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Antonio Augusto Arantes (org.) Produzindo o passado Estratégias de construcio do patriménio cultural “7 Je ye SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA GOVERNO DEMOCRATICO DE SAO PAULO CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patriménio Hist6rico, 984 ‘Arqueoldgico, Artistico ¢ Turistico) ) = brasiliense Cultura, patriménio e preservacao Texto I* Willi Bolle** Introducio: razdes da escolha do autor e do texto. Walter Benjamin, Infancia berlinense por volta de 1900 O tema é conceituar Cultura, Patriménio e Preservagao. Es- colhi fazé-lo a partir de um texto do filésofo alemao Walter Benja- min, O texto se chama Infancia berlinense por volta de 1900. Nos escritos de Benjamin temos algumas das observacdes mais relevantes da filosofia contemporanea sobre o fendmeno da grande cidade, a metrépole moderna, fruto da Revolugao Industrial. Vocés podem pensar em obras como Tableaux parisiens, ciclo de poemas de Baudelaire, traduzido por Benjamin no inicio dos anos 20; em um livro dele chamado Contramdo (1926/28), flagrantes da cidade moderna, principalmente Berlim; uma coletnea de ensaios intitu- lada postumamente Imagens de cidades (1926 € segs.), onde fala de Népoles, Moscou, Weimar e outros lugares; no Didrio de Moscou (1927) e na Infancia berlinense (1933); nos varios ensaios sobre (*) Por razBes técnicas, no foi possivel transcrever os debates que se seguiram a esta apresentacao. {=*) Willi Bolle 6 professor de Literatura Aled na Universidade de Sao Paulo (USP). ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org.) 12 Baudelaire (1938/39) eno inacabado trabalho das Passagens Pari. ie 27/1940). a a rors de escrever de Benjamin — um apaixonado pelay cidades — nao € 0 do especialista cientifico, mas do cidadao Culto, inteligente e sensivel, que compreende a Cultura a partir da percep. ao do detalhe cotidiano, historicamente significativo, Entre esses textos, o da Infancia berlinense por volta de 1900 me parece particularmente apropriado para esta Teflexao @ que nos propomos sobre a conceituacao de Cultura, Patriménio € Preserva. ¢do, a comegar pelas circunstancias de nascimento do livro. Ben. jamin fixa um retrato de Berlim, nos dltimos momentos da precéria Repiiblica de Weimar, em 1933, quando os nazistas conquistaram opoder ele, judeu e adversario do regime, se vé obrigado a se exilar de sua cidade natal. Provavelmente sem perspectiva de volta, ¢ mesmo que voltasse, a cidade ndo seria mais a mesma. Nessa situagao, a Infancia berlinense 6 uma tentativa de preservar, através do registro escrito, a meméria do que era essa cidade, antes que fosse destruida. E significativa também a escolha do primeiro destinatario do livro. Benjamin o dedica a seu filho Stefan. Nessa comunicagao de pai para filho temos literalmente a transmissdo de um patriménio, um elo de continuidade de gerago para geragdo. A ligagao estabe- lecida pelo autor é dupla: por um lado, ele, naquela altura um homem de 40 anos, mergulha na meméria de sua infancia, reencon- trando ali o mundo cultural de seus pais, os valores que eles lhe ensinaram; por outro lado, essa volta no tempo recupera, em certo sentido, a maneira de ver da crianga, seu modo de olhar e de sentir, 08 seus valores. Sob esse Angulo, o livro se 18 como se fosse um relato de crianga para crianca, a margem da cultura dos adultos. Preservagiio e qualidade da memoria A postura benjaminiana de preservagao nao pode ser separada de sua filosofia da histéria. Num texto que escreveu no iltimo ano de vida, nas teses Sobre o conceito de histdria (1940), Benjamin diz: “Articular historicamente o passado (...) significa apoderar-se de uma lembranga tal como lampeja no momento de um perigo. Trata- se de flagrar uma imagem_do_passado tal como se apresenta 20 Sujeito histérico no momento_de. perigo,. de- modo. imprevisivel”- Eu queria comentar um pouco esse trecho com vocés. Quer dizer: a lembranga surge no momento de perigo, e 0 sujeito 48 PRODUZINDO O PASSADO B preservaciio deve conhecer esse perigo, deve compreender o presente para,compreender. o.passado.. No caso.da Alemanha de 1933, ter uma compreensio liicida, do fendmeno do nazismo. Nessa situacao, quem preserva nao é de modo algum um memorialista confortavel- mente reclinado na poltrona da contemplag%o, nem um arquivador que pudesse se contentar com a computagio mecdnica dos dados, ainda que tivesse 4 sua disposigdo um sofisticado equipamento de gravar, registrar e armazenar. Nao. O autor da preservagao € sujeito historico, quer dizer, um individuo exposto.e-vulnerdvel, mas tam: _ bém capaz de agir. Tessupde um projeto de construgiia do. @resente. “Com Proust, Benjamin aprendeu a diferenciar entre meméria yoluntaria e involuntéria. Na era da reprodutibilidade técnica, meios como a fotografia e 0 cinema, o gravador e o computador permitem ampliar espantosamente as dimensdes da meméria volun- thria. No entanto, segundo o autor de Em Busca do Tempo Perdido, esses recursos valem pouco ou nada, porque o acesso a esséncia do passado, a experiéncia, se da através da meméria involuntéria — “impregnada pelos tragos da situago a partir da qual ela nasceu”. Nesse ponto, Benjamin é menos taxativo. Segundo ele, tal acesso se daria também via cultos ¢ festas. Acho que, além disso, ainda poderia se acrescentar o trabalho da meméria emotiva que acom- panha a criagio artistica, por exemplo, o trabalho do ator. No mais, ‘a memoria nao aparece apenas como uma instancia voltada para 0 pasado, Devemos imaginé-la como uma relagio dindmica entre passado e presente. A meméria é um elemento muito enraizado no, presente. Benjamin se refere a Freud, em particular ao estudo Além do principio do prazer, no qual se postula uma divisio de trabalho, ao explicar o funcionamento do aparato psiquico: por um lado, o tra- balho da meméria, uma instdncia do inconsciente que registra tra~ gos durdveis; por outro lado, a consciéncia, que se recusa a gravar tragos duraveis. Isso para proteger 0 individuo contra um excesso de estimulos, mantendo assim a sua capacidade de interven¢do no mundo presente. Benjamin utiliza ainda um texto de um discipulo de Freud, Reik, em que a diferenca é mais explicita. Reik fala da meméria como instancia conservadora e da lembranga como instn- cia de destruigao. Hayeria ainda um terceiro tipo de meméria, ligado basica- mente 4 meméria involuntaria mas ndo ‘totalmente restrito a ela. Para um individuo cuja cultura sofre ameaga de destruigio, uma ie “sua memds ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org.) 4 A sente de resistencia € a memoria afetiva. Dela ¢ Que de. arma eficiente io da identidade, sua ou do seu 8TUPO; ela nde a eal nalidade. Isso pode ser ilustrado pela cena dey: niicleo de sua B foi em Flash Gordon: no momento em We o hergi ¢ filme, acho qu 4 . seus.inimigos tentam fazer é esvaziar 4~ preso, uma SS ee ligado a um computador €, muito tapi, todo o “filme” da sua vida — os instantes afetiva.. damente, passa fo! ara serem apagados. O mecanismo a Servigg mente Senn procura liquidar o individuo, esvaziando.g Sem cmbra involuntaria. No filme, a tentativa no da certo, smo Proust, Benjamin d4 importancia especial & “memérj, woluntaria dos membros”, ou seja, as imagens de meméria depo- sitadas nas mesmas posturas, nos habitos, nos Bestos. No caso do cidadao exilado, despojado de seus bens materiais, esse tipo de preservagao acaba sendo o tinico disponivel. . . O que se procura preservar, na Infancia berlinense, nao Sao, em primeito lugar, objetos ou artefatos, obras arquitetdnicas of urbanisticas, mas algo mais préximo da gente, uma meméria cor. poral e fisiondmica, uma meméria da Percep¢ao, do jeito de olhare de andar, das maneiras de comer, do despertar do sexo... Todas essas coisas naturalmente estiio ligadas a percepoa Lugares e objetos so evocados com afi 10 sinais topograficos e vasos Tecipientes da historia da sensibilidade e da formagao das emogoes. Patrimonio Toda a aprendizagem Sensorial-emotiva é muito marcada pelo mundo que os pais apresentam a crianga, uma vez que esta chega e €ncontra um mundo todo Pronto, arrumado. Como € que se apre- Senta esse mundo? mia da cidade natal de Walter Baye Qual € a fisiono: Poa Por volta de 1900, Berlim, capital da Prissia e da manha, uma cidade imperial, marcada pela é antes de mais nada nzollern, os reis guilherminos, Nas ruas do centro ‘omes de generais, faces 1d mPétio: a Coluna da Vitésig oo* (Onges © emblema do poder desse ‘oria, Construida em comemoracao da vit6- Franco-pru, ussiana de 1870/71, lorama, imperial” efetivamente é visto a partir de ” @ metrépole dos anos 20, completamente dife- PRODUZINDO O PASSADO 15 rente, com sua massa de operarios e da baixa classe média. Pensem em imagens como as do filme de Bergman, O ovo da serpente, principalmente as cenas inicial e final das massas descendo por escadarias. Em 1918, a monarquia foi derrubada e, na mesina cidade, que passa a ser capital da Republica de Weimar, a imagem da Coluna da Vitéria é substituida, na consciéncia dos alemaes, pela imagem da derrota na Primeira Guerra Mundial. No livro Contra- mdo, um texto também intitulado Panorama imperial dialoga com aquele outro, da Infancia berlinense. O autor se distancia de qual- quer visio idilica ou nostélgica do tempo do Império e registra a crescente pauperizagao da grande maioria da populagao alema du- rante a inflagdo de 1923. Tempos em que o cidadio comum chegava a carregar bilhdes de marcos nos bolsos para poder comprar um pacote de manteiga. A cidade descrita por Benjamin nao é a cidade inteira. Ele sabe disso. E a Berlim da classe abastada — Berlim “Oeste”, 0 que, numa tradugio livre, corresponderia 4 nossa “Zona Sul’. Dois bair- ros arborizados, Tiergarten e Charlottenburg, a oeste do centro administrativo e comercial. Zona residencial dos ‘‘filhos de comer- ciantes bem-sucedidos e altos funciondrios da Administragio”. Os apartamentos séo bem amplos, de dez a doze dependéncias, e Benjamin se recorda que precisava de um bom tempo para atra- vessi-los. A Infancia berlinense fornece a descrigio desse interior, do apartamento dos pais, do seu estilo de morar. E um mundo fechado, voltado para si, e téo importante que 0 autor utiliza passagens e mais passagens de seu livro para nos falar da topografia desse lugar e de suas descobertas. Tem alguns pontos de contato, poucos, desse mundo interior com o mundo I4 fora. Antes de mais nada, o quarto de esquina, uma construgao caracteristicamente berlinense, com uma ampla janela para espiar — como se fosse a partir de um camarote — 0 movi- mento da rua. Outros pontos de contato so a “loggia” (uma espécie de sacada ou “balcon”), o telefone e a porta, esta sempre trancada por fechadura e ferrolho. Dentro do apartamento, predominam o corredor, a sala de comer, a despensa e, naturalmente, o quarto da crianga. Referéncias muito importantes sio os méveis: a cama, a mesa de comer, 0 ptilpito de leituras, os armarios. S40 méveis tao s6lidos que “‘neles a morte ndo esta prevista”. Ha um descompasso evidente entre a durabilidade daqueles méveis e a duragao de uma vida humana. Vontade da burguesia de durar. ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org.) 16 re Baudelaire, mais tarde, Benjamin Volta a aios sob: : : a be ate burguése, em Perec da calpresenca dos esto. jos. Cada objeto é protegido dentro de um estojo, € os homens também vivem em seus apartamentos como dentro de estojos, 0 contato com o mundo lé fora beira o tabu. Temos ai um quadro de preservacdo “museal”, morta, a . Apesar de tudo isso, apesar dea douceur du foyer” ser vista sob um prisma tao critico, é ali que o escritor formou seus padrdes de percep¢ao e de sensibilidade, seus habitos e valores que, por sua yez, se incorporaram ao patriménio da nossa literatura atual. De repente, 0 que conta sto detalhes: “um olhar aparentemente so- nhador e voltado para dentro e que nao parece enxergar nem a ter- ga parte daquilo que efetivamente capta”; um andar também meio sonolento e vagaroso, mas que na verdade predispoe a crianca para com um pacto com as ruas,pela vida afora; um senso titil treinado nas incursdes noturnas até a despensa, onde a mio da crianga — entre agticares e améndoas, uvas-passas e arroz doce, geléia de morango, pao e mel — é a mao precoce do amante; um senso mimético adquirido na caca as borboletas (num lugar de recreio, nos arredores de Berlim) — quando a crianga se fixa a tal ponto na contempla¢ao do movimento e do planar das asas, que sé pelo prego da caca parece poder recuperar sua forma humana; também os atos falhos, gestos desajeitados como deixar coisas cair e quebra-las no cho, atos comentados pela mae com a referéncia a0 mitolégico pequeno Corcunda, o desajeitado “que manda lembran- gas”. E tem mais coisas. Tem o sentido das cores e dos chocolates, 0 hdbito de se lavar e de tomar sopa, olhando através do liquido até o fundo do prato, onde a crianga tenta decifrar a imagem em cima da Porcelana. Tem o saber se esconder e o saber esperar, o chegar atra- sado eo desejo matinal de ficar mais tempo na cama. E muito mais. Cultura como critica da cultura ou: O mundo dos contos de fada e o mundo da violéncia Falamos até aqui de um interior, de méveis, de um estilo d¢ morar — a isso corresponde todo um mundo imaginario criado pelos brinquedos da crianga Walter Benjamin e pelas suas leituras. apartamento em que mora é povoado por seres oriundos de contos de fada. Num texto chamado Caixa de costura, Benjamin fala de s04 PRODUZINDO 0 PASSADO 7 mie, fazendo com que 4 imagem dela se sobreponha a da mae de Branca de Neve, de quem a crianga se torna irmao: “Do mesmo modo como a mae de Branca de Neve, a rainha, estava sentada a janela enquanto nevava, também a nossa mae estava sentada com as coisas de costura perto da janela. E apenas nao cairam trés gotas de sangue porque ela utilizava no seu trabalho um dedal”. Como vocés percebem, o mergulho da crianga no mundo dos contos de fada nao é sentimental ou vago, mas a visio do mundo magico desemboca numa percepcdo muito precisa do cotidiano, quer dizer, a crianca tem essa propriedade de entrar no jogo e sair dele com perfeita naturalidade. Esse mundo de magia auténtica, esse mundo lidico, nao tem nada a ver com a romantizacao do mundo oferecido em nome dos contos de fada por parte dos adultos. O mundo auténtico dos contos maravilhosos no é idilico — é belo e cruel. E Benjamin, ao sentir que os adultos querem envolver o seu mundo com o véu da roman- tizagdo, recusa 0 idilio, rasga o véu. ~O_brinquedo é uma maneira de o adulto se relacionar com a crianga, e a resposta da crianga se da através de sua maneira de brincar. As criangas sao peritos no assunto “‘brinquedos”, e Benja- min fala de um brinquedo na casa da tia: um grande cubo de vidro acolhendo no seu interior a réplica de uma empresa completa de mineragio, com os mineiros e seus instrumentos, pas, furadeiras, martelos, os vagdes, os elementos de iluminacdo. Ali, Benjamin identifica o olhar idealizador que a burguesia da época “Bieder- meier” lanca sobre o mundo do trabalho manual. Olhar romanti- zado que mostra os meios e as condigdes de producSo pés-Revolugao Industrial sob a perspectiva miniaturizada de contos de fada. Fora dessa perspectiva, a crianga burguesa praticamente ndo tem possi- bilidade de conhecer a realidade do trabalho manual e das ma- quinas. ‘Apesar de o mundo dessa crianga ser calafetado por todos os lados — bairro, moradia, tipo de brinquedos, contos de fada, uma ideologia de confortoe de seguranga — existem frestas pelas quais ela percebe o mundo 14 fora. Mesmo dentro do apartamento, nao d& para ndo ver o trabalho das empregadas e dos porteiros, nao da para nao ouvir as batidas com que se limpam os tapetes no quintal, batidas essas qualificadas de “idioma (ou idioleto) da classe de baixo”. A aprendizagem social se faz também a luz da arvore de Natal, do anjo e dos enfeites de rua na época do Natal. Se eles tém como fungao “‘calafetar a cidade como se fosse um grande embrulho ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org.) 18 Natal”, um dia 0s fios do pacote rebentam, e o Mundo mos de Nata’ ; obreza. . seu eee dai, a crianga se dé conta de que esté “presa n, ym “bairro de proprietarios”, um gueto com Telacag ay 0 eee cidade. Dos que nao pe: tencem a sua classe Social, g; Benjamin: “Para as criangas da minha idade, os pobres s§ cristae enquanto mendigos”; quer oa oe os a da Zona § Lo resto da populacio é marginal, si mendigos, Prostitutas, crim. nosos — um mundo do qual € bom ndo se aproximar. Uma mu. danca qualitativa na aprendizagem da crianca ocorre no momento em que ela se da conta de que a pobreza tem a ver com o trabalho mal remunerado. “Nao esqueca de colocar o ferrolho” — essa Tecomendacio diria que se fixou na meméria da crianga é apenas um detalhe de toda uma ideologia da seguranga. E ao dirigir sua atenc&o para os mecanismos de conforto e de seguranga, ela percebe que esto exa. tamente ali os limites do seu mundo. Transpondo um pouco as observagées benjaminianas, eu perguntaria para quem quisesse es- crever a histéria cotidiana dos nossos anos 70 e 80, se se poderia deixar de falar das fechaduras e dos cadeados, das grades e dos sistemas de alarme, e das plantas espinhosas que impedem as pes- soas de sentarem nas muretas em frente dos prédios. O recado unissono de todos esses artefatos parece ser este: “Aqui no é 0 seu lugar”. Assim, a meméria da casa dos pais torna-se memoria de um lugar nao-habitavel. Preservacao e destruicio ou: O escritor de um mundo caduco A forma mais violenta em que se manifesta a critica da cultura em Benjamin € 0 desejo de destruicio — 0 exato elemento anta- Sonico para quem estd interessado na preservacao. Na crianga, tal desejo inconsciente. Por um lado, ela compartilha o temor incu cado pelos pais de que o mundo do crime que ronda a sua moradia Possa num dado momento fincar o pé na fresta da porta em que ® se nicet de passar o ferrolho. Por outro lado, toda essa ideologia &# Seguranga, do conforto e dos tabus criou um tal acimulo de medos? Pesadelos, bloqueios e limitagdes que a crianca estoura num gest? ie PRODUZINDO O PASSADO 19 revolta, De repente, sente-se atraida por esse mundo proibido e perigoso, e até procura aliados no mundo do crime. Diga-se de passa- gem que, na perspectiva da crianca, o mundo dos empregados, no fundo, comunica com o mundo do crime. Outra coisa: quando ocorre um crime ou acidente nas imedia- goes da casa, a crianca deseja estar 14, ela quer vé-lo com seus proprios olhos, “‘curtir” o espetaculo. E fica triste quando o perde, quando o crime ou 0 acidente ja se foram. Em seus sonhos e deva- neios vé de repente a casa invadida por malfeitores, que deixam 0 pai desarmado, impotente, e a mae — quem sabe — até passa a assumir um papel de camplice dos criminosos. Nao se trata de uma fantasia subjetiva. A percepco da com- plementaridade entre o mundo do conforto burgués e 0 mundo do crime esta longe de ser apenas uma elaboragio fantasiosa do indivi- duo Walter Benjamin. Trata-se de um sonho ou pesadelo coletivo que fez com que todo um género literario — que vocés conhecem bem: a narrativa policial — nascesse dessa cultura. “Aquele sofa é 0 lugar por exceléncia para a tia ser assassinada” — diz Benjamin num texto do livro Contramao sobre a moradia burguesa. De fato, a disposicao dos méveis vem a ser ao mesmo tempo a armadilha em que cai a vitima, O decorativo punhal de prata, pendurado na parede dentro de uma bainha ex6tica, sera a arma do crime, € 0 interior com seus cantos sem luz, as plantas, os tapetes e as deco- rages seré a moradia adequada para o cadaver. Me parece que a narrativa é um tipo de pesadelo fabricado sinteticamente para com- pensar a ma consciéncia de uma classe social, cujo conforto e luxo sdo construidos sobre uma distribuigao de renda fortemente desi- gual, sobre a exploragdo de uma outra classe, subpaga. ‘Ao confrontar suas fantasias de crianga com a fic¢do policial e toda uma literatura sobre 0 mundo do crime, Benjamin observa as posturas mais divergentes: em Edgar A. Poe, o inventor da narrativa policial, uma identificagao com os valores do detetive; em Baude- faire, uma simpatia com o ctiminoso. Entre os colegas escritores contemporaneos, Benjamin vé a obra de Déblin, o romance Berlim: ‘Alexanderplatz (1929), onde o retrato da cidade se da a partir da perspectiva de um malandro, um ex-presididrio. Sob uma outra uz, Pela andlise do Romance dos trés vinténs (1934), de Brecht, Benja- vrin faz acritica da linhagem da literatura do apache, pondo a nu a ideatizagdo burguesa do criminoso. Despojado de sua falsa aura Contestatéria, o mundo do crime € desmascarado como aliado do establishment. awe » ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org,) jante desse quadro — o de uma “cultura” Visceral, oni coat pera —podemos nos perma pe para qué? O desejo de destruigao le Benj min crianga transforma. se no adulto em algo conscientemente assumido, haja vista textos como Belo terror ou O cardter destrutivo. Eles desembocam, Sobre sugestées politicas, como sabotagem, greve geral, guerra civil, oe lugdo. fen No entanto, o exemplo que Benjamin deu no foi o da Praxis politica nesse sentido. Sua contribuicao mais valiosa é essencial. mente critica. A lucidez benjaminiana — como se yé Claramente num confronto de sua obra com o retrato futurista e bonachao da mesma Berlim oferecido por Déblin — consiste em ter interpretado a metrépole moderna sob o signo da caducidade. Na esters aa Tableaux parisiens, de Baudelaire. Lé, a primeira metrépole criada no continente europeu pela Revolugdo Industrial — Paris, “a capital do século XIX" — é vista da perspectiva das vitimas do capital, Homens ¢ mulheres transformados em mercadoria, marginais, ve. Ihos, intiteis de toda espécie, um “lixo humano”, como diz Baude- laire no poema Les petites vieilles. Na esteira também da Cartilha Para os habitantes das grandes cidades, de Brecht, onde lemos os versos apocalipticos: “Destas cidades restaré/ Quem por elas Passa: © vento”. O desejo de destruigao visa um mundo caduco onde as coisas esto deformadas e fora de lugar. Devemos perguntar em que medida esse tipo de destruigao difere da destruicao barbara, a qual efetivamente aconteceu, de 1933 e sobretudo de 1939 em diante, No caso de Benjamin, trata-se Sempre de uma destruigao imaginaria, critica. A critica, esclarece ele num texto de juventude sobre a vida dos estudantes, “serve, através do conhecimento, a libertar o futuro a partir de sua forma deformada do presente”. Tal tipo de destruigo me parece ser Parente da destruigio hidica que observamos nas brincadeiras da crianca. A crianga sente um forte prazer de destruir o que ela Prépria construiu. Vocés todos conhecem isso. Ora, tal destrui¢do no é uma finalidade em si. A crianga destr6i para se libertar de alguma maneira daquilo que jé foi feito, das amarras-de coisas que cla ja sabe, Ela quer transpor os limites j4 alcangados, entto, ela destréi “numa boa”, destr6i para construir de novo. PRODUZINDO 0 PASSADO 4 Preservacao e “os que nasceram depois de nés” Até aqui, o comentario da Infancia berlinense deve ter pintado para vocés um mundo bastante sombrio, talvez em demasia, mas eu queria lembrar que o livro é fruto de “tempos escuros”, como dizia Brecht. Por outro lado, como vimos no inicio, é um livro dedicado por um pai para o seu filho. Como é que é visto o futuro? Onde esta a dimensao esperanga, se é que ela existe? Num trecho da Infancia berlinense, Benjamin fala dos “‘tragos do futuro”, de “lugares profé- ticos” da cidade. Nesses lugares, diz ele, “parece que tudo o que esta por vir é, no fundo, algo passado”. Como podemos esclarecer essa passagem enigmatica? Quero tenta-lo. O lugar de que Benjamin fala é 0 Jardim Zoolégico. Para vocés terem uma idéia — nao sei se alguém aqui visitou alguma vez a cidade de Berlim — a parte central da cidade, a que divide Leste e Oeste, Norte e Sul, se chama Tiergarten, Jardim dos Animais. Dentro desse parque imenso, de varios quilémetros quadrados de extensao, se localiza 0 Zoolégico. No texto inicial da Infancia berli- nense, intitulado Tiergarten, ha uma superposicao de imagens da capital alema e da floresta. Como é que o retrato selvagem, animal, arcaico do centro de Berlim se relaciona com a idéia do seu futuro? ‘Aqui eu queria fazer uma digressio. Quero falar de Berlim por volta de 1945. Lembro-me de passeios que fiz com a minha mae pelo centro da cidade, logo depois da guerra. O centro estava total- mente em ruinas. Perto do Zoo, tinha os restos impressionantes de. um bunker, um abrigo antiaéreo cujo teto e paredes tinham uma espessura de metros e metros de concreto armado. (Do outro lado do Tiergarten também tinha um bunker, ali era o quartel-general do Fuhrer, o ponto estratégico mais visado pelos bombardeiros e exér- citos dos aliados; é perto da Potsdamer Platz, antigamente a praca mais movimentada da cidade, e hoje em dia, um lugar de uma tranglilidade absoluta: j4 nao se vé mais 0 asfalto, a grama tomou conta, 14 moram insetos e péssaros, por la perto também passa 0 Muro, um lugar deserto). Mas eu estava falando do abrigo antiaéreo para a populagio civil. Hoje em dia ja nao existe mais. Ele foi cons- truido avangado para dentro do terreno do Zool6gico, como se os homens desesperados, ameagados de extingo, quisessem procurar reftigio junto aos animais. E esses, minha mae me contou, quando as bombas rebentavam suas jaulas, as feras andavam soltas na rua ea policia teve que atirar nos ledes, enquanto que as cobras vene- n ANTONIO AUGUSTO ARANTES (org,) nosas e demais répteis perigosas, ao sairem de seus recint se congelavam quase que na hora no rude inverno p, 05 trop, Voltando para o livro de Benjamin: no Zoo, que é no erlinense, cidade, ele fala do seu encontro com uma lontra, da visita a ‘da desse animal. A lontra mora “na regidio mais abandonada a dim”, num desses lugares “mais antigos que as termas da A, hee dade”, um “canto profético”. Eu queria agora traduzir algae ‘ati. chos desse texto A lontra. E um lugar engradado, com uma ee uma bacia de 4gua em forma oval. La, permanece a crianga “ en - rando horas ¢ horas diante da profundeza preta e insondavel p, ‘ ver se descobre a lontra”. Quando isso acontece, é “sé por um Stine de segundo, logo o corpo brilhante desaparece de novo dentro da noite molhada”. “Quando eu olhava a 4gua daquele viveiro, sempre tive a impressio que as chuvas de todos os bueiros da cidade viessem desaguar nesse viveiro para alimentarem 0 seu animal. Pois era um animal mimado, e aquela gruta, aquele viveiro, era antes um templo que um refigio. Era o animal sagrado da chuva.” A crianca nao sabe se a lontra nasceu daquelas 4guas ou se apenas delas se ali- menta. Sempre a lontra andava muito ocupada, e a crianga “pode- ria ter ficado ali dias e dias, com a cabeca grudada nas grades para olhar 0 bicho”. Quanto mais longo um dia de chuva, mais ela gosta. Nao espera pelo fim da chuva, mas deseja que chova mais ¢ mais, sempre mais. Fica no apartamento com o rosto grudado no vidro da janelae, na verdade, nessa hora, ela “est 14, no viveiro da Jontra”. Mas s6 0 percebe quando est4 na préxima vez, de fato, na frente do viveiro do bicho: “Af, tive de esperar muito tempo até aparecer aquele corpo preto brilhante para logo depois mergulhar, indo atrés de suas tarefas urgentes”. Bem, essa visita a lontra é uma imagem alegorica. A crianga s¢ desloca da moradia dos homens para a moradia dos animais. Ela, que se sente presa, procura o animal preso, e fica 14 com a cabega inclinada contra as grades, identificando-se com ela. Sente fasci- nio pelo bicho e espera horas e horas para flagrar a sua presenga apenas “num timo”. A aparicao do bicho é um momento de epi- fania e a sua moradia, um lugar mitico, pois quando chove, parece que “as chuvas de todos os bueiros da cidade viessem desaguar ness? Viveiro para alimentarem o seu animal”. Ao falar no Trabalho das passagens sobre a Paris a Benjamin cita um trecho do romance de Vitor Hugo, age a aah © Iengol de Agua subterranea debaixo da cidade. a le Berlim, & evocado esse lengol de Agua através da moradia cais, mais antiga, PRODUZINDO O PASSADO B lontra. E 0 que hé de mais arcaico, pré-histérico, primitive. A Agua 60 elemento dentro do qual se cria a vida, e a lontra — “animal sagrado das chuvas” e em comunicagio com um mitico Deus da Cidade, de que fala Benjamin — mora no meio desse ambiente fecundo. A crianga escolhe a lontra como seu animal totémico. Perto dos animais totémicos, os membros da tribo se sentem protegidos. Com relagao ao mundo dos pais e do patriménio, a visita da crianca ao animal totémico representa um ato de asticia e de intacto poder mimético. Pois a crianga passa para o outro lado das grades e de 14, criatura presa e livre, volta para os pais o seu rosto puro e seu corpo nu de bicho. E “na casa da lontra”, além de toda a linhagem dos ancestrais, num tempo mitico, anterior ao dos homens, que ela revive seus primeirissimos momentos de vida: nascimento e pré-nas- cimento, tangendo tempos extremamente remotos, de inocéncia selvagem, de fecundidade, o segredo da vida. Infancia berlinense por volta de 1900, ou seja, por volta de 1933, 60 relato de um pai que, no ato de escrever, se transforma em crianga. O patriménio que ele transmite se chama infancia, a in- fancia de uma crianga que se transforma em lontra. A partir dai, podemos voltar a interpretar aquela passagem enigmatica sobre 0 lugar “onde tudo o que est por vir 6, no fundo, algo pasado”. O lugar em questo transmite uma imagem do maior bem que temos a preservar: o pulsar da vida, o desejo de vida. Texto Eunice Ribeiro Durham* Foi com grande satisfagio e, ao mesmo tempo, com certo temor que aceitei o convite para participar deste semindrio. Satis- fagio pela oportunidade de iniciar um contato mais direto com os técnicos do CONDEPHAAT. E temor de nao ter muita coisa nova a dizer, uma certa sensagao de repetir coisas que todo mundo ja sabe. O que me da uma certa confianga, neste momento, é a lem- branga de um conselho que recebi, muito anos atrés, do meu (*) Eunice Ribeiro Durham 6 professora de Antropologia da Universi- dade de So Paulo (USP), membro do CONDEPHAAT e autora de A caminho da cidade, Ed. Perspectiva, e de outros livros e artigos.

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