Organizadores

Caio Reis Veiga

Elias Abner Coelho Ferreira
Irana Bruna Calixto Lisboa
Jessica Maria de Queiroz Costa
Sara Concepción Chena Centurión

HISTÓRIA INDÍGENA
E DO INDIGENISMO
NA AMAZÔNIA II

2019
HISTÓRIA INDÍGENA
E DO INDIGENISMO
NA AMAZÔNIA II
Organizadores
Caio Reis Veiga
Elias Abner Coelho Ferreira
Irana Bruna Calixto Lisboa
Jessica Maria de Queiroz Costa
Sara Concepción Chena Centurión

HISTÓRIA INDÍGENA
E DO INDIGENISMO
NA AMAZÔNIA II

1ª Edição

2019
Copyright 2018 © Grupo de Pesquisa Hindia
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levado em conta os direitos dos autores.

CAPA:
Cynara Dryelle Pantoja Pereira

EDITORES:
Pedro & João Editores

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:

Fernando Alves da Silva Júnior

REVISÃO:
Sara Concepción Chena Centurión

CONSELHO CIENTÍFICO:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil; Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil)

Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha Catalográfica produzida pelo editor

História indígena e do indigenismo na Amazônia II. Caio Reis

Veiga; Elias Abner Coelho Ferreira; Irana Bruna Calixto Lisboa;
Jessica Maria de Queiroz Costa; Sara Concepción Chena Centurión. São
Carlos: Pedro e João Editores, 2019.

145p.: Il., Color.

1a ed.
ISBN 978-85-7993-737-8
1. História. 2. Indígena. 3. Indigenismo. 4. Amazônia. I.
Título.

980 CDD
304 CDU

Pedro & João Editores

www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2019
SUMÁRIO
Prefácio
Karl Arenz ...................................................................... 07

“Não Sou Escravo de Nenhum Senhor”: os

Processos de Liberdades Indígenas na
Amazônia Colonial (Primeira Metade do Século
XVIII)
André Luís Bezerra Ferreira .......................................... 09

A Representação Indígena na Narrativa

Didática das Entradas e Bandeiras: um Estudo
da Coleção Araribá (2014)
Andressa da Silva Gonçalves ......................................... 19

A Mão de Obra Indígena na “Ribeira de Moju”

– Disputas pelo seu Controle (1733–1755)
Elias Abner Coelho Ferreira ........................................... 31

Expressões Materiais do Sistema de Objetos

Culturais do povo Anambé
Irana Bruna Calixto Lisboa ............................................41

A Infância Tupinambána Amazônia

Seiscentista: a educacão das crianças pelo
olhar dos padres capuchinhos Claude
d`Abeville e Yves d`Évreux
Jane Elisa Otomar Buecke
Maria Betânia Barbosa Albuquerque ............................ 57
Breve Estudo de Representações sobre os
Indígenas em Canções de Artistas da Amazônia
(1988-1993)
Jessica Maria de Queiroz Costa ........................................ 69

Os Índios no Grão-Pará: o Impacto das

Experiências no Diretório dos Índios (1681-1757)
Luana Melo Ribeiro ........................................................... 77

As Línguas e os Línguas: Intérpretes Indígenas e

Missionários Jesuitas na Amazônia Colonial (sécs.
XVII-XVIII)
Rafael Rodrigues Correa .................................................. 89

Redes de Conhecimento e os Índios do Vale

Amazônico: Possibilidades de Pesquisa
Rafael Rogério Nascimento dos Santos ........................... 101

O Bacharel do Diretório dos Índios: o Intendente

Geral e a Fiscalização das Vilas
Stephanie Lopes do Vale .................................................. 109

Tradição e Ensino de História no Brasil: a Formação

para Cidadania entre o Eurocentrismo e as
Demandas por uma História Global/Transnacional
Taissa Cordeiro Bichara .................................................... 125

A Paticipação dos Indígenas nas Expedições da

Rota Madeira-Guaporé (segunda metade do século
XVIII)
Vanice Siqueira de Melo ................................................... 133
PREFÁCIO

Karl Arenz
Mobilidade e visibilidade – eis dois
termos que abarcam, de forma evidente,
todas as contribuições na obra que aqui
apresentamos. A coletânea é fruto do III
Encontro de História Indígena e do
Indigenismo (HINDIA), que ocorreu no mês
de novembro de 2018, na Universidade
Federal do Pará, sendo realizado pelo Grupo
de Pesquisa homônimo. Tanto o grupo em si
como seus encontros já se tornaram uma
referência para estudantes, professoras e
professores e também, cada vez mais, para
indígenas que refletem sobre os complexos e,
muitas vezes, dramáticos e traumáticos
processos de (re)articulação e resistência dos
povos indígenas. São processos não
concluídos, sempre abertos. As resistências
na conjuntura atual o evidenciam.
Como seus antecessores, o evento do
HINDIA de 2018 contribuiu com suas
reflexões, comunicações e debates a quebrar
a imobilidade e a invisibilidade, que
persistem a não perceber os índios e índias se
movendo em todos os espaços da sociedade
brasileira e aqui insistem a enxerga-los
somente em condições consideradas como
subdesenvolvidas ou “primitivas”. Os
artigos que constam na presente coletânea se
inscrevem nesta tendência, ao realçar as
diversas agências indígenas no decorrer da
história. Os textos nos apresentam análises
que abordam:
 a contribuição dos índios nas dinâmicas
coloniais, não somente como mão de
obra submissa, mas como trabalhadores
de cujos saberes e esforços dependia
toda empreitada colonial (Elias Abner
Coelho Ferreira);
 a agência dos índios e, sobretudo, das
índias, reclamando sua liberdade ante a
Doutorado em História Moderna e Contemporânea pelo Université Paris IV (Paris-Sorbonne), França (2007). Atualmente é
professor efetivo, em regime de dedicação exclusiva, na Universidade Federal do Pará - UFPA, em Belém - PA, lotado na
Faculdade de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e credenciado no Programa de Pós-Graduação em História
Social da Amazônia.
Junta das Missões, um órgão
deliberativo da justiça colonial, para
impedir que lhes fosse imposto o status
de escravos (André Luís Bezerra
Ferreira);
 a cultura material com forma visível e
palpável de afirmação dos povos
indígenas (Irana Bruna Calixto Lisboa);
 o papel das crianças indígenas como
transmissores e transmissoras dos
saberes tradicionais em meio às relações
assimétricas instituídas desde o início
da colonização (Jane Elisa Otomar
Buecke e Maria Betânia Barbosa
Albuquerque);
 a representação dos índios e das índias
em canções de artistas amazônicos que,
após a ditadura civil-militar, abordaram
questões sensíveis como a política
indigenista e o desafio ecológico (Jéssica
Maria de Queiroz Costa);
 as experiências dos e das indígenas
aldeados em relação ao Diretório dos
Índios enquanto projeto civilizador que
reverberou – e ainda reverbera – para
além de sua vigência na segunda
metade do setecentos (Luana Melo
Ribeiro);
 a contribuição dos “línguas” indígenas
nos contatos e nos processos de
mediação entre índios e europeus em
busca de estabelecer uma comunicação
mútua que, aliás, revelou ser incompleta
– até hoje (Rafael Rodrigues Corrêa);
 a aparente necessidade dos
colonizadores de controlar mais de
perto os índios e as índias nas vilas
coloniais ante a suposta lentidão de
adaptação dos mesmos ao projeto
civilizador (Stephanie Lopes do Vale);
7
  a representação dos índios e das índias
no ensino escolar que, ao invés, de
formar cidadãos e cidadãs, tende a
inculcar e, assim, perpetuar estereótipos
e preconceitos (Taíssa Cordeiro
Bichara);
 o papel crucial de remadores e pilotos
indígenas na expansão do domínio
colonial, sobretudo na abertura de
novas rotas fluviais, como a importante
conexão entre o Grão-Pará e o Mato
Grosso pelos rios Madeira, Mamoré e
Guaporé (Vanice Siqueira de Melo).
Essas pesquisas – algumas já bastante
avançadas, outras ainda na fase inicial –
embora muito variadas, formam um mosaico
que nos permite perceber a importância
fundamental dos povos indígenas no devir
da Amazônia. É bom lembrar, também, que
os textos constituem somente uma pequena
parte das atividades realizadas durante o
evento. A presença e a partilha da indígena
Alessandra Munduruku, atualmente
acadêmica de direito na Universidade do
Oeste do Pará (UFOPA), e dos integrantes da
Associação dos Estudantes Indígenas da
UFPA (APYEUFPA) foram marcantes e
mexeram, literalmente, com os demais
participantes, dos quais a maioria (ainda) são
não indígenas.
Enfim, fica o desejo que o leitor e a leitora
desta obra não possa somente constatar a
seriedade acadêmica dos trabalhos nela
reproduzidos, mas que a leitura o/a instigue
a comprometer-se com a causa dos povos
indígenas que, mais do que qualquer outra
parte da população brasileira, estão
enfrentando uma conjuntura extremamente
difícil e desafiadora.
8
“NÃO SOU ESCRAVO DE NENHUM SENHOR”:
os Processos de Liberdades Indígenas na Amazônia
Colonial (Primeira Metade do Século XVIII)

 André Luís Bezerra Ferreira

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os processos de liberdades dos índios
no Tribunal da Junta das Missões na Capitania do Maranhão. Instituído em 1681 pela Coroa
portuguesa na Amazônia, este órgão corroborou para legitimação da expansão do projeto colonial
por meio da propagação da fé e, mais concretamente, auxiliou na aplicação da justiça referente a
(i)legalidade dos cativeiros e, sobretudo, das liberdades dos índios do Maranhão. No decorrer do
século XVIII, evidencia-se uma significativa proximidade dos nativos com a justiça. Portanto,
buscarei realçar o protagonismo indígena perante uma justiça colonial que guardou, ante as
múltiplas realidades no interior da monarquia lusa, um caráter deliberativo e até restaurativo. Para
tanto, utilizo como fontes contidas no Arquivo Público do Estado do Maranhão e documentos
avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino.
Palavras-chave: Maranhão. Colônia. Índios. Junta das Missões. Liberdade.

OS TRÂMITES DAS LIBERDADES exteriores” (NOVAES, 2002, p. 8). Essas

determinações exteriores variaram e se
modificaram ao longo do tempo, implicando
Liberdade – essa é uma palavra que no
alterações no sentido da liberdade. Desta
decorrer dos anos suscitou vários debates
forma, cabe compreender como ocorriam as
acerca de sua natureza e seu sentido. Não
ações dos índios e o sentido de suas
obstante, emergiram na esfera acadêmica
“liberdades” na Junta das Missões, com
estudos teológicos, filosóficos, sociais e/ou
atenção às mentalidades e contextos
políticos, com a finalidade de compreender
envolventes da Capitania do Maranhão no
as relações das ações humanas em prol da
início dos setecentos.
liberdade. Segundo Adauto Novaes, a
No período colonial, a liberdade dos
preponderância dos referidos estudos se
escravos, fossem eles indígenas, africanos e
justifica na medida em que a natureza do
afro-brasileiros, constituía constantemente
homem se define pela “necessidade da
um dos principais pontos de pauta da política
liberdade”, ou seja, “o homem é livre por
e legislação da Coroa portuguesa. Por isso, a
natureza. Não no sentido de que ele nasce
referida temática tem sido largamente
livre, mas no sentido que de que ele tende
discutida pelos historiadores. No entanto,
naturalmente a se tornar livre”. No entanto,
cabe sinalizar que a produção historiográfica
há de se fazer uma importante ressalva. As
direcionou-se amplamente para a liberdade
ações humanas em prol da “liberdade”,
dos escravos africanos e afro-brasileiros,
semelhantes a quaisquer outras, sempre estão
sendo que, em comparação, pouco se discutiu
inseridas em certa lógica social, pois “o
a liberdade indígena1. Na década de 1930, no
homem está sujeito a determinações

 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Pará. Bolsista da CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa História
Indígena e do Indigenismo na Amazônia (UFPA). Membro do Grupo de Pesquisa Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas
e globalização (UFMG). Belém, Pará, Brasil. Correio eletrônico: andreluis_bf@yahoo.com.br
1 Sobre a liberdade dos africanos e afro-brasileiros, ver SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações

na formação da família escrava. 2ª ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2011; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; CHALHOUB, Sidney. A força da
escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; GRINBERG, Keila. O fiador
dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Mendonça. Rio de Janeiro: Civilização

9
contexto efervescente da elaboração das
primeiras teorias sobre a sociedade colonial
no Brasil, o historiador português Serafim
Leite, em seu clássico estudo sobre a
“História da Companhia de Jesus no Brasil”,
chamava atenção para a necessidade de
estudar a liberdade dos índios. Conforme o
autor, a temática esteve intrinsecamente
associada à ordem inaciana, mas a História
da Liberdade dos Índios deveria ser escrita
como “objeto histórico, direto e principal.
Porque, se no passado se confunde em
grande parte com a própria Companhia [de
Jesus], todavia pode e deve ser tratado à
parte, assunto magnífico e digno de um
grande historiador” (LEITE, 1943, p. 76).
Nesse sentido, paulatinamente os
historiadores passaram a direcionar seus
olhares para a questão da liberdade dos
índios. Por sua vez, no decorrer dos séculos
XVII e XVIII, a elaboração da legislação
indigenista, marcada por intensas querelas
em torno da liberdade e do cativeiro dos
índios, foi fruto de constantes e, de certa
forma, profícuas reflexões e discussões de
cunho jurídico-administrativo e filosófico-
teológico entre os principais agentes da
sociedade portuguesa, uma vez que a
legitimidade da dominação lusitana sobre os
povos das conquistas requisitava a
transformação desses “em alteridade jurídica
e socialmente operativa” (XAVIER; SILVA,
2016, p. 22).
Não obstante, os debates acirrados acerca
do status social e jurídico dos índios
culminaram, em geral, no estabelecimento de
um modus vivendi da Coroa entre seus
diferentes súditos no ultramar, pois como
aponta Stuart Schwartz, somente essa práxis
era a “possibilidade de governantes e súditos
multiétnicos conviverem através do
reconhecimento de direitos comunais,
instigado por circunstâncias do bom senso
políticos e econômico”. (SCHWARTZ, 2009,
p. 75) Ademais, as políticas de interferência
da Coroa portuguesa no governo dos índios
e, consequentemente, de suas liberdades
(re)afirmavam a relação de interdependência
Brasileira, 2012; GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da
ambiguidade: as ações de liberdade na Corte de Apelação
do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume-
e o compromisso do rei para com seus
vassalos indígenas, uma vez que estes eram
indispensáveis ao desenvolvimento da
colonização.
O período correspondente ao fim do
século XVII e, sobretudo, ao século XVIII tem
sido o marco temporal em que as análises
estão centralizadas (SWEET, 1987;
MONTEIRO, 1994; RESENDE, 2003. MELLO,
2006; BOMBARDI, PRADO, 2016;
BRIGHENTE, 2012; PORTELA, 2014.). Uma
possibilidade para justificar essa recorrência
é o fato de nessa temporalidade terem
ocorrido ações significativas do poder
metropolitano, objetivando a reformulação
do sistema de regulamentação da posse dos
índios na América portuguesa através da
promulgação das diferentes Leis de
Liberdade, o que, de certa forma, fez os
nativos ocuparem um lugar central na justiça
colonial.
No Estado do Maranhão e Grão-Pará, na
primeira metade do século XVIII, uma
hipótese para explicar a proximidade dos
índios com a justiça colonial é a existência de
três dispositivos: a presença do tribunal da
Junta das Missões, a instituição dos cargos de
Procurador dos índios e do Juiz Privativo das
Liberdades e a legislação – o Regimento das
Missões (1684), o Alvará dos Resgates (1688)
– que designava as formas legais de inserir os
índios nas dinâmicas da colonização.
A Junta das Missões foi instituída, em
1681, no Estado do Maranhão e Grão-Pará.
Naquele momento, o rei D. Pedro II adotou,
como já demonstrado, um conjunto de
medidas que visavam a uma maior
dinamização do projeto colonial na região.
Sendo assim, o governo dos índios se
configurou como um dos principais pontos
das políticas metropolitanas. A Junta das
Missões desempenhou, neste contexto, um
papel relevante, instigando a atividade
missionária, mas também as metas
econômicas, pois constituiu o principal órgão
deliberativo acerca das formas legais –
resgates, descimentos e guerras justas – de
arregimentação da tão necessária mão de
Dumará, 1994; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio.
Campinas: Editora UNICAMP, 2013.
10
obra indígena. O tribunal se configurou,
assim, como uma interface administrativa de
constante debate entre os diversos agentes
coloniais. Composto por representantes da
Coroa, das ordens religiosas e da autoridade
eclesiástica secular, o órgão corroborou a
legitimação da expansão do projeto colonial
por meio da propagação da fé e, mais
concretamente, auxiliou na aplicação da
justiça referente à (i)legalidade dos cativeiros
e, sobretudo, das liberdades dos índios do
Maranhão.
Quanto à atuação do Procurador dos
índios e a do Juiz Privativo das Liberdades,
essas eram duas formas possíveis para os
índios disporem de representantes
reconhecidos perante a justiça colonial. No
que se refere à atuação do Procurador dos
Índios no contexto dos processos de
liberdade, no dia 10 de julho de 1750, o
Ouvidor-Geral João da Cruz Dinis Pinheiro
escrevia ao rei sobre uma ordem régia
referente ao cargo do procurador ser um
meio de os índios requererem suas
liberdades. Conforme o ouvidor, ficou
determinado que “os escravos [que
interessem] libertar-se do poder de seus
senhores e provendo sevicias” poderiam
“requerer e resistir” na casa do Procurador
dos Índios; e isso, desde o início do século
XVIII. (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 31,
Doc. 3219.)
Por sua vez, o ouvidor-geral, principal
representante da justiça portuguesa no além-
mar, teve uma atuação preponderante nas
ações de liberdade dos índios. Sua agência
pode servir de hipótese para afirmar que a
Junta das Missões, para além do seu aspecto
missionário, que através da propagação da fé
visava converter os gentios em vassalos
régios, também foi um instrumento utilizado
pela coroa portuguesa para o alargamento da
justiça, salvaguardando, no entanto, sua
incumbência primeira: a de deliberar sobre a
liberdade dos índios. No Livro de Assentos
da Junta das Missões se evidencia que, no
momento em que um caso era apresentado ao
referido tribunal, este o encaminhava para a
instância da Ouvidoria que, a partir de 1733,
passou a ser a instância do Juízo Privativo das
Liberdades. Conforme Marcia Mello, o dito
Juízo “funcionava como um foro de primeira
instância por onde corriam as causas da
liberdade dos índios”. (MELLO, 2005, p. 8)
Assim feito, o Juiz Privativo das Liberdades
fazia uma apreciação sobre a contenda e, com
base na legislação, emitia um parecer sobre a
(i)legitimidade do cativeiro dos índios em
questão. Entretanto, cabe sinalizar que a
Ouvidoria não concedia o parecer final, pois
os casos retornavam para Junta das Missões,
na qual os deputados poderiam estar em
conformidade ou em contrariedade ao
parecer do ouvidor.
OS ÍNDIOS COLONIAIS NA JUNTA
DAS MISSÕES
Dado os trâmites institucionais e
legislativos, cabe agora direcionar nossas
análises para uma compreensão mais
apurada dos sujeitos concernidos e dos
caminhos utilizados para eles pleitearem
suas liberdades. Para tanto, na seara das
denominações genéricas que fazem
referência aos nativos da América, será
utilizada a categoria de “índios coloniais”,
introduzida por Karen Spalding para
designar a relevante agência dos índios
perante a colonização na América Espanhola
(SPALDING, 1972). No que concerne às
especificidades da América Portuguesa, John
Monteiro, em estudo intitulado “Tupis,
Tapuias e Historiadores”, foi o pioneiro na
utilização da categoria de “índios coloniais”.
O autor, numa perspectiva interdisciplinar
balizada entre a História e a Antropologia,
compreende o processo de contato entre os
povos na Modernidade para além da
dominação europeia em si, colocando em
pauta o desenvolvimento da (re)organização
e formação de novas sociedades. Nesse
sentido, o contato entre os mundos europeu e
indígena desencadeou diversos processos de
etnogênese, enquanto consequência da
“articulação entre processos endógenos de
transformação e processos externos
introduzidos pela crescente intrusão de
forças ligadas aos europeus” (MONTEIRO,
2001, p. 57).
11
 Desta forma, a partir do contato com o
europeu, os índios passaram a ressignificar as
suas identidades, criando novas estratégias
de vivência e sobrevivência perante um
contexto marcado por significativas
metamorfoses sociais. Segundo John
Monteiro, os índios coloniais, mediante a sua
integração à sociedade colonial, “buscam
forjar novas identidades que não apenas se
afastavam das origens pré-coloniais, como
também procuravam se diferenciar dos
emergentes grupos sociais que eram frutos
do mesmo processo colonial”, como por
exemplo, dos escravos africanos e afro-
brasileiros. Nesse sentido, em face do
surgimento e desenvolvimento de novos
grupos sociais, sinaliza o autor, “parece ter
havido uma crescente estigmatização dos
índios, separados de e opostos a outras
categorias étnicas e fenotípicas, tais como
brancos, mestiços, negros” (MONTEIRO,
2001, p. 59).
A escolha da categoria de índios coloniais
para analisar as ações dos índios na Junta das
Missões se justifica por tratar-se de sujeitos
oriundos de grupos indígenas que
originalmente habitavam os sertões ou as
várzeas da Amazônia e que, ao menos por
duas ou três gerações, estão em contato direto
ou encontram-se integradas à sociedade
colonial. Sendo assim, muitos desses índios
coloniais já nasciam na casa de seus senhores,
mas não deixavam de reconhecer suas
origens. De fato, ao pleitearem sua liberdade
ante a Junta das Missões corriqueiramente
mencionavam seus avós e bisavós que foram
resgatados, aprisionados ou descidos para as
vilas coloniais.
OS CAMINHOS PARA AS
LIBERDADES
Um ponto importante a ser destacado se
refere aos possíveis argumentos e motivações
pelos quais os índios coloniais submetidos à
escravidão podiam pleitear suas liberdades.
Realizando uma imersão nas fontes da Junta
das Missões, até o presente momento
pudemos evidenciar que as liberdades
indígenas foram reivindicadas com os
seguintes argumentos e motivos: títulos
(in)justos de cativeiro, partilhas
determinadas por testamento, matrimônios
indígenas, filhos bastardos, violência e
obtenção de mercês. Passamos, pois, agora a
analisar o entrelaçamento das liberdades dos
índios com cada uma dessas questões.
O título injusto de cativeiro era o
principal argumento utilizado pelos índios
para pleitearem a sua liberdade. A
legitimidade da escravidão estava prevista
no Alvará dos Resgates de 1688. Nas atas,
contidas no Livro de Assentos da Junta das
Missões, se observa que a falta do título da
escravidão se configurou como um caminho
para as articulações coletivas dos índios em
prol de suas liberdades. Uma hipótese para
justificar esse fato é a possibilidade de os
escravos legítimos serem julgados na mesma
medida como os suplicantes retidos em
cativeiro de forma ilegítima. Entretanto, o
tribunal costumava analisar e julgar caso a
caso, sempre possibilitando aos senhores que
apresentassem os documentos necessários
para a comprovação da legalidade da
escravidão dos índios que estavam sob sua
custódia.
Essa questão aparece explícita na
contenda envolvendo as índias Generoza,
Margarida, Julia e o índio João contra Pedro
Hipólito Domingues. Em reunião da Junta
das Missões de 16 de setembro de 1748, os
suplicantes, alegando serem oriundos dos
sertões do Amazonas, requeriam o
julgamento de suas liberdades “por não
haver justo título da sua escravidão”.
Estando presente o dito senhor, em seu
depoimento declarou que tinha os registros
de todas “aquelas peças”, com exceção da
índia Júlia. Desta feita, o pleito do tribunal
assentou que a índia Júlia e “todos os seus
produtos” seriam julgados como forros
devido à ilegalidade da sua escravidão.
Todavia, os demais índios seriam
conservados na posse de Pedro Hipólito
Domingues, com a ressalva de poderiam usar
“dos meios ordinários e o Procurador dos
Índios [que] cuidará nesta causa na forma
que é obrigado” (Arquivo Público do Estado
12
do Maranhão. Livro de Assentos da Junta das
Missões. Fls. 41-43v.).
Diferente do caso apresentado acima, os
índios Ponciano, Raimundo, Francisco,
Ignacio e Maria, com seus filhos, obtiveram
logo parecer favorável para as suas
liberdades. No dia 14 de setembro de 1754, o
processo que envolvia os referidos índios foi
remetido à Junta das Missões pela instância
da Ouvidoria. Sendo assim, o Juiz Privativo
das Liberdades, após ter solicitado os
senhores que os possuíam para a
apresentação do título da escravidão,
constatou em seu despacho que os títulos
“não foram satisfeitos, nem julgado matéria
alguma, com que ainda a prova se fizesse
duvidosa a sua condição”. Sem demora, os
deputados da Junta das Missões, em
consonância com as resoluções régias,
declararam “aos suplicados livres e isentos
de toda a escravidão e que podem usar de sua
liberdade” (APEM. Livro de Assentos da
Junta das Missões. Fls. 47v-48).
Quanto as partilhas de testamentos,
podemos apontar o caso que envolve as
índias Catarina, Domingas e Teodora. “Todo
o gentio é livre de natureza conforme as Leis
e ordens de Vossa Majestade”. Essas palavras
foram proferidas pelos índios Martinho
Lopez da Fonseca e Damazo Pereira em
requerimento do dia 28 de janeiro de 1737 ao
Conselho Ultramarino. Na missiva, os
suplicantes informavam o rei D. João V sobre
a necessidade da proteção dos índios e a
conservação de suas liberdades no Estado do
Maranhão e Grão-Pará. Mas, o referido
requerimento fazia menção de um caso bem
particular: a disputa pela posse das índias
Catarina e Domingas, esposas dos ditos
suplicantes, além da cunhada dos dois, a
índia Teodora. (AHU, Avulsos Maranhão.
Cx. 23, Doc. 2333)
A índia Maria, natural dos sertões do rio
Amazonas, está no início da trajetória desta
família indígena. Descida para a cidade de
São Luís, a nativa foi direcionada para a casa
de Francisco Deiró e Anna Roiz Sameiro,
lugar em que deu à luz a sua filha Cecília,
mãe das índias Catarina, Domingas e
Teodora. Portanto, na mesma casa, as índias
mencionadas criaram, respectivamente, seus
filhos e netos (AHU, Avulsos Maranhão. Cx.
23, Doc. 2333). Desde a sua infância,
receberam, ao que o documento indica,
“amor e bom tratamento”, chegando a
“serem do sangue, e família” dos ditos
senhores que “sempre as trataram como
forras” (AHU, Avulsos Maranhão, Cx. 15,
Doc. 1542).
No entanto, o falecimento de Francisco
Deiró e, posteriormente, da sua esposa Anna
Sameiro veio a transformar a vida daquela
família indígena. Isto porque, Joseph Pires
Deiró, filho do casal e um dos seus herdeiros,
“por sessão que fez de sua herança” resolveu
vender Catarina, Domingas e Teodora a
Manuel Gaspar Neves. O jovem Deiró era
conhecido como “forte contendor”, tendo
muito prestígio e influência política em São
Luís. Seu intento, no referido caso, teria sido
cativar as ditas índias. Não obstante,
Catarina, Domingas e Teodora, achando-se
“oprimidas e vexadas”, buscaram ajuda
perante o Governador do Estado do
Maranhão e Grão-Pará João da Maia da
Gama. Prontamente, o governador lhes
socorreu, ordenando “[as] depositar em
poder do Procurador dos Índios para este
lhes defender as suas liberdades” (AHU,
Avulsos Maranhão. Cx. 23, Doc. 2333).
Entretanto, o Ouvidor-Geral Mathias da Silva
Freitas, descumprindo a ordem do
governador do Estado, tirou as índias do
poder do Procurador dos Índios e as entregou
a Manuel Gaspar Neves, além de decretar a
prisão do referido procurador, deixando os
índios daquela Capitania sem ninguém que
pudesse advogar pelas suas liberdades
(AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 15, Doc. 1542).
No conjunto documental pesquisado, o
caso das índias Catarina, Domingas e
Teodora é um dos mais emblemáticos sobre
as ações dos índios e as contendas em torno
de suas liberdades na Junta das Missões na
Capitania do Maranhão. De fato, o complexo
conflito envolveu os principais
representantes da governabilidade
metropolitana na região e suas articulações
com o poder local, como também, uma
expressiva agência por parte dos índios.
Uma vez o caso apresentado, algumas
indagações gerais podem ser feitas sobre as
13
tramas dos processos de liberdade no
tribunal da Junta das Missões. Em primeiro
lugar, cabe apontar a extensão temporal em
que o processo se desenvolve. Pelos registros
encontrados, se evidencia que a contenda
teve início na década de 1720 e se estendeu,
pelo menos, até o decênio de 1750. Esse
aspecto chama atenção para o próprio
funcionamento da Junta das Missões. As
Juntas eram órgãos instituídos pela coroa
portuguesa para deliberar com maior
agilidade sobre determinadas questões em
determinadas localidades da monarquia
portuguesa. Mas, pelo que se evidencia, a
Junta das Missões na Capitania do Maranhão
nem sempre deliberou sobre as causas que
lhe competiam com agilidade. Isto pode ser
justificado pela substituição regular dos
sujeitos que ocupavam os cargos de
deputados, principalmente, o de governador
e ouvidor. Sendo assim, a cada mudança dos
sujeitos que ocupavam os respectivos cargos,
o conflito em análise adquiria contornos
distintos.
Em segundo lugar, vale pontuar as
hierarquias institucionais e “espaciais” do
poder político no âmbito do tribunal. Como
se elucidou, o cargo de Procurador dos
Índios, embora fosse um ofício público e
investido pela coroa portuguesa, tinha menos
prestígio, sendo sua ação no referido conflito
esteve condicionada à proteção do
governador do Estado. Porém, tal proteção
estava relacionada às articulações das redes
do poder local em que os diversos
magistrados reinóis estavam inseridos; ainda
que fosse em grupos rivais, como no caso de
João da Maia da Gama e Mathias da Silva
Freitas. Esse fator nos possibilita
compreender, mesmo de forma pontual, que
a Junta das Missões foi um espaço de
(re)afirmação de conflitos em torno da
questão do governo dos índios que
transpassava toda a sociedade maranhense.
Em terceiro lugar está a pluralidade do
sentido da liberdade dos índios. Por um lado,
Catarina, Domingas, Teodora e seus filhos, ao
pleitearem a sua liberdade, tinham como
propósito manter sua família num mesmo
local. Este aspecto fica claro pelos motivos
que as levaram a recorrer à justiça colonial.
Após a morte de Ana Sameiro, em um
primeiro momento, as índias permaneceram
na casa de sua família, passando a servir os
filhos da dita defunta. Entretanto, no
momento da partilha dos bens foram
colocadas como escravas e escravos, condição
que permitia sua venda, resultando na
fragmentação da família. Quanto ao
governador, ao ouvidor e ao vereador
Manuel Gaspar Neves, todos tiveram, apesar
de suas posturas diferentes, um interesse em
comum: o uso da mão de obra indígena.
Mesmo João da Maia da Gama que defendia
a liberdade das índias, sabia que, ao obterem
sua libertação da posse de Manuel Gaspar
das Neves, caberia a ele remanejá-las para
outros serviços coloniais. Sobretudo, como
bem salientou Mathias da Silva Freitas, o
governador poderia distribuí-las entre
aqueles sujeitos que estavam inseridos em
suas redes clientelares.
Por fim, cabe ressaltar que as liberdades
concedidas às referidas índias e a sua prole
ocorreram em um contexto em que a coroa
portuguesa passava por um processo de
modernização político-administrativa,
devido à ascensão de Dom José I ao poder
real, em 1750. Assim, a principal medida
adotada relativa ao governo dos índios no
Estado do Grão-Pará e Maranhão foi a
promulgação da Lei de Liberdade dos Índios,
em junho de 1755. Foi as vésperas desta lei
que Catarina, Domingas, Teodora e seus
filhos foram, enfim, declaradas livres.
Um pertinente exemplo sobre os
processos de liberdades dos índios está
relacionado com a política de mercê. No dia
14 de fevereiro de 1723, o índio Lourenço da
Gama, da aldeia de Caeté, desejando “viver
na sua aldeia com paz, e quietação da sua
consciência”, encontrava-se em Lisboa para
solicitar uma mercê ao rei para que ninguém
no Maranhão e Grão-Pará obrigasse a ele e a
sua família a prestar serviços que não
estivessem em consonância com suas
vontades. O suplicante alegava que ele e sua
mulher, Catharina Acandyra, pertenciam às
principais famílias de sua nação, “seguindo a
verdadeira Lei de Cristo Nosso Senhor que
abraçaram seus avós”, e, sobretudo, “fizeram
[seus familiares] grandes serviços a esta
14
Coroa na expulsão dos holandeses daquele
Estado” (AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 13,
Doc. 1356).
Por meio do caso de Lourenço da Gama,
algumas indagações podem ser feitas em
relação às ações dos índios perante a
sociedade colonial. Em primeiro lugar, cabe
destacar o conhecimento do índio Lourenço
sobre os trâmites burocráticos para solicitar
as mercês na corte e os argumentos a serem
utilizados para que seu pedido fosse
avaliado. Almir Diniz, analisando a
recorrência dos principais indígenas que
viajavam até Lisboa, classificou esse processo
como “domínio da retórica burocrática” por
parte dos índios (CARVALHO JUNIOR,
2005, p. 222) Este fator nos possibilita
compreender como os índios participavam
dos fluxos e refluxos da monarquia
portuguesa, inserindo-se nas diversas redes
que potencializam as dinâmicas coloniais
para, assim, barganhar honras e mercês a seu
favor.
Em segundo lugar, cabe apontar que, do
terceiro quartel do século XVII em diante,
houve um declínio gradual da concessão de
mercês devido ao fim das guerras na
monarquia portuguesa – sobretudo, as
querelas pós-Restauração com a Espanha
(1668) e a expulsão dos holandeses das
possessões americanas e africanas (1654) – e,
ao mesmo tempo, um aumento significativo
de solicitações de recompensa por parte dos
índios. Diante disso, sucedeu um processo de
ressignificação das mercês, pois, como
aponta Almir Diniz, ao invés de serem
concedidos postos nas Ordens Militares,
passou-se a distribuir roupas com bordados,
hábitos e medalhas com a efígie do rei, que
nada mais eram do que “meros símbolos para
agradar a estes principais e não efetivamente
vínculos às ordens militares”. No entanto, “a
importância simbólica dos ‘vestidos’ era
enorme para esses personagens entre dois
mundos. A Coroa tinha consciência deste
fato, até porque para no velho mundo as
vestimentas também significavam ícones de
prestígio” (CARVALHO JUNIOR, 2005, p.
222).
Nesse panorama de reformulações, a
liberdade também pode ser considerada
como uma concessão de mercê. Esta foi
solicitada, sobretudo, por índios aliados e
vassalos que, amparados pela legislação
indigenista que os diferencia dos “índios
inimigos”, eram livres da escravidão, mas
não de serviços compulsórios. O fato de as
famílias de Lourenço da Gama e de sua
esposa Catarina Acandyra terem lutado
contra os holandeses é uma clara evidência
que eram índios vassalos, amigos e fiéis
servidores do rei. Sendo assim, cabia ao rei
recompensar seus serviços com benesses e
mercês. Ângela Xavier e Antônio Hespanha
sinalizam que a prática das retribuições
régias pelos serviços prestados resultou em
uma “obrigatoriedade nos actos de benefícios
reais, assim não apenas dependentes da sua
vontade ou da sua ratio, mas muito
claramente de uma tradição e de uma ligação
muito forte ao costume de retribuição”. O
“rei aparece, assim, sujeito ao
constrangimento e contingências impostos
pela economia de favores” (XAVIER;
HESPANHA, 1998, p. 347).
Desta forma, é bem provável que o índio
Lourenço e sua família tenham conseguido a
mercê suplementar de somente servir a quem
quisessem, sempre de acordo com sua
vontade. Sendo assim, deve-se sinalizar que
naquela época, ser livre não implicava a
ausência de trabalho compulsório, mas
possibilitava aos índios um espaço de
negociação com aqueles que precisavam de
seus braços e conhecimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do presente trabalho buscamos
demostrar como ocorreram, durante o século
XVIII, as agências indígenas perante as
esferas da administração e da justiça colonial
para pleitearem as suas liberdades. É
oportuno assinalar que o desenvolvimento
da presente análise se insere na historiografia
nacional e regional que debate as complexas
relações entre a administração portuguesa, o
processo missionário, a justiça colonial e/ou
o status jurídico dos índios na Amazônia.
Dentro destas temáticas, que são variadas e
amplas, esse trabalho enfoca as
15
particularidades da atuação da Junta das
Missões na Capitania do Maranhão,
revelando assim novos aspectos e nuances
das dinâmicas coloniais na região amazônica.
Cabe enfatizar que a liberdade dos índios – e
não tanto seu cativeiro – foi o assunto
principal do estudo. Por isso, para além de
uma mera análise de cunho administrativo
ou missionário em torno da instituição em si,
buscamos realçar o protagonismo indígena
perante uma justiça colonial que guardou,
ante as múltiplas realidades no interior da
monarquia lusa, um caráter deliberativo e até
– para fazer referência a um conceito judicial
mais recente – restaurativo.
No entanto, muito há de ser feito ainda.
De fato, o material documental disponível
permite que a historiografia possa avançar
mais na compreensão sobre a fundamental
importância dos índios, como sujeitos-chave,
na expansão da monarquia pluricontinental
portuguesa na região amazônica, pois, como
salientou o padre Antônio Vieira, “cativar
índios e tirar de suas veias o ouro vermelho
foi sempre a maior mina daquele Estado”
(VIEIRA, 1991, p. 136).
FONTES
Arquivo Público do Estado do Maranhão.
Livro de Assentos da Junta das Missões (1738
– 1777). Fundo: Secretaria de Governo.
Códice: 01.
Arquivo Histórico Ultramarino.
CARTA do ouvidor-geral do Maranhão, João
da Cruz Dinis Pinheiro, ao rei D. João V,
sobre a liberdade dos escravos. Estes
podiam requerê-la na Casa do
Procurador dos Índios. Critica a
protecção que os religiosos dão aos
escravos. AHU, Avulsos Maranhão. Cx.
31, Doc. 3219.
CARTA (treslado) sobre a disputa da posse
das índias Catarina, Domingas e
Teodora, após a morte de Ana Rodrigues
Sameiro. São Luís do Maranhão, 1726.
AHU, Avulsos Maranhão. Cx. 15, Doc.
1542.
REQUERIMENTO de Martinho Lopes da
Fonseca e Dâmaso Pereira ao rei D. João
V, solicitando que se mandasse proteger
os índios e se conservassem as suas
liberdades naquele Estado. Ant.
28/01/1737. AHU, Avulsos Maranhão.
Cx. 23, Doc. 2333.
REQUERIMENTO do índio Lourenço da
Gama ao rei D. João V, em que solicita
que nenhuma pessoa possa exigir a si ou
a sua esposa servir contra sua vontade no
Estado do Maranhão. AHU, Avulsos
Maranhão. Cx. 13, Doc. 1356.
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Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências
Sociais, 2016.
17
A REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NA NARRATIVA
Didática das Entradas e Bandeiras:
um Estudo da Coleção Araribá (2014)

 Andressa da Silva Gonçalves

Resumo: Este trabalho tem como finalidade discutir as representações sobre Entradas e Bandeiras
nos livros didáticos produzidos na região Norte. A avaliação implementada em 1996, pelo Programa
Nacional dos Livros Didáticos (PNLD), indica mudanças para a narrativa escolar. Propomo-nos a
discutir como os livros didáticos encaminham ao longo da narrativa bandeirante as relações
estabelecidas entre os sujeitos históricos, principalmente sertanistas e indígenas. Assim, buscamos
refletir sobre o discurso veiculado no saber escolar sobre esses personagens coloniais, suas
aproximações, trocas e conflitos.
Palavras-chave: Livro didático; Representação indígena; Bandeirantes.

INTRODUÇÃO Neste trabalho, nos propomos a fazer

uma breve análise da escrita didática
realizando um estudo por amostragem.
Segundo pesquisa realizada por QEdu:
Selecionamos um exemplar da 4° edição da
Aprendizado em Foco com base no questionário
coleção Araribá destinada à segunda fase do
socioeconômico da Prova Brasil 2011 e
ensino fundamental. A escolha desta coleção
disponibilizada pelo site Último Segundo1,
foi feita por acreditarmos que a obra é
98% dos professores da Educação Básica
representativa de um panorama maior da
utilizam o livro didático. Percebemos então a
literatura didática. Destaco alguns dados que
ampla disseminação da literatura didática
influenciaram essa escolha: primeiro, a obra é
nas escolas públicas de todo o país, logo
uma construção coletiva, e contou com a
realizar discussões sobre essa produção é
participação de nove historiadores com
necessário. A relevância da discussão se
diversas bagagens profissionais e
fundamenta em alguns aspectos, destacamos
acadêmicas, com tal panorama temos a
dois: o primeiro é o status do saber histórico
possibilidade de ter uma visão ampla da
como disciplina escolar. Sendo esta oferta no
escrita didática.
ensino público que justifica a existência de
Em segundo lugar, ressaltamos que de
cursos de licenciatura. Assim é necessário
acordo com informações disponibilizadas
não apenas discutir o saber historiográfico,
pelo PNLD no site do FNDE2, no ciclo de 2017
mas também o saber escolar, sendo este um
o Projeto Araribá foi a segunda coleção mais
dos objetivos finais da formação acadêmica
aderida pelas escolas, foram 1. 781. 362
histórica. O segundo aspecto a ser ressaltado
exemplares distribuídos nas escolas públicas
é que a literatura didática se constitui
do país. Percebe-se que a coleção apresentou
também como um instrumento de
elementos para sua aceitação entre os
divulgação do saber historiográfico, logo
professores, logo precisamos nos debruçar
refletir sobre esse material também é uma
sobre a narrativa, visto a enorme
forma de problematizar questões
receptividade que esta produção encontrou
acadêmicas, como, por exemplo, concepções
na Educação Básica.
históricas.

 Mestranda em história social/PPHIST. Belém, Guamá, Rua Mar da Galileia, n° 586-B, CEP: 66079-150. Correio eletrônico:
andressa_g.m@hotmail.com
1 https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2013-02-27/98-dos-professores-de-escolas-publicas-usam-livros-didaticos.html
2 http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/livro-didatico/

19
 Por último, a coleção reflete em grande
parte o resto da produção didática. A coleção
foi produzida pela editora moderna, uma
empresa que se especializou nesse tipo de
literatura e que hoje controla uma parte
expressiva do mercado editorial de livros
didáticos. Segundo Marieta Ferreira e Renato
Franco (2008, p. 85), em 2008 a editora
moderna foi uma das mais cotadas para a
compra de livros didáticos, no ensino
fundamental II a participação desta superou
todas as suas concorrentes, correspondendo a
36, 9% de todo o montante de coleções
adquiridas pelas escolas. Através dos anos a
editora moderna ainda continua sendo bem-
sucedida. Segundo dados disponibilizados
pelo site do FNDE, em 2017 a empresa foi a
terceira editora que mais faturou na venda de
livros didáticos com o montante de R$ 170.
999. 223, 39.
Visto a extensão dos assuntos elencados
no currículo da Educação Básica, utilizamos
como parâmetro a temática das Entradas e
Bandeiras. A escolha foi feita, primeiro,
porque este tema está presente em todos os
livros didáticos do segundo ciclo do Ensino
Fundamental, em segundo, é uma temática
que parece assumir um espaço estratégico no
livro didático, surgindo para explicar a
formação do território brasileiro e o início da
economia aurífera. E em terceiro e último
lugar, desde os anos 2000 a temática vem
sofrendo modificações na literatura didática,
incorporando em certa medida, novas
discussões historiográficas que destoam da
representação apologética do bandeirante.
Acreditamos que essas narrativas
escolares ainda incorporam elementos
herdados de uma cultura histórica criada no
final do século XVIII e início do XIX, e por
isso denotam características heroicas aos
bandeirantes em detrimento da omissão do
protagonismo indígena, delegando a esse
personagem um papel secundário,
indivíduos que incorporam a função de
meios e instrumentos para a concretização
dos objetivos colonizadores. Tendo como
objeto as narrativas das Entradas e Bandeiras,
pretendemos discutir como ocorre nessa
escrita à representação de índios e
bandeirantes, e também como os autores
encaminham a relação entre esses dois
sujeitos coloniais. Para isso precisamos
recorrer aos elementos básicos da
composição didática, como: texto principal,
caixas de texto e discussões historiográficas.
No primeiro tópico, faço uma discussão sobre
a produção didática e como o livro didático
analisado se insere nessa produção, na
segunda parte, faremos uma breve
contextualização das duas principais
perspectivas históricas que estão presentes na
temática das Entradas e Bandeiras, e por
último fazemos a análise do livro didático
escolhido. Com tais procedimentos,
esperamos problematizar a narrativa escolar
bandeirante e assim encaminhar algumas
considerações.
PNLD E A PRODUÇÃO DIDÁTICA
Sendo nossas fontes livros didáticos
presentes na rede pública de ensino, é
essencial falarmos sobre a dinâmica de
produção e escolha para que essas obras
sejam utilizadas na Educação Básica. Antes
de tudo, é interessante tentarmos definir os
contornos do livro didático, segundo
Amanda Penalva Batista (2011, 15), o livro
didático se difere de outras obras por uma
série de fatores, como lógica diferenciada,
público específico e utilização restrita. A
tentativa de definir esse objeto de pesquisa
resultará em diversos conceitos. Segundo
Rafael Moreira da Silva (2000), por exemplo,
qualquer texto pode ser considerado como
recurso didático e já Maria Cristina D’Ávila
(2008) o compreende como um manual. As
diferentes respostas acabam por dimensionar
a complexidade desse material que cumpre a
tarefa de transpor o conhecimento científico
através de metodologia e linguagem
específicas para o âmbito didático. Apesar de
ser criticado por diversos pesquisadores
como Nosella (1979), Faria (1994) e Lajolo
(1996), que acreditam que o livro didático não
reflete a realidade de um povo e sim visões
particulares intrínsecas as suas respectivas
épocas, o livro didático continua sendo um
importante instrumento para o aprendizado
de alunos nas escolas por pelo menos dois
20
séculos. Diante de tal importância instrutiva
e social é fundamental nos determos sobre
esse objeto do conhecimento escolar.
Desde o início do século XX, o Estado
através de políticas públicas e órgãos
responsáveis voltados para a questão,
procuram realizar o controle da produção
didática. Em 1985, com a criação do PNLD, o
controle do Estado sobre a literatura didática
diminuiu e este deixa de elaborar e fabricar
livros, tornando-se comprador, já que desde
a década de trinta do século passado o estado
não apenas adquiria as obras didáticas, mas
também interferia diretamente no conteúdo e
no formato do livro, junto com os autores e a
editora. De acordo com Eloísa de Matos
Höfling (2000, p. 164), a criação do PNLD
ensejou o fim da prática de ‘coedição’ dos
livros didáticos. Desde sua criação o PNLD
sofreu diversas modificações, uma das mais
importantes aconteceu em 1996, quando este
começou a ser financiado pelo Fundo
Nacional do Desenvolvimento para a
Educação (FNDE) e foi instituída uma
avaliação prévia da literatura didática
(CASSIANO, 2005, p.285). É importante frisar
que essas medidas promovidas pelo PNLD
foram fundamentais para o atual estado do
livro didático, já que foi com este programa
que o Estado deixou de ser apenas
comprador e distribuidor para também
promover uma avaliação gerida por
especialistas.
É importante para a discussão,
abordamos a dinâmica atual, o que envolve
as diretrizes esboçadas pelo MEC, a compra e
a distribuição desses livros para os alunos da
Educação Básica. Segundo o Decreto
9.099/20173 que dispõe sobre os materiais
didáticos, o PNLD é destinado a atender
escolas da Educação Básica, estas da rede
federal, estadual, municipal e distritais, além
de instituições fora da tutela governamental
que não tenham fins lucrativos. Desde 2017,
o programa além da distribuição de livros,
também insere outros materiais em seus
catálogos, estes incluem “obras pedagógicas,
softwares e jogos educacionais, materiais de
3BRASIL, Decreto 9.099 de 18 de julho de 2017. Dispõe sobre
o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 19 jul. 2017.
reforço e correção de fluxo, materiais de
formação e materiais destinados à gestão
escolar, entre outros”.
Ainda segundo o Decreto 9.099 de 2017, a
realização do programa é feita em ciclos e de
forma alternada, ou seja, as etapas da
educação infantil, primeiros anos do ensino
fundamental, últimos anos do ensino
fundamental e ensino médio são atendidos
em anos diferentes. Para realizar essa
operação, cada órgão detém tarefas
específicas, cabe ao ministério da educação, o
processo de seleção e avaliação das coleções
didáticas, já o FNDE é encarregado de
realizar a compra e a distribuição desses
materiais didáticos para as escolas, estas por
sua vez, precisam fazer a aderência formal do
programa, assim como obrigatoriamente
fazer parte do Censo Escolar realizado pelo
INEP. As escolas inscritas no programa
recebem as obras que estão dentro dos
padrões estabelecidos pelo MEC e que já
foram devidamente avaliadas por uma
comissão de especialistas, os professores com
estes livros em mãos podem escolher os
materiais que melhor se adequam ao seu
método de trabalho.
Dentre as obras que foram avaliadas,
disponibilizadas e escolhidas pelos docentes
da Educação Básica, temos a coleção Araribá
destinada aos últimos anos do ensino
fundamental, nosso objeto de estudo neste
trabalho. Nossa análise se focará na quarta
edição dessa coleção, publicada em 2014, e
disponibilizada para as redes públicas de
ensino pelo Guia do PNLD de 2017. Como
escolhemos trabalhar com a temática das
Entradas e Bandeiras, analisaremos o livro
destinado ao 8° ano, já que é nesta fase que os
autores discutem esse processo histórico. A
coleção intitulada ‘Projeto Araribá’ foi
desenvolvida e produzida pela editora
Moderna, como já mencionado, hoje
responsável por uma expressiva participação
no mercado de livros didáticos.
O conjunto de livros em questão é uma
obra coletiva, tal aspecto foi determinante
para a escolha da coleção, já que a narrativa
21
contém as perspectivas de vários autores
sendo possível ter uma visão mais alargada
da literatura didática. A equipe de autores é
formada por nove indivíduos, todos
formados em história, liderados por Maria
Raquel Apolinário, que assina a coleção. É
importante destacar que quatro desses
profissionais possuem mestrado, o que soma
ao grupo um nível razoável de formação
acadêmica, tal aspecto é importante já que
nos sugere que essa coleção pode ter uma
contribuição importante vinda desses
membros. Por último, gostaria de ressaltar
que quatro historiadores do grupo também
atuam na Educação Básica, em escolas
públicas ou particulares, o que agrega à
perspectiva docente a escrita dessa obra.
Nesta breve discussão, buscamos situar
um panorama mais geral da literatura
didática, com a discussão de políticas
públicas que se consolidam com o PNLD, que
seleciona e avalia as obras que mais tarde
serão utilizadas na rede pública. Foi nossa
intenção também descrever nossa principal
fonte nesse estudo de caso, esta, um exemplar
didático do 8º ano da quarta edição do Projeto
Araribá.
A REPRESENTAÇÃO INDÍGENA NA
MITOLOGIA BANDEIRANTE
Para realizar a análise da obra escolar em
questão, precisamos entender as principais
configurações historiográficas sobre o tema
através do tempo. Ressalto duas perspectivas
históricas para a representação do
bandeirante e da relação deste com outros
sujeitos, nesse caso o índio. A primeira se
constitui como uma cultura histórica, pois
não abrange apenas as projeções acadêmicas,
mas também todas as produções sociais do
período que se inicia com a Proclamação da
República e vai até a década de 1930 na
cidade de São Paulo. Essa interpretação do
passado empresta contornos heroicos aos
bandeirantes e produziu além de textos
historiográficos, uma extensa iconografia e
espaço de memória, materializado pelos
monumentos e o museu paulista, até hoje
presentes na cidade de São Paulo.
Acreditamos que a segunda
interpretação do bandeirantismo não se
constitui como cultura histórica, e sim como
corrente historiográfica. Ao contrário da
visão mistificada do bandeirante que foi
compartilhada por diversos setores da
sociedade, uma reinterpretação mais realista
do bandeirante que surgiu na década de 1960,
se restringiu a academia e não foi apropriada
pela consciência coletiva. Esta perspectiva foi
consolidada na década de 1990 por John
Monteiro com uma leitura que problematiza
as ações bandeirantes, apontando a violência
e crueldade das expedições desbravadoras.
Na primeira metade do século XX, em
São Paulo, foi construída uma mitologia
bandeirante, que segundo Ricardo de Souza
(2007, p. 151), seria um “conjunto de
narrativas e tradições referentes à imagem do
bandeirante enquanto fundador da
nacionalidade e enquanto símbolo do
paulista”. Essa memória foi estimulada por
um cenário paulista em que muitas
mudanças se faziam presentes, a maior delas
foi à proclamação da República que
desencadeou no planalto paulista uma onda
de urbanização e modernização. Nessa
conjuntura, novos atores sociais se inseriram
na dinâmica paulista; entre eles estavam uma
nova elite burguesa que contrastava com a
aristocracia cafeeira e uma enorme massa
operária formada em sua maioria por
imigrantes. (RAGO, 1985)
O período que começa com a
proclamação da república e vai até 1929 com
a crise cafeeira, também é conhecido como o
segundo nascimento de São Paulo, já que é
nessa época que diversos segmentos
paulistas estavam empenhados em criar uma
nova imagem da cidade. Os historiadores e
cronistas se destacaram no período, pois,
estes, com a ajuda de inventários, escritos e
mapas, foram os criadores de uma epopeia
bandeirante que já no começo da década de
1920 se fazia presente no cotidiano da cidade.
(SALIBA, 2004, p. 570)
O bandeirante, além de ter sido um
elemento que facilitou a união da sociedade
pela representação de uma origem em
22
comum, também foi um símbolo que
permitiu que a elite ligada ao café se
diferenciasse de uma burguesia industrial
ascendente e de uma massa de imigrantes
recém-chegada. Tal diferenciação residia no
fato de que a nata tradicional dessa sociedade
se considerava descendente e herdeira dos
primeiros conquistadores sertanistas em
detrimento de um grupo burguês que não
tinha suas origens demarcadas. Muitos
historiadores do período, como Alcântara
Machado, Oliveira Vianna e Affonso Taunay
realizavam seus estudos em homenagem aos
seus supostos ancestrais. Essa vertente de
historiadores, com um forte apoio estatal,
procurava através da ciência histórica,
legitimar a superioridade herdada dos
bandeirantes pelos paulistas, assim como
atribuir a São Paulo a origem da
nacionalidade pelo desbravamento do Brasil
outrora empreendido. A mitologia
bandeirante procurava legitimar a personagem:
supremacia de São Paulo frente ao resto da
nação. (WALDMAN, 2015, p. 4)
O governo paulista além de apoiar a
produção intelectual, também apoiou
produções cinematográficas que faziam eco à
mitologia bandeirante. Também foram
encomendadas diversas estatuas que
representassem o herói paulista que até hoje
fazem parte da paisagem da cidade. Além de
esculturas foram encomendadas pinturas
que ficariam expostas no Museu Paulista,
criado dois anos depois da proclamação da
república. Sob a direção de Affonso Taunay,
a partir de 1917, o espaço virou um espaço
dedicado à mitologia bandeirante. Todo o
Museu foi organizado para lembrar aos
visitantes que a história do Brasil na verdade
era a história de São Paulo, com pinturas e
estátuas de bandeirantes junto a marcos da
história do Brasil, Taunay buscava mostrar a
importância de São Paulo frente ao resto do
Brasil. (RAIMUNDO, 2012, p. 12)
Como indica Souza (2007, p. 154), embora
tenha sido nesse período em que a mitologia
bandeirante foi mais valorizada e evocada na
sociedade paulista, mesmo depois desses
‘anos dourados’, tal memória foi revisitada e
usada para lembrar as qualidades paulistas.
Os bandeirantes foram adotados na
revolução constitucionalista de 1932 para
ressaltar o caráter particular do povo
paulista. O mesmo símbolo foi evocado por
Getúlio Vargas em 1944 para lembrar a
continuidade entre os bravos desbravadores
e a elite cafeeira contemporânea, as
qualidades bandeirantes ainda foram
celebradas em discursos para a construção de
Brasília na década de 50 e inseridas na
ideologia de modernização que envolvia o
regime militar na década de 60.
Segundo Souza (2007, p. 152), a década
de 60 pode ser considerada como um ponto
de virada na interpretação do bandeirante,
foi nesse momento que a mitologia
bandeirante começou a ser revisitada e
contestada por muitos historiadores. Um dos
primeiros estudiosos que questionaram a
heroicização desse personagem histórico foi
Sergio Buarque de Holanda, que buscou uma
versão mais realista e humana do
A verdade, escondida por essa espécie de
mitologia, é que eles foram
constantemente impelidos, mesmo nas
grandes entradas, por exigências de um
triste viver cotidiano e caseiro:
teimosamente pelejaram contra a pobreza,
e para repará-la não hesitaram em
deslocar-se sobre espaços cada vez
maiores, desafiando as insídias de um
mundo ignorado e talvez inimigo.
(HOLANDA, 1986, p. 26)
Com tais afirmações, o autor buscava
problematizar aspectos que não eram
destacados na construção de uma narrativa
romântica. Um desses pontos era a pobreza,
a necessidade extrema que fazia que esses
homens saíssem do planalto em busca de
meios de sobrevivência sertão adentro.
Outro ponto muito criticado pelos
autores que se opunham a idealização do
bandeirante foi a representação do indígena.
As obras dos autores empenhados nessa
interpretação mistificada do passado
tentavam ocultar o cativeiro imposto as
populações nativas pelos sertanistas. Um
historiador e literato que representou essa
omissão foi Cassiano Ricardo, que na obra
‘Marcha para o oeste’ realizou uma
construção romântica do bandeirante,
23
‘esquecendo’ das violentas capturas feitas
por esse personagem em sua incessante busca
por mão de obra. Segundo Vasconcelos (1999,
p. 104), com o ocultamento da ‘bandeira de
prea’, Cassiano retirou do bandeirante a
responsabilidade por tais ações, e atribuiu ao
movimento um significado mais complexo.
A construção feita por Cassiano e outros
autores do bandeirante foi poética, já que
estes não estavam apenas preocupados em
fazer uma análise histórica, mas também
tinham a perspectiva heroica do bandeirante
como ponto central da interpretação do
passado, o que se materializou em uma
narrativa de exaltação ao movimento. Dessa
forma, os autores ocultavam o sobrevivência. Mais à frente, veremos como
aprisionamento de índios, caracterizando as
expedições como buscas por pedras
preciosas.
John Monteiro (1994, p. 45) que
representou a consolidação de uma visão
mais realista das bandeiras, afirma que a
busca por pedras e metais preciosos somente
se estabeleceu hegemonicamente nas
expedições a partir do final do século XVII,
antes disso as bandeiras se dedicavam em
grande medida à captura de índios para
comercialização e utilização destes em
engenhos de açúcar. Mesmo com o início de
expedições voltadas à mineração, os
bandeirantes nunca deixaram de aprisionar
indígenas. Nesse período, embora o tráfico
não fosse mais praticado, os índios
capturados eram empregados como mão de
obra na própria capitania de São Vicente.
Assim, a história de grandeza e virilidade dá
lugar a uma narrativa repleta de
derramamento de sangue e despovoamento
das matas e missões, estas continuamente
atacadas pelos sertanistas.
Manuel Pacheco (2007, p. 41) lembra que
embora a visão romântica tenha sido revista
pela historiografia, em diversos momentos a
literatura didática ainda traz à tona a
concepção heroica desses sujeitos históricos.
O autor ressalta que nos livros didáticos os
bandeirantes ainda são vistos como
desbravadores das matas, fundadores de
cidades e as barbáries cometidas por eles são
ofuscadas perante seus feitos. Os resquícios
da mitologia bandeirante são facilmente
vistos nas imagens que acompanham os
textos didáticos, estas, na maioria das vezes,
apresentam aos alunos um herói em todos os
sentidos. Segundo Pacheco (2011, p. 302-302)
e Luiza Volpato (1985, p. 17) os aspectos que
associam o bandeirante a uma figura heroica
na literatura didática se relacionam com uma
representação idealizada do personagem que
se apresenta como um bravo conquistador
com postura imponente, muito bem vestido e
com feições europeias, muito diferente da
visão atualmente consolidada na
historiografia que retrata um homem mulato,
sem posses, forçado pela fome a se
embrenhar nos sertões em busca da
tais perspectivas são usadas para a
representação do bandeirante no livro
didático.
Com tais considerações, percebemos que
uma memória história mesmo construída em
um momento específico pelas demandas
singulares de uma sociedade, pode persistir
através dos anos e apresentar resquícios no
presente. No caso da mitologia bandeirante,
mesmo depois de criticada e superada pela
historiografia continua se fazendo presente.
Segundo Vianna Moog (1985, p. 139), tal
persistência ocorre pela resistência da
sociedade em modificar imagens coletivas
construídas através do tempo, mesmo
quando a modificação é necessária e
justificada.
ANÁLISE DO EXEMPLAR DIDÁTICO
O capítulo que trata sobre as Entradas e
Bandeiras se intitula “A conquista do sertão”,
o subtítulo que apresenta o tema é “Como
bandeirantes e monçoeiros contribuíram para
a expansão da América portuguesa? ”. A
curta frase que introduz o tema já remete a
importância que os autores delegam a esses
personagens no desbravamento das terras
portuguesas, sugerindo que como nesse
prelúdio o resto do texto seguirá narrando as
contribuições bandeirantes para o
empreendimento colonizador. A primeira
sessão “Expandindo as fronteiras” destaca
que o movimento sertanista assim como
24
outros movimentos, como a pecuária e as
missões jesuítas, foi importante para o
alargamento das fronteiras dos domínios
portugueses, os autores citam algumas
cidades do país que se originaram pela ação
bandeirante, acentuando o ponto de partida
dessas viagens:
Muitas cidades do nosso país, como
Sumidouro e Sabará (MG), Cuiabá (MT) e
Cammapuã (MS), surgiram em
decorrência das bandeiras e monções.
Essas expedições partiam da vila de São
Paulo em direção ao interior da colônia
através de longas trilhas abertas pelos
Guarani e de rios navegáveis, como o
Tietê. (APOLINÁRIO, 2014, p. 26)
Como se pode perceber pelo excerto, a
narrativa enumera algumas cidades que
foram criadas em decorrências das bandeiras
e monções, materializando o processo de
ocupação e consequentemente a contribuição
bandeirante defendida pelos autores.
Percebemos que a explanação da temática de
Entradas e Bandeiras se dedica mais a narrar
os feitos e contribuições de um único sujeito,
o bandeirante, do que de fato, contar um
processo histórico desenvolvido por diversos
agentes:
No início do século XVII, as principais
atividades desenvolvidas na vila de São
Paulo eram a criação de animais e a
agricultura voltada para o mercado
interno. Os paulistas cultivavam trigo
(principal produto), cana, milho, algodão,
feijão e mandioca. O trabalho era quase
todo executado por escravos indígenas.
(APOLINÁRIO, 2014, p. 26)
Percebamos que no trecho acima, mesmo
que os autores mencionem que a maior parte
do trabalho era feito pelos indígenas, ainda
assim todas as atividades mencionadas são
atribuídas aos paulistas. Na narrativa, os
nativos embora mencionados, não ocupam
uma posição de autonomia, são peças de um
jogo de xadrez, este comandado pelos
sertanistas. Assim, no processo de
colonização, é o paulista que assume o papel
de protagonista, o índio é um indivíduo sem
vontade ou iniciativa própria, estas sempre
dependem dos objetivos ou ações
portuguesas.
O próximo tópico “Rumo ao interior da
colônia” se dedica a descrever tais
expedições, asseverando no primeiro
parágrafo que esses grupos eram formados
por uma massa de índios cativos que eram
liderados por bandeirantes brancos ou
mamelucos. Os autores mencionam que estes
sertanistas mestiços eram filhos de pais
portugueses e mães indígenas, não
realizando qualquer aprofundamento quanto
a essas relações interetnicas. Percebe-se que
durante o texto esboçado os povos indígenas
são citados apenas como coadjuvantes no
empreendimento português, quando
aparecem estão sendo escravizados,
perseguidos ou subjugados. Esses indivíduos
não possuem autonomia de ação ou
protagonismo na narrativa, estão sempre
condicionados a reagir de acordo com as
ações portuguesas. Essa constatação se
coaduna com as reflexões realizadas por
Mauro Coelho:
A América é pois, uma tábula rasa na qual
a vontade portuguesa se inscreve (...) A
coroa portuguesa é o agente principal da
narrativa, representado pelos seus
mandatários –todos nomeados – e seus
coadjuvantes – aqueles que concorrem
para o sucesso dos propósitos traçados –
também mencionados. Os demais agentes
não são intitulados – são referidos, mas
não dimensionados, posto cumprirem
função secundária na trama. (COELHO,
2017, 188-189)
Como expõe o autor em análise também
de alguns títulos didáticos, as narrativas
atribuem papéis secundários àqueles que não
são europeus, nesse caso aos índios. É
perceptível que enquanto nomes de
bandeirantes são citados, o mesmo não
acontece com os indígenas que aparecem na
prosa como uma massa de indivíduos
indissociáveis. Partindo das reflexões de
Coelho, que associa essa interpretação do
passado a uma memória proveniente do
século XIX, acreditamos que especificamente
em relação ao bandeirantismo podemos
considerar também uma memória histórica
que se originou na cidade de São Paulo e que
25
teve seu ápice em 1920, tendo o bandeirante
como ponto central da história nacional
delegando aos outros sujeitos papéis
secundários, as análises aqui empreendidas
nos mostram que ainda hoje essa memória
apologética se faz presente nas narrativas
didáticas, mesmo já superada pela
historiografia.
Voltando a nossa fonte, é interessante
notar que a obra, diferente das suas três
edições anteriores4 que traziam obras datadas
ainda do século XX, apresenta a renovação
bibliográfica com dois novo títulos. Do artigo
‘No mato sem cachorro’ de Glória Kok se
extrai um trecho que fala sobre a alimentação
nas expedições bandeirantes, é interessante
notar que é apenas no fragmento que se
menciona que nas expedições as “condições
de vida eram precárias”, a narrativa segue
sem fazer qualquer aprofundamento quanto
a isso. O outro título é o livro ‘Bandeirantes’
de Reina Helena e Wanderley Loconte, mas
este é apenas mencionado como sugestão de
leitura, sem qualquer análise.
É importante salientar que citar tais
autores não significa necessariamente que a
narrativa adotará de forma significativa tais
reflexões. Percebemos isso nitidamente, já
que embora a narrativa adote autores da
literatura especializada que colocam o índio
em condição de sujeito ativo na colonização
portuguesa, o enredo didático continua em
grande parte reproduzindo uma história
herdada do século XIX e começo do século
XX. Ainda em relação às referências
acadêmicas é interessante notar que alguns
momentos, os autores didáticos mencionam
para expor o assunto a palavra ‘historiadores’
sem citar que estudiosos são esses ou que
obras estes escreveram. Quando se realiza tal
prática, segundo Ana Monteiro e Fernando
Penna (2011, p. 202), está se valendo de um
argumento de autoridade, já que os autores o
fazem para legitimar e dar credibilidade
acadêmica as suas falas, mesmo sem citar os
historiadores em questão ou suas obras. Os
autores nos ajudam a entender que a
narrativa, embora, busque a fundamentação
acadêmica, referências e citações são
inseridas sem qualquer cuidado ou
4 Coleções de 2004, 2007 e 2010.
profundidade. A inserção da historiografia se
dá mais para cumprir uma formalidade do
que para acrescentar novas perspectivas à
narrativa.
Ainda na segunda página, os autores
expõem os assaltos realizados pelos paulistas
as missões jesuítas, atribuindo a preferência
por tais índios por estes já estarem
familiarizados com o trabalho. A narrativa
acentua o conflito que tais incursões
causavam nas relações dos sertanistas e
padres missionários. É importante salientar
que aqui se acentua o papel secundário dos
indígenas, já que ao falar sobre esses
acontecimentos os dois protagonistas são
jesuítas e bandeirantes, o índio é citado
apenas como mão de obra a ser disputada
pelos dois agentes colonizadores.
Na terceira página, temos um novo
tópico “Assimilação de conhecimentos
indígenas”, nesta sessão os autores discorrem
sobre os conhecimentos indígenas que eram
utilizados pelos paulistas nas expedições. O
que se percebe é que mesmo nessa parte, o
indígena não adquire papel central, a
sabedoria nativa aparece como um
instrumento utilizado pelos bandeirantes a
fim de alcançar seus objetivos. Mesmo em
uma parte do capítulo em que se espera que
os povos indígenas sejam postos em
evidencia pela importância dos seus
conhecimentos para o processo de
colonização, estes apenas são mencionados
como receptáculos do saber utilizado pelos
bandeirantes.
É interessante ressaltar que já no
exercício, os autores em uma questão trazem
um excerto retirado da tese de doutorado do
indígena Edson Kaiapó, onde o autor narra a
experiência que teve em um internato
missionário no Baixo Amazonas e compara
esse período com a evangelização dos
primeiros habitantes do Brasil. Acredito que
esse seja o único momento da narrativa que a
experiência indígena seja colocada em
primeiro plano, já que há um relato de um
indígena que pela primeira vez não é
generalizado, já que se distingue a etnia
Kaiapó, além disso, em sua narrativa ele
realiza um comparativo entre suas
26
experiências e o processo civilizatório que
seus antepassados fizeram parte, colocando
os povos indígenas pela primeira vez como
protagonistas na narrativa. É significativo
que esse autor indígena e a discussão que este
encaminha esteja no exercício e não no texto
principal, sugerindo que os aspectos
levantados não são tão importantes para os
autores quanto os tópicos que foram
elencados na narrativa principal. Em seguida,
os autores dispõem três perguntas sobre o
excerto exposto:
a) Qual era o objetivo da educação que
Edson Kaiapó recebeu no internato de
Altamira? Quais efeitos essa educação teve
sobre ele?
b) Por que o autor estabeleceu uma relação
entre a educação que recebeu e aquela
ensinada pelos jesuítas na América
portuguesa?
c) Nesta unidade, você viu que, desde a
Constituição de 1988, muitas escolas,
foram criadas nas Terras Indígenas, como
a que funciona na comunidade Guarani
Porã, em São Paulo. Considerando esse
fato que comparações podemos fazer entre
a educação indígena no período colonial e
a que existe atualmente? (APOLINÁRIO,
2014, p. 31)
Nas duas primeiras perguntas, os alunos
precisam ler e interpretar o trecho mostrado,
já na terceira pergunta os autores relacionam
o texto com a legislação vigente desde 1988,
pedindo que os alunos realizem, assim como
fez Edson Kaiapó, uma comparação entre a
educação indígena do período colonial e a
atual. A questão seria uma ótima
oportunidade de iniciar um exercício
histórico de análise e comparação entre dois
relatos distintos, um do período colonial e
outro da atualidade, mas os autores didáticos
não realizam esse encaminhamento.
É interessante que na última pergunta se
faça uma relação com a legislação, tal aspecto
corresponde com a avaliação realizada pelo
PNLD no guia de 2017 que considerou que na
coleção “os temas da legislação forma
abordados, promovendo o reconhecimento
de questões importantes para a sociedade
brasileira”.
Algo que é digno de nota na mesma
avaliação é a consideração que a banca faz
sobre o tratamento da temática indígena na
coleção:
Para abordar os indígenas, a obra investe
em textos e imagens que destacam
aspectos positivos, evidenciando as cores e
a beleza, levando à compreensão de que
são cultural e politicamente exitosos e
respeitados em suas sociedades. Textos e
recursos visuais contribuem para
desconstruir a percepção desses povos
como vítimas, realçando as singularidades
que marcam esses grupos sociais. (Guia
PNLD, 2017, p. 61)
É interessante que os avaliadores
considerem que as cores e a beleza das
imagens sejam o suficiente para que o
estereótipo de vítima dos povos indígenas
seja quebrado. Acreditamos que esse tipo de
fala, acaba desqualificando a cultura
indígena, mesmo que a intenção seja
valorizá-la, pois ao resumir essas sociedades
a elementos visuais e exóticos, se reforça um
arquétipo que a priori se tenta rechaçar.
A análise empreendida nessa seção
procurou dar conta de alguns aspectos da
representação de bandeirantes, indígenas e a
relação entre os dois sujeitos na temática das
Entradas e Bandeiras. Percebemos que
durante a explanação do assunto, os autores
elegeram o sertanista como principal
personagem da narrativa, os índios aparecem
como sujeitos coadjuvantes e genéricos, se
apresentando mais como uma ferramenta
utilizada pelo colonizador em busca de um
propósito do que como um agente ativo no
processo histórico. O único momento que o
elemento indígena ganha mais relevo é na
seção de exercícios e não no texto principal.
Tais aspectos revelam que a escrita didática é
ainda marcada, em grande parte, por uma
tradição formada durante o século XIX e
começo do século XX.
CONCLUSÃO
Neste trabalho procuramos explanar
sobre a literatura didática, especificamente
sobre a temática das Entradas e Bandeiras, e
como essa narrativa encaminha a
27
representação de bandeirantes, índios e as
aproximações entre esses dois sujeitos.
Na primeira seção procuramos explanar
brevemente sobre as políticas estatais
representadas pelo PNLD para o livro
didático, assim como também caracterizar a
principal fonte utilizada nesse trabalho. Na
segunda seção discutimos sobre duas
culturas históricas, que acreditamos fazer
parte da escrita escolar, já que para entender
a narrativa didática é preciso entender
também os discursos que dela fazem parte.
Finalmente, na terceira e última parte
realizamos a análise do livro da coleção
Araribá, constatamos no estudo uma
narrativa que apresenta o bandeirante
paulista como protagonista, o indígena como
instrumento no processo colonizador e quase
nenhuma referência à violência que envolvia
os contatos entre bandeirantes e os povos
nativos.
Acreditamos que as narrativas didáticas,
representadas pela coleção analisada, ainda
se utilizam de um discurso produzido nos
dois séculos anteriores para narrar o processo
de colonização portuguesa. Ainda que
análises historiográficas recentes sejam
citadas, não percebemos que tais estudos
sejam utilizados significativamente na
temática das Entradas e Bandeiras, que ainda
é marcada de forma preponderante pela
tradição.
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Mercosul. Montevideu: Universidad de la
Republica, 2015, p. 1-16.
29
A MÃO DE OBRA INDÍGENA NA “RIBEIRA DE MOJU”
– disputas pelo seu controle (1733–1755)

 Elias Abner Coelho Ferreira

Resumo: Fundada em 1733, a chamada “Ribeira de Moju” era uma das Fábricas Reais de madeira
que foram criadas no Estado do Grão-Pará e Maranhão, onde fabricavam-se embarcações, como
as utilizadas para as expedições de demarcações de limites estabelecidas pelo Tratado de Madri
de 1750. Na “Ribeira de Moju” a mão de obra preponderante era de indígenas, que provinham de
aldeamentos missionários e eram “repartidos” para este fim. Eles estavam sob o regime de muda,
tendo que trabalhar por seis meses, depois do que deveriam ser substituídos por outros índios.
Esse sistema de trabalho foi motivo de conflitos entre agentes coloniais, na figura do Frei Dom
Miguel de Bulhões, Governador interino do Estado, e missionários que controlavam os aldeamentos
de onde tais índios provinham. Este texto procura falar sobre como se deram tais conflitos e os
discursos gerados em torno deles.
Palavras-chave: Amazônia colonial; mão de obra indígena; século XVIII.

INTRODUÇÃO Para Ney Malvasio, entre as reformas

Regina Batista postula que durante o
período pombalino (1750-1777) a
prosperidade econômica no Estado do Grão-
Pará e Maranhão dependia de dois fatores
essenciais e complementares: de um lado, a
fomentação da produtividade, com a
produção de gêneros; de outro, dependia que
tais gêneros fossem “interessantes ao
comercio internacional...” (BATISTA, 2013: p.
20). Nesse contexto, segundo a autora,
[...] a fabricação de madeiras no Grão-Pará
despontou como umas das alternativas
pela qual a Metrópole poderia alavancar
os seus planos de incentivo à prosperidade
da Colônia e o consequente aumento da
Fazenda Real. A atividade madeireira
estava dividida em duas fases: a extração,
no qual uma grande quantidade de
trabalhadores, principalmente indígenas,
adentrava nas matas e derrubava as
árvores, e o beneficiamento, que poderia
ser feito na própria Colônia – nas fábricas
de madeira – ou embarcadas em navios e
enviadas para serem beneficiadas no
Reino (BATISTA, 2013: p. 20).1
iniciadas pela Era Pombalina após o
terremoto de Lisboa de 1755, estaria também
uma reforma naval, apesar de ter sido
negligenciada pela historiografia
(MALVASIO, 2012: p. 69). A partir de então,
o novo estaleiro de Lisboa, antes chamado
“Ribeira das Naus”, passa a ser chamado de
“Arsenal de Marinha”. Além de uma série de
melhorias, contratou-se também
“trabalhadores especializados na arte naval”,
vindos principalmente dos estaleiros da
Inglaterra, com o intuito de “passar aos
operários do Arsenal de Marinha de Lisboa
as novas técnicas empregadas na construção
naval pela maior potência marítima
europeia” (MALVASIO, 2012: p. 83).
No âmbito desta reforma, o Estado do
Grão-Pará e Maranhão se insere como grande
fornecedor de matéria-prima. Desde o início
da colonização portuguesa que os recursos
madeireiros da região eram aproveitados
tanto para a construção naval como para
construções em geral. No entanto, é a partir
da segunda metade do século XVIII que passa
a haver uma “intensificação na
comercialização dos recursos lenhosos como
produto de exportação” (BATISTA, 2013: p.

 Universidade Federal do Pará. Av. Augusto Correa nº 01, Guamá, 66075-110, Belém – PA. Mestre em História pela UFPA. Rua
2, q. 2, nº 115, Res. Marechal, Santa Catarina, 68.746-761, Castanhal – PA. Correio eletrônico: elias_abner@hotmail.com
1 Segundo a autora, o termo “fabricação de madeiras”, de acordo com as fontes, seria o processo de derrubada das árvores e o

beneficiamento para os mais diversos usos, como construção em geral e fabricação de embarcações.

31
21), com o governo metropolitano cada vez
mais interessado em controlar e sistematizar
essa produção. Para tanto, às margens do Rio
Guamá teria sido criado o Estaleiro Real do
Pará em 1761, e para abastecê-lo, as Fábricas
Reais de Madeira. Para gerir toda essa
atividade, a Coroa Portuguesa teria
determinado algumas medidas, entre elas o
“monopólio aos paus reais” e o “contrato de
arrematação das madeiras” (BATISTA, 2013:
p. 19).
A MÃO DE OBRA INDÍGENA NA
“RIBEIRA DE MOJU”
Ao longo do Vale do Tocantins
localizavam-se sete Fábricas Reais de
Madeira,2 as quais utilizavam largamente a
mão de obra indígena. O funcionamento de
tais fábricas processava-se em rede, ligadas
pela malha fluvial, por onde era feito o
escoamento da produção. Devido às
atividades, funcionavam como
“catalisadores” para o surgimento de
povoados e vilas, passando a batizar as
povoações de índios e colonos, como Moju,
Cametá, Igarapé-Miri, Abaetetuba, Acará,
Barcarena, Vila do Conde, Baião e Beja.
Dentre essas fábricas, as de Moju, Cametá e
Acará destacavam-se pela maior intensidade
da produção (ANGELO-MENEZES;
GUERRA: 1998, pp. 125-126), embora a de
Moju fosse a responsável pelo conjunto do
Vale, sobressaindo às demais fábricas, tanto
no que diz respeito à mão de obra quanto ao
fornecimento de materiais para as outras
(BATISTA, 2013: p. 48).
A “Ribeira de Moju”, foi, segundo
Regina Batista, “uma importante aliada no
processo de colonização da região de Moju”
(BATISTA, 2013: p. 45). Como as demais
fábricas, também funcionaria como
catalisadora do povoamento, tornando-se,
inclusive, a “região mais povoada da
Capitania” (BATISTA, 2013: p. 47). Só num
período de vinte anos, de 1727 a 1747, Regina
2Além das Fábricas Reais de madeira havia também fábricas
particulares, algumas administradas por religiosos, por
exemplo. Informação obtida com o professor Karl Arenz.
Batista contabilizou 40 Cartas de Data e
Sesmaria para o Rio Moju (BATISTA, 2013: p.
56).
Se a propaganda da quantidade e da
qualidade das madeiras do Estado é
veiculada desde o início da colonização
portuguesa na região, seria com a
implantação da Ribeira de Moju que a Coroa
passaria a se interessar “em produzir
madeira na Capitania do Grão-Pará, ou pelo
menos de tomar para si a responsabilidade de
gerir o processo de produção e
aproveitamento dos recursos madeireiros
desta Capitania” (BATISTA, 2013: p. 45).
Segundo Batista, a linha de produção da
“Ribeira de Moju” era bastante diversificada,
incluindo “materiais de primeiro
beneficiamento (pranchas, estacas, tarugos,
arcos para varais e taboado para forros) até
construção de embarcações” (BATISTA, 2013:
pp. 48-49). Os materiais eram transportados
para o Reino, enquanto que as embarcações
eram fabricadas para a utilização local.
Na década de 1730 inicia-se os
preparativos para a instalação da Ribeira de
Moju. Em 04 de outubro de 1732, uma
Provisão do Governador José da Serra (1732-
1736) nomeava Estácio da Silveira como
Patrão Mor da “Ribeira de Moju”, “por ser
pessoa examinada há muitos annos em cujo
emprego tem feito várias viagens nas Naos de
Sua Mag.de e em Navios mercantes em que
teve Patente de Capp.am por El Rey”. Em 28
de março do ano seguinte, Estácio solicita ao
rei a confirmação da dita Provisão, com soldo
capaz de que pudesse se “sustentar na terra
com o d.to posto”, alegando que o não poderia
exercer “com tão pequeno ordenado por não
lhe chegar p.a o seu sustento em rezão de ser
a terra cara e falta de mantim.tos...”. Em carta
de 16 de abril de 1733, o rei informa ao
provedor da Fazenda Real da Capitania do
Pará, Matias da Costa e Sousa, sobre o
requerimento de Estácio da Silveira e solicita
um parecer sobre se o ordenado solicitado era
bastante e se haveria meios no Almoxarifado
para pagar o suplicante. Matias da Costa
escreve ao Rei em dia 07 de setembro de 1733
32
e emite um parecer contrário à nomeação de
Estácio. Alegava o provedor que o dito ofício
de Patrão Mor não seria necessário, tendo em
vista que a fábrica de Moju ainda não se havia
estabelecido, e, segundo ele, mesmo se já
estivesse estabelecida não seria necessário,
porque,
[...] como esta ocupação não pode ter
exercício, senão despois de os Navio feito,
para governar os marinheyros que o hão
de deytar ao mar e perparalho dos
petrechoz necessários para seguir viagem,
bastaria que naquella ocazião houvesse
hum homem que tivesse esta serventia,
porque não he rezão que a fazenda de
vossa Magestade se aplique para huma
despeza inútil, mayorm.te não estando ella
tam abundante que a possa sofrer, e muito
menos a de fabrica de Navios neste Estado,
que de nenhuma utilidade serve, pello
grande gasto, que qualquer dos que se
obrar há de fazer, o qual há de ser muito
mayor do que em outra qualquer parte do
Brazil (CARTA, 07 de set., 1733).3
Matias da Costa alegava os altos custos
para a manutenção da Ribeira,
empreendimento que não traria retorno,
senão despesas desnecessárias à Fazenda
Real. Ademais, alegava que a dita Ribeira não
teria “nenhuma utilidade”, já que os gastos
para se fazer um navio no Estado seria
“muito mayor do que em outra qualquer
parte do Brazil”. Como vimos anteriormente,
pouco mais de um século antes o piloto
português João de Almeida se “oferecia” para
vir ao Estado do Maranhão afim de construir
embarcações, alegando a abundância de
matéria-prima (madeiras) e mão de obra
(indígenas), além de que os custos seriam
muito baixos comparados à outras regiões do
Império português, no Estado do Brasil
inclusive.
Segundo Regina Batista, desde o início a
atividade madeireira realizada na “Ribeira de
Moju” foi motivo de polêmica entre os
administradores coloniais, principalmente
nas figuras do Governador e do Provedor do
Estado. Enquanto o Governador José da Serra
proclamava a utilidade de tal investimento, o
Provedor Matias da Costa resignava-se
3 Os demais documentos citados ou menção a eles
encontram-se em anexo a esta carta.
diante dos altos custos representados à
Fazenda Real, já parca de recursos (BATISTA:
2013, p. 47).
Em parecer do Conselho Ultramarino ao
rei D. João V, de 23 de janeiro de 1734, os
conselheiros mostravam-se favoráveis ao
estabelecimento da fábrica de construção de
navios na capitania do Pará. Consideravam
que a “matéria he summamente grave e de
gr.de ponderação plas conveniências q. do
establescimento desta fabrica se podem
seguir ao serv.o de V. Mag.de e a sua real
faz.da” e que achando-se cortadas as madeiras
e feitas as demais despesas, deveria o rei
ordenar que se fabricasse um navio, “p.a q.
vendosse o custo q. este faria se viesse no
conhecim.to da utilidade q. desta fabrica se
podia seguir à Real faz.da de V. Mag.de”
(PARECER, 23 de jan., 1734). De pronto
iniciou-se o corte das madeiras, tendo sempre
presente o projeto da charrua. No entanto,
tudo feito “sem meyos”, sendo necessário ao
governador José da Serra “continuar a
despeza com o mesmo dinhr.o do bolcinho de
S. Mag.e q.’ vinha do Piauhy” (OFÍCIO, 07 de
out., 1737).
Três anos depois, em 07 de outubro de
1737, já no governo de Antônio de Barros
(1736 - 1737), Antônio da Rocha Machado,
Secretário do Governo do Estado do
Maranhão, envia um ofício para António
Guedes Pereira, Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, em que informa estar
havendo por parte do secretário de Estado e
Provedor dos Armazéns, João de Leiros,
“hum dezengano total para não obrar nada q.
diga resp.to a naus, ou estabelecim.to de
Ribeira p.a cortes de madeiras, pois allegão a
falta de meyos, ou consignação, q. he oq.
basta, para se entender q. sem a tal
consignação era impraticável semelh.e
projecto” (OFÍCIO, 07 de out., 1737). De
acordo com Antônio Machado, João de Leiros
alegava que antes do estabelecimento da
Ribeira seria necessário primeiro estabelecer
rendas no Estado.
Todavia, Antônio Machado
argumentava que, no início do seu governo
em 1733, José da Serra havia trazido um
33
construtor francês e um maquinista, e
também havia achado “dinh.o do Donativo
vindo da Capp.nia do Piauhy”, de forma que
ao ver que não havia meios para se fabricar
navios “mandou empregar o tal dinh.o em
fazendas, na occazião da frota, e as mandou
carregar em receita ao Almox.e, separadas do
mais recebim.to desta Capp.nia, p.a com estas
Fazendas hir pagando os officiaes” (OFÍCIO,
07 de out., 1737).
A questão da falta de meios, tanto para
o estabelecimento da Ribeira quanto para
construção de embarcações não seria,
portanto, um problema, tal como alegado
pelo Provedor da Real Fazenda, já que havia
dinheiro (do donativo) para o pagamento dos
oficiais. Todavia, esta foi uma questão que
permeou os discursos em torno do
estabelecimento da Ribeira. Tanto que o
Governador José da Serra mandou o
construtor francês de volta a Lisboa, para
“dar conta do que perdia S. Maj.e, em não se
effeituar a Riber.a”. De Lisboa, o construtor
foi enviado de volta ao Estado, encarregado
[...] a fazer hua charrua, sem mais meyos,
ou consignação, q.’ seis carpintr.os com seis
contram.e, e quatro serradores, dizendo as
cartas de Diogo de Mendonça, Prov.or dos
Armazens, com poucas regras; S. Maj.e he
servido q.’ se faça em Mojú hua charrua,
p.a ver se tem conta a Faz.a Real a
fazeremse Navios nesse Estado [...]
(OFÍCIO, 07 de out., 1737)
As queixas sobre da “Ribeira de Moju”
continuavam no governo de João de Abreu
de Castelo Branco (1737-1738). Em 02 de
novembro de 1737 escreve ao rei D. João V
sobre as despesas da Ribeira. Dizia o
governador que chegando ao Estado
encontrara estabelecida uma fábrica de
madeira para navios, mas que não encontrara
na secretaria do governo ordens de Sua
Majestade para o estabelecimento e as
despesas da referida fábrica. Antes, pelo
contrário, encontrara cartas do Secretário de
Estado em que informava não haver
4De acordo com Batista, “Neste Contrato, homens de negócio
na capitania recebiam a concessão para fabricarem madeiras
em instalações pertencentes ao Estado, com quantidades,
qualidades e preços pré-estabelecidos no Contrato.” Ibidem,
p. 25
consignação para tais despesas (CARTA, 02
de nov., 1737).
Este teria sido o principal motivo pelo
qual ordenara ao Provedor da Fazenda a não
continuar com a referida despesa. Todavia,
não fora o único.
Segundo o Governador, a Fábrica de
Madeira de Moju tinha o inconveniente de
“se empregarem naquelle trabalho cento e
sincoenta índios q.’ com grande prejuízo dos
moradores se tirarão das aldeias, e faltavão á
cultura de que também resultão os dízimos
da fazenda real” (CARTA, 02 de nov., 1737).
Tais índios, além de serem retirados dos
serviços dos moradores, ainda sofriam
abusos, pois eram enviados para as serrarias
de madeira particulares e também para
outros serviços, como o de remeiros das
canoas. Além disso, a fuga dos índios era
constante e os religiosos que detinham o
poder temporal sobre as aldeias negavam-se
a darem outros para substituí-los.
De acordo com Regina Batista, nas
fábricas de madeira a divisão do trabalho
“obedecia uma certa hierarquia onde parte
dos oficiais eram trazidos do reino (mestres,
maquinistas, construtores, ferreiros,
carpinteiros)” (BATISTA: 2013, p. 50). Apesar
disso, no entanto, o maior volume de mão de
obra era de índios. Desde as entradas no mato
para a escolha das árvores adequadas, a
derrubada, o corte dos galhos, o transporte
até os locais de embarque para a Ribeira e
depois, já no local, no processo de
beneficiamento em madeiras, era necessário
um contingente considerável. Assim, de
acordo com o que estabelecia o “Contrato de
Arrematação de Madeiras”,4 “Para o corte
das madeiras nas fábricas eram
disponibilizados sessenta índios para o
trabalho de seis meses”, quando deveriam ser
feitas as mudas (BATISTA: 2013, p. 42).5
Ribeira de Moju, a mão de obra indígena era
essencial – como era, aliás, essencial em todos
os demais afazeres no dia a dia do Estado.
5 O termo “muda” refere-se a substituição da mão de obra
indígena nas fábricas de madeira a cada seis meses, de
acordo com o que regia o Contrato de Arrematação das
madeiras. A muda e os descimentos eram, segundo Regina
Batista, as duas formas de conseguir mão de obra para as
fábricas de madeira. Cf. BATISTA: 2013, p. 74.
34
 José Roberto do Amaral Lapa, falando
sobre a ribeira da Bahia colonial, diz que a
madeira, ainda na árvore, exigia a atuação
dos serviços da feitoria, uma vez que “Era
necessário marcá-la, promover o corte,
provavelmente desgalhar, proceder à
arrumação, o transporte por diferentes meios
até a feitoria, onde esperariam outros
cuidados especiais” (LAPA: 2000, p. 40).
Tudo isso deveria ser feito racionalmente, “a
fim de se evitarem derrubadas inúteis,
esforços dispensáveis e morosidade nos
trabalhos...”. É necessário chamar a atenção
de que Lapa está falando do Estado do Brasil;
todavia, é evidente que, guardadas as
peculiaridades, a exploração madeireira na
Bahia, no Estado do Brasil, em muito se
assemelhava à de Moju, no Estado do Grão
Pará e Maranhão, principalmente levando-se
em consideração a efetiva participação da
mão de obra indígena.
Segundo Lapa, para o serviço junto à
mata eram contratados no Reino, pelo
governo, mestres carpinteiros “que
conhecessem profundamente os diferentes
espécimes vegetais”. Tais conhecimentos
giravam em torno das qualidades das
madeiras, suas utilidades específicas, já que
eram remetidas a Lisboa, de onde não raras
vezes vinham reclamações sobre as
dimensões e a qualidade das madeiras
enviadas nem sempre corresponderem ao
solicitado. Por conta disso, sugere Lapa, era
muito provável que esses mestres
carpinteiros “aceitassem em muitos casos a
experiência indígena”, principalmente no
que diz respeito à melhor época de
derrubadas, para o que o secular
conhecimento indígena das fazes da lua, da
observação atenta da característica das
árvores, seus frutos, flores, folhas, etc.
(LAPA: 2000, p. 41). Segundo Lapa:
A observação dos galhos, flores e frutos
objetivava o não aproveitamento de
árvores cuja força do tronco se dispersava
por essas partes; também devia-se
considerar a idade, o tempo de circulação
da seiva para evitar que o corte se desse no
momento de sua abundancia, o que
acarretaria doenças que estragariam a
madeira, as fases da lua, a estação
preferidas para o corte, pois se praticada
no inverno a madeira pela sua porosidade
não teria a mesma consistência; com efeito
o corte no outono, permitia a obtenção de
madeiras muito mais fortes, segundo
afirmavam os memorialistas do século
XVIII. A época propícia ao corte, evitaria
ainda a madeira verde, tão condenada
pelos velhos cronistas do Reino (LAPA:
2000, p. 41).
A utilização da mão de obra indígena
para trabalhar tanto na fabricação de
madeiras quanto na de embarcações não foi
apenas uma conveniência, dado o enorme
contingente indígena presente na colônia,
que em tese se configurava em mão de obra
em potencial – o que, porém, não significava
facilidade em acessá-la (ALMEIDA, 1990) –,
mas sim uma necessidade. No ambiente em
que estavam inseridos imperavam ordens
para além da força física, e que exigiam
conhecimentos profundos da floresta, seus
caminhos e as espécies arbóreas, fruto da
longa experiência, passados entre gerações e
que lhes permitiram acumular um “saber
venatório” (GINZBURG, 1986) caros aos
estrangeiros (europeus e africanos).
É neste sentido que em ofício do dia 03
de outubro de 1761, o então Governador e
Capitão-general do Estado do Pará e
Maranhão, Manuel Bernardo de Melo e
Castro, informa ao Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, sobre um requerimento
feito pelos administradores da Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão. Nele os administradores
solicitavam “se lhe concederem os quatro
índios que ensinassem os pretos a cortarem, e
conduzirem as madeyras para o estaleiro, em
q. estão fazendo o seu navio [...]” (OFÍCIO, 03
de out., 1761). O documento, além de mostrar
índios e negros trabalhando lado a lado,
mostra os indígenas detendo os
conhecimentos sobre os processos de corte e
condução das madeiras. Isso se dava não
apenas porque a mão de obra indígena seria
mais abundante que a negra, mas, e
sobretudo, devido ao conhecimento que
detinham da floresta, das árvores cujas
madeiras seriam mais apropriadas para uma
embarcação, assim como a própria feitura das
embarcações. Tais conhecimentos eram
35
decorrentes da vivência em meio a esse
ambiente em que tudo, praticamente, girava
em torno da água. Longe de se excluírem,
Regina Batista, que também utilizou o
mesmo documento, considera a escravidão
indígena e a africana se complementavam:
A intensificação da coexistência entre
brancos, negros e índios, neste período,
estabelecida pelas novas diretrizes
referentes à mão-de-obra, favoreceu ao
fortalecimento de novas redes de
sociabilidades formadas no cerne das
relações de trabalho, fossem elas na fábrica
das madeiras ou nos sítios dos moradores
(BATISTA: 2013, p. 69).
De maneira geral, a partir da
documentação é possível dimensionar a
necessidade de índios para trabalhar na
atividade madeireira. De acordo com o
Contrato de Arrematação das madeiras, os
índios, vindos principalmente das vilas e
lugares de índios do Marajó (BATISTA: 2013,
p. 51), deveriam se estabelecer na Ribeira de
Moju por seis meses, quando então eram
“trocados” por outros, voltando para suas
aldeias de origem. Evidentemente que, como
durante todo o período colonial, tais prazos
raras vezes eram respeitados e os abusos que
daí decorriam ocasionavam, entre outros, a
fuga de muitos índios. Por outro lado, o
processo de “muda” nem sempre era
suficiente para atender as demandas por
trabalhadores, tendo em vista que a fuga de
índios acabava ocasionando escassez de mão
de obra.
É neste sentido que, em um
requerimento de 30 de abril de 1743, os
interessados na fábrica de serrar madeiras do
Estado do Maranhão solicitavam a descida de
quatrocentos casais de índios dos sertões a
fim de serem utilizados como mão de obra, a
custo dos próprios solicitantes
(REQUERIMENTO, 30 de abril, 1743).
Apesar de o documento não dar indicação de
que a referida fábrica seja a de Moju, fica
evidente a necessidade de índios para a
continuação dos trabalhos.
A questão da mão de obra para a
“Ribeira de Moju” foi motivo de reclamação
também por parte do governo. Em 17 de
agosto de 1755, o Governador Interino do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, fr. Miguel
de Bulhões, envia um ofício para o secretário
de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de
Mendonça Corte Real, reclamando das
dificuldades em se conseguir índios para
trabalhar na fábrica de canoas estabelecida na
ribeira de Moju. Segundo Miguel de Bulhões:
Na Ribeira do Mojú, em que actualmente
se fabrica aquellas canoas q.’ são precisas,
assim p.a demarcações dos Reaes
Domínios de S. Maj.de como p.a a execução
de todas as mais diligências pertencentes
ao seu Real serviço achei hua desordem,
digna, ao meu parecer, de algua
providencia. Consiste a tal dezordem, em
q.’ mandandose extrahir das Aldeias
aquelles índios, que são precisos p.a
trabalharem nesta fábrica, da qual hé M.e
Theodózio Gls [Gonçalves], depois de
trabalharem nella aquelle tempo q.’ basta
p.a q.’ fiquem Mestres em fazer Canoas,
são restituídos as mesmas Aldeias, nas q.es
os Missionários os aplicão a este mesmo
trabalho, vindo por este modo a servir a
Real Fábrica de S. Maj.de só p.a ensinar os
d.os índios, de q.’ os Missionários recebem
depois toda a utilid.e; não sendo possível,
q. os d.os Missionários tornem a dar
aquelles índios p.a a mesma fábrica
(OFÍCIO, 17 de ago., 1755).
A “desordem” indicada pelo
Governador interino estava em relação à mão
de obra indígena. De acordo com Miguel de
Bulhões, os únicos beneficiados com o
processo de muda eram os missionários que
administravam os aldeamentos,
principalmente os da Companhia de Jesus. A
“Ribeira de Moju” serviria apenas de
“escola” para os índios, e que eles, depois de
aprenderem o ofício, voltavam para os
aldeamentos de origem e passavam a aplicar
tais conhecimentos em benefício dos
missionários. Como os missionários não
“devolveriam” esses índios para os serviços
das fábricas, estas ficavam prejudicadas, já
que os próximos índios a chegarem teriam
que aprender novamente todos os
procedimentos.
Como forma de remediar esse “dano”,
Miguel de Bulhões após saber de um índio
chamado Felipe Neri que “se achava no
matto junto a Villa Viçosa de Santa Cruz do
Camettá administrando algua gente”,
36
chamou-o à sua presença e, após convencê-lo
de “que não devia viver como bruto retirado
em hum sertão, mas como homem, onde
podesse ser útil a si e a República”, lhe
propôs “que desejava estabelecer com elle, e
a sua gente hua Aldeia, unicamente
destinada para o serviço da d.ta Fábrica”. A
recompensa seria de, nas palavras do
Governador, além de viverem “debaixo da
proteção de S. Maj.de”, seria de ter um pároco
que lhes celebrasse missas e administrasse os
sacramentos, além dos referidos salários
(OFÍCIO, 17 de ago., 1755).
O índio Felipe Nery se dispôs a descer
com sua gente, e o pedido para o
estabelecimento da dita Aldeia foi
prontamente atendido pelo rei, ordenando
que ela fosse estabelecida na forma proposta
pelo Governador interino, para atender a
necessidade de mão de obra da “Ribeira de
Moju”. O Governador e Capitão-General do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, remete um
descimento de índios do Rio Negro para a
dita Aldeia, deixando a cargo do Governador
interino o local onde ela seria estabelecida
(OFÍCIO, 13 de nov., 1756).
Ao saber da notícia da nova povoação, o
índio Felipe Neri prontamente informa a
Miguel de Bulhões seu desejo de estabelecer-
se nela juntamente com os índios do Principal
Joá, vindos do Rio Negro. Assim, Miguel de
Bulhões escreve ao mesmo Diogo de
Mendonça Corte Real, agora ex-secretário de
Estado da Marinha e Ultramar, informando
que:
Achão-se no referido sitio, assim os índios
do novo descimento, e os que pertencem a
Felipe Neri, como todos os mais, que achei
superior pelo seu continente. Com elles
tenho estabelecido huma competente
Povoação, na qual mandei logo erigir
Igreja, destinando-lhe Pároco com oitenta
mil reis de côngrua por anno para instruir
os mysterios da Fé aos índios pagãos, e
administrar os mais sacramentos aos que
se achão baptizados. Todos estes índios
tenho applicado ao serviço da Fábrica das
canoas daquella Ribeira, e com este
6Os aldeamentos missionários eram locais para onde índios
de diferentes nações eram “descidos” dos seus locais de
origem e agrupados afim de serem mais facilmente
estabelecimento espero sem duvida
remediada a falta que havia de índios
capazes de trabalhar na referida Fábrica
pelo motivo, que ponderei a V. Ex.ª, qual
era o servir a mesma Fábrica de escolla
para os índios em utilidade dos
Missionários (OFÍCIO, 13 de nov., 1756).
Como eram considerados mão de obra
livre – pelo menos teoricamente, já que
provinham dos aldeamentos missionários6 –,
os índios oficiais (de carpinteiro e calafate) e
os demais que trabalhavam na Ribeira
deveriam ser remunerados. O Regimento das
Missões, de 1686, estabelecia que fosse pago
duas varas de pano de algodão por mês a
cada índio que trabalhasse no serviço real. No
entanto, em carta de 22 de março de 1740 o rei
D. João V escrevia ao Governador e Capitão-
General do Estado do Maranhão e Grão-Pará,
João de Abreu Castelo Branco, sobre uma
petição dos índios da “Ribeira de Moju” em
que queixavam-se de que o Provedor da
Fazenda Real não lhes mandava pagar mais
que as duas varas de pano de algodão grosso
por mês. Solicitavam os índios que “fosse
servido ordenar que se lhes pague as oitto
varas de panno por mez, na forma que atté
agora se uzou” (CARTA, 22 de mar., 1740).
Meses depois, em 10 de outubro de 1740, João
de Abreu Castelo Branco escrevia
respondendo ao rei D. João V dando seu
parecer sobre a situação. De acordo com o
Governador, ainda que o trabalho ordinário
dos índios devesse ser com as duas varas de
pano por mês, como previa a legislação,
[...] parece ser contra a equidade, que os
que sabem trabalhar nos off.os de
carpinteiros, serradores, e torneiros se lhes
satisfaça com as mesmas duas varas de
panno, ao mesmo tempo que qualq.r
official branco destes offi.os leva dez, ou
doze tostoens por dia...
Continuava o Governador dizendo que
seu antecessor, Antônio de Barros, havia
mandado pagar “a estes índios officiaes a oito
varas de panno, e alguns a seis, e outros a
quatro, conforme a differença que o mestre
da Ribr.a Theodozio Lopes achava no seu
catequizados e, posteriormente, transformados em mão de
obra.
37
serv.o”, e isso, segundo ele, é o que se deveria
praticar aos suplicantes (CARTA, 10 de out.,
1740).
Os oficiais brancos a quem o
Governador se referia eram os europeus
trazidos do Reino para o serviço na Ribeira.
Enquanto estes ganhavam um soldo maior,
os oficiais índios, pelo mesmo trabalho,
recebiam menos. Por isso o embarcações, de que tanto se necessita para
descontentamento.
Ao fazerem uma petição7 diretamente
ao rei, os oficiais índios da “Ribeira de Moju”
deixavam clara a importante posição que
detinham dentro do sistema econômico do
Estado e que sabiam barganhar benefícios em
seu favor. Quando estas não surtiam efeitos,
ou quando seus efeitos estavam aquém do
desejado, os índios recorriam a uma prática
muito comum: desertar, fugir. Na
documentação colonial são constantes as
queixas de deserções dos índios da Ribeira,
que deixavam não apenas os trabalhos
inacabados, mas que comprometiam toda
uma estrutura social, econômica e política do
Estado.
Em carta ao rei de 11 de novembro de
1753, Mendonça Furtado apontava
dificuldades para que a expedição de
demarcação dos limites estabelecidos pelo
Tratado de Madri (1750) partisse para o Rio
Negro. O problema estaria na falta de meios,
principalmente pelo número insuficiente de
canoas. Escrevia Mendonça Furtado:
Fico na diligência de pôr pronto tudo o que
é preciso para esta expedição, que sendo
grande ainda se faz mais dificultosa pela
falta de meios que há nesta terra, porque,
só pela fatura das canoas que são precisas,
é necessário maior tempo pela falta que há
de oficiais, e deserções contínuas de índios
(CARTA, 11 de nov., 1753).
No ano seguinte as queixas de
Mendonça Furtado continuam, agora
dirigidas a seu irmão, Sebastião José de
Carvalho e Melo. Em carta de 14 de junho de
1754, relembra de que já o avisara sobre ser
“impossível o poder achar as muitas canoas
que são precisas para esta expedição das
7Infelizmente não encontramos a referida petição, apenas a
sua referência no documento citado.
demarcações, nos moradores, e que não havia
outro remédio mais do que mandá-las
fabricar por conta da fazenda real” (CARTA,
14 de jun., 1754). O problema, alegava, era a
fuga dos índios, principalmente oficiais
carpinteiros. Sem grande número de índios
oficiais, escrevia, “já V. Ex.ª vê a desordem e
a falta que fariam na construtura das
esta expedição”. Para Mendonça Furtado:
Esta deserção se faz ainda mais
escandalosa, quando notoriamente consta
que estes mesmos desertores são
empregados, logo que chegam às suas
povoações, no serviço dos missionários,
fazendo-se canoas para venderem às
grandes serrarias de madeiras, além de
outras obras em que os empregam.
Também têm fugido desta cidade do
serviço de S. Maj. os que constam da
relação inclusa, e, finalmente, não há meio
algum de os fazer parar, porque nas
aldeias não só não são castigados, mas,
contrariamente, favorecidos e amparados,
e sem estes índios já V. Ex.ª sabe que nada
se pode fazer (CARTA, 14 de jun., 1754).
As queixas de Mendonça Furtado
corroboram as de Miguel de Bulhões, de que
a “Ribeira de Moju” servia apenas de escola
para os índios, e que os beneficiados com ela
eram unicamente os religiosos,
principalmente os da Cia. de Jesus. As
mesmas queixas persistem em carta de 10 de
setembro de 1754: a falta de canoas para a
expedição por falta de índios oficiais e a
conivência dos religiosos nas deserções.
Informava Mendonça Furtado que
“finalmente, não é possível fazer conter essa
gente, nem será fácil conseguir-se, quando
elas vão buscar as suas aldeias e nelas são
agasalhados com todo o bom modo e até me
dizem que com louvor” (CARTA, 10 de set.,
1754). Por conta da falta de índios oficiais
para fabricar as canoas devido às continuadas
deserções, a partida da expedição para o Rio
Negro só se daria 2 de outubro de 1754.
38
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa região como a Amazônia, o meio
ambiente desde muito cedo condicionou seus
habitantes a utilizarem os rios como meio de
locomoção e, nestes, as embarcações (canoas)
como o meio essencial de transporte. A
quantidade e a qualidade das madeiras da
região logo chamaram a atenção dos
primeiros colonizadores, principalmente
levando-se em conta a utilidade da madeira
para a construção em geral e para a
construção de embarcações em particular.
Nas diversas fábricas reais de madeira
espalhadas pela região amazônica, como a
Fábrica de Madeira de Moju (a “Ribeira de
Moju”), a mão de obra indígena era
fundamental. Os indígenas, além do
conhecimento exímio da região, das diversas
espécies arbóreas e seus diversos fins,
dominavam as técnicas de fabricação de
embarcações. Tendo em vista a dificuldade
de locomoção, uma vez que o meio de
deslocamento era fundamentalmente por
água através dos rios, a questão da mão de
obra indígena para a “Ribeira de Moju” foi,
desde o início, motivo de muitos embates
entre agentes coloniais e missionários que
controlavam os aldeamentos de onde tais
índios provinham.
Por um lado, a maneira como Mendonça
Furtado refere-se às ordens religiosas, como
acobertadoras das fugas dos índios, reflete
em parte os conflitos ideológicos entre o
governador e elas, especialmente a
Companhia de Jesus, que não à toa em breve
seria expulsa dos domínios portugueses. Por
outro, tendo conhecimento de que – mesmo
remunerados – muitos índios oficiais fugiam
e voltavam para as aldeias de origem, onde
seriam “agasalhados com todo o bom modo”
e onde os missionários utilizariam seus
conhecimentos adquiridos na “escola”, que,
segundo o fr. Miguel de Bulhões, era a
“Ribeira de Moju”, em benefício da própria
Companhia, pensamos que a fuga desses
índios se dava não apenas por conta do
salário que recebiam – apesar das queixas
neste sentido –, mas também pelo
reconhecimento que tinham entre seus pares.
Ser oficial canoeiro era uma função
importante entre os indígenas, o que lhes
rendia certo respeito. Na Ribeira de Moju,
apesar da grande importância desses índios,
eles eram vistos como uma mão de obra
substituível, até por que, como era
estabelecido no “Contrato”, deveriam ser
“trocados” por outros a cada seis meses, o
que não quer dizer que de fato acontecia.
Eram nos aldeamentos missionários e
nas pequenas povoações que a importância
dos mestres e oficiais índios era, de fato,
reconhecida. Nos aldeamentos, diferente da
Ribeira, eles tinham um tratamento
diferenciado, status, já que possuíam um
ofício específico que os fazia importantes e
bastante requisitados.
REFERÊNCIAS
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colonização da Amazônia Ocidental (1750-
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cultura nas aldeias coloniais do Rio de
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período colonial e as atuais serrarias. In:
Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília,
v. 15, nº. 3, set./dez. 1998.
BATISTA, Regina Célia Corrêa. Pau pra toda
obra: atividade madeireira no Estado do
Maranhão e Grão-Pará na primeira metade
do século XVIII. Monografia de
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madeireira em uma vila da Amazônia: a Vila
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Mestrado em História Social da
Amazônia, Universidade Federal do
Pará, 2013.
FERREIRA, Elias Abner Coelho. No Estaleiro
dos Índios: a construção de embarcações
na Amazônia colonial portuguesa. In:
39
 Revista Estudos Amazônicos, vol. 13, nº 1,
2015.
______. Oficiais canoeiros, remeiros e pilotos
Jacumaúbas: mão de obra indígena na
Amazônia colonial Portuguesa (1733-1777).
Dissertação de Mestrado em História
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GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais.
Morfologia e história. São Paulo: Cia. das
letras, 1986.
LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a
carreira da Índia. Edição fac-similada. São
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GUALBERTO, Antônio Jorge Pantoja.
Embarcações, educação e saberes culturais em
um estaleiro naval da Amazônia.
Dissertação de Mestrado em Educação,
Universidade do Estado do Pará, Belém,
2009.
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Belém, 07.10.1737. Para o secretário de
Estado da Marinha e Ultramar, António
Guedes Pereira. Projeto Resgate/AHU,
Pará (avulsos), cx. 20, documento 1876.
Conselho Ultramarino. Parecer. Lisboa,
23.01.1734. Para o rei D. João V. Projeto
Resgate/AHU, Pará (Avulsos), cx. 16,
documento 1468.
D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa, governador
interino do Estado do Maranhão e Pará,
Bispo do Pará. Ofício. Pará, 17.08.1755.
Para o secretário de Estado da Marinha e
Ultramar, Diogo de Mendonça Corte
Real. Projeto Resgate/AHU, Pará (avulsos),
Cx. 39, documento 3625.
D. fr. Miguel de Bulhões e Sousa, governador
interino do Estado do Maranhão e Pará,
Bispo do Pará. Ofício. Pará, 13.11.1756.
Para o ex-secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça
Corte Real. Projeto Resgate/AHU, Pará
(avulsos), Cx. 41, documento 3816.
D. João V, Rei. Carta. Lisboa, 22.03.1740. Para
o Governador e Capitão-General do
Estado do Maranhão e Grão-Pará, João
de Abreu Castelo Branco. Projeto
Resgate/AHU, Pará (avulsos), Cx. 23,
documento 2202, anexo.
Interessados na fábrica de serrar madeiras.
Requerimento. 30.04.1743. Para o rei D.
João V. Projeto Resgate/AHU, Pará
(avulsos), Cx. 25, documento 2401.
João de Abreu de Castelo Branco, governador
e capitão-general do Estado do
Maranhão e do Pará. Carta. Belém,
02.11.1737. Para o rei D. João V. Projeto
Resgate/AHU, Pará (avulsos), cx. 20,
documento 1905.
João de Abreu Castelo Branco, governador e
capitão-general do Estado do Maranhão
e Pará. Carta. Belém do Pará, 10.10.1740.
Para o rei D. João V. Projeto Resgate/AHU,
Pará (avulsos), Cx. 23, documento 2202.
Manuel Bernardo de Melo e Castro,
governador e capitão-general do Estado
do Pará e Maranhão. Ofício. Pará,
03.10.1761. Para o secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado. Projeto Resgate/AHU,
Pará (avulsos), cx. 50, documento 4607.
Matias da Costa e Sousa, provedor da
Fazenda Real da capitania do Pará. Carta.
Belém do Pará, 07.09.1733. Para o rei D.
João V. Projeto Resgate/AHU, Pará
(Avulsos), cx. 15, documento 1405.
 Marcos Carneiro de Mendonça -
Amazônia na Era Pombalina – MCM-AEP
Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
governador e capitão-general do Estado
do Pará e Maranhão. Carta. Pará,
11.11.1753. Ao rei. MCM-AEP, vol. 1, p.
534.
Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
governador e capitão-general do Estado
do Pará e Maranhão. Carta. Pará,
14.06.1754. A Sebastião José. MCM-AEP,
vol. 2, p. 176-177.
Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
governador e capitão-general do Estado
do Pará e Maranhão. Carta. Pará,
10.09.1754. A Sebastião José. MCM-AEP,
vol. 2, p. 210-211.
40
EXPRESSÕES MATERIAIS
do sistema de objetos culturais do povo Anambé

* Irana Bruna Calixto Lisboa

Resumo: Este trabalho versa sobre as formas de expressões do povo indígena Anambé,
especificamente, a cultura material produzida pelo grupo. A particularidade de cada povo indígena
permite a variedade de técnicas e critérios artísticos para a produção dos objetos. O artigo elucida
os significados atribuídos pelos Anambé aos seus objetos enquanto expressões étnicas e culturais.
Para produção e reprodução da cultura material é indispensável a aplicabilidade dos saberes
indígenas difundidos entre os Anambé, bem como a apropriação de novos elementos por meio de
intercâmbios culturais. A metodologia adotada foi pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo. Os
interlocutores ressaltaram a importância da cultura material ao destacá-la como uma marca que
representa a identidade dos Anambé.
Palavras-chave: Saberes Indígenas. Formas de Expressão. Objetos Culturais. Cultura Material.
Anambé.

INTRODUÇÃO viveu com a população a qual ele estava

Este artigo versa sobre a cultura material
Anambé, que está inserida no cotidiano do
grupo de diversas formas e atrelada no
contexto social, cultural, político e
econômico. O trabalho pretende explorar a
incorporação das coisas à vida dos Anambé
através da reflexão sobre a cultura material
indígena, bem como os significados
atribuídos aos objetos culturais.
O presente trabalho foi elaborado por
meio da pesquisa desenvolvida para o
mestrado que resultou na dissertação
denominada “Cultura Material e Memória:
um estudo sobre a coleção etnográfica
Anambé do alto rio cairari (PA)” defendida
em 2017, pelo Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia (PPGSA/
UFPA), na área de concentração em
Antropologia.
A pesquisa antropológica realizada em
campo exige que o pesquisador se desloque
para uma região em busca de informações
sobre os fenômenos sociais que se propõe a
estudar. Nesta perspectiva, Bronislaw
Malinowski utilizou o método etnográfico e
pesquisando. As observações em campo e os
materiais coletados resultaram na sua obra
“Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, que
se tornou uma referência indispensável para
os antropólogos e estudantes de
Antropologia. Malinowski (1976) afirma que
os fenômenos sociais devem ser analisados
de forma holística. Segundo o autor:
o etnógrafo de campo deve cobrir séria e
sobriamente os fenômenos em cada
aspecto estudado da cultura tribal, não
estabelecendo diferenças entre aquilo que
é lugar comum, monótono ou vulgar, e
aquilo que o surpreende por ser espantoso
e raro. Ao mesmo tempo, toda a amplitude
da cultura tribal deve ser pesquisada em
todos os seus aspectos. A consistência, a
lei, e a ordem que se revelam em cada
aspecto contribuem, simultaneamente,
para a construção de um todo coerente”
(MALINOWSKI, 1976, p. 25).
Ingold e Lucas (2007) asseguram que a
antropologia não é um estudo de pessoas,
mas sim uma maneira de se estudar com as
pessoas, ou seja, o antropólogo aprende a ver,
a ouvir e a sentir as coisas gradativamente.

* Graduada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia (UFPA). Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ UFPA). Endereço: Passagem Doutor Luís Régis, nº 79. Bairro: Sacramenta. Cep:
66123460. E-mail: iranabruna@hotmail.com

41
Esta ciência proporciona o aprendizado sobre
o mundo, os seres humanos e as sociedades.
A antropologia também fornece uma
educação perceptiva do mundo, abrindo
nossos olhos para outras formas de ver o
mundo, possibilitando novas experiências e
descobertas.
Ao longo da incursão em campo, o
antropólogo vive em dois mundos distintos,
pois adentra no mundo cultural do grupo
estudado e, ao mesmo tempo, permanece em
seu mundo cultural de origem. De acordo
com Evans–Pritchard (2005):
Na verdade, entra-se numa outra cultura,
mas ao mesmo tempo guarda-se uma
distância dela. Não é possível ao
antropólogo tornar-se verdadeiramente
um Azande, um Nuer ou um beduíno, a
atitude mais digna a seu respeito talvez
seja a de manter-se, no essencial, apartado
deles. Pois, de qualquer modo, sempre
seremos nós mesmos e nada mais –
membros de nossa própria sociedade,
visitantes numa terra estranha. Talvez
seja melhor dizer que o antropólogo vive
simultaneamente em dois mundos
mentais diferentes, construídos segundo
categorias e valores muitas vezes de difícil
conciliação. Ele se torna, ao menos
temporariamente, uma espécie de
indivíduo duplamente marginal, alienado
e de dois mundos (EVANS-PRITCHARD,
2005, p. 246).
Para o desenvolvimento da pesquisa
utilizei o método etnográfico na perspectiva
de entender a correlação existente entre os
Anambé e os seus objetos culturais. O
método etnográfico foi empregado por meio
da pesquisa de campo, mediante conversas
informais, entrevistas semiestruturadas e
gravadas, bem como levantamento
bibliográfico e documental na perspectiva de
compreender os significados atribuídos à
cultura material entre os Anambé.
O POVO ANAMBÉ
Segundo Nimuendaju (1948), o termo
“anambé”, na Língua Geral, é aplicado a um
considerável número de espécies de pássaros
da família Cotingidae. Em campo, os
interlocutores confirmaram que anambé é o
nome de um pássaro, e os “índios antigos”
escolheram para ser o nome do grupo
indígena.
Os Anambé foram considerados
extintos (NIMUENDAJU, 1948). Darcy
Ribeiro (1996) não mencionou os Anambé em
seu levantamento sobre os grupos indígenas
do Brasil. O grupo não estava extinto, apenas
desaparecera da região que ocupava
tradicionalmente, na margem esquerda do
rio Tocantins, especificamente no alto Pacajá.
De acordo Mattoso (1908), os Anambé
residiam entre os rios Pacajá e Irinauá.
Depois, voltaram a aparecer na margem
direita do rio Tocantins, na região do rio
Cairari.
Napoleão Figueiredo (1983) descreve a
forma pela qual o grupo chegou ao rio
Cairari, especificamente à região do Sipoteua:
O atual aldeamento Anambé está
localizado no rio Cairari, acima do Lago
Grande e em frente ao furo do igarapé
Bacuri. Até onde vai a memória tribal, as
informações colhidas indicam que o grupo
veio para esse rio, das cabeceiras do rio
Moju, após luta com os Gaviões que o
expulsaram desse território. Desceram o rio
Moju, sempre perseguidos pelos Gaviões, e
encontraram-se com a população
interiorana desse rio, na altura do igarapé
Cachoeira, nas proximidades do igarapé
Água-Clara; cruzaram o divisor de águas
entre os rios Moju e Cairari e levantaram
aldeia no lugar Sipoteua, nas proximidades
do igarapé do mesmo nome
(FIGUEIREDO, 1983, p. 75).
Segundo Figueiredo (1983), o
comerciante Bernardino Inácio dos Santos
estabeleceu contato e amizade com os
Anambé quando estavam localizados em
Sipoteua. Posteriormente, construíram uma
aldeia na foz do igarapé do Marinheiro, nas
proximidades do Lago Grande, na Aldeia
Velha.
Anaíza Vergolino (1990) afirmou que
Bernardino morou no Cairari, e então
convenceu os Anambé a se instalarem no
Lago Grande do Cairari, onde fixaram-se e
após um tempo mudaram-se para outros
quatro lugares próximos ao Lago.
42
 Segundo o Processo
FUNAI/BSB/1036/1979, o povo Anambé
ocupou várias aldeias às margens do Cairari
(Sipoteua, Marinheiro, Queimada Grande,
Urubu), sempre descendo o rio até chegar à
margem direita do Cairari, entre o igarapé
Bacuri e o furo do Bacuri. Nessa perspectiva,
o mapa a seguir mostra o deslocamento do
grupo (Figura 1).
A Terra Indígena (T.I) foi demarcada no
ano de 1984, pela 2ª DR/FUNAI, e
homologada em 29 de outubro de 1991, pelo
Decreto nº 304, publicado no Diário Oficial da
União de 26 de dezembro do mesmo ano. A
Terra Indígena Anambé faz parte da
Mesorregião do Baixo Tocantins, com área de
aproximadamente 8.150 hectares, sob a
jurisdição da Administração Executiva
Regional (ADR) da Fundação Nacional do
Índio de Marabá. A dimensão da T.I. não
coincide com a demarcação realizada em
1976, que abrangia as duas margens do
Cairari. A redução da área foi uma decisão do
grupo, que alegou não utilizar os dois lados
do rio (Processo FUNAI/BSB/1036/1979).
Figura 1 - Mapa do deslocamento dos Anambé.
Fonte: Figueiredo, 1984.
No momento, o povo indígena Anambé
habita a margem esquerda do alto rio Cairari,
afluente do rio Moju, que tem seu curso no
1 Embarcação de madeira com motor utilizada para o
deslocamento por água.
município de Moju, no estado do Pará. A
língua materna dos Anambé faz parte do
tronco linguístico Tupi, família linguística
Tupi-Guarani. Todavia, a língua anambé
perdeu a vitalidade e adotaram o português
como língua corrente.
O trajeto percorrido para chegar até a
Aldeia Anambé ocorre por meio de um
ônibus com destino à Mocajuba. Em seguida,
é necessário pegar uma condução rumo à Vila
Elim, localizada às margens do rio Cairari,
onde a chegada na aldeia acontece por meio
de rabeta1.
Em torno da Terra Indígena Anambé
desenvolveram-se dois centros
populacionais, que permitem o contato do
grupo indígena com a sociedade nacional. A
primeira é a cidade de Mocajuba, situada às
margens do rio Tocantins, com população de
26.731 habitantes, distribuídos em uma área
de 870, 809 km2 (IBGE, 2010); e a segunda é a
Vila Elim, um vilarejo com aproximadamente
800 habitantes.
Os Anambé deslocam-se
frequentemente até a cidade para vender
farinha aos comerciantes da feira de
Mocajuba, comprar outros gêneros
alimentícios, receber o auxílio do Bolsa
Família e as aposentadorias a que têm direito,
além de darem continuidade aos estudos,
principalmente o ensino médio.
Na Terra Indígena Anambé residem 186
pessoas, distribuídas em seis núcleos criados
pela comunidade, que considerou adequado
a organização do espaço desta maneira. No
início da T.I. encontra-se o primeiro núcleo.
Neste núcleo há criações de animais
domésticos como galinhas, bois, vacas,
cavalos e um bode, mas não dispõe de rádio
e água tratada. Há dois núcleos bem
próximos – núcleo da escola e núcleo do
posto de saúde. Estes dois núcleos têm
melhores condições e são os locais para onde
as pessoas dirigem-se quando buscam
assistência à saúde e também o acesso à
escola. Os núcleos contam com fornecimento
de água encanada através da caixa d'água e
comunicação via rádio. No centro da T.I. há
um núcleo próximo à mata fechada, o local
43
não possui água tratada e nem rádio. Outro
núcleo também não há água tratada e nem
serviço de rádio. No final da T.I. localiza-se o
último núcleo.
As atividades de subsistência do grupo
baseiam-se na caça, pesca, agricultura e
produção de farinha. As casas são
construídas com a madeira retirada do
território, cujo modelo é similar ao regional,
dividida em sala, cozinha e quartos; e o
banheiro é construído fora da casa.
Ao redor das casas existem árvores
frutíferas de goiaba, muruci, manga, abacaxi,
limão, entre outras. Eles criam galinhas e
patos nos terreiros de suas casas e plantam
principalmente mandioca, milho, abóbora,
melancia e melão.
CULTURA MATERIAL INDÍGENA:
ALGUNS APORTES TEÓRICOS
As sociedades indígenas utilizam-se de
expressões da cultura material nas suas
práticas cotidianas, que podem ser a partir das
formas utilitárias que assumem, em ocasiões
de rituais ou como marcadores de identidade.
Os indígenas, portanto, relacionam-se com as
suas coisas, que agregam informações a
respeito do grupo ao qual pertencem. Por isso,
torna-se imprescindível estudar os artefatos
indígenas para compreender o contexto
sociocultural dos Anambé.
Neste sentido, Daniel Miller (2013, p. 12)
indicou que “(...) uma apreciação mais
profunda das coisas nos levará a uma
apreciação mais profunda das pessoas”.
Além disso, o autor menciona que para
compreendermos a nossa humanidade é
indispensável levar em consideração a
materialidade das coisas que cercam os
indivíduos. Por outro lado, as coisas nos
constroem, ou seja, existe uma relação social
entre os humanos e as suas coisas; como
indica o autor, nenhum ato humano é
realizado sem as coisas que o cercam. No que
diz respeito ao estudo em pauta, a
abordagem envolve a relação que o povo
Anambé estabelece com as suas coisas, no
caso, os componentes da sua cultura material
para, a partir daí, evidenciar a amplitude do
significado de ser Anambé.
Miller (2013) afirma que os objetos têm
a capacidade de determinar o
comportamento e a identidade humana, já
que os objetos constroem os indivíduos e
estes constroem seus objetos, portanto, há
uma relação de construção mútua entre eles.
A cultura material consiste no conjunto
de itens que podem ser pensados como artes,
objetos utilitários e artesanatos (FARGETTI,
2010), por exemplo. Os estudos de cultura
material dizem respeito à análise dos
artefatos, do ponto de vista da sua função, do
seu valor como documento histórico,
artístico, simbólico e de identificação étnica
(RIBEIRO, 1988).
Nos estudos referentes à cultura material
deve-se fazer uma investigação minuciosa,
que permita desvendar não só as técnicas de
confecção, como também os usos e os
significados de cada artefato no seio da
sociedade que os produziu e/ou os utiliza no
seu cotidiano (VIDAL; SILVA, 1995). Nestes
termos, constata-se que nas aldeias indígenas
a cultura material participa decisivamente da
produção e da reprodução social, definindo
relações individuais e coletivas, confirmando
papéis sociais e reforçando valores
fundamentais (VELTHEM, 2007).
Alguns trabalhos sobre populações
indígenas abordaram a relação existente
entre a cosmologia e a cultura material, tais
como Santos-Granero (2012) e Stephen Hugh-
Jones (2012), por exemplo.
Na introdução do livro “La Vida Oculta
de Las Cosas: teorias indígenas de la materialidade
y la personalidade”, Santos-Granero (2012)
ressaltou que os objetos fazem parte das
cosmologias e dos imaginários dos povos
indígenas amazônicos. A função principal
dos objetos é a criação e a constituição dos
humanos, dos animais e das plantas. O autor
salienta, ainda, que na epistemologia da
cultura material ameríndia os objetos
surgiram como seres primordiais, pois estes
eram partes dos corpos dos antepassados
ameríndios, isto é, os objetos são os seres
criadores das pessoas (Idem).
Outro autor que aborda a cultura
material na cosmologia indígena é Stephen
44
Hugh-Jones (2012), quando trata do mito de
criação dos Tukanos que habitam a região de
Vaupés. No mito em questão, evidenciou-se
o papel de cada objeto na criação do mundo.
Ademais, esse grupo indígena acredita que
os objetos representam as partes do corpo
humano.
Diferentemente dos grupos indígenas
estudados pelos autores citados, no caso dos
Anambé, o povo não tem um discurso sobre
a inserção dos objetos indígenas no período
da criação do mundo.
Egon Schaden, em seu livro “Aspectos
fundamentais da cultura Guaraní”,
publicado em 1974, abordou as modificações
da cultura material dos Guaraní. Schaden
afirma que a transculturação provocou
transformações no âmbito da cultura material
e imaterial dos Guarani.
Para Fernando Ortiz (1983)
transculturação consiste no
compartilhamento de culturas que provoca
mudanças de uma cultura diante da outra, a
partir do enlace de culturas distintas. A partir
das contribuições de Schaden, constata-se
que houve uma mudança na cultura material
Anambé gerada pela transculturação entre
outros povos indígenas e a sociedade
nacional. A partir disso, ocorreu a inserção de
elementos novos, que foram sendo
apropriados pelos Anambé ao longo do
tempo.
A INSERÇÃO DOS ARTESANATOS
NA VIDA DOS ANAMBÉ
Para a constituição do artesanato
Anambé na atualidade houve o empenho do
grupo em prol do desenvolvimento de seus
adornos, assim como a dança, o canto e a
língua materna. A fotografia de Napoleão
Figueiredo com os Anambé (Figura 2),
realizada em uma maloca, no final da década
de 1960, revelou o formato dos rostos e olhos,
a textura lisa dos cabelos pretos, pés
descalços, postura corporal, roupas, e o colar
utilizado por uma das mulheres na foto.
Além disso, Anaíza Vergolino relatou que
durante a estadia em campo não presenciou
nenhum ritual Anambé.
Dando continuidade ao relato sobre o
estabelecimento do artesanato no contexto do
grupo, na entrevista realizada com a linguista
Risoleta Julião, indaguei sobre o uso e
confecção de adornos corporais. A
pesquisadora respondeu que os adornos
corporais entre os Anambé foram inseridos a
partir do contato deles com outros povos
indígenas:
Quando eu cheguei lá; a primeira vez que
eu fui lá, nada! Eles não usavam nada,
absolutamente nada! Depois de um certo
tempo, aí que eles começaram a sair, né,
depois que eles começaram, porque
quando eu ia lá, eles não saíam da aldeia;
eles, no máximo, só iam até Mocajuba, que
também não tinha estrada, não tinha nada;
pra gente chegar lá era super complicado,
tanto que tudo quem resolvia pra eles era
praticamente esse seu João Simão. É que
eles tinham vindo a Belém, aqui, no tempo
do Barata, Durica dizia. Mas aí quando
eles começaram a sair, Pedrinho começou
a fazer aqueles capacetes, a partir dos
Kayapó; eles começaram também a vir pra
casa do índio fazer tratamento, naquele
contato com os outros índios eles
começaram a fazer.[...] Quando eu cheguei
lá, a única coisa que eles ainda faziam era
os cestos. Eu não sei se hoje ainda eles
fazem, depois eles resolveram fazer
alguma coisa de colar, de capacete como
eles dizem né, mas já se apoiando em
outros, em outros índios, no trabalho de
outros índios; eles mesmo não tinham
(Fonte: Entrevista realizada com Risoleta
Julião, 2015)
Risoleta Julião lembrou que no início de
sua pesquisa junto aos Anambé eles não
usavam adornos indígenas. Entretanto,
quando eles começaram a deslocar-se para
fora da aldeia, o artesanato começou a ser
produzido. Segundo ela, tendo como base os
objetos dos índios Kayapó e de outros povos
indígenas que faziam tratamento de saúde na
Casa de Atenção à Saúde Indígena (CASAI),
em Icoaraci, distrito de Belém. A
pesquisadora comentou sobre os
intercâmbios culturais promovidos entre as
populações indígenas, que foram
oportunizados durante os tratamentos de
45
saúde realizados em um local específico
destinado a acolher os povos indígenas no
estado do Pará.
Figura 2 - Napoleão Figueiredo com os Anambé,
em 1969.
Fonte: Página do Facebook do Laboratório de
Antropologia da UFPA.
Em suma, a partir da afirmação de
Risoleta Julião, pode-se inferir que os
Anambé incorporaram elementos de
referência de outras populações indígenas e,
a partir de então, construíram novos objetos
culturais baseados nesses referenciais.
A antropóloga Anaíza Vergolino e a
linguista Risoleta Julião realizaram trabalhos
junto ao grupo em épocas diferentes. A
primeira no final da década de 1960 e a
segunda no início da década de 1990, porém,
ambas discorreram sobre a relação dos
Anambé com os seus objetos culturais.
Conforme o relato de Anaíza Vergolino,
durante os anos 1960 não havia nenhum tipo
de artesanato, ritual ou práticas de grafismo.
A única característica étnica dos Anambé era
a língua materna, enquanto Risoleta Julião
mencionou o despertar da inserção do
artesanato nos anos 1990. Portanto, o
contexto social da comunidade encontra-se
em transformação.
As populações indígenas do Brasil estão
vivendo suas manifestações artísticas e
culturais, que tomam as mais diversas
formas, segundo as etnias existentes no país.
2Fibra retirada da entrecasca das árvores da família
Annonaceae.
Cada grupo indígena tem um estilo próprio
na elaboração de seus artesanatos. Além
disso, a arte indígena pode abarcar três
aspectos: técnico, artístico e ritual. O primeiro
baseado na técnica de elaboração, o segundo
baseado no critério da arte e o terceiro
voltado para a arte dos objetos utilizados nos
rituais (MELATTI, 1993).
Os três aspectos da arte indígena estão
presentes entre os Anambé por meio de
técnicas de confecção de artesanato
peculiares. Por exemplo, ao elaborar colares e
pulseiras com os ossos de jiboia, eles utilizam
os ossos da serpente porque ela não é
peçonhenta. O procedimento necessário para
utilizá-la nos objetos culturais é o de enterrar
a cobra morta por alguns dias, para que
restem apenas os ossos que serão usados na
feitura dos artesanatos.
Outra técnica de confecção de
artesanato é de fritar o bambu (Bambusa
vulgaris) por três minutos no óleo para que
mude de tonalidade, tornando-se mais
escuro. O aspecto artístico peculiar de cada
artesão, que imprime a sua personalidade e
criatividade em suas peças. O aspecto ritual
consiste na forma de uso das saias de enviras2
(Xylopia frutescens Aubl.) ou saias de
sementes de tento3 (Adenanthera pavonina L.),
adornos de cabeça masculinos e femininos,
adornos de braço feminino utilizados em
apresentações na cidade de Mocajuba ou na
Vila Elim, brincadeiras no interior da aldeia e
a festa do Dia do Índio.
Hoje, na aldeia, os artesanatos
produzidos com maior frequência são os
anéis, paus de cabelo, cordões, pulseiras,
brincos e cocares. Assis e Neves (2013)
afirmaram que as matérias-primas utilizadas
na elaboração dos artesanatos eram as
seguintes: sementes, ossos de jiboia, as
cartilagens e peças de casco de jabuti. Além
disso, são utilizados dentes de macaco e de
catitu, cascos de tatu, cascas de coco, bambu
(Bambusa vulgaris) e ossos de boi. As sementes
de uma planta chamada “lágrimas de Nossa
3 De acordo com Júnior et al. (s.d.) é uma semente florestal,
leguminosa pertencente à família Fabaceae, subfamília
Mimosoideae, conhecida popularmente como tento-
vermelho, carolina e saguê. Disponível em:
<http://www.ebah.com.br/content/ABAAAgbhUAB/arti
go-tento-carolina>. Acesso em: 7 nov. 2016.
46
Senhora”, “tento”, “carrapatinho”, inajá
(Maximiliana maripa (Aubl.) Drude), morototó
(Didymopanax morototonii), caroço de açaí
(Euterpe oleracea), assim como de outras
sementes, que os interlocutores desconhecem
a nomenclatura, mas encontram no interior
da Terra Indígena. As plumas e penas são de
galinha, tucano, arara, nambu, jacamim,
mutum, jacu, gavião e papagaio coletadas na
T.I. ou compradas dos ribeirinhos que
residem na margem direita do rio Cairari.
Os Anambé usufruem dos recursos
naturais do seu território retirando a
alimentação e as matérias-primas necessárias
para confecção de seus adornos e objetos da
cultura material. A coleta do material
utilizado na confecção do artesanato é feita
na Terra Indígena, embora também utilizem
materiais industrializados, como fios de
náilon, que as artesãs chamam de “fibra”, o
gancho do brinco, denominado pelas
interlocutoras de “pé de brinco” e as
miçangas, que são comprados na cidade de
Mocajuba.
A falta de alguns materiais comprados
na cidade, tais como miçangas e “pés de
brinco” implica na pequena confecção de
alguns artesanatos, especialmente brincos,
visto que há poucos exemplares na aldeia,
principalmente pela falta de material.
Os três materiais – “fibra”, “pé de
brinco” e miçangas – são elementos exógenos
incorporados, que são utilizados com
produtos tradicionalmente utilizados pelos
indígenas, como, por exemplo, o inajá
(Maximiliana maripa (Aubl.) Drude). O uso
das contas de vidros na elaboração do
artesanato Anambé foi incorporado pelo
contato com a sociedade europeia que
realizava o escambo junto aos coletivos
ameríndios. Em geral, as miçangas são
apreciadas pelo seu caráter estético e pela
durabilidade (VELTHEM, 2010).
As contas de vidro são elementos
externos que foram apropriadas e inseridas
no artesanato. Várias comunidades indígenas
fazem uso de miçangas para expressar sua
arte, e os Anambé não são distintos nesse
aspecto. Entretanto, três artesãs – Vanusa,
Raiane e Japona – detêm percepções
diferenciadas a respeito do uso das contas de
vidro.
A artesã Vanusa afirmou que o
artesanato deve ser produzido “sem
miçangas, pois não são coisas de índios”
(ASSIS; NEVES, 2013). Tal afirmativa denota
a sua percepção sobre o artesanato indígena,
subentendendo-se que deve ser usada
sementes e penas ao invés de miçangas. A sua
percepção é algo particular, pois as outras
duas artesãs, Raiane e Japona, trabalham com
miçangas.
Japona é um exemplo de artesã que
adotou as contas de vidro no seu trabalho,
pois em conversas informais, a interlocutora
afirmou que insere miçangas na cor preta em
suas produções artesanais, uma vez que o uso
de contas de vidros coloridas é uma
característica dos índios Kayapó. Enquanto
Raiane utiliza uma variedade de cores de
miçangas em seus artesanatos. Em suma,
entre as artesãs não há um consenso acerca da
utilização de miçangas. Portanto, as peças
elaboradas pelas artesãs têm particularidades
expressivas, que podem transmitir as
concepções dos valores sociais ou
cosmológicos. Além de expressarem uma
natureza coletiva, múltipla e transformativa,
também retratam a cosmologia, o grupo
indígena, os humanos e não humanos
(VELTHEM, 2014).
Além disso, produção de artesanato
depende, por exemplo, do tempo disponível
da produtora. Enquanto as mulheres estão
de resguardo ou cuidando dos filhos, a
produção diminui, pois, os cuidados com o
filho recém-nascido exigem atenção por
parte da mãe. As artesãs alegam que os seus
filhos não permitem a produção de
artesanato.
O escoamento da produção artesanal é
incipiente, pois a venda limita-se aos
funcionários da saúde indígena e aos
visitantes que compram os artesanatos
esporadicamente. A respeito disso, eles não
produzem mais artesanatos porque as
pessoas que residem nas proximidades da
aldeia não compram.
47
OS SABERES E FAZERES
ARTESANAIS
A maioria da comunidade sabe
produzir algum tipo de artesanato, tanto
homens quanto mulheres. Entretanto, as
últimas dedicam mais tempo à produção
artesanal. Durante a pesquisa de campo, as
três artesãs – Vanusa, Raiane e Japona –
produziram uma quantidade considerável de
artesanato.
Ademais, as pessoas que contraíram
matrimônio com um Anambé e residem na
aldeia passaram a produzir os objetos
culturais do grupo, como é o caso de Vanusa,
casada com o Cafu, cacique dos Anambé. Ela
aprendeu a confeccionar artesanato quando
permaneceu na Casa de Atenção à Saúde
Indígena (CASAI) em Icoaraci, para
acompanhar os doentes da aldeia. Outro
exemplo é o esposo da Raiane, conhecido
como Dadá, que ajuda a sua companheira na
confecção dos adornos e detém o
conhecimento de alguns tipos de artesanatos
Anambé.
Na aldeia, no ano de 2015, ao chegar às
casas de Raiane e Japona, encontrei-as
trabalhando em seus artesanatos. Na ocasião,
a primeira estava confeccionando uma
pulseira de inajá (Maximiliana maripa (Aubl.)
Drude) e miçangas e a segunda estava
manuseando algumas penas.
No mesmo ano, Raiane produzia
adornos corporais em seu tempo disponível.
Ela afirmou que gostava de fazer artesanato e,
desta forma, produzia um número
considerável de objetos culturais, de uma
criatividade impressionante, pois
incrementou as presilhas de cabelo
compradas na cidade de Mocajuba e
adicionou sementes e miçangas para
expressar a sua arte.
A interlocutora aprendeu a elaborar
artesanatos observando a sua mãe, Dona
Raimunda, que produz principalmente
colares com costelas de jiboia, cascas de coco,
cascos de tatu, sementes de inajá e miçangas
pretas, além das pulseiras de inajá com
miçangas pretas.
O repertório de Raiane inclui anéis,
braceletes, pulseiras, colares, paus e acessórios
de cabelo. Ela comentou que os anéis de
sementes são esculpidos em dez minutos, e o
tamanho depende das dimensões da semente.
A pigmentação dos motivos é feita com
alumínio derretido e, no acabamento, aplica-se
a base de esmalte usada nas unhas. As penas e
as plumas utilizadas nos artesanatos são
obtidas pelo seu esposo, Dadá, que sai em
busca de pássaros. Ele permanece, em média,
duas horas no interior da mata para conseguir
as penas para a próxima peça da sua esposa.
Ao questionar Raiane sobre o
significado e a importância do artesanato
Anambé, ela respondeu: “Porque é da etnia
da gente usar”. A resposta da interlocutora
expõe o artesanato enquanto uma
expressividade das culturas indígenas.
Em uma ocasião na aldeia observei o
marido de Japona, Mauro, elaborando um
colar com dentes de macaco. Para que ocorra
a produção de objetos indígenas é essencial ter
habilidades técnicas, conhecimento sobre as
matérias-primas e sobre o processo de
confecção, assim como a visão, os gestos das
mãos e outras aptidões para que o objeto seja
concluído (VELTHEM, 2012).
A artesã Japona confecciona cintos,
colares, anéis, pulseiras, paus de cabelo,
tiaras e saias de sementes de tento. Ela utiliza
sementes que traz de Moju, assim como as
sementes disponíveis na Terra Indígena. A
interlocutora comentou que aprendeu a fazer
os adornos com seu irmão, Araújo, e
comentou sobre a dificuldade em vendê-los,
mas que produz artesanato porque gosta de
trabalhar com isso.
Vanusa, por sua vez, produz brincos,
colares e paus de cabelos com sementes e
plumária. As sementes são plantadas por ela,
perto da sua casa, e as plumas adquiridas
com os ribeirinhos, que residem no lado
direito do rio Cairari. Ao observar o
artesanato de Vanusa visualizei um colar
feito de sementes de morototó (Didymopanax
morototonii) - que me chamou a atenção pela
beleza, e perguntei sobre a confecção do
colar. Ela disse que foi necessário muito
tempo de trabalho para fazê-lo.
Os instrumentos de trabalho que
auxiliam na elaboração dos artesanatos são os
seguintes: fuso, que os interlocutores
48
denominam de “fura fura”, usado para
perfurar as sementes; lixa, utilizada para
esculpir e dar forma aos adornos; facas para
retirar fragmentos de algumas sementes; e
tesouras para cortar as “fibras” e fios.
Em linhas gerais, as três artesãs
produzem peças indígenas singulares em sua
essência, embora diferenciadas na estética e
na conceituação, pois cada uma elabora os
objetos de acordo com seus critérios artísticos
e estéticos (VELTHEM, 2014). Ademais, a
criatividade com que produzem suas obras
deixa marcas do toque pessoal e da visão de
mundo de cada artesã, a partir da confecção
dos objetos. Nesse sentido, a arte indígena
detém um caráter cognitivo que aborda a
visão e o sentido que é atribuído pela
população indígena (VELTHEM, 2012), mas
não prescinde da perspectiva subjetiva de seu
realizador.
A partir das observações realizadas em
campo foram identificadas que as mulheres
desconhecem a técnica de feitura dos cocares
usados pelos homens. Os cocares são feitos
com penas de pássaros e palha de coco, na
qual se inserem as penas e assim vai tecendo
o cocar.
O USO ARTESANAL NA ALDEIA
ANAMBÉ
Os produtos artesanais são utilizados na
vida diária da população ou em
apresentações na cidade de Mocajuba ou
mesmo na Vila Elim, bem como nas
brincadeiras e na Festa do Dia do Índio,
comemorada na aldeia. No cotidiano, as
mulheres Anambé usam principalmente
pulseiras, anéis e colares, enquanto os
homens utilizam alargadores na orelha.
As pulseiras podem ser feitas de
sementes de inajá (Maximiliana maripa (Aubl.)
Drude), de sementes de tucumã (Astrocaryum
aculeatum), de ossos de boi esculpidos em
formato de losango, bem como pulseiras de
miçangas. Anéis de sementes de tucumã, de
pupunharana e sementes de inajá. Colares
confeccionados com costelas de jiboia, de
sementes, de miçangas.
Alargadores de “tutano do boi” são
esculpidos com um terçado e deixado de
molho na água sanitária ou detergente para
retirar o odor do animal. Entre os homens é
comum o uso de alargadores, entretanto
alguns não utilizam por reações alérgicas.
Outro material utilizado como alargador é o
bambu (Bambusa vulgaris), mas o osso de boi
é o mais difundido.
As expressões materiais utilizadas em
apresentações, brincadeiras e na Festa do Dia
do Índio são outros tipos de objetos. As
mulheres usam tiaras com sementes de tento
e penas de arara, paus de cabelo, braçadeiras
emplumadas com penas de arara, colares,
cintos feito com sementes de tucumã
(Astrocaryum aculeatum) e chocalhos feitos
com sementes de “carrapatinho”. Os homens
usam cocares, colares, arco e flecha dentre
outros.
Em campo, questionei à Maria Anambé
sobre o significado do artesanato para a
comunidade. Na ocasião, a interlocutora
acrescentou a relevância do grafismo
enquanto característica das populações
indígenas:
O artesanato significa tudo, é um símbolo!
O artesanato é uma marca, é igual à
pintura. A pintura e o artesanato são uma
marca, um símbolo que mostra o que tu és.
Se tu bota uma pintura em ti, já sabe que é
cultural, que é indígena. Se tu tá usando
um brinco ou um colar, sabe que é cultural;
é uma marca que tu tens que precisa ser
bem preservada e nunca pode apagar,
porque é o que te valoriza, é o que tu és, é
a marca que tu tem (...). Se tu usa um
artesanato é porque tu estás se
representando, então, você é marcado
sobre aquilo ali; é uma marca que tu
carrega pro resto da tua vida, se tu não
esquecer daquilo ali, então é uma marca
muito boa que tem, que te representa, é um
destaque que o índio tem quando ele tá
pintado, quando ele tá usando artesanato,
é destacado no meio de uma população
imensa de pessoas. O artesanato destaca a
pessoa, hoje em dia o índio está sendo
reconhecido mais por isso e é uma parte
muito importante da cultura do índio é a
pintura, a dança, o artesanato e a língua
materna (...), o índio tem uma etiqueta
sobre o artesanato (...); ele é reconhecido
49
 por isso, o índio sem cultura não é índio
não, é qualquer pessoa.
Maria Anambé ressalta o artesanato e a
pintura como símbolos da identidade
indígena. Em suma, o discurso evidencia que
os artesanatos e os grafismos são tratados
como símbolos e marcas da identidade dos
Anambé, que precisam ser preservados para
que a comunidade seja valorizada enquanto
grupo indígena.
Berta Ribeiro (1989) chamou a atenção
sobre a simbolização dos objetos indígenas,
que são repletos de heranças e de tradições
culturais. Além disso, os objetos enquanto
expressões materiais de cultura permitem
que a identidade indígena seja reconhecida:
Tornados herança e tradição, certos
objetos materiais vêm a ser o ponto
culminante de um processo de
simbolização. Representam o esforço de
um grupo humano em legitimar-se pelo
seu passado. Essa busca de legitimação,
através de símbolos, é comum ao índio e
ao branco. Quando ela se sedimenta, o
artefato-símbolo se torna o espelho da
identidade. Por sua durabilidade, a
cultura material tem uma existência que se
prolonga no tempo (RIBEIRO, 1989, p.
118).
O artesanato indígena configura-se
como uma das formas de resistência da
identidade étnica, pois no momento em que a
pessoa almeja fazer valer sua condição
enquanto membro de uma população
indígena e o direito à posse de seu território,
ela utiliza-se dos artesanatos e de grafismos
para reivindicar tal direito garantido na
Constituição Federal Brasileira (RIBEIRO,
1989). Ademais, os povos indígenas gostam
de usar os artesanatos para diferenciarem
entre si, por exemplo, a utilização do cocar é
feita pelo chefe do grupo.
Maria Anambé comentou que os
artesanatos e os grafismos são representações
que diferenciam os indígenas da população
nacional. Essas expressões artísticas, assim
como a dança e a língua materna
proporcionam o reconhecimento do indígena
no seio da sociedade nacional.
Após responder à pergunta sobre o
significado do artesanato, a interlocutora
mencionou que o professor da língua
materna tem o papel de contribuir para o
resgaste da cultura, das danças e dos
artesanatos para que permaneçam na
memória do grupo. Pois, segundo Maria
Anambé: "Se a cultura acabar, o índio vai
junto!"
Portanto, os Anambé estão
empreendendo esforços para a realização de
artesanatos, danças e grafismos com a
finalidade de promover a sua “viagem de
volta", que consiste em resgatar as suas
origens, desenvolver as práticas e as tradições
culturais, e trazer à tona os elementos do
passado de forma imbricada com o presente,
viajar no tempo e no espaço em busca da
história dos seus antepassados para
reaprender os saberes que foram esquecidos
(PACHECO DE OLIVEIRA, 1999).
ARTE E CRIATIVIDADE: AS
REELABORAÇÕES ARTESANAIS
ANAMBÉ
O artesanato Anambé está passando por
um processo de reelaboração, que consiste na
incorporação de elementos externos ao
grupo, desde elementos nacionais como a
bandeira do Brasil ou matérias-primas de
procedência estrangeira como, por exemplo,
a utilização de ossos de boi obtidos por meio
do contato com outras populações indígenas
ou não indígenas, que fomentam alterações
das suas técnicas e estilos.
No caso Anambé, são utilizados
motivos decorativos oriundos da sociedade
nacional, tais como bandeira brasileira,
corações, guitarras ou adornos com frases
“Deus é fiel”. Esses elementos foram
incorporados e reproduzidos como motivos
decorativos que podem ter sido observados
na televisão, nos livros ou em fotografias
(RIBEIRO, 1989b).
O artesanato anambé caracteriza-se por
uma “estética da mudança”, que significa
variadas formas de reelaborações do sistema
de objetos, pelo qual os grupos indígenas
redefinem sua própria cultura, para resistir
social e politicamente aos impactos sofridos
50
(GRABURN, 1976 apud RIBEIRO;
VELTHEM, 1992).
Nessa perspectiva, a arte indígena
retrata as modificações efetuadas ao longo do
tempo, e também um processo transformativo
que abarca o advento de visões, intuições e
técnicas que oportunizaram às comunidades
criadoras adequarem-se a novas realidades
(VELTHEM, 2012).
Lagrou (2010) discorreu sobre a
concepção de arte entre os povos indígenas,
afirmando que tal visão difere da lógica
ocidental. Nas sociedades indígenas, não há
um caráter individualista na confecção dos
objetos, pois as produções são coletivas e
baseadas nos aspectos tradicionais dos
coletivos indígenas. Já os artistas
contemporâneos preocupam-se em deixar
marcas individualistas em suas obras. Outro
ponto ressaltado pela autora diz respeito aos
objetos indígenas serem considerados arte e
artefato, pois são confeccionados para ter uma
utilidade prática e serem objetos
contemplativos entre os grupos indígenas.
Ao longo do processo criativo de
produzir a arte Anambé os produtores
relacionam-se com os objetos que são
produzidos. Esses objetos são dotados de
vitalidade como os seres humanos, pois os
mesmos exercem uma função sobre o mundo
e os indivíduos, mas nem todos os objetos
expressam intencionalidade. Além disso, os
indivíduos compartilham suas vidas com
seus objetos, mas também os objetos não
estão desconectados de quem os produziu e
o proprietário do objeto (GELL, 1998).
No processo de criação de objetos,
Lagrou (2012) afirma que os artefatos são
imagens encarnadas que adquirem um corpo
fixo através das mãos dos seus criadores, que
possuem a capacidade imaginativa de
criação. Ademais, as imagens não são apenas
estéticas, sendo consideradas também
pessoas e, assim, detentoras de agência.
Portanto, há uma relação social entre as
pessoas e as suas coisas, uma vez que estas
constroem identidades, e também constroem
a humanidade dos indivíduos (MILLER,
2013). Além disso, de acordo com Ingold
(2012), as pessoas estão emaranhadas com as
suas coisas, pois não há uma separação entre
as pessoas e os seus objetos. E também há um
processo de construção mútua entre os
indivíduos e as suas coisas, isto é, os
indivíduos constroem os seus objetos, assim
como os objetos constroem os indivíduos.
A cultura material indígena não é
estática, pois no decorrer do tempo passa por
um processo de reelaboração, renovação e
reconstrução por meio de elementos que
estão sendo incorporados pelos Anambé, a
partir de intercâmbios culturais com povos
indígenas distintos, assim como os
casamentos interétnicos. Portanto, não se
pode fazer recortes étnicos que apartem os
objetos culturais de uma determinada
população indígena, pois não é possível
afirmar que os objetos de um grupo são
originários do mesmo; e se forem
identificados em outro grupo, não se pode
alegar que foram incorporados
indevidamente (GALLOIS, 2011).
Assim, as reelaborações dos artesanatos
englobam um caráter tradicional, que diz
respeito às referências culturais do grupo
indígena; e de um caráter moderno pautado
na contemporaneidade, em que populações
indígenas estão circunscritas. Por isso, tais
objetos possuem dois aspectos: o tradicional
e o moderno. As fotografias apresentadas
(Figuras 3 a 5) expõem alguns exemplos das
reelaborações artesanais promovidas pelos
Anambé.
Figura 3 - Anéis de tucumã.
Fonte: Pesquisa de campo, 2015.
Os anéis confeccionados com tucumã
(Astrocaryum aculeatum) possuem vários
motivos, como corações, flores, pássaros,
peixes e traços elaborados por seus
produtores, Raiane e Dadá (Figura 3). O casal
51
trabalha junto na produção dos anéis, que
podem ser também de sementes de inajá
(Maximiliana maripa (Aubl.) Drude) ou de
pupunharana (Duckeodendron cestroides). Ele
esculpe a matéria vegetal utilizada nos anéis
e Raiane contribui na composição estética das
peças.
Outros povos indígenas também
produzem anéis de inajá e tucumã. Lux
Vidal (2009) afirma que os povos indígenas
do Baixo Oiapoque – Karipuna, Galibi
Marworno, Galibi Kali’na e Palikur
confeccionam anéis com motivos de animais
e incrustações de metais.
O bracelete de miçangas multicoloridas
apresentado na Figura 4 demonstra o diálogo
entre o passado e o presente, entre a tradição
e a modernidade do grupo, pois apresenta
uma pulseira com motivo da bandeira do
Brasil que expressa a nacionalidade brasileira
exaltada pela artesã, Raiane, em sua
manifestação material abordada na forma de
bracelete.
Figura 4 - Bracelete de miçangas.
Fonte: Pesquisa de campo, 2015.
O brinco reproduzido da Figura 5 é feito
com osso de boi, mais especificamente com o
que denominam de “tutano”. Este produto
possui origem externa ao grupo e foi
apropriado pelos Anambé, tendo sido
inserido nos exemplares do artesanato do
grupo indígena.
O adorno da peça foi feito pelo Dadá,
que exprimiu seu esforço criativo ao elaborar
o brinco com agilidade e esmero. Um ponto
discutível sobre a confecção do brinco por
Dadá consiste no fato de que os artesanatos
Anambé configuram-se como uma criação
coletiva e mestiça a partir do momento em
que o esposo não indígena de Raiane
Anambé passou a ajudá-la na produção do
artesanato e imprime suas representações,
memórias e percepções de mundo às peças.
Figura 5- Brincos de osso de boi.
Fonte: Pesquisa de campo, 2015.
No ano seguinte o adorno foi
confeccionado novamente e, desta vez,
foram inseridas penas de papagaio. A
novidade do modelo de brinco feito com
osso de boi voltado para o gênero feminino
propiciou a réplica do padrão, que se tornou
um exemplar do artesanato Anambé. Por
fim, o grupo indígena está em um processo
de inventividade de seus objetos, quando o
artesão cria uma peça, e a partir daquele
momento ela começa a ser produzida outras
vezes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As expressões da cultura material
Anambé nos anos 1990 obteve uma nova
configuração, pois diversos grupos indígenas
estavam se apropriando de pinturas e de
artesanatos, por isso tomou-se a iniciativa de
produzir artesanatos com o objetivo de
promover práticas culturais provenientes dos
povos indígenas.
Os artesanatos produzidos na aldeia
retratam as técnicas, os estilos e as estéticas
particulares do grupo. Os objetos culturais
confeccionados com maior frequência são
cocares, colares, pulseiras, braceletes, anéis e
paus de cabelo, que são utilizados para
distinguir os Anambé de outros coletivos
indígenas.
No que diz respeito à cultura material
produzida atualmente, Berta Ribeiro (1988)
asseverou que a cultura material é parte
52
integrante da cultura, portanto não é
estática, pois muda e se transforma
continuamente. Destarte, podem ser
verificadas mudanças ocasionadas por
padrões culturais distintos, referentes a
estilo e função, mas também da
disponibilidade de matérias-primas, da
influência de outros estilos e até mesmo das
singularidades de cada artesão.
Gallois (2011) discorreu sobre a
afirmativa de Ribeiro, ao frisar que a cultura
dos grupos indígenas “(...) não pode ser
abordada como um conjunto fixo de
elementos que resistiram inertes ao passar do
tempo. O processo inclui perdas, mas
também acréscimos. E a incorporação de
elementos novos ilustra exatamente a
vitalidade de uma cultura (...)” (GALLOIS,
2011, p. 24).
Assim, as duas autoras chamaram
atenção para o fato de a cultura ser dinâmica,
e como parte desse processo de mudanças
alguns elementos culturais são perdidos,
enquanto outros elementos vão sendo
incorporados; e isso só acontece em função
do vigor das culturas.
Uma vez que a cultura se transforma
continuamente ao longo do tempo, tal
processo acontece com as expressões da
cultura material indígena. E no caso Anambé
não é diferente, pois atualmente alguns
exemplares do artesanato Anambé são
reelaborações produzidas a partir da inserção
de novos elementos, que incorporam
produtos como miçangas e ossos de boi,
assim como motivos provenientes da
sociedade nacional. Em outras palavras, a
partir do contato dos Anambé com outros
povos indígenas ou não indígenas, verificam-
se as mudanças na elaboração de seus objetos
culturais.
Cada comunidade indígena cria as
formas e as funções de seus objetos. E
também os modos de fazer e de utilizar as
matérias-primas. A cultura material
indígena exprime a ecologia, a objetos y ancestros em la Amazonía
tecnoeconomia, a ideologia e o modo de vida
dos povos indígenas (RIBEIRO, 1986). No
caso, a confecção dos artesanatos está
relacionada aos modos de vida, aos recursos
naturais da fauna e flora e ao território
indígena Anambé.
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55
A INFÂNCIA TUPINAMBÁ NA AMAZÔNIA SEISCENTISTA:
a educacão das crianças pelo olhar dos padres
capuchinhos Claude d`Abeville e Yves d`Évreux

* Jane Elisa Otomar Buecke

** Maria Betânia Barbosa Albuquerque

Resumo: Este trabalho focaliza as crianças Tupinambás que viveram na Amazônia, no século XVII
conforme o olhar dos padres capuchinhos Claude d’Abbeville (1874) e Yves d’Évreux (2007) em
suas crônicas escritas entre os anos de 1612-1615. O referencial teórico se baseia na História
Cultural que alça as crônicas como documentos históricos, nos permitindo, a despeito da visão
etnocêntrica, extrair ainda que sutilmente o modo de vida de sujeitos invisibilizados, como as
crianças indígenas. Os dados analisados evidenciam que essas crianças foram importantes
transmissoras da cultura autóctone na região amazônica e não absorviam passivamente as
instruções impostas pelo catolicismo pois mantiveram forte vínculo com seu grupo social.
Palavras-chave: História da Infância. Tupinambá. Educação colonial.

INTRODUÇÃO O foco da análise voltou-se para as

descrições em que são mencionados os
“meninos” e “meninas” e para as relações
Este artigo compõe uma pesquisa em
cotidianas em que havia troca de saberes,
andamento que se volta para a história da
entendidas como práticas educativas. Os
infância na Amazônia colonial, em particular
relatos foram lidos e fichados a fim de
do século XVII e, especificamente, para as
compreendermos que práticas eram aquelas
práticas educativas em que as crianças
nas quais as crianças estavam, de algum
estavam imbricadas.
modo, envolvidas. Com isso, a pesquisa
Nesse recorte, buscamos analisar a
aspira somar esforços no sentido de
educação das crianças Tupinambás conforme
minimizar:
os registros dos padres capuchinhos Claude
D’Abbeville e Yves D’Évreux. Ambos os a carência de trabalhos que percorram os
religiosos compunham a missão organizada relatos dos missionários religiosos e
por Daniel de La Touche que intentou viajantes e suas anotações sobre os hábitos
implantar uma colônia francesa na região – a das populações autóctones e de suas
França Equinocial (1612-1615). Suas obras relações com os adventícios europeus, em
relatam o contato dos padres com os nativos busca de práticas de sociabilidade ou
indícios de processos educativos de
onde as crianças são frequentemente
caráter não escolar, bem como as trocas
mencionadas como protagonistas em culturais entre diferentes civilizações
situações que chamaram a atenção dos (ABBATE, 2016, p. 28).
padres e, consequentemente, também a
nossa.1

* Mestra em Educação (UEPA/PPGED). Bolsista do CNPQ. Av. Hélio da Mota Gueiros, 135. Coqueiro-40 horas –
Ananindeua/PA. E-mail: janebuecke@yahoo.com.br
** Doutora em educação (UEPA/PPGED). Rua Benjamin Constante, 555. Reduto – Belém/PA. E-mail:
mbetaniaalbuquerque@uol.com.br
1 O texto de Abbeville foi produzido nos quatro meses em que permaneceu no Maranhão e foi publicado na França em 1614. Foi

traduzido para o português por Cesar Augusto Marques e publicado pela primeira vez em 1874 no Maranhão (ABBEVILLE,
1874). Já o padre Évreux permaneceu dois anos na região e escreveu o que ele mesmo chamou de Continuação da história das
coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614 porque considerava que seu texto acrescentaria o que o
D`Abbeville deixou de fora (ÉVREUX, 2007).

57
 Assim, a fim de contribuir
epistemologicamente com o campo da
história da educação, em particular, com a
história da infância, neste estudo procuramos
compreender como ocorriam as práticas
educativas no cotidiano social das crianças
que viveram na Amazônia no início do século
XVII.
Do ponto de vista metodológico, a
pesquisa configura-se como de natureza
histórica, com uma abordagem qualitativa
sendo utilizados os procedimentos da
pesquisa documental em diálogo com a
pesquisa bibliográfica. Teoricamente, baseia-
se em Ariès (1986), Chartier (1990), Cunha &
Fonseca (2005) e Brandão (2002).
A INFÂNCIA NA PERSPECTIVA DA
HISTÓRIA CULTURAL
De acordo com Burke (2011, p. 25), ao
perquirir outros tipos de fontes para
responder seus novos questionamentos, os
historiadores se depararam com problemas
suscitados por essas fontes tais como, a
dificuldade de “retratar o socialmente
invisível”, ou acontecimentos específicos. Em
vista disso, importa considerar na análise das
informações o etnocentrismo das fontes, que
carregam consigo a visão cultural do seu
autor. Afinal, as fontes utilizadas, referentes
à Amazônia do séc XVII foram produzidas
por religiosos e europeus, que registraram
uma interpretação particular da história.
Ainda assim, é possível perscrutar em tais
relatos a visão dos próprios autóctones,
através da análise do contexto e do
cruzamento os dados obtidos com outras
fontes.
Ao analisar o processo de inquisição
contra um moleiro de uma vila na região de
Friuli, na Itália no século XVI, Ginzburg
(2006), por exemplo, buscou entender como
ele formou seu pensamento naquele
contexto. Ele demonstrou, com isso, que os
documentos podem suscitar respostas
diferentes de acordo com a pergunta
formulada, e que o exame meticuloso de um
objeto pode ser capaz de explicar o
pensamento de uma determinada época e
realidade. Assim, a micro-história desponta
como forma de abordagem do passado atenta
às minúcias e detalhes ligando o micro - a
exemplo das práticas educativas e o cotidiano
da infância na Amazônia do início do século
XVII - com os aspectos macroestruturais,
neste caso, o contexto amazônico do século
XVII e o sentimento de infância vigente no
período (FONSECA, 2003). Trata-se assim, de
uma etnografia do passado em que o
pesquisador se debruça sobre as fontes
examinando as sutilezas e interpretando os
sentidos das relações a fim de responder suas
indagações.
Com o intuito de refinar o olhar sobre o
tema, realizamos uma busca virtual no site
Google sobre história da infância no período
colonial amazônico sem, contudo, nada
encontrar. A partir de marcadores outros
como História da Infância no Período Colonial e
História da Infância na Amazônia também
poucos trabalhos apareceram.
Ao vasculhar os sites dos Programas de
Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Pará (UEPA), da
Universidade Federal do Pará (UFPA) e da
Pós-Graduação em História da UFPA, e
analisar os títulos de todas as dissertações e
teses publicadas constatamos, que pouco
sabemos sobre práticas educativas
envolvendo crianças na Amazônia Colonial.
Na busca pelos estudos sobre história da
infância, destacou-se o francês Philippe Ariès
(1986) considerado um dos pioneiros na
matéria. Suas pesquisas, realizadas no
período do Antigo Regime francês nos
séculos XVI, XVII e XVIII, enfatizam a
transformação da concepção de infância ao
longo desse tempo, demonstrando o papel da
escolarização iniciada na Idade Moderna e a
emergência da vida privada como principais
fatores que influenciaram tais mudanças.
Para Ariès (1986), no século XVI a
criança começa a receber uma atenção antes
não obtida da família. Os pequenos tornam-
se o encanto da casa e são alvos de mimos e
gentilezas dos adultos, sentimentos esses não
evidenciados em tempos anteriores. Na
verdade, Postman (2012, p. 29), corroborando
com Ariès (1986), considera que “no mundo
58
medieval não havia nenhuma concepção de
desenvolvimento infantil, nenhuma
concepção de pré-requisitos de
aprendizagem sequencial, nenhuma
concepção de escolarização como preparação
para o mundo adulto”.
A escolarização iniciada no século XVII
teve um papel decisivo na formação do
conceito de infância, quando os religiosos,
tanto da Reforma protestante quanto da
Contrarreforma católica, perceberam que a
educação dos pequenos seria muito mais
eficaz para a formação de valores morais e
doutrinação do que a educação dos adultos.
Conforme o autor, “é entre os moralistas e os
educadores do século XVII que vemos
formar-se esse outro sentimento da infância
[...] que inspirou toda a educação até o século
XX, tanto na cidade como no campo, na
burguesia como no povo” (ARIÈS, 1986, p.
151).
No Brasil, a obra Casa Grande e Senzala,
de Gilberto Freyre, pode ser considerada um
marco na história da infância visto, que ao
estudar a estrutura social presente no Período
Colonial brasileiro, explora as práticas
culturais e educacionais dos vários grupos
étnicos que influenciaram a educação das
crianças em todo o país (FREYRE, 2006). Ao
descrever a estrutura social da Colônia,
Freyre faz uma robusta etnografia em que
focaliza, sobretudo, a vida cotidiana nas
estruturas sociais do Brasil Colonial. Em sua
análise não deixa de fora a infância e, por isso,
pode ser considerado o pioneiro no estudo
social sobre a criança no Brasil, destacando a
preponderância da família e do sistema
patriarcal naquele período. Para ele, a
distância entre crianças e adultos era
demarcada pela supremacia destes últimos,
cabendo aos meninos almejar a vida adulta
para se livrar da vergonha da meninice.
As crianças também foram alvo dos
estudos de Mary Del Priore que, em 1991,
organizou e publicou um trabalho dedicado
à historiografia da infância. Intitulado
História das crianças no Brasil, o livro reúne
artigos de historiadores, sociólogos,
antropólogos e outros especialistas que
abordam variadas narrativas sobre a infância
brasileira em épocas e contextos diferentes,
dando visibilidade à história de milhares de
crianças no Brasil. Del Priore (2005, p. 17)
considera que “é preciso extraí-las do
anonimato e do silêncio em que se
encontram, pois elas são sujeitos históricos
também”. A autora demonstra que as teses de
Ariès não se aplicam ao contexto brasileiro
uma vez que tanto “a escolarização como a
emergência da vida privada chegaram com
grande atraso” por aqui. Portanto, cabe aos
historiadores brasileiros buscar compreender
a nossa infância em seu contexto próprio.
Atualmente, há um certo consenso entre
os estudiosos da história da criança de que a
concepção de infância é uma construção
histórica e sociocultural. Não há uma criança
única e por isso não é possível estabelecermos
uma única concepção de infância. Corsaro
(2011, p. 97) aponta que os estudos históricos
foram fundamentais para que que “as
crianças pudessem ser vistas como
contribuintes ativas na produção e na
mudança social enquanto criam,
simultaneamente, suas próprias culturas
infantis”. Nesse sentido, é possível inferir que
sempre houve infância, mas para entendê-la
é necessário compreender a cultura em que
tais crianças estavam imersas, mas não como
meros produtos dela, e sim como sujeitos que
também produzem e transmitem cultura.
Para tanto, faz-se necessário investigar como
as crianças representam sua própria
existência.
Monteiro (2005, p. 22) atesta a
necessidade de pesquisas sobre a infância em
outros períodos históricos, ao afirmar que “se
a História da criança tem ganhado destaque
nos últimos anos, é ainda muito presa aos
temas da História contemporânea. Poucos
pesquisadores têm se debruçado na pesquisa
do cotidiano da vida da criança na Colônia
como objeto central de sua análise”.
O estudo do cotidiano teve grande
impulso a partir do movimento dos Annales
iniciado na França em 1929, quando os
historiadores se voltaram para a história do
cotidiano social rompendo com a visão de
história política preponderante até então.
Com isso, ampliou-se o conceito de fontes de
pesquisa para todo e qualquer documento –
escrito, pintado, fotografado, oficial ou não,
59
que ajudasse a compreender as mentalidades
e as formas de viver do ser humano. Na
terceira geração dos Annales, conhecida
como nova história cultural, a partir da
década de 70, vários temas da vida cotidiana
como a morte, a religião, a sexualidade,
hábitos alimentares, entre outros, se
tornaram objetos de investigação. Nas
palavras de Peter Burke (2011, p. 11) “a nova
história começou a se interessar por
vitualmente toda a atividade humana”.
Segundo o autor, “a base filosófica da
nova história é a ideia de que a realidade é
social ou culturalmente constituída”
(BURKE, 2011, p. 12). Isto quer dizer que ela
não é previamente determinada pelas
estruturas econômicas e sociais, mas que as
pessoas a constroem em suas relações sociais,
através de táticas de resistência e/ou
sobrevivência engendradas no cotidiano
(CERTEAU, 2014). Nessa concepção, não é
mais possível “distinguir o que é central ou
periférico na história” (BURKE, 2011, p. 12).
E a vida cotidiana, tida como irrelevante até
então, passa a ser foco de interesse. Nesse
sentido, as práticas educativas ocorridas no
cotidiano da Amazônia colonial erigem-se
como objeto de investigação e as crianças,
antes invisibilizadas, adquirem o status de
sujeitos da história, podendo, portanto, ser
tema de investigação.
O estudo das práticas é um dos
paradigmas da Nova História Cultural
(BURKE, 2008). Assim, nosso interesse se
volta para as práticas educativas, ou seja, as
relações em que havia transmissão e
circulação de saberes (CUNHA e FONSECA,
2005). Trata-se de uma tentativa de decifrar
estas práticas sabendo que elas são
“produzidas pelas representações,
contraditórias e em confronto, pelas quais os
indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo
que é o deles” (CHARTIER, 1991, p. 177).
Tais práticas não se restringem ao
sistema escolar onde predomina, em geral, a
transmissão de conhecimentos científicos.
Para além do saber científico, buscamos
adentrar nos saberes culturais não
alicerçados, exclusivamente, na formação
escolar, mas no cotidiano social. Assim,
focalizamos os saberes transmitidos nas
diversas situações educativas em que as
crianças estavam envolvidas. Conforme
propõe Kuhlmann Jr. (1998. p. 11), “A ideia é
encontrar a educação no estudo das relações
sociais, no estudo da história”.
Para Fonseca (2003), a educação é “uma
dimensão importante da conformação
cultural de uma sociedade e como um dos
indicadores das diferentes relações nela
estabelecidas”. Por isso, o estudo das práticas
educativas do cotidiano deve levar em
consideração os conflitos culturais e sociais
presentes no contexto analisado. Para a
autora, tais conflitos, podem estar nas
pequenas estratégias cotidianas, nas diversas
apropriações de valores, saberes, poderes.
Por isso, torna-se importante a referência às
noções de representação e apropriação, por
permitirem a visualização de práticas
culturais presentes na sociedade brasileira e
suas diferentes formas de manifestação
(FONSECA, 2003, p. 63).
Ao falarmos de representação e
apropriação nos remetemos às teorias de
Roger Chartier (1990) que focaliza seus
estudos nas práticas e representações
considerando estas como construções sociais
e históricas, fundamentais para a
compreensão da própria história. Para o
autor, as formas de ver e entender o mundo,
isto é, as representações, são sempre
determinadas pelos interesses dos grupos
que as formam e por isso os discursos devem
ser entendidos a partir de quem os profere.
Nessa concepção, ele define três formas de se
relacionar com o mundo social: Na primeira
delas, considera que a realidade é construída
de forma contraditória pelos diversos grupos
sociais que a compõem através de múltiplas
configurações intelectuais. Esse
entendimento é fundamental neste trabalho
uma vez que o contexto analisado é composto
de múltiplos grupos com cosmovisões
diferentes. Ao investigar as práticas
educativas em que as crianças na Amazônia
colonial estavam envolvidas não perdemos
de vista as representações dos sujeitos
inseridos nessas práticas e o modo como os
adultos compreendiam a infância.
Conforme Chartier (1990) as práticas de
um determinado grupo visam demarcar sua
60
identidade. Seus rituais e costumes, suas
atividades cotidianas levam à construção de
suas representações, daí a relevância de
estudar suas práticas. Nessa direção,
entendemos que nenhuma prática educativa
está solta no mundo e a análise do seu
contexto é fundamental para compreendê-la.
Chartier (1990) recusa uma história “global”
e valoriza as singularidades uma vez que
indivíduos e grupos dão sentido ao mundo
que os cercam por meio das representações
que constroem da realidade.
Uma terceira forma da relação do sujeito
com o mundo social, ainda segundo Chartier
(1990), é a maneira como os membros de um
grupo representam sua existência em sua
comunidade. Assim, as formas de as crianças
amazônidas do século XVII agirem e estarem
no mundo, capturadas nas crônicas dos
religiosos, são fundamentais para se
compreender o papel destas crianças em sua
comunidade e a relevância delas como
transmissora de sua cultura.
Nessa direção, o significado das
representações, muitas vezes impostas pelos
religiosos, não era assimilado pelas crianças
tal qual intentavam. Daí a importância de
estudar a forma como estas crianças lidavam
com tais representações para, então,
compreendê-las. Este é, sem dúvida, um dos
maiores limites deste estudo, pois só é
possível adentrar no universo social da
infância amazônida, do século XVII, através
da visão do adulto. Entretanto tal limite não
pode ser um impeditivo para esta busca pois
as crianças participam das relações sociais,
e este não é exclusivamente um processo
psicológico, mas social, cultural e
histórico. As crianças buscam essa
participação, apropriam-se de valores e
comportamentos próprios de seu tempo e
lugar, porque as relações sociais são parte
integrantes de suas vidas, de seu
desenvolvimento (KUHLMANN JR., 1998,
p. 31).
A EDUCACÃO DAS CRIANÇAS
TUPINAMBÁS NA AMAZÔNIA
COLONIAL
No início do século XVII, o povo
Tupinambá residente no litoral Norte do
Brasil mantinha uma certa aliança com os
franceses que já haviam estabelecido feitorias
na região e exploravam os bens da terra
através de negociações com os nativos. Em
1612 quando os franceses decidiram se
instalar de vez na região, construíram um
forte na cidade de São Luís e trouxeram uma
missão religiosa formada por padres
capuchinhos a fim de cristianizar a terra aos
moldes franceses.
Dois dos quatro padres que
compunham a missão descreveram o que
viram e legaram ampla informação sobre os
costumes daqueles povos. O padre Claude
D’Abbeville ficou apenas quatro meses na
região e incumbido de relatar sua experiência
escreveu um texto bastante detalhado com as
características físicas do local, nomeando
todas as aldeias existentes, seus chefes e as
impressões que teve enquanto ali esteve. Sua
visão é bem romântica e otimista pois via tais
povos como joias a serem lapidadas que
iriam enriquecer o reino: “ó França será
enfeitada com o riquíssimo ornamento da
glória, tecido com muitas pedras preciosas, e
semeiado de tantas joias de tão alto valor,
quantas são as alma adqueridas para Jesus
Cristo” (ABBEVILLE, 1874, p. XII).
Ele apoiava o projeto de colonização e
tinha fé na conversão dos gentios. Essa
conversão significava o despojamento de
alguns hábitos que não condiziam com os
valores cristãos como a poligamia, a
antropofagia entre outros. A narrativa de
Abbeville (1874) é marcada pelo heroísmo da
missão tida como salvadora e isso é
perceptível no frontispício da obra original
que demonstra a veneração dos Tupinambás
à igreja católica simbolizada por Nossa
Senhora com o manto estendido a eles, seu
abandono aos rituais antropofágicos e
conversão aos padres assim como sua
submissão ao rei da França. Foi assim que a
obra veiculou em 1614 como uma
propaganda da missão colonizadora.
61
 O foco do relato de Abbeville (1874) está
principalmente na obra missionária, e ele
destaca sua percepção do nativo e do papel
da igreja na vida deles como demonstra o
excerto:
O que mais agradava no Ceo era a
profunda humildade destas pobres almas
vendo-se passar de pontos tão oppostos
isto é, de lobos a cordeiros, de cruéis a
christãos, de filhos e de instrumentos da
raiva e da crueldade do Diabo á filhos de
Deos, aborrecendo sua vida passada, e
chorando a cegueira e a perda de seus
antepassados (ABBEVILLE, 1874, p. 424).
O padre Ives D’Évreux (2007) por sua
vez ficou dois anos na missão e escreveu o
que supôs faltar no relato do seu
companheiro. Sua crônica focaliza
principalmente o projeto colonizador e talvez
por isso a primeira publicação tenha sido
confiscada. Naquele momento não
interessava mais à França, criar atritos com a
Espanha que era a dona “legal” das colônias
portuguesas devido à União Ibérica 1580-
1640. Isso porque o futuro rei da França já
havia acertado casamento com a princesa
espanhola da Áustria. Entretanto, graças às
divergências internas e, especificamente, ao
interesse do almirante François de Razzili,
nobre francês, na colonização do Maranhão,
ele conseguiu resgatar algumas cópias do
livro antes de ser destruído e presenteou o rei
Luís XIII com uma delas, a qual foi guardada
na biblioteca pessoal do rei. Este exemplar
conservado na Biblioteca Imperial, foi
encontrado pelo historiador Ferdinand Denis
e publicado em português em 1874
(ÉVREUX, 2007).
Ambos registraram informações
importantes sobre a criança Tupinambá e a
relação dos seus pais com elas. Tais
informações nos dão subsídios para
compreender como ocorriam as práticas
educativas entre essas crianças no início do
século XVII. De acordo com Caldeira (2000),
pelo número de tupinambás registrados
pelos capuchinhos na região, é possível
inferir que eles predominavam na área visto
que tinham a tendência de não se misturar ou
viver muito próximo de outras nações.
Ao analisar a educação das crianças
tupinambás no século XVI, Thomas (2014)
evidencia que entre os nativos já havia um
sentimento de infância e que os papéis dos
meninos e meninas eram definidos por
rituais que marcavam as transições de cada
faixa etária. Esses rituais são descritos
também nos relatos do padre Abbeville. De
acordo com o religioso,
quando chegam seus filhos à idade de 4, 5
ou 6 anos, preparam um vinho ou festa a
que chamam Cauim, e convidam parentes
e amigos do menino, cujo beiço se quer
furar e também todos os habitantes da
aldeia e de suas circunvizinhanças. Depois
de terem cauinado, e dançado por dos ou
três dias, como costumam, apresentam o
menino, dizem-lhe que vão furar-lhe o
beiço inferior para que seja um dia
guerreiro valente e forte, e assim animado
o próprio menino com toda a coragem e
presença de espírito oferece o beiço com
alegria e satisfação, e pega nele o
incumbido de tal processo, fura-o com a
ponta de um chifrezinho, ou de algum
osso e faz um grande buraco. Se chora o
menino, o que poucas vezes sucede, ou se
dá alguma demonstração de dor, dizem
que nunca há de valer coisa alguma, que
será covarde e fraco. Se pelo contrário tudo
sofre com firmeza e constância, como de
ordinário acontece, tiram disto bom
agouro e creem que sua vida será grande e
ele guerreiro valente e corajoso
(ABBEVILLE, 1874, p. 313).
Pela leitura do excerto é possível
perceber que esse ritual marcava o início de
uma nova fase da vida da criança, mais
próxima da vida adulta. O evento era
comemorado de maneira festiva e se
configurava como importante instância de
afirmação e transmissão de valores
fundamentais para a sociedade tupinambá
como a coragem, por exemplo. Tratava-se de
um momento de congraçamento com as
tribos vizinhas e hora de mostrar que mais
um guerreiro estava se formando ali. Para as
meninas, a infância terminava ao chegar a
menarca, ocasião festejada através das
beberagens, que as introduzia na vida adulta
(ALBUQUERQUE, 2012).
A ternura parental foi destacada nos
relatos dos religiosos por se distinguir do
62
tratamento observado entre pais e filhos
europeus. Os padres sublinharam a ausência
de castigos e uma infância com grande
liberdade. Os mimos e a presença da criança
em torno da mãe o tempo todo, foram objeto
de espanto visto que na realidade europeia
isto não acontecia (ABBEVILLE, 1874).
Mary Del Priore (2015, p. 96) acrescenta
que estes mimos e cuidados às crianças
pequenas não se restringiam aos nativos, mas
“estendiam-se aos negrinhos escravos ou
forros vistos por vários viajantes estrangeiros
nos braços de suas senhoras ou engatinhando
em suas camarinhas”. Ressalta que os
castigos físicos foram introduzidos pelos
jesuítas, momento em que é possível perceber
o conflito entre concepções diferentes de
infância já que para os religiosos “o apego à
infância e à sua particularidade não se
exprimia mais através da distração e da
brincadeira, mas através do interesse
psicológico e da preocupação moral” (ARIÈS,
1986, 151). Enquanto para os viajantes e
clérigos essa relação de ternura e liberdade
com as crianças significava lassidão e
ausência de educação, Thomas (2014)
defende que tais observadores não
perceberam que era assim que se educavam
as crianças tupinambás.
Abbeville (1874) destacou, por exemplo,
o menino Acaiuy Miry, filho de Japyaçu,
Principal da aldeia de Juniparan. Ao relatar
suas observações deste indiozinho de 9, 10
anos de idade, o autor realça algumas
características presentes na infância que
também parece se contrapor à visão de
infância europeia.
Inicialmente, o padre ressaltou a
iniciativa da criança em se aproximar e
intentar estar junto deles o tempo todo. Vê-se
aí um certo protagonismo, uma autonomia e
liberdade que a criança detinha. Ao se juntar
aos padres para aprender, o autor observa
que Acaiuy Miry “ficava silencioso e recatado
sem interromper-nos para coisa alguma, ou
por leviandade, o que não é comum em
meninos desta idade (tão prudentes e
civilizados fossem eles!)” (ABBEVILLE, 1874,
p. 111). O silêncio e o recato se sobressaíam
como forma de aprendizagem apropriada ao
contexto da tribo. O padre ainda destacou
que o menino era “cordato e bem ensinado”.
Parece que a figura do padre, representava
uma autoridade tal qual os mais velhos
representavam em sua tribo. Talvez, por isso,
o religioso tenha atraído tanta atenção da
criança.
Podemos desconfiar de que esse
“silêncio e recato” destacados pelo religioso,
seriam muito mais características almejadas
por eles em uma nova sociedade ideal que
estaria se formando – A França Equinocial –
do que efetivamente, características das
crianças tupinambás. Porém, ao cruzarmos
tais informações com as do padre jesuíta
Fernão de Cardim (1925), referindo-se aos
tupinambás da Bahia, percebemos uma certa
semelhança, o que nos faz supor que, mesmo
que houvesse algum exagero da parte de
Abbeville, de fato, o silêncio era uma forma
de aprendizagem presente entre os as
crianças nativas do Maranhão.
A liberdade que a criança tupinambá
tinha é demonstrada em outro trecho do
relato de Abbeville (1874, p. 326-327) ao
ressaltar que elas “crescem à vontade” e suas
mães lhe “dão ampla liberdade para fazerem
o que quiserem não os repreendendo nunca”.
A despeito dessa liberdade, o padre observou
que as crianças eram obedientes e não
contrariavam os seus pais. Esse respeito à
hierarquia é ressaltado, não tendo o autor
registrado nenhum momento de desavença
entre pais e filhos. Inclusive, ao mencionar o
casamento, enfatiza que quando a filha era
prometida desde o nascimento para outra
família, assim o cumpria, embora não tivesse
a obrigação de continuar casada a vida
inteira, em caso de desentendimento com o
marido.
Pelo relato de Abbeville (1874) percebe-
se que é observando, imitando e repetindo
que as crianças tupinambás aprendiam.
Acaiuy Miri exercitava sua aprendizagem
transmitindo com satisfação o que aprendia
com o padre aos seus companheiros. Para
obter sucesso nessa tarefa o menino
desenvolveu, inclusive, técnicas como riscar
com um pau na terra o número de
mandamentos bíblicos a fim de facilitar a
memorização dos mesmos, demonstrando,
com isso, astúcia e criatividade.
63
 Numa cultura ágrafa como a dos povos
amazônicos do século XVII, a memória tinha
um papel fundamental posto que os saberes
eram transmitidos por meio dela. Seu valor
foi destacado pelo padre Yves D’Évreux
(2007, p. 311) ao descrever que as crianças
“não esqueciam nenhuma única palavra de
que havíamos dito, mas recitavam o todo a
seus pais e mães tendo voltado para suas
casas”.
Tais características – observação,
imitação e repetição – foram percebidas em
outras situações relatadas por Abbeville
(1874), como na habilidade dos meninos em
pescar. É provável que tais meninos tenham
aprendido essa função – que o autor coloca
como seu principal serviço – observando e
imitando seus pais. Ao evidenciar que essa
prática durava “longas horas” é perceptível a
aprendizagem de valores como perseverança
e paciência para a realização da atividade.
No relato de Abbeville é visível que as
crianças estavam sempre envolvidas nas
experiências cotidianas dos adultos e
também nos rituais que marcavam o
calendário do grupo como as beberagens, por
exemplo. As beberagens estavam na
centralidade da vida cotidiana indígena
sendo um ritual presente em diversos
momentos significativos do grupo como o
nascimento, a perfuração do lábio inferior
dos meninos, a menarca, o casamento, os
funerais, entre outros. Nesses momentos,
valores eram transmitidos para as crianças,
configurando-se as beberagens como práticas
educativas. Além disso, a fabricação das
bebidas era tarefa feminina aprendida desde
a mais tenra idade, quando as meninas
ganhavam dentes de presente em alusão à
futura tarefa de mastigação da qual viria a
fermentação do cauim (ALBUQUERQUE,
2012).
Évreux (2007) ressaltou também a
presença das crianças nos momentos de
trabalho ao relatar a construção do forte de
São Luís. Segundo ele, “não trabalhavam
somente os homens e sim também as
mulheres e meninos, aos quais eles davam
pequenos cestos para carregar terra conforme
suas forças”. Ambos reiteram que, em tais
momentos, a criança mantinha recato e
silêncio, sugerindo que aprendiam,
sobretudo, através da observação e imitação.
A curiosidade das crianças tupinambás
é observada pelo capuchinho. Segundo ele,
quando passavam pela residência dos
religiosos, elas sempre os procuravam. E
durante o processo de aprendizagem “se
mostram atentos”. Ao utilizar imagens para
ensinar a doutrina cristã aos meninos e às
meninas, Évreux (2007, p. 310) se viu
satisfeito pois as crianças eram insistentes em
saber o significado de tais imagens e não os
“deixavam de repouso” enquanto não as
compreendessem. Aqui percebe-se,
novamente, a persistência e a curiosidade
para aprender.
Évreux (2007), também destacou a
aprendizagem pela imitação observada nas
brincadeiras das meninas. Segundo ele, as
meninas, conforme sua capacidade, se
divertiam fiando algodão, com o qual faziam
as redezinhas e amassavam o barro que
usavam para fazer pequenos potes e panelas.
Esse exercício, realizado na fase do
Kugmantin-myri (até os seis anos de idade),
servia como preparação para a aprendizagem
das atividades próprias da mulher nativa que
começariam, de fato, a partir dos 7 anos.
A partir desta idade as meninas
deveriam aprender a “fiar algodão, tecer
redes, semear plantas na roça, fazer vinhos,
preparar carnes” (ÉVREUX, 2007, p. 81). O
autor destaca que, na presença dos homens,
as moças (sete a quinze anos) guardavam
completo silêncio e mantinham maior
diálogo com as moças da sua idade. A
aprendizagem então, ocorria também pelas
trocas entre os pares. Essa aprendizagem
coletiva é visível no texto de Évreux (2007, p.
310) quando destaca que as crianças sempre
procuravam os padres “em bandos”. Com
isso fica evidenciado que o silêncio era
mesmo um valor importante na cultura
tupinambá e uma forma importante de
aprender. Era de forma silenciosa que
crianças e adolescentes observavam e
imitavam os mais velhos, e aprendiam os
saberes que os identificavam como nação;
saberes esses fundamentais para que tais
crianças exercessem o papel social que lhes
cabia no grupo.
64
 Contrapondo-se à visão de Florestan liberdade, esqueceu o que havia
Fernandes (1963) para quem, a aprendizagem aprendido, e foge para o mato quando o
se realizava na comunidade em que todos se padre o procura (ÉVREUX, 2007, 341).
educavam mutuamente, Thomas (2014)
Assim, é possível observar que
defende o papel preponderante da família,
liberdade e autonomia, presentes nas práticas
onde as funções sociais fortemente
educativas das crianças tupinambás, falavam
delimitadas, direcionavam o processo
mais alto quando elas chegavam à
educativo. Para ele, portanto, a educação das
puberdade. Possivelmente, elas não
crianças e a formação da identidade dos
esqueciam o que aprendiam, como supunha
tupinambás ocorria, principalmente, no
o pai, pois a memória tinha papel
núcleo familiar pela sua estruturação
fundamental em seu processo educativo. O
demarcada, sobretudo, nos ritos de
mais provável é que a falta de significado dos
passagem, nos quais os papéis de pais e filhos
conceitos cristãos para as crianças, as
eram bem definidos.
demovessem da permanência nesse novo
Entretanto, quer fosse na família ou na
estilo de vida. Além disso, ao fugir dos
sociedade, a educação das crianças ainda se
padres, as crianças demonstravam sua
dava de forma coletiva, no grupo social.
identificação com o grupo ao qual pertenciam
Nesse contexto, as representações coletivas
originalmente, fazendo valer seus costumes.
construídas pelas crianças nas relações de
Brandão afirma que a educação é “uma
aprendizagem, lhes conferiam uma
unidade cultural agenciada e responsável
identidade social e marcavam a existência do
pela criação de tipos de pessoas e de
grupo. Essa aprendizagem não ocorria
identidades através da aquisição motivada e
somente nos rituais, mas se dava no
sistemática de tipos de saberes, de valores, de
cotidiano, na realização de tarefas, e/ou nas
sensibilidades” (BRANDÃO, 2002, p. 151).
brincadeiras ou na simples observação
Depreende-se, assim, que se não houver
silenciosa das ações dos mais velhos.
motivação, ou seja, significado, os saberes
Nas relações educativas estabelecidas
não serão apropriados e, portanto, não
entre crianças e religiosos havia uma
haverá educação. É o que parece ter ocorrido
preocupação, destes últimos, em conquistar
no início do século XVII na Amazônia. O
primeiro as crianças pois assim, em sua visão,
conhecimento trazido pelos religiosos não
elas se disporiam a aprender. Isso demonstra
tinha significado suficiente para motivar as
que, naquele contexto, a aprendizagem
crianças, pelo menos a partir do momento em
necessitava ser significativa para a criança
que chegavam à puberdade.
por ser este o modo como aprendiam no seu
dia a dia.
Nos relatos dos padres nota-se que nem
sempre eles tiveram sucesso nessa conquista
posto que algumas crianças abandonavam CONSIDERAÇÕES FINAIS
tudo o que haviam aprendido retornando
para a mata quando chegavam à puberdade. A história da infância na Amazônia
Um exemplo disso é o que aconteceu com o já colonial tem sido pouco estudada pelos
citado Acaiui-Miri.2 Seu pai, em entrevista historiadores e educadores, provavelmente,
com padre Évreux, relata a preocupação com pela exiguidade de fontes que abordem
o filho que, de acordo com ele, diretamente o assunto. Todavia, inspiradas
nos pressupostos da história cultural, que
depois de cristão, logo no princípio
procedeu bem; já sabia ler um pouco no amplia o conceito de fontes, é possível
seu Cotiare, e escrever, estava sempre com investigar a temática por meio das crônicas
o padre, e o seguia por toda a parte. de religiosos que viveram na região naquele
Deixou depois tudo isso, entregou-se à período.

2A grafia do nome Acaiu-Miri difere nos textos de Abbeville

e Évreux embora se trate da mesma pessoa.

65
 Os documentos investigados neste
estudo nos permitem apontar algumas
características da educação ocorrida no
cotidiana das crianças tais como: a repetição,
observação e a imitação. Dos relatos também
extraímos a curiosidade e a avidez dessas
crianças para aprender, a persistência e a
atenção nos processos de aprendizagem.
As relações familiares eram
fundamentais para que a criança entendesse
e cumprisse seu papel na sociedade indígena.
Os mimos das mães marcaram a observação
dos capuchinhos, pois, para eles, tais mimos
criavam um vínculo importante com a
criança, o que explicaria o fato de elas serem
obedientes e buscarem imitar seus pais em
tudo. As brincadeiras das crianças remetiam
ao seu futuro papel no grupo.
Os dados analisados até aqui
evidenciam que as crianças Tupinambás, que
viveram no início do século XVII na
Amazônia, foram importantes mediadoras
culturais para a manutenção da cultura
indígena na região pois não absorviam
passivamente a cultura imposta pelo
catolicismo, mantendo forte vínculo com sua
cultura e identidade.
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67
BREVE ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES
sobre os indígenas em canções
de artistas da Amazônia (1988-1993)

* Jessica Maria de Queiroz Costa

Resumo: No período de 1988-1993, pós-término do regime civil-militar e aprovação da

Constituição Brasileira de 1988, aprofundam-se questões acerca de políticas indígenas, o futuro
do meio ambiente, debates ecológicos presentes em importantes eventos, como a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente - Eco 92, os quais evidenciam o valor e importância da
Amazônia. E, dentro da música, tais apontamentos se encontram presentes em canções de artistas
da Amazônia, como Mosaico de Ravena (PA) e Raízes Caboclas (AM), sendo que, a imagem do
indígena aparece como um dos temas principais a serem abordados. Portanto, este trabalho tem
por objetivo analisar representações sobre o índio que eram produzidas nas letras de músicas
desses artistas amazônidas, no referido período.
Palavras-chave: Representação. Indígena. Amazônia. Música. Artistas.

DIÁLOGO ENTRE MÚSICA E NOVA indígena, principalmente no que se refere à

HISTÓRIA INDÍGENA
Ao cruzar os eixos da história indígena
e da música, depara-se com diversas
possibilidades de estudo que podem
contribuir para melhor construção da
historiografia de ambas as áreas. Analisar as
várias formas de enxergar os indígenas na
música, suas estruturas e elementos, suas
influências na música brasileira são temas e
alternativas pertinentes, uma vez que
apresentam um universo repleto de
perspectivas.
Logo, neste trabalho será enfatizado o
período de 1988 a 1993, tendo em vista que,
este momento abarca lançamentos de vários
LPs1 de artistas que alcançaram considerável
reconhecimento (de nível regional ao
nacional) e que apresentavam várias faces da
Amazônia e o imaginário amazônico como
um dos grandes pontos de foco e discussão.
Além de este contexto musical
apresentar enaltecimento à temática
luta pela elaboração da Constituição de 1988,
reconhecendo seus direitos através dos
artigos 231 e 232, bem como, se impulsionava
os debates sobre o Meio Ambiente e História
e Natureza (HORTA, 2013). Exemplo disso
são as várias conferências, encontros e
eventos como a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente - Eco 92 –,
realizada no Rio de Janeiro, a qual foi a
primeira grande reunião entre chefes de
Estados para tratar sobre o Meio Ambiente e
sua degradação.
Ao adentrar neste cenário musical
amazônida, nas décadas de 1980 e 1990, os
LPs “Amazonas” (1988), “Em Dez anos –
volume 1” (1992) e “Cave Canem” (1992),
respectivamente, dos artistas Raízes Caboclas
(AM), Nilson Chaves (PA) e Mosaico de
Ravena (PA), são alguns dos trabalhos
musicais selecionados, uma vez que,
apresentam temáticas relacionadas aos
indígenas2, no que se refere a sua situação
social, política e cultural.

* Mestranda em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior. Cidade Nova 2, WE 12, nº 552. Ananindeua, PA. CEP: 67130150. Correio eletrônico:
jessicamqcosta@gmail.com
1 Long Play em inglês ou Disco de Vinil em português.
2 Nota-se aqui a ciência da ideia de diversidade e pluralidade das nações indígenas.

69
 Dentro dessa “efervescência”3 musical
(MOREIRA, 2014, p.15) na Amazônia, entre
as décadas de 1980 e 1990, a utilização de
elementos indígenas para a composição dos
perfis musicais destes artistas, contribuiu
também para construir e/ou condensar
aspectos da região da Amazônia e os povos
da floresta (COELHO, 2005, p. 21) para o
público afora. A partir disso, os
questionamentos desse artigo se voltam para:
Quais representações sobre os indígenas são
percebidas nas letras de músicas desses
artistas? E qual a importância delas para
pensarmos os povos indígenas atualmente?
Estas perguntas se tornam pertinentes já
que se é colocado o indígena como um dos
destaques para o fomento da música
elaborada na Amazônia e, pode-se definir
que muitas vezes representações que se
apresentam sobre o indígena recaem em
generalizações e estereótipos. Ainda que,
entre as décadas de 1970 e 1980, a
historiografia brasileira esteja revendo
lugares estereotipados que foram destinados
aos índios e haja grande visibilidade da
articulação do movimento indígena na luta
por direitos básicos (Constituição de 1988),
algumas visões sobre os grupos indígenas
apresentavam (e ainda apresentam) conceitos
controversos.4
3 Discute-se que essa ideia de “efervescência” deve ser
atribuída às décadas de 1970, 1980 e 1990 também,
principalmente a partir de 1975, devido à grande recepção
de estilos musicais oriundos de várias partes da América do
Sul e da América Latina que influenciaram os artistas
paraenses em sua musicalidade. Mediante a essa atribuição
de “efervescência” também à década de 1970, é natural que
a própria ideia de “efervescência” seja questionada, já que se
percebe que a movimentação musical paraense e seu debate
transcendem limites de tempo.
4 A historiografia passou a questionar sua perspectiva sobre
a história indígena, para começar a enxergar o indígena
como protagonista de sua própria trajetória, entretanto
ainda continua sendo fundamental, no meio acadêmico,
elucidar a participação dessas sociedades indígenas como
sujeitos ativos. Esta é uma das maneiras de afirmar que
Manuela Carneiro da Cunha salienta que as sociedades
indígenas são protagonistas de seu processo histórico. Assim
REPRESENTAÇÕES SOBRE OS
INDÍGENAS NAS MÚSICAS DE
ARTISTAS DA AMAZÔNIA
Nas décadas de 1980 e 1990, no cenário
musical da Amazônia, há uma grande
concentração de artistas que se aproximam
de elementos da Amazônia, aspectos da
fauna e flora para a construção de trabalhos
musicais. Entretanto, neste trabalho em
específico, os artistas escolhidos foram
Nilson Chaves5 (PA), Mosaico de Ravena6
(PA), Raízes Caboclas (AM)7, por conta de
um processo similar, em que este grupo de
artistas apresentava um assunto em comum
em suas músicas: inserir a Amazônia, desde
a sua sonoridade de flora e fauna aos seus
habitantes nas composições e musicalização,
além de exaltá-la como um lugar ímpar que
precisava ser enxergado e preservado por
todos.
Para estudar mais a fundo as referências
e representações sobre os indígenas na
música, infere-se as discussões proeminentes
de autores acerca da Nova História Indígena
(ALMEIDA, 2003; CUNHA, 1992;
MONTEIRO, 1999). Assim, foi possível o
estudo de tais referências, além de indicar
algumas categorias de análise que
identificam características estereotipadas em
relação aos indígenas, visto que, para o
desenvolvimento da discussão, utilizar-me-ei
das categorias: 1) “bom/ mal selvagem”; 2)
“indígena enxergado no passado” e 3)“índio
puro” para dialogar com as canções dos
artistas mencionados.
como John Monteiro destaca o protagonismo indígena ao
indicar a construção de uma “nova” história indígena, haja
vista que, esta historiografia, de certo modo recente, traz a
investigação das diferentes perspectivas que os indígenas
exercem e apontam sobre o passado.
5 Nilson Chaves é um dos grandes músicos paraenses que
ainda atua na atualidade. Ele iniciou sua carreira artística –
teatro e música - ainda muito jovem na década de 1960.
Ainda com 17 anos, em 1968, o artista decide viver de música
e morar no Rio de Janeiro, desde então, sua carreira seria
construída entre Rio de Janeiro e Belém.
6 É uma banda de heavy metal paraense que se tornou
bastante conhecida na década de 1980. Muitos críticos a
reconhecem como a primeira banda de heavy metal do
Brasil.
7 Grupo musical formado no início da década 1980 e tem
como embasamento musical a abordagem das raízes
culturais da Amazônia.
70
 E, para a melhor compreensão do uso
de representações sobre os índios, configura-
se neste trabalho o conceito de representação
de Roger Chartier (CHARTIER, 1988, p. 17).
Por intermédio desses apontamentos teóricos
e metodológicos de análise, tornou-se
possível enxergar perspectivas em relação a
figura do índio nas músicas produzidas pelos
artistas citados, como na música “Belém,
Pará, Brasil” que pertence a banda Mosaico
de Ravena a qual traz o seguinte trecho
Belém, Pará, Brasil 8 (Edmar Rochar)
Vão destruir o Ver-o-Peso
Pra construir um Shopping Center
Vão derrubar o Palacete Pinho
Pra fazer um Condomínio
Coitada da Cidade Velha,
que foi vendida pra Hollywood,
pra se usada como albergue
no novo filme do Spielberg
Quem quiser venha ver
Mas só um de cada vez
Não queremos nossos jacarés
tropeçando em vocês
A culpa é da mentalidade
Criada sobre a região
Por que é que tanta gente teme?
Norte não é com M
Nossos índios não comem ninguém
Agora é só hambúrguer
Por que ninguém nos leva a sério ?
Só o nosso minério
Quem quiser venha ver
Mas só um de cada vez
Não queremos nossos jacarés
tropeçando em vocês
Aqui a gente toma guaraná
Quando não tem Coca-Cola
Chega das coisas da terra
Que o que é bom vem lá de fora
Transformados até a alma
sem cultura e opinião
O nortista só queria fazer
parte da Nação
Ah! chega de malfeituras
Ah! chega de tristes rimas
Devolvam a nossa cultura!
Queremos o Norte lá em cima!
8Música presente no LP Cave Canem. Belém do Pará, 1989.
Por quê? Onde já se viu?
Isso é Belém!
Isso é Pará!
Isso é Brasil!
(grifo nosso)
Primeiramente, deve-se entender que a
música acima traz certo apelo contra alguns
preconceitos e a “mentalidade” cheia de
estereótipos construídos, principalmente por
aqueles que moram fora do Estado do Pará
ou da região amazônica e não apresentam
conhecimento mais palpável sobre a
dinâmica desse espaço. Além disso, a música
“Belém, Pará, Brasil” se transformou em uma
espécie de “hino paraense”, por criticar tais
posturas preconceituosas e também por
apontar alguns elementos e lugares
concernentes à região amazônica, mais
especificamente à cidade de Belém do Pará,
uma vez que, o guaraná, o jacaré, o mercado
do Ver-O-Peso, a obra arquitetônica Palacete
Pinho e o bairro histórico da cidade velha são
citados na canção.
O verso destacado acima evidencia
algumas categorias de análise referente aos
indígenas já mencionadas anteriormente,
como o índio “mal selvagem”, haja vista que,
o trecho “Nossos índios não comem
ninguém/ Agora é só hambúrguer”
demonstra que os indígenas são enxergados
como canibais, isto é, vistos sob uma ótica
distorcida que acaba generalizando
concepções do modo de vida de povos
indígena.
Entre alguns grupos indígenas do
período colonial, por exemplo, não havia
“canibalismo”, que pressupõe o consumo de
carne humana para alimentação como único
objetivo, mas sim “antropofagia”, que era
cercado de uma série de rituais. E mesmo
assim não eram todos os grupos indígenas
que a praticavam, explica a pesquisadora
Manuela Carneiro da Cunha:
Os Tupi, no entanto, não são canibais, e
sim antropófagos: a distinção que é, num
primeiro momento léxica, e mais tarde,
quando os termos se tornam sinônimos ,
semântica, é crucial no século XVI, e é ela
quem permitirá a exaltação do índio
71
 brasileiro. A diferença é esta: canibais são
gente que se alimenta de carne humana;
muito distinta é a situação dos tupi que
comem seus inimigos por vingança.
(CUNHA, 1990, p.99)
Desta forma, ainda que o falar português, participar de discussões
antropofagismo tenha sido o ato
comportamental praticado pelos Tupi no
período colonial, é o “canibalismo” que
reverbera no pensamento comum. Além
disso, deve-se notar que no decorrer do
tempo, fatores externos de não indígenas
influenciaram os índios em seus modos de
vida, em sua sociedade, portanto “comer
hambúrguer” não deve ser pré-concebido
como algo ruim, pois, desta maneira,
culmina-se em outra categoria, a do “índio
puro” - concepção que tende a aprisionar as
possibilidades de mudanças sociais, culturais
e políticas das etnias indígenas, de acordo
com suas perspectivas de mundo.
Assim, dentro deste pensamento
comum sobre os povos indígenas se
configura várias problemáticas que tendem a
formalizar uma reprodução de conceitos
sobre os referidos sujeitos, sendo que, para
João Pacheco de Oliveira o conceito de índio
que ainda está muito presente na sociedade é
daquele que constitui um indicativo de um
estado cultural, claramente manifestado
pelos termos que em diferentes contextos
o podem vir a substituir - silvícola, incola,
aborígene, selvagem, primitivo, entre outros.
Todos carregados com um claro
denotativo de morador das matas, de
vinculação com a natureza, de ausência
dos benefícios da civilização (OLIVEIRA,
1995, p.78).
Esses termos se debruçam em uma
discussão muito mais ampla que é justamente
a desconstrução de conceitos estereotipados
sobre os grupos indígenas, uma vez que, eles
não seguem um padrão restrito e inflexível de
costumes e comportamentos e modos de vida
imutáveis. Sobre as diversas mudanças
9Claudioval Saint Clair da Silva Costa nasceu em Almeirim,
no Baixo Amazonas em 1941. Ainda com poucos meses de
vida foi trazido a Belém, onde a sua família passou a morar
definitivamente. Ele foi ator, compositor e contrabaixista.
Dono de uma grande carreira musical, compôs juntamente
com Nilson Chaves a música “Amocariu”. Informações
disponíveis em http://saintclairdubaixo.blogspot.com.br/.
estruturais dentro dos grupos indígenas, a
pesquisadora Maria Regina Celestino de
Almeida destaca:
Importa reconhecer que os movimentos
indígenas da atualidade evidenciam que
políticas, reivindicar direitos através do
sistema judiciário, enfim, participar
intensamente da sociedade dos brancos e
aprender seus mecanismos de
funcionamento não significa deixar de ser
índio e sim, a possibilidade de agir,
sobreviver e defender seus direitos. São os
próprios índios hoje que não nos permitem
mais pensar em distinções rígidas entre
índios e brancos. (ALMEIDA, 2003, p. 20)
Além dessas perspectivas, é possível
também perceber como elementos indígenas
e as próprias palavras de cunho indígena
estão presentes na língua portuguesa, de
modo que no cenário musical amazônida tais
aspectos se fazem presentes nas canções de
Nilson Chaves. No repertório musical deste
último, em sua maioria, desde a composição
até a sonoridade, é possível identificar
referências à natureza, à Amazônia, aos
indígenas.
Ao se olhar para as referências
indígenas do LP “Dança de Tudo”, a música
“Amocariu” aparece como uma das músicas
que mais as evidenciam. “Amocariu”, que
teve como compositores Saint Clair Dú Baixo9
e Nilson Chaves, foi lançada primeiramente
no referido LP e posteriormente relançada no
CD “Em Dez anos – volume 1”, tem como
significado “saudade de quem se foi”10 ou
“adeus, estou partindo pra nunca mais
voltar”11. Conforme o cantor, a letra da
música traz uma lenda12 que reúne um
conjunto de palavras de origem indígena,
como se pode ler abaixo
10Informação disponível em:
http://presoacancoes.blogspot.com.br/2008/03/tecai-
tutera-amocariu.html.
11Idem.
12Entrevista com Nilson Chaves realizada em 26 de agosto
de 2016.
72
 Amocariu 13 (Saint Clair do Baixo) conscientização em relação à floresta
amazônica.15
Tecai tutera O grupo musical Raízes Caboclas,
Amocariu oriundo do Estado do Amazonas, mais
Itororó, pirajá precisamente do município de Benjamin
Perebebuí, Constant, que também abraça questões sobre
Cajurú, a floresta e seus povos em suas músicas, bem
Cametá, como são referenciados elementos e
E Marajó representações sobre os indígenas, como na
Foi o curumim letra abaixo
Para adormecê
Na samaúma Sangue Verde16 (Celdo Braga,1988)
Mãe da floresta
Plumas ao vento Amazonas das mulheres guerreiras
Itaguari Amazonas das lindas corredeiras
Tecai tutera Amazonas das selvas perdidas
Amocariu De mil tribos feridas
Pelas mãos traiçoeiras
Nilson Chaves diz que a partir dela é No silêncio da noite
contada uma lenda amazônica, que de acordo Num torpor de agonia
com o músico Repousa o gigante
Pra tomar no outro dia
um índio curumim todo dia dormia no pé Só a brisa reclama
da árvore de samaúma, um dia, ele mais Só o vento assovia
cansado não conseguir chegar ao pé da
Só o rio testemunha
samaúma e dormiu em outro lugar e
quando ele levantou pela manhã em Tanta selvageria
direção a samaúma, a samaúma de ciúmes Corre rio Amazonas
por ele não ter dormido com ela, caiu em Numa eterna sangria
cima dele e morreu junto com ele.14 Corre sangue lavando
O que a lama escondia
Esta lenda indígena traz o índio como Segue a história ocultando
personagem inserido na floresta e mostra a Tanta dor e agonia
sua relação com a natureza, habitual visão Segue a selva chorando
associada por não-índios, mais Esperando outro dia
especificamente com a árvore samaúma que Segue a selva chorando
lhe serve de abrigo para descanso e que traz Segue os índios morrendo
uma relação de troca que a natureza Segue os brancos matando. (grifo
estabelece com os sujeitos que a utilizam. nosso)
Apesar deste trabalho não analisar
especificamente a composição de aspectos Na letra dessa música, percebem-se
completos da música em si, como melodia e várias discussões, uma delas é a denúncia do
arranjo nota-se as sonoridades da floresta, os genocídio indígena pelo homem branco e
sons dos animais. Ademais, o cantor Nilson como alguns acontecimentos da história
Chaves aponta como é fundamental que haja permanecem ocultos, uma vez que são
uma união entre a própria população e os escritos pela perspectiva não indígena, essa
artistas da Amazônia, de forma que se possa continuidade também é percebida nos livros
despertar em todos uma preocupação e uma

13Música do álbum “Dança de Tudo” (1981) e posteriormente 14Entrevistacom Nilson Chaves realizada em 26 de agosto
lançada novamente “Em Dez anos – volume 1” (1992) de de 2016.
Nilson Chaves, ano 1981. 15Idem.
16Música presente no LP Amazonas (1988).

73
didáticos.17 Sobre a música “sangue verde”,
Raimundo Cardoso aponta também que
Temos aqui como pano de fundo a
exuberante floresta testemunhando a
invasão da região amazônica pelos
primeiros colonizadores (portugueses e
espanhóis). Vemos também a resistência
dos povos indígenas em não aceitarem tal
opressão, tendo somente a própria
natureza como testemunha à enorme
violência a esses povos e não tendo
ninguém mais a interceder por eles (...).
(CARDOSO, 2018, p. 59)
Portanto, como explica Cardoso, nas
músicas do grupo Raízes Caboclas
encontram-se denúncias que ainda que se
remetam ao período colonial e que apontem
os indígenas como vítima da violência de não
indígenas, podem ser projetadas para o
tempo presente, uma vez que as disputas e
demarcações de terras das sociedades
indígenas ainda continuam sendo um
problema grave no Brasil.
As terras indígenas continuam sendo
invadidas por fazendeiros, madeireiros e
garimpeiros. Os invasores acreditam que os
indígenas “possuem terras demais”, que
“não as aproveitam para a produção”.
Todavia, tais discursos superficiais diluem-se
em debates antropológicos e sobre os direitos
e garantias constitucionais. No que se refere
aos direitos dos índios, desde 1988, há o
reconhecimento constitucional de sua
organização social, costume, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, protegê-las
e fazer respeitar todos os seus bens. (BRASIL,
2016, p. 133)
Sobre as disputas de terra em que os
povos indígenas continuam sofrendo graves
ameaças, até mesmo à sua própria existência,
Julio José Araújo Junior aponta que
De um lado, constituem um obstáculo as
ações do Estado, que deseja explorar
recursos hídricos e minerais em áreas
menos visadas e exploradas, como
comprova o empreendimento de Belo
Monte, no Pará. De outro, o agronegócio
17Sobreo tema ver mais em COELHO, Mauro Cezar. As
populações indígenas no livro didático, ou a construção de
vê nas terras indígenas um entrave para a
exploração econômica e para a expansão
da fronteira agrícola. (JÚNIOR ARAÚJO,
2018, p.175)
Logo, a música “sangue verde” também
traz uma perspectiva de denúncia contra as
atrocidades que os povos indígenas sofreram
e ainda sofrem. Ainda que a mesma tenha
sido pensada para denunciar tais fatos que
aconteceram no período colonial, como
explica Cardoso (2017, p. 59), não há como
isolá-la de uma projeção para uma realidade
mais tangente em que se encontram os povos
indígenas, haja vista que, “segue os índios
morrendo/ segue os índios matando”
continua sendo algo factual no Brasil.
Sobre essas correntes confrontações em
que a terra é um foco de disputa, vividas não
somente pelos povos indígenas, mas também
por outras comunidades que precisam da
floresta e da terra para viver de acordo com
os seus costumes, Sônia Maria Araújo diz que
As condições às quais estão submetidas as
populações
ribeirinhas, quilombolas e indígenas da
região, em função da ação do grande
capital em parceria com o Estado, são de
causar espanto. Mas, também, na mesma
medida, é de causar perplexidade a
qualquer ativista a capacidade dessas
populações em se organizar, resistir e
enfrentar estas investidas. (ARAÚJO, 2009,
p. 46)
Nesse sentido, nota-se que ainda que os
grupos da floresta sejam constantemente
ameaçados, submetidos a situações violentas,
muitas vezes dispostos em condição de
descaso pelo próprio Estado e/ou
enxergados como entraves para satisfazer
interesses de outros, há inúmeros
movimentos e organizações que atuam em
posição contrária a essa conjuntura
problemática.
um agente histórico ausente. Anais... Reunião da ANPED, 30.
Caxambu, ANPED, 2007.
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS sociedade, seja através da arte, da música, do
teatro e, principalmente, da educação, torna-
se fundamental para promover uma
Este trabalho traz a historiografia
sociedade mais justa e de equidade. Desse
indígena como fator fundamental para
modo, escrever este trabalho é lembrar que o
discutir como os indígenas podem ser
ofício do historiador é, sobretudo, um
representados em músicas de alguns artistas
compromisso social.
da Amazônia, no período de 1988-1993, no
qual se presenciava uma efervescência, no
meio artístico, político e sociocultural. O
enaltecimento e valorização da Amazônia se REFERÊNCIAS
torna um ponto positivo, na medida em que
se destacam os problemas que esse espaço e
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.
seus habitantes, viviam naquele momento,
Metamorfoses Indígenas: Identidades e
embora os mesmos embates desse período
Cultura nas Aldeias Coloniais do Rio de
ainda estejam vigentes no Brasil.
Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo
A música apresenta um caráter de
Nacional, 2003.
comunicação grandioso, mesmo que naquele
BRASIL. Constituição da República
período a propagação de materiais musicais
Federativa do Brasil de 1988.
se voltasse especificamente para o rádio.
ARAÚJO, Sônia Maria da Silva. A
Ainda que houvesse apenas o rádio como o
constituição do Sujeito e a diversidade
meio de divulgação de seus trabalhos, os
ameaçada da Amazônia. Revista
artistas do Mosaico de Ravena (PA), Nilson
Múltiplas Leituras, v.2, n. 1, p. 39-49, jan.
Chaves (PA) e o Grupo Raízes Caboclas (AM)
/ jun. 2009.
elaboraram canções que se tornaram
CARDOSO, Raimundo Gérson Luzeiro.
conhecidas, em nível regional e nacional, ao
Sonoridade da floresta: Grupo Raízes
focalizarem o mundo Amazônico, os grupos
Caboclas. Dissertação (Mestrado em
e povos da floresta como personagens
Sociedade e Cultura na Amazônia) –
principais de suas letras.
Instituto de Ciências Humanas e Letras.
Infelizmente, os povos indígenas ainda
Universidade Federal do Amazonas,
sofrem com preconceitos e discriminações
Manaus, 2017.
que foram moldados desde tempos coloniais
CHARTIER, Roger. A História Cultural:
até os dias de hoje. Se durante praticamente
entre práticas e representações. Tradução
toda a historiografia brasileira, desde o século
de Maria Manuela Galhardo. Lisboa:
XIX com a criação do IHGB, o discurso que
Difusão Editorial, 1988, 244 p.
formou-se em torno dos povos indígenas era
CHIARADIA, Clóvis. Dicionário de palavras
o de assimilação na sociedade, de forma que
brasileira de origem indígena. São Paulo:
desaparecessem enquanto grupos étnicos, a
Limiar, 2008.
Constituição de 1988 vem garantir seus
COELHO, Mauro Cezar. As populações
direitos enquanto povos originários. De
indígenas no livro didático, ou a
acordo com Manuela Carneiro da Cunha
construção de um agente histórico
(1995, p 131) os índios estão aqui para ficar,
ausente. Anais... Reunião da ANPED, 30.
onde bem quiserem e têm lutado e resistido
Caxambu, ANPED, 2007.P.6. Disponível
por isso há muito tempo.
em:
Além de destacar e analisar as letras de
http://www.anped.org.br/sites/default
músicas, este trabalho traz para o debate a
/files/gt13-3000-int.pdf
situação atual desses grupos indígenas da
______. Introdução In: Do sertão para o mar –
Amazônia brasileira. Os embates que esses
Um estudo sobre a experiência
agentes enfrentaram nas décadas de 1980 e
portuguesa na América, a partir da
1990 ainda estão presentes nos dias de hoje.
colônia: o caso do Diretório dos Índios
Nesse sentido, discutir sobre o lugar de quem
(1751 -1798). Tese de doutorado em
fora historicamente invisibilizado na

75
 História Social, Universidade de São
Paulo, 2005a.
COSTA, J. M. Q. Imagem e Representação do
Índio na Música Paraense (1975-1985).
Monografia. Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade
Federal do Pará, Belém, 2017.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de
índios do Brasil: o século XVI. Estud.
av., São Paulo , v. 4, n. 10, p. 91-
110, Dec. 1990. Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?scrip
t=sci_arttext&pid=S010340141990000300
005&lng=en&nrm=iso>Acesso em
10 Jan. 2019. http://dx.doi.org/10.159
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______ (org.). História dos Índios no Brasil.
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MORAES, Cleodir. O norte da canção:
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Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-graduação em História.
MOREIRA, Nélio. A música e a cidade
práticas sociais e culturais na cena da
canção popular em Belém do Pará na
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(Mestrado em Ciências Sociais da
Amazônia) – Instituição de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará – UFPA. Belém, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
OLIVEIRA, João Pacheco de Oliveira. Muita
terra para pouco índio? Uma introdução
(critica) ao indigenismo e a atualização
do preconceito. In: SILVA, Aracy Lopes
da. GRUPIONI, Luíz Donizete Benzi
(Orgs). A Temática Indígena na História:
Novos subsídios para professores de 1º e
2º graus. Brasília –
MEC/MARI/UNESCO, 1995. p. 60-81.
FONTES
Material Sonoro
Nilson Chaves. Em Dez anos – Volume 1.
Outros Brasis. 1992. CD.
Mosaico de Ravena. Cave Canem. Atração
Fonográfia Ltda.1989. LP.
Raízes Caboclas. Amazonas. Odeon. 1991. LP.
Vídeos
MOSAICO DE RAVENA. Belém, Pará, Brasil.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=8r
_2NX6aB0k
Entrevistas
CHAVES, Nilson. Entrevista concedida a
mim. Belém, 24 de agosto de 2016.
76
OS ÍNDIOS NO GRÃO-PARÁ:
o impacto das experiências no Diretório dos Índios (1681-1757)

* Luana Melo Ribeiro

Resumo: O artigo tem por objetivo analisar, a partir das experiências indígenas, o processo de
formulação do Diretório dos Índios enquanto documento que, com base em experiências coloniais
anteriores a sua formulação, visava redinamizar a política de colonização no norte da América
portuguesa. O Diretório foi redigido levando em consideração as relações observadas entre
indígenas, missionários e colonos no cotidiano amazônico, especialmente nos aldeamentos
missionários, sendo este um espaço de negociação e conflitos. A análise abrange o período entre
1681 a 1757, da criação da Junta das Missões até a publicação do Diretório dos Índios. O recorte
espacial é o Estado do Grão-Pará e Maranhão, pois se parte da compreensão de que o Diretório
dos Índios é uma “legislação pensada, formulada e surgida” para atender uma região específica,
ou seja, o Vale Amazônico, e que, posteriormente, foi estendida para outras partes da América
portuguesa.
Palavras-chave: História Indigenista; Diretório dos Índios; Experiência.

Este trabalho inclui-se na abordagem pesquisa compreende o processo de

da chamada “Nova História Indígena”. Nas
últimas décadas do século XX, um novo olhar
é lançado sobre a história indígena, ou seja,
uma nova perspectiva que colocava em
evidência o papel do índio da História do
Brasil, não mais como um elemento passivo
das atuações metropolitanas e coloniais.
Dessa maneira, optou-se por trabalhar os
agentes que permaneceram, por muito
tempo, invisíveis ou relegados a um plano
secundário na historiografia sobre a Colônia,
os índios, e que começaram a ser tratados
como agentes de sua história por autores
como Manuela Carneiro da Cunha (1992),
John Monteiro (1992), Maria Regina Celestino
de Almeida (2013), Beatriz Perrone-Moisés
(1992), Márcio Couto (2013), Mauro Coelho
(2005), José Alves de Souza Junior (2016), dos
quais tratarei mais adiante.
As leis coloniais relativas aos índios são
tratadas como a força motriz da história na
colônia (PERRONE-MOISES, 1992, p. 115), no
entanto, percebeu-se que tal debate relaciona
Colônia à Metrópole, quando não, colonos
aos religiosos em um debate constante sobre
a liberdade indígena. Mas, qual seria o lugar
do índio nessa discussão? Nesse sentido, a
formulação do Diretório dos Índios,
enquanto um documento que visa
redinamizar a política de colonização. Porém,
com a intenção de identificar o lugar o índio
nesse contexto, pois este é “um processo vivo
formado por uma interação entre vários
atores, inclusive indígenas” (PERRONE-
MOISES, 1992, p. 129).
Como no caso da aldeia “que se chama
Cametá” pertencente à Capitania de Antônio
de Albuquerque Coelho de Carvalho, onde
morava o Padre João Maria Gorzoni. Na dita
aldeia, chegaram alguns índios da nação
Aruaquis que haviam sido atacados por
“paulista” e na fuga acabaram sendo
capturados por índios Guarajus. Dessa
forma, pediram auxílio para resgatar seus
parentes que estavam em poder dos ditos
índios que podiam comer ou vender os
Aruaques como escravos. Estes estariam
dispostos a tornarem-se “filhos de Deus e
serem governados pelos padres” (CARTA, 21
de jul de 1671). Nota-se a utilização do
aldeamento enquanto meio para defesa de
uma nação, pelos indígenas. Pois, estes
estariam fugindo da possibilidade se
tornarem escravos.

* Mestre/UFPA. Correio eletrônico: luana-mribeiro@hotmail.com

77
 A partir de exemplos como esse
percebesse o aldeamento como um campo
dinâmico em interesses. No contexto do
aldeamento, Maria Regina Celestino de
Almeida vem desconstruindo-o enquanto
um simples espaço de dominação e
exploração dos índios (ALMEIDA, 2013). Isso
também é possível perceber nas falas de
Mendonça Furtado, em carta ao Marquês de
Pombal, onde afirma que os religiosos ao
estabelecerem que o pagamento pelo
trabalho indígena deveria ser feito
antecipadamente, os indígenas recebiam e
fugiam para o mato, deixando os contratantes
com o prejuízo. E posteriormente, os
“recolhiam pouco tempo depois os fugidos
[aos aldeamentos], sem que até agora conste
do castigo que nela recebiam”
(MENDONÇA, 2005, p.109).
Dessa forma a proposta foi a de
analisar as experiências das ações indígenas
em relação aos aldeamentos missionários,
diante dos jogos de interesses dos quais os
índios faziam parte. Compreende-se o
aldeamento como um espaço de processos
sociais articulados e que ao longo do tempo
se constituem em diferentes formas de ações
coletivas (MELO JUNIOR, 2011, p. 06). Essas
ações foram sendo percebidas pelas
autoridades coloniais que através das leis
buscavam combater tais práticas.
A ideia partiu através da leitura de
trabalhos como de Márcio Couto Henrique e
Laura Morais (HENRIQUE & MORAIS,
2014), que apesar de tratar dos indígenas no
Pará do século XIX traz uma discussão
relevante apontando as experiências de
trocas comerciais não apenas entre índios e
regatões, mas também entre nações indígenas
que burlavam as leis de cobranças de
impostos, explorando outra nuance. A
“solução” para isso seria diminuir as taxas de
impostos para que os comerciantes e regatões
não efetuassem o comercio irregular com os
indígenas (HENRIQUE & MORAIS, 2014).
Notadamente, as experiências em relação aos
indígenas influenciavam nas decisões
administrativas referentes à Colônia.
Dessa forma, os índios, se constituem
numa temática extremamente ampla e vários
aspectos dela já foram tratados pela
historiografia (ALMEIDA, 2008). No entanto,
ao serem revisitados por meio do retorno às
fontes, possibilitam uma releitura e,
consequentemente, uma nova compreensão
dos seus significados, sendo esta a grande
contribuição da historiografia para o
entendimento do passado. Além disso, novos
aspectos, com certeza, emergirão da
documentação, pois, como afirma
Christopher Hill, “a cada geração a história
deve ser reescrita, pois, embora o passado
não mude, o presente se modifica”.
Dessa forma pensou-se em como a
percepção das autoridades coloniais, acerca
das ações indígenas em relação aos
aldeamentos podem ter servido como base
para se pensar a formulação do Diretório dos
Índios. Pois, os indivíduos vivem suas
experiências e tratam-nas na sua consciência
e o resultado disso é perceptível no seu modo
de avaliar suas ações. O “Diretório que se
deve observar nas Povoações dos Índios do
Pará, e Maranhão em quanto Sua Majestade
não mandar o contrário” (ALMEIDA, 2007),
foi publicado em 1758 e nele se apresentam as
regras que passaram a regular a liberdade
concedida aos índios em 1755, com a Lei de
Liberdade (COELHO, 2005).
Mauro Cézar Coelho, em sua tese de
doutorado Dos sertões para o mar: Um estudo
sobre as experiências portuguesas na América, a
partir da Colônia: O caso do Diretório dos índios
(1750-1798), trata do Diretório dos Índios não
simplesmente como uma legislação
pombalina. Sendo assim, para Coelho, o
Diretório dos Índios não é um produto fruto
da imposição metropolitana, nem tão pouco
é um produto das experiências estabelecidas
a partir da ponte atlântica entre o Brasil, a
Metrópole e outras áreas administrativas
(ALENCASTRO, 2000). Para ele, tais regras
não teriam sido sequer previstas pela política
pombalina e foram pensadas a partir de um
parecer de D. Miguel de Bulhões, em 1755,
(CARTA, 16 de dez de 1755, doc. 3693), acerca
da Lei de Liberdade.
No trecho abaixo é possível perceber a
avaliação de Bulhões, acerca da Lei de
Liberdade, pois para ele a total liberdade iria
provocar um grande deslocamento dos
indígenas para o “mato”, obviamente isso iria
78
gerar uma significativa diminuição de mão
de obra.
Vivem esses índios totalmente privados
dos sentimentos da racionalidade e
daquela virtuosa ambição, que desterra a
ociosidade das republicas, efeito, que tem
produzido neles a barbaridade, com que
até agora foram educados. [Ilegível]
reposto persuado-me evidentemente, que
reduzidos ela a uma plena liberdade pela
publicação da lei [de liberdade] se retiram
para os matos a engrossar os grandes
mocambos, que há neles, para onde os
seus naturalmente a inclinação dos gentis
com aquele mesmo impulso, com que o
[Ilegível] buscar o mor, [Ilegível] mais
[Ilegível], que o próprio instante (CARTA,
16 de dez de 1755, doc. 3693).
Posto isso, e compreendendo a
multiplicidade de grupos que compuseram a
sociedade do Grão-Pará colonial é que se
objetiva entender qual a parte que cabe às
experiências das relações [conflituosas ou
não] indígenas, no processo de produção do
Diretório dos Índios. O recorte espacial se dá
a partir da compreensão de que o Diretório
dos Índios é uma “legislação pensada,
formulada e surgida” para atender uma
região específica, ou seja, o Vale Amazônico,
e que posteriormente foi estendido às demais
regiões da América portuguesa, servindo
como base e ganhando novas configurações
para atender as diversas realidades coloniais
(SANTOS, 2018, p. 64). Chambouleyron
afirma que não se pode pensar a economia do
Grão-Pará e Maranhão na perspectiva com
que se pensa a do Estado do Brasil, pois o
Norte era dotado de uma multiespacialidade,
devido às características heterogêneas e a sua
potencialidade produtiva, que promoveu
uma policultura de abastecimento
(CHAMBOULEYRON, 2010). Logo, o mesmo
se pode atribuir às legislações, incluísse a
indigenista, que deveriam atender as
demandas locais, “obtendo características
necessárias a sua aplicação em regiões
distintas tanto geograficamente como
socialmente” (SANTOS, 2018, p. 64).
Para Perrone-Moisés, “as leis coloniais
relativas aos índios parecem constituir o lócus
de um debate que envolve as principais
forças políticas da Colônia” (PERRONE-
MOISÉS, 1992, p. 115). Ela evidencia o debate
em torno das questões jurídicas de liberdade
dos índios em função das desavenças entre
colonos e jesuítas, como sendo as forças
motrizes dessa discussão.
Tais desavenças estão bastante
evidentes na documentação do Projeto
Resgate “Barão do Rio Branco”, como, por
exemplo, o caso em que o Conselho
Ultramarino questiona os gastos
apresentados pelo frei Hicronimo de S.
Francisco, com as 400 almas retirados dos
sertões, mas, “se sabe que historicamente o
padre não tirou nenhum índio dos sertões, se
não pelo temor das armas” enquanto João
Fragozo desceu mais de 2000 mil almas “com
boas práticas”, “em cuja aldeia assistem os
padres piedosos o que o João Fragozo o fez
sem despesas à Fazenda Real”. Assim
também teria feito Joseph Lopes na aldeia
Aniba e Miguel de Passos, na aldeia dos
Abacaxis, mas “sem algum deles pedirem
subsídio à Fazenda Real nas despesas, sendo
meramente seculares”. Sendo assim em
“todas as religiões se fazem despesas” e “é
inegável que usam os índios forros para
lucrarem com as drogas do sertão. Por esse
motivo é que se pede a retirada do poder
temporal a todos os missionários” (CARTA,
29 de ago. de 1705, Doc. 408). A
documentação apresenta uma sequência
considerável de pedidos para o fim da lei que
colocou o poder temporal dos índios nas
mãos dos religiosos. Esse debate deixou a
questão sempre em evidência, e contribuiu
para a secularização dos aldeamentos o que
os elevou ao status de vilas (CUNHA, 1998) e
colocou a direção dos mesmos nas mãos de
pessoas seculares, após um longo processo de
acusações de diversos lados.
Essas acusações foram compondo as
opiniões das autoridades coloniais como
Mendonça Furtado, pois inicialmente, nas
Instruções régias, públicas e secretas
(MENDONÇA, 2005, p. 67) de 1751, para
Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
nomeando-o como governador e capitão-
general do recém criado Estado do Grão-Pará
e Maranhão (MENDONÇA, 2005, p. 80), é
possível perceber que havia o interesse em
unir o Estado aos “negócios pertencentes à
79
conquista e liberdade dos índios, e
juntamente às missões” (MENDONÇA, 2005,
p. 68). As “Instruções...”, objetivavam unir a
política pensada para a Colônia com o
trabalho missionário jesuítico, à medida que:
Nas aldeias do Cabo do Norte, que nesta
Instrução vos encomendo muito cuideis
logo estabelecer, e as mais que se fizerem
nos limites desse Estado, preferireis
sempre os padres da Companhia,
entregando-lhes os novos
estabelecimentos, não sendo em terras que
expressamente estejam dadas a outras
comunidades; por me constar que os ditos
padres da Companhia são os que tratam os
índios com mais caridade e os que melhor
sabem formar e conservar as aldeias, e
cuidareis no princípio destes
estabelecimentos em evitar quanto vos for
possível o poder temporal dos
missionários sobre os mesmos índios,
restringindo-o quanto parecer
conveniente.
Para que os missionários se não
descuidem das suas obrigações e se siga o
fim pretendido tereis cuidado de vos
informar e examinar se se formam as
aldeias com aquele cuidado com o seu
aumento que os missionários devem ter,
como também em polirem, ensinarem e
doutrinarem os índios, e em que nas
aldeias se aproveitam mais a pública
utilidade e vigilância dos mesmos
missionários; e também cuidareis quais
são as nações dos mesmos índios mais
dóceis e capazes de receberem o ensino, a
sua inclinação, o gênio dominante de cada
uma das ditas nações, para, de tudo me
informardes, e à proporção do progresso
que fizerem os missionários, agradecer-
lhes o seu trabalho ou adverti-los dos seus
descuidos, e também poder dar algum
prêmio proporcionado aos índios que
mais se distinguirem, para lhes servir de
estímulo a todos a minha Real clemência e
atenção que com os beneméritos mandar
praticar. (MENDONÇA, 2005, p. 75)
No entanto, as experiências coloniais
com relação às desavenças com os padres
ficam evidente no mesmo documento, onde
nota-se que havia a recomendação especial
de evitar que nessas aldeias aos padres fosse
dado o poder temporal. Para Pombal, “a
frouxidão e tolerância que tem havido nesta
matéria até serve de embaraço ao principal
objeto para que se mandaram a esse Estado
as pessoas Eclesiásticas” (MENDONÇA,
2005, p. 71). Dessa maneira acredita-se que
essas mesmas documentações que expõem
“os embaraços” quanto aos missionários, e
ajudam a inferir acerca das disputas jurídicas
pela mão de obras, como afirma Perrone-
Moises (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 21), -
também demonstram as relações dos
indígenas no contexto colonial.
Para tal é importante ressaltar
trabalhos como os de John Monteiro e Maria
Regina Celestino de Almeida que tratam
sobre os efeitos do processo indígena de
reconfiguração e reformulação, ocorridos no
interior dos aldeamentos do Brasil colonial,
no caso de Monteiro (2001), e do Rio de
Janeiro Colonial, no caso de Almeida (2013),
eles veem desconstruindo o aldeamento
enquanto um simples espaço de dominação e
exploração dos índios (ALMEIDA, 2013).
Pois, é importante tratar de uma abordagem
onde até pouco tempo apenas antropólogos
estudavam, para assim ajudar a diminuir os
pré-conceitos estabelecidos que colocam os
indígenas, unicamente, no lugar de
subordinados na história Colonial
(ALMEIDA, 2012).
Em 27 de fevereiro de 1688, o ouvidor-
geral do Estado do Maranhão, Miguel da
Rosa Pimentel, relata que o capitão mor
Antonio de Albuquerque deflagrou guerra
justa contra os índios da nação Maraumes,
pois estes haviam matado o padre Antonio
Pereyra, seu companheiro e mais 4 índios que
tinham ficado naquela missão. No processo
da guerra aprisionaram 39 índios que foram
remetidos à cidade. Alguns disseram ter
matados os padres, pois, estes os teriam
roubado. Outros disseram que o fizeram
porque lhes proibiam as mulheres. E outros
porque os franceses disseram-lhes que os
padres eram embusteiros e que estavam ali
para entretê-los enquanto chegava o capitão
mor, e com a sua chegada os iriam amarrar e
os fazer de escravos (CARTA, 31 de maio de
1688, Doc. 271). Nota-se que dentro de um
grupo de ação única, há vários motivos e
intenções, bem como a preocupação com a
sua liberdade que os levaram a tal atitude.
80
 O destaque aqui é para como as
“camadas populares” são ativamente
atuantes na história e resgatar tais ações de
“gentes comuns” é importante para percebê-
los como transformadores de sociedade
(MELO JUNIOR, 2011, p. 07-09). Nesse
sentido, torna-se importante apontar as ações
indígenas nos aldeamentos, enquanto espaço
de negociações e conflitos, bem como notar os
impactos disso no processo de formulação
das leis indigenistas, no caso o Diretório dos
Índios. Ou seja, é necessário estudar os
indígenas a partir de suas experiências e
percepções acerca do processo colonizador,
entendendo o aldeamento missionário como
sendo um dos principais mecanismos na
política de ocupação.
Essas relações são preocupações que
vão se apresentando na legislação, mesmo
sutilmente. Um exemplo disso é o fato de a
legislação buscar ressaltar a necessidade de
dar um bom tratamento aos indígenas, na
busca de estabelecer relações amigáveis e
assim evitar que eles retirem-se para o mato.
No Diretório é possível notar as
recomendações aos Diretores “que
persuadam os Índios pelos meios da
suavidade, quais são neste caso, o propor-
lhes a sua maior conveniência, que conduzam
para a Cidade todos os gêneros, e frutos”
(DIRETÓRIO, Artigo 45), “e para que as Leis
da distribuição se observem com recíproca
conveniência dos moradores, e dos Índios, e
estes se possam empregar sem violência nas
utilidades daqueles” (DIRETÓRIO, Artigo
69), “ainda quando evidentemente
mostravam, que os mesmos índios
desertavam de seu serviço se lhes não
restituíam os ditos pagamentos”
(DIRETÓRIO, Artigo 69) por isso, orientou
que “aos Diretores, que apenas receberem os
sobreditos sellarios [sic] entreguem aos
Índios uma parte da importância deles,
deixando ficar as duas partes em depósito”
(DIRETÓRIO, Artigo 69) para pagamentos
futuros dos mesmos indígenas e assim se
possa evitar as queixas deles.
Para Perrone-Moises (1992, p. 211), o
bom tratamento estaria ligado diretamente à
dependência disso para a conversão e
consequentemente a civilização. No entanto,
aqui se entende como forma de garantir o não
esvaziamentos das agora Vilas, e assim
manter um contingente de mão de obra-de-
obra. Mas, isso é fruto de arranjos e rearranjos
dentro de um processo vivo formado pelas
partes: colonos, jesuítas e indígenas bem
como Colônia e Metrópole. Para
compreender esse processo a Junta das
Missões traz uma gama de situações
pertinentes ao tema, como no caso das
“guerras justas” contra nações não inimigas:
A reclamação foi trazida à Junta, pois o
principal Caravajarú e toda a sua gente,
teriam sido descidos em cordas, bem como os
principais Javá Bumejevá, Iramacom,
Jabenarí e Janapú que declaram que os que
não foram mortos, ou fugiram para o mato ou
foram para as missões (JUNTA, 1734, Doc.
DSCN0367). Ainda segundo esse documento
da Junta das Missões, tal fato teria provocado
um esvaziamento da região devido ao direito
de intervenção dos regulares padres da
Companhia de Jesus.
Diante da atuação dos religiosos,
aproveitava-se para pedir pela secularização
da administração dos indígenas: Não se pode
tolerar que desça o principal Jacabary da
quase acabada aldeia Castanhal com o resto
de tão pouco vassalos para as fazendas dos
seus conventos. A utilização da Junta das
Missões passou a ser uma adoção indígena no
campo das negociações, na busca pela
liberdade e bem estar. E suas reclamações
compuseram as preocupações coloniais para
evitar o esvaziamento dos aldeamentos,
especialmente.
No artigo 9 do Diretório, tais
preocupações podem ser observadas na
orientação em se guardar aos indígenas, “as
honras, e os privilégios competentes aos seus
postos: [...], as quais pede a razão, que sejam
tratadas com aquelas honras, que se devem
aos seus empregos.” Tais negociações eram
comuns no contexto colonial, pois os
indígenas não abriram mão de certo espaço
de autonomia nos aldeamentos, os religiosos
tinham que fazer concessões como, por
exemplo, permitir a bebida alcoólica em
festas (HENRIQUE, 2013, p. 145), buscar não
“pesar a mão” nos castigos, conceder licença
para que eles pudessem fazer suas roças e
81
casas (DEVASSA, Códice 160, Doc. 008). E é
diante dessas negociações e conflitos que
tentamos perceber a dinâmica das relações
que ajudaram a pensar as leis indigenistas.
“Uma história propriamente indígena
ainda está por ser feita”, afirma Cunha (1992,
p, 20), mas os estudos estão apontando para
a “nova história” indígena e a indigenista,
mostrando que os indígenas possuem a sua
própria história e dela são agentes, bem
como, refletem sobre ela. Socialmente, falar
dos indígenas é também recuperar essa
memória indígena e assim construir e
compreender sua identidade e garantir seus
direitos. É importante recuperar os sujeitos
históricos e as suas ações de acordo com a sua
leitura de mundo, “leitura esta informada
tanto pelos códigos culturais de sua
sociedade como pela percepção e ações indígenas no contexto dos aldeamentos
interpretação dos eventos que se
desenrolavam” (MONTEIRO, 1999, p. 248).
Torna-se relevante, portanto, recuperar
as atuações indígenas resgatando-as do
passado para possibilitar às sociedades
indígenas um futuro e, mais importante, um
presente, a ser ativamente construído a partir
da recuperação de sua memória e de sua
história. O papel dos historiadores, nesse
contexto, é pensar os povos indígenas em
processos históricos mais amplos,
procurando evidenciar como suas atuações
contribuíram para delinear seus rumos na
história do Brasil. Afinal, a história dos
indígenas na América se entrelaçou com a
história dos europeus desde o momento em
que eles ali chegaram (HILL, 1996). Assim,
elas não devem ser estudadas de forma
separada, nem tampouco em oposição uma à
outra.
A questão é: O Diretório dos Índios é
uma legislação que ora está
historiograficamente posicionada como uma
lei que possui seu epicentro na Metrópole,
como resposta às demandas coloniais
(ABREU, 1998). Ora é vista como parte da
política ilustrada pombalina, para atender
um plano de crescimento econômico
(ALMEIDA, 1997). Ou então, é a resposta a
um processo conflitante entre colonos e a
Companhia de Jesus (PERRONE-MOISÉS,
1992). E por fim, uma legislação, criada para
resolver uma demanda colonial, o problema
que a liberdade total, dos indígenas, traria
com a lei de Liberdade (COELHO, 2005).
Mas, qual o lugar do índio nesse processo?
Para Monteiro a historiografia
produzida acerca da história indígena, até
então, colocava o índio apenas como um
coadjuvante ingênuo das ações civilizatórias
europeias (MONTEIRO, 1992, p, 105-120). No
entanto, nas produções mais recentes,
buscou-se cada vez mais atribuir,
legitimamente, às atuações indígenas na
construção da sociedade colonial. Nesse
sentido, compreende-se o processo de
formulação do Diretório dos Índios,
enquanto um documento que visa
redinamizar a política de colonização.
Para isso, deve-se levar em conta as
em relação aos outros agentes coloniais,
principalmente os religiosos, considerando-
se que segundo o artigo 2º do Regimento das
Missões, a eles foi dado o governo não apenas
espiritual, mas também o temporal e político
das aldeias de sua administração
(MALHEIROS, 1867, p. 06). Ao
compreendermos o aldeamento como um
espaço de negociação e poder, pode-se
identificar como essas relações influenciaram
a formulação das leis, no caso o Diretório dos
Índios. Como no artigo 16 do Diretório, onde
se orienta a gestão e a fiscalização da relação
de trabalho estabelecida entre os indígenas e
os moradores, para que haja reciprocidade
nos seus interesses e assim se possa garantir
a solidez para o Estado.
Em 1682, o Provedor da Fazenda Real
do Pará, João de Almeida Bacelar, fez uma
consulta ao Conselho Ultramarino acerca de
uma consignação que fez o Governador e
Capitão General do Estado do Maranhão,
Grão-Pará e Rio Negro, Pedro César de
Meneses, de uma aldeia de índios [nome não
informado] para a cobrança dos dízimos.
Diante do caso, a orientação dada foi a de que
fizessem descontos aos contratantes da mão
de obra indígena, mas que, antes de tudo,
dever-se-ia aumentar o policiamento na
relação de trabalho e pagamento, entre
contratantes e indígenas, haja vista que já era
sabido da opressão que os indígenas sofriam
82
e por isso ocorriam as fugas. Sendo assim,
para que aumentasse as rendas da Fazenda
Real, primeiramente dever-se-ia “defender”
os índios dos moradores para que não
viessem a faltar índios e se pudessem manter
os preços na contratação (CARTA, 22 de out.
de 1682, D. 206).
A historiografia que diz respeito à
história do índio e do indigenismo sofre
novas inflexões, fortaleceu a ideia de que o
contato entre indígenas e brancos estaria para
além do processo baseado conceitualmente
em aculturação, dominação, sujeição,
catequização entre outros. Tais inferências
trouxeram o índio da condição de espectador
para a categoria de agente histórico e por isso
é importante verificar como essas
experiências contribuíram para formulação
da legislação indigenista. No artigo 14, do
Diretório, adverte-se aos diretores que diante
das embriagues deve-se ponderar e ter
brandura nas orientações para que os
indígenas não fujam do grêmio da Igreja.
Foi observado, nas fontes, que essa
brandura era prática comum, na tentativa de
evitar o esvaziamento dos aldeamentos e
garantir a mão de obra, na Colônia. O
exemplo disso nota-se na carta do
Governador Artur de Sá e Mendes, onde
informou ao rei, D. Pedro II, que foram
descidos 370 índios da nação Maruaruy. Os
mesmos teriam demonstrado o desejo de
serem cristão e solicitaram a presença dos
missionários, mas que isso não foi possível
naquele momento, pois o Padre Antônio
Pereira, da Companhia de Jesus, não estava
acompanhando do Governador. Mas, os
indígenas o seguiram diante das promessas
de que logo conseguiriam o que procuravam
(ser cristãos). Além disso, na mesma carta se
relatou que do outro lado do rio das
Amazonas, havia franceses, e que estes
andavam comercializando escravos [índios],
nas ilhas dos Haroans, nas quais havia
missões de capuchos. Achou-se só três
indigenas escravizados já comprados,
passados pelo sertão dos Tocujuz, pouco
distante da fortaleza de Gurupá.
Após esse resgate, Artur de Sá e
Mendes continuou a penetrar no rio e lagos
dos Icayacari, onde viviam outras muitas
nações de gentios, cujo principal convocou a
aldeia Camonixari, em meio a um grande
lago, cujo nome é ilegível no documento, e
demonstraram “com muito gosto” o desejo
de serem admitidos à conversão da fé e
amizade, “dando a entender o quão violentos
eram os franceses de Cayana”. Na mesma
légua se encontrou outros franceses em uma
canoa vinda de Cayana com ferramentas e
outros resgates para o comércio de escravos.
Os remeiros de seu comboio eram índios do
rio de Vicente Pinzon [parte de onde dizem
ser o marco da antiga divisa das Coroa]. Tais
índios não eram vassalos dos franceses e sim
do rei de Portugal. A esses remeiros foi
avisado que seriam castigados, se tornassem
a remar ou servissem de guias aos franceses
novamente. Os indígenas disseram que
faziam esse serviço e que os seus principais
sabiam, mas prometeram não tornar a
acompanhar os franceses.
O Governador afirmou que a entrada
dos franceses não seria fácil sem a ajudar os
indígenas e logo mandou contentá-los com
alguns mimos que “muito estimaram”, pois
este era um sinal de amizade, o qual “só se
sustentava por temor ou interesse”. O
missionário logo pediu para que se
começasse a construir a igreja e casas para a
moradia dos padres. “Feitas essas diligencias
e vistas essas paragens do rio de Araguari e
lagos de Mayacari e despendendo largos
mimos, por ser assim conveniente para se
satisfizer a comunicação” (CARTA, 19 de set.
de 1687, Doc. 267-385).
É sabido que tal fato ocorreu dentro de
uma disputa com os franceses e é mais uma
“experiência de fronteira”, porém quer se
destacar aqui como “camadas populares” são
ativamente participantes na história e busca-
se resgatar tais ações de “gentes comuns”
pois estes são também transformadores de
sociedade (MELO JUNIOR, 2011, p. 07-09).
Ao pensarmos dessa forma percebe-se que a
fonte também traz à luz relações de interesses
todos os lados dos agentes em questão.
Nessa fonte é possível perceber a
tentativa de utilização da “conversão” ao
catolicismo, por dois grupos indígenas –
Maruaruy e Camonixari -, para evitar a
escravização. Essa prática aparenta ser
83
comum e identificável no artigo 4 da Lei de 1º
de Abril de 1680 (SOUZA JUNIOR, 2016, p.
143), onde se orienta que apenas a
Companhia Jesus poderia ir aos sertões
“trazer, catequizar e administrar os gentios
que pela grande confiança que neles tinham
perderiam o temor do cativeiro, e prestariam
inteira fé à liberdade que a nova lei lhes
afiançava” (MALHEIROS, 1867, p. 05). E
posteriormente no artigo 2 do Regimento,
onde ser esclarece que aos religiosos cabe o
dever de prestar defesa aos indígenas, contra
o Estado, diante da “guerra do sertão e outros
serviços” (MALHEIROS, 1867, p. 05).
Observa-se também, a preocupação em
evitar os castigos contra os indígenas que
estavam atuando em favor dos franceses.
Onde, além de não terem sido punidos, ainda
receberam “mimos”, pois este era um sinal de
amizade, o qual “só se sustentava por temor
ou interesse”, “por ser assim conveniente
para se satisfizer a comunicação,” e é claro
evitar que os indígenas não só fujam, mas
também para que não voltem a ajudar os
estrangeiros. Obviamente, não se tinha a
certeza que os indígenas não voltariam a
auxiliar os franceses, ou qualquer outra nação
europeia presente naquelas paragens, haja
vista, que são relações como o documento
revela, de “temor ou interesse”.
A demonstração do interesse indígena
pela conversão para evitar a escravização ou
o trabalho remunerado com os colonos
leigos, teria sido um, dos muitos, motivos
pelos quais se retirou a administração dos
aldeamentos, do poder dos missionários, e
também os elevou à categoria de vilas. Rita
Heloisa de Almeida trata o Brasil como um
receptor do pensamento reformista ilustrado
português, que teria ganhado mais força a
partir da mudança introduzida na legislação
colonial, feita pelo ministro Sebastião José de
Carvalho e Mello, o marquês de Pombal.1 E
isso teria ocorrido, principalmente, como o
auxilio dos seus colaboradores, que no Norte,
foi Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
governador e capitão-general do Estado do
Grão-Pará e Maranhão (1750-1759). Dentro
desse contexto, os povos indígenas teriam
1Foi secretário de Estado do Reino durante o reinado de D.
José I (1750-1777).
sido alvo de uma política “civilizatória”
(ALMEIDA, 1997).
Buscamos perceber como os indígenas
se posicionaram enquanto sujeitos históricos
e analisar as suas relações com os não
indígenas, a partir de suas próprias
motivações e interesses para assim ir
identificando como isso ajudou a compor na
formulação da legislação indigenista, no caso
o Diretório. Para isso, é importante flagrar os
conflitos que antecederam a legislação
indigenista entre os agentes sociais dos
aldeamentos.
Isso porque, quando se trata do
Diretório dos Índios é comum perceber a
figura do Marquês de Pombal - como sendo
central. No entanto, propõe-se aqui um
distanciamento dessa linha de pensamento,
apesar de se reconhecer sua importância
histórica. Rafael Chambouleyron em seu
trabalho Povoamento, Ocupação e Agricultura
na Amazônia Colonial (1640-1706), lança essa
proposta, ao inferir que a política pombalina
é o resultado de um processo pelo qual a
Amazônia passou, ao qual deve-se incluir as
experiências de governo dos antecessores a
Pombal, na região. E que tal política estaria
condizente com a já pensada para o Norte
(CHAMBOULEYRON, 2010).
Nadia Farage, em As muralhas dos
sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a
colonização (FARAGE, 1991), traz uma
discussão relevante no contexto de se
encontrar as dinâmicas próprias da
Amazônia ao apontar a importância da
“história de contato e fronteiras que,
juntamente com portugueses e holandeses,
constituiu uma dinâmica de poder na região
do rio Branco” (SANTOS, 2018, p. 46). No
entanto, ela ainda posiciona os grupos
indígenas como ferramentas dessa mesma
dinâmica.
Ângela Domingues evidencia que
muitos indígenas buscaram a vida nos
aldeamentos como alternativa/estratégia ao
processo colonizado (DOMINGUES, 2000). A
autora consegue demonstrar a capacidade
desses indivíduos de viverem suas
experiências e tratá-las na sua consciência e o
84
resultado disso é perceptível no seu modo de
vida. Trabalhos como os de Domingues é que
dão base para que se formule a explicação de
que as experiências vivenciadas em relação
aos indígenas, teriam se refletido nas
legislações indigenistas. Como é possível
perceber nas preocupações do Bispo Miguel
de Bulhões e Sousa acerca da lei de Liberdade
aos índios:
Esta deserção dos índios, que exponho
inevitável não havendo alguma
providencia ou cautela, moveram sem
dúvida a estes moradores ou a
desampararem o Estado, retirando-se para
as colônias visinhas, ou a romperem em
outro semelhante destino, administrado
pela fúnebre e infeliz ideia de que na falta
de operários tem perdido todos os seus
haveres. Assim deste ponderado destino
me persuado também que publicada a dita
lei, sem embargo do bando, que v. ex.
aponta como ficam livres os índios para
servirem estes ou aqueles moradores
dentro dos limites do mesmo território,
cada um dos ditos moradores praticará os
índios, que parecer perturbando-se
mutuamente um ao outro, de que
naturalmente se há de seguir, uma total
desordem e confusão.
Para remediar, pois todos estes destinos,
me parece justo, que no mesmo dia em que
se fizer pública a referida lei, se publicasse
também, ou por lei de S. Mag. Ou por
bando do Governador, que todos os
moradores, que quiserem tomar à soldado
os mesmo índios, que até agora possuíam
como escravos, os pedissem na forma do
bando do mesmo Governador e exc
Senhor General, o que pela aprovação de
Sua Mag, se observa em todo este Estado,
como lei por aqueles anos que parecer ao
dito Senhor. Esta providencia que parece o
bem comum dos moradores sem ofensa da
liberdade dos índios me parece
indispensável neste caso para evitarmos
algum prejuízo maior. Ao senhor General
escrevi também nesta matéria repetindo-
lhe os mesmos fundamentos para que à
vista dela ressaltasse s. exc. o que lhe
parecesse mais conforme ao serviço de S.
Mag e conservação desta capitania.
(CARTA, 16 de dez. de 1755, Doc. 3693).
2Publicado em 1758, nele se apresentam as regras que
passaram a presidir a liberdade concedida aos índios em
1755, com a Lei de Liberdade, segundo Coelho.
A brandura com os indígenas
apresentou-se como uma condição sine qua
non para estabelecer o avanço da política de
ocupação e crescimento econômico, mediante
o uso da mão de obra indígena. Bem como, o
aldeamento mostrou-se como um lugar de
índio, na tentativa indígena de garantir uma
possibilidade de bem estar, diante das
“opções” que possuiam na Colônia. Além
disso, mantê-los como escravos era um
debate que sempre gerou dúvidas nos mais
de dois séculos de ocupação, mas as
experiências apontaram para as autoridades
que a liberdade plena inviabilizaria a política
de ocupação.
Dessa maneira, o Diretório dos Índios
foi um regulador para que mantivesse a
possibilidade de acesso à mão de obra
indígena, porém sabia-se que mesmo com as
regras estabelecidas, não havia garantia de
uso dessa mão de obra. Para isso, preocupou-
se com as relações de “amizade”
demonstrando que para a ocupação,
dependia-se mais do que das leis, seria
necessário estabelecer alianças e “brandura”
com os indígenas. Isso é o que fica evidente
na lei, dada à preocupação constante com o
trato que se estabeleceu com os indígenas.
Portanto, principalmente as
experiências dos indígenas descidos, com os
agentes dos aldeamentos, principalmente os
missionários, influenciaram na formulação
do “Diretório que se deve observar nas
Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão
em quanto Sua Majestade não mandar o
contrário”.2
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Belém do Pará contra os missionários
daquele Estado, ao fazerem uso dos
Índios para trabalhar nas suas próprias
culturas de cravo e cacau e dos
moradores impedindo-lhes o acesso a
essa mão de obra. APEP,
AHU_ACL_CU_013,Cx.5,D.408.
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87
AS LÍNGUAS E OS LÍNGUAS:
intérpretes indígenas e missionários jesuitas
na Amazônia colonial (sécs. XVII-XVIII)

* Rafael Rodrigues Correa

Resumo: O artigo tem como objetivo aprofundar a agência dos índios tradutores, chamados de
“línguas” enquanto personagens cruciais no projeto jesuítico. Embora as evidências acerca desses
agentes nos relatos missionários sejam extremamente fragmentadas, é possível coletar
informações básicas a seu respeito. Assim, os intérpretes constam, sobretudo, nos escritos de
João Daniel e João Felipe Bettendorff, mas também nos de Luís Figueira e Antônio Vieira. Porém,
a atual pesquisa foca nos dois primeiros. Para a análise dessas fontes parte-se do conceito de
mediação cultural definido por Paula Montero. O recorte temporal da pesquisa é relativamente
amplo (1607-1759), dado o caráter inicial da pesquisa. Percebe-se que os missionários tanto
elogiam quanto se desconfiam dos “línguas” em traduzir seus propósitos.
Palavras-chave: Línguas. Mediação. Lingüística. Índios. Missionários.

Ao chegar ao território que se tornaria partes. A primeira fará um pequeno

colônia portuguesa, os missionários
encararam problemas de comunicação com
os nativos, que possuíam suas próprias
línguas. Para a resolução desse problema, ao
menos temporariamente, foram requisitados
os línguas indígenas, nativos bilíngues ou
mesmo trilíngues que pudessem traduzir a
mensagem jesuítica, a catequese. Porém, as
fontes sobre a presença desses personagens
fundamentais são raras e espaçadas. O
objetivo desse artigo é, assim, ler nas
entrelinhas do relato jesuítico,
especificamente a crônica de João Fellipe
Bettendorf e os dois tomos do tratado de João
Daniel, para encontrar esse índio.
Dentro de um contexto de ampliação da
Língua Geral Amazônica como língua franca,
o estudo desdobra-se especificamente sobre
os índios que faziam a mediação entre a
língua geral e sua língua materna, trabalho
requisitado tanto por colonos quanto por
missionários. Amplamente conhecido na
historiografia sobre o assunto, parte-se do
aporte de mediação cultural defendido por
Paula monteiro (2006). Para a consecução
desse objetivo, o texto se divide em duas
apanhado do que a historiografia, e também
a linguística, tem a dizer sobre esse
personagem, e dos contextos em que viveu e
dos sentidos que empregou a esses contextos.
Em seguida, a análise das fontes permitirá a
conclusão sobre alguns aspectos desse
personagem tão pouco estudado. A recente
virada historiográfica para a busca de agentes
antes deixados de lado é evidência da
necessidade de pesquisa sobre a história
indígena em suas especificidades.
OS LÍNGUAS DA NARRATIVA
JESUÍTICA NA HISTORIOGRAFIA E
NA LINGUÍSTICA
Dennys Silva-Reis e Marcus Bagno
(2016) podem nos situar em sua tentativa de
fazer uma breve história da tradução do
Brasil. Os autores argumentam que os
primeiros tradutores foram portugueses que
aprenderam os idiomas indígenas de
maneira forçada, pois na sua maioria eram
degredados da metrópole portuguesa. De

* Discente do curso de graduação licenciatura em História – UFPA. Avenida José Bonifácio, n 3035. Correio eletrônico:
correa.rafael97@gmail.com

89
acordo com esses autores, os línguas não
eram meros tradutores, mas serviam também
de mediadores em importantes questões
entre índios, locais e agentes administrativos
coloniais, chegando a receberem boa
remuneração no seu ofício em reitorias. Sobre
isso, Maria Cândida Barros concorda: “o
primeiro intérprete oficial foi o colono, por
conhecer tanto o discurso cristão como
também pela sua destreza na língua tupi”
(BARROS, 1986, p. 5).
Quando os primeiros missionários
chegaram ao território que se tornaria a
Amazônia colonial se depararam com uma
gigantesca pluralidade linguística. Essa babel
de línguas, todas ágrafas, com centenas de
grupos e dezenas de troncos linguísticos,
constituiu grande obstáculo aos desígnios da
coroa portuguesa e acabou causando
mudanças na posição legislativa da coroa em
relação à questão durante todo o período
colonial. Era necessário estabelecer alianças
com os indígenas, possuidores do
conhecimento geográfico e biológico daquela
parte do bioma amazônico em que os
europeus se aventuraram. Além do acesso a
essas informações, a própria aliança com os
nativos era suporte necessário à colonização,
uma vez que, ao menos nas primeiras
décadas (ou séculos), o poder bélico de
Portugal não se mostraria suficiente para
uma dominação unilateralmente militar. A
revolta dos índios no Maranhão e Grão-Pará
que ocorreu no final da primeira década do
século XVII, e a superação dessa revolta com
uso de contingente indígena, são exemplos
disso (CARVALHO JUNIOR, 2005). Para se
alcançar tudo isso, era necessário conseguir
falar com o índio. Os primeiros colonos,
imersos no cotidiano cultural dos indígenas,
além de seus filhos, quase sempre com
mulheres indígenas, foram os primeiros
intérpretes que serviram para consecução dos
negócios temporais desses colonos e do
angariamento das almas para a salvação,
pelos missionários. Esses intérpretes serão
requisitados para o trato com indígenas
durante todo o período colonial, mas o seu
uso era paliativo. Para os missionários
particularmente, resolviam alguns
problemas, mas causavam outros. O uso
desses indígenas como intérpretes de
confissões gerou uma série de problemas,
criando debates dentro da hierarquia
religiosa. A catequese precisava ser traduzida
do indígena ágrafo para o manuscrito. A
confissão, fundamental para a alma, passava
pela mediação do intérprete: não era possível
saber como o índio denunciava os próprios
pecados sem adições, omissões ou variantes,
conscientes ou não, daquele que traduzia
(BARROS, 2011).
José Bessa Ribamar Freire (2003)
defende uma periodização das políticas
linguísticas em que o primeiro período de
contato teria sido sustentado pela presença
dos línguas, mas difere de sua constituição.
Para o autor, a estratégia europeia imitou a
atuação de Portugal na África: aprisionar
alguns nativos para levá-los a Portugal e
iniciá-los na língua lusa. Esta seria a primeira
fase da periodização defendida, que começa
no século XVI e termina no começo do século
XVII: A prática dos intérpretes. Porém, em
seguida, com o começo da ocupação
populacional do território, de fato os colonos
que vieram de Pernambuco e Maranhão para
o Grão-Pará estavam acompanhados de
índios aliados com os quais falavam através
da língua geral. Esta compreende a segunda
fase, referente à escolha do tupinambá
enquanto língua geral e sua expansão a partir
do convívio de indígenas de várias etnias
dentro das missões (1616-1686). De acordo
com o autor, o domínio da “língua brasílica”
por esses primeiros colonos é indício que a
LGA se tornou franca na Amazônia
independentemente de qualquer decisão
política. O último período que diz respeito a
esta pesquisa é o de 1686 a 1757, ano em que,
de acordo com o autor, aparecem as
propostas de portugalização da Amazônia.
(BESSA FREIRE, 2003, p. 96). Percebe-se com
essa periodização, até então em voga e pouco
questionada pela historiografia, que a LGA
esteve presente desde os momentos iniciais
da colonização e sofreu uma expansão
crescente de acordo com determinantes
históricas e linguísticas.
Como Gabriel de Cassio Pinheiro
Prudente (2017) aponta, era práxis da
companhia de Jesus a aprendizagem da
90
língua nativa dos territórios em que
estivessem evangelizando, mas não seria
possível aprender todas as línguas indígenas.
De acordo com ele “saber a língua do
próximo que se quer converter foi um tema
fundamental na formação dos escolásticos
(isto é, os estudantes) jesuítas, conforme
orientam as próprias Constituições da
ordem” (PRUDENTE, 2017, p. 28). Esse foi
um dos motivos que levou a constituição de
uma língua geral, e alguns outros fatores
determinaram que essa língua geral fosse o
tupi falado pelos Tupinambá, que eram a
etnia numericamente superior na costa do sul
do continente.
Almir Diniz de Carvalho Júnior (2005)
aponta que essa matriz tupi constituiu a base
de referência cosmológica indígena que se
ampliou significativamente no período
colonial, exercendo uma ação de tupinização
sobre outras etnias. Essa tupinização
constitui estratégia de estabelecimento de
língua supraétnica de acordo com Barros
(1986), na qual a igreja teve papel
fundamental, ao atuar no processo de
dualização entre colonizadores e improviso, uma vez que o discurso religioso
colonizados, que deixava de lado
diferenciações étnicas dos nativos.
Os línguas tiveram tamanha
importância no contexto jesuítico que houve
solicitações de dispensas de algumas
obrigatoriedades institucionais eclesiásticas
para receber os votos, quando se tratava de
alguém não-índio que pudesse agir como
língua dentro do alcance da igreja:
Por exemplo, em relação a Pero Correia, se
pedia dispensa da pena de morte de
índios, fato ocorrido antes de ter entrado
na Companhia de Jesus; para Fernão Luis,
dispensa de votos por já ser padre secular;
para Adão Gonçalvez, dispensa da
exigência de nunca ter sido casado, etc. Em
1568, a Congregação solicitava a dispensa
de maiores estudos a todas as pessoas que
soubessem a língua da terra (LEITE,
1950:v.II:563 Apud Barros, 1995, pp. 5-6).
Sobre o intuito cristão do processo
colonizador, os autores Bagno e Silva-reis
(2016) discutem algumas peças teatrais. O
conhecido intuito de levar a palavra de Deus
aos não civilizados encontrados na colônia
portuguesa se complicou na medida em que
eram necessárias interpretações e traduções
nas catequizações. Sobre isso, os autores
abordam Anchieta:
Em São Paulo, o jesuíta José de Anchieta
(1534-1597) escreveu várias peças teatrais
– entre as mais famosas estão Na Festa de
Natal, Na Aldeia de Guaraparime Na Festa de
São Lourenço – que eram encenadas para
uma plateia de índios e colonos nas
línguas tupi, português, espanhol e latim;
ou seja, tanto texto original quanto texto
traduzido, no que se refere às peças de
Anchieta, nasciam ao mesmo tempo, pois
eram textos de consumo religioso quase
que instantâneo por serem utilizados na
catequese dos índios e na manutenção da
fé cristã entre os colonos em meio à Babel
que era o Brasil quinhentista (...) (SILVA-
REIS, BAGNO, 2016, pp. 87-88).
Sobre essas peças, Barros (1986) pensa
sobre a ótica de uma instituição com ideal
supraétnico, no sentido de formar um
pensamento de dominação unificado. As
peças, que antes apresentavam certo nível de
era mais importante que o desempenho
cênico, foram alvo de uma política
unificadora na qual não houvesse espaço
para manifestações profanas. A dominação
supraétnica do espírito do gentio requereu
uma unificação do discurso religioso que
concorria contra o xamânico nativo. De
acordo com a autora, esse discurso
supraétnico ganhou força a partir da segunda
metade do século XVI, quando se
consolidava não somente o sistema colonial,
mas o controle da mão-de-obra indígena e
sua conversão pela igreja.
Barros (1986) argumenta que havia uma
ideologia do letramento alinhada com o
projeto civilizatório, onde os indivíduos que
tivessem mais erudição seriam mais bem
vistos. Isso logo se traduziu em um paralelo
entre os senhores da fala indígena (pajés) e os
próprios jesuítas, percebendo-se certas
semelhanças entre seus discursos públicos
exortativos. Tal semelhança parece ter
motivado uma aproximação desses discursos
nos anos iniciais. Mas uma colonização da
linguagem, que tentaria suprimir essas
91
manifestações pagãs, dominou o discurso
nativo em prol do jesuítico.
Essa supressão linguística pode servir
como exemplo da disputa entre a
religiosidade tradicional e a estrangeira e da
eficiência jesuítica na construção de
estratégias de dominação espiritual. Outra
estratégia foi a educação cristã das crianças
indígenas, os “hermanitos de la tierra”, por
Luciana Villas Bôas (2009, p.170).
As crianças não só pareciam receber os
ensinamentos cristãos com mais facilidade,
como acabaram por tornarem-se agentes dos
jesuítas. Assediavam seus pais para
participarem dos rituais cristãos, auxiliavam
na preparação desses rituais, e ainda
fiscalizavam seus parentes, prontos a
denunciar aqueles que voltassem para os
antigos hábitos. Porém, as conclusões da
autora fazem referência a um período de seis
anos, marcado pelo contato inicial dos
preceitos cristãos com os nativos e pela ideia
dos jesuítas de que esses índios não tinham
religião, recebendo a nova religião, que iria
ocupar esse vazio, com bom grado. Ainda de
acordo com ela “À medida que os índios se
revelaram inconstantes, não apenas os
catecúmenos em geral, mas também os
hermanitos de la tierra, recolhidos e ensinados
nos colégios, os jesuítas traçaram uma nova
estratégia” (VILLAS BÔAS, 2009, p. 171).
Mesmo assim, as crianças indígenas não
deixaram de ser vistas como cristãos
potenciais com maior chance de sucesso da
educação jesuítica do que seus pais. A
discussão acerca da música, estratégia de
aproximação dos missionários com os índios,
feita por Plínio Freire Gomes (1991) também
evidenciam essa potencialidade. De acordo
com o autor, órfãos trazidos de Portugal e
que eram conhecedores de música chegaram
ao novo mundo para exercer uma mediação
que se tornaria mais eficiente que a catequese
ortodoxa devido a uma aproximação cultural
conseguida com essa prática. Vale lembrar
que o recorte temporal desses dois autores
constitui fator de aproximação de suas
conclusões.
Tal importância dada à educação das
crianças acabou por torná-las catequistas,
sacristãs e, mais importante, línguas. É claro
que “No entanto, assim como os outros, [as
crianças] exercitaram sua capacidade de
traduzir a nova crença e vinculá-la ao
universo referencial que traziam como
tradição” (CARVALHO JÚNIOR, 2005, p.
259). Como se verá adiante, a apropriação
particular das doutrinas dessas crianças, ou
sua ausência, preocupavam os jesuítas, que
nem sempre estiveram confiantes na
“constância” da doutrina cristã nos
indígenas.
Durante todo o processo de contato e
colonização, era necessária a comunicação
com indígenas, o que tornava indispensável
o uso de línguas. Entre esses, eram várias as
suas identidades e funções, além da tradução.
Os primeiros colonos logo aprendiam a
língua da terra, além de conhecer o
português. Os missionários aprendiam a
LGA ao chegar, mas sua comunicação com
indígenas não terminava aí: com o uso de
catecismos, dicionários e gramáticas,
conseguiam alcançar, com o tempo, não
falantes da língua tupi. Bessa Freire faz uma
identificação dos indígenas:
De um lado, havia aqueles índios que eram
recrutados para o sistema colonial - os
“domesticados”, “índios da missão”, “índios de
repartição” e até mesmo os escravos. Esses
adquiriam a Língua Geral, que por um
certo tempo convivia em bilinguismo com
as línguas vernáculas, mas essas últimas
tendiam a desaparecer em uma ou duas
gerações, criando uma situação de
monolingüismo em Língua Geral. De
outro, os que conseguiram continuar
vivendo em suas aldeias de origem,
preservando sua língua materna e sua
identidade lingüística (BESSA FREIRE,
2003, p. 68).
Quanto a estes indígenas aldeados e
domesticados, acabavam aprendendo o tupi
no cotidiano dos aldeamentos e mantinham
memória da língua materna, tornando-se
bilíngues, sendo fundamentais para o contato
com aldeias mais distantes de indígenas
falantes da mesma língua. Aqueles indígenas
acabaram fazendo parte de comitivas a
negócios com colonos, ou posteriores
tentativas de descimentos com jesuítas. É
sobre esse grupo que se faz esse trabalho.
92
 Um dos motivos para essa delimitação
(índios já aldeados que se tornam bilíngues)
é a limitação da fonte. Os relatos jesuíticos
oferecem vislumbres da agência desses
personagens, mas esse aparecimento é
esparso e irregular. No caso dos tratados de
João Daniel, que fazem testemunho de
momentos de finais da administração
jesuítica, meados do século XVIII, os padres
em sua maioria já conheciam a língua geral e
os colonos já eram inimigos de longa data
desses padres, se tornando cada vez mais
desgostosos com sua administração. O único
língua que aparece nesses relatos é o indígena
não-tupi, requisitado tanto por uns quanto
por outros. Ao que parece, essa tarefa não
costumava lhes render um status
diferenciado como acontecia com os índios
pilotos ou artesãos: em algumas ocasiões, eles
eram escolhidos mesmo entre os remeiros da
canoa usada na viagem (CARVALHO
JÚNIOR, 2005). Apesar disso, também
poderiam embarcar em viagens unicamente
por serem falantes de determinada língua. A
diferença entre o tratamento dado, por um
lado, aos moradores línguas que porventura
queriam tonar-se padres e, por isso,
conseguiam dispensas de algumas
obrigações eclesiásticas, e, por outro, aos
índios línguas, que nunca chegaram a fazer
parte da hierarquia eclesiástica do período, é
um exemplo das posições sociais que cada
um ocupava. Sendo ambos os personagens
línguas, as funções e status que cada um
ocupava eram bem diferentes.
A referência teórica para analise das
fontes é Paula Montero (2006). A
antropologia histórica pensada por Montero
é um instrumental teórico que deseja superar
conceitos que exprimissem dualidades
generalizantes ou esquematismos, onde o
estudo da questão não se proporia em achar
o que “é nosso” e o que é “deles”, ou o
“antes” e o “depois” do contato, mas sim
procurar o próprio processo de
ressignificações que ocorreram em toda a
gradação hierárquica simbólica das
cosmologias em contato, durante mesmo esse
contato. A mediação cultural é, dessa forma,
o processo no qual os missionários e
indígenas traduziram signos, crenças, rituais
e tradições, resultando em “configurações
culturais específicas”. Assim: “Enfatizar a
análise das relações descentradas através de
uma ideia de mediação que supere o
dualismo não significa simplesmente
postular a existência de "sujeitos híbridos",
mas sim analisar histórica e simbolicamente
as condições e os modos de sua produção”
(MONTERO, 2006, p. 44). De acordo com a
autora, a construção histórica desse
hibridismo se deu no nível particular de
acesso, sempre seletivo de alguns códigos
próprios e alguns códigos do outro. Além
disso, o missionário foi mais eficiente nesse
processo do que o indígena, dado o caráter
universalizante do cristianismo, que possui
“a capacidade de garantir a inclusão social e
a inteligibilidade simbólica de todo tipo de
diversidade” (MONTERO, 2006, p. 55).
Mesmo com esse desequilíbrio de forças
simbólicas, o desafio para a teoria da
mediação permanece: como se dá a
construção de situações e textualidades que
engendram sentidos compartilhados nas
zonas de interculturalidade? Porém, como a
autora coloca, é necessário inserir a análise
desse processo de construção do horizonte
compartilhado no campo político do jogo de
interesses, o que resulta em um novo eixo de
desequilíbrio.
Esse referencial teórico rapidamente
sumarizado orienta a análise das fontes em
alguns aspectos. Primeiro, pode-se
considerar que o comportamento dos
línguas, sua decisão de seguir os desígnios
dos missionários, ou de traí-los, não se dá
somente pelo entendimento que esses
personagens tem da sua própria posição
política no contexto colonial, mas é também
direcionado pela particularidade da absorção
que eles faziam do discurso religioso dos
quais eram porta-voz (ARENZ, 2014). A
decisão pelo convencimento, a favor ou
contrário, a um descimento perpassava pelo
horizonte simbólico e, por conseguinte,
religioso que esses indígenas de fato
compartilhavam, ou não compartilhavam,
com seus mestres espirituais cristãos, uma
vez que o político e o religioso eram esferas
inseparáveis dentro do contexto colonial. Em
segundo lugar, a própria fonte é
93
unilateralmente de origem jesuíta, fazendo melhor forma vizinhas aos portugueses,
do contato do missionário com o índio onde finalmente os domesticam (DANIEL,
mediado pelo missionário na escrita. O tomo 2, p. 57).
terceiro aspecto é ainda, um porvir: a teoria
Nessa passagem se observa que a
da mediação cultural será importantíssima
estratégia de persuasão de “nações”
para a análise da mediação que o índio
perpassava muitas vezes pela mediação do
tradutor toma parte nas ocasiões do seu uso
língua “manso” ou cristianizado, ou do
em confissões. Dado o caráter inicial da
língua colono. Ou mesmo do colono que não
pesquisa, ainda não é possível fazê-lo.
era língua, mas trazia consigo um, e que tinha
interesses comerciais com aquele povo. João
Daniel diz, em outra ocasião, que o trato dos
OS LÍNGUAS INDÍGENAS NA brancos com alguns principais que oferecem
AMAZÔNIA suas próprias filhas como sinal de amizade é
exemplo dos perigos dos “tementes a deus”,
preocupados em não ofender esses
As duas fontes usadas nessa pesquisa
principais. Mas é possível observar a agência
fazem referência a dois períodos bem
indígena na estratégia de comunicação por
distintos da história colonial da Amazônia. O
esses mesmos brancos uma vez que se
século jesuítico compreende o período de
desculpavam pelo intermédio de um
maior recrudescimento do projeto das
indígena manso, que eram testemunhas dos
missões da Companhia de Jesus e conta com
métodos de relações econômicas dos brancos,
três lideranças mais significativas, que
conseguindo assim, recusar respeitosamente
também são contemporâneas a contextos
o oferecimento dessas índias (DANIEL,
específicos da Amazônia colonial. Os padres
tomo1, p. 282).
Antônio Vieira, João Felipe Bettendorff (1990)
Nesse caso, talvez o índio não fosse
e João Daniel (1975) produziram uma gama
necessariamente língua, mas ainda servia de
de documentos que hoje são fontes para a
intermediário em situações de divergência
análise desses contextos. Porém, somente os
cultural, digamos, potencialmente perigosa.
dois últimos são aqui analisados.
Além disso, vale questionar a escrita
O elogio dos missionários à efetividade
missionária sobre a situação: não se tem
dos intérpretes costuma fazer menção às
notícias de casos em que essas filhas
ocasiões de “prática” dos tapuias. João Daniel
oferecidas pelos principais simplesmente não
considerava necessária muita cautela ao
foram recusadas pelo negociante em questão.
tratar com os principais de uma aldeia. Era
Mesmo que se tivesse conhecimento de um
preciso, primeiro, “acariciá-lo”, ou seja,
caso assim, não cabe a escrita jesuítica relatá-
atuava presenteando o principal e sendo
lo, devido a sua natureza pecaminosa.
cuidadoso, pois era perigoso ofender os
As estratégias para amansar as “feras
orgulhosos e belicosos principais.
humanas” (JOAO DANIEL, 1975)
Costumava-se, ainda, enviar os línguas
dependiam assim, da eficiência do
algumas vezes, antes da vinda do próprio
convencimento de que tomavam parte os
missionário:
línguas quando eram enviados pelos
(...) Outros julgando por temeridade o
missionários e quando iam junto com estes.
irem meter-se entre eles sem esperança de Dados os perigos desse contato, nem sempre
os reduzir, os mandaram primeiro praticar amigável, o papel do intérprete se tornava o
por algum branco, dos que com alguma de mediador. Ao que parece os intérpretes
nação têm comércio, ou por algum índio já entendiam essa preocupação e agiam de
manso, que saiba sua língua repetidas acordo, fazendo traduções de forma a evitar
vezes, té que abrandados já algum tanto os
possíveis conflitos dos quais também
ânimos a poder de dádivas, que pouco a
pouco lhes vão repartindo, e
poderiam sair feridos ou mortos: como se
despendendo, os persuadem a descer, e verá adiante, as traduções pelos indígenas
sair dos seus matos para povoações de nem sempre saíram como planejado pelos

94
missionários, por vezes a mensagem poderia
ser justamente contrária a eles. Mas não há
relatos vistos até esse momento da pesquisa,
em que essa atitude de inversão de posição
tenha tomado lugar em momentos tão
perigosos como os contatos iniciais com
chefes ainda não convencidos. É claro que as
fontes observadas nessa pesquisa são
provenientes de padres que sobreviveram a
esses contatos, para ter a oportunidade de
escrever seus relatos.
O próprio fato de que a fonte foi
redigida por padres já desencadeia em uma
série de omissões. A desigualdade de poder
simbólico e real entre os missionários que
escreveram essas fontes e os índios que
estavam sendo descritos se aproxima da
problemática discutida por Carlo Guinzburg
em O Inquisidor como Antropólogo: uma
analogia e suas implicações. (1989). O
vislumbre que se tem do indígena é sempre
“por sobre os ombros” do missionário. Se
houve casos de “traição” dos línguas contra
os padres em um desses momentos iniciais de
contato, e o padre em questão porventura
tivesse sobrevivido, faria sentido o episódio
ter sido omitido ou diminuído
propositalmente: as crônicas jesuíticas tem
caráter exortativo, baseavam-se na defesa do
cristianismo em geral, e dos jesuítas como
portadores de sua palavra, em particular.
Dessa forma, relatar a existência de um caso
dessa magnitude perpetrado justamente pelo
índio que se espera já domesticado e
cristianizado, não estava no seu interesse.
Os línguas indígenas nem sempre
estavam dispostos a cooperar com os
missionários e se voltavam contra seus
desígnios. Apesar de os missionários
creditarem essa ação à “natureza bárbara e
inconstante” dos índios (CASTRO, 1992, p
35)., conclui-se que tal ação se dava pela
absorção particular que esses agentes faziam
do sistema em que, convencidos ou forçados,
estavam submetidos. Assim que considerava
possível e pertinente, esse índio poderia
alternar rapidamente ao discurso anti-
jesuítico e denunciar os maus tratos que
sofriam a outros índios que, assim, tornam-se
resistentes:
(...) O 2º inconveniente desta repartição, e
em resposta ao 2º reparo, é a grande
dificuldade que se segue desta repartição
dos índios ao serviço dos brancos nos
descimentos dos índios selvagens e sua
conversão a fé católica, porque têm
ordinariamente comunicação com os
índios mansos das aldeias; por eles sabem
tudo o que passa, e como os obriguem a
servir aos brancos, remar canoas, e andar
em uma roda-viva, sabendo isto não
querem descer dos matos, não acreditam
nas práticas dos missionários, e dizem que
os querem enganar para também os
obrigarem aos serviços dos brancos como
aos mais; confirmam-nos os índios mansos
nas sua suspeita, e muitas vezes sucede
que, que os mesmos línguas que levam os
missionários, e em quem se fiam para por
seu meio praticar os selvagens, se viram
por parte deles, e os persuadem a que não
desçam dos seus matos para as missões,
porque nelas os obrigarão a servir aos
brancos, e frustram todas as diligências e
gastos dos missionários; outras vezes
respondem os índios mansos o mesmo,
quando os missionários os persuadem a
que vão praticar, e trazer para a missão a
seus parentes selvagens, que tem nos
matos, dizendo: para que, para servir aos
brancos? (DANIEL, t. 2, p. 312)
Percebe-se que, sentindo-se enganados,
os índios descidos se negam ativamente a
fazer parte do convencimento de seus
familiares. Também deixam passar
informações de seu cotidiano para outros
índios não descidos, dificultando as missões.
Assim, os línguas a que Joao Daniel se refere
só servem ao convencimento dos
descimentos na exata medida em que são
cobrados pelos missionários, explorando
brechas ou mesmo se contrapondo ao
missionário quando a situação lhe cabe. Essas
formas específicas de resistência revelam a
particularidade com que os índios
compreendiam os limites de seu próprio
papel. Eram cristãos, mas não eram
“mansos”.
Também vão nesse sentido, alguns
trechos coletados por Gabriel Prudente (2017)
em sua dissertação. Ao analisar as políticas
linguísticas na colônia, o autor discute alguns
trechos da crônica de Bettendorff, destacando
o uso dos línguas como “persuadores” de
95
parentes e aliados de grupos que não falavam
a língua geral. Em alguns casos, as crianças
eram visadas como agentes dos missionários,
depois de efetivada uma educação cristã. Ao
viajar pelo rio madeira, o padre superior
Jódoco Peres chegou a uma aldeia de índios
irurizes, e depois de “praticá-los” disse que
lhes mandaria outro missionário; “e para que
não lhes faltasse língua trouxe comsigo um
filho de principal para o Pará, para la
aprender a língua geral em o collegio (...)”
(Bettendorff, 1990, p. 354). Depois disso, o
jovem índio retornou com os missionários
prometidos aos irurizes.
O sequestro de crianças indígenas era
dado como prática comum dos jesuítas, que
assim os mantinham reféns e impediam a
fuga dos pais. Mas para além dessa
chantagem, o objetivo dos missionários era
que as crianças fossem instruídas e
retornassem para sua família como
doutrinadores da fé cristã. Supõe-se que aqui
também, era a particularidade de cada caso
que norteava a decisão de formá-los línguas e
a importância que se dava a essa posição de
mediadores do convencimento.
Gabriel Prudente percebeu que algumas
passagens demonstraram que o “tiro poderia
sair pela culatra” (Prudente, 2017, p. 55). A
ocasião relatada foi de um esforço jesuítico
em ensinar a língua geral ao filho de um
principal com o intuito de que esse retornasse
com os parentes convencidos para o
descimento, mas tal esforço não parece ter
obtido sucesso. Uma vez de volta à aldeia da
qual foi sequestrado, o indígena não foi mais
visto. Talvez tenha tentado convencer os
familiares e falhado. Mas o que Bettendorff
dá a entender é que o índio quebrou sua
promessa por ser “sem fé, sem rei e sem lei”
(BETTENDORFF, 1990, p.494).
Os línguas também poderiam ser
requisitados como assistentes na
aprendizagem das línguas nativas pelos
próprios missionários. Dado o caráter
itinerante desses padres, acabavam muitas
vezes em aldeias de línguas que lhes eram
desconhecidas, mesmo com seus anos de
experiência. É o caso do padre Bettendorff na
seguinte passagem:
(...) tratei logo de aprender a língua
ingayba, e para ajuda disso tinha eu feito
grande quantidade de diálogos de toda a
matéria que commummente houvera em
língua portuguesa juntamente e ingayba,
valendo-me para isso de um mameluco
versadíssimo em ambas ellas, por ser filho
do capitão-mor ayres de Souza e uma
ingaiba, e destes diálogos me ia ajudando
admiravelmente em tudo quanto os índios
me vinham falar, por achar ahi as suas
perguntas e juntamente as respostas que
lhes havia de dar, e assim ia aprendendo a
sua língua deles, de sorte que dentro de
três meses já a falava, fazendo minhas
viagens e conversando com eles e
ensinando-os pelas aldêas, em as quais
dentro de três mezes em que lá assisti,
baptzei algumas oitenta ou mais crianças
que em parte foram pro ceu (...)
(BETTENDORFF, 1990, p. 336.)
Ao chamar o dito índio de mameluco, o
padre o inclui dentro de um referencial que o
punha como aliado. Filho de um capitão-mor,
era de se esperar o auxílio daquele agente,
que não foi curto ou pouco importante: a
ajuda daquele língua por três meses foi
fundamental para o batismo de oitenta
crianças, de acordo com Bettendorff.
O caso da índia Nathalia é de especial
interesse. Em 1689 se descobriu a morte de
dois padres que atuavam na ilha de
camunixary, na capitania do cabo norte. O
levantamento dos fatos e o julgamento são
relatados por Bettendorff. Não só da morte
dos dois padres a paulada os índios da etnia
Oivanecas foram acusados, mas também de
comer sua carne, colocar fogo nas casas e
matar, ainda, os índios “domesticados” que
acompanhavam os padres. Entre esses índios
figurava um língua, mas nada sobre ele, além
do nome, foi dito. Após o envio de tropas e o
confronto, prendeu-se mais de trinta índios,
incluindo os principais Canáriá e
Amapixaba. O encarregado do inquérito,
padre Aloizio Conrado, interrogou (??)
Canariá com a ajuda de uma índia intérprete
chamada Nathalia, e conseguiu a confissão
de que o principal matara o padre Antônio
Pereira. O relato edificante narra uma nova
confissão do (já nomeado de forma cristã)
Francisco Canariá, antes de sua morte. Além
disso, essa mesma índia serviu para a
96
confissão de Amapixaba, que ficara calado
por meses e tinha sido dado como mudo.
Para Almir Diniz, porém, esse relato
carece de confiabilidade:
A riqueza de indícios neste relato é
demasiado grande. As contradições se
multiplicam. Nele é possível também
perceber o envolvimento de índios cristãos
no processo de punição de outros, a
maioria formada por gentios. Saiu da boca
dos acusados uma culpa nos moldes
desejados pelos padres que envolviam o
ódio a Santa Fé e a persistência dos vícios
gentílicos. Nada, no entanto, existia de
queixa contra procedimentos inadequados
dos padres mortos. As bocas repetiram as
mesmas ladainhas, ainda que de uma
delas nem mesmo som saísse. As
contradições do edificante relato de
Bettendorff são enormes – é bom que se
diga que não foi testemunha ocular do que
ocorreu. Este fato foi possivelmente
relatado pelo padre Aluízio Conrado ou
algum registro feito por ele e lido pelo
cronista. (Carvalho Júnior, 2005, p. 201).
Dada a cadeia de comunicações do índio
culpado até Bettendorff, passando,
provavelmente, por Aluízio Conrado, além
da própria natureza incerta dos
acontecimentos, é difícil situar a posição
precisa assumida pela língua Nathalia.
Mesmo assim, é significativo a sua presença
no meio de um julgamento importante.
Ao tratar do caso da índia Nathalia,
Gabriel Prudente conclui que a agência dessa
índia não é sinal de mera submissão aos
missionários, mas uma forma de
sobrevivência e adaptação à nova realidade.
Nesse caso, não foi a posição de língua que
lhe rendeu prestígio, mas precisamente o
contrário. Ao apontar a índia como filha do
principal para que sua tradução não fosse
vista com desconfiança em situação tão
importante quanto um julgamento,
Bettendorff sugere que os índios línguas de
fato pudessem conscientemente e filho de um grande principal, nem tinha
propositalmente proceder a uma tradução
não verdadeira (BETTENDORFF, 1990, p.
434). Risco que não corriam ao se utilizar de
língua com tamanho prestígio. Esse prestígio
pode ter sido exacerbado no relato, na
medida em que omitia as incertezas dessas
confissões mudas, mas não se tem garantias
dessa teoria.
O próximo caso, também relatado pelo
padre Bettendorff, é curioso. Ele relata que se
suspeitou que os sobreviventes de uma nau
naufragada tivessem sido atacados e mortos
pelos índios tememberezes na área de S.
Roque, no entorno do Ceará:
Fundada em tal suspeita, mandou-os
prender a justiça a todos, assim mulheres
como homens; examinados por língua de
sua nação, achou-se ser verdadeiro o que
deles se tinha suspeitado, pelo que todos
foram condemnados á morte, tirando uma
mulher com sua cria. Eu então, como reitor
do collegio, tratei logo de ensinal-os, mas
como eram bárbaros e mui agrestes, acabei
somente de ensinar a mulher para batpzal-
a com a criança, como foi feito; depois,
como eu estatva occupado com as cousas
de meu officio, continuou a ensinal-os o
Padre Superior da Missao, Pero Luiz,
animando-os que, visto serem
conmdenados á morte, tratassem de sua
salvação, a baptisar-se para escaparem do
fogo do inferno e irem gozar de Deus em o
Céo; obedeceram e depois de bem
doutrinados se lhes deu a todos a agua do
santo baptismo, excepto um velho, o qual
havia de ir com a tropa por língua, e por
isso não necessitava de tanta pressa
(BETTENDORFF, 1990, p. 317).
A dificuldade linguística para averiguar
a culpa dos índios foi superada com a ajuda
de um “língua de sua nação”. Não é grande
risco supor que esse língua é o mesmo que foi
poupado do castigo que os outros culpados
receberam, e integrado à tropa para
posteriores descimentos como língua. A sua
sobrevivência, nesse sentido se deu devido a
sua utilidade. O relato continua:
Estava entre elles um bello mocetão que
seria de idade de dezoito annos, pouco
mais ou menos; este me tinha rogado que
se lhe perdoassem a vida, porquanto era
ainda conhecido mulher, nem também
tivera parte alguma em a morte dos
naufragados, mas vinha somente em
companhia dos matadores sem mais
animo que de ir em companhia delles ao
Maranhão, offerecendo-se juntamente a
ser escravo dos padres para os servir toda
97
 a sua vida. Compadecendo-me eu deste
bello mancebo assim por sua nobreza,
como principalmente por sua rara
castidade e innocência em o caso quanto
me parecia, intercedi por elle; mas como
Deus Nosso Senhor o queria salvar por
esta via, permitiu que o velho parecesse
mais idôneo para o fim que se pretendia
que elle (...) (BETTENDORFF, 1990,, p.
318).
Esse episódio revela que a escolha de
quem seria melhor intérprete seguia alguns
fatores. Mesmo que sendo filho de um
principal e que tenha convencido Bettendorff
de sua inocência, o “bello mocetão” não
parece ter sido o escolhido como língua para
a averiguação da culpa dos índios, nem o foi
para os próximos descimentos. Se
concordarmos com Almir Diniz, o velho
parecia mais idôneo ao serviço porque seria
melhor testemunha das mortes horríveis que
sucederam aos culpados. Isto comprova a
tese de que os índios línguas eram parte
essencial no convencimento dos descimentos:
nesse caso específico, a escolha do índio que
seria poupado se deu pela avaliação de quem
seria mais eloquente no testemunho dos
resultados daquele incidente e no
convencimento dos Tembé (?) restantes que
ainda seriam descidos. Diferente do caso da
índia Nathalia, escolhida para fazer uma
tradução mais confiável por ser filha de um
principal, o velho foi escolhido para fazer
uma tradução mais eloquente, à revelia de
um filho de principal, disponível para o
trabalho. Assim, diferentes línguas eram
requisitados para diferentes situações de
tradução. Não é possível concluir se o velho
era portador de um discurso público
exortativo, ou seja, se era um “senhor da
fala”, indivíduos cuja oratória, argumenta
Barros (1995), concorreu com os próprios
jesuítas nos anos iniciais, ou se era o jovem
filho de principal que carecia de alguma
característica e, dessa forma, parecia menos
“idôneo”.
Falando sobre persuasores eficientes,
uma passagem de Bettendorff é curiosa. De
acordo com o padre, o índio Pantaleão, que
era sargento-mor, ajudou significativamente
a descer índios para a aldeia de urubuquara,
que ia “praticando os seus parentes, e trazia
pouco a pouco muita e bellissima gente, que
nós iamos ensinando e baptisando, conforme
entendiamos e era conveniente, e não ha
duvida que se hia formando uma poderosa
aldêa” (BETTENDORFF, 1990, p. 340-341). O
fato de possuir patente de sargento-mor é
clara evidência de sua intensa inserção no
mundo cristão, e o colhimento de certos
benefícios que vieram com isso. Aliou-se
assim, aos missionários, e mostrou a
eloquência do convencimento que se
esperava de um bom língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caso dos “persuasores”, ou dos que
não tinham interesses ulteriores de apoio aos
missionários, apesar de seu esforço em torná-
los línguas, e da índia intérprete de um
julgamento, e vários outros, são exemplos da
habilidade dos índios de se situar no jogo
político e decidir em que ocasiões se aliar aos
missionários ou renegar os seus desígnios a
partir do seu próprio entendimento religioso
e da posição de poder que assumiam como
intérpretes e tradutores. Agiam a partir da
sua crença particular do que era conveniente,
algo que muitas vezes escapava á mensagem
cristã, ou mesmo se opunha diretamente a
ela. Quando desenganados, procediam ao
convencimento de outras aldeias, mas
avisavam os parentes e denunciavam seu dia
a dia nos aldeamentos a quem quisesse ouvir.
Quando convencidos, partiam para amansar
as feras humanas a pedido do missionário, ou
intercediam com os principais,
economicamente proveitosos, a serviço dos
colonos. Sua atividade como língua poderia
significar sua própria sobrevivência dentro
de um sistema que era ao mesmo tempo de
dominação e de convencimento, que cada vez
se tornava mais bem estabelecido à revelia
das tradições indígenas milenares, mas com a
qual se misturava. Quando um índio não era
um língua desejado, seu filho poderia ser.
Sequestrado pelo missionário, punha em
xeque a família, mas o plano poderia sair
muito errado. Inconstantes como os pais, as
crianças poderiam ser os doutrinadores e
vigilantes exemplares “construídos” pelos
98
missionários, ou poderiam retornar aos
costumes bárbaros no momento em que eles
mesmos não estivessem mais sendo vigiados.
Em suma: as dificuldades linguísticas de um
projeto jesuítico em andamento alocavam
algum poder simbólico, político e religioso
nas mãos daqueles responsáveis pela
tradução. Os indígenas que ocuparam esse
papel, não deixaram de se aproveitar dos
limites e possibilidades desse poder,
FONTES
BETTENDORFF, J. F. Crônica da Missão dos
padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão. Belém: Fundação Cultural
Tancredo Neves, SECULT, 1990.
DANIEL, João. Tesouro Descoberto do Rio
Amazonas. Rio de Janeiro: Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 95, v.
1 e 2, 1975.
BIBLIOGRAFIA
AGNOLIN, Adone. Catequese e tradução:
Gramática cultural, religiosa e linguística
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76.
100
REDES DE CONHECIMENTO
E OS ÍNDIOS DO VALE AMAZÔNICO:
possibilidades de pesquisa

* Rafael Rogério Nascimento dos Santos

Resumo: No intuito de administrar as potencialidades econômicas de suas colônias no ultramar,

a partir da segunda metade do século XVIII, Portugal criou/ampliou redes de conhecimentos que
permitiam aprofundar o domínio de seu império. Tais redes traduziam informações, localizações
geográficas, além de animais e plantas e pessoas que circulavam no ultramar. Seja na questão
dos produtos naturais, plantas e seus usos medicinais, seja no envio de animais para compor
jardins e museus na Europa, tal situação pode ser pensada para evidenciar a inserção dos
ameríndios nesse processo. Além disso, esse trabalho mostra os passos iniciais da minha pesquisa
atrás dos rastros dessas redes no trajeto que realizaram no interior do sertão até chegarem em
Belém e serem enviados para a Europa.
Palavras-chave: História natural. Vale amazônico. Povos indígenas. Redes de conhecimento.
História da Ciência.

O trabalho que apresento aqui são as
reflexões iniciais da pesquisa que desenvolvo
no doutorado. Fruto de uma mudança tardia,
mas feita em boa hora, procuro pensar a
participação dos povos indígenas nas redes
de conhecimento no vale amazônico a partir
da segunda metade do século XVIII.
Considero que os saberes indígenas e suas
práticas foram utilizados por filósofos
naturalistas, viajantes, missionários,
botânicos, entre outros, no domínio da
História natural.
Durante a segunda metade do século
XVIII, Portugal e suas colônias no além-mar
passaram por duas maiores transformações
que norteiam o objeto de atenção deste
trabalho. A primeira corresponde a uma
mudança “interna”, na metrópole,
relacionada à renovação cultural e científica
financiada pelo próprio Estado.
Nessa renovação do conhecimento
foram envolvidos cientistas, médicos,
cirurgiões, naturalistas, matemáticos,
cartógrafos, professores de universidades de
outras regiões da Europa, o que se chamou de
“elite do conhecimento” (DOMINGUES,
2001). João Carlos Brigola aponta que havia
um intenso intercâmbio científico entre
Lisboa e instituições como o Jardim Botânico
de Madrid, Jardim do Rei e Sociedade Real de
Agricultura em Paris, Jardim Real de Kew e
Royal Society em Londres, Universidade de
Amsterdã, entre outros. (BRIGOLA, 2012).
Também foram criadas instituições
como o Colégio dos Nobres (1761), a
Academia Real da Marinha (1779), Academia
Real das Ciências (1783), o Palácio Nacional
da Ajuda (1795), Jardim Botânico da Ajuda
(1768), o Jardim Botânico da Universidade de
Coimbra (1772), entre outras. De maneira
geral, essas instituições serviriam para
promover práticas científicas em Portugal e
nos espaços ultramarinos, era o tempo do
reformismo ilustrado pombalino.
Ademais, o contexto está relacionado ao
avanço da indústria portuguesa e teve seu
impulso sob o governo do ministro Sebastião
Jose de Carvalho e Melo (1699-1782), que
mais tarde receberia o título de Marquês de
Pombal. As políticas pombalinas estavam
orientadas para o crescimento econômico de
Portugal, procurando implementar medidas

* Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Universidade Federal do Pará. Alameda: Pedro Araújo, 73; Bairro: Ianetama;
Castanhal_PA; CEP: 68745-125. Correio eletrônico: rafaelsantos@unifesspa.edu.br

101
que favorecessem o país e sua classe
mercantil (ROLLER, 2010; KURY, 2004;
LEITE, 1997).
Deu-se especial atenção para o
reconhecimento do mundo a partir da
Filosofia Natural. Portugal investiu um
esforço enorme para superar seu “atraso”
quando comparado a outros países da
Europa (PEREIRA, 2012). Dessa forma, os
quatro cantos do Império passariam a ser
explorados e Portugal se tornaria referência
das novas ciências, principalmente com a
Universidade de Coimbra.
Foram implementadas uma série de
reformas encabeçadas por Domenico
Vandelli, botânico, professor de Química e
História Natural na Universidade de
Coimbra, responsável por dirigir as obras do
Real Jardim Botânico e que naquele período
ficou responsável por um projeto acerca da
História Natural das Colônias1. Para Vandelli,
imbuído dos pressupostos de Lineu, o
conhecimento dos recursos naturais de um
país é essencial para o desenvolvimento
econômico e “O progresso do reino adviria
da identificação da utilidade dos produtos da
natureza e dos estudos que indicassem os
melhores meios de explorá-los” (COELHO,
2010, p.75).
A segunda mudança que direciona meu
olhar nessa pesquisa corresponde ao trato
com a América Portuguesa, mais
especialmente o Vale Amazônico, espaço
onde inicialmente situo meu trabalho. No
século XVIII a região se torna objeto de maior
atenção para a Coroa lusitana. A definição do
tratado de Madri, em 1750, e do Tratado de
Santo Idelfonso em 1777, redesenhou as
fronteiras coloniais entre Espanha e Portugal,
e isso acabou por desencadear uma série de
transformações naquele espaço e no
cotidiano de milhares de indígenas que ali
viviam. Para Portugal, tratava-se de ocupar
definitivamente a região, transformando seus
antigos ocupantes, os índios, em vassalos e
povoadores daquele território em nome do
rei.
Para Ângela Domingues:
1Domenico Vandelli. Viagens Filosóficas ou dissertação sobre as
importantes regras que o Filósofo Naturalista nas suas
peregrinações deve principalmente observar, 1779. Biblioteca da
Foi na segunda metade do Setecentos que
se realizaram viagens científicas às
colônias, mas foi também neste período
que se procedeu à demarcação de limites
entre as monarquias ibéricas na América
do Sul. E, assim, o esforço de conhecer o
espaço e a tensão político-diplomática
confundia-se enquanto estímulo imediato
à atividade científica de que o Brasil era
objeto (DOMINGUES, 2001, p.824)
A colônia americana portuguesa serviu
de palco experimental das ações
metropolitanas (MAXWELL, 1998). Com o
intuito de consolidar sua presença no vale
amazônico, além de tornar os indígenas
súditos da Coroa, as medidas tomadas por
Portugal envolveram um conjunto de
parâmetros que deveriam nortear a vida na
região. Alguns deles podem ser elencados: a
criação da Companhia Geral de Comércio do
Grão Pará e Maranhão (a fim de intensificar a
exploração comercial dos produtos
amazônicos e implementar o uso de escravos
africanos como principal força de trabalho); a
reconfiguração das antigas aldeias
missionárias em vilas e povoados sob uma
direção secular; a atribuição aos índios como
principais povoadores da região; a
transformação das lideranças indígenas
aliadas em “funcionários” do governo
(atuando em cargos civis e militares); o
incentivo à agricultura, entre outros.
Foi colocada em ação uma política que
tinha como objetivo tornar a colônia
economicamente rentável, além de
concretizar a presença metropolitana na
região. Nessa conjuntura, para a Coroa, todos
foram dotados de papéis específicos e
deveriam colaborar para o bem comum da
Colônia (SOMMER, 2000; SAMPAIO, 2011;
ROLLER, 2010; DOMINGUES, 2000).
Nelson Sanjad aponta que na cidade de
Belém, a partir de 1750, há uma intensa
transformação do espaço urbano.
Especialmente entre as décadas de 1760 e
1780, foram inaugurados o “Palácio do
Governo (1771) (...) a nova catedral da Sé
(1771), o Hospital Real (1770); os Quartéis dos
Soldados (1779); o Arsenal da Marinha
Academia das Ciências de Lisboa (BACL), mss 405 - série
vermelha.
102
(1761)”, e no final do século XVIII foi criado o
Jardim Botânico do Grão-Pará (1798).
(SANJAD, 2012, 2007)
Nesse ínterim, foram
criadas/ampliadas redes de conhecimentos
que permitiam Portugal aprofundar o
domínio de seu império. Tais informações
diziam respeito a dados imateriais, estudos
teóricos, localizações geográficas, além de
animais e plantas (vivos/as e mortos/as) e
pessoas que circulavam no ultramar. De um
lado do Atlântico temos a produção e
preparação das viagens filosóficas, das
explorações em outros continentes orientadas
pelas instruções de Vandelli e dos seguidores
de Lineu, do outro temos viajantes e visitados
em um saber-fazer que apesar de seguir uma
diretriz científica europeia, também têm suas
próprias configurações locais (PRATT, 1999).
Essas redes, evidentemente, não surgem
no século das Luzes. Existe uma vasta
bibliografia que dá conta de mostrar tais
redes de circulação e informação, “Desde o
início da colonização, remessas de animais da
terra eram feitas para a Europa e para o
Reino. As aves – vivas e mortas – tinham
lugar de destaque” (KURY, 2008, p.100).
O que pretendo tratar é sobre como os
povos indígenas participaram desse
processo. Até o momento a lida com a
documentação tem mostrado um tráfego de
informações e materiais que seguem o
direcionamento do sertão para mar. As fontes
apontam que cobras2, onças, periquitos,
papagaios, macacos, pica-flores, plantas, as
famosas “drogas do sertão”, portanto, itens
da fauna e flora saindo do sertão, por
exemplo, que saem do rio Japurá indo para
Belém (Grão-Pará), e serem enviados a
Portugal, para as famosas Quintas Reais,
atual Palácio Real de Belém3.4
Essa documentação riquíssima
apresenta a possibilidade de trabalhar com
questões sobre redes de informações trocadas
e produzidas entre metrópoles e suas
2 Martinho de Souza e Albuquerque. Correspondência
original dos governadores do Pará com a Corte. Cartas e
anexos. Códice 99, volume 8, março de 1787, Pará,
documento 40.
3 Martinho de Sousa e Alburqueque. Correspondência
original dos governadores do Pará com a Corte, Códice 99,
volume 07, março de 1786, Pará, fls 25 e 26.
colônias, mostrando o percurso de itens da
fauna e flora amazônica até Portugal
(SAFIER, 2010). Geralmente, na
historiografia, os grandes responsáveis por
moverem esse processo são viajantes,
filósofos naturalistas, funcionários do
governo português. Mas será que somente
eles estavam envolvidos? Como os
conhecimentos indígenas eram utilizados
nesse universo? Como os próprios índios
participavam disso?5
No que corresponde a América
Portuguesa poucos trabalhos dão destaque
aos saberes indígenas na produção desse
conhecimento acerca do mundo natural. A
zona de contato, o espaço das relações
mútuas entre viajantes, exploradores,
cientistas e os nativos é pouco evidenciado.
Esses saberes indígenas certamente foram
utilizados na Colônia e exportados para o
além-mar. Seja na questão dos produtos
naturais, plantas e seus usos medicinais, seja
no envio de animais, tal situação pode ser
pensada para evidenciar a inserção dos
ameríndios nesse processo.
É claro que algumas ressalvas devem ser
feitas. Por exemplo, o artigo de Juciene
Apolinário mostra que sem as informações
dos indígenas de distintas etnias, a ampliação
do conhecimento sobre a História natural não
seria possível (APOLINÁRIO, 2013). Além
dele, Henrique Carneiro também mostra,
com certa ironia, que mesmo numa disputa
entre dois naturalistas europeus “sobre quem
copiou quem”, o saber indígena antecedia a
autoria dos dois (CARNEIRO, 2011).
A historiografia sobre a colonização de
outras regiões da América aponta boas rotas
de auxílio para se pensar a participação
indígena nesse processo. Parte desses
trabalhos mostra que nos séculos XVIII há
muitas expedições científicas de
reconhecimento do mundo natural, e a
história natural como ciência classificatória e
comparativa implicou na construção de
4 As Quintas Reais de Belém eram compostas pelo que hoje
é o Palácio Real de Belém, um grande jardim na frente, ruas
de bosque, horta, pomares e várias casas ao redor dos muros
da quinta. Servia para recreação da família real. Ver:
PAPAVERO, 2013.
5 Martinho de Sousa e Alburqueque. Correspondência
original dos governadores do Pará com a Corte, Códice 99,
volume 5, 23 de março de 1784.
103
diversos museus na Europa e em novas
práticas culturais e científicas.
O trabalho de Christopher Parsons:
“Plants and peoples: French and Indigenous
Botanical Knowledge in Colonial North
America (1600-1700)” tem me chamado
especial atenção. O autor analisou textos
científicos dos séculos XVII e XVIII e como
eles mantiveram conexões com uma rede de
troca ecológica e cultural na América do
Norte colonial. O grande diferencial da tese é
recuperar o papel dos povos indígenas na
produção desse conhecimento sobre os
ambientes coloniais que o Atlântico separava.
De acordo com Parsons:
Yet, as they lived and worked with
indigenous peoples for years on end, they
learned about local flora through their
experience of the lives of their aboriginal
hosts, as they ate, were treated for illness,
and as they travelled throughout
indigenous territories with indigenous
guides (PARSONS, 2011, p.18)6.
Além disso, o autor analisa como os
saberes indígenas foram utilizados por
cientistas e exportados para constituir
museus em outras partes do mundo,
entretanto, embora constantemente
utilizados nessa história do mundo natural,
tal saber foi apagado nos séculos XVII e
XVIII.
Ir atrás das pegadas dos animais e tentar
traçar o trajeto que realizaram no interior do
sertão até chegarem em Belém e serem
enviados para Portugal é o percurso que
pode me mostrar a participação dos índios
nesse processo maior. Algumas dúvidas que
logo surgem são: quem eram os responsáveis
pela coleta? Certamente viajantes,
naturalistas, funcionários do governo
português; mas será que somente eles
estavam envolvidos? Como os
conhecimentos indígenas eram utilizados
nesse universo?
Outro ponto a ser explorado é a
formação dessas redes de
6“Eles viveram e trabalharam com povos indígenas por anos
a fio, eles aprenderam sobre a flora através da experiência
das vidas de seus anfitriões indígenas, enquanto eles
comiam, eram tratados por doenças e viajavam através de
territórios indígenas com guias indígenas...”. Tradução livre.
informação/conhecimento entre as
capitanias, entre o Grão Pará, Caiena e
Maranhão, por exemplo. A documentação já
aponta por um troca de espécimes e gêneros
entre as capitanias da parte norte da américa
portuguesa, formando possivelmente uma
malha interna que responde à uma dinâmica
local. Os índios podem surgir aqui como
sujeitos essenciais na construção dessa
malha, pois fariam parte de todas as fases do
processo: coleta, preparação e envio.
Parte da documentação já transcrita e
coligida aponta para as fases de coleta,
preparação e envio. Em outro conjunto
documental, de 04 de janeiro de 1800,
presente no Arquivo Nacional no Rio de
Janeiro, Francisco de Souza Coutinho,
comenta a respeito da utilização de
“...remessas da casca, madeira e folhas de
que aqui descobriram o uso os gentios
carajá...”7. Em outro, de 1796, o
governador do Pará, Francisco de Souza
Coutinho, manda cultivar plantas
indígenas em terreno onde antes
funcionava o convento São José. O
documento possui em anexo um mapa
com plantas, quantidades que estavam
sendo cultivadas no convento, no Palácio
de governo e em terras de particulares8.
Penso que além dos distintos sujeitos
que estavam envolvidos nesse universo,
entre eles filósofos naturais, viajantes
europeus, etc., os indígenas foram uma das
principais peças dessa engrenagem, não
somente como força de trabalho, mas na
própria utilização do saber necessário à
exploração dos gêneros do vale amazônico.
Aliás, na estrutura pensada de produção que
se dá pela coleta, preparação e envio, os
ameríndios estavam envolvidos diretamente
nas duas primeiras e quiçá foram os
principais responsáveis.
Uma documentação que já analisei
durante o mestrado, e que agora percebo
outras informações data de 1777, onde D.
Tomás Xavier de Lima Vasconcelos Brito
Nogueira Teles da Silva, secretário de estado
7 Francisco de Sousa Coutinho. Correspondência original
dos governadores do Pará com a Corte, cartas e anexos. 04
de janeiro de 1800, Pará, Códice 99, volume 21.
8 Idem, Correspondência original dos governadores do Pará
com a Corte. 30 de março de 1798, códice 99, volume 19.
104
dos Negócios do Reino e Mercês, visconde de
Vila Nova de Cerveira, recebe uma carta com
um pedido dos indígenas das Vilas de Faro e
Alenquer. Os índios querem enviar para
Portugal, pelos navios da Companhia Geral
de Comércio do Grão-Pará e Maranhão9, dois
produtos que já coletavam, a salsaparrilha e
óleo de copaíba, mas agora sem a
intermediação de terceiros que os conectava
aos navios.
Além de evidenciar como os indígenas
elaboraram ações que mostravam suas
inserções na economia colonial e sabiam lidar
com as mudanças que o Diretório dos Índios
estava promovendo, essa documentação nos
mostra índios que coletavam a salsaparrilha e
o óleo de copaíba, a armazenavam para
transporte, desde o local da coleta até os
navios da Companhia.
As possibilidades supracitadas ainda
indicam o oceano Atlântico como espaço de
conexão e investigação, afinal ele é o
principal caminho que animais, plantas e
outros produtos transitam. Vários produtos
foram enviados para Lisboa. Do Estado do
Grão Pará e Rio Negro saíram produtos como
café, salsaparrilha, óleo de copaíba, mel,
castanhas, cacau, arroz, chocolate, entre
outros. Os historiadores Rafael
Chambouleyron e Karl Arenz têm realizado
algumas pesquisas que seguem esse caminho
e inspiram trabalhos no mesmo rumo
(CHAMBOULEYRON, ARENZ, 2017;
CHAMBOULEYRON, CARDOSO, 2014).
Em um ofício de 1774, o governador e
capitão general do Estado do Pará e Rio
Negro, João Pereira Caldas informa a
Martinho de Melo e Castro, secretário de
estado da Marinha e Ultramar sobre as
relações de animais do Pará que iriam para
Portugal:
sobre a diligência e remessa de todas as
aves das diferentes espécies que há pelos
bosques desse Estado, e também alguns
bichos, com que as Reais Quintas de Belém
façam mais curioso o seu recreio: em
observância desta soberana
recomendação, tenho passado as ordens
9João de Amorim Pereira [Ofício para o D. Tomás Xavier de
Lima Vasconcelos Brito Nogueira Teles da Silva, em
31/12/1777] – Projeto Resgate, AHU, Pará (avulsos), caixa
78, documento 6508.
precisas, a fazer mais abundância e raras
estas remessas, mas não basta o meu
cuidado e desejo, a efetuadas como quero,
por malograr todo este desvelo a
antecipada morte de algumas, que farão
ainda mais diminuto a sua quantidade
ajuntando-se as que morrerão na viagem,
sem embargo da grande vigilância que
encarrego ao capitão da charrua de sua
majestade e ao capitão da Corveta S. Pedro
Gonçalves, em que vão repartidas as que
me tem chegado de várias partes desta
capitania e constam das relações
inclusas.10
Essa documentação, inicialmente, me
permite pensar algumas questões já tratadas
pela historiografia que é o tratamento dado a
esses animais para chegarem vivos (ou não)
ao seu lugar de destino. Esse tratamento
geraria a produção de técnicas que
assegurassem o transporte dos animais,
inclusive, como aponta Ermelinda Pataca
(2016), as embarcações que atravessavam o
Atlântico tornavam-se quase em laboratórios
flutuantes que serviam como espaços para a
realização de experimentos. É bom lembrar
também que essa preocupação de preservar o
espécime para o transporte ocorria desde o
interior dos sertões, já que boa parte deles
saía das longínquas fronteiras daquele
espaço.
Retomando a leitura do documento, em
outro momento Pereira Caldas informa que
seria impossível enviar os chamados “pica-
flores”(beija-flor), porque não se sabia ainda
como alimentar aqueles pássaros;
desconfiava-se que era do suco que libavam
das flores, mas que “(...) nem com auxílio de
lhe por várias flores na gaiola, borrifadas,
conseguiu a sua vida mais que por poucas
horas, não excedendo de vinte e quatro o que
lhe durou mais tempo vivo”; “Mas se (...)
fizer gosto da figura delicada do mais
pequeno emplumado dos voláteis que é o
dito pica-flor, poderá ir daqui em espírito de
vinho, para chegar com toda a sua
perfeição.”11
Em outra fonte de 1777 lemos:
10 João Pereira Caldas, [ofício apresentado a Martinho de
Melo e Castro em 09/03/1774] – Projeto Resgate. AHU, Pará
(avulsos), caixa 72, documento 6120.
11 idem
105
 Muitas daquelas peles vão perfeitas,
porém outras menos boas, porque além da
grande distância de que vem, da demora
em se adquirirem, e ajuntarem, e do muito
tempo que na viagem gastam, vindo da
Fronteira do Javari, a qualidade deste
clima tudo impossibilita de conservasse, e
de poder existir em perfeição, por mais
cuidado que haja, para assim se
conseguir.12
Outra questão é relacionada ao caminho
que esses itens da fauna e flora colonial
faziam. Parte da bibliografia já aponta a
existência de um intercâmbio de espécies
entre as próprias capitanias. Isso quer dizer
que apesar de convergirem para a metrópole,
não só a tinham como ponto de interesse, tais
redes também eram conectadas entre as
próprias capitanias.
Os objetivos futuros da pesquisa
envolvem a abordagem do cenário geral da
exploração do mundo natural realizado por
Portugal em outras colônias, da construção
das redes de informação, fluxo de plantas,
animais e pessoas, principalmente a partir do
projeto encabeçado por Domenico Vandelli, a
“História natural das colônias”. Isso acaba
sendo não somente uma história de Portugal
e suas colônias, mas sim de uma história
global, já que alguns produtos saídos do vale
amazônico chegavam a Portugal e seguiam
para outros países.
Dessa forma, há uma vasta
correspondência entre o reino e suas colônias
que tratam do trânsito de gêneros do reino
animal, vegetal e mineral. Entre elas um
catálogo destaca quais produtos precisariam
ser melhores investigados para ver a
possibilidade de comércio em larga escala13.
Sendo assim, são vastas as
possibilidades de pesquisa que envolvem a
produção de conhecimento sobre a flora e
fauna do vale amazônico, e o lugar desse
conhecimento relacionado ao império
marítimo português (BOXER, 2002). A
pesquisa que está em desenvolvimento,
pretende evidenciar o fato de que as
configurações locais, especialmente a
12 João Pereira Caldas, [ofício apresentado a Martinho de
Melo e Castro em 16/11/1777] – Projeto Resgate. AHU, Pará
(avulsos), caixa 78, documento 6486.
participação dos ameríndios, são
fundamentais para a história da ciência assim
como alimentam o processo de circulação e
produção do conhecimento.
FONTES
Domenico Vandelli. Viagens Filosóficas
ou dissertação sobre as importantes regras que o
Filósofo Naturalista nas suas peregrinações deve
principalmente observar, 1779. Biblioteca da
Academia das Ciências de Lisboa (BACL),
mss 405 - série vermelha.
Martinho de Souza e Albuquerque.
Correspondência original dos governadores
do Pará com a Corte. Cartas e anexos. Códice
99, volume 8, março de 1787, Pará,
documento 40.
Martinho de Sousa e Alburqueque.
Correspondência original dos governadores
do Pará com a Corte, Códice 99, volume 07,
março de 1786, Pará, fls 25 e 26.
Martinho de Sousa e Alburqueque.
Correspondência original dos governadores
do Pará com a Corte, Códice 99, volume 5, 23
de março de 1784.
Francisco de Sousa Coutinho.
Correspondência original dos governadores
do Pará com a Corte, cartas e anexos. 04 de
janeiro de 1800, Pará, Códice 99, volume 21.
Idem, Correspondência original dos
governadores do Pará com a Corte. 30 de
março de 1798, códice 99, volume 19.
João de Amorim Pereira [Ofício para o
D. Tomás Xavier de Lima Vasconcelos Brito
Nogueira Teles da Silva, em 31/12/1777] –
Projeto Resgate, AHU, Pará (avulsos), caixa
78, documento 6508.
João Pereira Caldas, [ofício apresentado
a Martinho de Melo e Castro em 09/03/1774]
– Projeto Resgate. AHU, Pará (avulsos), caixa
72, documento 6120.
João Pereira Caldas, [ofício apresentado
a Martinho de Melo e Castro em 16/11/1777]
– Projeto Resgate. AHU, Pará (avulsos), caixa
78, documento 6486.
13Catálogo de gêneros naturais do Brasil e de outras colônias
portuguesas ainda não comercializados pelo Reino.
Conjunto documental: Secretaria de Estado do Ministério do
Reino, Caixa 731, pct. 02. Datas-limite: 1755-1863
106
 Catálogo de gêneros naturais do Brasil e
de outras colônias portuguesas ainda não
comercializados pelo Reino. Conjunto
documental: Secretaria de Estado do
Ministério do Reino, Caixa 731, pct. 02. Datas-
limite: 1755-1863.
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108
O BACHAREL DO DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS:
o Intendente Geral e a fiscalização das vilas

* Stephanie Lopes do Vale

Resumo: Na Amazônia da segunda metade do século XVIII, agentes coloniais estavam envolvidos
em projetos de aportuguesamento dos hábitos e rotinas dos indígenas nas nascentes vilas do
período pombalino. Os bacharéis régios nas colônias recebiam várias atribuições que lhes
direcionavam a avaliação e fiscalização dos cotidianos das vilas, na manutenção dos moradores e
paz dos povos. A Coroa e as autoridades coloniais tinham expectativas sobre os povos indígenas
e demais moradores dos sertões, a ocupação do espaço e a produtividade dependia desses nativos.
A questão era que as medidas deveriam ser adaptadas e adaptáveis as realidades e urgências
locais, pois a experiência demonstrava o peso das práticas locais para o equilíbrio da relação
colonial e da “paz” com os indígenas, assim, surgia na estrutura administrativa o Intendente Geral
da Agricultura, Comércio e Manufatura.
Palavras-chaves: Intendência. Civilização. Vila. Manutenção. Diretório.

A colonização dessa vasta área chamada processo histórico a criação e implantação do

de Amazônia não pôde negar a necessidade
de adaptar-se e ceder as petições e aos
poderes locais, a região que tratamos por este
nome foi conhecida durante a segunda
metade do século XVIII como estado do
Grão-Pará e Maranhão1.
Em 1755 foi criada a capitania de São
José do Rio Negro, fronteira com a capitania
do Pará, possuía seus outros limites
indefinidos, era fruto do contexto dos
Tratados de Limites de Madri (1750) e de
Santo Idelfonso (1777), no qual, partidas
delimitatórias foram enviadas e locadas,
dispendendo atenção, bens e braços. A
fundação da capitania entrou em um
contexto geral de disputa de terras onde se
torna mais urgente a habitação e o
crescimento populacional e produtivo das
vilas e povoações. Ainda se relaciona a este
chamado Diretório dos Índios2.
Neste texto histórico, tentamos
compreender e localizar as pressões internas
que se fizeram presentes na política colonial
constituída na década de 1750 pelas
autoridades coloniais. Tais medidas,
envolveram perspectivas de uma
transformação desejada pela Coroa, mas que
se adequou, transformou e articulou à outras
ações com agentes locais para este domínio
lusitano. Com negociações articulando
espaços coloniais e metropolitanos, a relação
colonial era formada na maleabilidade que o
Império Ultramarino Português mantinha
nos fios das redes clientelais.
Na segunda metade do século XVIII as
capitanias da América Portuguesa tiveram a
criação de dois novos cargos no aparelho
administrativo português: o Diretor dos

* Doutoranda em História Social da Amazônia, UFPA. Mestra em História Social. Bolsista: CAPES. Endereço: Passagem Ana-
Deusa, Curió-Utinga. Nº 102. Belém do Pará, Pará. Correio eletrônico: stephanielopes.989@gmail.com
1 Na década de 1750 ocorreu uma reorganização administrativa do Estado, este era desde 1657 o Estado do Maranhão e Grão-

Pará com a capital na cidade de São Luís. Durante a União Ibérica, a Coroa havia decidido separar o estado do Brasil em duas
administrações em 1621-24, o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão, para facilitar a administração da região norte da América
Portuguesa pois o ventos e monções tornavam mais fácil e rápida a comunicação direta com o centro em Portugal, do que com
o governo-geral na Bahia. No ano de 1771, houve uma nova separação, ficando: Estado do Maranhão e Piauí e Estado do Grão-
Pará e Rio Negro, este último permaneceu em comunicação direta com Lisboa e os órgãos em Portugal até a adesão da região a
independência em 1823.
2 Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão. In.: ALMEIDA, Rita Heloisa de. O Diretório dos

Índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora da UNB, 1997. Em referências ao longo do texto
usaremos Diretório dos Índios.

109
Índios e o Intendente Geral da Agricultura,
Comércio e Manufatura. Os dois postos
foram pensados no contexto de aplicação do
Diretório dos Índios e da vassalização dos
índios, derivando dos princípios desses
projetos.
A CAPITANIA DE SÃO JOSÉ DO RIO
NEGRO NO IMPÉRIO
ULTRAMARINO PORTUGUÉS
Os anos de 1750, no reino de Portugal,
acompanharam uma nova coroação – com a
subida ao trono de Dom José I – o terremoto
de 1755 e o atentado sofrido pelo rei
permitiram que, progressivamente, novas
forças políticas adquirissem espaço de
influência e cargos na administração
ultramarina, nos conselhos e secretárias
régias, também alçando Sebastião José de
Carvalho e Melo a figura de confiança
monárquica e vasto poder na Corte. O, então,
Conde de Oeiras3 ocupa postos de grande
influência junto ao rei, sendo seu ministro de
confiança promove reformas e abre portas a
seus associados, Carvalho e Mello assumiu a
secretária de Negócios do Reino implantando
o que foi nomeado de despotismo
esclarecido, ou como uma política
centralizadora.
Conjuntamente à grupos de agentes
régios e famílias enobrecidas, o Marquês de
Pombal fez mudanças na organização
administrativa e nos quadros de atuação,
além de propor reformas estruturais como a
criação do Erário Régio, a retirada da
influência jesuíta na educação e a Lei da Boa
Razão, reformando a jurisprudência do
direito e inaugurando o Direito Português.
As reformas ou transformações pensada e
aplicadas no reino e colônias fizeram uso da
estrutura jurídica e da própria malha de
funcionários, pode-se perceber a perspectiva
de centralizar vários pontos da política local
– dos poderes e instancias locais, como a
câmara que passou a ter mais presença de um
3 Em referências futuras o indicaremos pelo título que
somente em 1770 recebeu, do Marquesado de Pombal,
todavia, tal nome é de consagrado uso na historiografia.
Juiz, o Juiz de Fora que era um bacharel
nomeado regiamente. Todavia, a criação
desse cargo da Justiça nas câmaras era algo
criado desde o século anterior, observou-se
que a Lei da Boa Razão traçava um diálogo
com os costumes locais considerados
memoriais.
As medidas implementadas no período
josefino dirigiam suas atenções em políticas
que protegessem mais enfaticamente os
interesses econômicos lusitanos frente a uma
balança comercial com a Inglaterra. Do
mesmo modo, consequente ao Tratado de
Madri entre Portugal e Espanha, assinado no
reinado anterior e negociado pelo diplomata
D. Luís da Cunha, os termos do acordo
exigiam a ocupação do territorial com
vassalos, fortalezas e plantações.
Analiticamente, a segunda metade do século
XVIII tem soado como um giro da política
colonialista portuguesa que, ainda que não
tenha criado muitos novos cargos nem
desalojados tanto privilégios da Grande
Nobreza, realizou uma pulverização de
alguns espaços administrativos com novas
nomeações, ampliando a rede de oficiais no
serviço do rei e buscando a centralização
burocrática no régio poder, um desses
territórios foi o estado do Maranhão e Grão-
Pará.
A nomeação de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado – irmão de Pombal – para
governador e capitão general da colônia
norte da América portuguesa guardou uma
organização diferente do formato
administrativo do estado. A sede do governo
foi deslocada de São Luís do Maranhão para
Belém do Pará, o estado passou a ser
chamado de estado do Grão-Pará e
Maranhão. Historicamente, as autoridades
coloniais permaneciam mais tempo na
capitania do Pará, a situação política refletiu
um comportamento dos oficiais – não que
isso satisfizesse os habitantes de São Luís, a
modificação exigiu que se privilegiasse a
câmara da cidade mantendo-a como espaço
de destaque na região. Essa transformação
política permitiu o crescimento da força
110
política das duas câmaras, com o aumento de
postos e envio de tropas para a região. A
posição do governo em Belém também pode
ser interpretada como estratégia militar –
regimentos regulares foram enviados a
cidade durante a década de 1750 – dada a
posição mais próxima à fronteira com Caiena
e uma localização pensada olhando também
para os sertões do Grão-Pará em sua divisa
com a Espanha, objeto do Tratado de Madri.
Dentre as ações desse período, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado estava
encarregado de uma das partidas de
demarcação de limites do Tratado de Madri
sendo o Plenipotenciario das Demarcações,
um dos encarregados de liderar as
expedições com os técnicos (como geógrafos,
matemáticos) e encontrar a partida espanhola
para fazer a escolha dos marcos físicos com a
investigação da ocupação. Sendo
Governador e Plenitopenciario, Mendonça
Furtado se dirigiu ao novo estado com o
encargo de conseguir o território, pois os
termos do tratado partiam da ocupação.
Eram necessários os instrumentos (como
pelouro, fortes, casas, plantações) que
comprovassem a posse de uso daquele
espaço. O grande problema, em termos
metropolinos, era que o Tratado vinculava a
posse territorial à presença humana,
portanto, seriam necessários vassalos
portugueses ao longo das fronteiras e dos
sertões, que deveriam ter vilas.
As povoações, principalmente na
capitania do Pará, com potencial ao
reconhecimento como vilas portuguesa eram
aldeias de administração religiosa, não
possuindo moradores reconhecidos como
vassalos, posto que os indígenas eram
governados pelos missionários e, apesar do
aspecto e organização europeizada, as
povoações não tinham autoridades régias
estabelecidas, nem pelouro ou casa de
câmara, assim, estando ausente os símbolos
de dominação régia. A geografia pensada no
acordo de limites se basearia na presença
humana e urbana com a natureza local, os
marcos demarcatórios seriam notados na
geografia física com as quedas d'agua e
montanhas juntamente de fortalezas e fortins.
Estrategicamente, pensava-se a
constituição de pontos com marcos naturais,
fortes e uma malha de vilas e freguesias
assegurando proteção e comércio de
alimentos, as vilas pelos braços de rios
aprofundariam a presença portuguesa
empurrando a fronteira cada vez mais a
oeste. Todavia, não existia quantitativo
possível para habitar o estado sem a
população indígena desde o século XVI o
processo colonizador foi marcado por
disputas acerca da posse ou da tutela dos
indígenas. Em 1686, com ordem régia, foi
decretado o Regimento das Missões como
instrumento legal que arbitrava sobre as
relações dos colonos, religiosos e indígenas,
também definiu quem administrava e
tutelava a vida dos nativos.
O Regimento estabeleceu que a direção
espiritual e temporal dos indígenas dada aos
religiosos, as ordens administravam os lucros
e pagamentos de seus trabalhos nas vilas de
brancos e os colonos poderiam contratar seus
serviços. Mas eles permaneceriam na
administração dos religiosos, posto que, suas
residências eram em lugares separados dos
brancos, nas aldeias de índio. O Regimento
foi instituído depois de um intenso processo
de liberdades, escravidões e rebeliões dos
colonos e dos indígenas, pelos seus
parágrafos era instituído um Tribunal de
Liberdades, que julgava as petições de
liberdades e a legalidade das tropas de
resgate e descimento. A Mesa de Liberdades
era composta por religiosos das ordens
atuantes na região e com autoridades
coloniais, os Deputados das Mesa da Junta
das Missões possuíam influência e
arbitravam da liberdade dos indígenas e de
denúncias contra os colonos – também com
os próprios indígenas recorriam ao Tribunal.
A forte presença das ordens religiosas
acabará por se tornar um entrave no reinado,
a própria ampliação de uma máquina
burocrática lusitana operada pelo poder
régio empurraria e entraria em choque com o
poder que os religiosos atingiram nos
espaços coloniais. O quantitativo de
aldeamento e os lucros auferidos pelas
missões escapavam ao Governo e à Fazenda
Real, juntamente às queixas (e exageros
111
locais), acabaram constituindo a base de das
alegações para a retirada do poder temporal
sobre os indígenas. Os “resultados” das
missões passaram a ser tomados como uma
empresa lucrativa que não evangelizava e
que afastava os indígenas de uma civilidade
europeizada e leal ao monarca.
Esse poder de administração que as
ordens missionárias operavam quanto aos
assuntos indígenas receberam críticas e
queixas dos colonos e autoridades coloniais,
com a política pombalina as acusações e
denúncias contra a ação missionária
ganharam mais espaço, principalmente as
contrárias à Companhia de Jesus. Nos anos
de governo de Mendonça Furtado foi
tomando forma essa interpretação da ação
missionária jesuítica, assim, a anterior visão
da missionação como aliada ao rei e da
salvação espiritual dos indígenas passou a ser
tida como pedras da discórdia colonial e
causa da pobreza do estado.
Compreendemos que um aspecto
importante para a construção dos
argumentos contra os missionários reside
na mudança de entendimento de
Mendonça Furtado no que se refere à
aplicação do Regimento das Missões de
1686. A princípio considerado como uma
lei contrária aos interesses da nova política
colonial, particularmente quanto à
declaração de liberdade, passou a ser
compreendido pelo governador como
mais um elemento que comprovava a
inobservância dos clérigos em relação às
ordens régias. Deixando de ser entendido
como o principal entrave a política
indigenista, passando a incidir a crítica na
má interpretação e aplicação da legislação,
na medida em que os religiosos eram
acusados de não realizar devidamente as
repartições dos índios.
É possível dizer que esta opinião foi sendo
gestada depois que Mendonça Furtado
assumiu o governo e “passou a examinar
com vagar o Regimento e a forma como os
regulares defendiam as liberdades”.
Atribuímos também esta mudança de
avaliação sobre o Regimento das Missões,
4Os Álvaras com força de Lei de 6 e 7 de junho de 1755 foram
cartas régias onde se extinguiu o poder regular sobre a vida
cotidiana e da própria gestão dos indígenas, o poder
temporal, e se instituiu a liberdade dos indígenas sobre seus
bens e pessoas, passando a serem considerados livres e
vassalos do rei nesses termos e contexto. Já o Diretório dos
após a reflexão dos argumentos que lhes
foram, várias vezes, apresentados pelos
moradores. (GOMES, 2013, p. 51-52)
Nas análises dos historiadores Mauro
Cezar Coelho (2005) e Robeilton de Souza
Gomes (2013), as ações e projeções
pombalinas foram constituídas
progressivamente ao longo da década de
1750 nas trocas de correspondências entre o
governador e capitão general do estado
Mendonça Furtado, Sebastião José de
Carvalho e Melo e o Bispo do Pará, nomeado
na mesma época que o governador, o Frei
Dom Miguel de Bulhões. As investigações
histócas tem exposto o processo de trocas de
correspondências e informações entre os
agentes coloniais, seria a convivência com as
possibilidades e limites do contexto das
colonias que delimitaram ao longo dos anos
as Leis de Liberdades de 1755 e o Diretório
dos Índios apresentados pelo governador4.
Levando-se em consideração todo
abuso, desterritorialização e trabalho
extenuante sem remuneração a que viviam
submetidos os nativos – em função de um
discurso de evangelização e civilização – não
seria de se espantar que aberta a
possibilidade de suas liberdades as
populações desprivilegiadas se evadissem
das aldeias sem pensar duas vezes – fugas já
ocorriam mesmo sem a liberdade instituída.
Havia quase dois séculos de contato e
conflitos, e os povos indígenas vivenciaram
mudanças legais em sua condição, ainda que
apenas oficiais. Algumas vezes, a divisão
entre aliados e inimigos presente na
legislação demarcou povos escravizáveis e
povos que assumiram posições como colonos
e principais – foi esse universo que as Leis de
Liberdade interferiria, já que, as medidas não
distinguiam os grupos, mesmo os inimigos
estariam livres.
Nesse sentido, o Diretório do Índios se
insere como um instrumento primordial para
se entender o contexto, tendo sido escrito a
partir do mundo amazônico o texto de lei
Índios foi um regulamento onde esta descrita as orientações
da tutela indígenas instituída em 1757, passando a serem
súditos tutelados, caberia ao Diretor do Índios (cargo criado
no regulamento) e aos demais agentes coloniais aplicarem os
termos para “civilizar” os nativos aos moldes europeus
como portugueses.
112
arrola uma série de medidas e procedimentos
que devem ser implementados nas vilas e no
cotidiano das populações indígenas, de
forma que, eles sejam civilizados e se
tornassem vassalos de sua majestade
fidelíssima. Assim, a criação da capitania do
Rio Negro era acompanhada por uma nova
concepção da região dentro do Império
Ultramarino Português, havia uma questão
estratégica importante, a demarcação das
fronteiras entre Portugal e Espanha que eram
os limites dessa capitania, portanto, um
incipiente contato com os nativos poderia
ocasionar um grande risco a posse desse
território.
Um dos princípios centrais que regiam
essa política era o fortalecimento do poder
da metrópole, representado pelo reforço
da estrutura administrativa na colônia e
pela arregimentação da população em
povoados organizados e reconhecidos
dentro da hierarquia oficial. Portanto, para
a demarcação desse território – espaço de
posse da Coroa portuguesa, assim
reconhecido pelos demais reinos –, era
imprescindível a configuração jurídica e
material de elementos que representassem
essa ocupação, para além da representação
oficial em documentações textuais e,
principalmente, cartográficas. (SANTOS,
2016, p. 186)
O Diretório era um conjunto de
instruções que deveriam ser praticadas e
implementadas nas vilas e tais medidas
deveriam ser incentivadas e orientadas pelo
Diretor do Índios, este não detinha a
administração dos nativos, apenas a direção e
suas atribuições deveriam observar a
vassalização e aportuguesamento dos hábitos
e modos dos moradores. Entretanto, o que a
historiografia e as fontes tem demonstrado
são ações diversas, do cumprimento parcial
das funções até o uso do cargo para
enriquecimento e exploração dos indígenas.
O Diretório estabeleceu a tutela dos
indígenas, em uma alegada proteção e
orientação até que os mesmos fossem capazes
de se gerir, mas essa condição não anulou as
Leis de Liberdade de 6 e 7 de junho de 1755.
Tais alvarás com força de lei davam aos
indígenas a posse de suas pessoas e seus bens
– o que também, acabou por tornar de posse
comum as fábricas e utensílios de indústria
das povoações, tais como os fornos das
olarias – estes, não mais poderiam ser
governados, passando, inclusive, a poderem
assumir postos, como sargentos ou
vereadores e juízes, por exemplo. Para além
do cargo de Diretor, foi “criado” o posto de
Principal, um cargo de nomeação indígena,
que já existia, atuando como intermediário da
comunicação entre indígenas e brancos
organizando descimentos e negociando os
interesses da sua nação, a função passava a
integrar a estrutura da burocracia lusitana na
América.
Para o caso da capitania do Pará esta
questão estava “encaminhada”, pois com a
expulsão dos missionários o governador
Mendonça Furtado elevou os aldeamentos
em vilas, “ergueu” os pelouros e procedeu as
eleições das Câmaras. Com a liberdade foi
dada aos indígenas a condição de vassalos
portugueses e se reconheceu os privilégios de
seus chefes e principais dando-lhes acesso a
condição de homens bons da terra, logo, a
possibilidade de eleição na vereação e nos
cargos superiores das tropas. Tão logo,
somava a esta convivência a experiência dos
indígenas aldeados, frutos do próprio
contexto missionário.
Nesse sentido, entendemos as
flexibilizações nos pareces e leis, até
alterações em vista a boa execução e a
promoção da paz e harmonia no respeito às
dignidades e privilégios. Nas povoações e
vilas coloniais se somam as figuras das
lideranças indígenas, que em alguns casos era
representada no Principal, que passaram a
assumir postos no quadro de funcionários
coloniais, isto implicava em formação de
alianças entre grupos diversos. Observa-se
que as posições aqui não estavam dadas, a
figura do Principal se relacionava a grupos
expressos pela etnia – que muitas vezes era
resultante do processo colonial – podendo
uma vila ter diversos, e as alianças podiam
colocar em polos opostos indígenas e também
brancos.
De forma a organizar o espaço
Amazônico, fazer o centro mais presente na
“periferia” e possibilitar apoio as
Demarcações, a capitania do Pará foi dividida
113
em duas, em 1755 era criada a capitania de
São José do Rio Negro. Diferentemente do
território paraense, no Rio Negro a
missionação carmelita não teve efeito de
semelhante perfil de aldeias, na verdade, esta
ordem foi acusada de negociar índios e esta
mais interessada no tráfico das drogas do
sertão– até com os vizinhos espanhois e
holandeses, constituindo redes de tráfico. A
influência dos régulos do sertão e o espaço ser
explorado constantemente por tropas de
resgaste e de coleta de drogas do sertão
estabelecia outra forma de contato e
funcionalidade para o oeste da Amazônia ao
longo dos séculos anteriores, sendo utilizada
outra atitude negociada com os descimentos.
A expansão portuguesa pela região que
chamamos de Amazônia inseriu os povos
indígenas como agentes dessa ocupação
territorial, sendo, também, alvos de disputa
pela ocupação das fronteiras e rios. A partir
das considerações de Rafael Ale Rocha (2009)
e Fernando Roque Fernandes (2015),
podemos perceber que este espaço do
Império Ultramarino português foi fruto da
ação continuada dos envolvidos nessa
política, o mundo colonial foi inaugurado não
por uma imposição externa de colonos, mas
pelos processos históricos de conflitos e
alianças entre os povos em contato. O
indígena colonial era o outro – de todo modo,
o índio é um discurso europeu sobre o
habitante deste continente, ele é uma ficção –
da mesma forma que o colono era uma
criação do mundo colonial.
No entanto, utilizava, fundamentalmente,
entidades e métodos já criados no reino e
transplantados, em primeiro lugar, para as
ilhas atlânticas e, mais tarde, para o Brasil,
com o propósito de examinar a actuação
de todos os funcionários reais. Dessa
forma, a actividade dos directores era
devassada pelos corregedores, ouvidores e
intendentes-gerais. Estes tanto podiam
inquirir indivíduos ou casos específicos
como desempenhar a sua função sobre
todos os directores das povoações luso-
brasileira. (DOMINGUÊS, 2000, p. 157)
Na Amazônia Pombalina as práticas de
descimento dos povos dos sertões e a
organização das vilas fizeram uso das
capacidades e articulações indígenas. Foram
com as populações aldeadas que os bacharéis
do Rio Negro lidaram mais diretamente,
negociando as instruções sobre as
construções e plantações, procurando
assegurar a manutenção das povoações. As
colônias surgiam no processo histórico como
constantes construções numa prática de
experiência contínua, o processo colonizador
se transformava em relações dialéticas de
reafirmada experimentação.
A COMARCA DE SÃO JOSÉ DO RIO
NEGRO: OUVIDORIA E
INTENDÊNCIA GERAL DA
AGRICULTURA, MANUFATURA E
COMÉRCIO
Apesar da criação da capitania do Rio
Negro em 1755, somente em 1760 foi
nomeado o primeiro ouvidor, Lourenço
Pereira da Costa (1760-1767) e com ele a
definição de uma comarca independente.
Segundo Francisco Jorge dos Santos (2012):
[…] na fase da ‘Concepção da implantação
da Capitania do Rio Negro’, esse tipo de
servidor real não existiu, ainda que, na
Carta Régia da criação, o monarca
signatário outorgasse que “para conhecer
dos agravos e apelações tenho nomeado
Ouvidor da nova Capitania, com correição
e alçada em todo o seu território”
(SANTOS, 2012. p. 134)
Tornou-se usual definir a criação de
uma comarca por meio da nomeação de seu
ouvidor, a jurisdição não era
obrigatoriamente coincidente com o espaço
da capitania. A implementação da Ouvidoria
não pode ser interpretada como um processo
automático, a concepção de uma instância
jurídica distinta atuava como uma nova
organização do espaço administrativo do
Império.
A figura do ouvidor expressa o
movimento de centralização da
administração e sofisticação da burocracia
com a ampliação dos quadros de funcionários
do rei, a presença de um bacharel letrado na
114
capitania implicou na articulação com as
medidas do Império. A formação em Letras
ou Cânones na Universidade de Coimbra,
com seus exames, procedimentos e locais
próprios aos bacharéis, e os projetos que
representava ligam a capitania e suas
especificidades ao projeto português. As
obrigações dos bacharéis locais os colocavam
em posições de intermediários da aplicação
da lei, a readequar para o local se tornou sua
função e prática constante. A constituição da
normatização e do alinhamento das práticas
locais com os ditames “justos” e “adequados”
é algo que denota uma transformação social
profunda.
Não obstante, o continuo avanço do
direito escrito, o juiz ordinário, no mais
das vezes, ainda se valia do direito
consuetudinário (costumes) na resolução
dos conflitos entre indivíduos na
comunidade. Com as correições e
provimentos, os ouvidores de comarca
foram redefinindo o costume local,
homogeneizando a justiça em prol da
legislação portuguesa. (PEGORARO, 2007,
p. 68) Grifo próprio
As reformas pensadas por Pombal e
seus associados também se preocuparam com
a Justiça do Rei e estrutura juridicional das
leis. As matérias relacionadas ao “fazer
justiça”, dando a cada qual o que lhe era
próprio, eram de natureza monárquica,
sendo o equilíbrio das partes da sociedade
função do rei, portanto, ao exercerem a
função de Justiça as práticas dos letrados
5 O setor da Justiça possuía relativa autonomia frente aos
demais cargos, sendo considerada uma temática particular
ao rei. Segundo José Subtil, não se trata de uma área de
atuação, mas de uma natural disposição ou capacidade dada
aos reis de “fazer justiça”. A leitura é que não se trata da
decisão entre partes, mas a realização do equilíbrio entre os
que divergem, assim, não se procurava igualar, mas dar a
cada qual o que lhe pertencia, nesse contexto histórico-social
representava a própria harmonia social. “Fazer justiça” era a
manutenção do corpo social. SUBTIL, José. Os Poderes do
Centro. In.: HESPANHA, António Manuel (coord.). História
de Portugal – O Antigo Regime (1620-1807). 4º Volume.
Lisboa: Estampa, 1998. Pp. 141-230. P. 141-145.
6 Dentre as atribuições do ouvidor e corregedor (em
Portugal) de comarcas estava as viagens de correição, na
qual o bacharel procedia em viagens pelas vilas realizando
avaliação das câmaras – tanto financeira quanto civil,
também vistoriando os procedimentos e processos
envolvidos nos temas da Justiça, julgando recursos as
decisões dos juízes ordinários. No mesmo procedimento
realizava as eleições das câmaras.
estavam relacionadas ao poder do monarca –
sua obrigação primeira5. Nesse período,
passou a ser uma preocupação os parâmetros
legais (e a formação dos bacharéis) que
estavam mais baseados no Direito Romano e
Consuetudinário (costume), não existindo
propriamente um Direito português.
Consecutivamente, se faz observável uma
postura de nomeação em postos e política
regulatória e instrutiva que buscava assentar
nos costumes dos moradores as novas
posturas e ordens.
Ao percorrerem a comarca nas Viagens
de Correição6, efetuando as Devassas Gerais
e Especificas7 e Residências8, observaram o
desenvolvimento das vilas e povoações
coloniais, tendo como parâmetro de norma,
as Ordenanças Filipinas, as Leis Régias e o
Diretório dos Índios avaliavam e corrigiam os
procedimentos dos Diretores. Inclusive
dando procedimento nas queixas, denúncias
e inquirindo das relações entre os brancos e
mestiços com os indígenas. Recorrer ao olhar
do ouvidor como uma forma de alcançar a
realidade colonial descortina o diálogo entre
a lei e a experiência. Neste letrado ocorria um
debate cotidiano em um exercício de
constante instrução, fiscalização e correção da
gente da capitania.
Na comarca do Rio Negro a ação dos
ouvidores tomou direções de
regulamentação e fiscalização das situações
nas vilas. O interesse das autoridades
coloniais se mostra sobre formas de assegurar
o território para a Coroa portuguesa9, o que
7 Devassas Gerais eram as funções de Justiças envolvidas
mais ao sentido criminal do tema, procedendo quanto as
ações encaminhadas pelos juízes locais e querelas – também
recebendo recursos e petições dentro do cabível das
naturezas do envolvidos. As Devassas Específicas eram os
procedimentos jurídicos acionando o ouvidor para devassar
um caso/querela/crime específico. As devassas tratam de
processos abertos e apurados na Ouvidoria.
8 As Residências eram procedimentos investigatórios da
trajetória de um agente colonial em algum cargo, ao final do
tempo de serviço os funcionários deveriam ser inquiridos e
testemunhas seriam ouvidas sobre a conduta do agente –
sendo documento obrigatório para uma posterior nomeação,
ainda que não tenha sido necessariamente cumprido dada as
influências das redes clientalares e da necessidade de
funcionários em vários pontos.
9 A partir de 1762, o Tratado de El Pardo anulou os
dispositivos e definições negociadas e executadas
decorrentes do Tratado de Madri, ficando a fronteira entre
Portugal e Espanha em litigio. Segundo a historiadora
Ângela Dominguês, este momento pode ser conhecido por
115
não impedia interpretações das ordens e das
jurisdições diferentemente. São comuns os
conflitos entre os funcionários coloniais,
Fabiano Vilaça dos Santos sinaliza as
constantes disputas e queixas do governador
de capitania Joaquim Tinoco Valente sobre os
ouvidores Lourenço Pereira da Costa
(17601767), António José Pestana e Silva
(1767-1773) e Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio (1773-1779). Encontramos conflitos
na definição das jurisdições entre os cargos de
ouvidor de capitania e governador de
capitania, os três bacharéis que atuaram no
Rio Negro (Lourenço Pereira da Costa,
António José Pestana e Silva e Francisco
Xavier Ribeiro Sampaio) tiveram o mesmo
conflito sobre a alegada, pelo governador,
hierarquia que tinha sob a Ouvidoria –
principalmente nas matérias com os
diretores.
Em parte, a situação se deve as
indefinições ensejadas e mantidas pela Coroa
para a manutenção de sua função de arbítrio
final e centralidade, em outro ponto haviam
disputas de influência e relações numa
sociedade de estamentos nas quais as
hierarquias e setores entre os postos não
estavam claramente definidos e o público e
privado não eram distintos. O
desenvolvimento de trajetória nos postos de
nomeação régia, como a posição militar-
estratégica da capitania ou mesmo amizades
e apadrinhamentos poderiam assegurar boas
avaliações nas residências, o apoio à posturas
interpretadas como mais verdadeiras e de
bom proveito ao bem comum, nisso abriam as
possibilidades de ascensão pelo serviço real e
também ocorriam limitações.
Tem sido observado que o desarranjo
pelo choque de funções enfraquecia a
autonomia das autoridades locais e mantinha
“paz armada”, em decorrência ao acordo as partidas de
limites de desfizeram, no entanto, os governos procuraram
manter posições nas áreas de fronteira através da instalação
de povoações e fortes havendo momento de vigilância e
preparação a uma possível invasão e guerra. DOMINGUÊS,
Ângela. Quando os índios eram vassalos: Colonização e relações
de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século
XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para Comemoração dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
10 Arquivo Público do Pará, Códices 206 e 233. Abordam esta
questão: SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no
Brasil colonial, 2011.; SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e
meirinhos: a administração no Brasil colonial, 1985; MELLO,
as partes da administração em paralelo,
ensejando uma morosidade administrativa.
Uma sobreposição de poderes decorria da
forte presença ou da grande distância real,
podendo ser ou não permitido. Os limites de
jurisdição eram definidos
circunstancialmente. Em nossa pesquisa
encontramos várias correspondências entre
os ouvidores e os governadores tanto de
capitania quanto os com os gerais, nas quais
se discute os espaços de ação e as obrigações
que concernem à Justiça10.
Nesse contexto, ocorre a instalação da
Ouvidoria Geral de São José do Rio Negro,
quando o bacharel Lourenço Pereira da Costa
recebe a nomeação de ouvidor juntamente foi
nomeado como Intendente Geral da
Agricultura, Comércio e Manufatura do Rio
Negro.
Ei por bem constituir o ordenado de
seiscentos mil reis por ano, ao lugar de
Ouvidor, e Intendente Geral das
Colonias, Comércio, Agricultura e
Manufatura da Capitania de São Jozé do
Rio Negro, criado de novo, e em que fui
servido prover o Bacharel Lourenço
Pereira da Costa; cujo ordenado, será
{confuso} pela Provedoria da minha Real
Fazenda da Capitania do Grão-Pará. O
Conselho Ultramarino o tenha assim
entendido, e mande expedir os depachos
necessários. Palácio de Nossa Senhora da
Ajuda a trinta de Junho de mil Setecentos
e Sessenta.
Cumpra-se, Registre-se, e se passe ordem
ao Provedor do Pará. [duvida]ª 1 de Julho
de 176011
Tal Intendência parece ser
exclusivamente da Amazônia portuguesa, as
atuações dos intendentes demonstraram uma
clara conexão com os termos do Diretório
Isabele de Matos de. Magistrados a Serviço do Rei: a
administração da justiça e os ouvidores gerais na comarca do
Rio de Janeiro (1710-1790), 2013; PEGORARO, Jonas Wilson.
Ouvidores Régios e Centralização Jurídico-administrativas na
América Portuguesa: a Comarca de Paranaguá (1723-1812),
2007.
11 Rei Dom José I. Decreto Régio. 30/06/1760. Manuscrito.
Arquivo Histórico Ultramarino - Rio Negro, caixa 01,
documento 26. Projeto Resgate – Barão do Rio Negro. Todas
as citações das fontes documentais tiveram sua ortografia
atualizada e em itálico estão as abreviaturas desfeitas para
facilitar a leitura.
116
referentes a estrutura e cotidiano das
povoações, e da própria ação dos diretores de
índios. Na capitania de São José do Rio
Negro, a implementação do Diretório dos
Índios encontrou em um indivíduo duas
matérias, os bacharéis que atuaram nesta
capitania exerceram os dois encargos:
“oeconomia” [Intendência] e “iurisdictio”
[Ouvidoria].
Procedi a correição assim ordinária, como
da Intendência em a vila de Silves, e ainda
que não ficasse compreendido em delito
algum o Diretor dela; sempre contudo
observei nele bastante m[borrado]o, por
falta de disposição, e modo, cujos defeitos,
se suprimirão talvez com as eficazes
advertências, que lhe fiz12
Mesmo sem agir contra as legislações e
instruções, o letrado falou da indisposição do
diretor em atuar: se referiu a falta de
empenho para aplicar as instruções dos
incentivos aos índios; a advertência seria para
indicar que posturas e atitudes que eram
esperadas (e exigidas) dos diretores.
Prossegue falando que vistoriou as casas dos
índios e dos demais moradores, a igreja, a
construção de uma olaria, a condição dos
índios, as plantações e o que fizeram o capitão
Raimundo – em diligência e o principal
Belchior. Este seria o trabalho regular do
intendente geral: itinerante e contínuo.
Como já abordado, o diretor dos índios
era um funcionário nomeado pelo
governador para durante um ano garantir os
direitos e privilégios indígenas, promovendo
sua civilização por meio da implementação
dos costumes lusitanos, usando o trabalho
como principal ferramenta e também
produtivo: roças e comércio. Porém, o
Intendente da Agricultura, Comércio e
Manufatura é uma função ainda pouco
tratada pela historiografia, sua atividade
ainda requer melhor definição. De acordo
com Ângela Domingues (2000), na capitania
do Pará,
(…) a actividade dos directores era
devassada pelos corregedores, ouvidores e
12António José Pestana e Silva. Correspondência. 24/06/1768
– Borba. Manuscrito. Arquivo Público do Pará, Códice 182,
Carta de António José Pestana e Silva para o governador do
intendentes-gerais. Estes tanto podiam
inquirir indivíduos ou casos específicos
como como desempanhar a sua função
sobre todos os directores das povoações
luso-brasileiras. Por aditamento ao
Directoria, feito em 1760, ficou
determinado que os delitos crime
perpetados pelos directores ficariam sob a
alçada do corregedor da comarca,
enquanto os casos econômicos e fiscais
pertenceriam a jurisdição do intendente-
geral do Estado. (DOMINGUES, 2000, p.
157)
Dessa maneira, a historiadora
compreende que os dois ministros (o ouvidor
e o intendente) exerciam a mesma função
fiscalizatória sobre a vida nas vilas e
povoações, porém com a distinção das
matérias, a partir da natureza dos
descaminhos. A nomeação de bacharéis para
o cargo de ouvidor geral da capitania do Rio
Negro seria um primeiro passo para compor
o quadro administrativo lusitano na
capitania. A nomeação desses funcionários
régios e demais cargos da burocracia
formavam as tramas da rede de agentes
coloniais entre os vários pontos do Império,
assegurando assim a presença e o controle
português.
Em 24 de junho de 1768, o Ouvidor
António José Pestana e Silva envia
correspondência ao Governador Fernando da
Costa de Ataíde e Teive aonde dá conta da
situação da Vila de Serpa noticiando sobre: a
organização, da qualidade dos
procedimentos do diretor, da quantidade de
índios e da situação atual da povoação com as
providências que tomaram na orientação do
ouvidor, dando notícia das mesmas.
Pela Correição da Vila de Serpa me
constou não haver nela desordem alguma,
e ser o seu Diretor de bom desvelo, e
cuidado.
A dita vila se acha em total decadencia por
falta de Indios e sem meios de poder
fornecer-se deles por via de descimentos,
porque o Sargento Mor em quem observei
aptidão para fazer, esta impossibilitado
por um moléstia, que oprime, e talvez o
obrige a buscar o seu remedio nesta cidade
estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de
Ataíde Teive.
117
 {Borba} conhecendo eu a indispensavel
necessidade de providenciar a A
consternação da Vila, animei o Principal
dela, para que me segui-se ao Rio
Solimões em ordem a se confradando-o
com algum dos Índios das
Povoações do dito Rio que tinham
parentes, conhecidos ou aliados no rio
Jupurá ou qualquer dos outros; pode
desce-los e agrega-los a sua vila, ajudando-
os e facilitando-lhe ou pelo modo possível
os meios que forem necessário13
As funções que o magistrado ocupante
dos postos da Ouvidoria e da Intendência do
Rio Negro ocupa na capitania destoa de uma
expectativa jurídica estrita, a Justiça aqui
parece relacionar-se mais com instrução do
que com “punições” e preocupações
estratégicas, eram outros tipos de disciplinas.
Além dos ouvidores e intendentes,
outras autoridades coloniais teriam sido
nomeadas, sendo alguns cargos essenciais ao
funcionamento da capitania, como o
governador, o provedor e o juiz de Fora.
Posições estratégicas de controle e
fiscalização, também de despacho e
efetivação das ordens e instruções do rei.
Permanecendo nessa linha de raciocínio, é
imprescindível ver como, no caso do Rio
Negro, os cargos que exerciam o âmago da
função e poder régio da administração régia:
o governador, o ouvidor, o provedor da
Fazenda Real e o intendente geral da
agricultura, comércio e manufatura foram
acumulados no mesmo magistrado. Os
letrados exerceram três dessas atividades: a
ouvidoria, a intendência e a provedoria, os
postos gerais da capitania na Justiça e
Fazenda, ficando a Milícia e Governo com o
governador – neste período Joaquim Tinoco
Valente (1763-1779).
Distinguindo-se do cargo de
governador, que priorizava um “currículo”
nas armas, posto de muito prestígio político
dada a questão militar da possessão em litígio
fronteiriço. As letras se conectaram mais com
a rotina da administração burocrática e com a
13António José Pestana e Silva. Correspondência. 27/06/1768.
Manauscrito. Arquivo Público do Pará, Códice 182, Carta do
governador da capitania do Rio Negro, Joaquim Tinoco
Valente, para o Ouvidor da capitania do Rio Negro, António
José Pestana e Silva.
política de racionalidade legislativa pensada.
capitania teve suas atividades
administrativas pautadas em um duplo e
conflitado comando, as disputas e querelas
entre as autoridades coloniais eram
recorrentes nas colônias, os diversos grupos
políticos se alinhavam em torno das
possibilidades de comando, poder e
influência e estes agentes viam-se envolvidos
nestes jogos de poder, de forma que a
extensão de sua função entrava como pauta.
Em janeiro de 1761, Lourenço Pereira da
Costa dirige uma carta ao governador do
Estado, solicita nela a definição da jurisdição
da intendência e afirma sua percepção pela
prática do ofício, mas ainda lhe restavam
dúvidas
(…) com tudo como até agora tem sido
nesta capitania, mais conhecido {confusa}
que Justiniano, e a distância faz difíceis os
recursos, e fáceis as transgressões, e sem
clareza poderá menos obedecer-se a
atividade das minhas ordens, e
disposições, ou desconhecida a Jurisdição,
neste caso, por evitar o rigor, ou a
moderação que pode servir de incentivo
do desagrado; parece Excelentíssimo
Senhor melhor será declara-lo Sua
Majestade14
Todas as autoridades coloniais tinham
participação e as suas atribuições e ordens
seriam obrigatoriamente dirigidas para a
modificação desse vasto sertão em território
português e dos habitantes em vassalos do
rei. Os limites fluidos dos cargos e atribuições
coincidentes de funções, matérias e poder,
adicionaram elementos na disputa pelo
comando da capitania e da direção e governo
das vilas – ao passo que o uso dos soldados
para prisões e diligências chegou a ser
pauta15. De maneira que, equacionando a
multiplicidade de funções que foram
encarregados, os potenciais conflitos e
dissonâncias na administração lusitana no
Rio Negro seriam naturais.
14 Lourenço Pereira da Costa. Ofício. 18/01/1761.
Manuscrito. Arquivo Histórico Ultramarino – Capitania do
Rio Negro, Avulsos, caixa 01, documento 30. Projeto Resgate
– Barão do Rio Negro.
15 As funções exercidas e o quadro administrativo eram
questões para serem consideradas nas atitudes dos letrados.
118
 […] o que necessito que Sua Majestade me
faça a especialíssima Graça de declarar o a
que se dirige a minha intendência; porque
suposta não ignoro de vir escrivão dela
fazer crescer o negócio, expedi-lo para o
sertão por meio das câmaras, e Diretores,
favorecer os negociantes, cuidar nas obras,
especialmente fabricas, aumentar roças,
fomentar plantações, cuidar nas colônias,
persuadir descimentos; fomentar os
moradores, e sindicar Diretores16
Seriam estes os objetos da atenção e das
ações do intendente geral da agricultura,
comércio e manufatura. Descreveu Pereira da
Costa, uma jurisdição sobre matérias
“econômicas”, todavia, eram os itens
descritos no Diretório dos Índios para a
transformação dos sertões amazônicos. É
notável a ligação entre o cargo e a legislação,
assim, o diretor dos índios seria a inovação
administrativa com atribuições conectadas
aos parágrafos do texto. Seus olhos voltavam
a atenção aos aspectos que deveriam ser
instalados nas povoações, tanto edificações e
demais obras, como rotinas de trabalho,
viagem e comércio.
Entretanto, o problema do intendente
ser também o ouvidor – não seguindo o
estrito das ordens – e a falta de “confirmação”
de quem julga e procede sobre os índios
persiste – ainda que o Diretor seja o principal
encarregado, as questões de Justiça eram
matéria dos magistrados. A prática de
interpretação sobre ordens e das leis se
mantinham presentes nos domínios coloniais
no período josefino, os desacordos entre as
autoridades coloniais eram comuns e
repetidas aos longos das correspondências
dos vários ouvidores.
Diz que foi nomeado governador para a
conservação de tudo tal como estar na
ordem das instruções reais; Remete
parágrafo das instruções básicas, mas cita
“a Segunda, que por nenhum modo
permitisse, as consentisse, que o Ouvidor
desta Capitania se intrometesse com
16 Lourenço Pereira da Costa. Ofício. 18/01/1761.
Manuscrito. Arquivo Histórico Ultramarino – Capitania do
Rio Negro, Avulsos, caixa 01, documento 30. Projeto Resgate
– Barão do Rio Negro.
17 Joaquim Tinoco Valente. Correspondência. 26/02/1772 –
Barcelos. Manuscrito. Arquivo Público do Pará, Códice 233,
Carta enviada pelo governador da capitania do Rio Negro,
Índios de um, e outros Sexo maiores, ou
menores, e que quando instaste lhe
respondesse, que recorrente a ele General,
aonde ficavam as Resoluções de Sua
Majestade respectivas a estas, e outras
matérias;17
O que disse Joaquim Tinoco Valente ao
antecessor de António José Pestana e Silva,
repetia agora ao mesmo, e fariam várias
vezes: que não permitirá que nada altere ou
interprete do Diretório, e que ele (o ouvidor)
tenta desobedecer, que pare de fazer e não se
meta com os órfãos índios, jurisdição que não
lhe pertencia. Que em dúvida de jurisdição
recorra a Sua Majestade e ao general, mas era
Tinoco Valente que escrevia ao ouvidor
tomando uma postura que lhe favorecia.
A querela se adensava quando as
temáticas eram sobre os indígenas, pois
mesmo na condição de tutelados, eram
vassalos do rei, podendo recorrer ou serem
parte nos expedientes da Justiça régia – como
testemunhas, denunciantes e peticionários.
Lembre-mos que a tutela não dava o governo
nem a administração dos nativos ao
governador ou ao diretor por ele nomeado,
também havia um perfil de exclusividade das
competências de Devassas e Inquirições da
Justiça serem tomadas por bacharel do rei –
principalmente como recurso ou segunda
instância. Assim, surgiam argumentos para o
magistrado receber as denúncias dos
indígenas contra outros moradores e de
proceder em Devassas Específicas de
assassinatos envolvendo indígenas.
Dessa forma, a atuação do intendente
concomitantemente ao ouvidor deu outro
tom para este exercício no Rio Negro, e foi
causa de confusões e disputas nas jurisdições
do governador e dos bacharéis. Distinguir
um limite entre as duas atuações no Rio
Negro talvez não tenha nexo com aquilo que
foi pretendido quando as funções foram
criadas na capitania. Dadas na mesma carta
de nomeação e com as condições de
Joaquim Tinoco Valente, ao ouvidor, intendente geral e
provedor da real fazenda, António José Pestana e Silva.
Anexo a: António José Pestana e Silva. Correspondência.
06/02/1772 – Barcelos. Arquivo Público do Pará, Códice 233,
Carta enviada pelo ao ouvidor, António José Pestana e Silva,
para o governador da capitania do Rio Negro, Joaquim
Tinoco Valente.
119
estabelecimento das vilas distintas da
capitania do Pará, eram povoações novas e de
gente recém-descida.
Na carta de 1768 abordada, António José
Pestana e Silva escreveu ao capitão-general
relatando a correição ordinária e intendência
que fez na vila de Silves, ponderou acerca do
diretor. Eram as condições dos moradores os
temas descritos: casas, roçados, obras
públicas e o percentual humano, inclusive de
proporção entre índios e brancos e de sua
qualidade. O equilíbrio entre brancos e
índios, encontrando estes trabalhadores no
cotidiano produtivos quando viu as
plantações que os indígenas cultivavam.
Constituía, assim, em sua carta um laudo do
estado da vila, os índios não são diretamente
citados, mas aspectos da estabilidade da
sedentarização, como o trabalho e a habitação
estavam relatados.
Procedi a Correição assim ordinaria, como
da Intendendia em Vila de Silves, e ainda
que não ficasse compreendido em delito
algum o Diretor dela, sempre contudo
observei nela bastante m[corroído]o, por
falta de disposição, e modo cujos defeitos
se suprirão talves com as eficazes
advertencias, que lhe fiz.18
Nessa correspondência Pestana e Silva
não definio o encargo que estava atuando
(ouvidoria, proedoria ou intendência), mas
há uma referência ao exercício da
intendência, nominalmente como
procedimento em execução e nas descrições
que faz da vila de Silves. É uma atividade de
correição comum da atuação dele na
capitania tanto, rotineiro como ordinário.
Eram observações condizentes com as
especificidades locais: a implementação do
modus português no Vale Amazônico,
características de averiguação econômica e
social.
18 António José Pestana e Silva. Correspondência. 24/06/1768
– Borba. Manuscrito. Arquivo Público do Pará, Códice 182,
Carta de António José Pestana e Silva para o governador do
estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de
Ataíde Teive.
19 A bem da verdade, não foram raras as fugas individuais e
coletivas dos nativos, mas (ainda) nos faz pensar
DA INTENDÊNCIA GERAL DO RIO
NEGRO PARA A INTENDÊNCIA
GERAL DO PARÁ
Não ignoro as circunstâncias da
realidade abusiva e violenta a que estavam
inseridos os indígenas, todavia, não anulo
suas capacidades transformadoras,
negociativas e de insurjeição. E, para tais
ações, fizeram usos dos instrumentos
possíveis, tais como queixar-se aos
funcionários coloniais, utilizando a legislação
em seu favor, mas também dos conflitos
dentro da própria estrutura portuguesa.
Temos, sob tais circunstâncias, as ações
de indígenas e moradores em disputas de
posições, posto que, ainda que livres, os
nativos eram tutelados, mas mesmo que
dirigidos, o indígenas poderiam escolher o
trabalho, peticionar e denunciar à Justiça
Régia, deveriam receber salário e evandiam-
se justificando sua posição - a bem da
verdade, já fugiam antes.19 De tal modo, a
política implementada foram ações medidas
nas circunstâncias e exercidas dentro de
possibilidades, para a capitania do Rio Negro
não era realizável a nomeação de mais
letrados nos cargos e isto implicou em
concentrações de poder, seja na mão dos
magistrados ou dos diretores de índios. No
caso do Pará, foram instalados três
funcionários da Justiça do rei para a
realização de sua Justiça: o juiz de fora nas
câmaras, o intendente geral da agricultura,
comércio e manufatura e o ouvidor geral da
comarca na ouvidoria20.
Compreendemos, o intendente,
nesse termo jurídico, como mais um elemento
na implementação da justiça e sua distinção
de atividades independentes das atribuições
do ouvidor. A Intendência exercia uma
fiscalização sobre as práticas cotidianas das
vilas, não dos descaminhos, mas no cotidiano
e no Diretório – portanto, encontramos uma
profundamente a necessidade de fazê-los satisfeitos e a
situação política nas vilas na medida em que o ouvidor e
intendência justifica a fugas de indígenas.
20 Conselho Ultramarino. Ordem Régia. 19/02/1766.
Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 277, Consultas.
120
coerência de intenções e exercícios entre as
comarcas.
A resistência de oficiais régios e agentes
coloniais eram uma das motivações dos
recorrentes esclarecimentos e das dúvidas
acerca das jurisdições que receberam os
funcionários da Justiça. As instruções e
advertências encaminhadas pelos letrados se
encaminhavam para a descontinuidade das
práticas consideradas nocivas dos índios e
dos “civilizados”, estabelecendo uma
estruturação burocrática para investigar,
proceder e julgar os casos. Quem poderia
administrar, instruir e punir os índios e seus
algozes?
Que sendo a Jurisdição os Juízes dos
Órfãos [confuso] e privativa nos Órfãos,
não conheciam dos crimes, e parecia que
como Vossa Majestade encarregava o
Intendente da Inspeção das matérias
políticas e Econômicas , que constando-lhe
pelas devassas, que os Diretores cometiam
delitos, que precisassem de castigo [sic],
para o sossego, e conservação das
Colônias, e de seus estabelecimentos, que
devia de remeter logo as ditas devassas ao
Juiz da Ouvidoria para nele serem
processados, e sentenciados em Junta;
majoritamente porque o ouvidor sempre
residia seis meses cada ano na cidade, em
que as partes podiam livrar-se com menos
incomodo, o que não sucedia com o
Intendente, que quase sempre andava por
fora cuidando nos estabelecimentos
públicos das Colônias: E posto, que o
Intendente sendo conservador, tivesse
proposto os Feitos Crimes dos
privilegiados da Companhia em porque
Vossa Majestade na Instituição, da
Companhia, e Alvará, expressamente lhe
concedera a jurisdição para conhecer dos
crimes, e por ser Ministro Criminal ad
universetalem causarum: O que punha na
Presença de Vossa Majestade, que mandaria
o que fosse serviço21
A determinação do serviço do
intendente permitia-lhe realizar devassas e
inquirições apurando e averiguando
irregularidades nas atividades nas povoações
e desobediências as instruções e ordens do
21 Conselho Ultramarino. Ordem Régia. 19/02/1766.
Manuscrito. Arquivo Histórico Ultramarino, Códice 277,
Consultas Régias. Projeto Resgate – Barão do Rio Negro.
rei, prioritariamente ao Diretório dos Índios.
As matérias da intendência eram, da mesma
forma que a ouvidoria, a fiscalização e
correção dos descaminhos, ao proceder sua
viagem de intendência o bacharel realizou
averiguação e passou instrução ao diretor,
mas este ponto não é tão bem expresso. Até
onde teria ele autoridade para passar ordens
e instruções aos diretores (caso tivesse)?
Porém, estava claro que a atuação do
intendente geral da Agricultura, Comércio e
Manufatura deveria primar pela averiguação
da boa execução dos termos do Diretório dos
Índios, suas relações com os demais bacharéis
(como ocorre no Pará) e da jurisdição sobre os
diretores e indígenas ainda é objeto de
investigação.
REFERÊNCIAS
DOCUMENTAIS
Arquivo Histórico Ultramarino:
- Rei Dom José I. Decreto Régio. 30/06/1760.
Manucristo. Arquivo Histórico
Ultramarino – Rio Negro, Avulsos, caixa
01, documento 26. Projeto Resgate –
Barão do Rio Negro.
- Lourenço Pereira da Costa. Ofício.
18/01/1761. ManuscritoArquivo
Histórico Ultramarino – Capitania do Rio
Negro, Avulsos, caixa 01, documento 30.
Projeto Resgate – Barão do Rio Negro. -
Conselho Ultramarino. Ordem Régia.
19/02/1766. Arquivo Histórico
Ultramarino, Códice 277, Consultas
Régias. Projeto Resgate – Barão do Rio
Negro.
Arquivo Público do Estado do Pará:
- António José Pestana e Silva.
Correspondência. 24/06/1768 – Borba.
Manuscrito. Arquivo Público do Pará,
Códice 182, Carta de António José
Pestana e Silva para o governador do
121
 estado do Grão-Pará e Maranhão,
Fernando da Costa de Ataíde Teive.
- António José Pestana e Silva.
Correspondência. 27/06/1768.
Manuscrito. Arquivo Público do Pará,
Códice 182, Carta do governador da
capitania do Rio Negro, Joaquim Tinoco
Valente, para o Ouvidor da capitania do
Rio Negro, António José Pestana e Silva.
- Joaquim Tinoco Valente. Correspondência.
26/02/1772 – Barcelos. Manuscrito.
Arquivo Público do Pará, Códice 233.
Carta enviada pelo governador da
capitania do Rio Negro, Joaquim Tinoco
Valente, ao ouvidor, intendente geral e
provedor da real fazenda, António José
Pestana e Silva. Anexo a: António José
Pestana e Silva. Correspondência.
06/02/1772 – Barcelos. Carta enviada
pelo ao ouvidor, António José Pestana e
Silva, para o governador da capitania do
Rio Negro, Joaquim Tinoco Valente.
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1751. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das
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História de Portugal – O Antigo Regime
(1620-1807). 4º Volume. Lisboa: Estampa,
1998. Pp. 141-230.
123
TRADIÇÃO E ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL:
a formação para cidadania entre o eurocentrismo
e as demandas por uma história global/transnacional

* Taissa Cordeiro Bichara

Resumo: Consiste em reflexão inicial sobre o ensino de história e sua identificação como “guardiã
das tradições”. Através das contribuições oriundas da história global ou transnacional, recorrente
na historiografia, será problematizada a constituição da história como ciência no século XIX e sua
introdução como disciplina escolar no Império brasileiro, pautada por concepções eurocêntricas,
as quais conformaram determinadas formas de se narrar a história do Brasil por conta do projeto
de formação do cidadão nacional. Propõe-se que os sentidos de cidadania passaram por
ressignificações ao longo do tempo, e podem ser identificados nas documentações oficiais que
regem o ensino de história no Brasil e as representações sobre o Índio brasileiro nos livros didáticos
de história.
Palavras-Chave: Ensino de história. Livro didático. Representações sobre o Índio. Formação para
cidadania. Eurocentrismo.

Há vários anos, um personagem de nossa vida pública declarou

que não era ministro: apenas estava ministro. Eu diria o mesmo
dos índios: não são nada disso, apenas estão. (CARNEIRO DA
CUNHA, 1995, p.131)

Manuela Carneiro da Cunha, em livros didáticos de história aprovados

antropóloga de renome entre as produções
que engrandecem as reflexões sobre História
indígena e do indigenismo, registrou a
supracitada alocução em uma obra, clássica,
organizada pelos dois renomados
intelectuais, Aracy Lopes da Silva e Luís
Donizete Grupioni, intitulada A temática
indígena na escola: novos subsídios para
professores de 1º e 2º graus. A citação em
evidência remete a uma das possibilidades
analíticas no que tange à temática: a
representação sobre o Índio brasileiro. Isto é,
a ideia de que a denominação Índio não é
própria dos povos a quem se refere, sendo
antes de tudo uma criação forjada em um
contexto histórico específico e manuseada
por inúmeros sujeitos nos múltiplos tempos e
espaços no decorrer da história do Brasil.
É evidente que o Brasil não é o único
país a ocupar-se com as demandas de povos
indígenas. Todavia, o enfoque principal do
presente trabalho é o caso brasileiro e a
investigação das representações sobre o Índio
* Mestranda em história social/PPHIST – UFPA. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Endereço residencial: Belém, Cabanagem, Rua do Una, n° 320, CEP: 66652-150. Correio eletrônico: taissabichara@gmail.com
pelo Plano Nacional do Livro Didático,
direcionados aos anos finais do ensino
fundamental. Mais especificamente, busca-se
os pressupostos teóricos que consolidam as
narrativas didáticas sobre o Índio brasileiro.
Neste sentido, a abordagem eleita para a
apreensão da temática indígena neste
trabalho é a relação entre ensino de história,
tradição e formação para cidadania, pois as
narrativas didáticas desenvolvidas nos livros
aparentam serem orientadas por questões
que escapam às proposições da lei 11.645/08
ou mesmo das pesquisas acadêmicas que
integram a História Indígena e do
Indigenismo. É importante ressaltar que este
é um trabalho oriundo de um projeto de
pesquisa em desenvolvimento, de modo que
as considerações aqui apresentadas
correspondem às etapas iniciais do plano de
trabalho, portanto, sem análise documental.
Considera-se que a bibliografia
dedicada ao estudo dos povos indígenas na
sociedade brasileira, a partir de perspectivas

125
que contrapunham as versões herdeiras da
historiografia nacionalista do século XIX,
despontou em meados da década de 1980 e
início dos anos 1990 (CAVALCANTE, 2011,
p.363). Além disso, a atuação dos
movimentos indígenas pelas suas demandas
como a demarcação de terras e Educação
Indígena, teve como um de seus marcos a
promulgação da lei 11.645/08, a qual define:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e de ensino médio, públicos e
privados, torna-se obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e
indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se
refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que
caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da
África e dos africanos, a luta dos negros e
dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e
cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e
de literatura e história brasileiras.” (NR)
(BRASIL, 2008).
Decorrem duas observações da referida
lei: em primeiro lugar, a temática indígena
deve ser ministrada na disciplina de história
do Brasil; por conseguinte, a ideia de
contribuição dos povos indígenas precisa ser
tratada através de perspectivas sociais,
econômicas e políticas. Isto é, demanda que o
Índio brasileiro seja entendido como um
agente histórico por excelência no ensino de
história, cujas estratégias influenciam
diretamente nos eventos históricos
1 Nesse mesmo artigo Grupioni indica como sugestão de
leitura o trabalho de Norma Telles Cartografia Brasilis ou esta
história está mal contada, publicado em 1984 pela Edições
Loyola, São Paulo. Segundo o autor, Norma Telles discute as
imagens distorcidas veiculadas nos livros didáticos sobre os
povos indígenas. A discussão sobre a temática indígena para
o ensino de história, portanto, não é inédita na década de
1990. Porém, a coletânea referida se destacou pela sua
ambiciosa composição: reuniu diferentes intelectuais com a
abordados. Assim, despontaram diversas
pesquisas acadêmicas com o objetivo
principal de averiguar como essa legislação é
debatida na Educação Básica, nas diferentes
regiões do país e suas complexas salas de
aula, assim como nos livros didáticos de
história criados como um dos suportes
metodológicos para tal empreitada.
Porém, importa ressaltar que a questão
indígena no ensino de história não começou
a ser foco de pesquisa somente após a
promulgação da lei 11.645/08. Os trabalhos
sobre Índio e Livro Didático se sobressaíram
adjacentes às supracitadas produções que
passaram a problematizar a historiografia
nacionalista do século XIX. Artigo de
significativa relevância ao campo do ensino
de história escrito pelo antropólogo Luís
Donizete Grupioni, intitulado Livros Didáticos
e fontes de informações sobre as sociedades
indígenas no Brasil, foi publicado na coletânea
A temática indígena na sala de aula: novos
subsídios para professores de 1º e 2º graus, em
1995.1 Na ocasião, apresenta como seu intuito
central: "(...) uma reflexão sobre a forma pela
qual os manuais didáticos usados na escola
ajudam a formar uma visão equivocada e
distorcida sobre os grupos indígenas
brasileiros." (GRUPIONI, 1995, p. 482).
Afirma, ainda, que sua opção para o
enfrentamento da questão é por meio da
crítica aos livros didáticos e a exposição dos
problemas presentes nessas obras.
Interessante notar que Grupioni, na década
de 1990, demonstrava sinais de inquietação
justamente com a problemática de que fatores
como a bibliografia especializada sobre a
temática indígena apresentar-se em
crescimento considerável, aliada ao esforço
de composição de materiais didáticos para
maior esclarecimento dos debates
acadêmicos, não serem capazes de
promoverem mudanças significativas na
proposta de auxiliar no desenvolvimento da educação para
a diversidade. Contou ainda com financiamento do
Ministério da Educação e do Desporto e da Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Sobre a
importância da obra, verificar: URQUIZA, Antonio Hilário
Aguilera. "Um compromisso entre ação e reflexão"
Entrevista com Luis Donisete Grupioni. Revista Ñanduty,
Vol. 3. N. 3. Janeiro a junho de 2015.
126
escola e nos meios de comunicação, sobre a
temática indígena.
É possível resumir as críticas de Luís
Donizete Grupioni em quatro pontos: (I) os
manuais didáticos situam os povos indígenas
no passado; (II) a história dos manuais é
fundamentalmente eurocêntrica; (III) os
manuais didáticos apresentam os traços
culturais dos povos indígenas pela lógica da
ausência - sem escrita, sem governo, sem
tecnologia; (IV) a supressão da diversidade
étnica por meio da noção de índio genérico.
Dessarte, conclui que tais manuais não
incorporam as proposições da história e da
antropologia no tratamento da questão
indígena na sala de aula, de modo que
"Preconceito, desinformação e intolerância
são resultados mais que esperados deste
quadro." (GRUPIONI, 1995, p.491).
Mesmo não tendo a temática indígena
como problemática principal, Circe
Bittencourt no artigo Livros didáticos entre
textos e imagens, também reflete sobre a
representação do Índio brasileiro nas obras
didáticas. Componente do livro O saber
histórico na sala de aula, publicado pela
primeira vez em 1997, encontra-se em sua 12ª
edição publicada em 2013, e pode ser
considerada uma obra clássica para os
estudos sobre o ensino de história no Brasil.
Circe Bittencourt, no referido artigo, versa
sobre as representações criadas sobre o Índio
em obras didáticas do final do século XIX e
início do XX. Afirma que os livros de maior
destaque, destinados ao ensino primário na
época, foram concebidos por religiosos:
Cônego Fernandes e Joaquim Maria de
Lacerda (BITTENCOURT, 2013, p. 82); logo,
era plenamente perceptível o enfoque dado
às missões e os trabalhos dos religiosos na
conversão dos índios. Inclusive, de acordo
com a autora, Joaquim Maria de Lacerda foi
quem primeiro compilou um grande acervo
sobre os povos indígenas, tendo como
referência as impressões dos viajantes
franceses.
Tendo em vista que o objetivo central da
autora supracitada diz respeito mais ao livro
didático do que à temática indígena, Circe
Bittencourt propõe aos docentes o tratamento
do livro didático enquanto uma fonte
histórica, isto é, um documento que pode ser
analisado criticamente através do método
historiográfico, e com isso, proporcionar
diversas problematizações sobre os povos
indígenas na narrativa:
Assim, por exemplo, é significativo o
aluno identificar em que momentos da
História Brasileira o índio é representado
ou se constitui objeto de estudo nos
diversos capítulos do livro. Os grupos
indígenas são mencionados - apenas no
início da colonização, na fase da conquista,
e como justificativa para explicar a
introdução de escravos africanos; depois,
na atualidade, nas questões de
demarcação de reservas? Por que não há
referências sobre as populações indígenas
no período da Independência, quando se
estabelecem os princípios de cidadania
oriundos do pensamento liberal europeu?
Não existiram conflitos e disputas com
indígenas nas ocupações de terra para a
plantação de café no interior paulista e
paranaense no decorrer dos séculos XIX e
XX? (BITTENCOURT, 2013, p. 89).
Nesse caso, Circe Bittencourt não teceu
críticas às obras didáticas, mas propôs uma
metodologia de ensino e aprendizagem para
a educação básica, ao afirmar que as
representações sobre o Índio nos livros
didáticos de história, produzidas em
diferentes contextos, podem ser comparadas
para identificação de mudanças e
permanências e para o desenvolvimento do
pensamento crítico dos alunos sobre as
devidas problemáticas.
De todo modo, as reflexões que se
ocupam com o tema evidenciam a
manutenção de estereótipos, generalizações e
silenciamentos dos povos indígenas na
literatura didática como GOBBI (2006), DA
CRUZ (2009), MACÊDO (2009), MOTA &
RODRIGUES (1999) e MONTEIRO (2012) -
apenas para citar alguns. Mauro Cezar
Coelho, em análise dos livros didáticos
publicados até a década de 1990, notou uma
certa ampliação da temática indígena e
interesse em dialogar com as perspectivas
oriundas da Antropologia e da História
indígena e do indigenismo, porém,
predominando a concepção tradicional na
qual os povos indígenas são plenamente
127
submetidos ao sistema colonial (COELHO,
2007, pp.5-6).
O presente trabalho é parte de um
projeto de pesquisa que pretende se inserir
em tais debates. Busca, fundamentalmente,
investigar de que forma os discursos
envolvidos na conformação dos livros
didáticos de história produzem
representações sobre o Índio brasileiro
assentadas justamente em estereótipos e
silenciamentos. Em outras palavras, quais são
os pressupostos teóricos que mantêm tais
configurações narrativas.
Inicialmente, é possível identificar que a
temática indígena nos livros didáticos
dialoga diretamente com determinadas
tradições presentes no ensino de história
referentes ao eurocentrismo e à formação
para cidadania. Portanto, para além da lei
11.645/08 e do desenvolvimento de
pesquisas acadêmicas sobre os povos
indígenas, a dinâmica das representações
sobre o Índio estão atreladas tanto às
questões próprias da história ensinada como
da história acadêmica. Ocorre que a trajetória
histórica do ensino de história no Brasil
possui como referências basilares a
perspectiva eurocêntrica; enquanto se
escrevia a história oficial no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), no
Colégio Pedro II (1837) definiam-se os
parâmetros para o ensino dessa disciplina no
Império brasileiro.
Kátia Abud afirma que a história escolar
foi "(...) caudatária da europeia, tal como o foi
na versão acadêmica." (ABUD, 2011, p. 167),
isto é, tal como sinalizado por Grupioni em
sua crítica aos livros didáticos de história, o
eurocentrismo é recorrente nos manuais e
rege os eventos históricos de modo que os
povos indígenas são situados em posição de
coadjuvante na narrativa. A referida
historiadora nomeia a disciplina como
"guardiã das tradições" indicando que a
história ensinada possui determinadas
agendas a serem cumpridas, caso contrário, o
debate curricular torna-se campo de
expressão para os embates políticos próprios
da sociedade. Christian Laville (1999) intitula
essa questão como "guerra de narrativas",
pois embora as demandas dos movimentos
sociais sejam significativas para suscitar
mudanças curriculares no ensino de história,
a opinião pública apresenta a tendência em
exigir conteúdos tradicionais nas escolas. Em
outras palavras, são os conteúdos que narram
a história nacional cujo referencial era a
escola metódica. De maneira breve, o autor
cita o Brasil como um dos exemplos:
A narrativa histórica pode também ser
vista como uma tomada de poder por
grupos sem poder. Vejamos um exemplo
disso no Brasil, onde, em vários Estados,
principalmente em Minas Gerais e São
Paulo, os professores de história haviam
lutado, durante a ditadura, para conseguir
um programa cujo conteúdo fosse
definido de acordo com seu ponto de vista
de militantes. No caso de Minas Gerais,
eles queriam opor aos programas oficiais,
de cunho nacionalista e positivista, um
conteúdo de história marxista clássico que
apresentasse as etapas sucessivas de
formação econômica e integrasse o
nacional ao universal. Tratava-se,
sobretudo, de trocar uma narrativa por
outra narrativa. (LAVILLE, 1999, p.134)
De acordo com o historiador referido, os
professores de Minas Gerais e São Paulo
obtiveram êxito em suas reivindicações no
momento de redemocratização do país.
Porém, o modelo eurocêntrico e canônico
formulado no século XIX não foi
completamente ignorado. Marcel Alves
Martins (2012) examinou as propostas
curriculares do Estado de São Paulo,
demonstrando os diversos embates entre os
especialistas da área para a problematização
de uma história mais tradicional e pela
formulação de uma história mais inclusiva da
diversidade de agentes presentes na
sociedade brasileira, porém constatou que a
Europa permanece como o eixo explicativo
da história para o ensino.
Sobre essa inquirição, Mauro Cezar
Coelho (2017) analisou seis livros didáticos
do sétimo ano do Ensino Fundamental
aprovados pelo PNLD com o objetivo de
verificar as narrativas forjadas sobre o
período colonial. Concluiu que a narrativa
predominante é justamente aquela
conformada pela historiografia nacional do
século XIX inaugurada por Varnhagen e
128
Capistrano de Abreu, e posteriormente,
reformulada por Gilberto Freyre, Caio Prado
Júnior e Sérgio Buarque de Holanda: na
colônia busca-se as origens da sociedade
brasileira, cujo sentido é definido pelos
eventos ocorridos no continente europeu.
Assim, as narrativas didáticas privilegiam a
atuação dos agentes que representam o
eurocentrismo branco e ocidental, pelo
compromisso com uma tradição também
eurocêntrica, branca e ocidental.
Segundo Circe Bittencourt (2013, p.17):
“A existência da História escolar deveu-se
sobretudo ao seu papel formador da
identidade nacional, sempre paradoxal, no
caso brasileiro, uma vez que deveríamos nos
sentir brasileiros, mas antes de tudo,
pertencentes ao mundo ocidental e cristão”.
Neste sentido, a autora expressa um
curioso paradoxo para a história ensinada no
Brasil, no que se refere à identidade
nacional/brasileira e a identificação com o
ocidentalismo de matriz europeia. Ademais,
as querelas em torno do eurocentrismo
podem ser debatidos na historiografia dentro
das propostas da história
global/transnacional. No artigo
Historiografias periféricas em perspectiva global
ou transnacional: eurocentrismo em questão, de
Pedro Afonso Cristovão Santos, Thiago Lima
Nicodemo e Mateus Henrique Pereira (2017)
- todos especialistas em teoria da história e
história das ideias - é traçado um panorama
dos principais embates para a escrita da
história global, tornando-se nítido que o
eurocentrismo é uma questão posta para o
ensino de história e para a historiografia
mundial. Em suma, a problematização sobre
a escrita de histórias nacionais ou locais
dentro de uma tradição historiográfica
gestada na Europa, que pouco considera os
diversos descompassos existentes para a
consecução dessa abordagem, como a
utilização de categorias de análise que não
integram os códigos culturais de
determinadas sociedades - por exemplo, o
próprio termo Índio é categoria de análise
criada pelos europeus.
Além disso, o questionamento sobre a
possibilidade de se analisar as representações
de tempo e memória de culturas "periféricas"
por meio de conceitos criados em contextos
do "centro". Outro ponto abordado pelos
referidos autores é sobre a formação da
historiografia latino-americana no século
XIX. Isto é, questiona-se a respeito da
disseminação de teorias e metodologias para
escrita da história em um continente com
características culturais diversas da sua
matriz de referência europeia. De todo modo,
Pedro Afonso Cristovão Santos, Thiago Lima
Nicodemo e Mateus Henrique Pereira (2017)
concluem que o modelo e concepção de
história predominante é o eurocêntrico, pois
assim se consolidou a história do
conhecimento histórico ao longo do tempo.
Daí a importância de encarar as relações entre
"centro" e "periferia" como processos de
apropriações e ressignificações mútuas.
No que tange ao ensino de história, é do
eurocentrismo que provém a tradicional
perspectiva cronológica-linear de conceber a
história: a divisão quadripartite. Segundo
Marcel Alves Martins (2012, p.19) essa
concepção em quatro grandes blocos para
compreensão do conhecimento histórico
privilegia a trajetória do continente europeu
ocidental - Antiguidade, Feudalismo,
Renascimento e Capitalismo, pois estes
constituem-se como eventos históricos e
criações pensadas a partir do universo
ocidental-europeu.
Sendo assim, a tradição eurocêntrica
suplanta a participação de povos não-
europeus na narrativa histórica mundial.
Uma vez que as narrativas literárias didáticas
assimilam tal perspectiva como
predominante, cada sujeito histórico assume
um lugar pré-determinado, o qual no caso do
Índio brasileiro é o da assimilação ao sistema
colonial por meio da colaboração com os
agentes, na forma de colonos, missionários,
ou mesmo da Coroa portuguesa, estes
considerados os verdadeiros protagonistas
dos acontecimentos que culminaram na
formação da sociedade brasileira.
Outra tradição que acompanha a
trajetória da história ensinada e delineia os
fundamentos das representações sobre o
Índio no livro didático, é a formação para
cidadania. De acordo com Mauro Cezar
Coelho (2009, p.274) a condição de vítima do
129
Índio na narrativa literária didática está
relacionada a um "ideal de justiça social e um
paradigma moral", fruto da investida pela
formação do cidadão crítico. Sobre a relação
entre ensino de história e cidadania, Circe
Bittencourt afirma que no século XIX,
período o qual a História escolar torna-se a
responsável pela formação moral do cidadão,
o "(...) Cidadão brasileiro era apenas quem
dominava a leitura e a escrita. A abolição do
sistema escravagista de trabalho não
assegurava, desta forma, a transformação do
ex-escravo e da maioria dos trabalhadores,
em cidadão" (BITTENCOURT, 1993, p.213).
Embora o sentido de cidadania
supracitado, do século XIX, não seja
exatamente o mesmo ao longo do tempo, a
relação tríade - ensino de
história/moral/cidadania - se desenvolve
numa série de premissas dispostas nos
currículos escolares, as quais junto com a
força da tradição eurocêntrica definem a
representação do Índio nos livros didáticos
de História, de maneira conflituosa e
paradoxal. Talvez por conta disso, Luís
Donizete Grupioni tenha observado
contradições:
(...) fato é que a imagem do índio no livro
didático não é una. Há diferentes imagens,
contraditórias entre si, fragmentadas nos
manuais escolares. Assim como também
são fragmentados os momentos históricos
nos quais os índios aparecem. Os livros
didáticos produzem a mágica de fazer
aparecer e desaparecer os índios na
história do Brasil. (GRUPIONI, 1995, p.
488-489).
É inegável que as produções acadêmicas
são de fundamental relevância para a
construção do conhecimento a ser ensinado
na educação básica. Porém, importa ressaltar
que o saber escolar opera por meio de funções
e atribuições diferentes do saber acadêmico.
O conteúdo escolar não é voltado
exclusivamente para a produção de
conhecimento científico, e faz uso do saber
acadêmico como referência para o
desenvolvimento de competências e
habilidades "cognitivas, comportamentais e
morais" (COELHO, 2009, p. 273). Por
conseguinte, as representações sobre o Índio
no livro didático são formuladas dentro da
lógica do saber histórico escolar, cumprindo
agendas próprias da área e assumindo
funções pedagógicas.
Em estudo sobre a temática indígena
nos livros didáticos de história, Mauro Cezar
Coelho e Taissa Bichara (2017) notaram que
em orientações oficiais como os Parâmetros
Curriculares Nacionais e as Diretrizes
Curriculares Nacionais, busca-se o
desenvolvimento de valores como o "respeito
à diversidade cultural", de modo que a
narrativa literária didática reforça a imagem
do Índio como vítima do sistema colonial,
pois esta serve aos propósitos da formação
para cidadania, pautada na denúncia de
injustiças cometidas ao longo da história do
Brasil. Somado à isso, se o período colonial é
tido como o tempo histórico responsável
pelas "origens da sociedade brasileira" - como
indicado por Mauro Coelho (2017) - foi nesse
passado colonial que iniciaram as sucessivas
retiradas de direitos dos povos indígenas que
atualmente integram a sociedade brasileira
como "minorias étnicas".
Ambas as tradições - eurocentrismo e
formação para cidadania - conformam
modelos narrativos para os livros didáticos
de história e moldam a "participação" dos
povos indígenas nos eventos. Essa
participação pode ser questionada, já que em
termos sociais, econômicos e políticos, os
povos indígenas são coadjuvantes em relação
aos agentes europeus. Assim, a pesquisa em
desenvolvimento pretende aprofundar tais
relações, identificando nas documentações
oficiais para o ensino de história no Brasil - os
editais do PNLD, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, as Diretrizes Curriculares
Nacionais - os sentidos da formação para
cidadania e concepções de história, com o
intuito de averiguar o propósito ou função
desta área do conhecimento para a Educação
Básica, e se esta segue o modelo eurocêntrico.
Desse modo, busca-se maior compreensão
das representações sobre o Índio nos livros
didáticos de história, em suas facetas
contraditórias e paradoxais.
130
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132
A PARTICIPAÇÃO DOS INDÍGENAS
nas expedições da rota Madeira-Guaporé
(segunda metade do século XVIII)

** Vanice Siqueira de Melo

Resumo: Em 1752, a coroa portuguesa permitiu a navegação dos rios Madeira, Mamoré e
Guaporé, possibilitando uma conexão entre o Estado do Grão-Pará e Maranhão e a recém-criada
capitania do Mato Grosso. Ainda que a navegação por esses rios tivesse sido proibida pelo monarca
português na década de 1730, algumas expedições percorreram a rota formada por estes rios. A
transformação desse percurso em rota fluvial oficial, a partir de 1752, certamente, ensejou um
aumento no número de expedições que percorriam esses rios, demandando a presença dos índios
nelas. Dificuldades de arregimentar trabalhadores indígenas para irem às expedições do Mato
Grosso e problemas para realizar o pagamento deles, por exemplo, ajudam a refletir sobre a
participação dos índios nas tropas que se deslocavam por esse caminho fluvial. Assim, a partir de
relatos de viagens e da documentação produzida pelo império português, essa comunicação
pretender analisar a presença dos indígenas nas expedições que percorriam a rota dos rios
Madeira, Mamoré e Guaporé.
Palavras-chave: Participação indígena. Expedições fluviais. Rota Madeira-Mamoré-Guaporé.
Mobilidade.

INTRODUÇÃO chegado nessa vila uma canoa que vinha da

Capitania do Mato Grosso. Na embarcação
iam uns índios com uma carta de Antônio
Em uma correspondência do dia 30 de
Rolim de Moura, primeiro governador da
setembro de 1763, Alexandre Ferreira das
capitania do Mato Grosso. Na missiva que os
Neves disse que estava na Vila de Monte
índios portavam, Rolim de Moura pedia
Alegre quando recebeu, pelo soldado
ajuda ao diretor da Vila de Borba, o qual não
Francisco Pinto, que ia para o Mato Grosso,
poderia socorre-lo, pois encontrava-se “esta
as ordens emitidas, provavelmente pelo
vila na maior consternação de farinhas e
governador do Estado do Grão – Pará e
canoas”. Por isso, Domingos Franco
Maranhão. Ordenava-se a Ferreira das Neves
encaminhou a carta ao governador do Estado
que ele “pusesse o número de vinte índios
do Grão-Pará e Maranhão.2 Anos depois, em
para a tropa que ia para a Capitania do Mato
uma carta de 20 de agosto de 1766, o
Grosso”. Por essa razão, Ferreira das Neves
comandante da Vila de Santarém, na
chegou na Vila de Silves três dias antes da
Capitania do Pará, explicava que o
tropa que ia para o Mato Grosso, colocou “os
comandante João Batista levou “consigo para
ditos índios prontos” e os remeteu “ao
o Mato Grosso quinze índios” de Santarém.3
comandante que levava o governo da dita
Esses trechos de correspondências oficias
tropa”.1
apontam para a participação dos índios nas
Em maio do mesmo ano, o diretor da Vila
expedições que procuravam estabelecer uma
de Borba, Domingos Franco, disse que havia

 Pesquisa realizada com apoio da Bolsa Prodoutoral (CAPES). Pesquisadora com Bolsa Prodoutoral (CAPES).
** Doutoranda em História pela UFPA / UPO, Docente do curso de História da UFOPA. Correio eletrônico:
vanicesmelo@gmail.com
1 Ofício de Alexandre Ferreira das Neves. Vila de Silves, 30 de setembro de 1763. Arquivo Público do Estado do Pará (APEP), Códice

131.
2 Ofício de Domingos Franco. Borba, 3 de maio de 1763. APEP, Códice 130, doc. 43
3 Ofício do Comandante da Vila de Santarém. Santarém, 20 de agosto de 1766. APEP, Códice 73.

133
conexão entre Estado do Grão-Pará e
Maranhão e a capitania do Mato Grosso,
durante a segunda metade do século XVIII,
através dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé.
Tratam-se de exemplos que apontam como os
índios, para atender a uma política colonial,
poderiam circular entre esses dois espaços:
saindo da capitania do Mato Grosso em
direção ao Estado do Grão-Pará e Maranhão
ou realizando o trajeto oposto.
A presença indígena era essencial nas
expedições que iam aos sertões. Elias Abner
refletiu acerca da importância dos índios
remeiros, pilotos (conhecidos como
“Jacumaúbas” ou “Jacumaíbas”) e práticos
nas tropas organizadas pelo governo colonial
e que percorriam os rios da atual Amazônia.4
Essas tropas eram formadas, basicamente,
por indígenas. Analisando uma série de
conflitos entre luso brasileiros e índios no
atual nordeste brasileiro, Pedro Puntoni
aponta como a maior parte do terço do mestre
de campo Morais Navarro era formado por
índios de diversas etnias.5
A partir disso, esse texto pretende
discutir sobre a participação dos índios nas
tropas que partiam do Estado do Grão-Pará e
Maranhão e iam para a capitania do Mato
Grosso. Nesse sentido, serão analisados
algumas dificuldades de ter acesso a esses
sujeitos para que eles participassem das
expedições. Acredita-se que esses obstáculos
podem estar relacionados a conflitos
envolvendo governantes coloniais ou a falta
de interesse dos índios em participar dessas
viagens ao Mato Grosso.
O texto tratará, primeiramente, das
expedições que percorreram a rota Madeira-
Mamoré-Guaporé antes da segunda metade
do século XVIII e da oficialização desse
percurso como via de conexão entre o Estado
do Grão Pará e Maranhão e a capitania do
Mato Grosso. Em seguida, discutirá os
problemas decorrentes da participação
indígena nas tropas que percorriam a rota.
4 FERREIRA, Elias Abner Coelho. Oficiais canoeiros,
remeiros e pilotos Jacumaúbas: mão de obra indígena na
Amazônia colonial portuguesa (1733-1777). 2016. 158 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém.
5 PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros. Povos
indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil,
1650-1720. São Paulo: Hucitec/EdUSP, 2002, p.206.
AS EXPEDIÇÕES PELOS RIOS
MADEIRA, MAMORÉ E GUAPORÉ
A comunicação entre o Estado do Grão-
Pará e Maranhão e a capitania do Mato
Grosso acontecia através dos rios Madeira,
Mamoré e Guaporé. Localizado na margem
direita do Amazonas, o rio Madeira é o mais
longo afluente da bacia amazônica. A
extensão do rio Madeira é de,
aproximadamente, 3.240 KM, porém cerca de
1.425 km está em território brasileiro. A
nascente do Madeira está localizada na
Cordilheira Andina a partir da união dos rios
Madre de Dios, cuja nascente é no Peru, e
Beni em território da atual Bolívia. Estes dois
rios, por sua vez, se juntam ao Mamoré e
formam o rio Madeira. Quanto ao rio
Mamoré, nasce em território boliviano, na
serra de Cochabamba. Além disso, recebe as
águas do Rio Guaporé e, ao encontrar o Rio
Beni, forma o rio Madeira6. Já o rio Guaporé,
nasce na Serras dos Parecis, no estado do
Mato Grosso, e sua extensão navegável é de
1.716Km.
A utilização dos rios Guaporé, Madeira e
Mamoré como via de comunicação foi
oficializada pela coroa portuguesa em
meados do século XVIII. Entretanto, antes
dessa oficialização, algumas expedições,
oficiais ou não, percorreram por esse trajeto,
conectando áreas centrais da América do Sul
à atual Amazônia.
Provavelmente, a primeira expedição
europeia que andou por este caminho foi a do
bandeirante Antônio Raposo Tavares. Em
1648, essa tropa partiu de São Paulo para o
“sertão em demanda de uma nação de índios
chamados serranos” e era dividida em duas:
uma comandada pelo Raposo Tavares e pelo
capitão Antonio Pereira de Azevedo.
Seguiram, então, as tropas caminhos distintos
até se reencontrarem meses depois, quando
proseguiram juntas a procura dos índios
6 ALBERTI, André. Hidrovia do Madeira. Departamento
Nacional de Infraestrutura de Transporte. Disponível em:
http://www.dnit.gov.br/hidrovias/hidrovias-
interiores/hidrovia-do-madeira/hidrovia-do-madeira.
Acesso em: 14 de janeiro de 2019.
134
serranos. Segundo Jaime Cortesão, as terras
dos índios serranos seriam ao sul de Santa
Cruz de la Sierra, na região andina do rio
Grande ou Guapay. Foi a partir das terras dos
índios Serranos que a expedição de Raposo
Tavares chegou ao Gurupá, pois o rio
Grande, das terras desses indígenas
desemboca no Mamoré, que segue pelo norte
e desagua no rio Madeira.
Quase um século após essa expedição do
Raposo Tavares, entre os anos de 1722 e 1723,
o sargento mor Francisco de Melo Palheta
realizou uma exploração do rio Madeira. A
expedição foi realizada sob as ordens do
governador do antigo Estado do Maranhão e
Grão-Pará, João da Maia da Gama, quando
soube que acima das cachoeiras do rio
Madeira haveriam habitações que poderiam
ser dos espanhóis ou dos portugueses. Disse
o redator da viagem que, “por ter notícias e
sinais que se viu neste rio de muitas cruzes”,
decidiu Maia da Gama “mandar dez galeotas
armadas em guerra com infantaria
cravineiros a fazer descobrimento”.7
A tropa de Melo Palheta partiu de Belém
no dia 11 de novembro de 1722 e no dia 02 de
fevereiro do ano seguinte chegaram no rio
Madeira. Seguiram pelos rios Mamoré e
Guaporé até as missões dos jesuítas
castelhanos. Retornaram, então, para a
capitania do Pará e chegaram na cidade de
Belém em 1723.
Anos depois, em 1742, uma tropa faria o
trajeto oposto ao que foi feito pela expedição
de Melo Palheta. Alguns moradores do
arraial de São Francisco Xavier, na capitania
do Mato Grosso, “pelas grandes necessidades
em que se achavam aquelas minas”, com
“esperanças de fazerem algum
descobrimento de ouro [?]” e “com as
8 pelo rio Mamoré acima, umas canoas grandes
notícias que já tinham de estarem perto
destas minas as missões dos índios de
7 A bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira no
documento da narração da viagem. In: CAPISTRANO DE
ABREU, João. Capítulos de História Colonial: 1500-1800 &
Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília.
Editora: Universidade de Brasília, 1982
8 Carta governador João de Abreu de Castelo Branco para o
rei D. João V. Pará, 24 de fevereiro de 1743. AHU, Pará
(Avulsos), Cx. 25, D. 2387.
9 AMADO, Janaina e ANZAI, Leny C. (orgs.). Anais de Vila
Bela – 1734-1789. Cuiabá: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2006,
p.45
Espanha, pela terra adentro”, decidiram “ir a
elas com negócio”.9
A tropa era formada pelos reinóis
Manuel Félix de Lima, Joaquim Ferreira
Chaves, Vicente Pereira e Manuel de Freitas
Machado. Além disso, faziam parte da tropa
os paulistas João Barbosa Borba Gato,
capitão, alferes Mateus Correa Leme,
licenciado Francisco Leme do Prado, o
licenciado Tristão da Cunha Gago, Francisco
Borges e Dionísio Bicudo. João dos Santos era
o único do Rio de Janeiro.10
Esses homens com o restante da tropa
embarcaram no Guaporé e após uns dias de
viagem chegaram na Missão de São Miguel,
localizada no rio Baures e administrada por
um jesuíta espanhol. Permaneceu por alguns
dias em São Miguel e posteriormente
seguiram a viagem até a Missão de Santa
Maria Madalena11, no rio Itonamas. Nessa
missão “se demoraram vinte e um dias e
vendo que não podiam fazer negócio”12, pois
os curas necessitavam de autorização do
provincial, que estava na Missão de
Exaltación de la Santa Cruz, no rio Mamoré.
Decidiram, então, ir até essa missão no
Mamoré. Uma parte da tropa seguiria até de
Exaltación de la Santa Cruz pelo rio enquanto
outra iria por terra, com Manuel Felix de
Lima. Porém, antes de partir de Santa Maria
Madalena, chegou nessa missão um aviso do
provincial repreendendo os curas por terem
hospedados os portugueses.13
Manuel Félix de Lima seguiu, então, sua
viagem pelo Guaporé e não conseguiu
encontrar a outra parte da expedição.
Durante a campanha, “em uma dessas
aldeias”, Félix de Lima soube que “não havia
muitos anos, tinham subido, do Grão-Pará
carregadas de negócio para aquelas outras
aldeias”. Como Manoel Félix de Lima não
10 É possível ver a lista dos homens que acompanharam
Manuel Felix de Lima em: SOUTHEY e Carta governador
João de Abreu de Castelo Branco para o rei D. João V. Pará,
24 de fevereiro de 1743. AHU, Pará (Avulsos), Cx. 25, D.
2387.
11 Carta governador João de Abreu de Castelo Branco para o
rei D. João V. Pará, 24 de fevereiro de 1743. AHU, Pará
(Avulsos), Cx. 25, D. 2387.
12 Ibidem.
13 SOUTHEY, Robert. História do Brazil. Trad. Dr. Luiz
Joaquim de Oliveira e Castro. Rio de Janeiro: Livraria de B.L.
Garnier, 1862, Tomo V, pp.425-426.
135
desejava retornar para o Mato Grosso, seguiu
com os demais companheiros, pelos rios
Mamoré e Madeira até a capitania do Pará.14
O conhecimento acerca das missões
castelhanas e dos rios Guaporé, Mamoré e
Madeira coletado por aqueles que
participaram da expedição de Félix de Lima e
retornaram para o Mato Grosso, foi
aproveitado em outras viagens feitas aos
domínios espanhóis e ao Pará. Além disso, a
proibição da navegação pelo rio Madeira e a
punição aplicada a Manoel Félix de Lima e
outros expedicionários que chegaram a
Capitania do Pará não impediu que outros se
aventurassem em sair do Mato Grosso e ir até
o Pará pelos rios Guaporé, Mamoré e
Madeira. Nesse sentido, transcorridos dois
anos da expedição de Felix de Lima, em 1744,
Miguel da Silva, Gaspar Barbosa, Mateus
Correia (provavelmente o mesmo que
participou da expedição de Manuel Félix de
Lima) e seu irmão, e um holandês resolveram
ir das minas de Mato Grosso ao Pará. Durante
a viagem, Mateus Correia foi assassinado
pelos índios Mura e o dito holandês “morreu
afogado nas cachoeiras, com alguns escravos
dessa tropa”.15
Outra expedição que percorreu os rios
Guaporé, Mamoré e Madeira foi a de Leme
do Prado. Francisco Xavier de Abreu, José
Leme do Prado “e outros foram os terceiros
que rodaram por este rio abaixo [Guaporé],
até o Pará”. Para Leme do Prado realizar essa
navegação até o Pará, ele “havia tido nos
Arinos informação da navegação por
Joaquim Pereira Chaves”, que participou da
expedição de Manoel Félix de Lima. Ao que
tudo indica, Pereira Chaves também foi
preso, como outros membros da expedição
de Félix de Lima, e logo “que foi solto no
Pará, passando ao Maranhão e dali ao Piauí,
e daí a Goiás, e depois ao Cuiabá”, foi para
“Arinos, no concurso do seu enganoso
14 BARBOSA DE SÁ, José. Relação das povoações do Cuyabá
e Mato Grosso de seos princípios thé os presentes tempos”.
In: Annaes da Biblioteca Nacional. Volume, XXIII, 1904, p. 42.
15 Anais de Vila Bela, p. 46
16 Anais de Vila Bela, p. 48. Segundo Robert Southey, Joaquim
Chaves assentou praça no Pará e aproveitou a primeira
oportunidade para desertar. Teria ido para o Maranhão,
Goiás e, depois, a Cuiabá. Além disso, estabeleceu uma
fazenda no Guaporé. SOUTHEY, op.cit., p.438
descoberto, de onde tornou finalmente para
estas minas”.16
Nesse sentido, com base nessas
informações, em 1747 Leme do Prado partiu
de Mato Grosso para a capitania do Pará e
“em pouco mais de cinquenta dias de viagem
em canoa desde as referidas minas chegou”
na cidade do Pará. O governador do Estado
do Maranhão e Grão-Pará encontrava-se na
capitania do Maranhão e, por essa razão, o
capitão – mor do Pará o deteu até que o
governador chegasse no Pará “porque o
intento dele era voltar logo pelo mesmo
caminho para onde tinha saído”.17
No final da primeira metade do século
XVIII, a coroa portuguesa estava preocupada
com o avanço da missões espanholas pela
margem oriental do Guaporé. Nesse sentido,
Francisco Pedro de Mendonça Gurjão dizia
ao rei lusitado que “o incidente de maior
ponderação” feito pela expedição de Leme do
Prado foi “achar quatro aldeias dos padres da
Companhia Castelhanos situados novamente
na parte oriental do Rio Guaporé continente”
as minas do Mato Grosso.18 Além disso,
desde 1747 os reinos ibéricos negociavam um
novo tratado de limites para resolver os
conflitos acerca das extensões dos seus
respectivos domínios na América. Não era
em vão, portanto, que o governo português
manifestava preocupação com as missões dos
jesuítas espanhóis no Guaporé e procurava
coletar informações sobre os rios Guaporé,
Mamoré e Madeira.
Nesse contexto, para conseguir mais
informações sobre a região que era fronteiriça
aos domínios espanhóis, o governador do
Estado do Maranhão e Grão Pará ordenou
“ao sargento mor da praça, Luís Fagundes
Machado, que, acompanhado do ajudante
Aniceto Francisco de Tavora”, de uma
“esquadra de doze soldados pagos” e de
Antonio Nunes, como piloto,
acompanhassem José Leme do Prado e
17 A carta de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão para o rei
escrita do Pará, em 22 de abril de 1749, está anexada em
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do
Maranhão e Pará para o secretário de estado dos Negócios
do Reino e Mercês, Pedro da Mota e Silva”. Pará, 10 de
setembro de 1750. AHU, Pará (Avulsos), cx. 32, doc. 2992.
18 Idem.
136
Francisco Xavier de Abreu no retorno ao
Mato Grosso. Esses homens deveriam
embarcar “no porto dessa cidade [do Pará]
com os ditos mineiros” e os conduzir “pelo
mesmo caminho do rio da Madeira até ao
Mato Grosso donde saíram”.19 José
Gonçalves Pereira, que era secretário do
governo do Estado do Maranhão e Grão-
Pará, seria o responsável por coletar
informações sobre o trajeto da viagem.
A expedição saiu da cidade do Pará no
dia 14 de julho de 1749. Na madrugada do dia
25 de setembro “se dobrou a ponta da ilha
para o sul, e logo ao romper do dia se avistou
a entrada do rio da Madeira”. No dia 30 de
setembro chegou em Trocano e permaneceu
nela até o dia 02 de outubro, quando
prosseguiu a viagem até o Mato Grosso.
Somente em meados de dezembro de 1749 é
que a tropa chegou na primeira cachoeira do
Madeira, que é a de Santo Antonio. Era 14 de
abril quando “às 3 horas da tarde descansou
a escolta no porto da Pescaria com nove
meses completos de viagem do Pará”.20
As tropas que percorreram a rota
Madeira – Mamoré – Guaporé após 1733,
como a de Manuel Félix de Lima e as que
sucederam a essa, eram expedições ilegais,
pois em 27 de outubro de 1733, foi emitido
um Alvará que proibia a navegação pelo rio
Madeira. A coroa portuguesa emitiu esse
Alvará em decorrência do receio de que os
moradores do Pará e Maranhão se
deslocassem para a região mineradora do
Mato Grosso e receava que esse trajeto se
configurasse como rota de contrabando de
ouro.
Em meados do século XVIII, contudo,
Mendonça Furtado, governador do recém
criado Estado do Grão-Pará e Maranhão, e o
primeiro governador da capitania do Mato
19 A carta de Francisco Pedro de Mendonça Gurjão para o rei
escrita do Pará, em 22 de abril de 1749, está anexada em
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do
Maranhão e Pará para o secretário de estado dos Negócios
do Reino e Mercês, Pedro da Mota e Silva”. Pará, 10 de
setembro de 1750. AHU, Pará (Avulsos), cx. 32, doc. 2992.
20 FONSECA, José Gonçalves da. Navegação feita da cidade
do Gram Pará até à bocca do Rio da Madeira pela escolta que
por este rio subio às Minas do Mato Grosso por ordem mui
recommendada de Sua Magestade Fidelissima no anno de
1749, escripta por Jose Gonsalves da Fonseca no mesmo
anno. In: ALMEIDA, Candido Mendes de. Memorias para
História do Extincto Estado do Maranhão. Tomo II. Rio de
Grosso, D. Rolim de Moura, defenderam a
revogação do Alvará de 27 de outubro de
1733, que proibia a navegação pelo rio
Madeira. Esses estadistas estavam
preocupados em assegurar os territórios
situados nas áreas de fronteira com a
América Espanhola e facilitar o escoamento
do ouro de Mato Grosso por uma rota que
consideravam mais segura, evitando o
contrabando pelos caminhos terrestres que
tinham como destino São Paulo, Rio de
Janeiro e Bahia.
Assim, o Alvará que proibia a navegação
pelo Madeira foi revogado em 14 de
novembro de 1752 e a coroa portuguesa
autorizou, novamente, a navegação pelo rio
Madeira. Além disso, nesse contexto, a coroa
portuguesa procurou promover, também, o
comércio entre o Grão-Pará e o Mato Grosso
através da rota do Madeira. A Companhia de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada
em 1755, entre diversas outras atribuições,
seria responsável pelo abastecimento de Vila
Bela, situada na margem do Guaporé na
capitania do Mato Grosso.21
Após a abertura da rota Madeira –
Mamoré – Guaporé, os governos do Estado
do Grão -Pará e Maranhão e da capitania do
Mato Grosso passaram a operar
conjuntamente na defesa dos interesses
lusitanos na área. Na década de 1760, por
exemplo, o governo do Mato Grosso
solicitava ajuda do aparato militar do Estado
do Grão-Pará e Maranhão.
A ameaça que os espanhóis
representavam na fronteira com o Mato
Grosso motivou, em 1762, o governo do Mato
Grosso a incrementar seu poder bélico
através do aumento de homens na
companhia dos dragões e envio de homens e
munições para o presídio de Nossa Senhora
Janeiro: Nova Typographia de J. Paulo Hieldebrandt, pp
.269-415.
21 Cf. DAVIDSON, David Michel. Rivers & Empire. The
Madeira route and the incorporation of the brazilian far
west, 1737-1808. 1970. Tese (Doutoramento em História),
Yale University, 1970; RODRIGUES, Nathália Maria Dorado.
A Capitania de Mato Grosso e a Companhia Geral de
Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778). In: ANZAI,
Leny Caselli & MARTINS, Maria Cristina Bohn (Orgs.).
Histórias Coloniais em áreas de fronteira. Índios, jesuítas
e colonos. São Leopoldo: Oikos; UNISINOS; Cuiabá:
EDUFMT.
137
da Conceição, na margem direita do
Guaporé. Além disso, “como na capitania de
tudo há falta”, o governo da capitania de
Mato Grosso solicitou a Manoel Bernardes de
Melo, governador do Estado do Pará e
Maranhão, que socorresse essa capitania com
“trinta soldados infantes, comandados por
um oficial subalterno, pólvora, bala,
munição, e outras coisas bem necessárias, de
que não havia nada”.22
PINTO, Emanuel Pontes. Território Federal do
Guaporé: fator de integração da fronteira
ocidental do Brasil. Rio de Janeiro: VIAMAN,
2003, p.33
Era, igualmente, pela da rota Madeira –
Mamoré – Guaporé que ocorria o escoamento
do ouro das minas de Mato Grosso. Através
do porto da capitania do Pará o ouro dessas
minas era enviado para Portugal. Pouco
tempo depois da coroa portuguesa permitir a
navegação pelo rio Madeira, por exemplo,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado
enviou, do Pará, um ofício ao Secretário de
Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de
Mendonça Corte Real, dizendo que haviam
chegado ao Pará, procedentes de Vila Bela,
João Rodrigues da Silva e Paulo Gouveia e
estavam acompanhados de três homens.
Rodrigues da Silva e Paulo Gouveia
carregavam as guias, nas quais estavam
descritas a quantidade de ouro que eles
possuíam. Ainda segundo Mendonça
Furtado, esses homens pagaram “o quinto
por capitação e batea” e como “não acharam
22 Anais de Vila Bela, p. 147
23 Ofício do governador e capitão general do Estado do
Maranhão e Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Diogo de
Mendonça Corte Real. Pará, 13 de dezembro de 1753. AHU,
Pará (Avulsos), Cx. 35, D. 3315
24 Carta do governador do Estado do Maranhão e Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o Padre Reitor
em toda aquela capitania [do Mato Grosso]
Casa de Fundição a que o pudessem levar”,
por essa razão, “se deu licença o Governador
[do Mato Grosso] para transportarem aquele
ouro a esta cidade [de Belém] debaixo das
guias”.23
O caminho fluvial conectando Mato
Grosso ao Grão – Pará também se configurou,
também, como via de contrabando de ouro.
O irmão de Marques de Pombal, Mendonça
Furtado, escreveu, de Belém, ao padre reitor
da Companhia de Jesus dizendo que “a
constante fama que há de que os Ministros
que descem do Mato Grosso” para o Pará
“extraviam por estes sertões o ouro que
trazem”, contra as ordens da coroa
portuguesa, demanda um “pronto remédio a
esta desordem”. Por essa razão, Mendonça
Furtado decidiu “pôr na Aldeia do Trocano
[no rio Madeira] uma guarda militar, para
que se vigie com todo o cuidado esta
importante matéria” e para estabelecer e
governar este quartel militar, Mendonça
Furtado nomeou Tte. Diogo Antônio de
Castro e Meneses .24
Assim, ao que tudo indica, a
transformação dos rios Madeira, Mamoré e
Guaporé em via de comunicação entre o
Estado do Grão-Pará e Maranhão e o Mato
Grosso ensejou o frequente envio de
expedições entre esses dois espaços
administrativos e é sobre a presença indígena
nessas expedições que será discutido agora.
A PRESENÇA DOS ÍNDIOS NAS
TROPAS: CONFLITOS E
INTERESSES
Durante o período colonial, o acesso aos
trabalhadores indígenas sempre foi uma
razão para vários conflitos no Estado do
Maranhão e Grão – Pará.25 Em meados do
da Companhia de Jesus. AHU, Pará (Avulsos), Cx. 36, D.
3391.
25 Cf. CHAMBOULEYRON, Rafael. “Duplicados clamores”.
Queixas e rebeliões na Amazônia Colonial (Século XVII).
Projeto História. São Paulo, n.33 (dez. 2006), pp. 159-178.
CHAMBOULEYRON, Rafael. CHAMBOULEYRON, Rafael.
Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o
Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século
138
século XVIII, a coroa portuguesa se
empenhou em executar um projeto colonial
no Estado do Maranhão e Grão-Pará, do qual
o Diretório dos Índios é uma expressão. Uma
das diretrizes do Diretório dos Índios
consistia em regulamentar a distribuição de
trabalhadores indígenas. Assim, o não conhecia” ele “por seu governador senão
governador da capitania deveria conceder
licença para que os índios fossem concedidos
aos trabalhos e os diretores das povoações
deveriam solicitar os índios concedidos aos
principais, que encaminhariam os indígenas
para as atividades destinadas a eles.26 Foi
nesse contexto que os índios começaram a ser
demandados para participarem das
expedições ao Mato Grosso.
Teotônio da Silva Gusmão27 foi
encarregado pelo governo da Capitania do
Mato Grosso de fundar uma nova povoação
no rio Madeira e veio até o Pará “por várias
providencias [?] para a dita povoação”.28 Ao
retornar para o Mato Grosso, disse que após
quarenta e seis dias de viagem, chegou na
Vila de Borba “muito amofinado de
carapanãs desde o Xingu até Óbidos”. Nessa
Vila explicou que em Monte Alegre “foi
prontamente socorrido dos índios” que pediu
e “da mesma forma em Santarém” e em Vila
Franca.
Em Serpa29, contudo, Silva Gusmão
enfrentou alguns problemas para conseguir
os índios. Teotônio Gusmão esclareceu que
na Vila Serpa, “para donde trazia
nomeadamente outra portaria de vossa
excelência e donde havia de deixar 6 índios e
completar as equipaçoes”, conheceu “do
diretor o soldado Vitoriano Gomes as
maiores vilanias e desatenções que nunca
nesta estrada” lhe tinham feito. Teotônio
XVIII). Revista Brasileira de História. São Paulo, V.26, n° 52
(2006). pp. 79-114.
26 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar - um estudo
sobre a experiência portuguesa na América, a partir da
colônia: o caso do diretório dos índios (1751-1798). 2005. 433
f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p.251.
27 Teotônio da Silva Gusmão era sobrinho do embaixador
Alexandre de Gusmão. No período de dezembro de 1735 a
junho de 1737, Teotônio da Silva Gusmão foi fiscal do ouro
em Goiás. Depois foi para Intendência das minas do
Tocantins, onde serviu até setembro de 1738. Durante doze
anos atuou como advogado no reino e depois serviu como
juiz de fora em Itu até 1748, quando foi nomeado primeiro
juiz de fora da Capitania do Mato Grosso. ALMEIDA,
Gusmão pediu ao dito diretor “12 índios 6
pela troca e 6 de mais” e Vitoriano Gomes
respondeu a ele que “tinha ordem do senhor
general do rio Negro para não dar
cumprimento a portaria alguma” do
governador do Estado “nesta matéria e que
ao senhor Joaquim de Mello Povoas”. Além
disso, disse Teotônio Gusmão que “tendo
esta vila de Serpa muita farinha como os
mesmos índios confessavam”, proibiu o
diretor, “com ameaças de prisões e castigos”,
se vendessem a ele um paneiro de farinha,
ainda que Teotônio Gusmão estivesse
“carecido disso, pois sustentava 75 bocas”.30
A narração feita pelo Teotônio da Silva
Gusmão aponta a dificuldade que ele teve, na
Vila de Serpa, em conseguir índios para sua
expedição de retorno a Capitania de Mato
Grosso em função da postura do diretor
dessa Vila. Além de Teotônio Gusmão, João
de Sousa Azevedo, igualmente, enfrentou
alguns problemas com os diretores das vilas
para conseguir indígenas que participassem
da expedição dele.
Em carta de abril de 1761, o governador
da Capitania de São José do Rio Negro,
Gabriel de Sousa Filgueira, dizia ao
governador da Capitania do Mato Grosso,
Rolim de Moura, que João de Sousa Azevedo
seguia para essa capitania “a levar uma canoa
a vossa excelência, e socorro de algumas
munições”. Explicou Gabriel de Sousa
Filgueira que João de Sousa Azevedo disse a
ele sobre “a falta de alguns índios para a sua
equipação” e “que alguns diretores dessa
capitania [de São José do Rio Negro] lhes não
davam por estarem no presente tempo
Gustavo Balbueno de. “Os Juízes de Fora da Capitania de
Mato Grosso e uma discussão em torno de suas rendas”.
Anais do XII Encontro da Associação Nacional de História –
Seção Mato Grosso do Sul: democracias e ditaduras no
mundo contemporâneo. Disponível em:
http://www.encontro.ms.anpuh.org/resources/anais/38/
1411240492_ARQUIVO_ArtigoAquidauana.pdf. Acessado
em: 09 de dezembro de 2018.
28 Ofício de Teotônio da Silva Gusmão. Pará, 5 de julho de
1759. APEP, Códice 54, doc. 17.
29 A Vila de Serpa fazia parte da Capitania de São José do Rio
Negro. Atualmente é o município de Itacoatiara, no
Amazonas.
30 Ofício de Teotônio da Silva Gusmão. Vila de Borba, 31 de
outubro de 1759, APEP, Códice 54, doc. 30.
139
espalhados pelos sertões a colheita das
drogas”.31
Teotônio da Silva Gusmão e João de
Sousa Azevedo queixam-se aos governantes
do Estado do Grão-Pará e Maranhão das
dificuldades que enfrentavam para conseguir
índios nas vila do Estado para as expedições
deles. A reclamação de ambos dirige-se aos
diretores da Capitania de São José do Rio
Negro. Enquanto Silva Gusmão fez uma
denúncia do procedimento do governador da
Vila de Serpa, o prático Sousa de Azevedo
protestou contra todos os diretores dessa
capitania. É possível, assim, que esses
diretores das vilas da capitania de São José do
Rio Negro fossem oponentes do Teotônio da
Silva Gusmão e do João de Azevedo e isso
tenha influenciado na postura dos diretores.
Ou, talvez existisse algum conflito entre os
governadores da capitania de São José do Rio
Negro e os da capitania do Pará e esse atrito
manifestava-se na indisposição dos diretores
em conceder índios que iam do Pará ao Mato
Grosso.32
Por outro lado, é possível que os próprios
índios não tivessem interesse em participar
das expedições que iam ao Mato Grosso.
Como foi apontado, Sousa Azevedo disse que
os diretores não dariam índios a ele, pois os
índios tinham ido a coleta das “drogas” do
sertão. É provável que os próprios índios
tivessem ido à extração das “drogas do
sertão”, naquele momento, também, como
um mecanismo de fuga das tropas que iam ao
Mato Grosso. Heather Roller argumentou
que a participação dos indígenas nas
expedições de coleta era, provavelmente, um
recurso utilizado para evitar serviços mais
onerosos ou um meio de resistir os pleitos
coloniais e deles engajarem-se a partir de seus
próprios termos.33 Assim, talvez esses
indígenas acreditassem que era mais
31 Carta do governador da Capitania de São José do Rio
Negro Gabriel de Sousa Filgueira ao governador da
Capitania do Mato Grosso Antonio Rolim de Moura.
Barcelos, 16 de abril de 1761. Arquivo Público do Mato Grosso
(APMT), Fundo Secretaria do Governo, cx. 005, doc. 184 / cx.
005.
32 Agradeço ao Fabiano Vilaça pela reflexão acerca dos
conflitos entre os governadores das capitanias do Estado do
Grão-Pará e Maranhão.
33 ROLLER, Heather Flynn. “Expedições coloniais de coleta
e a busca por oportunidades no sertão amazônico, c. 1750-
interessante e lucrativo participar das
expedições que iam colher as “drogas” no
sertão do que ir em uma expedição à
capitania do Mato Grosso.
Havia, de fato, um empenho, por parte
do governo colonial, em incentivar a
participação desses índios nas viagens ao
Mato Grosso. Esse esforço expressava-se
através da preocupação com o pagamento
dos indígenas que iam do Estado do
Maranhão e Grão-Pará ao Mato Grosso.
Nesse sentido, o governador do Pará,
Bernardo Mello de Castro, disse a Rolim de
Moura que o pagamento que ele havia
mandado “fazer aos índios que levou João de
Sousa Azevedo é cheio de justiça, e de
Cristandade”, pois “as duas varas e meia de
pano ou um cruzado por mês a que os
comerciantes querem recorrer por costume
deste Estado” não se deve praticar nesse caso
“em que os mesmos índios tem o
grandíssimo trabalho” na “passagem das
cachoeiras” e “na grande viagem, que
fazem”.34
O deslocamento do Estado do Maranhão
e Grão-Pará até o Mato Grosso, pelos rios
Madeira, Mamoré e Guaporé, era, de fato,
trabalhoso. Segundo Amaral Lapa, a viagem
normal durava entre seis e sete meses. Já a
travessia das cachoeiras do Madeira durava,
aproximadamente, de três a quatro meses. A
viagem de ida e volta não durava, portanto,
menos de um ano.35
O rio Madeira é conhecido pelas
corredeiras / cachoeiras na sua região
superior, acima de Porto Velho, conhecido
como Alto Madeira. Aline Siqueira
argumenta que o Alto Madeira não apresenta
condições de navegabilidade em função
dessas corredeiras / cachoeiras. Esse trecho
do Madeira apresenta 18 cachoeiras, dentre
as quais a de Pederneira, Paredão, Três
1800”. Revista de História (USP), São Paulo. Nº 168 (Janeiro /
junho 2013), p. 201-243.
34 Carta do governador do Pará Manoel Bernardo de Mello
de Castro ao governador do Mato Grosso Antonio Rolim de
Moura. Pará, 08 de maio de 1759. APMT, Fundo Secretaria
do Governo, Cx. 004, Doc. 144.
35 LAPA, José Roberto Amaral. Do comércio em área de
mineração. Economia Colonial. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1973.
140
Irmãos, Jirau, Caldeirão do Inferno,
Morrinhos, Teotônio e Santo Antônio.36 No
trecho que corresponde ao médio e baixo
Madeira, espaço a partir da cachoeira de
Santo Antônio até a sua foz, no Amazonas, o
Madeira pode ser caracterizado como um rio
de planície.37
Essas cachoeiras, certamente,
representavam um obstáculo para quem
navegava na rota Madeira – Guaporé –
Mamoré. A narrativa escrita sobre a
expedição de Melo Palheta, ocorrida entre os
anos 1722-1723, aponta essas dificuldades e a
quantidade de cachoeiras. A narrativa
explica que
vinte e três cachoeiras se contam no rio
Madeira, das quais dez se não podem
passar, por nenhum meio, porque são
impossíveis, e as passamos cortando
pontas de terras e fazendo grades de
madeira, não pelo rio senão por terra em
seco, cujos caminhos ficam feitos para
quem vier atrás.38
Em um dos trechos da viagem, a tropa de
Melo Palheta alcançou a “cachoeira chamada
dos Iaguerites” e nela viram “sem
encarecimento uma figura do inferno”, pois
ainda que tenha “visto grandes cachoeiras,
como são as horríveis e celebradas do rio dos
Tapajós todas e do rio dos Tocantins, a
Itaboca” e as que se seguem pelo rio Araguaia
“e por ele até a cachoeira do Padre Raposo
chamada Otimbora”, nenhuma se “iguala
nem tem paridade a esta do rio da Madeira
na sua grandeza e despenhadeiros de pedras
e rochedo tão altos que nos pareceu
impossível a passagem”.39
O ataque dos índios, considerados hostis,
também dificultava a navegação pelo
Madeira e, consequentemente, a desempenhavam: quando mais trabalhosa a
comunicação com a Capitania do Mato
Grosso. Quando Teotônio da Silva Gusmão
foi ao Pará buscar apoio para fundar uma
36 SIQUEIRA, Aline Gonçalves de. Características e
Avaliação dos Níveis Basais de Mercúrio do Sedimento na
Área de Influência do Aproveitamento Hidrelétrico Jirau –
Rio Madeira – Rondônia – Brasil. 2013. 80 f. Dissertação
(Mestrado em CIÊNCIA DE MATERIAIS) - Faculdade UNB
Planaltina, Universidade de Brasília, 2013, p.22
37 Ibidem.
38 A bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira no
documento da narração da viagem. In: CAPISTRANO DE
nova povoação, a de Nossa Senhora da Boa
Viagem, em Salto Grande, no rio Madeira,
disse que seria conveniente ao serviço do rei,
“benefício daquelas minas do Mato Grosso”
e “aumento daquela povoação do Salto” que
seria necessário providenciar “embarcações
ligeiras armadas que andem desde aquela
povoação” até a Vila de Borba “para fazer
conter o gentio Mura inimigo daquela
[estrada] que se deve defender e
franquear”.40
Um testemunho anônimo escrito,
provavelmente, após 1759, lembrava que o
“rio Madeira tem muito cacau”. Contudo, “a
sua navegação é perigosa pela infestação de
gentio Mura” e uma vez que fosse necessário
“continuar viagem até ao Mato Grosso” se
encontrariam “muitas cachoeiras, nas
margem oriental do rio Madeira”.41 Ou seja,
percorrer o rio Madeira e chegar em Mato
Grosso não era uma atividade simples.
Nesse sentido, Manoel Bernardo de
Mello e Castro argumentava que,
considerando as dificuldades em realizar a
viagem entre a capitania do Mato Grosso e o
Estado do Grão-Pará e Maranhão é “que
devem ser atendíveis para a diferença dos
pagamentos” entre os índios que faziam essa
viagem pelo rota Madeira-Mamoré-Guaporé
e aqueles que executavam outros serviços.
Dessa maneira, Mello e Castro explicava,
também, que “ainda neste mesmo Estado,
não é geral aquele estipêndio para todos os
trabalhos”, porque as canoas “que vão a
extração das drogas do sertão” fazem aos
índios “pagamentos muito mais avultados, e
a esta proporção se regulam conforme os
serviços a que os aplicam”. Ou seja, o
pagamento dos índios no Grão-Pará e
Maranhão seria feito a partir da atividade que
ABREU, João. Capítulos de História Colonial: 1500-1800 &
Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília.
Editora: Universidade de Brasília, 1982, p.316
39 Ibidem.
40 Ofício de Teôtonio da Silva Gusmão. Pará, 5 de julho de
1759. APEP, códice 54, doc. 17.
41 Fragmento da Viagem das Amazonas e Rio Negro desde o
parágrafo 54 até o 103. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico. Rio de Janeiro, tomo LXVII (Parte I), 1906, p. 275
141
atividade, maior deveria ser o pagamento dos
índios que a executavam.42
Manuel Bernardo de Melo e Castro dizia,
também, que os índios deveriam ser bem
remunerados não somente em decorrência de
ser penosa a viagem pela rota Madeira-
Mamoré-Guaporé. Assim, para ele, “como
esta gente pode [facilitar] muito com os seus
remos o negócio deste Estado com essas
minas”, é justo “que sejam bem satisfeitos
para que o interesse, e a conveniência os
incite a continuarem esta carreira” e “que de
outra forma se não poderá conseguir, pelas
continuadas deserções, a que eles tem natural
inclinação”. Dessa maneira, era fundamental
que os índios ficassem plenamente satisfeitos
com as remunerações que ganhassem na
viagem entre a Capitania do Mato Grosso e o
Grão-Pará e Maranhão para que os interesses
da coroa portuguesa, ao desenvolver essa
rota pelo Madeira, Mamoré, Guaporé fossem
alcançados.43
A preocupação com o pagamento que era
feito aos índios que iam nas expedições ao
Mato Grosso foi manifestada, igualmente,
por outros participantes do governo
português, como Francisco Xavier de
Mendonça Furtado. Esse antigo governador
do Estado do Grão-Pará e Maranhão estava
em Barcelos quando escreveu a Rolim de
Moura, no dia 30 de maio de 1758, sobre “o
dano que padecem os índios” que iam para o
Mato Grosso. Segundo Mendonça Furtado,
os passageiros combinavam com os índios
que pagariam a eles “umas poucas de oitavas
de ouro para os levarem” até as minas de
Mato Grosso. Porém, ao chegarem nas minas,
os viajantes pagavam os índios “em pano de
algodão grosso, descontando lhe a meia
oitava a vara” e “quando aqueles miseráveis
se recolhem as suas casas, já não há notícia [?]
de tal pano, e ficam suas pobres famílias em
suma necessidade”.44
Continuou Mendonça Furtado
explicando ao Rolim de Moura que “este
gravíssimo prejuízo” somente pode ser
solucionado se o governador da capitania do
42 Carta do governador do Pará Manoel Bernardo de Mello
de Castro ao governador do Mato Grosso Antonio Rolim de
Moura. Pará, 08 de maio de 1759. APMT, Fundo Secretaria
do Governo, Cx. 004, Doc. 144.
43 Ibidem.
Mato Grosso “ordenar a todas as gentes que
vão destas partes, e levam índios, que lhe não
deem outro pagamento, mais do que em
ouro, na forma que se ajustaram”.45
Havia, assim, um preocupação por parte
do governo português em incentivar a
participação dos índios nas expedições que
iam do Grão-Pará ao Mato Grosso. É
provável que os índios não tivessem interesse
em participar dessas jornadas ao Mato
Grosso. As expedições de coleta das
conhecidas “drogas do sertão” talvez
interessasse mais a esses indígenas do que
fazer uma longa e perigosa viagem ao Mato
Grosso. Nesse sentido, as próprias demandas
e interesses dos nativos poderiam dificultar a
organização e a realização de um expedição
ao Mato Grosso. Até mesmo os ataques que
os Mura eram acusados de realizar são
exemplares de como as demandas e politicas
indígenas interferiam na execução dos
projetos coloniais.
O governo lusitano, por sua vez,
procurava incentivar a participação dos
indígenas nas viagens ao Mato Grosso
mediante o pagamento de ouro a eles. Essa
forma de pagamento seria considerada justa,
pelo governo português, em decorrência das
dificuldades enfrentadas durante a jornada
ao Mato Grosso. Considerando, igualmente,
a importância dos indígenas para a realização
dessas expedições, seria um mecanismo de
assegurar e garantir a realização dessas
expedições e, consequentemente, a
dinamização da rota, atendendo aos
interesses coloniais dos portugueses no
Madeira, Mamoré e Guaporé.
Ainda que os governantes coloniais
recomendassem e procurassem viabilizar o
pagamento, através de ouro, aos índios das
jornadas ao Mato Grosso, essa forma de
remuneração talvez não fosse atrativa, pois
esse metal talvez não significasse um
rendimento melhor e desejado por eles. Se,
por um lado, para os luso brasileiros o ouro
possuía um valor acima de outros produtos,
como as varas de pano, é possível que para os
44 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao
governador Antonio Rolim de Moura. Barcelos, 30 de maio
de 1758. APMT, Fundo Secretaria do Governo, Cx. 03,
doc.121.
45 Ibidem
142
índios, ou para uma parcela deles, o ouro não
possuía a mesma importância que tinha para
os luso brasileiros. Por essa razão, é provável
que, para os índios, a participação nas
expedições de coleta das “drogas do sertão”,
ou outro tipo de tropa que não fosse ao Mato
Grosso, oferecesse um rendimento que mais
interessava aos índios.
Por outro lado, alguns índios não tinham
interesse em receber pagamentos através das
varas de pano. Esse é o caso do índio Duarte.
O diretor da vila de Sousel explicou que, após
a chegada da canoa do negócio dessa vila, “o
índio Duarte tinha fugido da mesma canoa”
levando “mais dois consigo depois de ter com
ruins práticas quase persuadido” parte da
tropa “para uma sublevação e deserção para
o Mato Grosso em companhia de João de
Moura”. Disse o diretor de Sousel que soube
por “alguns índios da mesma canoa” que o
dito índio Duarte teria dito aos índios das
canoas que eles estavam sendo “enganados
com umas varas de pano em casa do
tesoureiro”. 46
Se alguns índios não tivesse interesse em
participar das expedições ao Mato Grosso e
enxergassem nas tropas de coleta das “drogas
do sertão” uma oportunidade de conseguir
seus objetivos, outros índios, como o Duarte,
perceberam na fuga para o Mato Grosso uma
possibilidade de conseguir um tipo de
remuneração que considerava mais
interessante que as varas de pano.
As fugas dos índios que participavam
das expedições da rota Madeira-Mamoré-
Guaporé poderiam constituir, igualmente,
um mecanismo de mostrar que eles nem
sempre tinham interesse em participar e
colaborar da política portuguesa. Em meados
do ano de 1764, o cabo da canoa de vila de
Oeiras se pediu a Clemente Pereira, diretor
de Gurupá, que “mandasse prender três
índios” que haviam fugido da tropa que
conduzia Antônio Rolim de Moura da
capitania do Mato Grosso para o Pará. Essa
fuga teria acontecido com “cinco da dita
povoação [de Oeiras]”, que iam “em uma
canoa pequena que embarcaram os três
índios”. 47
Ofício de Manoel de Moura. Pombal, 30 de junho de 1761.
46
APEP, Códice 106.
Não foi possível conhecer as possíveis
justificativas para a fuga dos índios que
acompanhavam Rolim de Moura. Também
não é conhecida a relação que poderia existir
entre os índios de Oeiras com aqueles que
acompanhavam Rolim de Moura. Contudo, é
certo que a organização e funcionamento das
tropas que percorriam o trajeto entre o Estado
do Grão-Pará e a capitania do Mato Grosso
estavam sujeitas, também, aos interesses dos
índios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tentativa do governo português em
consolidar uma rota de conexão entre a
capitania do Mato Grosso e o Estado do Grão-
Pará e Maranhão foi caracterizada por
inúmeras dificuldades. Alguns empecilhos
estavam relacionados aos interesses e às
políticas desenvolvidas pelos índios. Os
possíveis ataques que os Mura realizavam às
tropas que percorriam o Madeira
dificultavam a consolidação dessa rota
fluvial. Eram, contudo, realizados a partir
dos interesses desse grupo indígena.
O desenvolvimento de atividades pelos
índios - como a de remeiros, práticos, pilotos
ou outra qualquer – nas expedições que iam
do Estado do Grão-Pará e Maranhão ao Mato
Grosso dependia de vários fatores. Nesse
sentido, os interesses dos indígenas
sobrepunham-se, em alguns casos, aos
interesses da coroa portuguesa. Ainda que as
correspondências trocadas entre os governos
coloniais defendessem que a remuneração
dos índios que iam até o Mato Grosso deveria
ser feita em ouro, alguns indígenas
enxergavam outras atividades, relacionadas
ou não a política colonial portuguesa, que
atendessem mais aos seus anseios. Assim,
poderiam ser recusar a participar de uma
expedição ao Mato Grosso.
Igualmente, os conflitos envolvendo
governantes nos espaços coloniais poderiam
interferir na implementação das políticas e
diretrizes da coroa portuguesa nas regiões
Ofício de Clemente Pereira para Fernando da Costa Freire.
47
Gurupá, 31 de maior de 1764. APEP, Códice 70 , doc. 90.
143
ocupadas pelos lusitanos, como os possíveis
conflitos envolvendo os governadores das
capitanias do Pará e de São José do Rio Negro
ou os atritos entre os diretores das povoações
e os sertanistas que iam para o Mato Grosso.
São, portanto, diversos interesses que
contribuem para a organização e a realização
de uma expedição do Estado do Grão-Pará e
Maranhão até a capitania do Mato Grosso.
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