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Há muito tempo que se está de acordo que só a crise econômica não pode
explicar esta situação. O verdadeiro problema está noutro lado: não são os tempos que
são maus, é a alma dos homens que está doente. Como um cosmonauta na sua cápsula
espacial, o homem para manter o equilíbrio, apega-se a tudo o que lhe aparece.
Quem nos ensinará a esperança? Onde encontrar um modelo, algo que nos
preceda através das trevas e das angústias da morte? Há nalgum lugar um Doutor da
Esperança?
O drama na sua alma viveu-o no silêncio do Carmelo. Nunca fez alarde de ser
pessoa em quem fixar-se. Na sua vida não há nada de teatral, nem patético, nem
espetacular. Nem sequer há matéria suficiente para escrever uma nota necrológica
que possa suscitar interesse nas leitoras de outros Camelos, na opinião das irmãs.
Teresa escalou o monte do seu Carmelo no anonimato. Contentava-se com ser, não
queria aparentar. Deixou que fosse Deus a descobrir o segredo do seu pequeno
caminho. Era, e continuava a ser, a mais pequena. Contudo, os seus sonhos eram
imensos e o seu olhar sem limites. No pequeno Carmelo de Lisieux, abraçava toda a
Igreja, todos os países de missão, todos os tempos e todos os homens, santos e
pecadores. Porque quem anta, abraça tudo. A medida do amor é que é sem medida,
segundo a bela expressão de São Bernardo.
Teresa é, ainda, uma santa da fé: por meio das espessas trevas das suas noites,
aproxima-se da palavra desnuda de Deus. É igualmente uma santa do amor, pois,
conforme as suas próprias palavras, escolheu o amor para ser assim o coração da Igreja.
Este belo livro sobre Teresa é como uma árvore de Natal. No tempo de Inverno
em que a nossa época vive, lembra-nos que a natureza continua verde e que está à espera
das cores da Primavera e da abundância do Verão. Folheai este livro, olhai-o, lede-o:
tem as cores da esperança.
APRESENTAÇÃO
É esta a razão pela qual se deve dar a palavra a Teresa. Um dos numerosos
meios, assim o esperamos, será este álbum que procura situar, por meio da imagem e da
exposição escrita, a experiência e o pensamento da jovem santa na sua evolução e
ambiente históricos.
Estimados leitores, que Teresa, por meio das páginas que tendes nas vossas
mãos, continue a comunicar-vos a sua palavra de graça, tomando mais viva a
realidade e a beleza de Jesus, do qual quis honrar a humildade da sua infância e a beleza
do seu rosto, resplandecentes de Misericórdia e de Fidelidade.
CONRAD DE MEESTER
GIROLAMO SALVATICO
SILVANO GIORDANO
Carmelitas.
As siglas remetem para as obras descritas na bibliografia que está no fim do volume.
Or : Prières (Orações).
CAPÍTULO 1
Alençon, rua de São Brás, número 36. Na quinta-feira, dia 25 de Junho de 1874,
Zélia Martin acabava de receber a visita das suas trabalhadoras. É a chefe da sua "fábrica
de renda de Alençon" e, todas as quintas-feiras,quando as bordadeiras vão ao
mercado semanal e levam o trabalho feito, pequenos pedaços de 15 x 20 cm, Zélia tem
que enlaçá-los às pressas, conforme o pedido que lhe é feito pelas lojas parisienses.
Para descansar, Zélia, tão hábil com a pena como com a agulha, escreve às suas
filhas mais velhas, Maria e Paulina, colegiais no convento da Visitação de Le Mans,
onde é freira a sua única irmã, Maria Luísa Guérin.
Cinco filhas, é demasiado. Mas, demasiado pouco! Como Zélia teria gostado de
conservar os seus dois filhos e as suas duas filhas que a morte arrancou ao seu
amor maternal. Das cinco que lhe restam, Maria e Paulina têm, respectivamente, catorze e
treze anos e prometem muito. Leônia, a terceira, tem onze anos, de temperamento
bastante arisco e obstinado, causa-lhe preocupações contínuas. A seguir, vem Celina,
de cinco anos, e Teresa, a mais nova, de ano e meio, a jóia do seu coração.
Como poderá compartir Teresa esta inquietação? Não está ali o seu papai, o
seu "rei", do qual, a cada volta do balanço, sente a sua mão forte que, com demasiada
doçura, a empurra para a frente? E, opa! Mais alto!
Assim é ela, a pequena. Sempre mais alto! Um dia comparará a santidade com o
cume de uma montanha. Mais alto! Até ao céu, se é possível! Porque nesta casa da rua
de São Brás fala-se frequentemente do céu. É o objetivo formal das suas vidas. Os
Martin têm, em definitivo, os costumes dos espirituais realistas.
Luís sorri ao ver a alegria e a confiança da criança, a nona filha... Como partilha
o que sua esposa escreve sobre a pequena nas suas longas cartas a Maria e a Paulina, ou à
freira de Le Mans e ao seu irmão Isidoro Guérin,farmacêutico em Lisieux. "Parece muito
inteligente... Será bonita e já é engraçada" (CF 117) "Cada dia é mais engraçada, está a
balbuciar desde a manhã até à tarde" (CF 118). "É muito inteligente e tem conversas
muito agradáveis. Já sabe rezar a Deus" (CF 130).
Mais alto! Por fim, a pequena Teresa cansa-se. Pois nunca se chega tão alto
como ela queria... E, de repente, diante dos olhos do seu coração "amável e sensível"
(Ms A 4v) abre-se outro mundo: a sua mamãe.
Luís, o peregrino
Ela tem razão, pensa Luís, ao procurar a sua mãe! Que esposa... Como poderia
tê-la imaginado há dezesseis anos! Tinha então trinta e cinco anos e não pensava casar-
se, pois encontrava-se bem como celibatário.
Luís Martin é conhecido, sobretudo, pela descrição que dele fez a sua filha
Teresa, nasua autobiografia: um velho venerável e muito piedoso, que adora as
suas filhas, um pouco sonhador e que vive das suas rendas. Este é "Luís Martin II".
Luís Martin I, pelo contrário, é o jovem que com perseverança e suave constância
descobre o seu caminho, elabora pacientemente um projeto e ganha um lugar na
sociedade. Aos dezenove anos, abandona Alençon e passa longos períodos como
aprendiz de relojoeiro com a família ou em casa dos seus amigos: um ano
em Rennes, quatro em Estrasburgo, três em Paris, onde vive a turbulenta
revolução de1848, com a abdicação do rei Luís Filipe e a eleição do presidente da
república Luís Napoleão Bonaparte.
"Da idéia à sua realização, para mim não há muita diferença", escreverá mais
tarde ao seuamigo Nogrix. Meditativo, profundamente religioso, leva consigo o
sonho de abraçar a vida monástica — inclusive priva-se durante toda a sua vida do
gosto de viajar —.Aos vinte anos, visita o mosteiro do Grande São Bernardo; aos
vinte e dois, volta ali para solicitar a admissão entre os cônegos de Santo Agostinho.
"Pensei sempre — dirá mais tarde à sua filha Celina — que, nos seus desejos de vida
religiosa, com a sua eleição do Grande São Bernardo para viver nas alturas, longe
dotumulto das cidades, não lhe era estranho a atração do perigo para acudir em ajuda
dos viajantes em dificuldades nas neves".
Luís não foi recusado pelos monges; foi lhe pedido apenas que completasse
os seus estudos. Começa, efetivamente, a receber aulas de latim com um professor
particular. Depois de um ano e meio abandona estes estudos difíceis. Concentra-
se totalmente na sua futura instalação como relojoeiro. Aos vinte e sete anos, em
Novembro de 1857, compra em Alençon, no número 15 da rua da Ponte Nova,
uma casa onde instala uma oficina e venda, à qual em breve acrescenta uma
montra de joalharia. Leva os seus pais, já idosos, para junto de si, pois já
haviam perdido três filhos, de nove, de vinte e cinco e vinte e seis anos.
Mas faz sem consultar a sua mãe, inquieta ao ver que o seu filho
continua solteiro. É ela quem lhe propõe casar-se com Paulina Romet, proposta
seguida de um não categórico devido às idéias demasiado "liberais" da família
Romet, como explicará Celina? Seja o que for, na vez seguinte Fanny Martin
teve mais êxito. Na escola de renda de Alençon que ela freqüentava, vê Zélia
Guérin, o diamante de quem fala insistentemente ao seu filho joalheiro.
Zélia, a generosa
Quase vinte anos mais tarde, uns dias depois da morte da sua irmã
visitandina, a seu quem visitaram no mesmo dia do seu matrimônio e à qual quinze dias
depois aludira ao seu "segredo", Zélia recorda ao escrever à sua filha Paulina: "Teu
pai tinha gostos semelhantes aos meus, julgo mesmo que o nosso afeto recíproco tinha
aumentado por isso. Os nossos sentimentos eram sempre em uníssono e serviu-me
sempre de consolação e apoio. Mas quando tivemos os filhos, as nossas idéias mudaram
um pouco; não vivamos senão para eles, eram a nossa felicidade, nunca a encontramos
em nós mas neles.
Enfim, nada nos causava pena; o mundo não era gravoso para nós; por isso
desejava ter muitos, para encaminhá-los para o céu" (CF 192).
Zélia gosta dos seus filhos. Teresa, a nona, tinha sido a grande bem-vinda. Quinze
dias antes do nascimento da menina, a feliz mamãe confidenciava a sua cunhada: "Agora,
todos os dias, estou à espera do meu anjinho... Se Deus me der a graça de a poder
amamentar, será um prazer criá-la. Amo as crianças com paixão, nasci para ter filhos" (CF
83).
Esperar a pequena Teresa é como ser portadora de uma música profunda. Mãe e
filha vibram em consonância, com dificuldade, se atreve a confidenciar à sua
cunhada: "Enquanto a trazia comigo, dei-me conta deuma coisa que nunca me tinha
sucedido com os meus outros filhos: quando eu cantava, ela cantava comigo... Conto-to,
ninguém poderia acreditar em mim" (CF 85). Três anos depois escreverá: "Que feliz
sou de a ter! Julgo que lhe quero mais que a todos os outros, sem dúvida porque é a
mais pequena" (CF 158).
Ter filhos para os amar consolou em grande parte a Zélia da sua própria infância
infeliz. Não se comportará com os seus filhos como sua mãe se comportou com ela...
Três anos depois de se casar, Isidoro Guérin, militar, depois, polícia, e sua esposa Luísa
Joana Mace, filha de um torneiro..., tiveram uma primeira filha Maria Luísa a futura
visitandina. Dois anos e meio mais tarde nasceu Zélia, no dia 23 de Dezembro de 1831,
quase
bebê natalício. Nove anos e meio depois, nascerá o filho menor, Isidoro. Todos os
filhos nasceram em Saint-Denys-sur-Sarthon, a doze quilômetros a noroeste de
Alençon. Mas em 1844, a família muda-se para Alençon, rua de São Brás 36, onde
nascerá a pequena Teresa.
Não há dúvida: Zélia sofreu muito com esta "vontade exigente" dos esposos
Guérin. "Embora o desejasse ardentemente — refere a sua filha Celina — nunca, na sua
infância teve bonecas, nem uma sequer. As freqüentesenxaquecas que sofria
aumentavam este penoso ambiente". É evidente que a mamãe Guérin tinha mais
preferências pela sua filha mais velha e pelo seu filho Isidoro do que por Zélia.
As intuições
É assim como Zélia tem o dom da intuição , sem o poder explicar. Na véspera
dos seus vinte anos faz uma novena à Virgem Imaculada para se orientar na eleição de
um trabalho profissional: dá-se conta subitamente com clareza, neste dia 8 de
Dezembro de 1850, como se lhe fosse ditado à Mãe da família de Nazaré . "Manda
fazer ponto de Alençon"... O dia 8 de Dezembro será sempre para ela "um dia
memorável: obtive duas vezes grandes graças neste dia", escreve (CF 1 6 ) , " é p a r a
m i m u m a g r a n d e f e s t a " ( C F 147).
Uma vez casados, Zélia transfere a sua "oficina" para a casa do seu marido, rua
da Ponte Nova 15, onde os pais Martin habitam o andar de cima. Pelo seu trabalho
laborioso, coroado de êxito, encontram-se já bastantedesafogados. Luís possui a casa
com o jardim, bem como a pequena propriedade do "Pavilhão"; além disso, dos
fundos do comércio da relojoaria contribui com 11.000 francos (que correspondem a
uns 75.000dólares americanos nos princípios de 1995). Zélia leva como dote e como
fruto das suas poupanças pessoais cerca de 5.000 francos.
Contudo, é o momento para a vida que Zélia, pela primeira vez, com emoção,
sente que se abre nela. No dia 22 de fevereiro de 1860 nasce a pequena Maria Luisa
(chamada como a irmã de Zélia que, três meses depois, professou na Visitação).
Na vida quotidiana a pequena chamar-se-á "Maria", por abreviação. Os nove filhos de
Zélia levarão como primeiro nome, o nome de Maria. No dia 7 de setembro de
1861, nasce Paulina. Depois, no dia 3 de junho de 1863, Leônia. Estas três primeiras
filhas, as quais pôde criar pessoalmente, chegarão aos 80, 90 e 78 anos,
respectivamente.
Insistimos um pouco mais sobre o amor de Zélia pela menina ausente. Zélia
conta no dia 12 de janeiro de 1865: "A menina Helena cresce muito, é bela como
um anjo. Fui vê-la no primeiro dia do ano, digo-te que muito em segredo; penso
continuamente nela. A ama é boa e cheia de saúde" (CF II).
No dia 5 de março: "Fui ver na terça-feira passada a minha filha Helena. Saí sozinha
às 7 da manhã, por causa do vento e da chuva que me acompanharam à ida e à
volta. Imagina o meu cansaço durante o caminho, mas sustinha-me o pensamento de que
em breve ia ter nos meus braços o objeto do meu amor. A menina Helena é uma bela
jóia, é bonita como um primor!" (CF 12).
"Fui ver, há quinze dias, a que está a ser criada fora; não me lembro de nunca
terexperimentado um sentimento de felicidade semelhante ao momento em que a tomei
nos meus braços, e ela me sorriu tão graciosamente, que julgava ver um anjo; enfim,
não o posso exprimir; julgo que até agora não vi e nunca verei uma filhinha tão
encantadora. A minha Helenazinha, quando terei a alegria de a ter totalmente? Não posso
imaginar ter a felicidade de ser a mãe de uma criatura tão deliciosa!... Oh, bom! Não me
arrependo de estar casada" (CF 13).
No dia 28 de abril de 1869, nasce o sétimo filho, Celina (a futura irmã Genoveva).
Porém, dor dilacerante a de Zélia e a de Luís, no dia 22 de fevereiro de 1870 morre
inesperadamente a pequena Helena, com cinco anos de idade e quatro meses. "Enquanto
a sustinha, a sua cabecinha caiu sobre o meu ombro, os seus olhos fecharam-se, em
cinco minutos já não vivia... Isto causou-me uma impressão que nunca esquecerei. Não
estava à espera deste desenlace brusco, nem tampouco o meu marido. Quando entrou e viu
a sua pobre filhinha morta, pôs-se a chorar gritando: "minha Helenazinha, minha
Helenazinha!". Depois, juntos, oferecemo-la a Deus (...). Vesti-a e coloquei-a no
caixão, julguei que ia morrer, mas não queria que os outros lhe tocassem" (CF 52). "Não
há um minuto que não pense nela (...). Enfim, está no céu, mais feliz do que aqui embaixo,
mas quanto a mim, parece-me que desapareceu toda a minha felicidade" (CF 54).
"Ficaria tão contente de ter outra”, escreve Zélia nove meses depois desta morte da
qual "jamais se consolará" (CF 66), e esta outra filha chamar-se-á "Teresa, como a
minha anterior menina" (CF 85).
E as provações não acabam... Até nos últimos meses da sua vida, Zélia terá
que preocupar-se do caso da sua Leoniazinha, a filha diferente das outras, menos
capacitada, o patinho silvestre que foge de todo o bomconselho, Leônia a original, a
inesperada que mais tarde, depois de três fracassos de vida religiosa, chegará a ser
religiosa na Visitação, onde será o modelo acabado do "pequeno caminho" que
Teresa lhe ensinou.
E eis que em 1872 esperam um nono bebê, o primeiro que nasce na casa da rua
de São Brás, diante da prestigiosa Prefeitura, onde Teresa irá mais tarde brincar
com Genny Bechard, "a filha do governador" (Ms A 9v), do mesmo modo que os seus
primeiros passeios em família a conduzirão à igreja paroquial de Nossa Senhora, às
clarissas da rua da Meia Lua e à estação da qual partirão e voltarão Maria e Paulina,
colegiais na Visitação de Le Mans. Um pouco mais tarde as excursões familiares orientá-
la-ão para as povoações dos arredores e ao "Pavilhão", onde o papai se distrai com a
pesca no Sarthe enquanto Teresa se interessa pelos morangos... Mas não nos antecipemos
muito.
A florzinha ameaçada
Que felicidade quando no dia 2 de janeiro de 1873, às 23:30h., dois anos e meio
depois da morte de "Melânia Teresa", nasce esta outra "Teresa", que chega como um
dom, fruto tardio do seu amor conjugal. Zélia, que está no princípio dos seus quarenta e
dois anos ("a idade em que se é avó", CF 83) quando Luís tem já cinqüenta, já não
esperava "ter mais filhos" (CF 66). Dom e, ao mesmo tempo, "surpresa,
porque esperava um menino. Tinha-o imaginado a partir dos dois meses, porque
sentia muito mais forte que os meus outros filhos" (CF 84). Como Zélia teria
rezado para que o seu filhinhochegasse a ser um bom sacerdote, um
bom missionário...
A camponesa de Semallé
Luís "esta impaciente por ter a Teresinha em casa" (CF 114). Pela segunda vez, a
filha esperada intensamente. Zélia vê tudo azul e branco, como para um novo nascimento e
um novo batismo. "Já lhe tenho preparado um vestido azul celeste, com uns
sapatinhos azuis, um cinto azul e uma linda capa branca; será encantador. "Alegro-me
antecipadamente de vestir esta "boneca" (CF 115). Teresa volta definitivamente para casa no
dia 2 de abril de1874: "criança encantadora". "muito meiga e muito avançada para a sua
idade" (CF 116), "admira-me a sua boquinha" (CF 117).
Com o passar dos anos, comprova que o seu "orgulho" natural e o seu "amor ao
bem" inato, que a fizeram reagir positivamente aos conselhos pedagógicos recebidos,
transmitiam uma ação secreta de Jesus, que "soube tirar proveito de todos os seus defeitos
que, dominados a tempo, lhe serviram para crescer na perfeição" (Ms A 8v).
Admiráveis os testemunhos de Teresa em relação aos "anos cheios de sol" da
sua infância: "A virtude tinha encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas
disposições em que estou agora, tendo já um grandedomínio sobre as minhas ações". A
santa acrescenta que "tinha adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando
lhe tiravam o que era dela; ou então, quando era acusada injustamente, preferia calar-se e
não se desculpar, o que não era mérito seu, mas virtude natural" (Ms A 11v). As
exceções confirmam a regra.
O sol se põe
Levar-nos-ia muito tempo o relato da doença que levou Zélia à morte. Desde
há mais de doze anos que sofre de um caroço no seio, que degenerou lentamente
num câncer extremamente doloroso. Consulta o médico e toma consciência
bruscamente da cruel verdade da sua morte iminente e da inutilidade de uma
intervenção cirúrgica. A família fica consternada. Zélia quer viver ainda alguns anos a
mais para acabar o seu trabalho de educadora, sobretudo por causa de Leônia, a filha das
suas preocupações intermináveis, na qual, contudo, nota grandes progressos. Vai em
peregrinação a Lourdes com Maria e Paulina, mas o milagre não serealiza.
Com realismo e abandono, a mamãe, compreende que está convidada para outra parte
por outra Mamãe: "Que quereis? Se a Santíssima Virgem não me cura, é porque
se cumpriu o meu tempo e Deus quer que eu descanse noutro lugar diferente da terra"
(CF 217). Teresa anota em silêncio "todos os pormenores da doença" (Ms A 12r). No dia
28 de agosto de 1877, Zélia torna-se a "nossa mãezinha no céu" (Ms A 12v). A sua filha
da terra sofrerá terrivelmente a sua falta.
A terra na qual Zélia e Luís semearam terá que ser ainda durante muito tempo
regada pelas lágrimas da dor e pelo orvalho da graça, antes que a menina Martin chegue a
ser Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.
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Quando João Maria Marta Feretti recebe o nome de Pio IX em 1846 para suceder
a Gregório XVI na Sé de Pedro, a França católica continua a sofrer a onda de
anticlericalismo provocado em 1830 e particularmente virulento nas províncias. O ano
de 1846, é igualmente marcado pelo êxito eleitoral da parte dos partidos católicos, apesar
do fracasso dos projetos sobre a liberdade de ensino. A monarquia de
Julho, contemporânea da revolução industrial e da aceleração do progresso técnico,
testemunha a ascensão da grande burguesia da empresa e da constituição de
um proletariado lamentável. O desenvolvimento de um catolicismo liberal e do
movimento socialista vai favorecer um programa social e democrático dos primeiros
"católicos sociais". L'Ere nouvelle, jornal dos republicanos católicos, será o lugar de
colaboração de um Frédéric Ozanam (1813-1853), que desde 1833 se dedica, juntamente
com outros, a praticar a abnegação de si mesmo e o amor ao próximo por meio
das"Sociedades de caridade", conhecidas pelo nome de"Sociedade de São Vicente de
Paulo", e de um Henri Lacordaire (1802-1861), famoso pregador dominicano e chefe de
fila do catolicismo liberal com Charles de Montalembert (1810-1870). Esta corrente,
separada de Felicité de Lamennais (1782-1854) e deL'Avenir desde 1832, move-se
paralelamente à de Philippe Buchez (1796-1865), inspirador do socialismo cristão e
diretor do jornal católico L'Européen.
No final de 1871, depois de Paris ter aceitado o armistício, acossado pela fome
e esgotamento, aseleições dão uma grande maioria aos conservadores agrupados em
torno de Luís Afonso Thiers (1797-1877). Eleito na Assembléia nacional, que a partir
de12 de fevereiro de 1871 se reúne em Bordéus, Thiers é nomeado chefe do poder
executivo da Republica no dia 17 de fevereiro, e forma um governo que reside em
Versalles. A política praticada por Thiers, ao não solucionar a reorganização
administrativa do país, provoca a ira dos parisienses cuja situação econômica e social é
catastrófica. As desonestidades do poder no cargo provocam a insurreição parisiense e a
formação do contra-poder revolucionário da Comuna de Paris. Foi duramente reprimida
durante a "Semanasangrenta" (22-28 de maio). Os católicos ficam desconcertados pelo
violento movimento anticlerical que levou os partidários da Comuna a fuzilar o
arcebispo de Paris, monsenhor Georges Darboy, juntamente com outros cinqüenta e três
membros do clero. Mais ainda, quando a manifestação de dez mil franco-maçõns, que
tinham chegado no dia 29 de abril de1871 para manter a Comuna e para animá-la a
"aniquilar o infame". Nomeado presidente da Republica, Thiers é derrubado no dia 24 de
fevereiro de 1873 pela maioria conservadora da Assembléia e substituído por Mac-
Mahon (1808-1898) depois da tentativa abortada da restauração da monarquia.
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A "RENDA DE ALENÇON"
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GENEALOGIA DE TERESA
A. Ramo paterno
Avó: Maria Ana Fanie Boureau, nascida em Blois no dia 12 de janeiro de 1800,
falecida em Valframbert (Orne) no dia 8 de abril de 1883.
PS: Teresa não conheceu, pois, a nenhum dos seus tios e tias do ramo paterno, e
a sua avó só até aos seis anos.
B. Ramo materno
PS: Todos os filhos Martin nasceram em Alençon (rua Ponte Nova, n. 15, exceto
Teresa, na rua de São Brás, n. 36); têm todos como primeiro nome Maria.
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"Como era feliz nessa idade! Já começava a gozar a vida; a virtude tinha
encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que
estou agora, tendo já um grande domínio sobre as minhas ações. Ah! como passaram
rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância, mas, que doce rasto
deixaram na minha alma! Recordo-me com satisfação dos dias em que o papai nos
levava ao Pavilhão; no meu coração ficaram gravados os mais pequenos
pormenores... Recordo sobretudo os passeios de domingo, em que a mamãee nos
acompanhava sempre... Sinto ainda as impressões profundas e poéticas que me
brotavam na alma à vista dos campos de trigo, esmaltados de escovinhas e flores
campestres. Gostava já dos largos horizontes... O espaço e os abetos gigantescos, cujos
ramos tocavam a terra, deixavam no meu coração uma impressão semelhante à
que ainda hoje sinto à vista da natureza... Muitas vezes, durante esses longos
passeios, encontrávamos pobres, e era sempre a Teresinha a encarregada de lhes dar a
esmola, com o que ela ficava muito contente" (Ms A 11 r- 11v).
"Durante muito tempo perguntei a mim própria porque tinha Deus preferências
(...) Jesus dignou-se instruir-me acerca deste mistério. Pôs-me diante dos olhos o
livro da natureza, e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o
esplendor da rosa e a alvura do lírio não tiram o perfume à pequena violeta nem a
simplicidade encantadora à margarida... Compreendi que, se todas as pequeninas
flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos
não ficariam esmaltados de florzinhas... Assim acontece no mundo das almas, que
é o jardim de Jesus" (Ms A 2 r-v).
CAPÍTULO 2
Tudo decorrerá mais ou menos bem enquanto fica amparada pelo calor
desta intimidade familiar: não vai à escola. Maria e, sobretudo, Paulina ensinam-
lhe os rudimentos do conhecimento com seriedade e rigor. A filha menor não é
mimada. Cuida-se da sua vida espiritual: a oração em família tem muita
importância, pela manhã e pela tarde, visita às igrejas lexovienses quando sai
de passeio com o seu pai. A liturgia sustém o ritmo da vida: as festas são a
alegria da "rainhazinha".
Na escola
A perda de Paulina
Vai ser ferida por uma nova separação dramática. Paulina Martin acaba de tomar
a decisão de entrar na vida religiosa. Tendo em vista o seu passado de colegial na
Visitação de Le Maus, com a sua tia, irmã Maria Dositéia, pensa espontaneamente
nesta Ordem fundada por São Francisco de Sales eSanta Joana de Chantal. Mas, no
terceiro centenário da morte de Santa Teresa de Ávila (1882), quando assiste à missa na
igreja de São Tiago, Paulina recebe uma inspiração: é chamada ao Carmelo. O de
Lisieux está muito perto. A "pérola fina" — como lhe chama o seu pai — informa a sua família,
masparticularmente a Teresa que, no Verão, ocasionalmente dá-se conta da notícia.
Uma "espada" trespassa o seu coração: vai perder a sua segunda mamãe! "Ah! Como
poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a
vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apresentou-se-me com todo o seu realismo;
vi que não era senão sofrimento e separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas..."
(Ms A 25v).
Estranha doença
Cura inexplicável
Profundo golpe para a sua personalidade afetiva que não se tinha refeito daquela
dor, com uma mudança de caráter que transformou esta criança jovial, forte e
expansiva numa pré-adolescente hipersensível, ensimesmada e tímida.
Não há nada melhor do que uma viagem para a fazer esquecer estes dias sombrios. Do dia
20 de Agosto ao 3 de Setembro, Teresa — com dez anos e meio — faz a sua “entrada
no mundo" ao voltar a Alençon, entre os amigos da sua família. Desde os seis anos não
tinha voltado ali. É festejada e mimada. Agora é "realmente uma jovenzinha", escreve
Luís Martin a um amigo. Os seus cabelos louros e compridos que cobrem os seus
ombros, os seus belos olhos verdes, os seus vestidos (Zélia Martin tinha cuidado
sempre da elegância das suas filhas), faz com que seja admirada pelas famílias
burguesas de Alençon e dos arredores. A linda convalescente vai "de palácio em
palácio", monta acavalo. "Confesso que essa vida tinha encantos para mim... Aos
dez anos o coração deixa-se facilmente fascinar" (Ms A 32v).
Depois de ter roçado a loucura ou a morte, esta feliz convalescença desperta o
seu desejo de viver. O austero Carmelo, onde vive a sua irmã, continuará a estar
presente no seu coração, quando pressente que diante de si se pode abrir um
caminho diferente, um matrimônio feliz, com filhos, uma grande casa, uma
vida fácil...? Não, não esquece onde a leva o peso do seu coração. Tal
experiência do mundo ser-lhe-á muito útil: "Talvez Jesus me tenha querido
mostrar o mundo antes da primeira visita que me ia fazer, a fim de que eu
escolhesse mais livremente o caminho que havia de lhe prometer seguir" (Ms A
32v).
Primeira comunhão
Por seu lado, a Irmã Inês de Jesus, no Carmelo, está a preparar também a
sua irmã para o grande dia: durante quatro meses, escreve todas as semanas a
Teresa e compõe-lhe um livrinho para a ajudar a rezar e a fazer sacrifícios todos
os dias. Teresa responderá com uma generosidade excepcional: desde o dia 1 de
Março até o dia 7 de maio de 1883, faz no total 1949 sacrifícios e repete 2773 vezes
as orações propostas por Paulina. Mantém com ardor esta contabilidade pedagógica,
muito utilizada naquele tempo; mas virão dias, muito mais tarde, em que
escreverá: "quando se ama, não se conta" (PN 17, 5).
Pela primeira vez na sua vida, Teresa não dorme em casa: tem que passar
três dias depreparação no colégio da Abadia. A família dá mil conselhos às Irmãs
que a acompanham: a menina Martin está muito fraca. Terá direito a algumas
condescendências: o seu pai e as suas irmãs visitam-na todos os dias.
O abade Domin prega o retiro às sete meninas que têm dez e onze anos.
As conferências estão fortemente marcadas pelo ambiente jansenista da época.
No dia 7 faz uma confissão geral, que a deixa "numa grande paz". No dia
seguinte, experimenta uma alegria autêntica; o vocabulário que usará para evocá-la
em 1895 em nada se assemelha com o das conferências do abade Domin: "Ah! como
foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma!... Foi um beijo de amor, sentia-me
amada, e dizia por minha vez: "Eu amo-Vos! Dou-me a vós para sempre!". Não
houve pedidos, nem lutas, nem sacrifícios. Desde há muito, Jesus e a pobre
Teresinha tinham-se olhado e tinham-se compreendido... Nesse dia já não era um
olhar, mas uma fusão, já não eram dois: Teresa desaparecerá como a gota de água
que se perde no oceano. Só ficava Jesus, como dono, como Rei" (Ms A 35r).
Confirmação
Segunda comunhão
Por outro lado, há de regressar, pois Teresa tem que participar no retiro
para a sua "segunda" comunhão, ou seja, a renovação solene da primeira, do dia
17 a 21 de maio de 1885, pregado também pelo abade Domin, na Abadia.
De fato, esta longa crise durará dezessete meses. Voltam em massa as "duas
dores de alma" que seguiram à sua doença de1883, que acentuam ainda mais os
escrúpulos que, nesta idade, lhe causaram preocupação também em relação à castidade. O
seu único recurso é a sua irmã Maria, com quempartilha os seus sofrimentos interiores e que a
ajuda a ver com mais clareza quando se vai confessar. Está bastante perturbada,
pois, depois desta segunda comunhão, não voltará para a escola.
Indicamos que voltou a tomar as três resoluções da sua primeira comunhão: "1.
Não desanimarei. 2. Rezarei todos os dias um 'lembrai-vos' à Santíssima Virgem.
3. Procurarei humilhar o meu orgulho" (retificamos a ortografia insegura).
O novo ano escolar que começa em outubro de 1885 será o último para
Teresa. Celina, de dezesseis anos, terminou a escolaridade. A prima Maria,
frequentemente doente, abandona também a Abadia. É demasiado para Teresa, que
volta a estar só. Grande solidão para a adolescente, acentuada ainda mais pela ausência do
seu pai que, durante quase dois meses, viaja ao Oriente, até Constantinopla. O retiro do
início do ano, pregado por um substituto do abade Domin, não levanta a moral da aluna:
tratando sempre de realidades espantosas, tão pouco de acordo com a idéia que ela faz do
amor de Jesus.
Em 1886, Teresa tem treze anos. No dia 2 de fevereiro é recebida como aspirante
das Filhas de Maria na Abadia, da qual Celina, "a intrépida", é presidente. A professora
surpreende-se pela tristeza de Teresa que sofre contínuas dores de cabeça. O Sr.
Martin decide retirá-la da escola. Como a sua prima Maria Guérin terá aulas particulares
em casa de uma instrutora, a Sra. Valentina Papinau, que vive na rua Maior, perto da
catedral de São Pedro, com a sua mãe e a sua gata.
Nos fins de junho, nova estadia em Trouville, na vila dos Lilazeiros, mas
muito breve, porque Teresa não se acha bem. Sente saudades dos Buissonnets; este
pequeno incidente confirma que não se encontra muito bem.
A partida de Maria
Eis uma jovenzinha loura de 1,62 m de altura, com longos cabelos sobre os
ombros, que vai fazer catorze anos. Mas, que contraste com o interior! É
hipersensível, chorona, "insuportável pela sua excessiva sensibilidade... que às vezes
chora por ter chorado" (Ms A 44v), torturada pelos escrúpulos... nunca, em toda a
sua vida, tinha chegado tão baixo. Profunda solidão de adolescente que continua a
sonhar entrar no Carmelo. Mas, em tal estado interior, como o poderá conseguir?
Tem pouca disposição para as coisaspráticas, incapaz de fazer corretamente
a cama e sofria por tudo (Ms A 44v).
Com notável lucidez, comprova que reencontrou a força da alma dos seus
quatro anos e meio, perdida há dez anos, no momento da morte da sua mãe. Por fim,
faz o duelo, assumido na paz. É uma graça de cura interior profunda, definitiva.
Mas esta graça atua numa natureza que tem a sua história. A ferida psicológica não
foi indelével. "Deus é a saúde da alma" (João da Cruz).
Um ano depois do texto do seu manuscrito, Teresa volta sobre esta "conversão"
numa carta (Ct 201) ao P. Roulland, no dia 1º de novembro de 1896. A síntese é
perfeita: "A noite de Natal de 1886 foi, é verdade, decisiva para a minha vocação,
mas para a designar mais claramente devo chamar-lhe: a noite da minha conversão.
Nesta noite bendita da qual está escrito que ela ilumina as delícias do próprio Deus.
Jesus que Se fazia criança por meu amor dignou-Se fazer-me sair das roupinhas e
das imperfeições da infância, transformou-me de tal maneira que já não me
reconhecia a mim mesma. Sem esta mudança teria ficado ainda muitos anos no
mundo. Santa Teresa que dizia às suas filhas: "Quero que não sejais mulheres
em nada, mas que em tudo iguais a homens fortes", Santa Teresa não teria
queridoreconhecer-me como sua filha se o Senhor não me tivesse revestido da
sua força divina, se Ele mesmo não me tivesse armado para a guerra".
Deste modo, foi salva "num instante" de uma incapacidade que durou
dez anos. Agora sabe por experiência o que é a Misericórdia que a tirou
de um abismo. Nunca mais o esquecerá e em todas as noites de Natal futuras,
celebrará a sua "conversão".
Por fim, nos seus Últimos Colóquios, voltará ainda sobre este Natal de 1886,
tão decisivo), para precisar que a graça divina não atua sem a liberdade humana:
"Pensei hoje na minha vida passada, no ato de coragem que fiz naquela noite de
Natal, e o louvor dirigido a Judite veio-me à memória: “ Agistes com uma
coragem viril e o vosso coração fortaleceu-se”. Muitas almas dizem: Não tenho
força para realizar esse sacrifício. Então que façam o que eu fiz: um
grande esforço. Deus nunca recusa esta primeira graça que dá a coragem para
agir; depois disso, o coração fortalece-se e vai de vitória em vitória" (UCR 8.8.3).
Compreende-se a razão pela qual o ano de 1887 será belíssimo para ela: ano
de crescimento humano, intelectual, artístico e, sobretudo, espiritual. O
ano da luta paraentrar no Carmelo o mais rapidamente possível. Por outro lado,
foi fixada a data de entrada: o Natal de 1887, aniversário da sua conversão.
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Ao lado, um poço com uma máquina para tirar a água. Uma cisterna, um
cobertura, uma lavanderia, um lugar para as aves e um curral.
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Mesmo assim, tinha bom coração, tinha necessidade de carinho, mas tinha
menos capacidades que as suas irmãs. De modo irrefletido, entrou nas clarissas
de Alençon, mas só esteve algumas semanas (volta para casa em 1º. de dezembro de
1886). O apelo para a vida religiosa manteve-se nela. No dia 16 de julho de 1887, aos
vinte e quatro anos, entra na Visitação de Caen. Infelizmente, só por seis meses, pois a
vida é demasiado dura. Volta para os Buissonnets quando Teresa estava a preparar-
se para entrar no Carmelo de Lisieux.
Passa cinco anos com a doença do Sr Martin. Que será daquela que todos
chamam "a pobre Leônia"?... No dia 24 de junho de 1893, volta ainda para
a Visitação de Caen. Toma o hábito, mas volta a sair dois anos depois, no dia 20 de
julho de 1895. Teresa procura animá-la e, antes de morrer, tranqüiliza a Leônia: será
visitandina.
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Vida em família
"Mais tarde quando encarei a perfeição, compreendi que para se vir a ser
uma santa era preciso sofrer muito, procurar sempre o mais perfeito e esquecer-
se de si mesma; compreendi que havia muitos graus na perfeição e que cada alma
era livre de responder aos apelos de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito
por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como
nos dias da minha primeira infância, exclamei: 'Meu Deus, eu escolho tudo.
Não quero ser uma santa pela metade; não tenho medo de sofrer por Vós; só
tenho medo de uma coisa, de conservar a minha vontade, tomai-a, porque 'Eu
escolho tudo’o que Vós quereis (Ms A 10 r-v).
CAPÍTULO 3
No dia 2 de janeiro de 1887, Teresa completa catorze anos. Mudou até no seu
aspecto físico. Celina dá-lhe lições de desenho. Sente incontroláveis desejos pela
leitura, interessava-se por tudo. Alguns livros impressionam-na
profundamente: assim, o do cônego Arminjon Fim do mundo atual e mistério da
vida futura. Aprecia, sobretudo, a sétima conferência sobre "a bem-aventurança
celeste". Ávida de conhecimento espiritual, o livro proporciona-lhe um
complemento importante à insuficiência do seucatecismo de perseverança,
demasiado simples para ela. Arminjon cita frequentemente a Escritura, os Padres e
abre-a ao infinito do mistério cristão.
A graça do Natal vai dar frutos abundantes: uma frase de Teresa resume
perfeitamente a abertura do seu coração ao abandono do mundo: "A caridade
entrou no meu coração; senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria.
E desde então sou feliz!" (Ms A 45v). Liberta de si mesma pela irrupção do amor
divino no seu ser, Teresa entra em relação com o mundo, sai do seu eu e começa a
amar de verdade: quer "dar alegria". A conseqüência é a alegria, porque o segredo
da felicidade é o dom de si. No fim da sua vida, na sua última poesia sobre
a Virgem Maria, escreverá: "Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54, 22).
Entre as numerosas graças deste ano de1887, há uma que vai ser
decisiva para a sua vocação. Uma vez mais, a ocasião é quase irrisória,
aparentemente casual. Assiste, sem dúvida em Julho, à missa na catedral de
São Pedro. Do seu missal sobressai uma estampa de Jesus na cruz. Teresa vê que o
sangue cai das mãos do crucificado. Ninguém o recolhe. Sofre por isso e decide
ficar ao pé da cruz para recolher este divino sangue e oferecê-lo às almas. Ouve
Jesus a dizer-lhe: "Tenho sede" (Jo 19,26), sede física, mas mais ainda, sede de
almas. Também ela tem sede de almas, porque desde a abertura do seu coração no
Natal, Teresa sente-se "pescador de almas", quer trabalhar pela conversão dos
pecadores, quer "arrancá-las às chamas eternas". "Resolvi manter-me
em espírito ao pé da cruz para receber o divino orvalho que dela escorria,
compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre asalmas... O grito de
Jesus na cruz: "Tenho sede!" ressoava também continuamente no meu coração.
Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria
dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede
de almas" (Ms A 45v).
Atitude "sacerdotal" de uma jovem de catorze anos e meio que fica "ao
pé da cruz" de Jesus para participar na salvação do mundo. A sua vocação
resume-se a isto. É já o desejo intenso que exprimirá depois, também com muita
freqüência: "Amar a Jesus e fazê-lo amar" (Or 6).
Teria o Sr. Martin falado nos Buissonnets deste caso diante das suas filhas?
Celina confirma-o. É talvez mais provável que Teresa tenha ouvido falar do
assunto na casa dos Guérin, na farmácia da praça Thiers que era um lugar muito
concorrido e aberto? Ou na casa da Sra. Papinau?
Em princípio tem que conseguir licença do seu tio Isidoro Guérin, tutor
das suas sobrinhas mais novas. Quatro meses depois de ter falado com o seu pai,
faz diligências junto do farmacêutico, que a acha demasiado nova para levar esta
vida de "filósofo". Nunca antes dos dezessete anos! Cidadão importante de
Lisieux, teme as críticas e os rumores da cidade. Mostra-se intratável.
A v i a g e m e s t a v a p r e v i s t a d e 7 d e novembro a 2 de dezembro de
1887; visitariam numerosas cidades italianas e estariam dez dias em Roma, com
audiência papal. Era a ocasião ideal para a jovem Teresa, que queria falar ao papa do
seu desejo de entrar no Carmelo no Natal.
Dito noutros termos simples, Teresa descobre que "a verdadeira grandeza se
encontra na alma e não no nome" (Ms A 56r). Sente-se muito bem nos serões
dos hotéis de Veneza ou de Roma. A cura do Natal de 1886 deu frutos que
permanecem.
Que pôde ver que a tenha escandalizado? Sem dúvida, nada grave. Mas
esta vida comum demonstra-lhe com realismo que os sacerdotes são homens
com o seu gênio, os seus defeitos, o seu gosto pela esquisita carne italiana
regada com vinhos suaves.
Todas estas experiências tão novas, vividas apenas num mês, ensinaram
muitíssimo a jovem Teresa. Escreverá sobre a viagem: "instruiu-me mais por si só
do que longos anos de estudos".
O regresso foi menos alegre, mas não menos interessante: entre os diversos
santuários, os de Nossa Senhora da Guarda, em Marselha, e o Fourvière, em Lión,
acolheram os peregrinos.
No dia 2 de dezembro, Lisieux volta a ver os Martin. Podemos imaginar tudo o
que se contou no locutório do Carmelo. Quanto ao essencial, no entanto, tudo
continuava obscuro: o bispo Dom Hugonin não tinha dito nada na Itália. Dentro de
vinte e dois dias seria o Natal. Cumprir-se-ia à letra o desejo de Teresa de entrar
nesse dia no Carmelo?
Com o ano de 1888 Teresa entra nos seus quinze anos. Uma carta de Paulina
informa-a que no dia 28 de dezembro, festa dos Santos Inocentes, o bispo
Dom Hugonin tinha autorizado a sua entrada no Carmelo de Lisieux. Mas há
um "mas"... As carmelitas, julgando a candidata muito nova para enfrentar a
quaresma logo de entrada, decidiram atrasá-la três meses. À alegria, pois, mistura-
se uma amarga decepção. Teresa, não obstante, aceita esta nova provação que a
faz "crescer muito no abandono e nas outras virtudes" (Ms A 68r).
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"A primeira cidade da Itália que visitamos foi Milão. Admiramos nos seus mais
pequenos pormenores a catedral, toda em mármore branco, com tantas, tantas estátuas que
dariam para formar um povo quase incontável" (Ms A 58r-v).
"Deixando as senhoras tímidas esconder o rosto com as mãos, depois de terem subido
as primeiras torres que coroam a catedral, seguíamos os peregrinos mais ousados, e
chegávamos ao cimo do último campanário de mármore, de onde tivemos o prazer de ver a
nossos pés a cidade de Milão, cujos numerosos habitantes se assemelhavam a um pequeno
formigueiro... Tendo descido do nosso pedestal, começamos os nossos passeios de
carruagem, que durariam um mês e saciariam para sempre o meu desejo de caminhar sem
me cansar! O cemitério extasiou-nos ainda mais que a catedral. Todas as estátuas de
mármore branco, que um cinzel de gênio parece ter animado, estão espalhadas pelo vasto
Campo dos mortos com uma espécie de negligência, o que, quanto a mim, lhes aumenta
o encanto..:” (Ms A 58v)
"Falta-me agora falar de Roma, termo da nossa viagem, onde pensava encontrar a
consolação, mas onde achei a cruz! Quando chegamos era de noite. Tendo adormecido,
fomos acordados pelos empregados da estação, que gritavam: «Roma! Roma!» Não
era sonho. Eu estava em Roma !
O primeiro dia passou-se extramuros. Foi talvez o mais delicioso, porque todos os
monumentos conservam o cunho da antiguidade, ao passo que, no centro de Roma, nos
poderíamos julgar em Paris, ao ver a magnificência dos hotéis e das lojas. Esse
passeio pelas campinas romanas deixou-me uma gratíssima recordação. Não falarei
nada dos lugares que visitamos; há muitos livros que os descrevem amplamente. Falarei
apenas das principais impressões que senti. Uma das mais agradáveis foi a que me fez
estremecer à vista do Coliseu. Estava finalmente a vê-la, essa arena onde tantos
mártires derramaram o sangue por Jesus! Já me preparava para beijar a terra que eles
tinham santificado..., mas, que decepção! O centro não é mais que um amontoado de
escombros, que os peregrinos têm de se contentar em ver de longe, porque uma barreira impede
a entrada. Aliás, ninguém é tentado a procurar penetrar no meio daquelas ruínas... Haveria eu de
ir a Roma sem descer ao Coliseu?" (Ms A 60r-v).
"O Papai olhava para nós muito admirado com a nossa audácia, e logo nos
mandou voltar. Mas as duas fugitivas já não ouviam nada. Assim como os guerreiros
sentem aumentar a coragem no meio do perigo, assim aumentava a nossa alegria, em
proporção com o esforço que fazíamos para atingir o objeto dos nossos desejos. A Celina,
mais previdente do que eu, tinha escutado o guia, e, lembrando-se de que ele acabava de
indicar um certo pequeno pavimento em forma de cruz, como sendo onde os mártires
combatiam, pôs-se a procurá-lo. Daí a pouco, tendo-o encontrado, e tendo-nos ajoelhado
nessa terra sagrada, as nossas almas uniram-se numa mesma oração..." (Ms A 61 r).
"As Catacumbas deixaram-me também uma impres são muito doce. São
exatamente como as tinha imaginado ao ler a descrição delas nas vidas dos mártires. A
atmosfera que aí se respirava parecia-me imbuída de urna tão suave fragrância, que, depois de
lá ter passado uma boa parte da tarde, tinha a impressão de estar ali apenas há alguns
instantes" (Ms A 61r-v).
"No dia seguinte ao daquela data memorável, tivemos de partir de manhãzinha para
Nápoles e Pompéia. Em nossa honra, o Vesúvio bramiu todo o dia, deixando escapar, com os
seus tiros de canhão, uma espessa coluna de fumaça. Os vestígios que deixou nas ruínas
de Pompéia são aterradores. Mostram o poder de Deus que olha para a terra e a faz tremer,
que toca as montanhas e as reduz a fumo» (Sal 103,32). Teria gostado de passear sozinha no
meio das ruínas, a sonhar com a fragilidade das coisas humanas, mas o número
dos viajantes roubava grande parte do encanto melancólico da cidade destruída... Em
Nápoles, sucedeu-se exatamente o contrário. O grande número de carruagens de dois cavalos
tornou magnífico o nosso passeio ao mosteiro de São Martinho, situado numa elevada
colina que domina a cidade inteira. Infelizmente, os cavalos que nos levavam, muitas vezes
não obedeciam ao freio, e mais do que uma vez julguei ter chegado a minha última hora "
(Ms A 64v-65r).
Bérulle não podia contribuir para uma formação teresiana autêntica das
Carmelitas. Conheceu a Madre Teresa demasiado tarde. Pelo contrário, favoreceu
a implantação da Ordem na França e, apesar da crise, estimulou o seu dinamismo.
Foi no convento que as Carmelitas aprenderam a conhecer a sua fundadora. O papel
das Madres espanholas era insubstituível. Por outra parte, muito tempo depois, Teresa
doMenino Jesus sonhou com Ana de Jesus e reconheceu-a perfeitamente.
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O CARMELO DE LISIEUX
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As duas na família
Não são duas famílias em paralelo o lar de Teresinha na bela
Normandia e o de Teresa na austera meseta de Castela. Mas as coincidências e os
contrastes abundam e entrecruzam-se.
As duas no Carmelo
Embora por caminhos diversos, a opção vocacio nal pelo Carmelo foi em
ambas as Teresas o desenlace de um pequeno drama íntimo: desapego do
lar paterno e transferência para o lar do espírito, mas com toda a dramaticidade de
uma transferência humana. Na Santa de Ávila, será a vida comunitária
da Encarnação a definir e a decidir o sentido da sua vocação religiosa. Pelo
contrário, a Santa de Lisieux ingressa no Carmelo com idéias claras e opção
bem definida. Para esclarecer e tomar posições, serviu-lhe a aproximação à que vai
ser a sua santa Madre Teresa: antes de ingressar; Teresinha lê profundamente a sua
biografia.
Um feixe de traços que caracterizam a personalidade da santa avilense
impressionam a Teresinha,que rapidamente os incorpora ao seu talante humano e
espiritual. Basta enumerá-los:
Isso explica, talvez, o grande impacto produzido por esse escrito das duas
Teresas, a sua rápida difusão mais além das fronteiras eclesiais e dos confins
da cultura ocidental. Obras das duas Santas traduzidas e lidas em línguas quase
inatingíveis, sobretudo, a sobrevivência e atualidade do magistério espiritual das
duas Teresas a contrapeso das mudanças religiosas e culturais e das outras rupturas
de continuidade produzidas nos últimos decênios. Enquanto tantos autores
espirituais sucumbiram sob a síndrome da caducidade das ideologias e mensagens,
aí continuam os escritos e as doutrinas das duas Teresas, dialogan do com leitores e
culturas, dentro Obra da Igreja, em sintonia com as exigências da nova
evangelização.
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É notória e confessada por Santa Teresinha a dívida que tem com São João da
Cruz desde a sua entrada no Carmelo: "Ah! quantas luzes não extraí das obras do
Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18 anos, não tinha outro alimento
espiritual" (Ms A83v). Vem de antes e continua em crescendo até à suamorte. Quando
no período da aridez concentra a sua oração no Evangelho, e deixa de lado todos os
livrosespirituais, João da Cruz é uma exceção, talvez a única. Continua a lê-lo e
a citá-lo com o mesmocarinho e freqüência de antes. Nos últimos meses da sua
vida, revive e repete insistentemente as palavras da Chama de amor viva. Há
referências explícitas e constantes aos escritos do Santo em todas as suas páginas; e
abundam os testemunhos diretos da sua contínua referência oral à pessoa e à
doutrina do santo Doutor.
Tipo de relação
Para os núcleos
Amor
Tudo e nada
Já desde criança, quer "tudo", não as coisas pela metade . Na sua vocação
de amor, essa postura afirma--se com cores acentuadamente sanjoaninas. "Tudo
o criado, que não é nada, dá lugar ao incriado, que é arealidade". Insistia, diz-nos
uma testemunha, Irmã Maria da Trindade, "que o seu pequeno caminho de
humildade e de amor não era outra coisa que o de São João da Cruz: o nosso nada e
o tudo de Deus". Não recusa as expressões mais duras do seu mestre: é necessário
sofrer, sofrer muito, eu antes sofria, mas não amava o sofrimento...
Noite da fé
Há ressonâncias desta virtude que impregnam toda a sua vida e obra: grandes
desejos e segurança do seu cumprimento. Baseada nos princípios do
Santo: Deus, "quanto mais quer dar, tanto mais faz desejar" (Ct 15); "porque acerca
de Deus, quanto mais a alma espera, tanto mais alcança" (3 S 7, 2). Deus não inspira
desejos irrealizáveis.
Conclusão
No fundo, Santa Teresinha não toma a palavra de frei João como livro ou
doutrina, norma ou projeto. É experiência pessoal e biografia de uma graça
em comum: isto viveu-o João da Cruz, e isso mesmo me está a acontecer agora a mim.
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CAPÍTULO 5
Os primeiros passos
As visitas do papai
Doravante, Teresa recebe, por sua vez, o encargo de agradecer "ao" benfeitor.
Assim escreve a seu pai: "Tenho ainda uma doce missão a cumprir, a de te agradecer...
uma enorme quantidade de pêras, cebolas, ameixas, maçãs que saíam da roda, como de
um vaso de abundância" (Ct 63).
A doença do Sr Martin
O tempo dos nove meses do Postulantado de Teresa parece estar particularmente
cheio de provações: abateu-se sobre ela uma autêntica superdose de contrariedades.
Nada lhe causa dor, fora das dores que já constituem o seu patrimônio. "Os meus
primeiros passos encontraram mais espinhos do que rosas... Jesus fez-me compreender que
era pela cruz que Ele me queria dar almas" (Ms A 69v).
E mais, encontra força para dominar a sua ansiedade a fim de animar a Celina: "A
vida é muitas vezes pesada, quanta amargura... mas quanta doçura! Sim a vida custa, é
difícil começar um dia de trabalho (...) Se ao menos sentíssemos a Jesus (...) Oh!
que enfadonha é a companhia quando Jesus está ausente. Mas que faz então o doce
amigo, Ele não vê a nossa angústia, o peso que nos oprime?... Ai! Ele não está longe, está
muito perto, olha-nos, pede-nos esta tristeza... Elevemo-nos acima daquilo que passa,
conservemo-nos a distância da terra, mais alto o ar é puro. Jesus esconde-se mas nós
adivinhamo-lo, derramando lágrimas enxugamos as d'Ele" (Ct 57).
Mais ainda: "Que grande graça quando de manhã nos sentimos sem nenhuma
coragem, nenhuma força para praticar a virtude, é então o momento de pôr o machado
na raiz da árvore (...) É verdade que às vezes deixamos durante alguns instantes de
juntar os nossos tesouros, esse é o momento difícil, onde se é tentado a largar tudo, mas
num ato de amor mesmo não sentido, tudo fica reparado e mais ainda (...) O amor pode
fazer tudo. Jesus não olha tanto para a grandeza das ações nem mesmo para a dificuldade
delas mas para o amor com que são praticadas" (Ct 65).
Revelação de Teresa que mais tarde fará a mestra de noviças desolada: "Ah, se
tivesse sabido, o que não teria feito por remediá-lo! Por isso, disse-me um dia: ‘Que
virtude heróica a desta querida irmã! A sua mortificação resumia-se nesta palavra: sofrer
tudo sem nunca se queixar, nem por roupa, nempor comida" (PO 2022).
Teresa tratou superficialmente este assunto: "Foi-me dado também o amor pela
mortificação, e foi tanto maior quanto nada me era permitido fazer para o contentar... As
que me concediam, sem eu as pedir, consistiam em mortificar o meu amor-próprio, o que
me fazia muito maior bem do que as penitênciascorporais" (Ms A 74v).
Se, por meio de tudo isto, a jovem postulante agüenta, é porque "o pequeno
caniço continua a ser igualmente fiel ao sopro mais ligeiro da graça" (Ct 55): verga-se
sem se quebrar, porque em Teresa "Deus mesmo é a paz" (Mq 5,4).
Tomada de hábito
A cerimônia, hoje em dia foi muito simplifi cada, mas na época revestia-
se de uma grande solenidade: Teresa sai da clausura vestindo um traje de noiva
de cauda comprida, com um véu detipo judeu e uma coroa de açucenas
(presente da sua tia) na cabeça, os seus caracóis ruivos flutuando sobre os seus
ombros. Depois se reúne com a sua família no fundo da nave da Igreja. A seguir,
como para um casamento, a jovem entra na capela pelo braço do seu pai: "Entramos
solenemente na capela (...) Esse dia foi o seu triunfo, a sua última festa cá embaixo" (Ms A
72r). Toda a família, em cortejo, segue-os e assiste à missa. Depois de ter participado, na
capela, na cerimônia externa, o desfile nupcial desfaz-se e dirige-se para a sacristia. Ali,
Teresa abraça todos os seus, a seu pai "que nunca tinha estado mais belo, mais digno..:”
(Ms A 72r). Por fim, atravessa definitivamente a porta do convento.
Precedida por todas as Irmãs que levam uma vela acesa, a heroína do dia é
conduzida pela priora até o coro das religiosas, e aqui é onde se realizam os ritos
chamados da vestidura, aos quais a família assiste pela grade. A Madre priora põe a
Teresa o hábito de burel, o escapulário castanho — que liga com o hábito — e a capa
branca do coro; depois a cobre com um pequeno véu branco que a noviça usará até à
sua profissão. O celebrante, o Sr. Hugonin, bispo de Bayeux e Lisieux, pronuncia as
fórmulas litúrgicas. Ela recebe oficialmente o nome de religião: Irmã Teresa do Menino
Jesus da Santa Face.
Ao entrar na clausura, "a primeira coisa que vi no claustro foi 'o meu Menino
Jesus cor-de-rosa', sorrindo-me no meio de flores e luzes" (Ms A 72v), o Menino Jesus
pintado cor-de-rosa o qual Teresa se encarregará de adornar até à sua morte. Ela
mesma salientará que a cerimônia foi uma autêntica festa na qual não faltou nada, nem
sequer a neve, que a temperatura suave pela estação não permitia prever. "Que bela festa!...
Nada lhe faltou... Nada, nem sequer a neve... Não sei se já vos falei do meu amor pela neve
(...) Sempre desejara que no dia da minha Tomada de Hábito a natureza estivesse
como eu, vestida de branco" (Ms A 72r).
Mas o Sr. Guérin não opinava assim, pois temia pela vida das suas sobrinhas
ou da criada, Maria Cosseron. Recorreu rapidamente ao seu amigo comum, homem
alto e vigoroso, para desarmar o doente. O tio Guérin decide fazê-lo internar no asilo
do Bom Salvador de Caen. Foi confiado aos bons cuidados da Irmã Costard,
responsável por uma parte do estabelecimento; quinhentos homens doentes estão sob o
seu governo. O Sr. Martin permanecerá ali durante três anos. Uns dias depois, Leônia e
Celina instalam-se perto, na casa das Irmãs de São Vicente de Paulo e, do dia 16 de
fevereiro ao dia 5 de maio de 1889, vão todos os dias pedir notícias, pois não podem
visitá-lo senão uma vez por semana.
Como vai reagir Teresa a esta privação que a afeta no mais íntimo dela
mesma? Contemplando mais do que nunca a Santa Face de Jesus. Todo o período do
noviciado viverá o peso desta desgraça.
E à Irmã Inês de Jesus: "Rezai pelo pobre grãozinho de areia para que o grão de
areiapermaneça sempre no seu lugar, quer dizer debaixo dos pés de todos, que
ninguém pense nele, que a sua existência seja por assim dizer ignorada, o grão de areia
só deseja ser humilhado, isto é ainda glorioso demais visto que seriam obrigados a
ocupar-se dele, e ele só deseja uma coisa, ser esquecido, ser tido em nada! (...) Que ao menos
a face ensangüentada de Jesus se volte para ele... Não deseja senão um olhar, um
só olhar!... Se fosse possível a um grão de areia consolar Jesus, enxugar-Lhe as
lágrimas, como há um que o queria fazer... Que Jesus tome o pobre grão de areia e que o
esconda na sua Face adorável... aí o pobre átomo não terá mais nada a recear, estará
certo de não pecar mais" (Ct 95).
Quando no dia 20 de fevereiro de 1893 a Irmã Inês de Jesus é eleita priora, não
há problemas para que Teresa organize as festas, sobretudo porque as principais
relacionam-se com a prioresa. A madre Inês cede o mando à sua Irmã Teresa. "Deus quis
que conseguisse fazer poesias, compondo trechos que acharam bonitos" (Ms A 81v).
Na opinião dos críticos mais exigentes, a jovem religiosa tem autêntico dom poético,
embora não tivesse tido nenhuma formação literária profunda. Ela explicá-lo-á: "O nosso
Amado não necessita das nossas belas idéias, das nossas obras maravilhosas. Não é o
espírito nem os talentos o que Jesus veio buscar aqui embaixo". Efetivamente, Teresa oferece-
se a si mesma, toda, a Deus. A santidade? É esta a sua obra mestra!
Assim, Teresa vai seguir uma tradição do Carmelo: a de transcrever sob forma
poética os sentimentos da alma, os profundos movimentos da vida interior. Teresa de
Ávila e João da Cruz, nas suas "glosas" espirituais, foram os primeiros a dar o exemplo.
Neste espírito Teresa é requerida para escreverpoesias para solenizar as festas da Igreja,
os aniversários, as profissões.
A serviço da liturgia
"A irmãzinha Amém-, como lhe chama a Irmã Santo Estanislau, a sua "primeira
oficial" na sacristia, trabalha neste ofício desde fevereiro de 1891 até fevereiro de
1893. Voltará a este ofício com a sua prima Maria Guérin, já carmelita, em março de
1896.
Teresa é feliz com este trabalho que a associa o mais de perto possível com
o ministério sacerdotal: ei-la sacerdote, sem o ser, ela que invejava a sua vocação!
"Sinto em mim a vocação de sacerdote. Com que amor, ó Jesus, te seguraria nas minhas
mãos quando, à minha voz, descesses do Céu... Com que amor te daria às almas!...
mas, ai de mim! Desejando ser Sacerdote, admiro e invejo a humildade de São
Francisco de Assis, e sinto a vocação de o imitar, recusando a sublime dignidade do
Sacerdócio" (Ms B 2v).
As festas litúrgicas escalonam todo o ano. Já Santa Teresa se Ávila punha a liturgia
no cume da vida de oração. Dava um lugar importantíssimo à Eucaristia, ao ritmo
das Horas canônicas. No Carmelo, procura-se tomar em oração as grandes intenções
da humanidade, e interceder por elas. Além disso, oração silenciosa durante todo o
dia: "Tratar de amizade, estando muitas vezestratando a sós com quem sabemos que
nos ama", dizia a Santa de Ávila (V 8,5). Pela manhã e pela tarde, durante a hora de
oração, é o momento da escuta silenciosa do “Amigo verdadeiro".
Em relação à observância dos votos, na prática, Teresa tinha, num alto grau, o
espírito do normal e da renúncia. Algumas citações sobre o particular confirmam-no
suficientemente. "Uma noite, depois de Completas, procurei em vão a nossa
lamparina nas prateleiras onde as deixávamos. Como estávamos no silêncio
rigoroso, era impossível reclamá-la... Compreendi quealguma Irmã, pensando levar a
dela, tinha pegado a nossa, da qual eu tinha grande necessidade. Em vez de sentir
desgosto por me ver privada dela, fiquei muito feliz, sentindo que a pobreza consiste em
se ver privada, não somente das coisas agradáveis, mas mesmo das coisas
indispensáveis" (Ms A 74v). A propósito da pobreza espiritual: "Regozijei-me por ser
pobre, desejei sê-lo cada vez mais" (Ct 176). "Não temas, quanto mais pobre fores, mais
Jesus te amará" (Ct 211). Quanto ao voto de castidade, dirá: "O coração do meu Esposo é
só meu como o meu é só d'Ele" (Ct 122).
Para Teresa, o voto de obediência anda a par com a liberdade interior: "De
quantas inquietações nos livramos ao fazer o voto de obediência!... Mas quando se deixa de
olhar para a bússola infalível... depressa a alma se transvia nos caminhos áridos..:” (Ms C
11r). "Enfim, não escrevo para compor uma obraliterária, mas por obediência. Se vos
aborreço, pelo menos vereis que a vossa filha deu provas de boa vontade" (Ms C 6r).
"Estou a obedecer-vos... Não julgueis que procuro saber que utilidade poderá ter o meu
pobre trabalho; como o faço por obediência, isso me basta, e não sentiria nenhum desgosto
se o queimásseis na minha frente, sem o terdes lido" (Ms C 33r).
Doravante, a Irmã Teresa do Menino Jesus é carmelita de pleno direito. Que é para
ela o Carmelo? Um lugar de vida austera, rigorosa, esgotante, mas que por dentro
irradia a presença do Deus de Amor a quem Teresa espera não Lhe negar nada.
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4:45h Levantar
5:00h Oração
8:00h Pequeno-almoço: sopa
Trabalho
9:50h Exame de consciência
10:00h Almoço
13:00h Trabalho
14:00h Vésperas
15:00h Trabalho
17:00h Oração
18:00h Ceia
19:40h Completas
22:30h/23:00h Descanso.
- Depois da missa (pelas 8:00 h): sopa grossa, que se tomava de pé, no seu
próprio lugar, pelo lado exterior da mesa.
-Ao meio-dia (de fato, às 10:00 h): peixe ou ovos, legumes (ração abundante),
sobremesa (queijo ou fruta); as rações eram preparadas antes em pratos de barro.
b) Jejum da Ordem:
- Ceia, às 18:00h: pão pesado (de meia a sete onças, ou seja, cerca de 215
gramas), manteiga ou queijo, frutas, às vezes marmelada. Nem caldo nem sopa:
nada quente.
Teresa não jejuou antes dos vinte e um anos (Janeiro de 1894), mas
esteve submetida à abstinência de carne, exceto quando dispensada por doença.
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AS LEITURAS DE TERESA
Desde o Postulantado, Teresa tem para uso pessoal o Manual do cristão, que
contém os Salmos e o NovoTestamento, a Regra e as Constituições, um livro de Direção
espiritual, Notas de conduta, levado para França pelas nossas Madres espanholas, obra
que servia de base para a formação das noviças, do tempo de Teresa; este livro continha
todas as regras em ordem a "compostura exterior" que a carmelita devia adquirir.
Também um Saltério traduzido por Glaire e um Pequeno Breviário do Sagrado Coração.
Alguns livros eram postos à disposição das noviças, outros eram colocados no
antecoro, para uso dasreligiosas que os podiam levar ou consultar ali. Teresa
conheceu o livro de Henrique Suso, Avisos espirituais; gostava, igualmente, dos
comentários de alguns versículos de Isaías do P. Luís d'Argentan, e, desde há muito
tempo, apreciava, nas conferências do abade Arminjon, um verdadeiro tratado dos
novíssimos.
Esta lista não é exaustiva... Contudo, é importante indicar que a jovem religiosa
se dedica especialmente às obras de fundo dos reformadores do Carmelo. Em Lisieux, o
conhecimento e a influência de Teresa de Ávila leva vantagem em muito a João da
Cruz. Teresa não leu as obras completas da Madre; apesar disso, por sua vez, gostará
de se chamar "filha da Igreja", afirmará que "só Deus basta", escreverá na sua
própria língua "Daria mil vidas para salvar uma só alma".
Por outro lado, a influência de São João da Cruz é profunda na jovem: "Ah!
quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18
anos, não tinha outro alimento espiritual" (Ms Ab83r). Dele recebe principalmente
e docilmente as lições sobre a renúncia interior, vivendo por seu lado "sem apoio e,
no entanto, apoiada..."
Para falar verdade, o "doutor místico" era pouco conhecido na França, e
menos ainda estudado. A biblioteca do convento da rua de Livarot não possuía em
1888 mais que três tomos da sua vida e das suas obras, referidas por um autor
anônimo. Além disso, quando o Carmelo da avenida de Messina em 1876,
por instâncias de uma priora de origem andaluza — madre Teresa de Jesus —,
traduz e edita as obras de João da Cruz, não será um carmelita, mas um domi nicano,
o mui reverendo P Chocarne, quem pedirápara fazer a introdução. Antes da Irmã
Teresa do Menino Jesus, não se sabe se há algum dado de que utilizassem de forma
metódica os escritos do Carmelo espanhol. Não havia nenhuma revista para os
contentar ou divulgar. A cultura religiosa, bastante rudi mentar, não convidava a
penetrar nos segredos deuma doutrina que se considerava reservada a
poucos iniciados. Até a ponto de que São João da Cruz, nos finais do século XIX
passava inclusive como um autor desconhecido; era pouco lido e nunca se via citar
a sua autoridade.
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"Compreendi o que era a verdadeira glória. Aquele, cujo reino não é deste
mundo (Jo 18,36), mostrou-me que a verdadeira sabedoria consiste em«querer ser
ignorada e tida por nada, — a «pôr a sua alegria no desprezo de si mesma»... Ah! como
o de Jesus, eu queria que «o meu rosto ficasse verdadeiramente escondido; que ninguém
na terra me reconhecesse» (Is 53,3). Tinha sede de sofrer e de ser esquecida...
"Verdadeiramente, estou longe de ser uma santa. Só isso é já uma prova. Em vez
de me alegrar com a minha aridez, devia atribuí-la ao meu pouco fervor e à minha pouca
fidelidade; deveria desolar-me por dormir (desde há sete anos) durante a oração e a ação
de graças. Ora, eu não fico desolada... Penso que as criancinhas tanto agradam aos pais
quando dormem, como quando estão acordadas; penso que para fazerem operações, os
médicos adormecem os doentes. Enfim, penso que: «O Senhor vê a nossa fragilidade
e lembra-Se de que apenas somos pó» (Sl 102,14).
O meu retiro da Profissão foi, portanto, como todos os que se lhe seguiram, um
retiro de grande aridez. Contudo, Deus mostrava-me claramente, sem que disso me
apercebesse, a maneira de Lhe agradar e de praticar as mais sublimes virtudes. Dei-me
muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar provisões, alimenta-me a cada instante
com um manjar completamente novo, e encontro-O em mim sem saber como lá está...
Creio muito simplesmente que é o próprio Jesus, escondido no íntimo do meu
coraçãozinho, que me dá a graça de agir em mim, e me faz pensar em tudo o que Ele
quer que eu faça no momento presente" (Ms A 75v-76r).
"A festa [da tomada de hábito] foi encantadora; e a desejos da sua pequena
noiva, dava-lhe neve... (...) mais bela, a mais encantadora flor foi o meu querido Rei.
Nunca tinha estado mais belo, mais digno... Foi a admiração de toda a gente. Esse dia foi o
seu triunfo, a sua última festa cá em baixo. Tinhadado todas as suas filhas a Deus, pois
tendo-lhe a Celina confiado a sua vocação, ele tinha chorado de alegria e tinha ido com
ela agradecer Àquele que «lhe dava a honra de levar todas as suas filhas» (...) Depois de
ter beijado pela última vez o meu querido Rei, voltei para a clausura. A primeira coisa
que vi no claustro foi «o meu menino Jesus cor-de-rosa», sorrindo-me no meio de flores
e luzes. Logo a seguir, o meu olhar se deparou com flocos de neve... O claustro estava
branco como eu! Que delicadeza de Jesus! Indo ao encontro dos desejos da sua
pequena noiva, dava-lhe neve... (...) Esse fato fez evidenciar mais ainda a
incompreensível condescendência do Esposo das virgens..., d'Aquele que tanto
gosta dos Lírios brancos como a NEVE!..." (Ms A 72r-v)
"Como acabo de dizer, o dia 10 de Janeiro foi o triunfo do meu Rei. Comparo-o
à entrada de Jesus em Jerusalém no dia de Ramos. Como a do nosso divino Mestre, a sua
glória de um dia foi seguida duma paixão dolorosa, e essa paixão não foi só para ele.
Assim como as dores de Jesus trespassaram com uma espada o coração da sua divina
Mãe, assim os nossos corações sentiram os sofrimentos daquele a quem
mais ternamente amávamos sobre a terra..." (Ms A 73r).
"Minha querida Maria, por mim não conheço outro meio para chegar à perfeição
senão «o amor»... Amar, como o nosso coração está bem feito para isso!... Às vezes
procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas na terra do exílio as palavras são
impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma, por isso temos de limitar-nos a
esta única palavra: «Amar!...»
CAPÍTULO 6
Assim como seria um erro grave pensar que Teresa nascera santa, equivocar-nos-
íamos se imaginássemos que a jovem carmelita não tinha senão de seguir maquinalmente
um caminho claramente traçado, uniforme. Dentro do Carmelo, Teresa teve que descobrir o
seu próprio caminho, "um pequeno caminho completamente novo" (Ms C 2v), do qual ela
será a figura de proa. Lançando-se a toda a pressa, Teresa teve que passar mais de sete
anos antes de compreender que amar profundamente, como ela entendia, não era
possível realizá-lo com as suas próprias forças. Só Jesus a devia dar a Jesus.
Teresa teve que viver no Carmelo uma singular aventura espiritual. Só por meio
de muitas reflexões e exames, de tomadas de consciência e decisões, também da
escuta suplicante ao Senhor, foi como Teresaencontrou o seu modo particular de
realizar a sua vocação cristã e contemplativa na Igreja. Teresa conheceu a
obscuridade e a angústia. O seu caminho passava por vezes pela noite. Sofreu
exteriormente, mas ainda mais interiormente. Sentiu o peso da sua "pobre natureza", o
nosso "instrumento de trabalho" (Ct 89). "Com uma natureza como a minha (...) talvez me
tivesse perdido" (Ms A 8v). Também no momento atual, o caminho de Teresa pelo
deserto em busca de uma fonte escondida e guiada pela confiança em Deus continua a ser
profético tanto para o cristão individual como para toda a Igreja.
É este o convite da Santa de Lisieux. O cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII,
dizia: "É o próprio Evangelho, o coração do Evangelho que Teresa encontrou, mas
com que encanto e frescura". E João Paulo II, ao visitar Lisieux: "Podemos dizer
convictamente de Teresa que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar aos
homens do nosso tempo o mistério fundamental, a realidade do Evangelho: o fato de ter
recebidorealmente um espírito de filhos adotivos que nos faz gritar “Abbá, Pai!” (Rom
8,15).
Sabemos que "o sofrimento lhe estendeu os braços" (Ms A 69v). Confessou à
Irmã Teresa de Santo Agostinho: "Posso-vos assegurar que travei muitos combates e que
não passei nem um só dia sem sofrimentos, nem um só" (PA 337). Tanto melhor pensa
a jovem noviça: "o sofrimento é uma mina de ouro a explorar, iremos perder a
ocasião?" (Ct 82).
Teresa abordou a sua vida de carmelita com a firme resolução de realizar, custe
o que custar, o seu ideal de santidade. "Quero ser santa (...), quero sê-lo" (Ct 45). "Chegar a
ser uma grande santa" é o leitmotiv (Ct 52,80). O seu Senhor não "quer pôr limites
à (sua) santidade" (Ct 83). O preço nunca será demasiado alto: "Jesus pede-te
tudo, tudo, tudo, tanto quanto pode pedir aos maiores Santos" — e sublinha a
palavra"tudo", respectivamente, duas, três e cinco vezes (Ct 57).
Teresa queria bater o record mundial do amor a Deus! "Queria atuá-1o tanto...
Amá-1o como jamais foi amado!..." (Ct 74).
Amá-lo "até à loucura" (Ct 93, 96), "com paixão" (Ct 94), "até ao infinito" (Ct
127). Fala de si mesma quando escreve a Celina: "O amor de Jesus a Celina não pode
ser compreendido senão por Jesus!... Jesus fezloucuras por Celina... Que Celina faça
loucuras por Jesus" (Ct 85). Teresa começará"com toda a sua capacidade de amar"
(Ct 104). No dia da sua profissão pede "o amor, o amor infinito, sem outro limite que
não sejas Tu, o amor que já não seja eu, mas Tu, meu Jesus" (Or 2).
Para Teresa, nestes primeiros anos no Carmelo, não há dúvida: pelo amor,
pelo meu amor, muito, muito, muito generoso, como resposta às loucuras do amor de
Jesus! porque "o amor só com amor se paga", diz Teresa, seguindo o seu grande mestre
espiritual São João da Cruz (Ct 85).
Teresa está certa de o conseguir algum dia. "O amor pode fazer tudo, as coisas
mais impossíveis não lhe parecem difíceis" (Ct 65). Não conhece outro caminho: "Por
mim não conheço outro meio para chegar à perfeição senão 'O amor'... Amar, o nosso
coração foi feito para isso!... Às vezes procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas
na terra do exílio as palavras são impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma,
por isso temos de limitar-nos a esta única palavra: "Amar!..."(Ct 109).
O sofrimento aureolado
A beleza de Jesus
“A tua Face é a minha única Pátria, ela é o meu Reino de amor" (PN 20).
Depois dos "três anos de martírio" (Ms A 73r), no dia 10 de maio de 1892, o
Sr. Martin, doravante paralítico das pernas e inofensivo, volta ao seio da família.
Passou, para Teresa, "a provação tão dolorosa de Caen" (Ct 137). Mais ainda, no dia 20
de fevereiro de 1893, a Irmã Inês, a sua "segunda mamãe" dos Buissonnets, é eleita priora.
Numa carta de 6 de julho de 1893 (Ct 142), utiliza, pela primeira vez nos seus
escritos — se tivermos em conta a sua ordem cronológica —, o substantivo "abandono",
resumo da sua nova atitude. O sofrimento e o esforçopróprio perderam a sua primordial
importância para ceder o lugar à amorosa adesão, não só à vontade do Senhor, mas, antes de
tudo, à sua mesma Ação divina em Teresa.
A nossa carmelita afirma nesta carta que "o mérito não consiste em dar muito,
mas em receber muito". Não quer de modo nenhum "amontoar tesouros para o céu"
(Ct 91), mas abandona agora o seu "negócio" espiritual no Senhor. "A tua Teresa —
confessa a Celina — não se encontra neste momento nas alturas, mas Jesus ensina-lhe 'a
tirarproveito de tudo, do bem e do mal que encontra em si' [São João da Cruz]. Ensina-
lhe a jogar à banca do amor ou antes, joga Ele por ela sem lhe dizer como se faz porque isso
é assunto d'Ele e não de Teresa, o que ela tem de fazer é abandonar-se, entregar-se sem
nada reservar para si, nem mesmo a alegria de saber quanto lhe rende o banco (...) Jesus não
me ensina a contar os meus atos; ensina-me a fazer tudo por amor (...), mas isto faz-se na
paz, no abandono, é Jesus que faz tudo e eu não faço nada" (Ct 142).
A fraqueza irremediável
Desde há tempo que quis pagar amor com amor, igualando. tanto quanto
possível, o amor infinito de Deus, fazendo "loucuras de amor" por Jesus, que fez "loucuras
de amor" por nós (Ct 85), amando a Deus "como nunca foi amado" (Ct 74). Depois
de seis anos de vida religiosa, confessa: "Nunca poderemos fazer por Ele as loucuras
que fez por nós, e as nossas ações não merecem este nome, porque são apenas atos
muito razoáveis e muito abaixo daquilo que o nosso amor queria realizar" (Ct 169).
A carmelita observou com finura esta lenta purgação da sua miséria, numa das
passagens mais profundas e mais humanas que escreveu: "Quando me recordo do tempo
do meu noviciado, vejo bem quanto era imperfeita... Sofria por pouco, que agora rio-
me disso. Ah! como o Senhor é bom por ter feito crescer a minha alma, por lhe ter dado
asas (...) Mais tarde, sem dúvida, o tempo em que estou vai-me parecer ainda cheio de
imperfeições, mas agora já não me admiro de nada, não tenho desgosto por ver que sou a
própria fraqueza, pelo contrário, é nela que me glorio, e conto descobrir em mim todos os
dias novas imperfeições" (Ms C 15r).
Certamente, tudo isto já é viver como um filho do Pai. No entanto, não é ainda a
plenitude do "pequeno caminho" de Teresa. Há que tomar a sério a Santa quando afirma
que num momento determinado — e isto acontecera durante o Outono de 1894 —
descobriu um "pequeno caminho completamente novo".
Desejosa de ser pequena e de chegar a sê-lo cada vez mais, Teresa ambicionará
antes de tudo uma confiança completamente filial. "O que agrada a Deus na minha
pequena alma — escreverá mais tarde — é ver-me amar a minha pequenez e a minha
pobreza, é a esperança cega que tenho na sua misericórdia... Só a confiança e nada mais
do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor" (Ct 197). Com plena consciência e
vontade confiar-se-á à obra da Graça nela, colaborará com ela e a ela se entregará.
Convém saber aqui que no dia 14 de setembro de 1894, um mês e meio depois
da morte do Sr. Martin, Celina se tinha consagrado também ao Senhor no Carmelo
de Lisieux. Quando entrou levava consigo umpequeno caderno onde tinha copiado as
passagens mais belas do Antigo Testamento. Como então não era permitido às
carmelitas jovens ler o Antigo Testamento na sua totalidade, Teresa, ávida da Palavra de
Deus, tinha mergulhado no pequeno caderno de Celina. Foi assim como num dia de
Outono de 1894 viveu o seu eureka tão importante.
Porquê uma emoção tão profunda? P orque, Teresa lê aqui na Bíblia, pela
primeira vez na sua vida, que Deus é como uma mãe para o seu filho. E Teresa é
hipersensível ao amor de uma mãe! Não tinha perdido, na idade de quatro anos e oito
meses, a sua "incomparável" mãe, que morreu de câncer? (Ms A 4v). Esta perda brutal,
na idade em que a filha tinha tanta necessidade do amor maternal para estruturar a sua
personalidade, causou em Teresa um profundo traumatismo do qual não sairá até aos
catorze anos, com a "graça do Natal". Imediatamente, depois da morte da sua mamãe.
Teresa afeiçoou-se com todas as suas forças à sua Irmã Inês, a sua "segunda mamãe",
que em breve partiria para o Carmelo. Nova ruptura quando a outra irmã, Maria, terceira
mamãe por assim dizer, vai também ela para o convento...
E Teresa, a órfã, lê que Deus é como uma mamãe para com o seu filho pequeno!
Então, conclui: "É preciso que eu permaneça pequena, e que me torne cada vez
mais pequena" — até ser o "pequenino" a quem Deus cumula com o seu amor de mãe.
A sua conclusão é evidente: este "pequeno caminho muito direito, muito curto"
que conduz ao cume do amor e da santidade, este "ascensor" que Teresa procura, "são os
vossos braços, ó Jesus!" (Ms C 3r).
"E este Bem-amado ensina a minha alma, fala-lhe no silêncio, nas trevas...
Ultimamente veio-me umpensamento que tenho de dizer à minha Celina. Foi num dia
em que pensava no que podia fazer para salvar as almas, uma passagem do Evangelho
deu-me uma viva luz. Uma vez Jesus dizia aos seus discípulos, mostrando-lhes os campos
de trigo maduro: 'Levantai os olhos e vede como os campos já estão bem loiros para serem
ceifados' e um pouco mais tarde: 'Na verdade a messe é grande, mas os operários são
poucos; rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários' (Mt 9,37-38). Que
mistério!... Não é Jesus onipotente? Não pertencem as criaturas a quem as fez?Então
porque diz Jesus: 'Rogai ao Senhor da messe que envie operários'? Porquê?... Ah! é que
Jesus tem por nós um amor tão incompreensível que quer que tenhamos parte com Ele
na salvação das almas. Não quer fazer nada sem nós" (Ct 135).
"Alimentar o amor"
“Santa Teresa diz que é preciso alimentar o amor”. A lenha não se encontra ao nosso
alcance quando estamos nas trevas, na aridez, mas não estaremos ao menos obrigadas
a lançar nele algumas palhinhas?
Minha querida Celina, compreendes? Isto não é para preparar a minha coroa,
para ganhar méritos, é para dar gosto a Jesus... Quando não tenho ocasiões quero ao
menos dizer-Lhe muitas vezes que O amo, não é difícil e mantém o fogo, mesmo
quando me parece que estava apagado, esse fogo de amor, quereria lançar nele alguma
coisa e então Jesus saberia muito bem reacendê-lo" (Ct 143).
CAPÍTULO 7
Seguimos, nos capítulos precedentes, Teresa até aos últimos meses de 1894, em
que descobriu o seu "pequeno caminho" (mais tarde chamado pela Madre Inês de Jesus "o
caminho da infância espiritual"). Vejamos agora como é guiada a fazer o oferecimento de
si mesma ao Amor misericordioso de Deus.
A palavra "misericórdia" teria aparecido muitas mais vezes nos seus escritos se
Teresa não tivesse compreendido, alguns meses mais tarde, que o amor de Deus é sempre
e tão essencialmente "misericordioso" que não se pode limitar unicamente à palavra
"Amor?': acrescentar "misericordioso" seria como um pleonasmo, dizer com duas
palavras o que se pode dizer com uma. E quando Teresa, no fim do Manuscrito A, alude
ao seu "oferecimento ao Amor misericordioso" (do qual falaremos a seguir), o fará apenas
como "oferecimento ao Amor".
A partir de janeiro de 1895 até finais do ano, Teresa vai escrever alguns aspectos
do seu passado. As suas "recordações de infância"? Certamente! Mas, na realidade, fala
em primeiro lugar do papel do seu misericordioso Amado na sua existência. Por todos os
lados vai correr agora o fio de ouro da sua Misericórdia pelo tecido da sua vida.
Agora vê, compreende. Tudo está iluminado. Escrever é orar, ver em
profundidade, cantar as Misericórdias, em ação de graças. O seu trabalho redatorial é uma
longa meditação que se incorpora no interior dela mesma. E, não duvidemos, em parte
sob o efeito desta longa meditação escrita no dia 9 de junho de 1895, na manhã da festa
da Santíssima Trindade. Teresa recebe "a graça de compreender mais do que nunca o
quanto Jesus deseja ser amado" (Ms A 84r). A forma passiva, ser amado, coincide na
realidade com a ativa, amar: Jesus quer amar-nos misericordiosamente, inundar-nos com
as "ondas de infinita ternura". E Teresa oferecer-se-á a Ele. Totalmente. Antes de entrar
nos pormenores do seu "oferecimento", detenhamo-nos ainda uns instantes no papel que
pôde jogar a imagem do seu papai, Luís Martin, nesta visão nova.
Três semanas depois da morte do seu pai, no dia 29 de julho de 1894, Teresa
confessa a Celina: "Como estas pequenas delicadezas nos fazem sentir que o nosso Pai
querido está perto de nós! Depois de uma morte de cinco anos que alegria reencontrá-lo
sempre o mesmo, procurando como antigamente os meios de nos dar prazer" (Ct 169).
Além disso, desde a primeira linha, o papai está presente nesta "história primaveril
de uma florzinha branca": este apelativo de "florzinha branca", que Teresa recebeu do seu
pai na tarde do Pentecostes de 1887, quando a autorizava a entrar no Carmelo, florzinha
branca que levava então — gesto simbólico e que sugestivo! — na sua Imitação de Cristo,
no capítulo: "Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas" (Ms A 50v).
Ao longo destas "recordações de infância", os "pais sem igual" (Ms A 4r) estão
presentes. Além disso, Teresa reavivou as suas recordações pessoais ao reler a
correspondência (impressionante) da sua mamãe. Enquanto escrevia, Teresa contempla o
coração do seu papá, morto recentemente e que agora "a olha e protege", este "coração tão
terno do papai [que, depois da morte da senhora Martin, tinha] unido ao amor que já de si
possuía um amor verdadeiramente maternal" (Ms A 13r).
Neste contexto existencial depois da morte do Sr. Martin, que se tinha reunido —
com a sua esposa no céu e que velava sobre Teresa, compreende-se melhor porquê a
carmelita esteve profundamente afetada no momento de descobrir o seu "pequeno
caminho" na passagem de Isaías que compara Deus a uma mãe que senta o seu filho sobre
os joelhos e o cumula de carícias.
A vida póstuma do Sr. Martin foi contada muitas vezes nos últimos anos da sua
filha! Como o seu papai tinha sido para a sua filha Teresa uma imagem de Deus; como,
mais tarde, o olhar humilhado de seu pai se parecia com o da Santa Face de Jesus, servo
sofredor de Javé, assim o olhar e a recordação do papai que tinha entrado já na glória de
Deus converteram-se para Teresa, mais do que antes, num espelho em que o olhar
resplandecente e o coração maravilhoso de Jesus recebiam uma cor ainda mais humana e
concreta.
Na sua poesia Só Jesus, Teresa escreverá em 1896 palavras que vibram ainda com
doçura pela experiência feliz e vital que teve do seu próprio pai: "Tu que soubeste criar o
coração das mães / encontro em Ti o mais terno dos Pais! / Meu único Amor, Jesus,
Verbo Eterno / Para mim o teu coração é mais que maternal" (PN 36). Quinze dias depois
do seu oferecimento ao Amor misericordioso, Teresa tinha reconhecido já — na sua
poesia Ao Sagrado Coração de Jesus —, mostrando-se maravilhosamente humana na sua
fé no Verbo encarnado: "Preciso de um coração ardente de ternura, / Que me dê a sua
força sem reserva, / Que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza, / Que nunca me
abandone nem de dia nem de noite. / Não pude encontrar nenhuma criatura / Que sempre
me amasse, sem nunca morrer. / Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza, /
Que se torne meu irmão e possa sofrer!" (PN 23,4).
Assim pois, Teresa nunca sondou melhor o amor de Cristo do que nesta manhã
primaveril do dia 9 de junho de 1895, cume de luz. Nas primeiras horas do dia (durante a
hora de oração silenciosa ou durante a eucaristia?) — não o sabemos), foi repentinamente
transportada pela realidade e a beleza do Amor misericordioso da Trindade, das Três
Pessoas divinas, que, em Jesus, querem se comunicar conosco, até inundar o nosso ser
profundo e a nossa existência diária (Ms A 83 r-84r).
"Já que Vós me amastes até me dardes o vosso Filho único para ser o meu
salvador e o meu Esposo..." (Or 6), canta jubilosa, deslumbrada pela luz que se derrama
do cume do amor que é Jesus. Na festa da Santíssima Trindade, o coração de Teresa
sonda o coração de Deus e sente-se completamente renovada. Teresa experimentará a
graça que recebe como um privilégio, uma eleição divina. "O Amor escolheu-me como
holocausto, a mim, fraca e imperfeita criatura": "é a minha própria fraqueza que me dá a
audácia para me oferecer como vítima ao teu Amor, ó Jesus!" (Ms B 3v).
E o coração de Teresa, coração de esposa, terno e fiel, sente uma dor dilacerante
diante da solidão de Jesus, forçado — por não lhe abrir as portas — a "reprimir as ondas
de infinita ternura que há Nele", quando bastaria, para as derramar, "lançar-se nos seus
braços e aceitar o seu Amor infinito..."
Porém, mais do que dor, Teresa sente uma "santa indignação" diante de Jesus que
"ficaria contente" de encontrar, por fim, um coração entregue sem reservas e sem
restrições. E a jovem religiosa de vinte e dois anos grita: "ó meu Jesus! Que seja eu essa
feliz vítima! Consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!..."
O oferecimento
Trata-se de "compreender o quanto Jesus deseja ser amado", não temido. E a sua
infinita misericórdia, não a sua justiça exata e severa, que deve ser exaltada. Não é a
justiça divina que necessita de compreensão e resposta, mas a "infinita ternura" de Deus,
o seu "Amor misericordioso". Não se trata "de atrair sobre ela" castigos, mas de nos
deixarmos atrair pela ternura divina. Jesus não queria "descarregar" a sua justiça, mas de
“abrasar-nos" com o fogo do seu Amor.
Há oito meses que Teresa descobriu o seu "pequeno caminho", do qual recorda,
no princípio da sua oração de oferecimento, os eixos principais: o ideal da santidade
("numa palavra, desejo ser santa"), a realidade da sua própria impotência ("mas conheço a
minha impotência"), a reconciliação do ideal e da impotência no abandono que confia na
obra santificadora de Deus nela ("e peço-Vos, ó meu Deus, que sejais Vós mesmo a
minha Santidade"). Pois bem, nesta manhã, Teresa "compreende melhor do que nunca"
com quanto empenho o Amor misericordioso do Senhor está à sua procura, à nossa, no
coração da nossa pequenez. O Oferecimento ao Amor misericordioso situa-se,
historicamente e pela sua mesma natureza, nas perspectivas que este "pequeno caminho"
abre. O oferecimento é a conseqüência lógica, a expressão orante e a consagração
definitiva. A tese do desejo de santidade e a antítese da impotência ficam reconciliadas na
síntese do abandono que confia na obra do Deus três vezes santo, Amor misericordioso.
Depois, volta a formular a sua súplica inicial de santidade. "Peço-Vos que venhais
tomar posse da minha alma". Posse completa, como uma "pequena hóstia" parecida à
hóstia eucarística que se converte no corpo de Cristo. Pequena hóstia, cuja "fraqueza" e
"imperfeições" serão "consumidas" e "transformadas" pelo fogo do amor divino.
Oh, não, Teresa não quer de modo nenhum apoiar-se nos seus próprios "méritos":
evitará a menor aparência de arrogância farisaica diante de Deus e dependerá unicamente
da pura bondade divina, da qual será louvor por toda a eternidade. A sua "única meta" não
é "acumular méritos", mas "trabalhar só por amor" de Deus, permitindo-lhe que "deixe
transbordar para a sua alma as ondas da sua ternura infinita". O seu objetivo é aliviar o
coração de Deus e fazer da sua própria vida um louvor da misericórdia de Deus, que, ela,
deseja ser o centro da nossa santificação — todo o Novo Testamento o testemunha. Deste
modo, será o Amor misericordioso quem realizará nela o seu sonho de amor! Teresa
"aceitará" o Amor, "receberá do Amor" a sua própria justiça" e o seu "céu".
Teresa qualifica esta tomada de posição diante da misericórdia como um
"oferecimento". Que respeito nesta oblação! Que dependência total da benevolência de
Jesus à qual, no entanto, se confia com total segurança, pois entreviu no seu coração o
desejo impetuoso de se comunicar! Por nada do mundo Teresa obrigaria Jesus a aceitá-la,
se não soubesse que é o desejo mesmo de Deus que ela se ofereça.
Assim pois, Teresa "suplica" com ardor ser "consumida" e 'transformada" pelo
fogo do Amor misericordioso. Quer decididamente lançar-se ao fogo, para receber tudo
do fogo. Sim, além disso, dirá. Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54). Desde a
festa da Trindade 1895 compreendeu, melhor do que nunca, que o dom de si é antes de
tudo o fruto de uma ação divina gratuita e cumulante: amar é receber tudo e receber-se a
si mesmo da misericórdia à qual nos abrimos e nos oferecemos.
Martírio de amor
Teresa pronuncia então uma espécie de voto de pobreza espiritual. "Na noite desta
vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que
conteis as minhas obras". Há uns anos descobriu que todo o nosso esmero é imperfeito e
tem "manchas": motivos bons e motivos mais egoístas misturam-se facilmente... Mas,
Teresa é, sobretudo, empurrada pelo desejo, certamente pela vontade firme ("quero"...
"não quero"), de prestar homenagem total ao Amor redentor de Cristo. Não é ela que
construirá o seu trono, nem fabricará a sua coroa: só Jesus será o seu "Trono" e a sua
única "Coroa". Todo o louvor será dirigido a "Vós, ó meu Bem-amado!..."
Outro gesto eloqüente: doravante trará sempre sobre o seu coração o Evangelho, a
fórmula dos votos religiosos e o texto do seu oferecimento (o autógrafo está gasto e
remendado): batismo do cristão, profissão religiosa e oferecimento ao Amor estão aqui
simbolicamente unidos.
Os frutos
Mas se uma experiência extraordinária deste tipo foi não habitual, Teresa, de
modo difuso, experimentou os três grandes benefícios do seu oferecimento. Seis meses
depois, fala do impacto maravilhoso na sua vida. "Ah! Desde esse feliz dia, parece-me
que o Amor me penetra e me envolve. Parece-me que a cada instante este Amor
Misericordioso me renova, purifica a minha alma e não deixa nela nenhum vestígio de
pecado" (Ms A 84r). Agora se sente "inundada de luzes" (Ms A 32r). "Sinto que Jesus
está em mim. Ele guia-me e inspira-me a cada instante o que devo dizer ou fazer" (Ms A
83v). E nós sabemos como Teresa chegou a ser luminosa e incandescente para com os
seus próximos, lâmpada ardente em toda a Igreja.
Sem dúvida alguma, a partir da Páscoa de1896, quando, depois da sua primeira
hemoptise, Teresa está certa de morrer em breve, entra numa misteriosa noite sobre o
mais além. Se a luz simples e abundante desapareceu, como é que Teresa se sente,
todavia, levada pelo Amor misericordioso ao qual se ofereceu? A sua fé permanece
inquebrantável. Jesus está muito perto: "Em cada nova ocasião de combate, quando o meu
inimigo me vem provocar, porto-me com bravura. Sabendo que é covardia bater-se em
duelo, volto às costas ao adversário, sem me dignar olhá-lo de frente, mas corro para o
meu Jesus... Nunca experimentei tão bem como o Senhor é bom e misericordioso. Ele não
me enviou este sofrimento senão no momento em que tive a força para o suportar" (Ms C
7 r-7v).
A sua oração? Desde há tempo era mais uma maravilhosa relação de um "eu" com
um "Tu". Agora é antes uma relação, não menos maravilhosa, de um Tu com um "eu" que
confia totalmente. Teresa deixa que Jesus viva nela: "Eis a minha oração. Peço a Jesus
que me atraia para as chamas do seu amor, que me una tão estreitamente a Ele, que viva e
atue em mim" (Ms C 36r).
O seu apostolado? "Compreendi que a única coisa necessária era unir-me cada vez
mais a Jesus e que o resto me seria dado por acréscimo. Com efeito, nunca a minha
esperança foi iludida; Deus dignou-se encher a minha mãozinha tantas vezes quantas as
necessárias" (Ms C 22v).
As suas inevitáveis faltas? "Ainda que eu tivesse cometido todos os crimes
possíveis, mesmo assim teria sempre a mesma confiança: sinto que toda essa multidão de
ofensas seria como uma gota de água lançada num braseiro ardente" (UCR 11.7.6).
No dia 30 de setembro de 1897, último dia da sua vida, pela tarde, Teresa dirá:
"Não me arrependo de me ter entregue ao Amor... Oh! não, não, não me arrependo, pelo
contrário! (UCR 30.9).
"Viver de Amor"
Do meu Amor!...
Vivo de Amor!...
Viver de Amor.
«Vivo de Amor!...»
Vivo de Amor.
«Viver de Amor».
Viver de Amor, quando Jesus dormita
Vivo de Amor!...
Vivo de Amor.
Vivo de Amor!...»
É o meu Amor!...
«Viver de Amor, que estranha loucura!» Diz-me o mundo, «Ah! cessa de cantar,
«Morro de Amor!»
Morrer de Amor!...
CAPÍTULO 8
RO BERTO F O RN A RA O cd
"Se tivesse sido sacerdote (...), teria estudado hebreu e grego para poder ler
a P a la vr a d e D eus na m es ma li ng ua ge m humana com que Ele se quis
exprimir" (Conselhos e Lembranças, pp. 93-94).
A poesia Por que te amo, ó Maria (PN 54), composta poucos meses antes da
sua morte, testemunha, por exemplo, que o seu modo de contemplar a Virgem é muito
mais objetivo e conforme aos evangelhos que o de tantos pregadores do seu tempo,
todos eles dispostos a cantar com retórica exagerada os privilégios e as graças
particulares da Virgem, embelezando a vida dela com particularidades inúteis e
aborrecidas. Teresa, fundando-se no dado bíblico, sente-se, pelo contrário, como
apanhada pela pobreza, pela simplicidade, pela peregrinação na fé de Maria. Apesar
das limitações pessoais e das do seu tempo, Teresa continua a ser mestra na leitura da
Palavra de Deus.
Porque conhece a nossa fragilidade, lembra-Se de que não somos senão pó.
Como um pai sente ternura pelos seus filhos, assim o Senhor tem compaixão de nós"
(vv. 4.6.8.23-24; cf. Ct 226). Recordando talvez a expressão de Paulo no hino
cristológico da carta aos Filipenses (2,6-11), Teresa acolhe o dom desta misericórdia
sobretudo em Jesus, chegando a apelidar de "loucura" o Filho de Deus que, por
amor, renuncia às prerrogativas da sua natureza divina em busca da humanidade
perdida (cf. 169).
Teresa descobre e penetra nesta realidade, até reconhecer que o caminho pelo qual
o Senhor a guiou esteve sempre tecido de misericórdia (cf. Ms A 71r). Se não
cometeu pecados mortais, sabe que o deve à "inefável previsão" de Deus que, tirando do
seu caminho as ocasiões de queda, "perdoou-lheantecipadamente, impedindo-a de
cair". Teresa sabe que foi "preservada apenas pela grande misericórdia de Deus" (cf.
Ms A 38v); não lhe foi perdoado muito, mas tudo; em conseqüência, amará a este "Pai que
não enviou o seu Verbo para resgatar os justos, mas os pecadores" (Ms A 39r).
O mandamento novo
Sob a guia da Palavra, encontro com o Cristo vivo que ama nela, a vocação
de Teresa — como a de qualquer cristão e, mais ainda, a do contemplativo — torna-se,
deste modo, resplendor e luz. Não importa o ambiente em que se vive: o importante é
ser luz! Se a Palavra de Deus é lâmpada para os nossos passos, luz no nosso caminhar
(cf.Sl 119,105), é-o na medida em que nos deixamos iluminar, encher do seu calor. Não
se pode transmitir a Palavra de Deus friamente, com desinteresse, sem deixar "queimar
as mãos" por este dom, como afirma uma personagem de Bernanos. A Palavra é
chamada a ser, como para Jeremias, "um fogo abrasador, encenado dentro dos meus ossos",
diante do qual o profeta reconhece: "esforcei-me por contê-lo, o mas não pude" (Jer 20,
9). Teresa ensina-nos a aproximar-nos assim da Palavra de Deus: não como um objeto
de estudo, mas como encontro de conversão no amor.
"Aqui tendes, meu irmão, o que penso sobre a justiça de Deus, o meu caminho é
todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno.
Às vezes quando leio certos tratados espirituais em que a perfeição é apresentada através
de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre
inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me
seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só
palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta
reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus.
Deixando às almas grandes, às grandes inteligências, os belos livros que não posso
compreender, e ainda menos pôr em prática, regozijo-me por ser pequenina visto que só as
crianças e 'os que se assemelharem a elas serão admitidas ao banquete celestial' (Mt
19,14). Sinto-me muito feliz por haver várias moradas no reino de Deus, porque se houvesse
apenas aquela cuja descrição e caminho me parecem incompreensíveis, não poderia lá entrar" (Ct
226).
TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA-
AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd
PARTE III
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CAPÍTULO 9
A CARIDADE FRATERNA
PIERRE DESCOUVEMONT
Esta caridade heróica que Teresa exerceu nos primeiros anos da sua vida
conventual é, efetivamente, uma caridade sorridente, porque Jesus já lhe fez compreender
as razões de se sentir cheia de caridade em relação às suas irmãs. A fortaleza da sua
alma, por grande que seja, tem as suas raízes na íntima convicção de que Jesus está ali,
muito perto dela de que Ele lhe pede este sacrifício e de que no último dia a
recompensará com o cêntuplo por todos os esforços que fez nesta vida para obedecer ao
seu mandamento de amor.
Como boa psicóloga, Teresa tinha indicado que há duas formas de inveja conforme
os bens que invejamos no próximo. Umas vezes são as qualidades mais ou menos
brilhantes que nós não temos e cuja privação nos entristece. Outras vezes é o mesmo fervor
da caridade que anima o coração de um irmão ou de uma irmã e que acentua, por contraste,
a nossa própria mediocridade.
Quais são os princípios que Teresa indica para triunfar desta primeira forma de
inveja?
Em resumo, quando somos tentados a invejar um dos nossos irmãos por causa
do resplendor dos seus talentos, temos imediatamente que recordar-nos do valor
relativo destes dons e do seu destino comunitário.
Este segundo modo de ter inveja do próximo existe frequentemente nas almas
que procuram a santidade. De tal modo desejam progredir no amor que ficam
incomodadas ao verem que as outras se lhes "adiantam". Ou desanimam imaginando
que Deus não se compraz já em tê-las em conta, ou, pelo contrário, procuram
tranquilizar-se atribuindo ao amor-próprio ou à hipocrisia o que ao princípio
desejavam com vontade admirar nos seus próximos. Que meios nos propõe Teresa para
vencer esta segunda forma de inveja?
Indiquemos, em primeiro lugar, que Teresa esteve preocupada, desde a sua
infância, por este mistério da desigualdade entre as almas. Ainda muito nova, admirava-
se "por Deus não dar uma glória igual no Céu a todos os eleitos" (Ms A 19 r-v): tinha
receio de que não fossem todos felizes. Enchendo um grande copo e um dedal, juntos,
Paulina explicou então à sua pequena irmã que cada um dos eleitos teria a glória que
pudesse receber e que assim o último nada teria a invejar ao primeiro.
Esta solução, por válida que seja, considera ainda as almas como justapostas umas
em relação às outras; não tem em conta o mistério da comunhão dos santos, que
permite a todas as almas participar das riquezas do Corpo místico inteiro. É esta a
verdade na qual nos devemos apoiar, refere Teresa, para vencer radicalmente a
tentação de sentir inveja do próximo por causa da excelência da sua caridade.
É a própria Teresa quem com toda a clareza expõe à Irmã Genoveva o seu
pensamento sobre esta questão. Urna vez mais a noviça participava à sua jovem irmã as
suas tentações de inveja: "O que eu invejo em ti,são as tuas obras. Queria fazer também
o bem, compor coisas belas que façam amar a Deus!". Teresa responde-lhe, em
primeiro lugar, com o princípio acima enunciado, a saber, que a redação de obras
espirituais não é de modo algum sinal de maior santidade: o fato de ser eleito por Deus
como instrumento para dar a conhecer a sua mensagem não é sinal de um amor maior
da parte dele. "Não há que atacar a sua irmã por isso — responde Teresa —. Não há
que desejar fazer o bem por meio de livros, de poesias, de obras de arte..."
O amor é paciente
"O amor é paciente... tudo suporta" (1Cor 13,7). Estas duas expressões
enquadram a descrição paulina do ágape; tão certo é que, para o apóstolo, como para
o bom sentido do povo, a paciência é a primeira e a última palavra do amor. Teresa
sabia-o por experiência. Devia esforçar-se frequentemente por ser paciente na
comunidade. Como o fazia? Como ajudava as suas noviças para que também elas se
exercitassem na paciência?
O tratamento a quente
Teresa apoiava-se nas célebres palavras de São Paulo: "Tudo concorre para o bem
dos que amam a Deus" (Rom 8,28). Em vez de se deixar hipnotizar pela má vontade ou
pelo caráter desagradável de uma irmã, pensava no instante em Jesus presente em tal
provação. Não tinha tomado a decisão de se abandonar como uma bolinha nas mãos de
Jesus?
Teresa explica-o à Irmã Genoveva num dia em que esta lhe confiava uma vez
mais a sua dificuldade de ser paciente. "Esta vez — dizia a Irmã Genoveva — é
impossível, não posso vencer-me". "Isso não é de admirar — replicou imediatamente
Teresa —. Somos demasiado pequenas para sobrepormo-nos às dificuldades; é necessário
que passemos por debaixo delas. Recorda-te do dia que, em Alençon, passamos entre
as patas de um cavalo que impedia a entrada de um jardim, enquanto as pessoas mais
velhas não sabiam o que fazer para entrar. Vê o que se ganha com ser pequena. Para os
pequenos não há obstáculos, passam-se por todos os lados. As almas grandes podem
passar sobre os negócios, examinar as dificuldades, chegar pela reflexão a pôr-se por cima
de tudo, mas nós, que somos pequenas, devemos evitar tentá-lo. Passemos por debaixo!"
(CSG 43-44).
Para Teresa, o fato de sofrer com tristeza, longe de ser uma imperfeição, é uma
graça de eleição, uma participação mais estreita na paixão de Cristo: "Que grande graça
quando pela manhã nos sentimos sem nenhumacoragem, nenhuma força para praticar a
virtude!" (Ct 65).
O que não quer dizer que Cristo não reconhecesse a vontade de seu Pai nas
mãos dos verdugos que o crucificavam. Vontade misteriosa, inefável... É o próprio
mistério da Redenção, cuja imperiosa necessidade senos escapa, embora o Ressuscitado o
dissesse com tanta força aos discípulos de Emaús: "Não devia o Messias sofrer para
assim entrar na sua glória?" (Lc 24,26).
O tratamento a frio
Deixemo-nos também aqui guiar por Teresa, que nos mostra como a nossa
primeira impaciência para com o próximo deve-se frequentemente à nossa
ignorância. Um melhor conhecimento do próximo evita-nos muitos arrebates inúteis;
permite-nos, sobretudo, obter uma vitória definitiva sobre as nossas tentações de
impaciência, ao dar-nos a oportunidade de olhar para os outros com o mesmo olhar do
Senhor, um olhar ao mesmo tempo lúcido e indulgente.
Por outro lado, Teresa tinha advertido, enquanto se ocupava das noviças, que
não era necessário enfrentar-se ao princípio com esta tática contra a impaciência. "No
princípio do seu cargo de mestra de noviças — explica a Irmã Genoveva quando lhe
contávamos os nossos combates interiores, as nossas tentações de impaciência, a
nossa querida irmãzinha procurava o modo de nos sossegar, quer por reflexões, quer
demonstrando-nos claramente que tal ou qual das nossas companheiras não tinha tido
sorte. Isto levava a longas discussões que não conseguiam o fim desejado nem
aproveitavam em nada as nossas almas. Ela deu-se conta disso imediatamente e
mudou de tática. Em vez de tentar suprimir os nossos combates destruindo as suas
causas, fazia-nos olhá-los de frente" (CSG 10).
Teresa do Menino Jesus, doutora do "pequeno caminho", não esquece que ser
fiel a esta linha de conduta é difícil. Mas é necessário nunca desanimar. Para ser paciente
com o próximo, devemos ser antes paciente consigo próprio. Sabemos como
Teresa insistia nesta matéria: "O principal da sua doutrina - afirma a Irmã Genoveva
- era ensinar-nos a não nos afligirmos ao ver que - éramos a mesma fraqueza, mas antes a
gloriar-nos das nossas fraquezas" (CSG 20).
Vê-se aqui claramente como o amor de Teresa para com o seu próximo era
a imagem do amor que tinha a si mesma. Se tinha tanta indulgência para os demais, era
porque era em princípio muito indulgente e muito paciente consigo mesma. Indicou-
se frequentemente que antes de suportar os outros é preciso saber suportar-se a si mesmo.
Parece que foi quando ajudava na rouparia a Irmã Maria de São José, religiosa
neurastênica que carecia de qualidades atraentes, quando se apresentou a Teresa a
oportunidade de descobrir todas as exigências evangélicas da caridade. Teresa não se
preocupou de enumerar as diferentes "luzes" que então recebeu. Mas, seguindo o texto
do seu último manuscrito, podem distinguir-se quatro.Teresa não usa aqui a palavra
"descoberta", mas recordemos que o verbo "compreender", que Teresa escreve
catorze vezes em catorze páginas, evoca sempre na sua pena uma graça de luz.
O que em primeiro lugar impressionou a Teresa foi o que Jesus disse: "o
segundo mandamento é semelhante ao primeiro: ‘Amarás o teu próximo como a ti
mesmo’ (Mt 22,39). Teresa sublinha a palavra "semelhante”, não o tinha feito até
então. Nunca tinha aprofundado estas palavras de Jesus (Ms C 11v). Pois bem,
compreendeu que o segundo mandamento era tão importante como o primeiro, que
devia aplicar-se a agradar aos demais com o mesmo cuidado que tinha posto até então
para agradar a Deus. Ou melhor ainda, que o único modo de agradar a Deus era o de
praticar o seu segundo mandamento: "Aplicava-me, sobretudo a amar a Deus, e foi
amando-O que compreendi que o meu amor não se devia traduzir só em palavras,
porque: 'Não são aqueles que dizem: Senhor, Senhor, que entrarão no reino dos Céus,
mas aqueles que fazem a vontade de Deus' (Mt 7,21)" (Ms C 11v).
Que diz? Teresa tinha esperado o final da sua vida para saber que o amor não se
devia manifestar só com palavras? Dispensamo-nos de refutar tal suposição. Não dizia
ela alguns meses antes: "O amor prova-se com as obras"? (Ms B 4r). E Teresa fazia-o:
privar-se, por seu lado, da bebida para a deixar à sua vizinha do refeitório, procurar
no recreio a companhia das irmãs menos agradáveis, etc. Porém, até estes
momentos, Teresa ainda não tinha indicado tão profundamente a importância do "segundo
mandamento".
Bastará um exemplo para o demonstrar. Em agosto de 1893, ao comentar a
pedido de Celina a página evangélica onde Nosso Senhor afirma que seremos
julgados pelo amor efetivo que tenhamos mostrado aos outros, Teresa só vê uma coisa
no grande af r e s c o d o j u í z o f i n a l : Jesus mendiga-nos o nosso amor. "Ele faz-se
pobre para que possamos dar-lhe esmola". Não se trata do amorque Jesus nos mendiga na
pessoa dos nossos irmãos necessitados, mas do amor que devemos "reservar" para
Jesus, e "negá-lo" aos outros: "Demos, demos a Jesus, sejamos avarentas com os
outros, mas pródigas com Ele!" (Ct 145).
Advirtamos que no seu primeiro manuscrito Teresa usa apenas uma vez a
palavra "caridade" (Ms A 45v). Na sua carta à Irmã Maria do Sagrado Coração, usa-a
duas vezes, mas no sentido de amor a Deus. Pelo contrário, no último manuscrito, usa
vinte e seis vezes a palavra "caridade" — sempre no sentido de amor ao próximo — e a
palavra "caridosa", quatro vezes. Só ao final da sua vida, Teresa compreende que Jesus
dá ao mandamento da caridade fraterna uma importância tão grande.
Sobre isto, encontra outras três provas na Escritura: Jesus fala-nos da caridade
"quase em cada página do Evangelho"; "na última ceia", depois de se entregar aos
discípulos "no inefável mistério da Eucaristia", dá-lhes um mandamento novo, o de se
amarem uns aos outros; Jesus "faz deste amor o sinal distintivo dos seus".
Nos últimos meses da sua vida, com efeito, Teresa dedica-se a exprimir o seu
amor fraterno com uma ternura e espontaneidade maravilhosas. Tinha chegado a ser tão puro
o seu amor que não temia amar as suas irmãs de modo "demasiado humano". Prova disto
é a recordação da Irmã Maria da Trindade que conta como Teresa tinha ido consolá-la
num dia de junho de 1897 sentando-se a seu lado, num tronco de árvore, e apoiando sobre
o seu coração a cabeça da sua noviça.
"Desde que esta suave chama" da caridade "dilatava o seu coração" (Ms C
16r), Teresa sentia que o amor que ela suscitava no coração das suas irmãs não fazia mais
que reforçar o seu amor a Deus. É o que explicava a esta mesma irmã, a Irmã Maria da
Trindade, que se perguntava se não amaria demasiado a sua mestra de noviças.
No verso de uma estampa que lhe deu no dia 7 de maio de 1896, Teresa tinha
copiado estepensamento da São João da Cruz: "Quando a afeição é puramente espiritual,
crescendo ela, cresce a de Deus, e quanto mais se recorda dela tanto mais se recorda de
Deus e lhe dá vontade de Deus, e crescendo num cresce no outro" (1N 4,7).
Igualmente, à luz deste terceira descoberta se deve ler todos os testemunhos sobre
a alegria de Teresa durante a sua última doença. Expressão do seu amor a Deus, da
aceitação gozosa da sua vontade, esta alegria manifestava, consequentemente, o seu
desejo de consolar a sua família, entristecida com a perspectiva da sua morte iminente.
Teresa compreende, no fim e no mais íntimo, que lhe é impossível levar a cabo
este magnífico programa se Jesus não vem amar nela a todos e a todas a quem Ele lhe
pediu que amasse. Daí a exclamação escrita no centro do seu relato: "Oh! como gosto
d'Ele, já que me dá a certeza de que a vossa vontade é amardes em mim todos aqueles a
quem me mandais amar!..." (Ms C 12v). Desde logo, se poderia julgar que Teresa
tinha compreendido já no dia 10 de abril de 1896 a vontade de Jesus de amar nela a
todas as suas irmãs. Nesse dia escreve a Leônia: "Minha irmãzinha querida, não posso
dizer-te tudo o que o meu coração encerra de pensamentos profundos a teu respeito; a
única coisa que quero repetir-te é esta: "amo-te mil vezes mais ternamente do que
habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso
Celeste Esposo” (CT 186). Com efeito, Teresa está a pensar que no dia seguinte — na
festa da sua irmã — poderá comungar e unir-se assim ao amor mesmo de Jesus a Leônia.
Mas não pensa ainda que esta possibilidade de amar os outros com o próprio Coração de
Jesus lhe seja oferecida a todo momento. Só alguns meses depois, lhe será concedida
essa luz.
"Como agora estou feliz pelas privações que me impus desde o início da minha vida
religiosa! Gozo já da recompensa prometida aos que combatem corajosamente. Já não sinto ser
preciso recusar-me todas as consolações do coração, pois a minha alma está consolidada por
Aquele que unicamente quero amar. Vejo com alegria que, amando-O, o coração se dilata, e
que pode dar incomparavelmente mais ternura àqueles que lhe são queridos, do que se
tivesse se concentrado num amor egoísta e infrutífero" (Ms C 22r).
"Nem sempre é possível, no Carmelo, praticar ao pé da letra as palavras do
Evangelho; pois as vezes, se é obrigada a recusar um serviço, por causa dos ofícios. Mas
quando a caridade lançou profundas raízes na alma, manifesta-se exteriormente. Há uma
maneira tão graciosa de recusar o que não se pode dar, que a recusa dá tanto prazer como o
dom" (Ms C 18r).
"Sim, encontrei o meu lugar na Igreja, e esse lugar, ó meu Deus, fostes Vós que mo
destes... No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor... Assim serei tudo..., assim o
meu sonho será realizado!!!
Porque falar de uma alegria delirante? Não, esta expressão não é exata. É antes a
paz calma e serena do navegante ao avistar o farol que o há de guiar ao porto. Ó Farol
luminoso do Amor, eu sei como hei dealcançar-Te; encontrei o segredo para me apropriar da
tua chama.
CAPÍTULO 10
APÓSTOLA E MISSIONÁRIA
Teresa compreende a figura de Cristo, “o homem para os outros", que, inocente, carrega com
o pecado do homem e expia-o na cruz. Tal impressão torna-se mais profunda muito em
breve, mergulhando num desejo ardente de participar na paixão em primeira pessoa.
Quando o Senhor chame Teresa para o Carmelo a fim de a tornar sua esposa,
será, pois, "uma consagrada para os outros", levando muitos irmãos à salvação.
Teresa, com a sua decisão de ficar ao pé da cruz para receber a graça e
reparti-la depois pelas almas, propõe-se libertar o seu tempo e o nosso da heresia: a
indiferença de muitos pela redenção realizada por Cristo.
No entanto, a sede de almas não fez mais do que começar. Dois meses depois, na
alma de Teresa dá-se um salto de qualidade: não são as almas dos pecadores as que a
atraem, mas adverte que também as dos sacerdotesnecessitam da sua ajuda. Esta
preocupação leva-a consigo para o Carmelo.
Teresa entra num convento de freiras de clausura que, em 1861 tinha fundado
um convento em Saigon, em terras de missão, dedicado, consequentemente, à salvação
das almas, salvação procurada conforme um estilo espiritual completamente
particular, indicado por um livro titulado O tesouro do Camelo, no qual se lia, entre outras
coisas: "O fim da Ordem do Carmelo é o de honrar a Encarnação e a aniquilação do
Salvador, e de se unir estreitamente ao Verbo feito carne e de glorificar a Deus imitando a
sua vida escondida, sofredora e imolada. É, também o de rogar pelos pecadores, o de se
oferecer por eles à justiça divina e suprir, com o rigor de uma vida austera e crucificada, a
penitência que eles não fazem; de modo que uma carmelita está encarregada de
continuar e completar, em certo modo, a obra de mediação de Cristo. Esta Ordem exige
almas generosas e mortificadas que se ponham generosamente no lugar do divino Mestre,
já impassível, para serem imoladas com Ele para a glória do Pai e para a salvação das
almas".
Entre aqueles que seguiram a sua pregação em Roma encontra-se uma senhora,
protestante, que há pouco tinha perdido o seu marido, uma tal Emília Meriman.
Comovida pela pregação do P. Jacinto, faz-se instruir por ele no catolicismo e converte-
se. Pouco tempo depois, transfere-se para os Estados Unidos. O Pe. Jacinto continua a sua
pregação e, entre várias peripécias e encontros com a doutrina da Igreja, no dia 20 de
setembro de1869 anuncia publicamente a sua saída da Ordem carmelita. Depois de três
anos na Inglaterra, casa-se com a senhora Meriman. Une-se ao grupo dos Velhos
Católicos e tenta fundar uma igreja católica galicana. O seu comportamento consegue
alguma aprovação, mas, sobretudo, gera uma condenação severa dos moderados.
Para Teresa, este seu irmão converte-se no protótipo dos sacerdotes que se
afastam da Igreja. No dia 14 de outubro de 1890 escreve a sua irmã: "Querida Celina, o
que tenho a dizer-te é sempre o mesmo. Ah! Rezemos pelos sacerdotes, cada dia mostra
quanto os amigos de Jesus são raros... parece-me que o mais sensível para Ele deve ser a
ingratidão, sobretudo ver as almas que Lhe são consagradas darem a outros o coração
que Lhe pertence de uma maneira absoluta" (Ct 122). Um ano depois é mais explícita:
"Celina, só o sofrimento pode gerar almas para Jesus... É surpreendente que estejamos tão
bem servidas, nós cujo único desejo é salvar umaalma que parece perdida para
sempre... As notícias pormenorizadas interessam-me muito, embora tenham feito
bater com força o meu coração... Mas eu vou dar-te ainda outras que não são mais
consoladoras. O infeliz pródigo foi a Coutances onde recomeçou as conferências de
Caen. Parece que tenciona percorrer assim a França... Celina... E além disso diz-se que
é fácil ver que o remorso o atormenta, percorre as igrejas com um grande crucifixo
e parece fazer grandes adorações... A mulher dele segue-o por toda a parte. Celina
querida, ele é muito culpado, mais culpado talvez do que nunca foi um pecador que se
tenha convertido, mas não pode Jesus fazer uma vez o que ainda nunca fez? E se o não
desejasse, teria posto no coração das suas pobres esposazinhas um desejo que não
pudesse realizar?... Não, é certo que deseja mais do que nós reconduzir ao redil esta
pobre ovelha transviada; virá um dia em que lhe abrirá os olhos e então quem sabe se a
França não será por ele percorrida com um objetivo totalmente diferente daquele que agora
se propõe. Não noscansemos de rezar a confiança faz milagres e Jesus disse à Bem-
aventurada Margarida Maria: 'Uma alma justa tem tanto poder sobre o meu coração
que pode obter dele o perdão para mil criminosos'. Ninguém sabe se é justo ou pecador
mas, Celina, Jesus faz-nos a graça de sentir no mais íntimo do nosso coração que
preferíamos morrer a ofendê-lo, e depois não são os nossos méritos, mas os do nosso
Esposo que são os nossos que oferecemos ao pai que está nos Céus, a fim de que o nosso
irmão, um filho da Ssma. Virgem, volte vencido a refugiar-se sob o manto da mais
misericordiosa das Mães" (Ct 129).
Em janeiro de 1895, ao dedicar o seu primeiro manuscrito à sua Irmã Paulina, priora
do convento, Teresa escreve, ao narrar os primeiros dez anos da sua infância: "Foi assim
que, ao ler a narrativa das ações patrióticas das heroínas francesas, em particular da
Venerável Joana d'Arc, tinha um grande desejo de as imitar; parecia-me sentir em mim
o mesmo ardor que as animava, a mesma inspiração celeste. Então recebi uma graça que
sempre considerei como uma das maiores da minha vida, porque, nessa idade, não recebia
luzes como agora, que estou inundada delas. Pensei que tinha nascido para a glória e,
procurando o meio de lá chegar, Deus inspirou-me os sentimentos que acabo de
descrever. Fez-me compreender também que a minha própria glória não apareceria aos
olhos mortais, que consistiria em me tornar uma grande santa" (Ms A 32r).
Teresa quer imitar Joana d'Arc, não libertando a sua pátria do inimigo invasor,
mas libertando as almas do inimigo mais perigoso: o pecado Em 1896 compõe esta
oração: "Senhor, Deus dos exércitos que dissestes no vosso Evangelho: 'Não vim trazer a
paz mas a espada', armai-me para a luta, desejo ardentemente combater para vossa
glória, mas suplico-Vos que fortaleçais a minha coragem.... Ó meu Bem-amado!
compreendo a que combate me destinais, não é nos campos de batalha que terei de
lutar. Sou prisioneira do vosso Amor, prendi livremente a cadeia que me une a Vós e
me separa para sempre do mundo que amaldiçoastes ... A minha espada é o Amor, com
ele expulsarei do reino o estrangeiro" (Or 17).
Quando Teresa começa a escrever aos seus irmãos missionários não pode deixar
de os fazer participantes de toda a sua maturidade espiritual, do seu modo de se aproximar
de Deus e das almas, do modo que ela chama "um pequeno caminho muito reto, muito
curto, um caminho completamente novo" (Ms C 2v).
Para termos uma idéia exata do que Teresa comunica com os seus irmãos
missionários, e não trairmos o seu pensamento, é conveniente ler algumas passagens
significativas que nos apresentam sob três aspectos fundamentais da sua fisionomia
espiritual: como se vê em Deus, qual o estilo do seu apostolado espiritual e como pensa
que será a sua missão mais além da sua morte.
Em relação à sua atitude diante do Senhor, escreve deste modo: "Meu Irmão, talvez
a comparação não vos pareça exata? É certo que vós não sois ainda um Pe.
de la Colombière, mas não duvido de que um diasereis como ele um verdadeiro
apóstolo de Cristo. Pela minha parte não me vem nem por sombras ao espírito a idéia
de me comparar com a Bem-aventurada Margarida Maria; verifico simplesmente que
Jesus meescolheu para ser a irmã de um dos seus apóstolos e as palavras que a santa
Amiga do seu Coração lhe dizia por humildade, repito-lhas eu com toda a verdade; por
isso espero que as suas riquezas infinitas supram tudo o que me falta para realizar a obra
que Ele me confia (...) Ó meu irmão! peço-vos que acrediteis em mim, Deus não vos deu
como irmã uma grande alma, mas uma muito pequenina e muito imperfeita. Não
julgueis que é a humildade que me impede de reconhecer os dons de Deus, sei que Ele
faz em mim grandes coisas e canto-Lhe todos os dias com alegria. Lembro-me de que
aquele a quem mais se perdoou mais deve amar, por isso procuro fazer da minha vida
um ato de amor e já não me inquieto por ser uma alma pequenina, pelo contrário, até
me regozijocom isso. Essa é a razão por que ouso esperar que "o meu exílio será curto"
mas não é porque esteja preparada; sinto que nunca o estarei se o Senhor não se dignar
transformar-me n'Ele mesmo; pode fazê-lo num instante; depois de todas as graças com
que me cumulou espero ainda essa da sua misericórdia infinita" (Ct 224).
"O meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que
têm medo de um Amigo tão terno (...) Pela minha parte posso fazer bem pouco, ou
mesmo absolutamente nada se estivesse só, o que me consola é pensar que a vosso lado
posso servir para alguma coisa; de fato o zero sozinho não tem valor, mas colocado
junto da unidade toma-se poderoso, desde que evidentemente se ponha do lado bom,
depois e não antes!... Foi aí que Jesus me colocou e espero aí ficar sempre, seguindo-
vos de longe, com a oração e o sacrifício" (Ct 226).
Pelo que diz respeito ao estilo apostólico de Teresa, lemos ainda: "Peço a Jesus
para que sejais, não só um bom missionário, mas sim um santo abrasado do amor de Deus
e das almas; suplico-vos que alcanceis também para mim este amor para que eu
possa ajudar-vos no vosso trabalho apostólico. Vós sabeis que uma carmelita que não
fosse apóstola afastar-se-ia da sua vocação e deixaria de ser filha da Seráfica Santa
Teresa que desejava dar mil vidas para salvar uma só alma" (Ct 198).
"Sei que há santos que passaram a vida a praticar admiráveis mortificações para
expiarem os seus pecados; mas que quereis? Há várias moradas na casa do Pai Celeste,
disse-o Jesus e é por isso que sigo a via que Ele me indica. Procuro não me ocupar de
mim mesma em nada, e o que Jesus se digna realizar na minha alma me abandono,
porque não escolhi uma vida austera para expiar as minhas faltas, mas as dos outros" (Ct
247).
Mas também Teresa pensa no que lhe espera no mais além do tempo e como
proc u r a viver o seu paraíso: "Meu querido irmãozinho: Quando lerdes estas linhas,
talvez eu já não esteja na terra, mas no seio das delícias eternas! Não conheço o futuro,
mas posso dizer-vos com segurança que o Esposo está à porta, seria preciso um milagre
para me reter no exílio e não creio que Jesus faça esse milagre inútil. Ó meu querido
irmão, como sou feliz por morrer! Sim, sou feliz, não por ficar livre dos sofrimentos
deste mundo (o sofrimento unido ao amor é pelo contrário a única coisa que me
parece desejável no vale das lágrimas). Estou contente por morrer porque sinto que é
esta a vontade de Deus e que muito mais do que neste mundo, serei útil às almas que me
são queridas, à vossa muito especialmente" (Ct 253).
"Nunca pedi a Deus para morrer jovem, ter-me-ia parecido cobardia, mas Ele desde
a minha infância dignou-se dar-me a convicção íntima de que o meu percurso cá na
terra seria curto. Portanto o pensamento de só cumprir a vontade do Senhor é que faz
toda a minha alegria (...) Quando estiver no portode abrigo ensinar-vos-ei, querido
irmãozinho da minha alma, como deveis navegar no mar tempestuoso do mundo com o
abandono e o amor de uma criança que sabe que o Pai a ama e não poderia deixá-la só na
hora de perigo" (Ct 258).
"Dizeis-me que muitas vezes rezais também pela vossa irmã; já que tendes esta
caridade ficaria muito feliz se fizésseis todos os dias por ela esta oração que encerra todos
os seus desejos: Pai misericordioso, em nome do nosso Doce Jesus, da Virgem Maria e
dos santos, suplico-Vos que abraseis a minha irmã no vosso Espírito de Amor e que
lhe concedais a graça de vos fazer amar muito'. Se o Senhor me levar depressa com
Ele, peço-vos que continueis a rezar todos os dias a mesma oração por mim, porque eu
desejarei no Céu o mesmo que na terra: Amar Jesus e f a z ê - l o a m a d o . R e v e r e n d o
P a d r e , d e v e i s achar-me muito estranha, talvez lamenteis ter uma irmã que parece
querer ir gozar do repouso eterno e deixar-vos a trabalhar sozinho. Mas tranquilizai-
vos, a única coisa que desejo, é a vontade de Deus, e confesso que se no Céu já não
pudesse trabalhar para a sua glória, preferiria o exílio à pátria. Não conheço o futuro, mas
se Jesus realizar os meus pressentimentos, prometo-vos continuar a ser sempre a vossa
irmãzinha lá no Céu. A nossa união, longe de ser quebrada, tornar-se-á mais íntima, já não
haverá então clausura, nem grades e a minha alma poderá voar convosco nas missões
distantes. Os nossos papéis continuarão a ser os mesmos, para vós as armas apostólicas,
para mim a oração e o amor" (Ct 220).
"Meu irmão, irei em breve oferecer o vosso amor a todos os vossos amigos
do Céu, pedir-lhes para que vos protejam. — Queria dizer-vos, meu querido
irmãozinho, mil coisas que compreendo agora, estando àsportas da eternidade, mas
eu não morro, entro na vida e tudo o que não posso dizer-vos neste mundo vos farei
compreender do alto dos Céus..." (Ct 244).
De seus escritos surge também outro desejo: o de viver num Carmelo de terras
de missão, onde a sua vida, longe dos afetos familiares mais santos e normais, podia
oferecer-lhe maiores meios para alcançar o fim que se tinha proposto. Teresa exprimiu
este desejo muitas vezes, e só a obediência e a sua saúde delicada lhe impediram o
seu impulso de generosidade heróica.
Escreveu no Manuscrito C: "Estou também pronta para voar para outro campo
de batalha, se o Divino General me exprimir esse desejo. Não seria necessária
uma ordem; bastaria um olhar, um simples gesto. Desde a minha entrada na Arca Santa,
sempre pensei que, se Jesus não me levasse bem depressa para o Céu, a minha sorte seria a
da pombinha de Noé: um dia o Senhor abriria a janela da Arca e dir-me-ia para voar
para muito longe, muito longe, até às regiões infiéis, levando comigo o raminho de
oliveira. Este pensamento, minha Madre, fez crescer a minha alma, fez-me pairar acima
de todas as criaturas. Compreendi que mesmo no Carmelo podia haver separações, e que
só no Céu a união será completa e eterna. Então quis que a minha alma habitasse desde já
nos Céus, e que não olhasse senão de longe para as coisas da terra. Aceitei, não apenas
exilar-me no meio de um povo desconhecido (...) Se um dia tivesse que deixar o meu
querido Carmelo, ah! não seria sem sofrimento! Jesus não me deu um coração
insensível, e éprecisamente por ele ser capaz de sofrer que desejo que dê a Jesus tudo
quanto puder dar. (...) Aqui sou amada, por vós e por todas as Irmãs, e esta afeição é-me
muito grata. Eis porque sonho com um convento onde fosse desconhecida, onde
tivesse que sofrer a pobreza, a falta de afeto, enfim, o exílio do coração" (Ms C 9r-10r).
O seu desejo de viver num Carmelo de missão, longe inclusive dos afetos
familiares mais santos, nasce exclusivamente do desejo de imitar a Cristo no seu exílio
terreno e partilhar o seu sofrimento humano e a sua humildade de Verbo feito carne.
Teresa quer partilhar até ao fundo a situação existencial de Cristo, seu Esposo: de fato,
o amor autêntico exige igualdade e fusão total com a pessoa amada para fazer uma só
coisa com o objeto do próprio amor. Teresa, que viveu só e sempre para amar totalmente
a Cristo, deseja também esta identificação total e definitiva.
Mas está a viver no abandono. Escreve ao Pe. Roulland em março de 1897: "Talvez
queirais saber o que pensa a nossa Madre do meu desejo de ir para Tonkim? Ela acredita na
minha vocação (porque efetivamente é preciso ter uma vocação especial e nem todas
as carmelitas se sentem chamadas a exilar-se) mas não crê que a minha vocação
possa algum dia chegar a ser realizada, seria necessário para isso que a bainhafosse tão
sólida como a espada e talvez (pensa a nossa Madre) a bainha fosse lançada ao mar
antes de chegar a Tonkim. (...) Não me inquieto nada com o futuro, tenho a certeza de
que Deus fará a sua vontade, é aúnica graça que desejo" (Ct 221).
No dia 17 de julho exprime a mesma idéia à madre Inês, com a consciência plena
da sua missão no mundo: "Sinto que a minha missão vai começar, a missão de fazer
amar a Deus como eu O amo, de dar às almas o meu pequeno caminho. Se Deus
realizar os meus desejos, o meu Céu passar-se-á sobre a terra até ao fim do mundo. Sim,
quero passar o meu Céu a fazer o bem sobre a terra. (...) Não posso fazer do Céu uma
festa de regozijo para mim, não posso descansar enquanto houver almas para salvar.
Mas quando o Anjo tiver dito: 'O tempo acabou' então descansarei, poderei gozar, porque
o número dos eleitos estará completo e todos terãoentrado na alegria e no descanso"
(UCR 17.7). No dia seguinte a esta afirmação, Celina lê para Teresa um fragmento sobre a
felicidade eterna: "Não é isso que me atrai — interrompe Teresa —, Oh! é o Amor! Amar,
ser amada e voltar à terra para fazer amar o amor" (UC/C 18.7.4).
Teresa compreende a seguir que a salvação das almas reveste para ela caráter
de "vocação", procura o modo mais oportuno para levar a cabo o seu objetivo. Desejosa de
satisfazer inteiramente a vontade do Senhor que lhe pede almas, toma o caminho mais
direto para chegar à meta, elegendo o meio do apostolado interior.
Teresa sabe que na Igreja tudo vem de Cristo e todas as graças é Ele quem as
distribui; por isso, exclama: "Jesus, para que Te servirão as minhas flores e os meus
cânticos? Estas flores, que ao contacto com as tuas divinas mãos adquirem um valor
infinito, a igreja triunfante lançá-las-á sobre a igreja militante para alcançar a
vitória! Ó meu Jesus! Eu amo-Te, amo a Igreja, minha Mãe. Sei que 'o menor ato de
puro amor lhe é mais útil que todas as outras obras juntas' (Ms B 4v).
"Como é grande o poder da oração! Dir-se-ia uma rainha que tem livre acesso
junto do rei a cada instante, e que pode obter tudo quanto pede" (Ms C 25r).
Escreve em 1892 a sua irmã Celina: "A nossa vocação não é ir ceifar nos
campos de trigo maduro. Jesus não nos diz: 'Baixai os olhos, vede os campos e ide
ceifar'. A nossa missão é ainda mais sublime. Eis as palavras de Jesus: 'Levantai os
olhos e vede'. Vede como no meu céu há lugares vazios, cabe a vós enchê-los, vós sois
os meus Moisés a orar no cimo da montanha, pedi-Me operários e enviá-los-ei, só
espero uma prece, um suspiro do vosso coração!... O apostolado da oração não é por assim
dizer mais elevado do que o da palavra? A nossa missão como Carmelitas é formar
operários evangélicos que salvem milhões de. almas das quais nós seremos as mães.
Celina, se não fossem as próprias palavras do nosso Jesus, quem ousaria acreditar
nisto?... Penso que a nossa parte é muito bela, que temos nós a invejar aos sacerdotes?"
(Ct 135).
CAPITULO 11
Pouco antes da sua morte, em maio de 1897, Teresa revelou o lugar que
Maria ocupava na sua vida, numa poesia intitulada Por que te amo, ó Maria (PN 54). É a
sua última poesia e o seu testamento mariano, escrito a pedido da Irmã Maria do
Sagrado Coração, sua irmã Maria, para a qual já tinha escrito a sua obra mestra, o
segundo manuscrito autobiográfico uns meses antes (setembro de 1896).
Existe um parentesco profundo entre estes dois textos. São orações dirigidas a
Jesus (o Manuscrito B) e a Maria (PN 54); estão animadas por um idêntico estribilho:
amo-te. Este ato de amor, que Teresa desejava renovar "a cada palpitação do seu coração...
um número infinito de vezes" (Or 6), foram as suas últimas palavras, ditas com o seu
últimoalento. Teresa morreu dizendo a Jesus: "Meu Deus... Amo-Vos!". Este básico
"Jesus, amo-Te", que ilumina todos os escritos de Teresa, não é uma expressão
sentimental, mas o próprio ato da caridade pelo qual o Espírito Santo a introduziu na vida
íntima da Trindade. Por isso escreveu: "Ah! Tu sabes, Divino Jesus, eu Te amo / Ó Espírito
deAmor abrasa-me com o seu fogo / Amando-Te eu atraio o Pai" (PN 17,2).
Teresa, pois, voltará a ler todas as passagens do Evangelho nas quais aparece
Maria, servindo-se sempre dele como chave de leitura do ato de Amor: "te amo". Deste
modo, o Espírito Santo concede-lhe viver no Evangelho, fazendo-a participar em todos
os mistérios que nele se revelam, desde a Encarnação até à cruz. São
precisamente estes os mistérios da pobreza, nos quais "a Virgem pobre abraça a
Cristo pobre", "amando-O totalmente", segundo as expressões de Santa Clara.
Os símbolos do amor maternal de Maria: o seu sorriso, o seu manto, o seu véu.
Assim, depois, de ter lido a última passagem do Evangelho que coloca a Maria
junto à cruz de Jesus, Teresa termina a sua poesia, dizendo "Em breve eu ouvirei esta
doce harmonia / Em breve no Céu eu irei ver-te / Tu que vieste sorrir-me na manhã da
minha vida / Vem sorrir-me de novo... Mãe... chegou a tarde!... / Já não temo o
esplendor da tua glória suprema / Contigo eu sofri e desejo agora / Cantar nos teus
joelhos, Maria, porque te amo / E repetir para sempre que sou tua filha " (PN 54,25).
Estas linhas foram escritas em maio de 1897. Uns dias mais tarde, nas
primeiras páginas do Manuscrito C, Teresa referirá a sua terrível prova contra a fé que
começou mais de um ano antes, e que se refere à existência do céu. Falando das suas poesias,
dirá: Quando canto a felicidade do Céu... cantosimplesmente o que quero acreditar" (Ms
C7v). É essa a heróica afirmação que encontramos aqui. Teresa afirma que na glória
do céu continuará a ser a filha de Maria, cantando sobre os seus joelhos,
eternamente, este "te amo". Ao mesmo tempo, faz como que um resumo de toda a sua
vida na terra, da manhã até à tarde, sob o sorriso maternal de Maria. Para Teresa,
Maria é profundamente a Virgem sorridente, e o sorriso de Teresa, que devia iluminar
o mundo inteiro, é uns dos mais belos reflexos do sorriso de Maria.
Para exprimir esta intimidade entre a filha e a sua Mãe, Teresa usa o símbolo do
manto ou do véu de Maria. Teresa entra no Carmelo para se esconder à sombra do manto
virginal de Maria. Esta realidade vivê-la-á Teresa mais intensamente durante muitos
dias, no seu noviciado: "Estava inteiramente oculta sob o véu da Santíssima Virgem"
(UCR 11.7.2). Pouco tempo depois, convidará a sua irmã Celina a entregar-se
totalmente a Maria: "Esconde-te à sombra do seu manto virginal, para que ela te
virginize" (Ct 105).
Para Teresa, esta vida escondida sob o manto de Maria é o lugar da mais
íntima união com Jesus na simplicidade da sua vida cotidiana. Exprime-o
belissimamente numa das suas primeiras poesias: "Ó Virgem Imaculada! Tu és a Doce
Estrela / Que me dás Jesus e me unes a Ele. / Ó Mãe! Deixa-me repousar sob o teu manto
/ Somente por hoje" (PN 5, 11). No mesmo sentido, é a própria Maria quem diz a
Celina: "Esconder-te-ei sob o véu / onde se abriga o Rei dos Céus... / Mas Para que eu
sempre te abrigue, / Sob o meu véu junto de Jesus, / Terás que ser sempre pequenina..."
(PN 13,4.5).
Como Mãe, Maria dá-nos Jesus e oferece-nos a Jesus. Também aqui a doutrina
de Teresa é semelhante à de Luís Maria ao mostrar como Maria está sempre
relacionada com Jesus Ela nunca detém os seus filhos em si, mas "une-os a Ele com
laços muito íntimos" (Tratado da verdadeira devoção, n. 211).
É neste clima mariano que Teresa vive a sua profissão religiosa, no dia 8 de
setembro de 1890, festa da Natividade de Maria. Depois de contar como Maria a tinha
ajudado a preparar o seu "vestido" de noiva para o dia indicado das suas núpcias, Teresa
escreve: "Que bela festa a da Natividade de Maria para me tornar esposa de Jesus! Era a
pequenina Ssma. Virgem de um dia quem apresentava a sua pequenina flor ao
pequenino J e s u s " (Ms A 77r).
Com a sua simplicidade infantil, estas palavras de Teresa exprimem o aspecto
mais importante da sua espiritualidade, que é a pequenez evangélica. Ao repetir e
sublinhar três vezes a palavra pequeno, Teresa manifesta como a sua própria pequenez
está como que envolta pela pequenez de Jesus e deMaria. É a "pequenez" de Maria
quem a apresenta a Jesus para que seja sua esposa. Assim, é com Maria que Teresa pode
realmente desposar-se com a pequenez de Jesus, como Francisco e Clara se tinham
desposado com a sua pobreza, participando intimamente nos mistérios da sua aniquilação,
desde a Encarnação até à cruz. Com Maria, estes santos participaram neste comovedor
mistério da pobreza e da pequenez de Deus. Teresa contempla a Jesus como "um
Deus que Se fez tão pequeno por mim" (Ct 266). Igualmente, Santa Clara reconhecia nele
"o Amor deste Deus que, pobre, foi posto num presépio, viveu pobre neste mundo, e desnudo
ficou na cruz".
Deste modo, a que se chama Teresa do Menino Jesus da Santa Face participará
sempre mais profundamente neste Amor cuja "propriedade é abaixar-se" (cf. Ms A
2v), desde a pobreza da sua Encarnação até ao despojamento total da cruz. Vivendo
escondida sob o manto de Maria, Teresa entrará sempre no mistério da pequenez e da
pobreza de Jesus. Porque a descoberta da pequenez evangélica tem um caráter
progressivo.
Depois da sua profissão, nas cartas a sua irmã Celina, a jovem carmelita revela
especialmente o seu coração de esposa, essa fundamental dimensão esponsal do seu
amor para com Jesus. Sob esta luz, a pequenez identifica-se praticamente com a
virgindade. A sua mais bela expressão encontra-se na carta do dia 25 de abril de 1893.
Por meio do símbolo da flor do campo com que nomeia a Jesus em toda a sua vida
terrena, e o da gota de orvalho com que nomeia a sua esposa na mesma condição,
Teresa demonstra como a pequenez é o lugar indispensável desta união virginal entre
a esposa e o Esposo. Para ser d'Ele e só para Ele "é preciso ser pequeno, pequeno como
uma gota de orvalho" (Ct 141). É a virgindade do coração, como o amor não
partilhado, que conduz a Teresa a desposar-se com a pequenez de Jesus dando-se
totalmente e de modo exclusivo a Ele como essa pequena gota de orvalho, pois só ela
pode responder à sua sede de amor.
Para Teresa, como para Francisco, o mistério do presépio continua a ser atual:
nele se manifesta a união da Mãe com o seu Filho na pobreza, modelo da nossa união
com Ele na Eucaristia, onde aparece "mais pequenino que uma criança" (RP 2,5r). Teresa
escrevia claramente a Celina: "E necessário que este ano façamos muitos sacerdotes que
saibam amar Jesus!... que lhe toquem com a mesma delicadeza com que Maria lhe
tocava no seu berço!" (Ct 101). É exatamente o mesmo que Teresa pedia a Maria
para um futuro sacerdote, o seminarista Maurício Bellière, o seu primeiro irmão
espiritual: "Dignai-Vos ensinar-lhe desde já com que amor pegáveis no Divino Menino
Jesus e o envolvíeis em paninhos, para que possa um dia subir ao Altar Sagrado e levar
nas suas mãos o Rei dos Céus. Peço-Vos ainda que o guardeis sob o vosso manto virginal"
(Or 8).
A peregrinação da fé vivida com Maria
Pois bem, esta relação tão íntima entre Maria e o seu Filho era vivida em fé.
Teresa insiste muito neste ponto, como já o fazia São Luís Maria. Seguindo a doutrina do
concílio, o papa João Paulo II desenvolveu particularmente este aspecto da
"peregrinação da fé de Maria": "Bem-aventurada aquelaque acreditou" (Redemptoris
Mater, n. 12-20). Jesus era ao mesmo tempo seu Filho e seu Deus, o fruto das suas
entranhas e o seu Criador e Salvador. Deste modo, a relação entre Maria e Jesus é
inseparavelmente a relação entre a Mãe e seu Filho, e a relação entre a crente e o seu
Deus. Quando os pregadores, apoiando-se para isso nos apócrifos, enchiam a vida de
Maria com graças extraordinárias, Teresa, pelo contrário, apresenta, a partir do Evangelho,
a pobreza espiritual de Maria, afirmando "que ela vivia de fé como nós" (UC 21.8.3). E para
ela, como para nós, a fé era obscura e às vezes dolorosa, provada pelo mesmo Jesus. Teresa
afirma-o a propósito do episódio evangélico de Jesus perdido e achado no templo: "Mãe,
o teu doce Filho quer que sejas o exemplo / Da alma que O procura na noite da fé" (PN 54,15).
Com efeito, a paixão de Teresa, que começa a partir das festas pascais de 1896, é
especialmente caracterizada por esta dolorosíssima "prova contra a fé". É quando Teresa
participa na mais extrema pobreza espiritual de Maria, participando igualmente na
sua maternidade universal. A maternidade espiritual de Teresa estende-se,
consequentemente, a todos os homens; assim pois, chega a ser plenamente missionária,
ao "adotar" de um modo muito particular os ateus do mundo moderno. Com a maior
confiança, intercede por eles, roga pela sua salvação eterna.
É assim como Teresa vive o amor maternal numa fé dolorosa e numa esperança
sem limites, não somente para ela, mas para os outros, para todos. Como o poeta
Charles Péguy, seu contemporâneo, Teresa une-se a Maria em toda a beleza da sua
esperança maternal: a esperança da mãe pela salvação de todos os seus pobres filhos.
Assim, Teresa fala de Maria sem a nomear quando diz a Jesus, no fim do
Manuscrito B: "Sinto que, se por um impossível, encontrasses uma alma mais débil, mais
fraca do que a minha, deleitar-te-ias a cumulá-la defavores ainda maiores, se ela se
abandonasse com inteira confiança à tua misericórdia infinita" (Ms B 5v).
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CAPÍTULO 12
NA NOITE DA FÉ
"O homem que não foi tentado, que sabe?" (Sir 34,10). Estas palavras do Ben-
Sirá exprimem um fato de experiência humana, segundo a qual ninguém pode chegar a
um autêntico conhecimento de si e do mundo, e corresponder ao desígnio de Deus a
seu respeito, se não passou pelo fogo das provações, seguindo o exemplo de Cristo.
Em junho de 1897, três meses antes da sua morte, Teresa declara: "Nos dias tão
alegres do tempo pascal, Jesus fez-me compreender que há verdadeiramente almas que
não têm fé, almas que, por abuso das graças perdem esse precioso tesouro, fonte das
únicas alegrias puras e verdadeiras" (Ms C 5v).
Há que indicar que este conhecimento do mundo das almas sem fé não lhe foi
dado como uma iluminação do espírito destinada a abrir-lhe perspectivas novas para
avivar o seu zelo apostólico. Assim tinha sido para Santa Teresa de Ávila quando da
visita do Padre Maldonado, franciscano, ao regressar do México: tinha-se inflamado
com a notícia dos "milhões de almas que ali se perdiam por falta de doutrina"
(Fundações, 1,7).
Teresa sabia que havia "ímpios que não tinham fé", pois uma sobrinha da sua
tia a Sra Guérin, Margarida Maudelonde, tinha se casado com um reconhecido ateu, o
Sr. Tostain, representante do presidente daRepública em Lisieux. Mas na sua fé
"tão viva, tão clara", "julgava que falavam ao contrário do que pensavam ao
negarem a existência do céu", porque, para Teresa a existência do céu era então de tal
evidênciaque para um espírito reto e sincero era impossível não admiti-la: "A
esperança de ir para o céu inundava-me de alegria" (Ms C 5v).
E eis que, de repente, é-lhe dado o conhecimento, não exterior, mas íntimo,
experimental, deste mundo das almas sem fé ao ver-se ela mesma imersa nele: "Deus
permitiu que a minha alma fosse invadida pelas mais espessas trevas e que o
pensamento do Céu tão deleitoso para mim, não fosse senão motivo de combate e de
angústia..." (Ms C 5v). Não é que Teresa participasse dos sentimentos destes ateus e
renegados, pois é na sua defesa como Teresa se encontrará na sua companhia e como
Jesus lho "fez sentir", somente sentir, que realmente há almas que se encontram nestas
trevas do espírito. Esta tomada de consciência do drama dos incrédulos irá
aprofundando-se na coração de Teresa, durante as semanas e os anos, pois a sua "não
ia durar uns dias, umas semanas...". Quando escrevia isto, não sabia que duraria, embora
parecesse impossível, exatamente dezesseis meses e vinte e cinco dias, quer dizer, até
á hora da sua morte.
Para ela, como para qualquer cristão, as motivações da fé não são todas
sobrenaturais. Misturam-se, mais ou menos e quase sempre, elementos naturais que a
privam da sua pureza, da sua força e, consequentemente, da sua capacidade de "unir"
a Deus como Ele é. Daí, estas purificações necessárias queSão João da Cruz descreveu
magistralmente na Subida do Monte Camelo e Noite escura.
Esta é a razão pela qual devemos comprovar que, se a sua provação de fé surgiu
de repente, como tempestade em águas tranqüilas ou como violenta tormenta em
céu azul, esteve precedida de alguns sinais precursores, do mesmo modo que a sua
primeira hemoptise na noite do 2 para 3 de abril de 1896 foi precedida por numerosas
dores de garganta e de peito. Evidentemente, não é casualidade que a manifestação da
sua tuberculose coincidisse praticamente com a entrada na noite das suas dúvidas (a
noiteseguinte: dia 15 de abril!) Como se os seus sofrimentos físicos, que irão crescendo
até chegarem a ser atrozmente insuportáveis, tivessem que acompanhar e redobrar os
seus sofrimentos espirituais, e isto até à sua morte, para levá-la, por meio de
uma paciência heróica, a uma atitude de fé totalmente despojada de todo o vestígio
de "satisfação natural".
As trevas
Tentações
Não se podem fazer comparações entre uma alma e outra, sobretudo neste terreno
da fé, no qual cada um vai a Deus pelo seu próprio caminho. Os pontos sobre os quais a
voz das trevas faz recair a dúvida são certamente os que por mais tempo se mantêm no
coração de Teresa, aqueles pelos quais, por assim dizer, estava totalmente investida.
Pelo contrário, as suspeitas da dúvida não terão podido penetrar nela. Seria
interessante comprovar como os temas mencionados aqui em resumo correspondem
ao mundo privilegiado de Teresa: a luz, a "pátria", os perfumes, a felicidade eterna da
posse de Deus, a criação e as suas maravilhas, "o desterro" e a sua tristeza.
Percebe-se aqui que Teresa não estava tão desligada do mundo, que não ignorava
completamente as discussões promovidas pelo cientificismo da época. Esta tentação
aponta para a convicção da Santa de que aqui embaixo é impossível chegar a "ver" a
verdade de todas as coisas (cf. UC 11.8.5). Não é que negue à ciência um poder
ilimitado na descoberta dos segredos do universo, mas recusa o suposto que tais
progressos devem prescindir da fé. É esta insinuação que Teresa recusa ao mesmo
tempo como uma mentira e como uma violência feita à sua liberdade; "os
pensamentos horríveis" se apresentam, efetivamente, de modo obsessivo, por
persuasão, sob a forma de um argumento que "se impõe" ao seu espírito.
A madre Inês conta-nos outra confidência de Teresa sobre o conteúdo dos seus
pensamentos contra a fé: "ontem à noite, senti-me invadida por uma verdadeira
angústia e as minhas trevas aumentaram. Não sei que voz maldita me dizia: Estás certa
de que Deus te ama? Veio dizer-te? A opinião das criaturas não é o que te vai justificar
diante dele" (DE, p. 572). Esta tentação não tem o tom de burla da primeira, mas, como
as outras, aponta para um ponto sensível em Teresa: o amor de Deus para com ela. Na
mesma linha podemos situar o testemunho do Pe. G. Madelaine que confessou a Santa
em junho de 1896: "A sua alma atravessou uma crise de trevas espirituais na qual se
julgava condenada" (PA 595).
Em palavras deste confessor, o amor de Deus para com Teresa é posto em
questão até ao ponto dela se julgar recusada por Ele e "condenada". A condenação
supõe, certamente, uma vida mais além, pois a eternidade de dor corre simultânea
com a eternidade ditosa. Induz a crer igualmente na existência do céu. Pois bem,
precisamente segundo o Manuscrito C, Teresa tinha sido tentada a negá-la. O que
espera é "a noite do nada(Ms C 6v). Se, depois da morte, não há nada, tampouco haverá
nem céu nem inferno. Como conciliar, pois, estas afirmações contraditórias?
"Não me resta mais que o amor". Pode o amor de Deus subsistir sem a fé? Como
pode uma casa manter-se em pé quando já não tem fundamentos? Pois bem, é quase
certo que nesta tempestade o amor de Teresa a Deus não sofreu nenhuma míngua. O
que provoca o seu assombro: "Como é possível amar tanto a Deus e à Santíssima
Virgem e ter desses pensamentos!..." (UCR 10.8.7).
Teve que procurar uma explicação para este fenômeno, pois propõe esta resposta
encontrada quando lia um comentário da Imitação: "Nosso Senhor no Jardim das
Oliveiras gozava de todas as delícias da Trindade, e apesar disso a sua agonia não era
menos cruel. É um mistério, mas garanto-lhe que sou capaz de, em parte, o compreender
por aquilo que eu própria sinto" (UCR 6.7.4).
É certo que tinha gozado de um meio de fé excepcional, mas como, para
consolidar a sua fé, para adquirir a força e a maturidade que vemos nela, para manter a sua
fé "viva e clara" (Ms C 5r), não haveria de combater contra essas mil solicitações para a
duvida e para a descrença das quais toda a sua vida, inclusive protegida, oferece
ocasião? Ela, que só "buscou a verdade" (UCR 30.9), não deixou de encontrar
dificuldades que necessariamente se viu forçada a indicá-las por meio das suas
observações sobre o mundo que a rodeia, das suas reflexões pessoais sobre a doutrina
recebida e das suas próprias descobertas. Parece evidente que percebeu certos
problemas... Por isso, lamenta-se de não poder esclarecer por si mesma as traduções da
Escritura que julga defeituosas (cf. UCR 4.8.5). Conhecemos com que avidez se
infirmou sobre as verdades da fé ao longo da sua vida, muito cedo das lições de
catecismo do abade Domin que lhe chamava o "seu doutorzinho" (Ms A 37v). O livro
do abade Arminjon trouxe-lhe um profundo conhecimento dos "mistérios da vida
futura" (Ms A 47r). Assimilou, sobretudo, o Evangelho sem se cansar.
Esta formação sólida e considerável, isenta de curiosidades ou de subtilezas
intelectuais, constituiu o tesouro vivo que defendia com vigilância inflexível. À
totalidade do seu compromisso pela fé correspondia-lhe aintegridade dessa mesma fé
zelosamente guardada. Tinha confiado tudo a Deus. Mantida sempre, feita vida da
sua própria vida, convertida na sua própria substância, a fé de Teresa tinha adquirido o
vigor de um organismo vivo e sadio, plenamente desenvolvido. Não é de admirar que dê
a impressão de uma cidadela inexpugnável. O seu profundo enraizamento em Cristo
e a sua vigilância conferem-lhe aquela firmeza da casa construída sobre a rocha da
qual fala o Evangelho (cf. Mt 7,24-27).
Tática da fuga
Podemos pensar que já tinha usado antes esta "tática da fuga", quando com
receio acolhia alguns ataques imperceptíveis à integridade da fé que se lhe apresentavam
sob a forma inofensiva e insidiosa de "sins" e de "talvez". O que não exclui que
desejasse apaixonadamente um melhor conhecimento da sua fé, ela que nunca
"buscou senão a verdade", mas o seu instinto sobrenatural muito seguro a fez evitar os
enganos de uma investigação intelectual satisfeita de si mesma, cativada mais pelo
seu avanço do que pela verdade. Em Teresa não há temeridade, não há ameaça alguma;
não vai ao encontro do inimigo, é ele que a vem "provocar" (UCR 7.7.4; 13.7.7). Não lhe
podia ocorrer simular as suas dificuldades, pôr em jogo o seu espírito, pois não podia
tolerar o "fingimento" (UCR 7.7.4; 13.7.7). "Ah, eu não finjo; é bem verdade que não
entendo absolutamente nada" (cf (UCR 15.8.7).
Pode ver-se outra razão no seu silêncio e na sua prudente reserva de querer evitar
que se contagiem com o seu mal aquelas que vivem com ela. A Irmã Genoveva dirá
no Processo Apostólico: "Não falava disso aninguém por temor de contagiar as
outras com o seu indizível tormento" (PO 276). Respondeu à Irmã Maria do
Sagrado Coração de uma forma vaga e mudou de onversa. Compreendi então que não
queria dizer-me nada "por temor de me fazer participante das suas tentações" (PA 813).
Ao Padre Madelaine dirá: "Procuro que ninguém sofra as minhas penas" (PA 559).
Enfim, Teresa aplicava neste caso extremo um princípio que pertencia ao seu
"pequeno caminho": "Faz tanto bem e dá tanta força não dizer nada das suas penas!"
(DE, p. 305). Nega apiedar-se de si mesma, a buscar consolações doloristas, porque, no
fundo, não sente apego algum a si mesma.
Afirmação da sua fé
Longe de deplorar a sua situação incômoda a toda a inteligência de ter que aderir
a uma verdade da qual não temos evidência natural, Teresa aceita livremente a
obscuridade inerente à fé: "Desejei mais não ver a Deus nem aos santos e permanecer na
noite da fé do que outros desejam ver e compreender" (UCR 11.8.5), ou mais ainda: "Só
no Céu veremos a verdade de todas as coisas. Na terra, é impossível" (UCR 4.8.5).
Por isso, esforça-se "embora não tendo o gozo da fé, procuro, pelo menos realizar as
obras dela" (Ms C 7r).
Abandono em Deus
As trevas interiores parecem pôr em tela de juízo não só a sua adesão à fé, mas
igualmente o impulso da sua esperança sob a forma de dúvida sobre a fidelidade de
Deus em manter as suas promessas. Que a bem-aventurança do céu se revele ilusória é
uma cara da tentação, mas não é menos temível que esta outra cara que consiste em
duvidar que Deus se interessa pela alma, em pensar que Ele a abandona a si mesma
nos seus esforços irrisórios para conseguir o fim prometido.
Trata-se, portanto, da forma mais elevada da fé, de uma fé despojada que não se
apóia em nenhuma motivação humana; é, sobretudo, forma mais pura de um amor que
chegou a uma plenitude que se exprime por uma confiança cega na misericórdia de
Deus, apesar de tudo o que pareça contradizê-la. Não, Deus não a abandona no meio da
sua noite, Ele não pode abandoná-la, nunca a abandonou: "Amo-O! Ele nunca me
abandonará" (UCR 27.7.15). Teresa repete a sua certeza sem se cansar, e ao fazê-lo, dá a
réplica mais adequada e mais completa às suas tentações contra a fé.
As Últimas Conversas estão cheias de notas deste tipo: "A minha alma,
apesar das trevas, permanece numa paz admirável" (UCR 24.9.10). Admirável, com
efeito, embora a natureza a castigasse com doenças que a esgotaram no seu corpo e na
sua alma.
A alegria e a serenidade irradiam do seu ser, até tal ponto que as suas irmãs
estavam surpreendidas por isso e esqueciam às vezes que tinham ao seu cuidado uma
doente muito grave, indo pedir-lhe conselhos, fustigando-a com perguntas ou para
receber consolação.
Paz admirável, falando humanamente, porque não há outra fonte senão a graça
presente no fundo do coração de Teresa. De modo que o seu último suspiro que,
assinala, com um êxtase momentâneo, o seu triunfo, aparece como a meta da sua subida.
Bem entendido que, até ao último segundo, podia falar e Teresa não o ignorava, ela que
confiava tanto na sua fraqueza. Mas tal desfalecimento era mais do que improvável,
porque, costuma dizer-se, morre-se como se viveu.
CAPÍTULO 13
A ÚLTIMA DOENÇA
Durante a Quaresma de 1896, a Irmã Teresa entra na última etapa da sua vida
e conhece uma nova situação: a da doença. Certamente que Teresa sabe o que supõe tentar
manter-se corajosamente de pé durante todo o dia, com dores de garganta, tosse persistente,
certamente acessos de febre que suporta em silêncio. Desde 1894 que se anda a tratar da
dor persistente da garganta. Chegou mesmo a consultar o doutor Francis La Néele,
primo de Teresa por casamento, pois o médico oficial é o Dr. Cornière, velho amigo da
família Martin. Mas não foi auscultada.
É cuidada com os meios que têm à disposição. Mas a família Guérin está
seriamente preocupada; testemunha-o a correspondência familiar: "Que Teresa se cuide
com energia" (21-10-1894).
A tuberculose foi temível praga que, entre 1886 e 1906, levou cerca de 150.000
pessoas por ano. A idade mais afetada situa-se entre os vinte e um e os trinta e cinco
anos. A província de Calvados foi especialmenteatacada. A cidade de Lisieux assistia
todas as semanas a funerais de pessoas novas, que morreram com a terrível doença, que
semeava o terror e que não desapareceu totalmente até 1944, com a descoberta dos
antibióticos apropriados.
Arrasta-se para ir à missa, não todos os dias. Numa manhã em que, como
recurso esgotado, se encontra na cela sentada no seu banquinho, diz-lhe a madre Inês de
Jesus: "Não é sofrer demasiado para conseguir uma comunhão" (DE II, p. 38). Às
vezes para subir à sua cela demora meia hora e tem que fazer esforços extraordinários
para despir sozinha a roupa.
É vista, pois, frequentemente na cela procurando não perder o tempo, indo ao
jardim quando há bom tempo. As receitas de fins de Maio prescrevem vesicatórios, dolorosas
pontas de fogo, calmantes, xarope contra a tosse.
A solidão dá-lhe tempo para compor o que deseje: neste mês de Maio, compôs
um longo poema sobre a Virgem. Não queria morrer sem dizer o que pensa da sua
Mãe "mais Mãe do que Rainha".
Teresa obedece uma vez mais. Mas o seu estado não permite uma grande
concentração. Umas vezes na sua cela, outras no jardim (molestada continuamente
pelas irmãs neste lugar), sofrendo muitíssimo, escreverá algumas páginas cada dia,
sem plano, sem ranhuras, "como se pescasse à linha, escrevendo o que aparece na
extremidade do fio" (UCR 11.6.2). Mas terá que parar depois de ter escrito trinta e seis
páginas com uma letra cada vez mais difícil, para terminar a lápis, extenuada. Baixou à
enfermaria, no andar de baixo: já não sairá dela.
Não sabe que escreveu uma obra de arte espiritual que dará a volta ao
mundo. Termina com as palavras: "pela confiança e pelo amor", duas palavras-
chaves da sua espiritualidade. Sem quase falar da sua doença, entrega-nos
confidências maravilhosas sobre a sua vida passada e atual, entre outras as do dia 9 de
junho, quando evoca a sua prova contra a fé ou, mais tarde, o segredo de uma vida
fraterna vivida na caridademais autêntica. As páginas sobre o modo de exercer o ofício
de mestra de noviças demonstram que a sua pedagogia é admirável e importante,
antecipando-se, uma vez mais, ao seu tempo.
O doutor Cornière visita-a pelo menos nos dias 11, 12 e 24 de junho. No dia 30, a
doente retine-se, pela última vez, no locutório com os Guérin que partem para férias
para a sua propriedade La Musse, perto de Evreux.
Estes terríveis sofrimentos durarão até o dia 6 de agosto: a tuberculose invadiu todo o
pulmão direito. Doravante, Teresa já não abandonará a enfermaria do andar de baixo, que
tem cinco metros por quatro. É dedicada à Santa Face. A cama de feno está num canto,
ao lado da janela, rodeada por altas cortinas escuras. Entre duas portas — uma dá para o
claustro — instalou-se a Virgem do Sorriso que acompanhou Teresa: a doente vê-a de
frente.
A Irmã Santo Estanislau, enfermeira oficial, cuida dela; mas, dada a sua
avançada idade, delega esse ofício frequentemente a Irmã Genoveva, que se sente
feliz por cuidar da sua irmã, embora nem sempre tenha posto toda a delicadeza desejada.
Já não tem forças para ler. Na sua cabeceira está o Evangelho, a Imitação de
Cristo, o Cântico espiritual e a Chama de amor viva de São João da Cruz num volume.
Teresa contentar-se-á com pôr pequenas cruzes a lápis ao lado das passagens que está a
ler.
Assim, pois, a palavra tabu foi pronunciada: não há nenhuma ilusão sobre uma
cura possível. Na quinta-feira, dia 19 de agosto, festa de São Jacinto, Teresa comunga
pela última vez: oferece a comunhão pelo ex padre Jacinto Loyson (1827-1912),
provincial dos Carmelitas, que abandonou a Igreja em 1869. Tinha recusado a
infalibilidade pontifícia (proclamada em 1870 no concílio - Vaticano I), tinha casado
com uma viúva americana convertida do protestantismo, a Sra. Meriman, e tivera um
filho. Tinha fundado uma "igreja católica galicana". O escândalo tinha sido enorme
em França e naEuropa, pois era muito conhecido, amigo de Newman e de Montalembert.
O seu nome estava proscrito em todos os Carmelos. Mas a Irmã Teresa, a partir de 1891,
chamava-lhe seu "irmão" (Ct 129). Rezou por ele até à sua morte e aquela última
comunhão é a prova disso.
Dir-se-ia que nestes dias de trégua, a doente volta à vida; vêm-lhe desejos
inesperados de comer, e a família Guérin procura satisfazê-los: assado com puré, bolo,
um pastelinho de chocolate, alcachofras, queijobranco...
O doutor Cornière vê claro: no dia 14 de setembro pensa que a Irmã Teresa não
viverá mais de quinze dias. Para lhe fazer a cama, a robusta Irmã Amada de Jesus
pega nela nos braços: Teresa está tão fraca que temem que morra imediatamente.
Como podemos ver, mesmo contada brevemente, aquela doença que pôde com
um corpo de vinte e quatro anos, foi terrível. Deve-se abandonar toda a imagem de
Epinal que evoque a morte "da santinha com uma rosa mão", como se descreveu a "dama
das camélias”, outra normanda de vinte e três anos, morta de tuberculose, rodeada
pelos seus amantes, com uma camélia na mão.
Tudo isto não é senão ficção. A Irmã Teresa sofreu aquela doença implacável.
Porém, como sofria? Procuremos agora olhar e ouvir aquela doente que alcançou por
graça — o cume da sua vida, com a mesma lógica do dom total de si mesma: a do seu
batismo, a da sua profissão religiosa e a do seu oferecimento ao Amor misericordioso.
Durante estes meses mostra-se afetuosa e sensível. A sua fraqueza física não lhe
permite reprimir as suas lágrimas, mas às vezes também chora de alegria, de gratidão a
Deus e às suas irmãs. Mas chora igualmente deamor!
Perguntamo-nos como pode manifestar a sua alegria em tais condições. "Faz rir
a todos os que estão perto. No modo como nos conta as coisas, ali onde deveríamos
chorar, rimo-nos às gargalhadas, é tão divertida... Julgo que morrerá a rir-se, está tão
alegre", escreve a sua prima a Irmã Maria da Eucaristia.
Não pára com os jogos de palavras se com isso consegue alegrar as suas irmãs que
estão tristes por vê-la partir. Recorda muito frequentemente as expressões normandas
da sua infância, com o seu acento típico. Ri-se um pouco do seu bom médico, pois
não gosta das suas vacilações. Chama ao doutor Cornière "Clodão o cabeludo".
Se Teresa usa em certas ocasiões a linguagem infantil — "dodó, loló, bebé" — não é
que se faça criança ou regresse ao infantilismo. Certo é que, como nos Buissonnets em
1883, está doente e rodeada das suas irmãs. Mas,quantos caminhos percorridos desde
os catorze anos! Com a graça do Natal de 1886, saiu, escreve ela, das "fraldas da sua
infância" e dos seus defeitos (Ms A 44v). Não se trata de regressar ali no momento da
morte.
Longe de cair na afetação, usa a linguagem infantil para fazer sorrir as suas irmãs
(e em primeiro lugar as três Martin). É preciso ver nisso um ato de valor e sobretudo
de caridade fraterna. Quando acontece no estado que descrevemos, não é fácil esquecer-
se de si mesma para pensar na dor dos que a rodeiam.
Desde há muito tempo que a vida de Teresa é "amar a Jesus e faze-lo amar (Ct
224, 225, 226, 254), como escreveu no ato de oferecimento ao Amor misericordioso.
Com que rapidez amadureceu! Tem apenas vinte e quatro anos, e a sua
sabedoria erareconhecida. O abade Youf disse um dia à madre Maria de Gonzaga:
"Tendes uma segunda madre Genoveva". Não esqueçamos que esta era considerada
como a Santa do Carmelo. Não sem razão a madre Maria de Gonzaga confiou as cinco
noviças à Irmã Teresa. A madre Maria de Gonzaga pensava que mais tarde a Irmã
Teresa seria priora.
Com a madre Inês de Jesus, invertem-se os papéis. Toda a sua vida, Paulina
foi "Mãezinha", a instrutora, a conselheira espiritual, a priora. E eis que, na doença, a
sua irmãzinha aconselha-a, faz-lhe algumas correções fraternas.
Acontece que a doente no estado em que se encontra não faz de "mestra". Nas
Últimas conversas recolhidas pela madre Inês, encontram-se apenas oito palavras
relacionadas com o pequeno caminho. Principalmente, vive-o.
Num pequeno incidente com a Irmã São João Batista, presenciado pela madre
Inês de Jesus, Teresa atreve-se a escrever a esta: "Sinto-me muito mais feliz por ter
sido imperfeita do que se, apoiada pela graça, tivesse sido um modelo de doçura" (Ct
230).
Mas isto não lhe basta: o seu horizonte é vasto, universal. Não pode conceber
que o seu trabalho missionário acabe com a sua vida. Porquê não vai continuar
depois? Nasce nela um grande desejo: fazer o bem depois da sua morte. É o
maior desejo de toda a sua vida, mas não experimentou que Deus os cumulou
todos? Porquê este, "o maior de todos"? Reza com esta intenção e faz "a novena
da graça", de 4 a 12 de março, a São Francisco Xavier, padroeiro das missões.
Três dias depois, a madre Inês de Jesus anota estas palavras num
pedacinho depapel: "Sinto que vou entrar no repouso... Mas sinto sobretudo que a
minha missão vai começar, a minha missão de fazer amar o bom Deus como eu O
amo, de dar o meu pequeno caminho às almas. Se o bom Deus escutar os meus
desejos, o meu Céu será passado na terra até ao fim do mundo. Sim, quero
passar o meu Céu a fazer bem na terra. Não é nada de impossível, pois, no seio da
visão beatífica, os Anjos velam por nós. Não posso fazer uma festa de gozo,
não posso repousar enquanto houver almas para salvar... Porém, quando o Anjo
disser: 'O tempo já não existe!', então, repousarei, poderei gozar, porque o
número dos eleitos estará completo e todos terão entrado na alegria e no repouso. O
meu coração estremece com este pensamento..." (UCR 17.7).
Em Junho, Teresa voltou a ler a sua segunda peça teatral sobre Joana d'Arc. Dirá
à madre Inês: "Nela verá os meus sentimentos sobre a morte; estão lá todos
revelados" (UCR 5.6.2). Mas há uma frase que a deve ter impressionado: "Oh! como me
sinto consolada ao ver que a minha agonia se parece com a do meu Salvador..." (RP
3,2.5).
Ela é, sobretudo, a Irmã Teresa da Santa Face, que evoca o servo sofredor de Isaías
53 e a Jesus no Getsêmani. No dia 2 de junho, escreve à Irmã Maria da Eucaristia: "O seu
Esposo não é um Esposo que a vai levar afestas, mas sim à montanha do Calvário" (Ct 234).
Não abandona o seu "querido pequeno crucifixo": beija-o (na face), atira rosas sobre ele
e não o deixará durante toda a sua agonia. Todos os pequenos pormenores da sua vida
de doente orientam-na para a Paixão de Jesus. As suas três irmãs estão adormecidas
junto à sua cabeceira: quandodespertam, chama-lhes: "Pedro, Tiago e João!". Sente dor
nas costas? Lembra-se de Jesus a levar a cruz.
Depois de ter feito tão frequentemente a via sacra na capela, vive-a agora
verdadeiramente, sem palavras. À Paixão de Jesus, responde a compaixão de Teresa.
Por isso, não duvida em aplicar a si as palavras da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17). A
sua audácia encontra legitimidade numa sã teologia do Corpo místico: "Posso apenas
servir-me das palavras de Jesus na última ceia. Ele não poderá ofender-se com isso
visto que sou asua esposazinha e por conseguinte os seus bens são meus" (Ct 258 e C
34v). A melhor passagem do seu último manuscrito exprime a sua quinta-feira santa. E a
chave dos seus sofrimentos. Mal acaba de escrever esse texto, começa a sua sexta-
feira santa. Também ela, discípula e esposa de Jesus, é o grão de trigo que cai na terra e
morre, mas para produzir muito fruto. No dia 11 de agosto, Teresa cita o versículo de
São João(12,24).
Sepultada no dia 4 de Outubro, depois de uma agonia na qual diz: "Nunca teria
acreditado que era possível sofrer tanto! Nunca! Nunca! Não sei explicar isto senão
pelos ardentes desejos que eu tive de salvar almas" (UCR 30.9).
Teresa produziu muitos frutos durante estes cem anos. Deus cumulou todos os
seus desejos porque foi o seu Espírito que os infundiu nela. Teresa tinha escrito ao
seminarista Bellière: "Eu não morro, entro na vida" (Ct244).
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Sob o nome de Léo Taxil tinha editado uns cento e trinta opúsculos pertencentes à
"Biblioteca anticlerical" e um jomal, "o Anticlerical". Em 1892, foi expulso da franco-
maçonaria. Fracassado, converteu-se em1885 e escreveu as Confissões de um livre
pensador, que terá quarenta e cinco edições. Em 1884, Leão XIII publicou a encíclica
Humanum genus, contra a franco-maçonaria. A luta teve uma extrema violência.
Teresa escreve em 1896 a sua peça teatral O triunfo da humildade (RP 7) na qual
se tratam cenas populares de diabos e se fala de Diana Vaughan. Durante o Verão, lê a
Novena eucarística da convertida.
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"ÚLTIMAS CONVERSAS"
Durante os dias em que a Madre Inês de Jesus vela a sua irmã doente, vai tomando
nota apressadamente das suas palavras, às vezes de modo telegráfico. Em primeiro lugar,
para sua própria consolação, porque a "Mãezinha" vê morrer a sua jovem irmã com
imensa tristeza. Quando se dá conta de que Teresa vai morrer, pensa igualmente numa
circular necrológica. Daí, essas perguntas sobre o seu passado, os seus sentimentos, a
sua concepção da vida religiosa.
Reúne, no total, perto de 850 frases. Por outro lado, a Irmã Maria do Sagrado
Coração (sua madrinha) e a Irmã Genoveva (Celina) tomaram também nota de algumas frases.
Depois da morte de Teresa, a madre Inês, que prepara um livro que será a História
de uma alma, utiliza as suas notas num capítulo, o XIII, que relata a doença e a morte da
jovem carmelita.
Por volta de 1904-1905, volta a copiar e a classificar todos os seus papéis num
"grosso caderno negro"(destruído a seguir). Servir-se-á dele para redigir cinco
"cadernos verdes", que constituirão a base da sua deposição no Processo do Ordinário
(1909-1910), no que se refere a este período da vida da sua irmã.
Foi preciso esperar por 1922, sem dúvida, para que redija, para seu uso pessoal, um
"Caderno amarelo"completíssimo. Depois da canonização de Santa Teresa (1925),
publicará uma antologia muito restrita das Últimas conversas, as Novissima Verba (362
frases), em 1927.
Não se lhes pode dar a mesma credibilidade que aos escritos teresianos, mas
privar-se totalmente destas "logia" seria prejudicial para o conhecimento desta Teresa
doente, humana, sofredora, humorista, orante, pobre e, de momento, sublime na sua total
simplicidade. Por outro lado, a madre Inês de Jesus teria sido incapaz de inventar
numerosos traços referidos no seu Caderno amarelo. Pelo contrário, censurou fortemente as
Novissima Verba, não querendo entregar, em 1927, ao público em geral, estas
"intimidades", estas "piadas", que nos mostram que a humanidade desta santa toma-a
próxima de todos os homens vítimas da doença e do desamparo.
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"Ah! meu irmão, como eu podeis cantar as misericórdias do Senhor, elas brilham
em vós com todo o esplendor... Amais Santo Agostinho, Santa Madalena, essas almas a
quem 'Muitos pecados foram perdoados porque muito amaram' (Lc. 7,47). Também eu as
amo, amo o seu arrependimento, e sobretudo... a sua amorosa audácia! Quando vejo
Madalena avançar na presença de numerosos convidados, banhar com as suas lágrimas os
pés do Mestre adorado que toca pela primeira vez, sinto que o coração dela compreendeu
os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus, e que, por muito pecadora
que ela seja, este Coração de amor está não só disposto a perdoar-lhe, mas ainda a
prodigalizar-lhe os benefícios da sua intimidade divina, a elevá-la até aos mais altos
cumes da contemplação.
CAPÍTULO 14
Depois da morte da sua irmã mais nova, a madre Inês julgou-se na obrigação de
levar a cabo a ordem. Divide os três manuscritos em onze capítulos e deles compõe o
duodécimo, no qual refere os últimos meses e a morte de Teresa. O livro completa-se com
alguns extratos das suas cartas, com um bomnúmero das suas poesias e com
testemunhos das suas noviças.
Acolhimento inesperado
Para colocar a História de uma alma ao alcance de todos os bolsos, é feita uma
edição popular que apareceu, em 1902, com o título de Uma rosa desfolhada. Teve-se a
feliz idéia de fazer um resumo da sua vida e da sua doutrina. É o Chamamento às
almas pequenas, aparecido pela primeira vez em 1904. Mais tarde, uma Vida
abreviada, que contém um resumo ainda mais breve (primeira edição em 1913), e uma
seleção de Pensamentos (primeira edição em 1915) permitirá meditar os diferentes
aspectos da sua espiritualidade.
O que não sabiam as carmelitas de Lisieux de então era que mais tarde
Teresa teria, para que a sua própria causa avançasse, a mesma pessoa que se ocupava do
Processo de beatificação das carmelitas de Compiègne, monsenhor Roger de Teil,
distinto canonista. Em fevereiro de 1909, seránomeado vice-postulador da sua causa.
Por uma coincidência igualmente curiosa, o abade de Teil tinha ido em setembro
de1896 ao Carmelo de Lisieux dar uma conferência sobre as carmelitas de
Compiègne. Conferência de que Teresa tinha gostado muito: reavivara no seu coração
o desejo do martírio e, ao sair do locutório, tinha prognosticado que com um
postulador assim as carmelitas de Compiègne iam ser beatificadas muito em breve.
Em 1894 tinha participado com alegria na festa do seu centenário e, enquanto
confeccionava bandeiras em sua honra, confiara à Irmã Teresa de Santo Agostinho:
"Que felicidade se nós tivéssemos a mesma sorte, a mesma graça!".
Mas o que causa admiração nas carmelitas em 1905 é o número de postulantes
que, vivamente impressionadas pela leitura da História de uma alma, solicitam a sua
entrada no Carmelo de Lisieux. No dia 1º. de março, a Irmã Maria do Sagrado
Coração escreve a Leônia: "Uma jovem de dezesseis anos de muito boa família tem o
consentimento dos seus pais para entrar no Carmelo no mês de Agosto. Vem do outro
extremo da França, de Metz, atraída por Teresa do Menino Jesus. Mas necessita,
como o necessitou Teresa, do consentimento do bispo que a acha um pouco nova. Esta
semana, três jovens italianas fizeram o mesmo pedido à nossa Madre, mas
compreendes que éimpossível contentar a toda a gente". Como Teresa de Ávila tinha
estabelecido o número limitado de religiosas para as suas comunidades, tiveram,
efetivamente, que mandar muitas para outros Carmelos.
Assombro e reticências
O novo caixão foi colocado desta vez num jazigo de alvenaria, a dois metros de
profundidade.
O Processo
No ano de 1922 viu o processo relativo ao exame das duas curas obtidas por
intercessão de Teresa, e propostas à Congregação dos Ritos em vista da sua
beatificação.
No dia 26 de março de 1923 foi a transladação solene. Quem esteve nesse dia
em Lisieux ficou com uma recordação inesquecível. No cemitério fechado ao público,
trabalhavam dois operários, sob a vigilância do bispo e das autoridades civis, para tirar o
caixão da cova. Fora, milhares de peregrinos rezavam o Terço. Eis que o cortejo se põe
em andamento: sob um sol esplêndido, uma longa fila de peregrinos — uns cinqüenta
mil — estende-se ao longo de dois quilômetros. Sem cânticos, sem instrumentos
musicais, pois Teresa ainda não estava beatificada. Apenas a recitação do terço
alterna com a dos salmos.
Por outro lado, Pio XI não cessou em toda a sua vida de confiar a Teresa as suas
grandes iniciativas apostólicas, especialmente o lançamento da Ação católica e o
desenvolvimento das missões.
Quando este chegou a papa, com o nome de Pio XII, proclamou Teresa
"segunda padroeira da França, bem como a Santa Joana d'Arc". A proclamação teve
lugar no dia 3 de maio de 1944, um mês antes do desembarque das tropas aliadas nas
terras da Normandia.
Alguns números bastarão para sugerir a expansão que Teresa exerce na Igreja
do século XX. Mais de setenta seminários e um grande número de escolas têm-na por
padroeira. Foram-lhe dedicadas mais de mil e setecentas igrejas ou capelas,
repartidas pelas cinco partes do mundo. Entre elas, cinco igrejas catedrais: Niamey
(Níger), Sokodé (Togo), Bouaké (Costa do Marfim), Garoua (Camerum) e Urawa
(Japão), e cinco basílicas menores: Rio de Janeiro (Brasil), Lisieux, Anzio, La
Bombetta (Veneza) e Choubrah (Egipto). Este último edifício foi uma oferta dos
muçulmanos do Cairo à "santinha de Alá", para lhe agradecer todos os favores recebidos.
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O LOCUTÓRIO DE TERESA
RAYMOND ZAMBELLI
Gosto desse lugar por tudo o que me oferece ver. Está, em primeiro lugar,
aquela grade que simbolicamente marca a inevitável distância entre Teresa e
nós. Distância que se impõe quando se mede a diferençaentre a santidade da sua vida e
cada unia das nossas pobres existências. Distância que, não obstante, nem afasta nem
desanima ninguém. Distância muito necessária que, a seu modo, recorda o
indispensável respeito que deveria envolver todo o encontro com os seres humanos.
Este lugar bendito é, de fato um locutório. O locutório oferece-nos a
possibilidade de estar a qualquer hora do dia com quem viemos visitar; que nos
espera, nos escuta e nos responde.
Ah, se estas grades pudesse falar! Quantas orações, quantas preces, quantas
confidências! Quantosnomes ditos em voz baixa, quantos seres
queridos recomendados diariamente!
A BASÍLICA DE LISIEUX
Pierre Descouvemont
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"Meu irmão..., quando receberdes esta carta, já terei deixado a terra. O Senhor,
na sua infinita misericórdia, ter-me-á aberto o seu reino e poderei dispor dos seus tesouros
para os prodigalizar às almas que me são queridas. Ficai certo, meu Irmão, de que
a vossa Irmãzinha cumprirá as suas promessas, e de que a alma dela, liberta do peso do
invólucro mortal, voará feliz para as longínquas regiões que vós evangelizais. Ah! meu
irmão, pressinto que vos serei muito mais útil no céu do que na terra e é com alegria que
venho anunciar-vos a minha próxima entrada nessa bem-aventurada cidade, certa de que
partilhareis da minha alegria e agradecereis ao Senhor por me dar os meios de vos ajudar
mais eficazmente nas vossas obras apostólicas.
Conto não ficar inativa no Céu, o meu desejo é continuar a trabalhar pela Igreja e
pelas almas, peço isto a Deus e estou certa de que Ele me concederá. Não estão os Anjos
continuamente ocupados conosco sem nunca cessarem de ver a Face divina, de
se perderem no Oceano sem limites do Amor? Porque não havia Jesus de me permitir
que os imitasse? Meu irmão, vedes que se abandono já o campo de batalha, não é com o
desejo egoísta de descansar, o pensamento da eterna bem-aventurança a custo
faz rejubilar o meu coração, desde há muito tempo o sofrimento tomou-se o meu Céu
cá na terra e tenho verdadeiramente dificuldade em imaginar como poderei adaptar-me
num País onde a alegria reina sem qualquer sombra de tristeza. Será preciso que
Jesus transforme a minha alma e lhe dê a capacidade de gozar, de contrário não
poderei suportar as delícias eternas.
TERESA HOJE
O mistério continua: como é que uma carmelita tão nova, que morreu
desconhecida numa cidade de unia província francesa, pôde conquistar o mundo?
O que importa hoje, cem anos depois da sua entrada na Vida, é comprovar o
impacto incessante da sua vida e da sua mensagem espiritual.
Desde 1932, espirituais e teólogos viram que a doutrina de Santa Teresa tem
em si um caráter universal. Mais de seiscentos bispos e uma multidão de leigos
pediram então ao papa Pio XI que fosse proclamada Doutora da Igreja. Uma mulher?
Nenhuma até então tinha sido declarada Doutora. O papa não quis dar esse passo.
Paulo VI o fez em 1970, proclamando duas mulheres Doutoras da Igreja: Santa
Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena. O caminho estava aberto. Santa Teresa de
Lisieux escreveu: "Ah, apesar da minha pequenez, queria esclarecer as almas como
os Profetas, os Doutores. Tenho a vocação de ser Apóstolo" (Ms B 3r), "Sinto em
mim a vocação de Doutor" (Ms B 2v).
Deus escutou sempre os seus desejos. O essencial continua a ser que a sua
vida e a sua mensagem, marcadas pelo seu próprio tempo, mas superando-o
profeticamente (anunciou temas importantes do Vaticano II), são o antídoto mais
eficaz contra o desespero contemporâneo. Pode ser considerada a Doutora da
Esperança. É evidente que será uma santa importante para o século XXI, "orientada
para o porvir, testemunha do mundo futuro".
CONCLUSÃO
Tudo isto está proclamado e faz com que a mensagem de Teresa do Menino Jesus
possa ser interpretada como uma nova evangelização na qual a substância do
Evangelho é vivificada pela experiência interior, na oração que se torna
contemplativa, no amor que se torna filial e fraterno, na generosidade da caridade que
se torna heróica e oblativa.
Tudo isto no livro que foi escrito torna-se vivo e palpitante, torna-se límpido e
transparente, torna-se precioso para se aproximar da Santa e escutar a sua mensagem e
seguir o caminho que leva à salvação.
É um desejo que podemos pedir ao livro, é uma graça que podemos pedir à
,santa, protagonista exemplar
CRONOLOGIA DE TERESA
1873
1874 – um ano
Segunda-feira 29 de março: Viaja de comboio a Le Mans com sua mamãe, para a casa da tia
visitandina.
Desde a idade de dois anos: "Eu também hei de ser religiosa" (Ms A 6r)
Terça-feira 10 de maio: Depois de três anos em Caen, o Sr. Martin, doente, é levado para
Lisieux, paracasa dos Guérin.
Janeiro: A sua primeira obra de teatro sobre Joana d'Arc, para a festa da priora, dia 21 de
Janeiro.
Quinta-feira 17 de outubro: A Madre Inês pede a Teresa que reze pelo seminarista
Maurício Bellière, o seu primeiro "irmão espiritual".
No domingo 5 de abril, Páscoa: Teresa entra na sua "provação da fé", que irá durar até à
sua morte.
Sábado 21 de novembro: Novena para obter a cura de Teresa prevendo a sua possível
ida para um Carmelo da Indochina; recaída definitiva.
1897 — vinte e quatro anos:
Terça-feira 6 de abril: Início das Últimas Conversas, anotadas pela Madre Inês.
17 de maio de 1925: Canonização na basílica de São Pedro em Roma por Pio Xl.
19 de outubro de 1997: O papa João Paulo II proclama Santa Teresa Doutora da Igreja.
ÍNDICE
A França católica durante a segunda metade do século XIX (Stéphane-Marie Morgain ocd)
A "renda de Alençon" (Monsenhor Guy Gaucher)
Genealogia de Teresa
Teresa nos fala: "Os anos cheios de sol da infância" (Ms A 11v)
Teresa nos fala: "Como crianças pequenas" (Ms A 70r; 75v- 76r)
Teresa nos fala: "Jesus não quer fazer nada sem nós" (Ct 135)
Teresa nos fala: "Uma candeia no candelabro" (Ms C 22r; 18r; 12r)
Teresa nos fala: «Ser-lhe-ei mais útil no céu do que na terra" (Ct 254)
Cronologia de Teresa