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WALMIR AYALA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do


A FUGA DO ARCANJO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ) (diário 111)

Aiala, Walmir.
A245f A Fuga do Arcanjo: diário III [por]
Walmir Ayala. Rio de Janeiro, Ed. Bra-
sílía/Río, 1976
129 págs.

1. Aiala, Walmir I. Título

B
CDD - 928.6992
869.9803
CDU - 92Aiala, Walmir
76-0686 869.0(81)-94
EDITORA BRASíLIA/RIO
Rio de Janeiro
1976
<D Copyright by WALMIR AYALA

Capa - Paulo de Oliveira

Revisão - Vilmar da Cruz Brito


"Pero por un amor imposible se puede luchar sin
sentido."

ROSA CHACEL

"Si uno se siente nacer en el amor y se siente morir


al separarse del ser amado, lo principal es que no
se tiespierte ei recuerâo de una vida anterior al
amor, que ese recuerdo no sea una comprobación
de que se puede uiuir, de que se vivió en otro tiempo
libre de su cadena".

ROSA CHACEL

Proibida a reprodução deste livro, por qualquer meio


ou sistema, em língua portuguesa, sem o prévio
consentimento da EDITORA BRASíLIA/RIO.
Até que ponto um amor pode ser anormal?
Penso que uma vez que seja amor já está isento de
anormalidade. Mas onde começa, e com que armas,
esta festa abstrata? Certamente que nas fronteiras
do corpo. Através do corpo, o espírito (que ama em
verdade) assume suas limitações. E o amor pode
ser mais ou menos santo, mais ou menos possível,
sempre que transpuser a solidão total para se re-
lacionar no jogo humano e múltiplo do mundo.
Não se vive numa ilha, em verdade. Pode então a
amar começar a ser possível e anormal. Pade ser
interceptado por simples instituições sociais e re-
ligíosas, até gravíssímas realidades da essência da
própria natureza humana. No caso temos a amor
de uma pessoa livre par outra já legalmente com-
prometida, ou de duas pessoas do mesma sexo. No
primeiro casa já consideramos com mais natura-
lidade a realização, embora transpire sempre, ao
redor das que se solicitam forçando preconceitos,
uma certa aura de pecado.
No segundo caso é a martírio, o combate com a
anj 0'. E a recurso mais certa para preservar a que

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ameaça sempre virar monstruosidade é, na medida sespera, para não sentir o odor perigoso das rela-
do possível, uma dolorosa renúncia. Qualquer con- ções escondidas, da festa oculta da luxúria.
cessão à pequena festa dos sentidos pode diminuir a Mas nada é perfeito, e eu não sou santo. E se
intenção. Os amantes desta natureza são condena- chego a Deus é através de um corpo que me agrada
dos irremediavelmente à solidão, uma solidão muito em todos os detalhes. Fico sem saber o que será da
mais grave e fecunda do que o simples exílio huma- minha alma quando a resistência falhar. Terei que
no. A solidão dos projetados .nas imensas paredes fugir ou despedaçar o cristal. Tenho a certeza de
da demência e do sonho, dos fantasmas maiores, dos que fugirei. Temo demais a morte para assistir tran-
suicidas tranqüilos. Está nos corpos a possibilidade qüilamente o velório de uma tão contraditória ale-
do milagre. Mas pela isenção do toque, pela preser- gria. E tendo fugido é como ter sonhado ... é saber
vação consciente da possibilidade de vício ou de té- que tudo o que parecia real se transfere para outras
dio, por esta superação da chance imediata de em- arestas. Talvez eu esteja errado, porque a angústia
briaguez sexual, é que o espírito engrandece. Enele do tempo é maior e mais premente, porque afunda-
a projeção do amor, sempre mais isento de sensua- mos sozinhos e não temos o direito de desprezar a
lidades desesperadas, pode revelar a medida justa chance de felicidade contra a qual nos chocamos a
do destino e desvendar o paraíso. Isto pela renúncia despeito de qualquer lei natural ou sobrenatural. ..
que anula a morte e o apodrecimento. Benditos os Entendo cada vez mais os que se embrenham no
amores que não apodrecem, que não padecem mu- deserto à procura de Deus, e comem gafanhotos e
tilação, que se preservam além da morte, quando a mel, e encontram uma venenosa felicidade neste
gente ultrapassa a matéria visível da pessoa amada passeio visionário. Só os místicos e os castos tocaram
para mergulhar nos imponderáveis da sua eterni- a verdade. Os outros, e eu entre os mais rastejantes,
dade. só conseguem chorar e, amparados por uma miste-
Tudo isto me vem à mente depois da noite de riosa força, preservar certos aparecimentos mara-
anteontem em casa de R. Depois de ouvi-lo falar de vilhosos e transitórios.
carnalidade desenfreada, da necessidade de ir até o
fundo do poço da libido. Eu mantendo os cavalos
desenfreados dos meus nervos, dando-Ines uma ver-
são de pombos mansos, para fora de mim. Eu re-
nunciando e ampliando a versão magnífica do meu
deslumbramento diante da imagem amada, imagem
e semelhança de Deus. Eu não ousando tocar para
não espantar o sol claríssimo da confiança. Eu acei-
tando uma fraternidade que me cansa, que me de-

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1960

26 de junho

Começo a ler um segundo caderno de poemas


inéditos de um jovem poeta. Poemas escritos em
1951. Noto de início uma intenção de economia, de
poda, de contensão emocional dosando sobriamente
o discursivo. O "dizer grandiloqüente" de poemas
anteriores desse poeta está reduzido a uma espécie
de essência da forma, ainda não artística, mas já
acesa daquela iluminura que é a palpitação lírica.
Não sei, se tão num princípio de trabalho, toda esta
consciência de policiamento seria aconselhável. De-
veriam dar-se conta os jovens poetas de que copiar
grandes poemas, ímitá-los, fazer variações em torno
de versificações criativas, sobretudo ler com entrega,
proporcionaria melhor caminho do que estas sábias
tomadas de assalto à forma convencional. Porque o
modernismo acarreta sua convenção, tão perigosa
como qualquer academia. Tende a ser paulatina-
mente uma outra academia.
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Há ainda, para o poeta novo, O' demônio da ex- de amante. Na realidade não entendia aquele corpo.
plicação. O poeta teme não ser suficientemente claro. Depois de uma experiência amorosa (uma a mais)
Ainda não sabe de sua linguagem. E o explicar lhe que começou há três anos, e tendo terminado agora,
intercepta o mistério. me transformei momentaneamente numa flor de
O abuso do verbo, a busca de uma dinâmica cera, capaz de perfume mas sem convicção. Me ar-
sem sutileza, expressa num tempo presente de ação, rependo depois de cada aventura e sinto atração
certas palavras denotadoras de um fastio interior, permanente pelos corpos.
um subjetívísmo que se esfuma à medida que o poe-
I, " "

ta organiza sua visão - são barreiras a transpor. A


poesia deve passar do sentimento para a mão. No Esta viagem me entedia. Seus detalhes e prin-
meio, como um termômetro mágico, o coração cana- cipalmente os vazios (quando estou com horas va-
lizará os impulsos. E a palavra será massa moldável. gas numa cidade estranha onde não sei me locomo-
ver) dão-me a sensação de descamínho. Não corno
os ciganos que vi às margens do rio Paraíba. Eles
O perigo da poesia invadida por uma invencível
tinham seu mundo, seu caminhão, um mundo de
volúpia. O tema do amor chegando como uma nu-
amor e marginalidade dentro do mundo. Eu carre-
vem informe. O difícil de cantar, então, se prende
go, como o caracol, meu temperamento ferido, mi-
ao êxtase da imaginação asfixiada pelo combate
nha alma gemente, este cachorro ganindo de sorti-
amoroso. O que há, ainda, é uma solidão inaceíta,
légio que é meu sentimento. Tenho nisto tudo as
faianças e os damascos, os cedros e os viveiros, sou
Como tudo é pouco, como não se sabe como um mendigo luxuoso e acuado, desses,que num de-
proceder para salvar a alma, para sobreviver em es- terminado dia se ateiam fogo às vestes.
perança! Ontem a agressão, depois o aplauso, hoje
o tédio. Porque nada é definitivo, e o que escrevo é
o desenho rápido e leve de uma verdadeira tragédia Meu teatro já se me afigura com uma constan-
que carrego comigo. A tragédia de não ser eterno, de te: pessoas fatalizadas desejando desesperadamente
não lograr comunicação unânime, de não salvar a dar novo rumo aos seus destinos, um rumo heróico.
mim nem aos outros. A rainha em "O monstro de olhos verdes", a pitoní-
sa em "O navio fantasma", Lia em "Hoje comemos
São Paulo - 27 de junho rosas". São sobretudo criaturas sedentas de amor.
A sede de amon é que as coloca sonâmbulas à porta
Ontem à noite amei um corpo magnífico. Quis dos aparentemente realizados, numa exaltada pre-
acreditar que precisava disso e representei um papel gação.

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Porto Alegre - 27 de junho mane precioso. Que falta lhe faz o ímpeto poético,
este ímpeto que ela tentou veicular num pensamen-
A sensação, neste regresso, de que nem sou exa- to político. A ânsia de 'liberdade que ela pessoalmen-
tamente o que vive no Rio, e escreve e padece de te comunica deveria estar plantada em sua rítmica,
abandono no meio mais cordial e populoso, nem o deveria advir do atendimento dinâmico de outros
que aqui volta para ver raízes ainda tentadoras. A cantares, do estudo da estrutura poética como ele-
sensação apenas de estar passando, de não pertencer mento físico do poema. Mas LHa quer cantar, ape-
a nenhuma família, embora indissoluvelmente com- nas. Contenta-se com isto. E encontramos nela a
prometido com aquela de que saí. A desconfiança definição que lhe cabe: a de mais importante voz
de que "os meus" me amam muito mais em vista feminina da poesia sul-rio-grandense.
do meu cômodo desligamento. A distância e auto-
suficiente (na medida das minhas insuficiências), Aqui em Porto Alegre fala-se demais em falta
sou como um terreno amainado e responsável. de tempo. Nenhum artista é capaz .de um sacrifício
e se sentem eles mesmos vocações asfixiadas pelas
Rever os amigos. O Weber e aquela fidelidade circunstâncias. Desconfio de que nem são autên-
devota, aquela admiração que quase incomoda; o ticas vocações nem carecem tão espantosamente
Newton e a lembrança que me traz sempre de ter de tempo. De qualquer forma Porto Alegre, em se
sido meu primeiro orientador de leitura (dele re- tratando de artes, me dá uma sensação de estagna-
cebi Antonio Botto, Cecilia Meireles, Drummond, ção neste junho de 1960. Apenas o teatro ainda
Vinicius de Morais, Jimenez, etc.); e o Zeferino, hoje mantém acesa uma débil chama.
dr. Fagundes, com os seus 27 anos e a cabeça bran-
ca, formado em Direito, empunhando um charuto 28 de junho
e uma lógica de renúncia e devoção familiar, que
cerceiam as perigosas fugas do instinto. e amoldam Passo duas horas em casa de Érico Veríssimo.
a máscara do sacrifício; Paulo Hecker Filho, uma .É fácil falar com ele. Sabe escutar, é despretensioso.
exigência ética que não consigo ainda entender bem Confessa estar "engasgado" com seu romance cí-
(eu que procuro na beleza o único caminho de mo- elico "O tempo e o vento", já em 39 volume. Só de-
ral que há de servir). pois começará novo trabalho. Dele tudo se pode es-
perar, de sua habilidade ficcional e sua vivência
Lila Rípol convida-me para uma reunião. Fora .humanizante. "O tempo, e o vento", em relação à
dela e de·Delmar Mancuso, nada de especial. Mas obra anterior, já lhe confere um crédito de confian-
Lila, aquela fala baixa, aquele temor, aquele ade- ça. Está em plena evolução, e concordo com Manoel

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Walter quando diz ser a obra cíclica de Érico Verís- que muda em nós é o sentido do amor. Quando jo-
símo melhor do que o melhor Zé Lins do Rego. vens queríamos destruir o mundo e começar tudo
de novo. Depois, sem forças e certos de que passa-
o medo de morrer só acontece quando se sabe mos mesmo, nos apegamos a tudo com sofreguidão;
merecer a morte. Os jovens não se dão conta disso. e com isto alimentamos 00 último hausto de um sopro
Há quem não imagine o que a morte seja (caso da de esperança.
empregada de uma amiga minha que se matou por
brincadeira) . Por outro lado, que adianta temer uma Quantas vezes me pergunto: por que escrevi
coisa inevitável? Temor significa esforço de escape. isto? Para quê? Que interessa aos outros tais ou
E ninguém escapa. quais palavras com que me comunico? E por que po-
nho neste afazer toda a razão da minha vida? Se eu
fizesse um pão, igual a todos os outros feitos par
Érico Veríssimo promete encaminhar (interes-
todos os homens, alguém se alimentaria dele, e eu
sando-se e reeomendando) , à Editora Globo, os origi-
nais de minha peça "A Salamanca do Jarau". Tenho
°
estaria justificado. Mas que faço, escrevendo, é um
alimento inútil que me gasta. Tento ser eu mesmo
interesse em que seja uma edição do sul. É a minha
e encontro mil faces boiando em meu tanque de se":
primeira experiência com temátíca local, experiên-
gredos. O que sou? Um simples cronista da minha
cia espontânea e consentida.
alma? Eu que ambicionei ser um épico.

Rio de Janeiro - 19 de julho 8 de julho

O. N. dizia-me que só agora encontra a ternura Outra fase do amor, mais antiga e mais clara,
humana de que sempre necessitou. Agora, na idade ameaça acabar. Faz a confidência da longa viagem.
madura. Achava que isto deveria ter chegado tão O distanciamento físico há muito começou. E não
antes. Penso que a mocidade é em si crueã e dificulta pára. De repente meu coração estremece como um
a paz. A mocidade tem caprichos contra si mesma, pássaro na agonia. Olho aquela nuvem de corpo que
espezinha quem está pronto a lhe servir, deprecia encerra uma alma, a mais necessária à minha sede,
quem lhe oferece o seu melhor, quer ser indepen- e toco a cegueira de Deus, como se fosse uma asa de
dente, absoluta, imortal. Com a maturidade vem ferro que me batesse na face e me refugiasse na de-
um certo cansaço que sorri. Uma paciência que se sesperança.
desdobra em solidariedade. A solidão, quando a
idade chega, é pior do que a morte, e o mínimo Estou sofrendo a esta hora da noite. Sofrendo
gesto de carinho é aceito e parece uma graça. O como muitos que estão sofrendo. Sofrendo sem ter

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fome, sem ter sede, sem ter frio. Sofrendo e só, por 9 de julho
estar só, sofrendo, Gostaria de descrever meu sofri-
mento ~ um mar limitado e cálido, uma rosa de Continuação do amor, ou seja: um pensar que
joelhos, um ínexístir que respira. é esperança, e não tem ligações imediatas 'com o
No entanto perco de cabeça erguida, porque, é tempo. De concretol'esta-lhe um príncípío de con-
preciso. Não exigir é meu único recurso. Certas pa- templação, um descobrimento, uma sondagem. Ago-
lavras são asfixiadas como corpos vivos, certas con- ra um vazio. Propositadamente fiquei sem ponta. de
fissões são esmagadas como vermes nocivos. Assim referência. Para que, se eu hão teria coragem de
desperdicei aparte melhor dos meus desejos. tomar uma atitude de posse ou de solicitação? Me-
lhor assim, um indício que me preenche as horas
o mundo é uma estranha composição. Tudo o todas, uma vaga e importuna lembrança como um
que acontece ao redor de mim, neste momento, é-me vôo inesperado num bosque virgem, e a possibilidade
estrangeiro, como se eu tivesse caído numa terra de do milagre.
seres de outra natureza: gigantes ou pigmeus. Só
sei que me desgarro. Mas me desgarro num esforço o milagre já aconteceu uma vez, quando me
tamanho de convencer às gentes de que caí por ne- ,senti capaz do primeiro sofrimento e de crescer nele.
cessídade, que aqui estou porque fui mandado, man- Quando aceitei e bebi o cálice até o fundo. Isto não
dado pela minha própria consciência desde os tem- impede que o milagre se repita em tudo 'o que me
pos em que me formei na palpitação do Universo. espanta ter recebido. E me sinto tão pobre em' mi-
Este esforço me obriga a chorar todos os dias. Ê a nha solidão, que qualquer aceno comunicantedes-
contrição. venda o infinito.

As pessoas que amei geralmente já estavam Só o amor me faz eterno. Ê a maneira de eu ser
endereçadas, e hoje se completam com outras pes- tantos quantos os objetos de amor. De ter outros
soas que as amam como eu talvez as amaria se me interesses que os meus. De estar no meio 'da turba
amassem. Não há lógica que me interprete, não há para a lágrima e a revelação. Se amor, emverdade,
coração que me consinta. Pelo menos pude escolher, é pouco exigir e dar infinitamente, sou: veículo de
ainda que para perder. amor. Não tenho culpa de que o meu coração; em
se dando, se multiplique em virtude desua inteira
Espero poder aceitar o que não me estão dando. dádiva.
A minha imaginação é uma fonte infinita de laços O amanhã, nesta hora da noite em queregistro
que a minha estabilidade não suprime. Tenho tudo estes pensamentos, se me afigura como um ' repós-
o que quis,menos as realidades. teíro pesado, atrás do qual se esconde umajanela
18 '19
com um horizonte e um conflito. Nada sei, mas o res de anos luz. Gostaria de ser muito antigo, per-
que não sei já existe, independente do meu querer doem-me. Parecer que já morri há milênios ou que
nunca existi. Ou que fui arrebatado num carro de
~ da minha noção de injustiça. Haja o que houver,
sei que Deus está comigo, que o amor em mim é fogo. QUero,enfim, a marca da eternidade.
tudo o que Ele espera, e que terei, para lhe prestar
17 de julho
contas, um cabedal centuplícado do que me conce-
deu juntamente com a permissão de cumprir o meu
Um amigo queixa-se de que o amor não perdu-
destino. Todo o meu livre arbítrio repousa nisto: em
aprender o amor. ra. E como pode perdurar um sentimento tão sem
história em si, esta pura abstração. Não tem versão
prática total, é um complexo de coisas que existem,
14 de julho
com coisas que não existem. Prescindindo de rela-
,,;.
ção direta com o objeto, prescinde de qualquer ato
Diante de uma figura de Velazques fico pen-
físico. É um ato solitário por princípio e que pode
sando que o abstracionísmo em pintura é perfeita-
resultar em grande festa. Freqüentemente é um
mente válido e fácil de aceitar, seguindo uma lógica
passeio num deserto, em voz alta e sempre em êx-
absolutamente linear. Pois a pessoa representada
.naquela figura não me diz nada, não me interessa tase.
..corno expressão humana, não tem a beleza que me
Em geral as caras das mulheres da vida pare-
obrigaria ao diálogo, no entanto entreguei-me à sua
inevitável carnação. Era Velazques mesmo que se cem de papel crepom.
impunha através de um retrato cuja realidade mo-
tivadora foi apenas um acidente. Meu amigo poeta: um envelope fechado, intato,
limpíssimo, que ninguém abrirá.
Ser ou. não ser de vanguarda, eis a proposição
que. embriaga a grande maioria de quem faz arte 29 de julho
por aqui. Escrevi peças. em um ato, filiadas por afi-
Não quero me ímpíngír urna atmosfera de so-
nidade, e por sentimento poético, a correntes ditas
frimento. Nem forçar esta atmosfera. Acontece que
de vanguarda. Tenho consciência até dos elemen-
tosreüetídos e desarraigados do modelo original. por mais que eu me esforce esta manhã, por estar
leve e natural, por andar e ver crianças e percorrer
Assim mesmo levantam-se as vozes sábias para ad-
Ipanema (como acabo de percorrer) com tranqüila
.vertír que não comecei de ZERO. Em nenhum mo-
mansidão, tenho dentro de mim uma bola de cobre
mérito de minha produção pensei nisto, em começar
morno que me aperta o coração. Tudo por causa de
q,ellero,uma coisa que já tem dentro de mim milha-
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.20
um sonho, o sonho mais banal, importante pela du- e é como se caísse num poço sem fim, num poço on-
ração, pois numa noite tive a impressão de viver de ninguém nos vê, mas que é como se estivéssemos
uma eternidade, e de tê-Ia vivido fisicamente. Mas nus e leprosos diante de uma multidão.
era um sonho inocente: eu passeava um passeio sem
fim, pela noite, com a primeira pessoa que me jogou
dentro de mim mesmo, e que eu chamaria de "meu o que posso fazer para não ser de tal forma
primeiro amor". No sonho era exatamente como no um rebento da ira? O que me negam de um lado, a
dia do primeiro encontro. Chamo de "encontro" ironia injusta com que pesam os detalhes realmente
aquele momento em que a gente verifica a realidade bons do meu estar no mundo. O que resulta disso
do outro. Agora, passados nove anos, este sonho me é uma tristeza de degredo, um brandir de chicote,
convida a reverificar que a essência do objeto amado que me exaure e martiriza sem cessar.
continua a mesma. E não me conformo de ter per- Por isso me apego a cada âncora de resquício de
dido. Será que perdi? Não sei. Hoje tão longe, tão amor, qualquer brecha me põe de tal forma em lá-
irremediavelmente só, é como se, estivéssemos lado grimas de agradecimento, como se um anjo gene-
a lado, e é bom este sofrimento no aquário. Mas roso me enxugasse o suor da agonia. Mas o que es-
tudo deveria ser de uma outra forma, não há razão pero, o que alimento, logo naufraga num redemoi-
para esse desacerto, nem eu queria ser poeta se o nho de circunstâncias imediatas, de preconceitos, e
preço desta condição é uma solidão tão atroz. Que- salto na treva como um louco, despido do que me ilu-
ria ser simplesmente um homem, sem deslumbra- minava, pobre de novo., pedinte cheio de orgulho,
mentos, uma formiga que carregasse infinitamente construindo pacientemente a cruz maior que a mi-
seu ramo verde e enorme, e não sonhar com tanta nha resistência.
sede, não lutar com tantos indícios de morte. Não, A minha condição de ser humano é sempre esta
não quero morrer ... e no entanto sei que já podia, solidão com que coroar-me, solidão com que embria-
que já provei os sumos necessários para deixar a gar-me, solidão para morrer e renascer eternamente.
vida com uma saudade e um agradecimento que me Um sonho pode ser seguramente um amontoado de
garantam uma partícula de inferno. resquícios de lembranças depositadas, um ninho de
ostras cegas e desagregadas que num dado momen-
A gente pensa que merece ser o primeiro da fila, to provocam um circuito. O meu sonho da noite
o que escolhe com prioridade, de repente começa a passada foi outra coisa. Tive diante dos meus olhos
ser passado na frente, então um incêndio lavra as a decorrência pausada , clara , musical , lúcida e qua-
têmporas, afogueia o rosto, cavalga as veias, e se se raciocinante, de uma figura inteira, índependen-
confundem em nosso coração gritos de ódio, apelos, do de mim, voluntária em se relacionando comigo.
gritos de socorro, exigências. E a gente sufoca tudo Foi como se eu estivesse acordado, escolhendo e de-
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cidindo. o resultado disso foi a mágoa de saber tudo um remorso que me instiga à autoflagelação. Não
acabado, como se um dedo gigantesco apertasse meu há remédio para a minha vida em comum.
peito para deixar marca. Um dedo que me incitasse . . .
ao desespero, como se os sinais maiores me desar- A morte não existe. Acabo de escutar Claudia
raigassem o coração num jogo de milagres. Eu creio Muzzio cantando uma ária de "La Boheme". Pucci-
no milagre. Que importa que agora eu esteja a um ni e Muzzio, duas matérias que não podem ter apo-
passo da febre mortal. Esta noite revivi num sonho drecido, simplesmente. Ouvir esta gravação, ainda
um desejo de há nove anos atrás, um entendimento e sempre, é uma forma de se repousar no coração
sem palavras que me devolveu a ordem mais urgente de Deus.
do meu destino. Não vivi em vão, não construí em
vão, não perdi em vão. Na realidade, não perdi. 2 de agosto

Me oferecem o pote de sal; os palitos de ouro, Gasto a minha tarde jogando cartas com uma
a coxa soberba, os óleos amoráveis. De que resquício pessoa que desperta em mim toda uma curiosidade
de além destas matérias todas se formará minha emocionada, além de um caminho para o amor.
próxima alegria? Terei direito a desfrutar o que os meus instintos so-
licitam? Eu sempre quis me esquivar da anímalida-
de, e cada vez mais. armo esta cama de lâminas ao
30 de julho
redor de mim. Nesta tarde de jogo e confidência
É inacreditável o que a gente alimenta de espe- teci a distância de um comovido enleio. Horas depois
eu já não sabia o que tinha feito. A vontade era de
ranças em relação aos amigos, amigos que se ali-
apagar a imagem formada. Porque não somos livres.
mentam no decorrer da vida. Tudo é um jogo de
Não estamos o suficientemente descomprometidos
interesses que mudam de cor e de rumo, e a gente
para embarcar na aventura. Pude contudo reafirmar
cansa da renúncia. Para quem, como eu, alimenta
ainda o meu desejo infinito de amar, sem receber
um insaciável demônio de ciúme exigindo exclusí-
- este é o recurso dos desamparados sentimentais.
vismo, só resta um recurso: a solidão. Não se trata
de uma invenção simbólica. Esta palavra (SOLI- Sim, sou um desamparado sentimental, mas não
DÃO) é a mais dura, mais real, mais visível, mais estéril.
próxima de mim. Tem figurações várias. Neste mo-
mento, por exemplo, saindo da casa de Alvaro Mo- A noite, indo para o teatro, no lotação, esta
reyra, onde já fui como um filho, e da qual de re- esquisita sonolência Que há dias me acompanha.
pente me afastei como se submergisse, a solidão é Sei que o meu organismo precisa reparos. Vem-me
24 25
o medo de que isto seja uma repentina nostalgia Iam nisso nestes últimos dias: xifópagos! Uma di-
da morte. zendo que realizava o monstro (a perfeição), o que
De qualquer forma quero estar desperto, leve, duvido. Outra dizendo que não era possível, quando
disponível para a festa cotidiana da minha vida. eu exigia mais e mais a multiplicação da presença
_ "Não somos xifópagos!". Seria bom se a gente
5 de agosto tivesse capacidade de ser tranqüilamente ísso -
um corpo de dois pensamentos, de duas liberdades
Esta noite estive tremendamente deprimido. fundidas. Amor, fusão. E. estamos de novo em ter-
Se eu for procurar a razão plausível deste estado minologia específica. Amor, fusão. Categoria de
de ânimo, estarei rondando o poço das minhas pre- Santa Tereza, de Beethoven.
cariedades. Meus defeitos se adensam e adensam
minha reclusão: ciúme, temor, rancor, egoísmo, Não canso de vasculhar este monte de maté-
que sei lá. Se a pessoa que neste momento amo rias estranhas que é a minha vida. Acontece que
estivesse ao meu lado, tudo seria diferente. Eu dei- quando estou para discernir elementos absoluta-
xaria de ser meu objeto, já deixaria de estar tão mente esclarecedores, eu fujo, escapo pedindo so-
interessado na minha satisfação, para, pensar na corro. Será que não me quero corrigir? Ou porque
felicidade de outrem. Eu me esqueceria do que ca- a correção me exigisse a desagregação do meu amor,
reço para inventar o que iria alegrar o coração do próprio, tão mais sólido quanto ferido?
amigo. E o que eu desse se multiplicaria de tal for-
ma em grandezas de amor, que eu quase teria que O mundo está repleto de pessoas as quais eu
sentir esta veloz felicidade. seria capaz de amar, cada dia é um manancial
delas. De tal forma que desisto da fidelidade, da
No teatro, sentados e pacientes, somos um gru- dedicação. O casal que eu formaria em felicidade,
po de pessoas civilizadas olhando num buraco de está multiplicado. E me contento em colher na
fechadura. E ninguém tem vergonha de o fazer na cu.rta duração de um relance de olhos, ou no afago
frente do outro. O que vemos pode nos encantar, distante de um gesto vibrante, aquele sol para toda
nos excitar, nos contrariar, nos maravilhar e até a vida que é a dualidade confortadora dos pares
nos curar. adequados. Sim, há os que se amam, de tal forma
que eu me sinto orgulhoso de habitar um mundo
6 de agosto salvável. Se não houvesse a felicidade dos outros
pelo menos, o que seria dos infelizes esperançosos?
Xifópagos! Xifópagos! Um corpo com duas ca- Mas quem é o maior responsável pelo meu de-
beças. Imagem ideal do amor. Duas pessoas me fa- sajustamento? Se procurar bem verei que sou eu
26 27
mesmo. Não posso culpar ninguém disso - todos culta a transposição de certos valores positivos do
foram partículas mínimas que resultaram em de- meu caráter. Mas que fazer? Há um lado de huma-
cisões definitivas. Há uma desproporção entre o que nidade vulnerável que exige repercussão e não é
me fizeram, desde o ato involuntário de nascer, e o possível deixar de dar aos demônios particulares a
que deduzi disso, a cultura que me ficou disso. O janela que íhes devo.
responsável maior será certamente a minha rea- Acabo de ouvir uma ária da ópera "Sansão e
ção acesa e suscetível, esta massa inflamada que Dalila" de Saint Saens: "Mon Coeur s'ouvre a ta
de tanto ser arranhada e ferida foi se rarefazendo, voix". Música e letra se fundem num movimento
se tornando vulnerável e atingível, a ponto de nem perfeito, numa melodia que abre o coração como
mais' gritar. Por isso' ainda amo os que estão no uma flor. Penso na cena de teatro que resumisse a
sedução em tão eficiente forma. Eu quisera escre-
meu sofrimento, sem saber. Ninguém pode calcular
ver esta cena. Que despertasse numa platéia a emo-
a capacidade de ampliação da lente que a minha
ção grandiosa que esta ária despertou em mim. É
sensibilidade aplica ao que me atinge.
quase possível tocar a alma que se transfigura.
7 de agosto 8 de agosto

S. me escreve recomendando que eu não lhe Passo por uma fase de sonhos terríveis. Que
guarde rancor, que isto pode prejudicar a minha pesadelos são estes que alimento e que me chegam
saúde. Que observação mais sutil e verdadeira! O cheios de inundações e mortes. Têm muito que ver
rancor sai como matéria purulenta do coração da com as minhas mais íntimas relações, como que
gente, logo se tem febre, dores de, cabeça, opressão significam uma passagem na qual me desfiguro pe-
no peito. E é o rancor que está reunindo seu exér- lo sofrimento e o medo.
cito oleoso para obstruir todos os canais. interiores
da vida. Sim S., eu sei que se pode morrer de ran- Hoje meu irmão menor está de aniversário. A
cor, como de felicidade. Tenho mesmo me dedicado naturalidade com que ele, humanamente e sem
pressa se realiza, me comove. É bom ser inocente,
em tratar esta moléstia. Mas certas crises violentas
puro, normal, afetivo e ter 14 anos. Estes são os que
de repente me abalam. No momento eu não quise-
merecem o mundo.
ra estar sujeito a esta infecção de rancor, pois estou
amando. Se eu não estivesse amando seria pior - 9 de agosto
o amor é até um preventivo ou antídoto, a arma de
que disponho para não perecer. Meus rancores pre- Uma pessoa que se lança à aventura do não
cisam ser extirpados. Este ramo de urtiga me difi- existir, que abandona suas raízes primeiras e é in-

28 29
capaz de reconstruir outras, que se consente uma contam os raios irisados
quase estagnação física, que ostenta gozozamente dos meus olhos de hoje.
a arquitetura de um braço quebrado e relaxada- Hoje. O que sei de mim?
mente tratado, que anda com seus olhos de cobre As frases começadas e as histórias
derretido e seus andaimes de ataduras como se e mais as palavras anotadas como fetos
fosse um príncipe banido, esta pessoa me pergunta em formal, sabem de mim.
ingenuamente se a odeio. Sou o que elas são, chorando.
- Por quê? - indago.
- Eu te estendi a mão e. não a aceitaste. Certas coisas como a presença pura, simples e
- Estava escuro aqui, tão escuro que eu não vi. passageira de X, me consolam por tudo o que es-
Na realidade era isto, uma questão de obscuri- perei, pela vanglória da minha pretensão. A feli-
dade. Eu não podia odiar esta pessoa porque não cidade está aqui como um fruto em minha boca,
estou sofrendo por ela. Apenas me desinteressa, o posso imaginar os dias que passaríamos em Vitória
que é pior. Ê isso que os faz sofrer, e que eles pen- (Luci Calenda hoje me convidou a visitá-Ia naque-
sam pertencer à categoria do ódio. la cidade), uma casa à beira do mar, com estúdio,
repouso, silêncio e esquecimento, sobretudo esque-
cimento.
Conselhos de Lelena para a preservação das
Nada disso acontecerá. Há pouco eu quase sen-
relações: a) Não exigir demais dos outros.
tia o sopro do vento vindo do mar, como num sonho.
b) Não exaurí-las com uma constante
Minha imaginação quase impulsiona a máquina do
presença. milagre.
10 de agosto
Vejo Checa tão fraquinha nos seus oitenta e
Onze e trinta. Impossível tantos anos, acometida de um derrame, mas tão
conter a manhã e as vinte lúcida e amorosa. Falam que pode viver muito ain-
mil virgens do projeto da. Este muito, no cálculo dos que a rodeiam, não
amontoadas
ultrapassa de dez anos, como tempo ganho à morte.
à minha porta. Isto se se submeter a cuidadosa dieta e tratamento.
Elas me apertam o peito, Olho para ela e vejo a humanidade toda, sua exaus-
me fazem chorar enquanto
tão, sua altivez pisoteada. A serenidade de Checa
é o sinal de sua salvação. Porque os poderosos tom-
a morte se orna de babugem
barão frágeis e apavorados, os que oprimem não
e pesadelo, elas

30 31
terão forças, os que exploram serão abandonados 13 de agosto
nos caminhos, sem utilidade para o que juntaram.
A extrema velhice e a morte são o único fim obje- Uma pessoa influente junto ao colunismo lite-
tivo do nosso esforço. E eu ainda creio numa vida rário (bastando que seja secretário de um órgão li-
futura. Mas vendo Checa tenho vontade de ficar terário, e portanto possa distribuir matérias e pu-
com ela nos braços até que durma, para sempre. blicá-Ias sem outra censura que a sua vaidade)
Ela é a parte melhor dos que resistem, é o seu canto publica um livro. E o que se vê é uma enxurrada de
de cisne. artigos a respeito do tal livro, aparecendo todos os
dias. Os mais obscuros e distantes escrevinhadores
Como posso deixar de estar ao lado de X. sem lançam-se sobre a matéria para aproveitar a brecha.
estar ferido pela sua beleza? Eu sei ver, estou aqui E todos fervilham num aparecimento aflitivo, dizem
para ver, vim para isto. Neste sentido posso estar disparates, mas querem isto: dizer. Na realidade o
tranqüilamente ao seu lado. que os satisfaz mesmo é verem seu nome em letra de
forma.
Silvia fala de navegação e geografia. Estou de
tal forma varado de amor e ao lado de quem agora o exemplo exato da antipoesia: poema publica-
me incendeia, que inicio imediatamente minha do hoje em O GLOBO, de D. Q. Este autor me dá
viagem de descoberta. Seus olhos são O1S, portos das com a maior nitidez os elementos do não-poeta
índias, as especiarias não faltam, e me apavora a que se planta sobre o verso. O que sai é música de-
possibilidade de dobrar repentinamente o cabo-não. sagregada, impulso diluído, vagas intenções e pa-
Gato, leão, sua beleza é felina. Arranha o meu lavras incoerentes. A onda de emoção que invade o
espírito iluminado do sol que é. Não me importa o homem não encontrou onde se pegar e soçobrou
amanhã. escandalosamente.

12 de agosto

Minha admiração sempre maior por Silvia. Sua Uma peça montada por uma companhia profis-
multiplicidade que no fim é um recurso de pode- sional de categoria, naufraga melancolicamente" ti-
rosa humanidade. Em tudo o que faz, aquele enrai- rada de cartaz uma semana depois da estréia, por
zamento de gente que tem esperança no próximo. falta de público. O que falta a esta peça é paixão.
Tenho aprendido com ela uma nova lição, a bem da A paixão do personagem político da peça não con-
verdade, que me solicita cotidianamente para a vida. vence, porque parece mais um capricho. Falta à

32 33
peça o óleo da poesia, sua engrenagem emperra. Os mundo. Precisa descer mais ao inferno de si mesmo
personagens não sofreram a necessária transposi- para render em mistério .
.ção, não revelam o carisma da salvação ou dana- . . .
.ção. O que. esperamos é sempre aquela tragédia Estou apaixonado. Gostaria que este sentimen-
viva que os gregos lançaram um dia sobre o mun-
to se prolongasse por toda a eternidade. Nada en-
do, A peça de que falo aqui é mesquinha, não tem
tão me afastaria da graça divina de que careço para
grandeza, não tem poesia, não amamos nem odia-
manter o equilíbrio que pretendo entre o meu mun-
mos nenhuma de suas etapas de trama.
do interior e o espelho universal em que me busco,

X. viaja dizendo que deixou uma carta para Gasto a minha noite de sábado revisando as
.mím, Espero o correio. Hoje ainda nada. Tenho
provas do DIARIO de Lúcio Cardoso. É uma das
medo que me venha o esclarecimento da loucura formas de eu aprender a minha lição de vida. Lúcio,
que pretendo alimentar, ou um texto literário de por sua vez, deve estar vivendo sua festa perma-
mau gosto. Uma e outra coisa me decepcionariam.
nente de angústia e instinto, é a sua maneira. Eu
Espero a pessoa humana que estou rondando em X. ganho a minha noite aqui, na casa de Silvia, e não
como uma fera ronda a toca de onde sairá um es- me sinto roubado. Revisar este diário é como dís-
.tranho animal; Espero o estranho animal, este amor secá-lo, dissecar uma verdade tão obsedante é ex-
que me amanheceu feliz, que me deu um dia feliz, perimentar parte de sua realidade, a mais neces-
:que .me fez suspirar diante da Lagoa, diante do sária. Assim ganho a vida por tabela. Não que eu
verde da Lagoa com os montes manchados de ver- também não me jogue à vida. Mas vou devagar,
melho no fim da tarde, e os caminhos entre árvo- com parcimônia por enquanto, é o jeito de comple-
res escassas, nascidas ao. acaso neste lado provin- mentar meu temperamento tímido. Mesmo assim
cíano e romântico do Rio de Janeiro. tenho tido embates terríveis nos terrenos mais ba-
nais e humanos. Tenho experimentado a. traição, a
Andamos eu, Silvia e Van Jafa ao longo da La- violência, o amor, o ódio, o temor; o tédio,estas Ia-
goa. O que me agrada em Van Jafa, e isto eu lhe ces da solidão que me terrificam cada vez mais,
disse, é aquele jeito todo seu, brilhante, centelhe- Aqui estou no meu trabalho, no meu fervor' pela
ante; de .escrever. O que me permite afirmar que confissão e pelo canto. Aqui estou, cumprindo' a
existe nele um poeta, não só pelo brilhantismo, tam- minha vida como Deus quer e me sussurra que o
bém pelo gesto mágico e inútil de certas invenções faça. Meu espírito está febril e agitado como se-de
do luxo.. Mas o poeta é um pouco prejudicado pelo repente me vísseno meio de umaconflagração uni-
salto demasiado freqüente com que, ele se dá ao versal.

34 35'
14 de agosto núIlha renúncia à máquina da fúria organiza. Vive
mais de morrer, como tem tantas vezes repetido.
Que importa a minha crueldade contra mim
mesmo, este meu combate aos meus semelhantes 20 de agosto
i ,

esta luta sem razões evidentes, desde que possa


ouvir, como agora, o "Andante Cantabile do Quar- Se eu não posso amar plenamente todas as pes-
teto em Mi Bemol Maior", de Schuman, para piano soas, por que hei de vestir a máscara da simpatia,
e cordas - então ponho-me em ordem com o ritmo do "tenho que gostar delas porque não me fizeram
do mundo, não tenho inimigos, não me isolo, sou ' mal nenhum ... "? Elas não me fizeram nenhum
irmão e pai das criaturas todas. bem, isto é que importa. Se elas não me dizem nada,
tenho que tratá-Ias como estranhas, quase como
Lelena já me ensinou tantas vezes que as pes- pedras no meu caminho, fechadas a qualquer ri-
soas em geral sofrem tanto, que não se deve com- queza. Posso contar nos dedos as presenças fecun-
batê-Ias. Mas as minhas barbatanas pré-hístórí- das à minha vida. Fora dessas não me acho com-
cas ... prometido particularmente, com mais ninguém.
Isto deve ser o outro lado do amor cristão. Seja.
Já me disseram, eu mesmo já me convenci disso,
Hoje, aniversário de Lúcio Cardoso. Há um
que terminarei inteiramente só os meus dias. E
plano da vida dele em que eu sou absolutamente
quem não termina só? Um leito rodeado de depen-
desnecessário; este das festas, por exemplo. Qual-
dentes físicos e espirituais não diminui a horrível
quer vivente sofredor, qualquer ansioso ou simples-
solidão da morte. Diante desse espectro é que preci-
mente ocioso tem primazias junto a ele, ao que ele
samos medir as pessoas necessárias. E tudo passa.
pretende neste dia (e foi um dia em que a tristeza
estava pousada sobre ele como um pássaro negro).
29 de agosto
Eu estou vigilante num outro plano mais insondá-
vel e que me cabe por natureza. O da criação, o do
Uma pessoa que conheci, com a qual participei
aprofundamento do seu mistério. Disto eu me ali-
de uma festa há poucos meses, da qual recordo a
mento até fartar, quase sozinho e com a mais abso-
música da voz, a cor dos cabelos, hoje apodrece sob
luta usura. Sei que ao mesmo tempo que estou re-
a terra. Apodrece sob o calor da terra, e a morte sus-
cluso, guardo comigo uma ilha onde ele de vez em
pira fundamente por mais uma vitória.
quando vem para respirar. Não se demora, mas é
como se recebesse de repente uma golfada de água
fria, ele sai de um inferno para se refazer. Mas vive Penso em ir ao Paraguai, se conseguir o que
muito mais da asfixia do que do equilíbrio que a almejo. Será uma aventura. Dizem ser um país po-

36 37
bre, selvagem, triste. Tem para mim o fascínio de deixo completamente de amar. Amo com mais isen-
ser a minha terra de origem - o meu nome Ayala
ção, depois.
vem de lá. Esta aventura nas fontes do meu sangue
me apaixona. Estou no momento terrível de não entender
por que. De perguntar, chorando, por que! Por que
X. me disse que queria escrever sobre as águas este presente transitório, esta licença. Por que esta
para que não durasse a história senão o tempo de casualidade que joga a gente dentro da felicidade e
uma onda. Nasceu sob o signo de Peixes (dois pei- logo desaparece. Eu não tenho outro interesse, neste
xes que se entrelaçam pela boca). Ama com simpli- amor, do que o de afinar as cordas da minha sensi-
cidade, quer se dar inteiramente, quer desdenhar a bilidade, de aprender a vida e vencer a morte, de
concupiscência. Espera o momento de revelar uma comunicar o meu mundo interior no que ele tem
secreta mensagem cuja dimensão não prevê. de fecundo e maravilhoso. Não, não é falta de mo-
déstia. As pessoas solitárias acalentam monstros de
19 de setembro imaginação. Os meus estão amordaçados, são mons-
tros que querem me redímír, não devoram o que
o que mais sacrifica no amor é o nosso esforço está por fora, antes pelo contrário, se alimentam do
de manter a "altura" do sentimento, renunciando próprio recinto onde vivem, o meu coração.
às pequenas baixezas que constituem, freqüente-
mente, o encanto de uma certa espécie de amor. Conversa de ontem, com um amigo:
Começorenunciando, prossigo renunciando, termino Eu - Tenho cada vez mais um medo terrível de
desesperadamente renunciado. Mas consola ver que, morrer. E me parece que a morte está em
no plano das comparações, as vezes em que me ínte- todos os lugares à minha espera.
Ele - Eu não ... Só não desejaria uma morte que
ressava resistir, consegui estabelecer a figura de
me manchasse de sangue.
uma nobreza construída pelo escrúpulo. Esta no-
Eu - Tenho medo. Medo de penetrar num labirin-
breza me interessa, sobretudo.
to com os olhos vendados. De não saber o que
existe depois, e não poder voltar.
Sinto que cada vez mais se aproxima o fim Ele - Pois eu prefiro não saber o que existe depois.
desta experiência mais recente da minha vida, esta Eu - Eu quero ter certeza disso ... nem que seja
nova experiência de amor. É sempre como a morte, simplesmente um paraíso terrestre, um out.ro.
uma agonia consciente que dói muito. Mas sei sem- Ele - Quem sabe.
pre morrer, nestes casos. Encaro a inevitabilidade e Eu - No inferno é que eu não acredito. O inferno
aceito o sofrimento. Não me aniquilo nem odeio, nem é a ausência de amor.

38
39
Ele - Ou o próprio amor. no primeiro momento da dúvida, em vez de escla-
Eu - De qualquer forma a morte é necessária, recer, joguei-me à solidão do meu mundo de poe-
seria horrível se ela não existisse. mas e diálogos. Fugi, quase sem sofrimento. Agora,
Ele - Nada mais importaria. ouvindo este quarteto de Brahms não resisti à força
Eu - Nem seria possível a fraternidade, a coexis- do que me espreitava, eliminado - tudo voltou com
tência. Cada um viveria numa furna, isolado, grande intensidade, e eu, embora resignado, lamen-
pensando a sua irremediável eternidade. to que tudo tenha passado, que a morte seja tão
freqüente, que não me baste a tragédia de saber que
2 de setembro o fim existe, mas que este fim se subdivide em tan-
tos quartos os amores encerrados. Para quem tem
Deus existe. Logo o milagre é possível. Mas o um temperamento apaixonado, como eu, isto signi-
homem não pode ser dono do milagre, ele não sabe- fica morrer cem vezes. O que dói mesmo é ter que
ria a qualidade do seu dom e se entregaria ao êxta- ressurgir.
se do egocentrismo. Só o santo desfruta licitamente
disto. E o santo é o que suporta um martírio tão 12 de setembro
sobre-humano quanto o milagre de que se acha in-
digno. O que vemos é o combate cotidiano com X. voltou. Dissipou-se o pesadelo. Reconheço a
Deus, dos que estão dentro da fé, e se acreditam necessidade que tenho da sua presença, a misericór-
dignos da preservação. Deus existe, o milagre existe dia divina em me conceder o prolongamento desta
_ mas não podemos arrostar as fatalidades da
experiência. Mesmo que tudo acabe, terei ficado
nossa condição humana. O milagre há de ser, no
muito mais rico, muito mais nobre, muito mais dono
máximo, a porta de acesso à verdade maior que não
do mundo. O amor me arma cavaleiro de todas as
podemos provar com os sentidos.
vitórias.
11 de setembro
17 de setembro
Penso que terminou mais uma fase. Há dias
sem uma palavra. Mas esta fase teve uma duração A gente começa querendo dar metade do mun-
que me conforta. Não sou tão incapaz assim de do para a pessoa amada, uma metade que é quase
fixar-me. As circunstâncias é que desagregam tudo. concessão total, porque significa participação dual
Eu até que lutei com todas as minhas forças para de todas as sensações existenciais. A gente não en-
subsistir neste período de amor tão verdadeiro. tende uma alegria que não seja comunicada no mes-
Será que lutei mesmo o quanto podia? Lembro que mo momento, com a flama original. A tristeza tem

40 41
que ser entendida fora da gente, por afinidade. Os 8 de outubro
mais egoístas, então, se dividem dolorosamente ,
O aprendizado do amor continua. Há pouco
se fragmentam, se fragilizam, por uma aceitação
Lelena me dizia que só a realização total do amor
que é força maior. Chega-se ao excesso de não saber
no mundo substituiria a religião, só a verdade do
mais ver sozinho as cores do mundo. E quando o
amor humano anularia a nossa necessidade de Deus.
amor é alto, digno, ajustável à nossa sensibilidade,
E, como isso é impossível, ficamos entre a necessi-
então chega-se a um terreno muito próximo da
dade de acreditar e de perder para acreditar de novo,
morte, morte de que sempre falo aqui, mas não sempre com a religião à margem, para poder chorar
como destruição, antes como projeção das possi- a inevitabilidade da morte e a transitoriedade da
bilidades maiores de eternidade que nos couberam. vida. E nos apoiamos em valores humanos, sempre
com aquele lugar invulnerável, o nicho onde o Santo
25 de setembro está, para volver os olhos na hora do coração san-
grar.
Fulano inventa beltrano. Mas fulano ainda A minha última experiência amorosa continua
precisa ser inventado, logo a invenção do que não me exaurindo emocionalmente, obrigando-me à dá-
foi inventado fica vogando em sua própria insufi- diva permanente, à esperança sem termo, e conce-
ciência. Isto a propósito de uma pessoa pueril e dendo em troca o pouco, o mínimo que é a decência
bem-intencionada, que resolve incrementar talen- das relações, capaz apenas de prolongar a agonia.
tos em uma pessoa impessoal. A força que faz, obri- Não quero que termine. Que seja assim uma longa
gando o outro a ir a concertos, a ter opiniões, re- agonia mas que não me desampare de' mim mesmo.
sulta apenas numa série de interpretações defei-
tuosas do mundo que o rodeia. O que é mais grave, 10 de outubro

a pessoa que se submete, ao Pigmalião de bolso não
consegue assumir uma fisionomia válida, por mais Não sei o que se está passando comigo. Não
que se esforce, porque na realidade não segue o ca- quero e não posso precisar agora. Vivi o meu transe
minho normal das suas inclinações. Nasceu para de paixão, e tudo se fragmenta, sem que eu saiba
ser um simples, bom e progressista funcionário de por que. Mas eu sei porque, porque era tudo impos-
comércio, pai de família, burguês acomodado. Mas sível desde o princípio, tudo impossível a não ser a
o descobridor vê nele um tenor, um incentivador minha necessidade de amor tão estranhamente en-
das artes, talvez um ator, um crítico, tudo enfim. dereçada. Eu mesmo me pergunto que monstro sou,
E parece que cegamente satisfaz-se com o nada que flor estranha. o meu coração, que animal carní-
voro dorme dentro de mim devorando sonambulíca-
que vasculha.

42
mente as minhas entranhas? Cada vez mais reco- nas de paixão. Quando sofro é porque estou preso
nheço na renúncia o caminmo certo da minha rea- a uma conjunção humana para a qual repentina-
lização. Renúncia de todos os desejos, de tudo o mente falho. E se falho é perseguindo a possibili-
que me possa envergonhar diante dos outros, na dade de perfeita harmonia. Se nasci um carvão a
apresentação do meu ser integral de amor. Os ou- caminho do calor, tenho que suportar toda a rota
tros, eis o problema. Se eu não tivesse aprendido da cremação. E que as minhas cinzas se percam nos
que o caminho reto é outro, se me tivessem permi- ventos do mundo para que eu não morra para a
tido a medida selvagem do meu instinto como regra vida eterna.
moral imprescindível, então eu levaria pela mão
o corpo e a alma que elegi, para um passeio no Carta a Frei R.
mundo, esquecido de tudo o que não fosse o perfu-
me da primavera que evola desse corpo, a linha "O senhor endossa conceitos sobre mim que
equilibrada de sua mão, a música que lhe sobe dos me deixam espantado. Tudo em sua carta faz crer
ombros, a forma de seu sorriso que me fala de que me julga um felizardo, com tudo fácil e sim-
imortalidade e angelitude. E seus olhos, meu Deus, ples. Que erro! E como provar isso? Também não
seus olhos mais claros que as minhas vigílias da sou um imunizado à ternura, sou mesmo um terno
sua ausência, seus olhos mais acesos que o meu por natureza, mas toda a minha expressão humana
coração, se possível isso, mais acesos que a minha é de rebeldia e de írreverêncía, de comprovação de
morte neste trabalho incessante de erguer a selva certos valores improváveis. A impossibilidade de
escura do meu sangue! uma perfeita comunicação, a imagem inventada e
limitada das relações humanas, as convenções, tudo
20 de outubro
isto me sufoca. E achando que não tenho o direito
de ir contra o preestabelecido, procuro exigir o má-
Eu não dividiria com ninguém o meu martírio.
ximo em autenticidade dentro deste preestabelecído,
Seria como que atraiçoar a benevolência divina
Daí a crítica.
em me conceder sua prova de fogo, sua inevitabili-
dade. Porque se nascemos em nome da justiça e da Meu caso de amor me encaminha para Deus, ao
liberdade, como nos esquivarmos à construção da mesmo tempo que me sufoca. Porque tudo é pouco.
sua urgência através das mais atrozes dúvidas e E o pouco que tenho me dá a noção do que seria, se
dos mais prementes desamparas? Nada melhor para fosse. E nesta inquietação gasto as minhas horas,
o encontro consigo mesmo do que a sensação de apenas compensadas com alguns telefonemas diá-
abandono - é então que se inventa a solidarieda- rios, a possibilidade,de eu dizer "eu te amo", alguns
de, a graça do sangue alheio armado sobre máqui- encontros semanais, a visão magnífica da pessoa

44 45
amada em toda a sua plenitude de beleza e integri_ 5 de novembro
dade vital. Eu só amaria um anjo.
Seu poema é muito bonito e ressuma a uma Carta ao Arcanjo plenamente descido
profunda nostalgia de amor. Deve ser bom, por um
lado, estar entregue por vocação à carreira religiosa, "Perdoa se eu tenho sondado em ti as delícias
deve ser muito mais fácil renunciar. Eu mesmo, que não me poderás dar, por desconhecimento da
aqui no mundo, na fúria cotidiana, aprendi a renun- minha agonia; perdoa se abri em teu coração um
ciar para não morrer de desespero. Acho que senti- caminho de temor, pelo que de vulcânico me asse-
mentos como o desespero desgastam a alma justa- dia e não consigo dissimular ao contato visual da
mente naquela sua capacidade de grandeza. Deses- tua beleza, da tua aérea, pastoril, magnífica no-
perar-se é estar perdido. E deve restar sempre a es- breza; perdoa se te confundo, sobretudo por não
perança de projetar nossa alma imortal, além da ter trazido, a par do coração que anseia o teu co-
circunstância. Se posso amar, que importa ter per- nhecimento absoluto, um corpo em que te prote-
dido uma chance de amor? A disponibilidade é gesses consentídamente para um sono quase silen-
tudo. ..e estou perfeitamente disponível, num cioso, onde apenas gemesse teu sonho aclarado de
acréscimo de exigências. Estas exigências renovam sobrenatural; perdoa se descobri tua essência di-
o milagre da compreensão através do tempo. Nestes vina, tua eternidade, e se tento abater os muros da
meses de minha última experiência amorosa, ama- tua descrença; perdoa se semeio numa esperança
dureci por uma reencarnação. Acho mesmo que de- que não tem fim, a possibilidade de te encontrar
pois disso nada de maior pode haver. Já pensei "depois", e assim destemo a morte que nada mais
isso outras vezes antes, e uma revelação maior veio significa, senão uma pequena pausa nesta glória;
ao meu encontro. Não quero aventar o limite do que perdoa o meu amor que quer enfrentar tudo, que
agora é a minha razão de ser. Quero acreditar sem- quer genuflexo aceitar o teu veredicto, que se ale-
pre mais que estou na última etapa, e que a feli- gra do sofrimento que lhe acarretas, que bebe a
cidade é tudo o que me reservaram, como se fosse saudade como quem se afoga; perdoa pelo tanto
eu, exatamente, um dos eleitos ao banquete do Pai. que me dás, e pelo pouco que recebes; perdoa esta
Ah, se eu encontrasse em Deus, realmente, sofreguidão com que amparo cada riso, cada olhar,
aquilo que procuro em vão nas criaturas, a per- cada fio do teu cabelo, numa ilusão de parar o
feição afetiva. Ao contrário, o que vou descobrindo, tempo para que nada aconteça que te afaste, que
são indícios de Deus em cada etapa desta perse- te modifique, que' te corrompa, nem mesmo o meu
guição de mim mesmo. desejo! Perdoa as minhas lágrimas que não vês,
E que importa falar mais? Reze por mim . .. ·" e que são de gratidão por poder tocar assim a pál-

46 47
8 de novembro
pebra divina; perdoa por não poder expressar a
verdade que me salva, de forma a concorrer para
a tua salvação, tu que estás a salvo de qualquer A meia-noite e quinze em ponto Checa expirou.
inferno pela graça inconfundível e sólida da tua A meia-noite estava no auge da agonia. Não pude
natureza angélica. Anjo! Se te chamo Anjo, como deixar de vê-Ia, uma irresistivel e dolorosa curio-
mentir a mim mesmo que andei buscando o ser sidade me prendia ao lado de seu leito de morte.
Depois da fase dos gemidos começou aquela ore-
etéreo e o encontrei em tua carne, que transluzes e
gância desesperada, como se o coração ansiasse
levitas numa iluminação que não se esgota. Perdoa
sair pela boca para sobreviver independente do
se subo sozinho aos céus, cotidianamente, neste
corpo arruinado. Apesar da insensibilidade da ago-
tempo do teu aparecimento, se conto os segundos
nizante, segundo afirmação do médico, havia qual-
de tua presença em minha terra, com um estreme-
quer coisa nela que exigia uma renovação a camí-
cimento inenarrável dentro da solidão que amplias
nho da eternidade, em sua luta derradeira.
e povoas; perdoa a minha explosão. que por acaso
Agora, ao lado do seu corpo que diminuiu, se
te afete, o descontrole que me joga ao encontro de
apagou, sinto um medo terrível de que. a morte
tuas mãos, e esta contenção que me põe dolorosa-
mente a imaginar o pastoreio da tua carne, num seja o fim.
quase pedido que ofende o meu coração exposto;
perdoa a minha inocência perdida antes de ti, e A MORTA
que seria a bandeira da nossa fuga; perdoa a be-
leza que os deuses me negaram para o teu arreba- o alvéolo da abelha-mãe despetalava
um lírio sobre o seu coração;
tamento, perdoa esses deuses pela rosa normal pí-
soteada em sua ronda de mistério, e que erigiria o uma corda invisível arrastava o barco
onde pousava sua asa mortal
nosso altar de perfeição. Perdoa por imaginar que
(Ah, doçura do abismol ),
a felicidade seria outra coisa, eu que sou tão feliz
Imortal era o apelo de sua carne
que quase morro de espanto e gratidão; perdoa
desenraizadacomo a erva daninha.
esta insatisfação que não tem nada a ver com a
Um galo aflorava em sua boca,
tua realidade estupenda, mas que decorre da mi-
negro da secura de seu labirinto.
nha dinâmica em direção à morte. Perdoa, enfim,
Era meia-noite e quinze.
por te pedir perdão desnecessariamente, e por não
poder declarar aqui toda a relação de bens que me . .
proporcionaste e que eu merecia porque entrei no De repente o corpo se transforma num objeto
d1an~ do qual nos recompomos com facilidade.
céu por tua porta."
49
48
Cessou a agonia, já não há sofrimento. O morto dade, e cada ser humano o é dentro de si mesmo,
está inocente em seu abandono. E nós voltamos à o único testemunho de Deus, neste momento.
tarefa da nossa vida com uma pressa puramente
animal.
Com Edla Van Steen, volto ao livro de Lúcio
Cardoso, "Crônica da casa assassinada", para o tra,
14 de novembro
balho de adaptação cinematográfica. Ficamos sem
saber o que eliminar. Tudo serve à construção da
o Arcanjo, a vida.
atmosfera e das pessoas. Nos apaixonamos suces-
Seu corpo respirava a magnificência da noite.
sivamente pelos acontecimentos como se estivés-
Era a juventude e a beleza exercendo a gloriosa
semosimplicados na sua realidade irreal. É um livro
máquina da carne, e eu mal respirava, temendo
perigoso porque pela beleza transfigura e resolve
qualquer desenlace, mesmo o daquele momento
que me feria o coração com todas as setas. Minha o pecado e o ódio.
alegria era um canto. Como amei inclusive o pudor
26 de novembro
que me fazia optar pela renúncia! Màs quando to-
cou na minha mão, despedindo-se, quando comu-
nicou seu ímpeto gracioso me olhando bem dentro Santa Teresa. Estamos num plano físico de
dos olhos, num mergulho que se concedia confia- altitudes. O próprio céu parece estar mais baixo
damente, então algo me envolveu com uma teia do que a nossa estável superfície. Parece -que não
de sortilégio, e eu pensei que chegasse exatamente se morre aqui - impossível - já se está no muito
aquela morte que abre as portas para a verdadeira além da carne.
vida .. É fácil demais aceitar o mistério quando es- Edla me diz que o verdade-iro amor talvez se
tamos juntos. alimente mais de estar ausente -sem saber tocou
exatamente no meu momento de febril corrosão
17 de novembro pela lembrança. Dentro de mim arma-se a árvore
imensa de pássaros que tem a visibilidade da sua
Santa Teresa. 18 horas. Se não houvesse nin- transparência. Ah, de que falo? Daquele que cres-
guém no mundo, haveria uma tarde como essa? ceu no meu coração ~ cuja natureza assisto mara-
Esta exuberância, esta solemdade luxuosa, estas vilhado da possibilidade de durar. Mas que duração
exéquias de ressurreição. Como uma flor de metal é esta que ameaça manter minha apetêncía- e já
candente, sob todas as gamas de um longo proces- prescinde das pequenas constatações de fidelidade
so de dissolução, o céu desabrocha num silêncio e coexistência! Ah, aquele amor que se alimenta
que me sacode num arrepio mortal. Sou na ver- Illesmo das ausências, e mais nelas, como agora,

50 51
nesta paz que me restitui a grandeza de uma quase de todo mundo. Os outros se comprometem entre
onipresença. Estou em toda a parte? Sim, no labi- si pelo amor, pelos laços familiares. Eu, ao cortar
rínto de mim que o amor multiplica e na concessão meu cordão umbelícal, que me ligava à casa de
do ser que amo e pulsa adormecido na minha cons- meu pai, me transformei em pária. E sinto que feliz-
ciência. mente não tenho lugar no mundo, porque tenho o
mundo todo ao meu alcance.
Acredito no amor, na misericórdia e na vida
eterna ... 30 de novembro

Venho de assistir a um filme japonês (A Sedução


A pintura de Loio Pérsio me endereça à desa-
gregação cósmica, até a ameaça primitiva de uma do Monge) e aquela persistente e dolorosa impres-
ordem pré-terrestre, quando o pensamento divino são de ter mergulhado mil anos no tempo.
era toda a possessão e toda a tribo, quando a abs- Neste filme uma mulher enfeitiçada transfor-
tração passional de antes do pecado original co- mava em animais os forasteiros com os quais se dei-
mungava de uma silenciosa eclosão ininterrupta tava. Os amantes de íntimo animalizado, aqueles
entre a luz e o metal. Nada disso interfere precisa- incapazes de inspirar amor, eram transformados em
mente naquilo que ele persegue, ou seja, a fixação morcegos, em bois, etc. O outro, o monge, o espiri-
de um estado emocional que condensa a aparente tual, o que inspirou o amor na mulher pela primeira
desagregação. E sem desfrutar de um tempo deter- vez,este no auge da paixão, e na iminência da sepa-
minado, reproduz pela cor, pela matéria, mais do ração, pedia a metamorfose. Nada mais lhe impor-
que qualquer dos nossos pintores (matéria tátil e tava conquanto que não se separasse mais da feiti-
liberada) a medida temporal da gênese, geratriz da ceira. Mas a mulher não quis, pela primeira vez, a
. figura, do espírito e da fábula. metamorfose - ela, a bruxa, renunciou para que ele
continuasse eterno e livre. Ele nunca seria o animal,
28 de novembro
porque levava em si, na preservação de qualquer
crime, a essência imortal do amor que inspirou, e
Voltei para o mundo, isto é, desci de Santa Te- pelo qual o ser amado se rebelou contra o demônio.
resa.
Sinto-me mais ou menos como um passageiro Saio disso e vou para uma imbecil entrevista
em todos os lugares, desde a casa da minha família de televisão - as humanidades menores, os senti-
até o quarto onde hoje moro, em casa de LúciO'Car- mentos fáceis, a desproporção de elogios. Uma farsa
doso. Sinto-me mais ou menos importuno na vida vergonhosa...

52 53
6 de dezembro cada diminuída a minha angústia, e os outros ve-
riam que sou tão fraco quanto eles.
Quatro dias do mais absoluto silêncio. O que Assim, fraqueza de amor pode ser fortaleza -
estará acontecendo? Amo, e o mínimo que me cabe quando se mantém seu amargar em resistência. Na
é a obrigação de fazer a felicidade da outra parte. verdade se está de rastos, desejando que tudo siga
No momento em que começo a duvidar disso, cria-se outro rumo, porque a vida é curta e se viu a cla-
o muro. Quanto mais tenho a certeza de que este reira do Éden.
amor é definitivo para a salvação da minha alma,
é que mais aumentam as exigências. que me impo- 7 de dezembro
nho para bem conduzi-Ia. Sou rigoroso para comigo
mesmo e sofro por ver que tudo se dissolve entre os Não posso deixar de fazer da minha vida um
meus dedos sem nenhuma garantia. Mais ou menos exercício cotidiano de amor, embora tenha renun-
como um mendigo incapaz de multiplicar as esmo- ciado há muito a qualquer esperança no sentido de
las que recebe. Sei que amo e que não sou amado- um equilíbrio dentro dele. Pelo menos não aquele
e sei que não sou amado porque o que pretendo in- equilíbrio silencioso do PAR. Realmente não me
fringe a lei natural. Isto quer dizer que estou a um cabe no mundo a outra parte que todos buscam,
passo do. pecado. Antes que isto aconteça, renun- e que eu já esperei me estivesse reservada. Hoje
cio ... não. Hoje eu sei que só perdi, e que se ganhei algu-
ma coisa neste terreno do amor que gera a paixão,
é uma afinação com tudo o que me solicita na pai-
Mas por que me foi dado avaliar o. que seria?
sagem do mundo, e uma lógica projeção na espe-
Se o caminho não era para mim, por que me dei-
rança da perenidade. Os irrealizados, os amantes
xaram à beira de seu bosque, ouvindo cantos e per-
impossíveis ainda têm o recurso do mistério, onde
dendo a aurora simples na qual pulsa o coração da
se protegem da esterilidade. Neste refúgio conse-
natureza? Por que me deram tais instrumentos
guem cantar e encantar os que estão no outro pla-
para louvar o amor, se ele é como a minha som-
no. Eu consigo, ausente, emitir o canto do meu
bra, dependendo de mim e jamais comigo?
verso num diapasão de amor que é como se eu fosse
dono da fratemidade universal absoluta. No en-
Na mesa do bar, de uma forma ou de outra, tanto sou um solitário. Mas da esperança, quem
todos lamentaram frustrações sentimentais. Eu es- me privará? Neste momento persigo na lembrança
tava silencioso e parecia o mais forte, e todos me a f'tgura corpo-alma que atualmente me mantém
admiravam pela minha invulnerabilidade. Tive preso e maravilhado. E fico feliz de que exista e de
vontade de gritar meu impasse. Calei-me. Não fi- qUe eu ainda tenha fé.

54 55
25 de dezembro e que cumpri meu amor num verdadeiro martírio
e não o traí em nenhum momento de sua duração.
É madrugada e eu não tenho com quem falar
Este paroxismo de amor, impossível por natureza e 28 de dezembro
circunstância, me lança no mais amargo transe
Necessito vitalmente da presença de outra pessoa, Se não se pode curar a alma da pessoa amada,
para me recolher num silêncio sofrido. Minha alma se se está impotente diante do seu sofrimento, se o
está jogada e ferida, à margem da solidão que ergui nosso amor arde num compartimento estanque de
para meu vôo. forma a não servir de apoio na hora difícil, para que
Em seis meses tudo cresce - este amor impos- alimentá-Io? Mas como deixar de alimentá-lo, se é
sível me atribulou, me inquietou e me deu uma ele que nos alimenta e não sabemos como sobrevi-
grande felicidade. Hoje paira sobre mim uma som- ver eliminando-o. E se se quer sobreviver de qual-
bra, o medo de não estar procedendo direito, a cer- quer maneira, que forma tão burlada de ser feliz,
teza de ser um intruso na vida de uma pessoa que uma vez que a outra parte permanece sem forças e
prescinde do meu interesse para se realizar, e o de- sem proveito? Terei fracassado mais uma vez? Não
samparo que me obriga a receber esmolas de tempo, sei. Mas o fracasso, se houver, não invalida o que
disfarces, subterfúgios, como um ladrão ou um revelou na decorrência de sua gloriosa invenção. O
amante ilegal - tudo isto me provoca náusea e único remorso que me poderia ficar seria o de não
amargura. Neste momento ardo em febre e lágrimas, ter legado nada de eterno à pessoa amada. Mas sei
meu corpo se desola crucificado pela noite - e que não foi assim. Senti em cada momento de fideli-
penso que a pessoa amada não sabe do meu sofri- dade, de esperança, de paixão mesmo, a semente
mento, e tem seu pequeno mundo completo onde que ia lançando.
se locomove com perfeição e segurança. Lá existe a
terra firme, o futuro, a procriação; aqui comigo 30 de dezembro
um presente que asfixia, uma esterilidade que é a
própria morte, o abismo onde caio sem chegar ao Noite do penúltimo dia do ano. Mais uma espe-
fim. Não há nada a esperar senão o golpe de mise- ra inútil. Acabo de escrever uma cena de uma nova
ricórdia para o qual não estou suficientemente peça da qual sei quase nada, a não ser que tenho um
preparado. problema de paixão e uma atmosfera. Mas por que
Se sofro hoje, chegando a desejar que termine insisto em escrever teatro? Um teatro que sempre
logo a minha vida, sei que nesta experiência vis- fica interceptado por uma linguagem poética tor-
ceral da alma colhi verdades que me ape-rfeiçoaram. tuOSa. e simbólica. Só sei que não posso deixar de
No mínimo posso dizer que amei) e já é dizer muito, escrever teatro.

56 57
1961

19 de janeiro

Primeiro momento desesperado de minha últi-


ma experiência de amor. Antes havia o medo, a ín-
tranqüilidade, agora começou o caos. Nos momentos
mais importantes faltou seu sinal de presença. Estou
completamente só e tenho que reconhecer que deve
ser assim. Escrevo com sangue estas palavras. Uma
coisa tão importante que me falta, e em me faltando
atenua a importância de tudo o resto. Estou como
quem chora um filho distante, como quem acabou
conscientemente de perder sua mãe. É a história
humana, e eu me embriagava de poesia. Agora co-
meçou a ruir tudo, só me resta esperar que as ruínas
me forneçam solidão e memória. Mas gostaria de
alçar vôo deste estado de alma. -

2 de janeiro

Sem explicação encontrei aberta a gaiola e o


Pássaro fugido. Fiquei e ainda estou meio desorien-

59
tado. Nada tem sentido e não consigo racionalizar Nunca será como antes. Houve na verdade um pa-
este mistério, mas estou atordoado. Hoje Nataniel rêntesis voluntário, que não veio de mim mas me
Dantas me dizia que quem costuma ficar atordoado alertou para a fragilidade dos laços humanos.
é o pássaro diante da liberdade. De uma certa for-
ma sou também o pássaro; de tal forma aquela Queria que alguém me dissesse: "Que pena eu
gaiola era o meu mundo. E não há lógica, nem sei tenho de ti." Mas que esta piedade fosse não pelo
como perguntar às gentes se viram o pássaro per- que não pode ser, mas pelo que seria. Porque se fos-
dido. Ninguém entenderia a minha aflição. se, então, sim, o mundo teria a sua música, a sua
luz, a sua glória em mim.
Procuro resistir sem telefonar. X. está em falta
comigo. Faltou voluntariamente a todos os com- 7 de janeiro
promissos marcados. Sinal de que quer a liberdade.
Eu quis que o meu amor lhe ampliasse esta liber- Passo a tarde pensando em ti. A tua ausência
dade, mas sinto que fui freqüentemente um peso. cria a atmosfera e a minha cisma é triste. A minha
Não consegui devolver uma liberdade à altura do tarde é triste e a tua ausência é irremediável. Ima-
que me era dado. Agora estou fazendo de conta que gino a festa do nosso amor e a sala está vazia. Ainda
nada aconteceu. Ainda não caí na realidade da sua és o único pássaro e é difícil esquecer que ouvi o
ausência. Como quando se sabe da morte de uma teu canto. Mas o que posso esperar se entre nós exis-
pessoa cara, noutro lugar, e não se acredita. Estou te uma extensão invencível?
me embriagando, sofrendo com precaução a dor
aguda deste punhal, que busca desesperadamente 16 de janeiro
o meu coração. Não sei como enfrentarei a reali-
dade do que secretamente esperava: a transitorie- Hoje andei como um sonâmbulo ainda sob o
dade dos amores impossíveis. Eu não tinha direito impacto desta luta íntima. Não vi as pessoas, atra-
nem merecia este paraíso. Mas por que então me vessei ce:gamente as ruas. Entrei num cinema e fi-
foi dado acesso ao seu vestíbulo? quei meia hora sem ver o filme. Na minha cabeça
rodava a imagem da tua beleza onde tenho descan-
3 de janeiro sado comovido. Preciso apagar isso tudo, quero apa-
gar, e é como um passo de loucura. O que serei eu
Acabo de receber um telefonema que aparen- depois deste transe, o que será de mim?
temente coloca tudo em seus devidos e antigos lu-
gares. Mas o pânico me fez analisar detalhes claroS Estou no fundo do poço. Quase ninguém sabe,
que criaram a lacuna entre o desejo e o possível. quem sabe não avalia , não acredita e não aceita. E

60 61
as asfixio, minha amizade não é repousante, tenho
não quer que eu fique só no desespero. E respondo
rindo que é bom estar no fundo do poço. consciência disso.
Ter perdido uma coisa tão essencial é como ter 23 de janeiro
perdido tudo, e não sinto vontade de substituir emo-
ções por outras vividas num mesmo tempo e que ouvimos Haidn e !?eethoven. Ouvir música ao
apenas reforçavam a vivência maior e mais urgente. seu lado, como ouvir com Lelena, é aprofundar
Agora sinto vontade de criar tudo a partir de um duas vezes mais o sentimento e o conhecimento. O
deserto. Mas não posso, tenho que me recuperar a amor transitava no ar, entre nós, como um' per-
partir deste mundo que era o nosso, e sofrer pela fume intenso, e nada melhor que a música para
lembrança a dolorosa ressurreição dos meus fantas- dar livre forma (informe) a esta pura essência de
mas. alma criando pontes para o paraíso.

18 de janeiro Ontem um amigo me perguntava, intrigado,


como eu podia falar de amor com' tanta clareza,
Ah, se morrer fosse simplesmente fechar os como eu tinha coragem de escrever a palavra
olhos, e esquecer, deixar correr as águas, com que AMOR com todas as letras. Respondi que tudo o
felicidade consentiria agora em me desligar da com- que tenho escrito, desde que sei de mim, é uma
plexa trama que me prende ao mundo! De que adi- longa e interminável pesquisa do amor.
anta viver até amanhã, mais uma semana, um mês,
dez anos? Quando se tem cumprido o tempo todo, Na casa de Luiz Cosme. 18 horas. O quarteto
e por mais longe que seja, tem-se a lembrança, prin- 132 de Beethoven, a amizade: e a tranqüilidade.
cipalmente, do que se perdeu. Por isso eu morreria Cosme tem seu vale sonoro, tem sua grande porta
hoje, e levaria certamente uma forte carga de sau- para a esperança. Um homem enfermo e forte ao
dade comigo, inclusive, de quem, neste momento, mesmo tempo, com uma alma encouraçada e tran-
me fez pensar duramente na morte. qüila. O vale sonoro passa sobre nós como uma
Estação. Debruçamos na janela e nos veio o cheiro
Mas morrer custa uma violência, uma agressão da queimada. Um mato de eucalipto com seu per-
ou auto-agressão, um esforço contra o sangue e a fume excitante.
matéria. Isto desfigura o sentido maior da morte.
Não queria ver meu coração partido, mas serenado. 10 de fevereiro

Cheguei até aqui e me forço uma justificativa,


Pressinto a necessidade que tenho de me afastar
porque na realidade disponho de mim o suficiente
temporariamente das pessoas que mais quero. Eu
63
62
para saber que comecei e vou terminar. Como dis-
ponho de uma vida, conscientemente, que se pro- mue1 tas de uma paisagem, de uma fisionomia; de
. natureza morta. 'Em vez de nos endereçar ao
longa repleta dos mais vários indícios de eternida_
:to e, através d~le: a uma linguagem criadora
de e insuficiência, como padeço entre o imediato e
oculta sob a composiçao e armada sobre a cor, o ar-
o que a minha esperança funda, então sobrevív-,e
tista nos entrega diretamente seu gemido, seu apelo,
ajo como se não devesse morrer nunca. Mas nada
ua angústia e mesmo seu desejo de ordem, através
tenho, sou um andarilho até hoje, e já me acos-
de volumes que nada guardam do descritivo. Uma
tumei a aceitar um pouco o que me oferecem co-
atmosfera é o que resulta disso, e o espectador se
mo coisa natural e honrosa. Antes parecia que
vê solicitado por um rumo inteiramente novo de
devesse fornecer à minha vida, através de dons
disponibilidade. Não procura o bonito com que se
quase divinos, todos 0'Selementos, mesmo os ma-
distrair; quer sentir o bom jacente; .sob a harmonia,
teriais, de implantação na hora presente. Hoje sei
perceber a afinação do instrumento e participar da
que tenho um certo tempo para cumprir e uma
vivência exposta em termos abstratos. Isto é, vívên-
dívida comigo mesmo, de me realizar de acordo
ela pura, radicada no circunstancial mas distancia-
com os pressentimentos do meu coração. Deus me
da dele enquanto resolução de si mesma.
deu isso para que o abismo não me tragasse. E assim
resisto ao desejo de esquecer, esquecer de tudo até O pintor abstrato toca o objeto e volta à sua re-
à morte, forçar o esquecimento para imergir no giro gião com o conhecimento do mundo habitado, e en-
universal e submisso. Ser parte da matemática di-
tão realiza o que seria a sua obra, abstraindo formas
vina num abandono que Deus não quereria. Entre práticas e naturais para criar suas formas. Estas
prescindem da rec0'rdação das coisas, são idéias, o
a sugestão desta náusea e a minha reação, reside
fUlcro gerador da vontade de. conhecer, o impulso
a graça que me salvará.
regresso ao despojamento. O pintor que estiver
~duro para esta aventura (não o ávido de. moda,
o abstracionismo. Antes o pintor se punha no apenas) terá no abstracionismo um sólido campo de
quadro através da realidade exterior, visível e con- ,umanismo, e depende dele a utilizacão emocional
templável. Seu acréscimo a esta realidade era o seu boa platéia, pois só será revelado aquele que for
dom. O abstracionismo procura um movimento en doutrinado, e a doutrina neste caso deve.:ím-
quase musical de expressão, despreza o objeto como -se pela evidência irretorquível de seu ofertórío.
mediador, recorre à paixão como orientadora de olho está atento e a alma tensa. Logo poderemos
uma técnica cada vez mais afastada das coisas que g~ ~ lUminoso regaço que nos exige colabora-
ambientam o homem. O pintor então procura sua lntrmseca com a sua verdade, diante da qual
essência emocional e um realismo através dela, locomovemos e. somos seduzidos. Estavérdade
que revele um estado de alma como. tal, sem as si, é o impulso de aclimatação aum tempo de
64
65
crise e a configuração de um novo espírito. Estare-
uena obra, compacta em sua fidelidade a uma
mos diante do novo sempre que esta verdade for
válida, e teremos quantas paisagens quisermos, ou ~xpressãO aprofundada ~e livro para ~i:ro, Corné-
soubermos, inventar sobre as superfícies que nos
lia Penna viveu uma VIda reclusa, filiado a um
oferecem. mistério que abarcava misticismo e solidão. Lem-
bro-me da minha primeira e última visita a Salva-
19 de fevereiro dor, de como se falava em Cornélio Penna, no lugar
em que se devia e onde ele mesmo gostaria que se
Fim de tarde em Santa Teresa, em casa de Loio falasse, nos bares noturnos, entre jovens. E se di-
Persio. Sinto uma saudade imensa de quando não ziam trechos de romances de Camélia Penna, como
mais estiver aqui. Saudade de quem está de passa- se fossem poemas. Esta mesma atmosfera, segundo
gem e percebe o dom incomparável do mundo. En- me consta, se repete em Ouro Preto. Uma coisa é
tristeço ao mesmo tempo que o meu coração se ajoe- certa, o autor de "A menina morta" e "Repouso"
lha diante da grandeza do vale ligado com o céu, ao
já está se multiplicando em função do que deixou
longe as luzes da cidade. No céu o quarto crescente
escrito, não fácil de ler, como não é fácil um Octávio
e uma estrela, mais nada.
de Faria, um Guimarães Rosa, mas nem -por isso
deixou de se integrar logo na linha daqueles que
Esta saudade não é tão funda em se tratando
ficam para a renovação das gerações.
das pessoas pois se acreditando, como eu, na alma
imortal, sempre há a possibilidade da gente não se
23 de fevereiro
separar definitivamente. A dor maicr então é para
quem fica, na dúvida ou na esperança de um reen-
contro. Mas o amor pelas coisas resulta em mágoa Eu sei dos meus poemas o suficiente para que
insuportável, porque são deixadas definitivamente, se mantenham. Cada poema dispõe de uma multí-
é uma separação radical a que a morte prenuncia - plicidade de planos objetivos e emocionais, de coí-
por isso o amor pelo mundo me aprofunda em me- ~s e sensações, de lembranças e invenções, com as
lancolia nesta hora da noite, por quando não mais guais estou impossibilitado de me relacionar his-
puder presenciar esta hora, este vale, estas casas, toricamente. Há uma ordem estrutural que vem
esta luz, com este coração e estes olhos. mesmo do mistério com que o acontecimento me
assedia. Mas em cada milímetro de superfície váli-
20 de fevereiro c1ado poema, há uma verdade ínseparável de mim,
tão imediata quanto o meu sangue e a minha vida.
Hoje aniversário do grande romancista brasi- Por isso sei que não sou absolutamente um hermé-
leiro (falecido) Cornélio Penna. Autor de uma pe- ,CO, apesar das aparências. Não estou (ainda) à

66
67
disposição de uma história exterior, mas cada pa- 30 de março
lavra
.
funda em mim uma etapa de outra história ,
menos legível, mas muito mais rica de experiência. Quinta-feira Santa. Afastei-me deste diário qua-
Esta é para os olhos da alma, quem os tiver dispo- se um mês. Neste ínterim tantas coisas acontece-
níveis que se sirva. ram! Terminei minha nova peça A PAIXÃO, his-
tória da tragédia do Cristo, tanto tempo dormida
dentro de mim e tão necessariamente decidida nes-
A maior dor: a de não poder com o amor, pura
ta véspera da Páscoa. Depois aquela queda da rede,
e. simplesmente, tornar. feliz a pessoa amada. As-
Í:esultando numa luxação suficientemente grave
sim o meu amor fica sendo amparo só para mim.
para me dar a primeira experiência com a aneste-
Assisto a outra vida, que me enriquece, aprofundar-
s1a e quinze dias com o braço engessado. Neste pe-
se em melancolia; dúvida, infelicidade, e tenho von-
ríodo reconheci dois graves defeitos meus: a au-
tade de morrer de tão frustrado. Sinto quase ver-
~uficiência (não aceite-ique ninguém me auxilias-
gonha da minha impotência, um desejo de fugir, .se em redigir e datilografar minhas colaborações
de nunca mnis ser visto, como se na minha testa es- Fa os jornais) e a minha vaidade (até hoje me
tivesse gravado o sinal da incomunicabilidade. preocupa um pequeno desregulamento do braço ací-
tentado em relação ao outro).
o sentimento cristão mais do. que nunca avas-
sala o mundo nestas vésperas de Semana Santa. Um amigo: uma pessoa que podemos usar sem
Está-se mesmo à margem de uma tragédia que nos nstrangfmento: que nos pode servir e a quem pa-
compromete. No martírio do Cristo insinua-se a lmos servir sem que isto implique no menor com-
imagem do nosso próprio martírio, da nossa paz missa de retribuição. Uma pessoa a quem se diz
desvirtuada, do nosso coração em pânico, do nosso udo, a quem se pode mesmo ofender sem que a
amor traído, da nossa pátria sempre escrava. E a signifique mais que réplica de amor. Em
nossa pátria é a alma. Ali está o hino e a bandeira, ~m se confia sem apelar para a prova ou o ato
crendo ou não em sua realidade salvável pelo bem, õíco. Aquele que reafirma em nós o velho con-
ansiamos pelo bem, e Cristo renasce. Ansiamos pelo ,to de humanidade como diálogo relacional e lú-
entendimento, ansiamos pelo amor, e Cristo renas- °
o contra a solidão. amigo é exatamente aquele
ce. Queiram ou não os homens de má fé, a Paixão capaz de viver conosco a solidão sem violentá-Ia,
é, neste momento, um universo de apreensão na não pr.ecisa de juras para acreditar em nosso
mente de cada homem vivo, para a blasfêmia ou 'testo, que não entende a mentira em nosso CQ-
para a penitência, todos se preparam e comprome- o O amigo: aquele que nos permite a chance
sermos Positivamente úteis. Nem isto - aquele
tem e morrem outra vez.

68 69
que veio para saber que viemos, e que nós sabemos A ciência do amor exige de mim contenções
que veio para ver conosco a manhã da graça no e vão muito além da minha firmeza. Pensa em
mundo. qu·gir, admito o amor violento que exige, agride e
eXl t
se sujeita e um. pamco exterí
A'

enor, numa demonstra-


Mais uma vez registro que estou feliz por ques- ,ção sensual de mteress.e. Eu come~o,querendo. re-
tão de amor. A oscilação deste termômetro dá a nunciar, pois não acredito que alguem passa gostar
medida exata da minha invenção neste terreno. Sei de mim, ainda menos nas circunstâncias em que
que sobre mim desabam infinidades de forças, ener- me projetei. Meu destino é este, deslumbramento
gias, potências, claridades, e tudo. é nada diante da por tudo o que me escapa entre os dedos, e as mãos
minha aptidão de avalanche, de tal forma que sou vazias. O sexo me atinge em sua banalidade, me
o bólido mais raro deste conflito em direção ao obriga a comunhão de desespera, enquanto o amor
Nada. Sei que chegará o tempo das uvas amargas sobrenada os destroços, um amor que ninguém
- agora provo as doces que caem para o, lado do pressente, que se quer absoluto e por isso. perde a
meu muro numa provocação milagrosa. superfície que lhe concedem, tão, precária e sotur-
na. Mas estou com ele, só com ele, e por momentos
Falam da minha dispersão como um perigoso me é concedido o sentimento da participação.. De-
veículo de solvência do meu melhor. Sei que não é pois tudo enegrece de novo, as ameaças, as menti-
na faina das minhas variadas colaborações [orna- tas, as dúvidas avançam contra o.amor que ínven-
lísticas que hei de desperdiçar minha flama. Mui- >te! invulnerável e eterno. É sobretudo um amor de
to pelo contrário, desta luta contra as minhas pro- uitas lágrimas. Meu coração pouco a pouco é mais
váveis habilidades é que ela - a flama - nasce i.bJl1alanterna de vigília e esperança, neste corpo
mais definitiva e eficaz. ue se queima no desejo de anulação.
Sei que sofrerei muito ainda - luto contra o
4 de abril ,trincado da natureza humana fadada Inevitavel-
te à solidão. Mas aceito tudo. desde que não me
Meu diário é como uma exasperação do meu .done.
desejo de me registrar em minúcias e danos. Com-
plemento com ele o outro Diário, o maior, construí- Se eu pudesse dialogar apenas com a tua alma!
do através de poemas, peças, anotações críticas. Ulútil, é só através de teu corpo magnífico que
Este registro mais imediato é para não. perder o imaginar a alma, e sem este caminho físico
sumo do cotidiano tal qual vem, amargo ou grato. estaria condenada a uma eternidade de trevas
abominável que a morte.

70
71
9 de abril a graça deste meu amor infeliz. Mas raciocino como
mortal, é isso.
Me entrego a este abandono do domingo, amo
a tranqüilidade sofrida da minha casa e, me nutro o corpo é sempre o meio pelo qual se chega ao
de solidão. Não tenho registrado nada aqui porque amor. Lembro seus olhos claros, sua luz mansa,
o meu pensamento é como um lago muito vasto do seu sorriso, sua carne de pétala. e amêndoa; lembro
qual X. é toda a água. E pensando, pensando no seus pés, seus tornozelos, seu andar, suas espáduas
que vou pensando, irremediavelmente, imagino que que são a primavera; lembro a linha ingênua e vi-
gorosa do seu braço e suas mãos perfeitas onde se
se tenha que suportar freqüentemente este destino
consuma a verdadeira glória de uma fidalguia ori-
e que não posso fugir a ele. Já registrei aqui, neste
ginal. Mas o que não saberia dizer aqui: um jeito
diário, muita glória de amor e muitas trevas. Não
todo seu de crescer para o coração, sua radiosa ju-
é a primeira vez que choro o bem perdido. Mas tudo ventude que se instalou no mundo para a adoração,
agora é mais denso, o último amor é sempre, o seu desejo de decência, liberdade e vida ...
maior, num sentido de que me afino para a sele-
ção do que me cabe. Já disse alguém que em amor Domingo de inquietação e espera-Aumentamos
há sempre o que ama e o que é amado. Seria mes- pássaros que nos devoram as entranhas - há os
mo muito bom que o objeto permitisse de maneira destinados à solidão e que não se convencem disso.
mais satisfatória a construção do outro. Mas quan- De repente encontram um arcanjo, um bezerro de
do o ser que é amado também tem sua construção ouro, um unicórnio, e o alimentam, atraem-no com
noutros planos, noutra direção, então se cria esta relvas inventadas, e ele se chega a medo, este ani-
penitência maior, e que exige uma capacidade de mal. Mas está e não está, porque a sedução não
renúncia muito, difícil. Seria fácil, para mim, mor- dura mais que o instante. E tudo se perde em cis-
mas, em lágrimas, em esperanças que às vezes en-
Ter neste momento, contudo não atino com os meios riquecem.
de me elímínar. Logo meu animal instinto de conser-
vação, e de ressurreição, me isenta do desatino. Con-
Poucos de meus mais próximos amigos enten-
tudo saia salutar um desses inesperados - a vida ~rn que eu me tenha humilhado tanto por amor.
se apagando, a imemória. E depois? É impossível tu1 de rastros pedir que me perdoasso pelo impulso
que na vida eterna, que existe, as circunstâncias querer exigir o que não tinha direito. Há o que
sejam tão imperfeitas - não queremos particulari- e o que é amado - mas o que ama reclama
zar tão decisivamente nossas necessidades. por ou- ,perfícies que nem sempre naturalmente lhe ca-
tro lado não imagino uma grande eternidade sem , para exercer sua construção. Eu fui científi-

"72 73
que não podem ser encenadas: E~critas eu sinto que
cado de uma outra relação amorosa ao lado da rui.
elas existem e podem se multíplícar. O que de mais
nha. O primeiro momento desta descoberta foi a
sério eu poderei fazer em matéria de teatro, será
queda no abismo, o. pânico. Foi o desentendimento
sempre num terreno ínconfessável, mas confessan-
a náusea física. A separação que não suportei po;
mais de duas horas. Separação de almas, explico. do. Coisas que eu não diria de rosto para o mundo,
OS meus personagens dizem - isto porque sinto que
Saber que não veria mais "a luz", como saber que- , devem ser ditas e o meu pudor impede. Logo meu
de repente, me morrera uma pessoa muito querida.
teatro será raramente agradável, raramente diver-
Assim voltei de joelhos, de rastros, pedindo que me
tido, e não admito que a convenção da montagem
°
concedesse mínimo de seu tempo e lembrança, a
me venha impor normas.
sobra de sua vida - mas que não me privasse da
coisa para mim mais importante agora: sua pre-
sença. Bilhete de P. C. M. numa reunião de assuntos
de teatro, depois de me olhar muito surpreso: "Eu
me sinto muito Walmir Ayala, eu me sinto adoles-
Devo procurar remédio. O mais certo seria
centíssimo, porque parece que estou amando, vou
transplantar-me da emoção do. amor, para outro
amar ou já amei". O pensamento é pobre, mas a
objeto. Só que não vejo, em minha desesperada bus-
descoberta é válida. Lanço em terreno de amor to-
ca, nada que se compare ao mínimo de seu máximo.
das as possibilidades do meu exaltado e abstraído
Mas devo procurar remédio.
momento.

Aqui estou nesta tarde, sem ninguém em casa,


17 de abril
sob as árvores, nesta rede. Pergunto o que é isso,
este ar que respiro, estas paredes, estes ruídos. Bom Que fazer? Para que escolher, se o que me é
seria fechar os olhos,e me saber sonhando - e que dado me põe quase em lágrimas. Por mais que (li
o outro lado do sonho fosse o mais absoluto esque- tivesse,haveria sempre o temor de algo que me foi
cimento. roubado. Roubar-me-ia a pálida realidade, aquilo
que a minha imaginação predetermínara e que
16 de abril ,brangeria a eternidade e a perfeíção. Nunca terei
.~ ternura, morrerei sedento (sede é desejo) de
É lícito fazer teatro, escrever teatro, para me
~ gesto dadivoso. Morrerei, como será triste per-
divertir? Não, sei que não. Porque escrevo então
der o tempo em que tenho oportunidade de viver
Pobreza Envergonhada? Mas escrevo. Sei que vou
-ta ventura. Morrerei, sinto que a morte se aninha
escrever peças (convivo com elas em meu coração)
75
74
como um gato, se enovela à minha alma, de tal 20 de abril
forma que a minha morte passa a amar o meu
amor - e neste conluio eu ressurjo para a es-
Por este momento único eu bendigo o meu nas-
perança.
cimento, o meu calvárío, a minha condição. X. está
aqui, Lelena está aqui, Schumann está aqui, a mor-
18 de abril
te não existe. Estamos numa cristalização de feli-
Ontem X. me disse que precisa de uma reliO'ião
b ,
°
cidade que para mim é milagre. (E isto não vai
de Deus, e eu sei o que isto lhe faria bem. Eu, se durar mais que o tempo de um suspiro.)
não tivesse agora a base de uma fé sequiosa, não
resistiria ao peso deste amor impossível. Mas eu 22 de abril
sei que ele chegará a Deus e não nos entenderemos
melhor depois disso. Não, o que nos falta não é har- Não consigo relatar aqui os fatos que determi-
°
monia, é direção no mesmo sentido. Eu já sei que nam meu ânimo, atualmente. Não consigo me de-
busco, encontrei o que me falta. ,X. sabe que tem ter, neste diário, em relação à pessoa amada, nem
que buscar e não sabe o quê. Eu quero dar Deus à com um mínimo de equivalênCia ao sentir que me
sua alma, ou a sua alma a Deus. Seria capaz de obseda e embriaga. Sou todo uma sensitiva vibran-
praticar a religião para que isso fosse possível. On- do, de manhã, de tarde, de noite, em sonho, acor-
tem pensei mesmo em entrar para um mosteiro, dado, no abismo e no êxtase. Mas o caminho visí-
quando o mundo fosse insuportável sem sua pre- vel que me leva a isto não consigo definir aqui. O
sença - "Um dia posso ser até teu confessor" - Arcanjo: sua rosa divina me devora.
disse eu. Respondeu: "Para sofrer mais?". Não, X.
não entende que se eu chegasse a tal ponto de amor 23 de abril
por sua alma, a tal estado de renúncia física, não
teria os mesquinhos ciúmes de hoje. Mas tudo isto Encontro com Maria Fernanda, e a curiosidade
é vago, doloroso, difícil de desenvolver. No momen- que me inspira. Falamos de tantas coisas e em tudo
to estou tonto de paixão, fixado em pensar em sua JUn. certo pudo,r que a violência de viver não dís-
presença. Quero ser seu espelho, onde se veja in- aUnUla.É uma pessoa que sempre, ao fim de tudo,
teiramente. Nesta busca desesperada para se en- ,QUveVivaldi. Sem querer dizer que isto seja o me-
contrar, sei que só eu lhe sirvo em verdade, porque fJhor, não me furto a reconhecer que sigo a mesma
só eu sondo seu mistério doentiamente, exclusiva- o.. aoNão há deslize que não me jogue sempre, ao
mente, de joelhos. , na necessidade do remanso, da contemplação,
76
77
do sofrimento. E ouvir Vivaldi depois de uma ba-
cego estaria eu! E em virtude deste amor eu toco
talha é sempre um sofrimento, não conseguimos
a sua chaga do lado direito, eu provo do seu san-
suportar a lembrança dos despojos.
gue, eu me consumo em lágrimas e suspiros que
são o diálogo com Ele. Deus me deu um amor para
29 de abril
que eu amasse a pureza, embora ansiando pela com-
plementação carnal, mas. amasse a pureza como
Prolongo voluntariamente esta agonia. Ouço a mais urgente, mais necessária, mais construtiva.
confissão aberta de impossibilidade de retribuição Deu-me um amor para que eu desaprendesse da
e parto pela rua meio tonto e perdido. Mas não rixa, para que eu amansasse a serpente do ciúme
consigo agora imaginar nenhum remédio. Espero. aninhado desde a adolescência no meu coração,
Sofro. para que acreditasse na segurança e ampliasse a
minha família para além do sangue. Deus me' deu
19 de maio um amor para que eu aprendesse a contemplar, e
a surpreendê-Ia febril nesta contemplação. Deus me
Nada se lhe compara, nada. Se eu pudesse en- concedeu seu Arcanjo máximo!
contrar uma equivalência da sua graça e beleza, de
seu misterioso silêncio, de sua fulgurante presença!
Ontem numa pequena boate estávamos eu e X.
Isto é impossível - Deus se mostra raramente. numa ilha, a ilha que ele formava cem seu silêncio
Chego a sentir que X. gostaria de me decepcio- que me diz tanto, a ilha de sua beleza incompará-
nar para não me ver sofrer tanto. Tem piedade de vel, de seu entusiasmo às vezes, de sua vontade de
mim e do meu amor. ser feliz. Sobretudo a ilha do seu repouso em meu
pensamento. Em redor de nós havia um tumulto de
6 de maio vozes, exageros, entendimentos, desentendimentos,
e nós perdidos na sombra - eu respirando sua vi-
Deus me deu um amor para que eu O conheces- são, eu amordaçado em sua vida viva ao meu lado,
se mais imediatamente, abriu a porta certa para ()Candoa minha vida.
me convencer de sua vigilância, deixou-me até ago-
ra batendo contra as portas da minha ignorância,
Não imagino o fim disto. " As ameaças, os in-
do meu medo, do meu desejo de fé, para neste mo' "terlÚdiosas silumações de fim já não me assustam,
mento com um simples ardil de coexistência fazer- :estamoscada vez mais unidos por uma sede de co-
me entender sua misericórdia. Porque se Deus não ~ecimento que não se esgota. Ontem X. me deu °
me tivesse alcançado agora a graça deste amor, que er de dizer que sentira de repente a revelação
78
79
de entender e amar os' meus poemas. Que mais po-
saio porque não há nada a procurar. Aquela ânsia
deria eu desejar? Eu lhe disse que o poeta era o me-
lhor de mim, e era esta parte que eu lhe queria
que me jogava aos sábados à noite na rua, já não
entregar ínteíra e nítida. X. já caminha para pro- existe. Estamos separados por uns dias e eu escolho
o lugar mais exato para ficar com sua ausência:
fundezas maiores do que as que eu podia SUpor,e
minha casa tranqüila, um livro, a luz íntima, eu só.
parece que sente prazer nisto. Assim nos uniremcs
Não lhe prometi nada, mas não saio de casa.
ainda mais, para além das breves torturas do mo-
mento. Mas cada momento é o dom da lição que se
10 de maio
prolonga, e a lição me enche a alma da mais pura
compensação. Que importa a morte, o sofrimento,
a solídão? O' Arcanjo me permite a contemplação
o que se deve fazer, quando se tem lucidez bas-
tante para saber que não se deve permitir que
de seu semblante, e eu sei que existe o paraíso.
grasse a febre do amor, que se está definhando no
crescer tumultuoso e grave da fixação, quando se
Há poucos dias num simpático jantar na casa sabe e se hesita? O que se deve fazer quando se
da pintora Edelweis, de repente percebi que,a gente reconhece que deve sair correndo, não olhar para
se reúne para estar só, e as pessoas, quanto mais trás, e se olha sabendo que vai se transformar logo
sós estão, mais transbordam para ser platéia, as- numa estátua de sal? O que se deve íazer quando
sistência dos outros. Houve um momento em que se sabe que ali tem um abismo e se anda na beira,
só eu me senti dentro de um núcleo - os outros perigosamente, enquanto perto nos acenam bos-
corriam numa febril corrida para o esquecimento. ques de serenidade e esquecimento? Mas não se
Há momentos em, que eu também quisera esquecer, quer esquecer, quer-se a morte, a depredação, a
mas no mesmo instante corro para a ferida e a faço lágrima, quer-se o amor para saber que Deus exis-
sangrar de novo. E' do sangue arranco esperanças te implacável e justo.
e compensações que me, armam para o combate de
que não fujo. Esqueci, isto sim, as coisas menos
graves da minha vida, ou vi que toda a franja tênue Quero ouvir histórias, talvez 'não me interesse
tanto vivê-Ias como ouvi-Ias. QuandJ me contam
era devorada pelo entretecído de uma fixação real-
uma história fico maravilhado da audiência, den-
mente passíonal, a de agora. Todos andam certa-
mente atrás de um motivo para existir, como a
tro delas quase sempre desmorono. .. de longe as
IUStórias esquisitas, violentas, desesperadas, têm o
morte.
.pecto de invenção. É isto o que importa, a inven-
,Ouço de Maria Fernanda histórias que mefrus-
Sábado. Meia-noite. Não saio de casa. Estou só,
~, porque são verdadeiras e inimagi~áveis. Mas
não lhe prometi nada, mas não saio de casa. Não
'atamente aposso-me delas, ouvindo-as, são mí-
80
81
nhas, guardo-as para construir a fábula e, Se pudes_
se, faria com que todos a esquecessem. " pelo ms; 22 de maio
nos aqueles que, como Maria Fernanda, sabem tan-
to o seu sabor de sonho e eternidade. Recém-envolvido na minha vida no Rio, voltam
todas as angústias. Tenho que resistir. Sinto que
nem a minha dádiva integral satisfaria. Aborrece
Minha religião é feita de desejo e neüessidade
o que lhe chega por minha mão, deixa entender
sei que só na prática da comunhão com o mais
isso atrasando-se em encontros, não comparecendo
íntimo de mim, onde se inflama o céu da minha
a programas marcados, numa evidente demonstra-
origem, só nisto consigo harmonia. Encostar a face
ção de desinteresse.
no meu corpo informado e auscultar um coração
que era jogado entre as gentes sem saber com que
finalidade. Eu amo este amor que me preserva da concupis-
cência, que 'canaliza meu ardor carnal num único
17 de maio sentido e que o transcende por uma contemplação
gozoza do belo objeto que me oferece. É por essa
Para acrescer a tudo o que me foi tirado, não virtude que o meu amor se amplia em desejo de pe-
lhe posso sequer oferecer o primeiro momento da renidade, porque o que sempre me guiou no mundo
alma, a primeira ordem das minhas palavras, cs foi a ânsia de harmonia - e este amor enfeixa to-
meus primeiros poemas de amor. Neste clima, quem das as minhas reações no sentido de melhor es-
sabe, eu seria conservado como presença rara de cutar minha música secreta.
inegável descobrimento. li: a isto que eu devo conscientemente renun-
ciar, e é duro! Por um momento, hoje, percebi que
Vale do Sol - Petrópolis - 20 de maio tenho que me educar num outro clima das coisas,
em que não estará o meu amor. Meu coração arde
Aqui vim, acompanhado, para a primeira ten- orno um cego sem guia, como um pássaro noturno
tativa de curativo. O que quero? Nitidamente, não que de repente se visse jogado em plena manhã.
sofrer. Cortar o mal do amor não correspondido, Só que a luz, no caso, estava na minha noite conti-
tentar uma harmonia dual, não esta construção go, e esta luz era O< teu milagre em mim.
feroz dentro da solidão. Não sei se consigo, mas o
parêntesís, esta fuga em tempo de aventura, é tran- Tenho que resistir! Hepito isto a toda a hora.
qüilo, amoroso, animador. Não gostaria de voltar
HOJe andei feito louco, um número de telefone (o
) me gritando na memória. Cheguei a tirar o
jamais ao antes. ~nedog h .
Mas volto. anc
,troCoedel'
. o num automatLsmo doloroso' para

82
Mas por que retroceder? Não seria me'lhor vi- x. se refere ao anjo barroco dourado que te-
lIlOS dependurado na parede da sala, um anjo que
ver até o fim, vendo morrer? Não, sei que inter-
rompo o delírio porque já não confio na confiança originariamente sustentava um estandarte, que hoje
que X. deveria ter em mim - como se de repente já não existe, dando-lhe aos braços a posição de
o meu amor tomasse a tedção de um artifício fácil quem "suona" uma guitarra ou aponta O' céu (com
e frívolo. Isto eu jamais admitiria. Por isso resguar- o braço esquerda).
do com sofrimento o sinal da minha redenção, e
nesta renúncia mais se realça sua verdade. o meu amor é tão feroz que inventa inclusive
seus desatinos - sofri três dias pensando no de-
sinteresse de X., que não existia. Em verdade, no
De repente começam a se infiltrar em minha
terreno da amizade posso esperar e alimentar ver-
mente, elementos físicos de A., que diabolicamente
dades... e era este terreno que eu esquadrinhava
escolhi para tentar a cura mais rápida. O que mais
procurando uma razão para o meu "tricô preto".
me agrada é que depois dei tudo o que houve nestes
.Enão havia, havia, sim, problemas que o atormen-
três dias de fuga para Petrópolís, ainda consigo
tavam e atraíram para Juiz de Fora, problemas
pensar em X com a mais altiva serenidade, e me
que, num minuto de conversa transformaram-se
resguardar nos ângulos mais. puros de sua expres-
em problemas meus também e que procurei sanar
são humana. eomo se assim fosse. Assim abre mais um parênte-
• de felicidade. Até quando?
Eu preciso de criaturas felízesl A minha voca-
ção para a felicidade é tão grande que supre todas
Há formas de amor - aquela dos normais aca-
as lacunas. A frustração é completamente superada
~dos, simples cumprídores de uma lei natural e
pelo desejo de ser feliz, que passa a ser a própria
prgânica, aliada a uma atmosfera prímaveral, quase
felicidade. Se a desejo é porque creio nela, e sendo
·Amperceptível,mas que lhes confere o lirismo co-
a pura abstração de um estado interior crendo nela
ente e respeítáveí. E há aquela outra espécie de
incorporo-a ao meu estado de ânimo, é meu sangue
.or,impossível, que exige a ruptura de um muro
e minha respiração. ãído, que resiste e sangra se arrastando em ca-
os de milagre e lágrima, este, o meu amor. Mas
23 de maio
.jo o testemunho dos amantes do primeiro caso;
por eles que eu me salvo, quando: virem a íneví-
Na minha casa:
X. - Toda vez que venho aqui aquele anjo ,bUidadeda minha Estação, quando se. compade-
da minha loucura e pressentirem que os des-
me convida a subir.
Ira em minha sombra e posso conferir luz, por
- Os semelhantes se atraem.
85
84
fé no que lhes coube e que eu desejaria me coubes_ sua vida. Eu contesto que a única forma de salvar
se, de forma a gravar eternamente a sua transito_ a minha alma é salvando a minha vida, ou seja, me
riedade sem meandros. integrando na harmonia a que fui destinado por
nascimento. Antes de mim era a ordem - minha
Se o teatro em sua origem tratava dos deuses, consciência do meu desajuste me compromete a
ninguém poderá desligar isso de nenhuma moder- ambicionar a perfeição, meu paraíso, meu destino.
nidade. Pode-se tratar hoje do amor, do ciúme, da
morte, da perdição e da salvação como deuses in- Como pode um materialista falar de amor, se
sondáveis e voluntariosos - e aí uma raiz poética ele ama o que apodrece? Mais justo é amar, atra-
para o tema cotidiano, a transcendência do eíêms-
vés do que apodrece, a alma íncorruptível. E seja o
TO para o mito.
amor então uma espécie de sabedoria, uma intuição
24 de maio misteriosa, um toque no metal que cintila em nos-
sa carne e origina a redenção.
Se eu fosse somar as pequenínas coisas de seu
desinteresse, e encará-Ias como definitivas, estaria Aniversário de Lelena. Um pouco frio apesar
corrompendo a atmosfera desta amizade que se es- da nossa íntenção de inflamar tudo. No fundo o
tende a despeito das nossas pequenas falhas. Hoje meu desejo de estar com meia dúzia de pessoas e
esperei em vão seu telefonema, como tantas vezes. ela pontificando, como. são os melhores momentos
O sofrimento desta espera fez com que eu passasse da nossa convivência. Assim, com a casa quase
a festa de aniversário de Lelena um pouco menos cheia, tendo que dividir as atenções, a sociabilida-
"defendido" dos outros, com uma vontade maior de, tudo se desagrega. Mas, consigo conversar cai
de me comunicar, ou boa-vontade, de ser mais na- sas que importam, com M. A., e a mais recente aqui-
tural. Também nisto meu amor me auxilia. sição do grupo. E: ela se confessa repentinamente
desinibida diante de mim, e eu me entendia como
Converso intimamente com M. A., deixo que ela única pessoa capaz de me inibir diante de mim
ganhe terreno sobre mim, no fundo com uma pena mesmo, jamais de inibir alguém. Mas temos uma
tremenda por reconhecer que na realidade' somos curiosidade indisfarçáveI em relação um ao outro,
todos seres estanques. Mas o permitir, o confiar, o _quando ela me diz que por amar um Arcanjo eu
entregar-se momentaneamente, temporalmente, já não amo nada, ou amo a abstração, eu concordo
cria laços úteis e fecundos. de alma plena. Só que amando a abstração eu
.~Sbordo de' realidades novas e minhas, que me
Digo a S. que estou aqui para. salvar a minha . 'l"\1em e conseguem proliferar surpresas para os
alma, e ele responde que está aqui para salvar a J)utros. Através do meu diáfano Arcanjo eu sei que

86 87
muitos poderão um dia definir seus arcanjos reaíe num ato desesperado, de arrancar o objeto amado
conhecê-Ios e, quem sabe, ampliar a idéia de am;; de dentro de si mesmo, sem que se consiga incrus-
canalizado entre alma e alma. tá-Io em nós, a não ser pelo remorso de um bem
entrevisto e desperdiçado.
o criador deve ter a maior distância possívet do
crítico. Não adianta nada a convivência, a atenção. É fácil acompanhar o roteiro de um escritor

Não se pode transmitir a lição que se pensa, nem re- que se quer fazer à força, que não dispõe de um ta-
cebê-Ia, senão através da recriação que apenas o lento capaz de arrebentar com os muros dos círculos
leitor com afinidade pode consumar. O melhor mes- literários e seus monopólios. Eles geralmente vêm
mo é a solidão de ambos os lados. O crítico observan- de outros estados e trazem cartas de recomendação
do e servindo ao leitor e à história (se possível); o e padrinhOS a tira-colo. Os bairrismos provincianos
artista seguindo seu puro instinto e auto-ordenando fazem com que eles encontrem logo. um outro me-
sua orientação. O crítico não pode prever nada; não lhor colocado, da mesma cidade natal, que veja ne-
pode indicar nada. O artista não pode seguir nada les uma promessa, uma revelação até. Eles então
que venha de fora, antes pelo contrário, precisa passam a elogiar os cronistas literários, dedicam poe-
aprender a atingir mais fundamentalmente suas mas a todos (quando são poetas), comparecem às
raizes, no mais subterrâneo território, e sobre o es- reuniões com sorrisos standards, elogios prepara-
quecimento é que lhe virão os mapas. dos, não atacam nunca, evitam o debate, e assim
conseguem uma fantasia de intelectual, fugaz,
falsa como o processo a que recorreram. E logo de-
saparecem, íngloriamente.
Estranho sempre quando leio na crônica poli-
cial "crime passional". É certo que paixão deixa É preciso que os poetas conheçam seus poemas.
supor exacerbação de amor, e exacerba,ção condu- Que não sejam simplesmente feiticeiros, sejam an-
zindo a vício de amor e logo à morte. Mas, normal- tes de mais nada poetas. Cada poema dispõe de uma
mente, a exacerbação de amor deveria ou culminar ultiplicação de planos objetivos e emocionais, de
na construção da pessoa amada, jamais na sua des- ooisas e sensações, de lembranças e invenções. Há
truição. É certo que quem mata o que ama o faz ordem estrutural que vem mesmo do místé-
para não perder, no sentido de que a manutenção o com que os acontecimentos nos assediam. Mas
da vida, pelo afastamento, seria a verdadeira frUS- cada milímetro de superfície válida do poema
tração. Mas é terrível o dissolver-se da integridade uma verdade inseparável de nós, tão imediata
física onde repousa imediatamente o nosso senti- llJanto o nosso sangue e a nossa vida.
mento afetivo, e que isto aconteça pela nossa mãO,

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89
o Suicídio não será mais crime na Inglaterra. Não, não se1riajusto, seria grande demais. Não pode
E o era até então. Mas crime de quem contra quem? exiStir o Paraíso aqui.
E com que castigo? Supondo-se o suicídio um ato
30 de maio
decisivo e único de auto-extínção, quem cumpriria
a pena de condenação? O próprio suicida, o morto?
Estamos juntos. X. não tem nem necessidade
E que importa ao morto e seu precário corpo, ser
de me ver, porque sabe que eu o estou vendo. "Ver"
"enterrado cravado numa estaca e com.uma pedra aqui tem um sentido muito. mais místico do que
sobre o rosto" como era costume na Inglaterra corpóreo. Vejo como que em êxtase, sua beleza me
quando se tratava de um suicida? No máximo o espanta a cada momento, me dá uma inquietação
opróbio cairia. sobre a família. Não entendo mesmo
fecunda.
o desamor que a Igreja Católica reserva para o sui-
Não há correspondência que supra o meu esta-
cida. Não haverá lugar para O'S suicidas na infinita
do sobrenatural de desejo, por isso é melhor que nos
misericórdia de Deus? sintamos sempre desgarrados. Este desgarramento,
pelo menos, ineendeía os remos de esperança com
25 de maio que desesperadamente busco o porto. Sua beleza,
sua bondade, é meu farol.
Dentro em pouco estaremos, juntos. Pacifica-
mente espero por isso sem pensar nas. horas que
Beleza e bondade se confundem em X. Não a
todos os dias nos separam. É tão impossível alimen- bondade caridosa mas, a bondade animal. o. homem
tar relações de amizade e amor, quando a gente se original, Adão, devia ser assim - não imaginava o
quer perene, e vê tudo durar um minuto dentro da mal, e vivia. Só que X. não dialoga ainda com Deus,
eternidade. Tudo vai terminando aos nossos olhos seus olhos úmidos e claros não- se identificaram
deslumbrados e nós terminamos também. Por isso conscienteme:nte com a imagem original. Os olhos
penso na morte todos os dias; minha vida é a amea- bóiam à tona de seu corpo como duas dolorosas go-
ça de morrer e seria estúpido não sobreviver a este tas de óleo santo.
acidente. Se a respiração é casual, e a glória hu-
mana, e a luta diária, que não: o seja o amor, pelo 31 de maio
menos. Mas o que é o meu amor senão uma coisa
que: não culmina, que me atraiçoa pela precarieda- X. é zeloso de sua integridade, a tal ponto que
de de seus recursos relacionais, que exige cada vez Jne combate e é ríspido comigo. Mas o defender-se
mais o meu testemunho individual, o meu martírio ê' sinal de que foi tocado, pois não está tranqüilo
sem apostolado? Que bom seria se tu me amasses! ~ntro do problema. Tem medo da minha aproxi-

90
mação, e se esquiva. Não quer se render à evidên_ coletivo? do apostolade? É exigir muito ... e não
cia de que possa vir a gostar de mim. Neste com- creio que Deus se encolerize contra a alma que se
bate gastamos nossa vida. aprofunda em seu particular, a ponto de encontrar
])eUS na pessoa amada, de tocar seus olhos e sua
Atravesso com ciúme a terreno do amor, um graça e de se salvar até.
ciúme que é tão meu quanto o meu amor. Comonão
imaginar uma traição em cada momento. de sua 2 de junho
ausência? Não sou só eu que reparo. em sua beleza,
em seu esplendor. E depois de minha chegada todos Lúcio Cardoso pinta e me presenteia um "Lá-
começaram a notar muito mais, porque eu o ar- zaro e as gentes", tema que o persegue literaria-
ranqueí para a vibração universal. Sei que por mi- mente há tanto tempo, e que agora passou para
nhas palavras o mundo inteiro o amará, se eu con- o papel em cores violentas. Vê-se a brancura de
seguir dizer tudo e se o mundo me quiser ouvir. Lázaro, que não sei se é da morte, ou da ressurrei-
ção, uma brancura fixada em sua mortalha, vê-se
brancura da expressão índíscernível das gentes,
Agora é impossível voltar atrás porque o amor
existe, independentemente de mim e de X. É um a brancura do espanto do clamor e do medo diante
sentimento inspirado em X. e nascido em mim de do milagre. Vê-se um céu azul profundo, ao fundo,
forma tão integral, autêntica e violenta, que ocupa onde nuvens de um amarelo verdínhento se espa-
todo o espaço do meu entendimento do mundo. lham. Vê-se o soturna negro com laranja de onde
• Lázaro assoma. De qualquer forma é uma prova
19 de junho
de talento que o escritor nos dá, apanhando um
ante de seu personagem, de forma írnpres-
Lendo a Cidade de Deus de Santo Agostinho, nante, com um instrumento de arte que não é
sente-se o quanto agrava à nossa responsabilidade mais seu, mas que passa a vigorar pela força a
.6 se joga em brandí-lo.
para com o amor divino, o amor desvairado que de-
dicamos egoistamente a uma pessoa, Mas como dis-
pensar o amor divino? Através da prática da virtu- 3 de junho
de, exato, mas esta prática se externaria em amar
para com o próximo, incluindo no próximo todo o ~ grave o meu despertar neste dia em que te-
universo humano. Mas como pode o homem, de den- que dizer "Tudo acabou". E devo aceitar, desta
tro. da sua solidão, ávido de um diálogo íntimo e como certo. Foi com sensatez que ontem con-
secreto, ávido de um amor que O> reúna a um peito os e eu não tenho direito de exigir duração
reservado e atento, se dispersar no santo ato do amor vivência que só se complete em mim. Estar

92 93
desesperado é a flor do meu momento, mas tenho solve comprar um apartamento ou plantar uma
que viver. A manhã me solicita, e eu tenho que re - d
horta. Esta resolução vem sur amente, aninhada
viver. O pranto ronda o meu coração sem forças e no coração, determina um roteiro à revelia do pró-
eu tenho que víver. Repito mil vezes que tenho que prio eleito. Não é o artista que escolhe, ele é esco-
viver e não entendo como. Há uma bruma diante lbido, tornado de surpresa, jogado no fogo, e se não
dos meus olhos, dormindo parecia estar num abis- for assim não vingará. Não se trata de parar num
mo de fantasmas, com ínquíetação cumpri minha momento espinhoso da vida e escolher o caminho
noite de verdadeira solidão. Porque não me basta do exibicionismo, do milagre da criação, do alimen-
ter o amor que tenho, ainda, aninhado em minha to à vaidade - os obscuros muitas vezes se escudam
emoção, quando me lembro que não mais devo ver na arte para uma afirmação não vital mas social-o
X., não mais contemplar o anjo que tantas vezes Trata-se de dizer "Eis aqui o escravo do Senhor" e
desceu do empírio, ergueu o véu, e permitiu que eu receber o Espírito Santo, e dar à luz. Isto sem ne-
me deliciasse na visão beatifica de seu espírito sem nhuma decisão frívola a não ser aquela decisão pun-
mancha. Sei que ele existe, perfeito. Sei que canta gente de ir até o martírio para expressar um mundo
a mais doce das canções com a só existência de seu novo.
instante, e não devo mais buscá-lo. E tenho que
viver, embora deseje mais do que nunca a morte ... 5 de junho
e se o desejo de morrer pudesse simplesmente ma-
tar e cessar meu infortúnio eu me entregaria agora Releio o livro "Du pur amour", de Marcel Jou-
ao embalo de sua canção consoladora. Que uma ás- handeau, que fica sendo desses livros a que se volta
píde me mordesse o peito para penetrar no abismo, sempre. Sou um curioso em relação. ao problema do
e eu me aconchegasse no peito de paternal prote- amor, pesquiso até o fundo este poço sem fundo, e
ção e esquecimento que só a morte, nutre para os o máximo que consigo é uma intimidade (não des-
filhcs do mundo. vendada) com a mistério. Transcrevo deste livro ex-
traordinário de M. J.: "Os amantes têm não sei que
4 de junho tte comum com os santos: um fervor e uma pureza
IbrenatUrais.
Noto em apresentações escritas de artistas, e
"É sobre meu amor que minha esperança se fun-
reportagens, em notas biográficas, a reincidência
,enta e não sobre o seu. Eis o verdadeiro, o único
numa informação que me: parece impropriedade ou flneiode ser invencível assim na Terra como no Céu.
mau sinal de embuste: "FULANO RESOLVEUDE- Esperar tudo de si mesmo. Diante da evidência do
DICAR-SE À ARTE". ilagre que eu realizo cada dia em seu favor, ele
Ora, não entendo que alguém resolva dedicar- - resistirá em responder finalmente ao Todo pelo
se à arte, num belo dia da sua vida, como quem .o".

94
95
"Eu lhe confesso tudo o que ele significa para ,istisse ao doloroso combate da minha eonscíên-
mim, que ele me salvou, que eu o guardarei também ? TUdo passa, inclusive a minha consciência do
de todo o mal, que, se ele me faltar, tudo me falta , ,tante de beleza que vivi nestes dez meses de des-
que, se ele tem medo de existir sem mim, eu não .bramento e lágrima. Sua face está diante dos
tenho maior temor do que de ser privado dele, que eus olhos, cravada dentro do meu coração - es-
não há nada de mais raro no mundo do que não se IVO estas palavras com um lápis que ele me deu
fazer diferença entre a gente e o ser que se ama". um dos nossos últimos encontros e é como se ele
(290) . me conduzisse a mão.
"Eu o vejo sem O' contemplar. Nós nos amamos
à maneira dos anjos. Se O' meu olhar se estende pela 9 de junho
Terra ou pelo Céu, só a ele encontra. Minha pureza,
é a de lhe ser fiel." (282). Tomo contato com um autêntico poeta da prc-
cía, desses simples, já na maturidade física, des-
8 de junho meio orientais por atuação, que ficam d.ebruça-
em seu tanque observando a flor de lótus, Traz
Na exposição de Glauco Rodrigues um jovem o poemas, bons poemas que pouco. a pouco
pintor olha desconfiado aquela matéria tão bem atualizam (no sentido exterior, pois-interiorrnen-
conquistada, e se nega a aceitar de imediato a con- a poesia é uma) e se espantaria se soubesse de
quista, porque está no mesmo caminho e tem medo o o que se passa aqui, as explosões, os descobri-
do mais forte. Então despreza: a raposa e as uvas. tos, as infrutíferas viagens às Indías e as poUC8~
Pressinto tudo em seu sorriso, em seu olhar e rogo íarías conseguidas. Mas seria bom o impacto ...
a Deus que ele compreenda que o terreno da sua so- o poeta tem que voltar para a sua mansa pro-
lidão é tão facilmente assumível sem concorrência, ela, acho conveniente não violentar nada. Que
desde que ele saiba S:B perscrutar e se "afinar" para não saiba o que se passa no subterrâneo da com-
o trabalho. Com o tempo os nossos medos dos outros ção na capital. Lá ninguém lê poesia. Aqui o
se atenuam, passamos a entender o nosso sofrimen- :10 prejudica a leitura e o ambiente é uma prova
to e tudo o mais é supérfluo, inclusive (e principal- fogo. Deixo o poeta voltar com seu exercício de
mente)' a disputa. O importante, é ser em verdade, ão e paciência.
conseguir um caráter, disso ninguém nos priva nem
desfigura. o hábito de ouvir música de câmara termina
dUZlndoa gente ao adensamento do estado emo-
Sim guardo uma dolorosa lembrança da visão 1 no momento. Se se está infeliz fica-se muito
do Arcanjo. Mas como exigir que sua alma impúbere infeliz, se se está alegre a alegria quase sufoca.

96 ;97
Mas nos dois estades somos arrastados Com gran_
deza, ampliando nossa capacidade de entendimento velhos. E que é sob a influência do ciúme que
do mundo e de nós mesmos. E a música fica sendo .tam melhor. Assim o rouxinol compete canora.
uma conquista vagarosa e terrível, a essência de nte para conquistar o rouxinol amado. Vence o
tudo aquilo que buscamos no quadro, no poema. Se lhor cantor. Mas seu ninho é imperfeitO' e se ali-
pudesse convidaria todo mundo a Ouvir, hOje, a ta de vermes e o verme mantém o cantor que
sinfonia Concertante K 364 de Mozart ...
,ta para um dia ser apenas o verme. Ah, o rou-
,01.Para terminar, é só no tempo dos amores que
Armand Salacrou responde em Paris a uma en- rouxinol canta maviosamente.
quete: "Para que servem os intelectuais?" _ "Eu
tentei sacudir meus contemporâneos, tentei impe- Leio Santa Teresa d'Avila, espantado com sua
di-los de dormir, ou de fingirem fechar os olhos so- e1ência do misticismo, com sua exatidão, com sua
bre seu egoísmo. Quanto~s homens não entendem
senão seu problema pessoal, e nada sobre o proble-
ma alheio? Eu tentei freqüentemente colocar um
no lugar do outro, para que eles descobrissem logo,
ao mesmo tempo, o problema do outra como se fos-
.e
contenção no êxtase. Dir-se-ia uma pessoa que uti-
a da alma para ser exteriormente, de tal forma
fica sendo a alma sua visibilidade, e a alma en-
quanto antena exata e nítida de diálogos imprová-
lis. 1: preciso atravessar a crosta de sua rigorosa
se o seu. Quaisquer que sejam nossas O'piniõesfilosó- Vigilânciasobre o estilo para permanecer no poético
ficas e políticas, eu creio que a verdade é a melhor luminoso que alimenta suas confissões. Mas, de re-
muleta para ajudar o homem a caminhar para um te, somos levados em seu arrebatamento, a
porvir menos sombrio. Eu vos respondo pois com um to de entender sua felicidade, sua complemen-
orgulho que, sabeis bem, não me é muito habitual: ão, sua face ergui da diante do Amor, do Amado.
"Eu tento, em 1960, servir dizendo a mim mesmo
então, e aos outros quase ao mesmo tempo, aquilo 15 de junho
que eu acredito seja a verdade".
Os acontecimentos que retornam à memória
Ah, eu nunca ouví um rouxinol. Quando meni- homens, ligados diretamente ao processo Eich-
no pensava que eles eram tão irreais como os gno- e à chacina dos judeus, são de estarrecer. Não
mos e as fadas. " Hoje sei que existem. .. que ha- ~o pátria por cujo amor se pudesse subverter
bitam os bosques europeus, tão distantes, dizem que o sentimento humano.
o seu som reproduz estados de alma (de rouxinol?).
Eu preciso ouvir um rouxinol. E que aprendem seus No ato de posar para um retrato há um abor-
fraseados uns com os outros, os mais novos com OS hnento que não sei se originado do medo de se
98 refletido ou de não se ver refletido. É como.se a

99

\
fuga da nossa aparência, através de uma interpre_ :ontra mais afinados, mais aptos a "ver a graça".
tação alheia, significasse uma traição. Ao mesmo ro heroicamente a minha necessidade de re-
tempo que uma fiel retratação nos produzisse o ter- ,eia, mas sem uma noção exata da capacidade
rível desgosto do desencanto. Não por uma questão resistência que me seria exigida. Sinto falta da
de vaidade, mas porque imaginamos nossa atmos- beleza, do seu mistério, até mesmo de sua ino-
fera de forma tão diversa, nos sentimos uma coisa :te e gloriosa atmosfera de traição.
longínqua de nossa atmosfera real. E se nos reco-
nhecemos contrariados num traço menos desejado, 20 de junho
nos desamamos, nos desgarramos da fé naquilo que
era a nossa ambição de incorporar a imagem e se- Ensaio cotidianamente a substituição, mas seu
melhança do Criador. :errãodiabólico persiste em mim como um desafio.
Imingoa saudade me demoliu num vale de Iágrí-
Para certas pessoas o amor e, cada vez mais, _ hoje tento a anestesia mas, como diz Júlio,
Uma glória, uma unidade, sendo uma quase inven- .os nomes com que o denominava voltam a cada mo-
ção não pode exigir a correspondência perfeita ... ento do nosso colóquio. De qualquer forma sei que
Tem que se contentar com a sua miséria exterior ,estouainda só, e nesta solidão a verdade do Arcanjo
para crescer por dentro. absoluta, tirânica.

Preparo-me, demoro. voluntariamente em escre- o que é o amor? Pergunto-me tragicamente, e


ver sobre os trabalhos de Ana Letycía. Suas gravu- lto porque estou desarvorado. Desde o momento que
ras me rendem em emoção o tempo de um romance, dei conta de minha solidão, comecei a amar. E
e é isto que eu quero transmitir - o amoroso canto significava fundar um mundo acíma da soli.
de seus animais, de seus tatus, de suas formigas e . Um amor de invenção, por isso poderoso, um
pássaros mortos. Mas não há no momento vontade or de rebeldia e imposição dolorosa. Um amor
que mais me persiga do.que a de me lançar a isto, o qual reclamo pessoas mal-acostumadas às
a esta análise para descobrir minhas coisas sobre Impasfúnebres, e por isso.espantadas do meu ter-
as suas representações. :vel mito. Assim mantenho temporariamente as
ções, e sofro de perdê-Ias.
16 de junho
9 de julho
Sou dos que não acreditam na importância úni-
ca do primeiro amor, mas sempre do último. A gente Júlio encontrou uma aliança e eu passei a usá-
aprende, se educa, sofre, amplia, e cada entrega nos Isto determinou uma surpresa em todos os meus

100 101
conhecidos, só os amigos não perguntam com quem momento da vida foram temidos, agiram como
noivei. Eu me divirto Inventando nomes e histó_ uses ao inverso, significaram o excesso da raça.
rias que logo transparecem ser invenção e que de-
26 de julho
soríentam um pouco os outros. Uma aliança. Como
se preocupam com isso... Sei mesmo que teria Sinto que cada ato humano é uma lição para
razões para usar uma aliança, uma vez que uma IOS os homens. O artista porém substitui o ato
aliança signifique realmente um compromisso. ,Iahistória do ato. Sua cultura de vida, sua vivên-
Atrás de tudo ainda há o Arcanjo cuja ausên- intuitiva, culmina por instituí-lo como codifica-
1-.' I cia justifica esta aliança, para que eu saiba e todo I" do comportamento humano. Assim o artista
o mundo saiba que estou eternamente perdido em ,ecriar sobre o suicídio toda uma obra, como se
meu amor por ELE. Ausente, o Arcanjo funda uma 'esse se suicidado. Muitas vezes ele toma a decisão
aliança de mim com a sua memória, e esta aliança ato (o do suicídio, por exemplo) e neste momen-
é realmente o que importa. '. não pelo que está, se aprofunda em analísá-lo, comunica sua análi-
mas pelo que esteve e não termina. , faz com que o seu personagem se suicide, e morre
velho.
22 de julho
Passo por um período de profunda depressão.
Apavora-me a frieza de certos assassinos, e os eu livro recém-publicado me desagrada profunda-
jornais nos revelam cotidianamente seus feitos ter- lente. O carinho que o editor teve com a edição
ríveis. Não deixo de reconhecer, entretanto, que em nndou numa montagem que me fez parecer um
cada assassino se esconde um iluminado que não 'eito cabotino, com relação de prêmios abrindo o
encontra outro caminho para se comunicar que o lume e outros detalhes pouco modestos. O certo
do crime. O fato de se arrastar uma punição má- que morro de desânimo diante de mais um livro
xima, uma exclusão social, já informa um heroísmo íso,
cruel, uma decisão de enfrentar o tempo e o uni-
verso com um punhal erguido, numa ação inversa 31 de julho
da construção cotidiana que é o progresso e a evo- Eu amo a potência da beleza! Eu amo a energia
lução.E certo que a morte está nas mãos desses iva.Eu amo Deus!
iluminados (que seriam santos se assumissem a co-
ragem do bem) como um instrumento definitivo e 11 de agosto
irredutível. O que lhes dá grandeza é o não se tere~
conformado com a situação da maioria que cami- Há que amar as pessoas pelo desejo de perfeição
nha sossegadamente para o nada: num determina- as impulsiona, aí está a raiz do amor. Há que

102 103
amá-Ias pela melancolia que as isola, pelo medo que 'detestados sabemos a medida do esquecimento -
as desnuda. Há que amar as pessoas que lutam com JD8.S pelos que ainda nos eram indiferentes, por es-
o anjo da desagregação, mesmo que terminem sor- _ é como se nos tivessem tirado o pão da boca.
vendo em seu seio o leite da desesperança. Há que )leu DeUS, que distância vai entre o existir e o íne-
aprender a amar como quem se alfabetiza, passo a siStir? Qual é o peso humano disso? Porque vivemos
passo, para sofrer, talvez, mas de olhos abertos. como se fôssemos eternos, com medo dos vestígios
da morte mas sem tomar as exatas precauções den-
Os sintomas de futuras doenças se fazem vísí- tro do jogo cotidiano.
veis para mim, e resisto a esta mágoa moral de en-
22 de agosto
tregar a um médico a aceitação da minha máquina
desarranjada. A humanidade deveria nascer perfei-
ta e um dia se apagar como se apaga uma luz, sem o meu provável talemo deve ser fruto, em par-
os apodrecimentos, as falhas de coração os cânceres. te , do impacto entre as minhas remotas frustrações
,

É triste tomar conhecimento da matéria corruptível


~ o meu doentio orgulho. Isto tudo impelido por uma
que sustenta o nosso espírito e que, por mais ilumí- doença de amor que me mantém constantemente
nados que sejamos, só nos resta para entregar à em febre e êxtase.
morte um triste despojo fétido e desprezível.
Não sei o que me obriga insistentemente a viver,
21 de agosto a arrastar meu sofrimento pelas horas, como hoje.
'elefonei inutilmente a X., tudo deve ficar como
Estamos irremediavelmente obrigados a morrer. .tã. Sinto uma força que estremece dentro de mim
O tempo rui sobre as nossas cabeças. Ontem pela numa sensível agonia. E não sei em que ponto co-
madrugada, entrando em casa, um risco de clari- meça ou pára, da minha carne, do meu sangue, do
dade difusa cintilou contra uma tela na parede da meu ouvido, do meu tato, da minha visão. Por to-
sala. Pensei na minha morte e fremi de pavor, como dos os lados me chegam as, flexas do Arcanjo.
se, independente de qualquer instrumento, ela fosse
um ser ínexorável e potente em cuja garra eu fosse Eles se deitam juntos, e se beijam, e se abraçam
esmagado lentamente e com integral fruição de dor se entrelaçam, com uma naturalidade que me es-
e dúvida. ga, Ali está a outra metade de mim, a mais amo-
-vel,a que me deixa em permanente esperança. Sei
É angustioso saber-se da morte de uma pessoa .deestá, a hora que está, nesta sua vida que vigio
que sabíamos existir e que não nos interessava. distância com um pensamento de nostálgico afeto.
Pelos amados sabemos a medida do sofrimento, peles i onde está e não tenho o direito de dar um passo

104 105
em sua direção, porque não sou esperado. Dessa de- dianamente em lágrimas. Que posso fazer senão ali.
sigualdade nasce a agitação que, me envenena e me mentar esta religião do desejo? Minha vida tem sido
conduzirá ao santo abismo. Quisera, a perfeição que isto e não encontro outro meio de cumprir o meu
me mantivesse equilibrado em meu sofrimento, co- instante.
mo a dos santos, mas o que me fica é um profundo
poço onde me arrasto de joelhos como um animal Teria que renunciar a toda uma ordem de coi-
nocivo que vai ser esmagado. No entanto sei, exata- sas para renunciar a este estado de amor cuja ple-
mente, todas as dimensões do anjo de que fui apar- nitude me inflama. Plenitude sim - onda altíssírna
tado.
deste mar que me absorve e desdobra, este sonho de
Deus do qual tenho a consciência e a glória.
Eu nunca aceitaria um destino linear, nunca
me integraria num conjunto - minha solidão é 26 de agosto
minha equipe. Se conseguir completar uma men-
sagem válida, será a forma de estar desde todo o
Frei X. deixa a batina pelos mesmos motivos
tempo com o que não me esperava e de permanecer
que me têm levado a pensar em abraçar a vida re-
para além da minha imagem mortal.
ligiosa. O da solidão e da insolubilidade imediata.
Imagino a paz na renúncia consentida e sincera do
25 de agosto
mundo. Frei X. imagina no mundo a possibilidade
Mais uma vez telefono a X. Sua recepção é tão de desdobramento integral de sua personalidade. O
luminosa que me enche de alegria para o resto do problema talvez se apóie na sinceridade. Nem eu vivo
dia. Só a desordem política nacional, com a renún- sinceramente o mundo, por acreditar que não me in-
cia do Presidente Jânio Quadros, me ensombra, tegrarei jamais em sua engrenagem, nem Frei X.
vive com sinceridade a vida monástica pelos mes-
mos motivos.
o quese passa comigo? Escolho o caminho me-
nos prático para o esquecimento. Estarei certo nâo
fugindo de uma fixação que persiste? A verdade é 27 de agosto
que não quero esquecer. Aceito um tempo mutilado
em que minha esperança circula. Todos os propó- Só consigo amar as pessoas que me fornecem
sitos de superioridade dentro do conflito estão su- lnatéria à invenção. É da criação sobre o charme
perados e ridículos. Posso dizer que tenho um amor elo que se mantém minha paixão. Mas as pessoas
- isso é o que me interessa. Não trocaria por ne- das nem sempre suportam o peso dessa respon-
nhuma paz no vazio esta ligação que me põe coti- ,bilidade ou se esquivam ou reagem pela agressí-

106 107
vidade libertária. Mas é no rendimento ininterrupto . com que luto. Subdivido-me nesta luta, a pon-
.Jo
de não saber mais. on de começa a baixeza
. e term:
ermt-
de um mistério que colho o melhor amor, sempre.
~ a inocência em mim. Num dia amorfo como este,
15 de setembro ,JlB. eu não acreditasse na natureza eterna da minha
~a, na grandeza do mistério divin~, eu não espe-
Nós não temos o direito de impor aos outros a raria o amanhã. Salvo se eu fosse tao covarde que
humilhação da nossa misericórdia. Porque a pena não conseguisse enfrentar a realidade do meu aní-
deixa supor carência do que nos inspira e o desgra- .quilamento, se não tivesse coragem de esvaziar mi-
çado muitas vezes optou por seu caminho escuro. nhas veias de todo este sangue invisível e imprová-
Não fosse assim não haveriam os gênios da maldi- vel. Mas resisto, porque aprendi de tal forma a pas-
ção. Encontramos todos os dias pessoas muito infe- sar por cima dos muitos espectros que tenho sido
lizes e o máximo que podemos lhes dar é um impulso em tantas etapas amargas; e ao passar por sobre
de afeto, uma atenção, uma solidariedade que sig- os espectros, o gue carrego comigo é uma força re-
nifica "estar junto", apesar do conflito e além dele. novada. O ar que respiro é tudo de palpável - o
Nestas circunstâncias até a confidência se justifica, ímpalpável é o que me opõe resistência e não sei o
é quanto ouvimos não julgando nem desculpando, que me inspira mais respeito, se a consciência da
mas reconhecendo na outra parte uma individuali- minha inutilidade, ou a esperança da minha recupe-
dade cujo caráter se apóia inclusive no infortúnio n.ção. Os dias passam por sobre mim, e eu me so-
que a desiquilibra. breponho aos dias porque sei do meu limite e sofro.
,O sofrimento do meu dia de hoje, em que não con-
18 de setembro ~ provar uma finalidade válida, em que não con-
,egui pelo menos um ócio sábio, é a garantia de um
Passo um dia de desânimo. Levanto tarde, vou amanhã que me comunique a força de que necessito
ao cinema, sou concupiscente, assisto a uma exposi- fara atingir a graça. E a graça é o estado de amor
ção de fotografia, tudo uma inutilidade. Em ne- ue me faz sintonizar com o coração generoso do
nhum momento consigo um minuto de entusiasmo. ando que me conduz.
Ontem eu pensava que seria horrível morrer se não
houvesse nada depois. Esta terrível estação de luta A noite, na casa de Alvaro Raimundo e de Lilia-
perderia para mim toda a finalidade, se não fosse , contamos histórias de terror, a princípio por
em nome de uma possível perfeição. E. tudo aqui cadeira, depois realmente possuídos do frenesi
coopera contra a perfeição, a não ser o desejo. Sim, .0 mistério. E eu me pergunto, como não ter medo,

pelo desejo de perfeição consigo amar um Arcanjo c ''Comoduvidar do sobrenatural, se estamos de tal
renunciar a um Arcanjo. Luto com o anjo e sou o a Sujeitos ao sortilégio do macabro? A. R. me

109
108
recomenda, com uma estranha sinceridade, que me ,.,núnhando para ela. No caso de um pederasta o
recolha a casa, logo, Eu sinceramente confesso que ti amento social é evidente, a mulher passa a
estou perfeitamente disposto ao perigo da noite. deS~ dentro dele, ele alimenta sua mãe em seu
Fora, uma chuva fina, um ambiente deserto; fora es ção não mais com a complacência de um filho
COra um , mas com a f"una de um an t ropo'f ago, e1e a
uma ambiência fortalecedora de todos os pressen_
COm '. .
timentos. Jamais fugiria disso, da possibilidade de devora porque a ama e odeia a um tempo.
absorver o. caos do terror. Era exatamente uma Ora, José, meu personagem, não fala em sua
noite que me excitava, como se o perigo me reser- mãe no correr da peça, mas com a chegada de uma
vasse seu exato recinto de madureza. Assim come- outra mãe, apaixonada por um filho possivelmente
çou a noite e foi, neste dia, a primeira realidade vá- nonnal, dá-se a fusão de dois impulsos, e disso uma
lida para mim. O dedo gelado da morte me tocou. atração. Logo a submissão de José àquela mulher
para transferir um problema pacífico de estado de
19 de setembro conformação, para uma nova fase de angústia, mui-
to mais grave, incestuosa. Tudo o que o espectador
O desfecho da minha peça "Enquanto a Perna puder supor entre os dois, é entre mãe e filho.
Não Chega" tem causado interpretações que não me Não há nada de salvação por arrependimento,
satisfazem. Alguns elementos da crítica se escanda- há o adensamento de um estado mórbido de alma
lizaram com o todo, mas isto não me interessa. O procurando ainda, por uma nova chance, o seu ca-
desfecho, sim. Conversando com o rapaz que fazia ÍDinho.E, por assim dizer, o filho que dá à luz sua
o papel de José, o homossexual, na montagem da ~e, e sente-se obrigado então ao amor. .. Porque
Escola de Teatro da Bahia, notei que ele julga que Heloisachega e nada a interessa tanto quanto José,
o personagem se salva por uma aparente atração ,nada.Porque ele era o retrato de seu possível violen-
por Heloísa, a mulher chegada na última hora. ~dor, depois de seu marido, finalmente do filho que
Outro amigo.meu, numa nota crítica me acusa- é1aprocurava quando morreu. José é isso três fases
va de fazer concessão, tendo em vista também esta ~ paixão resumidas, e é um homossexuai. Para. ele,
salvação que a peça transpira à revelia de que eu ~loisa significa o regresso ao ventre materno, por
me propus analisar. :taso se submete. Isto não como quem se recoloca
Certamente o problema do personagem, homoS- ,;num plano de ordem, mas como quem se aniquila,
sexual confesso, tem relação. intrínseca com a sua carboniza, incinera.
origem, no sentido de que todo o homossexual traz
dentro de si a mulher, esta mesma mulher que o ! maravilhoso quando se pode resolver o im-
homem comum e normal procura amar partindo de o amoroso com a simplicidade de um animalzi-
uma raiz material , de ter vindo. dela e estar se en- o. Vejo a juventude sadia que se soluciona assim

110 111
e lamento a minha ronda obscura. Comumente re. Iva morte, e de degrau em degrau chegamos ao
calco, por pudor, esta dolorosa vigília, para não es. 'ofundo e misterioso anseio de ressurreição.
pantar o objeto amorável aos meus olhos. Prefiro
conservar o encantamento e sei de pessoas qUe se 29 de setembro
espantam com o meu controle. Mas só eu sei o que
isto me custa em angústia, em renúncia, em deses. Uma aventura amorosa de há três dias atrás
pero até. Sou a fera sim, mas na jaula de mim mes- jelxa uma dor mansa e suportável em minha carne.
mo, e tenho o dom de ver e avaliar as mais tenras )(ais precisamente no meu ombro, a dor de uma
carnes, as mais tenras almas, as que alimentam o pressão mais forte e que volta sempre como uma
meu banquete de penas. Meu coração geme e deste onda de perfume. Então a emoção renova pela lem-
gemido construo a minha pompa. brança um delicioso estado de intimidade, uma ter-
pura momentânea, uma salvação febril. Há no ato
*-mal todo um ritual de crucificação. E esta dor
Quem organizaria um verdadeiro rumo de gue me faz olhar para trás, mantém inclusive um
amo/r? Quem? Tudo é construido sobre tão ímpre- eurioso senso de fidelidade. Com os santos que se
visíveis tomadas de acesso, que a fortaleza, domina- ,tigam para manter a castidade, o processo deve
da ou não, permanece como um fantasma do qual ier o mesmo. Se fustigam por amor de Cristo e reno-
se tem o acaso e a fatalidade. É na busca de felicida- ~ as chagas que marcam este amor, para perma-
de que nos jogamos dentro do amor, e logo troca- er nele. Se eu consentisse na penitência inces-
mos a felicidade pela emoção do desconhecido, logo te por amor, ainda que por um amor impossível,
nos sujeitamos a toda uma série de ocorrências que que poderia ser fiel. A pessoa que se entrega
não definem porque não limitam. E o que nos sobra possui tem assim a chance de plantar uma se-
é um terrível mergulho com o instinto e a razão ente amorável na carne submissa. Já os sotrímen-
no terreno instável do aniquilamento. Então já te- da alma, por inclinação inversa, jogam o ser num
mos como munição aquele orgulho que preserva, já ,bismo,quando a alma não é forte. E' o amesquinha-
somos o amador consciente, e muitas vezes transfe- nto, a baixeza, se efetua na carne intata e des-
rimos para o plano de renúncia aquela fúria que re- ada. A alma nem sempre consegue preservar a
dundaria no mais doloroso estágio de insatisfação e .tegridade carnal. Mas o sacrifício da carne quase
desconfiança. Estamos doentes e às vezes nos joga- pre alimenta e induz a alma à perfeição. Por
mos à conseqüência da doença, matamos ou mor- lto esta dor no meu ombro, partindo de uma aven-
remos diante da ciência do fim. Mesmo resistindO, que talvez não se repita, me mantém fiel, in-
pela razão que nos comanda, morremos um pouco, ,ndente, seguro, realizado ... até que passe e eu
mas deste morrer que nos poupa saímos ansiando ueça o que na realidade merece ser esquecido.

112 113
5 de rwvembro te. Ela ouve o clamor das águas profundas
d viveria plenamente a sua embriaguez, ela sabe
Longa conversa com Liliane. Sua atmosfera de . :erdade e opta pelo martírio, não pela falta de
anêmona, de pássaro submarino me fascina. Antes I ça que tanta gente julga ser seu recurso, mas por
eu fugia dela, não queria ver aquela beleza evidente r recurso bem mais trágico de seduzída pelo mís-
aureolada assim de um patético abandono, não que~ o pela áría da morte elaborada em sua face de
ria assistir aquilo que me parecia a desagregação do .~ sem mancha. Ela diz que não acredita em
belo, aquele rosto sofrido de iminência do desastre. us, mas acredita no Arcanjo, porque ama a sua
Como não pedi surprendê-la heróica e terrível, eu ~ieza.Ela se contempla no espelho, com uma fre-
fugia dela. Mas foi (ainda pela mão de Lúcio Car- quência obsessiva, como quem vê o tempo fugir
doso) com quase facilidade que eu repousei sobre o ,través de si mesmo, um novo narciso genuflexo e
seu coração alanceado. E hoje sei, hoje escuto o seu
:uminado, sua atmosfera de sombra é suficiente
palpitar doentio e patético, aquele andar por uma
casa de fausto empolado, com ° desmaiado Renoir,
.s-ra aclarar os recintos do mundo, do seu mundo.
as pessoas são o ópio onde mergulha, e da qual se
mais vivo na assinatura verdadeira, do que propria-
ãíga com esta santidade clara dos vencidos lúci-
mente na evidência do traço, e aquele Chagal que
• É isto que a reconduz sempre à mesa do fascí-
é tão ela, um misto de obscenidade e anjo.
, para que se sirvam os cegos os mudos e os sur-
Hoje eu sei como ela respira, solta entre as pa-
, é isto que faculta o milagre da sua leveza qua-
redes multiplicadas daquele enorme apartamento
irreal, de seu nunca estar estando sempre, de sua
que tem o aspecto de uma ribalta privada, aqueles
,frida audição de anestesiada. E sua embriaguez é
panos displicentemente jogados, as janelas mal
tamente o equilíbrio destas forças decisivas ...
guarnecidas por reposteiros despregados, as porce-
lanas chinesas maceradas pelo mau-trato, as opalí- escrever aqui sobre ela, lembro que sem saber de
nas francesas (essas, sim, intatas) fulgindo de um a ela sondou meu coração e viu os espectros.
branco leitoso com fímbria de ouro velho. Liliane é Sei que tudo passa e nós não seremos mais fi-
um pouco tudo isso, todos esses objetos que ela as- 'as de um mesmo plano num tempo muito pró-
siste com amor ao dizer: "Como eu gosto da minha o. Acredito contudo que, na resistência que in-
casa". Mas é ainda mais um desinteresse por tudo ,tei para fugir de seu canto de sereia, na paixão
o que não seja o abismo, e o abismo é bem a chave que mergulhei e sofri seu sofrimento, na sínce-
de seu destino... ela se despenca numa escarp8. .e com que afirmei a impossibilidade de ser
íngreme, se despenca bela e invulnerável, com ~a .qüilamente seu amigo, pela atmosfera de de-
realidade magna de peixe aprisionado num aquárlO, le que ela me oferecia e que eu moralmente só
sabedor dos amplos mares, sondador de seu ruído itaria com a possibilidade de sanar, por isto tudo

114 115
já se justificou este encontro, este toque de almas arece bela, e a beleza da alma nem sempre é
, P
este depoimento.
nOS ,.,
bondade, seu fascínío e a desenvolt ura, a na t ura-
:d de o domínio, a graça da imagem divina em
10 de novembro u: m'anifestação de harmonia e mistério.
S Se nos em b ríagamos,
. .
conseguimos rea Iiizar f a-
Sonho duas noites seguidas com anéis. Uma cilIIlente o jogo carnal, passando por cima de uma
noite recebo de uma mulher um anel de ouro ma- verdade maís essencial, da qual a circunstância nos
ciço. Na outra recebo de outra mulher um anel todo separa. Aí está, a circunstância distancia os corpos.
de vidro com um brilhante incrustado. Sei que co- No entanto sei que não traio aquele amor perdido,
nheço as mulheres mas não me lembro quem são. porque ele está vivo na melancolia com que multi-
Na terceira noite sonho com punhais sangrentos, plico a aventura, na insatisfação com que saio dela,
lâminas sólidas, e uma confusão de pessoas. " vou na esperança improvável de repetir num simples
esquecendo tudo, fica o terror de assistir a tragédias episódiocarnal todo aquele êxtase que me vinha de
violentas e construídas num quase silêncio. Rara- sua alma através do seu corpo que não ousei tocar.
mente os personagens dos meus sonhos falam, e E onde estava o amor? Na irrealização daquela ân-
quando falam é uma linguagem muito parecida com sia que me revelou toda uma etapa insubstituível
aquela dos meus personagens teatrais em minhas de mistério? Ou nesta realização quase cotidiana
peças mais simbólicas. dos mergulhos carnais com todas as concessões e
permissões dos sentidos? Sem dúvida foi a primeira
11 de novembro experiência que me enriqueceu, Ie cada vez que toco
a carne passageira e frívola que se me oferece, é
o amor. Certamente não há como imiscuir o para me penítencíar de ser tão pequeno para aque-
corpo e a alma nesta luta. Ama-se a alma, com a
le êxtase perfeito.
alma. O corpo é o sinal de que a alma existe, e re-
flete visualmente particularidades desta alma. Não 12 de novembro
conseguimos fixar-nos amorosamente naqueles que
nos parecem mais belos e por outro lado temos fa- De Lelena (Maria Helena Cardoso) já tenho
cilidade em amar fisicamente as figuras que nos falado tanto neste Diário.
agradam, sem que isto signifique traição ao outro lt bom desfrutar da sua alegria, seu corpo de
que permanece antes e depois da aventura. Sem PéBsarodual que não se entrega à idade, mas que
dúvida não é necessário mais do que um corpo amo- pennanece eterno em seus olhos ativos e inteligen-
rável para que se consuma uma aventura. E as tes. Ela não adormece por desfastio do doloroso
aventuras podem se multiplicar ao infinito. Mas o instante. Ela está dentro do instante como um es-
amor, que é tão raro, só se consuma quando a alma pinho, como um farol, como um gemido. A única

116
coisa que a mantém entre nós ainda é sem dúvida ue eu quisera conservar. Passamos pelo cemíté-
(ela mesma o disse ontem) a dúvida de que tudo , eu e Lelena. Aquela solidão se acentua sob a
aquilo que ela quer acreditar possa ser um engano :Uva. Lelena fala da exumação do corpo de seu
e o que ela quer acreditar (e neste ato de desejo vai , vinte anos depois .de .morto. O que sobrou: um
,nte de ossos, no primeiro momento apenas o pa-
toda fé válida que conheço) é na eternidade da
alma, no eterno repouso em Deus. Se não fosse esta armado, e o contato do ar desarmando aquela
dúvida que ainda a prende no terreno imediato da :ção humana. Sem dizer palavra circula entre nós
nossa precariedade, já teria abandonado a pomba o mesmo pensamento: não deve ser para isto
do demônio... Mas, desconfio, é neste SUssurro à viemos ao mundo e de tal forma escolhemos o
tentação, neste amor à trama instintiva em que se destino.
debate a alma humana resolvendo em cada hora o
espanto do seu destino, que reside ainda mais o seu Acabo de ver o novo livro de Octávio de Faria,
charme. Sobretudo porque ela sabe atender ao que 'O Retrato da Morte". Vejo nas primeiras páginas
palpita, sabe ouvir e responder, sabe projetar a pai- relação dos volumes já publicados e sua situação
sagem. Sem soçobrar ela se rendeu, por amor, ao ntro do plano. Vejo ainda a continuação prová-
enganoso martírio. Ela está e permanece, sua atmos- deste plano que se adensa para ser o mais sério
fera é um raro refúgio que se dividirá como túnica poímento dentro do romance brasileiro até hoje.
ínconsútil entre uns raros. Posso mesmo dizer que mesmo quem conhece Octávio de Faria pode ava-
já ganhei a minha parcela. o quanto isto é certo e decisivo para ele, este
.undo meio construído mas definitivamente lan-
13 de novembro . . Este homem invisível para todo o fátuo da
itera.tura exterior, por timidez ou por ser de outra
Adotei a delicadeza como última arma num .ureza (o que me parece mais certo), dono de sua
mundo de ameaça e agressão permanentes. Uma a que é ao mesmo tempo fidelidade e coneen-
delicadeza que me faculta, inclusive, a isenção de - • É este homem que me arrasta cada dia a
certos jogos cotidianos, e a defesa permanente con- admiração que não pede mais nada do que a
tra o que intentá. asfixiar o que não luta. Minha .ustão, até à morte, de sua invulnerável atitude
luta tem tido outro sentido, o da imposição da mi- tíca,
nha verdade, por mais indesejável que seja.
Recebo visita do editor que possivelmente edi-
A chuva (como a desta tarde, intermitente e o primeiro volume deste Diário. Sinto que ele
fraca) me deixa profundamente triste. E com uma nta secretos temores quanto à reação da cri-
saudade de tudo aquilo que passou na minha vida, e do público diante de certas confissões, um

119
118
pouco mais terríveis do que a que estão acostuma_ ,rta do paraíso, fascinado diante de sua espada
dos a apreciar. Mas como evitar isso? Se soubesse fogo, e só me interessaria entrar conduzido por
o editor que o que me inquieta é a dúvida de que mão terrível.
não disse o quanto devia ... Mas na realidade não
estou aqui pra erguer-me de tocha de fogo na mão o Arcanjo perdeu em mim o seu melhor espe-
e chamuscar a obra dos de má-fé. Diante de um _ eu sei que isto ele deplora. Ninguém o refle-
Jean Genet, de um Marcel Jouhandeau, sinto-me como eu, ninguém atingirá tão fundo a ver-
até envergonhado. Eles enfrentaram a opinião mun, de sua beleza. Meu ofício de amor foi refletí-lo,
dana com uma eeleridade apocalíptica. Eu, com iUS olhos ornaram sua estrutura com os mais
uma certa mansidão que me caracteriza como poe- ~os metais. Isto ele deplora: ficou comigo a usina
ta, aqui tenho estado de joelhos, expondo as faces sua doçura e da sua luz - e não era material
da minha natureza. O que me salva é a fidelidade mo ele supunha) a minha obsessão. Era mais
a ela, ser como sou, não como um escritor "deve" menos como um estado febril. Ele, o foco.
ser, mas como o escritor que sou É - ou seja, corno
o ser humano que me contamina É. 3 de dezembro
Logo o editor concordou que o meu Diário tem
um caráter, e que isto deve ser defendido a todo Carta de um amigo, de Nova Iorque: "Por aqui
custo, mesmo com o perigo (este perigo é o que .mesma Nova Iorque alucinadora de sempre. Se
mais me fascina). que ultimamente não se fala (ou lê) mais que
erra atômica"... os jornais publicam exposí-
23 de novembro diárias a respeito de a) como agir em caso
ataque; b) onde refugiar-se; c) que fazer com
o amor é difícil, o amor é grave. Hoje revi o crianças; d) onde conseguir informações sobre
Arcanjo. Eu não tinha palavras, entre nós a lín- os; e) qual a comida mais acertada para man-
guagem não tem sentido. Verifiquei simplesmente em estoque ... e quilos de outras advertências
o que me falta, a sua graça inenarrável. Eu não que, de certa maneira, .deixam a gente pen-
tinha palavras e seu fulgor me preencheu a vida, o ... mas ainda há tempo para outras atívída-
inclusive com tristezas que agora são meu recurso A temporada de ballet comecou com as últimas
de permanência nele. Não sei o que se passa coIIl ões de Jerome Robbins (previamente mostra-
sua alma - sei que surpreendo a vibração desta no festival de Spoletto) e pessoalmente acho
alma em seu corpo que me agride numa passivida· Robbins é um milagre e possivelmente, junto
de quase mística. O Arcanjo não sabe que eu estou Nikolais, o único movimento novo que existe

120 121
no bauet contemporâneo. O ballet sem música é
grande autor teatral consegue não precisar ser
extraordinário e comovedor".
escritor. O que acontece em centros mais civí-
ados é que os escritores escrevem os grandes tex-
4 de dezembro
" o gênero lhes é acessório, Em nome disso é que
pretendo combater. O nosso teatro precisa de auto-
Fico pensando na nota que registrei aqui on-
,res que não simplesmente ~prendam a construir
tem. Diante do maior pânico o instinto criador do
as e nelas coloquem a fábula comum do espí-
homem não cessa, pois até faz ballet sem música.
uoso tão fácil quanto efêmero, precisamos pôr à
É isto que nos dá esperança e faz com que escreva-
tma uma geração de escritores capaz de construir
mos sempre o próximo poema, ainda que nos dêem
,tuitivamente a peça, baseando-a num talento de
apenas dois minutos de vida. É isto que nos faz
literária e cultural. Poderei levar avante este
crer em Dens, o Deus que nos dá forças para sobre-
:ovimento? Terei tempo, fôlego, paciência e des-
viver e que de certo prepara o antídoto contra a
udímento para isto? Não sei, mas me apaixona.
peste do poder que envenena e apodrece o homem.
Ninguém tomará o direito da vida sobre a Huma-
13 de dezembro
nidade, tenho certeza.
Saio com Lúcio, inicialmente arrastado. É ma-
7 de dezembro ..•e eu tenho o que fazer. Em pouco menos de
a hora estou entregue à rosácea de relações que
.Imagino um movimento teatral (literário em organiza. E há em tudo uma festa de sóbria vi-
sua raiz) que incluiria a leitura dramatizada e só- da que me acumplicia. No fim lhe agradeço por
bria de textos de teatro escritos por escritores bra- me arrastado, enriquecido.
sileiros de hoje. Acontece que o surto do teatro não
deixou de repercutir em nossas gerações mais recen- 14 de dezembro
tes de escritores. Como eles "utilizam" o gênero,
apavorados com o fantasma da "carpintaria tea- Um jovem de tendências comunistas me apre-
trai", coisa que os montadores de espetáculo SObre- ,ta o panorama saneador de doutrina. Laçar os
põem a qualquer outra qualidade, é possível que ens para a educação e para o bom comporta-
muito bom texto esteja guardado à espera de uma to. Não mais a prostituição, não mais o crime,
edição. Minha intenção é a de lançar estes textos mais o homossexualismo. Os advogados, quase
literários vazados sob forma teatral, e se lanço a is.
idéia é porque sei de uma quantidade de escritore:s
A atmosfera de liberdade que ele, empolgado,
que os possuem. No Brasil, e me parece que só aquI, nde é a mais constrangedora, principalmente
122
123
para mim que defendo o direito que cada um tem o humilhado entre os humilhados, o traído entre
de escolher seu destino, inclusive de miserável e bS traídos, o abandonado entre os abandonados, a
criminoso. tuna entre as vítimas. Pelo Natal saudamos seu
'.vento, sua concordância no sacrifício pela reden-
15 de dezembro '"o. Em nome dos nossos mesmos vícios de hoje, das
nossas mesmas egoístas preferências, do nosso mes-
Em Niterói uma melancólica noite de autógra_ quinhO desassossego, é que Ele nasceu e morreu do-
fos organizada por Geir Campos. E havia "vedetes lorosamente. Por isso.mesmo, em virtude desse amor
da literatura" presentes, como Nélson Rodrigues. (que só por amor nos renderia em tal solidarieda-
Mas nem isso levou para um afastado e provincia_ de), nos faculta o dom de uma infinita esperança,
no local mais de uma duas dúzias de pessoas. Auto- porque a nossa alma lhe era mais amorável do que
grafei três livros. As pessoas com quem conversei c nosso precário instinto, e ninguém como Ele co-
sabiam quase nada de literatura, conheciam no má- nhece a extensão das nossas fraquezas e a míseri-
ximo o senhor J. G. de Araújo Jorge. Enfim, um eórdía que nos deve. Por isso hoje podemos cobrar
consumado fracasso que me deprimiu. A culpa não d'Ele, com o documento das nossas lágrimas, o pre-
é do poeta Geir Campos, cuja boa intenção me pa- ço de sua morte que não se pode perder.
receu digna de colaboração, a culpa é da festa em
si, da categoria de promoção que sempre me pare-
26 de dezembro
ceu absolutamente alheia ao verdadeiro fato literá-
rio. Não sei mesmo por que ainda aceito tais convi-
Uma senhora atrás de mim, no lotação, fala
tes. Sinto que é quase por masoquismo.
gravemente no horror que lhe causa determinado
eío em determinado amigo. No seu desejo de
Natal
râ-ío, sintetiza o vício como um núcleo de anor-
o que faremos de nossos dias se não tivermos .lidade. Eu me pergunto se não será a vida em
esperança? O que faremos de nossas horas se não o mais perigoso vício de que dispomos, e o nosso
rendermos em amor mesmo para com aqueles que \}legoa ela, esta paixão anormal que se pode con-
nos julgam? O que faremos do nosso silêncio se não nar tão facilmente. Só uma alma deturpada em
for para alimentar aquele que vive ao nosso lado e us princípios mais fundos poderia encarar com
que muitas vezes não nos vê, e o que é muito pior, .ta cautela e susto. o acontecimento de um vício
ao qual muitas vezes nós não vemos? >rriqueiro. Pergunto.-me ainda se esta senhora tão
,OSaem "curar" seu amigo, numa intransigência
Cristo está carrasco nesta data. Este Cristo que !dante e de pseudo-superioridade, seria capaz da-
é o símbolo da humanidade sacrificada, aquele que ele indispensável amor que nos faz permanecer

124 125
com as pessoas, apesar do que nos desagrada nelas.
Esta seria a única maneira de salvar o amigo posto
em desgraça. E salvar aqui seria possibilitar° co-
nhecimento profundo que podemos ter de quem sofre
ao nosso lado, um conhecimento não didático em
relação ao que nos parece um caminho de redenção.
Enfim, só redímimos com amor.

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CHAPÉU DE MEU PAI - Aurélio Buarque de
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PLANELÚPEDE'S - Garcia de Paíva
BOA - M. Mendes, L. A. Bahia, F. Sabino,
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Amacio, L. Ivo, H. Pólvora, J. C. Carvalho, J. C.
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