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ARTIGO
e os corpos em
em meio à apresentação da obra, abordou en passant
o “inesperado e maravilhoso erotismo” de uma
passagem, a Ilha dos amores, canto IX. Buscando-a
em sebos, deparei-me com uma edição de 1948
minuciosamente comentada por um tal professor
Os Lusíadas
Otoniel Mota, catedrático da Faculdade de Filo-
sofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP),
e fiz dela minha companheira constante por bons
tempos.
Nada encontrei, contudo, de erotismo no texto,
Outras perspectivas diante mesmo tendo-o lido com esmero e me compro-
metido a decorar passagens inteiras. Pensando, a
LUÍSA VASCONCELOS
reflexões sobre
não esperavam”. Hoje, nossa compreensão vai se fazendo outra não
Essa pressuposição de “fingimento” nunca é só em relação ao estupro, mas em relação à mulher
posta em dúvida pela narrativa, ainda que algu- e ao próprio amor. Essas novas compreensões pre-
as formas de
mas passagens deixem claro que, para as ninfas, cisando se fazer notar também na maneira como
a força física era uma questão: “umas, fingindo relemos nosso passado, nossos clássicos.
menos estimar (‘temer’)/ a vergonha que a força, Anacronismo? Mais anacrônico seguir vendo
se lançavam / nuas por entre o mato, aos olhos
dando / o que às mãos cobiçosas vão negando”. A
própria equação apresentada (“fingir temer menos
interpretação do mulheres vulneráveis, reféns, como imagem de
uma utopia, mulheres que fogem e acusam dor
como representações de lubricidade e fingimento,
a vergonha do que a força”) é estranha, perigosa;
esse fingir com que se inicia podendo tanto inverter
o peso que o medo e o pudor assumem, quanto
estupro na literatura esse fingimento (perverso, porque sempre suposto)
sendo ainda tratado como excitante, como “gracio-
sos negaceios femininos”. E eis o motivo pelo qual a
anular a importância dos dois elementos. Daí a que, desde sempre lidos como retóricos, metafó- Ilha dos amores, de uma mesma perspectiva machista,
desacreditarem a palavra da mulher e a capacidade ricos, parecem cada vez mais merecer outros tipos consegue tanto ser suprimida por indecorosa (caso
de ela falar por si é apenas um passo. de leitura: “todas de correr cansam, ninfa pura, / da minha curiosa edição), quanto antologiada por
Tudo acontece como se, uma vez flechadas, já rendendo-se à vontade do inimigo; / tu só de mi só seu erotismo, por exemplo, na Antologia de poesia
não houvesse limite, qualquer ação lhes sendo foges na espessura (‘floresta’) ?”. O amado como portuguesa erótica e satírica, de Natália Correia, ou no
permitida. Os valorosos guerreiros, no entanto, inimigo, a vitória pelo cansaço. Livro das cortesãs, de Sergio Faraco.
desconheciam as maquinações de Vênus e, pela É o direito a usar força física e, em última ins- Faz-se urgente uma antologia da literatura mi-
forma como procedem, é de se imaginar que, com tância, a definir se esse uso seria ou não legítimo. sógina da língua portuguesa. Antologia comentada
ou sem flechas, agiriam da mesma forma. Mais É o poder de nomear como “amor” (ou qualquer nos moldes minuciosos dessas edições de Camões.
do que isso: ainda que concluamos que, sim, elas outro vocábulo com propósitos similares, como: Mas agora por um viés de gênero, feminista. Um
estivessem “fingindo”, é forçoso reconhecer que sexo, paixão, prazer e não, por exemplo, estupro, cárcere, museu do pior que já se disse, também do que,
eles não estavam a par desse fingimento e que o servidão) os embates que ali se dessem. Além do fato sem muitas vezes nos darmos conta, ainda hoje se
fingimento só teria existido para atraí-los e excitá- de considerar aqueles corpos encontrados como diz, para não sermos mais capazes de esquecê-lo
-los. A passagem deixa claro o quanto o estupro, disponíveis, usufruíveis, e, por fim, a inversão nem de continuar a entendê-lo da mesma forma.
seja vivido, seja imaginado, cumpre um papel real completa de sentidos que ainda hoje conhecemos
no despertar de tais desejos. tão bem, responsabilizando a vítima por tudo o que NOTAS
As restantes estrofes do pequeno episódio serão lhe acontece: ela (e não o perpetrador) detendo o 1. Ivan Teixeira, chamando o argumento de sofisticado,
ocupadas sobretudo com as lamúrias que o soldado real poder, ela e somente ela a culpada por fazer o traduz como “já que me roubou a alma, fica também
Leonardo (um grande desaventurado no Amor, nos com que homens percam o controle, a cabeça, com o corpo” – a mulher, mais uma vez, culpada.
diz a narrativa) dirige à Efire, exemplo de beleza, ajam da forma que agiram.² 2. “Endechas a Bárbara”, uma das redondilhas mais
quando ele já estava cansado de correr ao seu al- A questão que aqui se apresenta não é exata- famosas de Camões, é exemplar desse tipo de inversão:
cance. Nelas, em meio a galanteios do tipo “espera mente deliberar se, nesse pequeno episódio, há “Aquela cativa / que me tem cativo, / poque nela vivo,
um corpo de quem levas a alma”¹, surgem versos ou não estupro, mas refletirmos sobre os senti- / já não quer que viva”.