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TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA-

AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd


QUEM NOS ENSINARÁ A ESPERANÇA?

GODFRIED, cardeal DANNEELS

Todos os problemas do homem pós-moderno reduzem-se a um só: o da


esperança. Podemos ainda esperar? Em cada rua, por trás da porta de pelo menos cada
três casas, há alguém profundamente preocupado, se é que não está desesperado. Na
nossa época, a esperança é a "criança" entre as suas duas irmãs mais velhas, das quais
fala Péguy, e que tem problemas de crescimento. Por todo o lado, flutua no ar uma
angústia existencial.

Há muito tempo que se está de acordo que só a crise econômica não pode
explicar esta situação. O verdadeiro problema está noutro lado: não são os tempos que
são maus, é a alma dos homens que está doente. Como um cosmonauta na sua cápsula
espacial, o homem para manter o equilíbrio, apega-se a tudo o que lhe aparece.

Quem nos ensinará a esperança? Onde encontrar um modelo, algo que nos
preceda através das trevas e das angústias da morte? Há nalgum lugar um Doutor da
Esperança?

Não disse a própria Teresa: "Ah! apesar da minha pequenez, quereria


esclarecer as almas como os Projetas, os Doutores. Tenho a vocação de ser Apóstolo"
(Ms R 3r). "Sinto a vocação de Doutor" (Ms B 2v)? Ela identificou o caminho da
esperança: é o caminho da santidade. A nossa sociedade depressiva só pode ser salva
pelos santos.

Esta jovem normanda, que vive numa sociedade burguesa que


aparentemente não estava marcada pela problemática moderna, viveu em poucos
anos, e longe do mundo, todo o drama do século seguinte. O seu ambiente
habitual pouco importa às grandes almas!

Teresa abriu progressivamente um caminho que vai dali! ingênua da infância


aos tormentos daqueles a quem Deus ama de tal maneira que os prova como ao
ouro no crisol. Descobriu como os caminhos do amor passam pelo sofrimento, que
Belém está muito perto de Jerusalém, que a gruta de Natal dos ícones é estranhamente
semelhante ao sepulcro escuro, que o Menino Jesus é igualmente, a Santa Face.

Com a eleição do nome "Teresa do Menino Jesus e da Santa Face", acentuou


para sempre a misteriosa síntese entre esperança e sofrimento, entre o presépio e a
cruz.

Teresa é a santa da esperança. Numa época em que ninguém falava disso,


numa sociedade na qual este tema estava ausente, Teresa viveu o que muitos outros,
depois dela, iam viver: a noite da incredulidade dos que buscam angustiadamente, de
todos os descrentes e dos maus crentes. Durante muito tempo, Teresa esteve "sentada à
mesa dos pecadores", mesmo antes que uma certa literatura católica —a de Bernanos,
a de Mauriac, a de Graham Greene — não a tratasse de um modo que não foi depois
igualado. Tal drama na alma da carmelita refletiu-se na de inúmeros homens e
mulheres, cristãos e não crentes. Este drama de Teresa foi, nos começos deste século,
uma profecia de coisas que viriam a acontecer.

O drama na sua alma viveu-o no silêncio do Carmelo. Nunca fez alarde de ser
pessoa em quem fixar-se. Na sua vida não há nada de teatral, nem patético, nem
espetacular. Nem sequer há matéria suficiente para escrever uma nota necrológica
que possa suscitar interesse nas leitoras de outros Camelos, na opinião das irmãs.
Teresa escalou o monte do seu Carmelo no anonimato. Contentava-se com ser, não
queria aparentar. Deixou que fosse Deus a descobrir o segredo do seu pequeno
caminho. Era, e continuava a ser, a mais pequena. Contudo, os seus sonhos eram
imensos e o seu olhar sem limites. No pequeno Carmelo de Lisieux, abraçava toda a
Igreja, todos os países de missão, todos os tempos e todos os  homens, santos e
pecadores. Porque quem anta, abraça tudo. A medida do amor é que é sem medida,
segundo a bela expressão de São Bernardo.

Teresa é, ainda, uma santa da fé: por meio das espessas trevas das suas noites,
aproxima-se da palavra desnuda de Deus. É igualmente uma santa do amor, pois,
conforme as suas próprias palavras, escolheu o amor para ser assim o coração da Igreja.

Mas é, antes de tudo e sobretudo, a santa da esperança. Efetivamente, a fé, a


esperança e a caridade são as três irmãs maiores que não podem prescindir umas das
outras. A fé vê o que já passou, a esperança vê o que ainda está para vir; a caridade ama o
que já passou, a esperança fia-se do que ainda não aconteceu. Mas para o nosso tempo,
não seria a esperança a mais importante? E a mais necessária? E a mais rara?

A fé, diz Deus, segundo a expressão de Péguy em Le Porche du mystère de la


secunde vertu (O Pórtico do mistério da segunda virtude), não me surpreende tanto:
Eu brilho tanto em toda a minha criação. O amor, poder-se-ia acrescentar, não deveria
surpreender absolutamente a Deus. Deve dizer-se: se se amam mutuamente, é tudo em
benefício próprio. O que me surpreende, diz Deus, é a esperança. É a menos evidente
das três. É a que tem maior necessidade de ser cultivada. Pois não é senão uma criança
com vontade de crescer.

A esperança é essencial. Nunca é marginal à vida humana: é o seu músculo do


coração, o miocárdio. Se ela parar, a morte é certa.

Este belo livro sobre Teresa é como uma árvore de Natal. No tempo de Inverno
em que a nossa época vive, lembra-nos que a natureza continua verde e que está à espera
das cores da Primavera e da abundância do Verão. Folheai este livro, olhai-o, lede-o:
tem as cores da esperança.

APRESENTAÇÃO

Há um século, desde aquele 30 de  Setembro de 1897 — dia da sua morte —,


que Teresa Martin "entrou na vida". Por amor de Cristo e da salvação espiritual dos
homens tinha abandonado uma situação confortável seio de uma família acomodada para
se encerrar muito nova no austero convento das carmelitas da sua cidade de Lisieux.
Semente que caía em terra para desaparecer antes de frutificar. "Amar é tudo dar
e dar-se a si mesmo", cantava Teresa alguns meses antes de morrer aos vinte e
quatro anos. Aparentemente, o grão tinha acabado a sua obra, só Deus conheceria a sua
oculta fecundidade.

Por um destino excepcional na história das carmelitas, a semente ressurgia em


vida visível. Durante os últimos meses da sua doença, Teresa do Menino Jesus tivera
disso o pressentimento profético. Trouxeram-lhe àenfermaria um molho de espigas;
escolheu a mais bonita, a mais cheia, e disse à madre Inês: "Esta espiga é a imagem da
minha vida. Deus carregou-me de graças para mim e para muitos outros..." (UCR 4.
8. 3).

Falava de uma missão a cumprir a partir do céu, de um pequeno caminho a


ensinar, do seu desejo de ajudar os sacerdotes, os missionários, de fazer amar o
Amor. Suplicou ardentemente ao Senhor que escolhesse uma legião de pequenas almas que
se atrevessem a crer sem resistência na sua inefável Misericórdia. É um fato que
o esplendor de Teresa foi extraordinário e está  h o j e l o n g e d e s e a p a g a r .

É esta a razão pela qual se deve dar a palavra a Teresa. Um dos numerosos
meios, assim o esperamos, será este álbum que procura situar, por meio da imagem e da
exposição escrita, a experiência e o pensamento da jovem santa na sua evolução e
ambiente históricos.

Não quisemos refazer o trabalho do P. Francisco de Santa Maria, apresentando


unicamente todas as fotografias de O Rosto de Teresa de Lisieux. Tampouco cedemos à
tentação de imitar a admirável obra documental de Pierre Descouvemont e de Helmuth
Nils Loose, Teresa e Lisieux, e depois Santa Teresa de Lisieux, A Vida em imagens.
O que estes autores descartaram expressamente é o que nós quisemos fazer: ilustrar a
vida de Teresa e iluminá-la com a ajuda de um estudo profundo no seguimento da sua
biografia.

Concebemos, pois, o nosso trabalho como um complemento em diálogo profundo


com estes amigos, recorrendo para tal aos melhores especialistas.

A idéia inicial nasceu no seio da Ordem do Carmo e com o apoio do seu P.


Geral, Camilo Maccise. É uma homenagem, muito limitada e muito externa, à nossa
santa irmãzinha, a qual, desde há um século, tem sido para toda a nossa família, bem
como para toda a Igreja, um sacramento de inumeráveis graças e um abismo de
inspiração contemplativa e apostólica. Somente a ela, assim se nos apresenta
Teresa, não como espiga granulada, mas como um vasto campo de trigo que nos
alimentou abundantemente. Obrigado, Teresa.

Particularmente, este projeto foi levado a cabo pela Província carmelitana de


Gênova. Os irmãos do Santuário do Menino Jesus, em Arenzano, com a sua revista
ilustrada Messagero del Bambino Gesú di Praga, sent i r a m - s e i m p u l s i o n a d o s a
o f e r e c e r e s t a  homenagem a Teresa do Menino Jesus. O livro enquadra-se na
linha de obras análogas que têm Teresa de Ávila por objeto(Inquieta y
andariega. La aventura de Teresa de Jesús), João da Cruz (Dios habla en la Noche.
Vida, palabra y mensaje de San Juan de la Cruz) e El Monte Carmelo  (Desde los
orígenes a nuestros dias), no qual, os respectivos autores, Tomás Álvarez, Federico Ruiz,
Silvano Giordano e Jerónimo Salvatico colaboraram nesta nova iniciativa.

Agradecemos de todo o coração aos eminentes colaboradores deste álbum, à


comunidade das Carmelitas de Lisieux, bem como às casas editoriais responsáveis das
versões italiana, inglesa, alemã, espanhola, holandesa, polaca e catalã.

Estimados leitores, que Teresa, por meio das páginas que tendes nas vossas
mãos, continue a comunicar-vos a sua palavra de graça, tomando mais viva a
realidade e a beleza de Jesus, do qual quis honrar a humildade da sua infância e a beleza
do seu rosto, resplandecentes de Misericórdia e de Fidelidade.

CONRAD DE MEESTER

GIROLAMO SALVATICO

SILVANO GIORDANO

Carmelitas.

As siglas remetem para as obras descritas na bibliografia que está no fim do volume.

Ms A; Ms B; Ms C: manuscritos autobiográficos de Teresa.

Ct: Lettres (Cartas).

PN: Poésies (Poesias).

Or : Prières (Orações).

RP: Récréations pieuses (Recreações piedosas).

UCR: Últimos Conselhos e Recordações.

DE: Demiers entretiens (Últimas conversas) ; os números indicam, por ordem,


o dia, o mês, o número da frase. Por exemplo, DE 31. 8. 9: significa o dia 31 de Agosto,
a frase número 9; às vezes, indica-se a página.

DE II: resumo de DE, conhecido como "Últimas palavras", ao qual se segue a


data.

CG: Correspondance Generale (Correspondência geral), edição crítica.

CF: Correspondence familiare (Correspondência familiar).

CSG: Conseils et Souvenirs de soeur Geneviêve (Conselhos e Lembranças da


irmã Genoveva).

PA: Processo Apostólico.


PO: Processo do Ordinário.

CAPÍTULO 1

A FILHA DE LUÍS E DE ZÉLIA

CONRAD DE MEESTER ocd

Alençon, rua de São Brás, número 36. Na quinta-feira, dia 25 de Junho de 1874,
Zélia Martin acabava de receber a visita das suas trabalhadoras. É a chefe da sua "fábrica
de renda de Alençon" e, todas as quintas-feiras,quando as bordadeiras vão ao
mercado semanal e levam o trabalho feito, pequenos pedaços de 15 x 20 cm, Zélia tem
que enlaçá-los às pressas, conforme o pedido que lhe é feito pelas lojas parisienses.

Para descansar, Zélia, tão hábil com a pena como com a agulha, escreve às suas
filhas mais velhas, Maria e Paulina, colegiais no convento da Visitação de Le Mans,
onde é freira a sua única irmã, Maria Luísa Guérin.

Cinco filhas, é demasiado. Mas, demasiado pouco! Como Zélia teria gostado de
conservar os seus dois filhos e as suas duas filhas que a morte arrancou ao seu
amor maternal. Das cinco que lhe restam, Maria e Paulina têm, respectivamente, catorze e
treze anos e prometem muito. Leônia, a terceira, tem onze anos, de temperamento
bastante arisco e obstinado, causa-lhe preocupações contínuas. A seguir, vem Celina,
de cinco anos, e Teresa, a mais nova, de ano e meio, a jóia do seu coração.

O coração de Zélia está constantemente com as suas filhas. Neste momento, as


duas mais novas brincam no jardim com o papai, o seu esposo, Luís. "O vosso pai acaba de
instalar um balanço — escreve —, a Celina está fora de si de contente, mas a pequena
a balançar-se, só vendo [Teresa]; dá vontade de rir, porta-se como uma menina grande,
nãohá perigo que se solte da corda e, quando não está bem atada, ela grita. Prendemo-la
com outra corda pela frente e, apesar disso, não estou sossegada quando a vejo
empoleir a d a l á e m c i m a . . . "

Como poderá compartir Teresa esta inquietação? Não está ali o seu papai, o
seu "rei", do qual, a cada volta do balanço, sente a sua mão forte que, com demasiada
doçura, a empurra para a frente? E, opa! Mais alto!

Assim é ela, a pequena. Sempre mais alto! Um dia comparará a santidade com o
cume de uma montanha. Mais alto! Até ao céu, se é possível! Porque nesta casa da rua
de São Brás fala-se frequentemente do céu. É o objetivo formal das suas vidas. Os
Martin têm, em definitivo, os costumes dos espirituais realistas.

Luís sorri ao ver a alegria e a confiança da criança, a nona filha... Como partilha
o que sua esposa escreve sobre a pequena nas suas longas cartas a Maria e a Paulina, ou à
freira de Le Mans e ao seu irmão Isidoro Guérin,farmacêutico em Lisieux. "Parece muito
inteligente... Será bonita e já é engraçada" (CF 117) "Cada dia é mais engraçada, está a
balbuciar desde a manhã até à tarde" (CF 118). "É muito inteligente e tem conversas
muito agradáveis. Já sabe rezar a Deus" (CF 130).
Mais alto! Por fim, a pequena Teresa cansa-se. Pois nunca se chega tão alto
como ela queria... E, de repente, diante dos olhos do seu coração "amável e sensível"
(Ms A 4v) abre-se outro mundo: a sua mamãe.

Luís, o peregrino

Ela tem razão, pensa Luís, ao procurar a sua mãe! Que esposa... Como poderia
tê-la imaginado há dezesseis anos! Tinha então trinta e cinco anos e não pensava casar-
se, pois encontrava-se bem como celibatário.

Nascera no dia 22 de Agosto de 1823 em Bordéus, onde estava acampado o


batalhão do seu pai, Pierre Martin, capitão do exército francês, retido em Espanha por
causa de uma campanha no momento do nascimento de Luís. Deste modo, os militares
e as suas famílias mudam de lugares. Aos quatro anos e m e i o v o l t a m o s a
encontrar o pequeno L u í s  no outro lado de França, em
Estrasburgo. Depois, aos sete anos e meio, vai para  Alençon, na Normandia do
seu pai. Sem dúvida estudou então com os Irmãos das Escolas Cristãs, mas os seus
estudos parecem ter sido menos os de um aluno clássico do que de um autodidata
que ama a literatura e aprende o alemão.

Luís Martin é conhecido, sobretudo, pela descrição que dele fez a sua filha
Teresa, nasua autobiografia: um velho venerável e muito piedoso, que adora as
suas filhas, um pouco sonhador e que vive das suas rendas. Este é "Luís Martin II".
Luís Martin I, pelo contrário, é o jovem que com perseverança e suave constância
descobre o seu caminho, elabora pacientemente um projeto e ganha um lugar na
sociedade. Aos dezenove anos, abandona Alençon e passa longos períodos como
aprendiz de relojoeiro com a família ou em casa dos seus amigos: um ano
em Rennes, quatro em Estrasburgo, três em  Paris, onde vive a turbulenta
revolução de1848, com a abdicação do rei Luís Filipe e a eleição do presidente da
república Luís Napoleão Bonaparte.

Filho de militares, Luís é homem da  ordem e do dever cumprido, um


animososempre disposto a intervir e a tomar decisões.

"Da idéia à sua realização, para mim não há muita diferença", escreverá mais
tarde ao seuamigo Nogrix. Meditativo, profundamente religioso, leva consigo o
sonho de abraçar a vida monástica — inclusive priva-se durante toda a sua vida do
gosto de viajar —.Aos vinte anos, visita o mosteiro do Grande São  Bernardo; aos
vinte e dois, volta ali para solicitar a admissão entre os cônegos de Santo Agostinho.
"Pensei sempre — dirá mais tarde à sua filha Celina — que, nos seus desejos de vida
religiosa, com a sua eleição do Grande São Bernardo para viver nas alturas, longe
dotumulto das cidades, não lhe era estranho a atração do perigo para acudir em ajuda
dos viajantes em dificuldades nas neves".

Luís não foi recusado pelos monges; foi lhe pedido apenas que completasse
os seus estudos. Começa, efetivamente, a receber aulas de latim com um professor
particular. Depois de um ano e meio abandona estes  estudos difíceis. Concentra-
se totalmente na sua futura instalação como relojoeiro. Aos vinte e sete anos, em
Novembro de 1857, compra em Alençon, no número 15 da rua da Ponte Nova,
uma casa onde instala uma oficina e venda, à qual em breve acrescenta  uma
montra de joalharia. Leva os seus pais, já idosos, para junto de si, pois já
haviam perdido três filhos, de nove, de vinte e cinco e vinte e seis anos.

Os seus negócios prosperam. Em sete  anos, paga as dívidas contraídas


e compra, nos arredores da cidade, um jardim com uma pequena torre hexagonal de
dois andares: o "Pavilhão", que se converterá no seu lugar de oração e
de leitura. Com o seu trabalho, as suas idas à pesca, os amigos do Círculo  Vital
Romet, as obras da paróquia e a missa diária, esta solidão parece tudo o que a
sua alma pode desejar.

Mas faz sem consultar a sua mãe,  inquieta ao ver que o seu filho
continua solteiro. É ela quem lhe propõe casar-se com Paulina Romet, proposta
seguida de um não categórico devido às idéias demasiado "liberais" da família
Romet, como explicará  Celina? Seja o que for, na vez seguinte  Fanny Martin
teve mais êxito. Na escola de renda de Alençon que ela freqüentava, vê Zélia
Guérin, o diamante de quem fala insistentemente ao seu filho joalheiro.

Este estranho matrimônio feliz!

Emocionado, na quinta-feira, dia 24 de Junho de 1874, no jardim da


rua de São Brás, Luís sorri recordando... Efetivamente, Zélia era outra coisa.
Comprovara-o desde o primeiro encontro organizado: com Zélia  não se
enganaria. Mulher enérgica, de coração transparente, de espírito prático e ativa, é
profundamente cristã.

Característico da sua alma religiosa e do seu desejo de abnegação ativa para


com os pobres: um dia (com dezoito ou dezenove  anos) tinha pedido para entrar
nas Filhas da Caridade, as irmãs de São Vicente de Paulo que, no Hospital de Alençon,
consagram a sua vida ao Senhor servindo os doentes hospitalizados. A superiora não lhe
reconhece o dom da vocação. Zélia não insiste mais e compreende que a sua vocação
será a de ser mãe de filhos que, se Deus quiser, se consagrarão a Ele. Mais tarde, poder-se-á
ler, mais do que uma vez, na sua correspondência o desejo de ter um "santo" entre os seus
filhos, e certamente um sacerdote missionário.

No dia 13 de Julho de 1858, na igreja de Nossa Senhora, à meia-noite (como


costumava fazer com muita freqüência), Luís Martin, de trinta e cinco anos, e Zélia Guérin,
que tem vinte e cinco, dão diante de Deus o seu sim recíproco. Trocam a sua promessa
de fidelidade, cujo símbolo é o anel, e os seus corações com o primeiro olhar de casados.

Hoje, isto pareceria inverossímil... Era, no entanto, o caso de muitas mulheres


naquela época, em que a sexualidade estava quase sempre rodeada de um mutismo total:
Zélia, de coração escrupulosamente puro, embora desejasse ser mãe, não conhecia as
realidades do matrimônio...

Grave choque emocional quando se dá conta. Luís comporta-se com tato


delicado. De comum acordo e com candura, os casados decidem viver como irmão e irmã,
em união de corações e de oração, a comunhão de bens. Não tinham sonhado os
dois, noutro tempo, com a vida consagrada? Contudo, não procuram a facilidade de
uma vida tranqüila, pois muito em breve acolhem na sua casa da rua da Ponte Nova
uma criança de uma família muito pobre. Depois de dez meses — tempo suficiente para
pensar —, e tendo falado novamente sobre este assunto com um sacerdote, decidem ter
muitos filhos: serão nove.

Dificilmente o compreendemos. É tão ingênuo e belo ao mesmo tempo... Por


um lado, onde está a lógica do matrimônio contraído por Zélia quase sem preparação?
Por outro, que respeito pelo coração e pelo corpo de Luís, que força de espírito na espera e
na renúncia! Fixos os olhos em Deus, querem consagrar-se a Ele; voltando a escutar
o Senhor, tomarão a decisão de ter muitos filhos. Teresa, a nona, dar-se-á conta
da dimensão da providência que dirigiu o seu nascimento: "Foi Ele que a fez nascer
numa terra santa e como que toda impregnada de um perfume virginal" (Ms A 3v).

Zélia, a generosa

Quase vinte anos mais tarde, uns dias depois da morte da sua irmã
visitandina, a seu quem visitaram no mesmo dia do seu matrimônio e à qual quinze dias
depois aludira ao seu "segredo", Zélia recorda ao escrever à sua filha Paulina: "Teu
pai tinha gostos semelhantes aos meus, julgo mesmo que o nosso afeto recíproco tinha
aumentado por isso. Os nossos sentimentos eram sempre em uníssono e serviu-me
sempre de consolação e apoio. Mas quando tivemos os filhos, as nossas idéias mudaram
um pouco; não vivamos senão para eles, eram a nossa felicidade, nunca a encontramos
em nós mas neles.

Enfim, nada nos causava pena; o mundo não era gravoso para nós; por isso
desejava ter muitos, para encaminhá-los para o céu" (CF 192).

Voltemos à pequena Teresa. Nesta quinta-feira, dia 25 de Junho de 1874, cansada


do balanço, procura a sua mamãe, o seu mundo de calor e de segurança: "eis que o bebê
vem — passar a sua mãozinha pela minha cara e abraçar-me" — escreve Zélia: "A
pobre não me quer deixar, está sempre comigo; gosta muito de ir para o jardim, mas se eu
não estiver ali, não quer ficar e chora até que ma trazem... Encanta-me ver que tem
tanto carinho, mas às vezes é molesto! Sobretudo na quinta-feira, quando as operárias
vêm entregar o seu trabalho de rendas!”

Na véspera, Zélia escrevia ainda à sua cunhada de Lisieux, a muito querida


Celina Fournet, que desde o seu matrimônio com Isidoro será a senhora Guérin:
"Teresa começa a falar quase perfeitamente. Torna--se cada vez mais meiga, e não é
pequena carga, asseguro-lhe, porque está continuamente junto de mim e é-me difícil
trabalhar. Por isso, para recuperar o tempo perdido, continuo o trabalho das rendas até às
dez da noite e levanto-me às cinco. Tenho que me levantar uma ou duas vezes durante a
noite por causa da menina. Enfim, quanto mais trabalho tenho, melhor me sinto".

Zélia gosta dos seus filhos. Teresa, a nona, tinha sido a grande bem-vinda. Quinze
dias antes do nascimento da menina, a feliz mamãe confidenciava a sua cunhada: "Agora,
todos os dias, estou à espera do meu anjinho... Se Deus me der a graça de a poder
amamentar, será um prazer criá-la. Amo as crianças com paixão, nasci para ter filhos" (CF
83).

Esperar a pequena Teresa é como ser portadora de uma música profunda. Mãe e
filha vibram em consonância, com dificuldade, se atreve a confidenciar à sua
cunhada: "Enquanto a trazia comigo, dei-me conta deuma coisa que nunca me tinha
sucedido com os meus outros filhos: quando eu cantava, ela cantava comigo... Conto-to,
ninguém poderia acreditar em mim" (CF 85). Três anos depois escreverá: "Que feliz
sou de a ter! Julgo que lhe quero mais que a todos os outros, sem dúvida porque é a
mais pequena" (CF 158).

Ter filhos para os amar consolou em grande parte a Zélia da sua própria infância
infeliz. Não se comportará com os seus filhos como sua mãe se comportou com ela...
Três anos depois de se casar, Isidoro Guérin, militar, depois, polícia, e sua esposa Luísa
Joana Mace, filha de um torneiro..., tiveram uma primeira filha Maria Luísa a futura
visitandina. Dois anos e meio mais tarde nasceu Zélia, no dia 23 de Dezembro de 1831,
quase

bebê natalício. Nove anos e meio depois, nascerá o filho menor, Isidoro. Todos os
filhos nasceram em Saint-Denys-sur-Sarthon, a doze quilômetros a noroeste de
Alençon. Mas em 1844, a família muda-se para Alençon, rua de São Brás 36, onde
nascerá a pequena Teresa.

O Summariam (II,91) da causa de beatificação de Zélia descreve os pais Guérin


como sendo "cada um a seu modo, pessoas de caráter muito acentuado. Eram rudes,
autoritários, exigentes. Contrariamente ao que se poderia imaginar, o marido era mais
doce que a esposa, e os filhos que iam nascer da sua união seriam os primeiros a
experimentar os efeitos deste contraste. A vontade exigente dos esposos Guérin apoiava-
se, poroutro lado, afortunadamente, no seu desvelo de integridade moral e de fidelidade
religiosa. A sua influência na educação dos filhos seria grande".

Não há dúvida: Zélia sofreu muito com esta "vontade exigente" dos esposos
Guérin. "Embora o desejasse ardentemente — refere a sua filha Celina — nunca, na sua
infância teve bonecas, nem uma sequer. As freqüentesenxaquecas que sofria
aumentavam este penoso ambiente". É evidente que a mamãe Guérin tinha mais
preferências pela sua filha mais velha e pelo seu filho Isidoro do que por Zélia.

Zélia, que tanto gostaria de ter alguma boneca, gostava muito do seu


irmãozinho Isidoro, o seu anjinho, o seu irmão mais novo do que ela dez anos. Mais
tarde, quando Isidoro, já farmacêutico, tinha decidido instalar-se na longínqua Lisieux
em vez da próxima Le Mans onde se poderiam visitar facilmente e onde estava já a sua
irmã visitandina, Zélia, por sua vez, deixar-se-á levar por uma queixa amarga
(queixa que não deve ser separada, nesta época, da grande felicidade de ser mamãe).
Escreve, no dia 7 de novembro de 1865, a seu irmão independente: "Estou
completamente desencantada. Via-te em Le Mans e teria gosto de te ir visitar de vez em
quando; teria sido para mim um encanto na minha existência trabalhosa e monótona.
Mas, que queres? É necessário renunciar a tudo; nunca na minha vida tive um
prazer, o que se diz prazer nunca o tive. A minha infância, a minha juventude, foram
tristes como uma mortalha, porque, se a minha mãe te mimava a ti, para mim, tu o sabes,
era demasiado severa; embora sendo tão boa, não sabia tratar comigo; por isso o meu
coração sofreu muito".

Se os pormenores se conhecem parcialmente, a Circular necrológica da sua


irmã religiosa esboça, no entanto, um ambiente familiar no qual domina a figura da
austera senhora Guérin, "simples e um pouco rústica, mas de uma fé robusta". O que na
circular é dito para Maria Luísa pode ser aplicado, sem dúvida, a Zélia. Na família
reinava uma "certa atmosfera de rigorismo, de tensão e de escrúpulo". A expressão é
pecado, detinha a pobre filha [Maria Luísa] nas suas inclinações mais fortes (...) A
senhora Guérin, que notava na sua filha este excessivo temor de ofender a Deus, servia-
se um pouco exageradamente do ascendente da frase desmedida é pecado para reprimir
as suas mais pequenas imperfeições. Maria trabalhava muito e divertia-se
muito pouco".

Refere-se, em particular, como a pequena Maria Luisa, quando brincava ou


dançava com outras crianças, "julgou cometer um grande pecado se se encontrava ao
lado de um menino; evitava-o temerosa e o mais habilmente que podia, granjeando por
vezes maliciosos gracejos sobre o que se chamava o s e u c a r á t e r i n s o c i á v e l " .

Em tal ambiente, entende-se melhor a perplexidade e a moderação da sua irmã


Zélia, ignorante na noite de bodas. Tato do seu marido, a sua presença tranqüilizadora,
e depois uma melhor compreensão da obra doCriador prepararam-na para aceitar o
matrimônio com toda a sua lógica. Mais tarde, a beleza do amor fecundo e a alegria dos
filhos continuaram alargando o coração de Zélia.

As intuições

Voltemos agora ao passado de Zélia. Durante alguns anos, a situação


financeira da economia do polícia aposentado encontrava-se seriamente comprometida;
o trabalho das filhas tê-la-ia aliviado. Em 1848 (Zélia ia fazer dezessete anos) a casa
da rua de São Brás sofre remodelações para abrir no andar inferior um pequeno café e,
no primeiro andar, um salão de bilhar. Enquanto o aposentado se dedicaria por afeição ao
trabalho de carpintaria, a sua mulher ocupar-se-á do café. Os esposos esperam
conseguir assim, com a exploração de uma loja de bebidas, um indispensável
complemento de recursos. Mas isto nunca se realizará.  Levada pelo seu caráter
intransigente, a senhora Guérin repreende os consumidores. Aos clientes não lhes são
agradáveis as reflexões moralizantes, e procuram outros lados em busca de lugares de
divertimento menos austeros (cf. Summarium II,91).

É assim como Zélia tem o dom da intuição , sem o poder explicar. Na véspera
dos seus vinte anos faz uma novena à Virgem Imaculada para se orientar na eleição de
um trabalho profissional: dá-se conta subitamente com clareza, neste dia 8 de
Dezembro de 1850, como se lhe fosse ditado à Mãe da família de Nazaré . "Manda
fazer ponto de Alençon"... O dia 8 de Dezembro será sempre para ela "um dia
memorável: obtive duas vezes grandes graças neste dia", escreve (CF 1 6 ) , " é p a r a
m i m u m a g r a n d e f e s t a " ( C F   147).

A idéia de Zélia não era, pois, a de fazer "ponto de Alençon", que entre os


trabalhos de renda era considerado o mais belo e refinado, mas (aos seus vinte anos!) a
de mandar fazer, isto é, pôr outras operárias ao seu serviço e reservar para si a união das
distintas peças, emendando-as se fosse preciso. E "era preciso ser muito perita nas uniões
para que a costura ficasse invisível, obstáculo e triunfo dos habilidosos", escreve o P.
Piat (História de urna família, Oficina central de Lisieux, 1947, p. 42).

A mãe Guérin aprova o projeto de Zélia. Na condição, contudo, de que... a filha


mais velha, Maria Luisa, leve a responsabilidade da empresa. As jovens não se
relacionam com as famílias ricas de Alençon, terra, além disso, bastante pequena; será,
pois, necessário encontrar saídas em Paris. Depois de constantes diligências, ganha a
confiança da casa Pigache, da qual Zélia se converterá em fabricante fixa. Durante a
Exposição industrial de Alençon, Zélia conseguirá pessoalmente os elogios do júri pela
"beleza" das rendas, "a riqueza dos seus desenhos", e a sua "inteligente direção".
Encontramo-nos agora no dia 20 de junho de 1858. Um mês mais tarde, Zélia casar-se-á.

A decisão concreta de se casar toma-a, também, depois de uma intuição fora


do comum. As suas filhas recolherão a confidência. Um dia, ao atravessar em Alençon
a ponte de São Leonardo que atravessa o Sarthe, quando passa um jovem
distinto — que é Luis Martin —, o coração de Zélia sabe que "ele" será o eleito.
Durante três meses, uma primavera Zélia e Luís voltam a encontrar-se, falam-se,
estimam-se, querem-se com amor puro e profundo como dois lagos que se ladeiam.
Decidem unir os seus corações e os seus pensamentos num destino comum ainda
desconhecido, que julgam ser querido e guiado por Deus.

Uma vez casados, Zélia transfere a sua "oficina" para a casa do seu marido, rua
da Ponte Nova 15, onde os pais Martin habitam o andar de cima. Pelo seu trabalho
laborioso, coroado de êxito, encontram-se já bastantedesafogados. Luís possui a casa
com o jardim, bem como a pequena propriedade do "Pavilhão"; além disso, dos
fundos do comércio da relojoaria contribui com 11.000 francos (que correspondem a
uns 75.000dólares americanos nos princípios de 1995). Zélia leva como dote e como
fruto das suas poupanças pessoais cerca de 5.000 francos.

Felicidade e sofrimento de uns pais

Os filhos de Zélia não sofrerão o que ela sofreu: disso se encarregará ela.


Porém, a vida ordena outra coisa... À feliz espera do primeiro bebê mistura-se a
tristeza da breve doença, depois da morte da senhora Guérin, no dia 9 de setembro de
1859.

Contudo, é o momento para a vida que Zélia, pela primeira vez, com emoção,
sente que se abre nela. No dia 22 de fevereiro de 1860 nasce a pequena Maria Luisa
(chamada como a irmã de Zélia que, três meses  depois, professou na Visitação).
Na vida quotidiana a pequena chamar-se-á "Maria", por abreviação. Os nove filhos de
Zélia levarão como primeiro nome, o nome de Maria. No dia 7 de setembro de
1861, nasce Paulina. Depois, no dia 3 de junho de 1863, Leônia. Estas três primeiras
filhas, as quais pôde criar pessoalmente, chegarão aos 80, 90 e 78 anos,
respectivamente.

Profunda dor, quando não consegue criar suficientemente a sua quarta filha,


Helena, que nasce no dia 13 de outubro de 1864, e que é necessário entregar a uma
ama. Zélia começa já a "sofrer de um gânglio no peito" (CF 13), que acabará por se
converter num câncer do qual morrerá três anos depois.

Insistimos um pouco mais sobre o amor de Zélia pela menina ausente. Zélia
conta no dia 12 de janeiro de 1865: "A menina  Helena cresce muito, é bela como
um anjo. Fui vê-la no primeiro dia do ano, digo-te que muito em segredo; penso
continuamente nela. A ama é boa e cheia de saúde" (CF II).
No dia 5 de março: "Fui ver na terça-feira passada a minha filha Helena. Saí sozinha
às 7 da manhã, por causa do vento e da chuva que me acompanharam à ida e à
volta. Imagina o meu cansaço durante o caminho, mas sustinha-me o pensamento de que
em breve ia ter nos meus braços o objeto do meu amor. A menina Helena é uma bela
jóia, é bonita como um primor!" (CF 12).

"Fui ver, há quinze dias, a que está a ser criada fora; não me lembro de nunca
terexperimentado um sentimento de felicidade semelhante ao momento em que a tomei
nos meus braços, e ela me sorriu tão graciosamente, que julgava ver um anjo; enfim,
não o posso exprimir; julgo que até agora não vi e nunca verei uma filhinha tão
encantadora. A minha Helenazinha, quando terei a alegria de a ter totalmente? Não posso
imaginar ter a felicidade de ser a mãe de uma criatura tão deliciosa!... Oh, bom! Não me
arrependo de estar casada" (CF 13).

No dia 26 de junho de 1865 morre o avô Pierre Martin. "Morreu como um santo


— escreve Zélia —, tal vida, tal fim". Como com um pressentimento de tudo o que vai vir
a seguir, fica muito impressionada: "Nunca teria acreditado que isto poderia causar-me
tanto efeito: estou aterrada, a minha pobre sogra passou noites inteiras cuidando
dele durante dois meses e meio sem aceitar que alguém a ajudasse (...) Confesso-te que
a minha morte me espanta. Acabo de ver o meu sogro, tem os braços tão rígidos e o
rosto tão frio! E dizer que verei os meus assim ou que eles me verão!" (CF 14).

Sucedem-se as maternidades. Grande alegria, no dia 20 de setembro de 1866,


com o nascimento do menino Maria José; por fim, o rapaz que poderá ser sacerdote e
missionário. Por desgraça, tem que o entregar também a uma ama, uma jovem
camponesa de Semallé — povoação a 13 quilômetros de Alençon —, Rosa Taillé, que
na família se chama "Rosinha" e a quem um dia se lhe confiará a menina Teresa.

"Acabo de ver o meu menino José", escreve a orgulhosa mãe no dia 18 de


novembro de 1866: "Oh, que grande e forte está o pequenino! É impossível desejar
algo melhor. Nunca tive um filho que crescesse tão bem, exceto Maria. Ah, se soubesses
como amo o meu pequeno José! Julgo que sou totalmente feliz!" (CF 19).

Mas, em breve a angústia! "Tive a felicidade de ver o meu pequeno José no


primeiro dia do ano. Como presente vesti-o como um príncipe (...) No dia seguinte,
pelas três da manhã, ouvimos chamar fortemente à porta; levantamo-nos, vamos abrir e
dizem-nos: "Vinde depressa, o vosso filhinho está muito mal, tememos que venha a
morrer". Sabes que nunca demorei muito em vestir-me e eis-me a caminho do campo, a noite
mais fria, apesar da neve e do gelo do caminho. Não pedi ao meu marido que me
acompanhasse, não tinha medo, teria atravessado sozinha um bosque, mas não quis deixar-
me ir sem ele. O pequenino tinha uma forte erisipela, e o aspecto era lamentável. O
médico disse-me que estava em grave perigo; enfim, eu via-o já morto... Mas Deus não me
tinha feito esperar tanto um filho para mo tirar tão cedo e quis deixar-mo; agora está muito
bem de saúde" (CF 21). Desgraçadamente, um mês depois, no dia 14 de fevereiro, o
primeiro filho de Zélia e Luís morre... Adivinha-se a ferida do coração dos seus pais.

Não será o único luto na família. Depois de um nascimento difícil e de


contínuas doenças, um segundo filho, outro "José, (José João Baptista), entregue
também a"Rosinha" para que o crie, morre no dia 24 de agosto de 1868, aos oito meses.
"O meu queridinho José morreu esta manhã, às sete", escreve Zélia ao seu irmão. "Estava
sozinha com ele. Passou uma noite de terríveis sofrimentos e pedia com lágrimas que se
visse livre deles" (CF 36). Nove meses depois, morre o senhor Guérin, o policial
aposentado, pai de Zélia... "tenho o coração ferido de dor e, ao mesmo tempo, cheio de
celestial consolação. Se soubesses com que santa disposição se preparou para a morte (...) O
seu túmulo estará muito perto do dos meus dois filhos José" (CF 38).

No dia 28 de abril de 1869, nasce o sétimo filho, Celina (a futura irmã Genoveva).
Porém, dor dilacerante a de Zélia e a de Luís, no dia 22 de fevereiro de 1870 morre
inesperadamente a pequena Helena, com cinco anos de idade e quatro meses. "Enquanto
a sustinha, a sua cabecinha caiu sobre o meu ombro, os seus olhos fecharam-se, em
cinco minutos já não vivia... Isto causou-me uma impressão que nunca esquecerei. Não
estava à espera deste desenlace brusco, nem tampouco o meu marido. Quando entrou e viu
a sua pobre filhinha morta, pôs-se a chorar gritando: "minha Helenazinha, minha
Helenazinha!". Depois, juntos, oferecemo-la a Deus (...). Vesti-a e coloquei-a no
caixão, julguei que ia morrer, mas não queria que os outros lhe tocassem" (CF 52). "Não
há um minuto que não pense nela (...). Enfim, está no céu, mais feliz do que aqui embaixo,
mas quanto a mim, parece-me que desapareceu toda a minha felicidade" (CF 54).

Enquanto tudo isto acontece, Zélia está novamente grávida. Ao ser a mortalidade


um açoite sem piedade numa época na qual a medicina tinha que avançar muito, esta
primeira "Teresinha" (Maria Melânia Teresa), que nasce no dia 16 de agosto de
1870, morreu cinqüenta e três dias depois...

"Ficaria tão contente de ter outra”, escreve Zélia nove meses depois desta morte da
qual "jamais se consolará" (CF 66), e esta outra filha chamar-se-á "Teresa, como a
minha anterior menina" (CF 85).

E as provações não acabam... Até nos últimos meses da sua vida, Zélia terá
que preocupar-se do caso da sua Leoniazinha, a filha diferente das outras, menos
capacitada, o patinho silvestre que foge de todo o bomconselho, Leônia a original, a
inesperada que mais tarde, depois de três fracassos de vida religiosa, chegará a ser
religiosa na Visitação, onde será o modelo acabado do "pequeno caminho" que
Teresa lhe ensinou.

Na confiança de cada dia

O ano de 1870 é muito agitado para a família Martin. Morre a pequena


Helena. Nascimento e morte da pequena Teresa Melânia. Venda da relojoaria do pai ao
seu sobrinho Adolfo Leriche, enriquecido por uma avultada herança. As preocupações
que se seguiram à mudança (que terá lugar emjulho de 1871) da rua da Ponte Nova,
número 15, para o número 36 da rua de São Brás. Guerra franco-alemã com a ocupação
da França. Luís está disposto a defender a sua pátria: "Ainda será possível que façam
marchar os homens de quarenta e cinco anos, quase o espero. O meu marido não se
comove nada, não pediria nenhuma graça para não ir e diz frequentemente que se fosse livre,
se alistaria imediatamente nos franco-atiradores" (CF 62). Ameaça constante de
uma invasão a Alençon pelos prussianos, que,efetivamente — "em número de vinte e
cinco mil, não poderia descrever-vos a nossa intranqüilidade (...), o meu marido está
triste, não pode nem comer nem dormir" —, ocupam a cidade em Janeiro de 1871. Os
Martinacolhem a nove prussianos, "nem maus nem ladrões"; mas, um horror!, "comilões
como nunca vi, comem tudo sem pão. Comem um guisado de cordeiro como se fosse
uma sopa" (CF 110).

Sorrimos, à distância. Para os Martin, trata-se de contínua inquietação,


sublimada pela "firme confiança de estarem apoiados pelo alto" (CF 65). Os
acontecimentos políticos no país chocam profundamente com estas pessoas católicas
convencidas. "Tudo o que se passa em Paris—escreve Zélia no dia 29 de maio de 1871 —
entristece a minha alma: acabo de saber da morte do arcebispo e de sessenta e quatro
sacerdotes fuzilados ontem pelos partidários da Comuna. Estou completamente transtornada
por estas coisas" (CF 66). Se a família não conhece a pobreza ("temos mais do que
necessitamos para viver e educar os nosso filhos; de outro modo, continuaria com a
renda de Alençon" (CF 54), nunca faltam as preocupações materiais. São inerentes ao
comércio que tem de "mudar", caso contrário, perde-se o lugar; são inerentes às doenças
dos filhos, aos problemas da educação, ao futuro destas cinco meninas que Luís e Zélia
ainda não animam para o convento e para as quais há que preparar o dote do amanhã.

Mas as preocupações e os esforços são integrados pelos Martin numa visão


profundamente cristã. O abandono em Deus e a confiança, a oração diária e o jejum
eclesiástico, a santificação do domingo e a vida litúrgica, a honradez comercial e a estima
dos operários, a ajuda aos necessitados e o compromisso concreto pelos
desfavorecidos: tudo isto é sagrado para eles.

E eis que em 1872 esperam um nono bebê, o primeiro que nasce na casa da rua
de São Brás, diante da prestigiosa Prefeitura, onde Teresa irá mais tarde brincar
com Genny Bechard, "a filha do governador" (Ms A 9v), do mesmo modo que os seus
primeiros passeios em família a conduzirão à igreja paroquial de Nossa Senhora, às
clarissas da rua da Meia Lua e à estação da qual partirão e voltarão Maria e Paulina,
colegiais na Visitação de Le Mans. Um pouco mais tarde as excursões familiares orientá-
la-ão para as povoações dos arredores e ao "Pavilhão", onde o papai se distrai com a
pesca no Sarthe enquanto Teresa se interessa pelos morangos... Mas não nos antecipemos
muito.

A florzinha ameaçada

Que felicidade quando no dia 2 de janeiro de 1873, às 23:30h., dois anos e meio
depois da morte de "Melânia Teresa", nasce esta outra "Teresa", que chega como um
dom, fruto tardio do seu amor conjugal. Zélia, que está no princípio dos seus quarenta e
dois anos ("a idade em que se é avó", CF 83) quando Luís tem já cinqüenta, já não
esperava "ter mais filhos" (CF 66). Dom e, ao  mesmo tempo, "surpresa,
porque esperava um menino. Tinha-o imaginado a partir dos  dois meses, porque
sentia muito mais forte que os meus outros filhos" (CF 84). Como Zélia teria
rezado para que o seu filhinhochegasse a ser um bom sacerdote, um
bom missionário...

A camponesa de Semallé

Durante mais de um ano, Teresa, que  se recupera lentamente enquanto


continua a sersensível aos catarros, viverá no campo, na humilde casinha de
Moisés e de Rosália Taillé juntamente com os quatro filhos do casal (Eugênio
é o "irmão de leite" de Teresa), a vaca "Rosa" e as galinhas. Uma Primavera, um
Verão, um Outono, um começo de Primavera... Alegria familiar, gritos de crianças,
canto dos pássaros e do vento, vista e cheiro a frutos, flores, ervas e
animais, pequenos passeios à igreja paroquial nos braços de Rosa. No Verão,
a menina "Martin-Taillé", queimada pelo sol, é levada num carrinho pelos
campos. Inclusive émontada na "Rosa".

A maior parte destes pormenores nos são sugeridos pela correspondência de


Zélia, a mamãe à distância, que visita a sua menina  aproximadamente de quinze em
quinze dias, o coração cheio de mil idéias e sentimentos ("sofri muito na minha
vida"), diz Zélia depois da partida de Teresa, (CF 90). Outras vezes é a Rosa que
leva a menina a Alençon por ocasião do mercado semanal no qual ela vende os seus
produtos.

Do mesmo modo que Teresa terá sentido profundamente a separação da


casa natal, dasua mamãe, do seu papai, das suas irmãzinhas, está fortemente ligada a
"Rosinha", à qual certamente chama de "mamãe", como as outras crianças.
Testemunha disto são as passagens da correspondência frequentemente encantadora
de Zélia. "Ontem, domingo, vimos a Teresinha. Não a esperávamos; a ama
chegou com os seus quatro filhos. Pôs-nos a menina nos braços e a seguir foi
à missa. Sim, mas a criança não queria isto, gritou até se cansar. Toda a casa estava
desarrumada; tive que mandar a Luisa [a criada de casa] ir dizer à ama que voltasse
rapidamente depois da missa (...) A ama deixou a missa no meio e  acudiu, eu
estava zangada, a criança não parava de gritar. Por fim, consolou-se
num instante; está muito forte, todos estão admirados" (CF 99 — Teresa tem quatro
meses).

"Iremos de segunda-feira a oito dias, de coche, ver a Teresinha; agora


está muito forte. Vi-a na quinta-feira passada, trouxe-a a ama, mas não quer ficar
conosco e grita fortemente quando não vê a sua ama. Deste modo, Luísa teve que
a levar ao mercado onde a Rosinha estava a vender a sua manteiga, não há
modo de a manter aqui.  Quando viu a sua ama, olhou para ela rindo, e a seguir
calou-se; ficou com ela, vendendo manteiga com todas as outras mulheres, até o
meio-dia" (CF 102 — Teresa tem quase seis meses).

Teresa converte-se numa camponesa e tem os seus mesmos gostos. É esta


a reaçãoquando, aos seus onze meses, passa algumas horas na sua casa, na cidade.
"A criança nem queria ver a Luísa nem ir com ela, eu estava muito ocupada;
chegavam operárias a cada momento, ia-a dando a uma e a outra.  Gostava de
as ver, inclusive mais do que a mim, e beijava-as repetidas vezes. Mulheres do
campo, vestidas como a sua ama, é a  gente que ela precisa. A senhora T.
chegou quando uma operária a tinha nos seus bra ços. Quando a vi, disse-lhe:
"Vamos ver se o bebê quer ir contigo". Ela, surpreendida, responde-me: "Porque
não?" — Bom, faça a tentativa"... Estendeu os braços à criança, mas escondeu-se dando
gritos mais altos, como se a tivessem queimado. Não queria que a senhora T. a olhasse
mais. Rimos muito disto; enfim, tem medo da gente que veste àmoda" (CF 112).

"Reflito - escreve a mamãe - e procuro tirar partido; tenho-te todo o dia no


pensamento; digo-me: 'Neste momento ele está a fazer tal coisa'. Estou impaciente por
estar a teu lado; amo-te com todo o meu coração, e vejo que o meu afeto aumenta pela
privação que experimento da tua presença; ser-me-á impossível viver separada de ti" (CF
108).

Não é a Teresa, mas ao "seu querido Luís", a quem se dirige aqui, a partir


de Lisieux, onde visita o seu irmão Isidoro e a sua cunhada, quando Teresa está
em Semallé. Luís é o "homem santo" com quem ela é "sempre muito feliz": "torna-lhe a
vida muito doce", é um marido como o "desejaria igual a todas as mulheres". Desta
confissão, aos quatro anos e meio de vida de casados (Ct 1), não mudou nada onze anos
depois, a não ser a sua vontade de "chegar a ser santa: não será fácil, há muito que
desbastar e a madeira é dura como uma pedra" (CF 110).

Luís "esta impaciente por ter a Teresinha em casa" (CF 114). Pela segunda vez, a
filha esperada intensamente. Zélia vê tudo azul e branco, como para um novo nascimento e
um novo batismo. "Já lhe tenho preparado um vestido azul celeste, com uns
sapatinhos azuis, um cinto azul e uma linda capa branca; será encantador. "Alegro-me
antecipadamente de vestir esta "boneca" (CF 115). Teresa volta definitivamente para casa no
dia 2 de abril de1874: "criança encantadora". "muito meiga e muito avançada para a sua
idade" (CF 116), "admira-me a sua boquinha" (CF 117).

"Uma criança não sem defeitos"

"Muito meiga"? Há que vê-lo... A criança passa certamente por um novo


período de desapego, esta vez de Semallé e da sua "Rosinha”, mas em breve
reencontra as suas raízes Martin, unindo-se fortemente à sua mãe: lembrar-se-ão as
páginas em que Zélia, também ela fortemente unida ao "pequeno bebê", a descreve
sentada no balanço ou "passando a sua mãozinha no rosto" da mamãe (CF 119).
Porém, outras vezes, Teresa mostra-se capaz de "raivas espantosas" (CF 147), "rasgaria
tudo" o que é um pouco delicado (CF 125). Aos três anos "o furãozinho "tão atordoado"
mostra "uma teimosia quase invencível" (CF 159). E a sua linda "boquinha" pode gritar
até "afogar-se" (CF 147).

Se a enternecida mamãe chega até premiar o "diabinho que é a alegria de toda a


família" (CF 157) "uma natureza escolhida" (CF 195) - "pequena natureza
angelical" (CF 201) -, mais tarde, a Santa distinguirá numa "natureza como a minha"
um "grande amor-próprio": "quão longe eu estava de ser uma menina sem defeitos" (Ms
A 8 r-v). Por outro lado, ao realçar o seu "amor ao bem" ("bastava que me dissessem
que uma coisa não estava bem, para não ter vontade que me repetissem duas vezes", Ms A
8v), subscreve implicitamente os louvores da mãe em matéria do "coração de ouro" (CF
159) da sua filha mais nova, que "não mentiria por todo o ouro do mundo" (CF 195).

Teresa é igualmente uma fina observadora, que capta as mensagens da vida. Escuta


"com muita atenção" (Ms A 4v, 17v). "Sem o mostrar, dava muita atenção a tudo quanto se
passava e dizia à minha volta, parece-me que julgava as coisas como agora- (Ms A 4v).

Com o passar dos anos, comprova que o seu "orgulho" natural e o seu "amor ao
bem" inato, que a fizeram reagir positivamente aos conselhos pedagógicos recebidos,
transmitiam uma ação secreta de Jesus, que "soube tirar proveito de todos os seus defeitos
que, dominados a tempo, lhe serviram para crescer na perfeição" (Ms A 8v).
Admiráveis os testemunhos de Teresa em relação aos "anos cheios de sol" da
sua infância: "A virtude tinha encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas
disposições em que estou agora, tendo já um grandedomínio sobre as minhas ações". A
santa acrescenta que "tinha adquirido o bom hábito de nunca se queixar, mesmo quando
lhe tiravam o que era dela; ou então, quando era acusada injustamente, preferia calar-se e
não se desculpar, o que não era mérito seu, mas virtude natural" (Ms A 11v). As
exceções confirmam a regra.

Reconheçamos que a menina Martin encontrou na sua mamãe uma educadora


espiritual de primeira classe, elevando o coração da sua filha "para Deus desde o seu
despertar" (Ms A 40r). Zélia orientou a liberdade de Teresa, pondo e voltando a pôr esta
criaturinha no bom caminho. A boa semente florescerá abundantemente: "Amava muito a
Deus e oferecia-lhe muitas vezes o meu coração servindo-me da formulazinha que a
mamãe me tinha ensinado" (Ms A 15v).

Teresa é consciente de tudo quanto deve a estes "pais incomparáveis" (Ms A


4r), aos quais, cheia de veneração, julgará "mais dignos do Céu do que da terra" (Ct
261). "Aprouve a Deus rodear-me de amor toda a minha vida. As minhas primeiras
recordações estão marcadas pelos mais ternos sorrisos e carícias! Mas, se colocou junto de
mim muito amor, também pôs muito dentro do meu coraçãozinho, criando-o amante e
sensível, e assim eu amava muito o Papai e a Mamãe e testemunhava-lhes a minha
ternura de milmaneiras" (Ms A 4v). De que mudanças foi testemunha a casa da rua de
São Brás!

O sol se põe

Levar-nos-ia muito tempo o relato da doença que levou Zélia à morte. Desde
há mais de doze anos que sofre de um caroço no seio, que degenerou lentamente
num câncer extremamente doloroso. Consulta o médico e toma consciência
bruscamente da cruel verdade da sua morte iminente e da inutilidade de uma
intervenção cirúrgica. A família fica consternada. Zélia quer viver ainda alguns anos a
mais para acabar o seu trabalho de educadora, sobretudo por causa de Leônia, a filha das
suas preocupações intermináveis, na qual, contudo, nota grandes progressos. Vai em
peregrinação a Lourdes com Maria e Paulina, mas o milagre não serealiza.
Com realismo e abandono, a mamãe, compreende que está convidada para outra parte
por outra Mamãe: "Que quereis? Se a Santíssima Virgem não me cura, é porque
se cumpriu o meu tempo e Deus quer que eu descanse noutro lugar diferente da terra"
(CF 217). Teresa anota em silêncio "todos os pormenores da doença" (Ms A 12r). No dia
28 de agosto de 1877, Zélia torna-se a "nossa mãezinha no céu" (Ms A 12v). A sua filha
da terra sofrerá terrivelmente a sua falta.

A mesma Teresa indicará mais tarde a profunda ruptura que o


desaparecimento desta "incomparável mãe" (Ms A 4v) deixou nela, na idade tão
vulnerável de quatro anos e oito meses. A ternura conjunta do seu papai e das suas irmãs
nunca a poderão remediar totalmente.

Naquele momento, Teresa "não dizia a ninguém os sentimentos profundos que


experimentava" na última despedida e "não me lembro de ter chorado muito" (Ms A
12v).
Mas o que não se exprime com palavras nem com lágrimas dos olhos, exprimir-se-
á na sua psicologia com as lágrimas interiores.  "Desde a morte da Mamãe, o meu
caráter alegre mudou completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tornei-me tímida e
calma, excessivamente sensível" (Ms A 13r).

A terra na qual Zélia e Luís semearam terá que ser ainda durante muito tempo
regada pelas lágrimas da dor e pelo orvalho da graça, antes que a menina Martin chegue a
ser Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face.

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A FRANÇA CATÓLICA DURANTE A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

STEPHANE MARIE MORGAIN ocd

Quando João Maria Marta Feretti recebe o nome de Pio IX em 1846 para suceder
a Gregório XVI na Sé de Pedro, a França católica continua a sofrer a onda de
anticlericalismo provocado em 1830 e particularmente virulento nas províncias. O ano
de 1846, é igualmente marcado pelo êxito eleitoral da parte dos partidos católicos, apesar
do fracasso dos projetos sobre a liberdade de ensino. A monarquia de
Julho, contemporânea da revolução industrial e da aceleração do progresso técnico,
testemunha a ascensão da grande burguesia da empresa e da constituição de
um proletariado lamentável. O desenvolvimento de um catolicismo liberal e do
movimento socialista vai favorecer um programa social e democrático dos primeiros
"católicos sociais". L'Ere nouvelle, jornal dos republicanos católicos, será o lugar de
colaboração de um Frédéric Ozanam (1813-1853), que desde 1833 se dedica, juntamente
com outros, a praticar a abnegação de si mesmo e o amor ao próximo por meio
das"Sociedades de caridade", conhecidas pelo nome de"Sociedade de São Vicente de
Paulo", e de um Henri Lacordaire (1802-1861), famoso pregador dominicano e chefe de
fila do catolicismo liberal com Charles de Montalembert (1810-1870). Esta corrente,
separada de Felicité de Lamennais (1782-1854) e deL'Avenir desde 1832, move-se
paralelamente à de Philippe Buchez (1796-1865), inspirador do socialismo cristão e
diretor do jornal católico L'Européen.

Depois da revolução de Fevereiro de 1848, os católicos dão a sua confiança


ao príncipe Luís Napoleão (1808-1873), eleito na Assembléia constituinte em Abril,
porque podia defender os interesses da religião (a questão romana e a liberdade de
ensino). No dia 10 de Dezembro foi eleito para a presidência da II Republica, apoiado
pelo partido da Ordem (monárquicos e republicanos conservadores). Deixa que os
conservadores da Assembléia legislativa (eleita no dia 13 de maio de 1849) pratiquem
uma política reacionária: a expedição a Roma, no dia 14 de julho de 1849, para
restabelecer o poder temporal do papa, sem regular, no entanto, a questão romana; a
lei Falloux (de 15 de março de 1850) que favorece o ensino confessional e que será
muitas vezes modificada (1882, 1896); a limitação do sufrágio universal e a liberdade de
imprensa em maio de1850. Nos fins de 1851, uma grande parte dos católicos, por desejo
de preservação social e religiosa, pronuncia-se pelo regime nascido do golpe de estado.

A crise de 1848 deu lugar a divisões entre as diferentes correntes do catolicismo


francês. Das dissensões entre Montalembert e Lacordaire, entre l'Ere nouvelle e o Ami
de la Religion de Félix Dupanloup (1802-1878), das críticas do episcopado e dos
amigos de Luís Veuillot (1813-1883) contra a lei de março de 1850, nasceram três
tendências: reivindicação dos direitos da Igreja; equilíbrio entre estes direitos e
as liberdades; harmonia entre a tradição e as aspirações modernas. Porém, os
numerosos concílios provinciais mostram a vitalidade de uma Igreja na qual os
clérigos tomaram consciência da necessidade de outros métodos pastorais para fazer
frente à indiferença religiosa do povo.

A constituição de janeiro de 1852 permite a restauração do Império,


proclamado no dia 12 de dezembro de 1852, depois de um novo
plebiscito. Napoleão III começa por uma verdadeira ditadura, praticando uma
política belicosa em relação à  Crimeia e Itália em 1859, que lhe atrai a hostilidade
dos católicos. Depois de uma tentativa de liberalização do regime (1859-1860),
Napoleão III quis estabelecer um império parlamentar (princípios de 1870), o que
produziu um recrudescimento de oposições. Durante este tempo, as relações
diplomáticas entre a Prússia e a França não cessam de se deteriorar.  Napoleão III
decide, em julho de 1870, declarar a guerra à Prússia. A capitulação de Sedan (no dia 2
de setembro de 1870) marca uma importante etapa na história do país. Perante estes
acontecimentos, o concílio Vaticano I, reunido em Roma por Pio IX no dia 8 de
dezembro de 1869 teve que ser interrompido no dia 20 de setembro de 1870.

As diferentes crises reagruparam as formações políticas católicas mais


sensíveis na defesa dos interesses da Igreja e mais próximas de um catolicismo  social.
O desastre de 1870 — a anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha — suscita uma
paixão de zelo pela pátria e exalta a glória e a grandeza nacional. Um só objetivo,
uma única ambição anima o coração dos franceses: a vingança. Tal atmosfera estimula
a unidade nacional nos primeiros anos da III Republica, sobre a preferência por
Alsácia-Lorena.

Depois de 1871 desenha-se uma relativa baixa de natalidade em relação aos


outros países da Europa. As classes mais pobres do povo, particularmente
os camponeses, ocupam demasiados homens para as quantidades produzidas.
Situação que produz uma quebra no nível de vida. Por outro lado, o ensino técnico é
ainda incapaz de fazer frente às necessidades, e as leis sociais não seguem o ritmo da
deslocação da condição operária, devido ao desenvolvimento da indústria. Enfim,
depois da capitulação de Sedan,empreende-se um esforço militar sem precedentes. O
exército francês chega a ser tão numeroso como o da Alemanha (serviço obrigatório de
cinco anos).

No final de 1871, depois de Paris ter aceitado o armistício, acossado pela fome
e esgotamento, aseleições dão uma grande maioria aos conservadores agrupados em
torno de Luís Afonso Thiers (1797-1877). Eleito na Assembléia nacional, que a partir
de12 de fevereiro de 1871 se reúne em Bordéus, Thiers é nomeado chefe do poder
executivo da Republica no dia 17 de fevereiro, e forma um governo que reside em
Versalles. A política praticada por Thiers, ao não solucionar a reorganização
administrativa do país, provoca a ira dos parisienses cuja situação econômica e social é
catastrófica. As desonestidades do poder no cargo provocam a insurreição parisiense e a
formação do contra-poder revolucionário da Comuna de Paris. Foi duramente reprimida
durante a "Semanasangrenta" (22-28 de maio). Os católicos ficam desconcertados pelo
violento movimento anticlerical que levou os partidários da Comuna a fuzilar o
arcebispo de Paris, monsenhor Georges Darboy, juntamente com outros cinqüenta e três
membros do clero. Mais ainda, quando a manifestação de dez mil franco-maçõns, que
tinham chegado no dia 29 de abril de1871 para manter a Comuna e para animá-la a
"aniquilar o infame". Nomeado presidente da Republica, Thiers é derrubado no dia 24 de
fevereiro de 1873 pela maioria conservadora da Assembléia e substituído por Mac-
Mahon (1808-1898) depois da tentativa abortada da restauração da monarquia.

Mac-Mahon chegou à presidência da República pela coligação monárquica da


Assembléia. Durante o seu mandato, mantém a reação política e religiosa da Ordem moral e
elege os seus ministros das fileiras monárquicos. Mas em duas ocasiões os
republicanos ganham as eleições (1876-1877). Em janeiro de 1879 Mac-Mahon demite-se.
As Câmaras elegem como sucessor a Jules Grévy (1807-1891) que procura praticar uma
política hostil ao nacionalismo e à expansão colonial. Jules Ferry (1832-1893), então
presidente do Conselho, dedica-se à reforma do ensino público: laicidade, gratuidade,
caráter obrigatório do ensino primário, extensão do ensino secundário do Estado às jovens
(1880-1881). OS católicos vêem, precisamente nesta política de laicização, um atentado
contra a liberdade de consciência, embora a lei de 12 de julho de 1875 sobre o ensino
superior livre, revogada por outro lado em 1880, tinha-os deixado satisfeitos. A onda
de decretos anticlericais de 1880, que prevê a dissolução da Companhia de Jesus e o
fechamento de duzentos e sessenta e um conventos, causa uma nova indignação entre os
católicos.

Jules Ferry dá uma expansão importante à política colonial da França (Tunes,


Madagáscar, Tonkim), que provoca a sua queda em 1885. Jules Grévy é reeleito, a seguir
substituído, depois da sua demissão em 1887, por Sadi Carnot (1837-1894), que será
assassinado em 1894. Crescem as tensões sociais e políticas. Alguns pensam em reatar as
relações com os progressistas como em 1887. Leão XIII (1878-1903), papa desde 1878,
procura por todos os meios incorporar os católicos na República a fim de reforçar o
apoio diplomático da França, pois tem necessidade dele. Mas sobretudo porque
compreendeu que, ao ser um fato a secularização, a Igreja não pode garantir  mais
uma política meramente anti-republicana sem prejudicar a evangelização. A alocução
do cardeal Lavigerie em Argel (12 de dezembro de 1890), depois as intervenções diretas
de Leão XIII, mostram o seu desejo de "adesão". As eleições de 1893 têm lugar sob o
signo da adesão e do pensamento socialista. Casimir Perier (1847-1907), fortemente
anti-socialista, contribui para a repressão dos movimentos operários e para a agitação
anárquica. Atacado violentamente por Jaurès, demite-se em 1895. Continuam as
mudanças de tendências políticas. Félix Faure (1841-1899) tenta governar com
uma coligação monárquica e moderada. A Republica conservadoraestá no cargo
quando rebenta o caso Dreyfus.

O crescimento do império colonial da França, característico desta época,


mas já presente sobNapoleão III, explica o entusiasmo missionário que o País
conhece. As congregações missionárias são então dignas de consideração, com
Francisco Maria dos Libermann (1802-1852), fundador dos Missionários do Coração
de Maria (1841), e Paulina Jericot (1799-1862), que interveio na origem da Obra
daPropagação da Fé.

Neste ambiente político e social frágil e em plena mudança, a vida cristã


encontra o seu terreno parapropagar as suas devoções, o seu culto, as
suas expressões de fé, as suas leituras e os seus representantes. O desenvolvimento das
Ordens dedicadas ao ensino continuam a substituir no contexto da demo cratização do
ensino as componentes da lei Falloux. A encíclica Rerum Novarum de 1893 mostra o
compromisso da Igreja na questão social aplicada na obra de Léon Hamel ou nas
Conferências de São Vicente de Paulo. O exemplo de Joana Jugan (1792-1879),
fundadora das Irmãzinhas dos Pobres, encarna o amor de tantos cristãos no serviço dos
mais necessitados.

Do mesmo modo, certas devoções como a do Sagrado Coração, pela sua


autenticidade, não escapam a uma inevitável recuperação por parte de anti-republicanos e
anti-franco-maçons, considerados como inimigos da Igreja. O pedido da consagração
da França ao Sagrado Coração atrai a atenção da vontade dos católicos para restaurar
a monarquia- embora esse desejo não tenha sido geral —, para pôr o papa à frente dos
seus Estados — vontade expressa pelas numerosas peregrinações a Roma
organizadas neste tempo —, para voltar à fé. A construção da basílica do Sagrado Coração
de Montmartre é um modo de oferecimento da França católica para se reconciliar com
Deus. "Salvai a França em nome do Sagrado Coração". A vida intelectual, política e
econômica e o seu enfrentamento com as ciências e as novas filo sofias são condenadas
em 1864 pelos oitenta erros mencionados pelo Syllabus.

A devoção mariana dos franceses fica patente nas aparições que salpicam


todo o século: a medalha milagrosa, rua de Bac (1830), Nossa Senhora das Vitórias
(1836), la Salette (1846), Lourdes (1858), 1854 — Pio IX define o dogma da
Imaculada Conceição — e Pointmain (1871). As novas congregações colocam-se
naturalmente sob a proteção da Virgem. O Tratado da verdadeira devoção
à Santíssima Virgem de Luís Maria Grignion de  Montfort está por todo o lado.

A fé popular é fortalecida por meio das procissões eucarísticas, das


peregrinações, das missões paroquiais. Os retiros espirituais para homens
desenvolvem-se especialmente a partir de 1871. Os patronatos, as obras da juventude,
afetam todas as camadas do povo. Os católicos franceses alimentam a sua
vida espiritual com a leitura da Bíblia, que conhece vinte  edições entre 1781 e 1850, da
Imitação de Cristo e dos livros litúrgicos (paroquianos, o Ano litúrgico de
Dom Guéranger). Toda esta vida cristã, viva e fecunda, aberta a novos horizontes
ainda inexplorados, é sustentada pela oração silenciosa de contemplativos que gera
santos.

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A "RENDA DE ALENÇON"

Monsenhor GUY GAUCHER

Foi por volta de 1664 — sob a administração de  Colbert — quando


começou em Alençon a fabricação das célebres rendas que receberam o nome de
"renda de Alençon". O ministro mandou vir de Veneza uma trintena de hábeis
operárias para lançar a empresa.
O "ponto de Alençon" é confeccionado com fios de linho de extrema finura
servindo-se de agulhas, quase imperceptíveis, combinadas com o fio. É feito
totalmente à mão.

A renda é trabalhada às peças de 15 a 20 centímetros, num pergaminho verde


perfurado, seguindo o desenho que se tem que reproduzir, e dobrado, de tela.

Começa-se por marcar o trabalho no pergaminho por meio de fios.

A seguir, fazem-se nesta marca os distintos pontos que o desenho tem. Há


nove pontos distintos: cada peça – que - tem os nove pontos, mas os desenhos não
os têm—deve passar novamente pelas mãos de nove rendeiras, especialistas cada
uma num destes pontos.Trabalham em sua casa e uma delas é a
enlaçadora, encarregada de enlaçar todas as peças acabadas de  modo que o enlace
não se veja. É a parte mais difícil. Mas, antes de se proceder ao enlace, é necessário
desatar a peça; uma vez terminado, cortar, por detrás, os numerosos fios estendidos
pela marca, depois levanta-se o enlace com cuidado. Com esse mesmo cuidado, há
que tirar do enlace os fios inúteis e arrancam-se também, com a ajuda de umas
pinças, as pontas dos fios que ficam enlaçadas no pergaminho, para que possam ser
usadas novamente com o mesmo desenho.

Havia em Alençon escolas profissionais para iniciar as jovens no trabalho


dos diferentes pontos. Nos colégios e instituições davam-se cursos com a mesma
finalidade, a fim de desenvolver esta indústria que tornava famosa a cidade.
Desgraçadamente, por causa do  custo da mão-de-obra, que ocasionava preços
muito elevados, esta famosa renda teve de ser muito simplificada.

Na direção da sua fábrica, a senhora Martin recebia as operárias, repartia-lhes


o trabalho e controlava-as; trabalhava pessoalmente o tule, reparando com  grande
habilidade os rasgões que inevitavelmente se produziam, durante todas as
manobras já indicadas, e refazia, se era preciso, o enlace.

O papel do Sr Martin era escolher os desenhos, que mandava compor com


gosto pois era muito artista. Para este trabalho precisava viajar frequentemente a
Paris, onde se ocupava igualmente dos abastecimentos e das encomendas que as
lojas faziam. Além disso, era ele quem perfurava os desenhos no
pergaminho, trabalho bastante duro, que se realiza numa almofada, com agulhas
especiais.

No dia 3 de janeiro, Maria Francisca  Teresa foi batizada na igreja


de Nossa Senhora. A sua irmã mais velha, Maria, é a madrinha, o padrinho é
um jovem de uma família amiga, Paulo Alberto Boul; os dois têm treze anos (o
padrinho de Teresa morrerá dez anos mais tarde). Criança aparentemente "muito
robusta" (CF 84-85), "bela" e que "já ri" aos doze dias (CF 85), Teresa está"sempre
alegre" e "ri de boa vontade" (CF 88).

A alegria sempre nova do deslumbramento é minada muito em breve por


"uma angústia continua..., não sei se o purgatório é pior do que is to" (CF 89).
Quando Teres a   Melânia morrera por culpa da "sua indigna  ama", que a tinha
deixado "morrer de fome", Zélia estava a dizer que "nunca mais", os filhos que
ainda haviam de vir "não sairiam de casa" (CF 61). Assim pois, tentou
amamentar de peito a sua nova filha, mas temendo  que não fosse suficiente, quis
"a ajuda de um biberão", depois de "não poder conseguir  que voltasse a tomar
o peito".

Entretanto, Teresa "bebe perfeitamente" (CF 85). Mas nos fins de


fevereiro sofre"enterite", está "muito pálida" (CF 88). No dia 11 de Março, o
doutor Belloc é radical: "Esta criança necessita urgentemente de
ser amamentada, só isto a poderá salvar". Ao  despontar o dia (Luis está de
viagem), Zélia vai a Semallé buscar a "Rosinha", ama de  leite que "lhe é
conveniente em todos os aspectos". Desejaria vivamente que Rosa  fosse
viver com eles na sua casa temporariamente, mas não consegue senão
"oito dias" — no caso da criança sobreviver —. V oltam para A lençon.
Quando Ros a vê  Teresa, abana a cabeça: não há nada a fazer... Zélia sobe ao seu
quarto para rezar diante da imagem de São José. Quando desce, não acredita no
que os seus olhos vêem: "a criança a mamar com toda a alma", mas que rapidamente
cai "corno morta sobre a sua ama de leite". "Sentia que o sangue me gelava
— escreve Zélia —, a menina aparentemente não respirava". Depois de um quarto de
hora, "a minha Teresinha abre os olhos e começa a sorrir para mim" (CF 89):
salva! Mas é necessário que a criança parta com a sua amade leite...

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GENEALOGIA DE TERESA

A. Ramo paterno

Avô: Capitão Pedro Francisco Martin, nascido em Athis-de-l’Orne (Orne) a 16


de abril de 1777, falecido em Alençon no dia 26 de junho de 1865. Casado em Lyon
no dia 4 de abril de 1818.

Avó: Maria Ana Fanie Boureau, nascida em Blois no dia 12 de janeiro de 1800,
falecida em Valframbert (Orne) no dia 8 de abril de 1883.

Seus filhos: 1. Pedro Martin, nascido em Nantes no dia 29 de julho de 1819,


desaparecido num naufrágio, em data desconhecida.

2. Maria Ana Martin, nascida em Nantes no dia 18 de setembro de 1820 (casada


com Francisco Maria Burin no dia 8 de outubro de 1838), falecida em Argentan no dia
19 de fevereiro de 1846.

3. Luís José Alosio Estanislau Martin (pai de Teresa), nascido em Bordéus no


dia 22 de agosto de 1828 (casado com Zélia Guérin no dia 13 de julho de 1858 em
Alençon), falecido em Saint-Sébastien-de-Morsent (onde se encontra a quinta  de le
Musse), no dia 29 de julho de 1894.

4. Ana Francisca Fanny Martin, nascida em Alençon no dia 10 de março de 1826


(casada no dia 11 de abril de 1842 com Francisco Adolfo Leriche, que faleceu no dia
25 de maio de 1843; casada pela segunda vez no dia 28 de fevereiro de 1849  com
Francisco Maria Burin, seu cunhado viúvo), falecida em Fécamp no dia 9 de outubro
de 1853.

5. Ana Sofia Martin, nascida em Alençon no dia 7 de novembro de 1833, falecida


no dia 23 de setembro de 1842.

PS: Teresa não conheceu, pois, a nenhum dos seus tios e tias do ramo paterno, e
a sua avó só até aos seis anos.

B. Ramo materno

Avô: Isidoro Guérin, nascido em Saint-Martin-l'Aiguillon (Orne) no dia 6 de


julho de 1789, falecido em Alençon no dia 3 de setembro de 1868. Casamento em
Pré-en-Pail no dia 5 de setembro de 1828.

Avó: Luisa Joana Mace; nascida em Pré-en-Pail no dia 11 de junho de 1804,


falecida em Alençon no dia 9 de setembro de 1859.

Seus filhos: 1. Maria Luisa Petronila Guérin, nascida em Gandelain no dia 31 de


maio de 1829, falecida sendo freira visitandina (irmã Maria Dositeia) em Le Mans no
dia 24 de fevereiro de 1877.

2)Azélia Maria (Zélia) Guérin (mãe de Teresa), nascida em Gandelain no dia 23


de dezembro de 1831 (casada com Luis Martin no dia 13 de julho de 1858 em
Alençon), falecida em Alençon no dia 28 de agosto de 1877.

3. Maria Victor Isidoro Guérin, nascido em Gandelain no dia 2 de janeiro de


1841, falecido no dia 28 de setembro de 1909.

Isidoro casou-se em Lisieux no dia 11 de setembro de 1866 com Elisa (Celina)


Fournet, nascida no dia 15 de março de 1847 em Lisieux, falecida no dia 13 de
fevereiro de 1900 em Lisieux.

Seus filhos: 1. Joana, nascida em Lisieux no dia 24 de Fevereiro de 1868


(casada no dia 1º. de outubro de 1890 com o doutor Francis La Néele [1858-1916].
Não tiveram filhos. Falecida no dia 25 de abril de 1938 em Nogent-le-Rotrou.

2. Maria, nascida em Lisieux no dia 22 de agosto de 1870 (no Carmelo de


Lisieux: irmã Maria da Eucaristia), falecida no dia 14 de abril de 1905.

3. Um filho (Paulo), nato-morto em Lisieux no 18 de outubro de 1871.

C. Irmãos e irmãs de Teresa

1. Maria Luisa, nascida no dia 22 de fevereiro de 1860, falecida no dia 19 de


janeiro de 1940 (no Carmelo de Lisieux: Irmã Maria do Sagrado Coração).

2. Paulina, nascida no dia 7 de setembro de 1861, falecida no dia 28 de julho de


1951 (no Carmelo de Lisieux: irmã, depois Madre Inês de Jesus).
3. Leônia, nascida no dia 3 de Junho de 1863, falecida no dia 16 de Junho de 1941
(na Visitação de Caen: Irmã Francisca Teresa).

4. Helena, nascida no dia 13 de outubro de 1864, falecida no dia 22 de


fevereiro de 1870.

5. José Luís, nascido no dia 20 de setembro de 1866, falecido no dia 14 de


fevereiro de 1867.

6. José João Baptista, nascido no dia 19 de dezembro de 1867, falecido no dia


24 de agosto de 1868.

7. Celina, nascida no dia 28 de abril de 1869, falecida no dia 25 de fevereiro de


1959 (no Carmelo de Lisieux, Irmã Genoveva da Santa Face).

8. Melânia Teresa, nascida no dia 16 de agosto de 1870, falecida no dia 8 de


outubro de 1870.

9. Maria Francisca Teresa, nascida no dia 2 de janeiro de 1873, falecida no dia 30


de setembro de 1897 (no Carmelo de Lisieux, onde entrou no dia 9 de abril de 1888:
Irmã Teresa do Menino Jesus e da Santa Face).

PS: Todos os filhos Martin nasceram em Alençon (rua Ponte Nova, n. 15, exceto
Teresa, na rua de São Brás, n. 36); têm todos como primeiro nome Maria.

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TERESA NOS FALA:

"Os anos cheios de sol da infância"

"Como era feliz nessa idade! Já começava a gozar a vida; a virtude tinha
encantos para mim e estava, parece-me, nas mesmas disposições em que
estou agora, tendo já um grande domínio sobre as minhas ações. Ah! como passaram
rapidamente os anos cheios de sol da minha primeira infância, mas, que doce rasto
deixaram na minha alma! Recordo-me com satisfação dos dias em que o papai nos
levava ao Pavilhão; no meu coração ficaram gravados os mais pequenos
pormenores... Recordo sobretudo os passeios de domingo, em que a mamãee nos
acompanhava sempre... Sinto ainda as impressões profundas e poéticas que me
brotavam na alma à vista dos campos de trigo, esmaltados de escovinhas e flores
campestres. Gostava já dos largos horizontes... O espaço e os abetos gigantescos, cujos
ramos tocavam a terra, deixavam no meu coração uma impressão semelhante à
que ainda hoje sinto à vista da natureza... Muitas vezes, durante esses longos
passeios, encontrávamos pobres, e era sempre a Teresinha a encarregada de lhes dar a
esmola, com o que ela ficava muito contente" (Ms A 11 r- 11v).

"História primaveril de uma florzinha branca"


É a vós, minha querida Madre, a vós que sois duas vezes minha mãe, que
venho confiar a história da minha alma. (...) Antes de pegar na pena, ajoelhei -me
diante da imagem de Maria (aquela que nos deu tantas provas das maternais
preferências da Rainha do Céu para com a nossa família), supliquei-lhe que guie a
minha mão a fim de eu não traçar uma única linha que não lhe agrade. A seguir,
abrindo o Santo Evangelho, os meus olhos depararam com estas palavras: «Jesus,
tendo subido a um monte, chamou a Si os que Ele quis; e foram ter com Ele.» (Mc,
3, 13). Eis todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo, o
mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma... Ele não chama aqueles
que são dignos, mas aqueles que Ele quer" (Ms A 2r).

"Durante muito tempo perguntei a mim própria porque tinha Deus preferências
(...) Jesus dignou-se instruir-me acerca deste mistério. Pôs-me diante dos  olhos o
livro da natureza, e compreendi que todas as flores que Ele criou são belas, que o
esplendor da rosa e a alvura do lírio não tiram o perfume à pequena violeta nem a
simplicidade encantadora à margarida... Compreendi que, se todas as pequeninas
flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos
não ficariam esmaltados de florzinhas... Assim acontece no mundo das almas,  que
é o jardim de Jesus" (Ms A 2 r-v).

CAPÍTULO 2

A INFÂNCIA DE TERESA EM LISIEUX

Monsenhor GUY GAUCHER

A morte da sua mãe supôs um choque tal para a Teresinha de quatro anos e


meio que necessitou de dez para se recompor. De momento, tudo o que pôde
fazer foi lançar-se nos braços da sua irmã preferida,  Paulina, e dizer-lhe: "Tu
serás a mamã" (Ms A 13r). Acaba de terminar um período decisivo da sua vida.
"Como passaram rapidamente os anos cheios de sol da minha pri meira infância"
(Ms A 11v).

Aos cinqüenta e três anos, Luís Martin encontra-se novamente sozinho,


com cinco filhas menores para educar. O seu passado está enraizado em Alençon.
Mas os laços familiares orientam-no para Lisieux, a  noventa quilômetros da rua
de São Brás. Os Guérin estão ali solidamente implantados, a sua farmácia
prospera na praça de São  Pedro. Isidoro é aqui um distinto católico  muito
conhecido. A sua mulher Celina,  muito meiga e maternal, educa as duas filhas,
Joana e Maria, e pensa que tem de ajudar o seu cunhado.

Depois de uma busca diligente, Isidoro Guérin escreve a Luís que


encontrou uma casa ideal para as suas filhas, um pouco afastada da cidade, perto de
um grande parque, numa colina. Bela residência com um grand e   jardim cercado de
muros,  o s  Buissonnets", como lhe chamarão as filhas Martin. O pai resigna-se, pelo
bem delas, a abandonar os seus amigos. Vende os fundos do comércio da "renda de
Alençon" e, em Novembro de 1877, a família instala-se na nova residência cujo
arrendamento tinha sido assinado.
Teresa viverá aqui onze anos. "Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon;
as crianças gostam da mudança, e foi com gosto que vim para Lisieux" (Ms A I3v).
Contudo, isto supôs uma profunda mudança na sua vida.

Chega no Inverno, e a uma cidade desconhecida de 18.600 habitantes. Cidade


industrial (manufaturas de linho, telas de fio, curtidouros, cidade medieval pelas suas
velhas casas com engastados, à sombra de bela catedral de São Pedro dos
séculos XII-XIII. A música do 119 Regimento de infantaria (1.200 homens)
toca em certas ocasiões no jardim público.

A situação econômica não é boa: miséria e desemprego  afetam a


povoação operária.

Mas, neste momento, Teresinha desconhece estas realidades. Está num


mundo novo. Que contraste com a casa de Alençon, diante da Prefeitura, que dá
para a rua onde p a s s a m c a v a l o s e c a r r u a g e n s ! O s   Buissonnets são um
jardim cercado. Além dos Guérin, não conhece ninguém. A família privada do seu
elemento dinâmico, a mamã, estreitar-se-á à volta do pai que vai viver das suas
rendas, ocupar-se do jardim. continuar a leitura, a meditação e a oração no
belvedere, grande espaço do último andar com vistas para a cidade, sair com a
filha menor, pescar nos arredores de Lisieux: em Ouilly-le- Vicomte, Rocques,
Hermival... As filhas maiores, ajudadas pelas criadas que se irãosucedendo,
ocupar-se-ão da casa e da educação das menores. Celina e Teresa.

Um longo caminho de libertação

Teresa escreverá pouco depois de entrar no "segundo período da minha


existência, o mais doloroso dos três" (Ms A 13r), que dura até os seus catorze anos.
Com efeito, Teresa dirá: "Desde a morte da mamã, o meu caráter alegre mudou
completamente; eu, tão viva, tão expansiva, tomei-me tímida e  calma,
excessivamente sensível. Bastava um olhar para me fazer derreter em lágrimas;
erapreciso que ninguém se ocupasse de mim. Para estar contente; não podia
suportar a companhia de pessoas estranhas e não reencontrava a minha alegria
senão na intimidade da família" (Ms A 13r).

Tudo decorrerá mais ou menos bem  enquanto fica amparada pelo calor
desta intimidade familiar: não vai à escola. Maria e, sobretudo, Paulina ensinam-
lhe os rudimentos do conhecimento com seriedade e rigor. A filha menor não é
mimada. Cuida-se da sua vida espiritual: a oração em família tem muita
importância, pela manhã e pela tarde, visita às igrejas lexovienses quando sai
de passeio com o seu pai. A liturgia sustém o ritmo da vida: as festas são a
alegria da "rainhazinha".

Poucos acontecimentos notáveis nesta vida totalmente simples, a não ser as


maravilhas da infância para uma criatura tão sensível: a descoberta do mar um dia em
Trouville (8 de agosto de 1878), tardes nos jardins normandos cheios de flores, ao
lado do papai pescador. Jogos com a inseparável Celina, que tem três anos e meio mais
do que ela.
A comunhão de Celina, no dia 13 de maio de 1880, será também um
acontecimento para a sua irmãzinha: "Parecia-me que era eu que ia fazer a minha
primeira comunhão. Creio que recebi grandes graças nesse dia, e considero-o
como um dos mais belos da  minha vida" (Ms A 25v). Efetivamente, Teresa sente
já uma grande fome eucarística e, desde este momento, começa a preparar-se para a
sua primeira comunhão, que será quatro anos mais tarde. A sua primeira confissão,
com o abade Ducellier, neste mesmoano, produzir-lhe-á uma imensa
alegria. Identifica de tal modo o sacerdote com Jesus que queria dizer ao confessor
que o ama com todo o seu coração. Dissuadem-na (cf. Ms A 16v). Em casa
continua muito viva, com o seu temperamento: aborrecia-se com Vitória Pasquer, a
criada que gosta de a provocar, mas ela chama-lhe "fedelho", mostrando assim o
seu caráter (Ms A 16r).

Apenas um episódio surpreendente durante este período de criança: a "visão


profética", um dia de Verão (1879 ou 1880), de "um homem vestido tal e qual
como o papá, a cabeça estava coberta com uma espécie de avental" (Ms A 20r), que
atravessava o jardim e desaparecia por detrás de uma sebe. Teresa viu de uma janela
que dá para o jardim por detrás da casa. Mas Luís Martin estava então de
viagem, em Alençon. Para tranqüilizar a criança, as suas irmãs e a criada
revistam o bosquezinho, em vão. Muitomais tarde, recordando este misterioso
acontecimento, verá nele um anúncio da doença do seu querido pai, a grande
provação da sua vida.

Apega-se a quem, depois da morte da mamãe, lhe assegura uma


ternura não só paternal, mas maternal. Tem medo de o perder também. Uma
cumplicidade espiritual u n e a c r i a n ç a c o m o " p a t r i a r c a " d o s   Buissonnets
que tão bem anima os serões familiares. Só tem que olhar para ele para saber
como rezam os santos. Terá sempre por ele uma grande veneração.

Na escola

Chega a hora da escola. No dia 3 de  outubro de 1881, aos oito anos


e nove meses, Teresa Martin toma o caminho da  Abadia das beneditinas, no
bairro de Saint-Désir, onde volta a encontrar a Celina, apelidada "a intrépida".
"Ouvi dizer muitas vezes que o tempo passado no colégio é o melhor e o mais
agradável da vida, mas, para mim, não foi assim: os cinco anos que lá passei
foram os mais tristes da minha vida..." (Ms A 22r).

Muito pouco acostumada a relacionar-se — exceto os encontros com a


família Guérin — a aluna descobre com certa angústia a vida social com meninas
maiores do que ela, que têm inveja dela — frequentemente é a primeira da turma — e
às vezes perseguem-na. Teresa chora em segredo. Os jogos ruidosos e violentos dos
recreios desconcertam-na: prefere contar histórias, entreter-se com as alunas mais
pequenas, enterrar pássaros mortos (Ms A 37r). As suas professoras acham-na
tranqüila, simpática, um pouco escrupulosa, às vezes um pouco triste.
O catecismo é o seu triunfo.

No regresso aos Buissonnets, explode de alegria: necessita desta atmosfera


quente para se expandir. Às quintas-feiras não há aulas, joga com Celina e a sua prima
Maria, mas só gosta de dançar contradanças na casa dos Guérin, com as primas
Maudelonde. Prefere a leitura e ver estampas. Entusiasma-se com as façanhas das heroínas
francesas, sobretudo com as de Joana d'Arc. Sonha que também ela nasceu para a glória:
a de "se tornar uma grande santa" (Ms A 32r).

A perda de Paulina

Vai ser ferida por uma nova separação dramática. Paulina Martin acaba de tomar
a decisão de entrar na vida religiosa. Tendo em vista o seu passado de colegial na
Visitação de Le Maus, com a sua tia, irmã Maria Dositéia, pensa espontaneamente
nesta Ordem fundada por São Francisco de Sales eSanta Joana de Chantal. Mas, no
terceiro centenário da morte de Santa Teresa de Ávila (1882), quando assiste à missa na
igreja de São Tiago, Paulina recebe uma inspiração: é chamada ao Carmelo. O de
Lisieux está muito perto. A "pérola fina" — como lhe chama o seu pai — informa a sua família,
masparticularmente a Teresa que, no Verão, ocasionalmente dá-se conta da notícia.
Uma "espada" trespassa o seu coração: vai perder a sua segunda mamãe! "Ah! Como
poderia exprimir a angústia do meu coração?... Num instante, compreendi o que era a
vida. Até então não a vira tão triste, mas ela apresentou-se-me com todo o seu realismo;
vi que não era senão sofrimento e separação contínua. Derramei lágrimas bem amargas..."
(Ms A 25v).

Paulina explica-lhe como é a vida no Carmelo. A criança de nove anos


escuta-a avidamente: esta vida só com Jesus, só para Jesus, atrai-a: "Senti que o
Carmelo era o deserto onde Deus queria que eu me fosse também esconder... Senti-o tão
intensamente que não restou a menor dúvida no meu coração". Tem a certeza de que Deus
a chama. Objetar-se-á que se queria juntar com a sua mãe perdida. Mais tarde, relendo
todos estes acontecimentos, Teresa afirmará com lucidez: "Queria ir para o Carmelo,
não pela Paulina, mas só por Jesus" (Ms A 26r).

Na segunda-feira, dia 2 de outubro de 1882, as famílias Martin e Guérin


acompanham Paulina à missa. A seguir, fecha-se a pesada porta do Carmelo: todas as
filhas choram, sobretudo Teresa. Além disso, começa um novo ano! Os locutórios
das quintas-feiras, nas quais toda a família vai visitar a Paulina, são para Teresa
mais uma fonte de angústia do que de alegria. No fim da meia hora regulamentar,
fica um minuto para falar com a sua "mãezinha": angústia e lágrimas.

Em dezembro, a aluna sente-se perturbada na sua vida escolar com fortes


dores de cabeça, dores em distintas partes do corpo, o seu caráter é alterado; pede a
Maria que tome o lugar de Paulina em relação a Teresa: a sua terceira mãe.
Frequentemente discute com Celina, que tem então catorze anos e acha que ela
"chora em excesso".

Estranha doença

Todos estes sintomas não são senão o prelúdio de um afundamento. Na


Páscoa de1883, Luis Martin leva Maria e Leônia a passar a Semana Santa em
Paris. Os Guérin acolhem as duas mais novas durante as  férias.

Infelizmente, a conversa orienta-se para a senhora Martin e as recordações da


vida de Alençon. Teresa não suporta tal evocação. Deitam-na na cama. Mas,
quando o seu tio volta com as suas filhas de unia reunião no  círculo católico, a sua
sobrinha está a tremer de frio, agita-se muito. O farmacêutico inquieta-se a
ponto de chamar, no dia  seguinte, o seu amigo, o doutor Notta. O diagnóstico
dele não é nada tranqüilizador: Doença muito grave, da qual nunca uma criança
tinha sofrido". Não diz que tipo dedoença é... Chamam à pressa os Martin
que voltavam de Paris. Ficam consternados. Teresa não pode ser movida, ficará
na farmácia. Multiplicam-se os sintomas alarmantes: alucinações, movimentos
incontroladosde todo o corpo, debilidade, anorexia. A doente só pensa na sua
irmã carmelita que tem que tomar o hábito no dia 6 de abril. É evidente que não
pode ir à cerimônia.  Contudo, levanta-se nesse dia e diz que está curada. É-lhe
permitido sentar-se, antes da cerimônia, sobre os joelhos de Paulina, que agora é
irmã Inês de Jesus.

Pode voltar para os Buissonnets. Mas, no dia seguinte, a recaída é mais


grave: delírios, palavras incoerentes. Pede socorro. Morrerá ou ficará "doida"?

O doutor Notta prescreve-lhe banhos, que se tornam ineficazes. A família e


o Carmelo rezam ardentemente por esta criança que parece perdida. Morrerá
também, como os outros filhos? Mandam rezar uma novena de missas no
santuário parisiense de Nossa Senhora das Vitórias, muito querido
dos Guérin e dos Martin. A doente não está no quarto que habitualmente ocupa,
mas no primeiro andar, no da sua irmã Maria. Muito perto dela, sobre a
cômoda, colocaram a imagem da Virgem, aquela que uma senhora piedosa tinha
oferecido a Luis Martin quando ainda era solteiro. A Virgem é a protetora da
família e já tinha concedido graças a Zélia Martin.

Cura inexplicável

Chega o dia de Pentecostes, o 13 de maio de 1883. Leônia vigia a sua irmã


no quarto. Como quase sempre, Teresa geme e chama indefinidamente:
"Mamãe..., mamãe...", querendo que Maria fique a seu lado. A filha  mais velha
atravessa, por fim, o jardim. Mas a doente não a reconhece. Todas as suas irmãs
se ajoelham à volta da cama. Acontece e n t ã o o i n e s p e r a d o : " D e r e p e n t e ,
a   Santíssima Virgem pareceu-me bela, tão bela como nunca vira nada tão belo: o
seu rosto irradiava uma bondade e uma ternura inefáveis, mas o que me penetrou
até ao fundo da alma foi o 'encantador sorriso da Ssma. Virgem'. Então todos
os meus males se desvaneceram. Duas grossas lágrimas brotaram das minhas
pálpebras e deslizaram silenciosamente pelas minhas faces; mas eram lágrimas de
uma alegria pura..." (Ms A 30r).

Teresa está curada. O sorriso da Virgem tranqüilizou instantaneamente a


doente. Levanta-se e, à exceção de dois pequenos incidentes somáticos, nada mais
voltará a perturbá-la. É acolhida no locutório do Carmelo como curada
milagrosamente. As perguntas das irmãs sucedem-se umas atrásdas outras e confundem
a criança: como era a Santíssima Virgem? Teresa tinha prometido guardar o segredo
para ela, mas a sua irmã Maria, testemunha da cura, manda-lhe que fale. Como não
lhe fazer caso?  Infelizmente, a filha mais velha falará no Carmelo. Teresa sente um
mal-estar interior que lhe durará muito tempo—quatro anos —, pois o que deveria ser sua
alegria se converte num tormento: não traiu o segredo da Santíssima Virgem? Um
nova dúvida começa a insinuar-se, acrescentando-se a esta: não se tinha tornado doente
de propósito? Oportuna pergunta, pois tinha consciência de ter vivido uma espécie de
desdobramento da sua personalidade. Esta "dor de alma" durará cinco anos. "Ah, o que eu
sofri, só no Céu o poderei dizer!" (Ms A 31r).

Evidentemente, com a perspectiva do tempo, os psiquiatras perguntaram-se


sobre a natureza de tal doença. Os diagnósticos nem sempre coincidem. Há acordo
sobre a causa: o choque pela partida repentina da sua segunda mãe, Paulina, que reavivou a
ferida não cicatrizada da morte da sua mamãe.

Profundo golpe para a sua personalidade afetiva que não se tinha refeito daquela
dor, com uma mudança de caráter que transformou esta criança jovial, forte e
expansiva numa pré-adolescente hipersensível, ensimesmada e tímida.

O doutor Guayral deu, em 1959, este diagnóstico: "Teresa apresentava um


atraso afetivo devido à regressão causada pela perda da sua mamãe, e não compensada
por uma educação suficientemente compreensiva" (Carmel, 1959, p. 93).

A discussão permanece aberta. Mas as explicações não devem ocultar a


própria apreciação da mesma Teresa que, relatando a sua vida em 1895 — com vinte e dois
anos — verá nesta doença uma ação que vinha certamente do demônio, furioso pela
entrada de Paulina no Carmelo, "ele quis vingar-se em mim do mal que a nossa família
lhe devia causar no futuro" (Ms A 27r).

Com a perspectiva do tempo, podemos pensar também que neste "futuro" a


própria Teresa será um temível adversário do príncipe das trevas. Quem estará em
condições de exprimir com perspicácia o sentido que contém no plano espiritual uma
doença deste tipo, que precisa da ajuda da psiquiatria? Mais tarde, Teresa deu-se
conta de que numa doença tão estranha" (Ms A 27v) se jogava um convite espiritual
de grande importância no qual ela era, ao mesmo  tempo, a protagonista e o campo
de batalha. Por outro lado, nas duas "dores de alma" que a torturarão durante dois anos
(podemos ver aqui as purificações, segundo São João da Cruz), o simples assombro
diante de tais fatos procedem da sua juventude. Mas o Senhor tem os seus desígnios
que escapam às investigações humanas. Teresa manterá sobretudo a convicção de ter
sido salva por Deus numa situação sem saída.

A convalescente não se reintegrará na escola depois de tantas emoções.


Consideram-na frágil, e durante muito tempo preocupar-se-ão da sua saúde e
procurarão evitar-lhe qualquer contrariedade.

Não há nada melhor do que uma viagem para a fazer esquecer estes dias sombrios. Do dia
20 de Agosto ao 3 de Setembro, Teresa — com dez anos e meio — faz a sua “entrada
no mundo" ao voltar a Alençon, entre os amigos da sua família. Desde os seis anos não
tinha voltado ali. É festejada e mimada. Agora é "realmente uma jovenzinha", escreve
Luís Martin a um amigo. Os seus cabelos louros e compridos que cobrem os seus
ombros, os seus belos olhos verdes, os seus vestidos (Zélia Martin tinha cuidado
sempre da elegância das suas filhas), faz com que seja admirada pelas famílias
burguesas de Alençon e dos arredores. A linda convalescente vai "de palácio em
palácio", monta acavalo. "Confesso que essa vida tinha encantos para mim... Aos
dez anos o coração deixa-se facilmente fascinar" (Ms A 32v).
Depois de ter roçado a loucura ou a morte, esta feliz convalescença desperta o
seu desejo de viver. O austero Carmelo, onde vive a sua irmã, continuará a estar
presente no seu coração, quando pressente que diante de si se pode abrir um
caminho diferente, um matrimônio feliz, com filhos, uma grande  casa, uma
vida fácil...? Não, não esquece onde a leva o peso do seu coração. Tal
experiência do mundo ser-lhe-á muito útil:  "Talvez Jesus me tenha querido
mostrar o mundo antes da primeira visita que me ia fazer, a fim de que eu
escolhesse mais livremente o caminho que havia de lhe prometer seguir" (Ms A
32v).

Primeira comunhão

Depois desta vida fácil e sedutora, foi duro o regresso a Lisieux. Teve


que voltar para o colégio em Outubro de 1883; a aluna Teresa Martin passa para a
segunda turma do mesmo ano. Uma alegria neste ambiente cinzento: a perspectiva,
por fim, de fazer a primeira comunhão este ano, pois este desejo  continua
ancorado no seu coração. O amor verdadeiro a Jesus encarnado a faz considerar a
Eucaristia como o sacramento da presença real.

O abade Domin, de quarenta e um anos, capelão das beneditinas,


encarrega-se do catecismo. Está contente com a sua aluna, a quem chama o
"seu doutorzinho", mas  Teresa tem muita dificuldade em compreen dê-lo
quando afirma que as crianças que morr em sem batismo não vão para o
céu. Ela pensa que a onipotência do Amor de Deus não deve permitir que
aconteça tal desgraça, pois não há pior mal que não ver a Deus. Se é todo-
poderoso, pode levá-las consigo!

Por seu lado, a Irmã Inês de Jesus, no  Carmelo, está a preparar também a
sua irmã para o grande dia: durante quatro meses,  escreve todas as semanas a
Teresa e compõe-lhe um livrinho para a ajudar a rezar e a  fazer sacrifícios todos
os dias. Teresa responderá com uma generosidade excepcional: desde o dia 1 de
Março até o dia 7 de maio de 1883, faz no total 1949 sacrifícios e repete 2773 vezes
as orações propostas por Paulina. Mantém com ardor esta contabilidade pedagógica,
muito utilizada naquele tempo; mas virão dias, muito mais tarde, em que
escreverá: "quando se ama, não se conta" (PN 17, 5).

O 8 de Maio será o grande dia. Data feliz, que coincide com a profissão de


Paulina no Carmelo: as duas irmãs estão mais unidas pela entrega que de si
mesmas querem fazer a Jesus.

Pela primeira vez na sua vida, Teresa não dorme em casa: tem que passar
três dias depreparação no colégio da Abadia. A família dá mil conselhos às Irmãs
que a acompanham: a menina Martin está muito fraca. Terá direito a algumas
condescendências: o seu pai e as suas irmãs visitam-na todos os dias.

O abade Domin prega o retiro às sete  meninas que têm dez e onze anos.
As conferências estão fortemente marcadas pelo ambiente jansenista da época.

Teresa toma algumas notas estranhas  num pequeno caderno: a segunda


conferência foi sobre a morte, a terceira sobre o  inferno e sobre os tormentos
que ali se padecem, a do dia 7 de maio sobre a  comunhão sacrílega. "O
sacerdote disse-nos coisas que me meteram muito medo". A morte, porém, da
abadessa das beneditinas impede o senhor capelão de dar todas as conferências e,
sem dúvida, assustar mais a todas as meninas que estão de retiro.

No dia 7 faz uma confissão geral, que a  deixa "numa grande paz". No dia
seguinte, experimenta uma alegria autêntica; o vocabulário que usará para evocá-la
em 1895 em nada se assemelha com o das conferências do abade Domin: "Ah! como
foi doce o primeiro beijo de Jesus à minha alma!... Foi um beijo de amor, sentia-me
amada, e dizia por minha vez: "Eu amo-Vos! Dou-me a vós para sempre!". Não
houve pedidos, nem lutas, nem sacrifícios. Desde há muito, Jesus e a pobre
Teresinha tinham-se olhado e tinham-se compreendido... Nesse dia já não era um
olhar, mas uma fusão, já não eram dois: Teresa desaparecerá como a gota de água
que se perde no oceano. Só ficava  Jesus, como dono, como Rei" (Ms A 35r).

É a linguagem de uma jovem enamorada que faz dom total de si mesma.


Procurará saciar a fome da Eucaristia, desencadeada nela há muitos anos.
Anotará vinte e duas comunhões no pequeno caderno durante o, ano seguinte,
pois então não era permitido comungar todos os dias.

Pela tarde pronuncia a consagração à  Santíssima Virgem, sua Mãe, em


nome das suas companheiras. Nem é totalmente insensível à festa familiar nem aos
presentes recebidos. Mas o que a atrai é comungar novamente. Não poderá fazê-lo
senão quinze dias depois, no dia 22 de maio, dia da Ascensão.

Esta segunda comunhão marcará profundamente Teresa, embora de um


modo completamente diferente: "Que doce recordação conservei desta segunda
visita de Jesus!". Repetia para si mesma as palavras de  Gálatas 2,20: "Já
não sou eu que vivo, é Jesus que vive em mim". Mas receberá uma  luz
especial sobre o sentido do sofrimento: "Senti nascer no meu coração um
grande desejo de sofrer, com a íntima certeza de que Jesus me reservava um grande
número de cruzes. Senti-me inundada de consolações  tão grandes que as
considero uma das maiores graças da minha vida"  (Ms A 36r). Sentimentos
desconcertantes numa menina tão nova, mas que são premonitórios da
suapequenez e da sua vida futura.

Como admirar-nos de que se sinta atraída para aprofundar na oração? Mas a


sua irmã Maria não a deixa fazer meia hora de oração por dia — nem sequer um
quarto de hora —, pois julga-a já suficientemente piedosa.

Confirmação

No dia 14 de junho de 1884 outra grande graça: depois de dois dias de retiro,


recebe a confirmação das mãos de M ons enhor  Hugonin. Teresa admira-se de
que não se dê mais importância ao "sacramento do Amor". A visita do Espírito
Santo acontece numa “brisa ligeira". Neste dia, escreve, recebeu a fortaleza para
sofrer. Celina testemunhará mais tarde: Teresa, ordinariamente tão tranqüila, não
era a mesma: percebia-se no seu exterior uma espécie de entusiasmo e
dearrebatamento. Num dia do seu retiro de  preparação em que lhe manifestei
o meu assombro ao vê-la com essas disposições, explicou-me o que entendia do
poder deste sacramento, da tomada de posse de todo o seu ser pelo Espírito de
Amor. Havia nas suas palavras tal veemência, tal fogo no seu olhar, que eu
mesma, penetrada por uma impressão sobrenatural, me separei dela
profundamente emocionada. De tal modo me impressionou este fato, que ainda
me parece estar a ver os seus gestos, a sua atitude, o lugar que ocupou; esta
recordação não se apagará do meu espírito" (PO 266-267).

Em Agosto, encontra-se de férias em  Saint-Ouen-le-Pin, a uns dez


quilômetros deLisieux, no caminho de Caen, na quinta da senhora Fournet (a avó
Guérin), em plena região de Auge. Teresa gosta muito desta planície, das suas
ondulações, das suas macieiras, dos regatos e dos tanques, do  pequeno bosque.
Desenha com pormenor a quinta cercada com tabiques. A família passeia pela
planície nos arredores do castelo de Guizot, na propriedade da antiga abadia
Cisterciense de Val-Richer. Embora tenha acabado de se curar de uma tosse convulsa,
está muito contente aqui. Ter-se-á feito acompanhar de Tom, podengo branco,
presente do seu pai no mês de junho?

Seja como for, voltará a encontrá-lo nos Buissonnets, no momento do novo


ano, per í o d o s e m p r e t ã o d o l o r o s o p a r a e l a .   Encontra-se com as outras
alunas que têm treze ou catorze anos, distraídas e alvoroçadas. Continua a gostar
de história, das redações e o seu interesse não decai, antes aumenta. Mas é grande
a sua sensibilidade ao fracasso e proporciona-lhe muitas lágrimas.

A sua professora, a Madre São Leão,  acha-a muito frágil, sujeita a


escrúpulos. O seu coração, "sensível e terno", está ávido de afeto. Mas fracassam
algumas tentativas para fazer amigas; o seu amor não é compreendido.

De 3 a 10 de maio, encontra-se novamente de férias em casa dos Guérin,


desta vez na “Vila das Rosas", no número 17 do cais do Touques, em Deauville.
Sob as ordens da tia Guérin, quatro jovens respiram o ar do mar: Joana (dezessete
anos), Maria (quase quinz e ) , T e r e s a ( d o z e e m e i o ) e a c r i a d a   Marcelina
(dezenove). Passeios ao longo do mar até Ronhas Negras, missas e
orações em Nossa Senhora das Vitórias e Nossa Senhora do Bom Socorro, trabalhos
de agulha, desenhos para os Guérin... Teresa procura ainda fazer-se estimar, mas
fracassa novamente: nota sempre a falta da sua mãe, e tem difi culdades para
encontrar um equilíbrio real nas relações humanas. Apesar de todas
estas diversões, nota igualmente a falta da sua  irmã Maria que ficou nos
Buissonnets.

Segunda comunhão

Por outro lado, há de regressar, pois  Teresa tem que participar no retiro
para a sua "segunda" comunhão, ou seja, a renovação  solene da primeira, do dia
17 a 21 de maio de 1885, pregado também pelo abade  Domin, na Abadia.

No mesmo pequeno caderno do ano anterior, a retirante tomará algumas


notas. O tom de susto não se alterou desde então: "O que o Senhor Padre nos disse
era tão aterrador. Falou-nos do pecado mortal...", da "morte"; Teresa não escreve
mais nada. No entanto, contará nas suas recordações: "Foi durante o retiro para a segunda
comunhão que me vi assaltada pela terrível doença dos escrúpulos... É preciso ter passado
por esse martírio, para o compreender bem. Ser-me-ia impossível dizer o que sofri durante
ano e meio..." (Ms A 39r).

De fato, esta longa crise durará dezessete meses. Voltam em massa as "duas
dores de alma" que seguiram à sua doença de1883, que acentuam ainda mais os
escrúpulos que, nesta idade, lhe causaram preocupação também em relação à castidade. O
seu único recurso é a sua irmã Maria, com quempartilha os seus sofrimentos interiores e que a
ajuda a ver com mais clareza quando se vai confessar. Está bastante perturbada,
pois, depois desta segunda comunhão, não voltará para a escola.

Indicamos que voltou a tomar as três resoluções da sua primeira comunhão: "1.
Não desanimarei. 2. Rezarei todos os dias um 'lembrai-vos' à Santíssima Virgem.
3. Procurarei humilhar o meu orgulho" (retificamos a ortografia insegura).

Em Julho de 1885, novamente em Saint-Ouen-le-Pin. Ninguém, ao vê-la


"francamente contente, encantadora pela sua alegria", suspeitará do peso das suas
penas interiores. Nos fins de Setembro, novamente uma temporada junto ao mar, desta
vez em Trouville, "Vila Rosa" na rua Carlos Magno, com Celina. Teresa diverte-
se muito, mas acusa-se na sua confissão de ser demasiado vaidosa, porque usa fitas
azuis na sua bela cabeleira.

O novo ano escolar que começa em outubro de 1885 será o último para
Teresa. Celina, de dezesseis anos, terminou a escolaridade. A prima Maria,
frequentemente doente, abandona também a Abadia. É demasiado para Teresa, que
volta a estar só. Grande solidão para a adolescente, acentuada ainda mais pela ausência do
seu pai que, durante quase dois meses, viaja ao Oriente, até Constantinopla. O retiro do
início do ano, pregado por um substituto do abade Domin, não levanta a moral da aluna:
tratando sempre de realidades espantosas, tão pouco de acordo com a idéia que ela faz do
amor de Jesus.

Em 1886, Teresa tem treze anos. No dia 2 de fevereiro é recebida como aspirante
das Filhas de Maria na Abadia, da qual Celina, "a intrépida", é presidente. A professora
surpreende-se pela tristeza de Teresa que sofre contínuas dores de cabeça. O Sr.
Martin decide retirá-la da escola. Como a sua prima Maria Guérin terá aulas particulares
em casa de uma instrutora, a Sra. Valentina Papinau, que vive na rua Maior, perto da
catedral de São Pedro, com a sua mãe e a sua gata.

É uma grande mudança de vida para Teresa: acabou a vida escolar. Assiste


às aulas três ou quatro vezes por semana sempre acompanhada. O trabalho não é
cansativo, porque a instrutora tem muitas visitas. Dizem que a aluna é muito linda.
Cora de confusão e de prazer.

A aluna dispõe de muito tempo livre. Instalou-se num quarto no sótão do


segundo andar dos Buissonnets, que descreve como "um autêntico bazar; um agregado
de piedade e de curiosidades; um jardim e uma gaiola... o retrato de Paulina..." (Ms
A 42v).

Nos fins de junho, nova estadia em  Trouville, na vila dos Lilazeiros, mas
muito breve, porque Teresa não se acha bem. Sente saudades dos Buissonnets; este
pequeno incidente confirma que não se encontra muito bem.
A partida de Maria

Toma conhecimento da decisão da sua irmã Maria de entrar no Carmelo.


Novo drama para Teresa que não tem ninguém senão ela a quem apegar-se.
Celina, de dezessete anos, terá que assumir o papel de dona de casa. Leônia, de
vinte e três anos, pensa também na vida religiosa. O mundo cambaleia para a
menor: toda a vida não é senão uma separação. Deixa de sentir gosto pelo seu
quarto de adolescente e começa novamente com Maria o que tinha vivido com
Paulina: cobre-a de beijos e presentes antes da sua partida.

Uma viagem a Alençon, nos princípios de Outubro, proporcionando-lhe


mudança de ares e diversão, ajudará a superar a situação? Não. Chora sobre a
sepultura da sua mãe porque se esquecera de levar um ramo de  flores. Leônia,
caprichosamente, entra nas Clarissas, na rua da Meia Lua. A família desfaz-se.

No dia 15 de outubro é a partida de Maria  "o único apoio" de Teresa, que


doravanteficará só, debatendo-se com os seus escrúpulos. Tinha perdido a Paulina e
os escassos contatos no locutório, por detrás da dupla grade, não são suficientes
para uma autêntica comunicação.

Eis uma jovenzinha loura de 1,62 m de altura, com longos cabelos sobre os
ombros, que vai fazer catorze anos. Mas, que contraste com o interior! É
hipersensível, chorona, "insuportável pela sua excessiva sensibilidade... que às vezes
chora por ter chorado" (Ms A 44v), torturada pelos escrúpulos... nunca, em toda a
sua vida, tinha chegado tão baixo. Profunda solidão de adolescente que continua a
sonhar entrar no Carmelo. Mas, em tal estado interior, como o poderá conseguir?
Tem pouca disposição para as coisaspráticas, incapaz de fazer corretamente
a cama e sofria por tudo (Ms A 44v).

Neste profundo abismo reagirá com um grito dirigido ao céu. Curiosamente


não se dirige a Deus, nem à Santíssima Virgem que já a tinha curado. Pobre criança
abandonada, volta-se para os seus quatro irmãozinhos  mortos em tenra idade.
Sendo a última da família, falou-lhes com a "simplicidade decriança" (Ms A 44r).
A resposta não se fez esperar: em breve uma grande paz veio inundar a sua alma e
sente-se reconfortada, na sua solidão interior, por se saber amada  pelos que
estão no céu.

Segunda cura repentina, que a liberta dos escrúpulos, mas que, no entanto,


não soluciona tudo. O seu caráter hipersensível não se modifica muito com isso.
Teresa continua com a tendência para "chorar como uma Madalena". A situação
parece desesperada.

Como poderá a adolescente sair definitivamente dela?

O "milagre" de Natal de 1886

Vai produzir-se agora um acontecimento  de importância capital na vida


de Teresa Martin. Em nada espetacular, pois, à exceção da sua irmã Celina,
ninguém saberá.
Os fatos são muito simples. No regresso da missa da meia-noite na
catedral de São Pedro, o Sr. Martin, cansado, lamenta que o ritual dos sapatos na
chaminé ainda exista para uma jovenzinha de quase catorze anos: "Enfim, ainda
bem que é o último ano!". O seu ouvido apurado entendeu-o. Brilham-lheas
lágrimas nos olhos ao subir as escadas  para ir tirar o chapéu. Celina diz-lhe
para não descer já.

Mas Teresa faz um grande esforço, retém as lágrimas, desce rapidamente


as escadas para abrir os presentes... O pai, tendo recuperado o bom humor, fica
contente. Celina não acredita no que vê.

A graça tocou o coração de Teresa. "Num instante" recebe uma grande força


interior. A fonte das suas lágrimas ficou estancada. Não é a mesma: a sua
hipersensibilidade desapareceu. Eis que está transformada, forte, liberta das "faixas
da infância", já não adolescente, mas mulher. Está "revestida com as
armas", preparada para todos os combates e, em primeiro lugar, para o que a vai
empurrar a entrar no Carmelo o mais rapidamente possível.

Nove anos mais tarde, ao escrever o seu  primeiro manuscrito


autobiográfico, Teresasintetizará o acontecimento do Natal de 1886. Para ela,
trata-se de um "pequeno milagre", de uma "conversão", de uma  "mudança
admirável" entre a força de Deus que se faz pequeno no presépio e a debilidade da
"pequena" Teresa que se faz forte. A graça litúrgica — e a eucarística,
porque Teresa comungou na missa da meia-noite — transformou-a completamente
(Ms A 45-46).

Teresa "cresceu". Teresa desejava-o vagamente, mantida, contudo, pela sua


família numa espécie de atmosfera infantil: "A Celina queria continuar a tratar-me
como um bebê, já que eu era a mais nova da família..."

Porém, as palavras do pai, repentinas, acabando com o ritual infantil, fazem-


na sair de si mesma. Conversão duradoura que vai inaugurar "o terceiro período
da sua vida, o mais belo de todos, o mais repleto das graças do Céu”. Agora, como ela
diz, pode começar "uma corrida de gigante" (Sl 18,6).

Com notável lucidez, comprova que reencontrou a força da alma dos seus
quatro anos e meio, perdida há dez anos, no momento da morte da sua mãe. Por fim,
faz o duelo, assumido na paz. É uma graça de cura interior profunda, definitiva.
Mas esta graça atua numa natureza que tem a sua história. A ferida psicológica não
foi indelével. "Deus é a saúde da alma" (João da Cruz).

Um ano depois do texto do seu manuscrito, Teresa volta sobre esta "conversão"
numa carta (Ct 201) ao P. Roulland, no dia 1º de  novembro de 1896. A síntese é
perfeita: "A noite de Natal de 1886 foi, é verdade, decisiva para a minha vocação,
mas para a designar mais claramente devo chamar-lhe: a noite da minha conversão.
Nesta noite bendita da qual está escrito que ela ilumina as delícias do próprio Deus.
Jesus que Se fazia criança por meu amor dignou-Se fazer-me sair das roupinhas e
das imperfeições da infância, transformou-me de tal maneira que já não me
reconhecia a mim mesma. Sem esta mudança teria ficado ainda muitos anos no
mundo. Santa Teresa que dizia às suas filhas: "Quero que não sejais mulheres
em nada, mas que em tudo iguais a homens  fortes", Santa Teresa não teria
queridoreconhecer-me como sua filha se o Senhor não me tivesse revestido da
sua força divina, se Ele mesmo não me tivesse armado para a guerra".

Deste modo, foi salva "num instante" de uma incapacidade que durou
dez anos. Agora sabe por experiência o que é a  Misericórdia que a tirou
de um abismo. Nunca mais o esquecerá e em todas as noites de Natal futuras,
celebrará a sua "conversão".

Por fim, nos seus Últimos Colóquios, voltará ainda sobre este Natal de 1886,
tão decisivo), para precisar que a graça divina não atua sem a liberdade humana:
"Pensei hoje na minha vida passada, no ato de coragem  que fiz naquela noite de
Natal, e o louvor dirigido a Judite veio-me à memória: “ Agistes com uma
coragem viril e o vosso coração fortaleceu-se”. Muitas almas dizem: Não tenho
força para realizar esse sacrifício. Então que façam o que eu fiz: um
grande esforço. Deus nunca recusa esta primeira  graça que dá a coragem para
agir; depois disso, o coração fortalece-se e vai de vitória em vitória" (UCR 8.8.3).

Assim termina a segunda parte da vida de Teresa Martin, segundo a


divisão que ela própria faz: estes dez anos de sofrimentos, de lutas, mas também
de graças de eleição. A criança, a adolescente viveu um caminho de purificações que
a amadureceram e a tornaram mais profunda. Tal incapacidade prolongada  — dez
anos! — cedeu a três curas sobrenaturais sucessivas para acabar numa
libertação definitiva. Porque Teresa passou por esta experiência pessoal, sabe
que foi salva, que deu um passo em frente, que a sua vida teria sido muito mal
orientada se não tivessem existido estas distintas graças, das quais amais eficaz
foi a do Natal de 1886.

Compreende-se a razão pela qual o ano de 1887 será belíssimo para ela: ano
de crescimento humano, intelectual, artístico e,  sobretudo, espiritual. O
ano da luta paraentrar no Carmelo o mais rapidamente possível. Por outro lado,
foi fixada a data de entrada: o Natal de 1887, aniversário da sua  conversão.

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A CASA DOS BUISSONNETS

Monsenhor GUY GAUCHER

As filhas Martin instalam-se nos Buissonnets no dia 16 de novembro de 1877,


casa encontrada pelo tio Isidoro Guérin, farmacêutico na cidade. Teresa estará nela até
ao dia 9 de abril de 1888, data da sua entrada no Carmelo.

A casa ficava então na periferia de Lisieux, num bairro tranqüilo chamado


"Vila do Novo Mundo". A casa tinha cem anos, mas estava em perfeito
estado. Rodeada de muros, com um pequeno relvado na parte dianteira, um jardim nas
traseiras com árvores. A porta do jardim dá para uma pequena rua a subir, que o Sr.
Martin chamará "o caminho do Paraíso".
No andar de baixo, quatro aposentos, entre eles uma linda sala de jantar com
revestimento de carvalho. Um sótão dividido em adega e frutaria. Um primeiro
andar com três quartos e um mais pequeno, no mesmo nível que o jardim da pane de
trás. Um segundo andar, com um belvedere que dá para a cidade e três pequenos
sótãos.

Ao lado, um poço com uma máquina para tirar a água. Uma cisterna, um
cobertura, uma lavanderia, um lugar para as aves e um curral.

Muito perto, encontra-se o esplêndido jardim da Estrela onde é preciso estar


inscrito para entrar. Os Martin vão frequentemente ali.

Não esqueçamos que eram apenas inquilinos nos Buissonnets. Com a doença do


pai, internado, desfez-se o arrendamento no dia 31 de dezembro de 1889. Os móveis
dispersaram-se, alguns foram parar o Carmelo.

Em dezembro de 1909, o doutor La Néele — primo por afinidade, pois estava


casado com Joana Guérin — comprou os Buissonnets: já havia afluência
de peregrinos. Em 1913, a casa foi adaptada tendo em conta os peregrinos. Em 1922,
Joana La Néele, viúva, vendeu a casa à sociedade imobiliária das peregrinações.

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A "POBRE LEÔNIA" (1863-1941)

Monsenhor GUY GAUCHER

Maria Leônia Martin nasceu no dia 3 de junho de1863 em Alençon, a terceira


das filhas Martin, depois de Maria e Paulina, mas antes dos cinco filhos
que seguiram, dos quais quatro morreram.

Encontrava-se, pois, bastante só entre as duas mais velhas e as duas mais


novas, Celina e Teresa. De saúde delicada, de temperamento mais ingrato do que
as outras, preocupou sempre a sua mãe. Apesar dos seus esforços, a sua tia Dositéia
em Le Mans não a pôde manter no colégio. Em Alençon, a criada assustava-a um
pouco, quando a fechava.

Mesmo assim, tinha bom coração, tinha necessidade de carinho, mas tinha
menos capacidades que as suas irmãs. De modo irrefletido, entrou nas clarissas
de Alençon, mas só esteve algumas semanas (volta para casa em 1º. de dezembro de
1886). O apelo para a vida religiosa manteve-se nela. No dia 16 de julho de 1887, aos
vinte e quatro anos, entra na Visitação de Caen. Infelizmente, só por seis meses, pois a
vida é demasiado dura. Volta para os Buissonnets quando Teresa estava a preparar-
se para entrar no Carmelo de Lisieux.

Passa cinco anos com a doença do Sr Martin. Que será daquela que todos
chamam "a pobre Leônia"?... No dia 24 de junho de 1893, volta ainda para
a Visitação de Caen. Toma o hábito, mas volta a sair dois anos depois, no dia 20 de
julho de 1895. Teresa procura animá-la e, antes de morrer, tranqüiliza a Leônia: será
visitandina.

De fato, no dia 28 de junho de 1899, Leônia volta para sempre ao convento


de Caen. Ali morrerá humilde e desconhecida, no dia 17 de junho de 1941, aos
78 anos.

Participou, de longe, na ascensão "do furacão de  glória" que aureolou a


sua irmãzinha. Chegou a ser discípula do pequeno caminho de infância,
perfeitamente adaptado à sua própria debilidade. É essa a  razão pela qual tantos
amigos de Teresa gostam dela.

Desde 1970, o convento da Visitação de Caen recebe cartas e peregrinos do


mundo inteiro. Abriu-se para eles a cripta na qual repousa a irmã Francisca
Teresa, que dizia da sua irmã: "Com quanta mais glória a  vejo, mais sinto a
necessidade de me abaixar".

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TERESA NOS FALA:

Vida em família

"Não senti nenhuma pena ao deixar Alençon; as  crianças gostam da


mudança, e foi com gosto que vim para Lisieux (...) Nos Buissonnets a minha
vida era verdadeiramente feliz... Logo de manhã, vós vínheis  ter comigo e
perguntáveis-me se tinha oferecido o meu coração a Deus; depois vestíeis-me,
falando-me d'Ele e, em seguida. ao vosso lado, fazia a minha oração. Depois vinha
a lição de leitura (...) A minha querida madrinha encarregava-se das lições de
escrita, e vós, minha Madre, de todas as outras. Não tinha lá muita facilidade
para aprender. mas tinha muita  memória. As minhas preferências iam para o
catecismo e, sobretudo, para a História Sagrada; estudava-os com alegria; mas a
gramática fez-me muitas vezes correr as lágrimas" (Ms A 13v).

"Todas as tardes ia dar um pequeno passeio com o papai; fazíamos


juntos a visita ao S antíss imo  Sacramento, visitando cada dia uma nova igreja.
Foi assim que entrei, pela primeira vez, na capela do  Carmelo. O papai
mostrou-me a grade do coro, dizendo-me que, por detrás, estavam religiosas.
Estava bem longe de imaginar que, nove anos mais tarde, eu estaria entre elas!..."
(Ms A 14r).

"Que poderei dizer dos serões de inverno, sobretudo dos de domingo?


Ah! como era agradável, depois do jogo de damas, ir sentar-me com a Celina nos
joelhos do papai!... Com a sua bela voz cantava melodias  que enchiam a alma de
pensamentos profundos... Ou então, embalando-nos suavemente, recitava
poesias impregnadas das verdades eternas... Em seguida sub íamos para fazer a
oração em comum, e a rainhazinha ficava sozinha ao pé do seu rei, não tendo
senão que olhar para ele para saber como rezam os santos... Por fim, íamos todas
por ordem de idade, dar as boas noites ao papai e receber um beijo; a rainha,
naturalmente, era a última. O rei, para a beijar, pegava-lhe  pelos cotovelos, e
ela exclamava muito alto: 'Boa  noite, papai! Boa noite, dorme bem" (Ms A
18 r-v).

"Eu escolho tudo"

"Mais tarde quando encarei a perfeição, compreendi que para se vir a ser
uma santa era preciso sofrer muito, procurar sempre o mais perfeito e esquecer-
se de si mesma; compreendi que havia muitos graus na perfeição e que cada alma
era livre de responder aos apelos de Nosso Senhor, de fazer pouco ou muito
por Ele, numa palavra, de escolher entre os sacrifícios que Ele pede. Então, como
nos dias da minha primeira  infância, exclamei: 'Meu Deus, eu escolho tudo.
Não quero ser uma santa pela metade; não tenho medo de  sofrer por Vós; só
tenho medo de uma coisa, de conservar a minha vontade, tomai-a, porque 'Eu
escolho tudo’o que Vós quereis (Ms A 10 r-v).

CAPÍTULO 3

TERESA, JOVEM LEIGA

Monsenhor GUY GAUCHER

No dia 2 de janeiro de 1887, Teresa completa catorze anos. Mudou até no seu
aspecto físico. Celina dá-lhe lições de desenho. Sente incontroláveis desejos pela
leitura, interessava-se por tudo. Alguns livros  impressionam-na
profundamente: assim, o do cônego Arminjon Fim do mundo atual e mistério da
vida futura. Aprecia, sobretudo, a sétima conferência sobre "a bem-aventurança
celeste". Ávida de conhecimento  espiritual, o livro proporciona-lhe um
complemento importante à insuficiência do seucatecismo de perseverança,
demasiado simples para ela. Arminjon cita frequentemente a Escritura, os Padres e
abre-a ao infinito do mistério cristão.

Mas Teresa encaminha-se particularmente para o seu objetivo: o Carmelo.


Desde o Pentecostes (29 de maio), dá o difícil passo estando com o seu pai no
jardim dos  Buissonnets. Encontra-o totalmente disposto a todos os sacrifícios:
oferecer as suas filhas a Deus, inclusive a mais querida, a "rainhazinha". Enquanto
colhia uma florzinha branca da parede do jardim — uma planta (saxífraga) —,
o pai oferece-a como símbolo da sua vida, iluminada pelo sol de Deus. Teresa
conservá-la-á até è sua morte.

A graça do Natal vai dar frutos abundantes: uma frase de Teresa resume
perfeitamente a abertura do seu coração ao abandono do mundo: "A caridade
entrou no meu coração; senti a necessidade de me esquecer de mim para dar alegria.
E desde então sou feliz!" (Ms A 45v). Liberta de si mesma pela irrupção do amor
divino no seu ser, Teresa entra em relação com o mundo, sai do seu eu e começa a
amar de verdade: quer "dar alegria". A conseqüência é a alegria, porque o segredo
da felicidade é o dom de si. No fim da sua vida, na sua última poesia sobre
a Virgem Maria, escreverá: "Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54, 22).
Entre as numerosas graças deste ano de1887, há uma que vai ser
decisiva para a sua  vocação. Uma vez mais, a ocasião é quase irrisória,
aparentemente casual. Assiste, sem dúvida em Julho, à missa na catedral de
São Pedro. Do seu missal sobressai uma estampa de Jesus na cruz. Teresa vê que o
sangue cai das mãos do crucificado. Ninguém o recolhe. Sofre por isso e decide
ficar ao pé da cruz para recolher este divino sangue e oferecê-lo às almas. Ouve
Jesus a dizer-lhe: "Tenho sede" (Jo 19,26), sede física, mas mais ainda, sede de
almas. Também ela tem sede de almas, porque desde a abertura do seu coração no
Natal, Teresa sente-se "pescador de almas", quer trabalhar pela conversão dos
pecadores, quer "arrancá-las às  chamas eternas". "Resolvi manter-me
em espírito ao pé da cruz para receber o divino orvalho que dela escorria,
compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre asalmas... O grito de
Jesus na cruz: "Tenho sede!" ressoava também continuamente no meu coração.
Estas palavras acendiam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria
dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-me eu mesma devorada pela sede
de almas" (Ms A 45v).

Atitude "sacerdotal" de uma jovem de catorze anos e meio que fica "ao
pé da cruz" de Jesus para participar na salvação do  mundo. A sua vocação
resume-se a isto. É já o desejo intenso que exprimirá depois, também com muita
freqüência: "Amar a Jesus e fazê-lo amar" (Or 6).

As circunstâncias vão-lhe proporcionar a ocasião de pôr em prática a sua


resolução (Ms A 46-47). Na noite do dia 16 para o 17  de março, assassinaram
três mulheres em Paris, na rua Montaigne, número 17: Maria Regnault,
conhecida mulher do mundo parisiense, a sua criada e a sua filha de treze anos. O
roubo foi o motivo dos assassinatos. A angústia é considerável em França.
O horror do crime desencadeia a imprensa contra Henri Pranzini, originário de
Alexandria, que é preso no dia 20 de março  em Marselha. Tinha desempenhado
diversos ofícios, gastava o dinheiro e tinha que roubar para sobreviver. As suas
conquistas femininas eram numerosas. As acusações contra ele são esmagadores
(encontram-se as jóias roubadas em Marselha), o seu processo é aberto no dia 9 de
Julho, seguido com paixão pelo público. Mas Pranzini nega-o sempre. No dia 13 é
condenado à morte.

Teria o Sr. Martin falado nos Buissonnets deste caso diante das suas filhas?
Celina confirma-o. É talvez mais provável que  Teresa tenha ouvido falar do
assunto na casa dos Guérin, na farmácia da praça Thiers que era um lugar muito
concorrido e aberto? Ou na casa da Sra. Papinau?

Seja como for, contrariamente aos sentimentos dos seus contemporâneos, o


seu primeiro movimento reflexo é o de salvar  Pranzini. Multiplicará, pois,
orações e sacrifícios e mandará celebrar missas por ele. A sua confiança é tão grande
que está certa de que, pela sua oração, Deus terá misericórdiadele, mesmo que o
infeliz não mostre nenhum sinal de arrependimento. No entanto, pede ao Senhor um
sinal para si mesma. Sob o impulso da necessidade, para a qual não há lei, julga não
desobedecer ao ler o jornalLa Croix do dia 1º. de setembro que relata a execução
pública de Pranzini, na prisão da  Roquette. Depois de ter recusado ao princípio o
capelão, o abade Faure, Pranzini mandou-o chamar para beijar o crucifixo antes de
ser guilhotinado.
Depois de ler estes pormenores no jornal, Teresa esconde-se para chorar de
alegria. Obteve o sinal esperado: Pranzini salvou-se! Não duvida um instante que
tenha recebido "a sentença misericordiosa" de quem perdoa aos pecadores
arrependidos, como o bom ladrão.

Este sinal anima-a poderosamente na sua carreira ao Carmelo. Se o senhor


lhe concedeu este grande pecador, quantos outros se seguirão! Não duvida em lhe
chamar o seu"primeiro filho", quando a imprensa da  época — também católica —
o qualificava com toda a espécie de apelativos. De fato, a suavocação será ser
"carmelita, esposa e mãe" (Ms B 2v), pois a virgindade consagrada não é
esterilidade, mas fertilidade espiritual.

O Verão de 1887 está, pois, iluminado  com grandes graças. Com a sua


irmã Celina — de dezoito anos — Teresa diz viver "o ideal da felicidade". No
mirante, pela tarde, falam extensamente e recebem grandes graças:  "Parece-me
que recebíamos graças de ordem tão elevada como as concedidas aos grandessantos
(...) Como era transparente e tênue o véu que escondia Jesus aos nossos
olhares!... A dúvida não era possível; a fé e a esperança já não eram necessárias: o
amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que procurávamos" (Ms A 48r). São
"irmãs de alma", como as jovens evocadas por São João da  Cruz (Cântico
espiritual. 25): "Apressam-se as donzelas, sobre as tuas pegadas no caminho",
seguindo os passos de Jesus. Teresa  não duvida escrever que recebiam graças tão
elevadas como Mônica e seu filho Agostinho em Óstia (cf. Ms A 48r).

Por outro lado, obtém do seu confessor poder comungar quatro vezes


por semana, coisa bastante rara no seu tempo. Desejará  sempre a comunhão diária
durante toda a sua vida, mas não o conseguirá.

Antes de pedir a autorização ao seu pai para entrar no Carmelo, tinha que


transpor outros obstáculos muito mais difíceis.

Lutar pelo Carmelo

Em princípio tem que conseguir licença do seu tio Isidoro Guérin, tutor
das suas sobrinhas mais novas. Quatro meses depois de ter falado com o seu pai,
faz diligências junto do farmacêutico, que a acha demasiado nova para levar esta
vida de "filósofo". Nunca antes dos dezessete anos! Cidadão importante de
Lisieux, teme as críticas e os rumores da cidade. Mostra-se intratável.

Deixa Teresa mergulhada em lágrimas e passa três dias de angústia. Pela


primeira vez não será a última - entra na noite, compro va o sono de Jesus que cala,
que parece tê-la abandonado (cf. Ms A 51r). É a primeira  experiência forte de
purificação. Estes três dias de agonia - Teresa lembra-se de Getsêmani -
acabam-se graças a um pequeno "milagre". Efetivamente, Paulina foi
o instrumento. Escreveu ao seu tio uma carta convincente: crê, como a madre
Maria de Gonzaga, a priora, na vocação da suajovem irmã.

No sábado, dia 22 de Outubro, o tio  Isidoro recebe Teresa com afeto e


dá-lhe o seu consentimento. Teresa julga ter chegado à meta. Por desgraça, no
Carmelo sabe-se que o superior, o Pe. Delatroëtte, se opõe totalmente à sua
entrada. Nunca permitirá antes dos vinte e um anos! -Oposição invencível"
que transtorna a postulante. Acabava de estar envolvido num assunto difícil com a
famíliaFleuriot, cuja filha Joana tivera que abandonar o Carmelo depois de alguns
meses... O padre superior não se queria expor novamente a críticas; tanto mais,
porque a pequena Martin tinha estado doente. Era considerada delicada e o doutor
de Cornière, médico do Carmelo, era desse parecer: não aprovava a sua entrada.
Apesar das diligências de Luís Martin acompanhado de Teresa e de Celina, o Sr.
Delatroëtte mostrava-se irredutível.

Novas lágrimas de Teresa, que decide ir ver o bispo Dom Hugonin, em


Bayeux. No seu coração, contudo, já sabe que vai em peregrinação a Roma e espera
falar ao papa. No dia 31 de Outubro. o Sr. Martin leva-a ao  bispo de Bayeux para
se entrevistar com ele. Chove abundantemente (mau presságio paraTeresa), e na
catedral abarrotada celebra-se o funeral da senhora Otávia Felicidade  Quesnault
de Grondière. O Sr. Martin, na sua simplicidade, a fez avançar vestida de branco
até detrás do altar-mor.

Depois de uma triste refeição num bom restaurante da cidade, o Pe.


Révérony, vigário geral, recebe os Martin e apresenta-os diante do bispo Hugonin.
Teresa leva um guarda-chuva branco e prendeu o cabelo  para parecer ter mais
idade. Explica o seu projeto, mas o Bispo julga que ainda temtempo. Tanto
mais quanto duas das suas irmãs já estão no Carmelo. Julgava que fazia um favor
ao Sr. Martin, mas estranha vê-lo disposto a este novo sacrifício.

Como falam da peregrinação a Roma para visitar o papa Leão XIII, o


Bispo diz que lhes dará a resposta quando estiverem na Itália. À saída do
encontro com o bispo, vem a decepção: nova diligência inútil.
Chora abundantemente. Mas é tempo de pensar  nesta grande viagem a Roma: a
partida estáfixada para o dia 4 de novembro.

Uma peregrinação animada

A peregrinação foi organizada pela diocese de Coutances, sob a direção do


bispo Germain. A diocese de Bayeux e Lisieux associa-se, mas o bispo Hugonin
é representado pelo Pe. Révérony. Era para celebrar o jubileu de Leão XIII (bodas
sacerdotais); tanto mais que o papa sofria as expoliações  anti-clericais do governo
Crispi. Era, pois, a ocasião para oferecer ao Santo Padre uma  consolação de fé
ultramontana.

A v i a g e m e s t a v a p r e v i s t a d e 7 d e   novembro a 2 de dezembro de
1887; visitariam numerosas cidades italianas e estariam dez dias em Roma, com
audiência papal. Era a ocasião ideal para a jovem Teresa, que queria falar ao papa do
seu desejo de entrar no Carmelo no Natal.

A peregrinação constava de 197 peregrinos, dos quais a quarta parte


pertencia à nobreza. O preço da viagem, 600 francos na primeira classe, podia ser
desestimulante. Uns setenta e cinco sacerdotes participavam na peregrinação.
Como a viagem era bastante excepcional, estava coberta pela imprensa francesa
e italiana, sem esquecer as referências da mesma que vieram a ser publicadas nos
"Semanários religiosos" das respectivas dioceses.
Este mês fora de Calvados será de uma  importância decisiva para a
formação e a vocação da jovem Teresa. Até o seu leito de morte, evocará recordações
desta grande viagem, excepcional na época para uma adolescente da sua idade.

Em princípio, será a descoberta de outras regiões, de outros países, de


paisagens tão novas para a jovem normanda: Suíça, Itália com as suas famosas
cidades: Milão, Pádua, Veneza, Bolonha, Pompéia, Nápoles, Florença, Pisa,
Gênova... Tesouros da arte, da história. Enriquecimento da vida religiosa: o papado,
em Roma, os diferentes santos encontrados: Inês, Cecília, Francisco de Assis,
Carlos Borromeu. Todas estas impressões ficarão indeléveis na jovem carmelita.

Tudo tinha começado com três dias de visitas em Paris. Muitos consideravam


então a capital como uma "Babilônia moderna", cheia de terríveis perigos. As
duas irmãs Martin visitaram diversos monumentos célebres, subiram nos elevadores
dos armazéns Printemps, desceram aos Campos Elíseos.

O encontro com outros setores da sociedade também não resultará sem


conseqüências para Teresa. Nos fins do século XIX, as divergências sociais da
sociedade francesa são ainda muito assinaladas. Os Martin procedem de uma
categoria artesanal que triunfou à força do trabalho e de poupanças
naadministração dos seus bens. Mas não freqüentavam a nobreza. Pois bem, eis
que Teresa, habitualmente tão tímida, incluída num grupo social muito diferente
do seu.

Dito noutros termos simples, Teresa descobre que "a verdadeira grandeza se
encontra na alma e não no nome" (Ms A 56r). Sente-se muito bem nos serões
dos hotéis de Veneza ou de Roma. A cura do Natal de  1886 deu frutos que
permanecem.

Outra descoberta, mais surpreendente, refere-se aos homens. Rodeada de


irmãs, de primas (as Guérin, as Maudelonde), Teresa quase que não conheceu
rapazes. Agora, encontra muitos na viagem. As duas filhas Martin, no esplendor
da sua juventude (têm quinze e dezoito anos), muito elegantementevestidas, não
podiam passar desapercebidas.

Celina recorda: "combinavam-se casamentos...". Teresa dá-se conta de


que poderiaf a c i l m e n t e t e r u m b o m c a s a m e n t o .   Compreende-se que
pressentisse que a viagem não seria indiferente para a sua vocação. A atenção dos
homens para com ela adquire inclusive uma forma mais insistente.  Quando
escreve que Bolonha não lhe deixou uma boa recordação é porque o comboio
daperegrinação francesa era esperado por uma nuvem de estudantes italianos. Na
estação, um deles tomou Teresa nos braços, e levava-a consigo... mas Teresa
lançou-lhe um tal olhar que a soltou imediatamente (VT n. 81, p. 38).

Outra experiência que afetará profundamente a futura carmelita é a


convivência com os sacerdotes. Até esse momento não os tinha visto senão no
exercício das suas funções sacerdotais, no altar, no confessionário, na catequese.
Considerava-os "anjos" e não compreendia porque razão Santa Teresa de Ávila
convidava, na sua Reforma da vida  carmelitana, a rezar pelos sacerdotes.
A jovem Teresa Martin compreendia que se rezasse pelos pecadores... mas,
pelos sacerdotes? Dirá que descobriu a sua vocação na Itália: "Durante um mês
convivi com muitos sacerdotes santos, e vi que, se a sua sublimedignidade os eleva
acima dos anjos, nem por isso deixavam de ser homens fracos e frágeis" (Ms A
56r).

Que pôde ver que a tenha escandalizado? Sem dúvida, nada grave. Mas
esta vida comum demonstra-lhe com realismo que os sacerdotes são homens
com o seu gênio, os seus defeitos, o seu gosto pela esquisita  carne italiana
regada com vinhos suaves.

Pode também sofrer — o resultado o demonstrará — a falta de fervor na


celebração dossacramentos, especialmente da Eucaristia.

Todas estas experiências tão novas, vividas apenas num mês, ensinaram
muitíssimo a jovem Teresa. Escreverá sobre a viagem: "instruiu-me mais por si só
do que longos anos de estudos".

Mais ainda, foi para ela uma experiência interior de primeira importância.


Quando começa a viagem sabe que, em certo sentido, está em jogo a sua vocação
por causa das distintas tentações já mencionadas, e tam bém porque se sente
observada pelo Pe. Révérony, encarregado pelo bispo Dom Hugonin de o
informar sobre a jovem postulante e das suas atitudes em relação à vida de
clausura.

Desde o princípio da peregrinação, tinha-a afetado um acontecimento


interior. Em Paris, Luís Martin tinha reservado os quartos de um hotel perto de
Nossa Senhora das Vitórias, o famoso santuário venerado pelas famílias Guérin e
Martin. Nele, a jovem recebe uma grande graça: a Virgem a fazcompreender
que fazia mal em guardar a "dor de alma" desde os quatro anos. Não, a Virgem
não queria falar-lhe da graça de 13 de maio de 1883, Teresa não tinha traído
o segredo de Maria. Não, Teresa não o imaginou: "A Santíssima Virgem fez-me
sentir que tinha sido verdadeiramente ela que me tinha sorrido e me tinha curado"
(Ms A 57r).

Teresa fica aliviada, liberta. Apresentando-lhe os perigos da viagem, confia a


sua pureza a Maria e a São José (Ms A 57r).

No domingo, dia 6 de Novembro, os peregrinos visitam a cripta de


Montmartre (a basílica não estava acabada). Consagração dos peregrinos ao
Sagrado Coração. Pode continuar...

Falar com o papa

O sonho espiritual da peregrinação era evidentemente a esperada audiência


com o papa Leão XIII. Não se sabia a sua data exata. A intensa
correspondência com Lisieux (o correio entre a França e a Itália  era muito
rápido neste tempo) demonstra a impaciência e a dúvida: deve falar ou não
ao papa? Paulina que comanda as operações, vacila. Definitivamente, a resposta é
"Sim".
Chega o grande dia, domingo, dia 20 de novembro. Cerimonial longo e
complicado: depois de duas missas, Leão XIII recebe um longo desfile de
peregrinos. Primeiro as senhoras, os sacerdotes, depois os cavalheiros.

O papa emagrecido está cansado. O Pe. Révérony, vigário geral, que está a


seu lado, proíbe-a de falar com o santo Padre. Teresa, que vai passar diante dele,
duvida. Mas a intrépida Celina anima-a: "Fala!".

A pobre Teresa lança-se aos joelhos de Leão XIII: "Santíssimo Padre,


tenho uma grande graça a pedir-vos!... permita-me que entre no Carmelo aos
quinze anos!...". O ancião não entende bem, intervém o Pe.  Révérony e
explica-lhe. Teresa insiste: "Oh! Santíssimo Padre! Se vós dissésseis que sim,toda a
gente concordaria!" O Papa olhou-a fixamente com os seus olhos negros e
profundos: "Se Deus quiser, entrará!". Teresa  mantém-se ajoelhada. Dois
guardas nobres levantam-na e levam-na, com lágrimas, até à porta (Ms A 62-63).
Celina, de joelhos, implora a bênção do papa para o Camelo de Lisieux. O Pe.
Révérony impacienta-se: estas jovens Martin são muito obstinadas.
No entanto, quando alguns instantes depois Luís Martin se apresenta por sua vez
— ele não viu o incidente — o vigário geral é muito amável e indica a Leão XIII que
aquele cristão é pai de duas carmelitas. O papa dá-lhe a bênção  impondo a mão
na cabeça. Mas o R Révérony não informou que era o pai das duas jovens que há
um momento tinham insistido.

Celina, ressentida, declarou que a audiência fora um "fiasco". Nessa


mesma tarde Teresa escreve a Paulina e conta-lhe o seu pesar e as suas lágrimas.
Mesmo assim, abandona-se ao Menino Jesus, como a sua bolinha. "O papa está tão
velho que parecia morto, nunca o teria imaginado assim, ele não pode dizer quase
nada, é o Pe. Révérony quem fala" (Ct 36).

Este não guardará rancor à futura postulante pelo incidente da audiência.


Efetivamente, todos os peregrinos aceitaram e consideraram com simpatia a
"pequena carmelita". O jornal I'Univers do dia 24 de novembro publicará a notícia.
Assim tomará conhecimento o abade Lepellier, confessor de Teresa em Lisieux.
Nunca lhe tinha falado disto. Jesus era o seu único Diretor: "Eu demorava muito
pouco a confessar-me, e nunca dizia uma só palavra dos meus sentimentos
interiores. O caminho por onde seguia era tão direito, tão luminoso, que
não precisava de outro guia a não ser Jesus..." (Ms A 48v).

Perante o olhar escrutinador do vigário geral que avaliava as atitudes


da futura carmelita, Teresa teria podido adotar uma atitude estudada, aspecto
piedoso e olhos baixos. No entanto, mostrou-se natural,  cheia de vida, curiosa
por todas as maravilhas da viagem, inclusive depois do fracasso do dia 20 de
novembro. O Pe. Révérony tinha discernido. Por fim, acreditou na sua votação e no
caminho de regresso, em Nice, prometeu-lhe defender a sua causa diante do bispo
Dom Hugonin.

O regresso foi menos alegre, mas não  menos interessante: entre os diversos
santuários, os de Nossa Senhora da Guarda, em Marselha, e o Fourvière, em Lión,
acolheram os peregrinos.
No dia 2 de dezembro, Lisieux volta a ver os Martin. Podemos imaginar tudo o
que se contou no locutório do Carmelo. Quanto ao essencial, no entanto, tudo
continuava obscuro: o bispo Dom Hugonin não tinha dito nada  na Itália. Dentro de
vinte e dois dias seria o Natal. Cumprir-se-ia à letra o desejo de Teresa de entrar
nesse dia no Carmelo?

A l u t a c o n t i n u a , a o a s s a l t o d o P e .   Delatroëtte, sempre intratável.


Teresa escreve ao Pe. Révérony, depois ao bispo. Resta  esperar. Todos os dias
Luís Martin acompanha a sua filha aos correios até ao dia 24 de dezembro: que
decepção dia após dia!

Chega por fim o Natal de 1887 há tanto tempo esperado. Que contraste


com o do ano anterior cheio de luz e de alegria. Na missa  da meia-noite, Teresa
medita na prova da fé, sem perder a esperança, apesar das lágrimas. Compreende
também certamente que não é necessário impor datas ao Senhor: Ele continua a ser
o mestre. Ela não é senão uma "bolinha" nas suas mãos. Neste mesmo
dia, Celina oferece-lhe um barquinho cuja vela leva a palavra: "Abandono". É a
atitude teresiana durante este prolongado período.

Com o ano de 1888 Teresa entra nos seus quinze anos. Uma carta de Paulina
informa-a que no dia 28 de dezembro, festa dos Santos Inocentes, o bispo
Dom Hugonin tinha autorizado a sua entrada no Carmelo de  Lisieux. Mas há
um "mas"... As carmelitas, julgando a candidata muito nova para enfrentar a
quaresma logo de entrada, decidiram atrasá-la três meses. À alegria, pois, mistura-
se uma amarga decepção. Teresa, não obstante, aceita esta nova provação que a
faz "crescer muito no abandono e nas  outras virtudes" (Ms A 68r).

A jovem receberá algumas aulas em casa da senhora Papinau para aperfeiçoar


a sua formação. Mas, sobretudo, preparar-se-á para a vida que a espera. Não com
grandes penitências, mas com a fidelidade às pequenas coisas, com mortificações da
sua vontade "sempre pronta a impor-se", "prestando pequenos serviços, sem querer
nada em troca". "Com a prática destes nadas, me preparei para ser a noiva de
Jesus..." (Ms A 68v). Ao fim e ao cabo, estes três meses passaram depressa
e deixaram-lhe uma grata recordação.

O seu pai, sempre disposto a viajar, propõe-lhe uma peregrinação à Terra


Santa. O seu primeiro impulso leva-a ao desejo de conhecer os lugares onde Jesus
viveu. Ela tem um sentido tão realista da Encarnação! Mas isso, obrigava-a a
atrasar dois ou três meses a entrada. Coisa que não pode aceitar depois de ter lutado
tanto para entrar o mais rapidamente possível. Tem dúvidas sobre a sua decisão? Não
lhe parece. O regresso de Leônia, que sai da Visitação de Caen no dia 6 de janeiro
— segundo fracasso depois do das clarissas —, recorda-lhe que não será fácil. A
sua irmã diz-lhe que reflita bem antes de entrar na vida religiosa, não
pode comprometer-se de ânimo leve. Mas Teresa está determinada; ela diz
mesmo que "não tem nenhuma ilusão" (Ms A 69v).

Apesar das aparências, tinha já uma forte experiência da vida com Jesus,


das graças e dos sofrimentos que isto implicava. Tinha  conhecido e passado por
múltiplas purificações, experimentado o que é ser salva pela  graça. Interessava-
lhe apenas uma coisa: viver escondida com o seu futuro Esposo, "ama-lo
e fazê-lo amar". Embora tivesse pressentimentos sobre a brevidade da sua  vida,
não podia saber que a sua presença no Carmelo não passaria de nove anos. O
tempo de uma "corrida de gigante" (Ms A 44v).

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TERESA NOS FALA:

Para a Cidade eterna

"Depois de nos termos consagrado ao Sagrado Coração na basílica de


Montmartre, partimos de Paris na segunda-feira, dia 7, logo de manhã. Depressa travamos
conhecimento com as pessoas da peregrinação. Eu, tão tímida, que ordinariamente mal
ousava falar, achei-me completamente livre desse incômodo defeito. Com grande surpresa
minha, falava livremente com todas as nobres senhoras, com os sacerdotes, e até com o
Senhor Bispo de Coutances" (Ms A 57r).

"Antes de chegarmos a esta «Cidade Eterna», termo da nossa peregrinação, foi-nos


dado contemplar muitas maravilhas. Em primeiro lugar foi a Suíça, com as suas
montanhas, cujo cimo se perde nas nuvens; com as suas graciosas cascatas jorrando de mil
maneiras diferentes; com os seus profundos vales cheios de folhagens gigantescas e de
urzes cor-de-rosa. Ah! minha querida Madre, como essas belezas da natureza, espalhadas
em profusão, fizeram bem à minha alma! Como a elevaram para Aquele a quem agradou
espalhar semelhantes obras-primas numa terra de exílio que não durará mais que um dia...
Não tinha olhos que chegassem para contemplar. De pé, junto da portinhola, quase não
respirava. Quereria estar de ambos os lados do vagão, pois ao virar-me, avistava paisagens
de aspecto encantador e muito diferentes das que se estendiam à minha frente" (Ms A 57v).

"A primeira cidade da Itália que visitamos foi Milão. Admiramos nos seus mais
pequenos pormenores a catedral, toda em mármore branco, com tantas, tantas estátuas que
dariam para formar um povo quase incontável" (Ms A 58r-v).

"Deixando as senhoras tímidas esconder o rosto com as mãos, depois de terem subido
as primeiras torres que coroam a catedral, seguíamos os peregrinos mais ousados, e
chegávamos ao cimo do último campanário de mármore, de onde tivemos o prazer de ver a
nossos pés a cidade de Milão, cujos numerosos habitantes se assemelhavam a um pequeno
formigueiro... Tendo descido do nosso pedestal, começamos os nossos passeios de
carruagem, que durariam um mês e saciariam para sempre o meu desejo de caminhar sem
me cansar! O cemitério extasiou-nos ainda mais que a catedral. Todas as estátuas de
mármore branco, que um cinzel de gênio parece ter animado, estão espalhadas pelo vasto
Campo dos mortos com uma espécie de negligência, o que, quanto a mim, lhes aumenta
o encanto..:” (Ms A 58v)

"Em Veneza o cenário mudou completamente. Em vez do barulho das grandes


cidades, não se ouvem, no meio do silêncio, senão os gritos dos gondoleiros e o murmúrio
da onda agitada pelos remos. Veneza não deixa de ter encanto, mas acho esta cidade
triste. O Palácio dos Doges é esplêndido; no entanto, também ele é triste, com os seus
grandes salões decorados a ouro, a madeira, os mármores mais preciosos e pinturas dos
maiores mestres" (Ms A 59r).
"Fiquei contente ao tomarmos o caminho de  Loreto. Não me admira que a
Ssma. Virgem tenha escolhido este sítio para mudar para lá a sua Casa  bendita. A
paz, a alegria, a pobreza reinam ali como soberanas. Tudo é simples e primitivo. As
mulheres conservaram o gracioso traje italiano, e não adotaram, como as de outras
cidades, a moda de Paris. Enfim, Loreto encantou-me. Que direi da Santa Casa?...
Ah! a minha emoção foi profunda ao encontrar-me debaixo do mesmo teto que a
Sagrada Família, ao contemplar as paredes nas quais Jesus fixara os olhos divinos, ao
pisar a terra que São José regara com o seu suor, onde Maria trouxera Jesus nos braços,
depois de O ter trazido no seu seio virginal... Vi o quartinho onde o Anjo desceu até junto
da Ssma. Virgem; coloquei o meu terço na pequena escudela do Menino Jesus... Que
encantadoras são estas recordações!..." (Ms A 59v).

"Falta-me agora falar de Roma, termo da nossa viagem, onde pensava encontrar a
consolação, mas onde achei a cruz! Quando chegamos era de noite. Tendo adormecido,
fomos acordados pelos empregados da estação, que gritavam: «Roma! Roma!» Não
era sonho. Eu estava em Roma !

O primeiro dia passou-se extramuros. Foi talvez o mais delicioso, porque todos os
monumentos conservam o cunho da antiguidade, ao passo que, no centro de Roma, nos
poderíamos julgar em Paris, ao ver a magnificência dos hotéis e das lojas. Esse
passeio pelas campinas romanas deixou-me uma gratíssima recordação. Não falarei
nada dos lugares que visitamos; há muitos livros que os descrevem amplamente. Falarei
apenas das principais impressões que senti. Uma das mais agradáveis foi a que me fez
estremecer à vista do Coliseu. Estava finalmente a vê-la, essa arena onde tantos
mártires derramaram o sangue por Jesus! Já me preparava para beijar a terra que eles
tinham santificado..., mas, que decepção! O centro não é mais que um amontoado de
escombros, que os peregrinos têm de se contentar em ver de longe, porque uma barreira impede
a entrada. Aliás, ninguém é tentado a procurar penetrar no meio daquelas ruínas... Haveria eu de
ir a Roma sem descer ao Coliseu?" (Ms A 60r-v).

"O Papai olhava para nós muito admirado com a nossa audácia, e logo nos
mandou voltar. Mas as duas fugitivas já não ouviam nada. Assim como os guerreiros
sentem aumentar a coragem no meio do perigo, assim aumentava a nossa alegria, em
proporção com o esforço que fazíamos para atingir o objeto dos nossos desejos. A Celina,
mais previdente do que eu, tinha escutado o guia, e, lembrando-se de que ele acabava de
indicar um certo pequeno pavimento em forma de cruz, como sendo onde os mártires
combatiam, pôs-se a procurá-lo. Daí a pouco, tendo-o encontrado, e tendo-nos ajoelhado
nessa terra sagrada, as nossas almas uniram-se numa mesma oração..." (Ms A 61 r).

"As Catacumbas deixaram-me também uma impres são muito doce. São
exatamente como as tinha imaginado ao ler a descrição delas nas vidas dos mártires. A
atmosfera que aí se respirava parecia-me imbuída de urna tão suave fragrância, que, depois de
lá ter passado uma boa parte da tarde, tinha a impressão de estar ali apenas há alguns
instantes" (Ms A 61r-v).

"No dia seguinte ao daquela data memorável, tivemos de partir de manhãzinha para
Nápoles e Pompéia. Em nossa honra, o Vesúvio bramiu todo o dia, deixando escapar, com os
seus tiros de canhão, uma espessa coluna de fumaça. Os vestígios que deixou nas ruínas
de Pompéia são aterradores. Mostram o poder de Deus que olha para a terra e a faz tremer,
que toca as montanhas e as reduz a fumo» (Sal 103,32). Teria gostado de passear sozinha no
meio das ruínas, a sonhar com a fragilidade das coisas humanas, mas o número
dos viajantes roubava grande parte do encanto melancólico da cidade destruída... Em
Nápoles, sucedeu-se exatamente o contrário. O grande número de carruagens de dois cavalos
tornou magnífico o nosso passeio ao mosteiro de São Martinho, situado numa elevada
colina que domina a cidade inteira. Infelizmente, os cavalos que nos levavam, muitas vezes
não obedeciam ao freio, e mais do que uma vez julguei ter chegado a minha última hora "
(Ms A 64v-65r).

"Em Florença, fiquei contente por contemplar Santa Madalena de Pazzi, no


meio do coro das Carmelitas, que nos abriram a grade grande. Como não sabíamos
que (íamos gozar deste privilégio, e desejando muitas pessoas tocar os seus terços no
túmulo da Santa, eu era a única a conseguir passar a mão através da grade que dele nos
separava; e assim toda a gente me trazia terços, e eu senti-me muito orgulhosa com o meu
ofício... Tinha de arranjar maneira de tocar em tudo. Assim, na igreja de Santa Cruz de
Jerusalém (em Roma), pudemos venerar vários fragmentos da verdadeira Cruz dois
espinhos e um dos sagrados cravos, encenado num magnífico relicário de ouro
trabalhado, mas sem vidro. Por isso, encontrei o modo de, ao venerar a preciosa
relíquia, introduzir o meu dedo mínimo num dos orifícios do relicário, e pude tocar no
cravo que foi banhado pelo sangue de Jesus..." (Ms A 66r-v).

"Um dia, em que visitamos um convento de Religiosos Carmelitas, não me


contentando em seguir os peregrinos pelas galerias exteriores, avancei pelos claustros
interiores... De repente, vi um bom velho Carmelita que, de longe me fazia sinal para
me afastar. Mas em vez de ir embora, aproximei-me dele e, apontando para os quadros
do claustro, fiz-lhe sinal de que eram bonitos. Reconheceu, sem dúvida, pelo meu cabelo
caído sobre as costas e pelo meu aspecto jovem que eu era uma criança. Sorriu-me
com bondade, e afastou-se, ao ver que não tinha diante dele uma inimiga. Se soubesse
falar italiano, ter-lhe-ia dito que era uma futura Carmelita, mas, por culpa
dos construtores de Babel, foi-me impossível.

Depois de termos ainda visitado Pisa e Gênova, regressávamos a França. Nesse


trajeto, o panorama era magnífico. Umas vezes seguíamos à beira do mar, e o caminho de
ferro passava tão perto dele, que me parecia que as ondas nos iam atingir. (Esse espetáculo
foi causado por uma tempestade. Era à tardinha, o que tornava a cena ainda mais
imponente). Outras vezes íamos através de planícies cobertas de laranjeiras com frutos
maduros, de verdes oliveiras de folhagem escassa, de graciosas palmeiras... Ao
anoitecer, vimos numerosos pequenos portos de mar iluminarem-se com uma multidão
de luzes, enquanto no céu cintilavam as primeiras estrelas...” (Ms A 66v-67r)
TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA-
AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd
PARTE II
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O CARMELO DA FRANÇA: ORIGENS E ESPÍRITO

S TEP H AN E- MA RIE M O RG A IN ocd

No dia 15 de outubro de 1604, chegavam a Paris, provenientes de Espanha,


seis carmelitas descalças(quatro espanholas: Ana de Jesus, — Lobera —, Ana de São
Bartolomeu, — Garcia —, Isabel dos Anjos, —Marques Mexia —, Beatriz da
Conceição; e duas .flamengas: Leonor de São Bernardo e Isabel de SãoPaulo, de
Chavaira). Com a sua chegada atingia-se a difícil meta da primeira fundação do
Carmelo teresiano na França e inaugurava-se uma extraordinária aventura.

A idéia de abrir na França um mosteiro reformado por Santa Teresa de Jesus


não era nova. Ela surgiucasualmente em 1583, quando, no locutório
do Carmelo de Sevilha, a Madre Maria de São José (Salazar) se encontrava com
João de Quituanadueñas de Brétigny um jovem de Rutin, de
descendênciaespanhola. O projeto, apoiado em outubro de 1585 por Nicolau de
Jesus Maria (Dória), então Provincial dos Carmelitas Descalços, esbarrou com os
conflitos internos na França. Esta, destroçada pelas guerras de religião, procurava
com angústia um rei católico capaz de restabelecer a unidade do Reino e diligenciar
novas relações com Espanha.

Antes de renunciar definitivamente ao seu propósito de fundar, João de


Brétigny esperou pelo momento propício, traduzindo, entre 1601 e 1602, os escritos
de Santa Teresa publicados em espanhol no ano de 1588.Sucessivamente foram
aparecendo os três volumes: o Livro da Vida, o Caminho de Perfeição e Avisos,
oCastelo Interior. Por fim, publicou em francês a Vida da Madre Teresa de Jesus,
escrita por Francisco deRibera em 1590. Adiantando-se às suas filhas, a  Madre
Teresa de Jesus ia conquistar o coração dosfranceses. O efeito foi imediato.

Um grupo de católicos parisienses, simpatizante da União e hostil ao Edito de


Nantes, unido pelas idéias, mas também frequentemente pelo sangue, esforçava-se por
apoiar a renovação espiritual da França, jácansada de querelas religiosas. Barbe
Avrillot, esposa de Pierre Acarie, era a alma deste impulso renovador. À sua volta,
nos salões da sua mansão, na Rua dos Judeus, reunia homens e mulheres,
aristocratas,parlamentares, eclesiásticos, doutores da Sorbonne e estudantes, todos
animados pelo mesmo zelo reformador. Michel de Marillac encontrava-se ali com
René Gaultier, André Duval, Philipe de Gamaches,  François Tremblay,
Dom Richard Beaucousin, Benoit de Canfled, Philippe de Bérulle.

Sensível à intuição de Santa Teresa, esse reduzido areópago, com a ajuda


momentânea de Francisco de Sales, decidiu avançar para a fundação. Em Paris,
a senhora Acarie encarregava-se de formar as candidatas que já se apressavam
para entrar; simultaneamente, Catarina de Orleans, princesa de
Longueville, procurava casa para o futuro convento. Na Espanha, João de Brétigny
instava junto dos Carmelitas para que deixassem partir monjas que, tendo
conhecido a Madre Teresa, estivessem em condições de implementar na França a
Reforma começada além Pirineus. Em Roma, Denis de Santeuil obtinha a bula de
ereção, inspirando-se na que regia o convento das  Carmelitas de Roma,
fundado em 1597. No dia 18 de Julho, Henrique VIII concedia o despacho real para
a entrada das Carmelitas, e a 13 de novembro de 1603 expedia-se a bula pontifícia.
Conforme à petição dos franceses, as Carmelitas de Paris seriam governadas p o r
t r ê s s u p e r i o r e s e c l e s i á s t i c o s — J a c q u e s   Gallemant, André Duval e Pierre
de Bérulle, sendo seu Visitador o prior da Cartuxa, enquanto aguardavam a
chegada dos Carmelitas. Esta combinação será alterada em 1606 e em 1614, data em
que Pierre de Bérulle é nomeado, por Paulo V Visitador perpétuo  da s
C a rm el i ta s da F r an ça . O s C ar me li t as da   Congregação da Itália, chegados a
Paris em 1611, não podiam, conforme as suas Constituições, enca rregar-se do
governo das monjas. Estava tudo preparado; só faltavam as Carmelitas. Depois de
muitos adiamentos, dificuldades, artimanhas e impaciência, a ponto de ser
necessária a intervenção direta de Pierre de Bérulle e os repetidos conselhos da
senhora Acarie, chegaram finalmente a Paris, radiantes por estender o ideal
carmelitano.

O choque entre mentalidades, costumes e espiritualidades foi brutal, sem


chegar a ser violento. As carmelitas espanholas, convencidas de que iam
morrer mártires nesta terra herética, ficaram admiradas pelo excelente acolhimento
que lhes dispensaram. Além das Constituições de Alcalá de 1588, levavam consigo,
como um viático, a sua piedade barroca, exuberante e cheia de cor. Descobriram a
devoção austera, clássica, desprovida de espontaneidade, mas não de graça, dos
franceses. A iconografia aristocrática da Escola francesa contrastava com as figuras
surpreendentes de Cristos nu Nossa Senhora, cobertas de bordados e brocados.

Desde a expulsão dos jesuítas (1594), os franceses escolheram os capuchinhos


para a direção espiritual. Laurent de Paris, Archange de Pembrocke, Honoré de
Champigny, Joseph de Tremblay, mas sobretudo Benoit de Confled, marcaram
profundamente este período, dando-lhe a sua orientação mística. Educaram as futuras
carmelitas na «unidade experimental do espírito», na vontade essencial de Deus».
Esta mística da essência, que depende principalmente da Teologia Mística de
Harphius e dos escritos de Ruysbroec, não ajudava bem os franceses a prepararem-se
para entrar na espiritualidade teresiana caracterizada pela Humanidade de Cristo,
o “trato de amizade”, a relação simples e desprovida de ostentação entre a alma e Deus.
Pierre de Bérulle, formado na mesma escola, mas com um espírito independente,
impregnado da teologia da Patrística e dos escritos do pseudo Dionísio, também não
estava preparado para compreender logo ao princípio o que asfundadoras espanholas
lhe queriam transmitir. Contudo, Ana de São Bartolomeu, ajudada pelas demais
carmelitas, conduzirá Pierre de Bérulle à contemplação do mistério do Verbo
encarnado. Por suavez, Pierre de Bérulle dará à Cristologia de Santa  Teresa uma
nova e elaborada interpretação.

As dificuldades espirituais podiam superar-se facilmente. Bérulle trabalhou pela


expansão das monjas, eestas colaboraram alegremente com ele. Ana de
São Bartolomeu e Madalena de São José (de FontainesMarans) animaram o
prelado a fundar uma  Congregação de sacerdotes (1611) — o Oratório de Jesus e
Maria — para se ocuparem das Carmelitas. Bérulle deu à sua Congregação uma
missão diferente. O choque entre Bérulle e alguns mosteiros de C armelitas
chegou a ser violento devido a questões jurídicas. Os Carmelitas, presentes na França
desde 1611, pensavam poder conseguir o governo das Irmãs, conforme o expresso
no artigo primeiro das Constituições de Alcalá. Nesta reivindicação eram apoiados
por certas prioras, desejosas de ver, neste assunto, a vontade de Santa Teresa, cumprida à
letra. Mas as Constituições dos Padres, as Bulas, os Breves pontifícios, o Papa, o Geral
da Ordem davam razão a Bérulle e confirmavam-no na sua fundação. A disputa
passou, então, para um problema teológico.

No dia 5 de junho de 1615, Bérulle obrigava as Carmelitas de Chalon a fazer


um voto de escravidão essencial a Nossa Senhora. Desconhecedoras de distinções
teológicas e assustadas com a complexidade do formulário, as monjas alarmaram-se.
Bérulle, convencido de introduzir na sua espiritualidade mariana as Irmãs a quem iria
cuidar, quando reconheceu o seu erro já era tarde demais. O mandato foi anulado. Os
Carmelitas aproveitaram-se deste documento defeituoso para o condenar;
demonstrando deste modo a incapacidade de Bérulle para governar as Carmelitas.
O assunto dividiu os conventos, perturbou o Rei, incomodou o Papa, que contava  com
os Oratorianos para reformar o clero, irritou os Bispos, zelosos da sua autoridade
sobre os conventos de estrita clausura. A devoção difundiu-se então com bastante
discrição. Bérulle, acabrunhado pelas calúnias, ganhou o pleito e os Carmelitas
foram castigados.

Bérulle não podia contribuir para uma formação  teresiana autêntica das
Carmelitas. Conheceu a Madre Teresa demasiado tarde. Pelo contrário, favoreceu
a implantação da Ordem na França e, apesar da crise, estimulou o seu dinamismo.
Foi no convento que as Carmelitas aprenderam a conhecer a sua fundadora. O papel
das Madres espanholas era insubstituível. Por outra parte, muito tempo depois, Teresa
doMenino Jesus sonhou com Ana de Jesus e reconheceu-a perfeitamente.

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O CARMELO DE LISIEUX

GENEVIEVE DEVERGNIES OCD

A fundação do Carmelo de Lisieux poderia ter  lugar no "Livro das


fundações" de Santa Teresa: os seus começos foram tão épicos.
Duas jovens de Pont-Audemer, Atalia e Désirie Gosselin, aspirantes à
vida religiosa carmelitana, decidem dedicar a sua fortuna, um tanto modesta, a
construir um Camelo. O Sr Dancel, bispo de Bayeux, orienta-as para Lisieux,
dando-lhes como futuro superior um sacerdote lexoviense, sulpiciano,
Pierre Sauvage, vigário na igreja de São Tiago.

É assim como no dia 16 de março de 1838 a dili gência deixa na pousada da


pequena cidade as quatro noviças da Normandia e duas carmelitas professas de
Poitiers: Irmã Isabel de São Luís que assumirá o priorado e a Irmã Genoveva de Santa
Teresa, nomeada sub-priora e mestra de noviças. A madre Isabel morreu quatro anos
depois. A Irmã Genoveva recebe então o cargo de priora, em 1842. Exercê-lo-
á, exceto nos intervalos previstos pelas Constituições, até 1886. Deste modo, é
considerada como a autêntica fundadora do Carmelo de Lisieux.

O Carmelo começa a construir-se. Nenhum problema para se instalar ali umas


semanas antes. Debaixode um aguaceiro, um carro coberto transporia as viajantes, ao
lado do rio em Beuvillers, para a casa da Sra. Le Boucher, viúva acolhedora e
generosa, que se oferece para alojá-las em sua casa.

No dia 24 de agosto de 1838, o novo bispo de  Bayeux, o Sr Robin, benze a


capela do Carmelo sob a invocação de "Maria concebida sem pecado". Mais  tarde,
terá, ainda, como titulares "o Sagrado Coração de Jesus" e... "Santa Teresa do
Menino Jesus".

No dia 5 de setembro, o embrião da comunidade desloca-se para a rua de


Livarot, numa casa antiga —que dará lugar ao Carmelo atual — um pouco grande. No
dia 16 do mesmo mês, as duas irmãs Gosselin e Carolina Guéret professam. No dia 19
de março de1839, festa de São José, apresenta-se a primeira postulante.

A comunidade vive em autêntica pobreza, quase na miséria. As provações


abatem-se sobre ela, mas o convento avança rapidamente na espiritualidade; a tal
ponto que, a partir de 1861, a Irmã Filomena da Imaculada Conceição pode
abandonar Lisieux, acompanhada por outras três irmãs da sua comunidade, para
ir fundar em Saigon o primeiro Carmelo de missão no Extremo Oriente. Os laços
entre os dois conventos foram sempre muito fortes. O abade Sauvage recolhe, por
toda a França, os fundos necessários para a construção da capela do  Carmelo. No
dia 6 de setembro de 1852, o Sr bispoRobin benze este novo santuário. O padre
Pierre Sauvage morre uns meses mais tarde, em abril de 1863. As carmelitas
conseguem que o enterrem na sua capela, edificada com os seus desvelos, muito
perto da grade do coro. Algum tempo depois, no tempo em que é pároco de São
Tiago, o cônego Delatroette será também superior do Carmelo, de 1867 a 1895.

Até 1858 a madre Amada de Jesus — que substitui três anos a madre


Genoveva à frente do Carmelo de Lisieux — não pôde construir a primeira grande
ala do convento; e a madre Maria de Gonzaga—que sucederá à madre Genoveva de
Santa Teresa — dedica-se desde 1876 a dar ao convento a sua forma definitiva.

Quando Teresa entra no Carmelo em 1888, faz onze anos que o convento


está terminado. Foram necessários uns quarenta anos para edificá-lo completamente.
Situado ao fundo de uma depressão, perto do Orbiquet, o convento que se levanta
na rua de Livarot, no centro da velha Lisieux, apresenta um conjunto de construções
geométricas com tijolos vermelho escuro. O quadrado conventual está construído ao
lado da capela e do coro das irmãs; em ambos os lados estão edificadas duas alas de
edifícios; o quarto lado arremata o conjunto com arcadas de canhão, de
proporções harmoniosas, com um claustro de estilo o mais sim ples possível. Um
calvário de granito — ereto em 1877 — domina o pátio. O jardim, limitado pelo
curso do Orbiquet de águas lodosas e das propriedades  vizinhas, é estreito. Uma
bonita e pequena alameda de castanheiras estende-se ao longo de um
pequeno "prado", plantado com algumas pereiras. A jovem  carmelita gostará
desta pequena paisagem familiar.

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AS DUAS TERESAS, MÃE E FILHA

TOMÁS ALVAREZ ocd

Perguntou-se mais de uma vez se as duas Teresas se parecem em algo mais


que no nome e na vocação ao Carmelo.

Pergunta banal, à primeira vista. Como se estivesse formulada não sobre as


duas pessoas e a sua história, mas sobre duas estampas justapostas: o retrato
da Madre Teresa feito em Sevilha pelo leigo Frei João da Miséria, e as fotografias de
Teresinha tiradas pela câmara de Celina. Efetivamente, a Teresa de 61 lon gos anos
mal desenhada pelo pintor leigo, e a  Teresinha de 23, em pose algo estática
perante agrande máquina fotográfica, não coincidem no rosto, no olhar, nos modos,
mas no hábito e no nome gravado ao pé da estampa.

E, no entanto, a pergunta não é superficial como parece. Nas vidas paralelas,


segundo o esquema clássico do escritor grego, semelhanças e dessemelhanças
contrapõem-se. Todos nos parecemos no essencial. Eé no essencial onde mais nos
diferenciamos, quer dizer, nesse núcleo secreto e profundo que decide anossa
personalidade e nos torna únicos e irrepetíveis. Deste misterioso centro partem as
linhas radiais com que Deus configura a missão existencial e a história da salvação de
cada um.

Encaradas a partir deste enfoque teologal, a pessoa e a história das duas


Teresas convergem no maisprofundo do seu ser e da sua missão. As duas, sob
o impulso de uma misteriosa força interior, escreveram a própria história,
descobriram e testemunharam a passagem de Deus pelas suas vidas e apresentaram-
nas como um pentagrama de fundo para cantar as misericórdias de Deus. A
autobiografia é o primeiro livro que uma e outra escrevem. E as duas coincidem em
dar à sua vida força de profecia: não simples narração da própria aventura
humana, mas palavra profética com forte mensagem frente a qualquer outraleitura
ou releitura da própria vida, isto é, da nossa vida.

As duas na família
Não são duas famílias em paralelo o lar de  Teresinha na bela
Normandia e o de Teresa na austera meseta de Castela. Mas as coincidências e os
contrastes abundam e entrecruzam-se.

"Muito queridas" as duas no lar. Sem lacunas  afetivas na infância, apesar


de que as duas passam pela amarga experiência da orfandade: Teresinha  perde a
sua mãe ainda muito criança; Teresa perde-a em plena adolescência, aos catorze
anos. A uma e a outra cresce-lhes a figura do próprio pai, até chegar à
transfiguração: para Teresa, dom Alonso é a imagem do homem perfeito;
para Teresinha. Um reflexo do rosto de Deus. Muito a contrapeso da ascese
circundante e de certa pseudo-mística da “fuga mundi". Tanto a Madre Teresa como
a sua filha, a carmelita de Lisieux, mantêm profundo enraizamento familiar até ao
fim da sua vida religiosa. Famílias numerosas as  duas: a de Teresa de Ávila tem
nove irmãos varões; a de Lisieux, quatro. Esta perde-os sem os ter conhecido,
falecidos antes dela nascer. A de Ávila assiste de perto ao êxodo de todos eles, que
vão abandonando o lar rumo às índias ocidentais, deixando ao lado de  dom
Afonso viúvo só as filhas, como no lar de  Alençon-Lisieux.

Ainda um par de traços coincidentes nesse duplo quadro do lar. Na linha


materna, emotiva e feminina, as duas crianças órfãs acolhem-se à maternidade da
Virgem Maria. Pelo contrário, em linha paterna, às duas aproximam-se a sombra
da guerra: Teresa nasce quando o seu pai regressa da guerra de
Navarra: Teresinha, quando o senhor Martin sofreu no seu próprio lar a sombra
prolongada da guerra franco-prussiana. As duas Teresas herdarão, não um espírito
guerreiro, mas sim uma têmpera vigorosa, de fortaleza para a vida. Será Teresinha
quem escreve, recordando uma máxima típica da Santa de Ávila:  "Santa Teresa,
que dizia às suas filhas: 'Quero que não sejais mulheres em nada, mas que em tudo
vos igualeis a homens fortes”, Santa Teresa não teria querido reconhecer-me como
sua filha se o Senhor não me tivesse revestido da sua força divina, -  se Ele
mesmo não me tivesse armado para a guerra" (Ct 201).

As duas no Carmelo

Para as duas Teresas o Carmelo é a família da  alma. Aqui já não se trata


de coincidências. Afinidades ou contrastes aproximativos, como no lar
de sangue. Na família da alma tudo se passa a níveis  profundos, de outra ordem
e grandeza.

Embora por caminhos diversos, a opção vocacio nal pelo Carmelo foi em
ambas as Teresas o desenlace de um pequeno drama íntimo: desapego do
lar paterno e transferência para o lar do espírito, mas com toda a dramaticidade de
uma transferência humana. Na Santa de Ávila, será a vida comunitária
da Encarnação a definir e a decidir o sentido da sua vocação religiosa. Pelo
contrário, a Santa de Lisieux ingressa no Carmelo com idéias claras e opção
bem definida. Para esclarecer e tomar posições, serviu-lhe a aproximação à que vai
ser a sua santa Madre Teresa: antes de ingressar; Teresinha lê profundamente a sua
biografia.
Um feixe de traços que caracterizam a personalidade da santa avilense
impressionam a Teresinha,que rapidamente os incorpora ao seu talante humano e
espiritual. Basta enumerá-los:

—Antes de tudo, altos ideais. "Altos pensamentos", dizia a Madre Teresa. E


desejos: “tive sempre grandes desejos", escreve ela. Teresinha anotou numa das
suas notas íntimas: "Não é presunção o desejo de praticar as virtudes em grau
heróico, à imitação dos santos; nem tão-pouco o desejo do martírio". Versão de urna
passagem do Livro da Vida (13, 4).

— Disposta a dar a vida pelos outros, como Cristo. Entre as suas notas


íntimas, Teresinha conservava também este pensamento da sua santa Madre:
"daria mil vidas para salvar uma só alma". Tomado do  Caminho de perfeição (1,
2), mas repetido com toda a classe de matizes e variantes por Teresa, e igualmente por
Teresinha, a quem também impressionou este  outro dito da Santa de Ávila:
"Santa Teresa dizia às suas filhas, quando estas queriam rezar para si mesmas: 'que
me importa a mim estar até ao fim do mundo no purgatório, se com as minhas
orações salvo uma só alma?'" (Também na Ct 221. Tomado doCaminho de
perfeição 3, 6).

— Intenso sentido apostólico da vocação contemplativa: "Uma carmelita que


não fosse apóstola se afastaria da sua vocação e deixaria de ser filha da seráfica
Santa Teresa" (C 198). E com que alegria oconfirmava no fim da sua vida: "Nunca
me arrependerei de ter trabalhado unicamente para salvar  almas. Como sou feliz
por saber que a Nossa Madre Santa Teresa pensava o mesmo!" (UCR 4. 6.1).

— Sentido do amor A Santa de Ávila tinha insistido tanto em não confundir o


amor com o sentimento. Teresinha aprofunda nesta linha: "Como compreendo bem
as palavras de Nosso Senhor à nossa Madre  Santa Teresa: 'Sabes, minha filha,
quem são os que Me amam de verdade? São aqueles que reconhecem que tudo o
que a Mim se não refere não passa de mentira" (UCR 22.6).

- Ser amigos do Crucificado: Teresinha recorda  várias vezes um dos


"fioretti" teresianos: "Santa Teresa tinha muita razão em dizer a Nosso Senhor
que a sobrecarregava de cruzes quando ela empreendia por Ele grandes trabalhos:
'Ah! Senhor, não me admira que tenhais tão poucos amigos, os tratais tão  mal!'"
(Ct 178).

— O ideal contemplativo: só Deus! Entre as suas  notas, Teresinha


transcreve íntegro o poema da Santa: "Nada te perturbe... só Deus basta!". A níveis
mais profundos, Teresinha e Teresa, ao historiar a própria vida, resumem-na em
chave doxológica, como um canto às misericórdias do Senhor As duas centram
todo o seu afã de santidade no amor esponsal a Cristo, apropriando-se do símbolo
nupcial do Cântico dos Cânticos, e enamorando-se do seu  Evangelho. As duas
têm um fino sentido da Igreja. Aprópria Teresinha testemunha assim essa
convergência das duas: "Quero, numa palavra, ser filha da Igreja como o era a
nossa Madre Santa Teresa" (Ms C 33v). Por isso, pensa que "foi a Nossa Santa
MadreTeresa que me enviou como ramalhete de festa... o meu primeiro
irmãozinho missionário" (Ms C 31v).
As duas na Igreja

Nas últimas páginas da História de uma alma,  Teresinha escreve,


confrontando tacitamente a sua missão eclesial com a da sua santa Padroeira:
"Como são diferentes os caminhos pelos quais o Senhor conduz as almas! Na vida
dos Santos encontramos muitos que nada quiseram deixar deles para depois da
morte, nem a mais pequena recordação, o mais pequeno  escrito. Há outros,
pelo contrário, como a Nossa Madre Santa Teresa, que enriqueceram a Igreja
com as suas sublimes revelações, não temendo manifestar os segredos do Rei,
para que seja mais conhecido, mais amado pelas almas. Qual destes dois gêneros
de santos agrada mais a Deus? Parece-me... que ambos Lhe são igualmente
agradáveis, uma vez que todos seguiram a moção do Espírito Santo, e que o
Senhor disse: Dizei ao justo que tudo está bem. Sim, tudo está  bem, quando não se
procura senão a vontade de Jesus" (Ms C 2v).

Não pressagiava Teresinha — ou talvez sim! — que a sua missão na Igreja ia


ter roteiros similares, quase paralelos, aos da sua Santa Madre. Que também
ela tinha sido chamada misteriosamente a "manifestar os segredos do Rei". Que,
como a Mãe dos Espirituais, também ela tinha sido chamada a exercer um magistério
de incomparável alcance universal.

É certo, nunca sublinharemos bastante as diferenças. Teresa e Teresinha


encarnam duas palavras irredutiveis a um comum denominador doutrinal. E
isso, precisamente porque os seus ideários nascem de duas experiências humanas
profundamente diversas, e em dois contextos culturais e eclesiais irredutíveis.

As distâncias encurtam-se — segundo a citada passagem de Teresinha—nessa


única "moção do Espírito Santo", que faz eco ao texto de Paulo: "os carismas são
diversos, mas um mesmo espírito" (1Cor 11,4). Assim, os dois carismas magistrais
— o de Teresa e o de Teresinha — têm o seu ponto de partida no  Espírito que
anima o relato autobiográfico de ambas. As duas começaram a escrever a sua
própria autobiografia. A captação do sentido profundo da vida vivida é algo
assim como a fonte da sua mensagem doutrinal e do seu serviço eclesial. Não só
enquanto as duas conseguem dar e expor a sua existência numa micro-história da
salvação, mas porque a partir dela anunciam ao leitor o Evangelho de Jesus.

Isso explica, talvez, o grande impacto produzido por esse escrito das duas
Teresas, a sua rápida difusão mais além das fronteiras eclesiais e dos confins
da cultura ocidental. Obras das duas Santas traduzidas e lidas em línguas quase
inatingíveis, sobretudo, a sobrevivência e atualidade do magistério espiritual das
duas Teresas a contrapeso das mudanças religiosas e culturais e das outras rupturas
de continuidade produzidas nos últimos decênios. Enquanto tantos autores
espirituais sucumbiram sob a síndrome da caducidade das ideologias e mensagens,
aí continuam os escritos e as doutrinas das duas Teresas, dialogan do com leitores e
culturas, dentro Obra da Igreja, em sintonia com as exigências da nova
evangelização.

É esse, sem dúvida, o motivo de fundo, que reúne as duas Teresas no


desempenho de um mesmo serviço da Igreja, o do seu doutoramento eclesial. A
Santa de Ávila, proclamada "a primeira mulher doutora da Igreja" e Teresinha, a
nova doutora da Igreja.

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TERESA E SÃO JOÃO DA CRUZ

FEDERICO RUIZ OCD

É notória e confessada por Santa Teresinha a dívida que tem com São João da
Cruz desde a sua entrada no Carmelo: "Ah! quantas luzes não extraí das obras do
Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18 anos, não tinha outro alimento
espiritual" (Ms A83v). Vem de antes e continua em crescendo até à suamorte. Quando
no período da aridez concentra a sua oração no Evangelho, e deixa de lado todos os
livrosespirituais, João da Cruz é uma exceção, talvez a  única. Continua a lê-lo e
a citá-lo com o mesmocarinho e freqüência de antes. Nos últimos meses da sua
vida, revive e repete insistentemente as palavras da Chama de amor viva. Há
referências explícitas e constantes aos escritos do Santo em todas as suas páginas; e
abundam os testemunhos diretos da sua contínua referência oral à pessoa e à
doutrina do santo Doutor.

Contrastes de vida e cultura

Familiaridade surpreendente. Não era de esperar semelhante sintonia, dadas


as diferenças de origem,família, época, vida, temperamento,
educação. Teresinha: infância de carinho e abundância, temperamento sensível e
emotivo, centro de atenção de toda a família, isolada da fricção com o mundo e o
sofrimento. "Tudo me sorria na terra: encontrava flores sob cada um dos meus
passos" (Ms A 12r). João daCruz, pelo contrário: infância de sofrimento e privações,
trabalhos duros e humildes, estudo e dedicação a doentes contagiosos. Dentro do
Carmelo, a existência de um e de outra têm pouco de vidas paralelas.Teresinha
escreve aos seus vinte anos, em estilo narrativo, autobiográfico, episódico. João,
aos quarenta: linguagem depurada, essencial, simbólica.

Prevalece sobre os contrastes uma espécie de harmonia prefixada. Quando ela


tem doze ou treze anos, o seu pai esconde-lhe as obras de João da Cruz, com medo
que esses rigores a deformem. Precisamente, desses anos de adolescência
conserva-se um autógrafo de Teresinha, que repete como exercido de caligrafia
o lema forte de João da Cruz: "Senhor, padecer e ser desprezado por Vós".

Tipo de relação

Não se trata de simples devoção ou recordação de frases luminosas do seu


pai e mestre carmelita. É identificação sistemática e convergência nos
pontos nucleares da doutrina dele e dela. Comunhão profunda e espontânea com
"a pessoa" mesma do Santo, e não somente com os "escritos". É "nosso
santo pai": o pai espiritual da família do Carmelo Teresiano. Misturam-se atitudes e
sentimentos de veneração, carinho, discipulado: é o santo, o pai, o mestre,
o irmão de vocação, o amigo; admiração espontânea perante o homem maduro,
testemunha de Deus, experiente e seguro, teólogo clarividente. Sente-se discípula,
irmã, leitora, filha. Encontra nele o modelo  espiritual, que a fortalece, corrobora,
inspira, e lhe oferece mesmo a palavra exata para dizer a própria experiência.

Para os núcleos

Um instinto certeiro guia-a diretamente para o núcleo da experiência de


São João da Cruz; amor, vocação de Igreja, fé obscura e segura, cruz, esperança,
morte e glória. Acerta na dinâmica teologal do  sistema sanjoanino, quando o
estudo teológico-espiritual do Santo ainda não tinha chegado a semelhante precisão.
Todas as suas citações e ressonâncias se cravam na vida teologal: união de
amor, vivência intensiva e extensiva da união em fé, amor, esperança.

Essa relação tridimensional tem de princípio ao  fim o mesmo eixo para


os dois: o amor, a vida e a morte de amor. Sabemos que, entre os poucos livros que
Teresa conserva no seu quarto para uso pessoal, encontram-se o Cântico espiritual e a
Chama de amor viva, encadernados num só volume.

O amor é o seu centro, mas não o seu limite.  Impulsionada pelo


exercício e expansão do amor, Teresinha assume plenamente a exigência e a
experiência do tudo-nada (Subida) e da noite da fé (Noite).

Amor

Por graça, vocação e temperamento, centra-se desde o principio no amor,


e faz do Cântico Espiritual a sua obra preferida. Aí vê retratado a João da Cruz, "o
Santo do amor por excelência", e vê-se retratada a si mesma nas mais íntimas
aspirações. Para ela, as estrofes 25-29 formam o coração da obra: almas  jovens
enamoradas de Cristo, a interior adega, o  amor de doação total, a vocação
contemplativa, o serviço à Igreja. Amar: plenitude da vida cristã, eclesial, carmelita;
contemplativos para amar. Já não tem nem quer outro oficio, só exercitar-se no amor:
amar e ser amada.

Encontra o valor, supremo da Igreja e o sentido da própria vocação numa frase


lapidar de frei João quea entusiasma: "É mais precioso diante de Deus e da alma um
pouquinho deste puro amor e mais proveito faz à Igreja, embora pareça que não faz
nada, que todas essas outras obras juntas" (Ms C 29, 2).

Tudo e nada

O amor, para Teresinha como para João da Cruz, não é um sentimento


isolado, mas o dom total e efetivo da vida inteira, com a conseguinte renúncia
a tudo o que não é amor a Deus. A experiência do amor vai-lhe descobrindo as
exigências de uma vocação de totalidade. Entra assim no ritmo da Subida do
MonteCarmelo: "Amar é despojar-se por amor de tudo o que não é Deus" (2 5 5, 7).

Já desde criança, quer "tudo", não as coisas pela metade . Na sua vocação
de amor, essa postura afirma--se com cores acentuadamente sanjoaninas. "Tudo
o criado, que não é nada, dá lugar ao incriado, que é arealidade". Insistia, diz-nos
uma testemunha, Irmã Maria da Trindade, "que o seu pequeno caminho de
humildade e de amor não era outra coisa que o de São João da Cruz: o nosso nada e
o tudo de Deus". Não recusa as expressões mais duras do seu mestre: é necessário
sofrer, sofrer muito, eu antes sofria, mas não amava o sofrimento...

Noite da fé

Advém inesperadamente a última descoberta, a da fé pura e escura. Realiza-


a pressionada por uma esperança dolorosa, que a precipita no abismo e na treva.
Entra no mundo do sofrimento, ao qual nãoparecia psicologicamente predisposta, e
converte-o na forma suprema da união de amor Marca a sua  vida interior e
exterior nos últimos meses. A palavra fraterna de frei João é companhia espiritual e
ajudapreciosa. Na desolação, tanto ela como as suas irmãs referem-se à experiência
com os termos e os esquemas da "noite escura da fé", de São João da Cruz.

É problema total de vida e sentido. Fala com os  mesmos termos e


exemplos do mestre: tentações de blasfêmia, escrúpulos; e inclusive tomaria por
alívio o morrer, E também os mesmos sintomas positivos: interpretação da
experiência em chave de fé, confiança em Deus que nunca abandona, a solicitude
para servir, pelo menos materialmente, com gestos que a ela lhe parecem banais.

Esperança e morte de amor

Há ressonâncias desta virtude que impregnam toda a sua vida e obra: grandes
desejos e segurança do seu cumprimento. Baseada nos princípios do
Santo: Deus, "quanto mais quer dar, tanto mais faz desejar" (Ct 15); "porque acerca
de Deus, quanto mais a alma espera, tanto mais alcança" (3 S 7, 2). Deus não inspira
desejos irrealizáveis.

Identifica-se com Chama de amor viva, especial mente no verso da


primeira estrofe: "rompe a tela deste doce encontro": viver e morrer de amor
"Com que anseio e consolação repeti, desde o começo da minha vida religiosa,
estas palavras do N. P São João da Cruz: 'É da mais alta importância que a alma
se exercite muito no Amor a fim de que, consumindo-se rapidamente, não se
detenha cá na terra, mas chegue depressa a ver o seu Deus face a face’” (UCR
27.7.5). Durante os últimos meses da sua vida, a Santa e  suas irmãs parecem estar
a repetir ao vivo esta cena da Chama.

Adaptação pessoal e cultural

Teresinha faz um aproveitamento limitado do conjunto da obra sanjoanina,


conforme o pede a sua simplicidade de vida e pensamento. Esta seleção não se guia
por critérios de suavidade ou dureza, de amor ou renúncia. Assume sem reservas as
expressões mais exultantes e também as mais austeras do mestre.

Advertem-se certos silêncios, pelo menos na referência explícita: deixa de


lado as expressões da vida mística, graças e fenômenos, a oração de
advertência amorosa, a purificação das mediações na fé e na caridade, a
transcendência de Deus na Subida, as perspectivas trinitárias do Cântico e Chama.
Modifica muitas coisas do seu pai e mestre, levada pela experiência pessoal
ou por influência de outras fontes: a) Amor: amplia e aprofunda a
referência eclesial, na sua releitura de Cântico cc. 27-29; desenvolve as idéias de
"abandono-vítima", palavras que João da Cruz nunca utiliza. b) Noite: introduz
na vivência da noite escura sombras de "ateísmo" e de materialismo, impensáveis no
tempo e ambiente de João da Cruz; vive a noite escura no fim, e não na fase prévia do
caminho. Poder-se-iam acrescentar tantas outras variantes...

Conclusão

Todos nos beneficiamos deste parentesco e sintonia espiritual. O leitor da obra


sanjoanina encontrará estímulos e orientações no estilo simples e profundo com que
Teresinha relê os escritos de João da Cruz: 1) Confirma a previsão do Santo: Estas coisas
entendem-se melhor por afinidade de experiência mística, do que pelos estudos de
teologia escolástica. 2) Identifica desde o princípio os núcleos essenciais da doutrina
sanjoanina, sem se perder em ninharias de estilo ou de contrastes. 3) Faz uma leitura
autêntica, aberta à atualidade da graça e da existência pessoal; leitura fiel, dinâmica,
original.

No fundo, Santa Teresinha não toma a palavra de frei João como livro ou
doutrina, norma ou projeto. É experiência pessoal e biografia de uma graça
em comum: isto viveu-o João da Cruz, e isso mesmo me está a acontecer agora a mim.

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CAPÍTULO 5

"O SOFRIMENTO ESTENDEU-ME OS SEUS BRAÇOS"

G EN EV IÈV E D EV ERG N IES OCD

O Postulantado é a primeira das grandes etapas que assinalam a progressiva


adaptação à vida carmelitana. Desde o princípio, Teresa sente-se totalmente
contente: "Tudo me parecia encantador.. Esta felicidade não era efêmera; não havia
de se desvanecer com as 'ilusões dos primeiros dias (Ms A 69v).

Viverá no Carmelo até à sua morte, isto é, quinhentas semanas, menos de


dez anos, sem nunca sair dele.

Os primeiros passos

A nova postulante sente-se plenamente ela mesma, consigo; o que outras


chamariam"prisão", para ela é o lugar supremo da liberdade. Esta vida dura e
austera encanta-a. Para comprovar o dito, basta vê-la percorrer os claustros
silenciosos com passo invariável, firme e tranqüilo, sem precipitação.

Por outro lado, o comportamento de  Teresa surpreende a sua


comunidade que,advertindo a sua pouca idade, espera vê-la  agir como uma
criança. De modo algum! As Irmãs, na sua presença, estão como que intimi dadas
de respeito, apreciando a sua compostura digna e reservada, o seu delicado
sorriso, o seu aspecto recolhido e decidido.  Certamente, deve haver
curiosidade daparte de algumas, também algumas idéias  preconcebidas: como
se vai comportar esta postulante precoce? Observemos a aprendiz em ação...

A mestra de noviças testemunhará mais tarde: "Desde que entrou,


cumpriu todas as suas obrigações com uma graça encanta dora". Efetivamente,
desde Abril, Teresa tem pressa: "Para ela, o trabalho reduz-se às tarefas
humildes: arranjos na rouparia, limpeza de um corredor, de uma escada e de
um claustro, um pouco de jardinagem a modo de exercício psíquico" (PA 348).
A postulante comprova que "a vida humilde nos trabalhos  molestos e fáceis é
obra de eleição que necessita de muito amor", como diz Paul  Verlaine.

C h e g a m , n o d i a 2 2 — t e r ç a - f e i r a d e   Pentecostes — "as radiosas


festas do mês de Maio",em que Teresa é eleita para enfeitar com rosas a sua
madrinha, Maria, que acaba de professar: "A mais velha da família, a  quem a
mais nova teve a alegria de coroar no dia das suas núpcias" (Ms A 71v). Dois
dias depois, o Sr. Martin assiste à tomada de véu  do seu "diamante", a sua
filha preferida. Teresa transborda de alegria na ação de graças e, cumulada de
felicidade, encontra  aquele que seu pai chama "o diretor de toda a família", o
reverendo Pe. Pichon.

É uma figura original e simpática este  jesuíta normando, nascido de


uma família de rendeiros de pas tagens no dia 3 de  fevereiro de 1843 em
Sainte-Marguerite-de-Carrouges, perto de Alençon. Foi-lhe pedido que
fizesse, no dia 23 de maio de  1888, o sermão com motivo da tomada de  véu
da Irmã Maria do Sagrado Coração.  Nesta mesma cerimônia, comemorava-
se o cinqüentenário da fundação do Carmelo de L isieux.

Por esta ocasião, o pregador dá um retiro que termina na segunda-feira,


dia 28. De forma espiritual e agradável, trata os seus  temas favoritos: oração,
humildade, amor de Deus, caridade fraterna e santificação pelas  provações; é
precisamente isto o que mais chama a atenção de Teresa: "A santidade
é preciso conquistá-la à ponta de espada, é necessário sofrer, é necessário
agonizar", dirá ela em breve, citando o P. Pichon.

O acontecimento principal destas jornadas é, para Teresa, a entrevista


com o P. Pichon na qual lhe descobre, em confissão geral, a luta interior, o
"martírio íntimo", que padece desde há cinco anos e que, por
momentos, inclusive a angustia: "Não sei como descrever uma doença tão
estranha. Agora estou persuadida de que era obra do demônio, mas,  durante
muito tempo depois da minha cura acreditei que eu me tinha feito doente
de propósito (...) Deus, que, sem dúvida, me queria purificar e, sobretudo,
humilhar, deixou-me neste martírio íntimo até à minha entrada para o Carmelo, onde o
Pai das nossas almas me tirou todas as dúvidas, como que com a mão, e desde aí fiquei
completamente tranqüila" (Ms A 28v).

O jesuíta escuta atentamente as confidências da postulante, o seu temor de ter


cometido pecado mortal simulando estar doente, os seus sofrimentos, as suas aspirações,
e, tendo-a tranqüilizado, diz-lhe estas palavras: "Na presença de Deus, da Ssma. Virgem e
de todos os Santos, declaro que nunca cometestes um único pecado mortal... Que
Nosso Senhor seja sempre o vosso Superior e o vosso Mestre de Noviciado". Foi-o, de
fato, e também 'o meu Diretor espiritual' (Ms A 70r). Porque muito em breve o Pe. Pichon
partiu para o Canadá e Teresa encontra-se só espiritualmente.

As visitas do papai

O Sr. Martin e Celina vão de vem em quando ao locutório visitar as suas


carmelitas. Um "locutório" típico deste tempo era o lugar onde a carmelita podia
reencontrar-se com os membros da sua família, os seus amigos, a falar-lhes através de
uma grade dupla. Para falar com as outras pessoas que não fossem familiares, punha-se
uma cortina opaca diante da grade. Uma companheira, chamada "terceira", assistia à
visita, sem tomar parte nela nem ser vista do locutório exterior. A duração da visita era
de meia hora. Não se permitia ir ao locutório nas horas do ofício litúrgico e durante os
temposde Advento e Quaresma.

Mas, sobretudo a partir da entrada de Teresa no Carmelo, as mudanças nas


visitas converter-se-ão no regalo familiar do Sr. Luís Martin; encontra-se com três das
suas filhas e aprecia intensamente estas visitas, quase sempre espirituais. Sente-se
monge entre as quatro paredes frias e desnudas do locutório, diante da grade dirigida
como um desafio lançado ao mundo... Em todo o caso, a "mais nova", por entre os barrotes
cruzados da grade, parece-lhe deslumbrante. Quando ela for agora ao locutório interior,
para a jovenzinha, será sempre o mesmo: encontros breves, alguns instantes
destinados apenas a confidências sem importância, a meia hora medida pelo relógio de
areia passa depressa e as suas irmãs mais velhas têm tanto que partilhar com os que as
visitam... Desde o seu Postulantado, quando o tempo designado acaba, é a mesma Teresa
quem se despede, não querendo estar nem um segundo a mais, para obedecer.

Depois de entrar no Carmelo a primeira das suas filhas, o Sr. Martin dá provas


de autêntica generosidade com as irmãs; dos Buissonnets abundam as ofertas. Quase
não passa um dia em que o Sr. Martin não leve à portaria ofertas de toda a espécie.
Com algo de comida melhorada remedeia a sobriedade habitual da comunidade: só para
agradar à comunidade pesca lúcios em Saint-Martin-de-la-Lieue; apanha trutas em dois
viveiros em Saint-Ouen-le-Pin; a corrente leva-o a pescar outros peixes não longe de
Deauville, em Touques.

Em seu favor contam-se algumas capturas memoráveis: particularmente uma carpa


de 0,59 m de comprimento, que a Irmã Inês descreve como de tamanho natural, e Teresa:
"Se soubesses que alegria nos causou a tua carpa, o teu monstro! Atrasou-se o jantar cerca
de meia hora, foi a Maria do Sagrado Coração que fez o molho, estava delicioso? (Ct
58).

Doravante, Teresa recebe, por sua vez, o encargo de agradecer "ao" benfeitor.
Assim escreve a seu pai: "Tenho ainda uma doce missão a cumprir, a de te agradecer...
uma enorme quantidade de pêras, cebolas, ameixas, maçãs que saíam da roda, como de
um vaso de abundância" (Ct 63).

A doença do Sr Martin
O tempo dos nove meses do Postulantado de Teresa parece estar particularmente
cheio de provações: abateu-se sobre ela uma autêntica superdose de contrariedades.
Nada lhe causa dor, fora das dores que já constituem o seu patrimônio. "Os meus
primeiros passos encontraram mais espinhos do que rosas... Jesus fez-me compreender que
era pela cruz que Ele me queria dar almas" (Ms A 69v).

O espírito de estranha retidão desta "jovem" é que encontrou antecipadamente


a vida religiosa tal como a tinha imaginado. "Nenhum sacrifício me espantou" (Ms
A 69v). Teresa sabe que está no seu lugar, onde Cristo a quer: "Eis-me aqui, Senhor,
para fazer a tua vontade" (Sl 39,8-9). No entanto, o coração humano não se vê privado
de certas dores.

Em primeiro lugar, é a saúde do Sr. Martin que lhe vai causar grandes


preocupações. No dia 1º de Maio de 1887 tinha tido já um acidente cerebral vascular
bastante forte, embora se livrasse rapidamente de uma pequena paralisia em um lado do
corpo. A princípios de 1888, a arteriosclerose causa-lhe estragos: tem momentos de grande
esgotamento e de perda de memória. Toma consciência do seu estado subitamente, em um
certo dia em que, por negligência anormal, deixa morrer de sede a sua cotovia favorita.
Alguns dias mais tarde, no locutório do Carmelo, confiará a suas filhas a sua oração nesse
momento: "Meu Deus, é demasiado! Sim, sou feliz demais, não é possível ir para o Céu
assim, quero sofrer alguma coisa por Vós! E ofereci-me..." (Ct 261).

Dois acontecimentos familiares contribuem para perturbar o papai de Teresa.


Por um lado, o problema de Leônia que, tendo entrado no dia 16 de julho de 1887
na Visitação de Caen, não se adaptou; de forma que se vê obrigado a levá-la para Lisieux
no dia 6 de janeiro. Por outro lado, Celina, na qual se apóia totalmente, acaba de
cumprir dezenove anos e precipita a sua decisão: no sábado, dia 16 de junho, informa o seu
pai do seu desejo de ser religiosa. Este anúncio provoca no Sr. Martin um choque muito
forte; está tão recente ainda a entrada no convento de Lisieux da sua "rainhazinha"...
Pressente a solidão da sua velhice. Na manhã do dia 23 de junho, escapa-se furtivamente ao
Deus dará, sem dizer nada a ninguém. Terrível desconcerto nos  Buissonnets: quem
o viu? quem sabe onde se encontra? Buscas infrutuosas. Que fuga mais angustiosa para as
suas filhas que não têm nenhuma notícia! Noite de profunda ansiedade para todos. No dia
24 pela manhã, chega um telegrama do Sr. Martin no qual solicita dinheiro e pede resposta
na "lista de correios". Permite encontrar a pista do fugitivo. Celina e o tio Isidoro deslocam-
se imediatamente ao edifício dos correios do Havre e três dias mais tarde trazem para casa a
Luís Martin. Este acontecimento traumatiza ainda mais que ao resto da família, a
Teresa, ferida mortalmente no seu amor filial...

Período de calma durante alguns meses. Mas circulam reflexões humilhantes


sobre a doença de seu pai: "Fora, muitas pessoas nos indicavam como responsáveis desta
infelicidade, causada, afirmavam, pela dor excessiva, sobretudo pela entrada de Teresa"
(Ct 81).

Adivinhamos o desassossego de Teresa, ferida no que ela mais ama. Inclusive a


sua escrita acusa o golpe. Quando o seu pai mais necessitaria da sua "filha mais nova", ela
não pode voar em sua ajuda! Não é a menor das renúncias no Carmelo o não poder ver
diariamente a sua própria família. Tem-nos tão profundamente no coração... Teresa
dirá mais tarde: "Não compreendo os santos que não amam a sua família" (UCR
21/26.5.1). Mas Teresa é forte. Deixa atônita a sua mestra de noviças que tinha ido
consolá-la: Sofro muito, mas sei que posso suportar ainda maiores sofrimentos", diz-lhe
Teresa (Ms A 73v).

Quando se apresenta a ocasião de estreitar os laços fraternos com a Irmã Inês de


Jesus e a Irmã Maria do Sagrado Coração, Teresa responde com doçura a esta última que
pretende retê-la a seu lado: "Agradeço-vos, seria muito feliz de ficar convosco, mas
é preferível privar-me disso, pois não estamos em nossa casa!" (CG 367).

E mais, encontra força para dominar a sua ansiedade a fim de animar a Celina: "A
vida é muitas vezes pesada, quanta amargura... mas quanta doçura! Sim a vida custa, é
difícil começar um dia de trabalho (...) Se ao menos sentíssemos a Jesus (...) Oh!
que enfadonha é a companhia quando Jesus está ausente. Mas que faz então o doce
amigo, Ele não vê a nossa angústia, o peso que nos oprime?... Ai! Ele não está longe, está
muito perto, olha-nos, pede-nos esta tristeza... Elevemo-nos acima daquilo que passa,
conservemo-nos a distância da terra, mais alto o ar é puro. Jesus esconde-se mas nós
adivinhamo-lo, derramando lágrimas enxugamos as d'Ele" (Ct 57).

Mais ainda: "Que grande graça quando de manhã nos sentimos sem nenhuma
coragem, nenhuma força para praticar a virtude, é então o momento de pôr o machado
na raiz da árvore (...) É verdade que às vezes deixamos durante alguns instantes de
juntar os nossos tesouros, esse é o momento difícil, onde se é tentado a largar tudo, mas
num ato de amor mesmo não sentido, tudo fica reparado e mais ainda (...) O amor pode
fazer tudo. Jesus não olha tanto para a grandeza das ações nem mesmo para a dificuldade
delas mas para o amor com que são praticadas" (Ct 65).

O caniço que se verga sem se quebrar

Não se entra na alegria de amar sem entrar antes no sofrimento de amar. À força de


buscar com amor a verdade do que Deus quer para ela, Teresa vai chegar à verdade
do amor.

A adaptação à vida comunitária está cheia de contradições. "O pequeno caniço"


experimenta a sua debilidade, mas a sua generosidade não o deixa abater-se: "Sim,
desejo essas angústias do coração, essas alfinetadas... Que importa ao pequeno caniço
vergar-se. Não tem medo de se quebrar, pois foi plantado à beira das águas. É a sua
debilidade que constitui toda a sua confiança» (Ct 55).

É a Madre Maria de Gonzaga quem especialmente lhe vai causar problemas.


Durante os primeiros meses de Postulantado, Teresa terá que apoiar-se nela para não
ceder a um afeto alienante. "Lembro-me de que, sendo postulante, tinha, por vezes, tão
violentas tentações de entrar na vossa cela para me consolar e encontrar algumas gotas
de alegria, que me via obrigada a passar rapidamente diante do ofício e de me agarrar
ao corrimão da escada. Vinham-me ao espírito uma multidão de licenças a pedir...
arranjava mil razões para contentar a minha natureza" (Ms C 22r).

No entanto, a "Nossa Madre" — como se chamava à priora — manifesta para


com Teresa uma severidade inaudita. Teresa descobre uma Madre Maria de Gonzaga
completamente diferente da dos locutórios, onde sempre era tão amável. Agora, por seu
lado, frequentemente são humilhações ou uma indiferença fingida o que para a extrema
sensibilidade de Teresa se revela extremamente esgotante. Contudo, a Madre Maria
de Gonzaga não lhe tem rancor: "Vereis, minha Madre, no caderno que contém as
recordações da minha infância, o que penso da educação forte e maternal que recebi de
vós. Do mais profundo do coração vos agradeço não me terdes poupado" (Ms C 1v).

Ao mesmo tempo, com a proximidade do Inverno, a postulante experimentará na


sua própria carne uma dura penitência: o frio. Nunca tinha passado um Inverno sem
aquecimento, e é friorenta. Na sua cela entra uma umidade glacial. Tirita de frio. As
noites são duras e, por vezes, passa-as a tremer até de manhã, sem ter qualquer
aconchego. Obteria, facilmente, alguma solução, mas não a pede. Suportar este
sofrimento é, para ela, ocasião de amor a Jesus. Somente no seu leito de morte, Teresa
confidenciará à Madre Inês de Jesus: "Padeci frio no Carmelo até morrer". A
interlocutora comenta: "Estranhei ouvi-la falar assim, porque no Inverno o seu
comportamento não revelava nenhum sofrimento. Nunca, nos dias mais frios, a vi esfregar
as mãos ou andar mais rápido, mais inclinada que de costume, como costumamos fazer
tão naturalmente quando temos frio" (UCR 11.7.8).

Revelação de Teresa que mais tarde fará a mestra de noviças desolada: "Ah, se
tivesse sabido, o que não teria feito por remediá-lo! Por isso, disse-me um dia: ‘Que
virtude heróica a desta querida irmã! A sua mortificação resumia-se nesta palavra: sofrer
tudo sem nunca se queixar, nem por roupa, nempor comida" (PO 2022).

Outra ocasião de mortificação para Teresa foi a comida. A Irmã Maria do


Sagrado Coração, que era a "provisora" (quer dizer, a religiosa encarregada de ordenar as
comidas e tudo o que se relaciona com a alimentação), referirá: "Nunca pude conseguir
conhecer os seus gostos e, sem o querer, fiz-lhe praticar grandes mortificações. Por
exemplo, nos dias em que a comida consistia em feijão, não sabendo que lhe faziam mal,
enchia-lhe o prato e, como lhe tínhamos dito que comesse de tudo e ela queria obedecer,
estava continuamente doente" (DE p. 535). É um fato que "vendo-a tão doce, sem nunca
se queixar, dávamos-lhe todas as sobras a esta criança que deveria fortalecer-se;
algumas vezes, não tinha no prato senão cabeças de arenque ou restos aquecidos de
vários dias seguidos" (PO 272). Outra vez aquecidos de novo!

Teresa tratou superficialmente este assunto: "Foi-me dado também o amor pela
mortificação, e foi tanto maior quanto nada me era permitido fazer para o contentar... As
que me concediam, sem eu as pedir, consistiam em mortificar o meu amor-próprio, o que
me fazia muito maior bem do que as penitênciascorporais" (Ms A 74v).

Se, por meio de tudo isto, a jovem postulante agüenta, é porque "o pequeno
caniço continua a ser igualmente fiel ao sopro mais ligeiro da graça" (Ct 55): verga-se
sem se quebrar, porque em Teresa "Deus mesmo é a paz" (Mq 5,4).

O martírio do papai e da filha

A comunidade decide admitir Teresa para a "vestição" ou "tomada de


hábito". Normalmente, Teresa deveria tomar o hábito de carmelita em outubro de 1888,
depois de seis meses de Postulantado. A veste já está preparada. O Sr. Martin vê-se
obrigado a enviar, como recordação da mamãe falecida tão boa rendeira, uma porção
de "rendas de Alençon". Quis, pois, para o traje da jovem postulante um vestido de
veludo branco adornado com cisnes e... renda de Alençon.
Subitamente, uma recaída de Luís Martin obriga a atrasar a cerimônia.
Efetivamente, no dia 31 de outubro, indo ao Havre para se despedir do Pe. Pichon, tem um
segundo ataque em Honfleur. Arecaída mental do seu pai faz viver as suas filhas um
princípio de Novembro carregado de angústia. No dia 15 de novembro, Teresa escreveu
a seu pai: "Como Deus é bom por ter-te curado! (...) O Carmelo inteiro estava em
oração (...) Sobretudo trata-te bem" (Ct 66). O estado do doente melhora em Dezembro.
Depois, a "cura" momentânea convida a fixar, por fim, a data da tomada de hábito. Terá
lugar no dia 9 de janeiro de 1889, nove meses, dia após dia, depois da sua entrada no
Carmelo, na festa da Anunciação. A postulante está radiante: é a Virgem Maria
quem, durante nove meses, a tinha levado no seu coração como tinha levado Jesus no
seu seio. Teresa vê com alegria o começo dos seus dezesseis anos, que celebrará no dia
2 de janeiro. Escreve à sua tia no dia 28 de dezembro:"Como a vida passa depressa!
Há já dezesseis anos que estou na terra. Gosto muito desta frase dos Salmos:
'Mil anos aos olhos do Senhor são como o dia de ontem que já passou' (Sl
89,4). Que rapidez! Oh, quero trabalhar enquanto ainda brilha a luz da
vida, porque depois virá a noite em que nada poderei fazer (Jo 9,4)" (Ct 71).

No ano de 1888 acaba-se o ano de Postulantado. Na sua autobiografia,


Teresa faz uma espécie de balanço: "Sim, o sofrimento estendeu-me os braços, e
lancei-me neles com amor" (Ms A 69v). A postulante aspira a este sofrimento
interior, para dar a seu Amado a prova do seu grande e único amor: "Queria
amá-lO tanto!... Amá-lo como jamais foi amado!..." (Ct 74). E isto é o que vai
tentar viver em plenitude, durante os seus nove anos no Carmelo, enquanto o
relógio de areia da sua vida vai passando...

Pela primeira vez no Camelo, Teresa  entra em retiro na tarde do dia 5


de janeiro de 1889, durante três dias inteiros segundo o costume de então; mas a
postulante verá que a sua solicitude se prolonga por um dia, por um contratempo.
Durante este tempo, a postulante só pode falar com a priora ou a mestra de
noviças; com as outras, se comunica o menos possível, por escrito, em pedaços
de papel... já escritos no reverso (por espírito de pobreza). Escreve assim à Irmã
Inês de Jesus: "Não podeis imaginar quanto me  custa o não poder falar-vos"
(Ct 76) e confidencia-lhe: "Quando estou com a Nossa  Madre, sou
continuamente interrompida  (pelas irmãs que vão falar com ela), e
depois quando tenho um instante, não sei dizer-lhe o que se passa na minha alma,
saio sem alegria, depois de também ter entrado sem ela!" (Ct 78).

Outra contrariedade causada pela contra ordem recebida no meio do retiro:


as exéquias do abade Voisin, vigário geral honorário,  presididas pelo bispo,
estavam fixadas para a quarta-feira dia 9; o bispo Dom Hugonin avisa o Carmelo
de Lisieux do atraso da tomada de hábito de Teresa para o dia 10 de
janeiro. Teresa dá uma explicação sobrenatural à sua decepção: "Compreendeis
alguma coisa daconduta de Jesus?... Achou sem dúvida que a data do dia 9
era demasiado maravilhosa"  (Ct 76).

A secura experimentada desde há alguns meses acentua-se: "Hoje mais


do que ontem, se é possível, fui privada de toda a consolação" (Ct 76),
sobretudo durante as três ou quatro horas de oração diária: "Nada junto de
Jesus, aridez!... Sono!... Mas ao menos há silêncio!" (Ct 74). Teresa "espera estar
como Jesus quer; eis a sua alegria, porque de outra forma tudo é tristeza" (Ct 78).
Além disso, uma das Irmãs da comunida de, embora Teresa esteja em
retiro, multiplica os comentários ofensivos contra ela,  enquanto lhe prova as
alpercatas (sandálias de tela grossa, com solas de esparto) cuja  confecção lhe
está confiada: "Esta manhã, afligi-me muito na presença da Irmã
São Vicente de Paulo, retirei-me com o coração  muito triste" (Ct 76). E
Teresa conclui: "Creio que o trabalho de Jesus durante este retiro foi o de
desapegar-me de tudo o que não é Ele" (Ct 78). "Pois bem, tudo será  para Ele,
tudo, mesmo quando eu não sentir nada para Lhe oferecer, então como
esta noite dar-Lhe-ei esse nada!..." (Ct 76).

Tomada de hábito

Que radiante intervalo vai ser a cerimônia  da tomada de hábito de


Teresa no dia 10 dejaneiro de 1889! O Sr. Martin, humilhado na sua lucidez
ameaçada, encontra-se sereno e com força suficiente para participar nela.

A cerimônia, hoje em dia foi muito simplifi cada, mas na época revestia-
se de uma grande solenidade: Teresa sai da clausura vestindo um traje de noiva
de cauda comprida, com um véu detipo judeu e uma coroa de açucenas
(presente da sua tia) na cabeça, os seus caracóis ruivos flutuando sobre os seus
ombros. Depois se reúne com a sua família no fundo da nave  da Igreja. A seguir,
como para um casamento, a jovem entra na capela pelo braço do seu pai: "Entramos
solenemente na capela (...) Esse dia foi o seu triunfo, a sua última festa cá embaixo" (Ms A
72r). Toda a família, em cortejo, segue-os e assiste à missa. Depois de ter participado, na
capela, na cerimônia externa, o desfile nupcial desfaz-se e dirige-se para a sacristia. Ali,
Teresa abraça todos os seus, a seu pai "que nunca tinha estado mais belo, mais digno..:”
(Ms A 72r). Por fim, atravessa definitivamente a porta do convento.

Precedida por todas as Irmãs que levam uma vela acesa, a heroína do dia é
conduzida pela priora até o coro das religiosas, e aqui é onde se realizam os ritos
chamados da vestidura, aos quais a família assiste pela grade. A Madre priora põe a
Teresa o hábito de burel, o escapulário castanho — que liga com o hábito — e a capa
branca do coro; depois a cobre com um pequeno véu branco que a noviça usará até à
sua profissão. O celebrante, o Sr. Hugonin, bispo de Bayeux e Lisieux, pronuncia as
fórmulas litúrgicas. Ela recebe oficialmente o nome de religião: Irmã Teresa do Menino
Jesus da Santa Face.

Conforme o costume, no fim da cerimônia, Teresa prostra-se no tapete cor de


terra, adornado com açucenas artificiais, disposto no coro das Irmãs, durante o canto do
Te Deum. Em seguida, reúnem-se no locutório... Por detrás da grade, Teresa saúda
pela última vez o seu pai, radiante de alegria. De fato, só voltará a ver as suas filhas
carmelitas uma vez mais: a seu tempo.

Ao entrar na clausura, "a primeira coisa que vi no claustro foi 'o meu Menino
Jesus cor-de-rosa', sorrindo-me no meio de flores e luzes" (Ms A 72v), o Menino Jesus
pintado cor-de-rosa o qual Teresa se encarregará de adornar até à sua morte. Ela
mesma salientará que a cerimônia foi uma autêntica festa na qual não faltou nada, nem
sequer a neve, que a temperatura suave pela estação não permitia prever. "Que bela festa!...
Nada lhe faltou... Nada, nem sequer a neve... Não sei se já vos falei do meu amor pela neve
(...) Sempre desejara que no dia da minha  Tomada de Hábito a natureza estivesse
como eu, vestida de branco" (Ms A 72r).

Pela tarde, Teresa oferece uma estampa como recordação à Irmã Marta de


Jesus: "Pedi a Jesus que me faça uma grande santa, pedirei a mesma graça para a minha
querida companheira!" (Ct 80).

Teresa do Menino Jesus da Santa Face

A "Irmã Teresa do Menino Jesus", dirão sempre em comunidade. Na realidade, a


partir de janeiro de 1889, Teresa acrescentará ao seu nome o termo "da Santa Face".
Desde os dez anos, preocupou-se inclusive do nome de religião que ia ter. A Madre
Maria de Gonzaga, a quem vê no locutório, utiliza para ela o diminutivo "Teresinha",
por alusão à sobrinha de Santa Teresa de Ávila, que tinha entrado muito nova no
convento. Por seu lado, Teresa pensa: "Perguntava-me a mim mesma que nome iria ter
no Carmelo. De repente pensei no Menino Jesus, que tanto amava, e disse comigo:
'Oh, comoficaria contente, se me chamasse Teresa do Menino Jesus! Não disse nada
no locutório do sonho que tinha tido bem acordada" (Ms A 31v). Qual não seria a sua
alegria quando a priora mesma lho propunha!

Desde a sua mais tenra infância, Teresa tinha-se acostumado a venerar a Santa


Face de Jesus, tal e como está reproduzida no véu da Verônica, em Roma, na basílica de
São Pedro. Descobrirá que no coro do Carmelo brilha, dia e noite uma lâmpada diante
da reprodução do ícone. Desde o dia 26 de abril de 1885, a adolescente ficou inscrita no
registro da arquiconfraria da Santa Face de Tours, devoção divulgada a partir das
revelações que teve a carmelita turonense, Irmã Maria de São Pedro, graça que também
tinha recebido o "santo homem de Tours", o Sr. Dupont, que consagrou o resto da sua vida
a estender, com o mesmo espírito, o culto da Santa Face.

Teresa contempla nela o amor de Jesus pelos homens; não é precisamente o


aspecto "reparador" o que lhe atrai. Considera, antes, o amor: "Contempla Jesus na sua
Face... Aí verás como Ele nos ama" (Ct 87), todas as humilhações sofridas pelo nosso
Salvador: "Ah, como o de Jesus, eu queria que no meurosto ficasse verdadeiramente
escondido" (Ms A 71r).

"Até então eu não tinha sondado a profundidade dos tesouros escondidos na


Santa Face" (Ms A 71r). A Irmã Teresa do Menino Jesus da Santa Face foi a
primeira, no Carmelo de Lisieux, que escolheu esse nome. "Compreendi o que era a
verdadeira glória: como o de Jesus, eu queria que o meurosto ficasse verdadeiramente
escondido; que ninguém na terra me reconhecesse (Is53, 3). Tinha sede de sofrer e de ser
esquecida..." (Ms A 71r). Teresa afirma também: "A glória do meu Jesus, eis tudo; a minha,
eu abandono a ele" (Ct 103).

É a cruel jornada do dia 12 de fevereiro de 1889. O estado de saúde de Luís


Martin deteriora-se de repente: perde a memória, imagina um montão de episódios
dramáticos e as suas alucinações tomam um rumo inquietante para os seus familiares.
No dia 18 de fevereiro de 1889, Celina escreve auma amiga, Paulina Romet: "É muito
triste que a paralisia se tenha fixado no cérebro; se não fosse assim, o teríamos ainda
em casa o nosso tão querido pai. É de uma  bondade incrível; com o seu revólver
não queria de modo algum causar-nos mal, pelo contrário, queria defender-nos; na
suaimaginação, via coisas espantosas, matanças, batalhas; ouvia o canhão e o
tambor. Eu desenganava-o inutilmente; uma tentativa de roubo na cidade não fez senão
confirmar as suas idéias; por isso, tomou o revólver e queria levá-lo consigo em
caso de perigo, porque — dizia ele — eu não causaria dano nem a um gato.
Efetivamente, não creio que o tivesse usado, era uma idéia que passava pela sua mente
e desaparecia. Talvez devêssemos esperar e tentar, antes de tomar quaisquer decisões,
todos os meios para que ficasse".

Mas o Sr. Guérin não opinava assim, pois temia pela vida das suas sobrinhas
ou da criada, Maria Cosseron. Recorreu rapidamente ao seu amigo comum, homem
alto e vigoroso, para desarmar o doente. O tio Guérin decide fazê-lo internar no asilo
do Bom Salvador de Caen. Foi confiado aos bons cuidados da Irmã Costard,
responsável por uma parte do estabelecimento; quinhentos homens doentes estão sob o
seu governo. O Sr. Martin permanecerá ali durante três anos. Uns dias depois, Leônia e
Celina instalam-se perto, na casa das Irmãs de São Vicente de Paulo e, do dia 16 de
fevereiro ao dia 5 de maio de 1889, vão todos os dias pedir notícias, pois não podem
visitá-lo senão uma vez por semana.

A família Martin está aterrada, desorientada, dolorosamente transtornada.


Teresa escreve regularmente a Celina para Caen, e, no Carmelo, refugia-se num silêncio
alimentado pela Palavra de Deus. "Não sabia que a 12 de fevereiro, um mês depois da
minha Tomada de Hábito, o nosso querido pai iria beber pela mais amarga, pela mais
humilhante de todas as taças. Ah! nesse dia não disse que podia sofrer ainda mais! As
palavras não podem exprimir as nossas angústias, por isso não vou tentar descrevê-
las. Um dia, no Céu, gostaremos de falar das nossas gloriosas provações. Não nos
sentimos já felizes por as termos suportado?... Sim, os três anos do martírio do Papai
parecem-me os mais amáveis, os mais frutuosos de toda a nossa vida. Não os trocaria
por todos os êxtases e revelações dos Santos. O meu coração transborda de
reconhecimento ao pensar nesse tesouro inestimável!" (Ms A 72 v-73r).

Os mexericos aumentam ainda mais a aflição da família: "O santo patriarca"


vive entre os loucos! Não é isto uma prova que se estenderá a todos os seus?

Como vai reagir Teresa a esta privação que a afeta no mais íntimo dela
mesma? Contemplando mais do que nunca a Santa Face de Jesus. Todo o período do
noviciado viverá o peso desta desgraça.

Mas o olhar de dor do papai transforma-se docemente no véu da Verônica.


"Como a Face Adorável de Jesus que foi vendada durante a sua Paixão, assim a face
do seu fiel servidor devia ser vendada nos dias das suas dores..." (Ms A 20v). Através das
lágrimas, Teresa descobre, por detrás do olhar do seu pai humilhado, os traços do
Salvador sofre- dor: "Não tinha aparência nem beleza; eradesprezado, homem de dores"
(Is 53,2-3). No fim da sua vida, Teresa confessará: "Estas palavras de Isaías constituíram o
fundamento da minha devoção à Sagrada Face, ou para melhor dizer, o fundamento de
toda a minha piedade. Também eu desejava estar sem beleza, pisar as uvas sozinha no lagar,
desconhecida de todas as criaturas..." (UCR 5.8.9).

E Jesus ensinar-lhe-á que "a verdadeira sabedoria consiste em querer ser ignorado


e tido em nada, em pôr a sua alegria no desprezo de si mesmo" (Imitação, 3,49).
Teresa escreverá à Irmã Maria do Sagrado Coração: "Rezai para que a vossa filhinha seja
sempre um grãozinho de areia muito obscuro, muitoescondido de todos os olhares, que só
Jesus possa vê-lo; que se tome cada vez mais pequeno, que seja reduzido a nada" (Ct
49).

E à Irmã Inês de Jesus: "Rezai pelo pobre grãozinho de areia para que o grão de
areiapermaneça sempre no seu lugar, quer dizer debaixo dos pés de todos, que
ninguém pense nele, que a sua existência seja por assim dizer ignorada, o grão de areia
só deseja ser humilhado, isto é ainda glorioso demais visto que seriam obrigados a
ocupar-se dele, e ele só deseja uma coisa, ser esquecido, ser tido em nada! (...) Que ao menos
a face ensangüentada de Jesus se volte para ele... Não deseja senão um olhar, um
só olhar!... Se fosse possível a um grão de areia consolar Jesus, enxugar-Lhe as
lágrimas, como há um que o queria fazer... Que Jesus tome o pobre grão de areia e que o
esconda na sua Face adorável... aí o pobre átomo não terá mais nada a recear, estará
certo de não pecar mais" (Ct 95).

“No silêncio e na esperança estará a vossa fortaleza (Is 30,15)

Com a tomada de hábito começa o ano canônico do noviciado de Teresa. De fato,


o seu noviciado durará vinte meses. Ao fim de um ano poderia ter emitido os votos
perpétuos (então não havia profissão temporal). Em janeiro de 1890 terá exatamente
os dezessete anos requeridos pelas Constituições para o seu compromisso de toda
a vida. Mas, considerando a sua juventude, os "superiores", o Capelão Delatroëtte e a
Madre Maria de Gonzaga, julgam preferível atrasar o prazo. Tem de esperar novamente,
como para a tomada de hábito. Teresa afirma: "Ao princípio foi-me bem difícil aceitar
esse grande sacrifício..." (Ms A 73v).

Durante o noviciado, a carmelita continua a receber formação em todos os


aspectos, mas não participa ainda no capítulo das religiosas. Além do mais, Teresa nunca
participará, não votará, pois continuará sempre no noviciado: "Além disso, ela não
poderia gozar dos seus direitos de capitular (voz ativa e passiva), devido à presença das
suas duas irmãs mais velhas no capítulo conventual" (CG 725). É o tempo da
autêntica aprendizagem "religiosa": do amadurecimento interior, da iniciação na vida
de oração e na partilha fraterna. Teresa exercita-se em tomar a sua parte no trabalho
comunitário, com as dificuldades e alegria inerentes.

Há pouco a realçar neste período:  "Aplicava-me sobretudo a praticar as


pequenas virtudes, não tendo facilidade para praticar as grandes. Assim, gostava de dobrar
as capas esquecidas pelas Irmãs, e de lhes prestar todos os pequenos serviços que
pudesse" (Ms A 74v).

"Trabalho unicamente para Lhe agradar" (UCR 16.7.6)

A noviça forma-se cada vez mais no seu ambiente. A Irmã M aria do


S agrado  Coração, "anjo" de Teresa, inicia-a nos costumes do Carmelo. No ofício
coral, a mais nova entoa as antífonas, recita os versículos, lê as lições do ofício
noturno (Matinas), tudo em latim. Nasua vez, faz por uma  semana os serviços
de hebdomadária: toque da sineta, serviço e leitura durante as refeições.

Por outro lado, os trabalhos domésticos fazem parte da vida das carmelitas.


Alguns são feitos pelo conjunto da comunidade, como a lavagem da roupa.
Durante a lavagem da roupa fazem turnos na lavanderia  para lavar a roupa ou no
lavadouro para bater a roupa de linho. Teresa entrega-se ao trabalho com ardor, mas
não esquece o essencial: "O teu ofício nesta vida / deve ser unicamente: 'O amor!"'
(PN 13).

Na autobiografia de Teresa fala-se frequentemente de "ofícios". Esta


palavradesigna ao mesmo tempo uma função ("ofício") ou um lugar. O emprego
confia-se a duas irmãs ("oficiais "): uma "primeira oficial", res pons ável,
e uma "s egunda oficial", frequentemente uma noviça ou uma
jovem professa. A Irmã Teresa do Menino Jesus foi toda a sua vida "segunda
oficial".

O lugar é onde se realiza a função: alfaiataria, rouparia, fabricação das hóstias,


roda,pintura... Quando Teresa estava a agonizar na cama da enfermaria, numa das
suas últimas conversas, a madre Inês de Jesus pediu-lhe que explicitasse os seus
ofícios no Carmelo: "Desde a minha entrada no  Carmelo, fui destinada à
rouparia com a Madre Sub-priora (Irmã Maria dos Anjos): tinha, além disso, de
varrer a escada e o corredor... Lembro-me que me custava muito pedir à Nossa
Mestra permissão para fazer mortificação no refeitório, mas nunca cedi à minha
repugnância, parecia-me que o crucifixo do claustro, que eu via pela janela
da rouparia, se voltava para mim para me pedir este sacrifício. Era nesta época
que eu ia apanhar erva às 4:30 h., o que descontentava a Nossa Madre. Depois da
minha tomada de hábito, fui destinada ao refeitório até à idade de dezoito anos;
varria-o e punha a água e a cerveja. Nas Quarenta Horas de 1891, puseram-me
na sacristia com a Irmã Santo Estanislau. A partir do mês de Junho do ano
seguinte, fiquei dois meses sem ofício, quer dizer que, durante esse tempo, pintei
os anjos do oratório e servia de terceira à depositária. Depois desses dois meses,
fui destinada à roda com a Irmã São Rafael, sem deixar a pintura. Tive estes dois
ofícios até às eleições de 1896, quando pedi para ajudar a Irmã Maria de São José
na rouparia, nas circunstâncias que já sabe..."

A madre Inês acrescenta: "Contou-me depois como a achavam


vagarosa, pouco dedicada nos ofícios, coisa que eu própria acreditei; e de fato
lembramo-nos as duas como a repreendi com severidade por causa de uma toalha
do refeitório que tinha guardado durante muito tempo no cesto, sem a arranjar.
Acusava-a de negligência e enganava-me, pois foi o tempo que lhe faltou.  Desta
vez, sem nada a desculpar, chorara muito , ao ver-me triste e muito
descontente... Como é possível! Disse-me ainda o que tinha sofrido no refeitório
comigo (eu era nessa altura a sua primeira de ofício), por  não poder dizer-me os
seus pequenos segredos como outrora, porque não tinha licença para isso, e por
outras razões... Tanto que a madre chegou a ponto de já não me conhe cer,
acrescentou ela. Falou-me da violência que fazia sobre si mesma para tirar as
teias de aranha do vão escuro de Santo Aleixo, debaixo da escada (tinha horror
às aranhas), e mil outros pormenores que me provavam como ela tinha sido fiel
em tudo e o que tinha sofrido sem ninguém se dar conta" (UCR 13.7.18).

Há outra tarefa que espera a Teresa


"Ah! como ficaria contente, se soubesse pintar... Com grande admiração das
Irmãs, mandaram-me pintar, e Deus permitiu que eu soubesse aproveitar das lições que
me dava a minha querida Madre Inês" (Ms A81 r-v).

Pouco a pouco, depois da eleição da sua irmã para o priorado, Teresa dedica-se


ao ofício de pintar. Continuará, na sombra, iluminando, pintando imagens religiosas,
ornamentos da Igreja. Durante o Verão de 1893, Teresa pintou um afresco na parede do
oratório das doentes. Este afresco rodeia o tabernáculo onde o capelão, nos dias de
adoração, expõe a custódia.

Quando no dia 20 de fevereiro de 1893 a Irmã Inês de Jesus é eleita priora, não
há problemas para que Teresa organize as festas, sobretudo porque as principais
relacionam-se com a prioresa. A madre Inês cede o mando à sua Irmã Teresa. "Deus quis
que conseguisse fazer poesias, compondo trechos que acharam bonitos" (Ms A 81v).
Na opinião dos críticos mais exigentes, a jovem religiosa tem autêntico dom poético,
embora não tivesse tido nenhuma formação literária profunda. Ela explicá-lo-á: "O nosso
Amado não necessita das nossas belas idéias, das nossas obras maravilhosas. Não é o
espírito nem os talentos o que Jesus veio buscar aqui embaixo". Efetivamente, Teresa oferece-
se a si mesma, toda, a Deus. A santidade? É esta a sua obra mestra!

Assim, Teresa vai seguir uma tradição do Carmelo: a de transcrever sob forma
poética os sentimentos da alma, os profundos movimentos da vida interior. Teresa de
Ávila e João da Cruz, nas suas "glosas" espirituais, foram os primeiros a dar o exemplo.
Neste espírito Teresa é requerida para escreverpoesias para solenizar as festas da Igreja,
os aniversários, as profissões.

A serviço da liturgia

"A irmãzinha Amém-, como lhe chama a Irmã Santo Estanislau, a sua "primeira
oficial" na sacristia, trabalha neste ofício desde fevereiro de 1891 até fevereiro de
1893. Voltará a este ofício com a sua prima Maria Guérin, já carmelita, em março de
1896.

Teresa é feliz com este trabalho que a associa o mais de perto possível com
o ministério sacerdotal: ei-la sacerdote, sem o ser, ela que invejava a sua vocação!
"Sinto em mim a vocação de sacerdote. Com que amor, ó Jesus, te seguraria nas minhas
mãos quando, à minha voz, descesses do Céu... Com que amor te daria às almas!...
mas, ai de mim! Desejando ser Sacerdote, admiro e invejo a humildade de São
Francisco de Assis, e sinto a vocação de o imitar, recusando a sublime dignidade do
Sacerdócio" (Ms B 2v).

Gosta muito de preparar as hóstias e encher o cálice. "Sentia-me muito feliz


por tocar nos vasos sagrados e por preparar os corporais destinados a receber Jesus.
Dava-me conta de que precisava ser muito fervorosa, e lembrava-me muitas vezes
desta frase dirigida a um santo diácono: 'Sede santos, vós que tocais nos vasos do Senhor'
(Is 52,11)" (Ms A 97v). Onze dias antes da sua morte, Teresa pede ainda para poder olhar
no fundo do cálice, depois da missa: "Porque vejo a minha imagem refletida nele.
Na sacristia gostava de fazer isto. Ficava contente por dizer a mim mesma: Os meus
traços refletiram-se no ponto em que repousou o sangue de Jesus e onde voltará a
descer" (UCR 19,9).
No dia a seguir ao Natal de 1891, a epidemia da gripe que assolava a Europa (cerca
de 70.000 vítimas), abateu-se sobre a comunidade. Em oito dias, levou três religiosas
das mais velhas: a mais velha de oitenta e três anos, Irmã São José de Jesus, no dia 2
de janeiro de 1892; no dia 4, a Irmã Febrônia, a sub-priora; no dia 7, Teresa encontra
morta na sua cela a Irmã Madalena, a mais velha das irmãs conversas.

A maior parte das carmelitas caem de cama. Ficaram de pé apenas Teresa, a


Irmã Maria do Sagrado Coração e uma conversa, a Irmã Marta. "Nessa altura estava eu
sozinha com o cargo da sacristia, por estar gravemente doente a primeira do ofício. Era
eu que tinha de preparar os funerais, abrir as grades do coro para a missa, etc." (Ms A
79r). Teresa trabalha ativa e tranquilamente; amortalha as mortas, cuida das doentes.
A vida comum está completamente desorganizada não há toques de sinos, não há
ofícios, não há refeições em comum no refeitório. Ao superior, que tempos antes era
contrário à vocação da "irmãzinha Amém", não lhe resta mais remédio senão constatar a
fortaleza de ânimo com a qual Teresa enfrenta a situação: "Ela é — diz — doravante uma
grande esperança para a comunidade" (CG 649).

Como estas circunstâncias não são para ir incomodar ininterruptamente a priora


para lhe pedir licenças, Teresa aproveita para realizar um dos seus desejos mais
queridos: "Durante todo o tempo em que a Comunidade assim foi provada, puder ter
a inefável consolação de receber todos os dias a Sagrada Comunhão" (Ms A 79v).

Teresa não se verá privada de "festas" no Carmelo: celebram-se tantas...,


litúrgicas ecomunitárias, incluídas no quotidiano: "As festas... Gostava tanto delas" (Ms A
17r).

As festas litúrgicas escalonam todo o ano. Já Santa Teresa se Ávila punha a liturgia
no cume da vida de oração. Dava um lugar importantíssimo à Eucaristia, ao ritmo
das Horas canônicas. No Carmelo, procura-se tomar em oração as grandes intenções
da humanidade, e interceder por elas. Além disso, oração silenciosa durante todo o
dia: "Tratar de amizade, estando muitas vezestratando a sós com quem sabemos que
nos ama", dizia a Santa de Ávila (V 8,5). Pela manhã e pela tarde, durante a hora de
oração, é o momento da escuta silenciosa do “Amigo verdadeiro".

As grandes festas litúrgicas do Natal, da Páscoa, do Pentecostes, de Nossa


Senhora do Monte Carmelo... celebram-se no convento com alegria e, habitualmente,
seguidas de dias de "licença" (em Natal, três), nos quais as irmãs podem falar
livremente. Quanto às festas comunitárias — tomadas dehábito, profissões, bodas de ouro
—, celebram-se na clausura de um modo mais íntimo e fraterno. Interesse especial merece
a festa da priora: não só dura dois dias, mas as irmãs representam alguma pequena peça de
teatro cuidadosamente preparada. Teresa coloca em cena, no dia 21 de janeiro de1894,
"A missão de Joana d'Arc" (RP 1), em honra da Donzela de Orleans. No ano seguinte,
na mesma festa, apresenta "Joana d'Arc cumprindo a sua missão" (RP 3).

Para os recreios "ordinários", as irmãs reúnem-se no Inverno na única sala


com aquecimento e conversam ao mesmo tempo em que se ocupam livremente de
algum pequeno trabalho; no Verão, o jardim oferece-lhes um ambiente agradável.
Quando chega a época de recolher o feno, todas as sãs se dedicam a isso com
prazer.
"Eu sou para o meu amado, o meu amado é para mim" (Ct 6, 3)

Chega o tempo de Teresa fazer a sua consagração definitiva pelos votos


religiosos, que selam a entrega total do ser ao Deus de Amor, pelo caminho cotidiano da
fidelidade. Consagrada já a Deus pelo batismo, a noviça deseja tornar mais profunda
esta aliança. Para isso, escolhe viver uma vida de pobreza, de castidade e de
obediência, entregando-se ao Espírito Santo, para que, com Cristo, a sua própria vida
seja oferecida ao Pai pela Igreja e por toda a humanidade.

Em relação à observância dos votos, na prática, Teresa tinha, num alto grau, o
espírito do normal e da renúncia. Algumas citações sobre o particular confirmam-no
suficientemente. "Uma noite, depois de  Completas, procurei em vão a nossa
lamparina nas prateleiras onde as deixávamos. Como estávamos no silêncio
rigoroso, era impossível reclamá-la... Compreendi quealguma Irmã, pensando levar a
dela, tinha pegado a nossa, da qual eu tinha grande necessidade. Em vez de sentir
desgosto por me ver privada dela, fiquei muito feliz, sentindo que a pobreza consiste em
se ver privada, não somente das coisas agradáveis, mas mesmo das coisas
indispensáveis" (Ms A 74v). A propósito da pobreza espiritual: "Regozijei-me por ser
pobre, desejei sê-lo cada vez mais" (Ct 176). "Não temas, quanto mais pobre fores, mais
Jesus te amará" (Ct 211). Quanto ao voto de castidade, dirá: "O coração do meu Esposo é
só meu como o meu é só d'Ele" (Ct 122).

Para Teresa, o voto de obediência anda a par com a liberdade interior: "De
quantas inquietações nos livramos ao fazer o voto de obediência!... Mas quando se deixa de
olhar para a bússola infalível... depressa a alma se transvia nos caminhos áridos..:” (Ms C
11r). "Enfim, não escrevo para compor uma obraliterária, mas por obediência. Se vos
aborreço, pelo menos vereis que a vossa filha deu provas de boa vontade" (Ms C 6r).
"Estou a obedecer-vos... Não julgueis que procuro saber que utilidade poderá ter o meu
pobre trabalho; como o faço por obediência, isso me basta, e não sentiria nenhum desgosto
se o queimásseis na minha frente, sem o terdes lido" (Ms C 33r).

Teresa está a ponto de emitir os seus votos. Ao estar fixada a cerimônia da


profissão para o dia 8 de setembro de 1890, o retiro de preparação começa a 29 de agosto.
A partir do dia 30, escreve à Irmã Inês: "É preciso que a solitariazinha vos diga o
itinerário da sua viagem, ei-lo. Antes de partir, o seuAmado perguntou-lhe para que país
queria ela viajar, que caminho desejava seguir, etc., etc. A noivazinha respondeu que
tinha somente um desejo, o de chegar ao cimo montanha do Amor. Então Jesus pegou-
me pela mão, e fez-me entrar num subterrâneo onde não está frio nem calor, onde não
brilha o sol e que nem a chuva nem o vento visitam, um subterrâneo no qual nada vejo a
não ser uma claridade semi-velada, a claridade que espalham à sua volta os olhos baixos
da face do meu Prometido C..) A senda que sigo não é de consolação alguma para mim
e todavia traz-me todas as consolações visto que foi Jesus que a escolheu, e que eu só
a Ele desejo consolar, só a Ele!" (Ct 110). No mesmo dia confidencia à Irmã Maria
do Sagrado Coração: "Ela está feliz por seguir o Noivo por amor a Ele só e não por causa
dosseus dons... Só Ele é tão belo, tão encantador! Mesmo quando se cala...
mesmo quando se esconde" (Ct 111).

No exame canônico de 2 de setembro, Teresa responde ao superior, o


Sr. Delatroëtte: "O que vinha fazer no Carmelo, declarei-o aos pés de Jesus-Hóstia, no
exame que precedeu a minha profissão: 'Vim para salvar as almas e, especialmente para
rezar pelos sacerdotes” (Ms A 69v).

Na véspera da profissão, uma tempestade repentina sacode Teresa no seu retiro:


"As minhas trevas eram tão grandes, que não via nem compreendia senão uma coisa: Eu
não tinha vocação!... Fui chamar a minha Mestra e, cheia de confusão, manifestei-lhe o
estado da minha alma... Felizmente, ela viu mais claro do que eu, e tranquilizou-me
completamente" (Ms A 76v).

Na manhã do dia 8 de Setembro, na sala capitular, Teresa faz a profissão na


presença de toda a comunidade reunida: "Senti-me inundada por um rio de paz. E foi
nessa paz superior a todo o conhecimento, que pronunciei os meus Santos Votos.
Ofereci-me a Jesus, para que Ele cumpra perfeitamente em mim a sua vontade, sem
que as criaturas jamais se oponham" (Ms A 76v).

No dia 24 de setembro de 1890 teve lugar a cerimônia da Tomada do véu de


Teresa: da mudança do véu branco de noviça pelo véu negro de professa: "Foi um dia
inteiramente cheio de lágrimas. O Papai não estava lá... O Padre [Pichon] estava no
Canadá. O Senhor Bispo que devia vir e jantar em casa do meu Tio, estava doente
também, e não veio. Enfim, tudo foi tristeza e amargura... Não obstante, a paz, sempre a
paz, encontrava-se no fundo do cálice. Nesse dia Jesus permitiu que nãoconseguisse
reter as lágrimas, e o meu pranto não foi compreendido" (Ms A 77r). A madre Inês
escreverá, na sua declaração nos Processos: "Em vez de a consolar, disse-lhe: 'Não
compreendo que choreis"'.

Doravante, a Irmã Teresa do Menino Jesus é carmelita de pleno direito. Que é para
ela o Carmelo? Um lugar de vida austera, rigorosa, esgotante, mas que por dentro
irradia a presença do Deus de Amor a quem Teresa espera não Lhe negar nada.

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AS VINTE E QUATRO HORAS NO CARMELO

GENEV1EVE DEVERGNIES OCD

Como se apresenta, nos tempos de "irmãzinha Teresa", um dia no convento


de Lisieux? Apesar de uma ligeira diferença entre o horário de Verão, desde a Páscoa até
14 de Setembro, e o de Inverno, desde o dia 14 de Setembro até à Páscoa, a jornada
ordinária é quase sempre idêntica. Eis o desenvolvimento, conforme as notas da Irmã
Genoveva:

4:45h Levantar

5:00h Oração

6:00h Horas menores do ofício

(Prima, Tércia, Sexta e Noa)


7:00h Missa e ação de graças

(nos domingos, às 8:00 h)

8:00h Pequeno-almoço: sopa

(nada nos dias de jejum)

Trabalho

9:50h Exame de consciência

10:00h Almoço

11:00 Recreio (lavar os pratos na cozinha, para as irmãs encarregadas: cerca


de meia hora)

12:00h Silêncio (sesta, tempo livre)

13:00h Trabalho

14:00h Vésperas

14:30h Leitura espiritual (ou reunião das noviças no noviciado)

15:00h Trabalho

17:00h Oração

18:00h Ceia

18:45h Recreio (lavar os pratos)

19:40h Completas

20:00h "Silêncio" (tempo livre, como ao meio-dia)

21:00h Matinas e Laudas (duração: uma hora e um  quarto, uma hora e


quarenta minutos, conforme as festas)

Exame de consciência (dez minutos)

Leitura do ponto de oração do dia seguinte

22:30h/23:00h Descanso.

No dia 14 de setembro, horário de Inverno: atrasa-se em uma hora a hora de se


levantar, bem como todas as atividades da manhã inclusive o recreio. A sesta suprimia-
se; a partir das 13:00h, volta-se ao mesmo horário do Verão.
O tempo fica dividido: seis horas e meia para a  oração (duas horas de oração
mental e quatro horas e meia para a missa e o ofício coral); meia hora de leitura
espiritual; cerca de cinco horas para o trabalho; duas horas de recreio comunitário;
quarenta e cinco e trinta minutos para as refeições em comum, em silêncio
(Acompanhadas de leitura em voz alta); uma hora de tempo livre ("o silêncio
rigoroso"), antes de Matinas; seis horas para dormir no Verão (completadas com
sesta facultativa de uma hora); sete horas contínuas no Inverno.

Regime alimentar do Carmelo

Algumas notas sobre o regime alimentar do  Carmelo de Lisieux, em


tempos de Teresa:

A Regra do Carmelo prescreve a abstinência perpétua de carne, mas autoriza-a


em caso de doença ou de debilidade. O pão constitui a base da alimentação, que se
completa também com muito leite e féculas. As refeições são assim distribuídas:

a) Regime de Verão, sem jejum:

- Depois da missa (pelas 8:00 h): sopa grossa, que se tomava de pé, no seu
próprio lugar, pelo lado exterior da mesa.

-Ao meio-dia (de fato, às 10:00 h): peixe ou ovos, legumes (ração abundante),
sobremesa (queijo ou fruta); as rações eram preparadas antes em pratos de barro.

- Pela tarde (às 8:00 h): sopa, legumes, sobremesa.

Nada entre as comidas; havia licença para beber às 15:00h e depois de


matinas.

Algumas Irmãs achavam mais penoso que o jejum esse regime de duas


comidas pela manhã, com um intervalo de duas horas.

b) Jejum da Ordem:

- Pela manhã, nada.

- Almoço, às 11:00h: sopa, e o resto como de costume.

- Ceia, às 18:00h: pão pesado (de meia a sete onças, ou seja, cerca de 215
gramas), manteiga ou queijo, frutas, às vezes marmelada. Nem caldo nem sopa:
nada quente.

c) Jejum da Igreja [Quaresma, Quatro têmporas e vigílias]:

- Pela manhã, nada.

- Almoço, às 11:30h: como no pequeno-almoço da Ordem, mas são proibidos os


ovos e os produtos lácteos; sopa ou com água ou com azeite.
- Refeição, às 18:00h: seis onças de pão, nada de marmelada, frutos naturais
ou secos (maçãs, figos,ameixas, nozes, etc.).

Teresa não jejuou antes dos vinte e um anos  (Janeiro de 1894), mas
esteve submetida à abstinência de carne, exceto quando dispensada por doença.

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AS LEITURAS DE TERESA

GENEVIEVE DEVERGNIES OCD

A educação espiritual familiar recebida, ajuda Teresa a realizar poderosamente


a sua unidade interior. A sua formação continua a aperfeiçoar-se no Carmelo, por meio
de leituras pessoais ou escutadas em comunidade.

Desde o Postulantado, Teresa tem para uso pessoal o Manual do cristão, que
contém os Salmos e o NovoTestamento, a Regra e as Constituições, um livro de Direção
espiritual, Notas de conduta, levado para França pelas nossas Madres espanholas, obra
que servia de base para a formação das noviças, do tempo de Teresa; este livro continha
todas as regras em ordem a "compostura exterior" que a carmelita devia adquirir.
Também um Saltério traduzido por Glaire e um Pequeno Breviário do Sagrado Coração.

Entre os livros mais usados por Teresa encontram-se certamente: a Imitação de


Jesus Cristo, que a mais nova das filhas Martin sabia praticamente de memória; e a obra
que comenta com autoridade a doutrina da renúncia: Os fundamentos da vida espiritual do
Pe. Surin, As nossas grandezas em Jesus Cristo, bem como A piedade e a vida
interior do Sr Bispo de Segur, um ou outro volume do Pe. Faber, especialmente Ao pé
da cruz, do qual Teresa se servirá para a sua recreação piedosa "A fuga para o Egito" (RP 6).

Alguns livros eram postos à disposição das noviças, outros eram colocados no
antecoro, para uso dasreligiosas que os podiam levar ou consultar ali. Teresa
conheceu o livro de Henrique Suso, Avisos espirituais; gostava, igualmente, dos
comentários de alguns versículos de Isaías do P. Luís d'Argentan, e, desde há muito
tempo, apreciava, nas conferências do abade Arminjon, um verdadeiro tratado dos
novíssimos.

Esta lista não é exaustiva... Contudo, é importante indicar que a jovem religiosa
se dedica especialmente às obras de fundo dos reformadores do Carmelo. Em Lisieux, o
conhecimento e a influência de Teresa de Ávila leva vantagem em muito a João da
Cruz. Teresa não leu as obras completas da Madre; apesar disso, por sua vez, gostará
de se chamar "filha da Igreja", afirmará que "só Deus basta", escreverá na sua
própria língua "Daria mil vidas para salvar uma só alma".

Por outro lado, a influência de São João da Cruz é profunda na jovem: "Ah!
quantas luzes não extraí das obras do Nosso Pai São João da Cruz! Na idade de 17 e 18
anos, não tinha outro alimento espiritual" (Ms Ab83r). Dele recebe principalmente
e docilmente as lições sobre a renúncia interior, vivendo por seu lado "sem apoio e,
no entanto, apoiada..."
Para falar verdade, o "doutor místico" era pouco conhecido na França, e
menos ainda estudado. A biblioteca do convento da rua de Livarot não possuía em
1888 mais que três tomos da sua vida e das suas obras, referidas por um autor
anônimo. Além disso, quando o Carmelo da avenida de Messina em 1876,
por instâncias de uma priora de origem andaluza — madre Teresa de Jesus —,
traduz e edita as obras de João da Cruz, não será um carmelita, mas um domi nicano,
o mui reverendo P Chocarne, quem pedirápara fazer a introdução. Antes da Irmã
Teresa do Menino Jesus, não se sabe se há algum dado de que utilizassem de forma
metódica os escritos do Carmelo espanhol. Não havia nenhuma revista para os
contentar ou divulgar. A cultura religiosa, bastante rudi mentar, não convidava a
penetrar nos segredos deuma doutrina que se considerava reservada a
poucos iniciados. Até a ponto de que São João da Cruz, nos finais do século XIX
passava inclusive como um autor desconhecido; era pouco lido e nunca se via citar
a sua autoridade.

Teresa chegará a afirmar: "Mas é sobretudo o Evangelho, que me vale


durante as minhas orações.Nele encontro tudo o que é necessário à minha
pobre alminha" (Ms A 83v).

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TERESA NOS FALA:

"Como crianças pequenas"

"Compreendi o que era a verdadeira glória.  Aquele, cujo reino não é deste
mundo (Jo 18,36), mostrou-me que a verdadeira sabedoria consiste em«querer ser
ignorada e tida por nada, — a «pôr a sua alegria no desprezo de si mesma»... Ah! como
o de Jesus, eu queria que «o meu rosto ficasse verdadeiramente escondido; que ninguém
na terra me reconhecesse» (Is 53,3). Tinha sede de sofrer e de ser esquecida...

Como é misericordioso o caminho pelo qual Deus sempre me conduziu! Nunca me


fez desejar nada sem mo dar. Por isso, o seu cálice amargo tornou-se delicioso..." (Ms A
70r).

"Verdadeiramente, estou longe de ser uma santa. Só isso é já uma prova. Em vez
de me alegrar com a minha aridez, devia atribuí-la ao meu pouco fervor e à minha pouca
fidelidade; deveria desolar-me por dormir (desde há sete anos) durante a oração e a ação
de graças. Ora, eu não fico desolada... Penso que as criancinhas tanto agradam aos pais
quando dormem, como quando estão acordadas; penso que para fazerem operações, os
médicos adormecem os doentes. Enfim, penso que: «O Senhor vê a nossa fragilidade
e lembra-Se de que apenas somos pó» (Sl 102,14).

O meu retiro da Profissão foi, portanto, como todos os que se lhe seguiram, um
retiro de grande aridez. Contudo, Deus mostrava-me claramente, sem que disso me
apercebesse, a maneira de Lhe agradar e de praticar as mais sublimes virtudes. Dei-me
muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar provisões, alimenta-me a cada instante
com um manjar completamente novo, e encontro-O em mim sem saber como lá está...
Creio muito simplesmente que é o próprio Jesus, escondido no íntimo do meu
coraçãozinho, que me dá a graça de agir em mim, e me faz pensar em tudo o que Ele
quer que eu faça no momento presente" (Ms A 75v-76r).

"O triunfo do meu rei"

"A festa [da tomada de hábito] foi encantadora; e a desejos da sua pequena
noiva, dava-lhe neve... (...) mais bela, a mais encantadora flor foi o meu querido Rei.
Nunca tinha estado mais belo, mais digno... Foi a admiração de toda a gente. Esse dia foi o
seu triunfo, a sua última festa cá em baixo. Tinhadado todas as suas filhas a Deus, pois
tendo-lhe a Celina confiado a sua vocação, ele tinha chorado de alegria e tinha ido com
ela agradecer Àquele que «lhe dava a honra de levar todas as suas filhas» (...) Depois de
ter beijado pela última vez o meu querido Rei, voltei para a clausura. A primeira coisa
que vi no claustro foi «o meu menino Jesus cor-de-rosa», sorrindo-me no meio de flores
e luzes. Logo a seguir, o meu olhar se deparou com flocos de neve... O claustro estava
branco como eu! Que delicadeza de Jesus! Indo ao encontro dos desejos da sua
pequena noiva, dava-lhe neve... (...) Esse fato fez evidenciar mais ainda a
incompreensível condescendência do Esposo das virgens..., d'Aquele que tanto
gosta dos Lírios brancos como a NEVE!..." (Ms A 72r-v)

"Como acabo de dizer, o dia 10 de Janeiro foi o triunfo do meu Rei. Comparo-o
à entrada de Jesus em Jerusalém no dia de Ramos. Como a do nosso divino Mestre, a sua
glória de um dia foi seguida duma paixão dolorosa, e essa paixão não foi só para ele.
Assim como as dores de Jesus trespassaram com uma espada o coração da sua divina
Mãe, assim os nossos corações sentiram os sofrimentos daquele a quem
mais ternamente amávamos sobre a terra..." (Ms A 73r).

"Não conheço outro meio senão o amor"

"Minha querida Maria, por mim não conheço outro meio para chegar à perfeição
senão «o amor»... Amar, como o nosso coração está bem feito para isso!... Às vezes
procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas na terra do exílio as palavras são
impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma, por isso temos de limitar-nos a
esta única palavra: «Amar!...»

Mas a quem o dispensará o nosso pobre coração faminto de Amor? Ah! quem


será suficientemente grande para isso... um ser humano poderá compreendê-lo... e
sobretudo retribuí-lo?... Maria, só há um ser que pode compreender a profundidade desta
palavra: Amar!... Só o nosso Jesus sabe retribuir-nos infinitamente mais do que nós Lhe
damos..." (Ct 109, a Maria Guérin, julho de 1890)

CAPÍTULO 6

A DESCOBERTA DO "PEQUENO CAMINHO"

CONRAD DE MEESTER ocd

Nos capítulos precedentes seguimos a jovem Teresa na sua aprendizagem da


vida carmelitana. Situação nova, frequentemente dura, mas que ela desejou de todo o
seu coração. Sabia que Jesus a chamava ao"deserto", e estava disposta a segui-1o
por todas as partes por onde Ele a guiasse. Nenhum nome ressoa tão
profundamente nela como o de "Jesus".

Assim como seria um erro grave pensar que Teresa nascera santa, equivocar-nos-
íamos se imaginássemos que a jovem carmelita não tinha senão de seguir maquinalmente
um caminho claramente traçado, uniforme. Dentro do Carmelo, Teresa teve que descobrir o
seu próprio caminho, "um pequeno caminho completamente novo" (Ms C 2v), do qual ela
será a figura de proa. Lançando-se a toda a pressa, Teresa teve que passar mais de sete
anos antes de compreender que amar profundamente, como ela entendia, não era
possível realizá-lo com as suas próprias forças. Só Jesus a devia dar a Jesus.

Teresa teve que viver no Carmelo uma singular aventura espiritual. Só por meio
de muitas reflexões e exames, de tomadas de consciência e decisões, também da
escuta suplicante ao Senhor, foi como Teresaencontrou o seu modo particular de
realizar a sua vocação cristã e contemplativa na Igreja. Teresa conheceu a
obscuridade e a angústia. O seu caminho passava por vezes pela noite. Sofreu
exteriormente, mas ainda mais interiormente. Sentiu o peso da sua "pobre natureza", o
nosso "instrumento de trabalho" (Ct 89). "Com uma natureza como a minha (...) talvez me
tivesse perdido" (Ms A 8v). Também no momento atual, o caminho de Teresa pelo
deserto em busca de uma fonte escondida e guiada pela confiança em Deus continua a ser
profético tanto para o cristão individual como para toda a Igreja.

Numa época de marcado sabor jansenista, na qual o acento se punha em Deus


justo Juiz e no esforço pessoal para garantir a salvação por meio das boas obras,
temendo o pecado que espreitava por todos os lados, Teresa preferiu olhar livremente
para o amor misericordioso de Deus. Mas, não deve o cristãodescobrir e amar
ininterruptamente a este Deus de amor? Acabaremos alguma vez de "crer no Amor"
(1Jo 4,16) e, como Teresa, entregar-nos a Ele?

É este o convite da Santa de Lisieux. O cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII,
dizia: "É o próprio Evangelho, o coração do Evangelho que Teresa encontrou, mas
com que encanto e frescura". E João Paulo II, ao visitar Lisieux: "Podemos dizer
convictamente de Teresa que o Espírito de Deus permitiu ao seu coração revelar aos
homens do nosso tempo o mistério fundamental, a realidade do Evangelho: o fato de ter
recebidorealmente um espírito de filhos adotivos que nos faz gritar “Abbá, Pai!” (Rom
8,15).

Amar, único ideal e único caminho

Quando Teresa ultrapassa o umbral do Carmelo, leva consigo poucas coisas. A


sua riqueza está dentro, é a chama no seu coração. Na véspera da sua entrada, acaba
de afirmar: "Quero dar-me toda inteira a Ele, já não quero viver senão para Ele" (Ct 43
B).

Numa palavra, amará a Jesus conforme os seus sonhos ilimitados. É por


isso que o "deserto" do Carmelo a fascina. Devolve-a ao Essencial. Esconde uma
Presença. O seu vazio é esperança. E, para Teresa, a generosa, cada sacrifício converter-
se-á numa palavra de amor, num sorriso, numa flor a dar.
Há muito pouco tempo; enquanto vivia no mundo, tinha-se proposto dar a
Jesus "mil provas de amor" (Ms A 47v).

Sabemos que "o sofrimento lhe estendeu os braços" (Ms A 69v). Confessou à
Irmã Teresa de Santo Agostinho: "Posso-vos assegurar que travei muitos combates e que
não passei nem um só dia sem sofrimentos, nem um só" (PA 337). Tanto melhor pensa
a jovem noviça: "o sofrimento é uma mina de ouro a explorar, iremos perder a
ocasião?" (Ct 82).

Teresa abordou a sua vida de carmelita com a firme resolução de realizar, custe
o que custar, o seu ideal de santidade. "Quero ser santa (...), quero sê-lo" (Ct 45). "Chegar a
ser uma grande santa" é o leitmotiv (Ct 52,80). O seu Senhor não "quer pôr limites
à (sua) santidade" (Ct 83). O preço nunca será demasiado alto: "Jesus pede-te
tudo, tudo, tudo, tanto quanto pode pedir aos maiores Santos" — e sublinha a
palavra"tudo", respectivamente, duas, três e cinco vezes (Ct 57).

Teresa queria bater o record mundial do amor a Deus! "Queria atuá-1o tanto...
Amá-1o como jamais foi amado!..." (Ct 74).

Amá-lo "até à loucura" (Ct 93, 96), "com paixão" (Ct 94), "até ao infinito" (Ct
127). Fala de si mesma quando escreve a Celina: "O amor de Jesus a Celina não pode
ser compreendido senão por Jesus!... Jesus fezloucuras por Celina... Que Celina faça
loucuras por Jesus" (Ct 85). Teresa começará"com toda a sua capacidade de amar"
(Ct 104). No dia da sua profissão pede "o amor, o amor infinito, sem outro limite que
não sejas Tu, o amor que já não seja eu, mas Tu, meu Jesus" (Or 2).

Como realizar este ideal de amor perfeito?

Para Teresa, nestes primeiros anos no Carmelo, não há dúvida: pelo amor,
pelo meu amor, muito, muito, muito generoso, como resposta às loucuras do amor de
Jesus! porque "o amor só com amor se paga", diz Teresa, seguindo o seu grande mestre
espiritual São João da Cruz (Ct 85).

Teresa está certa de o conseguir algum dia. "O amor pode fazer tudo, as coisas
mais impossíveis não lhe parecem difíceis" (Ct 65). Não conhece outro caminho: "Por
mim não conheço outro meio para chegar à perfeição senão 'O amor'... Amar, o nosso
coração foi feito para isso!... Às vezes procuro uma outra palavra para exprimir o amor, mas
na terra do exílio as palavras são impotentes para exprimirem todas as vibrações da alma,
por isso temos de limitar-nos a esta única palavra: "Amar!..."(Ct 109).

Conclusão prática? "Aproveitemos, aproveitemos os mais breves instantes,


façamos como os avarentos, sejamos ciosas das mais pequenas coisas para o bem-
Amado!" (Ct 101).

O sofrimento aureolado

É certo que o sofrimento, nestes anos, corrigiu muitas vezes o seu percurso.


O sofrimento está presente. Em abundância. Continuamente. Em numerosos e variados
terrenos.
Não falamos da austeridade externa que a situação monástica traz à jovem Martin,
nascida numa família acomodada e rodeada do conforto do seu tempo. Trata-se do que
ela quis, do que ela abraça com uma generosidade imensa e com impaciência: todas
estas privações na alimentação, no descanso, no espaço, na higiene, na habitação, na
temperatura desta casa sem aquecimento. Esta é a arena onde levará a cabo o seu combate
pelasantidade, pelo amor sem fim e sem limites.

A solidão afetiva é maior ainda. Paulina e Maria, que a precederam no Carmelo,


não quiseram recriar o clima familiar dos Buissonnets, que deliberadamente
tinham abandonado. Depois está a prioresa, a madre Maria de Gonzaga, da qual Teresa
descobre muito rapidamente este lado receoso e susceptível que acalma de modo
repentino e imprevisível a influência e o calor do seu coração maternal. E a
comunidade, Teresadescobre logo o lado cansativo que descreverá mais tarde: "estes
tristes sentimentos da natureza" (Ms C 19r), estes "combates" e "fracassos" e
"debilidades" (Ms C 23v) que descobre nela mesma e nas outras, "essas doenças
morais que (são) crônicas": " a falta de bom senso, de educação, da susceptibilidade de
certos caracteres, todas as coisas que não tornam a vida muito agradável" (Ms C 28r).

Mais purificadoras ainda, a aridez, o sono e as distrações nas duas horas de


oração diárias e nos retiros anuais. Reconhecê-lo atormenta-a. Ao lembrar o
inqualificável sofrimento pela doença humilhante do seu pai (da qual falaremos a
seguir), Teresa escreve: "A minha alma partilhou as torturas do meu coração. A aridez
era o meu pão cotidiano. E mesmo privada de toda a consolação, eu era a mais feliz das
criaturas,pois todos os meus desejos estavam satisfeitos" (Ms A 73v).

Teresa escreve isto à distância de anos. Certamente que no próprio momento o


sofrimento foi normalmente puro... sofrimento, desconcertante, diante do qual ela
reagia pobremente, humildemente, "debilmente","sem alegria, sem valor, sem fortaleza"
(Ct 82), sabendo-se "fraca e bem fraca, todo os dias tem disso uma nova experiência"
(Ct 109).

A generosidade de Teresa, sacudida sem interrupção, não se quebra. É essa cana —


o distintivo que leva nos seus vestidos de carmelita — que se verga, mas que não quebra
(Ct 55). Num segundo momento, o sofrimento não faz senão avivar a generosidade.
Teresa quer transformar toda a debilidade e toda a adversidade em amor a Jesus:
amando-o exclusivamente, com mais humildade, com maior pureza, com mais
insistência, levantando-se depois de cada queda para recomeçar sempre. Seguindo as
comparações que neste tempo lhe são queridas, Teresa entregar-se-á ao capricho de Jesus
como "uma bolinha" nas suas mãos, humilde e pequena como "um grão de areia",
"desconhecida" e "esquecida" (Ct 103), "ignorada" e "debaixo dos pés de todos", mas "vista
por Jesus" (Ct 95).

Todo o sofrimento lhe é proveitoso. É a moeda com que se paga a santidade. O


sofri mento, neste tempo, leva como que uma auréola. Teresa repete convictamente
as palavras do P. Pichon: "A santidade! É preciso conquistá-la na ponta da espada, é preciso
sofrer... é preciso agonizar!..." (Ct 89).

Cristo, espelho do Pai


Teresa é realista. Não se perde em sofrimentos sonhados, mas aceita o presente —
e que presente! —. Mais do que por qualquer outra prova, Teresa será provada pela
doença do seu pai. De preocupante e angustiante, durante os primeiros meses de Teresa
no Carmelo, a doença do pai converter-se-á em sofrimento dilacerante e humilhante.

No dia 12 de fevereiro de 1889, em que o papai infinitamente querido por Teresa,


em conseqüência da arteriosclerose que se lhe fixou na cabeça, é internado num
hospital psiquiátrico nas circunstâncias mais dramáticas, Teresa é realmente pisada por
todos. À distância dos anos, escreve: "Lembro-me de que no mês de junho de 1888, na
altura das nossas primeiras provações, eu dizia: 'Sofro muito, mas sei que posso
suportar ainda maiores sofrimentos'. Não imaginava então os que me estavam
reservados... Não sabiaque a 12 de fevereiro, um mês depois da minha Tomada de
Hábito, o nosso querido pai iria beber pela mais amarga, pela mais humilhante de todas
as taças... Ah! nesse dia não disse que podia sofrer ainda mais!!!" (Ms A 73r). O Sr.
Martin estará mais de três anos no Bom Salvador de Caen. O coração  de Teresa,
encenado no seu Carmelo — pois seu pai estava no que se chamava normalmente a "casa
dos loucos" —, sangrará abundantemente, por muito tempo. Teresa oferece todo o seu
sangue a Jesus.

Durante a doença do seu pai, a fé da filha sofre uma intensa purificação.


Recordemos que Teresa tem apenas dezesseis anos. Para ela, tão jovem ainda, o seu
papai, tão bom, prudente e piedoso, foi até ali, quase naturalmente, um espelho de Deus
Pai. Mas eis que, de repente, o seu papá começa a fazer coisas extravagantes,
incoerentes, perigosas. O espelho quebra-se em mil pedaços.

Perante o sofrimento, Teresa agüenta com fortaleza. Quer dar tudo,


absolutamente tudo! Mas entre linhas, julgamos pressentir que está silenciosamente
enfrentada com o mistério de Deus. Não pediu tanto para que isto não sucedesse? E eis o
fiasco aparente da sua oração. Necessariamente as perguntas vêem à luz num humilde
pensador como Teresa, ainda quando não as admita de modo nenhum e refazê-las
imediatamente. Mesmo quando lhes responda afirmando a sua vontade de sofrer por ele e
pelas almas, imitando a Jesus.

Porque permite Deus semelhante provação a quem sempre O serviu com


fidelidade? Certamente, diz-se — e Teresa repete-o —que o sofrimento é um privilégio
reservado aos amigos de Deus e que no céu tudo terá a sua recompensa. Mas, existe o céu?
Teresa, que na sua autobiografia cala de propósito muitas coisas, refere de passagem esta
afirmação: "Tinha então grandes provações interiores de todas as espécies até me
interrogar, por vezes, se haveria Céu" (Ms A 80v). É a pergunta sobre o mais além, que
no fim da sua vida virá ao de cima com tanta crueldade e à qual Teresa respondeu, em Jesus,
com uma fé e um amor magníficos.

Durante este tempo, e em parte sob esta pressão, a jovem religiosa de


dezesseis, dezessete anos aproximar-se-á de Cristo de um modo novo. Descobre a
"Santa Face" de Jesus agonizante, o seu rosto ensangüentado, humilhado, coberto de feridas
e lágrimas. Teresa contempla como o Ressuscitado sofreu antes. Deus não impediu o
sofrimento e a morte, inclusive para o seu amado Filho. Por isso, para Teresa, o
mistérioincompreensível do sofrimento não é totalmente absurdo nem está em
contradição com a bondade do Pai. E vê como Jesus assumiu a sua morte com um amor
que oferece, perdoa se abandona a Deus com uma confiança redentora.
De uma fé um tanto tradicional, Teresa passa a uma fé assumida pessoalmente e
responsável. A sua fé torna-se fundamentalmente "cristã". Jesus converte-se no
seu grande argumento e certeza, não quer senãoconhecê-lo. No seu Oferecimento ao
Amor misericordioso evocará com alegria a "Face" de Jesus, bem como "o crisol do
sofrimento pelo qual passou" (Or 6).

A beleza de Jesus

E o seu Cristo brilha na noite. Entre os dezesseis e os vinte anos, Teresa


descobre cada vez mais a profundidade do Evangelho e a inefável beleza de Jesus, valor
superior a qualquer valor. "Só Jesus é; tudo o mais não é ... amemo-lo pois
apaixonadamente" (Ct 96). "Só Ele é deslumbrante em toda a forçado termo (...) a própria
Beleza" (Ct 76). É o "belo Lírio das nossas almas" (Ct 105).

Quem poderá dizer "as belezas escondi das de Jesus"? Apenas as vê na fé.


"Sim, a Face de Jesus é luminosa, mas se no meio das feridas e das lágrimas é já tão
bela, que será então quando a virmos no Céu? Oh! OCéu... Sim, para ver um dia a Face
de Jesus, para contemplar eternamente a maravilhosa beleza de Jesus, o pobre grão de
areia deseja ser desprezado na terra!..." (Ct 95). Mesmo na noite percebe-se "uma
claridade semi-velada, a claridade que espalham à sua volta os olhos baixos da face do
meu Prometido" (Ct 110).

A beleza de Jesus, Verbo eterno, é também a beleza do seu amor pelos


homens... Ama-nos inefavelmente: "Jesus arde de amor por nós... Contempla a sua
face adorável!... Vê esses olhos apagados e baixos!... Vê essas feridas... Contempla
Jesus na sua Face... Aí verás como Ele nos ama" (Ct 87).

“A tua Face é a minha única Pátria, ela é o meu Reino de amor" (PN 20).

O abandono à ação de Deus nela

Depois dos "três anos de martírio" (Ms A 73r), no dia 10 de maio de 1892, o
Sr. Martin, doravante paralítico das pernas e inofensivo, volta ao seio da família.
Passou, para Teresa, "a provação tão dolorosa de Caen" (Ct 137). Mais ainda, no dia 20
de fevereiro de 1893, a Irmã Inês, a sua "segunda mamãe" dos Buissonnets, é eleita priora.

Começa, psicologicamente, para Teresa uma nova etapa. Passaram os "cinco


anos" desofrimento (Ms A 70r); agora, "com o amor, não só avança, mas voa" (Ms A
80v).

Entra também espiritualmente numa nova etapa. Já em outubro de 1892, durante


o seu retiro anual, compreendeu que, uma vez que "o exterior" foi aniquilado pela
provação de Caen, agora Jesus convida-a a trabalhar mais intensamente no desapego
"interior": tem que "descer" a tudo o que pudesse engrandecê-la ainda aos seus próprios
olhos (Ct 137).

Numa carta de 6 de julho de 1893 (Ct 142), utiliza, pela primeira vez nos seus
escritos — se tivermos em conta a sua ordem cronológica —, o substantivo "abandono",
resumo da sua nova atitude. O sofrimento e o esforçopróprio perderam a sua primordial
importância para ceder o lugar à amorosa adesão, não só à vontade do Senhor, mas, antes de
tudo, à sua mesma Ação divina em Teresa.

A nossa carmelita afirma nesta carta que "o mérito não consiste em dar muito,
mas em receber muito". Não quer de modo nenhum "amontoar tesouros para o céu"
(Ct 91), mas abandona agora o seu "negócio" espiritual no Senhor. "A tua Teresa —
confessa a Celina — não se encontra neste momento nas alturas, mas Jesus ensina-lhe 'a
tirarproveito de tudo, do bem e do mal que encontra em si' [São João da Cruz]. Ensina-
lhe a jogar à banca do amor ou antes, joga Ele por ela sem lhe dizer como se faz porque isso
é assunto d'Ele e não de Teresa, o que ela tem de fazer é abandonar-se, entregar-se sem
nada reservar para si, nem mesmo a alegria de saber quanto lhe rende o banco (...) Jesus não
me ensina a contar os meus atos; ensina-me a fazer tudo por amor (...), mas isto faz-se na
paz, no abandono, é Jesus que faz tudo e eu não faço nada" (Ct 142).

Teresa, filha de comerciantes, tem gosto no uso da linguagem econômica e


financeira para falar do seu progresso espiritual; é-lhe familiar, tal como a linguagem
guerreira.

Combativa e apaixonada, gostava de rever o seu trabalho, recolher os ganhos


espirituais, desejosa de se ver chegar em breve "ao cimo da montanha do amor" (Ct
112). Enquanto caminha, compreenderá que nunca lhe será possível amar como lhe
pede o coração, a não ser que o Senhor ame nela. Aprenderá sem se dar conta a ceder e a
não querer nunca conquistar a Deus à força de braços, a nãoaproveitar-se e fazer
cálculos, mas a abrir as suas mãos para receber a Deus de Deus.

A fraqueza irremediável

Desde há tempo que quis pagar amor com amor, igualando. tanto quanto
possível, o amor infinito de Deus, fazendo "loucuras de amor" por Jesus, que fez "loucuras
de amor" por nós (Ct 85), amando a Deus "como nunca foi amado" (Ct 74). Depois
de seis anos de vida religiosa, confessa: "Nunca poderemos fazer por Ele as loucuras
que fez por nós, e as nossas ações não merecem este nome, porque são apenas atos
muito razoáveis e muito abaixo daquilo que o nosso amor queria realizar" (Ct 169).

Ficará inevitavelmente sem chegar ao amor sonhado. Na tarde da sua breve


vida, Teresa pronunciar-se-á sobre as verdadeiras dimensões dos dois amores: "O vosso
amor precedeu-me desde a minha infância, cresceu comigo, e agora é um abismo, cuja
profundidade não consigo sondar. O amor atrai o amor; por isso, meu Jesus, o meu lança-
se para Vós, e quereria encher o abismo que o atrai, mas, pobre de mim! Nem chega a
ser uma gota de orvalho perdida no oceano!... Para Vos amar como Vós me amais,
preciso de me servir do vosso próprio amor; só entãoencontro repouso" (Ms C 35r).

Teresa reconhecerá sempre a sua "fraqueza", as suas "faltas" e


"infidelidades", certamente pequenas, por assim dizer, invisíveis aos olhos dos outros,
mas reais e perceptíveis para ela que tem "olhos e o coração" da águia (Ms B 4v).
Inclusive debilidade irremediável, da qual sem duvidar dirá mais tarde: "Todas as
nossas justiças têm manchas" (Or 6), "nenhuma vida humana está isenta de pecados"
(Ct 226), as almas"mais santas não serão perfeitas senão no Céu" (Ms C 28r). Teresa
conheceu no Carmelo também escrúpulos e angústias em relação às suas faltas e ao
seu estado de graça, e era sensível ao amor perfeito que Deus merece. Chegou a estar
"numa noite tal, que até duvidava se Deus me amava" (Ms A 78r). O encontro com o Pe.
Prou, em outubro de 1891, libertá-la-á neste assunto; o padre explica-lhe que há "faltas
que não contristam a Deus" (Ms A 80v). Um ano antes, já Teresa o tinha pressentido: há
faltas que não ofendem a Deus, mas que só humilham e tornam mais forte o
amor" (Ct 114).

A carmelita observou com finura esta lenta purgação da sua miséria, numa das
passagens mais profundas e mais humanas que escreveu: "Quando me recordo do tempo
do meu noviciado, vejo bem quanto era imperfeita... Sofria por pouco, que agora rio-
me disso. Ah! como o Senhor é bom por ter feito crescer a minha alma, por lhe ter dado
asas (...) Mais tarde, sem dúvida, o tempo em que estou vai-me parecer ainda cheio de
imperfeições, mas agora já não me admiro de nada, não tenho desgosto por ver que sou a
própria fraqueza, pelo contrário, é nela que me glorio, e conto descobrir em mim todos os
dias novas imperfeições" (Ms C 15r).

Teresa acabará com a sua fraqueza congênita e com a necessidade profunda da


graça de Deus, único remanso de salvação. É o que explorará a seguir: a assombrosa
misericórdia do amor de Deus.

Quando o caminho não é ainda claro

A sua fraqueza irremediável e a grandeza do amor de Deus levaram Teresa a


adotar a sua atitude de abandono, característica durante o período de 1893-1894,
isto é, depois de cinco ou seis anos de vida religiosa.

É isto já o seu famoso "pequeno caminho"? Teresa não espera de si


mesma méritos eprogressos, mas de Deus. É profunda a consciência da sua incapacidade.
A partir de agora, procura mais deixar agir o Senhor do que transformar por si mesma a
sua fraqueza em amor. Dá-se conta da prioridade do amor de Deus, que não só está na
origem dos nossos atos de amor, mas também os aperfeiçoa. Tudo isto, não é já o
caminho da infância espiritual?

Certamente, tudo isto já é viver como um filho do Pai. No entanto, não é ainda a
plenitude do "pequeno caminho" de Teresa. Há que tomar a sério a Santa quando afirma
que num momento determinado — e isto acontecera durante o Outono de 1894 —
descobriu um "pequeno caminho completamente novo".

Digamo-lo com a terminologia da sua carta de 6 de julho de 1893: Teresa


dava-se conta então do "jogo" divino no seu caminho para a santidade, mas não
compreendia ainda "como Jesus a tomava" para "lhe dar" o seu amor. Quando Teresa
descobre o seu "pequeno caminho", o Senhor revelar-lhe-á precisamente como a toma
para fazê-la avançar. Então Teresa poderá adaptar-se perfeitamente ao jogo de Deus. Verá
diante de si um caminho perfeitamente claro. Anteriormente, caminhava por bom
caminho, mas na obscuridade, como um cego, com dúvidas, atrasos, erros. Com quanta
rapidez e segurança vai correr agora por um caminho iluminado!

Conforme o que Teresa nos explicou sobre o seu "pequeno caminho


completamente novo", é de Deus de quem fez a sua grande descoberta, que se referirá à
misericórdia divina precisamente enquanto misericórdia. Certamente que já antes Teresa
tinha consciência da bondade de Deus e da sua compaixão. Mas agora aprende a
reconhecer que o amor de Deus não só é real, primeiro e fiel, mas é um amor que desce ao
pequeno, que busca o pequeno porque é pequeno, e que Ele é grande para com o
pequeno. A pequenez, em vez de ser principalmente humildade, será a partir de agora
principalmente confiança.

Desejosa de ser pequena e de chegar a sê-lo cada vez mais, Teresa ambicionará
antes de tudo uma confiança completamente filial. "O que agrada a Deus na minha
pequena alma — escreverá mais tarde — é ver-me amar a minha pequenez e a minha
pobreza, é a esperança cega que tenho na sua misericórdia... Só a confiança e nada mais
do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor" (Ct 197). Com plena consciência e
vontade confiar-se-á à obra da Graça nela, colaborará com ela e a ela se entregará.

A descoberta do "pequeno caminho"

Só no manuscrito autobiográfico C, escrito três meses antes de morrer, é que Teresa


se referiu à descoberta do seu "pequeno caminho muito direito, muito curto, um
pequeno caminho completamente novo" (cf. Ms C 2r-v). Tendo comprovado, ao comparar-
se com os santos, por um lado que é como um grão de areia aos pés de uma montanha e,
por outro, que "fazer-se crescer a si mesma é impossível" (quer dizer, que ela se faça
crescer a si mesma, mas isto não exclui que Deus a faça crescer), Teresa põe-se a procurar
nos "Livros Sagrados" uma solução: uma espécie de "ascensor", que a elevasse ao cimo
da montanha da santidade.

Convém saber aqui que no dia 14 de setembro de 1894, um mês e meio depois
da morte do Sr. Martin, Celina se tinha consagrado também ao Senhor no Carmelo
de Lisieux. Quando entrou levava consigo umpequeno caderno onde tinha copiado as
passagens mais belas do Antigo Testamento. Como então não era permitido às
carmelitas jovens ler o Antigo Testamento na sua totalidade, Teresa, ávida da Palavra de
Deus, tinha mergulhado no pequeno caderno de Celina. Foi assim como num dia de
Outono de 1894 viveu o seu eureka tão importante.

Ao princípio, ficou impressionada com uma primeira frase: "Se alguém for


pequenino, venha a mim" (Pr 9,4). Sentiu-se aqui pessoalmente retratada: não era a
pequenez o seu especial problema no seu caminhar para chegar a ser uma grande
santa? Ei-la aqui convidada a aproximar-se de Deus como "pequena", a ver-se "toda
pequena".

Guiada pelo Espírito, prossegue na sua procura, com uma exegese totalmente


pessoal e penetrante. Ei-la desconcertada ao ler a promessa de Deus: "Como uma mãe
acaricia o seu filho, assim Eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e embalar-vos-ei nos
meus joelhos" (Is 66,13.12).

Detenhamo-nos um instante. Teresa cita duas vezes esta passagem, e duas


vezes deixa transparecer a emoção que provoca nela. Eis o que sobre isto diz: "Ah!
Nunca palavras tão ternas e tão melodiosas me vieram alegrar a alma!" (Ms C 3r). Mais
ainda: "Depois de semelhante linguagem, nada mais resta senão calar-nos, chorar de
gratidão e de amor" (Ms B 1r).

Porquê uma emoção tão profunda? P orque, Teresa lê aqui na Bíblia, pela
primeira vez na sua vida, que Deus é como uma mãe para o seu filho. E Teresa é
hipersensível ao amor de uma mãe! Não tinha perdido, na idade de quatro anos e oito
meses, a sua "incomparável" mãe, que morreu de câncer? (Ms A 4v). Esta perda brutal,
na idade em que a filha tinha tanta necessidade do amor maternal para estruturar a sua
personalidade, causou em Teresa um profundo traumatismo do qual não sairá até aos
catorze anos, com a "graça do Natal". Imediatamente, depois da morte da sua mamãe.
Teresa afeiçoou-se com todas as suas forças à sua Irmã Inês, a sua "segunda mamãe",
que em breve partiria para o Carmelo. Nova ruptura quando a outra irmã, Maria, terceira
mamãe por assim dizer, vai também ela para o convento...

E Teresa, a órfã, lê que Deus é como uma mamãe para com o seu filho pequeno!
Então, conclui: "É preciso que eu permaneça  pequena, e que me torne cada vez
mais pequena" — até ser o "pequenino" a quem Deus cumula com o seu amor de mãe.

A sua conclusão é evidente: este "pequeno caminho muito direito, muito curto"
que conduz ao cume do amor e da santidade, este "ascensor" que Teresa procura, "são os
vossos braços, ó Jesus!" (Ms C 3r).

TERESA NOS FALA:

"Jesus não quer fazer nada sem nós"

"E este Bem-amado ensina a minha alma, fala-lhe no silêncio, nas trevas...
Ultimamente veio-me umpensamento que tenho de dizer à minha Celina. Foi num dia
em que pensava no que podia fazer para salvar as almas, uma passagem do Evangelho
deu-me uma viva luz. Uma vez Jesus dizia aos seus discípulos, mostrando-lhes os campos
de trigo maduro: 'Levantai os olhos e vede como os campos já estão bem loiros para serem
ceifados' e um pouco mais tarde: 'Na verdade a messe é grande, mas os operários são
poucos; rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários' (Mt 9,37-38). Que
mistério!... Não é Jesus onipotente? Não pertencem as criaturas a quem as fez?Então
porque diz Jesus: 'Rogai ao Senhor da messe que envie operários'? Porquê?... Ah! é que
Jesus tem por nós um amor tão incompreensível que quer que tenhamos parte com Ele
na salvação das almas. Não quer fazer nada sem nós" (Ct 135).

"Alimentar o amor"

“Santa Teresa diz que é preciso alimentar o amor”. A lenha não se encontra ao nosso
alcance quando estamos nas trevas, na aridez, mas não estaremos ao menos obrigadas
a lançar nele algumas palhinhas?

Jesus é suficientemente poderoso para conservar sozinho o fogo, todavia fica


contente por nos ver alimentá-lo, é uma delicadeza que Lhe agrada e então lança Ele no
fogo muita lenha, nós não O vemos, mas sentimos a força do calor do amor. Tenho feito disto
a experiência, quando não sinto nada, quando sou INCAPAZ de rezar, ou de praticar a
virtude, é então o momento de procurar pequenas ocasiões, nadas que dão gosto, mais
gosto a Jesus do que o império do mundo ou mesmo do que o martírio sofrido
generosamente, por exemplo, um sorriso, uma palavra amável quando teria vontade de
não dizer nada ou de mostrar um ar aborrecido, etc., etc.

Minha querida Celina, compreendes? Isto não é para preparar a minha coroa,
para ganhar méritos, é para dar gosto a Jesus... Quando não tenho ocasiões quero ao
menos dizer-Lhe muitas vezes que O amo, não é difícil e mantém o fogo, mesmo
quando me parece que estava apagado, esse fogo de amor, quereria lançar nele alguma
coisa e então Jesus saberia muito bem reacendê-lo" (Ct 143).

CAPÍTULO 7

O OFERECIMENTO AO AMOR MISERICORDIOSO

CONRAD DE MEESTER OCD

Seguimos, nos capítulos precedentes, Teresa até aos últimos meses de 1894, em
que descobriu o seu "pequeno caminho" (mais tarde chamado pela Madre Inês de Jesus "o
caminho da infância espiritual"). Vejamos agora como é guiada a fazer o oferecimento de
si mesma ao Amor misericordioso de Deus.

Sob a luz da "Misericórdia"

A partir da descoberta do seu "pequeno caminho", a "misericórdia" torna-se para a


jovem carmelita no sol da sua vida. Se a expressão estava até agora, por assim dizer,
ausente do seu vocabulário, a partir de agora emerge espontaneamente e em abundância.
Quando lhe é pedido a Teresa em janeiro de1895 — uns meses apenas depois da
descoberta do seu "pequeno caminho" — que escreva as suas recordações da infância (o
Manuscrito autobiográfico A), encontrará no instante o tema central: "As Misericórdias
do Senhor". Os três sinais de exclamação que aparecem no manuscrito de Teresa, bem
como os dez pontos suspensivos, sugerem quanto estas palavras dizem ao seu coração...

No prólogo deste manuscrito autobiográfico, Teresa descreve a livre


condescendência do Senhor como "o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e,
sobretudo, o mistério dos privilégios de Jesus para com a minha alma", a explicação das
"delicadezas absolutamente gratuitas de Jesus", das "preferências" "só da sua
misericórdia". "O próprio do amor é abaixar-se", escreve Teresa, demonstrando com isto
quanto pensa num amor de misericórdia. Deus "não desceria tão baixo", se não se
ocupasse intensamente do mais pequeno. "Descendo, assim, Deus mostra a sua grandeza
infinita", "assim como o sol ilumina ao mesmo tempo os cedros e cada uma das
pequeninas flores como se fosse única sobre a terra..:” (Ms A 2r-3v).

A palavra "misericórdia" teria aparecido muitas mais vezes nos seus escritos se
Teresa não tivesse compreendido, alguns meses mais tarde, que o amor de Deus é sempre
e tão essencialmente "misericordioso" que não se pode limitar unicamente à palavra
"Amor?': acrescentar "misericordioso" seria como um pleonasmo, dizer com duas
palavras o que se pode dizer com uma. E quando Teresa, no fim do Manuscrito A, alude
ao seu "oferecimento ao Amor misericordioso" (do qual falaremos a seguir), o fará apenas
como "oferecimento ao Amor".

Uma longa meditação escrita

A partir de janeiro de 1895 até finais do ano, Teresa vai escrever alguns aspectos
do seu passado. As suas "recordações de infância"? Certamente! Mas, na realidade, fala
em primeiro lugar do papel do seu misericordioso Amado na sua existência. Por todos os
lados vai correr agora o fio de ouro da sua Misericórdia pelo tecido da sua vida.
Agora vê, compreende. Tudo está iluminado. Escrever é orar, ver em
profundidade, cantar as Misericórdias, em ação de graças. O seu trabalho redatorial é uma
longa meditação que se incorpora no interior dela mesma. E, não duvidemos, em parte
sob o efeito desta longa meditação escrita no dia 9 de junho de 1895, na manhã da festa
da Santíssima Trindade. Teresa recebe "a graça de compreender mais do que nunca o
quanto Jesus deseja ser amado" (Ms A 84r). A forma passiva, ser amado, coincide na
realidade com a ativa, amar: Jesus quer amar-nos misericordiosamente, inundar-nos com
as "ondas de infinita ternura". E Teresa oferecer-se-á a Ele. Totalmente. Antes de entrar
nos pormenores do seu "oferecimento", detenhamo-nos ainda uns instantes no papel que
pôde jogar a imagem do seu papai, Luís Martin, nesta visão nova.

Conhecemos os laços inquebrantáveis que uniam o pai e a filha. Teresa chamava-


lhe o seu "rei', e ele chamava-lhe a sua "rainha". Aludimos à dor imensa quando Teresa
viu que o seu rei mergulhava na doença mental, que, em 1889, o separará da família,
ingressando num hospital psiquiátrico. A morte do Sr. Martin, em 1894, é para Teresa o
fim duma prolongada pena.

Três semanas depois da morte do seu pai, no dia 29 de julho de 1894, Teresa
confessa a Celina: "Como estas pequenas delicadezas nos fazem sentir que o nosso Pai
querido está perto de nós! Depois de uma morte de cinco anos que alegria reencontrá-lo
sempre o mesmo, procurando como antigamente os meios de nos dar prazer" (Ct 169).

E, no dia seguinte, a sua irmã Leônia, que voltara a entrar no convento da


Visitação: "A morte do papai não me dá a idéia de uma morte, mas de uma verdadeira
vida. Volto a encontrá-lo depois de seis anos de ausência, sinto-o à minha volta a olhar
para mim e a proteger-me (...) Estamos mais unidas agora que olhamos para os Céus para
aí descobrirmos um Pai e uma Mãe que nos ofereceram a Jesus... Em breve os desejos
deles serão realizados e todos os filhos que Deus lhes deu vão estar unidos a Ele para
sempre..." (Ct 170). A esta visão da vida futura — papai e mamãe com todos os seus
filhos reunidos em breve para sempre no céu — volta a referir-se Teresa no princípio da
sua autobiografia (Ms A 3r-3v).

Além disso, desde a primeira linha, o papai está presente nesta "história primaveril
de uma florzinha branca": este apelativo de "florzinha branca", que Teresa recebeu do seu
pai na tarde do Pentecostes de 1887, quando a autorizava a entrar no Carmelo, florzinha
branca que levava então — gesto simbólico e que sugestivo! — na sua Imitação de Cristo,
no capítulo: "Da necessidade de amar a Jesus sobre todas as coisas" (Ms A 50v).

Ao longo destas "recordações de infância", os "pais sem igual" (Ms A 4r) estão
presentes. Além disso, Teresa reavivou as suas recordações pessoais ao reler a
correspondência (impressionante) da sua mamãe. Enquanto escrevia, Teresa contempla o
coração do seu papá, morto recentemente e que agora "a olha e protege", este "coração tão
terno do papai [que, depois da morte da senhora Martin, tinha] unido ao amor que já de si
possuía um amor verdadeiramente maternal" (Ms A 13r).

Teresa realça ininterruptamente a alegre presença do seu pai no lar paterno ou


durante os longos passeios: "o seu belo rosto dizia-me tantas coisas!" (Ms A 17v); sentada
"sobre os joelhos do papai", ouvindo a "sua bela voz" quando cantava ou recitava poesias
ou rezava, Teresa não tinha "senão que olhar para ele para saber como rezam os santos"
(Ms A 18r). Recorda vivamente como o papai, no dia de Pentecostes de 1887, "pegando-
me na cabeça, encostou-a contra o seu coração", depois caminhou lentamente, mantendo a
minha cabeça encostada ao seu coração" (Ms A 50r). Tais gestos faziam Teresa pensar
espontaneamente "nas carícias que Deus há de ter por bem prodigalizar-lhe" um dia no
céu (Ms A 73 r; B 2r).

Neste contexto existencial depois da morte do Sr. Martin, que se tinha reunido —
com a sua esposa no céu e que velava sobre Teresa, compreende-se melhor porquê a
carmelita esteve profundamente afetada no momento de descobrir o seu "pequeno
caminho" na passagem de Isaías que compara Deus a uma mãe que senta o seu filho sobre
os joelhos e o cumula de carícias.

Do mesmo modo, compreende-se melhor que, em parte sob a influência da


recordação do seu pai, no dia 9 de junho seguinte, Teresa recebe "a graça de compreender
melhor do que nunca" como o "coração" de Jesus é rico em "ondas de infinitas ternuras" e
deseja "prodigalizá-las" àqueles que se atrevem a "lançarem-se nos seus braços e
aceitarem o seu Amor infinito" (Ms A 84r). Por laços inexplicáveis e com medidas que
não se podem definir exatamente, a graça e a luz de Deus passaram pela recordação de
todos os benefícios recebidos durante a sua vida, não menos que por meio dos seus pais
que para ela foram a imagem da bondade divina.

A vida póstuma do Sr. Martin foi contada muitas vezes nos últimos anos da sua
filha! Como o seu papai tinha sido para a sua filha Teresa uma imagem de Deus; como,
mais tarde, o olhar humilhado de seu pai se parecia com o da Santa Face de Jesus, servo
sofredor de Javé, assim o olhar e a recordação do papai que tinha entrado já na glória de
Deus converteram-se para Teresa, mais do que antes, num espelho em que o olhar
resplandecente e o coração maravilhoso de Jesus recebiam uma cor ainda mais humana e
concreta.

Na sua poesia Só Jesus, Teresa escreverá em 1896 palavras que vibram ainda com
doçura pela experiência feliz e vital que teve do seu próprio pai: "Tu que soubeste criar o
coração das mães / encontro em Ti o mais terno dos Pais! / Meu único Amor, Jesus,
Verbo Eterno / Para mim o teu coração é mais que maternal" (PN 36). Quinze dias depois
do seu oferecimento ao Amor misericordioso, Teresa tinha reconhecido já — na sua
poesia Ao Sagrado Coração de Jesus —, mostrando-se maravilhosamente humana na sua
fé no Verbo encarnado: "Preciso de um coração ardente de ternura, / Que me dê a sua
força sem reserva, / Que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza, / Que nunca me
abandone nem de dia nem de noite. / Não pude encontrar nenhuma criatura / Que sempre
me amasse, sem nunca morrer. / Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza, /
Que se torne meu irmão e possa sofrer!" (PN 23,4).

Quanto Jesus nos deseja amar...

Assim pois, Teresa nunca sondou melhor o amor de Cristo do que nesta manhã
primaveril do dia 9 de junho de 1895, cume de luz. Nas primeiras horas do dia (durante a
hora de oração silenciosa ou durante a eucaristia?) — não o sabemos), foi repentinamente
transportada pela realidade e a beleza do Amor misericordioso da Trindade, das Três
Pessoas divinas, que, em Jesus, querem se comunicar conosco, até inundar o nosso ser
profundo e a nossa existência diária (Ms A 83 r-84r).
"Já que Vós me amastes até me dardes o vosso Filho único para ser o meu
salvador e o meu Esposo..." (Or 6), canta jubilosa, deslumbrada pela luz que se derrama
do cume do amor que é Jesus. Na festa da Santíssima Trindade, o coração de Teresa
sonda o coração de Deus e sente-se completamente renovada. Teresa experimentará a
graça que recebe como um privilégio, uma eleição divina. "O Amor escolheu-me como
holocausto, a mim, fraca e imperfeita criatura": "é a minha própria fraqueza que me dá a
audácia para me oferecer como vítima ao teu Amor, ó Jesus!" (Ms B 3v).

Contempla, pois, o seu Cristo, que busca os pobres e os pecadores, devorado de


amor por todos. E que vê? Quanta indiferença da parte dos homens! O amor de Jesus é
"desconhecido em todos os lados", "recusado", "desprezado". Mendigos da "felicidade",
os seres humanos voltam-se para as criaturas, quando há um "Amor infinito", que
"necessita prodigalizar-se" e "derramar" uma torrente de graça.

E o coração de Teresa, coração de esposa, terno e fiel, sente uma dor dilacerante
diante da solidão de Jesus, forçado — por não lhe abrir as portas — a "reprimir as ondas
de infinita ternura que há Nele", quando bastaria, para as derramar, "lançar-se nos seus
braços e aceitar o seu Amor infinito..."

Porém, mais do que dor, Teresa sente uma "santa indignação" diante de Jesus que
"ficaria contente" de encontrar, por fim, um coração entregue sem reservas e sem
restrições. E a jovem religiosa de vinte e dois anos grita: "ó meu Jesus! Que seja eu essa
feliz vítima! Consumi o vosso holocausto com o fogo do vosso Divino Amor!..."

O oferecimento

Teresa entregar-se-á totalmente como "oferenda", como "vítima", diz. Numa


primeira reflexão, o seu espírito dirige-se para uma forma — que conhece — de se
oferecer como vítima especialmente à "Justiça" de Deus. Acontecia, na Igreja e também
no Carmelo, que as almas ofereciam-se a esta Justiça. Não se tinha recebido no mesmo
convento de Teresa, na véspera do dia 9 de junho, a nota necrológica de uma carmelita
francesa que morreu com terríveis sofrimentos e angústias, depois de se ter oferecido à
Justiça de Deus?

Nos tempos de Teresa, os cristãos estavam certamente marcados pelo temor do


Deus Juiz justo, a cujo olhar nada escapava, que recompensava ou castigava conforme os
méritos ou deméritos, a quem se pagava o preço do céu com a pequena moeda das boas
obras, sacrifícios e orações. Do mesmo modo, para pagar o resgate dos outros, algumas
almas — ouçamos Teresa — "ofereciam-se como vítimas à Justiça de Deus, a fim de
desviarem e atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados".

Teresa aprecia sinceramente este oferecimento. Parecia-lhe "belo e generoso".


"Belo", porque não procurava senão a grandeza e a santidade de Deus, recordando tudo o
que seu Filho tinha sofrido por nós. "Generoso", porque se expunha a assumir e expiar as
conseqüências do pecado.

Teresa aprecia-o, mas mantém as distâncias perante este oferecimento: "Estava


longe de me sentir impelida a fazê-lo". Como levar tais cargas sobre os seus frágeis
ombros? Ela tão fraca e pequena, que "sente a sua impotência", esta impotência que não
deixou de experimentar e de lhe calar fundo no Carmelo desde há mais de sete anos?
Mas não são considerações negativas as que intervêm em primeiro lugar. Nesta
manhã primaveril da festa da Santíssima Trindade, a luz é completamente positiva.

Trata-se de "compreender o quanto Jesus deseja ser amado", não temido. E a sua
infinita misericórdia, não a sua justiça exata e severa, que deve ser exaltada. Não é a
justiça divina que necessita de compreensão e resposta, mas a "infinita ternura" de Deus,
o seu "Amor misericordioso". Não se trata "de atrair sobre ela" castigos, mas de nos
deixarmos atrair pela ternura divina. Jesus não queria "descarregar" a sua justiça, mas de
“abrasar-nos" com o fogo do seu Amor.

Há oito meses que Teresa descobriu o seu "pequeno caminho", do qual recorda,
no princípio da sua oração de oferecimento, os eixos principais: o ideal da santidade
("numa palavra, desejo ser santa"), a realidade da sua própria impotência ("mas conheço a
minha impotência"), a reconciliação do ideal e da impotência no abandono que confia na
obra santificadora de Deus nela ("e peço-Vos, ó meu Deus, que sejais Vós mesmo a
minha Santidade"). Pois bem, nesta manhã, Teresa "compreende melhor do que nunca"
com quanto empenho o Amor misericordioso do Senhor está à sua procura, à nossa, no
coração da nossa pequenez. O Oferecimento ao Amor misericordioso situa-se,
historicamente e pela sua mesma natureza, nas perspectivas que este "pequeno caminho"
abre. O oferecimento é a conseqüência lógica, a expressão orante e a consagração
definitiva. A tese do desejo de santidade e a antítese da impotência ficam reconciliadas na
síntese do abandono que confia na obra do Deus três vezes santo, Amor misericordioso.

Teresa fala imediatamente a seguir dos fundamentos da sua confiança: 1) Por


nosso amor, o Pai deu-nos o seu Filho: "os seus méritos são meus, Vos ofereço com
alegria". Com um mesmo gesto, Teresa oferece "o amor e os méritos" de Maria, dos anjos
e dos santos. 2) A promessa de Jesus se cumprirá (Jo 16,23). 3) A presença nela de
grandes desejos, sinal com o qual um dia será cumulada.

Depois, volta a formular a sua súplica inicial de santidade. "Peço-Vos que venhais
tomar posse da minha alma". Posse completa, como uma "pequena hóstia" parecida à
hóstia eucarística que se converte no corpo de Cristo. Pequena hóstia, cuja "fraqueza" e
"imperfeições" serão "consumidas" e "transformadas" pelo fogo do amor divino.

Teresa apresenta-se, pois, ao Amor "misericordioso". A jovem carmelita explicou


que há "diferentes famílias" de almas, mas que a sua vocação própria, a sua vocação
particular, consiste "em honrar de maneira especial" a misericórdia de Deus e em
"contemplar e adorar através dela as demais perfeições divinas", que "todas se lhe
apresentam resplandecentes de amor".

Oh, não, Teresa não quer de modo nenhum apoiar-se nos seus próprios "méritos":
evitará a menor aparência de arrogância farisaica diante de Deus e dependerá unicamente
da pura bondade divina, da qual será louvor por toda a eternidade. A sua "única meta" não
é "acumular méritos", mas "trabalhar só por amor" de Deus, permitindo-lhe que "deixe
transbordar para a sua alma as ondas da sua ternura infinita". O seu objetivo é aliviar o
coração de Deus e fazer da sua própria vida um louvor da misericórdia de Deus, que, ela,
deseja ser o centro da nossa santificação — todo o Novo Testamento o testemunha. Deste
modo, será o Amor misericordioso quem realizará nela o seu sonho de amor! Teresa
"aceitará" o Amor, "receberá do Amor" a sua própria justiça" e o seu "céu".
Teresa qualifica esta tomada de posição diante da misericórdia como um
"oferecimento". Que respeito nesta oblação! Que dependência total da benevolência de
Jesus à qual, no entanto, se confia com total segurança, pois entreviu no seu coração o
desejo impetuoso de se comunicar! Por nada do mundo Teresa obrigaria Jesus a aceitá-la,
se não soubesse que é o desejo mesmo de Deus que ela se ofereça.

E, a partir deste momento, o oferecimento torna-se num autêntico dom de si,


numa entrega total. Teresa põe à disposição de Jesus toda esta fidelidade que desde há
muito tempo se acostumou a viver, procurando cumprir todos os seus desejos mais
pequenos. Mas esta generosidade não será mais, como noutro tempo, a moeda para
comprar a santidade, mas a expressão viva da sua abertura à vida de Jesus nela.

O que muda exteriormente na generosidade de Teresa depois da descoberta do seu


"pequeno caminho" e depois do seu "oferecimento" ao Amor misericordioso? Nada e
tudo! Nada, porque continuará como há tempo a ser muito fiel a "lançar flores", a
"aproveitar todas as mais pequenas coisas", a semear os seus nadas de amor (cf. Ms B 3v-
4r). E tudo, porque o faz apenas por delicadeza para com o Deus de amor, como
expressão da sua abertura incessante à sua Graça, a esta "imensidade de amor que Vos
dignastes prodigalizar-me gratuitamente sem nenhum mérito da minha parte" (Ms C 35r).

Assim pois, Teresa "suplica" com ardor ser "consumida" e 'transformada" pelo
fogo do Amor misericordioso. Quer decididamente lançar-se ao fogo, para receber tudo
do fogo. Sim, além disso, dirá. Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo" (PN 54). Desde a
festa da Trindade 1895 compreendeu, melhor do que nunca, que o dom de si é antes de
tudo o fruto de uma ação divina gratuita e cumulante: amar é receber tudo e receber-se a
si mesmo da misericórdia à qual nos abrimos e nos oferecemos.

Martírio de amor

Teresa pronuncia então uma espécie de voto de pobreza espiritual. "Na noite desta
vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que
conteis as minhas obras". Há uns anos descobriu que todo o nosso esmero é imperfeito e
tem "manchas": motivos bons e motivos mais egoístas misturam-se facilmente... Mas,
Teresa é, sobretudo, empurrada pelo desejo, certamente pela vontade firme ("quero"...
"não quero"), de prestar homenagem total ao Amor redentor de Cristo. Não é ela que
construirá o seu trono, nem fabricará a sua coroa: só Jesus será o seu "Trono" e a sua
única "Coroa". Todo o louvor será dirigido a "Vós, ó meu Bem-amado!..."

Teresa oferecer-se-á como vítima. O vocábulo alude geralmente a uma situação na


qual se sofre injustamente uma força maior e um sofrimento não querido. Não o podendo
dizer melhor, a jovem contemplativa utiliza este termo da sua época, mas num sentido
místico e de amor. Contudo, "força não querida"? Oh, como Teresa a chama com todo o
seu ser e lhe abre toda a sua liberdade, para que o Amor venha "tomar posse da sua alma"!
Disponível como Maria e a seu exemplo (é a Maria a quem Teresa "entrega o seu
oferecimento, pedindo-lhe que o apresente" ao seu Filho), oferece-se para ser inundada
das "ondas de ternura infinita" e ser mártir da ação do Amor nela, ao qual oferecerá cada
movimento do seu ser.

Se há injustiça, só é possível pela desproporção entre a nossa "impotência", a


nossa "fraqueza" e, por outro lado, a magnificência do perdão e da ação de Deus.
Semelhante injustiça, e eleição como "vítima" é para Teresa o objeto de todos os seus
desejos: "ó meu Jesus! Que seja eu essa feliz vítima...”

Teresa chega assim ao momento crucial do seu oferecimento. Penetra na infinita


ternura que realizará o seu sonho de santidade: "A fim de viver num ato de perfeito Amor,
ofereço-me..." "Perfeito Amor", Teresa sonha apenas nisto: "cumprir plenamente a vossa
vontade", a "santidade". E isto "num ato..." Num só! Contínuo! De manhã à tarde, e da
tarde à manhã, passando pela noite. "Viver de amor!" (PN 17). Eu não durmo, mas o meu
coração vigia! Porque Teresa encarrega o seu coração para que "renove este oferecimento
em cada palpitação". O seu coração será o seu delegado. Deste modo, permanecerá
vigilante em todo o momento, unida ao coração de Jesus, que deseja, oh, "quanto"! Amar-
nos. Este será o seu "martírio de amor".

O fogo do Espírito de Amor

Teresa qualifica a sua disponibilidade como a de uma vítima "de holocausto". A


palavra contém a imagem do fogo que com some. A carmelita conhecia os sacrifícios pelo
fogo do Antigo Testamento, mas aqui dirige-se ao "Fogo" do Pentecostes (no seu tempo,
na festa da Santíssima Trindade terminava a oitava do Pentecostes), o fogo espiritual, o do
Amor divino, pelo qual deseja ardentemente ser "consumida sem cessar" até ser
"transformada no (fogo) mesmo". Alguns meses antes, na sua poesia Viver de amor (PN
17), Teresa tinha evocado expressamente esta ação do Espírito nela: "O Espírito de Amor
abrasa-me com o seu fogo".

Ao oferecer-se ao Amor misericordioso, Teresa entrega-se novamente ao fogo do


Espírito, mergulha nas ondas do amor da Santíssima Trindade que a inundaram no dia do
seu batismo. É revelador que a Santa, de modo totalmente excepcional, assine o seu
Oferecimento fazendo preceder o seu nome religioso dos nomes do batismo "Maria
Francisca Teresa". Mergulhar conscientemente no fogo do Espírito de Amor, abrir-se sem
reserva à Vida de Cristo em nós, é a última conseqüência do seu batismo e do nosso.

Outro gesto eloqüente: doravante trará sempre sobre o seu coração o Evangelho, a
fórmula dos votos religiosos e o texto do seu oferecimento (o autógrafo está gasto e
remendado): batismo do cristão, profissão religiosa e oferecimento ao Amor estão aqui
simbolicamente unidos.

"Vítima", deseja encontrar-se sem defesa diante do fogo do espírito de Amor e


diante desta irrupção divina à qual ninguém deve parar. Teresa oferece-se rogando ao
Senhor que a "consuma sem cessar", que "deixe transbordar as ondas de ternura infinitas
que estão encenadas n'Ele". Como uma torrente. Um oceano, que inunda uma concha, a
enche, a leva ao infinito.

Os frutos

Na sexta-feira seguinte, dia 14 de junho de 1895, quando fazia a via-sacra, a


carmelita experimentou uma "verdadeira chama que ardia". Como se, de modo
excepcional, o Amor acusasse recibo deste oferecimento que, pela fé, sabemos lhe é tão
agradável. A madre Inês transcreveu o relato como segue: "Estava a começar a Via-Sacra,
e de repente, fui tomada por um tão intenso amor a Deus que não o posso explicar senão
dizendo que era como se me tivessem mergulhado completamente no fogo. Oh! Que fogo
e que suavidade ao mesmo tempo! Ardia em amor e sentia que um minuto, um segundo a
mais, não teria podido agüentar este ardor sem morrer. Compreendi então o que dizem os
santos destes estados que tantas vezes experimentaram. Quanto a mim, só o senti uma
vez, e por um breve instante, depois voltei a cair imediatamente na minha aridez habitual"
(UCR 7.7.2).

Mas se uma experiência extraordinária deste tipo foi não habitual, Teresa, de
modo difuso, experimentou os três grandes benefícios do seu oferecimento. Seis meses
depois, fala do impacto maravilhoso na sua vida. "Ah! Desde esse feliz dia, parece-me
que o Amor me penetra e me envolve. Parece-me que a cada instante este Amor
Misericordioso me renova, purifica a minha alma e não deixa nela nenhum vestígio de
pecado" (Ms A 84r). Agora se sente "inundada de luzes" (Ms A 32r). "Sinto que Jesus
está em mim. Ele guia-me e inspira-me a cada instante o que devo dizer ou fazer" (Ms A
83v). E nós sabemos como Teresa chegou a ser luminosa e incandescente para com os
seus próximos, lâmpada ardente em toda a Igreja.

Sem dúvida alguma, a partir da Páscoa de1896, quando, depois da sua primeira
hemoptise, Teresa está certa de morrer em breve, entra numa misteriosa noite sobre o
mais além. Se a luz simples e abundante desapareceu, como é que Teresa se sente,
todavia, levada pelo Amor misericordioso ao qual se ofereceu? A sua fé permanece
inquebrantável. Jesus está muito perto: "Em cada nova ocasião de combate, quando o meu
inimigo me vem provocar, porto-me com bravura. Sabendo que é covardia bater-se em
duelo, volto às costas ao adversário, sem me dignar olhá-lo de frente, mas corro para o
meu Jesus... Nunca experimentei tão bem como o Senhor é bom e misericordioso. Ele não
me enviou este sofrimento senão no momento em que tive a força para o suportar" (Ms C
7 r-7v).

Agora a ação misericordiosa do Senhor impregna todos os sectores da sua vida.


As suas virtudes, alegria, liberdade interior, verdade humilde, paciência? Teresa tem a
impressão que as recebe da mão de Deus. Felicitam-na pela sua paciência, ela responde:
"Ainda não tive um minuto de paciência. Esta paciência não é minha. Enganam-se
sempre!" (UCR 18.8.4).

A sua oração? Desde há tempo era mais uma maravilhosa relação de um "eu" com
um "Tu". Agora é antes uma relação, não menos maravilhosa, de um Tu com um "eu" que
confia totalmente. Teresa deixa que Jesus viva nela: "Eis a minha oração. Peço a Jesus
que me atraia para as chamas do seu amor, que me una tão estreitamente a Ele, que viva e
atue em mim" (Ms C 36r).

A sua caridade fraterna, da qual não deixará de "penetrar as misteriosas


profundidades" (Ms C 18v). "Sim, eu sinto que quando sou caridosa, é só Jesus que age
em mim; quanto mais estiver unida a Ele, tanto mais amo também as minhas Irmãs" (Ms
C 12v). Basta recorrer a Ele!

O seu apostolado? "Compreendi que a única coisa necessária era unir-me cada vez
mais a Jesus e que o resto me seria dado por acréscimo. Com efeito, nunca a minha
esperança foi iludida; Deus dignou-se encher a minha mãozinha tantas vezes quantas as
necessárias" (Ms C 22v).
As suas inevitáveis faltas? "Ainda que eu tivesse cometido todos os crimes
possíveis, mesmo assim teria sempre a mesma confiança: sinto que toda essa multidão de
ofensas seria como uma gota de água lançada num braseiro ardente" (UCR 11.7.6).

Agarra-se à sua misericórdia: "Quero, ó meu Bem-amado, a cada palpitação do


meu coração, renovar-Vos este oferecimento um número infinito de vezes" (Or 6).
"Muitas vezes, sempre que posso, repito o meu oferecimento ao Amor", diz na sua última
doença (UCR 29.7.9).

No dia 30 de setembro de 1897, último dia da sua vida, pela tarde, Teresa dirá:
"Não me arrependo de me ter entregue ao Amor... Oh! não, não, não me arrependo, pelo
contrário! (UCR 30.9).

Eis, até ao último momento, a sua fidelidade ao Senhor do Amor misericordioso,


que realizou o seu sonho de santidade de outrora. De modo diferente ao que tinha
projetado na sua juventude, mas melhor. Pela ação do Deus três vezes santo, ao qual
radicalmente se tinha oferecido.

TERESA NOS FALA:

"Viver de Amor"

Na tarde de Amor, falando sem parábola

Jesus dizia: «Se alguém quiser amar-Me

«Por toda a sua vida, guarde a minha Palavra

«O meu Pai e Eu viremos visitá-lo.

«E do seu coração fazendo a nossa morada

«Unido a Ele, o amaremos sempre!...

«Cheio de paz, queremos que Ele permaneça

«No nosso Amor!...»

Viver de Amor, é guardar-Te a Ti mesmo

Verbo incriado, Palavra do meu Deus,

Ah! Tu sabes, Divino Jesus, eu amo-Te

O Espírito de Amor abrasa-me com o seu fogo

Amando-Te eu atraio o Pai

O meu pobre coração guarda-O para sempre.


Ó Trindade! Tu és a prisioneira

Do meu Amor!...

Viver de Amor, é viver da tua vida,

Rei glorioso, delícia dos eleitos.

Tu vives por mim, escondido numa hóstia

Quero esconder-me por Ti, ó Jesus!

A solidão é necessária aos amantes

Um abrir o coração que dure noite e dia,

Basta o teu olhar para me fazer feliz

Vivo de Amor!...

Viver de Amor, não é sobre a terra

Instalar a sua tenda no cimo do Tabor.

Com Jesus, é subir ao Calvário,

É contemplar a Cruz como um tesouro!...

No Céu a minha vida será de gozo

A provação terá acabado para sempre

Mas exilada quero no sofrimento

Viver de Amor.

Viver de Amor, é dar sem medida

Sem reclamar salário aqui na terra

Ah! sem contar eu dou-me bem segura

De que, quando se ama, não se conta!...

Ao Coração Divino, transbordante de ternura

Dei tudo... Ligeiramente eu corro

Nada tenho senão a minha única riqueza


Viver de Amor.

Viver de Amor é dissipar o medo,

Afastar a lembrança das faltas do passado.

Dos meus pecados não encontro vestígios,

Num breve instante o amor queimou tudo

Chama divina, ó dulcíssima Fornalha!

No teu centro fixo a minha morada

E. no teu fogo que eu canto alegremente:

«Vivo de Amor!...»

Viver de Amor, é guardar em si mesma

Um grande tesouro num vaso mortal

Meu Bem-amado, a minha fraqueza é extrema

Ah! estou longe de ser um anjo do Céu!...

Mas se caio em cada hora que passa

Tornando a erguer-me vens em meu auxilio,

Em cada instante me dás a tua graça

Vivo de Amor.

Viver de Amor, é navegar sem tréguas

Semeando a paz, a alegria nos corações

Piloto Amado, a Caridade incita-me

Pois vejo-Te nas almas minhas irmãs.

A Caridade, eis a minha única estrela

À sua luz navego sem desvio

Tenho a minha divisa escrita na vela:

«Viver de Amor».
Viver de Amor, quando Jesus dormita

É o repouso sobre vagas alterosas

Oh! não receies, Senhor, que Te desperte

Eu espero em paz a margem dos céus...

A Fé em breve rasgará o seu véu

A minha Esperança é ver-Te um dia

A Caridade enche e impele a minha vela

Vivo de Amor!...

Viver de Amor, é, Divino Mestre,

Suplicar-Te que derrames o teu Fogo

Na alma santa e sagrada do Sacerdote

Que ele seja mais puro do que um serafim dos céus!...

Ah! glorifica a tua Igreja Imortal

Aos meus anseios, Jesus, não fiques surdo

Eu, sua filha, imolo-me por ela

Vivo de Amor.

Viver de Amor, é enxugar-Te a Face

É alcançar o perdão dos pecadores

Ó Deus de Amor! que eles voltem à tua graça

E que para sempre bendigam o teu Nome

Até ao coração me chega a blasfêmia

Para apagá-la quero sempre cantar:

«O teu Nome Sagrado, eu O adoro e Amo

Vivo de Amor!...»

Viver de Amor, é imitar Maria,


Ao banhar de lágrimas, de perfumes preciosos,

Os teus divinos pés, que beija deslumbrada

Enxugando-os com os seus longos cabelos...

Depois levantando-se, quebra o vaso

O teu Doce Rosto ela também perfuma.

Por mim, o perfume que derramo no teu Rosto

É o meu Amor!...

«Viver de Amor, que estranha loucura!» Diz-me o mundo, «Ah! cessa de cantar,

«Não percas os teus perfumes, a tua vida,

«Aprende a empregá-la utilmente!...»

Amar-Te, Jesus, que perda fecunda!...

Todos os meus perfumes são teus para sempre,

Quero cantar ao sair deste mundo:

«Morro de Amor!»

Morrer de Amor, é dulcíssimo martírio

É aquele que eu desejaria sofrer.

Ó Querubins, afinai a vossa lira,

Porque sinto que o meu exílio vai terminar!...

Chama de Amor, consome-me sem tréguas

Vida de um instante, pesa-me o teu fardo!

Divino Jesus, realiza o meu sonho:

Morrer de Amor!...

Morrer de Amor, eis a minha esperança

Quando vir quebrarem-se os meus laços

O Meu Deus será a minha Grande Recompensa


Não anseio possuir outros bens.

Quero ser abrasada pelo seu Amor

Quero vê-l'O, unir-me a Ele para sempre

Eis o meu Céu... eis o meu destino:

Viver de Amor!!' ...

CAPÍTULO 8

TERESA, À ESCUTA DA PALAVRA

RO BERTO F O RN A RA O cd

"Se tivesse sido sacerdote (...), teria estudado hebreu e grego para poder ler
a  P a la vr a d e D eus na m es ma li ng ua ge m  humana com que Ele se quis
exprimir" (Conselhos e Lembranças, pp. 93-94).

Esta confidência que Celina — a Irmã  Genoveva — recolheu dos lábios


de Teresaintroduz-nos no seu amor pela Palavra de Deus e no seu desejo de a
aprofundar, embora carecendo de muitos meios que o leitor  moderno tem à
sua disposição. Para Teresa — é outra vez Celina quem nos descobre os  seus
segredos —, a Escritura representa no Carmelo "o seu melhor tesouro". Cita
frequentemente a Escritura nos seus escritos  com uma originalidade que é
fruto da leitura e da meditação, e não do que ouve aos pre gadores; abre-a ao
acaso — em clima de oração — para procurar resposta para as suas dúvidas ou
para as suas buscas; faz dela o fundamento da sua oração e o meio privile giado
do encontro com Deus.

Teresa descobre a Bíblia

Teresa chega gradualmente à descoberta  da Escritura como fonte


privilegiada da vidaespiritual. Por meio de muitas leituras que a ajudam e
formam, como a I m i t a ç ã o d e  Cristo — ponto firme no seu
crescimento espiritual —, ou as obras de São João da Cruz, consegue descobrir que
só a Palavra de Deus — e o Evangelho em particular — lhe pode  oferecer o
alimento que necessita.

Por volta dos dezessete ou dezoito anos, já  no Carmelo, será


sobretudo São João da  Cruz quem a apaixone e a acompanhe no
seu caminho, introduzindo-a, ao mesmo tempo, na meditação e na compreensão
de algumas passagens da Bíblia, sobretudo do Antigo Testamento.

A Escritura torna-se para ela no único  ponto de referência seguro, a


única necessidade fundamental: "É sobretudo o Evan gelho que me vale
durante as minhas orações. Nele encontro tudo o que é necessário à minha pobre
alminha Nele descubro sempre novas luzes, sentidos escondidos e
misteriosos" (Ms A 83v). Busca-o continuamente, chega a Ele pela oração,
familiariza-se de tal modo com a Palavra de Deus que,  mesmo ao falar com as
Irmãs, vêm-lhe frequentemente citações bíblicas: a Irmã Maria da Trindade
dirá que as suas conversas pareciam comentários à Escritura (cf. PO 1462).

Conhece de memória diversas passagens e  leva sempre consigo uma


cópia dos quatro evangelhos; fala ao P. Roulland, em carta de julho de 1896, do
"livro dos evangelhos que trago sempre comigo" (Ct 193).

Contudo, não era fácil, numa época e num  ambiente como os de


Teresa, aproximar-se da Palavra de Deus e aprofundá-la. Hoje  podemos
contar com uma série de traduções, de instrumentos e publicações que não
existiam no fim do século passado. Na própria pregação e na vida espiritual a
Escritura não era o verdadeiro centro e o eixo fundamental no qual girava tudo o
resto. O amor e a paixão teresiana pela Bíblia são, pois, verdadeiramente
extraordinários.

Antes de entrar no Carmelo, é evidente  que a adolescente Teresa não


tinha lido diretamente a Escritura. Embora a família  Guérin possuísse pelo
menos dois exemplares da Bíblia, é improvável que Teresa, então de menor
idade, pudesse ter acesso a eles.

Um primeiro contato com a Palavra de  Deus, embora esporádico, foi-


lhe possibilitado por meio do Ano litúrgico  de Dom Guéranger; a
familiaridade com os textos  bíblicos cresce, ainda, através de várias  obras
edificantes que constituem a sua bagagem de leituras neste tempo: vidas de
santos, vidas de J es us , catecis mos e a própria  Imitação de Cristo.

No convento não é possível — pelo menos às irmãs mais novas —


consultar a Bíblia, a não ser com licença da prioresa; uma segun da cópia (na
tradução do Maistre de Sacy) está àdisposição,  e Teresa
efetivamente consultou-a, como aparece nos seus escritos. Cada religiosa dispõe ainda
do Manual do cristão, que contém — além do Ordinário da missa e das horas principais do
ofício divino — o saltério, o Novo Testamento e a Imitação de Cristo. A partir de setembro
de 1894 conta com uma nova fonte, embora limitada. A Irmã Celina, ao entrar no
Carmelo leva consigo um pequeno caderno manuscrito no qual tinha copiado, quando
ainda estava com a sua família, diversas passagens do AntigoTestamento; como ela
própria o afirma, quando na vida religiosa já é Irmã  Genoveva: "Santa Teresa do
Menino Jesus serviu-se deste pequeno caderno com entusiasmo e não podia separar-se dele,
uma vez que a Irmã Maria da Eucaristia começou a transcrevê-lo para ela". Igualmente,
na vida litúrgica da comunidade a jovem carmelita pôde beneficiar abundantemente da
riqueza da Palavra, e as leituras pessoais e comunitárias contribuem para a ajudar neste
sentido. Será especialmente São João da Cruzquem lhe inspire amor pelo Cântico
dos Cânticos, do qual tinha desejado fazer um comentário.

Teresa ensina a ler a Bíblia

Ao escrever a Celina no dia 7 de julho de 1894, Teresa sublinha as palavras de


Jesus: "Se alguém Me ama, guardará a minha palavra e Nós viremos a ele e faremos
nele a nossa morada" (Jo 14,23). E comenta: "Guardar a palavra de Jesus, eis a única
condição para a nossa felicidade, a prova do nosso amor por Ele. Mas o que é afinal
esta palavra?... Parece-me que a palavra de Jesus, é Ele mesmo... Ele Jesus, o Verbo,
a Palavra de Deus!" (Ct 165). A palavra de Jesus é o próprio Jesus: é a chave para
compreender a leitura teresiana da Bíblia. Em sintonia com a tradição patrística,
Teresa procura em cada página o rosto de Cristo. A sua leitura da Palavra de Deus não
tem outra finalidade que favorecer o encontro com Ele, estabelecer um contato pessoal
com Ele.

Escreverá ainda nos últimos dias da sua vida, ao terminar o terceiro dos


cadernos autobiográficos: "Uma vez que Jesus subiu de novo ao Céu, não posso segui-
1o senão pelos vestígios que deixou. Mas como esses vestígios são luminosos! Como
são perfumados! Basta-me lançar o olhar para o santo Evangelho, e logo respiro os
perfumes da vida de Jesus, e sei para que lado correr. Não é para o primeiro lugar, mas
para o último que eu corro. Em vez de avançar como o  fariseu, repito, cheia de
confiança, a humilde oração do publicano. Imito, sobretudo, a conduta da Madalena; a
sua surpreendente, ou melhor, a sua amorosa audácia" (Ms C 36v).

A atenção ao Evangelho e, consequentemente a busca de Jesus, é encontro com


Ele, e a Escritura é o meio que torna possível este encontro. Para Teresa, no entanto,
encontrar-se diante da palavra não representa tanto o primeiro contacto com Jesus, a sua
descoberta, quanto, sobretudo, a confirmação ou verificação do que está a viver. Nos
momentos de dificuldade, de crise, de provação, bem como nos momentos de
crescimento e de novas descobertas, a Bíblia torna-se para ela em ponto de referência,
porque representa a confirmação de quanto o Mestre lhe ensinou no seu interior. Ler a
Bíblia agora não corresponde à curiosidade de conhecer algo novo na sua relação com
Deus, mas permite reconhecer a verdade que já está a viver ou experimentar. A Palavra de
Deus vem frequentemente ao seu encontro para a dirigir, consolar, confirmar. O encontro
com Jesus — Palavra do Pai — permite-lhe dizer, em relação a quanto está a viver: "é
verdadeiro, é assim, estou certa".

Deus já se lhe revelou, habita nela, e o recurso à Palavra permite-lhe


simplesmente escutar melhor uma voz que já a adverte dentro de si. Não há separação
ou ruptura entre a vida de oração, a meditação da Palavra de Deus, por um lado, e a
vida cotidiana, por outro. Tudo é reconduzido à unidade em virtude desta Presença
interior: Teresa sabe que o Reino de Deus está dentro dela (cf. Lc 17,21) como Presença
que a guia e ilumina. De fato, confessa: "precisamente no momento em que delas
tenho necessidade, descubro luzes que ainda não tinha visto. Não é durante a oração que
elas se me manifestam mais; a maior parte das vezes é no meio das ocupações do dia"
(Ms A 83v).

Este sentido da Presença interior de Jesus e do seu Espírito leva-a à descoberta e


àcompreensão das Escrituras, descoberta que não é fruto de uma conquista e do
esforço humano, mas dom gratuito revelado aos pequenos, que cresce sem nós nos
darmos conta disso: "Dei-me muitas vezes conta de que Jesus não me quer dar
provisões. Alimenta-me a cada instante com um manjarcompletamente novo. Encontro-O
em mim sem saber como lá está" (Ms A 76r). Trata-se de uma verdadeira e própria
"ciência de amor": compreende a Bíblia na medida em que a vive e se deixa assimilar a
Cristo. Trata-se sempre de uma experiência pessoal da Escritura: é Palavra "para
ela", para o momento que está a viver, para os problemas que é chamada a enfrentar.
Parece exagerado a este respeito o juízo drástico de Hans Urs von Balthasar, que apelida
de subjetivismo a leitura que Teresa faz da Escritura: "Teresa leu com paixão a Escritura,
aprendendo-a em parte, inclusive, de memória, mas deixouque ela atuasse em si quase
exclusivamente à luz da sua vida e da sua missão pessoal. Por mais desconcertante que
possa parecer, não se pode dizer que Teresa tenha conhecido uma verdadeira contemplação
da Sagrada Escritura (...) Na verdadeira e própria contemplação, a Palavra de Deus deve
ressoar tal como é, e não como eu desejaria senti-la ou como imagino que seja para mim"
(Irmãs no espírito, p. 77). Se é verdade que Teresa não dispõe de instrumentos apropriados
para aprofundar o estudo da Bíblia, é também verdade que a sua aproximação à Palavra
de Deus não é a de quem escuta o que "desejaria ouvir". É, sobretudo, o desejo humilde
e constante de encontrar a Cristo, intuindo que tal encontro implica e transforma toda
a vida.

A poesia Por que te amo, ó Maria (PN 54), composta poucos meses antes da
sua morte, testemunha, por exemplo, que o seu modo de contemplar a Virgem é muito
mais objetivo e conforme aos evangelhos que o de tantos pregadores do seu tempo,
todos eles dispostos a cantar com retórica exagerada os privilégios e as graças
particulares da Virgem, embelezando a vida dela com particularidades inúteis e
aborrecidas. Teresa, fundando-se no dado bíblico, sente-se, pelo contrário, como
apanhada pela pobreza, pela simplicidade, pela peregrinação na fé de Maria. Apesar
das limitações pessoais e das do seu tempo, Teresa continua a ser mestra na leitura da
Palavra de Deus.

O Cântico dos Cânticos, caminho para o encontro

Se é natural que a atenção de Teresa esteja dirigida especialmente para os


textos evangélicos, a importância do fundamento bíblico da sua doutrina e da sua
espiritualidade sobressai especialmente pelo seu recurso constante ao Antigo Testamento.
Dentre os livros do Antigo Testamento, cita frequentemente o saltério, que tem
continuamente entre mãos em virtude da oração litúrgica e dos livros de meditação. O
leitor fica surpreendido, no entanto, pelo fato de que o segundo livro do Antigo
Testamento mais citado nos escritos teresianos seja o Cântico dos Cânticos. As citações
não se referem simplesmente a este ou àquela passagem do livro, mas são tomadas de
todos os capítulos, sinal evidente de que Teresa leu e meditou longamente todo o Cântico.
Nisto ajudam-na distintas passagens do livro, transcritas no pequeno caderno de Celina,
embora já anteriormente Teresa tenha lido muito o Cântico, como o demonstram as cartas
escritas antes da entrada de Celina no Carmelo.

As referências teresianas ao Cântico dos Cânticos podem ilustrar perfeitamente o


seu modo de se aproximar da Escritura e fazer dela o veículo privilegiado do
encontro com Deus. Discípula fiel de São João da Cruz, a santa de Lisieux vive o
caminho da oração como um encontro esponsal com o Amado; do místico espanhol
recebe provavelmente o amor pelo Cântico dos Cânticos como expressão e fonte deste
caminho de união. As citações do poema bíblico, disseminadas sobretudo nas suas cartas,
estão orientadas para descrever o amor cioso de Deus pela sua criatura. À sua irmã
Leônia escreve em Maio de 1894: "És feliz... por Jesus ser tão cioso do teu coração.
Ele diz-te como à esposa do Cântico dos Cânticos: 'Feriste o meu coração, minha irmã,
minha esposa, com um só dos teus olhares e com um só dos teus cabelos a esvoaçar no teu
pescoço (Ct 4,9)" (Ct 164).

Para a alma encaminhada na busca do Amado, movida por um desejo sempre


crescente de O encontrar, ressoa constantemente o seu convite, expressão de um amor e de
um desejo infinitamente superior. "Abre-Me, minha irmã, minha esposa, porque o
meu rosto está cheio de orvalho e os meus cabelos das gotas da noite", escreve a Celina
(Ct 108), tomando emprestadas as palavras de Cant 5,2. O Amado é quem está à porta
e convida constantemente a que se abra, impaciente por partilhar momentos de
comunhão (cf. Ct 2,10-13 e 8,1 em Ct 158).

O caminho da união não está isento de dificuldades. O Cântico serve também


a Teresa para descobrir esta realidade. O Esposo às vezes esconde-se e, por
muito tempo, não deixa que se ouça a sua voz e que se goze da sua presença; comunica-se
exclusivamente espiando "através das grades": é a expressão que Teresa toma de Ct 2,9
para descrever a sua situação à madre Inês de Jesus (Ct 230). Ao falar de provação da
secura, a Santa inspira-se novamente numa passagem do Cântico dos Cânticos
porque "exprime perfeitamente o estado de uma alma mergulhada na secura e a
quem nada pode alegrar nem consolar": "Desci ao pomar das nogueiras, para ver os
frutos dos vales, para ver os rebentos da vinha; e se as romãs tinham nascido... não
soube mais onde estava... a minha alma ficou toda perturbada por causa dos carros de
Aminadab" (Ct 6,11-12; Ct 165).

Na mesma carta serve-se ainda das palavras de Ct 7,1 ("volta, volta,


minha Sulamita, volta, volta, a fim de que nós te consideremos") para indicar a
condição da alma que, apesar da experiência da própria pobreza, sente sobre si o olhar
benéfico e misericordioso do Senhor: "Que chamamento o do nosso Esposo!... O quê!
Já não ousávamos sequer olhar-nos, de tal maneira pensávamos estar sem brilho e sem
enfeites, e Jesus chama-nos". O Cântico dos Cânticos, como toda a Escritura, é,
consequentemente, para Teresa um caminho para o encontro com Deus. A Palavra lida
e meditada não faz outra coisa que repetir-lhe incessantemente o mistério de uma pertença
nascida pela iniciativa do amor de Deus: "Não temas, que eu te resgatei, chamei-te pelo
teu nome. Tu és meu... pois és precioso aos meus olhos, és estimado e eu amo-te... Não
temas, que eu estou contigo" (Is 43,1.4-5). Por isto é que Teresa pode aplicar a si mesma
e à sua própria experiência as palavras de Ez 16,8-13: "Passando a meu lado, Jesus viu
que tinha chegado para mim o tempo de ser amada;  Ele fez aliança comigo, e
tornei-me sua...; estendeu sobre mim o seu manto, lavou-me em perfumes preciosos,
revestiu-me com vestes bordadas, dando-me colares e adornos sem preço...; alimentou-
me com a mais pura farinha, com mel e azeite em abundância... Com isto, tornei-me bela a
seus olhos, e fez de mim uma poderosa rainha!" (Ms A 47r). Cada uma das palavras do
profeta ressoam nela, feitas carne da sua vida, e o comentário final de Teresa é eloqüente a
este propósito: "Sim, Jesus fez tudo isso por mim. Eu poderia retomar cada palavra que
acabo de escrever e provar que ela se realizou em mim"(ibid.).

O caminho traçado pela Palavra de Deus não é, pois, algo puramente íntimo e


pessoal Teresa, jovem esposa de Cristo, leva consigo toda a Igreja. Comentando o
verso "Atraí-me, correremos!" (Ct 1,3), escreverá: "Senhor, eu compreendo. Quando
uma alma se deixou cativar pelo odor inebriante dos vossos perfumes, não seria capaz
de correr sozinha: todas as almas que ama são arrastadas atrás dela. Isto faz-se sem
constrangimento, sem esforço; é uma conseqüência natural da sua atração para Vós" (Ms
C 34r).

Fundamentos bíblicos do "pequeno caminho"


Teresa extraía da leitura da Palavra de Deus os princípios e a confirmação
necessários para a sua vida espiritual; o seu "pequeno caminho" apresenta-se
impregnado de sabor profundamente bíblico. Não se pode afirmar certamente que a santa
de Lisieux elaborasse uma doutrina teológica sistemática a partir do estudo da Escritura,
mas os seus escritos deixam transparecer um conhecimento obtido pela meditação contínua
da Palavra de Deus. Entre os temas que Teresa assimilou especialmente, consideramos
particularmente a humildade-pobreza, a misericórdia de Deus e a espiritualidade do
abandono.

Consciência da própria pobreza

Um dos textos bíblicos que aparecem mais vezes nos escritos de Teresa é a


oração de louvor de Jesus ao Pai: "Bendigo-te, Pai, Senhor do céu e da terra, porque
escondestes estas coisas aos sábios e aos inteligentes, e as revelastes aos pequeninos.
Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado" (Lc 10,21). Teresa leu e meditou,
igualmente, as palavras do apóstolo Paulo aos Coríntios: "Considerai, pois, irmãos, a
vossa vocação: humanamente falando, não há entre vós muitos sábios, nem muitos
poderosos, nem muitos nobres. Mas o que há de louco no mundo é que Deus escolheu
para confundir os sábios; e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para
confundir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus
escolheu; escolheu os que nada são, para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa.
Assim, ninguém se pode vangloriar diante de Deus" (1Cor 1,26-29).

A descoberta fundamental que guia  Teresa no seu caminho é certamente o


conhecimento da própria pobreza: não se aproxima de Deus com os seus próprios
esforços e méritos, mas aceitando e oferecendo o próprio nada. Teresa entra no grupo dos
anawin, dos "pobres de Yahvé", que constituem o resto fiel ao longo da história de Israel,
e que culmina em Maria, a filha de Sião que canta e reconhece a próprio nada diante de
Deus. "Que é o homem para que vos lembreis dele, o filho do homem para lhe dar poder?",
cantava assombrado o autor do salmo 8, e Maria engrandece e exalta o Senhor porque
"olhou para a humildade da sua serva" (cf. Lc 1,48). O termo grego tapeinosis, que
traduzimos por "humildade", significa precisamente "pobreza, miséria extrema,
indigência": Maria reconhece diante de Deus o seu próprio nada; tudo o que tem é dom
da graça, é a "cheia de graça" (cf. Lc 1,28).

A espiritualidade teresiana corta pela raiz a tentação farisaica de alegar méritos


diante de Deus e aceita serenamente a sua pobreza. Em julho de 1890 a Santa escreve
a Maria Guérin: "Tu me parece uma pequena aldeã que um rei poderoso viesse pedir
em casamento e que não ousasse aceitar com o pretexto de não ser suficientemente rica
nem educada nos usos e costumas da corte, sem refletir que o seu noivo real conhece
a pobreza e a fraqueza dela muito melhor do que ela mesma (...) Também não deves
desejar ver o fruto dos teus esforços". E passando a falar de si mesma,
acrescenta: "Te enganas (...) se julgas que a tua  Teresinha caminha sempre
com ardor no caminho da virtude, ela é fraca e bem fraca, todos os dias faz disso uma
nova experiência, mas, Maria, Jesus compraz-se em ensinar-lhe como a São Paulo a
ciência de gloriar-se nas suas fraquezas, o que é uma grande graça e peço a Jesus que
te ensine, porque só desta forma se encontra a paz e o descanso do coração, quando nos
vemos tão miseráveis já não queremos preocupar-nos conosco e só olhamos o único
Bem-amado!" (Ct 109).
A experiência da misericórdia de Deus

O conhecimento da própria pobreza não é para Teresa fonte de desalento, porque


na descoberta do amor misericordioso de Deus caminha com passo firme. No processo
de beatificação, a Irmã Genoveva testemunha que Teresa do Menino Jesus perscrutava
a Escritura "para conhecer o caráter de Deus" (PO 1275). Deus revela-se
precisamente como Amor e Misericórdia. Citando o começo do salmo 118, que louva o
Senhor "porque é eterna a sua misericórdia", a Santa acolhe a misericórdia como o
atributo fundamental e característico de Deus: "através dela" — escreve —, contemplo e
adoro asdemais perfeições divinas" (Ms A 83v). Em sintonia com o Antigo Testamento,
compreende que a justiça de Deus coincide com a sua misericórdia: precisamente
porque é justo, o Senhor tem ternura e piedade dos seus filhos, segundo a expressão do
salmo 103: "Coroa-te de amor e de ternura... Faz obras de justiça e outorga o direito aos
oprimidos... Clemente e compassivo é o Senhor, lento para a ira e cheio de
misericórdia.

Porque conhece a nossa fragilidade, lembra-Se de que não somos senão pó.
Como um pai sente ternura pelos seus filhos, assim o Senhor tem compaixão de nós"
(vv. 4.6.8.23-24; cf. Ct 226). Recordando talvez a expressão de Paulo no hino
cristológico da carta aos Filipenses (2,6-11), Teresa acolhe o dom desta misericórdia
sobretudo em Jesus, chegando a apelidar de "loucura" o Filho de Deus que, por
amor, renuncia às prerrogativas da sua natureza divina em busca da humanidade
perdida (cf. 169).

Entre as imagens do Antigo Testamento que a impressionam há duas


particularmente significativas. A primeira é a do pastor de Is 40,11, que "reunirá os
pequenos cordeiros, e os apertará contra o seu peito e trata com cuidado as mães". A
outra são as palavras de consolação de Is 66,12-13: "Como uma mãe acaricia o seu
filho, assim eu vos consolarei; levar-vos-ei ao colo e acariciar-vos-ei sobre os meus
joelhos". Comentando estes textos, Teresa escreve cheia de admiração: "Depois de
semelhante linguagem, nada mais resta senão calar-nos, chorar de gratidão e
de amor" (Ms B 15-v).

Além da parábola do filho pródigo, a imagem evangélica da misericórdia divina é


para Teresa a pecadora que recebe o perdão de Jesus e lhe mostra a sua gratidão e amor
com gestos de afeto e de ternura (cf. Lc 7,36-50); Teresa imita-a e sente-a próxima,
porque o "seu coração compreendeu os abismos de amor e de misericórdia do Coração
de Jesus" (Ct 247).

A experiência da misericórdia de Deus tem também para Teresa a dimensão da


gratuidade. É significativo que os manuscritos autobiográficos começam por citar o
chamamento dos doze apóstolos segundo o relato de Marcos: Jesus "tendo subido a um
monte, chamou os que Ele quis; e foram ter comEle" (Mc 3,13). Teresa comenta: "Eis
todo o mistério da minha vocação, da minha vida inteira e, sobretudo, o mistério dos
privilégios de Jesus para com a minha alma. Jesus não chama aqueles que são dignos,
mas aqueles que Ele quer" (Ms A 2r). Aprofundando a Palavra de Deus, Teresa
descobre o mistério deste desígnio eterno e livre do Pai que "n'Ele nos escolheu antes
da criação do mundo... predestinou-nos para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus
Cristo... para fazer resplandecer a sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu
amado Filho" (Ef 1,4-6). A vida do homem nãodepende dos seus esforços ou da sua
vontade, mas de Deus e do seu amor misericordioso: "Pois Deus disse a Moisés:
'serei misericordioso com quem o for; condoer-Me-ei de quem Me condoer'. Logo,
não depende daquele que quer nem daquele que corre, mas de Deus que usa de
misericórdia" (Rom 9,15-16).

Teresa descobre e penetra nesta realidade, até reconhecer que o caminho pelo qual
o Senhor a guiou esteve sempre tecido de misericórdia (cf. Ms A 71r). Se não
cometeu pecados mortais, sabe que o deve à "inefável previsão" de Deus que, tirando do
seu caminho as ocasiões de queda, "perdoou-lheantecipadamente, impedindo-a de
cair". Teresa sabe que foi "preservada apenas pela grande misericórdia de Deus" (cf.
Ms A 38v); não lhe foi perdoado muito, mas tudo; em conseqüência, amará a este "Pai que
não enviou o seu Verbo para resgatar os justos, mas os pecadores" (Ms A 39r).

Confiança, abandono, esperança

A Irmã Genoveva testemunha quanto Teresa ficou afetada com uma imagem


que representava uma criança sentada sobre os joelhos de Jesus, em atitude de lhe beijar
o rosto. É a atitude constante da Santa: o conhecimento da própria pequenez e pobreza e a
experiência da misericórdia divina desembocam necessariamente no abandono
confiante da criança que se sente segura nos braços do pai ou da mãe: "Jesus compraz-
se em mostrar-me o caminho que conduz a essa fornalha divina; o caminho é o
abandono da criancinha que adormece sem medo nos braços do seu pai" (Ms B 1r).
Embora Teresa não aluda a citação explícita, faz suas as palavras confiadas do salmo
131: "Senhor, o meu coração não se orgulha, nem os meus olhos são altivos; não vou
atrás das grandezas nem de prodígios que me excedem. Ao contrário, aquieto e
sossego a minha alma, como uma criança saciada no colo de sua mãe. Como uma
criança saciada, assim está a minha alma" (vv 1-2)

Os escritos teresianos inspiram-se em dois textos da literatura sapiencial. O


primeiro é tomado de Provérbios 9,4: "Se alguém for pequenino, venha a mim"; o
outro de Sabedoria 6,7: "A misericórdia é concedida aos pequenos". Estes textos,
juntamente com as passagens já citadas de Isaías 40 e 66, encontravam-se no
pequeno caderno de Celina, e Teresa, por conseguinte, possuía-os. Nestes simples
textos fundamenta-se toda a doutrina da infância espiritual; não se trata, pois, de uma
teologia elaborada com famosos textos do Evangelho que falam da infância espiritual
(cf. Mt 11,25-27; Mc 9,35-37; 10,13-16). As frases de Provérbios 9,4 e de Sabedoria 6,7
são, além disso, citações ocasionais: Teresa não respeita o seu sentido literal nem o
contexto no qual se inserem, mas reconhece nestas passagens que falam de pequenez
um reflexo da experiência que vai amadurecendo graças à vida de oração.

No entanto, se de algum modo parece arriscada a apropriação que Teresa faz


de alguns textos, é conveniente recordar que está a traduzir para uma linguagem
totalmente pessoal algumas afirmações teológicas fundamentais do Novo Testamento.
Quando São Paulo fala da adoção filial, está a descrever uma condição que corresponde
ao cristão por puro dom gratuito de Deus. "Quando chegou a plenitude dos tempos —
escreve aos Gálatas — Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei,
para que recebêssemos a adoção filial" (Gl 4,4-5). A presença interior do Espírito Santo é
garantia e fonte do dinamismo desta vida filial: "E porque somos filhos, Deus enviou aos
nossos corações o Espírito do seu Filho, que grita Abbá, Pai! De modo que já não
és servo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro pela graça de Deus" (vv. 6-7).
Teresa vive dia a dia as conseqüências práticas desta condição filial. O
dinamismo paulino da moral cristã (descobre o que és, a saber, filho de Deus por graça; vive,
em conseqüência, como filho) encontra no "pequeno caminho" a sua aplicação lógica e
concreta. Descobrir-se filha leva-a a perceber a própria dependência vital de Deus e
a percorrer o caminho da confiança e do abandono. É o caminho da esperança teologal. É a
pobreza de espírito que é para Jesus a primeira das bem-aventuranças (cf. Mt 5,3). No
mesmo contexto do sermão da montanha, Jesus ensina aos discípulos a orar a Deus
chamando-lhe "Pai" (cf. Mt 6,9): o Espírito Santo, presente em nós, modela-nos cada vez
mais como filhos de Deus. Teresa confessa que a recitação lenta e meditada do "Pai-nosso"
recolhe-a e ajuda-a a alimentar a sua alma: pela oração e intimidade com Deus, torna-
se cada vez mais filha, à imagem do Filho, que vive nela (cf. Gl 2,20): Teresinha,
apenas com onze anos, repete amiúde estas palavras de São Paulo, aplicando-as a si
numa das primeiras vezes em que se aproxima da Eucaristia (cf. Ms A 36r).

O caminho do abandono confiante — que culmina com o ato de oferecimento


ao Amor misericordioso de junho de 1895 — é a prova mais certa de que Teresa está a
viver como filha no Filho. A vida de fé, para Teresa, como para os "pobres" e os
"humildes" da Escritura, consiste simplesmente em confiar-se a quem é digno de
confiança. Abandonar-se significa crer até o mais profundo no amor de Deus por nós, e
crer que só este amor pode salvar: "Sabendo que o homem não é justificado pelas obras
da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo, também nós acreditamos em Jesus Cristo, para
sermosjustificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei... Estou crucificado com
Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na
carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gl 2,16-20).

Quando é confiada à jovem religiosa a responsabilidade das noviças (encargo


que terá até à morte), sente profundamente o seu peso, mas não desespera nem confia
exclusivamente nas próprias forças. Confia simplesmente, consciente igualmente das
suas limitações, sabendo que o resto "lhe será dado por acréscimo" (cf. Mt 6,33).
Deste modo, comprova que nela vive uma presença que age e fala nela;
frequentemente adverte que diz palavras que não vêm dela. Numa ocasião adivinha
um profundo sofrimento de uma noviça: "A sua estupefação era tão grande, que se
apoderou de mim por um instante, e fiquei tomada de um pavor sobrenatural. Tinha a
certeza de não ter o dom de ler nas almas, e fiquei verdadeiramente admirada por ter
acertado em cheio. Senti claramente que Deus estava muito próximo, e que, sem me
dar conta, tinha dito, como uma criança, palavras que não vinham de mim, mas
d'Ele" (Ms C 26r).

O mandamento novo

Para terminar, um último olhar à prática teresiana da caridade fraterna. Também


neste caso, a Santa compreende a sua importância e o seu significado "meditando as
palavras de Jesus" e os seus testemunhos (cf. Ms C 12r). Entre os textos bíblicos
importantes para Teresa, merecem particular atenção os capítulos 12 e 13 de primeira
carta aos Coríntios: o apóstolo Paulo ajuda-a a descobrir na caridade a essência da sua
vocação e o seu lugar na Igreja. Todo o Manuscrito C pode ser considerado um
comentário pormenorizado ao tema da caridade, não comentário exegético às várias
passagens bíblicas citadas (Teresa não tinha nem a intenção nem a preparação
adequada para o fazer), mas uma tentativa de concretizar no contexto da sua
comunidade religiosa o mandamento proposto a todos os cristãos.
A atenção de Teresa tem a sua origem no mandamento de Jesus: "Dou-vos um
mandamento novo, que vos ameis uns aos outros, e que assim como Eu vos amei, vós
também vos ameis uns aos outros" (Jo 13,34). A sua atenção recai na comparação nova e
vinculativa: Jesus exige que nos amemos como Ele nos amou. É esta para Teresa a
verdadeira novidade do mandamento. Significa que o Senhor não lhe deu uma lei
externa, mas pede-lhe para ser Ele a amar nela: "Não fala já de amar o próximo como a si
mesmo, mas de o amar como Ele, Jesus, o amou, como o amará até à consumação dos
séculos... Senhor, sei que não mandais nada que seja impossível... sabeis que nunca
poderia amar as minhas irmãs como Vós as amais, se vós mesmo, ó meu Jesus, não as
amásseis também em mim... Oh, quanto amo o vosso mandamento, já que me dá a
certeza de que a vossa vontade é amardes em mim todos aqueles a quem me mandais
amar!" (Ms C 12v).

O profeta Jeremias tinha preanunciado a nova aliança nestes mesmos termos:


"Porei a minha lei no seu interior, gravá-la-ei no seu coração... Todos me conhecerão...
pois a todos perdoarei as suas faltas, e não me lembrarei mais dos seus pecados" (Jr
31,33-34). E a nova aliança realizou-se com o domdo Espírito, esta presença divina no
homem perdoando-lhe, tornando-o filho e capacitando-o para amar com o próprio amor
de Deus, porque "o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado" (Rm 5,5). Sem profundos conhecimentos teológicos explícitos,
Teresa penetra na doutrina paulina da justificação, sublinhando não só o aspecto
negativo do perdão e da libertação, mas sobretudo, o aspecto positivo: compreende
que o próprio Deus dá gratuitamente ao homem o que exige que ele faça por meio do
mandamento. O maior amor consiste em "dar a vida pelos seus amigos" (Jo 15,13).
Para Teresa significa, na vida concreta da sua experiência conventual, levar à prática o
desejo do martírio na vida cotidiana, na luta contra cada uma das imperfeições, na
paciência, na estima e no acolhimento mútuo (cf. Ms C 12r). A caridade tem que tomar-
se disponibilidade total, abertura a todos, indistintamente, capacidade de tomar iniciativa
e de dar o primeiro passo. O mandamento novo é apelo a "dar a própria capa" (cf. Lc
6,29): "Deixar a capa é, parece-me, renunciar aos seus últimos direitos, é considerar-se
como a serva, como a escrava dos outros. Quando se deixa a capa é mais fácil andar,
correr" (Ms C 16v).

Por detrás das delicadezas evangélicas da caridade, Teresa fixa-se


particularmente na dimensão da gratuidade: "Se amais aqueles que vos amam... se
fazeis bem aos que vos fazem bem... se emprestais àqueles de quem esperais receber,
que mérito tereis?... Pelo contrário, amai os vossos inimigos fazei bem e emprestai
sem esperar nada em troca, e será grande a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo,
porque Ele é bondoso para com os ingratos e os maus" (Lc 6,32-35). Esta gratuidade é
o sinal distintivo da presença do amor de Deus em nós, a característica fundamental
dos filhos de Deus. Porque este é o convite que simboliza a conclusão da experiência
teresiana: "Sede misericordiosos, corno o vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,36). A
misericórdia pela qual Teresa se sente envolvida, inundada, salva, converte-se em presença
viva que a transforma, a impele e a convida continuamente a ser sinal e testemunha. Para
Teresa, a característica da caridade é, de fato, que não permaneça escondida, mas
resplandeça: "Compreendi, sobretudo, que a caridade não deve ficar encerrada no fundo
do coração. Ninguém, disse Jesus, acende uma candeia para a colocar debaixo do
alqueire, mas coloca-a sobre o candelabro para alumiar todos os que estão em casa' (Mt
5,14-16). Creioque essa luz representa a caridade, que deve iluminar e alegrar, não só os
que são mais queridos, mas todos aqueles que estão em casa, sem excetuar ninguém" (Ms
C 12r).

Sob a guia da Palavra, encontro com o Cristo vivo que ama nela, a vocação
de Teresa — como a de qualquer cristão e, mais ainda, a do contemplativo — torna-se,
deste modo, resplendor e luz. Não importa o ambiente em que se vive: o importante é
ser luz! Se a Palavra de Deus é lâmpada para os nossos passos, luz no nosso caminhar
(cf.Sl 119,105), é-o na medida em que nos deixamos iluminar, encher do seu calor. Não
se pode transmitir a Palavra de Deus friamente, com desinteresse, sem deixar "queimar
as mãos" por este dom, como afirma uma personagem de Bernanos. A Palavra é
chamada a ser, como para Jeremias, "um fogo abrasador, encenado dentro dos meus ossos",
diante do qual o profeta reconhece: "esforcei-me por contê-lo, o mas não pude" (Jer 20,
9). Teresa ensina-nos a aproximar-nos assim da Palavra de Deus: não como um objeto
de estudo, mas como encontro de conversão no amor.

TERESA NOS FALA:

"Nos braços de Deus"

"Aqui tendes, meu irmão, o que penso sobre a justiça de Deus, o meu caminho é
todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno.
Às vezes quando leio certos tratados espirituais em que a perfeição é apresentada através
de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre
inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me
seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só
palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta
reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus.

Deixando às almas grandes, às grandes inteligências, os belos livros que não posso
compreender, e ainda menos pôr em prática, regozijo-me por ser pequenina visto que só as
crianças e 'os que se assemelharem a elas serão admitidas ao banquete celestial' (Mt
19,14). Sinto-me muito feliz por haver várias moradas no reino de Deus, porque se houvesse
apenas aquela cuja descrição e caminho me parecem incompreensíveis, não poderia lá entrar" (Ct
226).
TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA-
AMBIENTE Direção: CONRAD DE MEESTER ocd
PARTE III

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CAPÍTULO 9

A CARIDADE FRATERNA

PIERRE DESCOUVEMONT

Quando Teresa recorda a graça fundamental da sua vida, a graça da sua


"completa conversão" na noite de Natal de 1886, afirma que a partir desse momento
sentiu que "a caridade entrava no seu coração" e "a necessidade de se esquecer de si para
dar alegria" (Ms A 45v). Na realidade, Teresa não esperou este momento para viver
profundamente o mandamento evangélico da caridade fraterna. Muito nova, acostumada a
esquecer-se de si mesma para dar alegria aos outros, conduta que adotou com tanta maior
facilidade quanto que tinha um coração espontaneamente generoso: não suportava ver
triste a um membro da sua família.

Mas, sabemos, Teresa foi perturbada durante muito tempo por uma


preocupação obsessiva. Estava Paulina contente com o meu trabalho? O papai estava
contente comigo? Resultado: tinha sempre medo de não lhes agradar suficientemente
e chorava enquanto tinha a impressão que não o conseguia.

Curada definitivamente na noite de Natal de 1886 da sua "excessiva


sensibilidade" (Ms A 44v), desde então foi capaz de servir os demais e de preocupar-se
deles sem se perguntar continuamente se estavam contentes ou não do seu comportamento
para com eles.
Certa de agradar a Jesus, não se desconcertou mais pelas reflexões que se
pudessem fazer sobre o particular. Por isso, começa o combate que deve travar para
conseguir a autorização de entrar no Carmelo por volta dos quinze anos.

Quando no dia 9 de abril de 1888 entra nele, já adquiriu um grande domínio de


si mesma e suporta sem pestanejar as dificuldades da vida comunitária, especialmente
as "alfinetadas" que a Ir. São Vicente de Paulo lhe inflige. Muito hábil manualmente,
esta irmã conversa acusa Teresa de não ser bastante lesta nos trabalhos manuais chamando-
lhe de a "grande cabrita". Um modo de advertir a jovem burguesa de quinze anos
que deveria trabalhar mais depressa. Teresa não responde. Por meio das reflexões
agridoces da Irmã São Vicente de Paulo, sente "a suave mão" de Jesus que lhe dá ocasião
de fazer sacrifícios pela salvação dos pecadores. Oferece-os de todo o coração. Do
mesmo modo, propõe-se acompanhar com alegria, durante o noviciado, todas as tardes ao
refeitório a uma irmã incapacitada, a Irmã Maria de São Pedro, que, segundo parece,
não é fácil de contentar. "Eu não queria deixar de aproveitar uma tão bela ocasião para
praticar a caridade, lembrando-me de que Jesus dissera: 'O que fizerdes ao mais pequeno
dos meus, é a mim que o fazeis' (Ms C 29r). Teresa acabou por "ganhar completamente
a sua simpatia". Como? "Soube-o mais tarde — confessa Teresa —, porque, depois de
lhe ter cortado o pão, lhe mostrava o mais belo sorriso, antes de me ir embora" (Ms C
29v).

Esta caridade heróica que Teresa exerceu nos primeiros anos da sua vida
conventual é, efetivamente, uma caridade sorridente, porque Jesus já lhe fez compreender
as razões de se sentir cheia de caridade em relação às suas irmãs. A fortaleza da sua
alma, por grande que seja, tem as suas raízes na íntima convicção de que Jesus está ali,
muito perto dela de que Ele lhe pede este sacrifício e de que no último dia a
recompensará com o cêntuplo por todos os esforços que fez nesta vida para obedecer ao
seu mandamento de amor.

Quando a madre Inês lhe pede, em fevereiro de 1893, para ajudar a


madre Maria de Gonzaga na formação das noviças, Teresa contentar-se-á ensinando-
lhes os pequenos meios que descobriu para vencer as mil e uma dificuldades de
uma vida comunitária. E o que explicaremos em primeiro lugar. Veremos depois as
novas luzes que recebeu nos últimos meses da sua existência em relação com a caridade
fraterna.Luzes das quais fala extensivamente no Manuscrito C.

Uma caridade totalmente evangélica

O carisma de Teresa não consistiu em compor um tratado sistemático sobre a


oração ou sobre a caridade fraterna. A doutrina ensinada às noviças era uma série de
conselhos muito práticos. O que não quer dizer que não se apóiem em princípios
evangélicos precisos que estamos em condição vantajosa de identificar, se queremos
entrar na alma de Teresa, e converter-nos, seguindo-a, com corações ardentes de ternura.

Examinemos de perto os argumentos que Teresa expunha para ajudar as suas


noviças a não se deixarem abater pelas dificuldades inerentes a toda a vida comum.
Com efeito, tinha compreendido que para triunfar não era necessária a simples repetição
de ações grandiosas, mas a recordação incessante dasverdades evangélicas capazes por si
só de atacar o mal na sua raiz.
Vamos comprová-lo estudando de perto o modo como Teresa aconselhava as
suas noviças quando elas lhe confiavam as suas tentações de inveja e de impaciência.
Duas tentações fundamentais que conhecem perfeitamente os que vivem em comunidade.

O meu próximo e os seus talentos

A Irmã Genoveva teve a simplicidade de nos confiar o modo de que Teresa se


serviu nestamatéria. Com efeito, quando se juntou com a sua Irmã no Carmelo em
setembro de 1894, não pôde passar sem ter inveja dela. Teresa levava-lhe tanta vantagem
em generosidade! Lendo os Conselhos e Lembranças relatados pela Irmã Genoveva,
advertem-se claramente os princípios que Teresa recordava para ajudar a sua irmã mais
velha a não sucumbir a estas tentações de inveja, princípios que se encontram
igualmente no Manuscrito C.

Como boa psicóloga, Teresa tinha indicado que há duas formas de inveja conforme
os bens que invejamos no próximo. Umas vezes são as qualidades mais ou menos
brilhantes que nós não temos e cuja privação nos entristece. Outras vezes é o mesmo fervor
da caridade que anima o coração de um irmão ou de uma irmã e que acentua, por contraste,
a nossa própria mediocridade.

Com efeito, frequentemente vemo-nos tentados a invejar nos outros os talentos


que nós não temos. Se, por exemplo, — indica Teresa — algumas irmãs recebem na
oração luzes sobre o Evangelho que nós mesmas não recebemos, não nos damos conta de
que estamos a ter inveja delas. Somos tentados aconsiderar esta diferença como sinal de
que o Senhor nos ama menos a nós. E perdemos a nossa alegria (Ms C 20r).

Quais são os princípios que Teresa indica para triunfar desta primeira forma de
inveja?

a) O primeiro é que o valor essencial do homem não se mede pela quantidade


de talentos que Deus lhe deu, mas pelo modo como ele os faz frutificar e, em
definitivo, pela qualidade do seu amor. Um valor que só Deus conhece: "Jesus quis os
grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros
mais pequenos, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas,
destinadas a deleitar nos olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição
consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos..." (Ms A 2v).

O valor de um homem não se mede, pois, pelo número de talentos que recebeu ou


ganhou, nem pelo brilho da sua inteligência, nem inclusive pelo resplendor das suas
obras apostólicas, mas somente pelo valor do seu amor.

Teresa se centrava amiúde na primazia da caridade. Paulo escrevia: "Ainda que


eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como bronze que
ressoa ou como címbalo que tine" (1Cor 13,1). E Teresa disse, por sua vez: "Não desprezo os
pensamentos profundos que alimentam a alma e a unem a Deus; mas há muito
tempo compreendi que não devemos nos apoiar neles nem fazer consistir a perfeição
emreceber muitas luzes". Se, pelo contrário, uma alma "se compraz nos seus belos
pensamentos e faz a oração do fariseu, torna-se semelhante a uma pessoa a morrer de
fome diante duma mesa bem abastecida, enquantotodos os convidados se alimentam
abundantemente dela, deitando, por vezes, um olhar de inveja ao personagem possuidor de
tantos bens" (Ms C 19v).

Em resumo, as luzes sobrenaturais não são critério de santidade. Como toda a


riqueza, constituem inclusive um perigo, pois a alma que as recebe corre perigo de se
comprazer nelas e de se orgulhar.

b) O segundo princípio é também paulino como o primeiro. O Senhor concede


carisma a tal ou qual dos seus membros para a utilidade do Corpo inteiro. Teresa volta
frequentemente sobre esta verdade. Sabe, por exemplo, que se a priora a elegeu para se
ocupar das noviças, isto não lhe acrescenta nenhum valor suplementar aos olhos de
Deus: "Compreendo que não é por mim, mas pelas outras, que tenho de andar por este
caminho que parece tão perigoso. Com efeito, se aos olhos da comunidade eu passasse
por uma religiosa cheia de defeitos, incapaz, sem inteligência nem discernimento, ser-
vos-ia impossível, minha madre, deixar que eu vosajudasse. Eis porque Deus lançou um
véu sobre todos os meus defeitos interiores e exteriores" (Ms C 26v).

Teresa repetia frequentemente a Celina, quando esta pretendia que a sua


responsabilidade diante das noviças lhe proporcionasse mais valor. "Não sou mais do
que o que Deus pensa de mim. Enquanto a amar-me mais por me ter posto adiante e por
permitir que seja sua intérprete diante de algumas noviças, parece-me que é antes o
contrário. Faz de mim a sua pequena serva. É para vós que Deus pôs em mim encantos
de virtude exterior, não para mim" (CSG, 161).

Teresa multiplica as comparações para que se compreenda o seu pensamento:


"Não é mais importante o interior de um pêssego que a cor externa da sua pele? Então,
porque ter inveja das outras pelas suas qualidadesexteriores?" (Ct 147). "Não é mais
importante a tela na qual o artista realiza a sua obra de arte que os pincéis dos quais se
serve no seu trabalho? Então, porque invejar os instrumentos dos quais Deus se serve
para realizar a sua obra nas almas?" (Ms C 20r).

Em resumo, quando somos tentados a invejar um dos nossos irmãos por causa
do resplendor dos seus talentos, temos imediatamente que recordar-nos do valor
relativo destes dons e do seu destino comunitário.

Os dons da outra são meus

Podemos resistir à "santa inveja" que nos invade quando somos testemunhas da


caridade heróica, da santidade dos nossos irmãos? Encontramo-nos diante de
uma autêntica riqueza, de um autêntico valor. Como não invejar tal bem?

Este segundo modo de ter inveja do próximo existe frequentemente nas almas
que procuram a santidade. De tal modo desejam progredir no amor que ficam
incomodadas ao verem que as outras se lhes "adiantam". Ou desanimam imaginando
que Deus não se compraz já em tê-las em conta, ou, pelo contrário, procuram
tranquilizar-se atribuindo ao amor-próprio ou à hipocrisia o que ao princípio
desejavam com vontade admirar nos seus próximos. Que meios nos propõe Teresa para
vencer esta segunda forma de inveja?
Indiquemos, em primeiro lugar, que Teresa esteve preocupada, desde a sua
infância, por este mistério da desigualdade entre as almas. Ainda muito nova, admirava-
se "por Deus não dar uma glória igual no Céu a todos os eleitos" (Ms A 19 r-v): tinha
receio de que não fossem todos felizes. Enchendo um grande copo e um dedal, juntos,
Paulina explicou então à sua pequena irmã que cada um dos eleitos teria a glória que
pudesse receber e que assim o último nada teria a invejar ao primeiro.

Teresa volta a falar deste mistério no princípio do seu primeiro manuscrito.


Devemos aceitar que Deus tenha as suas preferências. Contentemo-nos com ser margaridas
ou violetas no "jardim de Jesus", se essa é a nossa vocação, e não invejemos a sorte dos
lírios ou a das rosas.

Poderíamos dizer que é essa a solução "estética" dada ao problema da


desigualdade que há entre as almas: há de tudo na vinha do Senhor. Isso acontece
tanto no mundo espiritual como no mundo material, Teresa escreve: "Compreendi que,
se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno
primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas... Assim acontece no
mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Ele quis criar os grandes Santos, mas
criou tambémoutros mais pequenos" (Ms A 2v).

Esta solução, por válida que seja, considera ainda as almas como justapostas umas
em relação às outras; não tem em conta o mistério da comunhão dos santos, que
permite a todas as almas participar das riquezas do Corpo místico inteiro. É esta a
verdade na qual nos devemos apoiar, refere Teresa, para vencer radicalmente a
tentação de sentir inveja do próximo por causa da excelência da sua caridade.

É a própria Teresa quem com toda a clareza expõe à Irmã Genoveva o seu
pensamento sobre esta questão. Urna vez mais a noviça participava à sua jovem irmã as
suas tentações de inveja: "O que eu invejo em ti,são as tuas obras. Queria fazer também
o bem, compor coisas belas que façam amar a Deus!". Teresa responde-lhe, em
primeiro lugar, com o princípio acima enunciado, a saber, que a redação de obras
espirituais não é de modo algum sinal de maior santidade: o fato de ser eleito por Deus
como instrumento para dar a conhecer a sua mensagem não é sinal de um amor maior
da parte dele. "Não há que atacar a sua irmã por isso — responde Teresa —. Não há
que desejar fazer o bem por meio de livros, de poesias, de obras de arte..."

A seguir, Teresa eleva o debate. Mesmo supondo que estas obras sejam


inspiradas por uma autêntica caridade e que, consequentemente, aos olhos de Deus,
tenham um valor sobrenatural, há que oferecê-las a Ele e participar assim dos seus
méritos. É este o mistério da comunhão dos santos: "Perante a nossa impotência — afirma
Teresa —, há que oferecer as obras dos outros: é este o benefício da comunhão dos
santos, e nunca ter pena dessa impotência, mas aplicar-se unicamente a amar" (CSG, 62).

E Teresa cita Taulero, o autor no qual encontrou a expressão mais perfeita


deste mistério assombroso: "Se eu amo o bem que há no meu próximo mais do que ele
mesmo, este bem é mais meu que dele. Seem São Paulo amo todas as graças que Deus
lhe concedeu, tudo isso me pertence exatamente como a ele. Por esta comunhão, posso
ser rica com todos os bens que há no céu e na terra, nos anjos, nos santos e em todos os
que amam a Deus".
Teresa tinha compreendido que tal certeza transforma a opinião que temos dos
outros. Em vez de perder o tempo invejando o bem que eles fazem, em vez de procurar os
seus pontos fracos, alegramo-nos admirando obem que se realiza no mundo, o
consideramos como um "bem de família" e o oferecemos a Deus.

Teresa fazia-o frequentemente. Quando estava no coro, oferecia a Deus a oração


das suas irmãs: "Sei que então o fervor das minhas Irmãs faz as vezes do meu" (Ms C
25v). Quando comungava, oferecia a Jesus o amor e os méritos da Santíssima Virgem, dos
anjos e dos santos (Ms A 79 v-80r).

Nos últimos meses da sua vida, Teresa fala frequentemente da sua esperança de


participar dos méritos das suas irmãs e dos seus irmãos espirituais. Por exemplo, é muito
significativa a carta na qual escreve ao seminarista Bellière a sua confiança de
participar, por meio dele, na palma do martírio. "Visto que o Senhor parece não querer
conceder- me senão o martírio do amor, espero que Ele me permita alcançar por meio de
vós a outra palma que ambicionamos" (Ct 224). No mesmo sentido, diz à madre Inês
que espera participar no céu da glória de todos os santos: "Como uma mãe está orgulhosa
dos seus filhos, assim estaremos nós uns dos outros, sem a menor inveja... Com as virgens,
seremos como as virgens, com os doutores, como os doutores; com os mártires, como
os mártires, porque todos os Santos são parentes nossos" (UCR 11.7.4; 13.7.12).

Sendo o antídoto soberano contra a inveja, a segurança de participar dos méritos


dos santos favorece, por outro lado, o agradecimento leal do valor dos nossos
irmãos. Descobrem-se mais facilmente as qualidades e os méritos dos irmãos, quando são
considerados mais como um "bem de família". E quando são descobertos, alegramo-nos
por isso. Teresa podia dizer com toda a verdade, sem forçar em nada o seu
pensamento: "Julgar-se imperfeita e encontrar perfeitas as demais, isto é a felicidade...
Não há nada mais doce que pensar bem do nosso próximo" (CSG, 25).

A confiança que Teresa tinha de participar das riquezas do Corpo místico ajuda-


nos a compreender melhor o seu amor à pobreza espiritual. Se não duvidava de se
apresentar diante do Senhor com "as mãos vazias", éporque unicamente queria contar
com a sua misericórdia para ir para o céu, embora soubesse também que podia
apresentar-se diante de Deus revestida com os méritos infinitos de Jesus Cristo e, por Ele
e n'Ele, com as riquezas espirituais da Virgem, dos anjos e de todos os santos.

O amor é paciente

"O amor é paciente... tudo suporta" (1Cor 13,7). Estas duas expressões
enquadram a descrição paulina do ágape; tão certo é que, para o apóstolo, como para
o bom sentido do povo, a paciência é a primeira e a última  palavra do amor. Teresa
sabia-o por experiência. Devia esforçar-se frequentemente por ser paciente na
comunidade. Como o fazia? Como ajudava as suas noviças para que também elas se
exercitassem na paciência?

Na terapia da impaciência, Teresa terminara por distinguir dois tratamentos: 1)


O tratamento a quente, aplicável ao princípio da tentação, no momento da alteração
involuntária da sensibilidade, ferida em carne viva, por exemplo, por uma observação
desatenta do próximo. 2) O tratamento a frio, aplicável mais tarde, uma vez passada
a emoção.
Como boa psicóloga, Teresa tinha-se dado logo conta que não era necessário
aplicar imediatamente este segundo tratamento. Só há que utilizá-lo, explicava, depois
de estarmos sossegados. Por isso, quando ainda se está "com a impressão" da palavra
ou do comportamento "traumatizante", há que contentar-se com curvar-se sob a
tormenta, aplicando simplesmente o tratamento a quente. Esta sabedoria de Teresa
constitui um elemento a não desprezar do seu "pequeno caminho".

O tratamento a quente

Teresa exortava certamente as suas noviças a absterem-se de qualquer gesto


ou qualquer palavra de cólera quando se dessem conta de que começavam a irar-se. Mas
convidava-as, sobretudo, a viver este domínio como ela mesma fazia, com um grande
espírito de fé, que dava à sua paciência um desafogo e uma suavidade maravilhosas.

Em tais circunstâncias, só há duas coisas a fazer: um ato de fé e um ato de amor.


Há que considerar a pessoa que nos irrita, pensa Teresa, como um instrumento
providencial cuja presença Deus permite no nosso caminho, para que tenhamos uma
nova ocasião de lhe manifestar o nosso amor e de lhe salvar almas.

Teresa apoiava-se nas célebres palavras de São Paulo: "Tudo concorre para o bem
dos que amam a Deus" (Rom 8,28). Em vez de se deixar hipnotizar pela má vontade ou
pelo caráter desagradável de uma irmã, pensava no instante em Jesus presente em tal
provação. Não tinha tomado a decisão de se abandonar como uma bolinha nas mãos de
Jesus?

Teresa era mestra na arte do sorriso em plena tentação de impaciência. E este


sorriso era certamente nela a expressão de uma fé vivíssima na eficácia apostólica dos
seus sacrifícios de amor-próprio. Porque havia sacrifícios! Não é agradável ouvir
murmurar à sua volta, dentro das mesmas paredes doconvento, que uma filha destruiu a
saúde do seu pai por entrar muito nova na Carmelo! Sobretudo, quando o seu pai se
encontra internado num asilo de loucos! No ano seguinte, ao melhorar um pouco a
saúde doSr. Martin, parece que poderia assistir, no dia 24 de setembro de 1890, à tomada
de véu da sua filha. Mas, à última da hora, o Sr.  Guérin, tio de Teresa, julga mais
prudente evitar ao seu cunhado esta cerimônia emotiva. Teresa sente-se profundamente
decepcionada pela decisão do seu tio e não pode conter as lágrimas. Mas no meio
das suas lágrimas torna-se presente o reflexo da sua de fé. Na véspera da sua tomada de
véu, escreve a Celina: "Como dizer-te o que se passa na minha alma?... Está dilacerada,
mas sinto que esta ferida é feita por uma mão amiga, por uma mão divinamente
ciumenta!... Foi só Jesus que fez tudo isto, foi Ele, e eu reconheci o seu toque de
amor..." Até tal ponto que Teresa termina a carta dizendo à sua irmã: "Ah!... se pudesse
comunicar-te a paz que Jesus pôs na minha alma no auge das minhas lágrimas, é o que
Lhe peço para ti que és eu mesma!..." (Ct 120).

Este exemplo é significativo da coexistência possível entre a paz profunda da


alma e a comoção da sensibilidade. Teresa não se acusa de modo algum de ter
chorado. Sabe que esta alteração da sua sensibilidade não está sob o controle direto da
sua vontade, que faz parte das "fraquezas" das quais fala o apóstolo e das quais é
necessário "gloriar-se" (2 Cor 12,9). Oferecem-lhe a ocasião de experimentar a sua
pobreza, a sua fraqueza, e obrigam-na a pôr-se nas mãos de Deus, a sua fortaleza e
refúgio no momento da tentação.
Com efeito, Teresa gosta de recordar que não é senão uma "pequena alma",
incapaz de vencer as dificuldades que se lhe apresentam. Há que deixar às "grandes
almas" — teríamos vontade de escrever "às grandes damas" — a alegria de "triunfar"
das dificuldades como quem joga.

Teresa explica-o à Irmã Genoveva num dia em que esta lhe confiava uma vez
mais a sua dificuldade de ser paciente. "Esta vez — dizia a Irmã Genoveva — é
impossível, não posso vencer-me". "Isso não é de admirar — replicou imediatamente
Teresa —. Somos demasiado pequenas para sobrepormo-nos às dificuldades; é necessário
que passemos por debaixo delas. Recorda-te do dia que, em Alençon, passamos entre
as patas de um cavalo que impedia a entrada de um jardim, enquanto as pessoas mais
velhas não sabiam o que fazer para entrar. Vê o que se ganha com ser pequena. Para os
pequenos não há obstáculos, passam-se por todos os lados. As almas grandes podem
passar sobre os negócios, examinar as dificuldades, chegar pela reflexão a pôr-se por cima
de tudo, mas nós, que somos pequenas, devemos evitar tentá-lo. Passemos por debaixo!"
(CSG 43-44).

Notemos a inspiração evangélica que, em Teresa, anima a prática desta


"terapia a quente". Teresa não esquece a lição do Getsêmani. Pois o próprio Jesus
conheceu a tristeza e a angústia, pois foi sacudido violentamente na sua sensibilidade até
o ponto de suar sangue, não é necessário tentar fazê-lo melhor do que ele! O discípulo
não está acima do mestre. Teresa tinha compreendido isto desde que entrou no Carmelo,
quando recopiava as notas de um retiro pregado pelo P. Pichon: Jesus tinha sofrido com
tristeza, sem ânimo; não há que admirar-se de experimentar as mesmas resistências
que Ele diante do sofrimento.

Compreendeu que, para sofrer segundo o coração de Deus, não há nenhuma


necessidade de sofrer sem parecer prestar atenção, ao seu sofrimento, como um herói
estóico. É suficiente aceitar os sofrimentos tal e como vêm e como somos,
oferecendo-os ao Senhor de todo o coração e crendo que não são inúteis para a salvação
do mundo.

Para Teresa, o fato de sofrer com tristeza, longe de ser uma imperfeição, é uma
graça de eleição, uma participação mais estreita na paixão de Cristo: "Que grande graça
quando pela manhã nos sentimos sem nenhumacoragem, nenhuma força para praticar a
virtude!" (Ct 65).

Para exortar as noviças à paciência, Teresa voltava sempre à mesma verdade:


considerai os que vos feriram como instrumentos de Deus. Deixai-vos humilhar: é o
próprio Deus quem vos humilha. Dizia, por exemplo, àIrmã Genoveva: "Quando
estiveres irritada contra alguém, o meio de recuperar a paz é o de orar por essa pessoa e
pedir a Deus que a recompense por te ter dado a oportunidade de sofrer" (PO 284).

Notemos a psicologia de Teresa. Quando as noviças lhe participavam as


dificuldades — que tinham em se mostrar amáveis com tal — ou qual irmã, Teresa
aconselhava-as a não ficarem nas aparências, mas a buscar as qualidades das que lhes
eram menos simpáticas. Embora ela soubesse por experiência que este método —
excelente a frio, como o veremos mais adiante — é impossível quando estamos irritados
contra alguém, isto é, em plena crise emotiva. Temos nesses momentos o espírito de tal
modo "obcecado" pelo comportamento enervante dessa pessoa que não é impossível
pensar noutra coisa e, sobretudo, nas qualidades que pode ter, por outro lado. O único
que podemos então fazer é. ver nela um instrumento do Senhor.

Tal disponibilidade não deve degenerar em resignação passiva diante da


maldade humana. Para que seja evangélica, a paciência tem que ser acompanhada de
uma atitude generosa e combativa frente à maldade e à injustiça humanas. Sem esta
luta, a nossa paciência nunca será conforme à de JesusCristo. Com efeito, Cristo, não
foi crucificado somente pelos seus inimigos. Lutou contra o pecado dos fariseus,
denunciou-o: inclusive começou por isto. Teresa sabia-o, ela que nunca duvidou
repreender os defeitos das noviças que tinha ao seu cuidado. "É necessário que morra
com as armas na mão", dizia a este propósito nos últimos meses da sua vida (CSG 10).

O que não quer dizer que Cristo não reconhecesse a vontade de seu Pai nas
mãos dos verdugos que o crucificavam. Vontade misteriosa, inefável... É o próprio
mistério da Redenção, cuja imperiosa necessidade senos escapa, embora o Ressuscitado o
dissesse com tanta força aos discípulos de Emaús: "Não devia o Messias sofrer para
assim entrar na sua glória?" (Lc 24,26).

O tratamento a frio

Chega um momento em que a nossa crise de perturbação interior se acalma, em


quedeixamos de estar irritados com o primeiro momento da nossa tentação de
impaciência. Esta reflexão "a frio" porá frequentemente de manifesto que não temos
razão para acusar demasiado à pressa de injustiça ou de maldade um comportamento cujos
verdadeiros motivos nos escapam.

Deixemo-nos também aqui guiar por Teresa, que nos mostra como a nossa
primeira impaciência para com o próximo deve-se frequentemente à nossa
ignorância. Um melhor conhecimento do próximo evita-nos muitos arrebates inúteis;
permite-nos, sobretudo, obter uma vitória definitiva sobre as nossas tentações de
impaciência, ao dar-nos a oportunidade de olhar para os outros com o mesmo olhar do
Senhor, um olhar ao mesmo tempo lúcido e indulgente.

Sigamos a Teresa na enumeração dos diferentes motivos de desconhecimento


que impedem muitas vezes que os nossos juízos sobre o próximo sejam justos. Muitas
vezes não sabemos a intenção que move os nossos irmãos a agir. No seu terceiro
manuscrito Teresa refere uma experiência pessoal que a fez compreender de uma vez por
todas que uma ação feita com a melhor intenção podia ser mal interpretada pelo
contexto familiar. Durante um recreio pouco animado, a irmã ecônoma acaba de pedir
ajuda. Teresa desejaria deixar o recreio, mas, por caridade, fez corno se não tivesse pressa
para permitir assim à sua vizinha que se oferecesse voluntária. Uma das irmãs
da comunidade interpretou como falta de disponibilidade a sua obra de caridade (Ms C
13r).

É certo que a intenção do próximo às vezes é clara e nem sempre é


exemplar. Como não se deixar levar pela animosidade em semelhante caso? Nestes
casos, Teresa propõe-nos pensar em todas as circunstâncias atenuantes que amiúde
desculpam os defeitos dos nossos irmãos. Convida-nos a não esquecermos todas as
graças que já recebemos e diz-nos: Se os outros tivessem recebido metade de graças de luz
e de fortaleza que nós próprios recebemos, que teriam chegado a ser? Talvez, muito
melhores do que nós (Ct 147).

Teresa recordava, por exemplo, que o caráter neurastênico da Irmã Maria de


São José, a quem ajudava na lavanderia, fazia-a não ter em conta o seu desagradável
humor. Longe de a julgar severamente, tinha compaixão dela de todo o coração: "Não é
culpa sua não estar capacitada—dizia um dia à sua madrinha —, é como um velho relógio
ao qual se deve dar corda cada quarto de hora" (DE p. 659). Sempre caridosa, Teresa
continuava a ser lúcida.

Teresa comprazia-se igualmente em realçar as qualidades do próximo: "Quando


o demônio procura pôr-me diante dos olhos da alma os defeitos de tal ou tal Irmã que me
é menos simpática, apresso-me a procurar assuas virtudes, os seus bons desejos" (Ms
C 12v). Passava por alto, por exemplo, as aparências pouco atrativas da Irmã Teresa de
Santo Agostinho — o seu aspecto de "lírio num vaso", dizia ela um dia —, para
admirar nela a obra de Deus: em vez de parar no exterior desta irmã antipática,
chegava até o seu coração para admirar a sua beleza e generosidade: "cada vez que a
encontrava, rezava por ela a Deus, oferecendo-Lhe todas as suas virtudes e os seus
méritos. Estava certa de que isso agradava a Jesus, pois não há artista que não goste de
receber louvores pelas suas obras" (Ms C 13v).

Teresa fazia notar um dia à Irmã  Genoveva que, impressionadas com


bastante freqüência pelas imperfeições naturais do nosso próximo — o que de mais
superficial há neles —, esquecemo-nos do essencial: o seu valor profundo, o seu amor a
Deus. "Repara nessas pêras aparentemente tão feias — dizia-lhe Teresa —: são a imagem das
irmãs que mais te desgostam. No Outono, quando te derem esses frutos sem os corpos
estranhos que os desfiguram, comê-los-ás com gosto, sem suspeitar que os tinhas
desprezado. De igual modo, no último dia, ficarás admirada ao ver as tuas irmãs livres de
todas as suas imperfeições e parecer-te-ão grandes santas" (CSG 107-108).

Com o mesmo espírito quando via uma irmã a recair frequentemente no seu


defeito habitual, Teresa pensava: "Quem sabe se os esforços que mostra para se corrigir não
são mais agradáveis ao Senhor que certos atos de virtude feitos pelos outros num dia
indicado?" (Ms C 12v).

Porém, o motivo mais profundo da paciência de Teresa era a sua comunhão


com a mesma paciência de Deus, com essa longanimidade do Senhor que não deixa
de esperar a conversão do pecador e não se irrita pela sua lentidão. Teresa não esquecia
que no Natal de 1886, Jesus tinha feito "num instante" na sua alma a obra que ela não
tinha podido realizar "em dez anos", sabia que aos olhos de Deus um só dia é como mil
anos eque pode num abrir e fechar de olhos converter os corações mais endurecidos.
É assim como podemos compreender a paciência de Teresa em relação com as suas
noviças, que estiveram longe de aproveitar rapidamente as lições e exemplos da sua
mestra. A Irmã Marta, por exemplo, nunca chegou a corrigir-se totalmente do seu espírito
de contradição. Quanto à Irmã Maria Madalena do Santíssimo Sacramento, nem sequer
confiava plenamente em Teresa: "Fugia até do seu olhar" — dirá mais tarde — por medo
de ser adivinhada" (Circular, p. 2).

Paciência consigo mesma


Como conclusão, impõe-se, no entanto, algo importante. Enganar-nos-íamos
estupidamente se imaginássemos que Teresa vencia todas as suas tentações de
impaciência aplicando sistematicamente este "tratamento a frio". Até o fim da sua vida
sentiu a tentação de se mostrar desagradável com a Irmã Teresa de Santo Agostinho, a tal
ponto que considerava mais prudente abandonar o lugar onde ia começar a trabalhar
com ela(Ms C 14v). Continua a ser uma "alma pequenina" que, para triunfar das suas
tentações de impaciência, deve passar por debaixo das dificuldades, em vez de tentar
ficar por cima de tudo com a razão e a virtude.

Por outro lado, Teresa tinha advertido, enquanto se ocupava das noviças, que
não era necessário enfrentar-se ao princípio com esta tática contra a impaciência. "No
princípio do seu cargo de mestra de noviças — explica a Irmã Genoveva quando lhe
contávamos os nossos combates interiores, as nossas tentações de impaciência, a
nossa querida irmãzinha procurava o modo de nos sossegar, quer por reflexões, quer
demonstrando-nos claramente que tal ou qual das nossas companheiras não tinha tido
sorte. Isto levava a longas discussões que não conseguiam o fim desejado nem
aproveitavam em nada as nossas almas. Ela deu-se conta disso imediatamente e
mudou de tática. Em vez de tentar suprimir os nossos combates destruindo as suas
causas, fazia-nos olhá-los de frente" (CSG 10).

Dito de outro modo, ao princípio Teresa animava as suas noviças a triunfarem


imediatamente de uma tentação de impaciência provando com a reflexão: "Porquê
exasperar-me? É ridículo!" Deu-se rapidamenteconta da inutilidade deste método.
Quando se está em plena crise de exasperação contra alguém, o melhor é humilhar-se sob
a tempestade, suportar humildemente o seu movimento de impaciência - esperando
que passe — e oferecer a Deus este sacrifício de silêncio  e de paciência.

A Irmã Genoveva continua: "Pouco a pouco conseguia fazer-me amável a


minha sorte, fazer-me desejar que as irmãs deixassem de ter olhares e deferências comigo,
que fosse repreendida em vez delas, acusada de ter feito mal o que nem sequer tinha o
encargo de fazer. Enfim, situava-me nos sentimentos mais perfeitos. Depois [advirtamos
a importância desta expressão], quando esta vitória estava ganha (quer dizer, quando
otratamento a quente tinha terminado], citava-me exemplos desconhecidos de virtude
da noviça acusada por mim [comportamento básico do tratamento a frio]. Muito
em breve, a admiração sucedia ao ressentimento e eu pensava que as outras eram melhores
do que eu" (CSG, ib.).

Mas para reagir rapidamente às tentações de impaciência, indicava Teresa, é


necessário "suavizar o coração por antecipação” (CSG 152), quer dizer preparar-se, na
oração, para os encontros que teremos com os outros; deve-se contar de antemão com
as suas mudanças de humor, orar por eles, pedir inclusive aDeus que os recompense por nos
dar a ocasião de lhe oferecer um novo sacrifício. Comportamento heróico, certamente,
mas de um heroísmo fundado na fé. Fé na incessante ternura de Deus para conosco, fé no
valor redentor do menor dos nossos sacrifícios.

Teresa do Menino Jesus, doutora do "pequeno caminho", não esquece que ser
fiel a esta linha de conduta é difícil. Mas é necessário nunca desanimar. Para ser paciente
com o próximo, devemos ser antes paciente consigo próprio. Sabemos como
Teresa insistia nesta matéria: "O principal da sua doutrina - afirma a Irmã Genoveva
- era ensinar-nos a não nos afligirmos ao ver que - éramos a mesma fraqueza, mas antes a
gloriar-nos das nossas fraquezas" (CSG 20).

Vê-se aqui claramente como o amor de Teresa para com o seu próximo era
a imagem  do amor que tinha a si mesma.  Se tinha  tanta indulgência para os demais, era
porque era em princípio muito indulgente e muito paciente consigo mesma. Indicou-
se frequentemente que antes de suportar os outros é preciso saber suportar-se a si mesmo.

Bernanos assimilou perfeitamente este aspecto do pensamento teresiano,


quando põe na boca da priora anciã, ao aceitar a jovem noviça, ao princípio dos
Diálogos das carmelitas: "Oh, minha filha, sede sempredoce e dócil nas Suas mãos! Os
santos não se afrontavam contra as tentações, não se sublevavam contra eles mesmos; a
rebelião continua a ser algo do diabo, e sobretudo nunca vos desprezeis! É muito
difícil desprezar-nos sem ofender a Deus em nós" (Ed. Livre de vie, p. 53).

Uma caridade que deita raízes

Não podemos insistir demasiado na graça que fez Teresa compreender melhor, no


fim da sua vida, o preceito da caridade fraterna. Precisamente, pôs-se a redigir o seu
último manuscrito para dar a conhecer as luzes que tinha recebido nesta matéria.

Parece que foi quando ajudava na rouparia a Irmã Maria de São José, religiosa
neurastênica que carecia de qualidades atraentes, quando se apresentou a Teresa a
oportunidade de descobrir todas as exigências evangélicas da caridade. Teresa não se
preocupou de enumerar as diferentes "luzes" que então recebeu. Mas, seguindo o texto
do seu último manuscrito, podem distinguir-se quatro.Teresa não usa aqui a palavra
"descoberta", mas recordemos que o verbo "compreender", que Teresa escreve
catorze vezes em catorze páginas, evoca sempre na sua pena  uma graça de luz.

A importância do segundo mandamento

O que em primeiro lugar impressionou a Teresa foi o que Jesus disse: "o
segundo mandamento é semelhante ao primeiro: ‘Amarás o teu próximo como a ti
mesmo’ (Mt 22,39). Teresa sublinha a palavra "semelhante”, não o tinha feito até
então. Nunca tinha aprofundado estas palavras de Jesus (Ms C 11v). Pois bem,
compreendeu que o segundo mandamento era tão importante como o primeiro, que
devia aplicar-se a agradar aos demais com o mesmo cuidado que tinha posto até então
para agradar a Deus. Ou melhor ainda, que o único modo de agradar a Deus era o de
praticar o seu segundo mandamento: "Aplicava-me, sobretudo a amar a Deus, e foi
amando-O que compreendi que o meu amor não se devia traduzir só em palavras,
porque: 'Não são aqueles que dizem: Senhor, Senhor, que entrarão no reino dos Céus,
mas aqueles que fazem a vontade de Deus' (Mt 7,21)" (Ms C 11v).

Que diz? Teresa tinha esperado o final da sua vida para saber que o amor não se
devia manifestar só com palavras? Dispensamo-nos de refutar tal suposição. Não dizia
ela alguns meses antes: "O amor prova-se com as obras"? (Ms B 4r). E Teresa fazia-o:
privar-se, por seu lado, da bebida para a deixar à sua vizinha do refeitório, procurar
no recreio a companhia das irmãs menos agradáveis, etc. Porém, até estes
momentos, Teresa ainda não tinha indicado tão profundamente a importância do "segundo
mandamento".
Bastará um exemplo para o demonstrar. Em agosto de 1893, ao comentar a
pedido de Celina a página evangélica onde Nosso Senhor afirma que seremos
julgados pelo amor efetivo que tenhamos mostrado aos outros, Teresa só vê uma coisa
no grande af r e s c o d o j u í z o f i n a l : Jesus mendiga-nos o  nosso amor. "Ele faz-se
pobre para que possamos dar-lhe esmola". Não se trata do amorque Jesus nos mendiga na
pessoa dos nossos irmãos necessitados, mas do amor que devemos "reservar" para
Jesus, e "negá-lo" aos outros: "Demos, demos a Jesus, sejamos avarentas com os
outros, mas pródigas com Ele!" (Ct 145).

Advirtamos que no seu primeiro manuscrito Teresa usa apenas uma vez a
palavra "caridade" (Ms A 45v). Na sua carta à Irmã Maria do Sagrado Coração, usa-a
duas vezes, mas no sentido de amor a Deus. Pelo contrário, no último manuscrito, usa
vinte e seis vezes a palavra "caridade" — sempre no sentido de amor ao próximo — e a
palavra "caridosa", quatro vezes. Só ao final da sua vida, Teresa compreende que Jesus
dá ao mandamento da caridade fraterna uma   importância tão grande.

Sobre isto, encontra outras três provas na Escritura: Jesus fala-nos da caridade
"quase em cada página do Evangelho"; "na última ceia", depois de se entregar aos
discípulos "no inefável mistério da Eucaristia", dá-lhes um mandamento novo, o de se
amarem uns aos outros; Jesus "faz deste amor o sinal distintivo dos seus".

Teresa exprime a importância da caridade fraterna à madre Inês numa fórmula


lapidar em junho de 1897: "A caridade fraterna é tudo na terra. Amamos a Deus na
medida em que praticamos" (Sum. 652, p. 275).

"Como" Jesus nos amou

Teresa descobre, igualmente, o modo como o Senhor nos pede que nos


amemos uns aos outros. Não basta amá-los como a nós mesmos, segundo o
mandato do Levítico, mas como o próprio Jesus os ama, o mesmo que a Ele.

Como amou Jesus os seus discípulos, e porque os amou?", pergunta-se Teresa.


A forma interrogativa da frase não é uma simples figura de estilo. Teresa procura
verdadeiramente como e porque ama Jesus os seusdiscípulos. "Ah! não eram as
qualidades naturais deles que O podiam atrair; havia entre eles e Ele umas distância
infinita: Ele era a Ciência, a Sabedoria eterna; eles eram pobres pescadores, ignorantes e
cheios de pensamentos terrestres. Apesar disso, Jesus chama-lhes seus amigos, seus
irmãos" (Ms C 12r).

Seria falso fazer desta descoberta um princípio absoluto. Desde há tempo


Teresa compreendeu que Deus nos ama apesar da nossa miséria. Não é este o ponto de
apoio da sua confiança audaz'? Teresa escrevia ao começar o seu primeiro manuscrito: "O
próprio do amor é abaixar-se..." (Ms A 2v). E, em Setembro de 1896, repetia: "Sim, para que
oAmor fique plenamente satisfeito, é preciso se abaixe até o nada, e transforme esse
nada em fogo" (Ms B 3v).

Porém, nos últimos meses da sua vida, Teresa compreende ainda melhor o


caráter misericordioso deste Amor: admira-se do contraste que existe entre a Sabedoria
de Jesus e a lentidão dos Apóstolos em compreender a sua doutrina. A partir desse momento,
Teresa compreende com maior claridade que deve amar as suas irmãs apesar das
suasimperfeições: "Ah! compreendo agora que a caridade perfeita consiste em suportar
os defeitos dos outros, em não se escandalizar com as suas fraquezas, em edificar-se
com os mais pequenos atos de virtude que se lhes vir praticar" (Ms C 12r).

As carmelitas de Lisieux não se deram conta de que Teresa tinha dado então


provas da maior paciência para com elas. Mas, ao entregar-se sem reservas ao Amor
misericordioso do Senhor, o coração de Teresa chega a ser todo amor e o seu espírito mais
indulgente.

"A caridade não deve ficar fechada no fundo do coração".

Em oposição aos dois primeiros, o terceiro elemento da descoberta teve


repercussões visíveis no comportamento de Teresa: "Mas compreendi, sobretudo, que a
caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração: `Ninguém, disse Jesus, acende uma
candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas coloca-a sobre o candelabro para
alumiar todos os que estão em casa' (Mt 5,15). Creio que essa luz representa a caridade, que
deve iluminar e alegrar, não só os que são mais queridos, mas todos aqueles que estão
em casa, sem excetuar ninguém" (Ms C 12r).

Oferece às suas irmãs "um banquete espiritual, composto de caridade amável e


alegre" (Ms C 28v). Doravante Teresa porá tanto ardor e generosidade em agradar
às suas irmãs como até então tinha feito para agradar ao Senhor. Como lâmpada, deve
iluminar e alegrar a todos os que estão em casa. Dito de outro modo, não só deve pôr-se
norecreio ao lado das irmãs menos simpáticas (já o fazia!) mas procurar o modo de as
alegrar de qualquer jeito.

Nos últimos meses da sua vida, com efeito, Teresa dedica-se a exprimir o seu
amor fraterno com uma ternura e espontaneidade maravilhosas. Tinha chegado a ser tão puro
o seu amor que não temia amar as suas irmãs de modo "demasiado humano". Prova disto
é a recordação da Irmã Maria da Trindade que conta como Teresa tinha ido consolá-la
num dia de junho de 1897 sentando-se a seu lado, num tronco de árvore, e apoiando sobre
o seu coração a cabeça da sua noviça.

"Desde que esta suave chama" da caridade "dilatava o seu coração" (Ms C
16r), Teresa sentia que o amor que ela suscitava no coração das suas irmãs não fazia mais
que reforçar o seu amor a Deus. É o que explicava a esta mesma irmã, a Irmã Maria da
Trindade, que se perguntava se não amaria demasiado a sua mestra de noviças.

No verso de uma estampa que lhe deu no dia 7 de maio de 1896, Teresa tinha
copiado estepensamento da São João da Cruz: "Quando a afeição é puramente espiritual,
crescendo ela, cresce a de Deus, e quanto mais se recorda dela tanto mais se recorda de
Deus e lhe dá vontade de Deus, e crescendo num cresce no outro" (1N 4,7).

Igualmente, à luz deste terceira descoberta se deve ler todos os testemunhos sobre
a alegria de Teresa durante a sua última doença. Expressão do seu amor a Deus, da
aceitação gozosa da sua vontade, esta alegria manifestava, consequentemente, o seu
desejo de consolar a sua família, entristecida com a perspectiva da sua morte iminente.

Não esqueçamos, no entanto, que Teresa se impôs muitos sacrifícios antes de


podermanifestar o seu amor com bela simplicidade. A este propósito, escreveu um texto
de grande importância: "O amor alimenta-se de sacrifícios; quanto mais a alma recusa
satisfações naturais, mais a sua ternura se torna forte e desinteressada... Como agora
estou feliz pelas privações que me impus desde o início da minha vida religiosa! Gozo já
da recompensa prometida aos que combatem corajosamente. Já não sinto ser preciso
recusar-me todas as consolações do coração, pois a minha alma está consolidada por
Aquele que unicamente quero amar. Vejo com alegria que, amando-O, o coração se
dilata, e que pode dar incomparavelmente mais ternura àqueles que lhe são queridos, do
que se tivesse concentrado num amor egoísta e infrutífero" (Ms C 21v-22r).

A participação no amor de Cristo

Teresa compreende, no fim e no mais íntimo, que lhe é impossível levar a cabo
este magnífico programa se Jesus não vem amar nela a todos e a todas a quem Ele lhe
pediu que amasse. Daí a exclamação escrita no centro do seu relato: "Oh! como gosto
d'Ele, já que me dá a certeza de que a vossa vontade é amardes em mim todos aqueles a
quem me mandais amar!..." (Ms C 12v). Desde logo, se poderia julgar que Teresa
tinha compreendido já no dia 10 de abril de 1896 a vontade de Jesus de amar nela a
todas as suas irmãs. Nesse dia escreve a Leônia: "Minha irmãzinha querida, não posso
dizer-te tudo o que o meu coração encerra de pensamentos profundos a teu respeito; a
única coisa que quero repetir-te é esta: "amo-te mil vezes mais ternamente do que
habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso
Celeste Esposo” (CT 186). Com efeito, Teresa está a pensar que no dia seguinte — na
festa da sua irmã — poderá comungar e unir-se assim ao amor mesmo de Jesus a Leônia.
Mas não pensa ainda que esta possibilidade de amar os outros com o próprio Coração de
Jesus lhe seja oferecida a todo momento. Só alguns meses depois, lhe será concedida
essa luz.

Aquela última descoberta teresiana situava-se na linha de todos os


aprofundamentos que o Senhor a tinha levado a praticar nos anos anteriores. No dia 9 de
junho de 1895, compreendendo melhor do que nunca"quanto Jesus deseja ser
amado", tinha-se oferecido como vítima ao Amor misericordioso. Na sexta-feira
seguinte, enquanto fazia a Via-Sacra, sentiu-se de repente ferida por um dardo de fogo
tão ardente que compreendeu que Deus confirmava plenamente o seu oferecimento e
fazia afluir sobre ela as ondas do seu amor. Compreendia então perfeitamente que podia a
amar a Deus com o mesmo Coração de Deus. Mas foi unicamente nos últimos meses
da sua vida quando recebeu a graça de compreender que podia igualmente, em todo o
momento, amar o seu próximo com o próprio Coração de Deus, presente no seu
coração.

TERESA NOS FALA:

"Uma candeia sobre o candelabro"

"Como agora estou feliz pelas privações que me impus desde o início da minha vida
religiosa! Gozo já da recompensa prometida aos que combatem corajosamente. Já não sinto ser
preciso recusar-me todas as consolações do coração, pois a minha alma está consolidada por
Aquele que unicamente quero amar. Vejo com alegria que, amando-O, o coração se dilata, e
que pode dar incomparavelmente mais ternura àqueles que lhe são queridos, do que se
tivesse se concentrado num amor egoísta e infrutífero" (Ms C 22r).
"Nem sempre é possível, no Carmelo, praticar ao pé da letra as palavras do
Evangelho; pois as vezes, se é obrigada a recusar um serviço, por causa dos ofícios. Mas
quando a caridade lançou profundas raízes na alma, manifesta-se exteriormente. Há uma
maneira tão graciosa de recusar o que não se pode dar, que a recusa dá tanto prazer como o
dom" (Ms C 18r).

"Ah! compreendo agora que a caridade perfeita consiste em suportar os defeitos


dos outros, em não se escandalizar com as suas fraquezas, em edificar-se com os mais
pequenos atos de virtude que se lhes vir praticar. Mas compreendi, sobretudo, que a
caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração: 'Ninguém, disse Jesus, acende
uma candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas coloca-a sobre o candelabro para
alumiar todos os que estão em casa' (Mt 5,15). Creio que essa luz representa a
caridade, que deve iluminar e alegrar, não só os que são mais queridos, mas todos aqueles
que estão em casa, sem excetuar ninguém" (Ms C 12r).

"O farol luminoso do amor"

"Sim, encontrei o meu lugar na Igreja, e esse lugar, ó meu Deus, fostes Vós que mo
destes... No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor... Assim serei tudo..., assim o
meu sonho será realizado!!!

Porque falar de uma alegria delirante? Não, esta expressão não é exata. É antes a
paz calma e serena do navegante ao avistar o farol que o há de guiar ao porto. Ó Farol
luminoso do Amor, eu sei como hei dealcançar-Te; encontrei o segredo para me apropriar da
tua chama.

Não passo de uma criança impotente e fraca. Contudo, é a minha própria


fraqueza que me dá a audácia para me oferecer como vítima ao teu Amor, ó Jesus!
Antigamente, só as hóstias puras e sem mancha eram aceites pelo Deus forte e poderoso.
Para satisfazer a Justiça divina, eram precisas vítimas perfeitas. Mas à lei do temor sucedeu
a lei do Amor, e o Amor escolheu-me como holocausto, a mim, fraca e imperfeita
criatura... Não é tal escolha digna do Amor?... Sim. Para que o Amor fique
plenamente satisfeito, é preciso que Ele se baixe até ao nada, e transforme esse nada
em fogo..." (Ms B 3v).

“Ó Jesus! se eu pudesse dizer a todas as pequenas almas... às pequenas vítimas do


teu Amor!..." (Ms B 5v).

CAPÍTULO 10

APÓSTOLA E MISSIONÁRIA

CAMILLO GENNARO OCD

No momento em que Teresa entrou mais profundamente em contato com o


mistério do amor divino, revelado em Cristo, sentiu-se cada vez mais impelida pelo desejo
de colaborar na salvação das almas.

Teresa compreende a figura de Cristo, “o homem para os outros", que, inocente, carrega com
o pecado do homem e expia-o na cruz. Tal impressão torna-se mais profunda muito em
breve, mergulhando num desejo ardente de participar na paixão em primeira pessoa.
Quando o Senhor chame Teresa para o Carmelo a fim de a tornar sua esposa,
será, pois, "uma consagrada para os outros", levando muitos irmãos à salvação.

Teresa e a "sede de almas"

O Senhor satisfaz muito em breve este desejo e acende-o na sua alma no dia


de Natal de 1886, que Teresa apelida da sua "conversão". Depois de contar o milagre
realizado pelo Menino Jesus, libertando-a para sempre da timidez contraída pela morte
da sua mãe, Teresa acrescenta: "Mais misericordioso ainda para comigo do que para
com os seus discípulos, Jesus pegou Ele mesmo na rede, lançou-a e retirou-a cheia de
peixes... Fez de mim um pescador de almas. Senti um grande desejo de trabalhar
pela conversão dos pecadores, desejo que não tinha sentido tão vivamente" (Ms A 45v).
Na noite de Natal, por uma graça divina, Teresa é substancialmente a carmelita que fará
da sua própria vida um cântico ininterrupto de amor a Deus para que venha o seu reino e
o seu paraíso, um tempo de conquista de almas.

Alguns meses depois, e precisamente num domingo de Julho, Teresa recebe


uma forte impressão que lhe mostra o modo da atuação da graça, de ser "pescador
de almas". Assim, no seu primeiro manuscrito: "Um Domingo, contemplando uma
estampa de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o sangue que caía de uma das
suas mãos divinas. Senti uma enorme pena, ao pensar que esse sangue caía na terra,
sem que ninguém se apressasse a recolhê-lo, e resolvi manter-me em espírito ao pé da
cruz para receber o Divino orvalho que dela escorria, compreendendo que seria
necessário espalhá-lo sobre as almas... O grito de Jesus na cruz: 'Tenho sede!'
ressoava também continuamente no meu coração. Estas palavras acendiam em mim um
ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado, e sentia-
me eu mesma devorada pela sede de almas... Não eram ainda as almas dos sacerdotes
que me atraíam, mas as dos grandes pecadores; ardia no desejo de as arrancar às
chamas eternas" (Ms A 45v).

Teresa, com a sua decisão de ficar ao pé da cruz para receber a graça e
reparti-la depois pelas almas, propõe-se libertar o seu tempo e o nosso da heresia: a
indiferença de muitos pela redenção realizada por Cristo.

O Senhor, na sua bondade, concede a Teresa muito em breve o modo de levar


à prática os seus desejos, e o assassino  Henrique Pranzini é o primeiro a
experimentar a eficácia do ardor apostólico da pequena auxiliadora de Cristo. A sua
conversão entusiasma a Teresa e convence-a de que salvará ainda muitos outros, se se
puder consagrar a Deus com uma vida de sacrifício e de oração. Teresa chama a Pranzini
o "seu primeiro filho" (Ms A 46v), a faz compreender que a sua relação com os
pecadores se tornou mais profunda: sente-se mãe porque quer gerá-los para a glória.

No entanto, a sede de almas não fez mais do que começar. Dois meses depois, na
alma de Teresa dá-se um salto de qualidade: não são as almas dos pecadores as que a
atraem, mas adverte que também as dos sacerdotesnecessitam da sua ajuda. Esta
preocupação leva-a consigo para o Carmelo.

As almas e, sobretudo, os sacerdotes


No dia 9 de abril de 1888 Teresa Martin atravessa o limiar do Carmelo, e naquele
dia começa para o convento de Lisieux e para os da França uma profunda revolução
espiritual.

Teresa entra num convento de freiras de clausura que, em 1861 tinha fundado
um convento em Saigon, em terras de missão, dedicado, consequentemente, à salvação
das almas, salvação procurada conforme um estilo espiritual completamente
particular, indicado por um livro titulado O tesouro do Camelo, no qual se lia, entre outras
coisas: "O fim da Ordem do Carmelo é o de honrar a Encarnação e a aniquilação do
Salvador, e de se unir estreitamente ao Verbo feito carne e de glorificar a Deus imitando a
sua vida escondida, sofredora e imolada. É, também o de rogar pelos pecadores, o de se
oferecer por eles à justiça divina e suprir, com o rigor de uma vida austera e crucificada, a
penitência que eles não fazem; de modo que uma carmelita está encarregada de
continuar e completar, em certo modo, a obra de mediação de Cristo. Esta Ordem exige
almas generosas e mortificadas que se ponham generosamente no lugar do divino Mestre,
já impassível, para serem imoladas com Ele para a glória do Pai e para a salvação das
almas".

Teresa Martin entra no Carmelo com o mesmo ideal espiritual, alcançado


pelo caminho do amor humilde, mas heróico, e da oração confiante. "O que vinha
fazer ao Carmelo, declarei-o aos pés de Jesus-Hóstia, no exame que precedeu a minha
profissão: ‘Vim para salvar as almas e, especialmente para rezar pelos sacerdotes’ (Ms A
69v).

Teresa chama a esta missão cotidiana de oração apostólica pelos sacerdotes


"comércio por atacado", como recorda Celina, porque, santificando os responsáveis
diretos da fé cristã, consegue mais facilmente as almas que lhes estão confiadas.
Recordando a experiência da sua viagem a Roma com Celina, escreve-lhe em
julho de 1889, já religiosa: "Oh! minha Celina, vivamos para as almas... sejamos
apóstolos... salvemos sobretudo as almas dos sacerdotes, estas  almas deviam ser mais
transparentes do que o cristal... Ai! Quantos maus sacerdotes, sacerdotes que não são
suficientemente santos... rezemos, soframos por eles, e no último dia Jesus será
agradecido. Dar-lhe-emos almas... Celina, compreendes este grito do meu coração?"
(Ct 94). E em outubro: "Ah! Celina, sinto que Jesus pede a nós as duas, que apaguemos a
sua sede dando-lhe almas, almas de sacerdotes sobretudo, sinto que Jesus quer que eu
te diga isto porque a nossamissão é esquecermo-nos, aniquilarmo-nos... somos tão
pouca coisa... e todavia Jesus quer que a salvação das almas dependa dos nossos
sacrifícios, do nosso amor. Ele mendiga-nos almas... Só há uma coisa afazer durante
a noite, a única noite da vida que só virá uma vez, é amar Jesus com toda força do
nosso coração e salvar-Lhe almas para que Ele seja amado... Oh! Fazer amar Jesus!"
(Ct 96). Todavia, um pouco depois, escreve-lhe no mesmo sentido: "Celina, se
quiseres, convertamos almas. É necessário que este ano façamos muitos sacerdotes
que saibam amar a Jesus!... que O toquem com a mesma delicadeza com que Maria O
tocava no seu berço!" (Ct 101).

Numa carta a Celina que tinha decidido entrar também no Carmelo, Teresa


defende valorosamente a vocação das carmelitas que, em breve, a admitirão na sua
comunidade: "Nós também não somos nem preguiçosasnem pródigas. Jesus defendeu-
nos na pessoa de Madalena. Estava à mesa, Marta servia, Lázaro comia com Ele e com
os discípulos. Quanto a Maria, não pensava em tomar alimento, mas em dar prazer
Àquele que amava, por isso pegou num vaso de perfume de elevado preço e derramou-
o sobre a cabeça de Jesus quebrando o vaso, então a casa toda ficou cheia do odor do
perfume, mas os apóstolos murmuravam contra Madalena... Foi mesmo como para nós, os
cristãos mais fervorosos, os sacerdotes acham que somos exageradas que devíamos
servir como Marta em vez de consagrar a Jesus os vasos das nossas vidas com os
perfumes que nelesestão encerrados... E todavia, que importa que os nossos vasos
sejam quebrados se Jesus é consolado e se o mundo, mesmo sem querer, se vê obrigado a
cheirar os perfumes que deles se exalam e que servem para purificar o ar envenenado que
constantemente respira" (Ct 169).

O "nosso irmão" desgarrado, o padre Loyson

A intuição espiritual de Teresa fica confirmada pelo comportamento de um seu


irmão carmelita, o Pe. Jacinto Loyson. Nascido em Paris em 1827, entra no seminário de
São Sulpício e é ordenado sacerdote em 1851. Atraído pela vida religiosa, passa à
Ordem dos Carmelitas descalços e professa em 1860. Em 1863 prega a Quaresma na
catedral de Bordéus e o arcebispo de Paris convida-o a pregar, igualmente, em Notre-
Dame. Durantetrês anos seguidos continua o seu ministério de orador brilhante.
Em 1868 prega a Quaresma em Roma, na Igreja de São Luís dos Franceses; o papa
recebe-o em audiência e felicita-o. Mas começam aassaltar-lhe dúvidas de fé que o levam
penosamente a uma crise, com a tentação de sair da Igreja, que lhe parece como uma
relíquia medieval, para fundar a igreja do futuro.

Entre aqueles que seguiram a sua pregação em Roma encontra-se uma senhora,
protestante, que há pouco tinha perdido o seu marido, uma tal Emília Meriman.
Comovida pela pregação do P. Jacinto, faz-se instruir por ele no catolicismo e converte-
se. Pouco tempo depois, transfere-se para os Estados Unidos. O Pe. Jacinto continua a sua
pregação e, entre várias peripécias e encontros com a doutrina da Igreja, no dia 20 de
setembro de1869 anuncia publicamente a sua saída da Ordem carmelita. Depois de três
anos na Inglaterra, casa-se com a senhora Meriman. Une-se ao grupo dos Velhos
Católicos e tenta fundar uma igreja católica galicana. O seu comportamento consegue
alguma aprovação, mas, sobretudo, gera uma condenação severa dos moderados.

Para Teresa, este seu irmão converte-se no protótipo dos sacerdotes que se
afastam da Igreja. No dia 14 de outubro de 1890 escreve a sua irmã: "Querida Celina, o
que tenho a dizer-te é sempre o mesmo. Ah! Rezemos pelos sacerdotes, cada dia mostra
quanto os amigos de Jesus são raros... parece-me que o mais sensível para Ele deve ser a
ingratidão, sobretudo ver as almas que Lhe são consagradas darem a outros o coração
que Lhe pertence de uma maneira absoluta" (Ct 122). Um ano depois é mais explícita:
"Celina, só o sofrimento pode gerar almas para Jesus... É surpreendente que estejamos tão
bem servidas, nós cujo único desejo é salvar umaalma que parece perdida para
sempre... As notícias pormenorizadas interessam-me muito, embora tenham feito
bater com força o meu coração... Mas eu vou dar-te ainda outras que não são mais
consoladoras. O infeliz pródigo foi a Coutances onde recomeçou as conferências de
Caen. Parece que tenciona percorrer assim a França... Celina... E além disso diz-se que
é fácil ver que o remorso o atormenta, percorre as igrejas com um grande crucifixo
e parece fazer grandes adorações... A mulher dele segue-o por toda a parte. Celina
querida, ele é muito culpado, mais culpado talvez do que nunca foi um pecador que se
tenha convertido, mas não pode Jesus fazer uma vez o que ainda nunca fez? E se o não
desejasse, teria posto no coração das suas pobres esposazinhas um desejo que não
pudesse realizar?... Não, é certo que deseja mais do que nós reconduzir ao redil esta
pobre ovelha transviada; virá um dia em que lhe abrirá os olhos e então quem sabe se a
França não será por ele percorrida com um objetivo totalmente diferente daquele que agora
se propõe. Não noscansemos de rezar a confiança faz milagres e Jesus disse à Bem-
aventurada Margarida Maria: 'Uma alma justa tem tanto poder sobre o meu coração
que pode obter dele o perdão para mil criminosos'. Ninguém sabe se é justo ou pecador
mas, Celina, Jesus faz-nos a graça de sentir no mais íntimo do nosso coração que
preferíamos morrer a ofendê-lo, e depois não são os nossos méritos, mas os do nosso
Esposo que são os nossos que oferecemos ao pai que está nos Céus, a fim de que o nosso
irmão, um filho da Ssma. Virgem, volte vencido a refugiar-se sob o manto da mais
misericordiosa das Mães" (Ct 129).

No dia 19 de agosto de 1897, dia em que se festeja na Igreja a memória


litúrgica de São Jacinto, Teresa oferece a sua última comunhão para obter a conversão
deste seu irmão, pelo qual tinha rezado tanto. Jacinto Loyson morreu em Paris no dia 9
de fevereiro de 1912, assistido por um sacerdote da igreja armena, murmurando:
"Meu doce Jesus!", e beijando o seu crucifixo.

Teresa de Lisieux e Joana d'Arc

Em janeiro de 1895, ao dedicar o seu primeiro manuscrito à sua Irmã Paulina, priora
do convento, Teresa escreve, ao narrar os primeiros dez anos da sua infância: "Foi assim
que, ao ler a narrativa das ações patrióticas das heroínas francesas, em particular da
Venerável Joana d'Arc, tinha um grande desejo de as imitar; parecia-me sentir em mim
o mesmo ardor que as animava, a mesma inspiração celeste. Então recebi uma graça que
sempre considerei como uma das maiores da minha vida, porque, nessa idade, não recebia
luzes como agora, que estou inundada delas. Pensei que tinha nascido para a glória e,
procurando o meio de lá chegar, Deus inspirou-me os sentimentos que acabo de
descrever. Fez-me compreender também que a minha própria glória não apareceria aos
olhos mortais, que consistiria em me tornar uma grande santa" (Ms A 32r).

Teresa aprofundou no Carmelo o conhecimento desta sua santa irmã, podendo


ter acesso à leitura do melhor estudo então existente em França, escrito por Henri
Wallon, no qual se inspirou em 1894 para compor duas piedosas recreações para uso
da comunidade religiosa.

Teresa quer imitar Joana d'Arc, não libertando a sua pátria do inimigo invasor,
mas libertando as almas do inimigo mais perigoso: o pecado Em 1896 compõe esta
oração: "Senhor, Deus dos exércitos que dissestes no vosso Evangelho: 'Não vim trazer a
paz mas a espada', armai-me para a luta, desejo ardentemente combater para vossa
glória, mas suplico-Vos que fortaleçais a minha coragem.... Ó meu Bem-amado!
compreendo a que combate me destinais, não é nos campos de batalha que terei de
lutar. Sou prisioneira do vosso Amor, prendi livremente a cadeia que me une a Vós e
me separa para sempre do mundo que amaldiçoastes ... A minha espada é o Amor, com
ele expulsarei do reino o estrangeiro" (Or 17).

No último período da sua vida, quando a prova da fé se abate na alma de


Teresa, senta-se alegre à "mesa dos pecadores" para os libertar da sua penosa situação e
levá-los a Deus, o seu pensamento volta-se espontaneamente para Joana, que a conforta na
sua prisão espiritual de secura e solidão. "Os santos também me encorajam na minha
prisão. Dizem-me: Enquanto estiveres presa, não podes cumprir a tua missão; mas
mais tarde, depois da tua morte, chegará o tempo dos teus trabalhos e das tuas
conquistas" (UCR 10.8.4).

A Igreja, ao proclamar Teresa santa e padroeira das missões, confirmou


plenamente a intuição desta jovem que por amor a Deus e às almas sacrificou
diariamente a sua vida religiosa. Joana d'Arc queria libertar a França dos hereges, e
Teresa queria libertar as almas do pecado. É idêntico o amor a Cristo e aos homens que
une as duas santas, cheias de amor e de esperança para com a Igreja ameaçada pelo
mal.

Dois "irmãos" missionários

O ano de 1895 marca para Teresa a importante data do seu oferecimento ao


Amor misericordioso. E no dia 15 de outubro o seu campo de apostolado que até então
se estendia a todas as almas e, em particular, às dos sacerdotes, adquire uma
determinação específica. Teresa escreve: "Há muito tempoque tinha um desejo que me
parecia absolutamente irrealizável: o de ter um irmão  sacerdote. Pensava muitas
vezes que, se os meus irmãozinhos não tivessem voado para o Céu, teria tido a felicidade
de os ver subir ao altar. Mas, como Deus os escolheu para deles fazer anjinhos, já não
podia esperar ver o meu sonho realizar-se. Mas eis que Jesus não só me concedeu a
graça que desejava, como também me uniu pelos laços da alma a dois dos seus
apóstolos, que se tornaram meus irmãos..." (Ms C 31v).

O primeiro foi-lhe confiado no dia 17 de outubro de 1895. A madre Inês, priora


do convento, recebe a carta de um seminarista, Maurício Bellière, que pede as orações
de uma carmelita que o ajude a perseverar fervorosamente na sua vocação sacerdotal
e que seja a sua colaboradora espiritual no seu futuro ministério apostólico.

A madre Inês pensa imediatamente em Teresa. É assim como Maurício Bellière,


um ano mais novo que ela, se converte no seu primeiro irmão espiritual. No período
de1896-1897, Teresa escreve-lhe dez cartas, chamando-lhe no fim "querido
irmãozinho". Compõe para ele uma extensa oração (Or 8) que diz assim: "Ó meu Jesus!
dou-Vos graças por realizardes um dos meus maiores anseios, o de ter um irmão,
sacerdote e apóstolo (...) Sabeis, Senhor, que a minha única ambição é fazer-Vos
conhecer e amar, agora o meu desejo será realizado; posso apenas rezar e sofrer, mas a
alma à qual Vos dignastes unir-me pelos doces laços da caridade
irá  combater na planície para Vos conquistar corações, enquanto eu na montanha
do Camelo suplicar-Vos-ei que lhe concedais a vitória".

A providência de Deus, extremamente generosa com a boa vontade de Teresa,


em janeiro de 1896 oferece-lhe a ocasião de ser novamente irmã espiritual de um
missionário, o padre Adolfo Rolland. A madre Maria de Gonzaga, então priora, pede à
Irmã Teresa se quer encarregar-se de orar pelo jovem missionário. Teresa, com doçura,
faz-lhe ver que já oferece os seus "pobres méritos" por um missionário, e que no
convento há religiosas mais santas que ela. A priora não cede e diz-lhe que a obediência
duplicará os seus méritos. Recomenda-lhe apenas que não diga nada na comunidade,
ficando entendido que, para as outras religiosas, o padre Roulland é o "irmão
espiritual da madre priora".
Correspondência com os missionários

Teresa mantém com os seus irmãos missionários uma correspondência epistolar


de caráter eminentemente espiritual, para os confortar no seu difícil e sacrificado
ministério. Com que valor e intenção tinha vivido estes gestos de fraternidade
manifesta-o ela mesma no seu terceiro manuscrito autobiográfico: "É, sem dúvida,
pela oração e pelo sacrifício que se podem ajudar os missionários; mas às vezes, quando
é do agrado de Jesus unir duas almas para sua glória, permite que, de tempos em tempos,
possam comunicar uma à outra os seus pensamentos e estimular-se a amar mais a Deus.
Mas para isso é preciso a vontade expressa da autoridade, pois parece-me que, de outra
forma, tal correspondência faria mais mal do que bem, se não ao missionário, pelo menos à
carmelita, continuamente inclinada, pelo seu gênero de vida, a fechar-se em si mesma.
Então, em vez de a unir a Deus, essa correspondência (mesmo distanciada) que ela teria
solicitado, ocupar-lhe-ia o espírito; imaginandofazer mundos e fundos, não faria
absolutamente nada a não ser procurar, sob pretexto de zelo, uma distração inútil.
Quanto a mim, nisso como no resto, sinto que é preciso, para que as minhas cartas façam
bem, que sejam escritas por obediência, e que experimente antes repugnância do que
gosto em escrevê-las" (Ms C 32 r-v).

Quando Teresa começa a escrever aos seus irmãos missionários não pode deixar
de os fazer participantes de toda a sua maturidade espiritual, do seu modo de se aproximar
de Deus e das almas, do modo que ela chama "um pequeno caminho muito reto, muito
curto, um caminho completamente  novo"  (Ms C 2v).

Para termos uma idéia exata do que Teresa comunica com os seus irmãos
missionários, e não trairmos o seu pensamento, é conveniente ler algumas passagens
significativas que nos apresentam sob três aspectos fundamentais da sua fisionomia
espiritual: como se vê em Deus, qual o estilo do seu apostolado espiritual e como pensa
que será a sua missão mais além da sua morte.

Em relação à sua atitude diante do Senhor, escreve deste modo: "Meu Irmão, talvez
a comparação não vos pareça exata? É certo que vós não sois ainda um Pe.
de la Colombière, mas não duvido de que um diasereis como ele um verdadeiro
apóstolo de Cristo. Pela minha parte não me vem nem por sombras ao espírito a idéia
de me comparar com a Bem-aventurada Margarida Maria; verifico simplesmente que
Jesus meescolheu para ser a irmã de um dos seus apóstolos e as palavras que a santa
Amiga do seu Coração lhe dizia por humildade, repito-lhas eu com toda a verdade; por
isso espero que as suas riquezas infinitas supram tudo o que me falta para realizar a obra
que Ele me confia (...) Ó meu irmão! peço-vos que acrediteis em mim, Deus não vos deu
como irmã uma grande alma, mas uma muito pequenina e muito imperfeita. Não
julgueis que é a humildade que me impede de reconhecer os dons de Deus, sei que Ele
faz em mim grandes coisas e canto-Lhe todos os dias com alegria. Lembro-me de que
aquele a quem mais se perdoou mais deve amar, por isso procuro fazer da minha vida
um ato de amor e já não me inquieto por ser uma alma pequenina, pelo contrário, até
me regozijocom isso. Essa é a razão por que ouso esperar que "o meu exílio será curto"
mas não é porque esteja preparada; sinto que nunca o estarei se o Senhor não se dignar
transformar-me n'Ele mesmo; pode fazê-lo num instante; depois de todas as graças com
que me cumulou espero ainda essa da sua misericórdia infinita" (Ct 224).
"O meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que
têm medo de um Amigo tão terno (...) Pela minha parte posso fazer bem pouco, ou
mesmo absolutamente nada se estivesse só, o que me consola é pensar que a vosso lado
posso servir para alguma coisa; de fato o zero sozinho não tem valor, mas colocado
junto da unidade toma-se poderoso, desde que evidentemente se ponha do lado bom,
depois e não antes!... Foi aí que Jesus me colocou e espero aí ficar sempre, seguindo-
vos de longe, com a oração e o sacrifício" (Ct 226).

Pelo que diz respeito ao estilo apostólico de Teresa, lemos ainda: "Peço a Jesus
para que sejais, não só um bom missionário, mas sim um santo abrasado do amor de Deus
e das almas; suplico-vos que alcanceis também para mim este amor para que eu
possa ajudar-vos no vosso trabalho apostólico. Vós sabeis que uma carmelita que não
fosse apóstola afastar-se-ia da sua vocação e deixaria de ser filha da Seráfica Santa
Teresa que desejava dar mil vidas para salvar uma só alma" (Ct 198).

"Mais do que nunca, compreendo que os mais pequenos acontecimentos da


nossa vida são conduzidos por Deus, é Ele que nos faz desejar e que satisfaz os nossos
desejos... Quando a nossa boa Madre me propôs tornar-me vossa auxiliar, confesso-vos,
meu irmão, que hesitei. Considerando as virtudes das santas carmelitas que me rodeiam,
parecia-me que a nossa Madre teria servido melhor os vossos interesses espirituais
escolhendo para vós qualquer outra Irmã, só o pensamento de que Jesus não olharia às
minhas obras imperfeitas, mas à minha boa vontade, me fez aceitar a honra de partilhar
dos vossos trabalhos apostólicos" (Ct 201).

"Sei que há santos que passaram a vida a praticar admiráveis mortificações para
expiarem os seus pecados; mas que quereis? Há várias moradas na casa do Pai Celeste,
disse-o Jesus e é por isso que sigo a via que Ele me indica. Procuro não me ocupar de
mim mesma em nada, e o que Jesus se digna realizar na minha alma me abandono,
porque não escolhi uma vida austera para expiar as minhas faltas, mas as dos outros" (Ct
247).

"Trabalhemos juntos na salvação das almas, só temos o único dia desta vida


para salvá-las e dar assim ao Senhor provas do nosso amor. O dia a seguir a este será a
eternidade, então Jesus vos devolverá centuplicadas as alegrias tão doces e tão
legítimas que lhe sacrificais" (Ct 213).

Mas também Teresa pensa no que lhe espera no mais além do tempo e como
proc u r a   viver o seu paraíso: "Meu querido irmãozinho: Quando lerdes estas linhas,
talvez eu já não esteja na terra, mas no seio das delícias eternas! Não conheço o futuro,
mas posso dizer-vos com segurança que o Esposo está à porta, seria preciso um milagre
para me reter no exílio e não creio que Jesus faça esse milagre inútil. Ó meu querido
irmão, como sou feliz por morrer! Sim, sou feliz, não por ficar livre dos sofrimentos
deste mundo (o sofrimento unido ao amor é pelo contrário a única coisa que me
parece desejável no vale das lágrimas). Estou contente por morrer porque sinto que é
esta a vontade de Deus e que muito mais do que neste mundo, serei útil às almas que me
são queridas, à vossa muito especialmente" (Ct 253).

"Nunca pedi a Deus para morrer jovem, ter-me-ia parecido cobardia, mas Ele desde
a minha infância dignou-se dar-me a convicção íntima de que o meu percurso cá na
terra seria curto. Portanto o pensamento de só cumprir a vontade do Senhor é que faz
toda a minha alegria (...) Quando estiver no portode abrigo ensinar-vos-ei, querido
irmãozinho da minha alma, como deveis navegar no mar tempestuoso do mundo com o
abandono e o amor de uma criança que sabe que o Pai a ama e não poderia deixá-la só na
hora de perigo" (Ct 258).

"Dizeis-me que muitas vezes rezais também pela vossa irmã; já que tendes esta
caridade ficaria muito feliz se fizésseis todos os dias por ela esta oração que encerra todos
os seus desejos: Pai misericordioso, em nome do nosso Doce Jesus, da Virgem Maria e
dos santos, suplico-Vos que abraseis a minha irmã no vosso Espírito de Amor e que
lhe concedais a graça de vos fazer amar muito'. Se o Senhor me levar depressa com
Ele, peço-vos que continueis a rezar todos os dias a mesma oração por mim, porque eu
desejarei no Céu o mesmo que na terra: Amar Jesus e f a z ê - l o a m a d o . R e v e r e n d o
P a d r e , d e v e i s   achar-me muito estranha, talvez lamenteis ter uma irmã que parece
querer ir gozar do repouso eterno e deixar-vos a trabalhar sozinho. Mas tranquilizai-
vos, a única coisa que desejo, é a vontade de Deus, e confesso que se no Céu já não
pudesse trabalhar para a sua glória, preferiria o exílio à pátria. Não conheço o futuro, mas
se Jesus realizar os meus pressentimentos, prometo-vos continuar a ser sempre a vossa
irmãzinha lá no Céu. A nossa união, longe de ser quebrada, tornar-se-á mais íntima, já não
haverá então clausura, nem grades e a minha alma poderá voar convosco nas missões
distantes. Os nossos papéis continuarão a ser os mesmos, para vós as armas apostólicas,
para mim a oração e o amor" (Ct 220).

"Meu irmão, irei em breve oferecer o vosso amor a todos os vossos amigos
do Céu, pedir-lhes para que vos protejam. — Queria dizer-vos, meu querido
irmãozinho, mil coisas que compreendo agora, estando àsportas da eternidade, mas
eu não morro, entro na vida e tudo o que não posso dizer-vos neste mundo vos farei
compreender do alto dos Céus..." (Ct 244).

Ir para um Carmelo de missão

Querendo consagrar a Deus a sua própria existência, Teresa elegeu uma


experiência forte de espiritualidade para dar a Cristo todas as provas do seu amor e
oferecer aos pecadores o mérito da sua própria vida de comunhão com Deus. Para isso,
escolheu o caminho mais duro, entrando num convento de clausura, onde se observa
uma regra austera e sem muita consolação humana.

De seus escritos surge também outro desejo: o de viver num Carmelo de terras
de missão, onde a sua vida, longe dos afetos familiares mais santos e normais, podia
oferecer-lhe maiores meios para alcançar o fim que se tinha proposto. Teresa exprimiu
este desejo muitas vezes, e só a obediência e a sua saúde delicada lhe impediram o
seu impulso de generosidade heróica.

Lendo os seus escritos, recolhemos todo o entusiasmo do seu jovem coração,


disposto a dar-se a Deus e às almas com generosidade ilimitada. "Pedi ainda a Jesus
que eu faça sempre a sua vontade, para isso estou prontapara atravessar o mundo... e
estou também pronta para morrer" (Ct 225)

Teresa tinha entrado numa comunidade caracterizada por uma sensibilidade


missionária muito desenvolvida. Em 1871, O Carmelo de Lisieux tinha fundado um
convento em Saigon, o primeiro em terras de missão. Teresa teve sempre desejos de ir
um dia para o Carmelo missionário. Lia com gosto as vidas dos missionários e
escutava com interesse as notícias sobre a expansão missionária. Nos últimos anos da
sua vida, o seu desejo reavivou-se quando se procurava ajudar a nova fundação de
Hanoi.

Escreveu no Manuscrito C: "Estou também pronta para voar para outro campo
de batalha, se o Divino General me exprimir esse desejo. Não seria necessária
uma ordem; bastaria um olhar, um simples gesto. Desde a minha entrada na Arca Santa,
sempre pensei que, se Jesus não me levasse bem depressa para o Céu, a minha sorte seria a
da pombinha de Noé: um dia o Senhor abriria a janela da Arca e dir-me-ia para voar
para muito longe, muito longe, até às regiões infiéis, levando comigo o raminho de
oliveira. Este pensamento, minha Madre, fez crescer a minha alma, fez-me pairar acima
de todas as criaturas. Compreendi que mesmo no Carmelo podia haver separações, e que
só no Céu a união será completa e eterna. Então quis que a minha alma habitasse desde já
nos Céus, e que não olhasse senão de longe para as coisas da terra. Aceitei, não apenas
exilar-me no meio de um povo desconhecido (...) Se um dia tivesse que deixar o meu
querido Carmelo, ah! não seria sem sofrimento! Jesus não me deu um coração
insensível, e éprecisamente por ele ser capaz de sofrer que desejo que dê a Jesus tudo
quanto puder dar. (...) Aqui sou amada, por vós e por todas as Irmãs, e esta afeição é-me
muito grata. Eis porque sonho com um convento onde fosse desconhecida, onde
tivesse que sofrer a pobreza, a falta de afeto, enfim, o exílio do coração" (Ms C 9r-10r).

O seu desejo de viver num Carmelo de missão, longe inclusive dos afetos
familiares mais santos, nasce exclusivamente do desejo de imitar a Cristo no seu exílio
terreno e partilhar o seu sofrimento humano e a sua humildade de Verbo feito carne.
Teresa quer partilhar até ao fundo a situação existencial de Cristo, seu Esposo: de fato,
o amor autêntico exige igualdade e fusão total com a pessoa amada para fazer uma só
coisa com o objeto do próprio amor. Teresa, que viveu só e sempre para amar totalmente
a Cristo, deseja também esta identificação total e definitiva.

Mas está a viver no abandono. Escreve ao Pe. Roulland em março de 1897: "Talvez
queirais saber o que pensa a nossa Madre do meu desejo de ir para Tonkim? Ela acredita na
minha vocação (porque efetivamente é preciso ter uma vocação especial e nem todas
as carmelitas se sentem chamadas a exilar-se) mas não crê que a minha vocação
possa algum dia chegar a ser realizada, seria necessário para isso que a bainhafosse tão
sólida como a espada e talvez (pensa a nossa Madre) a bainha fosse lançada ao mar
antes de chegar a Tonkim. (...) Não me inquieto nada com o futuro, tenho a certeza de
que Deus fará a sua vontade, é aúnica graça que desejo" (Ct 221).

O Senhor contentou-se com a boa vontade de Teresa e, ultrapassando os seus mais


profundos e vastos desejos, a quis no céu padroeira das missões, não só fazendo-a
apóstolo por uns anos, mas até que o homem exista na  terra.

Teresa no "coração" da Igreja

Teresa do Menino Jesus, encarregada pela priora de oferecer as suas orações e


sacrifícios pelo apostolado de dois missionários, sente no seu coração um grande desejo
de santidade, e escreve: "Quereria ser Missionária, não apenas durante alguns anos,
mas quereria tê-lo sido desde a criação do  mundo, até ã consumação dos séculos"
(Ms B 3r). Estes desejos "que tocam as raias do infinito", pois não os pode realizar ela
só, realizá-los-á por meio de quem dá valor infinito aos atos dos que confiam n' Ele.

Profundamente convencida destas realidades espirituais, escreve: "Abri as epístolas


de São Paulo, a fim de procurar alguma resposta" (Ms B 3r). Diante dos seus olhos abrem-
se os capítulos 12 e 13 da primeira carta aos Coríntios. Neles o apóstolo, depois de
ter falado dos carismas em geral, com ritmo crescente louva a excelência da
caridade, ressaltando a sua necessidade, os seus valores e a sua sobrenatural perpetuidade.
A leitura traz paz a Teresa, porque compreende finalmente como pode realizar todos os
seus desejos. Movida por um impulso inicial que a faz desejar todas as vocações, detém-se
um momento na sua busca. Com efeito, São Paulo afirma claramente que não se pode
ser ao mesmo tempo profeta e doutor, pois a Igreja compõe-se de diversos
membros: "Sem desanimar, continuei a leitura, e consolou-me esta frase: 'Procurai com
ardor os dons mais perfeitos, mas vou mostrar-vos ainda um caminho mais
excelente'. E o apóstolo explica como os dons mais perfeitos não valem nada sem amor,
que a caridade é o caminho mais excelente para ir a Deus com segurança.

A explicação da perfeição da caridade que o apóstolo faz oferece a Teresa o modo


de penetrar profundamente no mistério desta virtude e de compreender a sua
fecundidade. A n a l i s a n d o o   Corpo místico de Cristo, Teresa descobre no coração
deste Corpo místico a fonte do amor que se converte para a Igreja em atividade ardente.

"A caridade deu-me a chave da minha vocação. Compreendi que se a Igreja


tinha um corpo composto de diversos membros, o mais necessário, o mais nobre de todos
não lhe faltava: compreendi que a Igreja tinhaum coração, e que esse coração
estava ardendo de amor. Compreendi que SÓ o Amor fazia agir os membros da Igreja;
que se o Amor se apagasse, os apóstolos já não anunciariam o Evangelho, os mártires se
recusariam a derramar o seu sangue.  Compreendi que o Amor encerra todas as
vocações, que o Amor é tudo, que abarca todos os tempos e todos os lugares...
numa palavra, que é eterno. Então, num transporte de alegria delirante, exclamei: 'Ó Jesus,
meu Amor! Encontrei finalmente a minha vocação: a minha vocação é o Amor!'
Sim, encontrei o meu lugar na Igreja, e esse lugar, ó meu Deus, fostes Vós que me destes...
No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o amor, assim serei tudo, assim o meu
sonho será realizado!!!" (Ms B 3v).

Teresa, mesmo sem querer, oferece-nos nesta página um breve esboço de


eclesiologia, exprimindo o seu pensamento sobre a Igreja. Seguindo as pegadas do
apóstolo Paulo, vê na Igreja o Corpo místico de Cristo, e no amor, quer dizer no
Espírito Santo, a alma deste Corpo, sem a qual tudo se paralisa.

Animada com o entusiasmo desta nova descoberta, Teresa intensifica o seu


fervor e a "troca de amor" aumenta sempre mais. As cartas aos irmãos missionários são
o testemunho autêntico do aprofundamento que se produziu na sua alma. Nelas, Teresa
exprime todo o seu desejo de fazer conhecer e triunfar o amor de Deus, de santificar todos
os instantes da sua vida e ser sempre mais útil à Igreja. No seu ato de oferecimento ao
Amor misericordioso, composto em 1895, exclama: "Ó meu Deus! Trindade Bem-
aventurada! Desejo amar-Vos e fazer-Vos amar, trabalhar pela glorificação da Igreja,
salvando as almas" (Or 6).

"Quero passar o meu céu a fazer o bem sobre a terra"


Em coerência com os seus próprios desejos, a vocação apostólica que Teresa
recebeu de Deus e que a colocou no coração da Igreja, não está limitada pelas barreiras
do tempo. De modo contrário à maior parte dossantos, que queriam trabalhar muito na
terra para depois "descansar" no paraíso, para Teresa, mesmo a eternidade é tempo de
conquista, e a sua caridade e zelo pelos membros do Corpo místico estender-se-ão até
que haja na terra uma criatura que necessite estar enxertada na sua cabeça.

O desejo de "trabalhar" no céu por amor das almas aparece claramente nos


textos teresianos a partir de 1896. Teresa exprime-o particularmente aos seus irmãos
missionários. No dia 19 de março de 1897 escreve ao Pe. Roulland: "Quereria salvar
almas e por elas esquecer-me de mim mesma; quereria salvá-las mesmo depois da
minha morte, por isso ficaria feliz se então dezesseis em vez da pequena oração que
fazeis por mim e que será para sempre realizada: 'Meu Deus, permiti a minha irmã
que continue a fazer-Vosamar (Ct 221)

No dia 17 de julho exprime a mesma idéia à madre Inês, com a consciência plena
da sua missão no mundo: "Sinto que a minha missão vai começar, a missão de fazer
amar a Deus como eu O amo, de dar às almas o meu pequeno caminho. Se Deus
realizar os meus desejos, o meu Céu passar-se-á sobre a terra até ao fim do mundo. Sim,
quero passar o meu Céu a fazer o bem sobre a terra. (...) Não posso fazer do Céu uma
festa de regozijo para mim, não posso descansar enquanto houver almas para salvar.
Mas quando o Anjo tiver dito: 'O tempo acabou' então descansarei, poderei gozar, porque
o número dos eleitos estará completo e todos terãoentrado na alegria e no descanso"
(UCR 17.7). No dia seguinte a esta afirmação, Celina lê para Teresa um fragmento sobre a
felicidade eterna: "Não é isso que me atrai — interrompe Teresa —, Oh! é o Amor! Amar,
ser amada e voltar à terra para fazer amar o amor" (UC/C 18.7.4).

Pelo amor que ora e se oferece

Teresa compreende a seguir que a salvação das almas reveste para ela caráter
de "vocação", procura o modo mais oportuno para levar a cabo o seu objetivo. Desejosa de
satisfazer inteiramente a vontade do Senhor que lhe pede almas, toma o caminho mais
direto para chegar à meta, elegendo o meio do apostolado interior.

Por meio da experiência de duas irmãs que a precederam no Carmelo, Teresa


conhece muito bem o caráter e a espiritualidade desta Ordem, reformada por Santa
Teresa de Ávila. Celina afirma: "Aos catorze anos, depois da que Teresa chama a sua
‘conversão’, a vida religiosa lhe é apresentada, sobretudo como um meio para salvar
almas. A serva de Deus manifestou, ela mesma, o porquê desta determinação: foi para sofrer
mais, e com isto ganhar mais almas para Jesus. Considerava muito duro para a
natureza trabalhar sem nunca ver o fruto do próprio trabalho, trabalhar sem estímulos,
sem distrações, e o mais penoso de tudo era o esforço que tinha que fazer a si mesma
para conseguir vencer-se. Por isso, esta vida de morte, mais proveitosa que todas as
outras para a salvação das almas, era a que queria abraçar, alegrando-se de ser o mais
rápido possível prisioneira para oferecer às almas as belezas do céu". Renunciando a uma
atividade apostólica, Teresa não se fecha num penoso e estéril egoísmo, mas,
aprofundando no valor apostólico da renúncia total, entrega-se nas mãos de Deus para
se converter em instrumento dócil da sua graça.
Teresa aprendeu de São Paulo que a caridade é tudo na Igreja, porque tem um
coração que é o princípio exclusivo e suficiente de toda a atividade apostólica; por
isso, para ser apóstolo, antes de tudo amará. Com este amor a jovem carmelita vai à
conquista das almas: "Eu sou Filha da Igreja; e a Igreja é Rainha, já que é tua Esposa, ó
divino Rei dos Reis! Não são as riquezas nem a Glória (nem sequer a Glória do Céu)
que reclama o coração da criancinha (...) Pede o amor... Já só sabe uma coisa: amar-
Te, ó Jesus! As obras deslumbrantes são-lhe interditas. Não pode pregar o Evangelho,
nem derramar o seu sangue... Mas que importa? Os seus irmãos trabalham em vez
dela; e ela, criancinha, fica pertinho do trono do Rei e da Rainha; ama pelos seus
irmãos que combatem. Mas, como testemunhará o seu amor, já que o amor se prova
com as obras? Pois bem, a criancinha lançará flores" (Ms B 4r).

Teresa sabe que na Igreja tudo vem de Cristo e todas as graças é Ele quem as
distribui; por isso, exclama: "Jesus, para que Te servirão as minhas flores e os meus
cânticos? Estas flores, que ao contacto com as tuas divinas mãos adquirem um valor
infinito, a igreja triunfante lançá-las-á sobre a igreja militante para alcançar a
vitória! Ó meu Jesus! Eu amo-Te, amo a Igreja, minha Mãe. Sei que 'o menor ato de
puro amor lhe é mais útil que todas as outras obras juntas' (Ms B 4v).

A mediação de Cristo é o meio que Teresa adotará para poder acertar na sua


vocação apostólica; sabe que na Igreja só Jesus pode tudo, os demais só podem
colaborar com Ele e, como nas bodas de Cana, preparar o que Ele transfigura e fecunda
com a sua ação divina.

O amor levado até ao heroísmo oferece a Teresa o modo de se converter em mãe


de almas na Igreja. O sofrimento, que lhe estendeu os braços desde os primeiros anos da
sua vida, é agora um companheiro inseparável desta alma que compreendeu a eficácia
perene e a importância decisiva que provém da paixão de amor de Cristo.

Teresa, no entanto, é coerente, e afirma: "Quando se quer atingir um fim, é


preciso empregar os meios. Jesus fez-me compreender que era pela cruz que Ele me queria
dar almas. E a minha inclinação para o sofrimento crescia à medida que o
sofrimento aumentava" (Ms A 69v). Escreve a sua irmã Celina: "Ofereçamos os nossos
sofrimentos a Jesus para salvar as almas. Pobres almas! (...) Jesus quer fazer depender
a salvaçãodelas de um suspiro do nosso coração. Que mistério! Se um suspiro pode
salvar uma alma, o que não podem fazer sofrimentos como os nossos?" (Ct 85). No leito
de morte, exclamará: "Nunca teria acreditado que erapossível sofrer tanto! Nunca!
Nunca! Não sei explicar isto senão pelos ardentes desejos que eu tive de salvar almas"
(UCR 30.9). No coração de Teresa, apesar disso, amadureceu o desejo de levar o próprio
sofrimento até oumbral do martírio para poder oferecer, como Cristo, a própria vida
pelos que ama. Este gesto salvador de Cristo atraiu também Teresa no seu desejo de se
identificar perfeitamente com o seu Esposo.

Teresa estava convencida da fecundidade apostólica da oração totalmente


entregue. Sob este argumento deixou frases simples e profundas: "Um sábio disse: 'Dai-
me uma alavanca, um ponto de apoio, e levantarei omundo'. O que Arquimedes não pôde
obter, porque o seu pedido não se dirigia a Deus, e por não ser feito senão sob o ponto de
vista material, os santos obtiveram-no em toda a plenitude: o Todo-poderoso deu-lhes,
como ponto de apoio: Ele mesmo e Ele só; e como alavanca: a oração, que abrasa com
fogo de amor. E foi assim que levantaram o mundo; é assim que os santos que ainda
militam na terra o levantam, e que, até ao fim do mundo, os futuros santos o levantarão
também" (MsC 36 r-v). "Ah! a oração e o sacrifício constituem toda a minha força;
são as armas invencíveis que Jesus me deu" (Ms C 2 4v).

"Como é grande o poder da oração! Dir-se-ia uma rainha que tem livre acesso
junto do rei a cada instante, e que pode obter tudo quanto pede" (Ms C 25r).

Escreve em 1892 a sua irmã Celina: "A nossa vocação não é ir ceifar nos
campos de trigo maduro. Jesus não nos diz: 'Baixai os olhos, vede os campos e ide
ceifar'. A nossa missão é ainda mais sublime. Eis as palavras de Jesus: 'Levantai os
olhos e vede'. Vede como no meu céu há lugares vazios, cabe a vós enchê-los, vós sois
os meus Moisés a orar no cimo da montanha, pedi-Me operários e enviá-los-ei, só
espero uma prece, um suspiro do vosso coração!... O apostolado da oração não é por assim
dizer mais elevado do que o da palavra? A nossa missão como Carmelitas é formar
operários evangélicos que salvem milhões de. almas das quais nós seremos as mães.
Celina, se não fossem as próprias palavras do nosso Jesus, quem ousaria acreditar
nisto?... Penso que a nossa parte é muito bela, que temos nós a invejar aos sacerdotes?"
(Ct 135).

Deste modo, por meio do amor, do sofrimento e da oração Teresa recolhe


também o sangue que verte do crucifixo e derrama-o sobre a Igreja. Sofrimento: amor
levado até ao heroísmo do martírio interior. Oração:grito de amor e de confiança pelas
necessidades espirituais dos homens, única preocupação de Teresa. Amor: única e
profunda realidade que sintetiza tudo.

CAPITULO 11

TERESA E O MISTÉRIO DE MARIA

FRANÇOIS-MARIE LÉTHEL ocd

Pouco antes da sua morte, em maio de 1897, Teresa revelou o lugar que
Maria ocupava na sua vida, numa poesia intitulada Por que te amo, ó Maria (PN 54). É a
sua última poesia e o seu testamento mariano, escrito a pedido da Irmã Maria do
Sagrado Coração, sua irmã Maria, para a qual já tinha escrito a sua obra mestra, o
segundo manuscrito autobiográfico uns meses antes (setembro de 1896).

Existe um parentesco profundo entre estes dois textos. São orações dirigidas a
Jesus (o Manuscrito B) e a Maria (PN 54); estão animadas por um idêntico estribilho:
amo-te. Este ato de amor, que Teresa desejava renovar "a cada palpitação do seu coração...
um número infinito de vezes" (Or 6), foram as suas últimas palavras, ditas com o seu
últimoalento. Teresa morreu dizendo a Jesus: "Meu Deus... Amo-Vos!". Este básico
"Jesus, amo-Te", que ilumina todos os escritos de Teresa, não é uma expressão
sentimental, mas o próprio ato da caridade pelo qual o Espírito Santo a introduziu na vida
íntima da Trindade. Por isso escreveu: "Ah! Tu sabes, Divino Jesus, eu Te amo / Ó Espírito
deAmor abrasa-me com o seu fogo / Amando-Te eu atraio o Pai" (PN 17,2).

Inseparável deste "Jesus, amo-Te" é o mesmo ato de amor dirigido a Maria:


"te amo, ó Maria!" Tal é o refrão da poesia mariana de Teresa; enunciado já no título,
repetido incansavelmente ao longo das estrofes, fica ilustrado por este outro refrão: "Sou
tua filha". Esta poesia é, pois, como o complemento mariano dos Manuscritos
autobiográficos, e é a partir dela que se pode procurar descobrir o lugar de Maria na vida
e na doutrina espiritual de Teresa.

Atualidade da doutrina mariana de Teresa

Trata-se de autêntica doutrina mariana, de grande atualidade, porque nela


convergem a doutrina do concilio Vaticano II (Lúmen Gentium, cap. 8) e dos papas
Paulo VI ( M a r i a l i s c u l t u s ) e J o ã o P a u l o I I   (Redetnptoris Mater). Esta
doutrina de Teresa, profundamente enraizada na espiritualidade do Carmelo, está
igualmente em harmonia com a de São Francisco, Santa Clara e com a de São Luís
Maria Grignion de Montfort. Jesus continua a ser o centro, e Maria está em total relação
com Ele como sua Mãe.   É esse o título maior  de Maria: "Ela é mais Mãe que
Rainha", afirma Teresa (UCR 21.8.3).

É doutrina fundada no Evangelho, que põe o acento na pequenez, na pobreza e


na simplicidade de Maria; e, acima de tudo, é uma doutrina completamente orientada
para a santidade: a missão maternal de Maria é ade conduzir todos os seus filhos "ao
cimo da montanha do Amor".

Deve-se indicar também o equilíbrio desta doutrina, que evita cuidadosamente os


dois excessos opostos denunciados pelo concílio, quando convida os teólogos e os
pregadores a abster-se "de todo o falso exagero como detoda a excessiva estreiteza de
espírito" ao falar de Maria (LG 67).

O principal privilégio de Maria no Evangelho é a pequenez e a pobreza


como lugar do maior amor.Pois bem, os pregadores do tempo de Teresa caíam
geralmente no primeiro excesso, o do "falso exagero", segundo o seu próprio testemunho,
referido pela madre Inês: "Dizia-me que tudo o que tinha ouvido pregar sobre a
Santíssima Virgem não a tinha impressionado. Que os sacerdotes nos apresentem
virtudes praticáveis! Está certo falar das suas prerrogativas, mas importa sobretudo que a
possamos imitar. Ela prefere a imitação à admiração, e a sua vida foi tão simples! Por
muito belo que seja um sermão sobre a Santíssima Virgem, se nos sentimos obrigados
todo o tempo a dizer: Ah!... Ah!... ficamos fartos. Gosto muito de lhe cantar: Nos
tornaste visível (Ela dizia: fácil) o estreito caminho do Céu / praticando sempre as
mais humildes virtudes" (UCR 23.8.9).

Teresa, que cita dois versos da sua poesia, opõe-se decididamente a uma


pregação "triunfalista", que só falava da grandeza e dos privilégios de Maria e que se
apoiava frequentemente nos evangelhos apócrifos, cheios de coisas maravilhosas e
extraordinárias. A tal excesso, a carmelita responde com o Evangelho que, pelo contrário,
nos mostra Maria simples, pequena, próxima a nós e imitável. Deste modo, Teresa
encontra o maior privilégio, esquecido por aqueles pregadores: o privilégio da pobreza e
da pequenez que caracterizam toda a vida terrena de Jesus e de Maria. Nisso, está muito
perto do que São Francisco escrevia na sua última vontade a Santa Clara: "Eu, o
irmão Francisco, pequeno, quero imitar a vida e a pobreza do nosso altíssimo Senhor
Jesus Cristo e da sua santíssima Mãe". Para a "pequena santa" como para o "poverello",
as palavras "pequenez" e "pobreza" exprimem fundamentalmente a mesma realidade:
o coração do Evangelho, o lugar de encontro e da mais íntima comunhão com Jesus
e Maria.
Quando os pregadores punham diante dos olhos Maria longínqua e inimitável não
mostrando senão a "sua sublime glória", Teresa, pelo contrário, descobre-a no
Evangelho muito próxima de nós na sua pequenez e pobreza: "Meditando a tua vida no
santo Evangelho / Ouso olhar-te e aproximar-me de ti /Acreditar que sou tua filha não
me é difícil / Pois vejo-te mortal e sofrendo como eu" (PN 54,2).

Teresa, pois, voltará a ler todas as passagens do Evangelho nas quais aparece
Maria, servindo-se sempre dele como chave de leitura do ato de Amor: "te amo". Deste
modo, o Espírito Santo concede-lhe viver no Evangelho, fazendo-a participar em todos
os mistérios que nele se revelam, desde a Encarnação até à cruz. São
precisamente estes os mistérios da pobreza, nos quais "a Virgem pobre abraça a
Cristo pobre", "amando-O totalmente", segundo as expressões de Santa Clara.

É a partir deste ponto de vista do Amor que Teresa descobre o verdadeiro


significado do adágio: "nunquam satis de Maria", quer dizer, "nunca se dirá
bastante de Maria". Oferece uma maravilhosa explicação dele quando, estando no
noviciado, escreve à sua prima Maria Guérin, que era escrupulosa: "Não receies amar
demasiado a Santíssima Virgem, nunca a amarás suficientemente, e Jesus ficará muito
contente visto que a SSma. Virgem é a sua Mãe" (Ct 92). Exatamente idêntica era a
resposta que São Luís Maria dava aos "devotos escrupulosos" que temiam
desagradar a Jesus amando demasiado a Maria: nunca se amará bastante a Maria,
porque sempre é a Jesus a quem se ama nela e com ela. Assim, pois, é esse o sentido
deste "nunca bastante": trata-se do Amor, e não de inventar novos privilégios.

Os símbolos do amor maternal de Maria: o seu sorriso, o seu manto, o seu véu.

Assim, depois, de ter lido a última passagem do Evangelho que coloca a Maria
junto à cruz de Jesus, Teresa termina a sua poesia, dizendo "Em breve eu ouvirei esta
doce harmonia / Em breve no Céu eu irei ver-te / Tu que vieste sorrir-me na manhã da
minha vida / Vem sorrir-me de novo... Mãe... chegou a tarde!... / Já não temo o
esplendor da tua glória suprema / Contigo eu sofri e desejo agora / Cantar nos teus
joelhos, Maria, porque te amo / E repetir para sempre que sou tua filha " (PN 54,25).

Estas linhas foram escritas em maio de 1897. Uns dias mais tarde, nas
primeiras páginas do Manuscrito C, Teresa referirá a sua terrível prova contra a fé que
começou mais de um ano antes, e que se refere à existência do céu. Falando das suas poesias,
dirá: Quando canto a felicidade do Céu... cantosimplesmente o que quero acreditar" (Ms
C7v). É essa a heróica afirmação que encontramos aqui. Teresa afirma que na glória
do céu continuará a ser a filha de Maria, cantando sobre os seus joelhos,
eternamente, este "te amo". Ao mesmo tempo, faz como que um resumo de toda a sua
vida na terra, da manhã até à tarde, sob o sorriso maternal de Maria. Para Teresa,
Maria é profundamente a Virgem sorridente, e o sorriso de Teresa, que devia iluminar
o mundo inteiro, é uns dos mais belos reflexos do sorriso de Maria.

No Manuscrito A, a carmelita contou com este "sorriso" de Maria "na manhã da


sua vida".Profundamente impressionada na sua infância com a morte da sua mãe,
depois pela perda da sua segunda mãe — a sua irmã Paulina que a deixava para
entrar no Carmelo —, Teresa foi curada pelo sorriso maternal de Maria, cura que
chegará a ser total juntamente com a graça do Natal" e a sua confirmação
definitiva em Nossa Senhora das Vitórias, em Paris. "A  Santíssima Virgem
fez-me sentir que fora verdadeiramente ela quem me sorrira e me curara. Compreendi
que velava por mim,que era sua filha, e por isso não podia dar-lhe outro nome senão o
de 'Mamãe' pois me parecia ainda mais terno que o de Mãe... Com que fervor lhe pedi
que me guardasse sempre e realizasse em breve o meu sonhoescondendo-me à sombra
do seu manto virginal!... Ah! era esse um dos meus primeiros desejos de criança... À
medida que crescia, compreendera que era no Carmelo que me seria possível encontrar
verdadeiramente o manto da Santíssima Virgem e era para essa montanha fértil que
tendiam todos os meus desejos... Supliquei ainda a Nossa Senhora das Vitórias que
afastasse de mim tudo quanto pudesse manchar a minha pureza..." (Ms A 56 v-57r).

Assim, sem nenhuma nova manifestação extraordinária, Teresa experimenta do


modo mais profundo o amor maternal de Maria, e corresponde-lhe com todo o seu amor
filial. Este amor de filha que prefere o nome de Mamãe ao de Mãe não é, de modo
algum, nem sentimentalismo nem infantilismo. Do mesmo modo, quando Teresa
chama a Deus "Papai", retomará espontaneamente toda a força da palavra de Jesus:
"Abbá".

Para exprimir esta intimidade entre a filha e a sua Mãe, Teresa usa o símbolo do
manto ou do véu de Maria. Teresa entra no Carmelo para se esconder à sombra do manto
virginal de Maria. Esta realidade vivê-la-á Teresa mais intensamente durante muitos
dias, no seu noviciado: "Estava inteiramente oculta sob o véu da Santíssima Virgem"
(UCR 11.7.2). Pouco tempo depois, convidará a sua irmã Celina a entregar-se
totalmente a Maria: "Esconde-te à sombra do seu manto virginal, para que ela te
virginize" (Ct 105).

A união mais íntima com Jesus

Para Teresa, esta vida escondida sob o manto de Maria é o lugar da mais
íntima união com Jesus na simplicidade da sua vida cotidiana. Exprime-o
belissimamente numa das suas primeiras poesias: "Ó Virgem Imaculada! Tu és a Doce
Estrela / Que me dás Jesus e me unes a Ele. / Ó Mãe! Deixa-me repousar sob o teu manto
/ Somente por hoje" (PN 5, 11). No mesmo sentido, é a própria Maria quem diz a
Celina: "Esconder-te-ei sob o véu / onde se abriga o Rei dos Céus... / Mas Para que eu
sempre te abrigue, / Sob o meu véu junto de Jesus, / Terás que ser sempre pequenina..."
(PN 13,4.5).

Como Mãe, Maria dá-nos Jesus e oferece-nos a Jesus. Também aqui a doutrina
de Teresa é semelhante à de Luís Maria ao mostrar como Maria está sempre
relacionada com Jesus Ela nunca detém os seus filhos em si, mas "une-os a Ele com
laços muito íntimos" (Tratado da verdadeira devoção, n. 211).

Da profecia ao ato de oferecimento

É neste clima mariano que Teresa vive a sua profissão religiosa, no dia 8 de
setembro de 1890, festa da Natividade de Maria. Depois de contar como Maria a tinha
ajudado a preparar o seu "vestido" de noiva para o dia indicado das suas núpcias, Teresa
escreve: "Que bela festa a da Natividade de Maria para me tornar esposa de Jesus! Era a
pequenina Ssma. Virgem de um dia quem apresentava a sua pequenina flor ao
pequenino  J e s u s "   (Ms A 77r).
Com a sua simplicidade infantil, estas palavras de Teresa exprimem o aspecto
mais importante da sua espiritualidade, que é a pequenez evangélica. Ao repetir e
sublinhar três vezes a palavra pequeno, Teresa manifesta como a sua própria pequenez
está como que envolta pela pequenez de Jesus e deMaria. É a "pequenez" de Maria
quem a apresenta a Jesus para que seja sua esposa. Assim, é com Maria que Teresa pode
realmente desposar-se com a pequenez de Jesus, como Francisco e Clara se tinham
desposado com a sua pobreza, participando intimamente nos mistérios da sua aniquilação,
desde a Encarnação até à cruz. Com Maria, estes santos participaram neste comovedor
mistério da pobreza e da pequenez de Deus. Teresa contempla a Jesus como "um
Deus que Se fez tão pequeno por mim" (Ct 266). Igualmente, Santa Clara reconhecia nele
"o Amor deste Deus que, pobre, foi posto num presépio, viveu pobre neste mundo, e desnudo
ficou na cruz".

Deste modo, a que se chama Teresa do Menino Jesus da Santa Face participará
sempre mais profundamente neste Amor cuja "propriedade é abaixar-se" (cf. Ms A
2v), desde a pobreza da sua Encarnação até ao despojamento total da cruz. Vivendo
escondida sob o manto de Maria, Teresa entrará sempre no mistério da pequenez e da
pobreza de Jesus. Porque a descoberta da pequenez evangélica tem um caráter
progressivo.

Depois da sua profissão, nas cartas a sua irmã Celina, a jovem carmelita revela
especialmente o seu coração de esposa, essa fundamental dimensão esponsal do seu
amor para com Jesus. Sob esta luz, a pequenez identifica-se praticamente com a
virgindade. A sua mais bela expressão encontra-se na carta do dia 25 de abril de 1893.
Por meio do símbolo da flor do campo com que nomeia a Jesus em toda a sua vida
terrena, e o da gota de orvalho com que nomeia a sua esposa na mesma condição,
Teresa demonstra como a pequenez é o lugar indispensável desta união virginal entre
a esposa e o Esposo. Para ser d'Ele e só para Ele "é preciso ser pequeno, pequeno como
uma gota de orvalho" (Ct 141). É a virgindade do coração, como o amor não
partilhado, que conduz a Teresa a desposar-se com a pequenez de Jesus dando-se
totalmente e de modo exclusivo a Ele como essa pequena gota de orvalho, pois só ela
pode responder à sua sede de amor.

Ao lado de Maria, Teresa aprende a "Viver de amor", e é contemplando-a


como Teresa dá a melhor definição do Amor: "Amar é tudo dar e dar-se a si
mesmo" (PN 54,22). E é precisamente nesta dinâmica dodom total como Maria está
presente no centro do Oferecimento ao Amor misericordioso, no dia 9 de junho de 1895.
Teresa oferece-se então ao Amor de Jesus do qual acaba de descobrir toda a realidade
trinitária: "Este ano, no dia 9 de junho, festa da Santíssima Trindade, recebi a graça de
compreender mais do que nunca quanto Jesus deseja seramado" (Ms A 84r). Ao
entregar-se totalmente "como vítima de holocausto" ao fogo do seu Amor que é o
Espírito Santo, deixa o seu oferecimento nas mãos de Maria (cf. Or 6). Aqui,
Teresa está particularmente de acordo como Luís Maria de Montfort que convidava
os pobres e os pequenos a viver plenamente a graça do seu batismo entregando-se
totalmente a Jesus por meio das mãos de Maria. O símbolo que ele usa, o da "escravidão
de amor", tem profundamente o mesmo sentido que o símbolo teresiano do"holocausto
ao Amor", significam ambos a mesma radicalidade do amor como dom total de si.

A comunhão no mistério da Encarnação


Ao mesmo tempo que se oferece totalmente a Jesus, Teresa recebe a Jesus
que se entrega todo a ela, na infinita grandeza do seu Amor, simbolizada pelo oceano.
Escreve à sua priora: "Vós que me permitistes oferecer-me deste modo a Deus, sabeis
as ondas, ou antes, os oceanos de graças que vieram inundar-me a alma" (Ms A 84r).
É assim como Teresa, como Maria, "pode conter Jesus, o Oceano do Amor" (PN 54,3).

A pequenez evangélica adquire então um caráter maternal, tipicamente feminino.


É assim como Santa Clara convidava a Inês de Praga a "agarrar-se à dulcíssima Mãe",
que levou no seu seio "aquele que os céus não podem conter", para participar na sua
maternidade: "Do mesmo modo que a gloriosa Virgem das virgens o levou
materialmente, do mesmo modo tu também, seguindo as suas pegadas, sobretudo de
humildade e de pobreza, podes sempre, sem nenhuma dúvida, levá-lo espiritualmente
num corpo casto e virgem, que contém aquele em quem tu e todas as coisas se contêm".

Teresa disse isto de modo belíssimo na sua poesia mariana, ao contemplar o


mistério de Maria que levava Jesus no seu seio materno. Teresa não é só a filha de
Maria, mas, mais profundamente ainda, é mãe como Maria, participando da sua
intimidade maternal com o Filho que leva. Como Francisco e Clara, Teresa
refere-se à Eucaristia: "Ó Mãe bem-amada, apesar da minha pequenez / Como tu
possuo O Onipotente / Mas eu tremo ao ver a minha fraqueza: / O tesouro da mãe
pertence ao filho / E eu sou tua filha, ó minha Mãe querida! / As tuas virtudes, o teu amor,
acaso não são meus? / Por isso quando a Hóstia branca vem ao meu coração / Jesus, o
teu Doce Cordeiro, julga repousar em ti!..:” (PN 54,5).

Um dos desejos mais profundos de Teresa era o de contemplar nela a presença do


corpo de Cristo. É o que pedia a Jesus no Ato de oferecimento: "Ficai em mim, como
no Sacrário" (Or 6). Assim, Teresa podia ser como Maria "o sacrário que esconde a
divina beleza do Senhor" (PN 54,8).

Na sua pequenez, Maria levou Jesus, e na pobreza deu-o à luz em Belém. É aí


onde Teresa contempla a grandeza de Maria, a sua grandeza como Mãe de Deus ao lado
do seu Filho: "Ninguém quer receber na sua hospedaria / Uns pobres estrangeiros, o
lugar é para os grandes / O lugar é para os grandes e é num estábulo / Que a Rainha
dos Céus dará ã luz um Deus. / Ó minha Mãe querida, quão amável me pareces /
Como te acho grande num lugar tão pobre! / Quando vejo o Eterno envolvido em
paninhos / Quando do Verbo divino ouço o débil vagido, / Ó minha Mãe querida, já
não invejo os anjos / Pois o seu Poderoso Senhor é o meu Irmão querido!.../ Como te
amo, Maria, tu que na terra / Fizestes desabrochar esta Divina Flor!..." (PN 54,9-10).

Para Teresa, como para Francisco, o mistério do presépio continua a ser atual:
nele se manifesta a união da Mãe com o seu Filho na pobreza, modelo da nossa união
com Ele na Eucaristia, onde aparece "mais pequenino que uma criança" (RP 2,5r). Teresa
escrevia claramente a Celina: "E necessário que este ano façamos muitos sacerdotes que
saibam amar Jesus!... que lhe toquem com a mesma delicadeza com que Maria lhe
tocava no seu berço!" (Ct 101). É exatamente o mesmo que Teresa pedia a Maria
para um futuro sacerdote, o seminarista Maurício Bellière, o seu primeiro irmão
espiritual: "Dignai-Vos ensinar-lhe desde já com que amor pegáveis no Divino Menino
Jesus e o envolvíeis em paninhos, para que possa um dia subir ao Altar Sagrado e levar
nas suas mãos o Rei dos Céus. Peço-Vos ainda que o guardeis sob o vosso manto virginal"
(Or 8).
A peregrinação da fé vivida com Maria

Pois bem, esta relação tão íntima entre Maria e o seu Filho era vivida em fé.
Teresa insiste muito neste ponto, como já o fazia São Luís Maria. Seguindo a doutrina do
concílio, o papa João Paulo II desenvolveu particularmente este aspecto da
"peregrinação da fé de Maria": "Bem-aventurada aquelaque acreditou" (Redemptoris
Mater, n. 12-20). Jesus era ao mesmo tempo seu Filho e seu Deus, o fruto das suas
entranhas e o seu Criador e Salvador. Deste modo, a relação entre Maria e Jesus é
inseparavelmente a relação entre a Mãe e seu Filho, e a relação entre a crente e o seu
Deus. Quando os pregadores, apoiando-se para isso nos apócrifos, enchiam a vida de
Maria com graças extraordinárias, Teresa, pelo contrário, apresenta, a partir do Evangelho,
a pobreza espiritual de Maria, afirmando "que ela vivia de fé como nós" (UC 21.8.3). E para
ela, como para nós, a fé era obscura e às vezes dolorosa, provada pelo mesmo Jesus. Teresa
afirma-o a propósito do episódio evangélico de Jesus perdido e achado no templo: "Mãe,
o teu doce Filho quer que sejas o exemplo / Da alma que O procura na noite da fé" (PN 54,15).

Tal é, pois, para Teresa o clima da vida espiritual de Maria em Nazaré: "Sei


que em Nazaré, Mãe cheia de graça / Viveste pobremente, não querendo nada mais / Nem
arroubamentos, nem milagres, nem êxtases / Embelezam a tua vida, ó Rainha
dos Eleitos' / O número dos pequenos é bem grande na terra / Eles podem sem
receio erguer os olhos para ti / É pela via comum, incomparável Mãe / Que te apraz
caminhar guiando-os para o Céu" (PN 54, 17).

Esta estrofe é particularmente importante, pois revela o caráter mariano do


"pequeno caminho". Teresa aprofunda no mistério da pobreza de Maria como pobreza
espiritual da fé, despojada de todas as graças extraordinárias.

Com Maria ao pé da cruz: a maternidade universal vivida na "kénose da fé"

Esta pobreza alcança o máximo no abandono total da cruz. É aí onde Teresa se


une finalmente a Maria lendo o último texto do Evangelho no qual Maria está perto de
Jesus: "Maria, apareces-me no cimo do Calvário /De pé junto da Cruz, como um padre
no altar” (PN 54,23).

Como mãe participa de modo único no sacrifício do seu Filho. Como Abraão,


consente no sacrifício do seu único Filho; e o seu Filho Jesus estende agora a
sua maternidade ao homem resgatado pelo seu sangue.

Teresa vive com muita profundidade este mistério participando da maternidade


de Maria aos pés da cruz. Tinha-o experimentado pela primeira vez antes de entrar
no Carmelo. Olhando uma estampa de Jesuscrucificado, contemplando o seu
sangue derramado, tinha tomado uma das decisões mais fundamentais da sua vida:
"Resolvi manter-me em espírito ao pé da cruz para receber o Divino orvalho que dela
escorria,compreendendo que seria necessário espalhá-lo sobre as almas" (Ms A 45v). Com
esta decisão começa imediatamente a sua maternidade espiritual: consegue a salvação
eterna daquele a quem ela chama o "seu primeiro filho" (Ms A 46v): o criminoso
Pranzini, condenado à morte e guilhotinado.

No coração feminino de Teresa, que ela compara frequentemente a uma lira,


esta "corda" do amor maternal é essencial, vibra com a do Amor esponsal: "Ser tua
esposa, ó Jesus! ser carmelita, ser, pela minha uniãocontigo, a mãe das almas" (Ms B
2v). Tais são, para Teresa, os dois aspectos mais belos deste "tesouro" de amor que é a
virgindade: ser esposa e ser mãe. A sua virgindade torna-se fecunda pela comunhão com
o sangue de Jesus derramado na sua paixão. Contemplando este "orvalho de amor" na
suaagonia, Teresa diz a Jesus: "Lembra-te de que o teu Orvalho fecundo / Virginizando
as corolas das flores / Tornou-as capazes já neste mundo / De te gerarem muitos
corações / Sou virgem, O Jesus! Todavia que mistério / Ao unir-me a Ti, das almas sou
mãe" (PN 24,22).

Realça-se, sobretudo, a beleza e a força das afirmações: "sou virgem... sou


mãe". Como Maria, Teresa é inseparavelmente virgem, esposa e mãe, e a sua
maternidade encontra toda a sua extensão, toda a sua fecundidade, na comunhão mais
íntima com Jesus crucificado. Para Teresa, como para Maria, esta comunhão no
aniquilamento de Jesus, no seu total abandono na cruz, é caracterizada por esta
profundíssima prova da fé que o papa João Paulo II não teme chamar "kénose da fé"
(Redemptoris Mater, n.18). Não se trata, evidentemente, da perda da fé, pelo contrário, da
fé mais heróica que continua a manter-se no abandono mais total, na mais profunda
obscuridade, sustentada pelo Amor e pela Esperança.

Com efeito, a paixão de Teresa, que começa a partir das festas pascais de 1896, é
especialmente caracterizada por esta dolorosíssima "prova contra a fé". É quando Teresa
participa na mais extrema pobreza espiritual de Maria, participando igualmente na
sua maternidade universal. A maternidade espiritual de Teresa estende-se,
consequentemente, a todos os homens; assim pois, chega a ser plenamente missionária,
ao "adotar" de um modo muito particular os ateus do mundo moderno. Com a maior
confiança, intercede por eles, roga pela sua salvação eterna.

É assim como Teresa vive o amor maternal numa fé dolorosa e numa esperança
sem limites, não somente para ela, mas para os outros, para todos. Como o poeta
Charles Péguy, seu contemporâneo, Teresa une-se a Maria em toda a beleza da sua
esperança maternal: a esperança da mãe pela salvação de todos os seus pobres filhos.

Maria é a maior, porque é a mais pequena

Na contemplação de Teresa, Maria aparece simplicíssima na sua fé e na sua


esperança. É "Mãe total" pela sua "esperança total", e isto especialmente porque é
pequena, a "toda pequena" por excelência, "cheia de graça" de forma infranqueável,
mais ainda do que Teresa, porque foi também mais pequena.

Assim, Teresa fala de Maria sem a nomear quando diz a Jesus, no fim do
Manuscrito B: "Sinto que, se por um impossível, encontrasses uma alma mais débil, mais
fraca do que a minha, deleitar-te-ias a cumulá-la defavores ainda maiores, se ela se
abandonasse com inteira confiança à tua misericórdia infinita" (Ms B 5v).

Escreveu estas linhas no dia 8 de  setembro de 1896, na festa da Natividade


de Maria, com a graça da pequenez daquela que chegará a ser a Mãe de Deus.

TERESA NOS FALA:

"Por que te amo, é Maria"


«Oh! quisera cantar, Maria, por que te amo

Porque é que o teu nome tão doce me faz vibrar o coração

E porque o pensamento da tua grandeza suprema

Não poderia inspirar à minha alma o sentimento do temor.

Se eu te contemplasse na tua sublime glória

E mais brilhante do que todos os bem-aventurados,


Não poderia acreditar que sou tua filha
Ó Maria, diante de ti, eu baixava os olhos!..:'

"Já que o Rei dos Céus quis que a sua Mãe

Mergulhasse na noite, na angústia do coração,

Maria, é então um bem sofrer na terra?

Sim, sofrer amando, é a felicidade mais pura!...


Tudo o que Ele me deu Jesus pode tomá-lo
Diz-lhe que nunca se constranja comigo
Ele pode esconder-se, eu consinto em esperá-1o
Até ao dia sem ocaso em que se extinguirá a minha fé

"Sei que em Nazaré, Mãe cheia de graça

Viveste pobremente, não querendo nada mais

Nem arroubamentos, nem milagres, nem êxtases

Embelezam a tua vida, ó Rainha dos Eleitos!....

O número dos pequenos é bem grande na terra

Eles podem sem receio erguer os olhos para ti

É pela via comum, incomparável Mãe

Que te apraz caminhar guiando-os para o Céu".

"Ama-nos, Maria, como Jesus nos ama

E consentes por nós em afastar-te d'Ele.

Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo

Quisestes demonstrá-lo ficando conosco.


O Salvador conhecia a tua ternura imensa

Sabia os segredos do teu coração maternal


Refúgio dos pecadores, é a ti que Ele nos deixa
Quando abandona a Cruz para nos esperar no Céu".

"Em breve eu ouvirei esta doce harmonia

Em breve no Céu eu irei ver-te

Tu que vieste sorrir-me na manhã da minha vida

Vem sorrir-me de novo... Mãe... chegou a tarde!...

Já não temo o esplendor da tua glória suprema

Contigo eu sofri e desejo agora

Cantar nos teus joelhos, Maria, porque te amo

E repetir para sempre que sou tua filha!"

(Estrofes 1, 16, 17, 22, 25).


TERESA DE LISIEUX VIDA- DOUTRINA-
AMBIENTE
PARTE IV

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CAPÍTULO 12

NA NOITE DA FÉ

EMMANUEL RENAULT ocd

"O homem que não foi tentado, que sabe?" (Sir 34,10). Estas palavras do Ben-
Sirá exprimem um fato de experiência humana, segundo a qual ninguém pode chegar a
um autêntico conhecimento de si e do mundo, e corresponder ao desígnio de Deus a
seu respeito, se não passou pelo fogo das provações, seguindo o exemplo de Cristo.

A Escritura fala, pois, de "provações" como de uma travessia necessária para


a vida, de uma condição indispensável para contrastar o valor da fé (1Pd 1,7),
para manifestar a verdade (1Cor 11,19), para exercitar a humildade (1Cor 10,12-13).

Mas as provações podem converter-se em "tentações" pelo aproveitamento que


delas pode fazer Satanás (cf. Ms A 5,3; 1Cor 7,5; 1Ts 3,5). Deus não é o autor das
tentações, mas permite-as como testes impostos ao homem para penetrar no seu mistério
por meio do mistério da cruz.

Estas são as "provações-tentações" que Teresa sofreu, especialmente no fim da


sua vida, sofrendo ao mesmo tempo um duplo enfrentamento com a morte: a morte
física que inexoravelmente destruía o seu corpo demulher de vinte e quatro anos e a morte
espiritual que ameaçava a vida da sua alma. Para avaliar melhor as condições do combate
que teve que suportar nesta grande provação final da sua fé, haveria que voltar a
situá-la no contexto da sua doença mortal, contexto que é tratado no capítulo seguinte.

Perfil da sua provação

Em junho de 1897, três meses antes da sua morte, Teresa declara: "Nos dias tão
alegres do tempo pascal, Jesus fez-me compreender que há verdadeiramente almas que
não têm fé, almas que, por abuso das graças perdem esse precioso tesouro, fonte das
únicas alegrias puras e verdadeiras" (Ms C 5v).

Há que indicar que este conhecimento do mundo das almas sem fé não lhe foi
dado como uma iluminação do espírito destinada a abrir-lhe perspectivas novas para
avivar o seu zelo apostólico. Assim tinha sido para Santa Teresa de Ávila quando da
visita do Padre Maldonado, franciscano, ao regressar do México: tinha-se inflamado
com a notícia dos "milhões de almas que ali se perdiam por falta de doutrina"
(Fundações, 1,7).

Teresa sabia que havia "ímpios que não tinham fé", pois uma sobrinha da sua
tia a Sra Guérin, Margarida Maudelonde, tinha se casado com um reconhecido ateu, o
Sr. Tostain, representante do presidente daRepública em Lisieux. Mas na sua fé
"tão viva, tão clara", "julgava que falavam ao contrário do que pensavam ao
negarem a existência do céu", porque, para Teresa a existência do céu era então de tal
evidênciaque para um espírito reto e sincero era impossível não admiti-la: "A
esperança de ir para o céu inundava-me de alegria" (Ms C 5v).

E eis que, de repente, é-lhe dado o conhecimento, não exterior, mas íntimo,
experimental, deste mundo das almas sem fé ao ver-se ela mesma imersa nele: "Deus
permitiu que a minha alma fosse invadida pelas mais espessas trevas e que o
pensamento do Céu tão deleitoso para mim, não fosse senão motivo de combate e de
angústia..." (Ms C 5v). Não é que Teresa participasse dos sentimentos destes ateus e
renegados, pois é na sua defesa como Teresa se encontrará na sua companhia e como
Jesus lho "fez sentir", somente sentir, que realmente há almas que se encontram nestas
trevas do espírito. Esta tomada de consciência do drama dos incrédulos irá
aprofundando-se na coração de Teresa, durante as semanas e os anos, pois a sua "não
ia durar uns dias, umas semanas...". Quando escrevia isto, não sabia que duraria, embora
parecesse impossível, exatamente dezesseis meses e vinte e cinco dias, quer dizer, até
á hora da sua morte.

Tratava-se de uma provação que não era simplesmente de ordem moral, afetiva


ou psicológica, isto é, não era uma crise passageira, como a experimentavam muitos
cristãos do nossos dias, mas era realmente uma provação de ordem teologal, imposta
por Deus para purificar a sua fé do que tinha de"demasiado natural", como ela
própria reconhecerá, para retirar — diz Teresa — "tudo quanto pudesse haver de satisfação
natural no desejo que tinha do Céu" (Ms C 7v).

Para ela, como para qualquer cristão, as motivações da fé não são todas
sobrenaturais. Misturam-se, mais ou menos e quase sempre, elementos naturais que a
privam da sua pureza, da sua força e, consequentemente, da sua capacidade de "unir"
a Deus como Ele é. Daí, estas purificações necessárias queSão João da Cruz descreveu
magistralmente na Subida do Monte Camelo e Noite escura.

Mas o Senhor, na sua pedagogia cheia de sabedoria e misericórdia, não impõe


estaspurificações senão àqueles que consentem nelas, e não o faz senão depois de
prolongada e paciente preparação. É o que Teresa compreendia quando escreveu: "Ele
não me enviou este sofrimento senão no momento em que tive força para o suportar"; e
acrescenta: se o tivesse sido mais cedo, creio bem que teria mergulhado no desânimo..."
(Ms C 7v). Há que indicar que não diz "teria duvidado", mas apenas "mergulhado", É que
a sua "fé, tão viva, tão clara" estava já tão firmemente segura que não correria o perigo
de cair na incredulidade. Apesar de tudo, segundo o desígnio de Deus sobre ela,
tinha que sofrer uma última purificação como o ouro no crisol (cf. 1Cor 1,12-13),
exatamente igual, como tinha acontecido a Maria, a Mãe de Deus.

Esta é a razão pela qual devemos comprovar que, se a sua provação de fé surgiu
de repente, como tempestade em águas tranqüilas ou como violenta tormenta em
céu azul, esteve precedida de alguns sinais precursores, do mesmo modo que a sua
primeira hemoptise na noite do 2 para 3 de abril de 1896 foi precedida por numerosas
dores de garganta e de peito. Evidentemente, não é casualidade que a manifestação da
sua tuberculose coincidisse praticamente com a entrada na noite das suas dúvidas (a
noiteseguinte: dia 15 de abril!) Como se os seus sofrimentos físicos, que irão crescendo
até chegarem a ser atrozmente insuportáveis, tivessem que acompanhar e redobrar os
seus sofrimentos espirituais, e isto até à sua morte, para levá-la, por meio de
uma paciência heróica, a uma atitude de fé totalmente despojada de todo o vestígio
de "satisfação natural".

As trevas

"Que estranho e incoerente!" (UCR 3.7.3). Esta exclamação da Santa adverte-


nos, desde o princípio, de que não estaremos em condições de compreender
perfeitamente a natureza e as diversas formas que a provação da fé apresenta a uma
alma. É um mistério até para a mesma alma.

A vida é uma realidade simples e complexa. Simples, no seu caminhar para


Deus. Complexa, nos elementos que a compõem: o mundo interior e exterior da pessoa.
Quando a tentação da dúvida surge numa alma, a fé é atacada na sua raiz, e este ataque à
raiz dura mais e é tanto mais profundo quanto a árvore da fé desenvolveu mais
profundamente as suas raízes e os seus ramos em toda a existência. Não é de admirar
que estas tentações, uma vez que elas seguem o ritmo da vida, pareçam desenvolver-se
sem ordem lógica.

Daí a impressão de incoerência e a dificuldade para os que se lhes torna difícil


compreender e fazer que se compreenda o que estão a experimentar. "Prova interior
que é impossível entender" (UCR 21/26.5.10).Será, pois, com prudência e com
simplicidade como procuraremos descrever e depois examinar a luta pessoal vivida pela
Santa.

No seu Manuscrito C, escrito três meses antes da sua morte (junho de 1897),


Teresa utiliza uma comparação para explicar o seu estado: "Imagino que nasci num país
coberto por um espesso nevoeiro, e que nunca contemplei o risonho aspecto da
natureza" (Ms C 5v). Doutrina teológica certa, proposta em termos simples. A fé é já,
por simesma, uma noite para a razão que não pode ter a evidência das realidades
divinas. Estas"maravilhas" das quais ouviu falar, não são uma "história inventada", mas
"uma realidade indubitável", por que o Rei da pátria do sol brilhante veio viver trinta e
três anos no país das trevas" (ib.). Deste modo, a obscuridade inerente à fé é iluminada
para a alma por uma certeza comparável a um "resplandecente facho" (Ms C 6r). São
Pedro falou de uma "lâmpada que brilha em lugar escuro" (2 Pd 1,19). A prova consiste,
pois, em que a noite da fé se transforma em noite total: as tentações contra a fé têm como
efeito ocultar a pequena chama ou obscurecem o seu resplendor com o espesso véu das
dúvidas: "mas de repente, os nevoeiros que me rodeiam tornam-se mais densos, e
penetram-me na alma, e envolvem-na", explica Teresa (Ms C 6v).

Numa carta à Irmã Maria do Sagrado Coração, a Santa tinha descrito, de


forma alusiva, o mesmo fenômeno, comparando-se a um "passarinho acometido pela
tempestade". "Parece-lhe não acreditar que existe outra coisa, a não ser as nuvens que o
envolvem", mas "sabe que para além das nuvens o seu Sol brilha sempre" (Ms B 5r).

A fé continua presente, mas a sua "luz invisível" (Ms B 5r) já não é percebida


pela alma que já não sente "o gozo" (Ms C 7r). Tem a impressão de ter entrado numa
noite mais profunda, noutra noite. É impressionante ver quanto a Santa insiste na
profundidade desta nova obscuridade. Fala de "espessas trevas", de "sombrio túnel" (Ms C
5v); já não se trata de um "véu", mas de um muro que se ergue até aos céus" (Ms C 7v).

Nas notas recolhidas pelas suas irmãs durante a sua doença, encontramos os


mesmos traços característicos: "... o céu é de tal maneira escuro que não vejo nenhuma
aberta" (UCR 27.5.6). Fala de um "espaço negro, onde já não se distingue nada...
Ah! sim, que escuridão!" (UC 28.8.3). As poesias que compôs desde abril de 1896
até junho de 1897 diziam explicitamente: "Apoiada sem nenhum Apoio / Sem Luz
e nas Trevas" (PN 30, de 30 de abril de 1896): "O meu Jesus sorri-me quando suspiro
por Ele. / Então já não sinto a provação da fé" (O meu Céu, P 32, de 7 de junho de
1896): Quando no meu coração se levanta a tempestade" (PN 36, de 15 de agosto de
1896).

As confidências que escalonam as últimas conversas mostram-nos que


Teresa sofrerá esta provação até ao seu último suspiro. No entanto, adverte: "Às vezes, é
verdade, um pequeníssimo raio de sol vem iluminar as minhas trevas; então a
provação cessa por um instante" (Ms C 7v), para voltar novamente um instante depois.

Tais períodos de calma devem-se ao desaparecimento das dúvidas: "é como


algo interrompido" (UCR 9.6.3). Ou como a percepção repentina da ternura de
Deus. Assim, o encontro fortuito no jardim de uma galinha que abriga os seus pintinhos
sob as suas asas (cf. UC 7.6.1), um sonho no qual a madre Ana de Jesus a tranqüiliza
sobre o valor do seu "pequeno caminho" (cf. Ms B 2r-v), ou a solicitude pela qual se vê
envolta. É "um relâmpago no meio das trevas" (UCR 22.7.1). Acontece que tem
sentimentos de alegria passageira: quando reza à Santíssima Virgem (cf. UCR 1.5.2),
quando escuta a Irmã Teresa de Santo Agostinho referir o sonho em que viu a Teresa
por detrás de uma pesada porta negra" (UCR 1.5.2), ou quando ouve uma "música
longínqua" (UCR 13.7.17).
Estas tão breves consolações não lhe devolvem a doçura interior que tinha
conhecido anteriormente. Assim, chorando de gratidão por um ramo de flores silvestres
que urna irmã lhe tinha levado para o aniversário da sua profissão, precisa: "Choro pelas
delicadezas de Deus para comigo; exteriormente estou totalmente satisfeita, mas
interiormente continuo sempre na provação..." (UCR 8.9).

Outra constatação. Se, no fundo, a provação foi contínua, conheceu graus de


intensidade variável. Parece que se foi acentuando progressivamente até alcançar às vezes
um máximo de violência: "Admiro o céu material; o outro está para mim cada vez
mais fechado" (UCR 8.8.2). Em particular, advertem-se dois momentos cruciais. A
noite de 15 para 16 de agosto de 1897, na qual as próprias irmãs da santa, fortemente
impressionadas, temem que sucumba às tentações e rezam explicitamente por ela, e
durante as últimas horas da sua vida, "é a agonia pura,sem sombra de consolação"
(UCR 30.9).

É razoável que os sentimentos experimentados pela Santa sejam ao princípio


de assombro, de surpresa. Não o esperava, sobreveio "de golpe" (Ms C 6v).
Sentimentos de estranheza, de incompreensão para ela e para as outras, e, em
conseqüência, de solidão: "Só Deus pode compreender-me" (UCR 11.7.1). Sentimentos
de desânimo (cf. UCR 4.8.4), de angústia (UCR 20.8.10). Sentada a "uma mesa cheia
de amargura", como "o pão da dor" e sofre um indizível tormento interior (cf. Ms C 6r).

Tentações

Se agora lhe perguntarmos sobre a natureza exata da sua "provação da alma",


parece- nos ouvi-la responder que consiste principalmente em "pensamentos" de
dúvidas contra a fé (cf. UCR 7.8.4; 10.8.7). Sem dúvida, há que incluir estes
"pensamentos extravagantes" (UCR 4.6.3) sobre os quais não se explicou.

Teresa, embora tenha dado provas de ser muito reservada, oferece-nos alguns


exemplos destas sugestões surgidas das trevas: "Sonhas com a luz, com uma pátria
inundada dos mais suaves perfumes; sonhas com aposse eterna do Criador de todas
estas maravilhas; pensas sair um dia dos nevoeiros que te rodeiam. Continua, continua,
alegra-te com a morte, que te dará, não o que tu esperas, mas uma noite mais
profundaainda, a noite do nada" (Ms C 6v).  Provavelmente, foi mais explícita
com o seu confessor, o abade Youf, que lhe respondeu: "Não se detenha nisso, é muito
perigoso" (UCR 6.6.2).

Não se podem fazer comparações entre uma alma e outra, sobretudo neste terreno
da fé, no qual cada um vai a Deus pelo seu próprio caminho. Os pontos sobre os quais a
voz das trevas faz recair a dúvida são certamente os que por mais tempo se mantêm no
coração de Teresa, aqueles pelos quais, por assim dizer, estava totalmente investida.
Pelo contrário, as suspeitas da dúvida não terão podido penetrar nela. Seria
interessante comprovar como os temas mencionados aqui em resumo correspondem
ao mundo privilegiado de Teresa: a luz, a "pátria", os perfumes, a felicidade eterna da
posse de Deus, a criação e as suas maravilhas, "o desterro" e a sua tristeza.

"Continua, continua", sugere-lhe a voz. Todo o dinamismo teresiano da vida


concebida como um caminho e inclusive como uma "corrida" para Deus está
considerado aqui com cinismo num convite à alegria malvada de um coração orgulhoso que
não quer esperar nada e com nada se satisfaz: "Alegra-te com a morte, que te dará, não o
que tu esperas, mas uma noite mais profunda, a noite do nada" Neste conselho
diabólico, há que advertir igualmente uma paródia do modo habitual de Teresa que
sabia transformar os seus fracassos, as suas decepções, as suas penas em vitórias por meio
da aceitação humilde e alegre da vontade de Deus. Emsuma, o essencial da tentação
consistia em destruir completamente o movimento profundo do "pequeno caminho",
negando a confiança incondicional que é a sua base. Teresa entendeu isto ao indicar que
esta voz maldita "se ria dela" Haveria que falar antes de cinismo, de ironia malvada.
Por outro lado, a Santa comparará estas sugestões a"serpentes malignas", que assobiam
aos seus ouvidos (UCR 9.6.2).

A madre Inês refere: "Certa noite, na enfermaria sentiu-se levada mais do


que habitualmente a confiar-me os seus sofrimentos (...) Se soubesse, disse-me ela,
que terríveis pensamentos me dominam! Reze muito por mim, para que eu não ouça
o demônio que me quer convencer de tantas mentiras. É o raciocínio dos piores
materialistas que se impõe ao meu espírito: Mais tarde, fazendo constantemente novos
progressos, a ciência explicará tudo naturalmente, conhecer-se-á a razão absoluta de tudo
o que existe e que continua ainda a ser um problema porque há muitas coisas para
descobrir..., etc. etc. Quero fazer o bem depois da minha morte, mas não poderei!
Acontecerá como com a Madre Genoveva: esperava-se vê-la fazer milagres e o silêncio
completo caiu sobre o seu túmulo?' (UCR OPT, Agosto, p. 1301).

Percebe-se aqui que Teresa não estava tão desligada do mundo, que não ignorava
completamente as discussões promovidas pelo cientificismo da época. Esta tentação
aponta para a convicção da Santa de que aqui embaixo é impossível chegar a "ver" a
verdade de todas as coisas (cf. UC 11.8.5). Não é que negue à ciência um poder
ilimitado na descoberta dos segredos do universo, mas recusa o suposto que tais
progressos devem prescindir da fé. É esta insinuação que Teresa recusa ao mesmo
tempo como uma mentira e como uma violência feita à sua liberdade; "os
pensamentos horríveis" se apresentam, efetivamente, de modo obsessivo, por
persuasão, sob a forma de um argumento que "se impõe" ao seu espírito.

Há outra tentação que procura tocar-lhe no coração: o desejo de fazer o bem


depois da sua morte será inútil. A prova? A "santa" madre Genoveva, fundadora do
Carmelo de Lisieux, não manifestou a sua sobrevivênciano mais além; o silêncio
completo caiu sobre o seu túmulo. Para quê então tantos sacrifícios, toda a sua
juventude perdida por um desejo generoso que não é mais do que um sonho? Pretender
vir a ajudar os outros, que ilusão!

A madre Inês conta-nos outra confidência de Teresa sobre o conteúdo dos seus
pensamentos contra a fé: "ontem à noite, senti-me invadida por uma verdadeira
angústia e as minhas trevas aumentaram. Não sei que voz maldita me dizia: Estás certa
de que Deus te ama? Veio dizer-te? A opinião das criaturas não é o que te vai justificar
diante dele" (DE, p. 572). Esta tentação não tem o tom de burla da primeira, mas, como
as outras, aponta para um ponto sensível em Teresa: o amor de Deus para com ela. Na
mesma linha podemos situar o testemunho do Pe. G. Madelaine que confessou a Santa
em junho de 1896: "A sua alma atravessou uma crise de trevas espirituais na qual se
julgava condenada" (PA 595).
Em palavras deste confessor, o amor de Deus para com Teresa é posto em
questão até ao ponto dela se julgar recusada por Ele e "condenada". A condenação
supõe, certamente, uma vida mais além, pois a eternidade de dor corre simultânea
com a eternidade ditosa. Induz a crer igualmente na existência do céu. Pois bem,
precisamente segundo o Manuscrito C, Teresa tinha sido tentada a negá-la. O que
espera é "a noite do nada(Ms C 6v). Se, depois da morte, não há nada, tampouco haverá
nem céu nem inferno. Como conciliar, pois, estas afirmações contraditórias?

Observar-se-á que os testemunhos do Padre Madelaine e da Madre Inês se


referem a momentos que se situam antes da redação do Manuscrito C (junho de 1897), no
qual a Santa fala de si mesma. Já indicamos que a provação de fé em Teresa evoluiu
progressivamente crescendo em intensidade. Eis umexemplo: com o tempo, a tentação
tornou-se mais radical Em julho de 1897, Teresa dirá: "Tudo conduz ao Céu" (UCR
3.7.3). Que significa exatamente para ela o céu? Parece ser essencialmente a eternidade
feliz, a vida com Deus. Mas, inclui isto a existência do próprio Deus? Algumas reflexões
permitem julgar que não põe em dúvida a dita existência, mas apenas a sobrevivência da
alma. Em suma, Deus existiria, mas não se ocupariados homens! "Mas, se porventura
fosse possível, Vós mesmo houvésseis de ignorar o meu sofrimento..." (Ms C 7r). Tal
posição pode parecer ilógica. Como afirmar que é impossível? "Me é impossível
confiar-vostotalmente as minhas angústias", dizia Teresa um dia à madre Inês,
"teria medo de ofender a Deus se exprimisse com palavras tais pensamentos. Eu que tanto O
amo! Mas tudo isto é incoerente" (DE p. 451). A incoerência do seu estado interior aparece
numa declaração da Irmã Teresa de Santo Agostinho no Processo Apostólico: "Se
soubésseis, disse-me, em que trevas me vejo envolvida. Não creio na vida eterna. Parece-
me que depois desta vida mortal não há mais nada: tudo desapareceu para mim e
que não me resta mais que o amor” (PO 402).

"Não me resta mais que o amor". Pode o amor de Deus subsistir sem a fé? Como
pode uma casa manter-se em pé quando já não tem fundamentos? Pois bem, é quase
certo que nesta tempestade o amor de Teresa a Deus não sofreu nenhuma míngua. O
que provoca o seu assombro: "Como é possível amar tanto a Deus e à Santíssima
Virgem e ter desses pensamentos!..." (UCR 10.8.7).

Teve que procurar uma explicação para este fenômeno, pois propõe esta resposta
encontrada quando lia um comentário da Imitação: "Nosso Senhor no Jardim das
Oliveiras gozava de todas as delícias da Trindade, e apesar disso a sua agonia não era
menos cruel. É um mistério, mas garanto-lhe que sou capaz de, em parte, o compreender
por aquilo que eu própria sinto" (UCR 6.7.4).

Dava-se conta de que possuía a provação da firmeza e da vitalidade da sua fé?


Se é certo afirmar com o Mons. Combes que "a caridade de Teresa salvou a sua fé",
pode-se igualmente inverter a proposição e dizer que a fé de Teresa salvou a sua
caridade. Foi a sua "fé viva" na sua unidade existencial queresistiu aos assaltos da
dúvida. Talvez seja conveniente comprovar apenas que nos encontramos na presença
de um aspecto de caráter misterioso de toda a provação da fé e, em particular, do mistério
da alma teresiana.

Resistência sem concessões


O termo "combate", usado por Teresa, define bem as suas reações diante dos
assaltos da dúvida. Não se contentou com sofrer passivamente o tormento, lutou
corajosamente, adotando um a um, ou simultaneamente, quatro "sistemas" de
defesa: resistência sem concessões, táctica da "fuga", afirmação da sua fé, abandono em
Deus.

A imagem que vem espontaneamente à mente ao recordar a atitude de Teresa


durante a sua noite de dúvidas é a de uma praça fortemente defendida. Sugere-o, em
principio, o vocabulário guerreiro que a Santa usa com gosto: soldado, guerra, armas,
etc... (e isso comprova-se especialmente a partir de finais de 1896), mas sobretudo pela
fortaleza de alma da qual deu provas ao longo desta temível provação. Dir-se-ia
fortaleza inquebrantável, assente solidamente sobre a rocha. Nada lhe impedirá de
"permanecer ali, apesar de tudo"- não ela "não muda de lugar" (Ms B 5v).

A sua firmeza não conhece o desfalecimento. No máximo, revela um dia a


violência dos ataques que padece deixando aflorar nos seus lábios, contra a sua
vontade, a obsessão da suspeita com a qual "o inimigo" (Ms C 7r) a fustiga, dizendo: "Se
não houvesse vida eterna... Mas há, talvez... é certo que há!" (UCR 5.9.1). Não é uma
brecha aberta no recinto fortificado, pois recusa este insidioso "talvez". Não quis, pois,
conceder nada ao seu "adversário" (Ms C 7r), nem sequer o mínimo de verdade recebida
e mantida na sua fé. Resiste com todas as suas forças. Pela manhã, depois de uma noite
particularmente esgotante, confessa: "Afastei muitas tentações" (UCR 6.8.1).

A resistência sem concessões de Teresa parece-nos tanto mais admirável quanto


que a sua provação foi prolongada, violenta, e começou "de golpe". Não conheceu a
lenta irrupção de um crepúsculo no qual as verdades da fé se difundem pouco a pouco
para dar lugar a uma noite cerrada sem que se monte guarda, como aconteceu a
Renan. Semelhante lance não podia acontecer a Teresa, era impossível. Impossível por
causa da sua vigilância e do rigor da sua fé. "Sou como a sentinela observando o
inimigo desde a mais alta torre de um castelo" (Ms C 23r). Além disso, as provas da fé —
das quais falamos — os numerosos sofrimentos que teve que enfrentar durante a sua
vida, sobretudo a doença do seu pai, tinham-na arrastado para o combate espiritual e
fortalecido cada vez mais a seu fé em Deus e numa confiança inalterável n'Ele.

É certo que tinha gozado de um meio de fé excepcional, mas como, para
consolidar a sua fé, para adquirir a força e a maturidade que vemos nela, para manter a sua
fé "viva e clara" (Ms C 5r), não haveria de combater contra essas mil solicitações para a
duvida e para a descrença das quais toda a sua vida, inclusive protegida, oferece
ocasião? Ela, que só "buscou a verdade" (UCR 30.9), não deixou de encontrar
dificuldades que necessariamente se viu forçada a indicá-las por meio das suas
observações sobre o mundo que a rodeia, das suas reflexões pessoais sobre a doutrina
recebida e das suas próprias descobertas. Parece evidente que percebeu certos
problemas... Por isso, lamenta-se de não poder esclarecer por si mesma as traduções da
Escritura que julga defeituosas (cf. UCR 4.8.5). Conhecemos com que avidez se
infirmou sobre as verdades da fé ao longo da sua vida, muito cedo das lições de
catecismo do abade Domin que lhe chamava o "seu doutorzinho" (Ms A 37v). O livro
do abade Arminjon trouxe-lhe um profundo conhecimento dos "mistérios da vida
futura" (Ms A 47r). Assimilou, sobretudo, o  Evangelho sem se cansar.
Esta formação sólida e considerável, isenta de curiosidades ou de subtilezas
intelectuais, constituiu o tesouro vivo que defendia com vigilância inflexível. À
totalidade do seu compromisso pela fé correspondia-lhe aintegridade dessa mesma fé
zelosamente guardada. Tinha confiado tudo a Deus. Mantida sempre, feita vida da
sua própria vida, convertida na sua própria substância, a fé de Teresa tinha adquirido o
vigor de um organismo vivo e sadio, plenamente desenvolvido. Não é de admirar que dê
a impressão de uma cidadela inexpugnável. O seu profundo enraizamento em Cristo
e a sua vigilância conferem-lhe aquela firmeza da casa construída sobre a rocha da
qual fala o Evangelho (cf. Mt 7,24-27).

Tática da fuga

Um segundo "sistema" de defesa que Teresa adotou diante das tentações contra


a fé, consiste na "fuga". "Em cada nova ocasião de combate, quando o meu inimigo
me vem provocar, porto-me com bravura.Sabendo que é covardia bater-se em
duelo, volto às costas ao adversário, sem me dignar olhá-lo de frente" (Ms C 7r).

Porquê é uma covardia bater-se em duelo? Pelo contrário, não é necessário


coragem para arriscar a própria vida? Para compreender o pensamento de Teresa,
devemos situar-nos de entrada na sua estratégia. Aceitar o duelo, quer dizer, aceitar tomar
em consideração as dúvidas contra a fé, é entrar no jogo do "inimigo", é reconhecer o
valor das suas razões, é talvez também satisfazer secretamente o "instinto de morte" que
às vezesimpulsiona a alguém experimentado a acabar com as suas dificuldades por
meio do suicídio. Bater-se em duelo já é capitular, é ofender a Deus, é já renegar d'Ele
recusando confiar plenamente n'Ele. Em definitivo, aceitar bater-se em duelo é uma
covardia, porque é trair a Deus e fugir do autêntico combate, por outro lado mais duro,
pois nãoconcede nada à natureza ao exigir a sua entrega sem condições. O autêntico
combate, não foi o do anjo com Jacó? Por isso, Teresa toma firmemente a decisão de,
"em cada nova ocasião", fugir do compromisso e da rendição inevitável que lhe é
proposta. Considera prudente "não expor-se ao combate quando a derrota é certa" (Ms
C 15r).Quer dizer, nega-se a deter-se nesses "pensamentos" (UCR 10.8.7) que a voz
maldita lhe sugere (DE, p. 526); volta-lhes as costas sem dignar-se olhá-los na cara",
sabendo que não é apenas inútil, mas também "muito perigoso" examiná-los de perto,
discutir com eles para medir a sua validez. "Pode ficar tranqüila; não vou cansar a minha
`cabecinha' a atormentar-me" (UCR 6.6.2).

Podemos pensar que já tinha usado antes esta "tática da fuga", quando com
receio acolhia alguns ataques imperceptíveis à integridade da fé que se lhe apresentavam
sob a forma inofensiva e insidiosa de "sins" e de "talvez". O que não exclui que
desejasse apaixonadamente um melhor conhecimento da sua fé, ela que nunca
"buscou senão a verdade", mas o seu instinto sobrenatural muito seguro a fez evitar os
enganos de uma investigação intelectual satisfeita de si mesma, cativada mais pelo
seu avanço do que pela verdade. Em Teresa não há temeridade, não há ameaça alguma;
não vai ao encontro do inimigo, é ele que a vem "provocar" (UCR 7.7.4; 13.7.7). Não lhe
podia ocorrer simular as suas dificuldades, pôr em jogo o seu espírito, pois não podia
tolerar o "fingimento" (UCR 7.7.4; 13.7.7). "Ah, eu não finjo; é bem verdade que não
entendo absolutamente nada" (cf (UCR 15.8.7).

Outro fato notável. As suas tentações não seguiram o caminho astuto das


motivações que são, por natureza, exteriores à fé, tais como uma informação
incompleta de dados revelados, um ensino caricaturesco ou um pôr em tela de juízo
total, provocado pela situação da Igreja ou a da sociedade, ou inclusive alguns casos
particulares de escândalo. Desde há tempo, o seu sentido da fé tinha-lhe permitido
discernir e captar a substância. Por isso, o seu "adversário", sem rodeios, provoca-a
diretamente sobre o essencial. Teresa sabe que a tentação não é pecado, que uma
dificuldade, para se transformar em dúvida, tem que passar por um consentimento
livre e consciente, por uma aceitação positiva. "Mil dificuldades não produzem uma
dúvida", dizia o cardealNewman. A preocupação da Santa de não "ofender a Deus"
é de tal natureza que teme inclusive descrever os seus tormentos interiores: "Não quero
escrever mais sobre isso; temeria blasfemar. Até receio ter ditodemais..." (Ms C
7r). "Teria medo de ofender a Deus se exprimisse com palavras tais pensamentos" (DE,
p. 451).

Pode ver-se outra razão no seu silêncio e na sua prudente reserva de querer evitar
que se contagiem com o seu mal aquelas que vivem com ela. A Irmã Genoveva dirá
no Processo Apostólico: "Não falava disso aninguém por temor de contagiar as
outras com o seu indizível tormento" (PO 276). Respondeu à Irmã Maria do
Sagrado Coração de uma forma vaga e mudou de onversa. Compreendi então que não
queria dizer-me nada "por temor de me fazer participante das suas tentações" (PA 813).
Ao Padre Madelaine dirá: "Procuro que ninguém sofra as minhas penas" (PA 559).

Enfim, Teresa aplicava neste caso extremo um princípio que pertencia ao seu
"pequeno caminho": "Faz tanto bem e dá tanta força não dizer nada das suas penas!"
(DE, p. 305). Nega apiedar-se de si mesma, a buscar consolações doloristas, porque, no
fundo, não sente apego algum a si mesma.

Afirmação da sua fé

Teresa não se contentou com resistir energicamente aos assaltos do adversário,


nem usou a sua tática da fuga senão para atacar por sua vez, afirmando deliberadamente
a sua fé na verdade que estes "pensamentos"procuravam induzi-la a negar. "Em
cada nova ocasião de combate (...). Corro para o meu Jesus, e digo-Lhe que estou
pronta a derramar o sangue até à última gota para confessar que o Céu existe" (Ms C
7r).

Em certo modo, renova a totalidade do seu compromisso com Deus, com


Jesus, fazendo atos de fé, multiplicados quanto for necessário: "Creio ter feito mais atos de
fé de há um ano para cá, do que durante toda a minha vida" (Ms C 7r). Depois de uma
noite em que as tentações se fizeram mais agudas: "Ah! fiz muitos atos de fé..." (UCR
6.8.1). Falando à madre Inês destes "pensamentos tenebrosos": "Sofro-os
forçosamente - diz ela - mas quando os sofro, não deixo de fazer atos de fé" (DE, p.
526).

Durante a sua agonia, quando os seus sofrimentos tinham chegado ao


paroxismo, foi quando, contrariando as suas tentações, fez ouvir este grito, admirável
de fé e de amor: "Ah! meu bom Deus!... Sim, ele é muito bom, acho-o muito bom!"
(UCR 30.9).

Noutros momentos em que se sente menos acurralada faz numerosos atos de fé


implícitos, ou afirmando serenamente "quando estiver no céu..." (cf. UCR 27.6) ou
dizendo a Deus que o ama (cf. UCR 30.7.8), ou fazendo o sinal da cruz que lhe exige um
esforço considerável (cf. UCR 31.8.3). Beija o seu crucifixo com ternura (cf. UCR 2.8.5;
19.8.3). Inclusive terá que "cantar fortemente no meu coração: Depois da minha morte a
vida é eterna" (UC R 15.8.7). Pedirá insistentemente para receber o sacramento dos
doentes e manifestará a sua alegria por lhe ser administrado (UCR 30.7.18). Sempre,
pelo mesmo motivo de exercitar e fortalecer a sua fé, ficará decepcionada por não se poder
confessar com o abade Youf (cf. UCR 6.9.3). A sua maior dor foi ver-se privada da
comunhão a partir do dia 19 de Agosto até à sua morte, devido à incapacidade de
absorver mesmo um bocadinho da hóstia. Numa palavra, suporta terríveis sofrimentos
físicos e a sua "provação da alma" com o pensamento, ou melhor, com a certeza de
trabalhar pelo bem das almas e de levar a cabo uma ação póstuma: "Voltarei" (UCR
9.7.2).

A reação de Teresa às suas dúvidas foi extraordinária pela sua oportunidade e


eficácia. Compreendeu que não podia recorrer a nenhuma ajuda externa para se manter
firme nesta tormenta. A resposta do abade Youf às suas confidências: "Não se detenha
nisso, é muito perigoso", a fez dizer com humor: "Não é nada consolador ouvir isto"
(UCR 6.6.2). Quando uma das suas irmãs julgou consolá-la lendo-lhe belos textos,
disse-lhe sem ambigüidades: "Foi como se a Irmã cantasse!" (UCR 23.7.2).

Tinha compreendido que nenhuma explicação, nenhuma verificação,


demonstração racional, nenhuma prova humana podia dispensá-la de uma gestão que
ninguém, por outro lado, podia fazer em seu lugar: "obedecer à fé", renovando a sua
total adesão, apoiando-se somente na Palavra de Deus. Para isto, só havia um meio:
fortalecer a sua fé exercitando-a. Como a vida, pois a fé é vida divina, havia que fazê-la
agir fazendo atos, pois os teólogos dizem que o ser vivo se estrutura por dentro.

Longe de deplorar a sua situação incômoda a toda a inteligência de ter que aderir
a uma verdade da qual não temos evidência natural, Teresa aceita livremente a
obscuridade inerente à fé: "Desejei mais não ver a Deus nem aos santos e permanecer na
noite da fé do que outros desejam ver e compreender" (UCR 11.8.5), ou mais ainda: "Só
no Céu veremos a verdade de todas as coisas. Na terra, é impossível" (UCR 4.8.5).
Por isso, esforça-se "embora não tendo o gozo da fé, procuro, pelo menos realizar as
obras dela" (Ms C 7r).

Neste campo, não há que acreditar nos sentimentos. Sabe que estes variam à


mercê das circunstâncias e do nosso humor. Além disso, são inadequados para o nosso
encontro com Deus. Para O encontrar "em espírito e verdade" é preciso ser arrojado no
seu intimo. Por outras palavras, a alma deve querer acreditar por um movimento da sua
liberdade. Daí, perante o assalto das dúvidas, a vontade totalmente determinada de
Teresa em manter um acolhimento livremente aceite ao dom da fé: "Canto simplesmente o
que QUERO ACREDITAR" (Ms C 7v) — palavras sublinhadas duas vezes. É
inútil demonstrar aqui que poderia ser acusada de "fideísmo".

Apontemos antes duas particularidades do realismo teresiano. Na sua luta, Teresa


não titubeia. A sua réplica é sempre imediata: "Em cada nova ocasião de combate (...),
corro para o meu Jesus" (Ms C 7r). Toda ela está emmovimento. Por outro lado, vemos
como mostra a sua capacidade para se servir dos acontecimentos, das menores ações
para se elevar a Deus. Possui a arte de viver o instante presente concentrando nele toda a
densidade do seu ser: "Só sofro um instante. Porque ao pensar no passado e no futuro
desanimamos e desesperamos" (UCR p. 327; cf. 645).

Numa palavra, Teresa escapa à acusação de puro voluntarismo porque a razão


última do seu querer acreditar não é outra senão o amor. É reveladora esta reflexão: "Oh!
Como eu sinto que desanimaria se não tivesse fé, ou melhor, se não amasse a Deus!"
(UCR 4.8.4). De fato, descobrimos aí o segredo da energia indomável desenvolvida por
Teresa na sua luta contra as tentações. Luta para conservar uma fé que ama, porque
essa fé lhe revelou o amor.

Abandono em Deus

Resistência, fuga, atos de fé e de amor, Teresa está intimamente convencida de


que não poderia fazer nada disso sem a ajuda da graça. Sabe que há uma só fé, mas
que a ajuda de Deus é necessária para a conservar: "Não cesso de dizer a Deus: 'Ó meu
Deus, eu Vos suplico, preservai-me da desgraça de ser infiel" (UCR 7.8.4).

Temos aqui uma amostra magistral do "pequeno caminho", que consiste em


permanecer "pequena", quer dizer, não atribuir a si nenhuma virtude, em não se julgar
capaz de realizar pelas suas próprias forças qualquer bem que seja, mas, pelo contrário,
reconhecer a sua radical pequenez, servir-se dela para esperar tudo de Deus: "Não
posso apoiar-me em nada, em nenhuma das minhas obras, para ter confiança" (UCR
6.8.4), "Nunca me apoio nos meus juízos; sei como sou fraca" (UCR 20.5.1).

Enquanto nos mantivermos nesta atitude de pobreza, de humildade de coração,


não corremos nenhum perigo. As provações que necessariamente temos que sofrer são
sempre medidas por Deus, que não permite que sejamos tentados acima das nossas
forças desse momento; quando vivemos: "Deus dá-me exatamente o que posso
agüentar" (UCR 25.8.2), "se eu morrer abafada, Deus dar-me-á forças" (UCR 27.7.15).

Pelo contrário, a catástrofe é certa desde que nos julgamos capazes de vencer


uma dificuldade por nós mesmos: "Compreendo muito bem que São Pedro tenha caído.
Esse pobre São Pedro que se apoiava sobre si mesmo em vez de se apoiar
unicamente sobre a força de Deus. Concluí que, se dissesse: 'Ó meu Deus, amo-Vos
muito, bem o sabeis, para me deter num só pensamento contra a fé', as minhas tentações
se tornariam mais violentas e sucumbiria de certeza a elas" (UCR 7.8.4).

Se Teresa se mantém firme é, pois, somente porque Deus a sustém. Mas


não sente esta ajuda, é-lhe dada pouco a pouco e de um modo tão secreto que Teresa
tem a impressão de estar completamente abandonada na sua noite, nos seus sofrimentos
físicos, nas suas angústias de alma. Come "o pão da dor (...) da mesa cheia de
amargura, na qual comem os pobres pecadores" (Ms C 6r). Experimenta o sentimento da
ausência de Deus como se tivesse caído na descrença. Sem "o gozo da fé" (Ms C 7r),
privada das alegrias sobrenaturais do amor que a cumulavam antes, vive
psicologicamente o desamparo dos ateus. O céu lhe é totalmente fechado...: "Até os
santos me abandonam!" (UCR 3.7.6). Não são as consolações sensíveis que as suas irmãs
crêem que podem aliviar este indescritível "tormento".

As trevas interiores parecem pôr em tela de juízo não só a sua adesão à fé, mas
igualmente o impulso da sua esperança sob a forma de dúvida sobre a fidelidade de
Deus em manter as suas promessas. Que a bem-aventurança do céu se revele ilusória é
uma cara da tentação, mas não é menos temível que esta outra cara que consiste em
duvidar que Deus se interessa pela alma, em pensar que Ele a abandona a si mesma
nos seus esforços irrisórios para conseguir o fim prometido.

Mais profundamente ainda, o que Teresa vê ameaçado nesta provação da fé é o


bem que mais aprecia: a sua confiança no Amor misericordioso. Era o centro do seu
"pequeno caminho". Teresa ofereceu-se "como vítima de holocausto ao Amor
misericordioso de Deus" (cf. Ms A 84r), e tinha recebido a prova da aceitação divina
naquela "ferida de amor" (cf. UCR 7.7.2), experimentada pouco depois (junho de
1895) e noutros sinais. E eis que esta reciprocidade de amor total parecia cessar de
repente. Deus retirava-se em silêncio da sua dupla noite. Teresa compreende que o
abandono aparente de Deus devia responder com a sua entrega total, um abandono
não menos total nas mãos de Deus: "Deus quer que eu me abandone como uma
criancinha que não se preocupa o que dela farão" (UCR 15.6.1). Esta disposição
habitual traduz-se nas suas palavras como um verdadeiro leitmotiv: "Abandono-
me" (UCR 10.6), "é necessário abandonarmo-nos" (UCR 25.8.8).

Há que dizer que Teresa chegou a este abandono total em Deus de forma


progressiva: "Estas palavras de Jó: ‘Mesmo que Deus me matasse eu ainda esperaria
n'Ele’, encantaram-me desde a infância. Mas andei muito tempo antes de me fixar
neste grau de abandono. Agora lá estou" (UCR 7.7.3).

Um abandono desta natureza não é demissão, mas aceitação definitiva, sem


reservas, da vontade de Deus, qualquer que ela seja.

Trata-se, portanto, da forma mais elevada da fé, de uma fé despojada que não se
apóia em nenhuma motivação humana; é, sobretudo, forma mais pura de um amor que
chegou a uma plenitude que se exprime por uma confiança cega na misericórdia de
Deus, apesar de tudo o que pareça contradizê-la. Não, Deus não a abandona no meio da
sua noite, Ele não pode abandoná-la, nunca a abandonou: "Amo-O! Ele nunca me
abandonará" (UCR 27.7.15). Teresa repete a sua certeza sem se cansar, e ao fazê-lo, dá a
réplica mais adequada e mais completa às suas tentações contra a fé.

Em nenhum momento se deixará levar pelas perguntas sobre a bondade de um


Deus que lhe permite sofrer assim. Em vez de O acusar de indiferença, inclusive de
crueldade como tinha feito Jó, encontra o meio de lhe dar graças, de lhe agradecer pelo que
suporta. Tem esta extraordinária exclamação: "Oh! como Deus tem de ser bom para
que eu possa suportar tudo o que sofro!" (UCR 23.8.1). Sabe que Ele está aí, que é
Ele quem lhe concede poder ir tão longe neste “martírio", que é, embora pareça mentira, o
"martírio  d e a m o r " q u e t a n t o d e s e j o u .  Compreendeu que a sua perseverança
na confiança dava a medida do seu amor, que Deus esperava dela "mais provas de
abando no e de amor" (UCR 10.7.14).

A uma pergunta sobre a paciência e sobre os santos que assistiam como


observadores ao seu combate, Teresa responde: "Eles querem ver... principalmente se
vou perder a confiança... até onde vou levar a minha confiança..." (UCR 22.9.3). O que
motiva esta confiança total não são os seus méritos pessoais, uma vida exemplar, é o
incompreensível e infinito Amor misericordioso do próprio Deus: "Poder-se-ia julgar que
se tenho uma tão grande confiança em Deus é porque não pequei. Disse bem, minha
Madre, que ainda que eu tivesse cometido todos os crimes possíveis, mesmo assim teria
sempre a mesma confiança" (UCR 11.7.6).

Há necessidade de dizer que Teresa saiu vitoriosa deste longo e desapiedado


combate? Para o demonstrar, não é necessário recorrer à sua ação e à sua glória
póstumas. Deixava já entrever este resultado felizdurante o mesmo tempo da sua
provação em virtude da sua ousada resistência, da sua recusa em discutir com o seu
adversário, dos seus atos de fé e de amor, da sua confiança inquebrantável, como já
vimos. Mas da sua vitória temos outras provas que demonstram que era mestra de
operações e que dominava realmente a situação. Dois traços do seu comportamento
são particularmente reveladores: a sua alegria e a sua paz, que se manifestam de mil
maneiras por meio das suas "jogadas", dos seus jogos de palavras, das suas
brincadeiras, da recordação de canções de outrora, dos seus pormenores para distrair e
alegrar as suas irmãs. Certamente que sofre e muito, mas "é com alegria e paz",
escreve Teresa à madre Maria de Gonzaga (Ms C 4v).

As Últimas Conversas estão cheias de notas deste tipo: "A minha alma,
apesar das trevas, permanece numa paz admirável" (UCR 24.9.10). Admirável, com
efeito, embora a natureza a castigasse com doenças que a esgotaram no seu corpo e na
sua alma.

A alegria e a serenidade irradiam do seu ser, até tal ponto que as suas irmãs
estavam surpreendidas por isso e esqueciam às vezes que tinham ao seu cuidado uma
doente muito grave, indo pedir-lhe conselhos, fustigando-a com perguntas ou para
receber consolação.

Paz admirável, falando humanamente, porque não há outra fonte senão a graça
presente no fundo do coração de Teresa. De modo que o seu último suspiro que,
assinala, com um êxtase momentâneo, o seu triunfo, aparece como a meta da sua subida.
Bem entendido que, até ao último segundo, podia falar e Teresa não o ignorava, ela que
confiava tanto na sua fraqueza. Mas tal desfalecimento era mais do que improvável,
porque, costuma dizer-se, morre-se como se viveu.

A morte de Teresa confirma toda a sua vida. Os pontos suspensivos finais


resumem-na inteiramente: "Oh! amo-O!... Meu Deus... Amo-Vos!..." (UCR 30.9).

CAPÍTULO 13

A ÚLTIMA DOENÇA

Monsenhor GUY GAUCHER

Durante a Quaresma de 1896, a Irmã Teresa entra na última etapa da sua vida
e conhece uma nova situação: a da doença. Certamente que Teresa sabe o que supõe tentar
manter-se corajosamente de pé durante todo o dia, com dores de garganta, tosse persistente,
certamente acessos de febre que suporta em silêncio. Desde 1894 que se anda a tratar da
dor persistente da garganta. Chegou mesmo a consultar o doutor Francis La Néele,
primo de Teresa por casamento, pois o médico oficial é o Dr. Cornière, velho amigo da
família Martin. Mas não foi auscultada.
É cuidada com os meios que têm à disposição. Mas a família Guérin está
seriamente preocupada; testemunha-o a correspondência familiar: "Que Teresa se cuide
com energia" (21-10-1894).

O alerta verdadeiro aconteceu durante a Semana Santa de 1896: duas


hemoptises seguidas na quinta-feira e na sexta-feira (Ms C 4v). A Irmã Teresa, mais do
que assustar-se, por causa do indicado começo do lindo ano de 1895 e do seu ato de
oferecimento do dia 9 de junho, considera-o como um "chamado do Esposo". Nunca
quis morrer jovem, mas teve sempre o pressentimento de que tal aconteceria, escreve ela
com naturalidade: "Porque sinto que o meu exílio vai terminar" (Viver de Amor, P
17/14). Em abril de 1895, disse à Irmã Teresa de Santo Agostinho: "Morrerei em
breve..." (PO 1945).

Depois destes acidentes, foi examinada (através da grade) pelo doutor La Néele,


que não descobre nada de grave. De fato, a tuberculose continua a avançar.
Continuava ativa no convento... e noutras partes. Já a rodeira, a Irmã Maria Antonieta,
tinha falecido tuberculosa no dia 4 de novembro de1896. Depois de Teresa, outras irmãs
seguiram o mesmo caminho; entre elas, a jovem Irmã Maria da Eucaristia, sua prima,
filha defarmacêutico, que morreu no dia 14 de abril de 1905, aos trinta e cinco anos,
apesar dos cuidados mais modernos da época.

A tuberculose foi temível praga que, entre 1886 e 1906, levou cerca de 150.000
pessoas por ano. A idade mais afetada situa-se entre os vinte e um e os trinta e cinco
anos. A província de Calvados foi especialmenteatacada. A cidade de Lisieux assistia
todas as semanas a funerais de pessoas novas, que morreram com a terrível doença, que
semeava o terror e que não desapareceu totalmente até 1944, com a descoberta dos
antibióticos apropriados.

Cada vez mais solitária

A partir da Quaresma de 1897, a Irmã Teresa cai, portanto, "gravemente


doente". Desde o dia 4 de abril. A Irmã Maria da Eucaristia escreve à sua família
(Guérin) que a sua prima tem indigestões e febre todos os dias até às 15h. O doutor
Cornière acaba de ver a doente: tem vômitos, dores agudas no peito, expectorações
esporádicas de sangue. Os prolongados ataques de tosse esgotam-na.

A sua solidão se intensifica. Pouco a pouco, abandonou os exercícios da vida


comunitária: em Maio, já não pode ajudar a Irmã Maria de São José na rouparia.
Faz alguns trabalhos de costura para o suprir. Na quarta-feira, dia 26 de maio, não pôde
participar na procissão das rogações no jardim. Lhe é retirada a função de adjunta da
mestra de noviças, a madre Maria de Gonzaga. Teresa tem que renunciar ainda à reza
do ofício com a comunidade e também a fazer oração no coro. Nos fins de Maio,
princípios de Junho, já não é vista no refeitório. Não participa também dos recreios,
demasiado cansativos.

Arrasta-se para ir à missa, não todos os dias. Numa manhã em que, como
recurso esgotado, se encontra na cela sentada no seu banquinho, diz-lhe a madre Inês de
Jesus: "Não é sofrer demasiado para conseguir uma comunhão" (DE II, p. 38). Às
vezes para subir à sua cela demora meia hora e tem que fazer esforços extraordinários
para despir sozinha a roupa.
É vista, pois, frequentemente na cela procurando não perder o tempo, indo ao
jardim quando há bom tempo. As receitas de fins de Maio prescrevem vesicatórios, dolorosas
pontas de fogo, calmantes, xarope contra a tosse.

A solidão dá-lhe tempo para compor o que deseje: neste mês de Maio, compôs
um longo poema sobre a Virgem. Não queria morrer sem dizer o que pensa da sua
Mãe "mais Mãe do que Rainha".

Contempla em Maria a mulher cristã que segue fielmente o seu Filho Jesus,


mesmo na noite da fé, no caminho comum. Não é na noite da fé que Teresa vive
habitualmente, como o atestam algumas envergonhadas alusões à madre Inês de Jesus?:
"... esta prova interior que é impossível de entender..." (UCR 21/26.5.10). "Senti
como que as angústias da morte... e sem nenhuma consolação!" (UCR 4.6.2).

Num desafio da madre Henriqueta do Carmelo de Paris, escreve um breve e


dilacerador poema, espécie de testamento, A rosa desfolhada (PN 51, de 19 de maio de
1897). Como a rosa que brilha no altar e embeleza a festa de Jesus, e se desfolhar, a Irmã
Teresa entrega-se "para já não ser": "Jesus, por teu amor prodigalizei a vida / o meu futuro
/Aos olhos dos mortais rosa para sempre murcha / tenho de morrer!" (estrofe 4).

Fala aos seus irmãos espirituais, ao seminarista Bellière e ao padre Roulland, da sua


morte próxima. Toda a esperança de cura parece-me perdida. Mas em princípios de Junho,
a situação piora.

Escreve ainda: o Manuscrito C

Na tarde de 30 de maio, a madre Inês toma conhecimento de que a sua


jovem irmã tivera duas hemoptises no ano anterior. Fica transtornada e, já tarde, vai ter
com a madre Maria de Gonzaga, na noite do dia 2 de junho. Informa a sua priora da
existência de um caderno escrito por Teresa a seu pedido, e sugere-lhe que possa
continuar para completar o relato da sua vida: será útil para redigir a sua circular
necrológica. A madre Maria de Gonzaga aceita na condição de que o texto fosse dirigido a
ela. No dia seguinte, a madre Inês entrega à sua irmã um pequeno caderno negro com a
ordem de escrever... sobre a caridade fraterna, sobre os seus irmãos espirituais, sobre
o que quiser...

Teresa obedece uma vez mais. Mas o seu estado não permite uma grande
concentração. Umas vezes na sua cela, outras no jardim (molestada continuamente
pelas irmãs neste lugar), sofrendo muitíssimo, escreverá algumas páginas cada dia,
sem plano, sem ranhuras, "como se pescasse à linha, escrevendo o que aparece na
extremidade do fio" (UCR 11.6.2). Mas terá que parar depois de ter escrito trinta e seis
páginas com uma letra cada vez mais difícil, para terminar a lápis, extenuada. Baixou à
enfermaria, no andar de baixo: já não sairá dela.

Não sabe que escreveu uma obra de arte espiritual que dará a volta ao
mundo. Termina com as palavras: "pela confiança e pelo amor", duas palavras-
chaves da sua espiritualidade. Sem quase falar da sua doença, entrega-nos
confidências maravilhosas sobre a sua vida passada e atual, entre outras as do dia 9 de
junho, quando evoca a sua prova contra a fé ou, mais tarde, o segredo de uma vida
fraterna vivida na caridademais autêntica. As páginas sobre o modo de exercer o ofício
de mestra de noviças demonstram que a sua pedagogia é admirável e importante,
antecipando-se, uma vez mais, ao seu tempo.

No sábado, dia 5 de junho, a comunidade e a família começaram uma novena a


Nossa Senhora das Vitórias (como em maio de 1883). No dia 7, a Irmã Genoveva tira
três fotografias a sua irmã esgotada: apesar dos seus esforços, a doente, febril, não pode
sorrir.

O doutor Cornière visita-a pelo menos nos dias 11, 12 e 24 de junho. No dia 30, a
doente retine-se, pela última vez, no locutório com os Guérin que partem para férias
para a sua propriedade La Musse, perto de Evreux.

No dia 2 de julho, primeira sexta-feira do mês, adora o Santíssimo Sacramento no


oratório. Doravante não irá mais vezes, porque a situação se deteriora com um brusco
agravamento.

Hemoptises: do dia 6 de julho a 5 de agosto

Durante vinte e nove dias, com alguns períodos de calma, sofre hemorragias,


dia e noite, pelo menos uma vintena de vezes. Situação extremamente angustiante para
ela e para a comunidade. Neste tempo, o doutor Corniere visita-a pelo menos dezoito
vezes. Curiosamente, declara no dia 7 de julho: "Não é tuberculose, é um acidente nos
pulmões, uma autêntica congestão pulmonar".

Erro de diagnóstico? Conforme as receitas, não parece, porque são-lhe prescritos


os cuidados habituais da época em semelhantes casos. Mas é impossível que o doutor,
amigo das carmelitas desde há muito, tivesse omitido voluntariamente o uso do termo
tabu, objeto de terror e, às vezes, de desprezo. Porque a tuberculose era considerada
como doença de gente pobre e desfavorecida.

O doutor acrescenta que no estado em que a Irmã Teresa se encontra, não se


salva senão o "2%". De fato, Teresa encontra-se em estado de extrema debilidade:
nem sequer pode levar a mão à boca; cai por simesma. Já não pode comer: os
vômitos lhe impedem.

É descida num colchão para a enfermaria. Há que administrar-lhe a Santa Unção?


O doutor e o superior julgam que não. Por outro lado, Teresa encontra ainda forças
para brincar! Não está, pois, moribunda.

Do dia 27 a 30 de julho, sente muitos sofrimentos. Sente-se asfixiar. Lhe é


dado éter para respirar, sem conseguir algum efeito. O cônego Maupas decide, por fim,
administrar-lhe a Santa Unção, porque julgam que nãopassará a noite. Na pequena cela
vizinha, está tudo preparado para uma morte iminente.

Estes terríveis sofrimentos durarão até o dia 6 de agosto: a tuberculose invadiu todo o
pulmão direito. Doravante, Teresa já não abandonará a enfermaria do andar de baixo, que
tem cinco metros por quatro. É dedicada à Santa Face. A cama de feno está num canto,
ao lado da janela, rodeada por altas cortinas escuras. Entre duas portas — uma dá para o
claustro — instalou-se a Virgem do Sorriso que acompanhou Teresa: a doente vê-a de
frente.
A Irmã Santo Estanislau, enfermeira oficial, cuida dela; mas, dada a sua
avançada idade, delega esse ofício frequentemente a Irmã  Genoveva, que se sente
feliz por cuidar da sua irmã, embora nem sempre tenha posto toda a delicadeza desejada.

A madre Inês de Jesus obteve da priora, a madre Maria de Gonzaga, licença


para vigiar a sua jovem irmã durante as Matinas e vai tomando nota das suas palavras em
pedacinhos de papel. Não pensava que no futuropoderiam ser preciosos, mas a sua dor
de "Mãezinha" fica atenuada pelas "migalhas" que carinhosamente recolhe.

Outras visitas são relativamente raras: quer-se cuidar da doente e há que


proibir a entrada das noviças.

É evidente que Teresa não pode continuar a escrever o seu manuscrito no


estado em que se encontra. As últimas páginas estão escritas a lápis, pois não tem
forças para suster a pena. No entanto, por caridade fraterna, escreverá ainda longas cartas
ao seu irmão espiritual, o seminarista Maurício Bellière, de férias em Langrune-sur-
Mer, uma carta de despedida ao Pe. Roulland, missionário na China, duas cartas aos
Guérin e alguns bilhetes a algumas irmãs.

Já não tem forças para ler. Na sua cabeceira está o Evangelho, a Imitação de
Cristo, o Cântico espiritual e a Chama de amor viva de São João da Cruz num volume.
Teresa contentar-se-á com pôr pequenas cruzes a lápis ao lado das passagens que está a
ler.

Quando se pensava que estava às portas da morte, o seu estado mantém-se


estacionário durante alguns dias, do dia 6 de agosto até o dia 15 do mesmo mês. É tempo
de férias. O doutor Cornière partirá com a sua família para Plombiêres. Comprovara que o
pulmão esquerdo começara a contagiar-se. Receita “pequenos remédios". Depois de
duvidar e consultar o médico, os Guérin partem para Vichy, onde o tio está a ser tratado.

Grandes sofrimentos: do dia 15 a 25 de agosto

Rapidamente, os sofrimentos que a doente sente no lado esquerdo do peito


tornam-se intoleráveis; os seus pés incham. A madre Maria de Gonzaga dá o
consentimento para chamar o doutor Francis La Néele que vive em Caen. Pelo seu
casamento com Joana Guérin, é primo de Teresa. Descreverá imediatamente ao seu
sogro a emoção de ver a sua prima na clausura: "Beijei a nossa santinha na fronte por
ti, por mamãe e por toda a família. Pedi licença, para guardar as nor mas, à madre priora
e sem esperar a resposta que talvez proíbe a Regra, auscultei o que era devido (...) O
pulmão direito estáabsolutamente perdido, cheio de tubérculos em vias de
amolecimento. O esquerdo está afetado na parte inferior" (carta de 26 de agosto de
1897).

Assim, pois, a palavra tabu foi pronunciada: não há nenhuma ilusão sobre uma
cura possível. Na quinta-feira, dia 19 de agosto, festa de São Jacinto, Teresa comunga
pela última vez: oferece a comunhão pelo ex padre Jacinto Loyson (1827-1912),
provincial dos Carmelitas, que abandonou a Igreja em 1869. Tinha recusado a
infalibilidade pontifícia (proclamada em 1870 no concílio - Vaticano I), tinha casado
com uma viúva americana convertida do protestantismo, a Sra. Meriman, e tivera um
filho. Tinha fundado uma "igreja católica galicana". O  escândalo tinha sido enorme
em França e naEuropa, pois era muito conhecido, amigo de Newman e de Montalembert.
O seu nome estava proscrito em todos os Carmelos. Mas a Irmã Teresa, a partir de 1891,
chamava-lhe seu "irmão" (Ct 129). Rezou por ele até à sua morte e aquela última
comunhão é a prova disso.

Neste tempo, o cerimonial da comunhão dos doentes era pesado e complicado.


Teresa estava em tal estado de fraqueza que não o podia agüentar: já não poderá
comungar. Algumas irmãs escandalizam-se. Passa o dia 20 de Agosto angustiada e a
chorar.

A partir do domingo, 22 de agosto, a doente entra numa fase de sofrimentos


agudíssimos. Confessa: "Ninguém sabe o que é sofrer assim. Não, é preciso senti-lo"
(UCR 22.8.2). "É um dia de contínuos sofrimentos" (ib.). Surgem então terríveis dores
de intestinos, fonte de humilhações diversas para a doente. Mais tarde falar-se-á de
"gangrena de intestinos", com todas as suas conseqüências. São dores para "gritar", e
Teresa não pode deixar de "gemer".

Para cúmulo de desgraças, no momento em que mais teria necessidade de um


médico, o doutor La Néeletinha ido em peregrinação nacional a Lourdes com a sua
mulher e Leônia. Foi, sem dúvida, durante este período que a doente sofre "até perder
a razão", declarou que "se não tivesse fé, não teria vacilado em suicidar-se" (PA 204).

No entanto, de modo inesperado, na sexta-feira dia 27 de agosto, produz-se um


repentino período de calma. Quando se julgava que estava moribunda, começa a
viver uma nova trégua que durará dezenove dias. Para lhe dar gosto, para que veja pela
janela o esplendor do jardim no Verão, deslocam-lhe a cama e põem-na no centro da
enfermaria.

O último período "bom": do dia 28 de agosto até 13 de setembro

Se os sofrimentos agudos acabaram, a febre, a opressão, a fraqueza


permanecem. Na segunda-feira, dia 30, levam a doente numa cama de rodas e a Irmã
Genoveva tira-lhe uma fotografia no claustro. Será a última fotografia de Teresa viva. A Irmã
Genoveva leva-a até à porta que dá para o coro das Carmelitas: Teresa reza e
contempla oSantíssimo Sacramento pela última vez.

Neste mesmo dia, o doutor La Néele, regressado de Lourdes, visita a sua prima:


só lhe resta meio pulmão para respirar. Com a sua franqueza habitual, acusa a madre
Maria de Gonzaga de não a ter feito ir a um médico todos os dias no estado em que se
encontra a Irmã Teresa. Volta no dia seguinte e ainda, pela última vez, no dia 5 de
setembro.

Dir-se-ia que nestes dias de trégua, a doente volta à vida; vêm-lhe desejos
inesperados de comer, e a família Guérin procura satisfazê-los: assado com puré, bolo,
um pastelinho de chocolate, alcachofras, queijobranco...

Na quarta-feira, dia 8 de setembro, celebra-se o sétimo aniversário da sua


profissão, e no dia 11 ainda tem forças para fazer duas coroas de acianos que oferece à
Virgem do Sorriso.
O doutor Cornière regressa de férias na sexta-feira, dia 10 de setembro.
Sente-se "consternado" pelo estado da Irmã Teresa. A partir do dia seguinte, começa a
piorar.

Os últimos dias e a agonia: do 17 ao 30 de setembro

O doutor Cornière vê claro: no dia 14 de setembro pensa que a Irmã Teresa não
viverá mais de quinze dias. Para lhe fazer a cama, a robusta Irmã Amada de Jesus
pega nela nos braços: Teresa está tão fraca que temem que morra imediatamente.

N o di a 20 p ed em à m ad re M a ri a d e  Gonzaga que comprove a magreza da


jovem carmelita; assusta-se e exclama: "O que é uma menina assim tão magra?"
"Um esqueleto", responde Teresa que aproveita todas as ocasiões para fazer rir à sua
volta e desdramatizar a situação. Mas, nos dias seguintes, falta-lhe o ar: os pulmões já
não funcionam. Asfixia: "Mãezinha!... falta-me o ar da terra, quando me dará Deus o ar
do céu?..." (UCR 28.9.1). Os dois últimos dias, quarta-feira, dia 29, e quinta-feira, dia
30, são de agonia, em sentido estrito. Na quarta-feira começam as respirações ruidosas.
Desde as seis da manhã, a comunidade apertada na pequena enfermaria salmodia as
orações dos agonizantes. A doente está consciente. Lhe é dada — alívio excepcional —
uma colher de xarope com morfina de quando em quando. O doutor Cornière visita-a
pela última vez. Teresa pergunta à madre Maria de Gonzaga: "Estou em agonia?...
Como hei de fazer para morrer? Não vou nunca saber morrer!"  (UCR 29.9.2).

Pela tarde, o abade Faucon, confessor extraordinário do Carmelo, ouve a


última confissão da Irmã Teresa, pois o capelão, o abade Youf, está gravemente doente
(não sobreviverá senão oito dias à sua penitente). Ao sair da enfermaria, o abade Faucon
disse à priora: "Que bela alma! Parece confirmada em graça".

Naquela noite, não se pode deixar a doente sozinha: a Irmã Maria do


Sagrado Coração e a Irmã Genoveva velam por ela. Teresa dormirá muito pouco:
reza à Santíssima Virgem e, para não despertar as suas irmãs, fica com um copo na
mão. A madre Inês de Jesus dormiu na cela ao lado. Pela manhã, as três irmãs Martin
estão à volta da sua irmã que está ofegante: "É a agonia pura, sem sombra de
consolação".

À tarde do dia 30 de setembro é dramática. Pelas 14h30min, com muita


dificuldade, Teresa incorpora-se na cama. A sua voz é "clara e forte". As suas mãos
estão "violáceas". Reza: "Meu Deus, tende piedade de mim!... Ó minha boa Virgem
Santa, vinde em meu auxílio! Meu Deus, quanto sofro!...O cálice está cheio até a
borda!... Não vou nunca saber morrer!..." (UCR 30.9).

Pelas 16h30min, toda a comunidade se reuniu na enfermaria. Durante duas horas,


um ruído respiratório terrível dilacera o seu peito, treme com todos os seus membros. Um
suor abundante deslizava pelas faces e trespassa toda aroupa. Soltava pequenos gritos.

Pelas 19h, a madre Maria de Gonzaga manda sair a comunidade que se tinha


reunido para rezar havia já duas horas. A madre Inês de Jesus, assustada pelos
sofrimentos da agonia da sua irmã, retira-se e vai rezar diante da pequena estátua do
Sagrado Coração, na escada que dá para o primeiro andar, para que a sua irmã não
desespere.
A priora vê que chega o fim. Toca o sino da enfermaria e grita: "Abram as
portas todas!" As irmãs ajoelham em volta da cama. A doente, segurando o crucifixo,
diz claramente: "Oh! amo-O". A seguir: "Meu Deus... Amo-Vos!".

Subitamente levanta os olhos e o seu olhar torna-se resplandecente: "Pelo espaço de


um Credo" olha por cima da estátua da Virgem, depois descai suavemente para trás, com
a cabeça inclinada sobre a direita, um misterioso sorriso nos lábios. Às 19h20min,
exalou o último suspiro. Podemos contemplar a beleza deste rosto tranqüilo, graças à
fotografia que a Irmã Genoveva tirou.

Na sexta-feira, pela tarde, o seu corpo foi levado, segundo o costume carmelita,


para ser exposto no coro, diante da grade. Ali ficará até ao domingo pela tarde.
Começaram então a manifestar-se sinais de decomposição O caixão fechou-se pela
tarde.

Já não se podia enterrar no cemitério do Carmelo, de acordo com a ordem das


autoridades municipais. A família Guérin, insigne benfeitora, tinha comprado uma
sepultura para o Carmelo no cemitério, situado numa colina que domina Lisieux. Na
segunda-feira, 4 de outubro, uma trintena de pessoas sobem a dita colina, seguindo o
carro fúnebre. Leônia Martin preside o séqüito, o tio Guérin fica em casa por causa de
um ataque de gota.

A partir do dia seguinte, a enfermaria fica arrumada. Queimam-se a esteira e as


alpargatas (sandálias de corda das carmelitas) muito gastas de Teresa; a vida diária
retoma o seu ritmo habitual...

Como podemos ver, mesmo contada brevemente, aquela doença que pôde com
um corpo de vinte e quatro anos, foi terrível. Deve-se abandonar toda a imagem de
Epinal que evoque a morte "da santinha com uma rosa mão", como se descreveu a "dama
das camélias”, outra normanda de vinte e três anos, morta de tuberculose, rodeada
pelos seus amantes, com uma camélia na mão.

Tudo isto não é senão ficção. A Irmã Teresa sofreu aquela doença implacável.
Porém, como sofria? Procuremos agora olhar e ouvir aquela doente que alcançou por
graça — o cume da sua vida, com a mesma lógica do dom total de si mesma: a do seu
batismo, a da sua profissão religiosa e a do seu oferecimento ao Amor misericordioso.

Uma mulher muito humana

Sentimo-la admiravelmente humana. Teresa é uma doente como as outras:


sofre, geme, chora, tem pesadelos, custa-lhe muito rezar — tão grande é a sua fraqueza.
Pensa frequentemente na sua vida passada: vêm-lhe à memória as recordações. A vida
passada nos Buissonnets, no colégio das beneditinas, depois os seus nove anos no Carmelo.
Revela-se tal como é, no seu amor à natureza: as flores, os frutos, todos os animais.

Durante estes meses mostra-se afetuosa e sensível. A sua fraqueza física não lhe
permite reprimir as suas lágrimas, mas às vezes também chora de alegria, de gratidão a
Deus e às suas irmãs. Mas chora igualmente deamor!
Perguntamo-nos como pode manifestar a sua alegria em tais condições. "Faz rir
a todos os que estão perto. No modo como nos conta as coisas, ali onde deveríamos
chorar, rimo-nos às gargalhadas, é tão divertida... Julgo que morrerá a rir-se, está tão
alegre", escreve a sua prima a Irmã Maria da Eucaristia.

As "piadas" da doente são freqüentes, às vezes nas circunstâncias mais


trágicas. Amou particularmente a Teófano Venard, que jovem mártir, missionário no
Vietnã (1829-1861), porque estava sempre Teresa tem sentido do humor, às vezes
muito negro quando contempla os objetos que estarão presentes no seu funeral: acha-
os tão feios!

Não pára com os jogos de palavras se com isso consegue alegrar as suas irmãs que
estão tristes por vê-la partir. Recorda muito frequentemente as expressões normandas
da sua infância, com o seu acento típico. Ri-se um pouco do seu bom médico, pois
não gosta das suas vacilações. Chama ao doutor Cornière "Clodão o cabeludo".

Se Teresa usa em certas ocasiões a linguagem infantil — "dodó, loló, bebé" — não é
que se faça criança ou regresse ao infantilismo. Certo é que, como nos Buissonnets em
1883, está doente e rodeada das suas irmãs. Mas,quantos caminhos percorridos desde
os catorze anos! Com a graça do Natal de 1886, saiu, escreve ela, das "fraldas da sua
infância" e dos seus defeitos (Ms A 44v). Não se trata de regressar ali no momento da
morte.

Longe de cair na afetação, usa a linguagem infantil para fazer sorrir as suas irmãs
(e em primeiro lugar as três Martin). É preciso ver nisso um ato de valor e sobretudo
de caridade fraterna. Quando acontece no estado que descrevemos, não é fácil esquecer-
se de si mesma para pensar na dor dos que a rodeiam.

A alegria de Teresa vem de mais longe ainda... Em Junho, escreve no seu


último manuscrito: "Que banquete poderia uma carmelita oferecer às suas irmãs, senão
um banquete espiritual composto de caridade amável e alegre?... O Senhor ama os que
dão com alegria" (Ms C 28 v; cf. 2 Cor 9,7). "Quando posso, faço por estar alegre,
para dar gosto" (UCR 6.9.2).

"Que a minha vida seja um ato de Amor" (Cr 224)

Desde há muito tempo que a vida de Teresa é "amar a Jesus e faze-lo amar (Ct
224, 225, 226, 254), como escreveu no ato de oferecimento ao Amor misericordioso.

Amar a Jesus, amar ao próximo. Como testamento, escreveu no seu ultimo


manuscrito páginas sublimes sobre a caridade fraterna. Nas Últimas conversas,
viveu-a diariamente: "Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim" (Ms C 12v).

Com que rapidez amadureceu! Tem apenas vinte e quatro anos, e a sua
sabedoria erareconhecida. O abade Youf disse um dia à madre Maria de Gonzaga:
"Tendes uma segunda madre Genoveva". Não esqueçamos que esta era considerada
como a Santa do Carmelo. Não sem razão a madre Maria de Gonzaga confiou as cinco
noviças à Irmã Teresa. A madre Maria de Gonzaga pensava que mais tarde a Irmã
Teresa seria priora.
Com a madre Inês de Jesus, invertem-se os papéis. Toda a sua vida, Paulina
foi "Mãezinha", a instrutora, a conselheira espiritual, a priora. E eis que, na doença, a
sua irmãzinha aconselha-a, faz-lhe algumas correções fraternas.

Algumas irmãs mais velhas irão mesmo, em segredo, pedir-lhe conselhos


espirituais, conforme testemunha a Irmã Genoveva. Na correspondência com os seus
dois irmãos espirituais, até ao fim, propor-lhes-á o seu caminho, feito de confiança e amor.
Escreve ao seminarista Bellière: "Sigo a via que (Jesus) me indica... Espero que um dia
Jesus vos faça caminhar pela mesma senda que eu" (Ct 247). Insiste algum tempo
depois: "Sinto que temos de ir para o Céu pela mesma via, a do sofrimento unido ao
amor" (Ct 258). "Vos é proibido ir para o Céu por outro caminho que não seja o da vossa
pobre irmãzinha... o caminho da confiança simples e amorosa é bem indicado para vós"
(Ct 261).

Acontece que a doente no estado em que se encontra não faz de "mestra". Nas
Últimas conversas recolhidas pela madre Inês, encontram-se apenas oito palavras
relacionadas com o pequeno caminho. Principalmente, vive-o.

Viver o "pequeno caminho"

De entrada, Teresa continua a reconhecer as suas imperfeições e fraquezas:


"Sou a própria fraqueza... cada dia espero descobrir em mim novas imperfeições" (Ms C
12v). Ao seminarista Bellière, confessa-lhe: "Ó meu irmão! peço-vos que acrediteis
em mim, Deus não vos deu como irmã uma grande alma, mas uma muito pequenina e
muito imperfeita" (Ct 224).

Num pequeno incidente com a Irmã São João Batista, presenciado pela madre
Inês de Jesus, Teresa atreve-se a escrever a esta: "Sinto-me muito mais feliz por ter
sido imperfeita do que se, apoiada pela graça, tivesse sido um modelo de doçura" (Ct
230).

Esta fraqueza tão frequentemente reconhecida e aceita, torna-se um lugar


privilegiado da misericórdia divina. Se Teresa quer "permanecer pequena", não é por
afetação, mas para se lançar nos braços de Jesus, o"ascensor" que a fará subir para o
Pai, mais ainda na situação humanamente desesperada em que se encontra na
enfermaria: "Há muito tempo que já não me pertenço. Entreguei-me totalmente a
Jesus, portanto Ele é livre de fazer de mim o que Lhe agradar" (Ms C 10v). Só o
abandono a guia: "No fim de contas, para mim é igual viver ou morrer" (UCR
15.5.7).

Por isso, o paradoxo que impressionou vivamente as testemunhas: Teresa vive


"a paz e a alegria" no meio dos piores sofrimentos. Mesmo na sua prova contra a
fé, que mal conhecia a trégua, afirma: "Ah! sim, que escuridão! Mas sinto-me em
paz" (UCR 28.8.3).

O grande desejo de uma missão universal

No fim do seu Ultimo manuscrito, escreve: "Uma alma abrasada de amor não


pode ficarinativa" (Ms C 36r). A missão de "fazer  amar a Jesus" continua a
obcecá-la. Reza e oferece-se por "um membro da sua família que não tem fé", o Sr.
Tostain. A sua Ultima comunhão será pelo padre carmelita Jacinto Loyson que tinha
abandonado a Igreja.

Mas isto não lhe basta: o seu horizonte é vasto, universal. Não pode conceber
que o seu trabalho missionário acabe com a sua vida. Porquê não vai continuar
depois? Nasce nela um grande desejo: fazer o bem depois da sua morte. É o
maior desejo de toda a sua vida, mas não experimentou que Deus os cumulou
todos? Porquê este, "o maior de todos"? Reza com esta intenção e faz "a novena
da graça", de 4 a 12 de  março, a São Francisco Xavier, padroeiro das missões.

Apresenta os seus argumentos a partir do exemplo dos anjos. Confia ao Pe.


Roulland:"Espero não ficar inativa no Céu, o meu desejo é continuar a trabalhar
pela Igreja e pelas almas, peço isto a Deus e estou certa de que Ele me
concederá. Não estão os Anjos continuamente ocupados conosco  sem nunca
cessarem de ver a Face divina, de se perderem no Oceano sem limites do Amor?
Porque não havia Jesus de me permitir que os imitasse?" (Ct 254).

Três dias depois, a madre Inês de Jesus  anota estas palavras num
pedacinho depapel: "Sinto que vou entrar no repouso... Mas sinto sobretudo que a
minha missão vai começar, a minha missão de fazer amar o bom Deus como eu O
amo, de dar o meu pequeno caminho às almas. Se o bom Deus escutar os meus
desejos, o meu Céu será passado na terra até ao fim do mundo. Sim,  quero
passar o meu Céu a fazer bem na terra. Não é nada de impossível, pois, no seio da
visão beatífica, os Anjos velam por nós. Não posso fazer uma festa de gozo,
não posso repousar enquanto houver almas para salvar... Porém, quando o Anjo
disser: 'O tempo já não existe!', então, repousarei,  poderei gozar, porque o
número dos eleitos estará completo e todos terão entrado na alegria e no repouso. O
meu coração estremece com este pensamento..." (UCR 17.7).

Estas palavras terão mais tarde um eco universal

De vez em quando, neste último período da sua vida, Teresa pronunciou


palavras misteriosas: "Voltarei...", "descerei...", "enviar-vos-ei graças..." Mais
tarde, também eu estarei junto das criancinhas batizadas..."  (UCR 25.6.1). E
depois, esta expressão admirável de audácia: "Deus terá de satisfazer todos os
meus desejos no Céu, porque eu nunca fiz a minha vontade na terra"
(UCR 13.7.2). Diz isto tudo com grande humildade, porque sabe que "tudo é graça"
(UC 5.6.4) e que "tudo vem d'Ele" (UCR 11.7.3).

A sua fé, embora contrariada pela provação — algumas tardes menciona a


presença do demônio —, a faz pronunciar uma frase memorável: "Não vejo
bem o que terei a mais depois da morte que não tenha já nesta vida. Verei a Deus,
é verdade! Mas quanto a estar com Ele, já estou inteiramente na terra" (UCR 15.5.7).

Uma circular necrológica

Nas últimas semanas vai acontecer algo que terá conseqüências


incalculáveis. A madre Inês de Jesus sonha com uma circular  necrológica da sua
irmã, coisa habitual nos Carmelos: depois da morte de uma carmelita, essa
circular era enviada a todos os conventos da Ordem. Por seu lado, a
Irmã Teresa está de acordo pelo que lhe diz respeito.

Mas a "Mãezinha" pensa servir-se dos escritos de Teresa; por isso pediu à


madre Maria de Gonzaga que mandasse a doente completar o seu primeiro manuscrito.

Projeta-se a publicação destas páginas. Teresa consente, mas, estando como


está, não pode participar nela. Por isso, contenta-se com fazer algumas recomendações a
sua irmã. Confia inteiramente na sua irmã: "Não tive tempo para escrever o que teria
querido: tudo o que vos parecer bem suprimir ouacrescentar no caderno da minha vida,
sou eu quem o suprime ou acrescenta. Lembrai-vos disto então e não tenhais nenhum
escrúpulo, nenhuma dúvida nesta matéria" (DE II, p. 164).

Teresa faz as suas recomendações:  "Sobretudo, não esquecer de contar a


história da pecadora! Isso deve provar que não me engano" (UCR 20.7.3). "Depois
da minha morte será necessário não falar a ninguém do meu manuscrito antes de ser
publicado; será necessário falar dele só à Nossa Madre. Se proceder de outra forma, o
demônio há de preparar-lhe mais do que uma armadilha para estragar a obra de
Deus... uma obra importantíssima!" (UCR 1.8.2).

A madre Inês de Jesus lembrou-se de pedir a Teresa para reler uma


passagem do seu manuscrito que lhe parecia incompleta. Teresa respondeu: "O que estou
a reler neste caderno, é tão bom para a minha alma... Minha madre, estas páginas farão
muito bem. Com a continuação, conhece-se melhor a doçura de Deus..." (DE II, p. 229).

Teresa não é senão um instrumento da misericórdia: "Como se verá que tudo


vem de Deus e a parte de glória que eu tiver, será um dom gratuito que não me pertence;
todos o verão claramente..." (UCR 11.7.3). "Ah! pressinto que todo o mundo me
amará..." (DE II, p. 229).

Cinco dias antes da sua morte, a Irmã Teresa termina os seus escritos de um


modo especial, dando-lhes uma chave de leitura: "Agora compreendo que tudo o que
disse e escrevi é inteiramente verdade..." (UCR 25.9.2).

"Subir ao Calvário com Jesus" (PN 17)

Em Junho, Teresa voltou a ler a sua segunda peça teatral sobre Joana d'Arc. Dirá
à madre Inês: "Nela verá os meus sentimentos sobre a morte; estão lá todos
revelados" (UCR 5.6.2). Mas há uma frase que a deve ter impressionado: "Oh! como me
sinto consolada ao ver que a minha agonia se parece com a do meu Salvador..." (RP
3,2.5).

É esse o segredo da doença e da agonia da Irmã Teresa. Certamente, conforme o


veredicto médico, morre de tuberculose. Porém, aos olhos da sua fé, quer "morrer de
amor" por e com o Amado ao qual sempre quis seguir, até à cruz gloriosa. O desejo do
martírio impulsionou-a sempre. Depois de umahemoptise, declarara: "Sabia que teria a
consolação de ver o meu sangue derramado, pois morro um martírio de amor"
(Genoveva, PO 307).
Habitualmente não tem medo à morte, embora experimente momentos
difíceis: "Uma manhã durante a ação de graças,  depois da Comunhão, senti como
que as angústias da morte... e sem nenhuma consolação!" (UCR 4.6.3). "Tenho medo de
ter receado a morte... Mas com certeza não tenho medo daquilo que se passará depois!... O
que é afinal essa separação misteriosa da alma e do corpo? Foi a primeira vez que senti
isto, mas abandonei-me imediatamente a Deus" (UCR 11.9.4).

As irmãs de Teresa, que tinham lido as descrições sanjoaninas sobre a "morte


de amor", imaginavam aparições de anjos, inclusive da Virgem e algum sinal
extraordinário na morte da sua jovem irmã. Teresa devolve-as ao cotidiano: "Não se
admirem se eu não aparecer depois da minha morte, e se não virem nada de extraordinário
como sinal da minha felicidade. Lembrem-se que meu pequeno caminho' consiste em
nadadesejar ver". Reserva o seu olhar para Jesus Crucificado: "Nosso Senhor morreu
Vítima de Amor, e vejam como foi a sua agonia!" (UCR 4.6.1). "Nosso Senhor morreu
na Cruz, no meio de tantas angústias, e no entanto foi a mais bela morte de amor. Foi a
única que se pôde ver, não se viu a da Santíssima Virgem. Morrer de amor, não é
morrer em êxtase. Confesso-lhe sinceramente, parece-me que é aquilo que eu sinto" (UCR
4.7.2). Recusa toda a realidade espetacular: nãomorrerá "depois de comungar" ou numa
bela festividade litúrgica, mas num dia normal.

Ela é, sobretudo, a Irmã Teresa da Santa Face, que evoca o servo sofredor de Isaías
53 e a Jesus no Getsêmani. No dia 2 de junho, escreve à Irmã Maria da Eucaristia: "O seu
Esposo não é um Esposo que a vai levar afestas, mas sim à montanha do Calvário" (Ct 234).
Não abandona o seu "querido pequeno crucifixo": beija-o (na face), atira rosas sobre ele
e não o deixará durante toda a sua agonia. Todos os pequenos pormenores da sua vida
de doente orientam-na para a Paixão de Jesus. As suas três irmãs estão adormecidas
junto à sua cabeceira: quandodespertam, chama-lhes: "Pedro, Tiago e João!". Sente dor
nas costas? Lembra-se de Jesus a levar a cruz.

Depois de ter feito tão frequentemente a via sacra na capela, vive-a agora
verdadeiramente, sem palavras. À Paixão de Jesus, responde a compaixão de Teresa.
Por isso, não duvida em aplicar a si as palavras da oração sacerdotal de Jesus (Jo 17). A
sua audácia encontra legitimidade numa sã teologia do Corpo místico: "Posso apenas
servir-me das palavras de Jesus na última ceia. Ele não poderá ofender-se com isso
visto que sou asua esposazinha e por conseguinte os seus bens são meus" (Ct 258 e C
34v). A melhor passagem do seu último manuscrito exprime a sua quinta-feira santa. E a
chave dos seus sofrimentos. Mal acaba de escrever esse texto, começa a sua sexta-
feira santa. Também ela, discípula e esposa de Jesus, é o grão de trigo que cai na terra e
morre, mas para produzir muito fruto. No dia 11 de agosto, Teresa cita o versículo de
São João(12,24).

Sepultada no dia 4 de Outubro, depois de uma agonia na qual diz: "Nunca teria
acreditado que era possível sofrer tanto! Nunca! Nunca! Não sei explicar isto senão
pelos ardentes desejos que eu tive de salvar almas" (UCR 30.9).

Teresa produziu muitos frutos durante estes cem anos. Deus cumulou todos os
seus desejos porque foi o seu Espírito que os infundiu nela. Teresa tinha escrito ao
seminarista Bellière: "Eu não morro, entro na vida" (Ct244).
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O CASO LÉO TAXIL — DIANA VAUGHAN

Monsenhor GUY GAUCHER

Na segunda-feira de Páscoa, no dia 17 de março de1897, numa conferência de


imprensa dada na sala de geografia em Paris, Charles Jogand-Pagês, aliás Léo Taxil
(1854-1907), reconheceu publicamente a suamentira que durara doze anos.

Epílogo de uma história rocambolesca muito embrulhada, fundada nas lutas


entre a Igreja católica e a franco-maçonaria e o "gênio" enganador de um marselhês que tinha
simulado a conversão à fé católica.

Foi um episódio lamentável dos combates clericais e anticlericais da segunda


metade do século XIX. Coisa admirável, uma jovem carmelita desconhecida foi misturada
nele e esta impostura juntou-se ainda à sua grave provação contra a fé.

Jogand-Pages tinha começado por ser desertor, ladrão, depois tinha inventado


algumas burlas espetaculares em Marselha e na Suíça.

Sob o nome de Léo Taxil tinha editado uns cento e trinta opúsculos pertencentes à
"Biblioteca anticlerical" e um jomal, "o Anticlerical". Em 1892, foi expulso da franco-
maçonaria. Fracassado, converteu-se em1885 e escreveu as Confissões de um livre
pensador, que terá quarenta e cinco edições. Em 1884, Leão XIII publicou a encíclica
Humanum genus, contra a franco-maçonaria. A luta teve uma extrema violência.

Apareceram então as Memórias de um ex-paladista, escritas por uma tal Diana


Vaughan, convertidasob a influência de Joana d'Arc. A imprensa católica apaixona-se com
estas revelações bem como numerosas revistas religiosas. No Carmelo de Lisieux,
a madre Inês de Jesus sugere à Irmã Teresa que escreva um poema para Diana Vaughan. A
inspiração não vem, mas Teresa envia-lhe uma fotografia representando a Joana d'Arc,
com umas linhas. Diana responde.

Teresa escreve em 1896 a sua peça teatral O triunfo da humildade (RP 7) na qual
se tratam cenas populares de diabos e se fala de Diana Vaughan. Durante o Verão, lê a
Novena eucarística da convertida.

Porém, há alguns muito céticos. Nos fins de setembro de 1890, houve um


congresso anti-maçônico em Trento. Uma comissão romana distancia-se de Léo Taxil.
Daí a reserva da Irmã Teresa quando Diana ataca um bispo italiano.

Chega então a conferência de imprensa de 19 de abril de 1897. Esperava-se


que, no final, aparecesseDiana Vaughan... E é Léo Taxil quem chega, revelando a sua
impostura: ele tinha inventado por completo a personagem de Diana Vaughan e há doze
anos que está a enganar a Igreja católica. A sua conversão não foi senão mais uma farsa.

A sessão acaba em tumulto e, no dia seguinte, os jornais católicos denunciam o


impostor. Um quadradolacônico do jornal Le Normand produz consternação no Carmelo
de Lisieux dizendo que durante a reunião se tinha projetado a fotografia de uma carmelita
vestida de Joana d'Arc. Desta vez Taxil não mentia! Era a Irmã Teresa!

Podemos imaginar a humilhação das Irmãs. Teresa atirou a carta de "Diana" ao


lixo do jardim e fará desaparecer de todos os seus escritos o nome de Diana Vaughan
(RP 7 e princípio do Manuscrito B).

Ter sido enganada deste modo (juntamente com bispos, sacerdotes e a


comunidade), na sua noite da fé,tornou-se para ela penosíssimo. Teresa não
deixará transparecer nada disto. Mas podemos ter por certo que Teresa orou pelo
"ímpio" Léo Taxil, que tinha "abusado das graças" (Ms C 5v), ela, que aceitava ficar
só nas trevas para que os incrédulos recebessem luz.

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"ÚLTIMAS CONVERSAS"

Monsenhor GUY GAUCHER

Durante os dias em que a Madre Inês de Jesus vela a sua irmã doente, vai tomando
nota apressadamente das suas palavras, às vezes de modo telegráfico. Em primeiro lugar,
para sua própria consolação, porque a "Mãezinha" vê morrer a sua jovem irmã com
imensa tristeza. Quando se dá conta de que Teresa vai morrer, pensa igualmente numa
circular necrológica. Daí, essas perguntas sobre o seu passado, os seus sentimentos, a
sua concepção da vida religiosa.

Reúne, no total, perto de 850 frases. Por outro lado, a Irmã Maria do Sagrado
Coração (sua madrinha) e a Irmã Genoveva (Celina) tomaram também nota de algumas frases.

Depois da morte de Teresa, a madre Inês, que prepara um livro que será a História
de uma alma, utiliza as suas notas num capítulo, o XIII, que relata a doença e a morte da
jovem carmelita.

Por volta de 1904-1905, volta a copiar e a classificar todos os seus papéis num
"grosso caderno negro"(destruído a seguir). Servir-se-á dele para redigir cinco
"cadernos verdes", que constituirão a base da sua deposição no Processo do Ordinário
(1909-1910), no que se refere a este período da vida da sua irmã.

Foi preciso esperar por 1922, sem dúvida, para que redija, para seu uso pessoal, um
"Caderno amarelo"completíssimo. Depois da canonização de Santa Teresa (1925),
publicará uma antologia muito restrita das Últimas conversas, as Novissima Verba (362
frases), em 1927.

Em 1971 uma equipa de investigadores, graças aos arquivos do Carmelo, publicou


as Últimas conversas nas suas diversas versões (quatro, em total), mas dando
prioridade ao Caderno amarelo, que é um complemento muito importante para o
conhecimento teresiano.
Certamente que os textos não foram gravados num gravador; levam a marca da
madre Inês de Jesus. Mas a publicação em sinopse das quatro versões (Últimas palavras
na Nova Edição do Centenário, 1992) permite a qualquer um comparar os textos e fazer-
lhes a crítica.

Não se lhes pode dar a mesma credibilidade que aos escritos teresianos, mas
privar-se totalmente destas "logia" seria prejudicial para o conhecimento desta  Teresa
doente, humana, sofredora, humorista, orante, pobre e, de momento, sublime na sua total
simplicidade. Por outro lado, a madre Inês de Jesus teria sido incapaz de inventar
numerosos traços referidos no seu Caderno amarelo. Pelo contrário, censurou fortemente as
Novissima Verba, não querendo entregar, em 1927, ao público em geral, estas
"intimidades", estas "piadas", que nos mostram que a humanidade desta santa toma-a
próxima de todos os homens vítimas da doença e do desamparo.

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TERESA NOS FALA:

"No braseiro devorador do Amor"

"Ah! meu irmão, como eu podeis cantar as misericórdias do Senhor, elas brilham
em vós com todo o esplendor... Amais Santo Agostinho, Santa Madalena, essas almas a
quem 'Muitos pecados foram perdoados porque muito amaram' (Lc. 7,47). Também eu as
amo, amo o seu arrependimento, e sobretudo... a sua amorosa audácia! Quando vejo
Madalena avançar na presença de numerosos convidados, banhar com as suas lágrimas os
pés do Mestre adorado que toca pela primeira vez, sinto que o coração dela compreendeu
os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus, e que, por muito pecadora
que ela seja, este Coração de amor está não só disposto a perdoar-lhe, mas ainda a
prodigalizar-lhe os benefícios da sua intimidade divina, a elevá-la até aos mais altos
cumes da contemplação.

Ah! meu querido irmãozinho, desde que me foi dado compreender também o


amor do Coração de Jesus, confesso que Ele afastou do meu coração todo o temor. A
lembrança das minhas faltas humilha-me, leva-me a nunca me apoiar na minha força que
só é fraqueza, mas esta lembrança fala-me ainda mais de misericórdia e de amor.

Quando lançamos as nossas faltas com uma com fiança inteiramente filial no


braseiro devorador do Amor, como não seriam elas consumidas para sempre?" (Ct
247).

CAPÍTULO 14

A VIDA DO MAIS ALÉM

PIERRE DESCOUVEMONT E RAYMOND ZAMBELLI

História de uma alma


No século passado, quando morria uma carmelita, a sua priora tinha o costume
de enviar aos outros Carmelos uma circular fúnebre, que resumia a vida da defunta
e convidava a rezar por ela. Esta "circular" foi ampliando-se um pouco mais com o
tempo. Tal foi o caso de Teresa do Menino Jesus daSanta Face, que morreu em Lisieux no
dia 30 de setembro de 1897.

A priora de Lisieux dispunha, efetivamente, de uma documentação de


primeira mão: os três manuscritos autobiográficos, escritos pela mesma Teresa. Lá para
o final da sua vida, Teresa tinha pressentido que depois da sua morte a leitura destas
páginas faria bem; as almas compreenderiam que épossível chegar à santidade por um
"pequeno caminho" muito simples. Teresa confiou à madre Inês o trabalho de edição,
dizendo-lhe que não vacilasse na correção do seu texto.

Depois da morte da sua irmã mais nova, a madre Inês julgou-se na obrigação de
levar a cabo a ordem. Divide os três manuscritos em onze capítulos e deles compõe o
duodécimo, no qual refere os últimos meses e a morte de Teresa. O livro completa-se com
alguns extratos das suas cartas, com um bomnúmero das suas poesias e com
testemunhos  das suas noviças.

No dia 29 de outubro, a madre Maria de Gonzaga escreve ao Pe.


Godofredo Madelaine, premonstratense, prior da abadia de Mondaye e grande amigo
do Carmelo, para lhe anunciar o envio do manuscrito de Teresa, encarregando-o de o
corrigir ou de o fazer corrigir.

O Pe. Madelaine ficou entusiasmado. No dia 30 de janeiro de 1898, quatro


meses depois da morte de Teresa, escreve:  "Continuo a ler o delicioso manuscrito:
quão fresco, natural e edificante é tudo isto! Espero remetê-lo a fins de fevereiro com
as observações que julgo me serem permitidas fazer. Se uso este termo, é porque
considero esta autobiografia como uma relíquia". O testemunho era importante, porque
o Pe. Madelaine, que algum tempo depois seria eleito abade da abadia de Frigolet,
não era um qualquer. Foi ele quem fez a proposta de intitular a "circular" de Teresa:
História de uma alma, título sugerido pelo próprio texto de Teresa ao princípio do seu
manuscrito. Por outro lado, o título não era nada original, pois aparece na capa de muitas
obras da época. Foi também o P Madelaine quem se encarregou de conseguir o
imprimatur do bispo.

Quando monsenhor Hugonin ouve o Pe. Madelaine falar dos manuscritos


deixados pela Irmã Teresa do Menino Jesus, dá-se perfeitamente conta de quem se trata:
daquela Teresa Martin que tinha ido vê-lo a Bayeux, uns dez anos antes, para alcançar a
licença de entrar muito nova no Carmelo. A primeira reação do bispo não foi muito
animadora: "Padre — disse-lhe — desconfie da imaginação das mulheres!". Mas, como
o Pe. Madelaine insiste sobre o valor das páginas, o bispo acaba por dizer: "Faça-me, pois,
uma cópia". No dia 7 de março seguinte, por ocasião de uma reunião acadêmica, na festa
de São Tomás de Aquino, que reúne um grande n ú m e r o d e s a c e r d o t e s à v o l t a
d o b i s p o , o   Pe. Madelaine apresenta a sua cópia: monsenhor Hugonin concede o
imprimatur... e morre dois meses depois.

A obra aparece no dia 30 de setembro de 1898, exatamente una ano depois da


morte de Teresa, com dois mil exemplares. O Sr. Guérin reviu as provas e financiou a
edição. "Como se venderá tudo isso? Estes volumes vão ficar-nos nas mãos", dizia uma
carmelita de Lisieux.

Acolhimento inesperado

Contra toda a previsão, a obra esgotou-se rapidamente. Difundida essencialmente


nos conventos, suscitou em todos os lados um interesse muito vivo. Muitos leigos
começaram a lê-la e ficaram impressionados. Muitos sacerdotes confessam que aquela
leitura lhes fez melhor que todos os retiros que até então tinham feito. No seminário maior
de Bayeux, a maior parte dos alunos "devoram" o livro; alguns, no entanto, acham o seu
estilo demasiado afetado.

Pelo contrário, muitos contemplativos — homens que desconfiam instintivamente


de toda a afetação — manifestarão a sua admiração pela "pequena Teresa". Na
Grande Cartuxa, os religiosos "disputam" os dois exemplares da História de uma
alma, mesmo aquele que passa por ser "o teólogo mais sábio da Ordem".

Desde 1899, chegam a Lisieux cartas da Polônia, Inglaterra e Espanha, a pedir a


tradução para os seus respectivos países. O abade Teil, que está a trabalhar na
beatificação das carmelitas de Compiègne, mortas na guilhotina em 1794, leu a História
de uma alma a partir de 1899 e fala dela com elogios.

É evidente que nem todos participam deste entusiasmo. Alguns Carmelos


exprimem as suas reticências: "Essa religiosa tão nova não deveria afirmar de um modo
tão absoluto a sua opinião sobre a perfeição. A idade e a experiência, sem dúvida
alguma, tê-la-iam mudado". Uma priora pensa que a jovem carmelita, ao falar das suas
graças, se exprimia com simplicidade, mas que também se poderia descobrir nela algum
orgulho. Outra considerava a História muito pouco "viril". E um carmelita italiano
demasiado "infantil".

Costuma pensar-se sempre em publicar imediatamente uma nova edição. No


dia 24 de maio de 1899, o novo bispo de Bayeux, monsenhor Amette, que pouco
depois será bispo auxiliar, depois arcebispo de Paris, autorizava a reedição da História
de uma alma (4 000 exemplares). A partir de então, que iniciar cada ano a operação. Em
1900 sai a terceira edição, de 2 000 exemplares; em 1901, a quarta, de 2 000; em
1902, a quinta, de 3 000; em 1903, a sexta, de 3 000... e, a partir de então, as
edições não cessam de aumentar e multiplicam-se as traduções.

Para colocar a História de uma alma ao alcance de todos os bolsos, é feita uma
edição popular que apareceu, em 1902, com o título de Uma rosa desfolhada. Teve-se a
feliz idéia de fazer um resumo da sua vida e da sua doutrina. É o Chamamento às
almas pequenas, aparecido pela primeira vez em 1904. Mais tarde, uma Vida
abreviada, que contém um resumo ainda mais breve (primeira edição em 1913), e uma
seleção de Pensamentos (primeira edição em 1915) permitirá meditar os diferentes
aspectos da sua espiritualidade.

Alguns números serão suficientes para mostrar a popularidade de que


rapidamente gozou a "irmãzinha Teresa". Da sua morte à sua canonização, isto é, num
espaço inferior a dezesseis anos, foram editados:
400 000 exemplares da História de uma alma (em francês); o livro foi
traduzido numas cinqüenta línguas;

800 000 exemplares do Chamamento às almas pequenas;

300 000 exemplares da Vida abreviada;

500 000 exemplares de Pensamentos.

Mencionemos, de passagem, o êxito das estampas e relíquias. De 1898 a


1915, o Carmelo distribuiu 8 046 000 estampas de retratos e 1 124 000 bolsinhas de
recordação.

Outra estatística, não menos sugestiva, refere-se à correspondência. Todos os


dias chegam a Lisieux cartas de todo o mundo a pedir às carmelitas que rezem a
Teresinha por esta ou aquela intenção: a conversão ou a cura de uma criança, de um
marido, a reconciliação de uma família, etc. Coisa curiosa, Teresa lá para o final da
sua vida, tinha previsto este tipo de ação "póstuma". No dia 9 de junho de 1897, depois
de ter feito a célebre promessa de que depois da sua morte haveria uma chuva de rosas,
acrescenta: "Depois da minha morte ireis à caixa do correio e ali encontrareis
consolações".

Tinha começado com algumas cartas diárias, mas o movimento acelerou-se


progressivamente. Em 1909, a média de cartas é de vinte e três por dia. Nos anos
seguintes, a onda diária passará a duzentas e chegará até quatrocentas em 1914. Em
1923-1925, anos da beatificação e canonização de Teresa, o número de cartas foi de
quinhentas a mil por dia. Atualmente ainda, chega uma média de cinqüenta cartas por
dia ao Carmelo ou à Direção de peregrinações.

Primeiras peregrinações a seu túmulo e primeiros milagres

A sepultura de Teresa encontrava-se a caminho dos Champs-Rémouleux,


como então se chamava ao cemitério da cidade. As carmelitas queriam sepultá-la no
fundo do seu quintal, no pequeno cemitério que sempre existiu ali. Mas, nos fins do
século passado, estas sepulturas "dentro da cidade" já não eram autorizadas, a não ser
num caso totalmente excepcional. O Carmelo vira-se obrigado, em conseqüência, a
comprar uma sepultura no cemitério de Lisieux. Ao comprovar que o terreno era demasiado
pequeno e que a morte de Teresa era iminente, o Sr. Guérin comprou outro terreno
cercado, o qual ainda hoje serve para a sepultura das carmelitas. Teresa foi, pois, a
primeira a ser ali enterrada.

Como o Sr. Guérin se encontrava doente no dia do funeral de Teresa (segunda-


feira, dia 4 de outubro de 1897), foi o Sr.  Maudelonde, cunhado da Sra. Guérin,
quem presidiu o séqüito até ao cemitério. Leônia acompanhou-o.

Em breve, e depois da aparição da História de uma alma, visita-se cada


vez mais a sepultura de Teresa. Rapidamente, começaram a levar do cemitério uma e
outra relíquia, um pedaço de erva, uma flor ou um pouco de terra.
A partir de 1899, começam a pedir relíquias ao Carmelo de Lisieux: pedaços
das suas roupas ou uma parte dos seus cabelos. E eis que, quase de todas as partes, chegam
a Lisieux numerosos testemunhos de curas que se realizavam durante uma novena
em honra da "Rainhazinha", curas que acontecem habitualmente no contato do
doente com uma relíquia da carmelita.

Para o processo de beatificação (1903-1909)

Apesar da excepcional difusão da  História de uma alma e da confiança


que rapidamente se tem na intercessão da "irmãzinha Teresa", ninguém pensava, nos
primeiros anos a seguir à sua morte, que um dia seria canonizada.

Parece que foi um jovem sacerdote escocês, ordenado em 1897, o P. Thomas


Taylor, o primeiro a manifestar esta idéia. Depois de ter lido a Florzinha de Jesus, foi
conquistado pela jovem carmelita francesa. Ao voltar de uma peregrinação a
Lourdes, passa por Lisieux nos dias 15 e 16 de maio de 1903 e visita, no locutório do
Carmelo, as três irmãs de Teresa (Maria, Paulina e Celina), a sua prima Maria
Guérin e a madre Maria de Gonzaga. Diz-lhes, com bons modos, que se havia de
começar a dar passos em vista da abertura de um Processo. A resposta da priora não
se fez esperar: "Então, Padre, quantas carmelitas haveria que canonizar!".

Onda crescente de petições

Pouco a pouco, no entanto, a idéia de um Processo de beatificação vai abrindo


caminho. Chegam a Lisieux pedidos de quase todas as partes a reclamar a abertura
da causa da "Florzinha", como é chamada nos países anglófonos. No Canadá torna-
se extremamente popular. Na Bélgica, na Itália, Espanha, na América do Sul,
sobretudo no Brasil, veneram-na como uma santa.

No dia 6 de junho de 1905, Pio X promulgava o breve de beatificação das


dezesseis carmelitas de Compiègne. Na mesma tarde, o Carmelo de Lisieux recebia do
seminário de Tournai (Bélgica) um pedido, seguido de cinqüenta e três assinaturas, a pedir
"a introdução, a continuação e o êxito da causada serva de Deus, Irmã Teresa do
Menino Jesus". As carmelitas não podem deixar de ver um sinal nesta coincidência.
Parece-lhes que as mártires de Compiègne lhes pedem para trabalharem na
glorificação da sua irmãzinha!

O que não sabiam as carmelitas de  Lisieux de então era que mais tarde
Teresa teria, para que a sua própria causa avançasse, a mesma pessoa que se ocupava do
Processo de beatificação das carmelitas de Compiègne, monsenhor Roger de Teil,
distinto canonista. Em fevereiro de 1909, seránomeado vice-postulador da sua causa.

Por uma coincidência igualmente curiosa, o abade de Teil tinha ido em setembro
de1896 ao Carmelo de Lisieux dar uma conferência sobre as carmelitas de
Compiègne. Conferência de que Teresa tinha gostado muito: reavivara no seu coração
o desejo do martírio e, ao sair do locutório, tinha prognosticado que com um
postulador assim as carmelitas de Compiègne iam ser beatificadas muito em breve.
Em 1894 tinha participado com alegria na festa do seu centenário e, enquanto
confeccionava bandeiras em sua honra, confiara à Irmã Teresa de Santo Agostinho:
"Que felicidade se nós tivéssemos a mesma sorte, a mesma graça!".
Mas o que causa admiração nas carmelitas em 1905 é o número de postulantes
que, vivamente impressionadas pela leitura da História de uma alma, solicitam a sua
entrada no Carmelo de Lisieux. No dia 1º. de março, a Irmã Maria do Sagrado
Coração escreve a Leônia: "Uma jovem de dezesseis anos de muito boa família tem o
consentimento dos seus pais para entrar no Carmelo no mês de Agosto. Vem do outro
extremo da França, de Metz, atraída por Teresa do Menino Jesus. Mas necessita,
como o necessitou Teresa, do consentimento do bispo que a acha um pouco nova. Esta
semana, três jovens italianas fizeram o mesmo pedido à nossa Madre, mas
compreendes que éimpossível contentar a toda a gente". Como Teresa de Ávila tinha
estabelecido o número limitado de religiosas para as suas comunidades, tiveram,
efetivamente, que mandar muitas para outros Carmelos.

Assombro e reticências

A crescente popularidade da "sua"  Teresinha não subiu à cabeça das


carmelitas de Lisieux. Acreditavam tão pouco na sua futura canonização que nem
sequer pensavam conservar a correspondência à qual apenas tentavam responder de
forma não muito estereotipada. Foi o monsenhor de Teil quem, em 1908, as
aconselhou a guardarem a dita correspondência. Tal argumento mostraria só por si que o
Processo de Teresa não foi um "assunto" promovido pelo Carmelo de Lisieux.

A vida do convento continua tranqüila e fervorosa. As carmelitas, felizes por


comprovarem a influência que a leitura do seu manuscrito exerce, contudo, não
imaginam que um dia Teresa estará "nos altares". As suas próprias irmãs não acreditam!
Mesmo em 1910, quando a superiora da Visitação de Caen advirta, no jardim do
convento, a Leônia, Irmã de Teresa, que lhe parecia altamente improvável um Processo de
canonização, continuou a estender a roupa branca da lavagem, enquanto gritava:
"Teresa! Era muito simpática. Mas santa! No entanto...!".

O tio de Teresa, o Sr. Guérin, opunha-se totalmente, quanto a ele se refere, à


perspectiva de um Processo para canonizar a sua sobrinha. Anteriormente tinha-se
ocupado com gosto da edição dos seus manuscritos e tinha-se alegrado com a sua
difusão, mas agora mostra-se contrário à idéia de um processo no Vaticano! Tinha uma
idéia completamente distinta da santidade. Via-a aureolada de carismas
extraordinários e acompanhada de penitências sensacionais. Se se canonizasse a Teresa,
pensava, haveria que canonizar muitíssimas mais, incluída a sua filha Maria que, também
ela, acabava demorrer de tuberculose no Carmelo, após gravíssimos sofrimentos (14 de
abril de 1905). Depois, quando o eco dos primeiros milagres "teresianos" começa a saltar
as páginas dos jornais, o Sr. Guérin experimentará uma séria irritação. Inclusive em
algum momento teve a idéia de sair de Lisieux.

Estava então vacante a sede de Lisieux. Monsenhor Amette, que acabava de ir


para Paris, não tinha sido muito partidário quando falaram com ele para introduzir a
causa: "É necessário tempo, homens e dinheiro", respondera com evasivas.
Monsenhor Lemonnier, o novo bispo, nomeado no dia 13 de julho de 1906, não era
mais diligente que o seu predecessor, apesar de a madre Inês ser então priora no
Carmelo: não via, realmente, na vida daquela jovem religiosa o que pudesse justificar
semelhante "pretensão" e suspeita, pura e simplesmente, que as "irmãs Martin" querem
que a mais nova da família seja canonizada. Apesar disso, no dia 15 de outubro de 1907,
solicita às religiosas que tinham conhecido a Irmã Teresa do Menino Jesus que
escrevam as suas recordações e as enviem ao seu capelão, o Pe. Pitrou.

Em 1907, o Pe. Eugénio Prévost ia frequentemente ao Vaticano, pois o papa


tinha lhe pedido que fundasse uma casa em Roma. Pede, pois, a Lisieux que lhe
preparem dois exemplares da História de uma alma: um, encadernado em couro
branco, para o papa; outro, em vermelho, para o cardeal Merry del Val, secretário de
Estado. No dia 15 de março, foi entregue o exemplar ao papa que, nesse mesmo dia, mal
presta atenção a quem mais tarde chamará "a santa maior dos tempos modernos!".

A causa sairá do impasse devido à eleição de uma nova priora no Carmelo


de Lisieux: a madre Maria dos Anjos do  Menino Jesus, eleita no dia 8 de maio
de 1908, em substituição da madre Inês, que acabava o seu segundo mandato. No
mesmo dia da sua eleição, a madre Maria dos Anjos escreve a monsenhor Lemonnier
para lhe solicitar a abertura da causa. Apesar de Teresa já gozar de fama mundial,
parece que o bispo continua pouco diligente em conceder a autorização. Porém, no dia 26
de maio, produz-se um milagre bastante espetacular em Lisieux: a cura instantânea de
uma menina cega de quatro anos, a quem a sua mãe no dia anterior tinha levado ao
túmulo de Teresa. Milagre que produz um grande reboliço em Lisieux, porque esta
menina, Regina Fouquet, é de ambiente modesto e a idade da menina não dá lugar para
suspeitas. O doutor La Néele, primo de Teresa por matrimônio, não favorável antes à
introdução da causa, viu-se obrigado a comprovar a cura. Assinará o certificado médico
no dia 7 de dezembro. Compreende-se que a Irmã Maria da Trindade pudesse escrever
no dia 12 de agosto: "o seu culto estendeu-se por todo o mundo; de todos os lados
chegamabundantes cartas e pedidos".

Monsenhor Lemonnier já não pode fazer outra coisa senão solicitar de Roma a


abertura de um Processo. Em janeiro de 1909, admite a eleição de um postulador, o
Pe. Rodrigo, postulador geral das causas do Carmelo. Nomeia monsenhor de Teil
como vice-postulador...

As grandes etapas da glorificação (1909-1925)

O Processo põe-se em marcha. Daqui em diante ninguém o poderá parar.


Começado em 1909, acabará em 1925, com a canonização. Para quem não conhecer a
habitual prudência da Igreja em matéria de canonização, este tempo de dezesseis anos
pode parecer-lhe muito longo. De fato, o Processo de Teresa foi levado a cabo
num tempo recorde. Quais as razões desta excepcional rapidez?

Em primeiro lugar, Teresa foi literalmente canonizada pelo povo de Deus, muito


antes de o ser pela Igreja. Esta não fez senão reconhecer oficialmente a veneração que
em todo o mundo lhe era rendida, alguns anos somente depois da sua morte.
Compreende-se que o cardeal Vico, prefeito da  Congregação dos Ritos, chegasse a
dizer em 1919, na intimidade da clausura de Lisieux: "Temos de nos apressar a glorificar a
santinha, se não quisermos que a voz dos povos se nos adiante". Acrescentava: "Se
estivéssemos nos primitivos tempos da Igreja, em que as beatificações dos servos de Deus
eram feitas por aclamação, há muito tempo que a irmãzinha estaria nos altares". Deste
modo, Teresa desmentia clamorosamente o que Renan predizia em 1858, quando
escrevia: "A santidade é um gênero de poesia acabado, como tantos outros. Haverá
santos canonizados por Roma, não os haverá canonizados pelo povo. É algo que causa
tristeza o aspecto doentio, apoucado, mesquinho, insignificante dos santos modernos".

Porém, é igualmente falso pensar que a rapidez da canonização de Teresa só


se explica pelo fervor popular.

Os três papas que acompanharam o Processo estiveram firmemente


convencidos da santidade de Teresa e da importância do "pequeno caminho" que ela
queria oferecer ao mundo.

Assim é como, por privilégio especial, Bento XV dispensou Teresa do espaço de


cinqüenta anos então exigido normalmente entre a morte de um "servo" ou de uma
"serva" de Deus e a abertura do debate sobre a heroicidade das suas virtudes. O mesmo
pontífice julgou inútil um novo processo sobre a reputação de santidade de Teresa,
demasiado evidente para que fosse necessário demonstrá-la.

Os milagres, enfim, eram tão abundantes que o vice-postulador da causa teve


realmente de sobra por onde escolher para que fossem estudadas de perto as curas
necessárias para a beatificação e as outras duas necessárias para a canonização. Além
disso, há a "chuva de rosas", prometida por Teresa. Os favores de toda a espécie
alcançados pela intercessão da "irmãzinha Teresa" serão tão numerosos que chegarão
a ser publicados sucessivamente sete volumes, intitulados Chuva de rosas, para
referir, não a totalidade, mas sim a parte mais espetacular das conversões e dos
milagres realizados pela célebre "semeadora de rosas". A primeira Chuva de rosas
tinha sido incluída como apêndice no final da História de uma alma, na edição de 1907.
Os sete volumes publicados de 1907 a 1925 formam um total de mais de 3 000 páginas,
em impressão compacta, e deram lugar à venda de 400 000 exemplares.

O desenvolvimento das peregrinações

Os milagres multiplicam-se e são cada vez mais numerosos os peregrinos que


vão rezar na sepultura de Teresa. O silêncio do caminho que sobe para o cemitério
de Lisieux e o panorama que de cima se divisa favoreciam, por outro lado, a oração
dos peregrinos. Chegados ao terreno cercado dascarmelitas, muitos deles rezavam com
os braços em cruz. E, como se o túmulo fosse uma "caixa de correio do paraíso", ali
deixavam pedidos, cartões de visita, fotografias, para que recordassem a quem já chamavam
a "santa". Levavam para ali flores, mas também ex-votos: muletas, bastões, aparelhos de toda
a espécie, para testemunhar uma cura obtida pela sua intercessão.

No dia 24 de agosto de 1913, organizou-se uma importante peregrinação militar


ao túmulo de Teresa: prelúdio do papel especialissimo que os soldados iam ter durante
a guerra de 1914-1918 no desenvolvimento da devoção à "irmãzinha Teresa".

O cemitério de Lisieux ia-se convertendo cada vez mais numa "colina inspirada",


conforme o título que um jornalista de  Démocratie dava, no dia 13 de outubro
de 1913, ao artigo que dedicava a estas peregrinações.

No momento em que este artigo aparecia, já se tinha procedido a uma primeira


exumação do corpo de Teresa. No dia 6 de setembro de 1910, efetivamente, tinha-
se realizado um primeiro reconhecimento oficial dos seus restos na presença de quinhentas
pessoas. Depois de permanecer treze anos na cova, apenas são encontrados restos de
ossos cobertos por pedaços de tela.

O novo caixão foi colocado desta vez num jazigo de alvenaria, a dois metros de
profundidade.

O Processo

Se Teresa cumpria abundantemente a promessa que fizera de passar o seu céu a


trabalhar "na terra", os que tomaram em mãos o seu Processo também não
descansavam: chegaram, rapidamente, à convicção de que, sob aspectos totalmente
simples, Teresa era realmente uma santa.

O promotor de justiça (chamado normalmente advogado do diabo), Teófilo


Dubosq, sulpiciano, superior do seminário de  Bayeux, foi especialmente eficaz.
Nomeado "promotor da fé" em julho de 1910 por monsenhor Lemonnier, foi
imediatamente conquistado por Teresa, e esmerou-se em apresentar um sumário ao
mesmo tempo claro e completo. Os especialistas estimam que, sob este ponto de vista, o
Processo de Teresa foi um modelo do gênero.

Quanto ao vice-postulador, monsenhor de Teil (que já não verá na terra o


resultado definitivo do seu trabalho, pois morreu um ano antes da beatificação de
Teresa), era um trabalhador incansável, ao mesmo tempo que um postulador cheio de
sutileza e de humor. Teve, sobretudo, a inteligência de apresentar a Pio X argumentos
capazes de o impressionar. Durante a audiência do dia 29 de outubro de 1910, leu a
carta que Teresa tinha escrito a Maria Guérin, sua prima, no dia 30 de maio de 1889,
para a animar a comungar regularmente, apesar dos seus escrúpulos: "Jesus está
no tabernáculo expressamente para ti, para ti só, arde com o desejo de entrar no teu
coração (...) O que ofende a Jesus, o que Lhe fere o coração é a falta de confiança!...
Irmãzinha querida, comunga muitas vezes, muitas vezes... é esse o único remédio se
queres curar-te, não foi sem razão que Jesus pôs essa atração na suaalma". Um texto tão
eucarístico tinha que agradar ao papa que acabava de promulgar o decreto sobre a
comunhão freqüente.

Em 1910-1911 teve lugar o Processo informativo, chamado "ordinário", porque


se leva a cabo sob a autoridade do bispo de Bayeux, monsenhor Lemonnier,
"Ordinário" do lugar. Trinta e sete testemunhas depõem em Bayeux ou em Lisieux sobre
a vida da Irmã Teresa, das quais nove carmelitas que viveram com ela.

Em 1915-1917, também em Bayeux e Lisieux, realiza-se o processo


"apostólico", sob a autoridade da Santa Sé apostólica.

No dia 9 de agosto de 1917 procede-se a uma segunda exumação do corpo de


Teresa. A cerimônia é efetuada perante uma multidão calculada em 1 500 pessoas. Num
local reservado, dois médicos, sob juramento, identificam os ossos do corpo de Teresa.

A Congregação dos Ritos, em Roma, não deixava de receber cartas chegadas de todo


o mundo, a pedir a glorificação por parte da Igreja da irmãzinha Teresa. Já não
havia dúvida de que a sua beatificação seria muito em breve.
Efetivamente, no dia 14 de agosto de1921, Bento XV promulgava o
Decreto sobre a heroicidade das virtudes da  "Venerável" Irmã Teresa do Menino
Jesus. Por esta ocasião, pronunciou um admirável discurso sobre a "Infância espiritual",
no qual realçava os traços essenciais da doutrina evangélica, à qual o Senhor queria
chamar-nos por meio de Teresa.

No ano de 1922 viu o processo relativo ao exame das duas curas obtidas por
intercessão de Teresa, e propostas à Congregação dos Ritos em vista da sua
beatificação.

No dia 26 de março de 1923 foi a transladação solene. Quem esteve nesse dia
em Lisieux ficou com uma recordação inesquecível. No cemitério fechado ao público,
trabalhavam dois operários, sob a vigilância do bispo e das autoridades civis, para tirar o
caixão da cova. Fora, milhares de peregrinos rezavam o Terço. Eis que o cortejo se põe
em andamento: sob um sol esplêndido, uma longa fila de peregrinos — uns cinqüenta
mil — estende-se ao longo de dois quilômetros. Sem cânticos, sem instrumentos
musicais, pois Teresa ainda não estava beatificada. Apenas a recitação do terço
alterna com a dos salmos.

Beatificação e canonização de Teresa

A última glorificação de Teresa estava reservada ao papa Pio XI. Dava


graças a Deus por ter colocado esta "Estrela" na aurora do seu pontificado: o seu retrato,
as suas relíquias não abandonavam o seu escritório de trabalho.

No dia 11 de fevereiro de 1923 assinava o decreto que declarava autênticos os


dois milagres que foram selecionados em vista da beatificação de Teresa e, nesta
ocasião, dizia que a carmelita de Lisieux era um  "milagre de virtudes" e um
"prodígio de milagres".

No dia 29 de abril presidia às cerimônias da beatificação. "O mais belo dia do


meu pontificado", dirá pela tarde aos seus familiares.

Finalmente, no dia 17 de maio de 1925, rodeado de vinte e três cardeais e de


duzentos e cinqüenta bispos, procedia à canonização de Teresa. Quinhentos mil fiéis
tinham ido a Roma por esta ocasião, mas apenas cinqüenta mil puderam entrar na
basílica de São Pedro e ouvir o papa pronunciar a fórmula solene que declarava
que doravante se podia chamar à humilde car melita de Lisieux "Santa Teresa do
Menino Jesus".

Mal estas palavras saíram dos lábios do Sumo Pontífice, quando


instantaneamente, pela primeira vez em semelhante circunstância, ao recolhimento
profundo da multidão sucederam aplausos entusiastas e prolongados. E enquanto as
bandas de música colocadas na cúpula ressoam, os sinos de São Pedro começam a tocar,
aos quais, em carrilhão de festa, respondem todos os de Roma.

Na homilia da missa, o papa exaltou a infância espiritual que Teresa tinha


ensinado "com palavras e exemplos", e convidou os cristãos a admirá-la a fim de que,
por sua vez, se tornem "crianças", no sentido evangélico do termo. "Se este caminho de
infância espiritual se generalizasse — concluía o papa —, quem não vê que facilmente se
realizaria a reforma da sociedade humana".

Por outro lado, Pio XI não cessou em toda a sua vida de confiar a Teresa as suas
grandes iniciativas apostólicas, especialmente o lançamento da Ação católica e o
desenvolvimento das missões.

Expansão crescente sem cessar

Se os cristãos não esperaram a canonização de Teresa para ir em peregrinação à sua


sepultura, é evidente que a partir de 1925 acudiram cada vez mais a rezar a Santa
Teresa do Menino Jesus.

No dia 14 de dezembro de 1927, Pio XI proclamava padroeira principal das


missões, assim como a São Francisco Xavier, a esta humilde carmelita oculta. Se a tensão
internacional não o impedisse, o mesmo papa teria ido em julho de 1937 inaugurar a
basílica de Lisieux. Teve que contentar-se em enviar como legado o cardeal Pacelli.

Quando este chegou a papa, com o nome de Pio XII, proclamou Teresa
"segunda padroeira da França, bem como a Santa Joana d'Arc". A proclamação teve
lugar no dia 3 de maio de 1944, um mês antes do desembarque das tropas aliadas nas
terras da Normandia.

Alguns números bastarão para sugerir a expansão que Teresa exerce na Igreja
do século XX. Mais de setenta seminários e um grande número de escolas têm-na por
padroeira. Foram-lhe dedicadas mais de mil e setecentas igrejas ou capelas,
repartidas pelas cinco partes do mundo. Entre elas, cinco igrejas catedrais: Niamey
(Níger), Sokodé (Togo), Bouaké (Costa do Marfim), Garoua (Camerum) e Urawa
(Japão), e cinco basílicas menores: Rio de Janeiro (Brasil), Lisieux, Anzio, La
Bombetta (Veneza) e Choubrah (Egipto). Este último edifício foi uma oferta dos
muçulmanos do Cairo à "santinha de Alá", para lhe agradecer todos os favores recebidos.

Uma cinquentena de congregações religiosas, em todo o mundo, acolheu-se ao


seu patronato. Três destas foram fundadas pelo padre Gabriel Martin, missionário
vandeano, a quem Teresa conquistou a partir de 1908 quando lia o Chamamento às
almas pequenas e que foi em Lisieux, em 1923 e 1925, o panegirista das festas de
beatificação e canonização. Fundou, em 1928, a Congregação das Missionárias de la
Plaine, cuja finalidade é trabalhar na evangelização das terras planas e pantanosas
vandeanas; em 1933, a Congregação das Oblatas de Santa Teresa — as quais se
encarregam de acolher os peregrinos na casa natal de Alençon, nos  Buissonnets
e na casa de retiros "Santa Teresa" de Lisieux — e, em 1947, a  Congregação
das Missionárias de Santa Teresa.

Indicamos, finalmente, a existência de um instituto secular teresiano, Deus


Caritas, fundado pelo R. Puaud, capelão de peregrinações, e cujos estatutos foram
aprovados por Roma em 1979. Os seus membros (centenas deles na atualidade)
esforçam-se por viver o Evangelho no espírito de Santa Teresa, vivendo como
leigos no meio do mundo.
Entre as obras que desfrutam muito especialmente do patronato de Santa
Teresa, indicamos a obra dos Órfãos Aprendizes de Auteuil (Paris), à qual o Pe. Daniel
Brottier consagrou os últimos doze anos da sua vida. Uma das noviças de Teresa, a
Irmã Maria da Trindade, falava frequentemente com a sua mestra de noviças da Obra
fundada no século passado pelo abade Roussel a serviço das crianças pobres da
capital: "a Obra da Primeira Comunhão", convertida em breve na "Obra dos
Aprendizes". O pai desta noviça, Vítor Castel, professor jubilado, viajava efetivamente
pela França a fim de dar a conhecer a Obra do abade Roussel. Quando Maria Luísa
Castel recebia no Carmelo carta do seu pai, Teresa era posta ao corrente imediatamente
das dificuldades da Obra e dos seus êxitos e não deixava de rezar por estes queridos
órfãos.

Em 1923, os superiores do Pe. Brottier, da Congregação do Espírito Santo,


encarregaram-no daquela Obra. O antigo capelão militar tinha já uma profunda devoção
à pequena carmelita. A partir da sua nomeação em Aureuil, decide construir uma
capela em honra de Teresa que acaba de ser beatificada alguns meses antes, a fim de
que os Órfãos pudessem rezar à sua "Mãezinha" num santuário digno dela. Pois bem um
dia toma como seu ajudante a Joaquim León Castel — um dos irmãos da Irmã
Maria da Trindade — ao qual, vinte e cinco anos antes, Teresa tinha pedido frequentemente
que trabalhasse pelo crescimento da Obra. Que alegria! A seguir, propõe à Irmã Maria
da Trindade que seja a madrinha espiritual dos seus Órfãos e pede a Teresa que faça
chover sobre as suas casas "não rosas, mas notas do banco"! A confiança do Pe. Brottier
não é decepcionada: multiplicam-se as doações e a Obra cresce consideravelmente...

O Pe. Brottier foi beatificado pelo papa João Paulo II no dia 25 de novembro


de 1984, ao mesmo tempo que outra discípula do "pequeno Caminho", Elisabete da
Trindade, carmelita de Dijon.

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O LOCUTÓRIO DE TERESA

RAYMOND ZAMBELLI

No coração de numerosos peregrinos de Lisieux há um secreto desejo de entrar


um dia no Carmelo deTeresa. Tal desejo, embora legítimo, raramente é atendido. Foi
preciso esperar pelo centésimo quinquagésimo aniversário da fundação deste Carmelo
para que de modo excepcional se abrissem as portas da comunidade a umas centenas
de convidados: isto aconteceu em 1988.

No entanto, há um lugar neste Carmelo onde o olhar de todo o peregrino


entra na clausura. É o lugar onde repousa Teresa, o lugar tão venerado do seu sepulcro.

Gosto desse lugar por tudo o que me oferece ver. Está, em primeiro lugar,
aquela grade que simbolicamente marca a inevitável distância entre Teresa e
nós. Distância que se impõe quando se mede a diferençaentre a santidade da sua vida e
cada unia das nossas pobres existências. Distância que, não obstante, nem afasta nem
desanima ninguém. Distância muito necessária que, a seu modo, recorda o
indispensável respeito que deveria envolver todo o encontro com os seres humanos.
Este lugar bendito é, de fato um locutório. O locutório oferece-nos a
possibilidade de estar a qualquer hora do dia com quem viemos visitar; que nos
espera, nos escuta e nos responde.

Ah, se estas grades pudesse falar! Quantas orações, quantas preces, quantas
confidências! Quantosnomes ditos em voz baixa, quantos seres
queridos recomendados diariamente!

Aqui os corações libertam-se, as almas abrem-se. Aqui Teresa recebe as nossos


segredas e as nossas promessas. Aqui Teresa responde-nos com palavras que
iluminam, apaziguam, tranqüilizam e animam.

Locutório aprazível, silencioso e benfeitor. Verdadeiro santuário onde a


história da nossa alma secomunica sem dor com quem nos revelou a sua. Aqui,
diariamente se escreve esta outra história da peregrinação de Lisieux que nunca será
impressa, porque é a mais secreta, a mais profunda, a mais misteriosa, numa palavra, a
mais incomunicável.

Está a grade, a estátua jacente e as flores, essas braçadas de flores. À sua


maneira, também falam eexalam perfumes que se chamam carinho, admiração,
agradecimento ...

Esta linguagem das flores da sepultura de Teresa é a linguagem amante de


tantos fiéis por quem declarava um mês antes de morrer: "Gosto muito de flores, de
rosas, as flores vermelhas e as belas margaridas rosadas" (DE 28.8.7).

É igualmente a linguagem evangélica do perfume de Betânia que se derrama


generosamente e que fala da lógica mais pura de Teresa: "Ah! sem contar eu dou-me
bem segura / De que, quando se ama, não se conta.... " (PN 17, 5, Viver de amor).

Nos tempos de Teresa havia sempre uma terceira pessoa no locutório. Bastava


levantar os olhos para aidentificar na pessoa da Virgem Maria, representada com os
traços da autêntica e célebre estátua da Virgem do Sorriso. Deste modo, no
locutório do Carmelo de Lisieux são duas as mulheres que, na realidade, nos acolhem,
nos escutam e nos respondem...

A BASÍLICA DE LISIEUX

Pierre Descouvemont

Foi construída num tempo recorde, graças à generosidade de milhares de ofertas


de todo o mundo. Iniciada em 1929, foi benzida solenemente no dia 11 de julho de 1937
pelo cardeal Pacelli, legado do Papa Pio XI e futuro Papa Pio XII.

O arquiteto Luís Maria Cordonnier escolheu um estilo neobizantino,


semelhante ao da basílica do Sagrado Coração em Montmartre (Paris). Este arquiteto,
de fama internacional, ganhava, havia quarenta anos, o primeiro lugar em
inumeráveis concursos:

1885: Nova Bolsa de Amsterdam.


1887: Laureado, fora de concurso, pela restauração da catedral de Milão (os
trabalhos não se realizaram por falta de crédito).

1894: Escola das Belas Artes no Conservatório de Música de Lille.

1900: Grande prêmio na Exposição Universal de Paris.

1906: Palácio da Paz em La Haya.

A construção da basílica tinha sido formalmente pedida por Pio XI. Em


novembro de 1929 tinha feito saber a monsenhor Suhard, novo bispo de Bayeux, que
era preciso fàzê-la "muito grande, muito bela e o mais rápido possível".

A superfície total do edifício é de 4500 m., o seu comprimento é de 95 metros e a


altura da cúpula é de outros 95 metros.

A abóbada da cripta, acabada em julho de 1932, está completamente coberta de


mosaicos, no estilo da exposição das Artes decorativas de 1925. A decoração ilustra a
vida interior de Teresa. Os mosaicos da basílica superior evocam o seu esplendor
póstumo.

Durante a segunda guerra mundial, as cento e cinqüenta bombas e ogivas


caídos à volta da basílica, bem como as bombas caídas na mesma basílica no verão de
1944, não a conseguiram destruir.

Durante os dez anos que se seguiram à libertação da cidade repararam-se os


danos causados pelos bombardeamentos e colocaram-se os mosaicos e os vitrais da
basílica superior. Terminados estes trabalhos, foi solenemente consagrada no dia 10 de
julho de 1954.

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TERESA NOS FALA:

"Ser-vos-ei mais útil no céu do que na terra"

"Meu irmão..., quando receberdes esta carta, já terei deixado a terra. O Senhor,
na sua infinita misericórdia, ter-me-á aberto o seu reino e poderei dispor dos seus tesouros
para os prodigalizar às almas que me são queridas. Ficai certo, meu Irmão, de que
a vossa Irmãzinha cumprirá as suas promessas, e de que a alma dela, liberta do peso do
invólucro mortal, voará feliz para as longínquas regiões que vós evangelizais. Ah! meu
irmão, pressinto que vos serei muito mais útil no céu do que na terra e é com alegria que
venho anunciar-vos a minha próxima entrada nessa bem-aventurada cidade, certa de que
partilhareis da minha alegria e agradecereis ao Senhor por me dar os meios de vos ajudar
mais eficazmente nas vossas obras apostólicas.

Conto não ficar inativa no Céu, o meu desejo é continuar a trabalhar pela Igreja e
pelas almas, peço isto a Deus e estou certa de que Ele me concederá. Não estão os Anjos
continuamente ocupados conosco sem nunca cessarem de ver a Face divina, de
se perderem no Oceano sem limites do Amor? Porque não havia Jesus de me permitir
que os imitasse? Meu irmão, vedes que se abandono já o campo de batalha, não é com o
desejo egoísta de descansar, o pensamento da eterna bem-aventurança a custo
faz rejubilar o meu coração, desde há muito tempo o sofrimento tomou-se o meu Céu
cá na terra e tenho verdadeiramente dificuldade em imaginar como poderei adaptar-me
num País onde a alegria reina sem qualquer sombra de tristeza. Será preciso que
Jesus transforme a minha alma e lhe dê a capacidade de gozar, de contrário não
poderei suportar as delícias eternas.

O que me impele para a Pátria dos Céus é o chamamento do Senhor, é a


esperança de O amar enfim como tanto tenho desejado e o pensamento de que O poderei
fazer amar por uma multidão de almas que hão de bendizê-1o eternamente" (Ct 254).

TERESA HOJE

Monsenhor GUY GAUCHER

O mistério continua: como é que uma carmelita tão nova, que morreu
desconhecida numa cidade de unia província francesa, pôde conquistar o mundo?

E porque é um fato, pergunta-se: há em toda a história da santidade uma


corrida tão fulgurante, "um furacão de glória" (Pio XI) tão impetuoso na história dos
dois mil anos da Igreja? E estamos apenas a cem anos da sua morte obscura, nas
angústias da tuberculose e da noite da fé! Estamos ainda longe de avaliar o impacto
prodigioso da vida e da doutrina de Santa Teresa na Igreja e no mundo. Ainda não se
fez nenhum estudo sério sobre a sua vida póstuma.

Por certo, a Igreja honrou-a com um assombroso número de títulos: padroeira


universal das missões (1927), padroeira secundária de França (1944), padroeira de
todos os noviciados, protetora da Rússia (1932), do México (1929), da Missão de
França (1941), da Ação Católica Operária (1929), etc.

Os papas São Pio X e Pio XI nomearam-na, respectivamente, "a maior santa


dos tempos modernos" e "uma palavra de Deus para o mundo". O cardeal Pacelli -
futuro papa Pio XII - "a mais ilustre taumaturga dos tempos modernos" (1938). Estes
elogios podiam alargar-se indefinidamente, à escala mundial.

O que importa hoje, cem anos depois da sua entrada na Vida, é comprovar o
impacto incessante da sua vida e da sua mensagem espiritual.

Neste tempo, em que o ceticismo e o desespero invadiram todas as camadas


das sociedades, em que as esperanças suscitadas pelas ideologias totalitárias
fracassaram, em que o mundo tecnológico já não deixa lugar à humanidade simples, a
crise da Esperança chega ao seu mais alto grau.

Os santos da Igreja apareciam como mestres da sensatez, da esperança, do


amor, porque "eles não envelhecem praticamente nunca, nunca prescrevem. São as
testemunhas perenes da juventude da Igreja. Nunca se convertem em personagens do
passado, em homens e mulheres de ontem. Pelo contrário, continuam a ser homens e
mulheres do amanhã, os homens do futuro evangélico do homem e da Igreja, as
testemunhas do mundo futuro". Não foi por casualidade que o papa João Paulo II,
primeiro peregrino a Lisieux, pronunciou estas palavras na esplanada da basílica.
Aplicam-se perfeitamente à jovem normanda.

Advertimos - em Lisieux e noutras partes - que a palavra e a oração de Teresa


liberta pessoas feridas, rompe as cadeias dos jovens drogados ou desesperados,
continua a suscitar vocações sacerdotais, religiosas e laicais. Procura gente de muito
longe, introduz-se nos meios mais inesperados, desempenha um papel importante no
ecumenismo, atrai os muçulmanos, impressiona gente estranha à fé, às vezes pela
simples visão do seu verdadeiro rosto que chegou até nós graças à fotografia.

Mais de cinqüenta congregações apostólicas em todo o mundo chamam-se de


Santa Teresa e tomaram-na como fundadora. Na França, a rápida expansão de novas
comunidades enraízam-se muitas vezes na espiritualidade desta jovem santa, cuja
fraqueza foi o trampolim para uma santidade da vida cotidiana. Teresa continua a
reunir à sua volta tanto a intelectuais de alto vôo como a pobres de todos os países.

Desde 1932, espirituais e teólogos viram que a doutrina de Santa Teresa tem
em si um caráter universal. Mais de seiscentos bispos e uma multidão de leigos
pediram então ao papa Pio XI que fosse proclamada Doutora da Igreja. Uma mulher?
Nenhuma até então tinha sido declarada Doutora. O papa não quis dar esse passo.
Paulo VI o fez em 1970, proclamando duas mulheres Doutoras da Igreja: Santa
Teresa de Ávila e Santa Catarina de Sena. O caminho estava aberto. Santa Teresa de
Lisieux escreveu: "Ah, apesar da minha pequenez, queria esclarecer as almas como
os Profetas, os Doutores. Tenho a vocação de ser Apóstolo" (Ms B 3r), "Sinto em
mim a vocação de Doutor" (Ms B 2v).

Deus escutou sempre os seus desejos. O essencial continua a ser que a sua
vida e a sua mensagem, marcadas pelo seu próprio tempo, mas superando-o
profeticamente (anunciou temas importantes do Vaticano II), são o antídoto mais
eficaz contra o desespero contemporâneo. Pode ser considerada a Doutora da
Esperança. É evidente que será uma santa importante para o século XXI, "orientada
para o porvir, testemunha do mundo futuro".

Sob a inspiração do Espírito Santo, desejou ser o Amor no coração da Igreja.


Ninguém lhe tirará esse lugar Porque "foi Jesus que lho deu" (Ms B 3v).

No dia 19 de outubro de 1997, o papa João Paulo II, durante a celebração do


dia mundial das missões, proclamou Santa Teresa Doutora da Igreja Universal e
publicou a Carta Apostólica Divini Amoris Scientia para apresentar a vida e a
mensagem da nova Doutora.

CONCLUSÃO

Anastásio, cardeal BALLESTERO ocd

As páginas deste livro têm o mérito de reconstruir com os dados da


história um caso misterioso, como o da vida e da espiritualidade de Santa
Teresa do Menino Jesus.
É a reconstrução cuidadosa, cheia de aspectos sugestivos e interessantes,
rica de interpretações autênticas e fiéis, mas uma reconstrução que, no entanto,
não pode substituir os escritos autobiográficos da Santa, mas constitui
sobretudo uma preciosa introdução aos mesmos. Uma deliciosa história de uma
humanidade jovem na qual a riqueza da família humana e a vivacidade dos
talentos pessoais encontram uma superação misteriosa e profunda nos dons da
misericórdia divina.

Esta relação entre a história e a misericórdia é um dos aspectos mais


singulares do caso de Teresa. Ela mesma é consciente disso, proclama-o com
absoluta convicção e convence com as suas reflexões, nas quais a efusão da
misericórdia divina abunda, e onde a humanidade límpida e radicalmente aberta
ao dom divino se manifesta deliciosa e exemplar: as recordações de família, a
precocidade de uma vocação, a realização da vocação no Carmelo, o encontro
no Carmelo com os mestres como Teresa de Jesus e João da Cruz, a irradiação
na vida da comunidade aproveita especialmente aos jovens, e difunde-se em
breve, depois da morte preciosa, numa efusão que irrompe na Igreja como um
autêntico milagre que deixa atônitos a todos quantos sabem ver e entender a
lógica e a coerência de Deus: é o ser o Senhor da misericórdia.

Esta Teresa do Menino Jesus, precisamente por esta insistente


proclamação da misericórdia de Deus é motivo da esperança que não é apenas
riqueza dela, mas que é dom que ela dará a quantos a conhecem e a escutam.

Escutando Teresa do Menino Jesus, a paternidade de Deus não se


converte somente em mistério de fé, mas chega a ser experiência de vida que
nunca acaba. É a filha que penetra no Coração do Pai, que se abandona ao
abraço do amor paterno tão misericordiosamente grande e tão soberanamente
generoso. Esta comunicação da paternidade de Deus, esta proclamação da
misericórdia do Salvador que Teresa vive, não é uma complacência suspeitosa
de uma afetividade infantil, mas a valorosa coerência para o mistério que a
transcende, que a envolve, que a faz vítima e, ao mesmo tempo, a cumula de
felicidade e de glória.

Neste sentido, a experiência de Teresa do Menino Jesus é um autêntico


caso evangélico. Aquele Evangelho que a Santa levava sobre o seu coração,
aquele Evangelho do qual se alimentava quase exclusivamente, é certamente a
Palavra de Deus, é certamente o mistério de Cristo Filho do Pai, Esposo das
virgens, Salvador do mundo, encarnação do amor trinitário.

Tudo isto está proclamado e faz com que a mensagem de Teresa do Menino Jesus
possa ser interpretada como uma nova evangelização na qual a substância do
Evangelho é vivificada pela experiência interior, na oração que se torna
contemplativa, no amor que se torna filial e fraterno, na generosidade da caridade que
se torna heróica e oblativa.

A este Senhor Jesus, a quem Teresa mesma se oferece, a Santa conduz as


almas que a seguem por meio da simplicidade do Evangelho, que não é infantilismo
espiritual, mas coerência com as palavras do Senhor: "Se não vos tomardes como
crianças, não entrareis no reino dos céus".
Esta palavra do Evangelho é a síntese de uma vida, de uma experiência espiritual,
de uma doutrina evangélica e é também — digamos — a vocação de uma criatura que
depois de ter vivido tudo isto na heroicidade da terra, o está a proclamar
maravilhosamente a partir da glória do céu.

Tudo isto no livro que foi escrito torna-se vivo e palpitante, torna-se límpido e
transparente, torna-se precioso para se aproximar da Santa e escutar a sua mensagem e
seguir o caminho que leva à salvação.

É um desejo que podemos pedir ao livro, é uma graça que podemos pedir à
,santa, protagonista exemplar

CRONOLOGIA DE TERESA

1873

Quinta-feira 2 de janeiro: Nascimento em  Alençon.

Sábado 4 de janeiro: Batismo na igreja de Nossa Senhora.

Sábado 15 ou domingo 16 de março: Vai para casa de uma ama, em Semallé.

1874 – um ano

Quinta-feira 2 de abril: Regresso definitivo da casa da ama para Alençon.

1875 — dois anos:

Segunda-feira 29 de março: Viaja de comboio a Le Mans com sua mamãe, para a casa da tia
visitandina.

Desde a idade de dois anos: "Eu também hei de ser religiosa" (Ms A 6r)

1877 — quatro anos:

Sábado 24 de fevereiro: Morte da sua tia visitandina.

Sexta-feira 18 a quarta-feira 23 de junho:  Peregrinação a Lourdes da Sra. Martin,


com Maria,Paulina e Leônia, para obter a sua cura.

Quarta-feira 28 de agosto: Morte da Sra Martin, às 00h. 30.

Quinta feira 15 de novembro: Mudança para os "Buissonnets" em Lisieux.

1878 — cinco anos:

De segunda-feira 17 de junho a terça-feira 2 de julho: Viagem do Sr. Martin, Maria e


Paulina a Paris, para visitarem a Exposição. Teresa é confiada à tia Guérin.

Quinta-feira 8 de agosto: Vê o mar pela primeira vez, em Trouville.


1880 — sete anos:

Princípios do ano ou fins do anterior: Primeira Confissão.

1881 — oito anos:

Segunda-feira 3 de outubro: Entrada na Abadia de Lisieux como semi-interna.

1882 — nove anos:

Segunda-feira 2 de outubro: Paulina, sua "segunda mamãe", entra no Carmelo de


Lisieux.

1883 — dez anos:

Domingo 8 de abril: Morte da sua avó Martin.

Domingo 13 de maio, Pentecostes: Cura súbita, pelo sorriso da Santíssima Virgem.

Segunda-feira 20 até 30 de agosto: Férias em Alençon.

1884 — onze anos:

Quinta-feira 8 de maio: Primeira Comunhão na Abadia. Profissão de Paulina, Irmã Inês,


no Carmelo.

Sábado 14 de junho: Confirmação por D. Hugonin, na Abadia.

Agosto: Férias em Saint-Ouen-le-Pin.

1885 — doze anos:

Domingo 3 a sexta-feira 10 de maio: Férias em Deauville.

Julho: Férias em Saint-Ouen-le-Pin.

Sábado 22 de agosto a sábado 10 (17?) de  Outubro: Viagem do Sr. Martin a


Constantinopla (sete semanas).

1886 — treze anos:

Fevereiro-março: Teresa abandona definitivamente a Abadia.

Princípios de outubro: Viagem com o seu papai e irmãs a Alençon.

Sexta-feira 15 de outubro: Entrada de Maria no Carmelo de Lisieux.

Sábado 25 de dezembro, Natal: Graça da sua "conversão".

1887 — catorze anos:


Domingo 29 de maio, Pentecostes: Teresa recebe do pai licença para entrar no Carmelo.

Segunda 20 a domingo 26 de junho: Férias em Trouville.

Verão: "Conversas no belvedere" com Celina. Orações pela conversão de Pranzini.

Segunda 31 de outubro: Teresa em Bayeux, para ver D. Hugonin.

Sexta-feira 4 de novembro a sexta-feira 2 de  dezembro: Viagem a Paris, Suíça,


Itália, Roma.

1888 — quinze anos

Segunda-feira 9 de abril, festa da Anunciação: Entrada de Teresa no Carmelo.

Sábado 23 a terça feira 27 de junho: Fuga do Sr. Martin para o Havre.

1889 — dezesseis anos:

Quinta-feira 10 de janeiro: Tomada de Hábito.

Terça-feira 12 de fevereiro: O Sr. Martin é internado em Caen.

1890 — dezessete anos:

Segunda-feira 8 de setembro, festa da Natividade de Maria: Profissão (perpétua) de


Teresa.

Quarta-feira 25 de dezembro, Natal: cancelamento do aluguel dos Buissonnets.

1891 — dezoito anos:

Terça-feira 24 de novembro: Celebração do Terceiro centenário da  morte de São João


da Cruz.

Sábado 5 de dezembro: Morte da Madre Genoveva, fundadora do Carmelo de Lisieux.

1892 — dezenove anos:

Sábado 2 a quinta feira 7 de janeiro: Epidemia de gripe. Morrem três irmãs da


comunidade.

Terça-feira 10 de maio: Depois de três anos em Caen, o Sr. Martin, doente, é levado para
Lisieux, paracasa dos Guérin.

Quinta-feira 12 de maio: Última visita do Sr. Martin às suas filhas carmelitas: as suas


únicas palavras: "No céu".

1893 — vinte anos:


Segunda-feira 20 de fevereiro: A Irmã Inês é eleita priora.

Setembro: Teresa consegue ficar no "noviciado".

1894 — vinte e um anos:

Janeiro: A sua primeira obra de teatro sobre Joana d'Arc, para a festa da priora, dia 21 de
Janeiro.

Domingo 27 de maio: Paralisia e Santa Unção do Sr. Martin.

Sábado 16 de junho: Entrada de Maria da Trindade no Carmelo.

Sexta-feira 29 de julho: Morte do Sr. Martin em Saint-Sébastien-de-Morsent (onde


fica a quinta de LaMusse).

Sexta-feira 14 de setembro: Entrada da Irmã Celina no Carmelo.

1895 — vinte e dois anos:

Durante o ano: Redação do Manuscrito autobiográfico A.

Domingo 9 de junho, festa da Santíssima Trindade: Oferecimento ao Amor


misericordioso.

Quinta feira 15 de agosto: Entrada da sua prima Maria Guérin no Carmelo de Lisieux.

Quinta-feira 17 de outubro: A Madre Inês pede a Teresa que reze pelo seminarista
Maurício Bellière, o seu primeiro "irmão espiritual".

1896— vinte e três anos:

Segunda-feira 24 de fevereiro: Profissão da sua Irmã Celina, Irmã Genoveva.

Sábado 21 de março: Difícil eleição da Madre Maria de Gonzaga como priora.


Teresa é confirmada no seu lugar de mestra auxiliar de noviças.

Sexta-feira 3 de abril, Sexta-Feira Santa: Primeira hemoptise noturna.

No domingo 5 de abril, Páscoa: Teresa entra na sua "provação da fé", que irá durar até à
sua morte.

Sábado 30 de maio: A Madre Maria de Gonzaga confia-lhe um segundo "irmão


espiritual", o Pe. Adolfo Roulland.

Terça-feira 8 de setembro: Princípio da redação do Manuscrito autobiográfico B.

Sábado 21 de novembro: Novena para obter a cura de Teresa prevendo a sua possível
ida para um Carmelo da Indochina; recaída definitiva.
1897 — vinte e quatro anos:

Princípios de abril: No fim da Quaresma. Teresa cai gravemente doente.

Terça-feira 6 de abril: Início das Últimas  Conversas, anotadas pela Madre Inês.

Segunda-feira 19 de abril: Leo Taxil revela as suas imposturas sobre o caso de "Diana


Vaughan", na qualTeresa acreditou por algum tempo.

Quinta-feira 3 de junho: Começo do Manuscrito autobiográfico C

Quinta-feira 8 de julho: Teresa é descida para a enfermaria.

Sexta-feira 30 de julho: Hemoptises contínuas e faltas de ar. Às 18 h., recebe a Santa


Unção e acomunhão em viático.

Quinta-feira 30 de setembro: Teresa morre pelas 19:20 h. As suas últimas palavras: "Meu


Deus, amo-Vos!...".

Segunda-feira 4 de outubro: Enterro no cemitério de Lisieux.

Depois da sua morte:

30 de setembro de 1898: Aparição da História de uma alma, dois mil exemplares


Cada ano é necessário reeditá-la...

1910: Abertura do processo de beatificação.

29 de abril de 1923: Beatificação por Pio XI.

17 de maio de 1925: Canonização na basílica de São Pedro em Roma por Pio Xl.

14 de dezembro de 1927: Pio XI proclama Santa Teresa Padroeira principal das


missões, em pé deigualdade com São Francisco Xavier

2 de junho de 1980: O papa João Paulo II, peregrino em Lisieux.

30 de setembro de 1997: Primeiro Centenário da morte de Teresa.

19 de outubro de 1997: O papa João Paulo II proclama Santa Teresa Doutora da Igreja.

ÍNDICE

Quem nos ensinará a esperança'? (cardeal Danneels) Apresentação (De Meester, Salvatico,


Giordano) Siglas dos escritos

Capítulo 1: A filha de Luís e de Zélia (Conrad De Meester ocd)

A França católica durante a segunda metade do século XIX (Stéphane-Marie Morgain ocd)
A "renda de Alençon" (Monsenhor Guy Gaucher)

Genealogia de Teresa

Teresa nos fala: "Os anos cheios de sol da infância" (Ms A 11v)

"História primaveril de uma florzinha branca" (Ms A 2 rv-9 rv)

Capítulo 2: A infância de Teresa em Lisieux (Monsenhor Guy Gaucher)

A casa dos Buissonnets (Monsenhor Guy Gaucher)

A "pobre Leónia" (18-63-1941 — Monsenhor Guy Gaucher)

Teresa nos fala: Vida em família (Ms A 13v; 14 r; 18rv)

"Eu escolho tudo" (Ms A 10 rv)

Capítulo 3: Teresa, jovem leiga (Monsenhor Guy Gaucher)

Teresa nos fala: Para a Cidade eterna

Capítulo 4: A comunidade de Teresa (Geneviève Devergnies ocd)

O Carmelo de França: origens e espírito (Stéphane-Marie Morgain ocd)

O Carmelo de Lisieux (Geneviève Devergnies ocd)

As duas Teresas, mãe e filha (Tomás Alvarez ocd)

Teresa e São João da cruz (Federico Ruiz ocd)

Capítulo 5: "O sofrimento estendeu-me os seus braços" (Geneviève Devergnies ocd)

As vinte e quatro horas no Carmelo (Geneviève Devergnies ocd)

As leituras de Teresa (Geneviève Devergnies ocd)

Teresa nos fala: "Como crianças pequenas" (Ms A 70r; 75v- 76r)

"O triunfo do meu rei" (Ms A 72rv; A 73r)

"Não conheço outro meio senão o amor" (Ct 109)

Capitulo 6: À descoberta do "pequeno caminho" (Conrad De Meester ocd)

Teresa nos fala: "Jesus não quer fazer nada sem nós" (Ct 135)

"Alimentar o amor" (Ct 143)


Capítulo 7: O oferecimento ao Amor misericordioso (Conrad De Meester ocd)

Teresa nos fala: "Viver de amor" (PN 17)

Capítulo 8: Teresa, à escuta da Palavra (Roberto Fornara ocd)

Teresa nos fala: "Nos braços de Deus" (Ct 226).

Capítulo 9: A caridade fraterna (Pierre Descouvemont)

Teresa nos fala: "Uma candeia no candelabro" (Ms C 22r; 18r; 12r)

"O farol luminoso do amor" (Ms B 3v; 5v)

Capitulo 10: Apóstolo e missionária (Camilo Gennaro ocd)

Capítulo 11: Teresa e o mistério de Maria (François-Marie Léthel ocd)

Teresa nos fala: "Por que te amo, ó Maria (PN 54)

Capítulo 12: Na noite da fé (Emmanuel Renault ocd)

Capítulo 13: A última doença (Monsenhor Guy Gaucher)

O caso Léo Taxil — Diana Vaughan (Monsenhor Guy Gaucher)

"Últimas conversas" (Monsenhor Guy Gaucher)

Teresa nos fala: "No braseiro devorador do Amor" (Ct 247)

Capítulo 14: A vida do mais além (Pierre Descouvemont — Raymon Zambelli)

O locutório de Teresa (Raymond Zambelli)

A basílica de Lisieux (Pierre Descouvemont)

Teresa nos fala: «Ser-lhe-ei mais útil no céu do que na terra" (Ct 254)

Teresa hoje (Monsenhor Guy Gaucher)

Conclusão (Anastasio cardeal Ballestero ocd)

Cronologia de Teresa

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