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O Último dos Maçaricos, Tradução de Guimarães Rosa

Edição de Referência:

Biblioteca de Seleções, Rio de Janeiro: Editora Ypiranga S.A., 1958.

A beleza e a essência de uma obra de arte podem reconceber-se, ainda que sua primeira ex pressão material haja
sido destruída; uma perdida melodia poderá novamente inspirar o compositor; mas, quando o último de uma raça
de seres vivos deixa de respirar, outro céu e outra terra pas sarão, antes que uma tal possa tornar a existir.

— William Beebe

Assim uma raça de seres vivos foi a dos gentis e corajosos maçaricos-esquimós, pássaros que outrora, em bandos,
voavam dois Continentes, escurecendo o céu. Agora, tendo tido de passar, por toda a parte, o corredor de homens
e armas da civilização, eles quase desapareceram.

Documentado em testemunhos autênticos, que se entremeiam na narrativa, O Último dos Maçaricos foi recebido
com aplausos por naturalistas e críticos, a um tempo pela história absorvente e por sua verdade científica, mais
estranha que a ficção.

Por volta de junho, a noite no Árctico se reduz a breve trecho de cinzento luscofusco, e a todo instante dos dias
compridos os mosquitos enxameiam, em nuvens, dos caldeirões da tundra em degelo. Outrora, era então que os
esquimós esperavam pelo chilrear sussurrante, tremulo, escutado longe, dos bandos de maçaricos-esquimós, com
sua promessa de carne tenra. Mas os grandes bandos não vem mais, deles somente restam as lendas. Porque o
maçarico-esquimó, de primeiro uma das mais abundantes caças-de-penas do Continente, corria uma coxia de tiros
cada primavera e cada outono, e, no voar assim, aprendeu devagar demais o medo à arma de fogo do caçador,
essencial para a sobrevivência. Agora a espécie se consome, incerta, à beira da extinção.

Só um ou outro remanescente, desirmanado avulso, ainda voa a perigosa migração — desde seus quartéis-de-
inverno na Patagônia — à procura de par, nas descongeladas planuras da tundra, que pendem para o Oceano
Árctico. Mas o Árctico é vasto. Esses sobreviventes em geral debalde buscam. Derradeiros de uma raça a morrer,
voam sozinhos.

Aí quando a semi-noite árctica se desfez no róseo e logo no amarelo cru do dia de junho a avançar, o maçarico-
esquimó afinal reconheceu a familiar curvatura em S de um rio orlado de gelo, meia milha abaixo. Ele estava
cansado. Surradas e puídas trazia as barbas marrons das penas das asas: do vôo de arribação, iniciado, para lá dos
trópicos, em folgadas etapas, e terminando em arrancada doida e ininterrupta através das Terras Estéreis, quando a
ânsia de acasalar-se o empolgara de todo.

Dispôs as asas e deixou-se descer, com uma série ziguezagueante de descaídas de lado. Depois se nivelou — num
longo planar — rumo á borda lamacenta de uma poça de neve derretida.

Aqui, em milhares de anos, os maçaricos-esquimós tinham vindo com a primavera, a fim de apossar-se de seus
terreiros-de-cria e aguardar, febris, a chegada das fêmeas. À espera, cada um expandia a exaltação da quadra
amorosa, furiosamente defendendo dos machos vizinhos o espaço de território que havia escolhido. Agora, no
arroubo de se achar em casa, o maçarico, mal se lembrava de que, já por três verões, fêmea nenhuma aparecera.
Sua cabecinha, regida pelo instinto, com mínimo caber para um pensamento consciente, nem sabia e nem inquiria
por que.

Ele voara dez horas sem parar, mas, agora, mais que de descanso, carecia de alimento, pois o rápido pulsar do
coração e o metabolismo, que lhe tinham sustentado por tanto tempo o flectir dos poderosos músculos das asas,
cobravam seu tributo em combustível orgânico. Pegou a cutucar com o longo bico na lama, para dentro e para fora,
num célere acionar de máquina de costura. Era um bico estranho, com duas e meia polegadas de comprido, recurvo
para baixo, quase em forma de foicinha. A cada tentativa ele abria-o um pouco e rodava através do lodo a ponta
sensível, tateando pelas macias larvas de insetos aquáticos e crustáceos.

Ainda havia amontoados de neve nas depressões da tundra, mas o sol estava quente e já o mundo chão do Ártico
fervilhava de vida. O maçarico comeu, até bojar grotesco o papo distendido. Então ele entrecochilou, sustendo-se
numa perna, feito perna-de-pau, o pescoço virado de modo a agasalhar bem o bico sob as penas das costas. O que
era repouso, mas não sono: pois os ouvidos e um olho de fora ficavam alerta, por conta das raposas árticas e das
corujas-das-neves. As funções do corpo sendo nele ligeiras, em meia hora a energia perdida se refez.
O verão do Ártico era curto, e haveria muito o que fazer quando chegasse a fêmea. O maçarico voou para uma
aresta rochosa, cerca de três pés de alta, pousou e olhou em torno. Era aquela uma plaga erma e áspera, para se ter
atingido a custo de um vôo de nove mil milhas. As árvores, rasteiros aleijões de salgueiros e bétulas, não davam
mais que por um ou dois pés de altura; passava a quinhentas milhas ao sul a linha limite das essências, onde
morriam as florestas de abetos-azuis e começavam as Terras Nuas da tundra. Esta se mostrava em sua maior parte
uma região plana e não drenada, tão rendilhada de pântanos de muskeg[i], que, agora, com a primavera, a água
tapava-a por metade. Suas baixas cristas de rochas cobriam-se de densas esteiras do verdejante líquen polar e do
musgo-das-renas cinzento.

Revoou o maçarico, e com método entrou a circular e recircular por sobre os dois acres de terreno que pretendia
atribuir-se. Vez e outra, deslizando vagaroso, emitia o flautado e trilado assovio de seu pio-de-chama. Nada havia
de alegria, nesse canto. Era um grito de guerra, um aviso, a todos, de que doravante o sugar tinha dono.
Ele conhecia cada penha, banco de pedregulho e poça de lama de seu território. Lá, bem para o centro, ressaía um
travessão de pedras redondas; ao pé, aonde a água de escoamento se ajuntava, musgos e líquens compunham
vívido tapete. Ali, no tope de um tufo de musgo, a fêmea iria ajeitar um recalque em forma de pires, forrando-o a
esmo com algumas folhas secas e grama, e botar seus quatro ovos castanho-azeitonados.

O maçarico volteava círculos sempre mais altos, seu canto-de-par se fazendo mais agudo e freqüente. Súbito, as
frases se atropelaram, emendadas no matraquear de sibilante e excitado alarido. Longe, a montante, ponto marrom
contra o céu mosqueado, outro pássaro dava de asas, para o norte. E nele o macho expectante já divisara outro
maçarico.

Dentro dos limites de seu terreno, ele sobregirava estreitando rodeios, e piava exaltadíssimo. Era a companheira,
que vinha. O instinto tomou-o por completo, agora a espiralar para o alto, em seu vôo de cortejamento, as asas
palpitando como as de uma mariposa, em vez de remarem o ar com as costumeiras batidas fundas. Ao zênite da
espiral, as asas se fecharam e ele picou num mergulho esfuziante, reendireitando-se a poucos pés da tundra e
espiralando acima outra vez.

O outro pássaro ouviu o frenético apelo do macho, mudou de direção e veio para ele velozmente. Obedecendo,
porém, por instinto, à lei da área territorial, que todas as aves respeitam, ela pousou num musgoso bloco-errático,
bem de fora das fronteiras.

Refervente agora de paixão. o maçarico executou mais uns revôos de cortejo, em rápida seqüência. Durante alguns
minutos, a fêmea ficouse alisando com o bico as penas das asas, aparentando não notar aquele alarde. Depois,
meio voando, meio correndo — a um tempo ligeiras batidas de asas ou passos — ela penetrou no terreiro de
casalar, e se acocorou, submissa. O macho silvou — estridente, e zunindo se alçou num último vôo nupcial, do qual
se abateu feito um aerólito, para um ponto a seis pés de onde ela o esperava. Postou-se, por um instante, com as
penas arrufadas e o pescoço distendido; daí, de perninhas tesas, caminhou para ela.

Mas, quando ainda à distância de uma jarda, estacou, bruscamente, o grave e gutural reclamo amoroso súbito se
mudando em precipitada sucessão de notas de alarme. E o comportamento da fêmea também se alterara: não mais
meigamente dócil, ela em passinhos rápidos se afastava. O macho abandonou a atitude de galanteio, abaixou a
cabeça como um galo de briga, e arremeteu contra ela — que tirou o corpo de lado e pegou asas, enquanto ele se
fazia em vôo de perseguição, golpeando repetidamente as costas da fugitiva.

De perto, o maçarico reconhecera a plumagem mais escura e a feição diferente, de uma espécie que não era a sua,
se bem que parente próxima: a hudsônica, dos maçaricos-do-bico-torto, a que ela pertencia, fazendo parte, como
ele, da grande família praieira das batuíras, areeiros e tarambolas. Mas o maçarico-esquimó sabia, mediante a
intuição criada pela natureza, a fim de evitar cruzamentos estéreis, que essa não era a companheira esperada.
Escorraçou-a, por um quarto de milha, com fúria tão arrebatada quanto o fora o amor de pouco antes. Depois,
voltou ao território.

O longo dia do Ártico estava quente e úmido, a despeito do incessante assobiar das ventanias da tundra.
Alternadamente o maçarico comia e fazia a ronda de sua área-de-cria, e sempre vigiava os planos horizontes. Pouco
depois do meio-dia, um gavião calçudo, que tinha estado a dar voltas, para cá e para lá do rio, de vez em quando
caindo perpendicular do alto sobre algum incauto lêmingue, cruzou a raia do terreiro tão estrictamente demarcado
no entendimento do maçarico. Este decolou em rápido ataque, guinchando encolerizado estrilo de rebate contra o
intruso, cujo peso era dez vezes o seu. Por alguns segundos, o gavião não fez caso da ameaça; daí, virou vôo,
afastando-se em paz. Podia ter liquidado o maçarico, com uma gadanhada de suas garras, mas ele só matava para
comer, e assim de livre vontade cedeu o campo, ante uma criatura tão desvairada pelo ardor do cio.

O sol se pôs, e a noite polar tombou em redor do maçarico, como uma bruma cinza. Esfriou-se logo a tundra, e o
ululante vento súbito emudeceu. Seguiu-se a penumbra, não a escuridão.
Uma necessidade, que ele sentia mas\ não compreendia, levou o maçarico à trincheira seca de calhaus, com a
grossa alcatifa de musgo na base, onde o ninho deveria ser. Já agora no quinto verão, nunca que ele, desde o
estádio de filhote, tinha avistado um ninho, nem mesmo uma fêmea de sua raça; e entretanto naquilo se revelava a
ciência, não aprendida, do ritual do noivado e da nidificação. E aí então cochilou, firmado numa perna, ao lado do
renque de cascalho, o qual esperava o ninho que seu instinto lhe dizia ali ter de ser.

Amanhã — ou no outro dia — viria a fêmea. O breve ciclo da vida no Ártico não deixava tempo para retardos.

Dos Trabalhos Filosóficos da Sociedade Real de Londres, referentes ao ano de 1772. Um rol das aves recentemente
enviadas da Baía de Hudson para a Sociedade Real. Espécie nova. Maçarico-dos-esquimós. Esta espécie de maçarico
não é ainda conhecida dos ornitologistas; foi mencionada pela primeira vez no catálogo dos animais norte-
americanos. Chamada de Wee-Kee-Me-Nasu, pelos aborígines; alimenta-se nos pântanos, de vermes, larvas, etc.
Visita o Forte Albany em abril, procria lá para o norte, retorna em agosto, e vai-se embora de novo no rumo do sul,
bem no fim de setembro, em enormes bandos.

OS DIAS quentes e gélidas noites passaram, desapareceram os últimos montões de neve, a tundra baça e parda se
fez flamante estendal de flores cor-de-rosa e amarelas, e a fêmea do maçarico não vinha nunca. Outras aves
praieiras chegavam, aos centos, viajando tão longe para produzir uma nova geração de vida. O maçarico renhia,
insensato, com toda tarambola ou areeiro que cruzava as suas divisas, embora não mostrasse inimizade alguma
para com os trigueirões, rastros-compridos e perdizes-das-neves — biologicamente não aparentados com ele e não
se nutrindo dos insetos, de que seus próprios filhotes iriam precisar. Assim, quando uma fêmea de ptarmigã-dos-
salgueiros ninhou e pôs seus doze ovos cor-de-camurça perto do montículo de musgo onde o ninho do maçarico iria
ser, ele não se importou, e logo se esqueceu de que ela estivesse ali.

As noites foram ficando mais escuras e mais longas. As pequeninas flores luzentes da tundra se ressequiram em
fascículos de sementes plumadas de sedosa paina. Junto de lá, um casal de tarambolas-douradas começou a piar e
andar á roda, alvoroçados. O maçarico soube que eles já tinham filhotes, e que estes, como os pintainhos recém-
tirados de todas as-aves ripícolas, estariam a correr ali em volta, antes mesmo que se secassem as cascas dos ovos.
O verão do Pólo aproximava-se do fim.

Algumas das tarambolinhas se escapuliram para dentro do território do maçarico, e a mãe veio atrás, com comida.
O maçarico assoviou uma advertência e voou contra ela. Mas a tarambola lhe fez frente, de asas descerradas a
acobertar as pipilantes bolinhas amarelas de penugem. Sem chegar a tocá-la, o maçarico se desviou para o alto.

Nele, o ritmo anual da atividade glandular volvera a esmorecer, e a agressividade da época da reprodução trocava-
se por novo anseio: a inquieta precisão de ir-se. No andar do dia, mais de uma vez arrancou vôo com a tarambola-
dourada, mas, quando ela se recusava a esvoaçar em fuga, ele perdia o empenho e largava-a de lado. No dia
seguinte, outras aves praianas entraram e saíram em seu domínio, e o maçarico não se importou. De unia feita,
voou longe, rio abaixo, e por duas horas esteve ausente do território, sendo essa a primeira vez, desde a vinda, que
ele deixava aquele lugar.

Era fim de julho. As covas da tundra e suas bordas lodosas pululavam de alimento, e faltavam ainda um ou dois
meses para o inverno. Mas o Ártico já lhes servira os propósitos, e agora as distantes terras do sul chamavam as
aves das praias. O maçarico, que durante todo o verão brigara para poder ficar só, sentia um premente desejo de
companhia.

Nisso não entrava raciocínio ou inteligência. De acordo com a imemorial predisposição de sua raça, ele reagia
meramente á modificação de seus mecanismos fisiológicos de controle. À medida que os dias se encurtavam, a
minguante luz solar reduzia a energia pituitária que mantivera os hormônios sexuais vertendo em sua corrente
sanguínea, e, ao mesmo passo, desaparecia a ansia amorosa, o ímpeto migratório substituindo-a. Irresistível força
íntima compelia-o a partir.

Em qualquer parte, porém, da pobre cabecinha, havia um simples começo de pergunta. Por que estava ele sempre
sozinho? Por onde andariam as fêmeas de sua raça? E, agora, chegado o tempo de os bandos se formarem, por que
não se achava ali, entre os milhares de aves ribeirinhas e outros maçaricos, nenhum daqueles menores e de um
marrom mais claro, os de sua própria espécie?

Daí a poucos dias, cessava por completo o atrativo do Árctico, e o maçarico tomou a altura e voou para o sul, muito
tempo. Pousou, afinal, para comer, numa pequena baixada de limo, no ponto onde um rio fazia foz num grande
lago. Bando pós bando, de praieiras se movendo para o sul, passavam. Um ondulante V de pernaltas ribeirinhas
pairou baixo, majestoso, ao longo da margem do lago. 0 maçarico piou, exaltado, porque, pela configuração do vôo,
só podiam ser também maçaricos. Sempre como se fosse um único indivíduo, o bando rodou uma volta, sem
quebrar a formação, e, sob tesas asas, curvas para baixo, planou para dentro da várzea pantanosa. O maçarico-
esquimó correu para eles. Mas, bruscamente, estacou; e, perdido o interesse, continuou a comer. Porque esses
eram maçaricos, mas dos hudsonianos, não dos esquimós.

Ele não sabia que os dessa espécie, quase identica á sua, eram pássaros de vôo mais lento, não lhe servindo como
companheiros de migração. Sua atitude para com os hudsônicos não decorrera de soluções mentais, mas apenas de
respostas instintivas. Aspirava ajuntar-se a um bando, porém os hudsonianos haviam falhado no desencadear em
seu cérebro a reação de abandoamento. Daí a pouco, quando de novo suspenderam, ele quase nem notou sua ida.

Lá pela tarde, a baixada de brejo se mostrava pontilhada de aves limícolas, que tinham parado viagem para se
alimentar. Ao anoitecer, os bandos tornavam a partir, uni após outro, os pássaros de cada arribada se
entrechamando com pios e sibilos, a fim de assegurarem o contacto, mantendo a formatura no meio da escuridão
tombante. Eles se aglomeravam sem aperto, enquanto descreviam círculos no alto; depois se alinhavam e
endireitavam para o sul. Era uso das aves riparias migrarem à noite, pois sua digestão e consumo de energia,
rápidos, exigiam a inteira luz do dia para a alimentação.

Agulhas de gelo começavam a condensar-se nas beiras baixas das poças do charco. De lá de muito acima dele,
atenuados pela distância, o maçarico podia ouvir os ciciados gritos dos arribadiços. Seu instinto se revoltava contra
ter de voar sozinho; mas, quando ele piava, insistentemente, no frio da noite, não obtinha resposta. E chegou a
hora em que precisou de partir.

Voltou-se, entrando na brisa, e ajustou o ângulo de ataque de suas asas desdobradas, até sob elas sentir a içante
pressão do vento. Das de todas as aves praieiras, as asas do maçarico-esquimó — longas, estreitas, elegantemente
bem tiradas em ponta — eram as mais adequadas ao vôo fácil e veloz. Mesmo ao permanecer assim, na tênue
viração noturna, o pássaro parava sem peso, quase aeriforme. Tomou o primeiro impulso, deu umas ligeiras batidas
de asas, com as rêmiges entortilhadas para morderem em cheio no ar, e, sem esforço, se alou. Subiu a pique, por
mais de um minuto; daí horizontalizou-se, e o ar se precipitou atrás dele, calcando-lhe contra a pele as penas do
corpo. A migração tinha começado.

De um Boletim do Museu Nacional dos Estados Unidos, referente a Ciclos de Vida de Pássaros Norte-Americanos,
constando das breves comunicações, inéditas, de Lucien Mc-Shan Turner, sobre as aves de Ungava no Canadá. Eu
nunca tinha visto o maçarico-dos-esquimós, até a manhã de 4 de setembro do ano de 1884, na ocasião em que
íamos saindo da embocadura do rio Koksoap. Lá, um imenso bando, de várias centenas de indivíduos, se
encaminhava para o sul.

POR horas seguidas as asas do maçarico batiam com ritmo tranqüilo, descambando bem aquém do ventre, no
remar, e levantando-se, depois, a sobrepujar de muito as costas. Cada golpe consistia em complicado reflexo, uma
série de hábeis efeitos confundindo-se num só e exato movimento, porquanto a asa era também um propulsor.

A robusta metade proximal desviava o fluxo de ar, tal e qual a asa de um avião, de maneira a exercer-se a pressão
contra a superfície inferior e a sucção na superior —- a "sustentação" que produz o vôo. O abanar das asas fornecia
apenas a força de tração avante.

A metade distai, composta em boa parte das hirtas rêmiges debordantes, era a hélice geradora da corrente de ar
que dava sustentação a asa interna. Na pancada para baixo, as guias se afastavam uma das outras e se torciam —
bordas dianteiras subvolvidas, bordas traseiras sobreguindadas — de modo a cada pena atuar como palheta de
hélice, rejeitando o ar para a retaguarda e impelindo o pássaro para diante. Na pancada para cima, o ângulo das
penas invertia-se por completo. Tão poderosa e constante era a força de sustentação da asa interna, que na
pancada para cima não havia perda de altitude; e suas três ou quatro batidas por segundo davam ao maçarico uma
velocidade de cinqüenta milhas a hora.

De vez em quando, uma de suas asas, supersensibilizadas, encontrava o ar mais duro, espiralante, de um remoinho
deixado por alguma ave praieira que viajava adiante. Em geral, essa mudança do padrão de ar era para o maçarico o
primeiro sinal de estar-se aproximando de algum bando de pássaros. Ao topar com turbilhão desses, seguia-o
encostado, sobrepondo asa a borda ascendente da espiral do vórtice aéreo. Aproveitava assim uma sustentação já
pronta, e poupava suas próprias asas.

Mas, a não ser a tarambola-dourada, praieira alguma voava tão ligeiro quanto o maçarico, e, de cada vez, mesmo
indo devagar, ele alcançava o bando que migrava a frente. Primeiro, ouvia o débil chilro dos pios de revoada, e
reforçava-se o redemoinho de ar; depois, apareciam os pássaros, pintando o cinzento do céu. Voava junto com eles,
até que sua maior velocidade fazia-o pouco a pouco ultrapassá-los. Aí, de novo se achava voando sozinho.
Isso aconteceu repetidamente, porque a maioria das aves ripícolas se encarreirava na mesma plana, logo acima das
turbulentas camadas aéreas próximas da tundra a esfriar. Perto do amanhecer, deu o maçarico com um remoinho
rijo e inalterável, que não ia ficando mais forte a medida que ele o seguia. Dessa vez, não estava apanhando o
bando dianteiro. Os patos e os gansos ainda não haviam começado a arribar; só dois pássaros, portanto, podiam
estar voando agora para o sul a tal velocidade. Tinham de ser tarambolas-douradas, ou os de sua própria espécie,
maçaricos-esquimós.

Suas infatigáveis asas bateram mais depressa, e mais impetuosa a correnteza de ar premiu-lhe o corpo
aerodinâmico. Aumentava de força, quase imperceptivelmente, o recuo torvelinhante do remoinho que contra ele
esbarrava, e com isso a ansiedade do maçarico cresceu. Tênue esperança, em parte reação instintiva, em parte
nebuloso raciocínio, perpassou-lhe fugaz pelo cérebro. Seria agora o fim da perpétua busca de outros de sua raça?
A batida de asas se acelerou, a ponto de os tendões dos músculos de seu peito — um dos mais fortes tecidos
animais existentes — doerem sob o esforço de estiramento.

Dentro em pouco os pássaros a sua frente ganharam forma. Eram muito menores que o maçarico, que entretanto
não os desprezou, de instinto, como fizera com os hudsonianos e outros praieiros. Ele piou, chamando-os
amigavelmente. Tarambolas-douradas lhe responderam.

Era um grande conjunto, de quarenta ou cinqüenta, e o maçarico pegou posto de retaguarda na formação, na ponta
do arrasto de uma das alas, avisando de sua presença ali, com rápida, estrídula série de pios. De novo responderam-
lhe as tarambolas, chilrando todas agudamente a um tempo. Satisfizera-se o impulso do maçarico para juntar-se a
bando. Ainda havia, no fundo de seu íntimo, vaga e remota saudade. Mas ele não mais estava de todo sozinho.

Antemanhã, a tundra acinzentada, obscuramente visível, longe lá embaixo, começou a traspassar-se dos primeiros
dedos negros, contorcidos, das florestas de abetos sub-árticas. O bando se abateu para um paul de limo de beira de
lago, e, com o dia raiando, começaram atarefadamente a comer.

Salientava-se o maçarico de notável maneira, ali no meio das tarambolas-douradas, de bicos curtos e menorzinhas.
Mas as duas raças tinham migrado juntas, por gerações sem conta. Porque, das trinta e tantas espécies de aves
riparias que arribam, via ao sul, cada outono, somente essas duas possuem a velocidade e força para rejeitar o fácil
itinerário de transmigração ao longo do Continente. Em vez de voar rumo leste, para o Labrador, a Terra Nova ou a
Nova Escócia, elas batem em direitura para o sul, por sobre o turbulento Atlântico, para um extenuante vôo
contínuo de duas mil e quinhentas milhas, que dá fim, quarenta e oito horas mais tarde, nas praias nortistas da
América do Sul.

E pois, no brejo de limo da baixada, passaram o dia inteiro juntos, como se pertencessem a mesma espécie,
comendo e descansando. Ao escurecer, tornaram a voar. O maçarico tomou a posição de guia, na ponta do V,
apesar de não ter havido escolha proposital de um chefe do bando. A ave da ponta trabalha mais árduo, para
ganhar da intacta barreira de ar a sustentação e velocidade de translação; e, o maçarico sendo o voador mais forte,
por isso os demais formaram atrás dele, em movimento tão espontâneo como o respirar de cada um dos pássaros.
Outras aves ribeirinhas estavam voando no rumo geral sul, para as planícies ocidentais americanas; mas o maçarico
conduziu o seu bando em direção sueste, as atapetadas parreiras da baga-de-corvo do Labrador. Uma ou outra
ocasião, ele se deslocou para trás, a mais cômodo posto de vôo, no qual, no meio-sono, podia deixar-se levar pelo
remoinho produzido pelo pássaro que lhe ia a frente; de cada vez, porém, depois de breve descanso, voltava de
novo adiante, para a direção.

Das atas da Sociedade de História Natural de Boston, de 1906-7. Documento n.° 7 — Pássaros do Labrador:
Numenius borealis, maçarico-esquimó, outrora numeroso mas hoje em dia muito raro visitante de outono no
Labrador.
Packard escreveu sobre o maçarico o seguinte: "No 10 de agosto, 1860, vimos um bando, que devia ter uma milha
de comprimento e mais ou menos o mesmo tanto de largura. O total de seus pios zunia como o sibilar do vento no
cordame de um navio."

Mas não encontramos nenhum durante o verão de 1906. Conversamos com muitos dos moradores, e todos
conviram em que o maçarico de repente diminuiu de número, a ponto de, agora, na época deles, só aos dois, ou
três, ou mesmoo nenhum de todo, serem avistados. O Capitão Parsons, do paquete "Virginia Lake", contou que, há
trinta anos passados, ele amiúde caçava a tiros uma centena, antes do café da manhã. Pescadores conservavam em
seus pesqueiros espingardas carregadas, e atiravam às massas no vôo, derrubando vinte a vinte e cinco a cada
disparo.
Os habitantes do Labrador dizimavam infalivelmente o maçarico-esquimó, mas, até por volta de 1888, não se deram
conta de qualquer redução em sua quantidade. Desde 1892, somente um insignificante resto desses pássaros se
pousou no Labrador. São eles agora uma raça que desaparece — indo para a extinção.

SEGUIRAM-SE, monótonos, as noites de vôo e os dias passados a comer. Mais se esvaeciam os lampejos verdes da
aurora boreal, lá para trás do bando. E, com enrijados músculos dos peitos, sem cansaço, eles atingiam cada
madrugada. Nas marnotas da Baía de James, onde o alimento era farto, foram ficando, até que de novo o apelo do
sul instasse-os, por sobre as montanhas antigas de Quebec e rumo aos escabrosos paredões do Golfo de São
Lourenço.

O segundo amanhecer, depois disso, veio enevoado e frio, com acre relento de maresia no ar. Sem se deter, o
maçarico continuou a conduzir o bando, até que, de brusco, vararam o branco nevoeiro envolvente os guinchos das
gaivotas e o rebentar do mar nos rochedos. O maçarico súbito se inclinou sobre asa, fechando uma curva, e empós
dele o bando descaiu para os topos da falésia.

Rasteiras touças da camarinheira-preta, carregadas de carnudas bagas purpúreas, alastravam-se ali por toda a
parte. Os pássaros entraram ime-diatamente a comer, sob um vento frio, cerrado de chuva. Passada uma hora,
pararam e se aconchegaram em cacho, as cabeças de todos arrostando o temporal, de modo a que o vento fizesse
rolar a chuva sobre suas penas imbricadas, entornando-a para fora pelas caudas.

Agora iam passar duas semanas só comendo e engordando, para o longo vôo avante. Estavam em meado de agosto,
já com as noites geladas, e os dias eram de interminável nevoeiro. Eles comiam das bagas-corvas até ficarem com as
pernas, bicos e plumagens, tintos de roxo do sumo, e, na baixa-mar, se ingurgitavam de caracóis e camarões.

Chegavam todos os dias mais tarambolas-douradas, e o maçarico deixava de comer para ir espiar atentamente os
bandos em trânsito, vendo se achava algum seu igual. Não havia outros maçaricos; nem mesmo qualquer ave
praieira a não ser as tarambolas. Mas gaivotas e eiders mostravam-se por tudo em torno, e as alcas e tordas-
mergulheiras, de asas grossas e curtas, galravam e brigavam nos socalcos da penedia, onde tinham chocado suas
ninhadas de verão.

O maçarico e as tarambolas engordaram depressa, tornando a alisar e arredondar os peitos. Em dias limpos,
soprando vento favorável, milhares de outras tarambolas partiam, numa trajetória reta ao sul, através do Golfo de
São Lourenço, rumo em Atlântico. Porém o maçarico esperava, com o seu bando. Vagamente ele pressentia que, os
maçaricosesquimós da tundra, quando viessem, por aquele caminho teriam de vir.

Em parte remediava o crescente desassossego dirigindo o bando em extensos vôos ao longo da costa. Depois, seus
pássaros, aos dois, aos tres, começaram de desertar, ajuntando-se a outras tarambolas que tomavam para o sul. Em
setembro, o bando já se reduzira a metade, quando as noites ficaram ainda mais glaciais, e escasseou o alimento.
Agora as massas de neblina, que rolavam do mar, as vezes traziam grandes flocos de neve úmida.

Enfim o maçarico não pode conter por mais tempo seu ímpeto de migrar. Num frio e desanuviado crepúsculo
vespertino, com ligeiro vento de través, ele soltou asas — e o bando endireitou para sobre o mar alto. O maçarico e
muitas das tarambolas já tinham feito antes a travessia oceânica, e sabiam que, quando chegasse o amanhecer, sob
eles haveria tão só o ermo mar, e viria outra noite, e outra aurora, e lá embaixo estaria ainda e sempre o mar,
inóspito e adverso. Todavia, agora, enquanto deixavam bem para trás a lampejante aurora boreal, não tinham
medo ou hesitação, apenas um confuso alívio, por ter partido. Porque era uma benção de seus pequeninos cérebros
que eles não se pudessem ver, a si mesmos: como diminutas partículas de carne sobreterrestre, desafiando uma
eternidade de céu e oceano.

Do Relatório Anual do Instituto Smithsoniano, Washington, 1915.

Na Terra Nova e nas Ilhas da Magdalena, no Golfo de São Lourenço, por muitos anos, os maçaricos-esquimós
chegavam em agosto e setembro, aos milhões, toldando o céu. Num dia de caça, de vinte e cinco a trinta homens,
chegavam a matar a tiros tanto como uns dois milheiros, para o armazém de mantimentos da Companhia da Baía
de Hudson, em Cartwright, no Labrador.

Os pescadores se acostumaram a salgar desses pássaros e conservá-los em barricas. A noite, quando eles se
apinhavam em grandes multidões, para dormir, na alta praia, um homem, munido de lanterna para os ofuscar e
balburdiar, podia derrubá-los a cacete, em quantidades enormes.

Sem necessitar de baliza e sem esforço consciente, o maçarico levava o bando com segurança, mantendo-se na
exata direção sul. Um imemorial instinto estava realizando proeza acima do alcance da mente humana, á medida
que os pássaros cruzavam a ponta do Cabo Breton, rumo ao Atlântico nebuloso.
Lá, tumultuadas correntes de ar saíram a açoitar o bando e desmanchar-lhe a formação. A neve começou, primeiro
mais rala, depois engrossada; e o maçarico espiralou remontando para atmosfera mais calma, onde, apesar do
acúmulo dos flocos, as fileiras pudessem reordenar-se. Sabendo — em parte por experiências semi-lembradas, mas
principalmente por instinto — que sua velocidade de vôo levá-los-ia a ganhar a dianteira á borrasca, se com ela
rodopiassem e evoluíssem, ele virou a leste, para o meio do Atlântico, as tarambolas seguindo-lhe cegamente a
trilha aérea.

A neve espessa pegou a aglomerar-se nos espaços de ar de entre suas rêmiges, por modo que, subitamente, as asas
ficaram-lhes perras e pesadas, batendo em vão, como pás de roda presa. Seu tiro de vôo foi-se travando, até que
eles flutuaram no espaço, assombrados e quase imóveis, mais ou menos a uma milha acima do mar. Então o
maçarico guiou-os de novo a leste, tomando da ação da gravidade a força de tracção que suas penas das asas.
empapadas, não conseguiam mais perfazer. A rapidez do vôo voltou a ser normal; mas, a fim de poder mantê-la,
eles continuavam sacrificando altitude. Do pardo vácuo, lá embaixo, o mar se levantava permanentemente contra
eles.

Por longo tempo, prosseguiu o tolhido vôo cego, cada pássaro sozinho num mundo próprio seu, ventoso e branco,
enquanto o maçarico lutava para sustentar altura, a ponto de se lhe crisparem de fadiga os músculos do peito. Aí,
de repente, através da alva cerração, ele viu o mar, subjacente. De cada vez que a velocidade diminuíra, ele tinha
tido de baixar, para recuperá-la, e agora as prateadas cristas das vagas se erguiam de surriada, arrancantes, ao
encontro dos pássaros que forcejavam.

Surgiu ante eles uma onda grande. O maçarico sobrelevou-a a custo, refregando. Atrás, o vagalhão golfou, golpeou-
os. Três dos que vinham mais baixo, pássaros mais fracos, ainda pelejaram por altura, mas puderam apenas
tremular, desvalidos. Não houve pio. A onda se arqueou — e eles desapareceram.

O bando mourejou avante, a poucos pés acima do rolo do mar, afanando-se por sobre cada jacto e respirando
instantezinhos de repouso no ar mais quieto de cada entresseio, de vaga a vaga. Certa hora, o longo vão de uma
cava se encapelou em estuante cachão, muitos pés mais alto que os escarcéus anteriores, e o esguicho vergastou as
asas do maçarico. Durante segundos, teve ele de combater uma voragem de correntes de ar, para se suster em
equilíbrio. Passada a vaga, mais duas das tarambolas deixaram de reaparecer. Mas a aspersão do borrifo derretera
muita da neve aderente ás pontas das asas do maçarico; por um minuto, desimpedidas, elas bateram o ar com todo
o antigo poder. Daí a neve grudou-as de novo, empachadas. Somente a certeza de que, rente ali adiante, a
tempestade se acabava, fazia o maçarico continuar a puxar.

O ar se aquecia, tão aos pouquinhos, que era difícil notar-se a mudança. Abruptamente, porém, a neve se
transformou em chuva. Após uma crista de onda havia apenas a revoluteante muralha branca, e ja depois da
próxima não se viu mais a neve, e fustigantes cordas-de-chuva se despejavam nos pássaros. A neve se desfez de
suas penas, e o maçarico levou o bando numa ascensão vertical. Com o vôo direito, a fadiga e a dor logo se
escoaram de suas asas e peitos. Depressa eles transpassaram a frente chuvosa, penetrando, além de lá, num mundo
tranqüilo, com teto de garoa.

... Às vezes, durante os temporais do nordeste, imensas multidões de maçaricos eram transtornadas até às praias da
Nova Inglaterra, onde arriavam num estado de grande exaustão, e podiam ser matados a porrete, quando tentavam
revoar. Amiúde pousavam em Nantucket, em quantidades tais, que o sortimento de chumbo de caça da ilha se
esgotava, e a chacina tinha de ser interrompida, até que mais munição pudesse obter-se.
Os caçadores chamavam-nos de "pássaros massa-de-pão", pela impressão que davam, no outono, com os peitos tio
gordos e macios. Devem ter fornecido para as mesas deliciosos manjares. Eram tio mansos e confiantes, e voavam
em bandos tão densos, que sem dificuldade podiam ser abatidos. Dois caçadores profissionais do Massachusetts, só
de uma revoada, fizeram trezentos dólares; e os meninos ofereciam-nos a seis centavos por cabeça. Por volta de
1894, porém, apenas um pássaro massa-de-pão se achou à venda no mercado de Boston.

A UMAS três horas antes do dia raiar, o maçarico virou outra vez o bando para o sul. De novo a chuva enrolava-os, e
tinham de guinar freqüentemente, voando sul até que ela os apanhasse, daí então para leste, para dela tornarem a
sair. Adelgaçou-se a cobertura de nuvens e, pelo meio da manhã, o sol irrompeu como um facho, por entre o diluir
da bruma. No mar, lá embaixo, as verde-pálidas águas circumpolares da Corrente do Labrador passavam de repente
ao índigo azul do Gulf Stream. A intervalos, os pássaros apeavam bem o vôo, a aflorar a espuma dos altos topes de
ondas, ou, se ele estivesse calmo, mesmo para se assentarem, breve instante, na face do oceano.

Lá pela tarde, achavam-se no meio do Atlântico, por sobre as flutuantes grandes ilhas de algas do Mar de Sargaços.
Outros anos, esse primeiro anoitecer encontrara o maçarico a vista das Bermudas; mas a tempestade empuxara-os
para leste. O sol entrava agora num mar baldio, e nessa noite grupos novos de estrelas se levantaram sobre o sul.
Então os alísios começaram a soprar: largos ventos de cauda, que vão aumentando, a dez milhas cada hora, sua
velocidade de translação. As matas montanhas da América do Sul estavam a doze horas de vôo.

O dia, quando veio, veio quente, apesar do vento. De vez em quando, debaixo deles, deslizava, quase à superfície
do mar, a forma azul-cinzenta de um tubarão. Ali era a orla dos trópicos; e agora, ao cabo de voadas trinta e seis
horas, seus peitos e tendões das asas se estafavam. Duas noites e um dia sem comer haviam-lhes retardado as
funções orgânicas. Arfavam ligeiro, no ar quente, os bicos um pouco abertos, para o oxigênio que seus pulmões
queriam. Três, dos mais novos, que faziam pela primeira vez o longo vôo sobreatlântico, foram ficando para trás,
aos poucos, e o maçarico reprimiu-se, mudando para uma velocidade que eles pudessem acompanhar.

Ele sabia que, onde grossas nuvens ponteavam o oeste, ali havia ilhas. Mas, para ir até lá, teriam de ter pelas caudas
direitamente o vento, o que estorvaria tanto o vôo quanto um vento contrário ponteiro. Assim, o maçarico se
agüentou na primitiva rota, se bem sabendo que a aterrissagem na costa da Venezuela seria só ao escurecer, e que,
caso a noite viesse preta e embrulhada, não poderia haver pouso até que a aurora descobrisse os contornos dos
mangues e das coroas de areia dos rios.

O sol se pôs afinal no Caribe e a noite desceu instantânea, sem crepúsculo. Caligens se deslocaram então para
barrar lua e estrelas, e leve e fina chuva terreira deu de cair. O maçarico não podia enxergar nada, mas soube
imediatamente quando deixaram o mar e entravam a voar sobre terra. Primeiro, subiu através das trevas o
retumbo da arrebentação, e daí o ar tumultuou, com as correntes ascensionais se elevando do chão, mais quente.

Eles não podiam mais que seguir voando, durante horas. E agora, sabendo que a terra se jazia lá embaixo,
prosseguir vôo ficou sendo a provação mais severa de todas. Cada batida de asas era torturante luta com a letargia
e a fadiga, pois suas penas voadeiras se achavam rafadas e em trapos.
O maçarico sabia que, cruzassem a faixa litoral, com suas praias e estuários de rios, e para além nada ia haver, por
perto de cento e cinqüenta milhas, a não ser o emaranhado espesso dos mangais de brejos, onde aterrar era
impossível. Ainda que se alimpasse a noite, teriam de tocar adiante, até aonde sob eles se desenrolassem os lisos e
relvados lhanos do interior da Venezuela. A despeito da crescente pesadez de suas asas, o maçarico pilotou-os a
mais acima, a transporem as montanhas da costa. A descambada foi um tormento. Retomaram vôo horizontal, mas
isso não trouxe pausa ao ardente cruciar de fadiga que pungia cada fibra de seus pequeninos corpos.

Ao fim, saiu o dia, cinzento, chuvoso. O vale do Orenoco, subjacente, era alagado, refervido território de lama e
água, inçado de insectos aquáticos para alimento, que meses de chuva tropical haviam gerado. O maçarico arqueou
as asas, entesadas, e picou. Seguiram-no abaixo as tarambolas — e o bando se pousou, levemente.

Porém nenhum dos pássaros descansou, porque o comer tinha de vir primeiro que tudo. De estômagos vazios
cinqüenta e cinco horas, tinham voado bem perto de três mil milhas a conta do combustível armazenado no
Labrador sob forma de banha do corpo. Em menos de três dias, cada gordura. Nessa proporção de consumo, um
aeroplano de meia tonelada poderia voar cento e sessenta milhas com um galão de gasolina, em vez das vinte de
normalmente.

Até alta manhã os pássaros comeram, com ligeireza, e so então repousaram.

De um Boletim do Museu Nacional dos Estados Unidos, referente a Ciclos de Vida de Pássaros Norte-Americanos.
Maçarico-esquimó.

Era forte de asas, apto a escapar ou evitar as violentas procelas; e o prolongado período de arribação deixava a
espécie a cobro de destruição por quaisquer tempestades. Sabe-se que não aconteceu doença alguma aniquiladora,
nem carência de alimento. Não. Houve apenas uma causa: a chacina, por sires humanos. Massacre na Nova
Inglaterra e no Labrador, outono e verão, morticínio na América do Sul, no inverno, e, pior de todas, a matança, do
Texas ao Canadá, na primavera. Eram tão confiantes, tão cheios de simpatia para com os companheiros caídos, que
em densas fileiras amontoadas podiam trucidar-se, vítimas fáceis da carnificina. Os mansos e nobres pássaros
tinham de voar de ponta a ponta um corredor de morte, e ninguém levantou um dedo para protege-los, antes que
fosse tarde demais.

Aos bandos, aos milhares, outras aves aquáticas viam-se nos grandes prados ervosos ao longo do Orenoco, e assim
brilhantes pássaros tropicais, garças brancas, íbis rubros, agora em meio a quadra de cria e ocupados em nutrir os
filhotes. Ilimitado era o alimento, nos lhanos, e muitas das praieiras do Árctico não migrariam além de lá. Porém,
depois de duas semanas de ceva, o maçarico e as tarambolas ressentiram o antigo e irrequieto apelo.
Zarparam numa noite de luar, cedo no começo de outubro, e, ao amanhecer, tinham chegado ao Amazonas. Na
quinta aurora, outra vez emagrecidos e de asas gastas, desceram nos relvosos pampas da Argentina, a duas mil e
quinhentas milhas para o sul.

Durante dias, pouco fizeram a não ser se empanzinar, sempre se movendo de ponto, mas nunca para longe. Suas
rêmiges caíram, uma por uma, e foram mudadas, refazendo-se-lhes a perfeita potência de vôo. Aqui, eles se
achavam a oito mil milhas do Ártico, e contudo ainda vagueavam para o sul, gradualmente.

Ao tempo em que o ardente sol de dezembro crestara os cardos gigantes e a relva do pampa prateava suas
cabeceantes panículas de flores, eles se afundavam muito para baixo, adentro as pedregosas planícies da Patagônia,
a uma noite de vôo, no máximo, do Oceano Glacial Antártico.

Os dias eram compridos e quentes, frias e curtas as noites; e por fim o impulso migratório se dissipou. Uni torpor
tomou conta das tarambolas, que se contentavam em entrevoar, de cá para lá, de duas lagoas salgadas —
comendo, cochilando, e a espera do estímulo do instinto, que lhes mandasse mais o que fazer.

No íntimo, porém, do maçarico, a velha ânsia imprecisa e o sentimento de solidão revezavam a força migradora, e
assediava-o um desassossego diferente. Tentou levar mais longe as tarambolas, que o não quiseram acompanhar.
Afinal ele espiralou alto, rodeando a laguna onde as tarambolas estavam comendo. Chamou, chamou, mas elas não
davam sinal de ter ouvido. Então o maçarico se voltou para leste, em direção aos alagadiços das marés da costa, a
muitas horas de vôo dali. Ele estava voando sozinho outra vez.

No litoral, grandes agrupamentos de tarambolas, pernas-amarelas e borrelhos, seguiam cada baixa-mar, pelas
milhas de praia descoberta. O maçarico errava pelo meio deles, sem cessar, de bando em bando. Estava-se apenas
em janeiro, e a tundra, nove mil milhas ao norte, ainda por muitos meses permaneceria uma paragem de nevascas
e noite intérmina. Mas ele já começava a sentir o primeiro e indistinto chamado do Ártico, a ordem preparatória
para outro tempo de procriação. A princípio, mal perceptível. Aumentando devagar. Agora, o que o maçarico
experimentava era um saudoso anseio de estar em casa. E com alvo preciso: não somente o Ártico, ou a tundra,
mas aquela mesma minúscula aresta de pedregulho, perto da volta em S do rio, aonde a fêmea viria e o ninho ia
ser.

Das Atas da União dos Ornitologistas do Nebraska, 1915. 0 maçarico-esquimó e seu desaparecimento.

Os ornitologistas esclarecidos estão agora todos de acordo em opinar que o maçarico-esquimó se acha a um passo
da extinção. Muitos crêem que os poucos, dispersos, acaso ainda existentes, nunca poderão fazer com que a
espécie recupere seus efetivos, sendo ele já agora, praticamente, um pássaro do passado. E deve-se admitir como
fundamentada essa desanimadora convicção.

A chegada da companheira — auge de uma vida inteira de espera — deu-se de modo singularmente não-dramático.
Num segundo, o maçarico se achava comendo, numa praia, entre dúzias de tarambolas, e todavia sozinho; no
seguinte, estava ela ali, dele nem bem a um pé de distância. Despercebido descera do céu o bando de tarambolas,
com o qual ela tinha vindo. Abaixou as asas estendidas, graciosa e propositalmente, e seu longo bico procurvo se
voltou para ele. Desta vez, não havia engano. Reconhecer-se, para ambos, foi imediata certeza.

A fêmea se meneou, para cima e para baixo, às sacudidelas, e um cacarejo baixo, abafado, veio-lhe do fundo da
garganta. O macho bamboleou-se, e respondeu, arrulhante. Por um minuto quedaram, quase imóveis, olhando um
para o outro, trejeitando de vez em quando. Sobreexaltava-se agora o macho, com a repentina liberação da ansia
amorosa, que, durante toda a sua existência, sempre crescera e minguara sem se satisfazer. Reptava-lhe aos pés um
pequeno caracol, e ele bicou-o, quebrando-lhe a concha. Pescoço espichado, penas tufadas hirtas, pimpou de lado,
para ela, e deu-lhe no bico a comida. A fêmea curvou-se para diante, com as asas meio abertas e palpitando forte.
Tomou o caracolzinho e tragou-o prontamente.

Por meio desse ato singelo, de galanteio alimentar, tinha-se o macho oferecido para companheiro, e fora aceito.
Começava o namoro. Daí, continuaram a catar, cada um de seu lado, não cuidando um do outro, mas sem jamais se
apartarem muito. E, como nunca antes, o macho estava sendo chamado pela dobra de pedras redondas, na tundra
longínqua.

Ao escurecer, ele soltou asas e foi ficar girando, lá em cima, assoviando

para a fêmea, ternamente. Ela se lançou no ar, vindo para perto dele, e emparelharam vôo, se afastando do mar,
até à encosta gramada de uma colina. Essa noite dormiram, juntinhos, com os pescoços quase se encostando.

Retornaram às praias, à alvorada, e começaram a alternar revôos, de cerca de dez milhas, com paradas para comer.
Cada dia voavam mais e comiam menos. Lá pelo começo de fevereiro, achavam-se a mil milhas para o norte, e a
primavera entrava a influir-lhes crescente agitação. Agora o macho parava subitamente de comer e passeava
empertigado . diante da fêmea, com o pescoço inflado e as penas da cauda expandidas num grande leque. Ela
respondia se acaçapando, com asas frementes, e pedia alimento, ao modo de um filhote. Então o macho lhe
oferecia um biscato, seus bicos se tocavam, e o alarde de amor de repente cessava.

Num anoitecer, com forçoso vento oeste, partiram para o interior, como de tardinha sempre faziam. Dessa vez,
porém, a escuridão veio e eles continuaram voando, endireitados para noroeste, rumo aos distantes picos dos
Andes, até que suas asas se cansaram. Sentia agora o macho um desafogo da ansiedade, porquanto, com o primeiro
vôo noturno, de fato a migração principiara. Cada noite, as asas se lhes robusteciam, e, numa semana, estavam
voando, sem pousar, de escurecer a madrugada.

Voavam muito juntos, o macho sempre guiando, a fêmea a um pé ou dois atrás, amparando-se no remoinho de ar
por ele causado. Conversavam na escuridão, constantemente, meigos ciciados pios, que débeis se faziam ouvir por
sobre o aéreo zunido empós de suas asas; e o macho começava a esquecer-se de que algum dia houvesse
conhecido a solidão. Topavam com muitas tarambolas, mas não faziam nenhuma tentativa de se enquadrilhar com
elas.

A rota para o norte, através da América, era diferente do itinerário de vinda, norte—sul. Ao passarem dos pampas à
região boscosa norteargentina, os lugares onde comer se tornaram mais vasqueiros. A quinhentas milhas para o
poente, havia as praias do Pacífico, porém a imensidão da Cordilheira dos Andes amontoava-se de permeio. Podiam
voar em direção nordeste, às florestas equatoriais do Brasil, onde o alimento e mesmo os pontos de pouso
rareavam, por mil e quinhentas milhas; ou guinar a oeste, a afrontar o alto, fino e tempestuoso ar dos Andes, com o
Pacífico da outra banda. Os maçaricos se voltaram para oeste, por instinto.

Uma noite inteira voaram, ganhando contrafortes da montanha, remontando de lanço em lanço, até que suas asas
latejaram de fadiga. E, ao romper da alva, quando pousaram, num relvado altiplano, a terra adiante subia ainda,
empinada, sem termo.

O vôo da segunda noite foi mesmo mais trabalhoso, porque a subida sempre mais se alcantilava, e rarefazia-se o ar,
fornecendo menor apoio às suas asas e menos oxigênio aos exaustos pulmões. Horas antes da aurora, os maçaricos
baixaram, extenuados, a uma escarpa rochosa, onde descansaram, bem juntos, escorando-se dos terríveis ventos.
A luz do dia aclarou um rígido mundo vertical, por onde rolos cerrados de nuvens velozmente deslizavam, feito
fossem as asas da ventania incessante. E os cimos que eles teriam ainda de sobrecruzar achavamse ocultos por um
teto de névoa fervente. Todavia, mesmo ali havia insectos, e os maçaricos comeram, embora cada movimento,
consumindo oxigênio, representasse para eles um esforço esgotante. Ao anoitecer, o ar se esfriou, súbito, e o correr
de brumas converteu-se em neve. Não retomaram o vôo, porque o desmedido obstáculo de rochedos e geleiras,à
sua frente, exigia para a travessia a claridade diurna.

Essa noite, o vendaval saturado de neve berrava varrendo de fundo a fora a face da montanha, a ponto de mal
poderem os pássaros fazer finca-pé contra ele. Por fim, uma rajada de sobrevento catapultou-os, revirados e
inermes, no espaço. O macho pelejou para reequilibrar-se, e conseguiu atracar de novo. Mas a fêmea se sumira.

Ele chamou, desesperado, e a tempestade trazia de volta seus pios, sem resposta. Quando o vento deu uma pausa
momentânea, ele saiu voando baixo, em estreitas voltas, procurando e piando, em vão. O vento recresceu, e ele se
agarrou ao musgo do íngreme talude de pedra, ansiando de hico aberto. Ao voltarem-lhe as forças, revoou outra
vez na danada treva, descrevendo giros, chamando, a angústia da solidão atormentando-o sob nova forma.

Levou uma hora para descobri-la, encolhida sob uma plataforma de laje, tão perturbada quanto ele mesmo. Os dois
se uniram, pescoço com pescoço, e o calor de seus corpos deu para derreter um oval na neve granulosa.

À ponta do dia, amainou o vento, e o macho viu que tinham de partir, pois ali não poderiam agüentar demora.
Quando a neve de novo se transfez em nevoeiro, eles saíram acima, à plana camada de nuvens. Volutearam
estreitamente, através da espectral, tumular neblina branca, remontando ao máximo, até que irromperam
desimpedidos num claro, calmo céu. Ali, a quatro milhas sobre o nível do mar, eles penetravam um fantástico
mundo de frio intenso e luz fascinante, onde nenhuma criatura viva poderia resistir por muito tempo. Sob o
arregalado sol, os bancos de nuvens se estendiam além, aos horizontes, num grande plaino empolado. A unia milha
de distância, um pico erguia através da camada sua carapuça de neves, e ao longe levantavam-se outros, feito ilhas
penhascosas para fora de um alvo mar.

Os maçaricos passaram ao vôo horizontal, rente às nuvens, e davam de asas devagar, trabalhadamente, rumo ao
cume mais próximo. Voavam com os bicos abertos, ofegando no ar rarefeito. Doíam-lhes os corpos, e as goelas,
secas, ardiam de sede.

Ao acercarem-se do tope da montanha, outra vez o vento recrudesceu. Mordentes lufadas de neve turbilhonavam
contra eles, vindo do cimo, mas os dois se afanaram para diante, e foram pousar nuns torreão de cinzenta pedra
escalvada.

Após descanso, revoaram para o oeste, por muito tempo, até que afinal o assoalho de nuvens se abscindiu numa
despejada continuação branca em formato de vales profundos e altas colinas. Daí, um daqueles vales se socavou
em brecha, pela qual os pássaros puderam avistar uma planura, semelhante a deserto. Isso, a duas ou três milhas
abaixo deles, porquanto os Andes terminavam abruptamente no Pacífico.

Tinham estado calados o dia todo, mas agora o macho piava excitadamente, enquanto guiava ' a fêmea por ali
abaixo, por entre as paredes de nuvens. A apertada abertura, longe lá, sob, foi ficando maior. O ar esfuziava atrás
deles, que ziguezagueavam excentricamente a fim de frear a rapidez da descida. Seus ouvidos doeram com a
mudança de pressão, quando eles se saíam do farro de nuvens e se endireitavam em direção à tira azul-pálida do
Pacífico. De tardinha, pousavam numa pequena praia.

Com o crepúsculo, os grandes cones vulcânicos dos Andes desenhavam-se negros contra o este a acinzentar-se,
assumindo amedrontadora macicez. Todos os anos, o instinto migratório do maçarico trouxera-o a sobrepujar a
monstruosa barreira. E cada ano ele olhara para trás; e mesmo o seu cerebrozinho menino podia pasmar-se da
pertinácia de suas próprias asas.

Relatório do Comitê de Proteção dos Pássaros, 19391940, a União dos Ornitologistas Americanos, sobre suas
investigações acerca das causas gerais do empobrecimento da avifauna.

O Comitê de Proteção dos Pássaros teme que as seguintes espécies tenham de incluir-se na lista daquelas cuja
sobrevivência é duvidosa: o condor californiano (do qual restam menos de cinqüenta exemplares), o pica-pau-do-
bico-de-marfim (menos de trinta, sabidos), o maçarico-esquimó (número — se é que ainda há algum — ignorado).
E possível, naturalmente, que o maçarico-esquimó já esteja extinto; mas algumas, poucas, informações de sua
existência, na última década, dão-nos a esperança de que os observadores o tenham apenas despercebido.
Conviria, contudo, tentar estabelecer contactos, a esse respeito, na Argentina. Se se encontrarem maçaricos
invernando naquele país, medidas poderiam ser tomadas para melhor assegurar sua proteção.

A delgada faixa litoral entre o mar e os Andes peruanos é uma região tórrida e deserta. As brisas marinhas, que
sopram da Corrente fria de Humboldt, raramente trazem chuva, e poucos rios vem lançar-se no Pacífico, para dar
origem a baixadas paludosas, aonde as marés deponham as matérias nutritivas do oceano. Ali, assim, as aves
praieiras comem escasso.
Sempre cansados e mal alimentados, seguiam os maçaricos para o norte, por aquelas praias estreitas. Por ora, não
havia folga nem energias, para as cenas de namoro; mesmo mal podiam ter tempo para repouso. Março estava à
porta, e, longe, no norte, a primavera andaria a despertar o vale do Mississippi. Agora o Árctico acenava-lhes com
uma veemência que os doridos músculos de seus peitos não alcançavam aplacar.

Em menos de uma semana, cobriram duas mil milhas e atingiram os piamos arenosos de Punta Paririas, perto da
linha equatorial. Ali a costa abria uma concavidade em meia-lua, de duas mil e quinhentas milhas, para leste, norte
e oeste, até às ricas regiões montanhosas da Guatemala; em linha reta, porém, para o norte, por sobre essa
reentrância do Pacífico, a Guatemala ficaria apenas a mil e duzentas milhas de distância. O maçarico estava ainda
com fome, o papo só meio cheio, quando a noite começou a refrescar as areias quentes. Ele se alçou no crepúsculo
tropical, a fêmea atrás, rente, e virou para o norte, para o Pacífico, aonde a terra da América Central situava-se ao
fim de vinte e quatro horas de vôo. Só ia ser uma travessia de metade da duração do voar de outono, para o sul;
mas aquele se iniciara com os corpos bem nutridos; e agora se achavam fracos, magros. Dentro de duas horas seus
estômagos tornariam a afligir-se, ocos de fome.

A lua entrou e veio a aurora, e eles voavam adiante e adiante, à castigada cadência de três ou quatro batidas de
asas por segundo. Nada quebrava a lisa soledade do mar, salvo um albatroz — a planar nas gigantescas asas —
quando em quando. Mas os maçaricos voavam certos para o norte, suas cabecinhas feito bússolas, afinadas com as
forças terrestres que informam da direção.

O macho, rompendo o ar para a fêmea, padecia fadiga maior; mesmo assim não largava a guia. Ao dar ele sinal de
afrouxar seu batido de asas, a fêmea — que calara por quase vinte e quatro horas — começou um cacarejo grave,
rouco, e isso infundia-lhe ânimo de vigor que nenhum alimento ou repouso poderia comunicar. Punha-se o sol,
quando, no horizonte, o opressivo azul do mar se debruou de estreita e indistinta fita cinzento-azulada — os
montes de Guatemala e Honduras. Restava ainda uma meia hora de luz do dia, quando os maçaricos alcançaram a
praia orlada de palmeiras. Pegaram logo a comer; ao chegar a escuridão, sua fome e cansaço iam já diminuindo.

Mas o alimento era parco. E, embora o outro dia fosse quente, os maçaricos revoaram. Internavam-se agora no
país, porque era verão na América Central e os herbosos planaltos do centro dariam rica safra de gafanhotos. Dali a
quatro horas, numa chapada, a duzentas milhas da costa, juntavam-se eles às multidões de outras aves ripícolas, e
de tordos, rabos-ruivos, tanagras e triste-pias, que afluíam para o norte, com rumo à primavera boreal. Aí não se
ouvia, porém, gorjeio algum de pássaro, pois o canto era a proclamação pública do território-de-cria, que, para a
maior parte deles, situava-se ainda a duas mil milhas mais longe.

Nos morros ladeirentos os gafanhotos pulavam em infinidade, e os maçaricos demoraram-se ali, engordando para a
arrancada final, destino ao norte. Seus corpos refizeram-se sacudidos e abolados, e a ânsia de amar exaltava-se
neles feito uma febre. Lá pelo fim da semana, tinham percorrido até ao ápice a península do Yucatan. Aguardavam-
nos, do outro lado do Golfo do México, as costas pantanosas da Louisiana e do Texas, para além das quais havia
apenas as livres pradarias, estendendose quase até ao Ártico.

... Mas as maiores matanças ocorriam depois que os pássaros transpunham, na primavera, o Golfo do México, e que
os grandes bandos passavam para o norte, cruzando as planícies americanas.

Esses bandos lembravam aos colonos da pradaria as revoadas dos pombos de arribação, e por isso os maçaricos
foram apelidados de "pombos da campina". Ao pousar, os pássaros cobriam quarenta ou cinqüenta acres. A
carnificina era quase inacreditável. Caçadores. locomoviam-se, de Omaha, e atiravam aos pássaros até que,
literalmente, houvessem massacrado a carga para encher um vagão.

Não era difícil chegar bem perto dos pássaros pousados. A uma distância de vinte e cinco a trinta jardas, os
caçadores esperavam que eles se aprumassem em pé, o que era o sinal para a primeira descarga. Sobressalteados,
abalavam em vôo e giravam por sobre o campo algumas voltas, e as vezes tornavam a pousar por ali mesmo, com o
que o ataque se repetia. Em ocasiões, podiam ver, com óculo-de-alcance, como eles de novo baixavam,
aglomerando-se num campo, no raio de duas ou três milhas; rodavam então imediatamente para lá os caçadores,
com carros e cavalos, e recomeçavam o tiroteio.

Ali na costa do Yucatan, milhares de aves arribadiças esbarravam, que nem um rio represado de repente, e
esperavam o vento propício. Afinal, uma tarde o vento se avivou, e os pássaros menores saíram em breves
experiências de vôo, mar a fora e retornando; porque iam ter de enfrentar a prova mais rigorosa de sua migração.
Logo, muitos deles emendaram ida, ao mar livre, dissolvendo-se no céu feito pontinhos pretos. Ao por-do-sol,
apenas os maçaricos, e algumas outras aves aquáticas, no lugar ainda estacionavam.

Subia a lua cheia, quando os maçaricos levantaram vôo. Mas daí a duas horas pegaram a alcançar os pássaros
pequenos, partidos primeiramente.

O ar andava cheio de pios-de-chama, e asas cintilavam prateadas, ao luar. Os maçaricos deixavam para trás os cucos
que iam fazer ninho na Nova Inglaterra, trinadores-de-cabeça-preta a caminho do Alaska, triste-pias e trigueirões-
do-pescoço-preto destinando-se às pradarias, e os brilhantes e pequeninos papa-moscas rubros que parariam na
Louisiana. Uma espécie, porém, nunca passaram: os minúsculos beija-flores,que estariam muito para diante,
vibrando o ar com suas setenta batidas de asas por segundo. Vinte horas levariam os mais pássaros, para atingir a
terra firme. Os maçaricos levavam dez. Aos colibris, oito bastavam.

Dali a poucas horas, tinham os maçaricos sobrepassado os passarinhos, e de novo voavam sós. Súbito o vento leste
voltou ao sul, depois voltou para o norte, e eles giraram a oeste, a fim de conservá-lo de través. E então veio a
chuva, muralha de água impetuosa. Toda a noite durou a tempestade; mas, bem o sol raiando, os maçaricos
chegaram a límpido céu. No normal, teriam prolongado o vôo, além do litoral texano, para aterrissar nos longes
plainos aluviais do interior; mas o temporal fatigara-os e encharcara-os, e eles deslizaram baixo, ao dar com uma
comprida e estreita ilha, estendendo-se paralela à linha da costa. Sobrevoaram bandos de tarambolas e borrelhos,
também compelidos a descer pela tempestade; e fizeram-se então para uma das dunas, onde toparam com
centenas de maçaricos hudsônicos, que os chamavam com pios bulhentos. Os dois esquimós fecharam a meio as
asas e deixaram-se despencar, pesadamente. Mas só ficaram uni dia com os hudsonianos. Ao cair da noite,
prosseguiram o vôo, para uma pradaria distante, muito terra a dentro.

Agradava-lhes agora esperar, enquanto a primavera andava adiante deles. Este era o estirão para chegar em casa, e
podiam transpô-lo numa semana, se necessário. Ignoravam os maçaricos que, antes de junho, a tundra não estaria
pronta para a nidificação. Sabiam apenas que os prados do Texas regurgitavam de insetos. E sentiam o desejo de
demorar-se por lá.

Era começo de abril, quando a inquietação deles se reapossou, e reini-ciaram os breves vôos noturnos. Voavam
despreocupados, detendo-se muito antes da aurora, às vezes permanecendo dias seguidos num mesmo lugar. Seu
sinal de aviso era o florir dos salgueirais, nas baixadas de beira dos rios.

Quando se abriam os amentos felpudos, eles se punham ao ar e voavam até atingir, longe, um ponto mais ao norte,
onde os botões das árvores ainda estivessem fechados. Esperavam, então, nutrindo-se profusamente de ovos de
gafanhotos. E, quando os amentilhos dos salgueiros rompiam seus botões, os maçaricos tornavam a arribar.

Do "A Alca-Torda", jornal publicado pela União dos Ornitologistas Americanos.

Dois maçaricos-esquimós, parecendo tratar-se de um par acasalado, foram vistos, em março de 1945, na Ilha
Galveston, no Texas, no meio de enorme conjunto de aves praieiras e palustres, compreendendo areeiros, guílhitos,
garças, e centenas de maçaricos hudsonianos. Como freqüente sucede durante a migração da primavera, na costa
do Golfo do Texas, uma forte borrasca e o virar do vento tinham feito descer em terra, na noite anterior, atropelada
visitação de arribantes.

Apenas um fortuito maçarico-esquimó, solitário, fora avistado nos últimos vinte anos; e o fato de serem estes dois,
provavelmente, um par acasalado, dá a notícia grande significação. Enquanto houver um casal, haverá esperança de
que a espécie possa ainda escapar do aniquilamento.

Agora era o tempo de plantação de milho nas planícies do Nebraska e do Dakota, e sulcavam os restolhais grandes
mostros de aço, que roncavam como a arrebentação do oceano. As aves praieiras quase todas evitavam as
máquinas e os homens que as dirigiam; mas, ao passo que os pernas-amarelas e borrelhos fiavam-se da timidez e
cautela para sobreviverem, o maçarico-esquimó contava tão somente com o vigor de suas asas, e tinha pouco senso
do medo. Os dois maçaricos seguiam de muito perto as máquinas roncadoras, comendo os bichinhos e larvas que os
arados desenterravam.
Todo esse tempo, vinham-se intumescendo suas glândulas reprodutoras, de compasso com a marcha da primavera,
de modo que eles e a tundra estariam prontos juntos para a ninhança. Ao aproximar-se do apogeu o ciclo físico,
outro tanto sucedia com o emocional. A alta temperatura dos corpos e o rápido metabolismo fazem todas as
atividades orgânicas mais velozes e intensas nas aves do que em quaisquer outros seres: quando se acerca a época
da proliferação, elas namoram e amam com uma paixão correspondente à energia de todos seus demais processos
fisiológicos.

Muitas vezes ao dia, agora, a aumentada emoção do maçarico refervia em frenética ostentação de amor. Primeiro
ele pulava para o ar e librava-se com palpitantes asas, enquanto desferia o claro e gorjeado canto nupcial. Depois
de alguns segundos, ascendia, quase em reta, suas compridas perninhas pendendo para trás, até chegar a uns cem
pés acima da campina. Aí, pairava de novo, piando forte para a fêmea, que, longe lá embaixo, saltitava e assoviava
trilos de excitado chamamento. Então ele se afundava, em pique, na direção dela, para, justo sobre sua cabeça,
desviar-se, tornando a subir, e ir aterrissar a algumas jardas de distância.

A cantar em altas casquinadas, estufados pescoço e peito, penas em arrufo, ele sustinha as asas distendidas por
cima do dorso, até que a fêmea vivamente se bamboleasse, com frêmitos de asas, piando o dissonante chilido com
que um filhote pede o cibato. Com o que, para ela se precipitava, suas asas batendo de tal modo, que quase
caminhava no ar. Seus peitos se encostavam, e ele alisava ternamente com o longo bico as penas castanhas das
asas da fêmea.

Dali a alguns segundos, tornava a sair de carreira, para ir fisgar o bichinho maior que achasse e colocá-lo com jeito
no bico da companheira. Ela o engolia, suas penas do pescoço de repente se derriçavam, e o idílio bruscamente
tinha fim. Porque, até agora, o galanteio alimentar marcava o ponto alto do namoro; seus corpos ainda não
estavam preparados para o ato final do acasalamento.

Sempre se encaminhavam para o norte, umas cem ou duzentas milhas cada noite. 0 macho se maturou primeiro,
pronto para a procriação. Sua emoção se fazia um frenesi, e ele passava a maior parte de cada dia em arrebatada
exibição diante da fêmea. Mas, a cada uma das oferendas amorosas de alimento, a ansiedade dela se acalmava, e o
pavoneio se interrompia.

Era em meados de maio, e a pradaria do Canadá, recém-lavrada, fumegava aquecida ao sol. Os maçaricos seguiam
de muito perto uma cias grandes máquinas agrícolas, ciscando as gordas larvas no chão que ela revolvia. Deviam
estar a derreter-se, agora, as neves da tundra. Nos ovários da fêmea o primeiro de seus quatro ovos se achava apto
para a fecundação.

O macho se arremessara ao ar, seu canto de amor vibrando veemente. Pairava. E nem notou o silenciar do ronco da
grande máquina, porque seus sentidos se fixavam na fêmea longe lá embaixo — a se destacar, palpitante, contra a
terra escura.

De mão à testa, o homem sentado no trator estava olhando atentamente para cima. O maçarico voou em
mergulho, e a fêmea reclamou-o estridentemente. Ele colheu um bichinho do chão e se apressou em direção a ela,
de pescoço alongado, asas batendo. Viu o homem pular do trator e correr para a cerca. A isso, em momento
normal, mesmo os maçaricos teriam revoado; porém o enlevo amoroso cegavaos para tudo o mais em volta.

Sobre eles estourou o trovão, saído de céu limpo e vívido. A terra em torno foi jogada para cima, num punhado de
minúsculos salpicos negros.

Rápido o maçarico-esquimó voou, rente ao solo, para não perder velocidade com a subida. Vendo que a fêmea não
o acompanhara, retornou, aos círculos, alertando-a com atitos. O corpo dela, marrom, se acocorava ainda no
campo. A poucos pés acima dela, ele adejou, chamando desatinado.

Então o trovão estourou segunda vez, e invisível golpe arrancou-lhe das asas estendidas duas penas. Aturdiu-o o
chofre, por completo, e ele baqueou em terra, com tom surdo, ao lado da fêmea. Desorientado e espavorido, rasou
vôo novamente, mas depois fez volta, vindo em giros, sempre pela companheira. Agora ela estava em pé, atitando
também, em panico. Suas asas bateram em vão, em tentativas repetidas, antes que ela conseguisse levantar-se
vagarosa no ar. A custo ganhou velocidade e altura, e o macho veio voando bem juntinho a seu lado.

Ele continuava a chamar com insistência, mas a maçarica não respondia. Voaram por alguns minutos, e o campo,
com seu apavorante trovão de à luz do sol, ficara muito para trás. Porém a fêmea voava devagar. Ela começou a
retardar-se, e o macho voltava de lá, volteava, para estimulá-la com desesperados apelos.
O vôo dela se desajeitou, ficando pesado. Urna das asas se estorvava no bater, e embaraçava-lhe o equilíbrio. Sob
essa, as penas cor-de-camurça do peito estavam-se empretecendo e molhando. Outra vez ela pegou a chamá-lo,
não core os vivos pios de alarme, mas com o garganteado e terno arrulho de amor.

Aí, subitamente, ela caiu. As asas deram ainda de agitar-se, alquebradas, e o corpo sem cessar se debateu, até por si
mesmo se aninhar na terra úmida, lá embaixo.

O maçarico descrevia círculos no ar e piava desvairado, chamando-a a que o seguisse. Porém a fêmea não se mexia.
Embora os queixosos gritos devessem alcançá-la, não` piava em resposta.

Muito tempo depois foi que ele dominou o medo e pousou junto dela. Meigamente alisava-lhe com o bico as penas
das asas. Ao vir a noite, o chamado da tundra se fez insistente e imperioso, pois o tempo de ninhar estava quase ali.
Ele revoou, repetidamente, piando cá para trás, para ela, mas a fêmea não voava acompanhando-o. Afinal, ele
repousou e adormeceu, bem ao seu lado.

Ao madrugar, ele pairou alto no céu cinzento, seus pulmões se dilatando, no entoar o canto nupcial. Agora ela não
reagia à amorosa oferenda de alimento. Ele voou de novo, chamou-a ainda uma vez. Daí, reendireitou-se, o sol
nascente a cintilar róseo em suas penas, e tocou para o norte, em silencio, sozinho.

As poças de água das neves e a ruga de pedras redondas, e os salgueiros anões que vegetavam ao lado da curva em
S do rio da tundra, eram os mesmos. O maçarico estava cansado, do longo vôo. Mas, quando uma tarambola-
dourada esvoaçou rente à raia de seu terreno, ele se atirou em ataque, doidado. O verão do Ártico era curto. O
território tinha de conservar-se pronto, para a fêmea que seu instinto lhe dizia dever logo chegar.

[i] Musgos dos Gêneros Sphagmum, Hypnum, etc; musgos e juncos que cobrem certos pântanos, no Canadá e Norte
dos Estados Unidos.

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