre o caso Christine
me dire-
almoço. forgensen, mu, ao contrário de minha expectativa, estavam
óioãando para o sexo masculino com hormônios e tudo!!
'rp31s que se não estou doente? Não sinto nada!"
- que papai meinjeção,
Foi aí deu uma notícia fulminante!
Foi então que um obsessivo desejo de voltar ao interior tne fez
imploraru m.ri pais que me levassem com eles de volta para casa,
"Filho, sente-se aqui. O médico que lhe examinou disse que pois sabia que játstariã livre dos tais remédios, e assim permanece-
com -medicamentos e hormônios vai fazer de você um verdadeiro iia até a mãioridade, quando poderia decidir por rnim mesmo o que
homem. Você está com um atraso de crescimento enorme e um des- fazer sobre o problema da minha sexualidade.
nível hormonal comprometedor. Temos que tratá-lo urgentemente. Eles se recusaram terminantemente a me levar de volta, e dis-
Seu tratamento se inicia hoje e Prof. Normand ficará responsável pela seram que um dia eu iria compreender ?or que aquele tratamento
aplicação das inieções três vezes por semana, enquanto D. Laércia ."pr"r"rituuu minha felicidade e a deles. Entrei em profunda depres-
lhe dará as pílulas no almoço e iantar; você ficará bom logo e nem ,aà ,.* quis acompanhá-los ao embarque no sábado à tarde quando
se lembrará que algum dia teve problemas dessa natureza." "
partiram.
Mamãe Laércia trouxe-me um copo com água e duas pílulas Vieram ao meu quarto minutos antes da hora marcada' Conti-
bem pequeninas. Uma contrariedade enorme tomou conta de mim. nuei de cabeça baixa sem alçar o olhar para eles. Eis como nos des-
pois eu não estava querendo ser um 'ftp_gle-m-Ugr_dgdeilq.*çgisíssima pedimos:
-e€eh#g3 . Não queria tomar remédio algum, princffimente sãbendo ..Adeus filho, fique com Deus e seja obediente ao Professor
qué tal medicamento irin me condenar ainda mais, a aparentar mas-
e D. Laércia. Estou ó"ttá d" que se comportará direito' Logo volta-
culinidade, e me identificar com um sexo do qual eu ansiava me remos a nos ver", disse mamãe, abraçando-me'
Iibertar! _ííClaroquevoltaremoslogoavêJo!Deusteabençoe,filho!
Com quatro adultos falando ao mesmo tempo sobre minha cabe- Te peço apenas que sejas ajuizado", completou papai'
ca. não vi outra alternativa, a não ser ceder, e aceitar as pílulas e a -
Quando iam transpor a porta gritei para eles:
dolorosa inieção de hormônio oleoso. No meio da noite um vulto de .,Vocês podem ir ámbori achando que essa droga de tratamento
branco Çom uma seringa hipodérrnica em riste apontava para mim seia bom para mim, mas estão enganados! Isso vai fazer com _que eu
dizendo: *1, ,ri.iaàf É isso mesmo, prefiro morrer a cometer uma loucura
de forçar minha iatureza! Vocês -podem ir embora' mas
- "!6s
hormônio
fazer de você um verdadeiro homem com inieções de
sexual masculino, você precisa de muito hormônio, deixe- "à-o
terão "rru
que voltar logo para buscar meu corpo!!"

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[^ lr: àa t.t**
Mamãe voltou assustada com minha inesperada afirmação de Os estudos muito lhe interessaram, porém tudo o quc pôtlo
que seria aapaz de pôr fim à minha própria vida. EIa aproximou-se, aprender foi até o colegial, embora fosse muito inteligente e-sc sàírsc
Iitou-mc bem nos olhos s dissc: bcin conto conrcrciante . Trabalhava como apontador im uma grande
"Filho, com todos os cicfeitos c problemas que vooê possa ter, importadora de estivls e lnurava na pcnsão de D. Laércia.
eu o-amo! Você também me ama, eu sei. Não quero acreditar que Sendo üm tapaz muito comportado, o relacionamento entre ele
vocô tenha coragem de se suicidar, nos privando de sua companhia. c as demais pessoas da pensão era peculiarmente familiar. Mesmo
Você é muito inteligente, e pessoas inteligentes querem vivcr intensa- não sabendo informações cletalhadas sobrc mim, cada clia vivia mais
mente para poderem desenvolver suas capaoidades. Sei que você nào mcu drama e rne dedicava irrestrita compreensão.
fará o que disse, você será fortc. Dcus não quer que seus filhos se Refletindo sobrc isso, concordei coln seu convite.
matem. Procure se acalmar c pensar em outras coisas. Adeus, filho,
O sol me surpreendeu na manhã seguinte, com um resto de sono,
Deus te abençoe!"
que ainda queria prender-me à cama, mas lembrei-me do convite de
I
Depois, só ouvi seus passos na escerda e o ruído do trinco da Amadeu, pclr isso saltei logo e fui me arrulnar.
porta da sala que se fechava por fora.
Era desesperadora minha confusão, em meio a um vendaval de
Eu rcalmente, no fundo, preferia mil vezes mais, "afundar os
olhos" num livro de psicanálise freudiana o dia todo, no delicioso
pensamentos que eu queria parar, mas não conseguia. Como nào
silêncio da biblioteca de Monsieur, a ir ao agitado Porto da Panair,
desci para jantar, no meio da noite, Amadeu subiu com uma xícara
mas longe de rnim desagradar Arnadeu, que se mostrara tão amigo
de chocolate e biscoitos.
"nas crises minhas de cada dia".
"Está doendo muito o lugar da injeção? Se estivcr, posso
- compressas de água quente!"
colocar E 1á fomos nós. Quando cruzávamos a ponte de Educandos, um
'í§[6, obrigado, Amadcu, e não qucro a merenda que você frio me coreu pela espinha, ao pensar nos relatos que ouvira de
- estou sem fome."
trouxe,
pessoas infelizes que haviam posto fim à vida por se atirarem de
Ittgarcs como aquele. Parei e instintivamente segurei a mão de Ama-
"Você já ouviu dizer que 'comer e coçar é só começar'? En-
- deu, fechando os olhos.
tão, vamos. Estou pensando em fazer um passeio com você amanhã! í'Lorys,
Lembra-se que quando você veio de barco parou rlm pouco no 'Porto você se importaria se eu o levasse no colo só até
-
transponnos a ponte? Vejo que algo o enrpata de andar!"
da Panair?' Você me disse que gostou do lugar. Que tal se nós pas-
sássemos o dia 1á amanhã? Nós poderíamos comer peixe assado, frito Continuei de olhos fechados e sentia uma tontura imensa, en-
ou churrasco de gaiinha, e tomar Aassahy ou Abacaba à vontade, que qlranto ele avançava comigc em dir"eção ao outro laclo. Minhas pernas
acha? Ah! E estão começando a chegar barcos cheios de melões e estayam moles e trêmulas e um entorpecimento ao redor da boca
melancias, cachos de pupunhas enormes e sacas abarrotadas de tu- mostrava que ell não estava mesmo bern. Comecei a tremer e suar
cumãs! Lá também tem serviço de alto-falantes, e se tivercm as músicas frio, páliclo como algoCão.
que você gosta, poderemos ouvir quantas vezes vocô quiser!" Pobre Amadeu! O rapaz ficou sem saber a quem pedir ajuda,
Foi nessa noite que fixei pela primeira vez, desde que fomos e não queria cle forma algurna arriar-me no chão, por isso continuou
apr:esentaclos em minha clregada, a atenção em Amacleu, o índio,
a andar, carregando-me nos braços. Quando ele já havia transposto
descenclente dos últimos )umas da rcgião do Alto Madeira, onde seu
a ponts e começava a subir ao alto de Educandos, uma senhora o
verdadeiro nome era "Oitameno".
chamou para que ele me levasse para rlentro e nos ofereceu uma
Seu corpo forte e bronzeado mostrava a virilidade e a belãa
rede.
saudávcl que se retratam nas pinturas da Idade Média. Sens cabelos
negros, lisos e brilhantes, enfeitavam o rosto de traços enérgicos, cujos Nerrl.mm cle nós sabia, mas eu estava tendo um colapso na.rorol
lábios, bem delineados, rnostravam grancles dentes brancos e lirnpos. e quando Amacleu viu que eu piorava, foi chamar o Prof. Normand.
Devia ter mais Ce 1,70m de altura e andava com elegância viril. Após uma injeção de tranqüilizante, fui posto num quarto semi
f/r estava com 25 auos e havia perdido os pais quando ainda obscuro onde adormeci profundamente. Uma sede insuportável fez-me
pequeno. Foi trazido para Manaus por um comprador de borracha acordar quase meia-noite.
e castanha, que o entregou aos cuidados de sua família, oncle foi Ao olhar ao redor, com a tênue luz da arandela, vi mamãe Laér-
criado e educado. cia sentada ao lado, quase cochilando pois estava cansada daquela

48 49
I

posição incômoda. Perguntei-lhe sobre o professor e Amadeu; enquan- Que significaria aquilo? Procurei decifrar aquele enigma pen-
to ela me servia água. sando nos símbolos. Coruçáo significa amor. A seta trespassando-o
II Tinham partião pouco antes das 25h pois teriam que trabalhar significa paixão que o faz sofrer e o nome ao centro era o da pessoa
na manhã se§uinte. À meia-noite outra injeção de sedativo me foi que estava sofrendo por amor! Seria possível que o belo índio |uma
aplicada, e só voltei à consciência no dia seguinte mais de 10h. Oitameno, que não era outro senão Amadeu, estivesse apaixonado por
As 10h, Amadeu foi buscar-me e cinco minutos depois chegá- alguém e sofrendo por não ser correspondiclo?! E o mais intrigante da
vamos à pensão. Todos os pensionistas, muito solidários, aguardavam estória: Por que teria colocado o papel justamente sobre minha san-
que eu me sentasse com eles para começaÍem a almoçar, pelo que dátia?l
muito thes agradeci. De forma alguma poderia ser o que eu me atrevia a pensar. Eu
Quando todos foram de volta a seus trabalhos, subi ao quarto devia estar imaginando coisas! Será que não me bastavam os roman-
e que surpresa! Sobre a cama havia um paneirinho de ambé, repleto ces idiotas que já vivera?! Tendo bem em mente a estupidez de minha
com váriai frutas, uma caixa de bombons e um envelope. A cartinha ingenuidade passada, que me havia conduzido às tristes decepções
dizia: "Venha ao porto da Escadaria dos Remédios no sábado pela que sofrera, coloquei um ponto final bem grande naqueles pensamen-
manhã, e saiba o quanto alguém te ama e deseja o teu carinho." tos, afirmando em voz alta que aquilo era impossível.
Nenhuma assinatura abaixo do texto deixava saber quem seria o mis- Na quinta-feira, fomos à casa do Prof. Normand. Ele nos rece-
terioso apaixonado do porto! beu alegremente, e nos disse que estava muito satisfeito por termos
Professor Normand veio à noitinha à pensão, e convidou a mim aceito seu convite.
e Amadeu para irmos a sua casa na quinta-feira à noite, ouvir Eu já ouvira antes muita música clássica, porém não conhecia,
músicas clásiicas. Ele completou o convite, dizendo que "os clássicos assim como o professor, os nornes das sinfonias e concertos, bem
fazem bem à mente e ao eipírito, especialmente ao espírito tempestivo como os termos latinos e italianos empregados pelos músicos. Antes
e imprevisível dos jovens de hoje". de nos deixar ouvir determinada melodia, ele explicava detalhada-
Amadeu piscou um olho para mostrar-me que Monsieur se referia mente essas particularidades todas "para oue pudéssemos nos tornar,
exatamente a mim ao mencionar a inquietude da juventude! assim como ele, verdadeiros conhecedores".
Quando terminamos de jantar, Amadeu me fez sinal para ir até "\,/s1116s iniciar a audição desta noite com um dos meus
a porta, pois queria dizer-me algo. -
prediletos. É o concerto para piano e orquestra em si bemol menor,
a falta de um amor, que faz as pessoas escreverem Diários
- "Écontam aquilo que sentem?!"
aos quais
opus 25, de Peter Tchaikowsky, ouçam que maravilha."
í'Qussg sempre a solidão nos g9ry-r-p,eJ9.a encontrar uma saída Era mesmo uma deliciosa festa para os sentidos. A sala estava
-
para nossa impossibilidade de contar a alguém a quem talvez ame'
imersa numa semi-obscuridade, para permitir melhor concentração
aos ouvintes, pois, segundo o professor, "um ambiente muito ilumi-
mos, aquilo que nos vem à alma, sejam coisas boas ou más; então,
nado excita a visão e distrai a audição".
obriga-nos a ãscrever entre silenciosas folhas de papel tudo o- que
nosõs lábios queriam poder pronunciar a viva voz e náo podem." Desde que chegáramos, Amadeu pouco conversara, limitando-se
Quando concluí essas palavras, uma fria suspeita tomou lugar a rnenear a cabeça quando o professor the dirigia a palavra. Num
momento, porém, em que a música assumiu um tom extremamente
em minha mente. Seria possível que Amadeu tivesse pegado meu
Diário enquanto estive no hospital, e agora soubesse meus segredos sentimental, suspirei profundamente, afundando-me entre as almo-
mais íntirnos, e os fosse então usar para se rir ou fazer alguma chan- fadas da poltrona, e olhei para ele. A xícara encostada à sua boca
tagem? Não, todo o mundo, menos ele! cobria-lhe parte do rosto, deixando em relevância seus lindos olhos
Os dias à frente e as atitudes que ele demonstrasse para comi- negros emoldurados por espessas sobrancelhas, que transmitiam no
go iriam finalmente mostrar-me se eu tinha ou não razão em sus- olhar uma melancólica ternura.
peitar. Quisera poder saber que pensamentos lhe permeavam a mente,
Na manhã seguinte, quando fui calçar a sandália para me levan- para conhecer melhor aquele homem de selvaqem beleza e modos
tar, deparei com um pequeno pedaço de papel branco, no qual estava tão nobremente educados! Permanecemos em silêncio, tentanclo com-
deienhãdo um coração trespassado por uma seta, tendo um noms preender as incomuns sensações que aquela música transcendental
escrito ao centro: "Oitameno". operava em nós, sem contudo conseguir...

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Quando nos despedimos do professor, ele formulou o convite como amei, seria muito improvável que viesse a acreditar dc nov.
de que fôssemos todas as quintas-feiras ouvir músicas em sua casa. no amor."
Amadeu aceitou prontamente, e disse que o agradaria muito, se eu
fizesse o mesmo. Quando disse que scria um privilégio para mim estar . 91" completou o diálogo dizendo que mesmo assim ..não devc_
ria julgar todas as pessoas pelos atos de uma única,,.
ali com aquele mesmo propósito, os dois se olharam e riram de sa- manhã seguinte me encontrou com um desejo enorme de
tisfação. ficar mais tempo na cama.
Em meio a viagem, quando passamos por sobre um igarapé,l Quando finalmente resolvi me levantar decidi tomar um banho
Amadeu suspirou olhando para a água abaixo e disse: antes de descer. Quase chorei de dor, ao esfregar o sabonete com
"À.s vezes tenho muita vontade de viver livre como antes Íorça sobre os mamilos! Eles estavam intumescídor *u,
- criança,
quando e pescar, fazer meu roçado e caçar para sobreviver! " "*ràr,
antes desse dia eu não havia notado que estavam diferentes! eó in;e-
Desfrutar o sol, a áglua e o vento na pele nua a cada dia, e ter um
il grande amor para preencher o yazio que sinto na alma. Será que estou
pedindo muito a Deus? E será que seria pedir muito a você se eu
lhe pedisse que daqui para a frente me chamasse de 'Oitameno'?
ções de hormônio! começavam- a apãrecer os efeitos! Eu repelia a
idéia de ver meu corpo se transformár, mas a prova irrefutável^estava
ali, não havia corno negar.
uma amargura profunda me tomou o semblante. senti como se
Isso me faria muito feliz! Não importa como me chamem as outras um enorme peso me tivesse sido posto sobre os ombros, e fiquei
pessoas, mas você, para mim é alguém especial, para você eu quero _

ser Oitameno, diga que concorda!" lentado ao chão, extravasando em lágrimas minha grande rwolta.
Quando mamãe Laércia subiu para ver por que eu nãõ descera, e de-
"§i6, claro! Este é mesmo o seu verdadeiro nome afinal, e parou com meus olhos vermelhos de chorar, eu lhe disse a verdade.
gosto-muito dele; soa bem aos ouvidos!" Ela então procurou dizer algo para me confortar quando ,r" oià."".u
Ele me apertou a mão fortemente tomado de emoção, ao ver uma xícara de chocolate.
minha reação a seu pedido, e sorriu da forma mais fulgurante que "§e você fosse meu filho legítimo, eu não iria fazet um tra_
jamais o tinha visto sorrir, numa alegria tão pura como a de um tamento- desses, pois vejo que sua natureza é toda feminina. Desde
menino. que.veio para cá que observo sffiociá-las
Mantive entretanto minha opinião de não me envolver emocio- às de um menino da sua idade."
nalmente com quem quer que fosse; se o agradava a atenção que lhe "Quando ao aprese,ntá-lo às pessoas eu o menciono como per_
dispensava por acompanhálo aos passeios e chamá-lo por ,seu nome tencendo ao sexo masculino, pode crer-me que o faço por imposíção
nativo, eu estava bem seguro de que não ftia, em hipótese alguma, social, mas no fundo vejo em você uma menina! eueira Deus que
permitir que as coisas fossem além da amizade sincera que ele merecia. esses remédios não modifiquem em muito sua formação para provar
Por isso, nem fiz menção a ele do papelzinho com o coração além de dÍvida que seus pais estão indo na direção eiraaát Enquanto
que eu havia encontrado sobre a sandália. Ademais, ele era bastante estiver sob meus cuidados, porém, vigiarei ,euí passos
discreto para não deixar transparecer exageradamente seus sen- vigia uma filha." "o*o'qrr"'n
timentos. quase i*eal
Quando chegamos à pensão, ao pé da escada, ele me perguntou
- Pru o que estava ouvindo. Durante toda minha vida,
lama-is alguém me oferecera tanto conforto e proteção tão sinceros!
se eu iria ao Porto da Escadaria, como fora solicitado no bilhete. Res- senti segurança e liberdade para rhe contar, s"m omitir nada, tudo o
pondi que ainda não havia me decidido, e que teria a sexta-feira que se passava comigo.
toda para pensar. Então perguntou-me: Aquele desabafo me aliviou a enorme tensão emocional, e quan-
_
do nos chamaram para o almoço, eu já estava bem mais'calmo
"§s soubesse que iria fazer sofrer a quem lhe escreveu o
- mesmo assim lhe negaria o pedido
bilhete, de ir ao porto, ao menos equilibrado.
e

para ouvir a declaraçáo do amor que ele sente por você?" Quando descemos para almoçar, deparamos com Monsieur que
"§f;e sei, Oitameno, também já sofri muito por amor, mas preparava a tal injeção. Mamãe Laércia olhou-me com um ar -de
agora- que sei o quanto me custou em sofrimento c decepções amar resignacão no qual se podia ler sua desaprovação.
oitameno tinha acabado de sentar-se, e percebeu meu nervosis-
mo e o olhar .de repúdio que não consegui áisfarçar, quando Mon_
t Riacho (literalmente "caminho de canoa") sieur se aproximou e segurôu meu braçol Impefidó pelâ dor e pelo

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ódio que fervia em meu coração, soltei um agudo grito, um tolo o pedido eu aceitei, porém no fundo decidi que agiria com muita
desabafo perante os demais, visto que não tinha outra forma de extra- cautela, para evitar urna nova e inesperada decepção como as outras
vasar minha revolta. Prof. Normand apertou fortemente meu braço que já tivera. ..
dizendo: Sua alegria foi visível quando eu disse "sim, aceito" e ele me
"Qa,lrfls, calma menino, o mundo não vai se acabar por causa abraçou calorosamente. Depois desceu, dizendo que eu não me atra-
- injeçãozinha dessas, na vida existem coisas muito piores!"
de uma sasse para o jantar, pois já não havia almoçado.
Um nó doloroso instalou-se em minha garganta, e compreendi Naquela noite demorei bastante a adormecer. A indecisão de
que não iria conseguir comer, por isso pedi desculpa a todos e subi ir ou não ao Porto da Escadaria na manhã seguinte me roubou o
rápido ao quarto. Afundei o rosto no travesseiro para abafar os sono. Antes de nascer o sol, mamãe La*cia rne acordou para que
soluços altos que saíam incontroláveis. eu a acompanhasse à feira.
Quando o cansaço do choro chegou, adormeci e sonhei que esta- Na volta, quando coloquei o paneiro com as compras sobre a
va no interior junto a meus pais, sentindo 1lma enorme alegria por mesa da cozinha, avisei para onde ia e saí.
ter voltado ao lar. Havia pessoas sorridentes por toda a parte' Depois Nada havia mudado na Escadaria dos Remédios. Lá estavam
havia um barco que chegava ao porto. Em meio à multidão que de- os "motores de linha" atracados lado a lado; passageiros entrando
sembarcava, vinha um homem que eu conhecia, mas devido a distân-
cia não conseguia reconhecer direito. e saindo, cargas sendo carregadas, os flutuantes apinhados de gente
e vendedores de tudo apregoando seus produtos. O serviço de alto-
Quando ele se aproximou mais, pude reconhecer seu rosto. Era
Oitameno, e trazia um paÇote à mão o qual me entregou quando abra- falantes a plenos pulmões com músicas e mensagens, e o velho que
vendia peixes assados na brasa. Desta vez, porém, eu estava só, e
çou-me ao me cumprimentar. Com viva curiosidade comecei a de-
sembrulhá-lo e ao abrir o papel que o envolvia, pude ver uma linda nem sabia ao certo por que tinha ido outra vez àquele lugar.
caixinha branca com laços amarelos. Não cheguei a saber o que havia O som de um violino que parecia chorar, encheu o ar com uma
dentro. pois, ao contato de uma mão que acariciava minha nuca, melodia quase divina que o locutor disse chamar-se "O correio sen-
acordei. timental", quando uma belíssima voz masculina declam6s. Í'p1s-
Era Oitameno, que sentado a mell lado me avisava que iá era zado correio sentimental, peço que publique o pedido de um- coração
noite. Ao sentar-me na cama. ele me estendeu um pequeno embru- solitário, que há muito procura alguém, que saiba o quanto se sofre,
lho. Antes de apanháJo, lembrei-me do sonho oue acabara de ter, sem carinho e sem amor. Eu sou simples, carinhoso, gosto de música
e pasmei diante de uma coincidência tão incrível como aquela! Ele e esportes. Desejo corresponder-me com alguém sincero e que queira
notou minha hesitação e perguntou o que havia de errado. Expli- assumir compromissos sentimentais." O restante da música era can-
quei-lhe sobre o sonho, e ele também achou curiosa aquela coinci-
tado, e uma verdadeira obra-prima de romantismo.
dência.
Era [orge Friedmann quem estava cantando com uma voz cheia
na hora da inieÇão, notei que você estava atravessan-
- "Hoje
do uma fase difícil de sua vida. Desculpe minha intromissão, mas
de ternura e encanto. Ouvi atentamente tomado de intensa emoção.
será que eu poderia aiudar em alguma coisa? Quem sabe se a caixi-
Ao final da música o locutor anunciou:
nha que lhe entreguei no sonho não seja a amizade que lhe estou "Qi14rylgno oferece esta melodia a
- por algum lugar deste porto e pedeurn coração solitário, que
oferecendo? Este pacotinho conté.rn apenas chocolates que sei que passeia que esta pessoa acredite
você gosta, mas a amizade que the ofereço vem do meu coraqão, e que o verdadeiro amor tem o poder de curar todos os males."
poderá ser melhor que muitos doces. Se você quiser nós nos podere- Aquelas palavras parecem ter sido cuidadosamente escolhidas
mos tornar mais íntimos, e assim me contará o que o faz sofrer tanto." para me emocionar, e conseguiram levar-me às lágrimas. Em seguida
Pela segunda yez fium mesmo dia. alguém me oferecia amizade saiu a música " A beleza da rosa" que me tinha sido oferecida no
e compreensão: mas até que ponto Oitameno seria capaz de me sábado anterior.
entender e aiudar como mamãe Laétcia? Sua companhia era agradá- Compreendi instantaneamente que Oitameno era a pessoa que
vel; ele era uma pessoa excelente, entretanto eu não eta capaz de a havia oferecido e que também havia posto as frutas e doces em
acreditar completamente nele, para the abrir meu coração confiando- minha cama! Minha reação foi uma miitura de espanto, alegria e
lhe meus segredos mais íntimos' Como não tive coragem de the negar desconfiança.

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__ 'í§fr6 precisa ficar com medo não, porque o motorista aí ó
Por que, entre tantas pessoas "normais", eu, set escolhido? E
mais: da vez anterior ele omitiu seu nome, chamou-me senhorita e meu amigo e já combinei com ele que não iríamos para casa. Nós
estamos indo para a praia da 'Ponta Negra' onde vamos ter uma
mencionou o meu. Estaria ele se precavenclo do preconceito das pes-
conversa muito séria; quietinho aí que é melhor pra você, certo?"
soas? Não seria ele próprio, também, tremendamente preconceituoso?
Com tudo isso em mente, decidi sair dali o mais rápido que pude e "Praia da Ponta Negra?! Pelo amor de Deus, já está escure-
cendo, - Oitameno; que vamos fazer lá uma hora dessas?; por favor,
voltar à pensão.
deixe-me ir para casa!!! Mamãe La&ci.a vai ficar muito preocupada
Como eu tinha certeza de que no almoço ele iria estar à mesa
comigo! Por favor, quero voltar."
e falar comigo, resolvi ir à casa do Prof. Normand e lá passar o dia í'f,sçsfs aqui Loli! Você vai comigo, não
todo, voltando somente à noitinha. vou te f.azer nenhum
-
mal. Não sou como os canalhas que você gostou, entendeu?!"
Eu sempre nutri um enorme desejo de perguntar ao professor "Loli?! Quem lhe ensinou que me chamavam por esse ape-
qual era seu ponto de vista sobre o tratamento que me foi prescrito,
lido?- Como pôde saber? Diga!"
e que ele religiosamente ajudava a ministrar, mas me faltara a
coragem. "Lí o seu querido amigo Diário! Sei de tudo sobre essa vida
-
desgraçada que você tem vivido!"
Agora, com um sinal tão visível como o intumescimento dos ma-
Um esmorecimento me amoleceu os membros, enquanto me en-
milos, mostrando que já se processavam transformações em mim costei ao vidro com os olhos embaciados de lágrimas. Ele havia viola-
devido aos hormônios que ele aplicava, uma coragem incomum me
do meu segredo mais íntimo, o registro diário de minha vida, de meus
sobreveio e perguntei-lhe o que achava de tudo aquilo. Sua resposta
devaneios, de meus amores! Agora sabia de tudo o que eu escondera
mostrava que o desespero de meus pais o hayia impressionado pro-
fundamente; porém corno ele não sabia nem de longe o que se passa-
do mundo, conhecia cacla detalhe das coisas que tornavam minha
va comigo, via as coisas do ângulo deles, apenas. Para ele, tudo o
vida amarga e infeliz. Era senhor de minhas confissões, de minhas
que se devia f.azet comigo era um bom tratamento hormonoterápico, fraquezas e de minha sede de amor!
e o resto dos problemas desapareceria automaticamente. Quando chegamos, o motorista foi sentar-se numa das mesas do
restaurante, enquanto Oitamenc me segurou fortemente pela mão,
Não vou negar que desde que as aplicações de injeções começa-
forçando-me a descer com ele uma longa escada, que levava à praia.
ram, o professor passou a me inspirar uma antipatia, que me fazia
sentir um certo incômodo ern sua presença. Manter as aparências, eis "Não lgnha medo, cri44çgl-*Pg""spg*Um*homçm^.,nãq-,-Um
I - FÉtueir%l.-"*x,**i
o motivo de eu "passar por alto" sobre essa pequena intolerância que ç a çIBrro*Tãq .-vp**t1g1çj:}.1jm^ Jis do " scu. ç ab eloJ Trou xe v ocê aq u i
para conversarmos, nada mais, quero que saiba que o respeito muito!
comecei a nutrir pelo professor.
Lá na pensão eu nunca teria a mínima chance de falar com você,
O barulho de um carro que parava em frente a casa chamou mi- sobre um assunto que me atrayessa a garganta desde que você che-
nha atenção. Marie France veio à sala avisar-me de que um rapaz me gou. A hora é agora, e dentro em pouco você vai saber o que um índio
chamava lá fora. Era Oitameno, e não desceu do carro, pois queria como Oitameno pensa sobre o amor, entendeu?"
que eu fosse para casa corn ele imediatamente.
írB6s-fs1de, Até chegarmos ao final da escada lá embaixo na areia, ele teve
senhorita! Como vê estou bêbado e vim buscar que se apoiar em mim para não cair, tão tonto estava. Andamos um
-
você! Enchi a cara de cerveja por sua causa quando lhe vi sair cor- bom pedaço e então ele se sentou pesadamente puxando-me consigo.
rendo da Escadaria esta manhã. E então, vai entrar no carro ou quer Segurando minhas duas mãos, pediu perdão por tudo o que Íizera,
que eu vá pedir sua mão ao professor, primeiro, hein?!" antes de começar a falar.
Fiquei entre "a parede e a espada". Tinha medo de acompanhá- "p6i a amargura e o desespero que li em seu olhar ao conhe-
lo, pois bêbado como estava, poderia fazer alguma tolice; se ficasse, cê-lo -e a visão diária de seu sofrimento que me obrigaram a ler seu
ele iria entrar na casa do professor e sabe Deus que confusão ar- Diário, Lorys. Eu precisava saber o que se passava com vocô de tão
ranjaria! terrível, que o deixava assim esquivo e temeroso em aceitar minha
Entrei rapidamente, despedi.me de todos e em seguida voltei, amizade.
indo embora de camo com ele. Assim que me sentei a seu lado, ele Que espécie de traumas havia sofrido que o deixara sem espe-
avançou para cima de mim com os olhos rubros pelo álcool e me ranças de encontrar alguém que não apenas desejasse mas que real-
abraçou. Aproximou o rosto do meu e falou com um hálito nauseante: mente pudesse lhe dedicar o amor e a compreensão necessários à sua

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felicidade. Mesmo que você nunca acredite, tenho que lhe dizer; Quando se iniciaram as aulas no meu último ano ginasial, foi
mesmo sabendo da indefinição que você sofre, eu o amo. Amo que as coisas se agravaram a um ponto insuportável para mim. Du-
como jamais fui capaz de amar alguém em toda minha vida! rãnte as aulas de úucação física, que eram obrigatórias, os comentá-
Tudo o que mais quero é poder partilhar com você a esperança rios dos alunos me deixavam atordoado.
que existe, sem que tenha percebido, de se tornar, com ajuda médica "Veja, ele não tem pêlos nas pernas! Olhe, as coxinhas dele
adequada, ao seu caso, numa pessoa normal e ajustada dentro da como- são redondas e macias, são como as das meninas! Escutem a
sociedade, para poder gozar a felicidade que merece. fala dele! é fala de mulher! O bumbum dele não é de homem nem
Estou tão consciente do mal que esse tratamento hormonal está aqui, nem na China!"
lhe causando, mental e fisicamente, que às vezes tenho vontade de Além disso, eu me recusava a jogar futebol e o professor teve
impedir sua continuação, mas isso criaria problemas com seus pais, de recomendar meu afastamento. Foi ilegada "incapacidade física"
por isso nada posso fazer para ajudá-lo nesse caso. Por favor, diga para justificar meu não comparecimento.
que acredita que sou sincero, que perdoa o que fiz, e que daqui para Também os outros professores eram muito insensíveis face aos
a frente seremos mais que apenas amigos." abusos dos colegas. Uma vez, lembro-me, que fui reclamar ao profes-
"f,sf{ bem; perdôo tudo o que fez, mas prometa que nunca sor de português sobre um aluno que se sentava atrás de mim, pois
mais-mexerá em minhas coisas sem falar comigo, nem beberá desse cada yez que €u levantava para apanhar alguma_ coisa,, passava a
jeito! Agora leve-me para a pensão, jâ está muito tarde!" mão em méu traseiro. O professor olhou para a classe, depois para
í'Só mais uma coisa, por favor! Posso te dar um beijo? mim por sobre os óculos e disse: "É simples a solução para esse caso:

-
foi beijado por um índio alguma yez?" case-se com ele!"
Oitameno segurou meu corpo num estreito abraço e cobriu meus A classe irrompeu numa gargalhada tão debochada, que foi pre-
Iábios com os seus. O cheiro do álcool me repugnava, mas minha ciso intervenção do inspetor para acabar com a anarquia que se
sede de carinho me Íazia deseiar seu beilo, que foi longo e nervoso, instalou! Oitameno passou a levar-me e trazer-me ao ginásio para
como quem anseia comer uma fruta que não é sua, mas mesmo amenizar um pouco as coisas.
assim a quer. Duas opressões atribulavam minha alma: o relacionamento an-
Antes de subirmos de volta, ele disse que dali para frente nós tagônico com os colegas na escola, e o indesejável repugnante trata-
seríamos namorados e que pouco importava o mundo, se nos aceitava mento hormonal que prosseguia.
ou não, até que eu pudesse me definir como mulher. Era inacreditá- Numa manhã clara, quando sentei na cama após o banho, para
vel o que estava acontecendo em comparação com o sonho que tive enxugar os pés, notei que estavam nascendo pê1os em minhas pernas!
Não sei expressar com palavras a dor mental e o desespero que
l

com ele!
senti! Que estavam fazendo comigo?! Transformando-me num mons-
Eu não podia dizer que já o amava, pois iria mentir, mas sentia tro efeminado?! Uma criatura peluda com modos e idéias femininas?!
uma imensa ternura por ele ao ver que agia exatamente como o Era terrível a sensação de ver meu corpo mudar da aparência normal
homem que só existia nos meus sonhos e imaginação, qlle eu pensava que tivera sempre, para outra, grotesca e indesejável, que me era
nunca ver na realidade... imposta contra a vontade!
Quando ao deitar comecei a rememorar as coisas gue vivera Instalou-se definitivamente a idéia de suicídio, e por maior amor
naquele dia. detive meu pensamento na frase que ele mandara como à vida que eu tivesse, não conseguia afastar esse tenebroso pensa-
mensagem através do alto-falante: "Acredite que o verdadeiro amor
mento.
tem o poder de curar todos os males." E foi desejando ardentemente
que isso se tornasse uma realidade para mim, que adormeci. . . Os relatos de pessoas que se suicidaram e sofreram muito até
morrer, me apavoravam. Como poderia f.azet pata não sentir a agonia
A seqüência dos dias trouxe grandes e inesperadas transforma- da morte? Se eu pudesse estar inconsciente quando o veneno fizesse
ções para mim. O amor que Oitameno sentia, aumentava cada vez
mais. Ele passou a demonstrar ciúmes do meu relacionamento com efeito, não sentiria nada! E para estar inconsciente me bastava tomar
outras pessoas. Meu sentimento por ele, porém, não passava de uma todos os comprimidos de psicotrópico que tinha guardado após o
grande amizade e consideracão, devido à bondade, proteção e cari- colapso nervoso meses atrás! Mas e o gosto do veneno?! Haveria um
nho que ele tinha para comigo. modo de evitar colocáJo direto na boca ao ingerir?

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Sim. Esvaziei várias cápsulas de gelatina de um composto para me certifiquei o quanto Oitameno me amava! Segurou minha cabcçn
o cérebro que me tinha sido prescrito, e as enchi com formicida de entre as mãos, e quando viu minhas lágrimas, não pôde contot irs
alta toxicidade em pó. Estava tudo pronto, só faltava a coragem, mas suas.
essa, o desespero supriria na hora exata! Quando chegasse o momen- Com seu rosto encostado ao meu, nossas lágrimas se mesclaram;
to, nem mesmo o amor que sentia por meus pais, por mamãe Laércia um encontro de águas em pequeníssima escala, cujo significado nobre
ou por Oitameno, seria capaz de me deter. de amor só Deus e nós dois podíamos compreender. Meu silêncio
A espera pelo momento fatal operou uma enorme mudança em doía nele; a linguagem muda do meu desespero lhe abalou o espi
meu comportamento. O fato de saber que iria morrer fez com que rito, e ele já estava cansado de me ver sofrer; por isso chorou!
eu quisesse deixar nos registros do colégio os melhores índices de Quando chegamos eu já estava com vontade de voltar, nada
notas jamais obtidas antes por um aluno. mais tinha para mim o gosto de antes. Nem mesmo os ingás, os
No pensionato, cada ajuda prestada à mamãe Lae.lcia passou a pedaços amarelinhos de tambaqui ou tucunaré fritos me despertavam
ser impecavelmente executada. Eu queria deixar a ela a lembrança o apetite. Oitameno, porém, tinha fome, e mostrou no olhar uma
de uma pessoa limpa e organizada, que sabia dar valor à humilde tristeza indisfarçável, quando recusei comer qualquer coisa, e pedi
tarefa de cuidar de um lar coletivo, com o mesmo carinho que se a ele que me deixasse passear sozinho pela estrada, enquanto fosse
cuidava da casa dos pais. Quanto a Oitameno, meu namorado e fiel se alimentar. Ele se sentou então em um banco sob a lona azul de
amigo de cada dia, eu reservava a guarda do meu maior documento uma barraquinha, onde uma senhora servia as pessoas.
secreto o Diário! Um homem acocorado sobre unla tábua tratava peixes que de-
-
Eu não o amava ainda. Mas gostava muito dele, de sua atençáo, pois seriam assados ou fritos. Havia um incontável número de urubus
ll de seus carinhos, de seus beijos selvagens, diferentes dos que pro- empoleirados sobre as estacas de uma cerca, que saltavam vorazmente
vara antes de conhecê-lo. sobre as vísceras e guelras, cada vez que o homem as atirava fora.
No fundo, fazê-lo ficar com o Diário era como que uma puni- Aquela cena me fez estremecer, sob o impacto da idéia horrenda que
me encheu a mente, quando imaginei um bando de aves como aquelas
ção, pelo fato dele ter violado meu segredo mais íntimo ao lêlo contra
se banqueteando com meus ;lgspojos após minha morte! Afasteime
minha vontade. Contudo, sentia imensamente ter que me separar dele
pois se então realmente me amasse, iria fazêlo sofrer. dali para o outro lado, com o cheiro da morte nas narinas e a agonia
do desespero no coração!
Muitas vezes saíamos a um lugar, onde pudéssemos ficar com- Caminhei lentamente, seguindo a estrada.
pletamente a sós, e falar mais liberalmente sobre isso.
Foi quando vistralizei uma forma de animalzinho que se arras-
Numa manhã de domingo, resolvemos dar um passeio de balsa tava lentamente, procurando cruzar para o outro lado. Era uma pre-
até o "Careiro", que fica do outro lado da continuação da estrada guiça! Quando me aproximei mais, ela virou a cabecinha grisalha e
Manaus-Porto Velho-Rondônia. Minha cabeça fervia de idéias me olhou com uns olhinhos tão meigos quanto os de um bebê sono-
tristes que enfocavam a situação de um suicida. lento, mas prosseguiu se arrastando lentamente como lhe é peculiar.
Tentei pensar na magnitude do "Encontro das águas" onde as Um ruído de motor chamou minha atenção. Um caminhão vinha,
negras águas do rio Negro se encontram com as pardacentas do rio ainda distante peio mesmo lado que o animalzinho teria que passar.
Solimões, formando o grande Amazonas, que em pouco estaríamos Com seus passinhos tão lentos, era bem provável que não conseguisse
vendo, para assim desviar um pouco a mente, mas tudo o que conse- estar fora da estrada quando o veículo passasse e fosse esmagado sob
gui foi ficar mais pesaroso ainda, por saber que aquela poderia ser as rodas! Tomado de ansiedade, comecei a dizer bem perto de sua
a última yez que eu via aquele estupendo fenômeno! cabecinha: íí!s111ss,
bichinho, mais depressa, sua vida corre peri-
Um silêncio de pedra esfriou minha alma. Procurei refúgio entre -
go! Ande, vamos, atravesse logo!"
as pernas de Oitameno, sentando-me no assoalho da balsa, pois ele Abscrto em minha intenção de fazê-la apressar-se, fiquei a seu
estava sentado numa parte um pouco mais alta. Pouco me interessou lado andando também lentamente, despercebendo que ambos corría-
saber que havia pessoas ao redor, quando me insinuei mais entre as mos perigo! Alguns metros antes de chegarmos à ilharga da pista, uma
coxas dele, encostando a cabeça em seu peito, abraçando-o. massa ruidosa de aÍ em deslocação nos Íez balançar. O caminhão
Estávamos bem rente à borda, e sentíamos os respingos da havia passado; o motorista nos tinha visto a tempo e desviara, para
água que se chocava com a balsa em seu avanço veloz. Foi ali que não nos atingir em cheio!

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Minhas pernas se amoleceram e sentei-me ao chão. A preguicinha, "[ls está dizendo que, quando Kuarál dormia sossegadtl dcr
"mole pela própria natuteza" nem ligou, e seguiu em seu lento passi- outro- lado da floresta que lpoetona2 cobria com seus negros cabelcls,
nho, rumo a proteção entre as árvores da mata. Permaneci ali sentado, Djahrrus saiu de diante do espelho do Igapó onde admirava sua des-
esperando me refazer do susto. lumbrante beleza, para avisar os bjchinhos da mata que muitos ho-
Ela, a preguicinha, estava salva! Sua lenta lqbqta pela sobrevi- mens brancos maus estavam preparando uma enorme matança dos
vência prosseguiria do outro lado da estrada. Novas aventuras ani- gigantes da floresta, paru f.azer uma grande Koywaraa com seus corpos
mais encheriam aquele coraçãozinho preguiçoso que pulsava em seu abatidos a fim de que o invencível Táh-Táh5 os comesse com suas
peitinho. A vida continuava para ela, imperturbável como fora antes; labaredas insaciáveis.
como era bom! E para Lorys Ádreon? Quanto tempo ainda lhe res- Mesmo com os avisos de Djahru que, desesperada, chorava
tava? Dyaltataes6 pelo céu, os passarinhos e animais não puderam fugir,
"Cuidado com o Mapinguari!!!", estrondou a voz grave de porque lpoteona escurecia tudo com seus negros cabelos, e o po-
I - "Lorys não tem medo?; ele pode estar em algum lugar por
Oitameno. deroso Táh-Táh já os tinha cercado por todos os lados! Então
aí, caçando!" muitos morreram na grande Koywara da mata que os homens brancos
Suas mãos pousaram sobre meus ombros, e o estalo de um beijo Íizeram'.
em minha nuca me f.ez atepiar o corpo inteiro. Ele pede a Oitameno, filho da floresta, que suplique aos homens
"!i111 o mais ligeiro que pude, quando um motorista, que pálidos que não façam grandes derrubadas nunca mais, ou toda a
parou- na barraquinha para almoçar, falou que quase havia passado vida se extinguirá. O pequeno pássaro me perguntou quem eras tu,
por cima de um menino entretido com um animalzinho no meio da e eu lhe respondi: Esta é Diakuy, e eu a amo!!"
estrada! Graças a Deus você está bem; conte-me como foi!" Imediatamente após Oitameno pronunciar a última palavra, o
Pedi a ele que me perdoasse o mau humor não intencional que passarinho voou. Era inacreditável o episódio que eu presenciara;
transparecia em minhas atitudes, e sugeri que tomássemos a próxima até a mais insensível das pessoas teria ficado comovida ante a cris-
talina pureza daquela interpretação pictórica!
balsa de volta para Manaus. Ainda tínhamos algum tempo e podería-
mos andar devagar para o embarque. Aquela tensa situaçáo ainda se arrastou por muitos dias.
"\/arrlss seguir pela orla da mata, ao invés de voltar por Numa terça-feira pela manhã escrevi uma carta, na qual livrava
- preto artificial e sem vida. . . Pelo caminho eu lhe contarei
esse chão
todas as pessoas com as quais convivera de qualquer responsabilidade
mais coisas sobre meu povo, que você não conhece!"
por minha decisão suicida. Uma outra carta à parte, notificava Oita-
meno de minha decisão, de que meu Diário lhe seria por herança,
Saímos da estrada e nos entranhamos através do verdor da ca- e lhe agradecia amorosamente por sua fiel dedicação, apoio e amor.
poeira, que renascera no lugar onde antes vicejavam os majestosos
gigantes da selva, que foram derrubados com a construção daquela Tudo deveria aparentar total normalidade. Na hora do almoço,
sentei-me à mesa junto com todos, e desejei dizerJhes algumas pala-
rodovia.
vras de adeus, procurando porém evitar dizer coisas que denun-
Oitameno parecia mais vivaz que nunca, devido a proximidade ciassem minha intenção.
da mata, a verde mãe, em cujo seio ele dera o primeiro grito, quando
"Queridos amigos, como cada dia de nossa frágil vida pode
veio ao mundo nas selvas do alto Madeira. Seus olhos, negros como - que o saibamos, o último, quero lhes dizer o quanto aprecio
ser, sem
"Ipoetona" à noite, prescrutavam atentamente cada ângulo da es- sua sincera amizade e consideração desde que cheguei a esta família
pessa vegetação, e se'detiveram em algum ponto, donde vinha o grande e calorosa.
canto lindo de um passarinho solitário. Fez-me sinal para parar e
fazer silêncio, com o indicador aos lábios.
"O que é?, perguntei. Não me diga que estamos ouvindo o I O sol.
- 2 A noite.
Uirapuru!" 3 A lua.
"§f,e, não é o Uirapuru, é um 'tango do Pará'. Ouça como a
canta- bonito! Mas seu canto tem um certo tom de tristeza, ele está
Queimada.
s O fogo.
cantando um lamento; quer saber o qlue diz?" ó Estrelas.

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il
Se algo me acontccer, priv:rnclo-me de sua amável companhia, realmente acontecia, colocou-me num táxi que me levou ao pronto-
lyelo q-ue.-saibam que minha gratidão subsistirá até a própria morte! socorro.
Obrigado!"
Quando Oitameno chegou avisado por uma das cozinheiras, de-
Todos se entreolharam pasmados, sem saber o que replicar. De parou com uma situação patética. Os responsáveis pelo nosocômio
repente entrou o Prof. Normand com a maldita peste dã injeção! queriam meus documentos e a presença de meus pais para poderem
Tinha vindo ainda me infligir um último golpe cre despedida!"sênti me admitir!
um odioso desejo de extravasar minha ira-so-bre ele, e lhe arrancar Mamãe La&cia explicava em prantos que eu estava envene-
o aparelho das mãos jogando-o ao chão com toda a fúria. Não pude; nado, e thes mostrava a catÍa, suplicando que primeiro me prestas-
Oitameno se acercou dc mim, percebendo o fogo em meus olhos, e sem socorro e "depois se havia de cuidar daqueles detalhes!" Eles
dissipou minha vontacle.
se recusaram terminantemente. Oitameno tomou então a dianteira:
Eu não quis almoçar. Subi ao quarto levando um copo d,água. "Qs pais desse garoto estão há dias de viagem, distante de Ma-
coloquei-o sobre o criaclo-muclo e peguei os comprimidos de psico- -naus, completamente alheios ao que se passa aqui, e seus documentos
trópico e os de formicida. Comecei a tremer. estão em algum lugar no quarto da pensão onde moramos; eu me
Olhando para todos aqueles comprimidos, me faltava a coragem responsabilizo por tudo o que diz respeito a ele; está em grande
para ingeriJos! A vida me puxava por uma das rnãos, e a morte perigo, ingeriu perigoso veneno; não entendem que se morrer sem
fela seu socorro, vou responsabilizá-los perante a lei?|"
outra; um suor frio me banhava a fronte. E então, num ímpeto cle
fuga de mim mesmo, comecei a engoliJos aos dois, uo, quuiro, om Ao ouvirem isso puseram-me numa maca levando-me imediata-
seis todos! mente para a sala de emergência, enquanto alguém foi à pensão
-Deixeide tremer, parei de chorar r; suar, enxuguei-me, coloquci buscar meus documentos. Foi-me aplicada uma lavagem gástrica e
nova roupa, apanhei as cartas e desci. Agora vamos à morte cli§na, injeções antitóxicas, e depois me conduziram a um apartamento.
que ocorÍa em pleno. trabaiho, para que rringuém possa dizer que Durante quatro dias estive mergulhado na mais completa in-
Lorys Ádreon era também um vadio, alóm de iodos ôs adjetivos quc consciência que jamais antes provata. Pata mim, o mundo tinha
já lhe aplicavam! parado com a última visão de uma bandeja com uma toalha ren-
Em meio aos degraus da escada, minha cabeça girou como nurn dada, um bule e uma leiteira seguras em minhas mãos; nada mais...
carrossel veloz; segurei o corrimão para não cairl Meu quericlo Nem sonhos, pensamentos ou desejos ocuparam minha mente durante
oitameno! Estava no trabalho sem suspeitar de nada; eu ia exalar esse tempo!
meu último fôlego sem poder Ihe dizer adeus! Não importava; na Oitameno, sentado em uma cadeira debruçado sobre meu leito,
carta eu the dizia. . . não se ausentou dali, senão quando muito necessário. Ele velava meu
profundo sono, segurando minha mão, e orando a Deus para que eu
Mamãe Laércia, nrinha segunda nãe, lá estava ela cantarolando
sobrevivesse. . .
a arrumar as coisas para a hora da merenda da tarde! Tomei a
bandeja de suas mãos, estendi nela a toalha bra,ca rendacla, e lhe Estou sonhando a lenda do Guarany! O belo rosto índio que
meus olhos me mostram náo é rcal, nem o pode ser o hálito quente
99i y.n abraço, um beijo e um sorriso. Depois coloquei o bule e a que recende às minhas narinas, ou a pressão firme de uma forte
leiteira no lugar certo, mas ao tentar colocár a bandôja sobre o bal-
cão, tive uma sensação sufocante aos pulmões, enquanio minha visão mão que comprime a minha!
se enegrecia pesadamente, e minhas forças me fugiam, fazendo_me Quero falat, náo posso; minha língua está pesada e sonolenta.
deslizar de costas contra o armário até tocar o chão-. Quero abrir mais meus olhos para ver melhor a beleza do rosto de
Enfim! Inconsciente! Tudo consumado! O mergulho final no bronze que me vela; não consigo; minhas pálpebras quedam como
silêncio e na paz, tinha acontecido! Lorys Ádreon ião veria mais as asas de uma ave extenuada por um longo vôo; estão cansadas!
horrores, nem tampouco sofreria por amores! etre belo rirismo poético Tento apertar a mão que a minha envolve como num mudo pedido
para falar de uma morte! de ajuda; inútil, não chego a mover um só dedo!
Lá estavam os dois envelopes sobre a mesa de jantar. Enquanto Ouço então uma voz que meus ouvidos aprenderam a reconhe-
D. Nina, uma das cozinheiras, me lcvantava a cabeça- mamãe Laérçia cer! Não é, irreal; não provém da garganta do Guarany! Pertence
abriu o envelope enderecado a ela, e quando se certificou do que a outro filho da selva, que o acaso me deixara conhecer. Era a voz
de Oitameno, real e calorosa!
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('Deus
atendeu minhas orações; você conseguiu sobreviver! num filho Seu que havia dado sua vida em benefício de toda u
Tcnri- tanto por sua vida; nem sei o que seria capaz de f.azer se você Humanidade!"
morresse! IVIas agora tudo já passou, você vai ficar aqui mais um "Lembrando-me disso, pedi a Ele, em nome de Seu filho, que
pouco até se recupetat, e então iremos para casa." me trouxesse você de volta e esperei, sem perder a fé. Então Ele me
Tentei falar alguma coisa para ele, mas tudo o que consegui atendeu e te devolveu à vida! Serei grato a Ele para sempre por
foram sons desarticulados e confusos. nos ter concedido essa grande bênção!. . . Amanhã já é sábado, seus
"§fre se esforce em tentar falar; descanse enquanto eu lhe pais foram avisados do que aconteceu, e é provável que cheguem
conto- como foi que passei os dias, sentado aqui ao seu lado, a espe- antes do almoço; acho que você já estará de volta à pensão até lâ."
rar que você vivesse. A carta que deixou para mim quase me enlou- Uma enfermeira entrou, trazendo um prato de canja e reco-
queceu; nunca um ÍemoÍso me doeu tanto quanto esse, por eu ter menclou a Oitameno que me fizesse comer; eu estava muito fraco,
lido seu Diário, contra sua vontade!" pois passara quatro dias apenas tomanclo soro nas veias.
"Durante todo o tempo em que esteve inconsciente sem que Ele suspencieu então um pouco a cabeceira do leito, e quando
ninguém soubesse se escaparia ou não, li e reli a çarta e o Diário, pensei que iria receber uma colherada cheia de canja na boca, que
muitas vezes! Quando todas as minhas orações e pedidos ao Deus surpresa mais inesperada!
branco se esgotaÍam, passei a rogar Tupã pela vida de minha Diakuy, Sem dizer uma só palavra, encheu sua boca com canja e apro-
adorrnecida pelo Kurarer mortal, e, em soluços, beijei com desespero ximotr-a da minha até tocâ-la. Não compreendi de imediato o que
seus olhos e sua boca, banhando seu rosto com minhas lágrimas, pretenclia fazer, mas quando ele balbuciou hum! hum! e pressionou
murmurando sempre ao teu ouvido: não morra Diakuv, meu único
seus lábios nos meus, então entendi que ele queria me alimentar
arnor, não deixe teu Oitameno sozinho sem a alegria rlo teu sorriso
e o calor da tua presença!" hoca a boca, e aceitei! Assim que engoli, ele explicou-me.
"Lâ fota houve um grande temporal; Tupã lançou seus raios "§,sf§s ou pessoas muito debilitadas são alimentadas dessa
forma- entre os do meu po.ro. Espera-se que a pessoa gue está sendo
em direção à terra, fazendo tremer até as raízes das árvores, e ilu-
alimentada prove também, ao mesmo tempo, do carinho especial e
minando Ipoetona com suas faíscas de fogo azul estrondoso, no clo amol clnc esse modo de alimentar pode transmitir."
intento de te despertar do sono venenoso do Kurare, mas você per-
Então, plosseguiu enchendo a boca com alimento e esvaziando-a
manecia imóvel sem mover nem mesmo as pálpebras, çerradas sobre na minha.
os olhr:s que não viam mais a luz," Fraco como estava, e sob a fcrça do alimento que recebera,
"Senti meu coração apertado colno a rnassa de Mani,2 o pão
adormeci, e só me acordei de novo quando o sol já se despedia no
da terua quando está prensada no tipity,3 e rneu espírito migado poente. O guarto estava inundaclo de rica luz amarela; quando abri
como a castanha ralada no ralo de pedras! Teu rosto tão sereno, os olhos e vi Oitameno me observando atentamente, consegui pro-
que descansava ao veneno, estava pálido como a mais pura ja- nunciar seu nome e falar com ele.
kuba;a parecia que a vida o estava abandonando! Então lembrei- "Qi14Í1sno, quero tomar um banho; por favor, leve-me ao
me de algo que uma vez você tinha me ensinado em um grande - e jog;ue água em mim; a água me fará bem! A água cura!"
igarapé
livro chamado'Bíblia'."
"l\{ss amor, estamos no hospital, você esteve doente du-
rante- dias; quer que eu o leve ao banheiro?!"
"Você me havia dito que o poderoso Tupã nada mais era que
tuma das criações materiais do Deus Todo-Poderoso eue, como
Minha mente ainda estava dopada com os barbitírricos que ha-
suprema fonte inesgotável de energia, reinava como único Senhor,
via tomado, por isso às vezes perdia a noção de lugar e tempo.
controlando todo o Universo. Mas Ele quet'ia que tivéssemos fé,
não precisa sentir vergonha; há dias que o obsetvo, para ver se a
1 Veneno. sonda
2 Mani-oca ou mandioca. uma enorme vergonha sim. Repulsayam-me os pró-
3 Espécie de cilindro longo tecido com cipós para prensar a massa de man-
dioca extraindo a água.
iffi's genitais; saber'que ele me havia visto n$rJi
a Leite de castanhas. rra como um tellível c.stigfl]Í**

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Quando afastou os lençóis, instintivamente coloquei ambas as "Observei-o muitas vezes na execução de tarefas domósticrrs
mãos encobrindo-os. Então ele orhou para mim, sorriu, afastou com
deTicadeza minhas mãos, segurou entre os dedos o nirà.ro p"àacinho
e não posso negar que me surpreendia com a precisão e limpcz.a,
resultantes do seu trabalho. Cozinhar, então, parecia ser seu passa-
e d"isse num tom jocoso: tempo mais requintado e apreciado. Seu comportamento, o de uma
- "_. : l- "É disto que você está com vergonha? permite que uma garota educada no seio de uma família de ótima índole."
r' colsinha ,como essa the faça tremer todo o resto do corpô? Você "Nos estudos seculares, um verdadeiro gênio; especialmente nas
mesrno disse a Oit-ameno que após a operação que fará de você
' uma menina, sexualmente falandó, esse negoóinho vai desaparecer! línguas estrangeiras e na principal virtude para mim: afetivo-espi-
, Pois bem, acostume-se com a idéia de
ritual, um ser dotado da maior sensibilidade e afeição que jamais
{ue ele tem quô sumir encontrei antes em alguém."
; daqui, e passe desde já a encará-lo como se não estivesse mais
j grud.g_dj"pho. a seu corpô!" "Para citar um caso em que pude aquilatar o teor de sua espi-
ritualidade, tente se lembrar desses acontecimentos: lembra-se da
Ele era mesmo maravilhoso! Tinha uma saída decente para pobre velha Natália, a mestiça, que devido a terrível lepra foi re-
todos os problemas que surgissem!
pudiada pelo esposo e filhos. sendo colocada em um tapiri longe
_ - Apanhou uma toalha.e sabonete, levando-me nos braços ao ba- de sua casa para 1á ficar até que morresse? Está se lembrando
nheiro,. cujo_ piso lavou cuidadosamerte com escova e águi sanitária, também que num domingo quando por lá passamos e você soube
antes de colocar um plástico e me deitar em cima, pui, poi", br- da história dela, se comoveu e chorou? Daí no dia seguinte você
nhar-me' Ao sentir suás mãos friccionarem todo meu ôorpo'.oÀ a"n- foi ao hospital 'Alfredo da Mata' saber como cuidar de um han-
cadeza sobre a espuma abundante, senti um imenso curint o pãr ete. seniano e passou a fiatar dela até quando pôde.
Descobri ali durante o banho que, após tanto tempo de con_ A pobre velha Natália morreu, mas não em completo abandono,
tato .com Oitameno, e receber tanta ôompriensão e amor, começava nem com fome! EIa comeu mingaus de todas as espécies, cuidadosa-
a cair a muralha de pedra do ceticismo duvidoso que me impàdia mente preparados por você. Também não adormeceu na morte tendo
de acreditar nele. o desprezo como dono de seus dias! Você conversava muito com ela
JVIas ainda queria saber mais sobre o que o teria feito sobre seu passado, quando era uma saudável mulher, e lia estórias
a mlm, como seu amor, se havia mulheres normais,, queescolher cada dia, sentado próximo ao seu leito de agonia. Como acha que essas
tudo para serem de um homem como ele! --'- dariam atitudes refletiram no conceito que eu formava ao observar você?
.;
Foi depois de ter me alimentado novameriíe-em sua boca que O conjunto geral de suas qualidades físicas e espirituais, na
ousei lhe expor essa questão. sua resposta me Íez ver outro prisma minha opinião, aliás imutável, reduz sua coincidente indefinição
de sua sensibilidade em captar a personalidade das p"rrou, sexual a zeto, como negatividade desfavorável a você. Não posso
quem contatava. "o* me cegar diante dessa riqueza de virtudes, por causa de uma dis-
"conheci muitas mulheres durante todos esses anos. Rela- crepância física 'que pode, inclusive, contar com solução médica,
- com elas, em todos os sentidos. Mas eu queria mais, de-
cionei-me visto que mentalmente você já é do sexo feminino; o que precisa
sejava ardentemente uma mulher que não dependesse de beleza fí- ser feito, quando sua idade e desenvolvimento permitirem, é uma
sica- para me levar a amá-la. uma murhei qr" fosse sobretudo cirurgia de conversão sexual para pôr fim ao seu longo e penoso
inteligente e sensível o bastante para colocar as coisas Àaieriais drama! Então, depois de todas essas explicações, quero saber de
sempre no seu devido lugar. Em minha incessante procura, percorri sua opinião, tem você alguma pergunta? Alguma d(wida?"
desde os humildes tapiris no coração da selva, uié u, rràüncia, "Sim, mas prometo que serâ a última de hoje! Com todas
de música clássica e apresentaçáo de balé no Teatro À*uro"ur. -
as virtudes e defeitos que as mulheres têm, a cada dia, elas se casam
Sabe o que encontrei? Presunçào e vazio!!!,, ou simplesmente vão conviver com homens. Esses homens devem
"Há alguns meses conheci você na pensão de D. Laércia. têlas aceito, assim como são, para chegarem ao ponto de desposá-
Quase uma criança, como outra qualquer. Fiquei chocado quando
las. Por que Oitamento, o ]uma, não fez o mesmo?"
ela disse que você era um menino!" "]\{si16 bem! vou lhe responder: Oitameno observou, du-
"Passei a me interessar por seu caso, depois de observar seu
rante- anos a fio, a maneira vulgar e insensata que as pessoas re-
fletem em seu modo de encarar o amor e a união de dois seres hu-
comportamento."
manos A grande maioria dos casais enfrenta crises diárias de
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infelicidade, ódio, egoísmo, descaso, crueldade, violência física, des- se the quis para mim, foi polque vi etll sctt tltrtttt;ilitt'
er.r
prezo, desunião; enfim, a lista é quase infinita para enumerar! desajuste uma situação solucionável a partir de stta pl:ópt'irr lroir
De que são decorrentes tais reaqões desagracláveis? Da falta vontãde e desejo sincero. Seu caso é transexualismo; não há dti-
de consciência e responsabilidade! O que Oitameno não quis foi vida.; por isso, meu amor a Deus e a você, me move a aceitálcl
engrossar a grande lista dos infelizes, por atirar-se a uma união ansiosamente a conegáo cirúrgica, o que você também
sem antes analisar ponderadamente todos esses fatores de influên- "rp"rurdo
pretende, pois está ciente da necessidade de ser uma coisa só:
cia numa vida a dois. mulher, uiu", esse papel definido pelo resto da vida!"
Entendeu agora por que Oitameno não seguiu a regra geral?" "
Inevitavelmente, tive que prolongar a conYersa, ao tomar co-
"Ufa! Estou diante do índio filósofo que o Amazo- nhecimento, naquele momento, do grande preconceito que oitameno
nas já- concebeu! Se soubesse omaior
qllarlto me olgulho de você! Mas nutria contra o homossexualismo; coisa que aliás eu já suspeitava
é inevitável que eu lhe faça ainda mais umâ pergunta, que acho dc longa clata sem ter contudo ouvido antes, da pr:ópria boca dele.
de grande importância. Você bem conhece os pontos cle vista bí- "[svs entender que, para você, é inconcebível a atitude de
blico-rnorais sobre as questões que envolvem a sexuaiiclade. -
rrm homem que psicologicamente se sinta macho, fisicamente apre-
O padrão social, ainda que grandemente deturpado, baseia-se senta todos os caracteres sexuais inasculinos normais e que desen-
nesses estatutos seculares. Onde encontra ba.se para rne absolver e
aceitar, tendo inclusive intenção futura de ter-me como cônjuge, volva a plena função de sua sexualidacle, derivando dela o prazet
visto que embora me sinta uma mulher, tenho órgãos sexuais carnal, qr,a -"t*o assim deseje copular com outro homem?
masculinos que exigem remoção, a fim de que cirurgicamente meu Devo entender, por sua atitude, que os homossexuais, sejam
corpo se harmonize com minha mente?" masculinos ou femininos, não merecem compreensão nem qualquer
Oitameno estalou os olhos de perplexidade. Fez-me repetir a consicleração; devem ser mantidos longe do nosso convívio diário
pergunta novamente, paÍa se certificar de que não cstava sonhando, por causa do seu comportamento?!"
pois achou incrível que eu pudesse conceber, com aquela idade, um oitameno franziu os sobrolhos e fez uma careta, que e;<primia
raciocínio tão complexo! Mas tudo era muito real! Eu sabia bem o
que estaya dizendo. Meu raciocínio era exatamente esse, por mais
um embaraço desconfortável!
incrível que possa parecer aos que me lerem! E agora?! Teria Oita- Ele suspirou longamente, beijou minha mão, e iniciou a res'
meno o "filósofo de bronze" uma resposta convincente para mim? posta, seteno como quem tomou um calmante'
* "Lorys Ádreon, meu pequeno gênio imprevisível! É pro- -- "É isso que me f.az amar voçê! Sua autcnticidade! Os pro-
váve1 que essa pergunta embaraçasse um bom número de doutores blemas rlo nrundo tambóm são seus; vocô não os despreza, nem
em lei! l'oge clcles. Procura entender sempre mais os 'porquês" Sabe que
Mas vou me atrever a tentar respondêJa porque estou ciente não vai 'consertar' o mundo, mas meslno assim não hesita em se
do quanto é a verdade importante para nós! Tomo seu pr'óprio Diário esforcar cm direção à melhora.
como documento de prova, que um comportamento homossexual não Estou certo de que não me expressei bem sobre minha opi-
condiz ccm sua expectativa sobre o sexo. Os relacionamentos desse nião pessoal a respeito do homossexualismo, quando {risei que se
tipo que iá experimentou foram sob coaqão e não lhe trouxeram você iosse um homcssexttal em v%-'{g-*qn ll-lmgI!}Írl- e*"J99-g:
realizàção" pessôal; antes, lhe acarretaram culpabiliclade e revolta ,tssiaqi.raÍeressado em lhe querer! Íffi; #iffi,*t-ffiffiffiiG"iilíl
ainda maiores. Isso pÍova que não tem uma mente homossexual ...
um comportamento, não uma doençá psicossomática. C) l-romossexual
A tentativa que me relatou de querer amputar os próprios nasce com pequena tendência inerente a seu psicossomatismo, como
genitais mostra que, se tivesse uma vagina no lugar em que tem o seu comportl:3-t9 pg i"fl,ên;
pênis, estaria seu corpo em concordância com sua mente, pois é isso você disse; tigu*or, i,4ffita
"
o quc você quer: ser mulher! Você repulsa com vigor a idéia de
rr.ffIle
ser homem e manter relações sexuais com outro homem! ,-iilL-;1"* ã;l que o homossexualismo seiq-p-urig
Se você se comportasse como, ou pretendesse ser, um homos- ;"nratm-
*iiÍaut'tía ova luz sobre
sexual, jamais teria despertado em mim o interesse sério e o amor que mostre com evl-
a explicaqão da origem desse comportamento,
que sinto por você! Porque não é isso o que eu espero da vida!
7l
70
dência que todas as teorias anteriores estavam erradas, mudarei ime-
"!sç§5 ainda conseguiram me perdoar!"
diatamente de conceito; não vou pretender resistir à verdade. . . -Foi tudo o que consegui dizer, e depois um convulsivo choro
O que eu, porém, pretendo Íazer-lhe entender, é que um Íe- me impediu de manter seqúer a cabeça levantada! Desisti de comer
Iacionamento afetivo-sexual homossexual é algo que eu não ten- e chamei-os para subirem comigo ao quarto.
ciono viver!"
Oitameno, ao observar a situação, pediu permissão para subir
Ao terminar sua explicação, Oitameno ficou em silêncio, segu- junto, pois como tinha ficado responsável direto por mim, estava
rando minha máo, e com o olhar pedia que expressasse meu julga- ê- de thes explicar tudo que ocorrera. Eu permaneci em
mento final sobre o conteúdo de nossa discussão. Levantei um -silêncio
"o.rdiçO"s
completo enquanto ele falava, e afinal estivera totalmente
pouco o corpo, ajeitei o travesseiro às costas e disse: inconsciente; não era capaz de me lembrar de nada! Papai observava
"O 'gênio-filósofo das Selvas' é capaz de entender a lin- Oitameno a falar com um olhar suspeitoso e ftio,
- das forças da natuteza,
guagem dos animais e aves da jurema;r Fiquei tentando imaginar que espécie de pensamentos estariam
vejamos se entende a linguagem deste meu gesto." fervilhando em sua mente imprevisível.
Puxei seus braços enlaçando-os ao redor do meu corpo, olhei-o Tanto ele como mamãe elogiaram Oitameno por seu impor-
bem demoradamente nos olhos e busquei esconder meus lábios dentro tante desempenho em me prestar ajuda e lhe agradeceram.. Papai
dos seus. Permanecemos assim por vários minutos, colados um ao quis devolver a ele o dinheiro que gastou no hospital, porém não
outro. Nunca antes o havia beijado com tamanha ternura! Eu agora o aceitou de forma alguma!
sabia a fundo quem era Oitameno, e sentia-me livre para amá-lo. Uma curiosidade me agitava a mente. Mesmo após essa de-
monstração louca de repúdio ao tratamento na frttstrada tentativa
de suicíãio, será que papai ainda se aferraria a sua opinião de
O efeito dos barbitúricos que eu havia tomado tinha passado,
continuá-lo? O que viria a seguir?!
e começava então a me render conta da loucura que fizera ao Iria eu continuar morando em Manaus, ou me levariam con-
tentar o suicídio! sigo de volta ao interior? Que aconteceria se meus pais ficassem
No dia seguinte, uma enfermeira trouxe uma papeleta paÍa qlle sabendo do amor entre eu e Oitameno?!
Oitameno assinasse, e junto com a mesma entregou-lhe um enve- Só me restava esperar, Para ver! !
lope. Quando ela saiu dizendo que eu já recebera alta, minha curio-
sidade me impeliu a perguntar o que havia escrito naquela carta.
"f5[s náo é uma carta; tenha calma e ouça bem! Você
- comparecer segunda-feira de manhã ao Instituto Médico-
deverá
Legal para um exame e depoimento. Não se preocupe, não é nada 5
grave; irei com você!"
Que vergonha! Além de todo o vexame que passara com aquela VOCÊ NASCEU PRA MIM
estúpida tentativa, ainda teria que comparecer perante a lei para
prestar declaração do motivo de minha atitude insensata! Chorei
bastante, enquanto Oitameno me abraçava, dizendo palavras de
encorajamento. Papai tinha um certo preconceito taciaT, e o fato de um índio
Ao chegarmos à pensão fui
recebido com muita alegria, porém estar envolvido comigo numa situação tão delicada, lhe suscitava
com muita normalidade, e então D. Nina e mamãe Laérçia foram uma sombria contrariedade, que ele não era çapaz de mascarar
contar como foi que aconteceram as coisas quando caí inconsciente. com os rotos elogios que dediôava aos esforços de Oitameno. Meu
Estávamos em plena refeição, quando a porta da ante-sala se embaraço era visível.
abriu e meus pais entraÍam silenciosamente. Aproximaram-se da Mámãe, a mais perspicaz de nós, permanecia como de costume
mesa, mudos como duas estátuas de gesso! em silêncio, mas estôu ôerto de que estava entendendo as coisas
com muito mais profundidade que papai, desde o início.
Depois da nossa gostosa merenda tão bem preparada q9' D'
1 Mata. Nina, úna figura muió bem conhecida de todos nós pediu licença
72 73
e entrou, nos cumprimentando com um largo sorriso. Era meu fosse à audição de clássicos logo mais à noite. Ele mercciet toclrt
"cal.rasco meclicinali,; o pi;f. f.iãrÀrra. a minha consideração, por isso, mesmo não me sentindo ainda bcn-r,
e Ii em seu otha*m ar de triste; euando olhei para ele
i;;;;iili;;i,;ri"ài"
iÍr"", resolvi que iria acompanhá-lo.
emudeci. Ele se acercou cle mim, tá*ãii^_"r'ôffi;;"T";;;,
Ievantando minha cabeça airsó'.ã*"t"rnrru,
" Oitameno me pediu que deixasse meus pais seguirem na frente,
exatamente para evitar estar se expondo demais ao escrutínio exa-
.; "
"^L9rys, rninha.criança querida, o desespero
quase lhc custou gerado de papai. Tínhamos ainda uma hora antes do início da
a vida; .f{ ,*grande chóquá porá'rr;. qr',*á"'rãiirrr'iu
q.,. audição, por isso ele decidiu que seria mais proveitoso que fôsse-
vocô fez! Eu mc senti conro que culpaclo:, mos a pé, para podermos conversar e nos deleitar com a beleza
Íiil;-" ããirn
ter feito isso! Graças a Deus q.,a ,o." sotJl,cviveu, pã. ,o"o
seuão, nem Co nascer da lua cheia.
sei quanto rernorso teria que supc,rtart
Caminhávamos de mãos dadas e vez ou outra parávamos para
Continuei mudo como estava. apreciar alguma coisa e, então, nos abraçávamos.
Ele notou em minha reação que suâ Atravessávamos a ponte de Educandos, quando vimos o ama-
porém como homem de. excetenre iáaote .suspeita se confirmava,
fi;i;ri;;
iornou com uma boa dose de otimismo "aquela ãàrããi?ã, relo-ouro exuberante da lua enorme que se elevava no céu. Oita-
ren*çáá-ãJ ""r-
utrito meno estacou, e fiz o mesmo. Ele tomou meu braço direito e o
que impregnava o at, por convida. u iÀaàr'-n3; girou, deixando o pulso para cima e colocott seu pulso sobre
de música clássica naquela ,orié.- - u'r. ãudicão
;ããila
Ltvo vuaq aL
o meu, como no ritual de cruzamento sangliíneo, enquanto mur-
Eu não estava com muita rrontade de ir porque minha muÍava palavras em seu dialeto índio cuio significado eu não co-
ainda girava de tontura cabeca
e sabia quÉ- o"rir: ;lá;t.;, ;ü;";1;-r; nhecia, olhando fixamente para a rnaiestosa lua cheia!
centração. Ele continuou falando aquelas palavras estranhas, enquanto seu
-
Papai aceitou im-ediatarnente; ele era um amante
fiel da música rosto tomaya uma expressão de súplica e ansiedade. Algumas pes-
erudita e mamãe também ficou entrisiasÃacra .o* soas passaram por nós e ficaram olhando curiosamente para Oita-
disse qr"ie resolveria até à noite ,. i.iã-ãu nao. "-iáàlà.-Éti'entao meno, tentando imaginar o que estaríamos fazendo ali, daquele
Meus pais saíram paru fazet algumas compras e
eu preferi ieito! Ele parecia ignorar completamente a presença de qualquer
subir e descansar um pouco. outra pessoa além de mim e prosseguia no qtle me parecia seÍ um
Acordei com dericados estarinhos sobre os orhos ritual indígena, relacionado ao amor e à união de dr:as pessoas.
Beijos. Depois, rlma voz deliciosamente modulacla e a boca! Ele estava tão excitado na execução daquele ato, que eu podia
vite que urn amazonense jamais poà"riã recusar. À"-rci rl, .or- sentir o bater ritmado de seu pulso agitarlo sohre o meu, à
'(Vamos tomar_ uma cuia de Tacacá passagem rápida do sangue em suas veias! Quando finalmente con-
- na bança de D. Rai cluiu a últiura frase, colocou minha mão sobre o luear do seu coração
mundinha?,,passei por 1á há pouco, . ui-"rrn"rOes enormes cozendo
no tucupy!" fazendo o mesmo comigo e disse num ar de confiante alegria:
"A.os1s, Djahrru é testemunha do nosso amor; sua reful-
Fiz urn quadro mental instantâneo de uma cuia repleta gente- beleza banhou com se!-rs raios nossos corpcs simbolicamente
de
taçacá guarnecida com goma de mandioca, folhas
*r.",
e grancles camarões e rninha boca encheu-se d'água! g,n
àíiáilfr,, unidos sangue a sangLle; agora, somente a nrcrte poderâ fazer
*rno, a" separação entre mim e ti! Djahrru velará pela nossa felicidade e,
cinco minutos estávamos descendo as escacras'" a.pr.r-ár""o* certarnente, exultará em nos ver juntos, cada vez que se elevar em
papai e marnãe que chegavam. sua trajetória pelo céu."
Eu lhes exoliorrei-onde íamos e o que faríamos, "Ela será até mesmo capaz de chorar muitas lágrimas em
olirar cle pupul.qrL cle estava intrigadó; olhou paramas notei no forma de estrelas, se algum mal ameaçar nossa união! Antes do
mente e para Oitameno com um olhár de fria
mim severa-
--
a.â"órfürà]. amanhecer, ela contará ao grande Kuará, o sol. sobre o que pre-
Quando nos sentamos no banco de madeira já com ,orru, senciou esta noite, e ele certamente errcontrarér prazer em saber
nas mãos, oitameno falou-me sobre o quanto rire "uim
agradariu-rà que cada vez qLte aqueccr a Terra, estará também acalentando o
",, nosso amor, que será etefno!"
I Ao subirmos as escadas da varanda, ouvimos as gargalhadas
vegetal rasteiro de pequenas fiores amarelas de sabor picante quase guturais que permeavam a conversa de papai com o professor
e afrodisíaco.
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Quando Marie France nos abriu a potta, o sorriso
reu em seu sembrante ao me ver êntrar na companhiâ de papai mor- |untando a beleza do concerto com a alegria que scnti ao
meno, que saudou a todos com a polidez gentil àe oita- ver mamãe quebrar seu silêncio habitual, tive motivo duplo para
elite européia, embora mostrasse na téz d" t.õnrá-àr
d; ;_ Àir" au exultação e admiração por sua iniciativa.
e puros do Guarany! ár;;; àãii"ioro, As emoções se sucederam, até que o avanço das horas nos
Professor Normand correspo-ndeu com entusiasmo trouxe à lembrança que estava ficando tarde, e devíamos voltar
saudação deixa,do escapar um'efusivo';to.*iááit"-,1
visíver à sua ao pensionato. Papai pediu (desta vez com um respeito notável) a
nãr'ár".".., Oitameno que lhe "fizesse a iineza de ir chamar um táxi".
assento no_grande e macio sofá de finíssimo " v"traó,-"nõuÃio
,o, Agradecemos o professor e Marie France por sua calorosa
eram servidos dois enormes copos de suco de
e deliciosos! euando um sirêncio inofortuno s*viái",i'lfri;un,", acolhida, e partimos rumo ao pensionato. Um beijo rápido e ner-
parecia ter tomado
conta de tudo e de todos,-o professor'rrúitrr"Ii.-á'airrir"r, voso, que meus pais quase pegam em flagrante, foi minha despe-
perguntar quem gostaria de sugerir a primeira -áa p", dida de OiÍameno ao pé da escada!
sinfonia noite. O cansaço da noite anterior me f.ez dormir demais! Eram dez
_. Então, numa surpresa in_esperada, o belo índio ]uma se levantou horas quando mamãe me acordou, preocupada com minha sono-
e disse serenamente sêm qualqüe. aà pronúncia ou diccão:
'(Bem, meu ".ià lência excessiva. Quando mamãe La&cia me serviu a merenda,
- _caro Monsieur Normand, como ninguàÁ ," rnr- restava apenas um pensionista ainda sentado.
nifestou a seu g-entil apelo, peço_lhe à -permissão
expressar meu desejo em sugerir o cláisico qu.
e a palavra para Era Maurício, o filho de um forte seringalista do Pará. Ele era
Ieitosa audição desta noite! Gãstaria iÀensumente
ãr.iá-'nori, a"- um rapaz belo, educado e razoavelmente bem comportado, estudante
de premiar nossos do "Instituto de Educação do Amazonas". Raras vezes nos faláva-
ouvidos com os sons encantaaor., áó, ,ãôrd"s
ae
.úóri;;;;;riu,rur"
a_ ta voix' de Saint Saêns, executada mos; ele saía demasiadamente, e às vezes até pernoitava numa "re-
pa" àrqrrr;;"
Kostelanetz' em gravação aa Ozutcir- Gtrammophon!,, il^
.]{ndrei
pública" de estudantes, próxima do "Teatro Amazonas".
Pelo pouco conhecimento que tínhamos um do outro, nossos
rypelouvir aquerasde estupefaçaoi fle nunca sequer
fa.iscaram diálogos não excediam umas dez palavras costumeiramente; mas
sonnara
"^-*9,1"]l:rj_",
que pudesse paravras e nomes. pronunciádos
de forma tão clara e ponderada, saíiem áu m., ã" naquela manhã, ele estava estranhamente disposto a conversar muito,
em sua concepção ideorógica, possuía curtura e
,,í'ira-iál qr",
-iú"io."rt e pareceu-me interessado demais em saber detalhes muito íntimos
sobre meu relacionamento com Oitameno, que ele preferia pre-
"ducuçãà
Mamãe olhava pat-a papai, Oitameno e eu, com ---- *ar de
quem suplica com os olhoi que haja paz e harmoniai um
conceituosamente chamar de Amadeu!
Respondi todas as perguntas que ele me fez com nada mais
próximo pedido musical me coube, e sei que tocou que a verdade, mas quando notei que estavam tomando um rumo
bem
.f1lldo no coração de todos, mas especialmente no' de óiiu."ro. insinuante e malicioso, não quis continuar o diálogo e educada-
"Meditation" de Thays-Massenet, nos provocou arrepios mente me desculpei.
de intensa emoção! e suspiros
Maurício enfureceu-se diante de minha recusa, e apertando-me
Mamãe me suroreendeu naquela noite, por quebrar o queixo fortemente a ponto de doer, com o polegar da mão direita,
sua habi_
tual passividade sirônciosa, e r,iri"iir.^ã' ruàr.i.ü, disl
Ihe concedesse o privilégio de ,rn pãaúo musical! úã.*uro^ qu" gqm-.um,rídio-cal9i.t?nte
1:jl$I;.. *
"§e você teve coragem Súticiente para *_ .-. *_-_*-*__._-_r
se entregar a uml
_ - "l\rfsis oui; como non, madame Ádreon, ,clarro, que tem -l- por que não a mim?! Você não sabe com quem está arru- }
toda a liberdade de nos sugerir alguma coisa! FormidableiJ mando encrenca, não perde por esperaÍ, um dia desses, quando você
Foi a resposta gentil, carregada de sotaque francês, ao pe_ :mffi seu passinho!!!" .
dido dela. palavras amargas e duras tiveram- um efeito devastador
"Proponho que ouçamos um concerto para piano que em mim! Não fui capaz de me mover sequer do lugar, e quedei
Lorys apreciamos imensaménte; é o n9 z a. 'ná.h,rlánrn'or11...,,eu e cabisbaixo, extravasando em lágrimas minha perplexidade!
Eu não era uma pessoa devassa, que fazia de minha sexualidade
o ponto focal da vida; para mim, as coisas relacionadas ao sexo
I Fruto da família das pinhas, de suco branco eram todas de teor desagradável e traumatizante. Eu queria, sim,
e espesso.
muito amor em meu relacionamento com o mundo, mas um amor
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recíproco e deliberado, através do qual a sensação
-;í;eto de
indesejáver "Que mais preocupado é esse; e vejo láglirrras
me sentir nas mãos de
.alguém
desafogo sensual fosse aniqriilaáa!
naàa
--- mais qu" _;;; ae - faces rostinho
em suas e sobre a mesa! Que houve contigo?!"
,Meu lar era discrepante; dois seres diametralmente Oitameno certamente iria tirar satisfações com l\{aurício sc cu
se deparavam sob o meômo íeto, ligador po. -ii.--"ãrtrãto"opostos
the dissesse a verdade; preferi jogar a culpa sobre o clepoimento
escrito. O mais forte, o_ yarão, áoairuru regiamente ,o.irr que teria que prestar na manhã seguinte, e consegui convencê-lo
', sobre gostos
e desgostos; sua vontad.e era ú; l.."rnovível e imutável! Seu de que aquela fora a causa.
lema fanático e fatal: "Eu quero-qu"^r"ju ,rri..; Realmente era enregelante pensar no que me reservava a
alguma à parte tida como ,,mais fráca,,!
t"rn*"-on.uttu prestação daquele depoimento; eu estava amedrontado!
EIa tinha que aceitar toclas as decisões e decretos
e senhor, com passividade e total dedicação! Eu porémdesabia seu amo
que O relógio estava assinalando oito horas; eu, trêmulo e pálido,
essa ordem doentia de. valores. arraigada num já no corredor que conduz à sala de depoirnentos.
complà^o a" *ã"hir*o sentado
paternalista que perdurava hát sé_ciros, posta
num pedestal ideoró- Havia algumas pessoas que também aguardavam sua vez para
gico deturpaclo, não era eln absoluto a àxpressão dà
verdade! depor. Eram os mais variados casos: estupro, homicídio não-inten-
. I "despotismo familiar", termo que óoncebi para cional, tentativa de suicídio etc., e os interrogatórios se sucediam;
definir
tipo de comportamento-,_inspira,u-*. ,*r. repulsante url.ràã esse po. ató que chegou minha vez!
tudo que exprimisse a idéia absurda da existênci;;;,il;;;'rup.- Ao ouvir meu nome dito por um senhor que portava alguns
rior e ativo e um inferior passivo, que agisse apenas cãm8-objeto papéis à mão, senti meu coração se debater no peito e me fal-
estratégico ocasionar! Eis a síntese áo raàiocíni,
Jiar: "Penso, logo existo!,,
á. aàrpãL fami- taram as forças nas pernas! O homem tornorl a chamar meu nome
e então me encaminhei para a porta.
Sou macho. Chefe por concessão divina; vim para "Ah! é Lorys Ádreon, o gaÍoto impaciente que não
- esperar você
dominar, mol_
dar segundo rneu próprio guerer. ú-"ria-rnirha queria pelo decreto de Deus para o descanso eterno, e deci-
nohre costela desen-
volvida em mulher; foi criada de mim; loeo, depende
d; ;i_. diu antecipar a morte, tomando uma boa dose de venenos! Sente-se
Será meu malho gg goro sensual; tem que me dar e procure responder minhas perguntas sem rodeios, nem mentiras!"
qualqu-er custo; educá-roJ segundo meus aitames filhos a
incãnt"riau"ir, Nem sei onde consegui forças para me manter eÍeto na ca-
tornando-os os melhores do mundo; tem que estar
sempre pronta deira, sem dobrar pata a frente e cair, estatelando o rosto no chão!
e carinhosa, a cada yez que meu membr" r""rraààá.''J" 'prr", As perguntas se sucederam, enquanto eu as respondia num timbre
em riste, e contentar-se com a duração do meu de voz tão apagado quanto o de um moribundo que
quer tenha tempo para o orgasino, quer não! 'aivém dentro dera, confessava
horrendas atrocidades cometidas, antes de exalar o suspiro final!
será minha governanta fier, coiinheira exemolar, ravadeira A última pergunta foi: "Ainda pretende tentar novamente
e
acabar com a própria vida- pelo suicídio?!" Um trêmulo "Não
passadeira impecável,-babá pacient* .
.uiinhom a" Á.Ã'Ãr.ntor,
sempre sorridente anfitriã, e mentirá, sempre que necessário, senhor, juro que nunca mais!" pôs fim àquela agonia!
para
encobrir meus erros! Em troca de toda eisa lista ,1" ,l"oerÁ
terá fatalmente a cumprir, err lhe co,cederei,--pá. q.r"
"i.'*ir.ri Assinei alguns papéis e fui liberado. Ao sairmos por outro
cordiosa bondade", dinheiro, casa e alimentacão!!! -irn, lado, passamos por uma sala e, quando elevei o ollrar, deparei com
uma pedra fírnebre sobre a qral jazia o cadár,er de uma jovem!
santa inquisição matrimoniar! Bendita e adotada por
uma Detive o passo, e fixei o olhar em seu rosto. Havia um enorme
grande massa de seres *divinamente superiores,,
lrematoma no lado esquerdo de sua face, e os lábios apresentavam
"il;;;";;e ema_
chos!!! Isso não é nenhuma engenhosa teoria maquiá"éii.ã; uma enorme rotura por contusão violenta.
realidade interna de incontáveis lares!!! " Das suas narinas fluíam vivos filetes de sanguc! Os olhos esta-
Duas mãos fortes envolveram meu pescoco por trás do vam entreabertos e pareciam exprimir um pavor mórbido da morte!
recos-
teiro da cadeira e o estaro de um costumeiro t.iio ru ,r.ã, Senti minha cabeça girar, quando me imaginei inerte e sem vida
ri",iau
para a frente pelo peso da meclitacão profrnda';;-q;;-;trà".uu,
no lugar que aqnele corpo ocupava, e o horror me assediou a alma.
me trouxe de volta à
_sala de refeições, onde há poucol- mi*tã, u, Na manhã seguinte, papai estava mostrando uma compreensão
palavras estúpidas de Maurício me"haviam ro;úuãó;-; ;;':::*' como nunca antes o vira expressar! Creio que mamãe, com sua pa-
78 ,,'-' .
79
t\1
\" ' "l i'-'l :
ciência e dedicação, o havia convencido a mudar um pouco alguns Um beijo furtivo foi o seu "sim", e desceu apressadamente as
conceitos sobre as relações humanas! escadas. Meus pais foram às compras e preparativos para a via-
Aproximou-se da cabeceira da cama, inclinou-se e beijou-me gem do dia seguinte.
na testa! Depois disse brandamente: Pedi à D. Nina que me acordasse às quatro horas da tarde,
"Lorys, meu filho; imagino o quanto sofreu corn todos esses assim teria tempo de me aprontar para ir com Oitameno assistir
últimos acontecimentos perigosos que vlveu! Mas a situação é ainda o radiante festival de Kuará, o astro-rei, antes de deitar-se atrás
remediável; de momento não tem que se preocupar com absoluta- da linha do horizonte.
mente nada; nem mesmo com sua situação escolai, porque as férias
iniciaram na última sexta-feira, e você está com notal excelentes! O lugar em que gostávamos de ficar apreciando o rio Negro e o
pôr-do-sol ficava por trás do "Estaleiro São |oão Batista"; fui ime-
Precisa de muita paz e descanso; você vai passar as férias conosco
no interior; o ar e a alimentação de 1á lhe farão muito bem! Verá diatamente naquela direção. Ainda ao longe, pude visualizar a ima-
gem de um homem, sentado, com a cabeça dobrada pela tristeza.
que qua,ndo as aulas se reiniciarem já estará com outra disposição
para enfrentar a batalha; partiremos amanhã à tarde do pôrto "da Quando cheguei mais perto, chamei por seu nome. Ele nem
Panair, pois iremos em outro motor de linha; não posso esperar sequer moveu a cabeça! Sentei-me ao chão e me insinuei entre
pelo que costumamos viajar; tenho muito a fazet em tasa!" suas pernas como costumaya fazer, e olhei para seu rosto. Duas
Eu estava admirado da mudança de comportamento em papai; lágrimas abriram caminho por entre seus cílios cerrados; desta vez
achava louvável sua preocupação sincera com meu bem-estai mas fui eu quem as deteve com ambos os polegares, como ele fizera
suspeitava de que houvesse nessa decisão de me levar consigo ao tantas vezes para mim!
('l\rlss
interior um motivo subjetivo incluso! Algo me sugeria a idéia de amor; desculpe minha falha; D. Nina se esqueceu
que ele desconfiava que meu relacionamenlo com O-itameno compor- -
de me chamar, e quando acordei já era muito tarde; por favor,
tasse amor, não simples amizade, e estivesse querendo nos sepaiar! não fique assim; fale comigo!"
('Que
Na hora do almoço, quando me sentei ao lado do ]umã não quer que eu lhe diga? Que estou morrendo de
tive coragem de encará-lo, quando deixei escapar um fraco olá, e
-
alegria por saber que amanhã, a uma hora dessa, estará partindo
permaneci a refeição toda em total silêncio. Éu estava sem cora- para longe de mim?!"
gem para lhe dizer que íamos ter que nos separar! Ele notou que Aquele foi um pôr-do-sol que jamais esquecerei! Não pudemos
havia algo .de erradõ comigo e enquanto eu escovava os dentes, nos encantar com a beleza luxuriante daquela fascinante visão ama-
pediu permissão e sentou-se em minha cama.
relo-laranja; a amargura em nossos corações nos subtraía o poder
"pssss o que foi que aconteceu? Você está muito
- do quesaber
diferente é!"
de apreciação! Só éramos capazes de entender que teríamos que
fazer Íace à ausência um do outro, nada mais. . .
Ele ex_primia na fala e no olhar uma ansiedade amarga. Sentei-
me a seu Eu só conseguia imaginar que no dia seguinte passaríamos os
-lado, após fechar a. porta. Contei-lhe o que ,õ passuvu, últimos momentos juntos e teria que me separar dele, rumo à
e deixei claro que estava dividido entre duas decisõês, embãra não
tivesse ainda o poder de diz* que faria isto ou aquilo, pois papai distância, deixando paru ttás com ele minha esperança e alegria!
era quem dava as ordens. Voltamos para casa com os semblantes decaídos como duas pes-
Oitameno se entregou ao desânimo que lhe sobreveio. Ele es_ soas que retornam de um enterro!
tava muito triste! Pediu-me tal qual um menino ansioso:
"p61 favor, Lorys, não vá! Agora que estamos começando
a nos- entender, se nos separarmos por um mês inteiro, tenho medo Eram três horas de uma tarde de calor sufocante! Eu chegava
que você 'esfrie'!" com meus pais ao porto da "Panair"; não com a tranqüilidade de
quem veio dar um passeio agradável e f.azer algumas compras, mas
lá era hora de voltar a seu trabalho e ele precisava ir; en_ dom o nervosismo desesperante que agita um coração contrariado e
tão tive uma idéia repentina. impotente para reagir, diante de uma situação indesejável! Eu havia
"Qgs1s que me leve para ver o pôr-do-sol no final dessa me despedido de todos no pensionato; menos de Oitameno. Ele
_
tarde; - lâ podeTmos conversai melhor; te espero na porta prin- não viera paÍa o almoço; eu teria que suportar até mesmo ter que
cipal, está bem?" l
partir sem me despedir dele!
)

80 81
Faltava uma hora para a partida. Havia uma agitação fervi- vais agora; eu te pfometo que só tu ocuparás minha mente dul'alltL)
lhante cle pessoas, embarcações e animais por toclos os lados. tua ausência; Íicarei fiel à tua espera, Lorys!"
Um pouco distalte de nós, quatro homens ao lado de um Minha resposta contribuiu para mudar um pouco seu ar de
cnorme tacho coin água fervente sacrificavam porcos, cuia carne e grande preocupação.
vísceras eram venclidas nas banquinhas de madeira, tremendamente "Olhe para o grande Kuará, Oitameno; somente seus
sujas e mal-cheilosas a alguns passos dali! raios- de calor tocarão meu corpo durante tua ausôncia; quando
Um pequerro barco com o l.rome "Marco Aur'élio" atracava bem eu voltar, serão teus carinhos que me aquecei'ão de novo! Eu
na ilharga do r.rosso. Estava tão abarrotado de carga e pessoas que também já aprendi a te amar o bastante, para Íecusar o mundo
sc algo ocorresse ern seu casco qllc provocasse urn vazamento, a inteiro em troca do teu amor!"
tlagédia scria enorme; mas os propr:ietários desses precários meios Não podíamos demonstrar o que sentíamos, aos beijos, nem aos
de transporte da Amazônia se fazem de obtusos e surdos aos apelos abraços; papai apareceria a qualquer momento. . . Tivemos que nos
freqücntes da "Capitania dos Portos" para não transportarem carga conformar com apertos de mão e olhares apaixonados; nada mais.
e passageiros em exoesso! "Lá está ele, puxa vida! E vai partir agora mesmo sem que
Muitas vezes qualquer pessoa observadora pode notar que há papai- tenha chegado; não poderei comprar o 'macaquinho-de-cheiro'!"
nm nítmero tão pequeno de coletes salva-vidas a bordo; isto, quando Essa foi minha exclamação ao veÍ o homem do barco ao lado,
há algurn; que no caso de sinistro, muitos passageiÍos simples- que caminhava sobre a grossa prancha de madeira no flutuante.
mcirte não teriam ctialquer chance dc sobrevivêncial Essa é a crua "§f;s se preocupe; eu o compro! Hei! mano; por favor,
rcaliclade do quc nos apresenta o transporte fltrvial de toda nossa - cá!"
venha
Amazônia Legal! Não pude resistir ao impulso de abraçá-lo e beiiálo ternamente
N4eus olhos se detiveram sobre duas pequeninas bolinhas bri no pescoço, ao reseber o macaquinho que o tapaz lhe entregara,
lhantes que observavam, ateirtas, todos os movimentos no interior da sua mão!
do outro barco. Eram os olhinhos vivazes de um cinzento "maca- "Oh, gue bonitinho; Nicky; ó assim qrte o chatnarei. Que
quinho-de-cheiro", como são chamados popularmente. Ele se es- rcha,- Oilanreno?!"
;ondia quase por inteiro, entre as mechas de cabelo do rapaz que "Esplêndido!" disse ele; "se isso o faz feliz creia que a
o trazia preso a um cordel de punho de rede. mim-tambérn alegra muito; seiam bons amigos!"
Seu dono o estava vendendo, e quando o ouvi oferecendo às
pessoas, saltei para o convés contíguo e disse a ele que esperasse
Até mamãe se levantou da rede para ver, tanto foi grande
até que papai voltasse a bordo, pois eu ia pedir-lhe qlle o Çomprasse
a "zuada" quc fiz!
para mim! Ao desviar meu olhar para o exterior da enrbarcação. avistei
papai que chegava cotn o proprietário do barco; agora iríamos
Debrucei-me no totirbadilho e dirigi o olhar ao long,e, na dire- mesfilo partir! Oitameno falou nervosantente:
ção ein que papai deveria estar concluindo seus negócios com os "plsslsi aqui contigo até o último instante; não serei co-
comerciantes. Tudo o que podia ver era tltrla inassa pululante de
varde- para obedecer ao instinto de fuga que me quer dominar,
vicla humirna que se crúzava para cima e para baixo, sem parar. para sair correndo daqui e não ver você se peldendc na distância!
Em vez de avisar papai, meus olhos enÇontraÍam as formas co- Eu vou ser forte para te dizer adeus; a esperallça de que vocô
nhecidas do homem quc etl peilsava estar long,e dali, trabalhando, voltarír para mim é maior qtie a dor de nossa separação! Procure
e que não veria mais, antes de partir! Ern rápid.os passos ele se di- cartas nos motores que chegam lá às terças-feiras, c mande resposta
rigia em minha direção, com Llm pequeno embrulho nas mãos. nos que saem às quintas; te escreverei cada- selnana; por favor, não
Oitameno cumprimentou mamãe e me eirtregou o pacotinho, den- me deixe sem notícias!"
tro do qual havia bombons de chocolate, urna carta e uma fotografia. O sino de comando foi acionado e o ronco do motor quase
Mamãe pediu licença e se encaminhou à sua rede para descansar um encobriu suas palavras. Oitameno clirigiu-se à recle de m:rmãe para
pouco. Assim que ficamos a sós, ele apertou minha mão e disse: lhe dizcr aclens, depois rJespeditr-se de papai, cuja exprcssão facial
"Quero que olhes sempre para essa foto, talvez isso impeça denotava espanto, por vê-lo ali a despedir-se dc mim; essa atitude
- esqueças; não permita que outro ocupe meu lugar em teu
qlle nle definitivamente the fazia claro que, entre nós, havia mesmo algum
colação; por favor; te amo! Volta pra mim do mesmo jeito que sentimento que excedia amizade, envolvimento!

82 8l
Aproveitando breve ausência de papai que ajeitava as com- degustar cada ângulo de mim, pois me percorriam de cima a baixo,
pras junto às redes, puxou-me para si e uniu seus lábios com incessantemente. Aquilo me embaraçava sobremaneira.
os meus, num beijo nervoso e cheio de angústia, que literalmente Ao dirigir-se à sua cabina pousou a mão sobre o punho de
me provocou dor! minha rede dando uma breve sacudidela para despertàr minha
O serviço de alto-falantes anunciou que nosso barco partia e atenção e disse:
em seguida um anúncio inesperado me fez cair numa total perple- "Espero que você não tenha se esquecido do que falamos
xidade! O rapaz do som obviamente tinha sido instruído paru -
ao partir. Venha à minha cabina assim que puder; temos muito
fazer aquilo, exatamente na hora de nossa saída. o que conversar!"
A música com Genival Santos, "Na velocidade do meu pen- Esperei que meus pais adormecessem e me dirigi ao seu en-
samento", encheu o ar daquele agitado lugar. Quando a melodia contro, embora intimamente desejasse não ir vêJo.
chegou ao ponto em que o cantor dizia: A porta da cabina estava entreaberta; ele ouvia discos, e ti-
"fs amo e não posso ficar tanto tempo distante de ti, por- nha um copo com bebida à mão. Quando me avistou, saltou da
-
que descobri que é parte de tudo que existe no mundo diante de cama de um pulo e aproximou-se bastante de mim quase tocando
mim", a embarcaçáo daya ré e girava a proa para estibordo, se seu corpo no meu.
distanciando do flutuante onde Oitameno permanecia imóvel. "psn5gi não fosse vir comiqo esta noite." Em se-
Ainda pude ver quando ele enxugou as lágrimas que lhe des- guida,- falou queque estava enfrentando problemas, me convidou a
ciam pelas faces. As minhas também desceram simultaneamente chamá-lo de "você" e explicou-me que lá conhecia meus problemas
porém, desta vez, estávamos nos vendo a distância, sem que ele por iá ter ouvido falar de minha pessoa.
pudesse detê-las com seus polegares, numa atitude carinhosa de Essa revelação de que ele estava consciente de meu principal
consolo que sempre repetia, quando me via a chorar. Consegui, segredo me chocou sobremaneira. Definitivamente eu mã sentia
embora já estivéssemos quase fora dos limites do porto, ouvir a numa "Arapuka"r pesada demais para minhas forças. Meu nervo-
última estrofe da canção que terminava: sismo se acentuou quando ele se aproximou da porta, fechando-a
"E,s vou mas eu volto, cortando cidades e todas as bar- e retirando a chave!
- de qualquer maneira, eu venho depressa matar a saudade
reiras, Eu tinha que encontrar um modo de me desvencilhar daquela
quejáéàbessa!" situação sem causar alarme, nem escândalo. Então, tentei explicar-
Eu nunca teria percebido que o comandante do barco obser- lhe meu modo de encarar a vida e a sexualidade e falei-lÀe de
yava atentamente todos os meus movimentos desde que Oitameno meu caso de amor com Oitameno.
chegara a bordo, ao som da música que me havia ofertado, se "Que
aa^
é isso?! Calmal lá. disse que você me agrada, e
não me tivesse chamado à sua cabina quando passei, e contado quanto- a fazermos outras coisas, isso fica por conta do acaso; se
em detalhes tudo o que presenciara! nos sentirmos atraídos mutuamente, tudo o que acontecer será
Minha surpresa foi estonteante; eu me sentia na presença de espontâneo, sem coação nem violência alguma."
Zeno como um peixe preso a uma rede! não havia como negar; ele "Não! vai acontecer nada além de um diálogo; e não
tinha visto, da taberna do flutuante ao lado onde tomava cerveja, - que euNão
adianta não mudo; nem sob ameaça!"
cada gesto meu e de Oitameno, de sua chegada à nossa partida! "f,st{ bem! Sente-se aqui a meu lado; vamos ouvir mú-
Eram sete horas de uma noite em que "as lágrimas de Djahrru" sicas.- Quer ouvir aquela que seu namorado lhe ofereceu na 'Panair'?
apareciam aos milhares, como dizia Oitameno, ao referir-se a uma Eu também comprei o disco!"
noite estrelada, embelezada pela lua. Meu jantar não ultrapassou Fiquei mais tranqüilo e perguntei que mal o afligia para beber
duas ou três garfadas de arroz com um pedacinho de tucunaré tanto. Ele contou-me que era vítima da traição de sua esposa,
frito; a saudade me subtraía a fome. dizendo que iria abandonar o lar para não ter que matá-la.
Mamãe sabia que eu estava sofrendo; ela se via obrigada a A amargura de Zeno me doía, mas eu me sentia impotente
fingir uma alienação aos meus sentimentos, mas estava bem certa para ajudáJo.
de que eu sofria por amor ao homem que ficara para trás!
Zeno jantava conosco à mesa. Seus olhos, cujo brilho rubro
provocado pela bebida tinham ainda um ar de sobriedade, pareciam I Armadilha.

84 85
I
Quando ouvi os primeiros sons da música quc Oitameno me um pouco sob o peso dc seu corpo que forçava o pênis para
oferecera no porto, stta imagem querida veio octtpar minha mente, dentro, e alcancei a parede de madcira cla cabina começando a
e tudo o mais; até mesmo a presenÇa çle Zeno perdeu o signifi- golpeá-la enr desespero Çom a mão fec*ada.
cado! Mer:gulhei num devaneio profundo ao compasso daquelas Sitbitamente baÍiclas na porta o fizeram deter a penetração.
lindas estrofes, e me deixei levar pela n-remória do homem que eu Uma voz perguntou de fora:
arnava, até os confins da imaginação. Meu sonho acordado foi um ('Q11s
deleite para o cstá acontecer.rclo aí clerrlro?! Ei, Zeno; que barulho
coração. -
é esse? Você estír bcrn?!"
De repente, V'eno apagou essas imagens por agarrar fortemente
Era o proprictário do barco cuja atcnção as baticlas clespertaram;
meu pulso direito! Um gélido arrepio me correll pela cspinha; senti
minhas forças se esvaírem. Esbocei um grito orle foi detido por slla
cra minha única chance de escapar conl sua ajuda. Gritei:
forte mão, espalmada sobre minha bocal Caírnos ao chão qrtando "p61 favor, senhor, tire-me daqui; ajude+ne, estou num
me desequilibrei sob o impacto de seu coÍpo. Ele se alongou sobre
-
aperto!"
meu coÍllo e prendeu minhas pernas entre as dele num aperto do- O homem tinha uma cópia da chave da cabina. Quando o
1 loroso. Daí aproximou a boca de rneu ouvido e balbuciou: trinco girou , Z,eno retirou-se de cima de mim corno um raio; eu
i "Não tente reagir; não quero fetilo. Acalme-se e deixe que me levantei e saltei sobre a cama, puxando um lençol e me en-
eu -
faça o que queto; prometo que não vou the ntachucar'" volvendo nele para ocultar minha nudez.
l.I Suu boca cobriu a minha; o hálito nauseatrlc de cerveja azeda Que que é isso! Ora Zeno; você agora estir apelando até
me encheu de nojo! Eu tentava me desvencilhar do apetto de suas para-garotos; e a pulso?!"
pemas e da tenaoidade de seus bracos ciue me mantinham indefeso Meu rosto queimava de vergonha; dobrei a ca,beça para a frente
de costas contra o chão, mas eÍa inútil; ele era mttito mais forte de humilhação e medo. Queria sair dali imediatamente mas nu como
que eu; não conseguia por mais quc me csforçasse! estava não podia ser! O homem se aproximou de mim e disse:
Dccidi que lutaria até o último instante em «ile encontt:asse "Fique calmo, o perigo já passon, vou lhc providenciar roupa
forças. Tive muita vontade de gritar, várias vezes. NIão o fiz por- para -qrlc possa voltar a sua redc. Espere que volto 1ogo. Eu só queria
que sabia que um escândalo seria desastroso; nteu pai rrão pottparia entender o motivo desta loucura de Zeno em fazer isso contigo!"
ninguórn, se ao menos imaginasse uma cena claquelal Zeno me olhava com rlm ódio cortante; creio que eu não o
N4inha coragem fraquejava; o cansaço da constância de tônus estava odiando menos. . .
muscular toubava cada vez tneis minha resistência. Ele mordeu metls Finalmente o outro homem voltou com um calção à mão. Era
Libios corn força e se insinuou com todo o peso entre minhas coxas. bem grande para mim, mas certalnente melhor que nada! Ao en-
Senti a dureza de seu membro pressiona,r me'l púbis; de repente tregá-lo olhou-me coir um ar de compaixão e disse-me palavras
suas mãos me largaram e desçeram aos flletls quadris, agarrando cle conforto.
tner short e fazendo-o em trapos. psi dsbrou metts bracos pata O medo de qr-re papai pudesse estar acordaclo quase me im-
trás com violência e vitou-me de bruÇos deitando-se sobre mim. pcclia de andar. Dirigi-me l1a ponta dos pés para .innto dele.
Era como se eu putlesse ver e ouvir Oitameno reaginclo com fúria Dormia profundamente!
àquele ultraie estúpido! Encolhi-me no fundo de minha rede cobrindo-me até a ça-
Então ele se livrou do short que vestia, pude ser.rtir sua beça com o cobertor'. Meu nervosismo extravasou em tremores pelo
carne quente sobre meu glítteo. e seu membro cuia glande resva- corpo, lirgrimas e soluços que eu abafava com as mãos à boca para
la.,,a crn torno de meu ânus! Zeno apariloll url tttbo de creme não provocar ruídos. Suportei respirar sempre o lncsmo ar viciado
para cabelo e untou o pênis a fim de facilitar a penetração. Eu preso sob a coberta, até que parei de ofegar e chorar encontrando
nao queria aquilo; sim, realmente estava com nojo dele e não algtrma paz, e adormeci. . .
pcdia aceitar que me tlsasse assim. Pela manhã, fui à copa tomar minha merenda. Assim que me
Sua glande fez picssão e comec.'oll a penelrar em nrim! Eu me sentei à mesa com minha xícara de chá e algumas torradas, ouvi
scntia perdiclo diante de ttnra desgraça inevitável. Unla clor' lancinante por trás de mim a yoz de Zeno, abaixei a cabeça. Ele se apro-
sc irradiou do ânus às partes internas das coxas; então foi como se ximou pela esquerda do banco, totnou meu queixo com a mão e
rncu próprio medo se tlansformasse em forÇas! Consegui me arrastar alçando minha cabeça falou:

Ít6 87
"Perdoe-me, pelo amor de Deus, Lorys, por aquilo que eu "Minha querida Diakuy: Saudades!
- faço a você. |amais -Desde que nos despedimos no porto pela última yez, a saudade
quase fiz luma coisa dessas antes óom afuuém!
Não sei onde estava meu juízo ontem à noite; eu perdi a tazáo." veio me fazet companhia. Tudo o que vivemos juntos, desde que
"Você não merece o que eu ia lhe fazer; é táo puro, tão deli- nos conhecemos, retorna em forma de lembrança, cuja nitidez ao
relembráJas, me leva ao desespero das lágrimas. Sim, meu amor;
cado! Fui um louco; perdi a razáol"
choro por ti, por tua ausência, pela falta que a tua presença me fazl
Abandonei a xicata sobre a mesa e levantei-me, surdo e cego às Lorys; é como se de repente ao voltar para casa naquela tarde, tudo
suas palavras. Para mim a situação era irremediâvel era como se tivesse perdido a cor e a graça; foi aí que reconheci quão impor-
o nome "canalha" estivesse impresso a fogo na testa de Zeno e nada tante me era tua companhia!
poderia removê-la dali; nunca mais. Evito, desde então, passar pelos lugares que mais me lembram
_ Nos minutos que antecederam nosso desembarque, iá em nosso
destino, fui agradecer ao proprietário do motor por sua bôndade para
nossos momentos de amor. Eu não concebo a idéia de uma vida sem
você; descobri, no amargor dessa nossa transitória separação, uma
comigo..Ele então entregou-me uma carta de Zeno que jamais ôhe- importante verdade, que deverá gravar para sempre em sua mente:
guei a ler, pois fiz questão absoluta de lançá-la aô remanso das 'Você nasceu pra mim.'
-observava
águas pardas do Madeira, enquanto ele me do convés Às vezes, subo ao teu quarto e deito-me sobre a cama, abraçan-
superior, onde pilotava ao timão. do o travesseiro onde tantas vezes tua cabeça repousou. A dor da
Desavisados como estavam, os de casa não estavam no porto tua ausência então aumenta tanto, que não consigo conter o pranto
para nos receber, por isso nos dirigimos rapidamente para casá. Ao e choro como um 'Kurumyn' abandonado!
passar por aqueles lugares tão conhecidos, vendo aquelas mesmas Ninguém antes de ti conseguiu me arrancar lágrimas de amor
pessoas que tantas vezes haviam falado comigo, a emoção me fez como as que choro agora; você é meu destino; percebo que outro
disparar o coração. caminho me faria infeliz. Tenho ciúme até dos comentários que ouço
Era quase irreal estar de volta revendo tudo aquilo; parecia sobre ti.
que o tempo não tinha passado; que nunca me havia aúsentadà dali! Um dia desses, quase me atraco com aquele tal de Maurício do
Em casa tudo e todos estavam do mesmo ieito; minha cama estava Pará; dona Laércia interferiu e conseguiu evitar o pior! Como vês,
arrumada como se eu tivesse saído para dar um breve passeio e por ti, sou capaz de tudo; nunca permitirei que alguém manche tua
a encontrasse arrumada em seguida. . . imagem!
Papai pediu a um vizinho que construísse uma casinha para Abre os outros envelopes, somente nos dias indicados; pretendo
- _. _
Ni-cky, o- macaquinho; ficamos surpreendidos quando ficou pronta, me fazer presente através das cartas, enquanto estivermos longe.
pela perfeiçáo e beleza dela e rimos gostosamente por um bom
Vou terminar, desejandoJhe muita paz e tranqüilidade e dedi-
tempo com as gracinhas dele ao entrar nela para estreá-la! candoJhe, através dessas simples linhas, toda a devoção do meu
_ Vovó foi a que mais apreciou a vinda de Nicky para nossa casa;
ela o tratava como a um netinho, e lhe dava de iomer de todos os
amor, que é eterno!
Adeus
alimentos que preparava.
'Djihy Oitameno, yrobahry Koema u ypoetona, uuba Kurare al
_A minúscula presença daquele filhinho peludo da mata, porém, êh Diakuy'l Do sempre teu Oitameno."
me lembrava constantemente o homem que o tinha comprado, e a
saudade com a ausência dele era difícil de suportar.. . Esperei Dobrei a carta após beijáJa com ardor, sentindo o perfume do
ansiosamentg pela próxima terça-feira, quando õhegou um 6arco
talco que ele tinha colocado no envelope ao fechá-lo, e recolocando-a
procedente de Manaus; eu queria receber notícias de bitameno. no mesmo, me encaminhei para a feira, onde comprei algurras coisas
para o almoço e retornei a casa.
O comandante me entregou três envelopes verde-amarelos; num Os dias se arrastavam lentos e monótonos; segui o exemplo de
deles estava escrito terça-feira, no outro quinta e no último, sábado.
Oitameno, e lhe escrevi três cartas por semana, pàtd me fazer pre-
Eu deveria abri-los somente naqueles dial prescritos, foi o que reco-
sente a seu lado na distante Manaus, através da linguagem muda delas.
mendou o luma, ao dá-1os a ele em Manaus!
Saltei de bordo e abri o primeiro, com uma curiosidade devo-
rante; busquei a _ sombra refrescante de uma frondosa mangueira I Eu, Oitameno. vivo amargurado de manhã à noite por causa do veneno da
onde me sentei sobre uma enorme raiz,e li. A carta dizia em reõumo: flecha do amor de Diakuy.

88 89
Algo porém rondava minha aparente calma; uma surpresa ines-
pcrada que haveria de me abalar á estrutura emooional, ,ô* qu. Essa sensação de poder sobre alguém mais forte que eu, em
ao menos em sonho contasse existir! "u todos os senticlos, agia como uma perigosa tentaçáo, de direcionar
,,yama- as coisas egoisticamente para fazê-lo pagar Çem vezes mais pelo
. ...Ngr dias que se seguiram, ao retornar a casa com um
shy"r cheio de legumes é frutas atado às costas, uma caminhonete,
que me havia feitol Mas isso poderia pôr em .iogo n-rinlra integridade
para com o |uma, porque eu ainda gostava de Giuseppe, embora
c,ujo som do rnotor me pareceu instantaneamente familiar, freou perto
não o amasse mais, e se voltasse a vê-1o, permitinclo que me beijasse
de mim. Quando elevei o olhar na direção dela, o homem que a diri-
gia.abriu a porta num segundo, e saltou para fora, coriendo em e acariciasse como antes, a paixão bem que poderia renâscer, pondo
em risco o meu arnor com Oitameno.
minha direção e gritandor
Quando nos encontrarnos, conforme o combinado, Giuseppe
. .; "É Loli, você voltou!!! Graças a Deus! etianto esperei por disse que estava determinado a me conseguir de volta a qualquer
ISSO ! preço; clisse que recusara um serviço de terraplenagem de duas
- À4inha perplexidade não foi bastante para me embotar a memó- horas, que iria lhe renclel alguns milhares de cruzeiros, para poder
ria..Ele era "Giuseppe di Mônaco", o itàliano que no passado eu vir falar comigo àquela tarde! Imaginar a reação que Oitameno teria
havia amado como à própria vida! se presenciasse uma cena daquelas, provocava uma sensação de frio
eÍn meu ventre, e me "bambeava" as pernas!
. Não fui capaz de retribuir seu entusiasmado cumprimento, Mi-
nha qnase-i-ndiferença o chocou; ele não contava qlle eu pudesse ter Eu me mantive em silêncio, limitando-me apenas a menear a
rne soerguido da decepção. cabeça em concordância, deixando que se expressasse até onde julgou
pode ser; você não me esqucceu! Diga que estou necessário.
-^"Loli;-não
certo? o_que houve entre nós foi algo muito forte. que"te* ou, t.. Seus argumentos eram incrivelmente convincentes: se eu me
sobrevivido ao tempo! você estava cãrto quando disse ou. i"
jtrlgasse uma pessoa livre, não hesitaria um seguncÍo para explodir
-"
", isso
casasse sem amor, enfrentaria um inevitável desastrel pois foi nllm "sim", e abraçá-lo impetuosamente; mas o bom senso me com-
mesmo,o que aconteceu; meu casamento ruiu há dois meses; estamos pelia, a agir em conformidade com a razáot
separados; mais tarde vou the contar os cletailles; Giuseppe segurou-me pelos ombros e olhando-me fixamente
,ó urru._
gurado." "rto, " disse:
Eu ouvia todn aquele desabafo Çom uma perplexirlade "Acho que isto é tudo o que eu tinha para te dizer, Loli;
teante! Nada clo que ouvia me parecia real; era óomc estar ouvindo
eston_ falei-demais! E tu? O que dizes?!"
declarações do extra-sensorial, mas
")iss que estou tonto pela confusão q',le se instalou em
o contato de seu abraço era tão minha - cabeça! As coisa.s comigo jâ náo estão como eram antes; mas
concreto quanto o chão que nos sustinha, e tive q,e crer que aquilo falta-nre coragem para te explicar o porquê de eu não poder aceitar
tudo acontecia de verdade! ieu pedido, 'caro mio'! Eu bem que preferia prolongar esse silêncio
. Dizendo que exultava de.alegria por nossc recncontro, e que que_ que tens visto, e deixar tudo como está, sem qnalquer explicação;
ria ver-me logo mais, ele convicloú-me para ir pas-sar a taráe com ele. por favor, 'Pepe', vamos parar com essa 'doidice' e ficar cacla um
Como não me ocorreu nenhum pretexto corno clesculpa no mo- em seu lugar, está bem?!"
mento, eu lhe disse que só iria se ele viesse me buscai em casa, "Doidice?! Então Loli chama de 'cloidice' o mais pnro sen-
e então depois de recusar sua oferta de "Çarona" andei dcpiessa de - que alguém possa te oferecer?! Se as pessoas soubessem que
timento
volta, com o espírito enleyado de surpresa! estou apa.ixonado por um meninc me chamariam certamente de
Eu ainda gostava dele. vê-lo pr:aticame,te inlpl:ra.nrJo rnen doido, mes nem isso me afetaria agora; veio o quanto fui tolo por
amor, me daria uma sensação de vitória; de revanchc, pela dor me aventurar em um casamento sem amor; um orro que ainda tem
que o fim do romance que tivéramos me fizera sofrer; eti sentiria conserto, porque tanto eu como ela, ainda podemos achar outra pes-
um praz€Í quase sádico ao ouvi-lo dizer "pot favor, [,o]i; seia ruzoá_ soa e recomeçar a vida novamente; não acha que tenho razáo?"
vel comigo; vamos recomeçar; preciso de você!" Cacla frase nova dele me confundia a mente; eu já não tinha
nem argurnentos para lhe responder; então não iri outra alternativa,
senão a de la.nçar a verdade em slla face! Tirei a fotografia de Oita-
t Cesto rudimentar tecido corn
meno cle dentro do envelope de sua primeira carta, e falei com
fibra vegetal.
firmeza:
90
9l
"f,is o
motivo de eu não poder
mais aceitar teu pedido Giu- pata casai vamos passar esta noite juntos, não pense que vou agir de
- Leia também
seppe! esta carta, e saberá de tuclo!" má fé contra ti, não irei além dos beijos e carinhos, prometo; por
A última coisa que eu faria seria magoá-lo. Ele fora um irmão favor, confie em mim! Mas preciso de tua presença esta noite; quero
e companheiro para mim. Mesmo após ter conhecido Oitameno, eu pelo menos sentir o ptazü de dormir a teu lado; ao menos luma Yez,
ainda tinha chorado muito por ele, agora, porém, tudo havia muda- ie é que nunca haveremos de nos pertencer'"
do; meu sentimento por ele se reduzira ao fraternal, e seria mais Em meu íntimo eu pensava: "Você me terá, Giuseppe; mas só
difícil amá-lo outra vez como antes. por esta noite; porque óstou tão certo de que Oitameno é tudo o
Sentei-me sobre um tronco trazido pelas águas do último inver- qre qrrero, tanto quánto sei que amanhã o sõl voltará pelo oriente!"
no, e apoiei o queixo sobre a palma da mão direita, enquanto olhava A fidelidade foi algo que sempre gostei de ostentar com um or-
as nuyens, que, como gigantescos flocos de macio algodão impelidos gulho quase exagerado.- Peppe pôs-se de pé e puxou-me pela mão,
pelo vento, se antepunham ao sol cujo fulgor se redtzia, à medida dizendo:
que se aproximava o crepúsculo. "Vsnhs, já falamos demais hoje. Agora vamos procurar algo
Atrevi-me, então, a olhar na direção de Giuseppe. Ele estava sen- para-comeÍ. Logó aü adiante, mora 'Mané Chico',.um caçad-or; ele
tado, com os braços apoiados sobre os joelhos. Permanecia imóvel ,.*pt" tem carãe fresca de caça em casa; vou falar -com ele -para
com a cabeça curvada para a frente e mudo. que mande nos preparar um jântar bem gostoso, e depois voltare-
O crepúsculo se fazia rapidamente e a escuridão logo viria; eu mos; passaremos a noite naquele tapiri abandonado."
precisava voltar a casa. Aproximei-me dele lentamente; chegando Então envolveu minha cintura em seu braço esquerdo e fomos
bem perto, sentei-me a seu lado e procurei fazê-lo dizer alguma na direcão da casa. "Mané Chico" veio nos receber ainda bem longe
coisa, inutilmente. Como ele não se manifestava, tomei a decisão de da casa, com um sorriso caboclo tão espontâneo e cordial que nos
voltar sozinho: deixou mais à vontade. Ele realmente tinha carne de paca e tatu-
"[,s11, Peppe, já muito tarde, preciso ir embora; meus pais canastra recém-abatidos.
- preocupados se eué me demorar mais; por favor, deixe-me ir,
ficarão O jantar terminou, mas a conversa prosseguiu bem animada até
está bem?" tarde ná noite. Eu quase não conseguia mais manter os olhos aber-
Ele ergueu a cabeça; não havia chorado, mas seus olhos esta- tos, por causa do sono que pesava em. minhas pálpebras' Ver-me
vam rubros como carmesim. Segurou meus pulsos levemente e man- cambaleando de sono tocôu o coração de Peppe, por isso mandou
tendo silêncio, dobrou o coÍpo em minha direçáo, procurando beiiar- que eu me estirasse sobre o tosco banco de madeira, apoiando a
me na boca. Dobrei um pouco o corpo para trás no intento de im- Cabeça em sua coxa como travesseiro'
pedi-lo, pois minha consciência me censuÍava, mostrando-me que Quando me deitei, ele colocou o braço sobre meu peito e no
aquilo não estava certo; entre nós não era possível haver mais nada! calor àaquele abraço, adormeci. Não sei por qu-anto tempo mais ele
Ele se curvou então com todo seu peso sobre mim e não conse- ficou conversando; sei que acordei ao balanço de seus passos, quan-
guindo suster-me, fui arriando minhas costas lentamente sobre a do me levava nos braços para o tapiri.
areia, sentindo já o calor de seus lábios que engolfavam os meus. Fe- Foi uma cena que jamais esquecerei' O luar prateava tudo com
chei meus olhos e me entreguei àquele carinho que retornava das um encantador brilho; à quietudé da noite me deixava ouvir o far-
sombras do passado como um sonho, mas na escuridão das pálpebras falhar das folhas dos arbustos à passagem de Giuseppe, enquanto eu,
cerradas eu não via a imagem de Giuseppe, e sim a de Oitameno! encolhido em seus enormes braços com a cabeça apoiada em seu
Cegando-me à realidade, tornei minha ilusão tão perfeita que peito, olhava pata a silhueta de ieu losto europeu que tinha a bele-
elevei ambos os braços envolvendo o pescoço dele com leve pressão. àa de "Marco Antonio di Roma".
mostrando que eu desejava ardentemente prolongar mais aquele Quando chegamos ao nosso destino, ele atou uma enorme rede
beijo. Ele finalmente resolveu falar comigo! e me colocou dentro dela, dizendo que iria ajuntar galhos secos para
"l6li, compreendi, pela carÍa, tua situação com o rapaz, mas fazet uma fogueira. E depois que as _ primeiras brasas começaram
ainda- que muito triste e decepcionado não perdi a esperança; vence- a se formar, ele finalmente veio se deitar'
rá o que teu coração desejar! Porém uma coisa quero te pedir que Como a desigualdade de nossas massas era grande, não podía-
espero não me negues. Tua mãe sabe que estou aqui contigo e ela mos deitar-nos lado a lado, então ele de costas para baixo, me aco-
confia plenamente em mim. Eu a avisei que não voltaríamos hoje modou em meio às suas pernas e deitei meu corpo sobre o dele,
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l)ousando a cabeça em seu ombro esquerdo. Ao som cla batida forte Eu o arnava desesperadamente, mas isso não me bastava; cu
clc scn_c'r'ação sob meu ouvido, entendi com pena o qrie quis dizer queria ver meu corpo em harmonia com minha psique; ser uma
cnr iÍirliano, com emoção na yozi criatura reintegrada ao mundo exterior e poder respirar a vida, sem
^ -- "Lu prima e l'última notte insieme; che male al cuore stô
sofrendo per questo."1
o peso de uma anormalidade!!!
Eu sabia que indubitavelmente depencleria totalmente de Giu-
senti o calor írmido de uma lágrima que rolou de seu rosto e seppe para a realizaçáo da cirurgia, pois papai jamais concordaria
parou sobre minha mão. Eu sabia qúe nenhr-rma palavra ,".io cupu, em me operar. Meu amor por Oitameno estava posto sob prova de
de amenizar a dor que ele sentia;'não procurci'Ai;.;-*àa e'nao fogo.
vendo qualqueÍ outra coisa que pudesie fazer, .nir.guái_." uo Tão logo fosse possível, seria necessário saber dele se poderia
choro e pedinclo seu perdão enlre sbluços, f,i beiianaÀ !"rr ãifror, me custeaÍ a alforria que eu tanto desejava. Se o verdadeiro amor
sua boca e se_u peito com a ansiedade de quem quer o alívio da não fosse o mais importante, eu poderia lançar os pensamentos de
pessoa que sofre, sabendo qr-ie não pode ariviá-ra. sàgurei
suas duas fidelidade para o arl e abraçar cõm foi'ças ienovadas o amor que
mãos contra meu rosto e beijei-as ^muitas vezes baãhando-as com Giuseppe estava insistentemente me ofertando, ali naquele mo-
lágrimas enquanto lhe suplicava: mento. . .
((Mi
scuzi caro, ti amo anch,ora, mas nostl.o amore non é O custeio da cirurgia para ele seria quase insignificantet para
-
piü possibile. Perdoname, per piacere; perdoname!2 o |uma seria como um fardo esmagador! Eu tinha diante de mim uma
decisão crucial e precisava tempo para discernir o que fazer.

Na terça-feira que se seguiu, fui ao cais apanhar a correspoll-


ínlio em meu lugarl. Isto. parece_uma piacla sem graça! dência. Para nrinha alegria, havia além das três cartas de Oitameno,
_.U,T
boca, Loli; deiic eu dizer tudo qr" páró
uma cle rnamãe Laércia! Eu a abri primeiro, sentado sobre um bloco
talvez' você fale alguma coisa! Gostaria de saber'se à1" tr-"
depois talvez
depois de concreto, que as águas da grande enchente haviam arrancado do
mais condições do que eu de pagar a cirurgia que você necessita porto no último inverno, e pus-me a ler com devorante curiosidade.
fazer para ie tornar'uma pessoà iertaurada. 3e.i;;"';i; ;;";"*_ Além das saudações e dos deseios de que eu retornasse logo
para mudar ,,É d: país, para qr. uo.é ,intu ,Lg;rànçu a Manaus, ela me f azia uma revelação que me surpreendeu grande-
!Ufl-l_o,s:r
e liberdade no desempenho do- seu mente.
"[sfes a par de tudo sobre você e Oitameno. Não que eu
-
tenha me intrometido no que não me diz respeito; foi ele mesmo quem
me revelou, poucas horas depois que você partiu da 'Panair'. Ele te
ama, com o rnais vivo amor que já li
nos olhos de um homem du-
rante toda minha vida. Lorys, você não é capaz de imaginar como
Oitameno chegou em casa arrasado por causa da separação de
vocês!"
"Ele disse que só não vai a teu encontro, por causa de teu pai,
que não compreenderia nunca a seriedade desse sentimento, nem
tampouco consentiria em tua união com ele."
ser merl libertacior, cltstea
"Lorys, meu bem; apóie-se firmemente nesse ombro que te ofe-
rece amparo; não rejeite nunca essa dádiva irrestrita de carinho e
afeto sem precedentes que Oitameno te dedica! Apegue-se firmemen-
l^^^A primeira e últirna noite juntos. eue dor no coração estou sentindo por te a essa esperança e vá em frente; tudo dará certo; você verá,
lsso. coragem!"
2 Desculpe-me, querido. Te amo aincla, mas nosso amor não é mais possível,
perdoe-me, por favor, perdoe-me.
Nunca vi palavras suprirem uma necessidade com tamanho po-
der num momento tão oportuno; em que eu já começava a deixar
94
95
cnfraquecer o^ amor pelo Iuma devido ao desespero em que necessitada de ajuda médica específica para sair dessc abisrrro. .
o reen_ .

contro com Giuseppe me lançou à alma. Quantas noites o desespero me roubou o sono, muitas das cluais rlc
A carta de oitameno não foi menos encorajadora. o finar da violentos temporais, em que eu sentia um desejo incontrolávcl tlc
carta me fez co* de vergonha e medo, pois minha I
cofier ao quarto de papai e me lançar entre ele e mamãe na can]a c
acusava de fraqueza e infidelidade: "á"rãicn"lu -" dizer: "tenho medo; estou apavorado, sinto a falta de seus cari-
"Tenho que acredÍaf, amor, que cada suspiro teu, cada - favor, deixem-me ficar aqui corn vocês!"
nhos; por
_meu_
batimento do teu coruçáo é dedicado a mim, porque eu estou inteira- Eu sabia que se viess,e a pertencer a Peppe, cada vez que a inti-
mente determinado a ser teu. Entre mim e- ti ningué* páá..a ," midade nos aproximasse, a imagem de Oitameno viria se opor à dele,
interpor, jamais. Sem tua presença estou cego; voõê e rninhu lur, porque eÍa a seu lado que eu queria estar, e isso certament'e me con-
e só voltarei a sorrir quando estiver de novo-junto a mi-i;;--- duziria a un1 arrependimento horrível!
voltei a casa com nova disposição e ânimo; a alegria de saber ; Os dias finais de minhas férias foram preenchidos com visitas
que ele me amava tanto me devolveu a confiança ,nã iup.ir-.o.
constantes de Peppe. Nosso último diálogo foi na noite anterior à
mais esperança. . . " minha partida, mas continuei com a opinião irremovível de que não
deixaria Oitameno.
Despedimo-nos na varanda, e ganhei um último beijo magoado,
l
junto com a revelação feita com voz tristonha de que 'tu poderia
6
voltar pra ele caso as coisas não dessem como esperava". Tive pro-
I
I
funda pena de vê-lo afastando-se com o Íosto contraído pela tris-
O ESPINHO NA CARNE
teza...
Quando o barco girou para bombordo e se afastou rápido do
porto, vi ao longe a caminhonete de Giuseppe parada à beira do rio;
ele estava em pé ao lado, e acenou com um lenço branco à mão.
Uma vez, lembro-me de ter lido na Bíblia Sagrada um depoi_ Devido ao meu problerna, eu tinha que encontrar forças para
mcnto do apóstolo paulo que dizia: enfrentar o último semestre de aulas a qualqu,er custo.
. "E para que.eu não me estivesse enaltecendo, foi-me dado um
espinho na carne." II aos Coríntios 12:7.
IJma certeza me animava a alma: Oitameno estaria a meu lado
e me incentivaria com seu otimismo sem igual.
Eram cinco e trinta da manhã de nosso último dia de viagem.
O barco subia veloz o lado direito do grande Encontro das Águas e
já se viam as silhuetas de Manaus, e à esquerda a ilha de Marapatá
quase coberta d'água.
Faltava pouco tempo paÍa nossa chegada ao porto da Panair, e
um espinho encravado em nossa carne nos traria desconforto, uma ansiedade crescente me dominava. Meu coração vibrava de emo-
e um desejo premente de retiráJo; eliminá-lo para dar alfvià aã ção ao imaginar meu reencontro com Oitameno; eu desejava poder
sofrimento_. Identifiquei meu erpinhÀ'r; ;;;;;,":-ürr[, lrà"ri"i abraçá-lo ternamente e, olhando seus olhos, the dizer que estava
ção sexual que como. doloroso àguilhão me amargurava o coração feliz por voltar.
e me abatia o espírito! Eu sabia muito bem que não poderíamos nos beijar livremente,
porque eu ainda me vestia como um rapazinho, mas me consolava
saber que na primeira oportunidade em que ficássemos a sós, mil
. . Ma-s enquanto isso não ocorresse, meus dias transcorreriam
cheios de amargura e incefieza. se ao menos eu pudess"
beijos apaixonados seriam pouco para demonstrarmos um ao outro o
com quanto nos amávamos!
meus pais! "ontar Apanhei minha maleta e desci ao convés inferior onde aguarda-
se tivesse a liberdade de me dirigir q yapai e rhe suplicar que ria o desembarque. Minutos depois, atracávamos. Pessoas por todas
tentasse me aceitar como uma pessoa indefinida sexualmãnte, mas as partes acenavam alegres para os que as esperavam.

96 97
Procurei avistar Oitameno, mas ele não estava em parte algu- Embora apenas ele e o professor tivessem discuticltl ltlttglttttt'ttlc
ma; devia ter acontecido algo, pois sabia da hora de minha chegada! aquele assunto, o Juma quis que eu estivesse junto, para t;uc ltlilrrtrr:.
Esperei que todos descessem na esperança de que ele aparecesse, mas se ao professor minha recusa em pross€guir receb,endO o tttctlit'lt
quando vi que não vinha, apanhei a maleta e atravessei a prancha. mento, caso papai tivesse deixado a ele ordens explícitas de contittttrrr
A tristeza me curvava a cabeça e eu me controlava muito para com as aplicações.
não chorar. Pus-me a andar pelo flutuante em direção a terra. Mal Para nossa surpÍesa e alegria, Monsieur Normancl nos informou
dei uns poucos passos, o som de uma música conhecida me fez esta- que papai resolvera suspender o tratamento face minhl tertalySll-e-
car; eÍa aquela primeira que ele me havia oferecido no porto da suicídio pressionado pelo desespero
"Escadaria dos Remédios".
Quando elevei o olhar novamente eu o avistei quase correndo
em minha direção! Larguei a maleta pesadamente sobre o tablado de o porquê de stta aversão a que me fossem ministraclos os hormônios,
madeira e abri os braços paru abraçâ-lo. Ele r1e tomou ao colo como senti um frio me percorr€r pelo ventre! A resposta do Juma foi con-
a. uma criança, e beijou muitas vezes meu rosto e pescoço, enquanto cisa e ao .mesmo tempo carinhosa:
girava comigo como se dançasse sobre o flutuante, desconsiderando "Bmbsla Lorys seja tratado como ulna pessoa do sexo mas-
completamente o fato de estarmos sendo atentamente observados por -
culino, a feminilidade é seu predominante, como pode ser inegavel-
muitas pessoas ao redor! mente notado pela simpl,es análise visual cle seu físico. Mas a questão
envolve muito mais, meu caro professor; a essência do caráter cle
Depois me colocou levemente no chão e fixou seus lindos olhos
negros nos meus. Ficamos ali frente a frente, parados, nos olhando Lorys é feminina, pois pensa e raciocina como mulher."
rnntuamente, expressando nosso amor e a alegria de estarmos nova- "Conheço cada particularidade do drarna que envolve sua vida
mente juntos na rnud,ez de nossos olhares de paixão. Quando a Iincla desde a tenra infânciá e posso the afirmar que somente uma cirurgia
música terminou, ele apanhou minha maleta e disse: ttansexual solucionará seu caso."
"Estou disposto a Íalar com seu pai no tempo oportuno, para
'.psf6s muito feliz pela tua volta, venha; vantos para casa;
- Laércia e os demais estão ansiosos para te ver, e eu estcu com tentar convencê-|o a aceitar a cirurgia e. conseqüentemente, uma filha,
mamãe
uma curiosidade i.m,ensa para saber comc foram tuas fórias!" ao invés de um filho, caso contrário, Lorys nunca será nenhum dos
clois. Se seu pai jamais concordar, terá que s,er feito tudo à sua revelia
Eu e mamãe Laércia nos abraçamos longamente, parecia que após a maioiidade, pois estive indagando de alguns médicos e foram
meu amor por ela havia redobrado agora que ela já sabia de tudo càtegóricos em afirmar que caso a cirurgia nunca se realize, sua saúde
entre eu e o Juma. Pelo menos uma pessoa no mundo, além dele, mental correrá sório risco."
me apoiava, e eu rne contentava em tê-la por confidente; certamente
"Não pretendo deixar que isso aconteça, el deve estar se peÍgun-
era melhor do que ter que encarar sempre só tantos problemas di- tando por quê; eis a resposta: descle que nos conhecemos, Lorys
fíceis. . . -
para mim é Diakuy, e erl.a amo; lutarei por esse puro e sublime. amor
As aulas recomeçaram; e com elas os difíceis relacionamentos na qLle nasceu ao acaso, até a última gota do meu sangue; isto é tudo'
escola. O comentário sobre minha tentativa de suicíclio era o prato o que tinha para lhe dizer."
do dia, na boca dos que não perdiam um pequeno desliz,e meu para O professor franziu os sobrolhos e disfarçando a enorme surpre-
terem sobre o que falar. sa que se refletia em seu olhar, disse desajeitadamente:
Oitameno comprou uma moto sob os protestos daqueles que "Bnffls c'est l'amour! Incroyable! Fantastique! Quem pode
unanimemente lhe diziam que era muito perigoso, mas ,ele thes res- -
pretender lutar contra o aúloÍ, se por ele até Deus deixou uma vgz'
ponclia sempre que "ela era perigosa âpenas para quem dirigia sem que lhe matassem seu Unigênito?!"
responsabilidade". "Apenas thes recomendarei, se me permitirem a intromissão, que
Ele me levava e trazia da escola todos os dias, e os comentários ajam com muito tato e discrição enquanto a transformação cornpleta
sobre nós se multiplicavam. de Lorys não se concretizat, para evitar comentários indevidos e até
Numa tarde de sábado, Oitameno resolveu me levar à casa do mesmo um escândalo, pois o assllnto é extremamente controvertido."
Prof. Normand para abordar um assunto que havia se tornado uma Também, quando chegar a hora de dizer a verdade ao Sr. Cíce-
incógnita: o tal tratamento hormonal. ro, deverão usar de muito tato ao fazê-lo, para não magoá-lo; àão

98 99
deverá ser fácil para ele encarar essa realidade! Não tentem ser inde- "\rlgs amor; não pude esperar a chuva passar Para vir tr'
pendentes demais; procurem fazer com cuidado que aceite e os - uma reportagem inédita com o "pai das operações transcxrr:ris,
mostrar
apóie; tendo-o como principal aliado. Contem sempre comigo; farei o Dr. Harry Benjamin. Esta reportagem nos esclarecerá muitos lutos
tudo o que puder para ajudá-los." a respeito, e nos possibilitará saber que direção tomar para dar início
Minha alegria foi indescritível; a imagem tirânica que me inspi- à busca de ajuda ao seu caso."
rava o Prof. Normand desde que iniciara a aplicação das odiadas inJe- Ao.mesmo t€mpo que eu desejava febrilmente saber do conteúdo
ções se desfez coÍno uma bruma dissipada pelo vento, quando ouvi da entrevista, uma desconfiança medrosa de que algo de inesperado
sua declaração de solidariedade à minha situação. . . baí paÍa a pudesse eclodir depois do conhecimento dos fatos, me tolhia qualquer
frente, nossa amizade tomou força e estabeleceu-se um vínculo fa- iniciativa de abri-la. A emoção me acelerou o pulso, e um rubor quente
miliar em nosso relacionamento. me subiu ao rosto.
Agora eram três as pessoas corl as quais eu podia contar para Oitameno também estava muito emocionado; para ele, també.m,
a partilha dos segredos que me roubavam a paz do espírito. aquelas informações tinham enorme significado. Suas mãos estavam
Eu e Oitameno passamos a fazer planos quanto ao futuro, e so- c trêmulas ao segurar a revista, e sua voz exprimia grande excitação
o
nhávamos com o dia em que nos uníssemos sob o mesmo teto, para 9
enquanto lia.
não nos separarmos nunca mais. Apenas simples beijos e abraços iá Transcreverei as partes principais da entrevista do Dr. Harry Ben-
não nos satisfaziam; instintivamente procurávamos descobrir nossos jamim, que, em 1953, inventou a palavra transexualismo:
corpos com outras formas de carinho; entretanto, inconscientemente,
eu nutria um mcdo pelo sexo que me iil;Vá"nitiifó-dô'deíeiô dã ir
má"i5 além em nossos momcntos de intimidadc. Revista: Poderia nos dizer o que exatamente o motivou a inte-
Ele procurava com muita naturalidade lne ensinar que num - pelos casos de transexualismo?
ressar-se
f',turo muito próximo após a operação, ou poderia recebê-lo para uma Dr. Benjamin: O enorme sofrimento dos pacientes me comoveu,
e despertou- o interesse em conhecer mais profundamente o pro-
a
relação sexual normal e todos aqueles complexos desaparecériam! f
Uma coisa porém era certa: fs1iaÍnss que mudar-nos para blema. Em contato com os pacientes que apÍesentavam compor-
outro Iugar bem distante de quem -tivesse conh,ecido o passado tene-
d

tamento transexual, fui me conscientizando de que aquele fenô-


1.

broso de Lorys Ádreon! J


meno não tinha jamais sido estudado pela ciência, e nunca
Provavel.mente a cirurgia teria que ser realizada rro exterior e na havia sido enfocado até então, e resolvi me dedicar a estudos
volta de lá iríamos diretamente para o trovo lar. A realizaçáo dess,e visando esclarecer os fatos a respeito. Em 1940 fui procurado
sonho às vezes me parecia distante e quase in.rpossível, rltas a pre- em San Francisco pelo Dr. Kinsey que me apresentou um rapaz
sença constante de Oitameno me fortalecia a esperança. de vinte'anos muito efe.minado que comparecera à clínica acom-
É assim o tempo foi passando, e o final do ano ietivo se apro- panhado de sua mãe, cujas palavras me impressionaram muito:
ximou. . . Haveria festa no Colégio para a entrega dos certificados, "Doutor, veja meu filho; ele nunca poderá ser homem, nem
mas isso não me interessava nem um pouco; eu já não suportava mais -terá jamais qualquer chance com o sexo masculino. Se ele pu-
ver as caras dos estúpidos colegas qu€ me atormentaram durante o desse ser mulher acho que ainda poderia ser feliz; por favor,
ano todo! Eu já tinhà minha opção formada para o segundo grau: ajude-nos!" Depois de examiná-lo e nos certificarmos de que se
pedagogia; com toda a alma! tratava de um paciente transexual, enviamo-lo a Wisconsin à
- Lecionar sempre foi meu sonho dourado desde que entrei para Universidade e, algum tempo depois, ,ele foi op,erado na Alema-
a escola; mesmo qüe eu viesse a me tornar apenas urna humilde pro- nha. Daí, outros pacientes foram chegando, e fui me conven-
fessora primâria, isso seria suficiente para me satisfazer profissional- cendo de que havia necessidade de que o mundo científico to-
mente. masse conta do fenômeno transexual dos pontos de vista endo-
Eu certamente me esforçaria em ser para meus alunos a mestra crinológico e cirúrgico.
que sempre desejei e nunca pude ter. Revista: Dr. Benjamin, o Dr. John Meyer e a Dra. Dona Reter
Numa tarde chuvosa, Oitameno adentrou a sala todo enchar- -
publicaram um estudo colocando em dúvida a validade da cirur-
cado com um plástico na mão, dentro do qual havia uma revista. gia transexual afirrnando que não havia importantes diferenças
Subimos a meu quarto enquanto ele dizia: entre os pacientes operados e os que não o foram. D,epois da

100 l0l
s\+ro
publicação desse relatório, o hospital "John Hopkins" suspen-
deu as cirurgias desse tipo. Este fato afetou seus conceitos dando Quando lhe perguntei por que não havia ido, respondeu que iria
origem a dúvidas quanto ao tratamento do transexual? a uma festinha na "república" de estudantes de seu colégio e que
Dr. viera exatamente para convidar-me a acompanhá-lo até 1á e que fica-
Benjamin: Nunca tive dúvidas sobre a validade dessa cirur-
- clínica particular, acompanhei vários casos por
gia. Em minha ria magoado se eu recusasse o pedido. Tentei convencê-lo de quc
não estava com disposição para sair, mas ele quas'e me arrastou pelo
anos a fio, e sei que a operação lhes foi altamente benéfica; a
braço, insistindo tanto que acabei por ceder e o acompanhei.
cirurgia realmente os trouxe recuperados à vida. porém torna-se
extremamente difícil obter informações desses pacientes para que Quando nos aproximamos havia um silêncio quase absoluto no
os rnais céticos sejam convencidos, pois os que foram operados lugar e achei aquilo muitíssimo estranho, mas somente quando en-
e se recuperaram, jamais querem dar entrevistas, porque temenl tramos e ele fechou a porta atrás de nós, foi que percebi que havia
que sua privacidade seja perturbada e que seu segredo se torne caído em.uma terríve1 cilada. A promessa feita com ódio no olhar
popular. São pacientes que se ajustaram de tal forma após a de que "um dia ele rne acertaria o passo" iria se cumprir naquela
cirurgia, que não darão quaisquer entrevistas que venham a pro- noite! Implorei, já chorando, que não me fizesse nada, porque quan-
var a validade do tratamento. Não querem absoluta,mente que do Oitameno soubesse, as coisas iriam se complicar ainda mais, mas
seu passado se torne público; mudam de nome, casam-se e vão foi inútil; ele se aproximou de mim dizendo:
viver em outro lugar para garantir sua privacidade. Sofreram "Esqueça aquele índio nojento; hoje eu vou fazer contigo o
demais para obter a felicidade, portanto temem perdê-la por - ainda não fez porque é um 'frouxo', e agora tire a roupa e
que ele
revelar uma nova vida e nem querem recordar-se df que passou. deite ali naquela cama bern direitinho, e não grite porque não adianta,
ouviu?"
Enquanto ele falava, vários outros rapazes foram entrando na
Como Oitameno dissera, encontrei-me completamente dentro do sala vindos dos quartos e estavam todos nus! Maurício parecia pos-
assunto abordado na entrevista! Quando ele leu a parte em que o sesso por um mau espírito. Como me recusei a tirar a roupa, deu-me
jovem e sua mãe consultaram Dr. Benjamin, era comó se fôssemos eu um forte tapa no rosto e rasgou primeiro a camisa e depois minha
e mamãe a fazê-lo. calça deixando-me só com a roupa de baixo. Então puxou-me pela
Chegaram as provas finais no colégio; aguardávamos o resulta- mão arrastando-me para um quarto dizendo aos colegas:
do para entrarmos em férias. Escrevi a nteus pais que não iria para "\,rss§s vão bebendo por aí, que assim que eu estiver satis-
o- interior, e que preferia que viessem me visitar em Manaus por feito,- entrego o garoto pra que façam o que quiserem; hoje é festa,
alguns dias. Eu tomei essa decisão por não querer ficar longe do pessoal, é a noite da desforra, todos terão a oportunidade de provar
Juma e para evitar me encontrar de nóvo com Giuseppe e abrirLutra 'carne nova' quantas vezes quiserem, OK?"
vez as feridas já curadas pelo esquecimento. . . "p61 favor, Maurício, não faça isso comigo; eu não sou
Se ao menos de longe eu pudesse imaginar o que iria m€ acon- como- você está pensando, não tenho prazer num relacionamento
tecer nos próximos dias, certamente teria desejado mil vezes estar anal; eu e Oitameno nunca fizemos isso; não posso aceitar uma
no interior onde as coisas t,eriam sido bem diferentes! coisa dessas. Vou lhe dizer a verdade: eu sou um transexual, é dife-
Desde que se tornou evidente o sentimento que havia entre rente de ser homessexual que consegue se realizar assim.
eu e Oitameno, Maurício nunca mais me provocou e até modificou Maurício achou impossível o que eu the disse; ele não sabia
seu modo de tratar-me, passando a mostrar educação e respeito sem- nada a respeito do transexualismo e simplesmente não acreditou em
pre que falava comigo. uma única palavra do que eu lhe falei. Deu-me um forte empurrão
Num sábado em que o "Rio Negro Futebol Clube" jogava no jogando-me sobre a cama.
estádio "Vivaldo Lima" contra um time do Rio de Janeiro, Oitameno Com,ecei a gritar e tentava impedi-lo de se deitar sobre mim.
foi assistir a partida e eu fiquei ouvindo música em meu quarto. Ele se enfureceu e chamou por Wilson, um de seus colegas, que me
Tive um pequeno susto quando deparei com Maurício em pé à porta segurou, para que me amordaçasse com um lenço! Como eu continuei
olhando para mim. Achei estranho que ele não tivesse ido ao logo, tentando gritar e me debatia violentamente, ele me deu vários socos
pois adorava futebol! nas costas. Perdi a fala e comecei a espumar sem parar pela boca.
Maurício deitou-se sobre mim tentando se excitar.
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I01
Eu não reagia mais; tampouco conseguia falar ou gritar e estava percebeu que eu estava em dificuldades, parou do meu lado e se
quase perdendo os sentidos. Depois, senti meu ânus sendo dilatado agachou para falar comigo.
e muita dor. Maurício mordia meu pescoço e minhas costas com uma Quando lhe expliquei o que tinha acontecido com um sopro de
volúpia animalesca! Eu não conseguia coordenar a respiração mas voz ao seu ouvido, ela me mandou esperar e foi buscar algumas
não perdi a consciência pois o ouvia dizendo: roupas para eu vestir.
"\,/ig só?! O índio ficou 'de bobeira" contigo; não quis te Permaneci na mesma posição até que ela voltou com uma cami-
fazer-nada e agora quem faz sou eu! Quando ele for fazer, você jír seta e um short. Depois que eu me vesti me tomou pela mão levan-
estará 'arrombadinho' e ele caiu do cavalo!" do-me consigo, e deu-me dois cornprimidos de calmante. Disse-me
Eu sabia que nunca mais seria o mesmo; sentia-lue desgraçada- que não devia falar mais nada, mas procurasse dormir. Conversaría-
mente arrasado enquanto o desânimo da irnpotência me amolecia, e mos no dia seguinte.
Maurício prosseguia se movimentando dentro de mim naquele vai- Adormeci, sob a força dos tranqüilizantes, e quando acordei
vém que par,ecia durar um século. . . erarn mais de dez horas no dia seguinte. Noemi, eÍa o nome daquela
O Juma nunca me perdoará, pensava. Está tudo terminado entre senhora que me socorreu tão bondosamente, foi até o pensionato
nós; jamais vou conseguir olhar em seu rosto outra vez! De repente buscar mamãe Laércia, a única pessoa que eu tinha ainda coragem
Maurício se agitou mais; me abraçou fortemente, procurou meus de encarar. Ao saber o que acontecera, ela se descontrolou e chorou
lábios com os seus e gemeu alto enquanto me apertava tanto que me amargamente abraçada a mim e dizendo:
fazia doer os ossos. Explodiu o orgasmo! Ele suava muito e mur- "Bstfy2slos quase loucos 1á 'em casa porque você não apa-
murava palavras incompreensíveis. Depois foi relaxando e caiu exaus- - Oitameno e Prof. Normand andaram a noite toda à sua pro-
receu;
to a meu lado. Eu não me movi do lugar. cura; estão descansando agora! Maurício viajou hoje de manhã para
Passados alguns minutos entrou Wilson e tudo recomeçou. Agora Belóm; isso significa que escapou da morte, porque quando Oita-
pouco me importava; já era muito tarde para tentar qualquer coisa. meno souber do que ele fez, sei que vai querer se vingar de qual-
Os outros rapazes vieram ao quarto e o massacre prosseguiu. Quan- quer jeito!"
do ouvi um deles dizer que seu pênis saiu molhado de sangue perdi "§fl6, rnamãe Laércia:. Oitameno não deve saber do que
os sentidos! -
aconteceu comigo; jure que não lhe contará porque vai acontecer
De madrugada, Maurício me arrastou ao banheiro e deitarrdo-nre uma enorme tragédia; a senhora sabe que o sangue índio que corre
no chão abriu o chuveiro. Meu corpo estava dolorido como se todos enl suas veias falará mais alto e ele matará Maurício e talvez mais
os ossos estivess,em quebrados. alguém para me vingar! Não, ele não pode saber, nós guardaremos
Comecei a chorar, eu estava sem fala! Levantei-me com nruita esse segredo para sempre."
dificuldade e fui para o quarto, procuranclo algo para me enxugar. "Só que agora nunca mais terei coragem de encará-lo outra
O amigo de Maurício me levou para a sala onde havia muita fu- vez; sinto-m,e culpado pelo que aconteceu e impuro demais, pois
maça no aÍ, de cheiro estranho e nauseante. Todos me olharam meu corpo foi desonrado ao máximo, e não mereço mais seu amor €
enquanto Maurício dizia: sua dedicação! Esse golpe foi mortal para mim; minha esperanÇa
(cBnf[s, morreu, e agora só me resta ver definhar minha vida carnal. Quero
bichinha, gostou de provar a carne forte dos ma-
- A
chões? turma está toda satisfeita; agora pode ir embora; só que ir en.rbora para o interior, sairei quietamente seÍl me despedir de
vai sair sem roupa, porque fresco tem que ser fresco!" ninguém; por favor, arrume minha maleta e tra-ea-a para cá; depois
Dito isso, apanhou um frasco de álcool e o derramou todo, a senhora me acompanha ató o porto; não posso olhar para Oita-
descle minha cabeça pelo corpo inteiro e me empurrou porta afora! meno outra vez; e7e não deve me encontrar nunca mais!"
Era madrugada avançada e eu, uma sombra nua, violentada e Mamãe Laércia assim fez. Havia um motor que partia em quâ-
ultrajada, vagava sem destino pelos arredores do majestoso Teatro renta minutos da "Escadaria dos Remédios". Aquela fuga inesperada
Amazonas. me sufocava de tristeza; eu não poderia me despedir de ninguém,
Des,esperado como estava, passei pela igreja e caminhei até a nem mesmo do homem que eu amava e que era a tazão do meu
rrra Ramos Ferreira andando a esmo. De repente vi uma mulher que viver!
virrha ern minha direção. Sentei-me rapidamente ao chão, e cobri Meu corpo doía, minha alma sangrava. Caminhei até o tiixi
;r ntrtlcz com as mãos esperando que ela passasse. Aquela senhora como um farrapo humano depois de agradecer a D. Noemi. Marníc

l().1 l05
Quando saí do banheiro e voltei à rede, pedi a um garoto clr,rc
Laércia me acompanhou até o cais chorando'junto comigo por todo descesse à taberna e perguntasse se tinham o remédio. Ele voltou
o percurso. com uma cartela de oito comprimidos dos quais tornei dois imedia-
Ela me perguntou o que deveria dizer a Oitameno, eu lhe res- tamente. Esses comprimidos evitaram que a infecção aumentasse e
pondi que lhe áissesse qúalquer coisa, menos a verdade. Eu the cortaram a febre alta que me queimava na pele ressequida.
disse também que the escreveria uma carta terminando tudo e pe- Em minhas orações eu perguntavâ ao Senhor Deus por que
dindo seu perdão para que ele não ficasse sem, pelo menos, uma havia permitido um 'oespinho" tão doloroso a trespassar minha carte,
satisfação de rninha parte. mas não obtinha nenhuma resposta porque Ele estava nos céus in-
Os ferimentos internos do canal anal quase não me permitiam visíveis, e eu miserável ser, fenômeno aberrativo de Sua criação, me
andar por cauSa da dor cruciante que me plovocavam os movimentos arrastava na baixeza da Terra, esmagado sob o peso da imperfeição
das peinas; os pulmões doíam até com a simples respiração normal, e da anormalidade!
e a vergonha que eu sentia das enormes marcas de chupadas em Eu me sentia como um órfão desolado que ninguém poderia
meu rosto e pescoço! aceitar, jamais.
Mas o problema maior seria explicar a meus pais quando che- Ah! como rne doía aquela sensação de abandono; a constatação
gasse no intêrior! Eu estava disposto a contar toda a verdade, pois de que eu era nada mais que a escória imprestável do gênero hu-
áefinitivamente não suportava mais viver com o peso da anormali- mano!
dade sobre os ombros. Eles eram os responsáveis por meu nascimento Minha casa viria a ser minha perpétua clausura; sem amigos,
e portanto teriam que fazer algo para rne ajudar a resolver o pro- sem visitas, só as lembranças do passado iriam me fazer companhia.
blema; eu havia agüentado ao extremo!
Mamãe Laércia, cheia de amargura, beijou-me o rosto e as lnãos
Eu disse à mamãe Laércia que escreveria a Oitarneno para
justificar minha atitude mas mudei de idéia; eu não queria n'em ao
e se afastou rapidamente. m€nos fazer isso para que ele viesse a tomar ódio de mim, e real-
O barco partia. Desta vez eu estavâ só, ferido e amargurado' mente me desprezasse paÍa sempre! E se por acaso ele me escrevesse,
Não havia Oitâmeno, nem música e muito menos espeÍança de retor- eu jamais lhe responderia nem uma única frase; eu não me conõedia
nar de novo a Manaus. Ainda tinha lágrimas para chorar, e o fiz mais o direito ao seu amor. . .
inconsoladamente. Eu precisava meditar muito sobre a.questão da transexualidade,
Na manhã do dia seguinte, acordei tremendo de frio devido à tentando descobrir quando foi que tomei consciência de que não
febre alta que apareceu. Meu púbis estava inchado e as dores anais aceitava pertencer ao sexo masculino.
tinham auúentado; contraí uma infecção poÍ causa das roturas que Recuei no tempo o máximo que pude para depois vir ao encon-
a violência das sucessivas penetrações provocaram! Eu não tinha tro da atualidade, ánafisando os pontos mais marcantes dessa traje-
coragem de falar com ninguém, por isso me levantei e fui quase tória acidentada e dolorosa de meus contatos com a sexualidade.
me arrastando à toillete. Minha retrospecção levou-me, por mais incrível que possa pare-
Quando fiz esforço para urinar, senti um arclor insuportável me cer, aos três anos de idade numa madrugada chuvosa em que eu es-
queirnar a uretra e uma dor tão grande no canal anal que comecei tava deitado com papai numa cama de casal enquanto mamãe se
á suar frio e quase desfaleci! Não consegui urinar uma gota. f)eso- preparava para ir à feira. Eu a observava atÍavés do grad'eado da
rientado e sem saber como agir, fui para o banheiro e abri o chu- cabeceira, e vi quando escorregou na porta da cozinha levando uma
veiro, entrando sob a ág:ua fria que, em contato com minha pele, queda, na qual bateu com a cabeça contra a raiz de uma videira
doía como furadas de agulhas. plantada no quintal próximo a um tanque d'água.
Minhas pernas fraquejaram e caí ao chão sob a água que quase Fapai correu para ajudá-la a se levantar e colocou um emplastro
me afogava. Uma mistura viscosa de sêmen e sangue inundou o piso de sal com vinagre sobre o ferimento em sua cabeça. Lembro-me
sob mim. Quando consegui nte sentar, notei que havia porções de que me assustei muito com a queda e com o sangue que lhe escorria
pus espalhadas ao redor! Eu estava com uma infecção gÍave, e pre- dos cabelos pelo rosto, e chorei bastante, abraçado a ela. Foi exata-
cisava de algum antibiótico para combatê-la, mas a bordo de um mente durante esse período de minha vida que observei papai e
barco, como faria para encontrar tal medicamento? mamãe fazendo algo em que somente eles dois participavam. Esta-
Lembrei-me de que uma vez havia visto cartelas de um certo vam nus, e mamãe ficava embaixo de papai.
antibiótico que era vendido indiscriminadamente a bordo.
107
106
Aquela visão me deixava estranhamente interessado em ocupar Não. seria porque estava em mim mesmo o desejo de ser clo
o lugar de mamãe, e poder receber todo aquele carinho e aquela sexo Íeminino, que o relacionamento com o homem na fábrica de
atenção que papai lhe dedicava naqueles momentos de estranha "brin- móveis apenas descobriu e deu vazão?
cadeira". Ele sugava os .mamilos de mamãe como os bebês faziarn
com suas mães, e depois escondia dentro do corpo dela entre suas . Nnguém ja.mais me sugeriu que odiasse meus genitais, nem que
quisesse me livrar deles; entào po, que eu o fazia? Não era á medo da
coxas, um pedaço que estava ligado a ele!
dor que me fazia ter aversão pero'sexo anal. Era antes a sensação
Havia momentos em que ambos gemiam como se sentissem
que inspirava esse relacionamento; eu quãria
fortes dores, mas sorriam em vez de chorarem e pareciam gostar 9^"^ 11o*didade -me
receber meu parceiro face
muito de fazer aquilo! Eu tive que apr'ender que soment,e eles dois a face para poder encará_lo e ler em seu
olhar o.desejo_ que tinha por mim. Eü desejava p".ii"ipri Juquet"
tinham direito àquela brincadeira agradável, porque uma vez que saí
ato na integridade; não.sér subjugado de cóstas como^algo que é
de meu berço e tentei "participar", fui seriamente repelido por papai
apenas usufruído e depois posto dé lado!
e devolvido com umas palmadas!
Pouco tempo depois, descobri um homem na fábrica de móveis
ao lado de nossa casa, que me convidou para o'brincaÍ" cor.n ele, me turbação durante o ato sexuál para
que eu viesse assim a derivar
mostrou tudo o que papai se recusara a mostÍar, e fez comigo as
p.ÍazeÍ e Eu não consegui jamais fazer isso, pois se o
satisfação.
coisas que ele fazia com mamãe! Passei a adorar aquele homem e a fizesse, entáo a conotação Oe repiugnánte anormalidade me faria
me afastar de papai, principalmente porque ele me batia, quebrava sofrer ainda mais. Além disso não êra-pelo sexo que eu estava
liqado
coisas em casa e fazia mamãe chorar com seus gritos estúpidos. a ele, e sim pela sensação paterno-afetiva que me aÍraía,
farerAã_rnã
sujeitar meu corpo somente para tê-lo junto a mim.
Aos cinco anos, a violência sexual que os rapazes me fizeram
colocando uma pedra em mim me aterrorizou em relação ao sexo, Tive que encontrar po1ém, sozinho, as respostas para as muilas
mas aquele companheiro de banco de escola com alguns anos passa- questões que envolviam_ minha vida, com a constantê
auto-análise,
dos conseguiu fazer com que eu me entregasse novamente volunta- porqu€ esses segredos do passaclo eu nunca poderia revelar
a nin-
riamente à "brincadeira sobre a cama". Depois criou-me uma "gra- cgm o objetivo de ier ajudado a encontra. os ..porquês,,. . .
1uét.n,
videz indesejada" que quase me enlouqueceu de rnedo! Devido à tensão mentar que aquera longa anáris. ,"
Mas mesmo assim, prossegui na busca do amor ideal sempre
cabeça começava literalmênte á doer! "íriÀi, Áirrru
fnesperadamente, o som de uma .,voadeira,,1 se fez ouvir a
querendo me comportar como mulher, nunca como homem. Com o -_
tibordo- após o que o comandante reduziu a velocidade pái, qu"
es_
tempo veio o sócio de papai que me usou para seus propósitos las- o,
civos até quando desejou; depois disso, percebendo que os homens a bordo da mesma pudessem amarrá-ra ao barco e' subir' para
queriam apenas se aproveitar de mim, nunca mais quis "brincar so- dentro. . .
bre a cama" outra vez. . Senti o impacto de um choque elétrico ao ouvir a voz cansada
de.oitameno perguntar ao comandante se a bordo lruuia u*-rupa-
Conheci Giuseppe di Mônaco e o amei, embora nunca tenhamos
zinho de norne Lorvs que embarcara quase na hora au puiiiau
tido qualquer relação sexual. Ele se casou e eu parti para Manaus
Manaus! O homem íhe iesponde, qr" ,i, e que pelo que lhe
.,
onde conheci Oitameno no pensionato. Fui ao médico que constatou dissera
minha discrasia hormonal, as formas físicas e comportamento femi- a cozinheira, eu estava bem doente, e sozinhó ,iú;u, J"u"riu
nino. Veio o tratamento compulsório com hormônios masculinos. . . estar passando por um mau pedaço. "oi"o
Apaixonei-me por Oitameno e um ano depois vieram, com - Y.r, coração disparou e comecei a tremer de emoção. Segundos
depois, o foco de uma lanterna me ofuscou a visão. oitameno
pouco tempo de diferença, uma tentativa de estupro por Zeno a lan-
bordo, e o estupro por Maurício e os rapazes da "república" de çou-se a meio-corpo sobre mim na rede, dizendo com muita e,noçao
estudantes. Que podia eu deduzir então da análise de todos esses
na voz:
fatos? Aprendi a me comportar como um transexual ou nasci com l-^"!or que fez isso c.omigo, Lorys; você quer me matar do
coração? Por favor me explique agora mesmo! D. Laérciu--nàã
essa tendência? n,"
deu nenhuma explicação cõnvincen"te; ela só
Se foi aprendizado, então por que eu desejava estar no papel -"ãr;" ;;;;;;
de mamãe quando a via tendo relações com papai? Quem havia me "r-
ensinado que eu deveria querer ser ela e não ele? I Canoa equipada com motor de popa.

108
109
tava muito mal quando partiu às pressas. Qu foi que houve contigo até a rede e sentei-me no chão a seu lado. Eu não conseguia encarír-
pra te fazer fugir dessa maneira; me responda; varnos, fale! lo, porque a vergonha rne anulava toda a coragem. Ele abriu o diá-
Desviei o olhar para um lado, e me recostei ao pano da rede, logo; não menos emocionado que eu:
pensando em que espécie de resposta teria para lhe dar, mas mesmo
"psfiys pensanclo nuito; taflto que rninha cabeça dói, ten-
sem saber ainda o que clizer comecei a falar: tando- tomar uma decisão a respeito do que fazer para cobrar pelo
"l\z[s1fs estou para tudo e todos os que amava antes; quero que lhe fizeram, e o sangue dos guerreiros Juma que corre em minhas
- despreze, não mereço mais seu amor; a vida me deu seu
que me veias me ordena matar o agressor! Porém hoje sou um índio acul-
último golpe, está tudo acabado para nós; por favor me deixe só!" turado pelos brancos e aprendi que existe a charnada lei, em cuja
Não!, respondeu ele explodindo de 13iv3. Assim, sem baso se.julgam os delitos. Como estamos poÍ ora impossibilitados de
mais -nem menos, não posso acreditar que tudo possa - terminar! Que agir, deixemos de pensar a respeito; mas ãssim que voltarmos a Ma-
é você sem mim; que sou eu sem ti? Não, meu Deus, para onde foi naus precisa me dizer quem fez isso com você a fim de que eu tome
todo aquele amor que vosê dizia ter por mim? Então você me enga- providências."
nou o tempo todo, representou aigo que não existia ern seu coração?!
"É inexprimível a dor que sinto por ver em teu corpo as marcas
Por quê? E essa sua doença inesperada o que é? Descubra-se, deixe- da violência que te fizeram, e tenho ceÍteza de que não foi um ho-
me olhar pra ti!" mem só. Imagino que deva haver ferimentos internos em você e
Dizendo isso, Oitameno puxou fora as cobertas e dirigiu o foco estou sofrendo muito! Deus queira que apenas com reméclios você
da lanterna para meu rosto. Ao ver as marcas vermelhas em torno sare, para não ter que se expor à vergonha de um exame médico,
do meu pescoço, tirou-me a camiseta de malha e num brusco movi- no qual teria que r,evelar o que realmente aconteceu. Mas de uma
mento me abraçou chorando e dizendo aos soluços: coisa estou certo de que não poderemos escapar falar a teus pais,
"\,rlglepfaram você, pequena Diakuy, meu amor; você foi es- - não posso per-
pois você não pode mais continuar nessa siluação;
- Quem fez isso?! Quem foi o monstro que teve a coragem
tuprada!! mitir que sofra assim. Eu te amo, e nada nais que o arroi me com-
de pôr suas nojentas mãos em você? Ele te feriu muito? Ah! Senhor, pele a lutar por ti e por tua felicidade."
que desgraça! Como pode existir gente que faça uma coisa dessas?
Sim, Oitarneno tinha razáo, já era tempo de que meus pais
Na manhã seguinte quando o sol nasceu, acordei na mesma po-
sição, deitado sobre o peito dele. Seu cansaco era tão grande por
soubessem toda a verdade sobre mim.
ter feito uma viagem tão longa a bordo da "voacleira" que não des- Nas horas que se seguiram, minha febre subiu a quase quarenta
pertou nem mesmo com os movimentos que fiz ao sair da rede para graus. Oitameno estava em desespero quando nre levou nos braços
ir à toillete. ao banheiro e abriu a ducha de água fria sobre nós. A infecção che-
gara a um ponto crítico. A secreção purulenta que fluía embaixo
Quando me dirigi à cozinha para tomar meu "caldo de cari-
dade", mil pensam,entos me rondavam a cabeça; entre eles, o mais d'água mesclada com sangue vivo causon um impacto emocional
surpreendente eÍa o da quase incrível atitude cle Oitameno, de vir muito grande em nós dois; começamos a chorar désesperadamente,
I encontrar-me em m,eio de viagem, sabendo das muitas horas de di- como se fôssemos enlouquecer!
ferença entre nossas partidas e dos perigos que teria que enfrentar, À noite meu estado se agra\/oll tanto, que nem mesmo os banhos
no meio de um rio cauclaloso coxro o Madeira, correndo o risco de frios sucessivos eram capazes de abaixar a febre alta!
uma colisão violenta com um tronco submerso, pane do motor cle Na madrugada de nosso ílltimo dia de viagern, minha ansiedade
popa ou um inesperado naufrágio no meio de um temporal. atingiu o ponto máximo na expectaiiva nervosa da chegatla, e do
Somente a existência de um amor autêntico seria capaz de indu- prirneiro contato com meus pais nessa aparição inesperada em com-
zir uma pessoa a fazq o que ele f.ez. panhia de Oitameno. Eu e ele cornbinamos não contar nacla papai;
O sol já estava bem alto e o intenso calor era um pouco atenuado iríamos colocar mamãe a par da situação e esperaríamos quà nos
pela brisa que soprava com a deslocação rápido do barco. Notei, o que fazer.
dissesse depois
então, que sentia arrepios de frio, e qnando fechava os olhos estes Sabíamos de antemão que a reação cle papai seria violenta em
q'ueimavam, d,evido à febre que voltava. fac,e da revelação chocante do que me acontecera, e certamente ele
Oitameno chamou-me. Senti me faltarem as forças nas pernas, iria buscar os responsáveis e puni-los a qualguer custo; isto porónr
tão grande foi o nervosismo que me assediou! De cabeça baixa fui poderia levantar um enorme escândalo.

110
ilr
O uso constante dos antibióticos fez regredir completamente a dadeira identidade antes que seja tarde demais; não acha que jh ó
infecção; só restaram os traumatismos dolorosos, mas a febre não suficiente o que sofreu até agora2',
voltou. "A fonte de seus problemas não é puramente psicológica. Há
problemas físicos envolvidos que influem grandemente em sua vida,
Não havia ninguém de casa no porto quando o barco atracou.
Seguimos para casa num táxi e em poucos minutos paramos defronte
cuja solução está numa cirurgia de mudançã de sexo. Temos lido re-
ao caramanchão florido do portão de nossa cerca. portagens sobre esses casos cujo nome é transexualismo e sabemos
que Lorys se enquadra como transexual.,,
"§snhs1 Oitameno, Lorys; nlas que surpresa! Que ventos os
- assim de repente? Aconteceu alguma coisa?", disse mamãe
trouxeram
"Isso porém não significa que não tenha uma mentalidade normal
e uma noção de a qual sexo quer pertencer. Não se trata de uma
rumando ao nosso encontro. escolha que tenha feito; antes, por razões inexplicáveis, algo inerente
Procurei tranqüilizá-la mas ao ver meu semblante abatido, sua à sua constituição psicológica o faz refletir feminilidade eá todo, o,
excitação aumentou. O Juma interferiu, dizendo que tudo estava bem aspectos comportaÍnentais, e se porventura for forçado a continuar
e que conversaríamos mais tarde. Entramos. Eu fiz a apresentação representando um papel masculino, as conseqüências serão desastro-
dele à vovó e minhas tias. sas! Quero entretanto que a senhora tenha cónfiança, porque há so-
Papai não estava; tinha ido a uma caçada com amigos p,elos lução para o problema."
lados de "Carapanatuba", e só voltaria após dois dias. Que feliz "O ponto crucial de nosso diálogo, hoje, talvez venha a lhe
coincidência; assim quando ele chegasse teríamos ajeitado melhor as causar.um certo impacto emocional em adição, mas julgo importante
coisas para tentar falar com ele. que saiba de toda a verdade. . . Eu e Lorys nos amamos e pretende-
Veio-me à mente uma idéia inesperada, a qual desejei que jamais mos lutar juntos com os meios que pudermos para alcançai sua de-
se concretizasse um encontro de Oitameno com Giuseppe! Em finição sexual, o que possibilitará nos unirmos -para sempre!,,
- muitíssimo desagradável com conseqüências im-
minha opinião algo "Meu amor baseia-se em princípios que ultrapassam o domínio
previsíveis. . . carnal e está alheio ao egoísmo ou à busca de intéress,e próprio. Seu
Mamãe ofereceu hospedagem ao Juma, mas ele, precaviclo como filho precisa de alguém que o apóie e compreenda, ajudándo-o a
era sobre o caráter de papai, agradeceu e disse-me preferir ficar libertar a mulher que seu corpo indefinido apiisioru, . estou aqui
numa pensão durante sua estada, para evitar possíveis problemas. sem querer nada em troca,_ lhe pedindo que me permita"., ser a pessoa
Pobre ma.mãe; como ficou deprimida quando Oitameno lhe re- a quem caberia esse privilégio.
velou tudo sobre mim e o ocorrido em Manaus! Entretanto a cena M_amã9 refletia grande emoção na expressão facial e na voz ao
que mais me impressionou foi a em que ele falou sobre o amor que responder à questão proposta por Oitameno.
existia entre nós. Ele se aproximou da poltrona e se ajoelhou perto, Desculpe-me, Sr. Oitameno, a falta de controle emocional,
olhando fixamente para ela e falou: mas -estou assim por me achar diante de uma questão tão d,elicada
"§sn[61a Maria Augusta; sou um homem pobre e sem fa- para uma .mãe como esta; de ver-se confrontacla com a iminência
mília- mas com um coração rico de amor e compreensão, por isso de perder um filho que tanto se desejou e por ele sofreu; ter que se
não me é difícil entender que o que se passa com Lorys lhe causa acostumar agora com a idéia de recebêJo como filha, e reestruturar
a maior das aflições!" toda uma nova vida para dar-lhe direito à sobrevivência e continuar
"Seu filho é uma pessoa inteligente; é bondosa, tem imenso amando a apoiando essa outra pessoa!,,
amor ao próximo e foram essas qualidades que me atraíram à sua "Muitas vezes neguei a mim mesma o direito de pensar que Llm
amizade. Sua feminilidade e doçura sempr€ me fizeram vê-lo como dia teria me confrontar com essa realidade; eu àcho qul errei
-que
ao proceder
uma rnenina, embora se traje como um garoto por uma questão de assim, porque nunca quis enfrentar a verdade.i,
condicionamento." "OuJ1o fator que me obrigou a sempre calar, foi o gênio de
"Esse particular no comportamento de Lorys é que gera um mal- meu marido ele é um homem bom em essência, mas muilo rígido
entendido na mente das pessoas dando origem a todos os transtornos no que tange- a seus conceitos de moral e sexualidade. Nós sempre
que têm afligido sua vida desde a infância. A senhora não pode sim- soubemos que Lorys. tinha problemas, mas preferimos esperar por
plesmente fechar os olhos à realidade de que ele não terá jamais um ajustamento gradativo, sem jamais pensàr que tal expectativa
qualquer chance como homem, então ajude-o a encontrar sua ver- nunca se pudesse concretizar..."

112 lt7
"Agora vejo que a hora da verdade chegou, e não temos mais Depois de passados alguns minutos de silêncio seltulcr;rl, t.lt.
condições de mascarar uma coisa tão evidente. Mas acho que ainda explodiu num praguejar tão sujo, que até Maquiavel teria vergorhir
não é hora apropriada para falar com lneu marido, pois Lorys ainda de_ouvir,. e prometeu que iria matar cada um dos rapazes quc ,.r.r"
não tem idade para se submeter à operação." tinha.m violentado. Foi aí que vovó resolveu falar:
"Está vendo aquele poster? O filho que sonhei e concebi em '(§ns, Cícero, você está muitíssimo errado! Matar alguéln,
minhas entranhas é aquele; agora, se vem vindo uma filha por aí, -
vai apenas contribuir para arruinar ainda mais as coisas e pro-uo.ut
terei que preparar-me para recebê-la. . . " um escândalo sem precedentes! Lorys cresceu sob o peso deisa anor-
Havia lágrimas nos olhos de mamãe ao concluír suas palavras. malidade sem que você tivesse coragem e amor paternal para ajudá-
Eu e Oitameno também estávamos muito eurocionados e nos abraça- lo a se libertar dela. Agora que as coisas chegaram a esse eitado
mos chorando. Aquela fora uma noite de extremo slress mental para você quer reagir, rnas está escolhendo o caminho errado para fazê-Io.,,
todos, mas as coisas coneçavam a tomar um ruÍto melhor.
"Maria Augusta sempre se dedicou irrestritamente a você e se
esqueceu do próprio filho, mas ela bem sabia que o rrenino tinha
problemas. Vocês têm parte da culpa mas à Natureza cabe a maior.
Ainda há tempo para remediar as coisas pois ouvi o senhor Oitameno
dizendo à Maria Augusta que uma operação poderia definir Lorys
7 como rnulher e eliminar de vez seu sofrimento.
SOB UM TÚMULO AOUÁTICO Ao ouvir isso de vovó, papai arregalou os olhos e dando urn
forte soco à mesa que nos fez saltar de susto, esbravejou:
"ly{2mfrsl a senhora enlouqueceu?! Está
- setenta anos de idade que mande castrarrne
os seus
propondo conl
o único filho que
Papai demorou dois dias a mais a.lém da data prevista de sua De's me deu, para satisfazer um capricho aberrativo de seus irnpul-
chegada. fsso, sem qualquer sombra de dúvida, foi muito oportuno. sos homossexuais e entregáJo ao rnundo como uma mulher fabriCacla
Felizmente Oitameno estava na pensão nâ hora em que papai numa mesa de cirurgia para arruinar ainda mais sua situação?!
chegou! Como pod,e conceber uma monstruosidade dessas; a seuhora está
De irnediato, mamãe não quis que Oitameno falasse com papai, defendendo os habitantes de Sodoma e Gorlorra em oposição à pró-
aliás, ela nem sequer o deixou saber que ele estava na cidade, pois pria palavra do Senhor e querendo que Lorys seja rnais um dêles,
temia uma reação adversa dele, complicando as coisas. . . sob minha bênção e aprovação?!
Fui à pensão avisar a Juma de sua chegada e lhe disse da re- "pspsls Cícero (interferiu man-rãe) as coisas não são como
solução de mamãe, para que ele ficasse "de fora" até o momento você-está pensando. Lorys não é um homossexual, pois se o fosse,
oportuno. não haveria necessidade de qualquer cirurgia! Nosso filho é un
Mamãe esperou pela noite seguinte para falar com papai, logo transexual porque tem um sexo mental e outro físico, e a mellos que
após o jantar. Pensei que fossem todos ter uma indigestão, tão tensa seja operado para harmonizar os dois fatores, será eternamente in-
se tornou a atmosfera à mesa! Vovó e minhas duas tias também ou- feliz ou acabará se suicidando como já tentou urna vez, por não
viram o relato de mamãe, e ficaram grandemente abaladas. suportar o enorme sofrimento que sua situação lhe impõe.,,
Pode-se facilmente imaginar como ficou a cabeça do pobre papai, "Ouça, meu beÍl.l; nós não vamos perdê-lo n,em tantpouco entre_
depois de saber de tudo. Quanto a mim, não toquei sequer a ponta gá-lo deliberadamente ao pecado! Depois que for operado, as portas
do talher no alimento do prato à minha frente, mas, surpreendente- da vida lhe serão abertas como mulher, e Lorys se casará para viver
mente, eu rrão estava sentindo, medo dele; as palavras encorajacloras uma vida decente ao lado do homem maravilhoso que ama, o qual
de Oitameno surtiram efeito! estou certa de que você já sabe quem é.
A reação de papai foi de estupefação total, ele bem sabia que "Querido, tente enxergar as coisas como eu e sua mãe; não
eu tinha problemas, mas nunca tentou dialogar comigo para tentar perderemos nosso filho; antes ganhar,emos uma filha que terá a chan-
me ajudar, e agora, diante de uma realidade tão assustadora como ce de encontrar a felicidade! se Lorys já tivesse nascido m.lher,
aquela, sua consciência o acusava de negLgência, provavelmente. não iríamos agradecer ao Senhor Deus pela dádiva?

114 lt5
"Você percebeu assim como eu, quando estivemos em Manaus, em sua face, ao ouvi-la dizer todas aquelas coisas desagradáveis.
que o jovem Oita.meno lhe dedicava cuidados tão especiais quanto Pobre Oitameno, ele não queria ser visto por papai como um inimigo
o de chegar ao ponto de alimentá-lo boca a boca, responsabilizar-se detestável como estava acontecendo!
por ele no Instituto Médico-Legal e defendê-lo constantemente dos Dois dias depois desses acontecim,entos, o comandante de um
ataques de pessoas inescrupulosas que sempre procuravam tornar a dos motores de linha que serviam nossa cidade veio à minha casa,
vida do menino um inferno? Pois bem, Cícero, tudo o que o rapaz trazendo um telegrama da firma em que o Juma trabalhava, avisan-
tem feito por ele é desinteressadamente; poÍque o vê não como a um do-o que se ele não retornasse ao trabalho em Manaus dentro de
garoto, mas como a u.ma garota, e ambos se amam!" quatro dias, seria demitido do emprego por abandono. e assim não
"Se nosso filho fosse um sem-vergonha, eu mesma estaria dis- teria qualquer direito a uma indenização. Quando este acabou de
posta a condená-lo; mas seu comportamento com Oitameno não de- lê-lo, rasgou-o e disse em desabafo:
monstra isso. O rapaz me jurou que o ama e que jamais lhe faltou "pssçs me importa que me mandem embora. Quer saber
com o respeito, e Lorys confirmou. Não podemos pretender que con- de uma- coisa, Lorys, estou farto daquela rotina diária sem futuro!
tinue só a vida toda, e então se eles se amam está tudo resolvido; Não voltarei a Manaus nem por um bilhão de dólares para ter que
Lorys se casa com ele após a operação; você concorda?! me s€parar de ti."
Papai estava mudo, e seu rosto contraído pela amargura logo foi Durante toda a semana seguinte, Oitameno tentou em vão con-
banhado por copiosas lágrimas que Ihe desceram pelas faces. Cha- seguir trabalho num dos poucos estabelecimentos comerciais da ci-
mou-.me quase inaudivelmente fazendo sinal para que eu me aproxi- dade. Mas seu espírito de luta inigualável não o deixou desanimar,
masse, ao que obedeci tremendo de medo e controlando-me para não e no final da tarde de sábado ele me encontrou na feira do porto
urinar na roupa! Quando cheguei diante dele, minhas pernas fraque- principal com um sorriso confiante nos lábios.
jaram e quase dobrei os joelhos até o chão, mas ele me susteve com
"!,pss1{rei um trabalho, meu amor, que me colocará de volta
o braço estendido dizendo: - da grande mãe verde que me viu nascer, e com a qual sonhei
ao seio
"pil[g, meu coração par€ce sangrar de dor pelo que você retornar a conviver cada manhã, na quietude de suas brenhas mis-
-
tem sofrido durante sua miserável existência, porque sei que não fui teriosas! Vou defumar borracha para um seringalista da 'boca do
um bom pai, nem tampouco consegui lhe ajudar a ser um verdadeiro tamuatá', a umas três horas de subida. A renda semanal darâ para
homem como sonhei, mesmo antes de você nascer. A vida foi ingrata a sobrevivência e acho uma experiência muito enriquecedora, visto
conosco, filho; parece que Deus virou-nos a façe e permitiu que uma que nunca defumei antes!"
desgraça tão grande nos sobreviesse, reduzindo nossa alegria a zero
e ceifando-nos até a vontade de viver!" Era surpreendente observar a simplicidade de Oitameno em en-
carar com entusiasmo a empreitada que arranjou.
"Você alcançará maioridade e não mais estará sujeito às minhas
ordens; poderá fazer com seu corpo o que bem entender, porém quero Eu me via induzido a lhe demonstrar minha apreciação, tendo
que saiba qual meu ponto de vista sobre a questão. Ninguém neste em vista a demonstração grandemente evidente do amor que me de-
mundo, nem o mais hábil dos cirurgiões, tem o direito de mudar a dicava, e resolvi que iria com ele à "boca do tamautá" sempre que
constituição física de uma pessoa!" pudesse, pelo menos para ajuntar cocos secos de urucuti ou de pa-
"Prefiro que fique como está, entregando seu futuro nas mãos lheira com os quais ele faria a fumaça para defumar o leite de se-
do Senhor. Se ao invés, eu tiver que me defrontar um dia com uma ringa, preparar sua merenda da manhã e, quem sabe, até ajudá-lo a
filha forjada pelas mãos de um homem, quero que saiba roçar a "estÍada", para evitar o perigo dele ser picado por uma cobra
prefiro
lhe ver morto antes que meus olhos pousem sobre seu corpo! - surucusu, pico de jaca ou u.ma jararaca, tão abundantes nessa região!
. . ."
Tendo dito essas palavras, papai retirou-se da sala enquanto eu Mamãe lhe deu um mosquiteiro grande, no qual se podia atar
e os demais peÍmanecemos chorando até que vovó nos recomendou minha rede e a dele para escaparmos dos carapanãs, e cobertas para
que fôssemos todos para a cama, o que fiiemos por questão de há- o frio da floresta à noite.
bito, porque o sono não veio para nenhum de nós antes que chegasse Na vizinhança da "boca do tamuatá" havia muitos casebres iso-
a madrugada. . . lados nos quais moravam os seringueiros, caçadores ,e pescadores
Mamãe convidou o Juma para almoçar conosco, colocando-o a mestiços, dentre os quais papai conhecia alguns. Ele permitiu minha
par dos fatos da noite anterior. Uma profunda tristeza se estampou ida para lá porque, além dele não saber que eu ia com Oitameno,

tl6 tt7
cu niio teria problema algum com hospedagem. Ademais ele sabia Quando se passou uma semana além do prazo especificado plrr':r
(luc eu cstava mais que nunca necessitando de uma higiene mental. meu retorno e não apareci, eu e o Juma fomos acordados de surprcsa
Uma "voadeira" nos levou rapidamente ao nosso destino e assiru no meio de uma noite de sábado pelos berros enfurecidos del,e! Eu
que chegamos o Jurna foi avistar-se coltl "seu" Mancluc;uirrha, e o se- náo estava em minha rede quarrclo o foco de sua lanterna me feriu
ringueiro encarregado do seringalista de Manicoré, responsável pela a visão, mas sim deitado sobre o corpo de Oitameno em sua rede! O
extração do látex em doze "estradas" de aproximadamente setenta primeiro soco de papai me atingiu na orelha escluercla que inchou
"paus" cada, das quais Oitameno iria "cortar" em duas. imediatamente, ficando enorme. Ele rne puxou então pelo braço para
Im,ediatamente após acertar os detalhes com ele, o homem nos fora e agarrou-m€ pelos cabelos gritando:
levou a um tapiri recém-construíclo, onde havia até urn fogãozinho ru- "§ss desgraçado, filho de uma. . . clue é que está fazendo
dimentar de barro batido. Embora nossas refeições fossem ser toma- com -outro macho nessa rede? Como é que você pode fazer uma
das em casa de "seu" Manduquinha, seria ideal para se assar peixes coisa dessas, seu sem-vergonha?! Quer rne matar de desgosto mas
ou ç?ln9 sobre brasas de ouriçoq de castanhas. . . não vai não; eu te mato antes, seu rnaldito filho do pecado."
t
Êôi ind.tinível a felicidaàe quê m" eucheu o espirito d;;;;; Um soco violento me atingiu a boca em cheio e fez brotar san-
'-toftrpletamente a sós com Oitanreno no coraçào da selva! Éra .oro gue abundante que encharcou minha camiseta. Papai me arrancava
!sc nào mais existisse rrenhuma anorrralia física ern rrrinr, que rne inr-i enormes mechas de cabelos, e inconformado com o que fazia, puxou
]pedisse de me unir a ele carnal e espiritualmente, e a sensaçào quel uma peixeira paÍa me furar, mas foi detido pelos braços fortes de
i\ eu provava era cle que nos havíamos casado ne mudado para-ouiro-í Oitameno que o seguraram, enquanto lhe pedia que se acalmasse
lugar, onde uma nova vida iria começar. . . ,, para que pudessem conversar e esclarecer as coisas.
Já vinha chegando a noitinha quando o Juma tefmilrou de fazer Ao ver a enorme faca em riste nas mãos de papai que lutava
sua escada de varões e depois que ele a trouxe ao tapiri, fomos ao com o Juma, fiquei dominado por uma repentina histeria, e comecei
jantar em casa de "seu" Manduquinha. A comida estava muito sabo- a gritar para que este o largasse e o deixasse me matar, pois seria
rosa rlacaco barrigudo na jacuba e aÍtoz feito na banha de Ja- melhor morrer que ter que continuar vivenclo um infertro de vida
- com farofa de miúdos de macaco.
tuarana como a minha. Oitameno não o soltou, senão quando a faca voou
Um delicioso refresco cle cupuaçu cornplementou nosso jantar para a escuridão da mata escapando da mão dele.
com s€u "delicioso aroma e gosto de mil frutos reunidos num só"! Após isso, lancei-me por terra a chorar, convulsionando-me
Eram quatro horas da madrugada quando Oitameno se levantou como um louco. Várias pessoas presenciaram aquele escândalo e isso
e, após ajustar sua poronga sobre a cabeça, pegou a faca de seringa e significava que não poderíamos nais continuar ali, pois como nir-r-
a escada e saiu para começar a cortar, colocando as tigelinhas de guém sabia o que realmente acontecia entre eu e Oitarneno, o pre-
latão na extremidade de cada corte oblíquo para que nelas se acumu- conceito e a divulgação deturpada que fatalmente ocorreria depois
lasse lentarnente o leite que escorria. . . desse vexame tornariam nosso relacionam,ento entre eles insuportá-
Quando ele terminou de colocar a última tigela, fomos ajuntar vel . . . Papai sentou-se ao chão tomado por um enorme desânimo e
os caroços secos de urucuri e palheira para tazer a fumaça sob o começou a se lamentar em voz chorosa:
buião de defun.rar. Essa mesma rotina se sucedeu dia após dia, mas "\,l[ss Deus, me responda, por que p,ermite que uma desgraça
não sentimos qualquer monotonia ou tédio, porque durante o dia dessa- aconteça para um pai couro eu, que vive para o trabalho e o
pulávamos n'água, pescávamos ou ajudávamos os amigos vizinhos lar, cuidando das necessidades materiais de sua família sen.r deixar
num puxirum ou ajurir qualquer... faltar nada?! E você Oitameno me responda também: o que té dá o
Tarnbém íamos a "f€stas" nos sábados e domingos, onde ao som direito de me desencaminhar o único filho, arruinando toda a sua
de uma vitrolinha a pilhas, o pessoal dançava alegremente e a ca- vida futura por iniciá-lo num repugnante vício imoral do qual a so-
chaça "corria solta". Eu reahnente passei esses dias junto a Oitameno ciedade foge como à peste?"
sem perceber que o tempo corria, e não voltei para casa no tempo Oitameno tentou arrazoar com ele sobre a verdad,e do que real-
cstipulado por papai! mente havia entre nós, mas este não lhe deu a mínima chance de
manifestar sua defesa. "Seu" Manduquinha resolveu intervir, aconse-
thando a Jurna que se afastasse, mostrando que tomava o particlo
I Mutirão de papai.

il8 t tq
O dia amanhecia; eu queimava de vergonha diante das pessoas foi impressionante! Passei a encaÍar a submissão aos capricho's -scxtlillri
reunidas no tapiri que presenciavam aquela escandalosa situação! deles como uma conseqüência fatalmente inescapável, e deixci dc
encarar o Sexo anal e oral com a mesma intensidade Íepugnante. . .

Oitameno mostrava no rosto uma amargura indescritível quando disse


a "seu" Manduquinha que podia ficar com as coisas que eram suas Deixei de me mattirizar com remorsos ao pensar em Oitameno;
e que lhe desculpasse a vergonha que trouxera para o lugar, despro- a certeza de que tudo entre nós havia terminado forçosamente e de
positadamente. Depois olhou para papai e pediu sua permissão para que nunca t ais rot reencontÍaríamos outra vez, acabou de todo com
falar. .. á sensação angustiosa de que eu o estava traindo. . .
"fs1hs que respeitar seu direito paternal incontestável em Durante iodo o tempo em que eu e o Juma estivemos juntos,
- a integridade física e moral de Lorys, poré.m tudo faria para
defender nunca aceitei com prâzer que outro homem me beijasse' Agora-havia
mostrar-lhe que nenhuma palavra do que o senhor disse corresponde três que disputavam minhà boca simultaneamente em beijos láo ar-
à realidade! Tudo não passa de idéias absurdas que o senhor pensa dentei, qo" àr vezes pareciam:se ,nais a. mordidas, dado o frenesi com
serem verdades, quando realmente só existem em sua cabeça!" - sugávam meus lábios!
que
Depois falou a mim: A; palavras vaticinadas há muito tempo passado pelo sócio de
"§dgus Lorys, nunca mais nos veremos; lutei além de minhas p2p2i nasceu para daq. p1azer aos homens", tomaram uma
- peÍdoe-me, rnas hoje morre minha esperança de alcançar tua
forças,
-:t.yocê
Iã!;*o reailãôntrãr-iãninêu deseio d-e me portar deéentemente como
liberdade! Viverei de tua lembrança e ninguém jamais ocupará teu i"*i.. tentei fazer. Agora pouco se me importavBní-os de
-conceitos
lugar em mim; Adeus, minha Diakuy!" *oát; eu era um ráãtcictrê-'itfeli, e não-faziá mais diferença me
Um fantoche, nada mais que isso, foi o que me tornei após esse comportar bem ou não. . .
dia terrível! Depois de uma semana de estrita vigilância sobre mirn,
para evitar que eu fugisse à procura de Oitameno, papai arrumou
minha mala, e levou-me de barco para Porto Velho, em Rondônia. De Quatro anos sombrios e tediosos se passaram . ' ' Concluí com
lá voamos para o Rio onde ele fez contato com nossos parentes em sucesso os estudos de segundo grau, e comô prêmio, papai me enviou
Espanha e dois dias depois, eu embarcava no vôo da "Ibéria" com a passagem para que eú retornasse ao Brasil para as férias'
deslino a Madri. Mesrno sem a mesma ansiedade de antes, o pensamento de um
Voltar ao país onde nasci e passei os primeiros anos de minha reencontro com oitameno ainda existia em mim, por isso quando
vida, sabendo que ali, naquelas terras peninsulaÍes, minha inocência troquei de avião no Rio embarcando para Manaus, um enorme ner-
fora ultrajada pela primeira vez, fazia retornar imagens longínquas ,orir-o me dominou! Mamãe Laércia não creu em seus olhos quan-
do passado, que não haviam se apagado, porque estavam impressas do me viu adentrar à cozinha de surpresa! Mal acabei de cumpri-
em minha alma como marcas de ferro incandescente sobre pelê vvia! mentá-la perguntei pelo Juma. Ela baixou tristemente o olhar e emu-
deceu. Qúando insisti na pergunta respondeu com pesar ea Yozi
_ A mudança repentina que se operara em minha vida era quase
inacreditável; i.mpossível! Há quatro dias atrás, eu estava dormindo "Qif2Írsno perdeu toda a motivação pela vida depois que
a sorrir nos braços do homem que amava; agora, sozinho e amar- você -partiu para a Eipanha. Ele ainda voltou a te procurar dois dias
gurado a bordo de um avião a milhares de metros de altitude, já depois qu" i"r, pai te levou para o Rio, mas tua mãe o avisou que
distante do meu amado Brasil, eu voava para o Velho Mundo como inútit procurar por ti, porque não voltaria mais ao Brasil; daí ele
um degredado indesejável, rumo a uma prisão européia. . .
".á
se desesp,erou tanto que começou a beber muito e foi-se embora para
Logo no desembarque ern Madri, vi que os dias à frente me 'Puerto Ayacucho' na divisa de Colôrnbia com Venezuela. Nunca
reservariam ap€nas amargor. Por escolha de papai, eu ficaria mo- mais soubemos qualquer notícia dele durante esses quatro anos; po-
rando em casa de um tio que tinha três rapazes. Acho que ele es- bra rapaz, quem sabe se até não morreu por cometer alguma loucura,
perava com isso que eu me tornasse másculo como eles por causa de desgosto..."
da convivência diária. . . Um súbito desespero me subiu à cabeça ao ouvi-la dizer essas
Isso jamais v,eio a se provar verdadeiro. Ao invés disso, eles me palavras, e saí correndo em direção à "Escadaria dos Remédios".
tornaram o objeto de seus desejos, e na ausência de seus pais, me buando lá cheguei, subi ao serviço de alto-falantes, pedi ao homem
intirnidavam com ameaças chantagiosas e me submetiam a toda sorte que o opeÍava as músicas que ele costumava me oferecer, e voltei
de sevícias possíveis... A reversão de valores que ocorreu em mim ao flutuánte onde ficávamos observando o movimento do porto.

120
t2t
Ao som da primeira música 'sA beleza da rosa", meu pranto Sim, porque a fatalidade nos vinha imperceptíve1 ao etlcontro,
explodiu incontrolável. . . - já há nove horas de nosso
e l-ro rrosso último dia de viagem, estando
Quando a última melodia terminou, .minha ilusão se desfez e destino, algo mudou o cenário de minha vida bruscamente cotno utn
retornei ao pensionato, apenas para saber uma notícia que acrescen- raio que eifacela utna árvore sobre a qual caiu. ..
tou rnais espinhos à minha alma Prof. Normand adormecera na Eram 16h30min de uma tarde chuvosa. O rio Madeira transbor-
morte há um ano atrás. . . - dava pelas margens atravancadas de imensa quantidade de balseiro
Suas últimas palavras foram para mim "Lorys meu pequeno enros.àdo nas ilhas de canarana que desciam em meio ao caudal
ser sofredor; percloe-me o pecado cle aumentar- teu sofrimento ao apli- veloz. Nosso motor subia pela esquerda, bern próximo à margem,
car as injeções de hormônio que tantos transtornos te trollxeram, mas para fugir à contracorrente que se opunha à proa. Cada um de nós
eu não fiz por.mal; te amo como a um filho, minha criança adorada; êstava repousando em sua rede. Todos dormiam, exceto eu e, é claro,
te amo. . . o proprietário do barco que pilotava ao timão.
A idéia de tentar o suicídio outra vez para obter alívio não mais Eu lia um romance cle Henry Troyat 'e depois de passadas algu-
me ocupou a mente. Eu ainda tinha esperanças de obter a libertação
mas páginas, resolvi deixar a rede e ir à proa conv€rsar um pouco
sonhada no passado, e morrer precocemente deixou definitivamente
com Raimundo Nonato.
de fazer parte de meus planos.
Decidi me agarrar à vida e vivê-la, ainda que sem poder usu- Sentei-me num tamborete ao lado dele e iniciei uma animada
fruir de seu pleno sabor, por causa cle rneu estado. Mamã,e havia conversaÇão. De repente tudo se ,escureceu com um pavoroso ba-
escrito uma carta à mamãe Laércia lhe dizendo que assim que eu rulho de madeira sendo esfacelada, seguido de uma súbita submer-
chegasse a Manaus esta telefonasse ao interior pois viriam buscar-rne,
são, como se o rio tivesse nos sugado para sua profundeza como
por isso passei quatro dias no pensionato à espera deles. Papai fretou enorme aspirador! Meus ouvidos doeram horrivelmente e não podia
um pequeno barco porque todos, sem exceção, quiseram vir a Manaus ver nada ou respirar sob a enorm'e massa d'água parda...
e assim em família, teriam mais privacidade e conforto que num Inesperadamente um fortíssimo estalo, e depois o empuxo es-
grande motor de linha. . . tranho pára cima trouxe a parte anterior da proa na qual eu e o
A travessia pelo "Encontro das Águas" foi impregnacla de sau- homem estávamos, paÍa a tona! Olhei para a corrente do rio alguns
dade dolorosa. . . A oração de Oitameno ao "Deus Branco" não fora metros abaixo, e tudo o que vi foram bolhas enormes de ar que
ouvida! Nossos corpos de diferente coloração e composição, assim espocavam na superfície acima, donde o restante do barco ficou
como as águas do rio Negro e do Solimões que se juntavam ali, ja- pieso sob enoÍme quanticlade de terra e rnadeira que caíra sobre nós
mais se uniram no abraço eterno que tanto desejamos. Estávamos com a queda do barranco!!
separados como Kuará e Djahrru êm sua viagem interminável pelo IJma enorme árvore chamada "tnulateiro" atingira o barco em
céu. cheio e o esfacelara, matando minha família em questão de poucos
Mamãe me viu chorando e sabia o porquê, mas desta vez não segundos. . . Eu nadava paÍa escapar da_ corrente que me arrastava,
teve medo da verclade, e se aproximando abraçou-me ternarnente: seÍr saber sequer o sentido de querer sobreviver após unta desgraça
"Tenha coragem, disse ela, um dia o Senhor Deus olhará para como aquela!
você, e lhe preparará outro amor ainda maior que esse, porque você Quando finalmente consegui me agarÍar ao balseiro da beira e
sofreu demais e merece ser feliz!" sair, subi por um íngreme barranco até a Íerra firme lá em cima, e
"Agora pare de chorar franzindo todo o semblante, ou um en- comecei a gritar como louco poÍ socorro. Ao cabo de alguns minutos
velhecimento precoce te farâ muito dano. Erga a cabeça e encare a acorÍeram alguns mestiços que, após se certificarem do acontecido,
realidade cle frente; a vida continua, apesar de tudo, e estou certa começaram a mergulhar tentando encontrar algum sobrevivente.
de que viverei o bastante pra ter ver feliz como se jamais tivesse so- Um deles trazia um arpão à mão 'e conseguiu arpoar provavel-
frido nada do que hoje sente." mente papai, que já estava sem vida e com metade do rosto consu-
Ah! meu Deus, cleixe-me repetir esse final de frase, paÍa me mido pilôs voiazes "canclirus"' que infestavam o lugar!
certificar de que .mamãe realmente assim o disse:
"Estou certa que viverei o bastante pra ter vez feliz como se
jamais tivesse sofrido nada do que hoje sente..." I Peixe carnívoro esguio, tão perigoso quanto a piranha.

122 121
Ao ver isso, o homem soltou à água o corpo junto com oi arpão ele entrou no cômodo e numa fração de segundo ergueu-me da rede
e voltou a terra desanimado. Enlouqueci, e me lancei barranco abaixo abraçando-me chorando Dio mio, Signore habbia pieta! Puoveretto
no intento de me juntar aos tneus entes queridos que os peixes do rio Loli, sei anch'ora vivvo!-Grazzie tante Signore; hai ascoltato la mia
devoravam abaixo da superfície, gritando freneticamente que "não me pheghiera!1
deixassem sozinho, mas que .me levassem consigo". Nove horas e meia depois de uma viagem de barco, eu estava
Fortes mãos me agaÍraram pelo cabelo e me puxaram para fora em sua casa, rodeado por sua família e pela primeira vez em vários
d'água, já com os pulmões a explodir. Então perdi os sentidos, mer- dias aceitava as colheradas de mingau das mãos de sua mãe. Lá mes-
gulhando na escuridão da inconsciência! mo em sua casa, foram-me aplicados vários litros de soro com com-
plexo vitamínico e logo comeoei a me recuperar. Novamente a morte
passou por perto, mas me poupou!
Estou vendo a tênue luz oscilante de uma lamparina que baila Muitas pessoas vieram visitar-me, pois ficaram sabendo do nau-
com a leve aragem que passa. Tento mover minha cabeça, mas é como frágio mesmo antes de Peppe ter ido me buscar e me confortavam
se esta pesasse muito, e dói horrivelmente a parte inferior do bulbo! com palavras de encorajamento. Embora não houvesse nada absolu-
lmediatamente me vêm à lembrança cenas do naufrágio que ocorrera tamente que mitigasse um pouquinho minha dor, toda essa constante
algumas horas antes, e começo a chamar por meus pais, mentindo demonstração de amor por parte deles me ajudava a passar melhor
a mim mesmo por não admitir que estavam mortos junto com vovó os dias. . .
e minhas tias. . . Duas semanas depois, vim a saber que Raimundo Nonato o dono
Nos vários dias que se seguiram, não aceitei qualquer espécie do pequeno barco havia sobrevivido também, e queria ver-me. Nem
de alimento, exceto uma pequena cuia d'água por dia. Conseqüente- mesmo os sedativos que me haviam aplicado conseguiram frear meu
mente, um enfraquecimento profundo deixou-me no fundo da rede, desesperado choro ao pousar os olhos nele!
completamente debilitado e imóveI. Como não comi nada, não havia Ele abraçou-rne dizendo que eu não o culpasse pelo acidente,
o que defecar, porém eu urinava na roupa como um bebê e não mais porque fora um acontecimento imprevisível que não pôde evitar, pois
falava, nem mesmo quando me dirigiam a palavra... nem sequer sonhava que algo assim pudesse sobrevir ali. Claro que
Era como se um psiquismo de autodestruição estivesse orde- eu não o achava culpado de nada; foi um imprevisto. Continuamos
nando a cada célula de meu corpo que desistisse de viver, abando- sempre amigos e ele vinha visitar-me regularmente em casa dos
nando suas funções, e eu realmente morria lentamente. Di Mônaco...
A vida me golpeara com seu último açoite privando-me de minha Em .meus momentos de solidão no interior do quarto de hós-
família, que embora impotente para ajudar-me, não deixava de ser pedes, eu meditava profundamente no significado de tudo o que havia
meu refúgio nas horas de minhas tribulações. Iranay, era o nome da acontecido, buscando exaustivamente uma resposta que satisfizesse
mestiça que velava minha agonia corn o olhar cheio de piedade. meu enorme desejo de saber por que. . . teria sido um castigo porque
Muitas vezes insistiu para que eu tomasse o "mingau" que trazia eu buscava minha definição sexual envolvendo minha família?!
na cuia, mas algo mais forte que meu querer me fazía recusá-lo sem- Estaria o Senhor Deus tão irado assim comigo, que me tivesse
pre, e ela voltava desapontada e triste à cozinha dando-o a seus filhi- golpeado tão terrivelmente, destruindo meus entes queridos, deixan-
nhos, que cheios de vigor e apetite logo o consumiam todo. do-me sozinho, apenas para sofrer mais sobre a Terra?! Que seria de
Eu passava por horas de extremo entorpecimento no corpo e mim dali para a frente? Como encontrar forças paÍa recomeçar, sa-
sentia uma contínua sensação de pesada sonolência. Os moradores bendo que ainda continuaria sentindo sobre os ombros o peso insu-
do lugar, cujo nome era "Aruanã-açu", passaram a esperar minha portável de minha anormalidade? Que planos teria meu Criador para
morte a qualquer momento, e por isso acenderam fogueiras no terreiro mim, visto que me deixara sobreviver ainda esta vez?!
c organizaram rezas interrnináveis de antigas orações e ladainhas, vi- "Quero voltar à Espanha!" foi minha súbita exclamação ao
despertar sentindo o calor de um-beijo de Giuseppe em meus lábios!
sando torna.r menos agonizantes meus momentos finais. . .
Era alta.madrugada. Eu estava ouvindo vagam€nte o vozerio em
unissono lá de fora, quando subitamente reconheci em meio ao can-
tochão secular uma voz que me fez estalar os olhos de estupefação! I Deus meu, Senhor tem piedade. Pobrezinho Lorys ainda está vivo! Obri-
Giuseppe di Mônaco, perguntando por mim! Imediatamente após, gado Senhor, tu ouviste minha oração!
-
124 125
('ps1 O último aceno de._mamãe Laércia, e depois a travessia pelo
que voltar à Espanha, arnore mio?! Você agora está só
e nós- seremos sua família; aqui não te faltará nada, e eu ainda te corredor de acesso ao avião. . . Decolamos. Agoia erto,, cnoianão.
..
amo tanto quanto antes! Por favor, não fale em nos deixar!" Manaus fica lâ embaixo € começa a desaparecer coÍno que por
en_
Nem eu mesmo eÍa capaz de compr'eender o que se passava em canto. Adeus terra, querrrla que me viu crescer, paraíso ecológico
minha mente, mas havia desapareciclo aquela ansiosa vontade de verde, purificador de ar do mundo! como é tristâ ter quá
t" ã.iÍur,
viver, de realizar a operação transexual ou de amar alguém. . . Meu rumoàincefieza...
desejo arclente de lutar por uma definição sexual esfriou como gelo,
e eu estava desmotivado, e sem perspectiva de melhora.
Oitarneno era tudo o que eu queria e já não era mais rneu. Giu-
seppe poderia custear a operação, mas iria me cobrar o pÍeço de ter-
me ao seu lado para sempre, e eu não o amava tanto. Dinheiro por
dinheiro, eu poderia obter parte dele com a venda da casa de meus
pais e dos móveis, e depois trabalhar em Madri, conseguindo o
montante da operação. . . Curiosamente, porérn, houve como que uma
parada em meu cérebro, e eu já não mais pensava em nada disso.
Nos dias que se seguiram, uma visita in,esperada de mamãe Laér-
cia me reanimou um pouco as forças. Eu lhe falei sobre rninha situa-
ção de completa indecisão quanto a que rumo tomar, e ela respon-
dendo brandamente me diss,e que "os dias à frente nre proveriam na-
turalmente a resposta". E realmente assim se deu.
Decidi que definitivamente não iria aceitar o amor de Giuseppe
sem sentir por ele o mesmo, e comecei a preparar-me parâ a longa
viagem de volta à Espanha. . . Mamãe Laércia decidiu ficar, até que
eu conseguisse vender a casa e os móveis para obter o dinheiro da
passagem.
Até nesse ponto Giuseppe mostrou o quanto estava empenhado
em ajudar-me, pois coÍnprou-a ele mesmo e pagou-me quas,e o dobro
do preço.
Numa última tentativa, Giuseppe, abraçando-me e após beijar-
me, perguntou:
"l\1[ui vuoui lasciare veramente; hai deciso proprio questo?r
Pense- bem, amore rnio! Não seria melhor ficar comigo, eu procura-
ria iazer tudo que te pudesse trazer felicidade! Sabe lá o que irá
enfrentar sozinho na Europa. . . Io te amo, te voglio tanto bene,
rimane, ti pregho!",
Oitameno ou ninguém pensei, e assim foi; parti. . .
-
"Atenção senhores passageiros da Air France com destino a
Madri e Paris via Cayenne, apresentem-se para o embarque pelo
portão quatro. A 'Infraero' thes deseja boa viagem."

I Você quer me deixar, realmente! Decidiu isso mesmo?


2 Eu te amo, te quero muito bem, fique, te peço!

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BREGA DELIRANTE

Bernadette Lyra

Toclo texto tem os ossos branqueando sob o sol da representa-


ção. Todo texto impõe o decifra-me ou devoro-te. Dcpois, se põe na
sombra, aguardando o banquete. Sobi'e as patas. Muitas vezes, de
quatro. Isto o texto de Lorys faz literalmente.
Esse texto volta. até nós sua fase. Oferece ao leitor os lábios
pincelados de batorn gorduroso vermelho para que, sobre eles, seja
lido o discurso. O discurso muito bem comportado. Com o decoro e
a conveniência modelito estandartizado da chamada "boa forma" li-
terária ern versão inelodrama circ,:nse, com pitadas de telenovela
pornô, ambientaclo entre selvas e igarapés. Brega puro.
Em primeiro lugar; não é difícil detectar a caricatura delineada
sob a serGclade e o a-r documcntal que o texto de Í-ôiys piêtencle. Tal
caricatura outra coisa não é que um reforço à postura opressora,
quando esta, hipocritamente, finge uma aceitação do homossexual,
descle que este ser se mantenha nas linhas divisórias entre a "bicha
louca" e os "normais". Há um4*[g-t@.,totE!, do h,Ump. entendido nesse
livro. O humor e iror.ria que liga-dos à Íingirãgem específica consti-
tuem traços básicos da clanCestinidade e revelam as nrlances do amor
e da busca homo, da angústia e da timidez e, também, algumas veZes;
o reverso: do cinismo agressivo. Mas abunda l-o...JçxÍo a..teatralização \
do sofrer homossexual, paradoxahnem-e-ffiientado de urg dentro/s't
fürt, una ve, que o a,uíar/personagem pio.urr, de maneirâ e4sqqIí:
\ra, dar provas de sua "psique feminina", desejoso de um enquadra-
mento na bjpolaridade olicial dos sexos. Daí resulta uma sóric dc
imagefls dê falso sentimenta-ljsmo, lancês 'de pathos interioranos. O
kilsch mesmo. Traços próprios à caricaturagem que a maioria impoc
às minorias.
No texto de Lorys, essa pobre Xanadu às avessas, edificada às
margens do rio Negro, desfilam lenços brancos, adeuses, particlas dc

llt
barcos ao som de lancinantes canções do repertório romântico-duvi- minatória, ansiosa por "fitar a face" do parceiro sexual tal é a
doso, paixões descabeladas, beijos à abraços àoilywoodianos, citações MULHER IDEAL pretendida por Lorys. Dessa forma, a palavra - do
em francês de ginásio, óperas italianas escutadas em alto-falantes de texto resulta contraditória na medida em qüe, se fazêiido'passar pela
feira, merendas infindáveis (meu Deus! como comem os amazonen- frala da fêmea é, num jogo de inversos, uma fala do macho. E que
ses) e torrentes de lágrimas (como choram, também). Tudo isso pon- rhacho! Impotência, horror, dominação -_ estes parecem ser os ten-
tuado de muitas reticências e exclamações. Mas entenda-se que dões que o sustentam. Não causa espanto o fato de a narração correr
Manaus não é Greenwich Village, nem a hiléia é o gueto. E o texto toda no gênero masculino.
de Lorys, solitário sob toda repressão, esmagado neste Terceiro Movido pelo terror das pressões (|ohn Rechy cita o desespero
Mundo pelas poderosas luas Intelstat, é o antípoda dos textos de como parte muito real da vida gay), incapaz de equacionar-se, o dis-
Gay Sunshine. curso, nesse texto,. oscila entre os eixos da significação da língua e
Se o visível desse livro são o pieguismo e a breguice imbatíveis, da significação pessoàl;.idioletal. Onde eles se cruzam, está a palavra
o invisível é a qlucinação. A partir da condição de autobiografia ale- r4ágiça: transexualidade.,"i Abracadabra que. em uma úpida virada da
gaoa por Lory§. capa, seria capaz de-íazér emergir um coelho do nada. O coelho para
Como autobiografia, o sujeito está em cena. Melhor, se põe em quem o significante foi cunhado no texto. A magia da figurabilidade
cena, onde recebe os golpes (ah! o fantasma freudiano: Ein Kind comeca a se efetuar. Aparecem os contornos da imagem. Entre mui-
wird geschlagen).* tas figuras, no multifacetamento, delineia-se a figura do índio. O belo,
No entanto, as pequenas entradas que levam à travessia dessa viril, valoroso índio juma que faz de Peri (seu modelo confesso) fi-
çhinha. O índio/pai. O amado. O polarizador. O que deveria-ter-sido.
estranha terra de espelhos bóiam na superfície da narrativa. A vida
narrada por Lorys é a vida vivida. Em que nível? O sujeito, por estar A palavra, com seu perfil de enganos, escorrega em algo lodoso
presente, aí se perde. Está no palco e está na platéia. Porém, não se e muito mais profundo. Para a1ém das imagens, preso em algum lu-
vê vendo a si mesmo. Contradições frenéticas, incongruências decla- gar, em algum ponto da encenação, está o IsÍo que revolve surda-
rativas, desconexões fetozes. Na impossibilidade da significação (com mente a "autobiografia" de Lorys.
signos, palavras, para ser lida), Lorys investe na encenação literária A causa e o desespero. O terror e o êxtase. A sexualidade que
(por índices, sinais, para ser uisla). Essa outra face do texto, oculta, goza e que se quer punida. As mulheres mortas, a faca que fura
turbulenta, turvada, pisca para o lS4or,-lá-{o fundo. Ela atravessa uma delas, o sangue feminino que escorre, são símbolos eloqüentes.
a narrativa de Lorys lá, onde egtánão pode iêr-{ábios para a fala. O pai comido pelos candirus, esses peixes-diabinhos, alongados e te-
Ela corrói o discurso moralistâ. pseudofeminista.\de Lorvs de um míveis, que penetram pelo ânus das vítimas, é outro.
lugarondeoimpériododesejoieffiT-â;i#aa,nocentroda A inflexibilidade do texto, onde o macho é o macho, a fêmea é
ferida, se aloja o onírico. Que Sade e Masoch tenham pena de nós. a fêmea, permite, por estranho paradoxo, uma transmutação: o não
No eixo significativo, as repetições estafantes do significante: pelo sim. A dor pelo prazer. A impotência pelo ato.
o ser feminil desamparado, de beleza irrestrita, que atrai a volúpia - Um bloco melodramático que não enxerga o próprio delírio.
do macho feroz e violento irradia para o mito da fêmea-objeto, lncapaz de flutuar neste último, o texto de Lorys vagueia, com o
- dotes sexuais e, no entanto,
solicitada, requisitada por seus táo ávida olho cego de Édipo, procurando por um.
de amor, tão carente de proteção. Validam-se aí os signos que a
cultura patriarcal quadricula no corpo social acerca da mulher. Na
ânsia de identificação com tal mulher estereotipada, a linguagem ela-
bora, de maneira extremamente pretensiosa, a personagem/autot.
Assim, o corpo de Lorys, nesse relato, reúne em proporções de exa-
gero sinais de delicadeza, genialidade, altruísmo, perfeição. Assen-
tados com falsa modéstia sobre as contorções morais do discurso.
Submissa, desejosa de ter um homem como "dono e senhor"; discri-
Bernadette Lyra é escritora, doutoranda da Escola de Comunicaçõas e
t Artes da USP. Iá publicou vários contos e os lívros "As contas no cantci',
Uma criança levou uma surra (N.E.) "O isrdim das delícias", "Corações de uistal".

132 li7
EXCESSO (EX-SEXO) MELODRAMÁTICO
Herbert Daniel
----*-\-
{\
Lorys poderia ser um personagem de ü4n melodrama) de Douglas
Sirk, interpretado por Lana Turner; ou uh'r+e.r.sao"ldaptada por
Fassbinder se não fosse a ão do autor de estar contando
a "verdade"-

da tragédia da definição sexual, nos termos do melodrama. Não é,


em absoluto, um "defeito" do livro, ou uma opção literária do autor,
mas uma conformação necessária à própria autobiografia.
No melodrama, segundo a ótica do sentimentalismo, não há es-
paço para vacilações, rupturas, alteridades ou nuances no terreno do
sexual. Não se admite o sexo senão como força motriz, sem ambi-
güidade, da sua própria alquitetura. Isto é, o melodrama é exata-
mente a metafísica da sexualidade.
Por isto rlesmo, Lorys não caberia, fora do melodrama, dentro
da sua própria história, por não caber (ser indefinido) dentro de
nenhuma das definições que fundam sua própria historicidade. Não
é à toa que recrlsa sua , em nome de uma
idéia ntro
"'-"'ÍflascuHno -' ilidade abstrata e transcor-
pórea, feininilidacle puramente "psicológica", no entanto decorrente
do rnesmo corpo recusado (observar como são enormes as contradi-
ções desse corpo que teme que o tempo traga sinais caracterizadores
do sexo recusado, "masculino", refugiando-se nas formas ambíguas
da infância ou tendo de apelar para a cirurgia para fazer o corpo
corresponder à sua imagem preconcebida, "feminina").
A feminilidade na história de Lorys é uma visão ideal de um
específico (melodramático) do sexo. É deste lugar, onde se funda trrna
recusa o "próprio feminino" enclausurado numa norma "masculi-
-
na" (corpo) que Lorys diz quem é e a que veio. Sem dúvida,
-,
li5
nem vacilação, quanto à realidade absoluta de uma sexualidade dual
exclusiyista. Os desequilíbrios (entre corpo e sexo, entre matéria e
espírito, glândtrlas e alma, que, aliás, produzem como desequili
brios - não decorrem
o enredo propriamente dito do melodrama)
-
das dificuldades dessa definição rigorosa de um mundo ambissexual,
onde apenas dois sexos preexistem e se excluem mutuamente, sem
relação possível a não ser dentro de uma luta de exclusão. Esta luta,
presente e invisível ao mesmo tempo, é exatamente uma configuração
mágica da luta de classes, nos limites da sexualidade transcendida no
que a ideologia dominante chama de "amor", purificação da sexuali-
dade que deixa de lado sua dialética para ser abstrata relação entre
categorias ideológicas. A ESCULTURA DO SEXO
Lorys exige e se exige uma definição absolutamente pre-
-
cisa dentro da ambissexualidade. - Por isso não poderia senão produ-
zir/rcproduzir a ideologia do seu "sexo" imposto psicologicamente:
Fdbio P. Lacombe
um "sexo feminino" que repete a fala do masculino sobre o seu
allreio. Lorys elabora perfeitamente o discurso da colonizada, da Mu-
lher (com M maiúsculo) que sobrevive, como costela perdida ou in- Pigmalião, conta-nos a lenda, tinha horror às mulheres. Eram
genuidade infantil perdida pelo Homem, nas colônias imaginárias todas pecaminosas e impuras. No entanto, usou seus dotes artísticos
para esculpir a estátua de uma mulher tão formosa, pela qual se
onde estão encarcerados todos os sexos (com s, m e h minúsculos).
apaixonou perdidamente e acabou obtendo dos deuses que se tor-
A única mulher que pode ser, na ideologia da ambissexualidade, é nasse viva e pudesse desposá-la.
exatamente esta: a fêmea abstrata do macho real (tniça realeza
admissível nas sociedades patriarcais e falocráticas. - Tal relato, que se prestou como tema de várias obras literárias,
Deste ponto de vista, MEU CORPO, MINHA PRISÃO é um não o fez por acaso, mas por expressar uma dimensão estruturante
depoimento interessante pela brutalidade crua com que expõe esta de relação do sujeito humano com a representação da mulher. E que
Mulher. Mais ainda porque coloca em primeira pessoa uma das for- o horror seja um elemento de mediação é talvez o atrativo maior
mas mais freqüentes e oprimidas da vivência homossexual. Uma vi-
para uma re-flexão radical desse relacionamento.
vência que recusa a homossexualidade, por se tratar de um desvio Qual a motivação para o artista esculpir aquilo de que tinha
incompreensível para a dualidade sexual e, em geral, a sexualidade horror? Que estranhos desígnios o impeliam a colocar diante si, a
como fenômeno material. É marcante que a vivência homossexual re-presentar, o objeto de suas amargas censuras? Sabemos ser a
de Lorys, no livro, seja repudiada, só sendo descrita como violenta- repulsa a outra face de um sentimento de atraçáo, que justifica a
permanência da primeira. Não existisse, a indiferença em relação ao
ção da integridade física do personagem absolutamente passivo díante objeto tomaria o primeiro plano. E de certa forma a lenda confirma
da fúria do desejo masculino (aparentemente, no relato, o único capaz
de rqotivar uma sexualidade ativa). a assertiva, na medida em que promove a paixão do artista por sua
obra.
A rorma jJusTrrlcarlYa oe expor sua sexualloaoe e exatamente o'
,iã-rorma
É sempre numa tensão de ambivalência que qualquer represen-
protótipo de "auto-explicações" de homossexuais submetidos a tre-
tação se constrói. O nível em que faz decide da possibilidade de con-
, oprimido, sim, mas também um elogio à própria opressãdl vivência com o objeto real de que trata a representação. Pigmalião não
-- - Ãcfêffifõ qurcl:ê§fe -â-tiÍr-Tiír-ô ?' àl fi. f '*-' p ri n ci palmê'n te porqrr e podia conviver com a mulher real a não ser que conseguisse repre-
- i
sentála de forma a superar sua aversão. A representação como meio
fi não questiona ãiretamente a sexualidade oficiai mas vem reafirmála
é condição fundamental para o relacionamento na perspectiva do real
I dentro do seu absurdo, destruindo nessa reafirmação os próprios fun-
e sempre se dá na superação de um horror. "A natureza tem horror
damentos da "normalização".
f[ ao yazio", ouvimos ecoar desde tempos muito remotos, exprimindo
Herbert Daníel é esuitor, autor dos livros "Passagetn para o próxímo em termos universais o que se explicita também em termos da "na-
sonlro", "A lêmea sintética", "lacarés e lobisomens", "Meu corpo daria utn tureza psíquica". Há um vazio a ser enfrentado na dimensão do hor-
,'otrta,Tcd', "As três moças do sabonetd'. ror. Esse vazio é exatâmente o que se promove com a ausêrrcia do
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()bjoto sexualmente investido. No vazio de sua ausência se funda o a uma dinâmica de constituição da sexualidade, que é a mesma cla
reiuo da representação, onde o objeto de novo se torna presente na constituigão do próprio sujeito, em constante operação. E mais ainrla,
forma de uma construção psíquica, o que permite tolerar a espera do é sempre como ãxperiência de conflito que tal proce§so se dá. A "pos-
seu retorno real. Se o horror da ausência ó insuportáivel, faz-se mister se" dá sua "naturéza sexual" o homem só a tealiza, de forma evanes-
torná-lo presente de qualquer maneira, ainda que rompendo com as cente, no jogo das diferenças. Que essas se dêem também ao nível
leis de constituição do mundo real. da anatomia, não garante de forma alguma a "posse" de uma natu-
O "personagem" Lorys Ádreon em algum nível nos traz de volta reza masculina ou feminina. "A anatomia é o destino", nos volta a
Pigmalião, o herói lendário. Pretende esculpir em seu próprio corpo falar a sabedoria milenar. Esse destino há que se realizar nas vicis-
a imagem da mulher, cuja representação psíquica paiecé estar no situdes de uma experiência histórica real, que inclui a possibilidade
horizonte do impossível. No entanto se o escultor encontra-se com da rebeldia, mas támbém a inexorabilidade de nos defrontaÍmos com
a forma a ser esculpida na brutalidade amorfa da pedra, Lorys neces- a diferença ao nível não apenas da corporalidade, mas principalmente
slta apagar do seu corpo marcas muito precisas de sua pertinência ao nível do símbolo, oncle o homem não só reproduz como qualquer
ao sexo masculino. Não se trata de reproduzir o mito bíblico, e da animal, mas também cria e se liberta da vivência do corpo como
parte amputada criar a mulher, trata-se de eliminar o homem, de prisão.
substituí-lo na medida de sua representação pelo pênis.
Essa redução do homem ao seu órgão genital é fundamental em
termos da origem do conflito de Lorys. É o que nos informa a cena
em que o nosso herói procura, por si próprio, a castração. Esse ato
não se dá como resultado de um impulso imotivado. Muito pelo con-
trário, o texto revela a sua associação com a experiência do abando-
no, daquele que o teria "iniciado" sexualmente, Foi segundo o autor
o seu primeiro contacto com o órgão genital adulto, que é por sua
vez produtor de algo semelhante ao "leite colocado pela mãe na xíça-
ra". Ora, há aqui uma ausência intrigante. Num texto repleto de
lugares-comuns, que o seio materno não haja sido evocado como termo
de comparação para o pênis-produtor, no mínimo nos faz desconfiar
de se estar numa experiência limite, limite da possibilidade de repre-
sentação do objeto primeiro. É no vazio da xícara que se articula essa
deficiência radical, preenchido pelo órgão masculino. Que Lorys reaja
ao abandono, com a tentativa de eliminar vestígio da presença desse
substituto nos dá conta da dificuldade extrema de lidar com essa au-
sência primária. DificuldacÍe que ressoa no próprio estilo do autor,
onde os "maneirismos", âcs quais constantemente recorre, deixam en-
trever a mulher aí esboçada como de tal inconsistência que a tendên-
cia é concordar com nosso herói: o sacrifício de sua corporalidade é
a via de redenção do sexo feminino. . .
A redução da problemática da identidade sexual ao nível dessa
relação seio-pênis é o impasse a que o texto nos conduz ao colocar-se
explicitamente como defesa de uma tese, na qual através de uma refi-
nada reprodução da cena infantil cla castração, ott seja, a cirurgia,
Lorys integraria em si a condição de mulher, cuja "natureza" já pos-
suiria em parte.
A questão maior reside talvez nessa "posse" do feminino. Ser Fábio Lacombe é psicanalísta, prolessor na Escola de Comunicação da
nrulher ou ser homem não é possttir esse ou aquele atributo quer UFRJ . Co-autor do livio 'Psicanólise e Exístêncfu' (com Manoel C. Leão) c
"A crise na Psicanálise" (organizado por Gisálio Cerqueira F.").
mental, quer corporal. Atingir a sua diferença sexual é se entregar
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