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O livro possui duas partes.

A primeira propõe
dois princípios a serem usados na interpretação da
intervenção do Estado na economia: o pragmatismo
e a razão pública. As intervenções estatais devem JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
ter base em dados reais e pretender alcançar José Vicente Santos de Mendonça
objetivos possíveis (pragmatismo). Além disso,

À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO


tais intervenções não devem ser guiadas por visões Mestre e Doutor em Direito Público pela

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO


A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
dogmáticas (razão pública). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. LLM
A segunda parte analisa diversas polêmicas
envolvendo (i) poder de polícia, (ii) empresas
DIREITO pela Harvard Law School. Professor Adjunto
de Direito Administrativo da UERJ. Professor
estatais, (iii) monopólio público, (iv) fomento
público, (v) regulação. Nesta parte, o livro aplica
CONSTITUCIONAL do mestrado e do doutorado da Universidade
Veiga de Almeida. Procurador do Estado do
os dois princípios desenvolvidos na primeira parte,
dando exemplos do que seria uma interpretação
ECONÔMICO Rio de Janeiro. Advogado e parecerista em
Direito Público.
pragmática e adequada à razão pública.

O livro foi inteiramente revisto, atualizado e A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA


ampliado para a segunda edição. ECONOMIA À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA
E DO PRAGMATISMO

PREFÁCIO DANIEL SARMENTO

JOSÉ VICENTE

MENDONÇA
SANTOS DE
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Vendas: (31) 2121-4949
ISBN 978-85-450-0416-5

2ª edição

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DIREITO
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46, III da Lei nº 9.610/1998.
DIREITO CONSTITUCIONAL
ECONÔMICO
A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO
José Vicente Santos de Mendonça

Daniel Sarmento
Prefácio

DIREITO CONSTITUCIONAL
ECONÔMICO
A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
À LUZ DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO

2ª edição revista atualizada e ampliada

Belo Horizonte

2018
© 2014 Editora Fórum Ltda.
2018 2ª edição

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.

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M539d Mendonça, José Vicente Santos de

Direito constitucional econômico: a intervenção do Estado na economia à luz da


razão pública e do pragmatismo / José Vicente Santos de Mendonça ; prefácio de Daniel
Sarmento. – 2. ed. – Belo Horizonte : Fórum, 2018.

421 p.

ISBN 978-85-450-0416-5
1. Direito econômico. 2. Direito constitucional econômico. 3. Direito administrativo.
I. Sarmento, Daniel. II. Título.

CDD: 341.378
CDU: 34:33(81)

Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de


Normas Técnicas (ABNT):

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do Estado
na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 421 p.
ISBN 978-85-450-0416-5.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a meus pais e à minha avó. Agradeço a Paulo Galvão. Agradeço a troca
de ideias com Gustavo Amaral e Christiano Taveira. Agradeço a Fernando Barbalho,
Raquel do Nascimento, Joaquim Rohr, Rodrigo Botelho, Karen, Bruno Morisson
(grande amigo), Cláudia e Paula, que ajudaram, deferindo ou substituindo férias na
PGE, para a elaboração do livro. Agradeço a Carlos Edison pela ajuda em questões
administrativas junto à UERJ. Agradeço a Noel Strüchiner. Agradeço ao amigo César
Campos. Com Henrique Bastos Rocha discuti aspectos do capítulo 1 da segunda parte.
Ana Terra forneceu informações úteis sobre o Comitê Olímpico Brasileiro, utilizadas
no capítulo 3 da segunda parte. Joana Tavares enviou cópia de versão de sua tese de
doutorado na Universidade de Castilla-LaMancha que foi bastante útil no capítulo 1,
item 1.4, da primeira parte. Carlos Ari Sundfeld alertou para aspecto do Anteprojeto
de Lei destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67. Daniel Sarmento, no exame de
qualificação da tese de doutorado que deu origem ao livro, fez observações a respeito
do conteúdo do capítulo sobre fomento público e sugeriu a leitura de Chantal Mouffe.
Alexandre Aragão fez observações quanto ao conteúdo do texto. Cláudio Pereira de
Souza é coautor de artigo que representa o embrião de muitas das ideias desenvolvidas
no capítulo 2 da primeira parte e no capítulo 1 da segunda parte. José Marcos, Felipe
Besada e Carina forneceram apoio na pesquisa. Renata Marinho efetuou revisão do
texto e do conteúdo filosófico da primeira parte. Siddharta Legale reviu os originais do
livro. Agradeço, ainda, à comunidade da Faculdade de Direito da UERJ.
Os covardes sempre se lamentam e choram.
Os fracos acham que hoje tudo se acaba.
Na verdade é exatamente o contrário: é hoje que tudo começa.
(GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Trilogia suja de Havana.
Salve-se quem puder)
SUMÁRIO

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO


Daniel Sarmento.....................................................................................................................................13

NOTA DA SEGUNDA EDIÇÃO..........................................................................................................15

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................17
1 Tema do livro..............................................................................................................................17
2 Plano de trabalho........................................................................................................................18

PRIMEIRA PARTE
BASE TEÓRICA

CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL
AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO.................................................................23
1.1 Introdução: por que estudar o pragmatismo jurídico?.........................................................23
1.2 O pragmatismo na Filosofia: um conto de três cidadãos. Algumas
questões clássicas........................................................................................................................26
1.2.1 A matriz pragmatista: antifundacionalismo, consequencialismo e contextualismo........31
1.2.2 Críticas e contracríticas: a decadência do pragmatismo filosófico clássico........................32
1.2.3 O neopragmatismo filosófico: entre a autenticidade e a reinvenção. A explosão
contemporânea da abordagem pragmatista...........................................................................36
1.2.4 A utilidade do pragmatismo filosófico para o debate sobre o pragmatismo
jurídico: a visão de Richard Posner, Thomas Grey e David Luban....................................39
1.2.5 Sobre o uso das expressões “argumento prático”, “argumento pragmático” e
“argumento consequencialista”................................................................................................43
1.3 O pragmatismo como teoria e metateoria do Direito............................................................45
1.3.1 O “pragmatismo jurídico cotidiano” de Posner: definição e características......................47
1.3.2 Ataque e contra-ataque: o pragmatismo jurídico de Posner em questão...........................56
1.3.3 Outros pragmatismos jurídicos: as versões de Michael Sullivan, Stephen Breyer
e Jules Coleman...........................................................................................................................66
1.4 O pragmatismo na argumentação jurídica.............................................................................72
1.4.1 Os argumentos consequencialistas em Neil MacCormick: consequências como
implicações lógicas e dever de universalização.....................................................................73
1.4.2 Aulis Aarnio e os argumentos reais: as etapas da justificação consequencialista.............76
1.4.3 Luigi Mengoni e as regras metodológicas e substantivas da argumentação
consequencialista........................................................................................................................77
1.5 Contraponto: usos e desusos do pragmatismo à brasileira. Um projeto de lei
pragmatista..................................................................................................................................80
1.6 “Fazendo coisas com consequências”: uma proposta de “princípio” do
pragmatismo útil ao Direito Constitucional Econômico......................................................93
1.7 Conclusão parcial: o pragmatismo constitucionalmente adequado, ou: por um
consequencialismo não inconsequente..................................................................................103

CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE
CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA – EM BUSCA DA RECIPROCIDADE E
DO RESPEITO....................................................................................................................................105
2.1 Introdução: a aproximação entre o Direito Econômico e a Filosofia Política..................105
2.2 Democracia, democracias: o ideal da democracia deliberativa.........................................106
2.2.1 Origem do termo “democracia deliberativa” e características do conceito em
Joshua Cohen.............................................................................................................................107
2.2.2 A noção de democracia deliberativa em Amy Gutman e Dennis Thompson:
características e definição........................................................................................................109
2.2.3 O que a democracia deliberativa não é. Vantagens e críticas ao conceito........................111
2.2.4 Uma defesa (singela) do ideal de democracia deliberativa................................................113
2.3 Origens da razão pública. Kant e o uso público da razão. Aspectos gerais do
pensamento de John Rawls.....................................................................................................115
2.3.1 A razão pública em Rawls: natureza jurídica, abrangência, conteúdo, exemplo,
objetivos e definição.................................................................................................................119
2.3.2 Pensando com Rawls contra Rawls: duas questões prejudiciais à proposta
deste livro..................................................................................................................................122
2.4 Uma proposta de razão pública constitucional útil ao Direito Constitucional
Econômico.................................................................................................................................124
2.4.1 O que uma razão pública não é .............................................................................................125
2.4.2 O que nossa proposta de razão pública é: características, natureza jurídica,
sede constitucional e uma noção de razão pública útil ao Direito Constitucional
Econômico.................................................................................................................................127
2.5 A razão pública é útil? Sincera? Possível? Críticas à razão pública..................................130
2.6 Algumas respostas às críticas.................................................................................................137
2.7 Limites da razão pública.........................................................................................................140
2.8 Um requisito de coerência: a compatibilidade entre pragmatismo e razão
pública pela via dos acordos teóricos incompletos ............................................................142
2.9 Conclusão parcial: consensos estáveis, opiniões razoáveis................................................144

SEGUNDA PARTE
APLICAÇÕES

CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE
TRAUMAS E TABUS........................................................................................................................149
1.1 Introdução: os primeiros passos de uma polêmica sem fim..............................................149
1.2 Intervenções diretas monopolística e concorrencial: uma visão institucional................151
1.2.1 A origem histórica das estatais. As primeiras estatais brasileiras.....................................154
1.2.2 Para que são criadas estatais? As duas finalidades para a criação de estatais.
As duas (ou três) espécies de estatais. A ênfase na atividade da empresa.......................155
1.2.4 Constituição de estatais: semelhança formal e dessemelhança material. A questão
da criação das subsidiárias: uma decisão pragmaticamente correta do STF ..................164
1.2.5 As possíveis formas societárias das estatais ........................................................................172
1.2.6 Objeto social das estatais. Conflito de interesse nas estatais: diretrizes para
desdramatizar a colisão entre o interesse de lucro do acionista privado e o
interesse público. Inovações da Lei das Estatais. Podem as estatais ingressar no
Novo Mercado Bovespa?.........................................................................................................174
1.2.7 Regime jurídico das estatais: privado, mas com exceções finalísticas de Direito
Público. Os bens das estatais: três problemas contemporâneos........................................184
1.2.7.1 Estatais com poder de polícia: por que não?........................................................................191
1.2.8 Licitações nas estatais: o critério da concorrencialidade da atividade (e porque
os outros critérios não são bons)............................................................................................196
1.2.9 Algumas questões trazidas pela Lei das Estatais sobre licitações e contratações
destas entidades........................................................................................................................201
1.2.10 Regime de pessoal das estatais: questões clássicas. A captação de clientela...................208
1.2.11 O controle das estatais: entre a democracia e a ineficiência. O conhecimento
convencional a respeito do tema. Quatro standards para o controle dos Tribunais
de Contas sobre as estatais .....................................................................................................210
1.2.12 Estatais e princípios constitucionais da Administração: a incidência da legalidade,
da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência..................................219
1.2.13 A extinção das estatais: estatais não podem falir — e talvez isso não seja tão grave.....221
1.3 A intervenção concorrencial: limites e possibilidades pragmático-democráticas..........224
1.3.1 Os limites do interesse público e da proporcionalidade.....................................................224
1.3.2 A subsidiariedade da intervenção do Estado na economia ..............................................225
1.3.2.1 Incidências e origem histórica da subsidiariedade .............................................................225
1.3.2.2 Quatro fundamentos para a subsidiariedade. A suposta fonte formal da
subsidiariedade ........................................................................................................................228
1.3.2.3 O que é a subsidiariedade: uma diretriz política, não um princípio constitucional.
Críticas à subsidiariedade: razão pública e pragmatismo. A lição do Texto
Constitucional em vigor. O Direito Comparado .................................................................230
1.3.2.4 Resposta às críticas...................................................................................................................242
1.3.2.5 Alguns aspectos técnicos a respeito do art. 173 da Constituição.......................................250
1.4 A interpretação constitucionalmente adequada para a criação e a abrangência
dos monopólios públicos.........................................................................................................253
1.4.1 Origem da palavra monopólio. As diversas espécies de monopólio. A base
constitucional do monopólio público....................................................................................253
1.4.2 As lições da ADI nº 3.273-9/DF e da ADPF nº 46. A diferença entre monopólios
públicos e serviços públicos ...................................................................................................255
1.4.3 Como criar e interpretar monopólios públicos sem o uso de metafísica ideológica........... 261
1.5 O neointervencionismo estatal como solução (não constitucionalmente imposta)
de compromisso........................................................................................................................265
1.6 Conclusão parcial: longe da metafísica ideológica, rumo ao (neo)intervencionismo
democrático da eficiência........................................................................................................268

CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS – PRAGMATISMO E
RAZÃO PÚBLICA COMO NOVÍSSIMOS LIMITES AO EXERCÍCIO DO
PODER DE POLÍCIA.......................................................................................................................269
2.1 Introdução ................................................................................................................................269
2.2 Poder de polícia: revisão doutrinária....................................................................................271
2.2.1 Origem e sentidos da expressão “poder de polícia”. Base legal e constitucional.
Em defesa de um “poder de polícia” que ousa dizer o nome............................................271
2.2.2 Distinções com outras funções administrativas: o que o poder de polícia não é.............277
2.2.3 Características e classificação do poder de polícia .............................................................285
2.3 Limites clássicos ao exercício da polícia administrativa: elementos do ato
administrativo, devido processo e legalidade......................................................................290
2.4 Novos limites: dignidade humana, proporcionalidade e preservação do conteúdo
essencial dos direitos fundamentais. A superação da teoria das limitações e
sacrifícios de direitos................................................................................................................293
2.5 Novíssimos limites: pragmatismo e razão pública..............................................................301
2.6 Conclusão parcial: limites dos limites...................................................................................304

CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO,
EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA........................................................................................307
3.1 Introdução.................................................................................................................................307
3.2 O que é o fomento público: revisão da literatura................................................................309
3.2.1 Distinção entre fomento público e demais funções administrativas. Há fomento
entre órgãos públicos? Existe um fomento regulador?.......................................................312
3.2.2 Definição de fomento público. O problema da intercambialidade das técnicas.............321
3.2.3 Características do fomento público. O fomento é unilateral e possui pretensão
de temporariedade...................................................................................................................323
3.2.4 Os meios de atuação do fomento público ............................................................................331
3.2.5 Instrumentos do fomento público..........................................................................................335
3.3 O risco do fomento é o risco da intervenção desmedida: a paralisia. Outros riscos:
violação à concorrência, administrativização do espaço privado, violação à
legalidade e ineficiência econômica.......................................................................................337
3.4 Fomento público é discricionário ou vinculado? Fomento público pode
ser revogado?............................................................................................................................342
3.5 Critérios para o fomento constitucionalmente adequado. A legalidade e o
fomento público........................................................................................................................347
3.5.1 Critérios formais de concessão do fomento: transparência/procedimentalização,
competitividade e objetividade..............................................................................................348
3.5.2 Critérios materiais de concessão do fomento: não lucratividade, eficiência
pragmática do gasto, razão pública.......................................................................................350
3.5.3 Critérios de formulação do fomento........................................................................................355
3.6 Conclusão parcial: em busca do meio-termo de ouro.........................................................357

CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES...............359
4.1 Introdução: os problemas da regulação pública..................................................................359
4.2 Reduzindo os problemas de informação..............................................................................360
4.2.1 Centralização da informação..................................................................................................360
4.2.2 Assumir a dispersão da informação......................................................................................361
4.3 Buscando a adesão dos regulados..........................................................................................363
4.3.1 Audiências e consultas públicas. Uma possível taxonomia...............................................363
4.3.2 Economia comportamental: empurrõezinhos e simplificação...........................................366
4.3.3 Análise de Impacto Regulatório.............................................................................................370
4.4 Outros problemas da regulação. Um paradoxo da regulação...........................................374
4.5 A Nova Governança e a regulação pragmatista-experimental..........................................377
4.6 Conclusão parcial: o futuro da regulação e a regulação do futuro ..................................378

CONCLUSÃO GERAL.........................................................................................................................379
Síntese objetiva..........................................................................................................................379
I - Quanto ao pragmatismo.....................................................................................................379
II - Quanto à razão pública......................................................................................................382
III - Quanto à intervenção direta............................................................................................384
IV - Quanto ao poder de polícia.............................................................................................387
V - Quanto ao fomento público..............................................................................................388
VI - Quanto à regulação pública.............................................................................................389
Encerramento............................................................................................................................390

POSFÁCIO.............................................................................................................................................391

REFERÊNCIAS......................................................................................................................................393
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Este livro corresponde a uma versão adaptada e atualizada da tese de doutorado


defendida por José Vicente Santos de Mendonça perante o programa de pós-graduação
em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação do
Professor Paulo Galvão, aprovada com nota máxima pela banca examinadora, que tive
o prazer de integrar, juntamente com Alexandre Aragão, Cláudio Pereira de Souza Neto
e Floriano de Azevedo Marques. Trata-se de um estudo extremamente original, que em-
preende uma profunda análise crítica dos principais institutos do Direito Constitucional
Econômico brasileiro, à luz de aportes da Filosofia Política contemporânea.
José Vicente foi certamente um dos alunos mais brilhantes que tive em minha
trajetória docente. Como poucos, ele consegue aliar erudição humanista à criatividade,
visão prática à densidade teórica. Seus textos, mesmo quando tratam dos assuntos mais
técnicos, são sempre saborosos, enriquecidos por aportes interdisciplinares e tempera-
dos com fino humor e alguma dose de iconoclastia. Inovador e corajoso, José Vicente é
daqueles que não aceitam o argumento de autoridade — que, infelizmente, ainda tem
tanto peso no Direito Público brasileiro — mas apenas a autoridade do bom argumento.
Todas estas virtudes saltam das páginas do livro Direito constitucional econômico. A
primeira parte da obra é dedicada à exploração de dois temas fundamentais da Filosofia
Política: o pragmatismo e suas projeções sobre o Direito, e a teoria das “razões públicas”.
O autor trata desses tópicos com profundidade, dialogando com as melhores fontes,
para formular uma concepção própria sobre cada um deles. Sua abordagem é densa
e inovadora, mas também tem a virtude da clareza. José Vicente não ignora que, em
nosso país, as deficiências do ensino jurídico demandam que as categorias formuladas
na seara filosófica tenham de ser, em alguma medida, traduzidas para a plateia do
Direito, sob pena de não serem minimamente compreendidas, e faz isso com maestria.
Seguindo a marca estilística da nossa escola de Direito Público da UERJ, de que tanto
nos orgulhamos, ele corrobora a tese de que não é preciso ser obscuro para ser profundo.
Na segunda parte, o autor revisita as formas de intervenção do Estado na eco-
nomia, a partir das premissas filosóficas antes assentadas. Dedica páginas preciosas à
intervenção direta do Estado na ordem econômica — concorrencial e monopolística —,
ao poder de polícia, ao fomento e à regulação pública. Cada uma dessas modalidades
de atuação estatal é analisada detidamente pela obra, que propõe novos e instigantes
parâmetros para a sua legitimação constitucional.
José Vicente Santos de Mendonça é Mestre e Doutor em Direito Público pela
UERJ, tendo também concluído o LLM na prestigiosa Universidade de Harvard. É um
professor destacado nas áreas de Direito Administrativo, Constitucional e Econômico,
já tendo lecionado em diversas universidades, em nível de graduação e pós-graduação.
Além da atividade docente, exerce também a função de Procurador do Estado do Rio de
Janeiro. Apesar da juventude, a sua produção acadêmica é vasta e relevante. Publicou
inúmeros artigos doutrinários e capítulos de obras coletivas, todos de excelente qua-
lidade. E é também o autor de artigo individual, sobre o princípio da proibição do
retrocesso social — a sua monografia de conclusão de graduação —, que se tornou
referência fundamental na matéria.
Por todas essas razões, é com muita satisfação e orgulho que apresento o livro
Direito constitucional econômico do meu querido amigo José Vicente Santos de Mendonça.
Quem se aventurar pelas suas páginas vai aprender, vai pensar, vai se divertir.

Rio de Janeiro, 11 de maio de 2014.

Daniel Sarmento
Professor de Direito Constitucional da UERJ.
NOTA DA SEGUNDA EDIÇÃO

Da defesa de Dilma Roussef junto ao TCU, passando por acórdãos de Cortes de


Contas, caminhando por dissertações, teses, artigos e livros, e chegando ao indeferi-
mento pela ANCINE do fomento a uma série televisiva de pornô soft, pode-se dizer
que a primeira edição deste livro levou vida interessante. Eis a segunda. As alterações
são as seguintes.
Efetuei revisão com foco na clareza. Simplifiquei onde e como consegui, em
especial nos dois primeiros capítulos. Falhei: uma tese de doutorado sempre tende a
carregar em construções complexas. É difícil, depois, reencaixar as peças. Sigo tentando.
Como diria Kerouac, one day I will find the right words, and they will be simple.
Realizei, ainda, atualização do livro em conformidade com o novo CPC, e in-
corporei jurisprudência recente. Inseri notas de rodapé (é interessante que elas sejam
lidas, pois acrescentam, dialogam com o texto, além, claro, de fornecerem referências).
Algumas foram excluídas, e uma ou outra foi promovida ao texto principal.
Em específico, no primeiro capítulo, trouxe bibliografia recente e decisões do
Supremo que adotaram bases pragmatistas. Além disso, comentei projeto de lei de sabor
pragmático e elaborei tabela com os parâmetros do meu “princípio” do pragmatismo.
No segundo capítulo, sobre razão pública, também trouxe bibliografia mais
recente e uma ou outra decisão judicial. Aqui, a principal mudança foi tentar tornar o
texto mais acessível.
A atualização do primeiro capítulo da segunda parte, que trata da intervenção
direta do Estado na economia, deu trabalho. Revisei-a integralmente de acordo com a Lei
das Estatais. Mantive as referências ao Anteprojeto destinado a revogar o Decreto-Lei nº
200/67 como memória histórica (as soluções eram criativas). Adotei posições específicas
sobre aspectos das licitações e contratos da Lei das Estatais. Modifiquei posicionamen-
to a respeito dos critérios da delegação de poder de polícia às estatais (suprimi dois
critérios). Abri item para responder a críticas feitas ao argumento central do capítulo.
No capítulo sobre fomento realizei alterações pontuais para simplificar a redação.
Acresci exemplos e bibliografia recente. O capítulo possui sabor conceitual – acabou
se tornando, para usar adjetivo de Alexandre Aragão, texto seminal do tema –, então
optei por não mexer muito.
No último capítulo, trouxe bibliografia mais atual, elaborei comentários no texto
principal e em notas, e indiquei taxonomia possível para audiências e consultas públicas.
Na segunda edição tive ajuda de alunos. André Tosta reviu o capítulo sobre
pragmatismo, sugeriu bibliografia, notas, e montou a tabela (suprindo minha defici-
ência crônica relativa a computadores). João Pedro Accioly reviu o capítulo a respeito
do poder de polícia, sugerindo construções frasais e indicando pontos de conteúdo.
Matheus Meott leu o capítulo sobre fomento público e fez comentários laterais. Aceitei
poucos, mas ele deve estar certo, e eu, errado. Teresa Melo fez sugestões gerais. Leonardo
Carrilho me auxiliou em trecho do primeiro capítulo da segunda parte.
Agradeço, ainda, a todos os meus alunos de mestrado e de doutorado da UERJ
e da UVA, que semanalmente me auxiliam e inspiram com comentários e críticas.
INTRODUÇÃO

1 Tema do livro
O propósito deste livro é simples: não ser a doutrina jurídica do fim da história.
É incorporar o conflituoso, o maleável, o dúctil, o humanamente complexo à voz da
doutrina de Direito Constitucional Econômico, para que esta nem sequer tenha a tentação
de acreditar em pontos de partida (que na verdade são pontos de chegada) e para que
se abra ao óbvio: nossa Constituição é compromissória, a história não acabou, doutrina
jurídica não é catequese ideológica, interpretação constitucional não é fossilização de
pontos de vista.
O tema a ser aqui tratado é a interpretação constitucional. Uma interpretação
focada em determinados assuntos e dispositivos constitucionais, a saber, a interpretação
da Constituição Econômica e a interpretação de temas afetos ao Direito Constitucional
Econômico.
Nosso intuito não é analisar a interpretação constitucional sob moldes tradicio-
nais. É, na verdade, desenvolver outra proposta teórica, sempre com os pés fincados
na realidade e no Direito positivo brasileiro. Na teoria e na Filosofia estrangeiras do
Direito, encontraremos elementos e inspiração para propor dois novos “princípios”
de interpretação.1
Tais “princípios” são o pragmatismo e a razão pública.
O pragmatismo a que vamos nos referir é proposta teórica nossa, derivada tanto
do pragmatismo filosófico quanto das diversas teorias do pragmatismo jurídico. Ao
falar em “princípio” do pragmatismo jurídico, ressaltamos uma de suas principais
características: a incidência por intermédio de standards.
Também a razão pública a que nos referimos, se derivada da obra de um dos maio-
res teóricos da filosofia política do século XX — John Rawls —, recebe adaptações para
que se adeque à interpretação de questões do nosso Direito Constitucional Econômico.
O campo de incidência da razão pública é a interpretação do Direito Constitucional
Econômico feita por juízes, em especial da Corte Constitucional; por autoridades ad-
ministrativas; e, ainda, a interpretação feita pela doutrina jurídica.
Embora uma discussão filosófica profunda talvez não conseguisse reconciliar os
pressupostos filosóficos mais profundos do pragmatismo e da razão pública, optamos

1
Utilizaremos o termo “princípio” entre aspas, pois não estamos usando a palavra em sentido metodologicamente
rigoroso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
18 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

por visão mais simples, que apela à sua possível concordância no nível da incidência
prática.
Assim, a ideia a ser desenvolvida neste livro é a de que é possível e proveitoso
reler os institutos tradicionais do Direito Constitucional Econômico à luz da razão pública e do
pragmatismo, buscando construir interpretações constitucionais que sejam, ao mesmo tempo,
úteis, práticas e abertas à plurivocidade de visões de mundo presentes numa democracia con-
temporânea como a brasileira.

2 Plano de trabalho
Este livro é dividido em duas partes: uma teórica e outra prática. Cada capítulo
pode ser lido de modo autônomo.2 3 Ele foi escrito em linguagem direta, e, ao apresentar
ideias complexas, optou-se pela técnica da enumeração. Ao final de cada trecho, há um
resumo das ideias principais. As notas de rodapé, além de referências bibliográficas,
acrescentam informações.
A primeira parte se subdivide em dois capítulos. O primeiro é dedicado ao prag-
matismo; o segundo, à razão pública. No primeiro capítulo, após analisarmos algumas
teorias acerca do pragmatismo filosófico e jurídico, apresentamos nossa proposta para
o “princípio”.
No segundo capítulo, após estudarmos as polêmicas associadas à ideia de razão
pública, trazemos o conceito do “princípio” que poderá ser usado na interpretação do
Direito Constitucional Econômico brasileiro.
A segunda parte é dividida em quatro capítulos.
O capítulo 1 da segunda parte é dedicado à intervenção direta do Estado na eco-
nomia, seja sob monopólio, seja em competição com empresas privadas. Sua primeira
metade analisa as principais polêmicas relacionadas às estatais. A segunda metade
estuda os monopólios públicos e o princípio da intervenção subsidiária do Estado na
economia.
O tema do capítulo 2 da segunda parte é o poder de polícia. Sua primeira porção
volta-se a aspectos conceituais. Apenas para citar um dos assuntos, defenderemos que a
expressão “poder de polícia” não é tão irrecuperável quanto dizem. A segunda metade
trata dos limites ao exercício do poder de polícia. De especial interesse é a defesa que
faremos da incompatibilidade entre a assunção de proposta teórica baseada na teoria
dos princípios — como muitos autores de Direito Público dizem que fazem — e a alega-
ção de que existem restrições e conformações de direitos, afirmação clássica no Direito
Administrativo. A parte final do capítulo apresenta a razão pública e o pragmatismo
como os dois novíssimos limites ao exercício do poder de polícia.

2
Versão resumida do capítulo 3 da segunda parte apareceu em: MENDONÇA. Uma teoria do fomento público:
critérios em prol de um fomento público democrático, eficiente e não paternalista. Revista dos Tribunais, p. 80-
140. Algumas das propostas teóricas que concluem o capítulo 2 da primeira parte constam de José Vicente
Santos de Mendonça (Uma proposta de “princípio do pragmatismo jurídico” útil à interpretação de casos
envolvendo o Direito do Petróleo. In: ARAGÃO (Coord.). Direito do petróleo e de outras fontes de energia, p. 165-
200). A discussão a respeito da possibilidade de estatais exercerem poder de polícia, que consta do capítulo 1 da
segunda parte, apareceu antes em: MENDONÇA. Estatais com poder de polícia: por que não?. Revista de Direito
Administrativo, p. 97-118. Para a segunda edição do livro, todos os capítulos foram revistos e atualizados.
3
O livro corresponde, com alterações e atualizações, à tese de doutorado em Direito Público defendida na
Faculdade de Direito da UERJ no dia 30 de março de 2010, diante de banca composta pelos Professores Paulo
Galvão (orientador), Floriano de Azevedo Marques Neto, Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e
Alexandre Santos de Aragão.
INTRODUÇÃO 19

O capítulo 3 da segunda parte cuida do fomento público. Trata-se de capítulo


extenso, dada a pequena importância que o tema ainda recebe da doutrina nacional.
Afora aspectos conceituais, abrimos item para discorrer a respeito dos riscos do fomento.
Ao final, apresentamos critérios de formulação e de concessão de ajudas públicas.
O capítulo 4 da segunda parte trata de desenvolvimentos recentes do Direito
Constitucional Econômico que podem ser reconduzidos às noções de pragmatismo e
de razão pública. Nele falamos sobre a neorregulação e seus principais instrumentos.
No final do livro, realizamos síntese dos principais pontos tratados ao longo
da obra. Após tal síntese, uma nota de encerramento e um posfácio concluem o livro.
PRIMEIRA PARTE

BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1

EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO
PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO
DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

We must think things not words.


(Oliver Wendell Holmes)

1.1 Introdução: por que estudar o pragmatismo jurídico?


A proposta do capítulo é formular um “princípio” jurídico do pragmatismo
que seja útil para a interpretação do Direito Constitucional Econômico. Apresentamos
o pragmatismo, desde suas origens filosóficas até sua possível incidência no Direito,
assim como as críticas a ele. Não só as críticas, mas também as respostas a elas. No
final do capítulo, postulamos alguns critérios para o que poderia ser esse “princípio”.
Antes de ingressar no tema, cabe uma pergunta: qual é a importância de se estu-
dar o pragmatismo jurídico? Não seria mais interessante — para a sociedade e para a
comunidade jurídica — deixar o pragmatismo jurídico como ferramenta, inconfessada
ou não autoconsciente, dos juízes?4 5 Estudá-lo poderia significar, pelo ato da tomada
de consciência, torná-lo mais conspícuo. Será que realmente precisamos de juízes cons-
cientemente pragmatistas?

4

A questão adquire particular importância em relação à atividade dos juízes, porque, em relação aos legisladores
e aos administradores públicos, sempre se entendeu que devessem atuar com os olhares próximos às
consequências de suas ações.
5
“Não seria melhor, então, que nossos juízes fossem pragmatistas inconscientes? Não seria melhor, não apenas
ao reassegurar ao público que os magistrados estão atuando juridicamente da forma como este entende que
devam fazê-lo, ou seja, aplicando normas pré-existentes de um modo ‘objetivo’, mas, também, ao inocular
os juízes contra uma possível embriaguez advinda da percepção de poder?” (POSNER. Legal Pragmatism.
Metaphilosophy, p. 155, grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
24 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Se a ideia for aumentar o controle de sua atuação, sim. Raciocínios pragmáticos


são, antes de tudo, uma incontornável realidade.6 O que costuma ocorrer, no Brasil e em
diversos países de Ordenamento da linhagem romano-germânica, é que o pragmatismo,
no cotidiano jurídico, aparece às escondidas. Por questão menos de subteorização,7 e
mais de preconceito, advindo da percepção, por parte dos operadores do Direito e da
sociedade, de que o papel do juiz é o de “aplicar a lei”, e não o de operar com resultados,
argumentos relativos a consequências são mascarados dentro de argumentos formais
e normativos. É o cripto-consequencialismo,8 um pragmatismo que não ousa dizer seu
nome, mas que está bem vivo.
Considerando tal situação, estudá-lo não é só boa ideia, mas necessidade. Duas
razões militam em favor disso. A primeira é um dever de transparência na esfera públi-
ca: como há uma ferramenta sendo utilizada, é requisito republicano que se investigue
seu modo de atuação. A segunda é que, mercê de seu estudo, talvez se possa exercitar
a autocontenção. Tratar-se-ia, aqui, pelo lado dos juízes, de uma espécie de autocon-
tenção pela autodescoberta.9
Quanto à importância de se estudar o pragmatismo jurídico no Brasil, diga-se que
o tema está maduro. Não faltam referências, em discursos de magistrados, à importância
de se considerar as consequências das decisões,10 nem artigos e textos acadêmicos. Uma
das maiores polêmicas — no sentido real, não no figurado — que apimentou os círculos
jurídicos em meados do ano de 2009 envolveu dois Ministros do STF e um bate-boca

6
Uma discussão preliminar, ainda a ser travada na doutrina jurídica brasileira, é saber se teorias da interpretação
importam na prática. Em nota de rodapé deste capítulo, cita-se artigo de Daniel Farber, que, estudando a prática
americana, levanta dúvidas quanto ao ponto. Seria — em tese — possível realizar o estudo no Brasil, mas há
uma dificuldade, que é identificar a quais teorias da interpretação os juízes brasileiros se filiam. Suspeita-se
de que, aqui, ao contrário dos EUA, não há uma demarcação tão clara entre adjudicadores anti-formalistas e
formalistas (ou, para os efeitos deste capítulo, pragmatistas e não pragmatistas).
7
Recentemente, na doutrina brasileira, tem aparecido uma série de artigos e estudos monográficos acerca do tema,
no que se poderia chamar, talvez com algum exagero, de “virada pragmatista” da teoria jurídica. Entretanto,
uma coisa são as ondas da academia; outra, não de todo distante daquela, é verdade, é a aceitação consistente da
ideia por parte da jurisprudência. De toda forma, ainda se está muito distante da produção teórica dos Estados
Unidos, locus por excelência do pragmatismo, seja filosófico ou jurídico. Dentre as contribuições mais recentes,
v., por ex., a de Gustavo Binenbojm, que identifica, no mesmo sentido deste livro, uma “virada pragmática” em
curso no direito administrativo brasileiro (BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: transformações
político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo ordenador, p. 37 e ss). Cf., ainda, o
estudo de Leonardo Coelho Ribeiro, O Direito Administrativo como “Caixa de Ferramentas”.
8
SOUZA NETO. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica consequencialista à
decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
9
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155. Posner defende que um juiz exercitará com mais
comedimento seu poder discricionário quando possuir clareza de que o está fazendo, ao invés de se sentir
como mera correia de transmissão de decisões tomadas em outras instâncias (como o Legislativo), sem
maiores responsabilidades pelas consequências daí advindas. Em certa medida, o “intérprete consciente de
suas circunstâncias”, aquele que se autocritica e se autoconhece, preconizado por Luís Roberto Barroso, é um
operador do Direito que deverá possuir, também, consciência e conhecimento de suas técnicas argumentativas
e interpretativas, e não apenas de sua postura ideológica e de suas frustrações (BARROSO. Fundamentos
teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In: VIEIRA. Temas de direito constitucional, p. 6).
10
Exemplo disso são as diversas referências feitas por Nelson Jobim, quando Ministro do STF, à importância das
consequências. Em discurso de posse como presidente do TSE, mencionou o seguinte: “Discutir-se-á o voto
obrigatório. Não se vai discutir a partir da concepção acadêmica de ser bom ou mau. Discutir-se-á, isto sim, de
acordo com o que temos e o que podemos fazer. Nada mais. É a conveniência da solução, porque o compromisso
é com a consequência” (JOBIM. Discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Diálogo
Jurídico, grifos nossos). No mesmo discurso, Jobim chegou a indicar sua técnica para o uso das consequências:
ele as considerava como critério de desempate na decisão.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
25

cujo pano de fundo era a tomada de posição em relação às consequências das decisões
judiciais.11 12 Até a grande mídia já se apercebeu do fenômeno.13
Para além da oportunidade do tema, resta sublinhar sua conveniência num país
que, politicamente amadurecido, começa a arrumar tempo para discutir alguns dos
grandes assuntos da agenda internacional relativos à interpretação da Constituição:
ativismo,14 democracia,15 capacidade institucional.16

11
Segue resumo da discussão havida no dia 22 de abril de 2009 no plenário do STF. Destacamos, em itálico, os
trechos das falas dos Ministros mais afetos à nossa exposição. O Estado do Paraná aprovou uma lei, em 1999,
que incluiu os notários no sistema previdenciário oficial. Tal lei veio a ser declarada inconstitucional em 2006.
Discutiam-se, no STF, os efeitos da decisão para os notários aposentados entre 1999 e 2006. Na mesma sessão
da Suprema Corte, discutia-se, também, o ponto exato para a cessação da produção de efeitos de outra lei, de
2002, igualmente já declarada inconstitucional pelo STF, em 2005, que estendia o foro privilegiado a autoridades
durante o período em que o processo estivesse em julgamento. No primeiro caso, o da aposentadoria dos notários,
Joaquim Barbosa defendeu a plena retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. O Ministro alegou
que seus colegas “deveriam se inteirar das consequências da decisão”, com ênfase em “quem seriam os beneficiários”
(no caso, os notários). “Eu acho um absurdo”, afirmou. Já no caso do foro privilegiado, Joaquim Barbosa não
chegou a votar, mas alegou que haveria “consequências graves” caso o Supremo votasse pela retroatividade, já
que inúmeros julgamentos seriam anulados. Foi aqui que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa começaram a se
acusar de julgar por classes. Gilmar Mendes acusou o Ministro Joaquim Barbosa de dar parâmetro ideológico ao
julgamento dos notários, que, afinal, haviam contribuído para o sistema previdenciário como todos os demais
servidores. “Eu sou atento às consequências das minhas decisões, só isso”, redarguiu Barbosa. Todas as falas foram
obtidas no sítio do STF na internet (<http://www.stf.jus.br>). Acesso em: 02 maio 2009.
12
Em março de 2012, outra polêmica, em tons pragmatistas, ocupou a ordem do dia no Supremo. O STF, após
detectar falha na sistemática legislativa de edição de Medidas Provisórias, declarou inconstitucional a Medida
Provisória que havia criado o Instituto Chico Mendes. Alertado, pelo Advogado Geral da União, de que a
consequência de tal decisão seria a invalidação de mais de quinhentas outras Medidas Provisórias, o Supremo
acabou voltando atrás.
13
Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, em coluna do dia 24 de abril de 2009, intitulada “Embate Político”,
a propósito da referida discussão entre os dois Ministros do Supremo, anotou o que segue (grifos nossos): “Mas
o bate-boca entre os dois Ministros revelou também um debate doutrinário latente, quando Gilmar Mendes
acusou Joaquim Barbosa de fazer ‘populismo judicial’, argumentando que ‘esse negócio de classe não cola’. Ao
que Joaquim Barbosa retrucou que levava em conta ‘as consequências’ de suas decisões. Gilmar Mendes estava
se referindo aos ataques que tem sofrido devido às últimas decisões do Supremo, como a de que o acusado
só ficará preso depois de acabarem todos os recursos legais. Mas revelava que também no Supremo há um debate
entre os ‘consequencialistas’, que interpretam a lei, atentos ao resultado da decisão, contra os ‘formalistas’, que se atêm
à letra da lei. Esse debate doutrinário é sério, e ocorre em vários lugares do mundo” (Clipping – Seleção de Notícias.
Disponível em: <http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2009/4/24/embate-politico>. Acesso
em: 02 maio 2009). Apenas uma consideração nossa, em tom crítico à reflexão de Merval Pereira: é discutível se
há, de fato, um debate, estruturado nesses termos, entre consequencialistas e formalistas no Supremo brasileiro.
A hipótese mais plausível é a de que todos os ministros sejam, em momentos diferentes, consequencialistas ou
formalistas. Não parece haver uma coerência interna a respeito das teorias da decisão judicial adotadas por cada
ministro.
14
Cf. BARROSO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas – Revista
Eletrônica do Conselho Federal da OAB; CAMPOS. Dimensões do Ativismo Judicial do STF.
15
As relações entre a atuação do Poder Judiciário e o princípio democrático, na atuação cotidiana e no exercício da
jurisdição constitucional, vêm sendo tratadas em larga escala na produção bibliográfica dos últimos anos. Numa
lista não exaustiva, cf.: SOUZA NETO et al. (Coord.). Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no
direito constitucional; MAUÉS (Org.). Constituição e democracia; BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização; SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia
deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação
democrática. BARROSO. Razão Sem Voto. De nossa autoria, seja-nos concedido mencionar MENDONÇA.
Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de constitucionalidade das
leis. Revista de Direito do Estado. O tema da democracia — em especial o da democracia deliberativa — será
estudado no próximo capítulo do livro.
16
CYRINO. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação institucionalmente adequada da
Constituição econômica brasileira (a dissertação foi publicada pela editora Renovar em 2010 com o mesmo
título). ARGUELHES. Deuses pragmáticos, mortais formalistas: a justificação consequencialista de decisões
judiciais, especialmente item 4.1 - A ‘virada institucional’ no debate sobre interpretação jurídica, f. 177-183.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
26 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

É dentro desse contexto que se inicia, então, um debate em prol de uma atuação
que se quer mais controlada. Acenderam-se os “refletores coloridos do pragmatismo”17
sobre a prática jurídica. Pretende-se, então, direcionar tal luz provocativa até algumas
zonas escuras do Direito Constitucional Econômico, na esperança de que não haja
cômodo subaproveitado nessa “casa” que é o Ordenamento.

1.2 O pragmatismo na Filosofia: um conto de três cidadãos. Algumas


questões clássicas
O termo “pragmatismo” é noção confusa.18 Não possui a carga emotiva de pala-
vras como “liberdade” ou “igualdade”, mas carrega suas complicações. A maioria das
pessoas, quando ouve falar no assunto, pensa numa “atitude prática”, num posiciona-
mento pedestre em relação aos problemas da vida.19
E o pragmatismo não é isso, embora, sob certo aspecto, o pragmatismo talvez
seja parte disso. Não é uma Filosofia propriamente dita — um corpo doutrinário —,
mas uma forma de se fazer filosofia.20
No início dos anos setenta do século XIX, na Universidade de Cambridge, um
grupo de estudantes reuniu-se no que um deles chamou de “Clube Metafísico” — uma
piada, porque, naquela época e lugar, o agnosticismo se ocupava de fazer terra arrasada
da Metafísica.21 Entre seus integrantes, Charles Peirce, filho de um famoso matemático
de Harvard; William James, o futuro psicólogo que viria a expandir e tornar palatável
a Filosofia que se gestava naquele ambiente; e Oliver Wendell Holmes, futuro juiz da
Suprema Corte dos Estados Unidos e um dos mais notáveis pragmatistas jurídicos
avant la lettre.
Foi numa dessas reuniões que Peirce apresentou um esboço de ideias a serem
publicadas, às quais aplicou a designação de “pragmatismo”.22 Como resultado daquelas

STRUCHINER. Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade (contingente) do formalismo


jurídico.
17
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 184.
18
PERELMAN. Ética e direito, p. 6-7. Ainda, Ángel Manuel Faerna (Introducción a la teoría pragmatista del
conocimiento, p. xi): “De um tempo para cá, os termos ‘pragmatismo’ e ‘pragmatista’ aparecem com relativa
frequência na literatura filosófica, porém é bastante provável que seu significado, hoje, resulte difuso para
muitos leitores: são dessas ideias que mais sugerem do que dizem”.
19
Na introdução à obra que organizou, Morris Dickstein afirma que, em geral, as qualidades associadas ao
“pragmatismo” no discurso comum ganham nossa aprovação. Políticos e experts eleitorais têm-no em alta conta,
como “arte do possível”, associado a certa tendência aos compromissos e aversão à ideologia. Quem adota
perspectiva pragmática em política externa vai-se imaginar negociando diferenças e chegando a resultados, ao
invés de se aferrando a imperativos morais inflexíveis. Afirmar que alguém é pragmático significa, em regra,
dizer que se trata de político ou juiz “resolvedor de problemas”, “gente que faz”: ao invés de se deter em
supostas questiúnculas — formais, ideológicas, “burocráticas” —, o pragmático se preocuparia, antes e acima
de tudo, com o resultado [DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new
Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 2].
20
Nas palavras de um de seus fundadores, “o método pragmático é, antes de tudo, um método de resolver
disputas metafísicas que, de outro modo, seriam intermináveis”. Mais adiante, afirma: “O pragmatismo não
defende quaisquer resultados em especial. Ele é, apenas, um método” [JAMES. What Pragmatism Means
HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 291, 293].
21
MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 201.
22
Peirce posteriormente viria a preferir o termo “pragmaticismo” para diferenciá-lo do pensamento de William
James. Era tarde: a palavra “pragmatismo” já estava consagrada. De modo irônico, Charles Peirce afirma, no
texto em que apresentou a proposta do novo termo, que sua ideia original, mercê da ampla difusão, e da
popularidade da filosofia de William James, precisava ser designada por uma nova palavra, daí “pragmaticismo”,
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
27

anotações, dois artigos, hoje clássicos, vieram a lume.23 Mas não foi por esses artigos,
nem por Charles Peirce, que o pragmatismo se tornou conhecido: foi William James
quem, muito tempo depois, a partir de uma conferência na Universidade de Berkeley,
na Califórnia, popularizou e difundiu o termo, as ideias e o amigo.24
Popularizou, mas não respeitou integralmente a fonte. O pragmatismo de Peirce,
um lógico, era mais modesto e árido do que a versão de William James. Tratava-se, em
essência, de uma teoria da significação; uma proposta a respeito do que podem significar
os conceitos linguísticos em relação às coisas do mundo. Seus limites terminavam mui-
tíssimo antes das derivações políticas e sociais a que chegou William James, e, principal-
mente, John Dewey, terceiro autor da santíssima trindade dos pragmatistas clássicos.
Peirce propunha uma Filosofia da Ciência reformulada pelo pragmatismo. O
significado de um conceito equivaleria às consequências de uma deliberada negação
ou afirmação daquele termo.25 Existiriam três graus de clareza conceitual. O primeiro
grau seria o da capacidade de se utilizar a palavra adequada (por exemplo, o uso de
“elétrico”, e não o de “sonoro”, para descrever o fenômeno envolvido com colocar um
dedo na tomada). O segundo seria a capacidade de fornecer uma definição, verbal
ou escrita. O terceiro grau requereria a compreensão de seu significado pragmático.
“Se alguém é capaz de definir, de modo acurado, todos os fenômenos experimentais
concebíveis que decorreriam da afirmativa ou da negação de um conceito, esse alguém
possuirá uma completa definição do conceito, e não há absolutamente mais nada nele”.26
Usando exemplo do próprio Peirce, o que significamos quando falamos que uma
substância é dura é que ela será capaz de riscar vidros, resistir a ser entortada etc. A
soma de tais efeitos práticos é o conceito de “dureza”. Não há uma essência abstrata:
“dureza” é o conjunto de todos os efeitos práticos das coisas duras.27
William James apropriou-se28 daquilo que chamou de “princípio de Peirce, o
princípio do pragmatismo” e, a partir de algo que era uma regra metodológica relativa

“palavra feia o suficiente para mantê-la livre de sequestradores” [PEIRCE, Charles Sanders. Pragmatism and
Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 166]. Outra observação: a
expressão “pragmatismo” é de origem kantiana. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant distingue entre
pragmático e prático. Este se refere às leis morais apriorísticas, enquanto “pragmático” diz respeito às normas
da arte e da técnica que são baseadas na experiência. Charles Peirce fez, assim, opção terminológica consciente.
Para essa explicação, consultamos Peirce, “The Development of American Pragmatism” [In: THAYER (Org.).
Pragmatism: the Classical Writings, p. 23-24].
23
PEIRCE. The Fixation of Belief. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 107-126;
PEIRCE. How to Make our Ideas Clear. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p.
127-150.
24
Cf. Menand (The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, cap. 9 - The Metaphysical Club e cap. 13 -
Pragmatisms). À época em que proferiu sua palestra, enquanto William James era Professor de Harvard e
uma celebridade acadêmica internacional, Peirce estava, quase literalmente, na sarjeta: embora filho de um
prestigioso Professor de Harvard, foi demitido de seu cargo na Universidade Johns Hopkins por causa de um
escândalo conjugal; também havia sido demitido de uma entidade federal de pesquisa científica (a U.S. Coastal
Survey). Vivia obscuramente, em 1898, data da conferência de William James, na Pensilvânia, numa enorme
casa aos pedaços, depois de anos ao relento pelas ruas de Nova Iorque.
25
PEIRCE. A Definition of Pragmatism. In: MENARD (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 56.
26
PEIRCE. Pragmatism and Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 162.
27
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xiv.
28
O mais famoso biógrafo de William James, Ralph Barton Berry, ele próprio importante filósofo norte-americano,
acreditava que o que hoje chamamos de pragmatismo é, na verdade, o resultado da incompreensão de James em
relação à obra de Peirce. Em suas palavras, “é uma interessante questão essa de saber se é possível ‘derivar’ de
um filósofo ideias que ele nunca teve; ou se é possível que alguém possa razoavelmente duvidar da paternidade
de um filho que, conforme vai ficando mais velho, torna-se progressivamente mais dessemelhante em relação
a seu pai. Talvez seja correto, e o mais justo para todas as partes envolvidas, dizer que o movimento moderno
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
28 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ao significado dos conceitos, expandiu a ideia para a Filosofia e o pensamento em geral,


transformando o pragmatismo não apenas numa teoria da significação, mas também
numa teoria da verdade. Em suas palavras:
O teste definitivo acerca do que uma verdade significa é, de fato, a conduta que ela dita ou
inspira. [...] O significado efetivo de qualquer proposição filosófica pode sempre ser dedu-
zido a partir de alguma consequência particular, em nossa experiência prática futura, seja
ela ativa ou passiva.29

James ampliou o insight de Peirce até o domínio do pensamento em geral: o que


era verdadeiro para o conhecimento científico deveria ser verdadeiro, também, para
todas as nossas crenças. E o que tornaria uma crença verdadeira? Não sua capacidade
de ultrapassar escrutínios lógicos, mas, simplesmente, a relevância das consequências
que decorrerem de sua admissão.30 31
Em James, não há motivos para se buscar princípios filosóficos unificadores ou
abstrações advindas de uma Grande Teoria.32 É desperdício de energia. O que importa
é (se) perguntar quais serão os efeitos práticos da adoção de uma ou outra proposição
filosófica. “Em que fatos ela resulta? Qual é seu valor líquido em termos de experiência
prática? Que diferença, em particular, adviria ao mundo, se ela fosse, respectivamente,
verdadeira ou falsa?”.33
O terceiro passo na história foi dado por John Dewey. É o passo mais radical.
Dewey foi um reformador social, um ativista político, e, antes de tudo, um educador.
Nada mais distante do pragmatismo como adesão ao status quo — como seria a tônica
de certa crítica ao movimento —, ou do pragmatismo como mero “senso prático”, do
que as ideias revolucionárias, até utópicas, de John Dewey.34

conhecido como pragmatismo é, em grande parte, o resultado da incompreensão de James em relação a Peirce”
(BERRY. The Thought and Character of William James, p. 281).
29
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 291.
30
Em rigor, William James não está propondo apenas, como observa Bertrand Russel, um teste da verdade; para
James, isto é o próprio significado da verdade (RUSSEL. The Philosophy of William James. In: GOODMAN.
(Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 199).
31
“É impressionante ver como muitas disputas filosóficas desaparecem na insignificância no momento em que
você as submete a esse teste simples de traçar uma consequência concreta. Não pode haver diferença naquilo que
não faz nenhuma diferença — nenhuma diferença numa verdade abstrata que não se expresse numa diferença
num fato concreto e, assim, numa conduta relacionada com aquele fato, conduta imposta a alguém, de alguma
forma, em algum lugar, em algum momento. Todo o propósito da filosofia devia ser, então, descobrir qual
diferença faria, para você ou para mim, em certo momento de nossas vidas, se essa ou aquela fórmula genérica
fosse verdadeira” [JAMES. What Pragmatism Means. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
Writings, p. 293].
32
“Um pragmatista vira suas costas, de modo resoluto e de uma vez por todas, a uma série de hábitos inveterados
caros aos filósofos profissionais. Ele abandona a abstração e a insuficiência, as soluções verbais, as péssimas
razões a priori, os princípios imutáveis, os sistemas fechados, as pretensas Origens, os supostos Absolutos. Ele
vai em direção à concretude e à adequação; aos fatos, à ação e ao poder. [...] [O pragmatismo] Significa o ar
livre e as possibilidades da natureza, contra o dogma, a artificialidade, e a pretensão de finalidade na verdade”
[JAMES. What Pragmatism Means. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 293, grifos
no original].
33
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 307, grifos no original.
34
“Suas aspirações [do pragmatismo] não se detinham no esclarecimento dos conceitos; tal coisa era importante
apenas como meio para potencializar a ação. E é precisamente este confessado ideal o ponto de partida de uma
imagem distorcida do pragmatismo que, ainda hoje, circula no mercado mais superficial das ideias, no qual,
com bastante frequência, faz-se com que o pragmatismo pareça um pensamento chato e banal, que glorifica
o rendimento prático das concepções humanas, entendido este em termos de interesse individual imediato,
e despreza as formas mais elevadas de realização intelectual, as quais se supõem desvinculadas de qualquer
demanda prática. Os que, alguma vez, aproximaram-se das obras de James, Peirce ou Dewey, ou, inclusive,
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
29

Trata-se de autor crítico do empirismo, “concebido como relacionado a algo que


foi, ou é, ‘dado’”, ao passo que a ideia de experiência, pedra de toque do pragmatismo,
“é, em sua forma vital, experimental, um esforço para mudar o que foi dado; caracteriza-
se pela projeção, por se mover adiante em direção ao desconhecido; a conexão com o
futuro é seu traço essencial”.35
Dewey não acreditava na distinção clássica entre conhecimento e ação. Conhecer
e fazer integram o mesmo processo de adaptação: aprendemos fazendo, fazemos apren-
dendo. O conhecimento não é uma cópia mental de uma realidade externa a nós, “é um
instrumento ou órgão da ação bem-sucedida”.36 Sua teoria da verdade é pragmatismo
vintage: ser verdadeiro é condição de ter seu uso verificado em condições experimen-
tais.37 Quanto à sua proposta para a Filosofia propriamente dita, leia-se o que dela fala
Thamy Pogrebinschi:
É preciso que a filosofia olhe para a prática como o único meio pelo qual tudo o que for julgado
como admirável e louvável possa ser mantido na existência experimentável e concreta. [...] A
filosofia deve também deixar de ignorar as consequências objetivas e as diferenças que elas
acarretam nas relações naturais e sociais; deve deixar de desprezar o valor da ação, deixar
de colocá-la em uma posição inferior às outras formas de processos mentais, ao pensamento
e ao sentimento.38

Charles Peirce, William James, John Dewey. Apesar das diferenças entre o pen-
samento de cada um, há consenso de que, com eles, foram estabelecidas as bases do
pragmatismo filosófico.
Pode-se dizer que, a partir do percurso teórico representado pela tríade, o prag-
matismo passou de um método lógico para uma teoria ética, chegando a se tornar uma
teoria social.
Existem algumas questões clássicas envolvendo o pragmatismo filosófico que este
capítulo não poderia pretender esgotar. Se não esgota, ao menos apresenta: existe, em
termos técnicos, uma “filosofia pragmatista”?39 Quantos pragmatismos existem: um,

apenas de suas biografias, sabem até que ponto as conotações desta descrição são imerecidas” (FAERNA.
Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 2, grifos no original).
35
DEWEY. The Need for a Recovery of Philosophy. In: SIDORSKY (Ed.). John Dewey: the Essential Writings, p. 71.
36
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xxiv.
37
DEWEY. Truth and Consequences. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 346.
38
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 34-35. De próprio Dewey, acerca do tema, consultar
“The Need for a Recovery in Philosophy” (In: MENAND. Pragmatism: a Reader, p. 219-232): “A filosofia se
recupera quando ela deixa de ser um instrumento para lidar com os problemas dos filósofos e se transforma
num método, cultivado por filósofos, para lidar com os problemas dos homens”.
39
Ángel Faerna estabelece três critérios com base nos quais um pensamento pode ser tido como constituinte
de uma escola filosófica: (i) suas fontes históricas, (ii) seu conteúdo doutrinário e (iii) seu prolongamento
no pensamento posterior. Em todos esses requisitos, o pragmatismo filosófico é problemático. Suas raízes
históricas são confusas. A crer em James, o pragmatismo possuiria antecedentes tão distintos quanto Sócrates,
Aristóteles, Kant, Stuart Mill, Francis Bacon, Spinoza, Locke, Hume. Em segundo lugar, o conteúdo doutrinário
não é menos confuso: as teorias de Peirce, James e Dewey — para ficar apenas nesses três — diferem em
importantes pontos. Finalmente, a herança do pragmatismo não seguiu os moldes filosóficos tradicionais. Ela
é sentida não apenas na Filosofia, mas, também, na literatura, no Direito, na psicologia, na teoria da educação
etc. O que ficou não foi um corpo teórico mais ou menos consistente — como, digamos, a “filosofia platônica”
ou a epistemologia kantiana —; antes, foram algumas ideias seminais, que, originadas dos clássicos, vieram
a ser disseminadas no mundo contemporâneo, até o ponto em que não se poderiam mais reconduzir a uma
unidade original. Assim, conclui Faerna, o pragmatismo não pode ser tido, ao menos em termos rigorosos,
como uma “escola” ou um corpus teórico. No entanto, e aqui uma observação interessante do autor espanhol, o
pragmatismo filosófico deve ser visto a partir de lentes pragmáticas, isto é, a partir de seus efeitos discerníveis
no pensamento e na cultura posterior (FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 3-6). Em
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
30 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

treze, tantos quantos sejam os autores que resolvam escrever sobre o tema?40 Em que
medida o pragmatismo é algo inovador na tradição filosófica, ou representa tão somen-
te, como William James queria, um novo nome para velhas formas de pensamento?41
O pragmatismo é uma “filosofia” da realidade, da ação, da experimentação. Filha
de um tempo e de um lugar — o século XIX nos Estados Unidos —, reagindo a um ini-
migo demarcado: o realismo e o racionalismo hegemônicos na academia anglo-saxã do
final daquele século, talvez seja a Filosofia mais adaptativa à modernidade.42 Há quem
nele veja ecos do ceticismo de Hume e do positivismo, mas também do marxismo e do
darwinismo. Seu propósito, se é que assim se pode falar de uma Filosofia tão multifária,
é o de resgatar o valor da experiência: num mundo cindido em dualismos anódinos —
objetos mentais versus mundo extramental, teoria versus prática, cultura humanística
versus cultura científica —, o pragmatismo quer depurar nossa compreensão de con-
ceitos viciadamente abstratos. Como há continuidade, e não separação, entre teoria e
prática, depurar nossos conceitos de muitas das noções vagas que muitas correntes
filosóficas fizeram correr em nossa consciência cotidiana — e isso por intermédio de
um apelo a que olhemos para as consequências concretas da adoção desta ou daquela
proposição — é, ao mesmo tempo, contribuir para que o pensamento possa ser mais
eficaz, e a conduta, mais inteligente.43

nossa opinião, seguindo Faerna, não existe uma “filosofia pragmatista” — mas claramente existe uma atitude
filosófica pragmática. Também é possível falar, não num cânone pragmatista, mas, ecoando Wittgenstein, numa
família de pensadores pragmatistas, compartilhando interesses, posturas, atitudes.
40
Mais um assunto inevitável nos livros que tratam do pragmatismo filosófico. O primeiro autor a defender
a existência não de um, mas de vários pragmatismos — precisamente treze —, foi Arthur Oncken Lovejoy,
num artigo chamado “The Thirteen Pragmatisms” (1908). Lá, ele sustentava que, deixando de lado algumas
observações laterais dos diversos autores, existiriam, à época, treze pragmatismos, todos independentes entre
si. Ainda, dizia que o pragmatismo era mais reconhecido por sua originalidade e inventividade do que por sua
capacidade de autoanálise, e que, por isso, às vezes se criticava um pragmatismo por todos, ou por vários outros;
far-se-ia mister, então, diferenciá-los um a um, o que ele ora se propunha a fazer [LOVEJOY. The Thirteen
Pragmatisms. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 159-174]. Há, ainda, quem
defenda que o pragmatismo é um único pensamento — mas um único pensamento multifário. Nesse sentido,
Matthew Festenstein (Pragmatism & Political Theory: from Dewey to Rorty, p. 3 et seq.). O pragmatismo filosófico
é diversificado desde suas origens; nem os propósitos nem os tons de seus fundadores foram os mesmos. Peirce
queria, essencialmente, reformar a Filosofia da Ciência; seu tom admite passagens como: “A verdade É ASSIM,
quer você ou eu ou qualquer outra pessoa acredite nisso ou não”. Já James pretendia abrir espaço para as crenças
religiosas numa era que se mostrava pouco afeita a isso. Sua máxima pragmática é menos técnica e “lógica” (no
rigor da palavra). Finalmente, as aspirações de Dewey circulam em torno a uma epistemologia reconstruída,
na qual o conhecimento constitui ou altera seus objetos. Três preocupações diferentes. Três pragmatismos? [V.
HAACK. Preface. HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected Writings, p. 9-12].
41
Com o lançamento de seu livro, em 1907, William James esperava inaugurar algo “próximo à reforma
protestante”. Apesar disso, et pour cause, ele se preocupou com a estratégia de apresentação: para não soar
muito revolucionário, e, daí, possivelmente, perder adesões, James, a partir do subtítulo, tratou de desarmar
ânimos. Pragmatism – A New Name for Some Old Ways of Thinking. A julgar pelo extenso número de antecessores
que William James cita para sua filosofia, esse seria de fato o caso. Existem os que pensam de modo contrário.
A singularidade do pragmatismo filosófico não estaria em seu conteúdo doutrinário — até porque bastante
variado —, mas na propositura de um método, não de um método qualquer, mas de um método “com atitude”
(mais uma vez, nas palavras de William James).
42
E, talvez, até mesmo à pós-modernidade, como não cansam de demonstrar uma série de pensadores pós-
modernos, em especial americanos, que recorrem ao antifundacionalismo do pragmatismo clássico (v. adiante
no texto principal) quando buscam raízes nativas para seu pensamento.
43
FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 6-9.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
31

1.2.1 A matriz pragmatista: antifundacionalismo, consequencialismo e


contextualismo
Boa síntese do pragmatismo filosófico, crescentemente célebre, é a que foi proposta
por Thamy Pogrebinschi. Segundo a professora, a “matriz pragmatista” — o núcleo
comum de ideias do movimento, tal como representado por seus autores clássicos —
poderia ser reconduzida a três conceitos, (i) o antifundacionalismo, (ii) o consequencialismo
e (iii) o contextualismo. Estas características são inter-relacionadas, de tal modo que seria
até difícil definir uma delas sem o auxílio das demais.44 45
Faremos, a seguir, breve introdução a cada um desses traços, que serão úteis para
a compreensão global das ideias apresentadas neste livro.
O (i) antifundacionalismo é “a ideia de que as verdades são criadas, não encontradas;
situadas, não objetivas; mutantes, não eternas; parciais, não absolutas”.46 É a rejeição,
sistemática e constante, de verdades apriorísticas, dogmas, abstrações metafísicas.47 Essas
“crenças básicas, justificadas de modo não inferencial [isto é, de modo independente
de outras crenças] e imunes ao erro”48 são, para o pragmatismo filosófico, nada mais,
nada menos, do que vacuidades, ou, para continuar no terreno da Filosofia (e de sua
crítica), “nuvens”, como as que Aristófanes via no pensamento de Sócrates.49
Aceitar o método pragmatista — avaliar teorias por suas consequências — implica
abandonar posições teóricas fixas, essências, quintessências. É, também, assumir postura
crítica e experimental, bem próxima ao falibilismo e ao espírito do método científico:
abertura a novas possibilidades, tentativa, erro, correção, autocorreção.
O antifundacionalismo é o antídoto, mas antídoto humilde e exposto a seu pró-
prio teste, contra o fetichismo das teorias. A tentação de torcer os dados para justificar
a proposição teórica deixa de fazer sentido se, com isso, estivermos falseando a própria
teoria. Não há teorias sagradas. Não há pontos de partida nem indicativos de fins. Há,
no entanto, a ideia de que as teorias devem ser medidas pela diferença que fazem no

44
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 24, 62.
45
Observe-se que a “matriz pragmatista” da professora Thamy deve ser tida pelo que é: a proposta de uma autora
para um agregado explicativo de características centrais do pensamento dos três principais autores do pragmatismo
filosófico clássico. A matriz pragmatista não é, de forma alguma, “o” pragmatismo, seja filosófico ou jurídico. O
direito brasileiro vem se apropriando, nos últimos tempos, com variados graus de propriedade, da proposta da
professora Thamy (inclusive este livro). Mas é importante acercar-se com precisão da expressão.
46
BRINT; WEAVER. Introduction. BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 1.
47
Há passagens na obra de Charles Peirce que podem apontar para um pragmatismo metafísico. Sua pretensão
seria a de fundar uma Metafísica baseada na ciência. Assim, por exemplo, quando compara seu pragmatismo
ao positivismo de Comte, Peirce, citado por Susan Haack, afirma que, “ao invés de simplesmente criticar a
Metafísica, o pragmatismo extrai dela uma essência preciosa”. Em outros trechos, Peirce considera a Metafísica
como a “Paris do intelecto: excitante, porém perigosa”, e sustenta que “quase todas as proposições da metafísica
ontológica são bobagens”. Mas, uma vez que essas bobagens sejam neutralizadas, pode começar o trabalho
dessa nova Metafísica, uma “Metafísica científica” (HAACK. Introduction. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old
& New: Selected Writings, p. 16, 20).
48
ETCHEVERRY. O fundacionismo clássico revisitado na epistemologia contemporânea, p. 34-35. O fundacionismo
surge, classicamente, como tentativa de resposta ao trilema de Agripa, segundo o qual só existiriam três soluções
para uma cadeia de argumentos: ou se termina numa suposição arbitrária; ou se retorna ao ponto de partida,
perfazendo, assim, movimento circular; ou se regressa infinita e eternamente. O fundacionismo responde ao
desafio pressupondo uma base, formada por uma crença fundamental justificada de modo independente, não
inferencial, a partir da qual as demais crenças serão justificadas.
49
ARISTOPHANES. The Clouds. Ainda, Alfonso Morales (Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social
Science, p. xiv): “O pragmatismo afasta a pura e simples criação de conceitos em favor do desenvolvimento de
ferramentas capazes de auxiliar na compreensão do mundo que observamos e das regras que o produzem”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
32 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

mundo. Teorias são instrumentos da experiência viva, não brinquedos nas mãos de
intelectuais.50
Quanto ao (ii) consequencialismo, acerca do qual vamos dedicar todo um item
a seguir, basta dizer, nesse momento, que se trata de característica do pragmatismo
filosófico que prioriza as consequências do ato, teoria ou conceito. Há muita discussão
teórica acerca das proximidades e distanciamentos do consequencialismo — que mui-
tas vezes é usado como sinônimo tout court de pragmatismo — em relação ao método
filosófico de Peirce e Cia. Por agora, recordemos a máxima pragmática: o significado
e a verdade de teorias e conceitos devem ser buscados por intermédio de uma análise
da diferença que fazem para a realidade. Ou seja, por um processo mental de adianta-
mento e avaliação de suas consequências. Donde nada mais natural do que apresentar
o consequencialismo como uma das características centrais, talvez a mais conhecida,
do pragmatismo filosófico.
O (iii) contextualismo não causa grandes dúvidas. É o destaque do contexto — so-
cial, político, histórico, cultural — na investigação filosófica e científica. Um pragmatista
filosófico não crê em abstrações atemporais, se não por seu antifundacionalismo, então
porque elas costumam se inserir num plano a-histórico, acima do tempo, do lugar e das
circunstâncias pessoais e culturais.
É porque o método pragmatista preza a diferença prática que as teorias possam
fazer — e só é possível perscrutar uma diferença prática a partir de um contexto real —
que o contextualismo assume importância como traço do pragmatismo. “O pragmatismo
é sempre contextual, o que significa que nunca examina nada de maneira isolada, mas
sim dentro de contextos que irão determinar seu sentido e seu valor”.51
Eis que a matriz pragmatista se completa: se não existem fundações que justi-
fiquem ou validem conceitos ou teorias, deve-se apreciá-las a partir de suas consequ-
ências, as quais só adquirem sentido dentro do contexto no qual estão inseridas. Os
deuses estão mortos; é hora de se preocupar com as consequências concretas de nossos
conceitos, juízos e ações, praticados por nós em nosso único mundo.

1.2.2 Críticas e contracríticas: a decadência do pragmatismo filosófico


clássico
Com tantas propostas radicais, com tanta sintonia com seu tempo52 e lugar,
esperar-se-ia que esse primeiro pragmatismo filosófico fosse mais bem-sucedido. Não
que, com James e Dewey, o pragmatismo não tenha tido sucesso. Teve.53 Só que, lá
pela metade do século XX, o pragmatismo já era considerado, no mercado das ideias,

50
O antifundacionalismo não se confunde, embora seja próximo, com outra característica do pragmatismo
filosófico, a saber, o funcionalismo, a ideia de que as crenças são instrumentos para a ação. Segundo o
funcionalismo pragmatista, não agimos porque temos ideias, mas temos ideias porque devemos agir, e agimos
para alcançar determinados fins. A esse respeito, v. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in
America, p. 364.
51
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought,
Law, and Culture, p. 8.
52
“Embora o pragmatismo e o modernismo frequentemente divirjam, e os primeiros pragmatistas tivessem
opiniões reticentes sobre Arte Moderna, o momento do pragmatismo foi, também, o momento do Cubismo
de Picasso e de Braque, da Teoria da Relatividade de Einstein, e de uma nova geração de literatura moderna”
(MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 4).
53
V. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 371 et seq. Fez tanto sucesso que é possível
dividir a filosofia americana em antes e depois do pragmatismo. Diversos autores relevantes dos Estados
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
33

carta fora do baralho; resíduo ingênuo de um liberalismo desacreditado pelas guerras


mundiais e pela depressão econômica, já devidamente expurgado do âmbito acadêmico
pela então triunfante Filosofia Analítica.54 Alguma coisa havia dado errado. Mas o quê?
Numa frase: muitas críticas, alguma incompreensão, defesas inconsistentes.
Comecemos pelas críticas. Sem contar aquelas que eram apenas formas preconceituo-
sas de desdém para com os Estados Unidos, ou as que vinham de quem achava que a
Filosofia não podia ter qualquer coisa a ver com a ideia de utilidade,55 podem-se resumir
as críticas ao pragmatismo filosófico em quatro pontos.
Acusava-se o pragmatismo filosófico (i) de servir para justificar qualquer resul-
tado, não importando quão amoral fosse; (ii) de ser uma banalidade, nada mais nos
solicitando do que a continuação de nossas práticas de senso comum; (iii) de ser uma
banalidade, mas, agora, porque não afirmaria nada mais do que a centralidade da
ação, entendida em sentido trivial; (iv) de ser um instrumento incompleto, incapaz de
direcionar a atuação humana em direção a um fim.56
As ideias pragmatistas encontram inimigos em diversas correntes: idealistas, ra-
cionalistas, formalistas, moralistas, tradicionalistas. William James bem tentou suavizar
a reação — o pragmatismo não seria nada de tão novo, afinal —, mas um programa
filosófico dedicado a descartar todas as crenças filosóficas mais profundas, ou, pelo
menos, a “desencantá-las”,57 ao percebê-las por seu valor de uso; é, no fundo, um golpe
na autoimagem de qualquer teoria e de qualquer teórico.
Apresentando as críticas de trás para frente: (iv) muito se falou que o prag-
matismo filosófico significaria uma espécie de instrumento afiado, mas sem bússola
moral. Em outras palavras: na sua preocupação com a ideia de ação e de experiência, o
pragmatismo acabaria não se preocupando com os valores e as finalidades da atuação
do homem. De nada ajudou a defesa que Dewey fez da entrada dos Estados Unidos na
Primeira Guerra,58 ou frases, deslocadas de seu contexto, como essa, de William James:
“De acordo com os princípios pragmáticos, não podemos rejeitar nenhuma hipótese se
dela decorrem consequências úteis para a vida”.59

Unidos pré-pragmatismo (como Thoureau, Emerson e Benjamin Franklin) teriam ficado esquecidos em função
do surgimento da “onda pragmática”. Cf. GOODMAN, American Philosophy before Pragmatism.
54
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought,
Law, and Culture, p. 1.
55
GHIRALDELLI JÚNIOR. O que é o pragmatismo?, p. 23.
56
PIERCE WELLS. Why Pragmatism works for me. Boston College Law School – Legal Studies Research Paper Series,
p. 347-348.
57
Estamos, aqui, usando a expressão “desencantamento” no sentido técnico que ela passou a ter a partir de sua
utilização, como conceito-chave para o entendimento da sociedade moderna, por Weber. O “desencantamento
do mundo”, adaptação de Entzauberung der Welt — literalmente: a “desmagificação do mundo” —, é o processo,
ocorrido na sociedade moderna, por intermédio do qual a racionalidade técnica expulsou representações
mágicas tradicionais (Cf. PIERUCCI. O Desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber).
58
Em artigos como “Conscience and Compulsion”, “The Future of Pacifism”, “What America Will Fight For”,
“Conscription of Thought”, publicados originalmente na revista The New Republic, John Dewey defendeu
pragmaticamente a Primeira Guerra, além de criticar aquilo que via como excessos dos pacifistas.
59
O trecho original, em inglês: “On pragmatic principles we cannot reject any hypothesis if consequences useful
to life flow from it. Universal conceptions, as things to take account of, may be as real for pragmatism as
particular sensations are. They have indeed no meaning and no reality if they have no use. But if they have any
use they have that amount of meaning. And the meaning will be true if the use squares well with life’s other
uses”. Em nossa tradução: “De acordo com os princípios pragmáticos, não podemos rejeitar nenhuma hipótese
se dela decorrerem consequências úteis para a vida. Conceitos universais, enquanto algo a ser considerado,
podem ser tão reais para o pragmatismo como as sensações particulares o são. De fato, se não têm utilidade, não
têm significado nem realidade. Mas, se possuem algum uso, possuem aquela exata quantidade de significado.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
34 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Quando veio, a rejeição atacou por todos os lados.


Randolph Bourne, intelectual que fora aluno e admirador de Dewey em Columbia,
publicou, em 1917, artigo na revista Seven Arts intitulado “Twilight of Idols”, no qual
atacava seu ex-professor, expressava preocupação por sua defesa da guerra e respon-
sabilizava-o indiretamente pelo estado da América do Norte durante o período. “A
filosofia de Dewey é inspiradora para uma sociedade em paz, próspera, e com uma
reserva progressiva de boa-vontade. É uma filosofia de esperança, de compreensão
clara de ferramentas e de meios”. No entanto, nada disso aparece durante a guerra. “Na
aplicação de sua filosofia à política, nossos pragmatistas estão escorregando quanto à
questão crucial dos fins”.
Bourne continua: “A guerra revelou uma jovem intelligentsia, treinada no prag-
matismo, imensamente pronta para a ordenação executiva de atividades, mas lamen-
tavelmente despreparada para a interpretação intelectual ou para o foco idealístico em
finalidades”. Culpa de Dewey? Certamente, o professor tinha e defendia seus valores,
mas havia aspectos pouco claros em seu pensamento.
Dewey, é claro, sempre quis que sua filosofia, quando tomada como uma filosofia prática,
começasse com os valores. Porém, sempre houve essa infeliz ambiguidade em sua doutrina
acerca de como os valores eram criados, e foi ficando cada vez mais fácil assumir que qualquer
crescimento ou atividade estava justificado, desde que chegasse a um resultado.

E, num tom que viria a ser seguido por muitos, atacou:


O encanto das ideias novas e verdadeiras, da especulação livre, do vigor artístico, dos estilos
culturais, da inteligência inundada pelo sentimento, do sentimento que ganha fibra e destaque
pela inteligência, não veio, e dificilmente poderia vir — vemos isso hoje — enquanto nossa
filosofia reinante for uma de caráter instrumental.60

O ex-aluno de Dewey viveu pouco — morreu com trinta e dois anos —, mas seu
padrão de críticas ao pragmatismo fez pressentir as críticas subsequentes, e se somou
a algumas anteriores.61
Os tempos também mudaram: cada vez menos, o otimismo associado ao prag-
matismo tinha espaço, numa realidade devastada por duas guerras mundiais e uma
depressão econômica. Marxistas, como Theodor Adorno, viam-no como mera justifi-
cação do status quo; conservadores desconfiavam da crítica pragmática em relação aos
valores tradicionais.

E o significado será verdadeiro se o uso funcionar bem com os outros usos da vida”. Vê-se que William James
não concede carta branca ao pragmatismo para qualquer uso, mas busca não descartar, de modo a priori, as
verdades universais: pretende nelas descobrir significado a partir de suas utilidades, se é que possuem (JAMES.
Pragmatism, p. 105).
60
BOURNE. War and the intellectuals: collected essays (1915-1919), p. 53-64.
61
Um dos mais famosos ataques ao pragmatismo filosófico veio com Bertrand Russel, que, em dois artigos
(“Pragmatism” de 1909 e “The Philosophy of William James” de 1910), sustentou o caráter dogmático da nova
filosofia — se não existem verdades em si mesmas nem mesmo na tábua de multiplicação (3 x 3 = 9), mas,
apenas, a partir de suas consequências, resta a dúvida sobre se o pragmatismo é menos dogmático do que os
sistemas que pretendia substituir —, e cunhou frases fortes contra o movimento: “Se o pragmatismo triunfar,
então encouraçados e metralhadoras serão os árbitros finais da verdade metafísica”. Outra crítica de Russel
deriva do que ele percebia como identificação vulgar entre verdade e utilidade na filosofia de James: “Ora”,
argumentava, “como qualquer um percebe, há verdades que não são úteis, assim como existem proposições
úteis que não são verdadeiras” (RUSSEL. Pragmatism. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in
Philosophy, v. 1, p. 175-195). Ainda, republicado na mesma coletânea, do mesmo autor, “The Philosophy of
William James”, p. 198-201.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
35

Afinal: o pragmatismo é mesmo essa ferramenta sem manual?


Como em muitas coisas na vida, a resposta é: talvez. De fato, a preocupação pri-
mordial dos pragmatistas clássicos não era com o descobrimento de propósitos para a
ação humana, mas com a superação do que viam como óbices a um entendimento mais
proveitoso das teorias e dos conceitos, e tudo isso com vistas a uma melhor atuação
prática. Em que medida a discussão acerca de valores não comprometeria o sentido do
método pragmatista? Ele se tornaria mais uma vítima do fundacionalismo filosófico;
mais uma vítima do mal cuja cura pretendia ser.
Não há como negar que o pragmatismo clássico toma como um dado as finalidades
das ações do homem — e, inclusive, ignora que elas podem fazer com que se aja de
modo antipragmático. Por outro lado, sempre é possível, a partir de trechos da obra dos
três autores, reconciliar alguns de seus escritos com a busca por propósitos humanos
edificantes, ou, pelo menos, não desprezíveis (dos quais a defesa de Dewey da Primeira
Guerra certamente não é exemplo). Mas não vamos avançar no tema, que é complexo
e exige aprofundamento.62
Próxima crítica: (i) o pragmatismo seria um método incompleto e poderia justificar
qualquer resultado. A resposta é singela: se esse for o caso, a saída é associá-lo a uma
teoria substantiva, que proíba determinadas escolhas e oriente resultados.
Quanto às duas outras críticas — (ii) o pragmatismo seria uma banalidade, soli-
citando, tão somente, que continuássemos com nossas práticas de senso comum, ou (iii)
ele seria uma banalidade por sublinhar, apenas, a importância da ação, sem maiores
consequências ou profundidade —, são objeções que merecem ser refutadas de plano.
O pragmatismo filosófico não é isso. Ele não solicita que continuemos com nossas
práticas usuais. Lendo Dewey e James, há um subtexto muito claro que afirma sermos
donos de nossos próprios destinos. A filosofia pragmatista é uma filosofia da transfor-
mação. Quando Dewey defende, por exemplo, o conceito de “inteligência criativa”, ele
imagina que se possa superar a barreira da criação intelectual e dos condicionamentos
sociais, em direção a uma realidade comunitária radicalmente transformada (a ênfase em
“radicalmente” não é retórica). Ideias que, hoje, poderiam ser reputadas como intensa-
mente transformadoras encontram ancestral no pragmatismo social desses primeiros
pensadores. Provavelmente esse é o erro mais comum quando se fala em pragmatismo.
Erro decorrente de crassa incompreensão: o pragmatismo é uma filosofia das conse-
quências, da experiência e da ação, mas é, também e principalmente, uma filosofia da
transformação.63 Nada mais distante do pragmatismo filosófico do que uma postura
de tibieza diante da realidade, de conformismo, de “render-se aos fatos”. Ao antigo
lema do movimento estudantil brasileiro “seja realista, exija o impossível”, poderíamos

62
Para uma defesa da ligação do pragmatismo com a integridade moral, partindo, sobretudo, das obras de Dewey,
v. ROSENBAUM. Recovering Integrity: moral thought in american pragmatism. O autor reconhece as diferenças
de tratamento, pelos pragmatistas, das questões morais típicas levantadas pelas correntes tradicionais da
filosofia, mas sustenta que, também para eles, a moral seria questão relevante: “A ética de Dewey, assim como
toda a tradição de pensamento pragmática acerca de valor, traz todo um novo foco não apenas às questões
morais, mas também às demais questões da filosofia tradicional. Moralidade, sociedade, ciência e religião,
na sua dimensão filosófica, tornam-se inseparáveis da humanidade, que simbioticamente as empodera. A
perspectiva pragmática, ao invés de nos diminuir como humanos, torna-nos mais nobres, lembrando que nossa
responsabilidade, como criaturas inteligentes e dotadas de propósito, são mais profundas e mais extensas do
que a filosofia tradicional dá conta” [p. X da Introdução].
63
A respeito de propostas de mudanças sociais trazidas por autores pragmatistas, cf. DIELEMAN; RONDEL;
VOPARIL (eds.). Pragmatism and Justice; WESTBROOK. Democratic Hope: pragmatism and the politics of hope;
SHALIN. Pragmatism and Democracy: studies in history, social theory and progressive politics.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
36 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

contrapor, com licença poética, um lema do pragmatismo filosófico que fosse assim:
“seja pragmático, crie um novo possível”.
Além disso, o pragmatismo filosófico não é uma glorificação da ação pela ação,
como faz crer a crítica (iii). John Dewey defende seu papel intermediário. É claro que a
filosofia pragmatista tem a ver com a ação, mas, apenas, como degrau para uma fina-
lidade, qual seja, o significado dos conceitos (ou das teorias ou da verdade). Em suas
palavras:
É comum dizer do pragmatismo que ele faz da ação a finalidade da vida. Diz-se, ainda, que
ele subordina o pensamento e a atuação racional a finalidades particulares de interesse e
de proveito. É verdade que a teoria, de acordo com a concepção de Peirce, implica essen-
cialmente uma relação com a ação, com a conduta humana. Mas o papel da ação é o de um
intermediário. Para que se possa atribuir um significado aos conceitos, deve-se ser capaz de
aplicá-los à existência. E é por intermédio da ação que esta aplicação se torna possível. A
modificação da existência que resulta dessa aplicação é o verdadeiro significado dos conceitos.
O pragmatismo, assim, está longe de ser a glorificação da ação pela ação que é tida como a
característica peculiar da vida norte-americana.64

À parte qualquer defesa que se possa fazer, há quem diga que os pragmatistas
clássicos não conseguiram estar à altura do volume das críticas. Outros dizem que o
fim do interesse no assunto decorreu da necessidade acadêmica por novidades: quando
um autor trata de um assunto novo, ele se diferencia de seus antecessores e contempo-
râneos e, com isso, ganha prestígio.65 Fato é que o pragmatismo filosófico, de um ápice
acentuado, sumiu de cena por alguns bons anos.

1.2.3 O neopragmatismo filosófico: entre a autenticidade e a


reinvenção. A explosão contemporânea da abordagem
pragmatista
O renascimento do pragmatismo possui data, certidão de nascimento e pater-
nidade conhecida. Com a publicação, em 1979, da primeira edição do livro Philosophy
and the Mirror of Nature, de Richard Rorty,66 o pragmatismo ressurgiu pelas mãos de
um filósofo profissional que não acreditava na Filosofia profissional, via Peirce “apenas
um maníaco pelo número três”67 e, salvo diferenças pontuais de áreas de interesse,
considerava suas propostas teóricas idênticas às de Dewey.68

64
DEWEY. The Development of American Pragmatism. In: THAYER (Org.). Pragmatism: the Classical Writings, p. 25.
65
MORALES. Foreword. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social Science, p. xvii.
66
RORTY. Philosophy and the Mirror of Nature.
67
RORTY The Pragmatist Progress. In: COLLINI (Org.). Interpretation and Overinterpretation, p. 93. A acusação
de que Peirce buscava uma associação com o número três em tudo, numa espécie de “triadomania”, é
contemporânea à vida do lógico, merecendo resposta do autor. O prefácio ao manuscrito The Quest for the Quest –
An Inquiry into the Sucess of Inquiry chama-se “Author’s Response to the anticipated suspicion that he attaches
a superstitious or fanciful importance to the number THREE, and forces Divisions to a Procrustean Bed of
THRICOTOMY”, e, nele, Peirce apresenta, de forma algo jocosa, três argumentos contrários a essa afirmação: 1.
Ele teria usado diversas outras divisões (de vinte e nove divisões em sua obra, apenas cinco seriam tricotomias);
2. O problema das classificações científicas seria extremamente complexo; 3. Dever-se-ia entender que há
diferença entre o raciocínio matemático e outros tipos de raciocínio, de modo que uma numeração repetida não
significaria muita coisa. Mais sobre o tema, v. SPINKS. Peirce and Triadomania: a walk in the Semiotic Wilderness.
68
BORRADORI. A filosofia americana: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell,
Macintyre e Kuhn, p. 149.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
37

Ressurgiu não com um suspiro, mas com uma explosão. Rorty defendia um
rompimento com a então predominante tradição analítica da Filosofia norte-americana
mainstream, a “Filosofia dos filósofos”, a Filosofia acadêmico-profissional que ganhou
projeção, segundo ele, por uma rejeição ideológica às filosofias materiais, associadas
ao nazismo.69
Contra essa Filosofia anódina, melhor seria resgatar uma filosofia com “f” mi-
núsculo, uma disciplina dentre outras, sem maiores pretensões a um acesso exclusivo
a alguma Verdade; uma filosofia que fosse uma espécie de crítica cultural, sem medo
do tom literário, e que servisse, apenas, para comparar as diversas visões de mundo.70
“O que os pragmatistas estão a dizer é que a maior esperança para a filosofia é não
fazer Filosofia. Pensam que pensar sobre a Verdade não ajuda a dizer algo verdadeiro,
nem pensar sobre o Bem ajuda a agir bem, nem pensar sobre a Racionalidade ajuda a
ser racional”.71 Nessa “cultura pós-filosófica”, não se busca a Verdade, nem a Filosofia
é algo de especial. É, apenas, um estudo comparativo das diversas narrativas criadas
pelo homem: literatura, ciência (“um gênero de literatura”), Ética.72 Outros temas do-
minantes em sua produção acadêmica centram-se em reflexões acerca do pluralismo,
da solidariedade e da ironia, entendida, esta, não como humor ácido, mas como uma
espécie de desencanto transgressivo, que impulsiona o intelectual em direção a uma
“utopia liberal” que não surge da história nem da natureza humana, mas que é cons-
truída pelos próprios indivíduos.73
O “neopragmatismo” de Rorty — o pensamento ficou assim conhecido —, tal
como descrito, assemelha-se, bem vistas as coisas, a certas propostas teóricas pós-­
modernas, descrentes das chamadas grandes narrativas, “desconstrutivas”, críticas.74
O que isso tem a ver com o pragmatismo de Peirce, James e Dewey?
Salvo com o de Peirce, muita coisa, afirma Rorty. Quase nada, afirmam outros.
Explica-se.
Os propósitos de Peirce sempre foram científicos. Ele destacava a importância da
atitude científica. Acreditava ser possível chegar a uma verdade, provisória que fosse,
graças ao consenso da comunidade de investigadores. A grande proposta de Charles
Peirce era a reforma da Filosofia da Ciência pela introdução da máxima pragmática.

69
BORRADORI. A filosofia americana: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell,
Macintyre e Kuhn, p. 151.
70
“A fortiori, tal cultura não conteria ninguém chamado ‘o Filósofo’, que pudesse explicar como e porque é que
certas áreas da cultura gozariam de uma relação especial com a realidade. Tal cultura conteria, sem dúvida,
especialistas em ver como as coisas são compatíveis. Mas seriam pessoas que não teriam ‘problemas’ para
resolver, nem nenhum ‘método’ especial para aplicar, não estariam submetidas a normas particulares, não
teriam uma auto-imagem coletiva enquanto uma profissão. [...] Seriam intelectuais para todas as tarefas, que
estariam prontos a oferecer um ponto de vista sobre quase tudo, na esperança de o tornar compatível com tudo
o mais” (RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 41).
71
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 15.
72
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 42.
73
RORTY. Contingency, Irony, and Solidarity. Neste livro, Rorty cria a figura do “irônico liberal” (ou “ironista
liberal”, como aparece em algumas traduções), que é o sujeito que reconhece a contingência de todas as suas
crenças, mas, mesmo assim, acredita na existência de um mal extremo na existência humana — a crueldade e
a humilhação —, e aposta em seu desaparecimento. Há nessa figura, ainda, um terceiro valor: a solidariedade,
não apenas como ajuda humanitária, mas como evitação da humilhação. Desenvolver em Gabriel Bello Reguera
(Rorty y el Pragmatismo. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho).
74
Essa é uma das diferenças entre o pragmatismo clássico e o pragmatismo de Rorty e contemporâneos. Se o
primeiro é associado às ideias de transformação social, sobretudo em Dewey e James, o novo pragmatismo
se associa às ideias deliberadamente multifárias do pós-modernismo. Sobre a passagem do progressismo ao
pós-modernismo na filosofia pragmática, v. HOLLINGER & DEPEW (eds.), Pragmatism: From Progressivism to
Postmodernism. Ainda, cf., MALACHOWSKI. The New Pragmatism, p. 8 e ss.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
38 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Isso nada tem a ver com o programa filosófico de Rorty, para quem a ciência é apenas
mais um discurso, e as preocupações com método e estrutura de argumentos devem
ser deixadas para trás conforme as pessoas forem se dando conta de que “conhecer
nossos desejos é conhecer o critério da verdade”.75
Há outros pontos de discordância entre o pragmatismo clássico e o neopragma-
tismo de Rorty. No primeiro pragmatismo, ainda que o conceito de verdade não possa
ser dado a priori, ele pode ser buscado com a projeção das consequências. Para Rorty,
a ideia de procura da verdade deve ser, simplesmente, descartada.76 Em outro ponto,
a ênfase do pragmatismo clássico no conceito de experiência — o conjunto de crenças
presentes na sociedade e a forma como elas se relacionam com as instituições e práticas
sociais — é substituída, em Rorty, pela preocupação com o conceito de linguagem, numa
demonstração de que nem o filósofo que pretendeu substituir a Filosofia Analítica passou
incólume pela “virada linguística”. Quando comparado às três características da matriz
pragmatista — o antifundacionalismo, o consequencialismo e o contextualismo —,
o neopragmatismo de Rorty só se identifica claramente com a primeira.77
Independentemente de o neopragmatismo ser ou não um velho nome para novas
ideias,78 ou uma antropofagia das crenças do antigo pragmatismo filosófico,79 fato é que
a reinterpretação idiossincrática de temas de James e Dewey, por Rorty, fez renascer
o pragmatismo. Pensando no que gerou — o ressurgimento do tema e a atualização
de seus conteúdos —, esse neopragmatismo filosófico é, sim, pragmático.80 Fiel ou não
às suas supostas origens, fato é que o neopragmatismo filosófico reabilitou o debate
pragmatista.
Reabilitado e repaginado, o pragmatismo explodiu, e, como costuma acontecer,
as partículas mais distantes acabam mantendo, apenas, leve semelhança com a matéria
original. Hoje temos o eco-pragmatismo,81 o pragmatismo feminista,82 além de estudos
acerca das ligações entre a literatura, a retórica e o pragmatismo,83 entre uma série de
outras possíveis ligações interdisciplinares que, se ainda não existem, serão imagina-
das por gerações e gerações de teóricos. Há quem fale até mesmo na existência de um
neoneopragmatismo, o qual seria professado pelos discípulos de Rorty.84
Nestes tempos pós-modernos, em que tudo se recicla, o pragmatismo filosó-
fico, antigo ou novo, deixou suas origens acadêmicas como teoria do significado ou
como teoria da verdade e passou a designar uma atitude geral em relação ao mundo.

75
RORTY. Essays on Heidegger and Others: Philosophical Papers, p. 31.
76
“Não que a verdade não exista, pois isso seria uma afirmação paradoxal, e, até mesmo, tola; o que Rorty diz
é que a questão da ‘natureza da verdade’ é dispensável” (GHIRALDELLI JÚNIOR. Uma nova agenda para a
filosofia. In: RORTY. Pragmatismo e política, p. 8).
77
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos Estudos CEBRAP,
p. 125-138.
78
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 183.
79
RAPOZO, Joana Tavares da Silva. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 26.
80
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos Estudos CEBRAP,
p. 138.
81
FARBER. Eco-pragmatism: Making Sensible Environmental Decisions in an Uncertain World. Ainda, MINTZ.
Some Thoughts on the Merits of Pragmatism as a Guide to Environmental Protection. Boston College
Environmental Affairs.
82
SEIGFRIED. Pragmatism and Feminism: Reweaving the Social Fabric.
83
POIRIER. Reading Pragmatically. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 437-455.
84
HAACK. Introduction: Pragmatism, Old and New. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
Writings, p. 51.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
39

Muitíssimo mais geral do que a ideia inicial de ser apenas um método. O pragmatismo,
hoje, é uma orientação de espírito, aplicada à pesquisa ou à vida, em que se prefere a
ação e se rejeitam dogmas.

1.2.4 A utilidade do pragmatismo filosófico para o debate sobre o


pragmatismo jurídico: a visão de Richard Posner, Thomas Grey e
David Luban
Há questão essencial que deve ser enfrentada: qual a utilidade do pragmatismo
filosófico para o debate sobre o pragmatismo jurídico?
Apesar de natural a intuição de que há relação entre o pragmatismo filosófico e
o pragmatismo jurídico, quiçá ao se imaginar que se trata de uma aplicação daquele ao
mundo do Direito,85 há quem defenda que a utilidade não é muita.
Richard Posner, juiz norte-americano que é um dos principais autores sobre o
assunto, e cujo pensamento será analisado em breve, sustenta que, embora o pragmatis-
mo jurídico e o filosófico tenham coevoluído na experiência norte-americana, seria um
erro imaginar que as críticas ao pragmatismo filosófico possam ser automaticamente
associadas ao pragmatismo jurídico. Em suas palavras: “A defesa do pragmatismo ju-
rídico é feita com base não no argumento filosófico, mas nas necessidades e no caráter
do Direito norte-americano”.86
Tanto o pragmatismo clássico quanto o neopragmatismo teriam pouco a dizer
para operadores institucionais do Direito sem vocação para a leitura de obras filosó-
ficas. Tratar-se-iam de espécies do gênero filosofia técnica.87 Em termos operacionais,
o papel do pragmatismo filosófico seria residual. Seja nas raras oportunidades em
que, na argumentação jurídica, elementos da filosofia pragmatista fossem diretamente
utilizados,88 seja em sua principal função, a de questionar preconceitos, o pragmatismo
filosófico serviria essencialmente para instigar a dúvida na mente dos juízes, tornando-­
os menos dogmáticos.89 Esse seria o principal papel do pragmatismo filosófico junto
ao Direito: “limpar as mesas dos juízes”, fazer com que os magistrados desconfiem de
que o Direito não possui uma estrutura lógica autônoma.90 Questionar o discurso do
“apenas apliquei a lei aos fatos” seria a maior utilidade jurídica da filosofia pragmatista.
O que, sem dúvida, está longe de ser novidade: dezenas de autores e posições teóricas,
há tempos, questionam tais pressuposições. Hoje em dia, provavelmente ninguém,
juízes ou opinião pública, leva a sério tal positivismo ingênuo à la Escola da Exegese,

85
ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias
e implicações, p. 7. Conferir, ainda, o verbete “Pragmatismo”, escrito por José Eisenberg, no Dicionário de filosofia
do direito coordenado por Vicente Barreto: “O pragmatismo jurídico é uma escola da Teoria do Direito que nasceu
nos EUA no início do século XX e que tem naquele país seus maiores expoentes. Sua principal característica é o
esforço de aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao problema da interpretação jurídica” (BARRETO. Dicionário de
filosofia do direito, p. 656, grifos nossos).
86
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 149.
87
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 41.
88
Exemplo disso é trazido pelo próprio Posner no livro The Problems of Jurisprudence (p. 179-184), quando,
partindo de pressuposições do pragmatismo filosófico, argumenta em prol de uma maior admissibilidade, no
Direito norte-americano, de confissões involuntárias extraídas, por exemplo, a partir da inoculação de “soros
da verdade” e de falsas promessas de punições brandas.
89
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
90
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
40 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ainda que alguns magistrados, quando lhes seja conveniente, não hesitem em apelar a
esse argumento convencional.91
O pragmatismo que realmente serve ao Direito, na visão de Posner, não é a
Filosofia acadêmica, nova ou antiga, mas um pragmatismo cotidiano. Uma disposição
de espírito “direto à ação”, com pouca paciência para teorias. Não que o pragmatismo
filosófico seja incompatível com tal postura; é compatível, mas independente. As dife-
renças são institucionais. O pragmatismo filosófico é um discurso acadêmico, técnico,
expresso numa linguagem abstrusa, enquanto o pragmatismo cotidiano é, simplesmente,
uma postura prática de “resolvedor de problemas”. Numa contraposição ilustrativa,
Posner diz que o pragmatista filosófico é o sujeito que explica que o senso comum é
um bom método para solucionar problemas, enquanto o pragmatista cotidiano é quem
vai lá e os resolve.92
Thomas Grey concorda em parte com Posner. Sustenta que o pragmatismo
jurídico pode ser defendido sem que se precise sequer conhecer o pragmatismo filosó-
fico, novo ou antigo. Após indicar os pontos em comum aos dois pragmatismos — o
contextualismo e o instrumentalismo —, explica que tais pontos representam coisas
parcialmente diferentes para cada pragmatismo. O contextualismo filosófico até pode
ser absorvido pelo ecletismo autoconsciente do mundo do Direito, que se serve de
teorias com o propósito claro de produzir convencimento.
Em certa medida, diz Grey, o Direito aplicado, o Direito em ação, não deixa
de ser contextualista e antifundacionalista, pois incorpora uma completa ausência
de fundamentos últimos: respeitados certos limites institucionais e práticos (prazos,
endereçamento, estilo de linguagem, apelo a precedentes etc.), não defende um ideal
último, mas apenas o interesse do cliente ou a correção da sentença, fazendo uso de
todos os instrumentos possíveis. O instrumentalismo da filosofia é uma crítica ao es-
capismo percebido nos temas clássicos — “quem somos”, “de onde viemos” —, em

91
Usamos aqui o termo “convencional” na acepção cunhada pelo sociólogo americano Charles Tilly. No livro
Why? – What Happens When People Give Reasons... and Why, o Professor de Princeton propôs quatro categorias de
razões de que utilizamos para justificar nossas condutas. São elas as convenções, as histórias, os códigos e os relatos
técnicos. Relatos técnicos são descrições minuciosas, frias, tendencialmente objetivas, acerca de acontecimentos
do mundo. Um parecer técnico, um laudo acerca de um acidente aéreo. Já os códigos são razões baseadas em
categorias, procedimentos, regras. Os argumentos jurídicos comumente são códigos, mas também o são os
códigos dos rituais cívicos ou religiosos, as maneiras pelas quais se torna inteligível uma canção etc. Histórias
são relatos altamente pessoais e simplificados, carregados nas tintas dramáticas, que pretendem justificar ações
individuais. Por fim, convenções são razões que, desprovidas de conteúdo técnico, são aceitas muito mais
por uma questão de adequação do que de relação lógico-causal, e que costumam ser expressas em fórmulas
estereotipadas (“Deixe de ser bobo, menino”). Além de traçar as categorias de razões, Tilly defende que cada
um dos tipos de razões tenha seu propósito específico: quando um casal está em crise, e o marido conta uma
história (“Desde que arrumei meu novo emprego, tenho tido menos tempo para nós [...]”), expressa seu
desejo de reconciliação e de conservação do vínculo, ao passo que, ao recorrer a uma convenção (“A culpa
é minha, não sua”), está marcando uma posição de isolamento e de aceitação de uma eventual separação. O
autor sustenta que o conflito entre as categorias de razões e suas diferentes finalidades é endêmico ao mundo
jurídico: as demandas judiciais surgem em histórias, mas se resolvem em códigos — os quais, aptos a responder
à imparcialidade exigida pelo Ordenamento Jurídico, são, todavia, incapazes de “curar” as personalíssimas
feridas deixadas pelas lesões. Voltando ao tema do livro: razões como “apenas apliquei a lei aos fatos”, inseridas
no discurso jurídico, são convenções, razões estereotipadas que apelam ao encerramento do diálogo a partir de
uma suposta adequação baseada na figura institucional do magistrado. Fogem completamente à razão-padrão
do mundo do Direito — o código —, e, quase sempre, prestam-se a encerrar, de modo indevido e autoritário,
um discurso para o qual não se encontra, ou não se quer encontrar, uma razão baseada num código imparcial.
Cf. TILLY. Why?: What Happens When People Give Reasons... and Why.
92
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 50-52.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
41

prol de uma Filosofia mais voltada à vida prática. O instrumentalismo do pragmatismo


jurídico não é isso: é uma crítica ao formalismo jurídico, dentro de uma perspectiva de
tornar o Direito um instrumento para um fim.
Ora, continua Grey, se suas principais características são diferentes, os pragmatis-
mos não precisam ser defendidos conjuntamente. Sua proposta é a de um pragmatismo
jurídico liberto do pragmatismo filosófico. A teoria jurídica é prática de uma maneira
que a Filosofia, por definição, jamais poderá ser. Claro que o Direito pode suscitar
problemas filosóficos genuínos — pensemos no debate sobre os limites da vida, na
discussão acerca do aborto do feto anencefálico —, mas, aí, já são problemas de Filosofia
especulativa tout court, não mais problemas jurídicos.
O autor exemplifica na forma de um debate entre ele mesmo — ateu pragmatista
cujo filósofo preferido é Dewey — e um colega cristão. Embora discordem filosofica-
mente em uma série de pontos (o papel do homem e da razão, Deus), quando começam
a conversar sobre o Direito, as concordâncias são integrais. Ambos estão de acordo que
o Direito é empreitada terrena devotada a encontrar formas menos desagradáveis de
lidar com desavenças; concordam com a importância do Estado de Direito; estão de
acordo, ainda, que normas de conduta, criadas a partir de procedimentos prévios, e
aplicadas por agentes públicos dotados de accountability, com disputas fatuais e inter-
pretativas remetidas à resolução por juízes independentes, são a melhor forma de lidar
com essas desavenças.
Ou seja: o pragmatismo jurídico é, no final das contas, uma teoria que, em
si mesma, é de fácil aceitação pelos juristas práticos, não exigindo qualquer prévio
conhecimento ou opinião acerca das complexas discussões que por vezes cercam o
pragmatismo filosófico. Uma teoria singela, talvez banal.93
Outro autor que contribui para o debate é David Luban. Para ele, do modo
como Posner e Grey expõem o pragmatismo jurídico — como uma teoria que advoga,
simplesmente, o ecletismo metodológico, o antiformalismo e o raciocínio pautado por
resultados —, não há como o pragmatismo filosófico ser útil ao Direito. Se fosse apenas
por isso, o pragmatismo jurídico seria incontroverso porque pouco corajoso. Só que o
próprio Posner, em outros lugares, não defende apenas estas platitudes: toma posições
em relação a uma série de pontos filosóficos polêmicos (defende uma apreensão beha-
viorista dos estados mentais, um determinismo moderado em relação ao livre arbítrio,
uma concepção econômica de racionalidade etc.).
E não teria como ser diferente. Embora, sustenta Luban, para efeitos práticos,
nenhuma questão jurídica possa ser decidida em termos inteiramente filosóficos —
um juiz não vai sentenciar apenas com base em citações de Kant —, o Direito, mesmo
quando entendido como aplicação dessa teoria antiformalista, eclética e orientada a
resultados, não pode simplesmente dar as costas a uma série de questões filosóficas
que lhe subjazem. A lista é extensa: debates sobre o paternalismo ou não paternalismo

93
GREY. Freestanding Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 254-274.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
42 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

do Estado, a função geral e especial da pena,94 a vedação da autoincriminação.95 Para


todos esses conceitos essenciais ao Direito, pressupõe-se uma posição filosófica.
O debate entre Thomas Grey e seu amigo cristão só pôde chegar a bom termo,
na opinião de Luban, porque ficou no plano abstrato da concordância em relação a
ideias gerais relacionadas ao Estado de Direito. Se ingressasse em terreno igualmente
jurídico, porém mais concreto — por exemplo, a pergunta sobre se homossexuais
devem ter direito a se casar —, haveria um choque de posições jurídicas baseadas em
opções filosóficas. Daí a conclusão: embora não se decida juridicamente com base na
Filosofia, e mesmo que se recorra a uma conceituação básica de pragmatismo jurídico,
sempre haverá questões filosóficas polêmicas permeando o uso de conceitos jurídicos.
O pragmatismo filosófico não é inútil nem alheio ao pragmatismo jurídico, na medida
em que a Filosofia não se distancia (muito) do Direito. Apesar de não ser (nem dever
ser) um sub-ramo da Filosofia aplicada, e de não se submeter a seus códigos nem de se
ocupar das mesmas questões, o Direito, “pragmático” ou não, não existiria sem ela.96
Nossa posição nesse debate tende a relativizar afirmações que veem na filosofia
pragmatista, tal como o fazem de Posner e Grey, uma limitada relevância. A questão
é saber o quão limitada é essa relevância que se está postulando, e, principalmente,
impedir que “limitada” seja sinônimo, na prática, de irrelevância.
Eis a posição deste livro: o pragmatismo filosófico não é inútil ao debate acerca do
pragmatismo jurídico. É possível aplicar a matriz pragmatista — consequencialismo, anti-
fundacionalismo, contextualismo — para examinar institutos jurídicos e decisões judiciais,
e aproximá-los ou afastá-los dos resultados da incidência de uma teoria (em sentido fraco) do
pragmatismo jurídico.97
Talvez não seja necessário estudá-lo em profundidade, mas alguma noção é útil,
até porque se está falando de certa semelhança de família.98 Expandido o argumento
acerca da relevância limitada, nem mesmo a Filosofia do Direito é inteiramente útil à
prática. Afinal, se esta pôde sobreviver até aqui com tantos raciocínios incompletos e,

94
David Luban fala que o sentido especial da pena (desestimular a prática do crime por outras pessoas) seria
juridicamente pragmatista por excelência — olha para frente, importando-se com as consequências do ato.
Já o sentido especial, de retribuir o mal causado, só poderia ser entendido com alguma percepção filosófica
profunda, porque, ao se imaginar que uma pessoa “merece” uma punição, isso só pode ocorrer à conta de sua
dignidade humana, e, ainda, com o propósito de reafirmar a dignidade da pessoa ofendida. V. LUBAN. What’s
Pragmatic about Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 292.
95
Seria difícil justificar a vedação da autoincriminação em termos puramente pragmáticos. Ao contrário: mostrar-
se-ia útil (ao menos, dentro de conceito de utilidade que signifique “máxima eficiência persecutória”) se se
pudesse usar prova produzida pelo indivíduo contra ele mesmo. A vedação só se justificaria com base em
noções filosóficas acerca da dignidade humana. V. LUBAN. What’s Pragmatic about Legal Pragmatism. In:
DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 292.
96
LUBAN. What’s Pragmatic about Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new
Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 275-303, passim.
97
Por ex., como se faz em Thamy Pogrebinschi (A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões
judiciais e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193). Reitere-
se, entretanto, que a matriz pragmatista é uma aproximação teórica em relação ao pensamento de três autores
do pragmatismo filosófico clássico (Peirce, James e Dewey), cada um com especificidades em suas reflexões.
Assim, aplicar a matriz pragmatista em relação a institutos jurídicos e decisões judiciais é fazer indicar uma
transmigração de área (da filosofia para o direito) a partir de uma simplificação heurística (a própria “matriz
pragmatista”). Transitar de área e operar simplificações não se faz sem riscos e ruídos pelo caminho.
98
O juiz Oliver Wendell Holmes Jr., além de integrar, como se viu, o Clube Metafísico, também foi um dos
precursores do pragmatismo jurídico. Ou seja: ao menos em termos históricos, não há como negar algum grau
de conexão entre pragmatismo filosófico e pragmatismo jurídico. V. ALBERSTEIN. Pragmatism and Law: form
philosophy to dispute resolution (especialmente capítulo 1.3, “Progressive History”).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
43

muitas vezes, retóricos, por que seria necessária uma depuração metódica a partir de
um saber estranho como a Filosofia aplicada (razão prática) ou a teoria da argumenta-
ção? Milhares de desembargadores puderam viver até hoje com seus “onde a lei não
distingue, não cabe ao intérprete distinguir” e seus “a lei é clara”. Não é por isso que
se vai excluir a Filosofia do Direito dos currículos.99
A questão é compreender que o pragmatismo jurídico só tem a ganhar se sua
defesa se fizer precedida de uma introdução ao pragmatismo filosófico. E isso vale
mesmo quando se aceita que são dois pragmatismos diferentes. Um filho é diferente
de um pai, mas, para entendê-lo a fundo, é interessante analisar a história da família.
Indício da utilidade, e, mesmo, da conveniência do estudo do pragmatismo
filosófico no debate sobre o pragmatismo jurídico é que, em muitas obras a respeito
deste, aquele está presente, nem que seja para provar que é inútil, ou não tão útil (é uma
autonegação, algo metalinguística, da importância da teoria filosófica do pragmatismo).
Ora, por que investir tanta energia na comprovação de que uma coisa não é útil?
Por que não gastar esse tempo, em vez de afirmar que o filho não é o pai — coisa com
a qual todos estamos de acordo —, para descobrir em que pontos o filho parece com
o pai, e em que medida essa carga genética pode significar algo de bom ou de ruim
para o mundo?

1.2.5 Sobre o uso das expressões “argumento prático”, “argumento


pragmático” e “argumento consequencialista”
Pergunta-se: é admissível a utilização da expressão “argumento pragmático” de
modo fungível a “argumento consequencialista”?
Em rigor técnico, não. Acrescente-se ao estudo, ainda, a expressão “argumento
prático”, que, por vezes, aparece na literatura.100 “Argumento prático”, “argumento
consequencialista” e “argumento pragmático” significam coisas diferentes. Noel
Struchiner, partindo da Filosofia geral, esclarece: argumentos práticos, descendentes de
Aristóteles, são os que intencionam levar o auditório a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa, contrapondo-se aos argumentos teóricos, que são os que objetivam convencer o
auditório acerca da veracidade ou da falsidade de uma afirmação.101
Além disso, é possível imaginar argumentos práticos não consequencialistas,
ou seja, argumentos que, fundados em dados da realidade, não signifiquem apelo às
consequências de uma ação. Exemplo: o Município de Itapipoca não pode concretizar

99
A respeito da utilidade da apreensão de conceitos filosóficos pelos juízes e demais operadores institucionais do
Direito, v. DWORKIN. Must our Judges be Philosophers?: can they be Philosophers?.
100
ÁVILA. Argumentação jurídica e a imunidade tributária do livro eletrônico. Diálogo Jurídico. Na classificação
de Ávila proposta neste famoso artigo, os argumentos “práticos”, que se dividem quanto ao conteúdo e quanto
ao resultado, são “não institucionais”, ou seja, “decorrentes apenas do sentimento de justiça que a própria
interpretação eventualmente evoca” (p. 7). Em outro trecho (p. 18), ele esclarece que “Os argumentos não
institucionais não fazem referência aos modos institucionais de existência do Direito. Eles fazem apelo a qualquer
outro elemento que não o próprio ordenamento jurídico. São argumentos meramente práticos que dependem de um
julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob pontos de vista econômicos, políticos e/ou éticos. As consequências danosas
de determinada interpretação e a necessidade de atentar para os planos de governo enquadram-se aqui” (grifos
nossos). Nesse trecho, a explicação do uso do termo dá a entender que o argumento prático confunde-se com o
argumento consequencialista, o que não é o caso, como deixaremos claro ao longo do livro.
101
Noel Struchiner apud ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma
compatibilização, p. 4, nota de rodapé n. 8.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
44 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

a tutela antecipada consistente na internação do munícipe num hospital dos Estados


Unidos porque não possui verba.
A chamada “reserva do possível”102 é argumento prático não consequencialista.
Não é difícil, no entanto, torná-la argumento consequencialista. Basta apelar às con-
sequências negativas da extensão daquele precedente. Se o sistema público de saúde
não suporta uma única decisão, estendê-la, pela via do exemplo, a uma série de outros
casos, significaria quebrar as contas municipais por alguns anos, o que deve ser evitado.
Por sua vez, um argumento pragmático não é, apenas, uma razão “pé no chão”
(como é o argumento prático); é um argumento contextualista, consequencialista, e que
não se baseia em fundamentos justificadores últimos.
Existem, naturalmente, outras opiniões. Há quem identifique “argumento prag-
mático” a “argumento consequencialista”,103 e outros para quem o “argumento prag-
mático” é um gênero do qual “argumento consequencialista” é uma de suas espécies.104
Esta última posição, dentro do desenvolvimento teórico aqui proposto, pode
ser adotada, mas com restrição, pois o argumento consequencialista é um argumento
pragmático a menor, quer dizer, um argumento pragmático incompleto, já que ausentes
suas duas outras características.
Seja como for, não pretendemos gastar muita energia nesse tipo de debate. A
teoria jurídica brasileira não deve mergulhar em discussões analíticas para além do
útil.105 Uma coisa é usar o mesmo nome para designar duas realidades diferentes, o que

102
“A concreta garantia de direito fundamental surge como dependente dos meios financeiros estatais disponíveis.
A ‘impossibilidade econômica’ apresenta-se como limite — necessário — da garantia (prestacional) dos direitos
fundamentais” (BÖCKENFÖRDE. Escritos sobre derechos fundamentales, p. 65). A expressão “reserva do possível”,
de ascendência germânica, significa o limite financeiro ao custeio público dos direitos a prestações. Hoje em
dia, o tratamento científico da reserva do possível, e de suas implicações jurídicas e orçamentárias, centralizado
no debate acerca da sindicabilidade dos direitos prestacionais, é praticamente infindável. Apenas alguns
exemplos: GOUVÊA. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas de implementação dos
direitos prestacionais, passim (para a reserva do possível, p. 19-21); BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana; SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais;
CAPITANT. Les effets juridiques des droits fondamentaux en Allemagne; GALDINO. Introdução à teoria dos custos
dos direitos: direitos não nascem em árvores; GIMÉNEZ. La exigibilidad de los derechos sociales; TORRES. O direito
ao mínimo existencial; HOLMES; SUNSTEIN. The Cost of Rights: why our Liberties Depend on Taxes; TAVEIRA.
Interpretação e eficácia dos direitos fundamentais: a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos sociais.
103
É o caso de Chaïm Perelman. Sua definição para “argumento pragmático” faz com que este se confunda com
o argumento consequencialista: “Chamo de argumento pragmático um argumento das conseqüências que avalia
um ato, um acontecimento, uma regra ou qualquer outra coisa, consoante suas conseqüências favoráveis
ou desfavoráveis; transfere-se assim todo o valor destas, ou parte dele, para o que é considerado causa ou
obstáculo” (PERELMAN. Retóricas, p. 11, grifos no original). Não concordamos com o autor porque tal definição
corresponde a apenas uma das características do pragmatismo, que é o consequencialismo. A definição de
argumento pragmático é algo além, pois incorpora todos os elementos característicos da “matriz pragmatista”.
104
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 90. Mengoni afirma que, na Alemanha, usa-se
“argumentação orientada às consequências” (folgenorientierte Argumentation) em substituição a “argumento
consequencialista” (consequentialist argument), opção norte-americana. Afirma, ainda, que, embora “argumento
pragmático” seja gênero do qual “argumento consequencialista” é uma das espécies, na maioria das vezes
utiliza-se, de modo indistinto, um pelo outro.
105
Comentando acerca de Paul Feyerabend, Virgílio Afonso da Silva anotou o seguinte (com o itálico do original
e o sublinhado adicionado): “A leitura do trabalho de Feyerabend é extremamente recomendável, provocante
e instigante, principalmente como forma de desmistificar um pouco o papel da metodologia no progresso da
ciência. Apesar de seus exageros — como dizer que não há diferença alguma entre mitos e teorias científicas —,
suas provocações servem, pelo menos, para evitar que o apego ao método sirva de escudo para que não sejam
discutidos problemas de conteúdo” (SILVA. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA
(Org.). Interpretação constitucional, p. 139, nota de rodapé n. 79). A mencionada obra de Feyerabend é seu clássico:
Contra o método (São Paulo: UNESP, 2007).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
45

é um equívoco e deve ser evitado,106 porque a confusão é deletéria não apenas à higi-
dez dos conceitos, mas à prática. Outra é usar vários nomes para se referir a idênticas
realidades — não é o ideal, mas essa criatividade doutrinária não causa problemas se
a referência vier contextualizada. Outra, afinal, é usar nome idêntico para realidades
muito próximas: talvez não corresponda a nenhuma utopia de precisão científica, mas,
novamente, não se vai justificar nenhuma cruzada em prol da pureza conceitual se o
custo da transição for alto, ou se o resultado prático for desprezível.
É o caso de se aplicar a máxima pragmática à questão: que diferença vai fazer,
ao mundo da aplicação do Direito, se as expressões “argumento pragmático” e “argu-
mento consequencialista” forem diferenciadas? Provavelmente, muito pouca. Assim,
registramos a polêmica conceitual, mas optamos pelo uso fungível das duas expressões.
Portanto, neste livro, “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”
são sinônimos.107 108

1.3 O pragmatismo como teoria e metateoria do Direito


Advogados são seres pragmatistas. Recebem o cliente, ouvem o relato, e, já nesse
momento, recortam dados, constroem argumentos, tudo para apresentar o caso do
modo mais propício a vencer a demanda. Opera-se raciocínio focado na produção de
consequência específica: o convencimento da autoridade.109
Juízes e demais julgadores, embora regulados por certa pretensão de correção,110
também atuam, às vezes, como pragmatistas. Projetam consequências, optam por uma
delas, e depois vão buscar, no momento de descrever circunstâncias fáticas, e no de arti-
cular argumentos, aqueles que mais harmoniosamente conduzam à decisão escolhida.111

106
Nesse sentido, ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., passim.
107
Não utilizaremos a expressão “argumento prático” por considerá-la suficientemente distinta das realidades
conotadas pelas expressões “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”.
108
A fungibilidade entre as expressões, e seus antecessores mais abrangentes – “pragmatismo” e “conse­
quencialismo” —, parece ter sido abraçada pela prática. Desde a primeira edição deste livro, nota-se que as
obras jurídicas brasileiras a respeito do tema usam os dois termos de modo aproximado, se não idêntico. Como
se disse, embora não haja nenhum primor de precisão técnica nesse uso, também não há maiores problemas.
109
Mesmo na advocacia preventiva, o raciocínio é o mesmo. Trata-se de adequar práticas, de modo a evitar
consequências negativas havidas por parte das autoridades controladoras.
110
O tema da pretensão de correção é complexo para ser tratado aqui de modo suficiente. Basta dizer que ele se
baseia na ideia de que o discurso jurídico seria um caso especial do discurso prático geral, diferenciando-se
desse por algumas características (a importância do precedente e da norma jurídica). Assim como o discurso
prático possui uma pretensão de correção moral, que decorre de certos pressupostos advindos da comunicação
entre as pessoas — quando estabelecemos um diálogo, a comunicação só se torna possível porque há uma
pressuposição de que estejamos falando a verdade —, também isso valeria para o discurso prático em geral (que
é comunicação, só que de regras de agir) e, naturalmente, para o discurso jurídico, como caso especial deste.
O juiz pode até não fazer justiça no caso concreto, mas, segundo essa teoria, deve sempre pretender fazê-la. A
relação entre Direito e moral, tema essencial da Filosofia do Direito, deixa de ser uma relação binária (“existe”
ou “não existe”) e passa a ser um elemento condicional (é objetivo a ser alcançado). Sobre pretensão de correção,
consultar Robert Alexy (La tesis del caso especial. Isegoría). Ainda, na doutrina brasileira, v. DUARTE. Teoria
do discurso e correção normativa do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito. Sobre o debate da
relação entre Direito e moral, v. VÁZQUEZ (Org.). Derecho y moral: ensayos sobre un debate contemporáneo.
111
Nesse sentido, trecho de voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no Recurso
Extraordinário nº 111.787, publicado no Diário de Justiça 13 set. 1991 (RTJ, 136/1292): “Ao examinar a lide, o
magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após,
cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, formalizá-la”. Em idêntico sentido, ver
trecho de seu voto no RE nº 140.265-2, julgado em 20.10.1992, DJ, 28 maio 1993. Conferir, ainda, a opinião do
chanceler James Kent: “Eu vejo para onde a justiça e o bom senso estão e, então, sento e procuro as autoridades
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
46 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Compreensivelmente, nenhuma dessas duas categorias gostaria de assim ser percebida.


Não seriam meros engenheiros da persuasão, ou “decididores” ex post, mas lidariam
com um tipo especial de racionalidade — a racionalidade jurídica —, desenvolveriam
teses, articulariam princípios, destacariam coerências sistêmicas, sublinhariam artigos
de lei, tudo para que, em concreto, fosse feita a justiça, palavra que, não por outra razão,
costuma enfeitar, em letra maiúscula, a retórica das petições, às vezes assassinada por
várias exclamações ao final.
É dizer, sem medo do trocadilho: na prática, somos todos pragmatistas jurí­
dicos.112 113
Resta saber o que é isso que somos.
Em primeiro lugar, a advertência de sempre: a locução pragmatismo jurídico é
esponjosa.114 Já esclarecemos que a expressão, quando utilizada em discussões sobre
interpretação jurídica, é “termo guarda-chuva”, que acoberta uma série de visões di-
ferentes acerca do Direito.115
Segundo visões distintas e variados autores, o pragmatismo jurídico é “uma
aversão geral à teoria”;116 é “resolver os problemas jurídicos com todas as ferramentas
que estejam à mão, incluindo o uso de precedentes, da tradição, de textos normativos
e de políticas públicas — e renunciar como um todo ao projeto de encontrar uma fun-
dação teórica para o Direito Constitucional”.117 Talvez seja “uma compreensão de que
o que nós vemos depende sempre de nosso ponto de vista, e de que entender os outros
é frequentemente uma tentativa de recriar o modo como eles veem a partir de seus

até esgotar meus livros; de vez em quando, surpreendo-me embaraçado por uma regra técnica, mas, quase
sempre, encontro princípios que se adaptam à minha visão daquele caso [...]” (KENT, James. An Unpublished
Letter of Chancellor James Kent. The Green Bag, p. 210 apud SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of
Persuading Judges, p. 27). Comparar também com trecho de artigo do juiz Richard Posner, um dos maiores
defensores do pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação, no qual relata a forma como decide os casos
que tem diante de si: “O modo como me aproximo de um caso como juiz [...] é, em primeiro lugar, perguntar a
mim mesmo o que seria um resultado razoável, de bom senso, tal como um leigo acharia e, havendo respondido
a essa questão, perguntar se tal resultado está claramente proibido pelo texto da Constituição ou das leis, pela
jurisprudência majoritária, ou por outra restrição atuante sobre a discricionariedade judicial” (POSNER. Tap
Dancing. The New Republic Online).
112
“O pragmatismo é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados” (GREY. Hear the other Side:
Wallace Stevens and Pragmatist Legal Theory. Southern California Law Review, p. 1590).
113
Talvez, hoje, mais do que nunca, ao menos no que diz respeito à advocacia. Embora os dados se refiram
aos EUA, há considerável massa de estudos que aponta que, a partir de uma série de fatores relacionados à
realidade profissional da advocacia — o número crescente de advogados, a cultura de que quem traz o cliente
é que vai receber a maior parte dos honorários, a maior instabilidade na relação entre cliente e advogados,
havendo sempre concorrência entre todos os escritórios —, os advogados cada vez menos sejam capazes de
negar pedidos ou sugestões de seus contratantes. Desse modo, tornam-se pragmatistas-instrumentalistas não
apenas porque vão fazer seja o que for que o Direito exija para perseguir os interesses de seus representados,
mas porque vão fazer tudo o que for necessário para concretizar esses mesmos interesses, incluindo manipular a
lei e todos os argumentos possíveis, só parando diante de ilegalidades ou inconstitucionalidades óbvias (sendo
que até essas noções podem ser generosamente estendidas). A noção de advogado devotado aos interesses do
cliente, mas também ao bem comum, capaz de rejeitar pretensões absurdas, é, cada vez mais, substituída pela
do advogado “engenheiro radical de argumentos jurídicos”, que vai fazer tudo o que for necessário para ganhar
a causa — até porque, se não o fizer, outro o fará. Mais sobre o tema v. KISCHER, Robert K. Legal Advice as
Moral Perspective. Georgetown Journal of Legal Ethics, p. 223 et seq. Ler, ainda, Brian Z. Tamanaha (Law as a Means
to an end: Threat to the Rule of Law, p. 133-155. cap. 8 - Instrumentalism in the Legal Profession).
114
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 240.
115
SMITH. The Pursuit of Pragmatism. Yale Law Journal. Frank Cross, com algum exagero, reputa-a “talvez a mais
controversa de todas as teorias de interpretação de textos legislativos” (The Theory and Practice of Statutory
Interpretation, p. 102).
116
ATIYAH. Pragmatism and Theory in English Law, p. 5.
117
FARBER. Legal Pragmatism and the Constitution. Minnesota Law Review.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
47

pontos de vista”,118 quiçá a noção de que “uma teoria satisfatória da adjudicação para
advogados deve torná-los capazes de prever o que as cortes farão”,119 ou “o reconheci-
mento de que a devoção à teoria pode ser tão danosa e infrutífera quanto a devoção ao
formalismo tradicional”,120 ou, quem sabe, “uma extensão do ceticismo, baseada, em
última instância, no sofismo grego”.121
Muitas outras definições ainda poderiam ser enfileiradas.122

1.3.1 O “pragmatismo jurídico cotidiano” de Posner: definição e


características
Vamos nos concentrar, neste momento, naquela que é a mais famosa das versões
do pragmatismo jurídico: a teoria de Richard Posner. Ao contrário de outras áreas,
como a teoria da argumentação jurídica, em que a massificação das discussões produ-
ziu uma espécie de teoria padrão, composta pelas opiniões de Robert Alexy e de Neil
MacCormick,123 não há nada parecido com isso em relação ao pragmatismo jurídico.
O pragmatismo de Posner não é, nem de longe, uma teoria padrão do pragma-
tismo jurídico. É, apenas, a mais famosa.
Propomo-nos a apresentar as características essenciais do pragmatismo de Posner
e, logo após, indicar, de modo sistemático, as críticas que lhe são feitas, junto com algu-
mas das possíveis respostas. Não se trata de adotar a teoria de Posner (o que ficará claro
mais adiante), mas de sermos amplos na exposição. Completamos o subcapítulo com a
apresentação de algumas outras versões menos festejadas de pragmatismos jurídicos.
Como já dito, Richard Posner não vê seu pragmatismo como aplicação do prag-
matismo filosófico ao campo do Direito.124 Numa primeira formulação de sua teoria,
caracterizou-a como razão prática — caracterização, diga-se, pouco ortodoxa para o
termo —, isto é, “colcha de retalhos que inclui evidências anedotais, introspecção,
imaginação, senso comum, empatia”.125 Mesmo assim, “ainda capaz de produzir um
grau de certeza tão alto quanto o das demonstrações lógicas”.

118
HANTZIS. Legal Innovation Within the wider Intellectual Tradition: the Pragmatism of Oliver Wendell Holmes.
Northwestern University Law Review, p. 595.
119
LEITER. Rethinking Legal Realism: Toward a Naturalized Jurisprudence. Virginia Law Review, p. 285-286.
120
WEAVER. The ‘Democracy of Self-Devotion’: Oliver Wendell Holmes, Jr., and Pragmatism. In: MORALES
(Org.). Renascent Pragmatism: studies in Law and Social Science, p. 3-30.
121
LEAF. Pragmatic Legal Norms. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social Science,
p. 73.
122
Para uma lista, v. HAACK. On Legal Pragmatism: Where Does ‘The Path of the Law’ lead us?. American Journal
of Jurisprudence.
123
GASCÓN ABELLÁN; GARCÍA FIGUEROA. La argumentación en el derecho, p. 49 et seq.; ATIENZA. Teorias
da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros; ALEXY. Teoria da argumentação
jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica; FERREIRA. Uma introdução à teoria da
argumentação jurídica de Robert Alexy; MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory.
124
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 24-56.
125
POSNER. The Problems of Jurisprudence, p. 73-74. Mesmo depois, Posner continuou defendendo que não existe
qualquer diferença significativa entre a argumentação jurídica e a argumentação prática em geral: “[...] Não há
nenhum procedimento analítico específico que diferencie a argumentação jurídica da argumentação prática em
geral. Os juízes conhecem algumas coisas que os leigos desconhecem; usam um vocabulário específico; possuem
certas sensibilidades apuradas, por exemplo, em relação aos valores do Estado de Direito. A educação jurídica
não é uma fraude, embora possa ser encurtada. E a prática jurídica é, também, um processo de socialização
numa cultura profissional específica. Mas não há diferença intrínseca ou fundamental entre como um juiz trata
uma questão jurídica e como um homem de negócios trata uma questão de administração ou de marketing”
(POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 73).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
48 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Em desenvolvimentos posteriores, assentou os pressupostos de seu pragmatis-


mo: trata-se de um pragmatismo cotidiano,126 de uma rejeição de considerações morais
abstratas. Seria, simplesmente, uma disposição de basear a atuação judicial em fatos e
consequências em vez de em conceitualismos, generalidades, slogans.127
Na essência desse pragmatismo pé no chão, duas ideias: o primado das consequên-
cias e o filtro da razoabilidade. O juiz, ao decidir, deve fazê-lo com olhos bem postos nos
resultados de sua decisão, e cuidar para que seus comandos concretos sejam “razoáveis”.
Seu pragmatismo, como teoria normativa da decisão (teoria que indica como os juízes
devem decidir), pode ser assim resumido: decida de modo a produzir as consequências mais
razoáveis, consideradas todas as variáveis relevantes. Variáveis tão díspares quanto as espe-
cificidades do caso, as normas legais aplicáveis, a importância de se preservar os valores
do Estado de Direito, considerações psicológicas e prudenciais, regras de experiência.128
Na tentativa de definir essa razoabilidade, Posner recorre ao justice Holmes, que,
ao conceituar o juiz pragmático como aquele que coloca a experiência na frente da lógica,
afirma que ingressam, na conta de sua decisão, “as necessidades do momento presente,
as teorias morais e políticas dominantes, intuições sobre políticas públicas, até mesmo
os preconceitos que os juízes compartilham com seus companheiros”.129
Logo se vê que o juízo de razoabilidade de Posner é uma espécie de recomendação
para que os juízes, ao decidirem, levem em consideração toda espécie de fator — insti-
tucional ou não — capaz de contribuir para uma decisão segura e “justa”. Possui muito
pouco em comum com o uso na doutrina brasileira do termo, onde, como “princípio da
razoabilidade”, aparece ora como sinônimo do teste da proporcionalidade, ora como
sinônimo para “proibição de situações absurdas”.130
Posner não acredita que sua teoria seja exemplificativa do consequencialismo
utilitarista, pois o standard adotado é “aquilo que é razoável”, e não “as mais úteis con-
sequências para a obtenção de algo”. Claro que sua versão do pragmatismo jurídico
aproxima-se mais do consequencialismo-utilitarismo do que das moralidades deonto-
lógicas, mas há distinções. Numa hipótese em que, com base na violação à liberdade
de autodeterminação, questione-se a constitucionalidade de lei que proíba o incesto a
casais adultos estéreis, um utilitarista poderia concordar com o argumento — afinal,
a restrição não seria útil a nenhum interesse, e provavelmente restringiria a felicidade
do casal. Todavia, um pragmatista posneriano, atento ao horror ao incesto presente na
sociedade americana, e às possíveis consequências sociais deletérias de tal invalidação,
defenderia a validade da norma.131
Há aspecto no pragmatismo jurídico de Posner que, de certa forma, faz com que
seja teoria mais palatável a espíritos formalistas como os nossos, inseridos na tradição

126
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 49 et seq.
127
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
128
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64. Posner destaca que “todas as variáveis relevantes”
não significa “todas as variáveis possíveis”. Há consequências que, por razões práticas — as limitações de
disponibilidade de informação relativas aos juízes — ou jurídicas — a separação de poderes e a especialização
de funções públicas — não devem ser consideradas pelos juízes. V. POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy,
p. 151.
129
HOLMES, Oliver Wendell. The Common Law, p. 1 apud POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64.
130
ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed.
131
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 65-71.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
49

romano-germânica:132 o de que a autoridade, ao decidir, deve levar em consideração


consequências não apenas casuísticas — para aquele caso —, mas também aquelas
relevantes ao sistema jurídico como um todo. Ou seja, são importantes os efeitos casuís­
ticos e, de igual modo, os efeitos sistêmicos. Tais efeitos sistêmicos são, resumidamente,
considerações ligadas à ideia de Estado de Direito: previsibilidade, generalidade, es-
tabilidade, segurança jurídica.
Levar a sério a noção de Estado de Direito,
Para um pragmatista, não significa adotar o formalismo jurídico como adesão cega às normas
preexistentes — ruat caelum ut fiat iustitia (que o céus caiam desde que a justiça seja feita) — e,
assim, como renúncia a toda e qualquer flexibilidade, criatividade e capacidade de adap-
tação do Judiciário. Significa, na verdade, ter devida consideração (não exclusivista; sem
desconsiderar possíveis trade-offs) pelos valores políticos e sociais da continuidade, coerência,
generalidade, imparcialidade e previsibilidade na administração de direitos e deveres.133

A maioria dos casos envolvendo leis e contratos pode ser resolvida com base no
sentido imediato dos textos. Essas seriam, também, decisões pragmatistas. Com isso,
vê-se o óbvio: existem decisões pragmatistas fáceis e difíceis. Nem todas precisam ser
dilemas complicados. O julgador pragmatista deve se aproximar do Direito legislado e
dos precedentes com olhos no valor social da expectativa por eles criados, já que são os
principais materiais aos quais a sociedade recorre quando precisa saber o que é o Direito.
Devem ser as principais fontes da decisão judicial. O pragmatismo jurídico aproxima-se
de modo respeitoso — embora não acrítico — da lei e do precedente. São utilizáveis
não por seu valor a priori, mas por sua importância como produtores de expectativas.
O formalismo jurídico pode ser estratégia pragmática. Decide-se conforme as
regras postas, de maneira pretensamente cega, mas porque isso é estratégia pensada
para produzir os melhores resultados em relação ao Ordenamento Jurídico como um
todo: incrementar a confiança no Direito, na previsibilidade das normas, na figura
institucional do Judiciário. Posner reconhece a virtude da generalidade, da previsibili-
dade e da imparcialidade do formalismo jurídico, mas prefere utilizá-las na condição
de estratégia pragmática.134
Bom exemplo desta ideia de Posner, vindo da realidade brasileira, é a construção,
pela jurisprudência dos tribunais superiores, de uma série de requisitos formais que
dificultam a admissão dos recursos extraordinários em sentido amplo (RE e RESP).

132
Em diversas ocasiões, Richard Posner afirma que a adoção do pragmatismo ou do formalismo depende das
tradições e das características de cada sistema jurídico nacional ou regional. Diz mesmo que, tivessem os EUA
estruturas e instituições similares às europeias (ou às nossas — no que nos importa), provavelmente teriam
um sistema jurídico formalista, não tão propício ao pragmatismo. De qualquer modo, ele acredita que, com
os maiores contatos entre os sistemas jurídicos, a globalização e a internet, há uma natural tendência a que os
sistemas se aproximem, com o pragmatismo jurídico deixando de ser fenômeno essencialmente anglo-saxão
(POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 147-159).
133
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 61.
134
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151. Posner acredita que a adoção do formalismo como
estratégia pragmática, embora possível, não seja comum na Suprema Corte dos Estados Unidos, por conta da
tradição da Common Law e da própria força do órgão. Os incentivos em favor do formalismo seriam mínimos:
a Corte seria chamada a resolver muitos problemas para os quais a Constituição americana não ofereceria
virtualmente nenhum auxílio e não existiria qualquer pressão advinda do risco de ter seu pronunciamento
revertido por cortes superiores. O órgão seria bastante livre para ser diretamente pragmatista (POSNER. Law,
Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64). É importante levantar o ponto sobre se o nosso STF também não seria,
por essas próprias razões, instância propícia para a adoção do pragmatismo vis-à-vis o formalismo (v. discussão
à frente).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
50 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Diante de um problema prático — a litigância parafrênica, que faz com que STF e STJ
tornem-se terceiras instâncias, e não cortes constitucionais ou de uniformização135 —,
estes tribunais começaram a inventar (o termo é esse) uma série de requisitos ultra-
formais, que vão desde a questão constitucional ter sido expressamente debatida, com
citação de dispositivos normativos, nos tribunais inferiores,136 até coisas como a qua-
lidade da fotocópia, com o evidente propósito de diminuírem o número de recursos a
serem julgados.137
Este aspecto da teoria posneriana é importante porque significa, numa primeira
análise, sua própria negação. Ora, como ser formalista e pragmatista ao mesmo tempo?
A saída para isso está na compreensão do nível do discurso ao qual se está referindo.
Pode-se ser formalista por razões pragmáticas. Adota-se o formalismo como teoria nor-
mativa da decisão — é o formalismo que vai decidir como devemos diretamente decidir
os casos —, porque, antes, adotou-se o pragmatismo como metateoria jurídica (como
teoria que indica como devemos escolher uma teoria normativa da decisão).138 Sobre
essa questão, há debate nos Estados Unidos, e muitos autores defendem o formalismo
dentro dessa perspectiva pragmática.139

135
Segundo dados obtidos no sítio do STF na internet (<http://www.stf.jus.br>), só em 2016 foram julgados 16.504
recursos extraordinários. Somando-se a isso os 79.560 agravos de instrumento, que, em regra, são tirados de
decisões denegatórias de seguimento desses mesmos recursos extraordinários por parte dos tribunais locais
(Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais), fica fácil compreender a preocupação de onze Ministros
com o volume de demandas a serem apreciadas e julgadas.
136
Enunciado nº 287 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF: “É inadmissível o recurso extraordinário
quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Ainda, Enunciado nº 356: “O ponto
omisso da decisão sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios não pode ser objeto de recurso
extraordinário por faltar o requisito do prequestionamento”. O novo CPC, sensível à exigência — inventada —
dos tribunais superiores quanto ao prequestionamento, adotou, em seu art. 1.025, a tese do prequestionamento
virtual ou ficto, pela qual se considera prequestionado o ponto após a oposição de embargos de declaração,
mesmo quando estes sejam rejeitados ou não providos. É, até onde se sabe, o primeiro dispositivo legal no
direito brasileiro — e ainda assim indireto — que fala sobre prequestionamento.
137
Sobre tais requisitos, ver, por todos, Rodolfo de Camargo Mancuso (Recurso Extraordinário e Recurso Especial).
Posteriormente, o próprio legislador brasileiro encampou a ideia, ao criar, por exemplo, a repercussão especial
para a admissibilidade de RE. O exemplo de Posner, embora parecido, parte de uma preocupação pragmática
mais consistente (ainda que a preocupação brasileira — não ser soterrado por volume inadministrável de
causas insignificantes, tomando tempo de julgamento das demandas importantes — seja, também, louvável):
o autor menciona que as cortes federais americanas criam uma série de requisitos formais (“às vezes bastante
arbitrários”, palavras dele) com a finalidade de evitar intervenções prematuras do Judiciário nos assuntos da
nação. “Nada é mais antipragmático para uma corte do que declarar que um programa é inconstitucional ou
ilegal antes que ele tenha tido a chance de entrar em prática e provar seu valor (ou sua falta de) de modo
empírico, ao invés de por especulação” (Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151).
138
“A distinção é importante porque não existe conexão necessária entre teoria e metateoria. Mesmo se o
pragmatismo for a melhor teoria, pode não ser a melhor metateoria; e, mesmo se o pragmatismo for a melhor
metateoria, pode não ser a melhor teoria” (WANG, Philip. Pragmatism and Consequentialism. Columbia
University – Law School, p. 4). Ainda: “Essencialmente, o pragmatismo é uma metateoria. [...] Ele é sofisticado
o suficiente para indicar qualquer teoria normativa — desde que essa teoria normativa produza as melhores
consequências possíveis” (p. 5). “No entanto, não é inteiramente acurado afirmar que o pragmatismo é, apenas,
uma metateoria. Na doutrina, o pragmatismo é comumente indicado como uma teoria normativa”. Em outro
momento, Wang, contraditoriamente, afirma que o pragmatismo é sempre uma teoria normativa, pois, mesmo
quando se está sendo textualista por razões pragmáticas, no fundo está-se adotando o pragmatismo (p. 6). Em
nossa opinião, não há predominância de nenhum aspecto. O pragmatismo pode ser tanto uma coisa quanto
outra. A respeito da estratégia das “decisões de segunda ordem” — decisões sobre qual é o melhor critério a ser
adotado na hora de decidir —, tanto no Direito quanto na vida prática em geral, desenvolver em Cass Sunstein
e Edna Ullman-Margarit (Second order-decisions. University of Chicago Law School, Public Law and Legal Theory).
139
Ainda voltaremos ao assunto. Alguns artigos e livros que defendem tal perspectiva, na doutrina nacional
e estrangeira: ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial:
caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49; SUNSTEIN. Must Formalism be Defended Empirically?.
University of Chicago, John M. Olin Law & Economics; SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
51

Para além desse foco nas consequências razoáveis da decisão, as quais podem
incluir seus efeitos sistêmicos — o que, por sua vez, pode comandar a adoção do for-
malismo como teoria normativa da decisão —, o pragmatismo jurídico, na proposta de
Richard Posner, possui seis características. Ele é (i) eclético, (ii) instrumental, (iii) contextual,
(iv) antiformalista, (v) empírico, e (vi) usa da retórica. Vamos analisar cada um dos pontos.
O pragmatismo jurídico é (i) eclético. Não possui preocupação com ideologias,140
consistência teórica ou harmonias abstratas — está pronto para aceitar sem trauma
contribuições dos mais diversos saberes. Substitui-se a pergunta “é teoricamente com-
patível?” por “funciona na prática?”.
Ecletismo não significa anti-intelectualismo ou rejeição a qualquer teoria. A rejei-
ção dá-se apenas em relação a teorias baseadas em abstrações a respeito de indivíduos
e instituições. Aí se inclui a maior parte das teorias constitucionais e legais de base
filosófica e, de quebra, outra parte das teorias políticas que hoje influem na formulação
e na aplicação do Direito. Mas há influxos positivos a serem obtidos de áreas como a
Estatística, a Economia, a Sociologia experimental, a Psicologia.141 142 “Em síntese, a ob-
jeção do pragmatista não é à ideia de ‘teoria’, mas se dirige contra a má teoria, a teoria
inútil, a outorga do título honorífico de ‘teoria’ à retórica formalista”.143
O ecletismo vale, também, quanto à incorporação de ideias, conceitos, fragmentos
teóricos, princípios, argumentos, de modo que se forme aquilo que Aulis Aarnio chamou
de “teia argumentativa”, um aglomerado de topoi, não absolutamente coerente entre si,
mas que, em conjunto, é capaz de provocar um estado de convencimento racional (em
um juiz ou em uma autoridade administrativa, quando usados por um advogado; no
público, quando utilizados pelo Judiciário ou pela Administração).144
O pragmatismo de Posner é (ii) instrumental. A teoria é instrumento para um fim,
a saber, a distribuição de bens ou a recomposição de estados operada por intermédio do
Direito. Também o Direito é meio para diversos fins. A proposição não é revolucionária;

University of Chicago Public Law Research Paper; VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory
of Legal Interpretation. SCHAUER. Playing by the Rules: a Philosophical Examination of Rule-based Decision-
making in Law and in Life. Para uma visão crítica do discurso das capacidades institucionais no Brasil, cf.
ARGUELHES; LEAL. O argumento das “capacidades institucionais”: entre a banalidade, a redundância e o
absurdo. Revista Direito, Estado e Sociedade.
140
“O pragmatismo jurídico não possui um conteúdo ideológico em si mesmo. Apoia-se na teoria dos jogos, na
Ciência Política e em outras ciências sociais, mais do que em determinadas preferências ideológicas” (POSNER.
Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84. Há quem critique a teoria por uma suposta proximidade ao
capitalismo liberal. Não só contra o pragmatismo jurídico, não só contra o pragmatismo jurídico de Posner: essa
crítica também é comum em relação às éticas consequencialistas e utilitaristas em geral. V. SAPHIRO. The Flight
from Reality in the Human Sciences, p. 100-151, especialmente p. 149-151 - “Ideological Implications of Posner’s
View”.
141
Sendo Posner um norte-americano, vale observar que a referência à psicologia trata da psicologia de base
experimental, e não da psicologia à maneira europeia, “discursiva”.
142
Com razão, o destaque de José Eisenberg: “A eficácia argumentativa desta reconstrução do contexto depende,
portanto e necessariamente, dos recursos conceituais e metodológicos das Ciências Sociais: cabe sempre ao
operador do Direito, sob a ótica do pragmatismo jurídico, realizar o importante trabalho de descrever o contexto
a partir de uma pesquisa empiricamente orientada, para decifrar com conceitos aplicáveis à realidade social os
seus determinantes e seus fatos verificáveis” (Para que serve o pragmatismo jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do
direito).
143
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80.
144
Em rigor, a defesa da ideia de razoabilidade como aceitabilidade racional, trazida por Aarnio, é mais demandante
do que o sentido descrito. Em nosso favor, diga-se que, dentre as várias teorias da razoabilidade, a de Aarnio é
uma das que mais se aproxima da razoabilidade em sentido loose, “solto”, defendida por Posner. Desenvolver
em Aulis Aarnio (Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
52 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

diversas teorias jurídicas, antigas e novas, insistem para que se evite a reificação.145
Aqui, estamos em terreno consensual. Dificilmente alguém sustentaria, hoje, que o
Direito deve se fechar em si mesmo, de modo inflexível e “desoxigenado” em relação
às finalidades que lhe subjazem.
A próxima característica, apesar da negativa de Posner quanto à descendência de
sua versão do pragmatismo jurídico em relação ao pragmatismo filosófico, é compar-
tilhada entre ambos: os dois são (iii) contextuais. A teoria e seus resultados fundam-se
numa dependência do contexto em que estão inseridos. A decisão pragmaticamente
correta de hoje pode não ser a de amanhã — e a diferença pode estar no contexto. Aliás,
o contextualismo não deixa de se basear, também, num antifundacionalismo. É por não
existirem lugares estáticos — pontos de partida ou de chegada, opiniões definitivas —
que a teoria pode se basear no contexto, elemento essencialmente modificável.
O pragmatismo de Richard Posner é (iv) antiformalista. É sua característica mais
destacada. Em rigor, é complexo até definir o que é o “formalismo”.146 Longe de digres-
sões, defina-se formalismo como uma disposição firme de basear decisões em normas
escritas e/ou precedentes. Pois bem, se o formalismo é isso, então o pragmatismo jurídico
de Posner é antiformalista, na medida em que não parte do pressuposto de que normas
escritas ou precedentes devam ser observados por si mesmos, mas apenas quando sua
observância vá produzir os melhores efeitos (casuísticos e sistêmicos). O julgador prag-
matista pode e deve ignorar o precedente — ou adaptar a norma escrita à incidência via
plasticidade das interpretações — se isso produzir os melhores resultados.147

145
BARBER; FLEMING Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186. Como prova do tradicionalismo da
proposta, basta ver que, já em 1935, Felix Cohen defendia uma ciência jurídica livre do “nonsense transcendental”
reificador de conceitos vazios e promotor de discussões etéreas. A doutrina deveria se dedicar à discussão
de casos e à realidade comportamental, econômica e psicológica da administração da justiça (Transcendental
Nonsense and the Functional Approach. Columbia Law Review, p. 809-849). Nesse ponto, aliás, o pragmatismo
faz jus à afirmação de Rorty (e de outros) de que, mercê de sua ampla difusão, haver-se-ia tornado banal. Ver
RORTY. The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice. In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law
and Society, p. 89-97. Por outro lado, talvez sua “banalidade” só signifique, realmente, sua vagueza. Assim,
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 104.
146
SCHAUER. Formalism. Yale Law Journal, p. 509 et seq. Para uma apresentação do tema na doutrina brasileira,
ver o verbete “formalismo”, escrito por Noel Struchiner (In: BARRETO (Org.). Dicionário de filosofia do direito, p.
363-366).
147
Há outro sentido no qual o pragmatismo de Posner é antiformalista. É que tal pragmatismo não é um
complemento ao positivismo jurídico de Hart. Este defendia, com base na experiência do Direito inglês, que, em
casos fáceis, incluídos dentro da zona de certeza positiva da linguagem jurídica, a aplicação seria meramente
subsuntiva: o juiz, pura e simplesmente, aplicaria o que está escrito. Já nos casos difíceis, inseridos dentro da
área cinzenta de certeza da linguagem, o juiz haveria que agir como se legislador fosse, formulando norma e
a aplicando ao caso. Por isso, muitos poderiam imaginar que o pragmatismo jurídico de Posner servisse para
complementar, na parte em que o juiz é livre, o positivismo de Hart. Só que Posner não pensa como Hart. Não
acredita que os juízes, ordinariamente, coloquem seus chapéus de legisladores nos momentos de incerteza, e
recoloquem suas capas de juízes nas horas de certeza da linguagem. A explicação soa-lhe artificial (sem contar
o inconveniente de falar que as autoridades judiciárias deveriam agir como legisladores, quando técnicas e
condições de atuação são completamente distintas), sendo certo que ele busca com sua teoria pragmática da
adjudicação uma proposta útil porque realista. Além disso, não existiriam lacunas no Direito porque este não é
uma coisa, é uma atividade: a atividade diária dos juízes e demais autoridades públicas. Aplicar e criar o Direito
são momentos simultâneos e essencialmente indistintos. Sem falar que há muitas outras zonas de incerteza para
o Direito além da linguagem; e as zonas de certeza não são, de fato, assim tão certas. Muito embora seja sensato
aderir, em casos em que as consequências não são absurdas ou catastróficas, ao significado puro e simples das
normas, como meio de preservar expectativas e de manter a linguagem legal como forma de comunicação
jurídica, isso se dá — diz Posner — por razões pragmáticas. A teoria de Posner quer que sempre os juízes ajam
de modo pragmático. Suas propostas não são complementares, sequer compatíveis, com o positivismo hartiano
(POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80-82). Para a visão de Hart, v. STRUCHINER. Direito e
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
53

O pragmatismo é (v) empírico. Quer ver resultados. A autoridade julgadora


que “segura” um processo, na expectativa de quais serão os resultados daquele ato
regulatório ou lei, e isso para que possa julgá-lo com base nessas consequências, é,
por definição, um pragmatista. Não decidir é, também, resultado de uma decisão, não
necessariamente ruim.
O juiz que, sem demora, invalida uma portaria recente de uma agência regula-
dora, nos casos em que a ilegalidade ou inconstitucionalidade não é flagrante, adota
postura antipragmática: faz com que o ato sequer tenha condição de provar seu mérito.
Da mesma forma, nos estágios iniciais de consolidação de uma linha jurisprudencial,
não é pragmaticamente correto decidir de modo amplo, evitando-se o risco da gene-
ralização prematura. Decidir “antes” e decidir “muito” são posturas antipragmáticas
porque neutralizam a experimentação.148
O empirismo dessa versão do pragmatismo jurídico decorre do fato de ele ser
apenas mais uma manifestação da argumentação prática. As teorias importam, embora
nem todas, e, mesmo assim, apenas no nível certo de abstração. Regras de cautela, dados
de expertise, “princípios” do Direito que são, na verdade, guias práticos de decisão (o
“princípio da cautela” no Direito Ambiental; o “princípio da culpa” na responsabilidade
civil subjetiva), normas que direcionam a pesquisa e o tratamento dos dados factuais
sem pretender suplantá-los, são os princípios e teorias do pragmatismo de Posner. Já
princípios como o da “liberdade”, “integridade” e “dignidade” são, tão somente, formas
de falar bonito sem dizer muito.149
O pragmatismo de Posner é empírico, também, quando diz que se deve preferir
decisão formalmente subótima (ainda que juridicamente defensável), mas empirica-
mente justificada, a decisão que, sob a capa da correção formal, resulte num desastre.
Quanto a esse ponto, a sugestão para que sejamos empíricos é, de fato, uma reco-
mendação para que não sejamos ingênuos quanto aos resultados de nossas decisões.
Considerando o padrão de justificação das decisões jurídicas — amplo, polêmico, e
fundado na linguagem humana, coisa das mais abertas à pluralidade interpretativa —,
a melhor escolha é, sempre, a que produzirá os resultados menos contraintuitivos e
mais sensíveis à realidade.
Exemplo do empirismo: numa discussão sobre eutanásia, o juiz pragmatista
vai pesquisar os efeitos da prática na Holanda, país em que é legalizada, em vez de
caracterizar o debate como uma discussão político-constitucional entre o “princípio da
autonomia” e o “princípio da dignidade da vida”, ou como uma questão de como se deve
interpretar a palavra “liberdade”, conforme apareça em um dispositivo constitucional.150
Neste livro, por vezes apelaremos a esse raciocínio. Assim, numa eventual
polêmica a respeito da possibilidade constitucional da criação de empresas públicas
e sociedades de economia mista, a questão não estaria na interpretação do princípio
da livre iniciativa, mas, simplesmente, na eficiência da intervenção (cf. capítulo 1 da
segunda parte).

linguagem: uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito. Ainda, o capítulo clássico em
Hart (O conceito de direito, p. 137-168).
148
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80. A vindicação de decisões judiciais mais restritas é
desenvolvida em Cass Sunstein (One Case at a Time: Judicial Minimalism on the Supreme Court).
149
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 75.
150
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 74. Exemplo do tratamento expressamente rejeitado por
Posner vem com o livro de Ronald Dworkin Life’s Dominion de 2003.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
54 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

O caráter empírico do pragmatismo de Posner possui, então, três sentidos. É


manifestação da razão prática e, portanto, a) quer ver resultados antes de decidir a
respeito de alguma ação pública, e, nos estágios iniciais de consolidação doutrinária e
jurisprudencial, prefere decidir “menos” a “mais”; b) quer raciocinar em cima de da-
dos concretos, não de construções intelectuais abstratas; c) prefere soluções realistas e
sensatas, a decisões formalmente perfeitas, mas conducentes a resultados desastrosos.
Finalmente, o pragmatismo jurídico é (vi) retórico. Não retórico na forma quase
pejorativa com que a Filosofia grega de raiz platônica descreveu a técnica: uma coleção
de truques para ganhar a adesão do público per fas et per nefas. Ele é “positivamente”
retórico. Em certas situações, como nos domínios do Direito e da Política, não existem
respostas certas em termos lógicos, mas se trata do domínio do verossímil, da argu-
mentação baseada no bom senso, no qual decisões argumentativamente melhores ou
piores assumem o lugar das decisões falsas ou verdadeiras.151
Concretamente, o uso pragmatista do Direito não se limita à linguagem formalista
e formalizante dos tribunais, mas busca exemplos no cotidiano, apela ao bom senso
(“sempre baseie seu pedido não apenas nas regras, mas também no senso de Justiça
e no bom senso”, dizia um juiz da Suprema Corte americana),152 ilustra os casos com
referência a outras ciências (o pragmatismo é eclético, o que significa que é, também,
transdisciplinar). O importante é justificar a razoabilidade do pedido ou da decisão,
não para convencer um lógico, mas para ultrapassar o juízo crítico de um homem
médio esclarecido.153
Antiformalista, empírico, instrumental, eclético, talvez fosse o caso de entender
o pragmatismo jurídico de Posner como uma versão requentada do realismo jurídico154
ou do movimento dos critical legal studies.155

151
“É a arte de se defender argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível, o que a obriga
a passar por ‘noções comuns’, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode encontrar por seu
bom senso, em domínios nos quais nada seria menos científico do que exigir respostas científicas” (REBOUL.
Introdução à retórica, p. 27).
152
SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 26 et seq.
153
“Questões jurídicas difíceis tendem a não possuir respostas ‘certas’ no sentido que Platão aprovaria. Em vez
disso, elas possuem respostas melhores ou piores — e muitas vezes não é claro qual é qual. Essas incertezas
chegam a seu apogeu em certos casos nos quais os juízes enfrentam o desconhecido em cima de um abismo
para o qual não possuem nenhum dos materiais necessários para a travessia. Nesses casos, diante dessas
descontinuidades, um insight revelador, expressado de modo aforístico, mesmo refletindo uma verdade parcial —
talvez seja, apenas, um tiro no escuro —, pode desempenhar adequadamente um papel no desenvolvimento do
Direito. Talvez seja a melhor coisa que se possa fazer” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 83).
154
O realismo jurídico é o designativo de duas linhas de pensamento — uma americana e outra advinda da Europa
do Norte, especialmente da Escandinávia — que advogavam a quintessencial indeterminação do Direito e,
a partir daí, a ideia de que o Direito se constituiria nas decisões judiciais e nas atividades administrativas
em concreto. O realismo ainda defendia o instrumentalismo e a interdisciplinaridade. Alguns, dentro dessa
linha de pensamento, afirmavam que as autoridades decidiriam antes os casos — a partir de seu senso interior
de Justiça ou, segundo alguns, com base em sua intuição ou instinto (numa tradução livre para guts) — e,
posteriormente, buscariam razões jurídicas de apoio. Cita-se Jerome Frank como havendo afirmado que a
decisão judicial poderia ser determinada pelo que o juiz comeu no café da manhã. Como representativo da
corrente europeia do realismo, numa vertente lógica, ver o clássico de Alf Ross (Direito e justiça). Ainda, num
interessante estudo dos conceitos fundamentais da linguagem jurídica — “direito subjetivo”, “obrigação”,
“dever” etc. —, caracterizando-os como originários da linguagem da magia e essencialmente vazios,
desempenhando função emotiva (conclamar para a ação), ver Karl Olivecrona (Lenguaje jurídico y realidade). Na
vertente norte-americana, há quem diga que o primeiro realista jurídico foi o juiz Oliver Wendell Holmes —
mais uma vez, a proximidade entre realismo e pragmatismo jurídico é clara, porque tantos outros tratam
Holmes como pragmatista jurídico seminal —, enquanto outros veem na sociologia jurídica de Pound traços
do realismo. Mais recentemente, Karl Llewellyn e Felix Cohen são nomes de destaque. V. POSNER; HOLMES
(Ed.). The Essential Holmes: Selections from Letters, Speeches, Judicial Opinions and Other Writings of Oliver
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
55

155
Mas, segundo Posner, não é o caso. Duas seriam as diferenças. Enquanto estes
movimentos possuiriam nítida afiliação política — o realismo, ao New Deal; os critical
legal studies, à esquerda —, o pragmatismo não teria valência política. Além disso, tanto
o realismo quanto o movimento crítico seriam “fracos em análise de políticas públi-
cas”: além de sua política de base, não teriam nada a oferecer em troca ao formalismo.
Já o pragmatismo posneriano, próximo à Economia, à Teoria dos Jogos, à Sociologia
aplicada, não dependeria de crenças irrefletidas, mas seria capaz de analisar políticas
públicas e, de modo propositivo, incorporar o melhor que todas essas ciências sociais
aplicadas pudessem oferecer.156
Pode-se acrescentar, ainda, terceira distinção, já não mais por conta de Posner.
Enquanto, para o realismo, há de se ser sempre cético em relação às normas e ao Direito
institucional, o pragmatismo não é tão rigoroso e admite que se possa recorrer a normas,
precedentes, e ao raciocínio silogístico que os acompanha, desde que isso seja feito por
razões pragmáticas.157
Recentemente, ao tratar do tema, Posner, apesar de manter suas críticas ao rea­
lismo clássico, sustenta que o Judiciário americano necessita de um “realismo com
profundidade”, um que supere as insuficiências da teoria realista clássica e que seja
mais do que a “mera substituição do formalismo pelas crenças e emoções individuais
do julgador”.158 A profundidade exigida por Posner equivale ao uso das ferramentas
empíricas à disposição do julgador, que sejam capazes de tornar a decisão em algo a
mais que um palpite.
Parece, portanto, que Posner aceita, atualmente, a alcunha de realista, desde
que observadas as condições para que esse realismo não incorra em um decisionismo
pessoal casuístico: a) considerar os efeitos sistêmicos da decisão e b) se basear em as-
pectos empíricos, e não ideológicos e/ou morais. Em essência, realismo jurídico com
profundidade, para Posner, equivaleria à sua versão de pragmatismo.159 O pragmatismo

Wendel Holmes, Jr.; POUND. An Introduction to the Philosophy of Law; LLEWELLYN. Jurisprudence: Realism in
Theory and Practice; COHEN. Transcendental Nonsense and the Functional Approach. Columbia Law Review,
p. 809-849; LEITER. Naturalizing Jurisprudence: Essays on American Legal Realism and Naturalism in Legal
Philosophy. Boa apresentação está em Michael Steven Green (Legal Realism as Theory of Law. William and Mary
Law Review). Na literatura nacional, v. FONTES. Aspectos do realismo jurídico. Justiça & Cidadania.
155
O movimento dos critical legal studies seria, segundo alguns, uma derivação do realismo jurídico de base
mais política. Com ele, compartilharia a ideia de que normas e precedentes não determinariam o Direito. Ao
contrário do realismo, no entanto, os estudos críticos acreditariam que o Direito seria, na verdade, política (Law
is politics) e que, de modo geral, prestar-se-ia a ser instrumentalizado pelas classes dominantes com o propósito
da manutenção do status quo. Sendo assim, nada impediria — de fato, haveria muitos estímulos — que fosse
tomado por operadores politicamente conscientes em prol da mudança social. Diferentemente do realismo
jurídico, os critical legal studies adquiriram certa projeção na doutrina brasileira dos anos sessenta e setenta,
embora, hoje, já não possuam tanta força nem nos EUA nem no Brasil. Por todos, Mark Kelman (A Guide to
Critical Legal Studies). No Brasil, resumindo o histórico do movimento, mas adotando tom crítico — imaginar
que o Direito se iguala à política acabaria negando efetividade ao Direito —, ver a primeira parte da obra de
Paulo Ricardo Schier (SCHIER. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
156
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84.
157
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito conceptual, normativo
e interpretativo del derecho, f. 32 et seq.
158
“O Judiciário precisa de melhores ferramentas para decidir casos. Ele precisa de um retorno ao realismo jurídico,
mas, dessa vez, um realismo com profundidade, um realismo fundado em métodos analíticos e empíricos
modernos, um realismo que vá além de um palpite” (POSNER. Reflections on Judging, p. 353).
159
Posner não abandonou, contudo, a caracterização de pragmático: “Eu sou um juiz pragmático e anos antes de
começar a me preocupar com a galopante complexidade (principalmente tecnológica) dos casos que as cortes
federais têm que julgar, eu notei a afinidade entre pragmatismo jurídico e ciência (...). Mas eu não preciso
restringir o realismo jurídico ao pragmatismo para defender meu ponto” (POSNER. Reflections on Judging, p. 5).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
56 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

jurídico de Posner, teoria simples, chã,160 cujo objetivo é secundar uma prática jurídica
que funcione, pode ser resumido como uma diretriz para que as autoridades decisórias
não se preocupem apenas com as consequências imediatas de suas decisões — mas, de
toda forma, preocupem-se com consequências.
É uma teoria da adjudicação que não nega o Estado de Direito, mas é resoluta-
mente antiformalista e considera não haver nada significativamente diferente na forma
como um juiz resolve uma questão jurídica do modo como um homem de negócios
soluciona um problema de administração.
Na preferência por decisões menos abrangentes quando do início da consolidação
de tendências, assim como na opção por não decidir quando isso signifique a invalidação
prematura de ações públicas, a teoria jurídica pragmatista mostra-se simpática à retó-
rica e antipática à Filosofia e à Teoria Moral. Acredita, por fim, que, em casos difíceis,
as autoridades decisórias nada podem fazer além de chegar a resultados razoáveis (os
quais não são o mesmo que resultados demonstrativamente corretos sob crivo lógico).

1.3.2 Ataque e contra-ataque: o pragmatismo jurídico de Posner em


questão
As críticas dirigidas à versão jurídica do pragmatismo de Richard Posner são
variadas, e vão desde aspectos técnicos161 até observações triviais.162 Optamos por se-
lecionar seis delas.
As críticas são as seguintes: (i) o pragmatismo jurídico estimularia uma amplíssima
discricionariedade judiciária ao ignorar a força dos precedentes e ao não se submeter ao
Direito legislado; (ii) a concretização dos melhores resultados possíveis não emprestaria

160
Posner, referindo-se a Holmes, faz a seguinte analogia: um burro de carga é um animal de serviço. Tem paciência
e charme, mas lhe falta magnificência. Um leão, por outro lado, é um animal magnífico, mas perigoso. O Direito
deve tentar, a todo custo, ser um burro, jamais um leão, afinal é um serviço, não uma arte ou uma ciência. É
dizer: para Posner, como operadores do Direito, devemos tentar ao máximo ser deliberadamente “sem graça”,
mundanos (POSNER. Reflections on Judging, p. 354).
161
O pragmatismo jurídico de Posner, ao justificar práticas conservadoras, não seria suficientemente pragmático,
tal como o entenderia, digamos, John Dewey. V. SULLIVAN; SOLOVE. Can Pragmatism be Radical?: Richard
Posner and Legal Pragmatism. Yale Law Journal. Algumas linhas merecem ser ditas a esse respeito. A teoria de
Posner prefere deixar que a sociedade experimente antes de tomar partido (judicial) a respeito das questões.
“Um dos valores do pragmatismo é seu reconhecimento de que existem áreas do discurso em que a falta de
finalidades comuns obsta a resolução racional; e, aqui, o conselho pragmático ao sistema jurídico é para que
fique em silêncio, preserve caminhos de mudança, não agite desnecessariamente as águas políticas”. Sob tal
perspectiva, o pragmatismo jurídico de Posner é pouco ativista — justamente o contrário da tônica principal
das críticas — e, de certa forma, política e socialmente conservador. Nem sempre, contudo, não intervir
corresponde a manter as coisas como estão. A sociedade pode estar mudando, e a intervenção judicial servir de
veículo ao conservadorismo econômico ou social (por exemplo, a Suprema Corte americana contemporânea ao
New Deal era economicamente conservadora e judicialmente ativista). De toda forma, embora seja verdade que
o pragmatismo filosófico, em especial com Dewey, seja progressista, não é por isso que o pragmatismo jurídico
precisará ser. Para a citação que transcrevemos, v. POSNER. What has Pragmatism to Offer Law?. In: BRINT;
WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 42.
162
A proposta estimularia a pobreza intelectual por reduzir as decisões judiciais e administrativas ao critério
“daquilo que é melhor naquele caso”. Uma espécie de eterno juízo de equidade, sem que as autoridades
precisassem sequer conhecer dogmática jurídica, precedentes e normas. É crítica injusta. O pragmatismo
jurídico não é um decisionismo desarvorado. É preciso conhecer a doutrina, os precedentes e a legislação para
saber como utilizá-los pragmaticamente. De resto, ao estimular a interdisciplinaridade, o julgador pragmatista
será obrigado a estudar muitas outras disciplinas além daquelas a que estaria acostumado. Nesse sentido,
então, o pragmatismo estimularia — e não empobreceria — a intelectualidade dos aplicadores do Direito. V.
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94-95.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
57

suficiente respeito aos direitos fundamentais, que viriam a ser trunfos diante de conside-
rações utilitaristas; (iii) o pragmatismo de Posner seria incompleto, porque mandaria
decidir da melhor forma possível, sem indicar nenhum critério do que isso viria a ser;
(iv) o pragmatismo jurídico, considerando as características do processo judicial e a
competência institucional do Judiciário, seria pouco prático, já que o caminho mais fácil
e barato para a produção dos pretendidos melhores resultados decisórios seria o for-
malismo; (v) o pragmatismo estimularia negativamente o Legislativo quanto à qualidade das
leis que este viria a produzir; e, finalmente, (vi) visões instrumentalistas do Direito —
da qual o pragmatismo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão da ideia de bem
comum, acarretando consequências negativas para a noção de Estado de Direito (redução
da natureza vinculante das normas jurídicas, facilitação da captura das autoridades
decisórias, intensificação e perenização da litigiosidade na sociedade).
Após apresentar as críticas, indicaremos algumas das possíveis respostas, não
com o intuito de defender a teoria (não é o caso, como ficará claro na parte final do
capítulo), mas para ser abrangente.
Principiemos com a crítica mais comum, dirigida ao pragmatismo jurídico como
um todo, e não apenas à versão de Posner: (i) o pragmatismo jurídico concederia amplís-
sima discricionariedade ao Judiciário — e, de resto, às autoridades julgadoras em geral —,
o que seria ilegítimo, tanto no aspecto técnico-constitucional (violaria a ideia de pre-
visibilidade ínsita ao Estado de Direito) quanto no filosófico-político (é a crítica aos
juízes-legisladores e à ideia-força da separação das funções estatais).
Nesse sentido, Walter Kennedy comenta que o pragmatismo jurídico “é, em certa
medida, anárquico e desprovido de standards ou princípios, quando o Direito requer
um razoável grau de uniformidade, estabilidade e certeza”.163 O próprio Richard Posner
registra o medo, por parte de alguns, de que o pragmatismo leve à anomia: a ameaça
de que juízes pragmáticos “desconsiderem os precedentes, a interpretação direta, a
doutrina estabelecida, e outros obstáculos formalistas, tal como os juízes alemães fize-
ram na época de Hitler”.164 Variações dessa crítica falam do desapreço do pragmatismo
jurídico pelo precedente e/ou pelas leis.165 Se não há barreiras claras ao exercício do
poder, poder-se-ia chegar a um estado de ideologização extrema ou de exercício com
base na simples má-fé. Ter-se-ia, então, uma ditadura dos juízes, tornados ditadores
por seu “pragmatismo jurídico”.
Há algumas maneiras de se defender a teoria. Pode-se alegar, por exemplo,
que o pragmatismo jurídico não é teoria de incidência permanente, e que se destina,
diretamente ao menos,166 apenas aos hard cases.167 Seria, então, mais modesta do que,

163
KENNEDY. Pragmatism as a Philosophy of Law. Marquette Law Review, p. 72-73.
164
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94.
165
“O pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de que elas nunca
terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque alguma legislação assim estabeleceu, ou
porque uma longa fileira de juízes assim decidiu que outras pessoas tenham tal direito” (DWORKIN. O império
do direito, p. 186).
166
Já que se teria o pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação de fundo mesmo quando se adotasse o
formalismo.
167
Em diversos momentos, é o que dá a entender o próprio Richard Posner. Quando, por exemplo, conceitua
seu pragmatismo jurídico tendo por base especialmente as decisões pragmáticas aplicadas aos casos difíceis;
quando menciona que o pragmatismo não é sempre nem em todo lugar a melhor estratégia de adjudicação;
quando denota o valor social da expectativa criada pelas leis e pelo precedente; quando escreve: “Pode o juiz
desafiar a valoração legislativa das consequências? [...] Minha resposta é que apenas em casos extremos o juiz estará
autorizado a abandonar o julgamento legislativo. Porque a circunstância de os juízes abrirem uma guerrilha contra
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
58 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

por exemplo, a proposta de Ronald Dworkin — que pretende fazer uma leitura da
Constituição americana com base em princípios morais168 e cujo resultado pode ser a
ampliação dos poderes dos juízes.169 170 171
Além disso, Posner sugere que o pragmatismo jurídico, por ser transparente,
poderia até reduzir a discricionariedade, ou, pelo menos, fazer com que fosse exercida
de modo cauteloso. Segundo ele, quando os juízes não se sentem elos de transmissão de
decisões tomadas por outrem (no caso, o Legislativo), tendem a ser mais cautelosos.172
Haver-se-ia, afinal, de concordar com Braxton Caven: “Existem apenas duas espécies
de juízes: [...] aqueles que são assumidamente orientados pelos resultados, e aqueles

os legisladores e as cortes superiores é desestabilizadora e, em geral, uma má coisa, embora não seja sempre algo
pior do que a alternativa” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 71, grifos nossos; o segundo itálico
está no texto original). Em outro livro, fica ainda mais claro: “Um ponto relacionado é que o interesse social na
certeza da obrigação jurídica requer que o juiz se mantenha bastante próximo ao texto da lei e ao precedente
judicial na maioria dos casos, agindo, na maior parte do tempo, pelo menos, como um formalista” (POSNER.
The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 209).
168
CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
169
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 115.
170
Para uma visão geral da teoria do Direito como integridade e da ideia de leitura moral da Constituição, ver
introdução de Ronald Dworkin (Freedom’s Law: the Moral Reading of the American Constitution, p. 1-38).
Há discussão a respeito da não afiliação de Dworkin ao pragmatismo jurídico, em que pese sua crítica ao
movimento. Quem crê nisso parte de uma definição alargada de pragmatismo ou de pragmatismo jurídico.
É o que faz, por exemplo, Thomas Grey, ao entender como pragmatistas duas linhas teóricas, a “teoria dos
interesses” (tradução aproximada de policy jurisprudence) e a moderna teoria dos direitos. Ambas ultrapassam
o texto legal na defesa de seus respectivos objetivos. No caso da primeira (a “teoria dos interesses”), em prol
de conveniências administrativas, utilidade social, eficiência etc., sendo seu mais destacado exemplo a própria
teoria de Richard Posner. A outra (a moderna teoria dos direitos) supera o texto legal em favor da defesa
e da promoção de direitos morais, como seria o caso da proposta de Dworkin. Ao lado desse pragmatismo
estaria o formalismo, acreditando na virtude da fidelidade à norma jurídica: o Direito deveria ser um conjunto
de regras e de princípios objetivos capazes de controlar as decisões daqueles que pretendem ser seus servos
fiéis. V. GREY. Judicial Review and Pragmatism. Stanford Public Law and Legal Theory Working Series, p. 5 et
seq.). Cf. também a opinião de Margaret Jane Radin, para quem o juiz Hércules, de Dworkin, aquela entidade
contrafática que ele imagina como o ideal de julgador (inatingível, mas que serve como princípio regulador
da prática judicial), dotado de tempo e de conhecimento suficientes para integrar todos os princípios morais
atinentes às hipóteses concretas e chegar sempre à resposta correta, mesmo e especialmente em casos difíceis,
é um pragmatista, já que está comprometido com a construção de sentido por intermédio de eventos concretos
(adequação e coerência institucional), ao invés de apelar a um ideal abstrato de verdade ou de justiça (The
pragmatist and the feminist. In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 146 et seq. Já Richard
Rorty acredita que não seja necessário alargar muito o sentido de “pragmatista” para acomodar, juntos, Dworkin
e Posner, dada a banalidade que assola o pragmatismo (The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice.
In: BRINT; WEAVER (Org.). Pragmatism in Law and Society, p. 90). Ver, por outro lado, a opinião de Thamy
Pogrebinschi, para quem Dworkin definitivamente não é um pragmatista jurídico, sendo determinante para tal
afastamento o papel da Moral e da História em sua teoria. Enquanto, na concepção de Direito como integridade
de Dworkin, seus famosos princípios são o elo de conexão entre o Direito e a Moral, tida como elemento central
da adjudicação, o pragmatismo preocupa-se antes de tudo com a Política (entendida em sentido amplo). Além
disso, a teoria de Dworkin seria atenta e reverente aos precedentes (o juiz Hércules é entidade que olha para trás
ao propor algo novo); mesmo a ideia de interpretação do Direito como redação de um capítulo numa novela
seriada (chain novel) é noção sensível ao precedente e à história das decisões (trata-se, afinal, de um novo capítulo
dentro de um mesmo seriado), enquanto o pragmatismo é, por definição, proposta que olha para o futuro e, no
máximo, vê a adesão ao passado como estratégia de preservação de expectativas (POGREBINSCHI. Dworkin
e o Pragmatismo Jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do direito). Esta discussão está sugerida em Diego Werneck
Arguelhes e Fernando Leal (Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização,
estratégias e implicações, p. 4, nota de rodapé n. 9). Especificamente sobre o debate entre Posner e Dworkin, v.
ARRUDA. Juízes & casos difíceis: o pragmatismo de Richard Posner e a crítica de Ronald Dworkin.
171
Contrastar com a ideia de que também a teoria de Dworkin só se aplicaria a casos especiais. Na maioria das
vezes, o juiz não precisaria ingressar em grandes justificações teóricas. O julgador “não precisará procurar mais
em nossos argumentos interpretativos do que nos textos legais ou nos casos relacionados diretamente com a
hipótese em questão” (DWORKIN. Justice in Robes, p. 54).
172
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 96. Ainda, POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
59

que também são orientados pelos resultados, mas ou disso não sabem ou, por variadas
razões, declinam admiti-lo”.173
Se não há muitas alternativas à circunstância de que os juízes vão exercer seu
poder discricionário, não é verdade, na opinião de Posner, que o pragmatismo deixe-os
livres. Há uma série de restrições materiais, psicológicas e institucionais. A doutrina e o
precedente criam um valor social de expectativas que deve ser reconhecido pelo julgador
pragmatista. E o contato direto com diversos assuntos com os quais o juiz formalista
não possui tanta intimidade — como a Economia — faria com que o pragmatista, su-
postamente um perigoso agente discricionário, protegesse mais e melhor, por exemplo,
os direitos de propriedade, do que o formalista (que, às vezes, mercê de seu amor por
fórmulas rituais, acabaria permitindo com que se concretizassem prejuízos).174 Quanto
à pretensa contaminação dos pragmatistas com o poder, a verdade é que as pessoas
conscientes acabariam abusando menos dele.
No pragmatismo, não haveria insubmissão aos precedentes. Haveria é seu uso
pragmático. Na grande maioria das vezes, considerando o valor social da expectativa, o
pragmatista ater-se-ia ao precedente. Não pelos próprios precedentes — fique claro —
mas pela previsibilidade, pela estabilidade e pela segurança jurídica que possam
conferir.175
Questão mais complexa é saber se haverá desrespeito ao Direito legislado. Ao
considerá-lo, para todos os efeitos, mais um topoi junto a outros — a doutrina, os pre-
cedentes, os dados empíricos —, parece que Posner faz pouco caso das leis. Essa é uma
das acusações lançadas, entre tantas, por Dworkin.176 Entretanto, e se o Direito legislado,
em alguma medida, quiser o exercício dessa faculdade pragmática pelos juízes? Não
seria inusitado imaginar tal situação perante o Direito norte-americano, quiçá diante
do Direito brasileiro (ao menos em certa medida, com base no princípio da eficiência,
art. 37, caput, da Constituição da República).177 178 Além disso, o Direito legislado não

173
CRAVEN JR. Paean to Pragmatism. North Carolina Law Review, p. 977.
174
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 95-96.
175
Em homenagem ao contraditório, vejam-se, no entanto, alguns comentários críticos de Dworkin sobre a proposta
de Posner para o uso estratégico dos precedentes. Depois de afirmar que se trata de algo implausível, Dworkin
alega que “o pragmatismo só pode ser resgatado como uma boa explicação de nossa imagem transversal da
decisão judicial por meio de um mecanismo procustiano que parece extremamente inadequado. Só pode ser
resgatado se não tomarmos as opiniões judiciais em seu sentido literal; precisamos tratar todos os juízes que
se preocupam com leis e precedentes problemáticos como se praticassem uma forma imotivada de impostura.
Devemos vê-los como se inventassem novas regras para o futuro de acordo com suas próprias convicções
sobre o que é melhor para a sociedade como um todo, livres de quaisquer pretensos direitos que decorreriam
da coerência com a jurisprudência, mas apresentando-as, por razões desconhecidas, sob a falsa aparência
de regras extraídas do passado” (DWORKIN. O império do direito, p. 194). Nas páginas seguintes, Dworkin
defende a coerência judicial por si mesma, não por qualquer valor instrumental, como derivação do princípio
da integridade, entendido este como o dever de tratamento de todos os indivíduos, por parte do Estado, como
agentes morais dignos de igual respeito e de consideração, o que inclui tratá-los conforme a um conjunto único
e coerente de princípios, e não consoante o que entende como opiniões circunstanciais dos juízes.
176
DWORKIN. O império do direito, passim. Na doutrina brasileira, fazendo coro às críticas de Dworkin, v. DA
COSTA FELIPE. O Pragmatismo antiteórico de Richard A. Posner e as respostas da teoria moral para a decisão judicial.
Dissertação.
177
Para uma análise sobre o princípio constitucional da eficiência administrativa como veículo formal para a
operação com raciocínios pragmatistas no Direito brasileiro, seja concedida a referência a MENDONÇA;
FLEMMING. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência.
178
No entanto, leia-se, ainda uma vez, a crítica de Dworkin: “É uma tentativa ousada de unir o pragmatismo
e o convencionalismo. Faz do pragmatismo o conteúdo de uma vasta e abrangente convenção segundo a
qual os juízes devem decidir seus casos de maneira pragmática. Uma vez que, na melhor das hipóteses, o
convencionalismo não é uma concepção de Direito mais poderosa do que o pragmatismo, esse casamento
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
60 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

autorizaria nem negaria expressamente nenhuma teoria interpretativa, então estaríamos


em situação de igualdade em relação a todas.
Finalmente: por que motivo os outros métodos de interpretação vinculariam mais
o Judiciário? Texto de lei e precedentes podem ser manipulados pelos julgadores. A
vinculação entre pragmatismo e ativismo judicial pode ser empiricamente medida. Não é
um dado da vida.179 Se o pragmatismo jurídico de Posner não se justificar em concreto —
ao gerar, por hipótese, um ativismo judicial incontrolável —, que seja descartado; mas
não se vai saber se é bom ou ruim se não for colocado em ação.
Segunda crítica: (ii) a concretização dos melhores resultados práticos possíveis
não seria suficientemente respeitosa em relação aos direitos fundamentais. É uma das principais
críticas de Dworkin. Construindo sua teoria como um ataque tanto ao positivismo de
Hart, na metodologia jurídica, quanto ao utilitarismo, na Teoria Política180 (que alguns
veem como a filosofia de base do pragmatismo), Dworkin imagina que, ao considerar
os melhores resultados, o juiz pragmatista acabará desmerecendo os direitos e garantias
individuais, que, em sua opinião, são verdadeiros “trunfos contra a opinião das maio-
rias” e contra qualquer consideração utilitária.181 Os direitos fundamentais deveriam
ser garantidos contra tudo e contra todos, o que incluiria garanti-los contra qualquer
consideração de conveniência ou de oportunidade.182
A objeção é séria, é das mais tradicionais, e não se dirige apenas ao pragmatismo
jurídico de Posner, mas a todas as éticas normativas consequencialistas. As respostas a
ela defendem a existência de situações nas quais é proibido fazer algo, mesmo útil, ou
que, ainda que útil, talvez não seja necessário fazê-lo. Outras respostas investem numa
concepção ampla do consequencialismo e defendem que o aparentemente subótimo,
hoje, pode ser justificado, em longo prazo ou em grande escala, porque propiciaria
utilidade ainda maior do que a advinda da prática daquele ato então focalizado.
Posner provavelmente responderia que sua teoria não é menos garantista dos
direitos fundamentais do que a adotada por um juiz formalista que, debaixo dos panos,
manobre argumentos formais em direção às suas opiniões pessoais. Pelo contrário:

dificilmente melhoraria a situação deste último. De qualquer modo, porém, esse casamento é uma farsa”.
O autor norte-americano explica os motivos da farsa: “Não é verdade que norte-americanos e ingleses, por
exemplo, concordaram tacitamente em delegar o poder legislativo aos juízes dessa maneira. [...] Já vimos
que, assim, fica por explicar um traço dominante da prática judicial — a atitude que os juízes assumem com
relação às leis e aos precedentes nos casos difíceis [...]. Não existe, sem dúvida, uma convenção que permita aos
juízes adaptar seus pontos de vista sobre os direitos das partes a razões puramente estratégicas. Pelo contrário,
como observamos no começo deste livro, a maioria das pessoas pensa que os juízes que agem desse modo são
usurpadores” (DWORKIN. O império do direito, p. 196).
179
A respeito do tema, conferir, CROSS; LINDQQUIST. Measuring Judicial Activism.
180
DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. VII-VIII. Ainda, CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin. In: A TESE dos
direitos.
181
No mesmo sentido, na doutrina brasileira, v. a crítica de Jane Reis, para quem considerações pragmáticas a
respeito de metas coletivas jamais deveriam se sobrepor a direitos fundamentais, sob pena de distorção do
conteúdo mínimo do Estado de Direito. Cf. REIS. As garantias constitucionais entre utilidade e substância: uma
crítica ao uso de argumentos pragmatistas em desfavor dos direitos fundamentais. In: Direitos Fundamentais e
Justiça.
182
Para Dworkin, os princípios, em sentido amplo, dividem-se em princípios em sentido estrito — que dão
origens a direitos — e policies (traduzido como “políticas” ou “diretrizes políticas”) — com o significado lato de
interesses públicos, conveniências administrativas, medidas executivas etc. Os argumentos de princípio sempre
preferem aos argumentos de política. Vale dizer que as conveniências públicas não suplantam as exigências de
justiça, moralidade ou equidade nas quais se radicam os direitos. É nessa primazia dos argumentos de princípio
que reside seu antiutilitarismo (DWORKIN. Levando os direitos a sério, p. 128 et seq.). Também SOUZA NETO.
Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, p. 225-228.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
61

o maior contato com a realidade concreta e a assunção, às claras, das bases pragmatis-
tas, fariam com que o juiz posneriano decidisse melhor e de forma mais responsável
do que o formalista.183
Outra crítica importante diz que o pragmatismo de Posner seria (iii) incompleto,
porque sugeriria decidir da melhor forma possível, mas sem indicar critério a respei-
to do que isso viria a ser. Dworkin afirma que esse pragmatismo só se sustenta com
base numa Teoria Moral substantiva, precisamente o que ele é incapaz de fornecer,
sendo, então, incoerente.184 Adrian Vermeule, também por essa razão, critica Posner
como propositor de um “consequencialismo atrofiado”.185 Posner recomendaria fazer
sempre o que funciona, mas se esqueceria de estabelecer um critério para identificar
o que é que funciona.186 Martin Stone chega a chamar o pragmatismo posneriano de
“ecletismo vazio”.187
Ilya Somin resume a essência da crítica:
A principal dificuldade com o pragmatismo de Posner é que, apesar da insistência na impor-
tância de se tomar decisões baseadas em “fatos e consequências”, ele não indica nenhuma
forma de se decidir quais fatos e consequências são desejáveis, e quais não são. Sem uma
resposta a essa questão, o pragmatismo não pode servir como uma guia de decisão, muito
menos como um guia superior a teorias alternativas.188

O pragmatismo de Posner, continua Ilya, seria muito amplo e muito restrito. Muito
amplo, por não indicar o que o juiz deve excluir de suas considerações.189 Deve-se levar
em consideração os efeitos sistêmicos; texto e precedentes devem ser tratados como o
mais importante material para a decisão. Não exclui sequer seu principal rival, o for-
malismo. “Depois de corretamente criticar a confiança exclusiva em ‘abstratas teorias
políticas e morais’, Posner oferece-nos uma teoria que é frequentemente mais vaga e
abstrata do que as que atacava”.190 “Razoabilidade” não é critério melhor do que “jus-
tiça” ou “equidade”. Muito restrito, por não oferecer nenhum critério seguro sobre o
que fazer. O que leva a uma situação contraditória. “Esse é o dilema do pragmatismo:
sem uma teoria moral extrínseca, não possui poder de guia. Uma vez que tal teoria seja
formulada, é ela, e não o pragmatismo, que se transforma no guia para o processo de
tomada de decisão”.191
Na verdade, pode-se defender a proposta de Posner entendendo-a como humilde.
Ele acredita que, se os juízes agirem pragmaticamente em relação ao que eles acham
melhor, os resultados para a sociedade serão, na média, melhores.192 Decerto, não indica

183
V. CHIASSONI. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative, p. 620.
184
DWORKIN. Justice in Robes, p. 59.
185
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 84.
186
DWORKIN. Justice in Robes, p. 24, 64-65.
187
STONE. Four Qualms about Legal Pragmatism. In: HUBBS; LIND (eds.). Pragmatism, Law and Language.
188
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 3.
189
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 5. Também Richard
Epstein: “Existem tantos graus de liberdade no modo pragmatista de pensar que, ao aceitar tudo, acaba não
significando nada” (EPSTEIN. The Perils of Posnerian Pragmatism. University of Chicago Law Review, p. 639-650).
190
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 8.
191
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 7.
192
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 122. Daí, inclusive, a sugestão de Posner em favor da
adoção de um Judiciário diversificado, com ideias e opiniões heterogêneas. “Tal Judiciário é mais representativo
e suas decisões irão obter, portanto, maior aceitação numa sociedade diversificada do que as que adviriam de
um mandarinato” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 120).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
62 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

nenhum guia do que é razoável. Razoável é o que as circunstâncias, o estudo dos dados,
a sensibilidade trazida pela experiência, o input das diversas ciências experimentais, a
análise pragmática da doutrina e dos precedentes, a consideração dos efeitos sistêmicos
das possíveis decisões disserem que é.
A teoria do pragmatismo jurídico de Posner seria pouco prática (iv): os melhores,
mais rápidos e menos custosos resultados decisórios seriam obtidos, na maioria das
vezes, por intermédio de análises formalistas. Pensemos no Judiciário. Juízes não seriam,
em termos de competência institucional, as melhores pessoas para formular políticas
públicas ou tomar decisões na linha all things considered. Não estariam, por exemplo,
acostumados a apreciar materiais não jurídicos.193 Há, para isso, uma série de motivos.
O fato de não serem eleitos torná-los-ia sociologicamente distantes dos jurisdicionados,
e a vitaliciedade afastá-los-ia ainda mais de qualquer responsabilidade em relação ao
resultado de suas decisões. Existiriam as constrições relativas ao processo legal. O juiz
deve julgar com o que consta dos autos, não pode ouvir todos os interessados etc. (ao
contrário do Poder Executivo e, especificamente, das agências reguladoras, que, segundo
alguns, seriam as mais propícias a adotar uma teoria pragmatista da interpretação).194
Em favor do pragmatismo jurídico, seja de Posner ou de qualquer outro, pode-se
dizer, como faz Frank Cross, que “o pragmatismo do pragmatismo é, em essência, uma
questão consequencialista que requer investigação empírica. O pragmatismo pode ser, de
fato, pouco pragmático, mas isso só pode ser descoberto por intermédio de testes”.195 196
Analisando as consequências do pragmatismo à la Posner, alguns falam que
(v) ele produziria incentivos negativos em relação à qualidade das leis. Se as leis são apenas
mais um elemento a ser considerado no julgamento de um caso, o Poder Legislativo
não precisaria se preocupar em elaborar leis completas ou consistentes, porque, de
todo modo, seriam de pouca valia, podendo ser ajustadas pelo julgador no momento

193
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 86 et seq. chap. 4 -
Judicial Capacities: a Case Study.
194
SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law Research Paper.
195
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 125. Posner pretende ver comprovação das virtudes
do pragmatismo jurídico no sucesso econômico dos países da Common Law em relação aos da Civil Law.
Naqueles, os juízes agiriam de modo menos amarrado a scripts, ao passo que, por formação e tradição, os juízes
da Civil Law seriam mais formalistas. Em nossa opinião, não é boa prova. O sucesso econômico depende de uma
miríade de fatores, que podem nada ter a ver com o grau de formalismo jurídico dos países. V. POSNER. Law,
Pragmatism and Democracy, p. 95-96.
196
A questão do pragmatismo do pragmatismo jurídico consiste em saber se a teoria é a mais útil ou, ao
menos, comparativamente mais útil do que sua principal rival, o formalismo jurídico. Questão a ela ligada
é, como já mencionamos, saber se as teorias jurídicas — e aqui não importa qual — influenciam na prática da
adjudicação. As respostas a essas perguntas, até aqui, têm sido desanimadoras para os teóricos do Direito,
sugerindo que a influência é menor do que se estima. Veja-se, por exemplo, o estudo de Daniel Farber, que
selecionou quatro decisões julgadas por Richard Posner e Frank Easterbrook, na mesma corte, em ocasiões em
que houve dissenso entre os dois julgadores. Posner é um dos grandes defensores do pragmatismo jurídico.
Easterbrook, por sua vez, além de juiz, é teórico defensor do formalismo como critério de adjudicação. No
entanto, e de modo contrário ao que fariam crer seus posicionamentos teóricos, ambos os juízes, na prática,
souberam transitar, ao sabor de cada caso, por posições que se aproximavam, ora do pragmatismo, ora do
formalismo. Não havia, in concreto, nenhuma consistência em relação às teorias que professavam. V. FARBER.
Do Theories of Statutory Interpretation Matter?: a Case Study. Northwestern University Law Review, p. 1409 et seq.
Estudo mais recente comprovou que o formalismo teórico de Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte americana
recentemente falecido, não se projetava em sua prática como justice, que se baseava nos mesmos métodos que
os demais juízes (nesses métodos estavam incluídas técnicas como a análise dos propósitos da lei, de nítido
cunho consequencialista). Cf. MCGOWAN. Do as I do, not as I say: an Empirical Investigation of Justice Scalia’s
Ordinary Meaning Method of Statutory Interpretation. University of San Diego Legal Research Papers.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
63

de sua aplicação.197 Contra essa crítica, sem embargo do fato de que, adotando-se o
pragmatismo ou não, o “ajuste” no caso concreto sempre existiu, vale sublinhar que o
argumento admite reversão: pode ser que o pragmatismo jurídico, ao contrário, encoraje
o exercício legislativo mais qualificado, ao neutralizar o medo, por parte do Legislador,
de que circunstâncias não concebidas no momento da edição de lei venham a produzir
efeitos negativos. A questão é, mais uma vez, empírica. Não é possível afirmar ou negar
nada antes de ver a teoria em ação.
Finalmente, (vi) as visões instrumentalistas do Direito — da qual o pragmatis-
mo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão da ideia de bem comum, com uma série
de consequências negativas para a noção de Estado de Direito (redução da natureza
vinculante das normas jurídicas, facilitação da captura das autoridades decisórias,
intensificação e perenização da litigiosidade na sociedade).
É a crítica de Brian Tamanaha, resumida a seguir.
Em que pese a difusão atual da ideia de instrumentalismo do Direito, nem sempre
foi assim. Há alguns séculos, acreditava-se que o Direito possuísse conteúdo determi-
nado. A fonte do conteúdo não importava: ou era Deus, a natureza, a razão humana,
ou derivações lógicas de princípios legais. Para essa visão não instrumental, o conteúdo
do Direito “existiria”. A criação das leis seria mais uma descoberta do que outra coisa,
e o Direito possuiria autonomia e unidade interna — seria, enfim, um todo coerente.
As leis naturais da tradição católica, o Direito consuetudinário medieval, o Direito da
Common Law em suas origens, tudo representava o não instrumentalismo.198
A partir do Iluminismo, a situação começou a mudar. As normas passaram a
ser vistas como fonte da ordem social, não mais como o próprio ordenamento social, o
que permitiria, em longo prazo, discutir questões como sua eficiência ou sua utilidade.
A revolução instrumentalista deu-se no século XIX, quando, segundo Horwtiz,
falando sobre a experiência norte-americana, “grupos industriais e comerciais forjaram
uma aliança com a profissão jurídica para concretizar seus interesses por intermédio
de uma transformação do sistema jurídico”.199
O século XX assistiu a seu triunfo: o realismo jurídico, o primeiro pragmatismo
jurídico (do juiz Holmes), a visão sociológica do Direito de Roscoe Pound e de Jhering.200
Não só na teoria, mas também, e principalmente, na prática da adjudicação, do que é
exemplo o court-packing plan de Franklin Roosevelt: uma suprema corte que invalidava
leis atributivas de benefícios sociais mudou de opinião quando ameaçada por proposta
de lei que criava novos cargos de juízes no Judiciário federal, a serem indicados
pelo presidente eleito.201 O projeto, mal recebido pelo Congresso, acabou não sendo
aprovado. Alguns contestam a ideia de que teria havido reação de temor por parte da
Suprema Corte — talvez ela já estivesse mudando sua opinião quanto à possibilidade

197
FILIP. Why Learned Hand Would Never Consult Legislative History Today. Harvard Law Review, passim.
198
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 11-12.
199
HORWITZ, Morton. The transformation of American Law, 1780-1860. Cambridge: Harvard University Press, 1977,
p. 1 apud TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 24.
200
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 60-76.
201
Duas semanas e meia após ser reeleito por histórica maioria de votos, Franklin Delano Roosevelt apresentou
projeto de lei que criaria uma vaga adicional para cada juiz do Judiciário federal com mais de setenta anos. A
intenção declarada era a de acelerar o julgamento dos processos. A capacidade de oposição da Suprema Corte
aos projetos de lei advindos do New Deal restaria virtualmente neutralizada porque, embora isso não haja sido
dito em nenhum momento, era óbvio que as indicações caberiam ao presidente eleito, que conseguiria maioria
a partir de seus indicados.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
64 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de intervenção do Estado na economia202 —, mas o que importa é a percepção pública


de que o Direito era um instrumento nas mãos de um grupo de juízes, políticos,
empresários, partidos, associações.
Como afirma Brian Tamanaha:
O ponto crítico foi a quase universal percepção de que a pressão externa na Corte realizou o
truque. A mensagem mais profunda aos observadores, a partir desse evento, foi a de que a
interpretação judicial da Constituição era, para além de qualquer dúvida, produto das visões
de juízes individuais, e isso ficou demonstrado de modo mais convincente do que todos os
artigos dos realistas jurídicos juntos. [...] Os juízes da Suprema Corte não poderiam, a partir
de então, afirmar, com credibilidade, que eram oráculos legais meramente pronunciando
as palavras da Constituição.203

Nos anos 60, 70 e 80 do mesmo século, novas teorias, como a análise econômica do
Direito,204 os critical legal studies, o movimento Law and Society205 e o próprio pragmatismo
jurídico assentaram o instrumentalismo jurídico como uma espécie de lugar-comum

202
WHITE. Constitutional Change and the New Deal: the Internalist/Externalist Debate.
203
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 80-81.
204
A análise econômica do Direito, conhecida em inglês pelo termo Law and Economics, é movimento que, surgido
em meados do século passado, pressupõe que os indivíduos envolvidos com o Direito ajam como maximizadores
racionais de satisfações. Há duas assertivas básicas, uma descritiva — o Direito funcionaria com o propósito de
aumentar a riqueza, ou seja, as normas e práticas jurídicas pretenderiam facilitar a atribuição de bens, valores e
serviços a quem mais os valorizasse —, outra, prescritiva — o Direito deve funcionar assim. O movimento justifica
tais assunções alegando que poucas pessoas se oporiam a isso, e que as sociedades ocidentais contemporâneas
perceberiam as funções públicas de modo utilitarista, sendo certo que a maximização de riqueza seria forma
de concretizar tal percepção. No mundo atual, com sua pluralidade de fins, maximizar a riqueza seria noção
simples que permitiria acordo quanto a uma única finalidade a ser buscada. O movimento sofre críticas: a ideia
de eficiência não é nem poderia ser o único fim do Direito; há um viés economicamente conservador por detrás
de suas propostas; a teoria não daria devida atenção a questões de justiça distributiva; a análise econômica
do Direito partiria de pressuposições contestáveis e simplificadoras (como a associação do comportamento
humano à de um maximizador racional), chegando a resultados pouco úteis; os cálculos e técnicas exigidos
pela teoria seriam complicados e estariam além da aptidão profissional ordinária de juízes e advogados. Nos
EUA, o movimento adquiriu bastante penetração, em especial na área do antitruste e da responsabilidade civil.
No Brasil, há alguma dificuldade quanto à sua aceitação, e o tom, em geral, é crítico, apesar de sugestões
interessantes quanto a algumas apropriações em certas áreas (como no Direito Processual Civil). Nos últimos
tempos, em nosso país, contudo, o movimento vem ganhando tração. No Direito Concorrencial, como ocorre
nos Estados Unidos, o uso é mais difundido, mas isso por características próprias da área. O grande autor do
Law and Economics é, novamente, Richard Posner, e, por isso, alguns associam o movimento ao pragmatismo
jurídico. Existem, sem dúvidas, proximidades — o uso da economia como técnica decisória de apoio é uma —,
apesar de o pragmatismo jurídico posneriano ser mais uma atitude geral em relação ao Direito do que um
corpo de propostas de conteúdo, como é o caso do Law and Economics. Não há, em todo caso, contradição entre
as ideias: a partir de uma atitude pragmatista, o julgador pode se utilizar de técnicas econômicas, filtradas
por sua apreensão via movimento Law and Economics. Para uma apresentação do movimento, v. POSNER.
Law and Economics in Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris. Introdução a algumas
técnicas está em COPE et al. Analytical Methods for Lawyers, p. 375-472. Uma discussão dos possíveis usos do
movimento no Processo Civil está em Flávio Galdino (Introdução à análise econômica do Processo Civil (I): os
métodos alternativos de solução de controvérsias. Quaestio Iuris, p. 171-204). Para as relações entre pragmatismo
jurídico e análise econômica do Direito, v. COTTER. Legal Pragmatism and the Law and Economics movement.
Georgetown Law Journal, p. 2071-2141. Analisando o Posner do movimento Law and Economics e o Posner do
pragmatismo jurídico, v. KRECKÉ. Economic Analysis and Legal Pragmatism. International Review of Law and
Economics. Recentemente, na doutrina brasileira, Thiago Cardoso Araújo realizou importante levantamento do
assunto. Cf. ARAÚJO. Análise econômica do direito no Brasil: uma leitura à luz da teoria dos sistemas.
205
Trata-se de movimento teórico de origem norte-americana que, descendendo do realismo jurídico e da
sociologia jurídica de Pound, atualiza o debate sociológico aos dias atuais. As atenções não são propriamente
dogmáticas, mas se voltam a temas como “ordem social”, “controle social”, “mudança jurídica”, “ideologia”,
“profissão legal”. V. TAMANAHA. Law and Society. Saint John’s University School of Law legal Studies Research,
p. 1-25.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
65

na sala de aula e de audiência. Embora partindo de diferentes pontos de vista, todos


concorriam para afirmar a noção de que o Direito é meio para um fim — seja ele qual for.
O Direito não é mais percebido (senão retoricamente) como possuindo algum compo-
nente desinteressado, prévio ou superior. Ele agora é um meio. Ele agora é só um meio.
E o problema está aí. Perde-se a visão de que o Direito deva promover, em alguma
medida, o bem comum. Numa sociedade heterogênea, na medida em que o Direito é
apenas instrumento, ele se torna arma num campo de batalha, ao sabor dos lobbies, dos
grupos de pressão, das ideologias. Enquanto se pensava num Direito não instrumental,
fosse por qual razão, ainda havia sentido na noção de limites superiores ao Direito. O
Direito instrumental não encontra limites em quase nada que ultrapasse a opinião de
seus aplicadores. Tudo pode ser ponderado, adaptado, instrumentalizado à obtenção
do resultado pretendido. Perde-se certa noção de integridade, de núcleo de valores ou
de propósitos ínsitos ao Direito: “Quando o Direito perde sua própria integridade, há
pouco que o separe de qualquer outra ferramenta ou arma”.206
Enquanto ainda era plausível, em sociedades menos heterogêneas, falar-se em
algum conceito unitário de bem comum, a equação podia fechar. “O Direito é simples
instrumento destinado à promoção do interesse público”. Aí, uma visão instrumentalista
estaria justificada. Entretanto, hoje, não há nada que se assemelhe a essa unidade de
propósitos. Um dos termos da conta desapareceu; o outro foi potencializado ao infinito.
A frase agora é: “O Direito é simples instrumento”. A percepção da prática jurídica é
a de indivíduos e grupos competindo agressivamente em defesa de seus interesses —
raciais, econômicos, sociais — com pouquíssima possibilidade de compromisso.207
O instrumentalismo jurídico, do qual o pragmatismo jurídico seria a teoria con-
temporânea da vez, tornou o Direito até mais propício a essa captura. Se as normas
jurídicas não possuem um núcleo essencial de correção, e se a adjudicação é a busca
pela realização de finalidades razoáveis a partir da consideração de diversas variáveis
relevantes, não há nada de errado em que ele se preste a promover o interesse empre-
sarial de A ou B, ou o do grupo X ou Y. São, apenas, mais alguns interesses, desses de
que o Direito estaria cheio.
Central à crítica do instrumentalismo jurídico é a ideia de debilitação do Estado
de Direito. Se o juiz não está vinculado, em sentido forte, às normas jurídicas, não
estará vinculado a nenhuma norma. Numa sociedade plural, decidir conforme as pre-
ferências de cada julgador é fazer pouco caso das exigências de isonomia, estabilidade,
previsibilidade.208
“A condição sine qua non do Estado de Direito é buscar decidir os casos de acordo
com o Direito”.209 A verdadeira ameaça das visões instrumentalistas, no entanto, não
está em afirmar que o Direito é instrumento para qualquer finalidade, nem em desta-
car a importância dos argumentos práticos. A ameaça está em propagar aos juízes e
às autoridades públicas que não há alternativa a não ser decidir conforme as melhores
consequências, incorporando ilimitadamente as opiniões pessoais como únicas ou
principais razões de decidir.

206
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 219.
207
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 223.
208
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 242.
209
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
66 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Nada pode ser feito quanto aos recônditos profundos do intelecto humano. No entanto,
pode-se evitar que o juiz abra mão da natureza vinculante do Direito, tentando descobrir
o que é que ele exige (por mais incerto que seja), trocando tudo isso por uma manipulação
instrumental das normas jurídicas, com o propósito de chegar a uma finalidade específica,
parecido com a forma como um advogado atua.210

A essa altura, já podemos prever as respostas de Richard Posner. O pragmatis-


mo jurídico é inevitável. Juízes, goste-se ou não disso, sempre serão pragmatistas. O
pragmatismo não é sinônimo de decisionismo, porque considera normas e precedentes,
ainda que venha a usá-los por cálculo pragmático. O juízo pragmático é uma ponderação
entre consequências imediatas e consequências sistêmicas. Na maioria das vezes, o juiz
pragmatista vai se comportar como um formalista. E assim por diante.

1.3.3 Outros pragmatismos jurídicos: as versões de Michael Sullivan,


Stephen Breyer e Jules Coleman
Existem teorias menos difundidas do pragmatismo jurídico. Apresentemos
algumas.
A primeira é a de Michael Sullivan, contida no livro Legal Pragmatism: Community,
Rigths, and Democracy.211 Sua proposta possui três inimigos: o comunitarismo, a carac-
terização de pragmatismo jurídico feita por Dworkin, e o pragmatismo de Posner — e
um herói: John Dewey.
O comunitarismo, movimento acadêmico americano que critica suposta ênfase
contemporânea no discurso dos direitos, sem que se valorize a ideia de deveres públicos
e a construção de ideais comunitários,212 é atacado porque, na prática, notar-se-ia, ao
contrário, a prevalência de metas comunitárias diante de direitos individuais. Sullivan
traz exemplos.213 A sociedade americana precisaria de direitos individuais mais fortes,

210
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
211
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy. Sullivan denomina sua versão de
pragmatismo de “pragmatismo radical”, aludindo a ideias progressistas de Dewey: “Portanto, ao passo em que
o pragmatismo é uma ‘postura’, ele é uma radical, pois é cético e experimental. O temperamento pragmático
é constantemente questionador; ele foca na mudança e na transformação”. Cf. SULLIVAN e SOLOVE. Radical
Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To Pragmatism. pp. 324-344.
212
Comunitarismo é rótulo debaixo do qual é agrupada uma série de autores, principalmente americanos (o debate
surgiu lá no final do século XX), que, à parte preocupações específicas, destacam a importância do aspecto
comunitário numa era em que o discurso dos direitos individuais e, com ele, o próprio individualismo, teria ido
longe demais. Há uma tese descritiva — a sociedade americana contemporânea priorizaria, de modo excessivo,
o indivíduo, em detrimento da esfera pública e da comunidade — e uma tese prescritiva — far-se-ia necessário
priorizar a comunidade. Outros temas e estilos de argumentos sublinham os deveres públicos (em contraposição
aos direitos individuais) e a importância dos direitos positivos prestacionais. Os comunitaristas opõem-se, no
debate acadêmico, aos liberais, entendida a palavra na acepção americana, isto é: teóricos preocupados com a
posição do indivíduo, mas que também não descuidam de interesses redistributivos. A discussão é abstrata,
mas incide concretamente em polêmicas como o aborto, a abertura ao multiculturalismo em colégios públicos,
a universalidade dos direitos humanos, polêmicas nas quais se espera que o comunitarista defenda posição
mais culturalmente relativista, e o liberal, posição universalista. Entre os teóricos comunitaristas, embora
muitos neguem afiliação, destacam-se Michael Walzer, Michael Sandel e Charles Taylor. V. WALZER. Esferas
da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade; SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of
a Public Philosophy; TAYLOR (Org.). El multiculturalismo y “la política del reconocimiento”. Em português, ver,
por exemplo, SILVA. A crítica comunitarista aos liberais. In: TORRES (Org.). Teoria dos direitos fundamentais,
p. 197-242.
213
Num caso em que se discutia a validade da expulsão de aluno do ensino médio que proferiu discurso irônico
numa campanha eleitoral interna (Fraser versus Bethel School District), a Suprema Corte optou por mantê-lo fora
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
67

não menos, e nisso o pragmatismo poderia ajudar, com sua atenção ao contexto e sua
ênfase nas consequências.214
Contra Dworkin, Sullivan afirma que ele apresentaria “espantalho” do pragmatis-
mo jurídico, que “talvez nenhum filósofo jurídico defenda”. Uma das críticas de Dworkin
ao pragmatismo jurídico refere-se à despreocupação em relação ao passado. À pergunta
“o que é melhor para o futuro?” responder-se-ia sem olhar para trás. Sullivan diz que
não é assim. O pragmatismo aceitaria o precedente, sem, no entanto, ver nele valor
ontológico. Isso não é desprezo pelo passado. Ao contrário. Citando Dewey, Sullivan
sustenta que o parâmetro sobre o que é o melhor no futuro diz respeito a problemas
do presente, que chegaram por intermédio do passado.215
Contra Posner, Sullivan, apesar de concordar com a crítica diante de certa filosofia
estéril, acredita que o juiz errou na dose. Ao rejeitar a Filosofia por inteiro, seu prag-
matismo jurídico acabaria sendo pior do que o espantalho de Dworkin. Sem encontrar
utilidade para a teorização filosófica, o pragmatismo posneriano não se prestaria à crítica
e à reconstrução de práticas insatisfatórias — pilares do pragmatismo à Dewey — e
acabaria servindo à aquiescência ao status quo.216 Haveria, nisso, uma incompreensão
quanto ao papel da teoria na filosofia pragmatista (de Dewey, como sempre).217 Não se
trataria de aprender a teoria e fazê-la incidir na prática, mas de tornar a prática mais
inteligente graças à teoria. “Isso não requer uma razão teórica capaz de determinar seus
objetivos para além das práticas históricas; requer, na verdade, uma abordagem crítica
e reconstrutiva em relação às instituições sociais e às práticas”.218
O pragmatismo de Posner jogaria fora o bebê e a banheira. Termos como “justiça”
e “igualdade” possuiriam curso na linguagem ordinária antes de aparecerem em deba-
tes filosóficos. A proposta do pragmatismo é reconstruir seu significado, priorizando
a experiência. Posner recomenda que sejam colocados de lado. Ora, abandonados à
própria sorte, eles poderiam ser apropriados e destinados a seja qual for o mau uso.219
Quando o pragmatismo de Posner não indica qualquer fim, degrada-se em
pouco mais do que um exercício de eficiência. Já o pragmatismo de Sullivan, na linha
clássica, busca seus fins por intermédio da crítica e da experimentação, testa os fins

do colégio com o argumento de que a liberdade de expressão não superaria o interesse público consistente em
ensinar decoro social aos estudantes. Outro caso, em 1987, Daryll Olesen foi suspenso da escola por usar brinco.
O colégio alegou que fazia parte do protocolo de vestuário proibir a utilização de adereços de gangues, embora
o aluno tivesse mencionado que usava o brinco apenas para expressar sua individualidade. A Suprema Corte,
em Olesen versus Board of Education of School District, manteve a suspensão, afirmando que, na escola, os alunos
deveriam aprender não apenas História e Inglês, mas também como se comportar em sociedade.
214
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 25-26.
215
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 35. Ainda, p. 41: “O pragmatismo pode
ser tudo, menos hostil, por princípio, a estudar as relações entre decisões presentes e passadas. Até porque é
apenas por intermédio de comparações assim que as decisões atuais podem ser melhoradas”.
216
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 53.
217
Em rigor, Sullivan lança essa crítica não só a Posner, mas também aos demais pragmatistas contemporâneos,
que, seguindo Rorty, enxergariam o pragmatismo como um “método raso não teórico” de abordar os aspectos
da vida. O desprendimento entre o pragmatismo e uma valência política transformadora, nos moldes da que
propunha Dewey, esvaziaria e tornaria banais as propostas pragmáticas. Cf. SULLIVAN e SOLOVE. Radical
Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To Pragmatism. pp. 324-344.
218
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 54.
219
SULLIVAN e SOLOVE. Radical Pragmatism. In. MALACHOWSKI (ed.). The Cambridge Companion To
Pragmatism. p. 326. “Se o pragmatismo não serve para nos auxiliar a inferir se nossas finalidades são boas ou
ruins, parece justo dizer que o pragmatista apenas aceita (ou herda) as finalidades postas acriticamente. Isso
reduz a contribuição do pragmatismo apenas a auxiliar a escolha dos meios para se alcançar esses fins”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
68 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

atualmente adotados, levanta suas origens e propósitos, descarta-os em busca de fina-


lidades melhores.220
Há consequências práticas a partir dessas duas maneiras de se entender o prag-
matismo. Enquanto o pragmatismo de Posner recomenda a autocontenção judicial como
forma de abrir espaço ao experimentalismo legislativo, o pragmatismo de Sullivan não
se compromete com nenhum parti pris e está aberto à experimentação legislativa, mas
também à judicial; tanto o ativismo judicial quanto o self-restraint podem ser estratégias
pragmáticas.221
Viu-se, até aqui, a par destruens do pragmatismo de Michael Sullivan. Qual é sua
par construens?
Com base em Dewey, ele propõe uma teoria reconstrutiva do Direito que busque
as origens dos princípios jurídicos: para que fins servem? Em que contextos de poder
surgiram? Como as instituições os aplicam? Como se pode fazer para que funcionem
melhor? O próprio Direito passaria a ser entendido como instrumento destinado ao cul-
tivo de condições que favoreçam o crescimento do indivíduo, no qual tudo vai depender
do conhecimento mais profundo possível acerca das consequências de cada decisão.
Essas consequências não devem ser entendidas do modo restrito como Posner faz, já
que reflexões teóricas, de sabor mais filosófico, também possuem vez. Ainda importante
é a percepção de que direitos são, ao mesmo tempo, fins e meios. Meios para a socie-
dade proteger os cidadãos da atuação tirânica do Estado, mas também fins, resultados
da atividade legislativa que, nessa qualidade, devem ser respeitados e defendidos.222
Em suma: o pragmatismo jurídico de Sullivan é uma atualização do pragmatismo
filosófico de Dewey, defendido contra amigos e inimigos atuais. Da parte dos amigos,
Posner, com seu pragmatismo jurídico conservador, de senso comum, pouco mais do
que técnica da eficiência. Da parte dos inimigos, Dworkin e seu pragmatismo-espantalho,
sustentado por ninguém, que transforma a teoria num inimigo do passado, quando
tal acusação jamais poderia ser legitimamente lançada a uma proposta que procura as
melhores consequências, e, para isso, jamais poderia abrir mão da pesquisa histórica.
O juiz Stephen Breyer, juiz da Suprema Corte americana desde 1994, é considerado
um magistrado pragmatista. Contudo, só em 2005 veio a lume a defesa teórica de sua
posição. É o livro Active Liberty: interpreting our democratic constitution.223 A obra inspira-se
no conceito de liberdade ativa, de Benjamin Constant. À liberdade dos antigos, ativa,
de participação política, dever-se-ia associar conceito mais moderno de liberdade, a
liberdade negativa, espaço de não interferência estatal.
A ênfase do livro é na liberdade ativa. Breyer defende que os tribunais, e, em
especial, a Suprema Corte, devam ser sensíveis ao espírito democrático da Constituição
americana.224 Isso se concretizaria não numa teoria interpretativa completa, mas numa
questão de estilo na hora de julgar.225 Diante dos elementos que os juízes consideram
antes de decidir — linguagem, fontes históricas, precedentes, finalidades da norma e

220
“Longe de mero método que fornece pouca orientação às nossas finalidades normativas, o pragmatismo
permite que travemos debates filosóficos a seu respeito sem o apelo a abstrações vazias. O pragmatismo é um
convite a uma espécie diferente de debate — um debate que o pragmatismo posneriano ignora por completo”
(SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63).
221
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63-66.
222
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 98-99.
223
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution.
224
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 5.
225
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 7.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
69

consequências concretas —, Breyer defende que a ênfase deva recair sobre as finali-
dades e consequências. É aí que reside seu pragmatismo jurídico: na importância das
consequências para o julgamento.
A ideia de liberdade ativa entende que a Constituição incorpora alguns propósitos
básicos, expressos em termos gerais. Nas palavras de Breyer:
A compreensão e a ênfase nesses propósitos básicos ajudará o juiz a melhor entender e aplicar
as disposições específicas. Ele [o argumento da liberdade ativa] identifica as consequências
como um importante critério para se medir a fidedignidade de determinada interpretação
a esses propósitos democráticos básicos. Em síntese, o foco nos propósitos busca promover
a liberdade ativa insistindo em interpretações, tanto da Constituição quanto da legislação
infraconstitucional, que sejam consistentes com os desejos dos cidadãos. O foco nas conse-
quências, por sua vez, permite-nos verificar se e em qual extensão tivemos êxito em auxiliar
a produção de resultados que reflitam tais desejos.226

A liberdade ativa implica autocontenção judicial, mas é, de certo modo, seletiva,


porque admite ativismo quando se trata de garantir as condições da própria demo-
cracia. A ênfase nas finalidades da norma e em suas consequências deve sempre ser
compatível com a ideia de promoção da maior participação dos cidadãos. A liberdade
ativa recomenda interpretar a norma constitucional conforme suas finalidades, e não
de modo excessivamente preso ao texto ou à intenção original dos autores.227
Em termos concretos tirados da experiência jurisprudencial norte-americana,
isso significa não decidir de modo muito abrangente questões de privacidade, ainda
mais diante das transformações tecnológicas (o pragmatismo recomenda experimen-
tação, não decisões precipitadas numa área em constante mutação);228 validar leis que
estabeleçam limites ao financiamento de campanhas eleitorais (com vistas a evitar a
dependência excessiva ao financiamento como condição para ser eleito, o que poderia
restringir parcelas ideológicas e grupos sociais);229 superar o atual entendimento da
Suprema Corte americana que proíbe a edição de leis federais impondo a participação
de agentes estaduais e locais em programas administrativos conjuntos (tal possibilidade
favoreceria o federalismo cooperativo e, por decorrência, implicaria maior participação
local e regional na gestão pública);230 manter as decisões judiciais que validaram as
políticas de ação afirmativa (turmas heterogêneas irão preparar melhor os estudantes,
tanto para a sociedade quanto para o mercado);231 ser deferente às interpretações ad-
ministrativas das agências reguladoras, menos em questões extremamente relevantes
(em tais casos, seria razoável imaginar que o legislador pretendesse ele próprio decidir,
e não a autoridade regulatória).232
Adiantando-se às críticas, Breyer afirma que a proposta não deixa margem exces-
siva à subjetividade do julgador. Afinal, um juiz que enfatiza as consequências, como
qualquer outro, deve estar atento aos precedentes, às normas do Direito positivo, aos
standards, às práticas institucionais. Focar nas consequências não significa coonestar

226
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 115.
227
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 85-101.
228
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 66-74.
229
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 43-50.
230
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 58-62.
231
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 75-84.
232
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 102-108.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
70 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

mudanças jurídicas dramáticas e corriqueiras. Os juízes, incluindo os consequencialistas,


entendem que mudanças radicais e rotineiras interferem com as necessidades humanas
de previsibilidade, confiança, planejamento. Há, ainda, a necessidade individual, por
parte de cada juiz, de ser consistente no tempo, o que limita ainda mais a discriciona-
riedade (citando a juíza Sandra O’Connor, Breyer menciona que as decisões de cada
juiz deixam pegadas que ele, depois, provavelmente vai seguir).233
Considerar as consequências não é sinônimo de o juiz apontar quais são as
melhores consequências em sua opinião. O julgador deve verificar quais as melhores
consequências por intermédio das lentes dos valores constitucionais. “Os valores
constitucionais pertinentes limitam as possibilidades interpretativas. E, se são valores
democráticos, podem até aconselhar modéstia ou autocontenção”.234
Levar as consequências a sério traz, como benefício adicional, a transparência.
Uma decisão que trate diretamente de valores, finalidades da norma e consequências
práticas, mas deixe às claras suas motivações, de modo que todos possam criticar, não é
menos subjetiva do que uma que se prenda a suposta fidedignidade à intenção original
dos elaboradores da Constituição americana. Crítica é controle.
Podemos resumir a proposta de Breyer como a de teoria pragmática da inter-
pretação jurídica que advoga, sem descartar os elementos tradicionais, uma ênfase nas
finalidades e nas consequências práticas da norma, à luz do propósito de reforçar a
participação dos cidadãos nas escolhas públicas. Em muitos casos, isso implicará uma
atitude de respeito às decisões contidas nas leis, exceto quando interfiram com a própria
capacidade de participação ou de manifestação democrática. Não se trata de proposta
que descambe para o subjetivismo dos julgadores, porque estes sempre apreciarão as
consequências à luz dos valores constitucionais pertinentes ao caso, porque terão em
mente a necessidade de estabilidade e de segurança no Direito, e porque, ao assumir
as consequências e as finalidades da norma como critérios importantes para a decisão,
estarão sendo transparentes e expondo-se à crítica.
Claro que o livro de Breyer sofreu objeções. Uma das críticas mais consistentes
veio com Cass Sunstein, que indicou dois problemas. O primeiro seria o de identificar,
com precisão, os propósitos da norma — textos legais raramente forneceriam indicativos
seguros. O segundo aponta a falha de que, se as consequências devessem ser realmente
levadas a sério, poderia ser que se terminasse adotando ideias rejeitadas por Breyer,
como o textualismo, o originalismo, a deferência absoluta à interpretação das agências.
A primeira crítica é a tradicional da indefinição, imprecisão e insegurança, que
viriam com a adoção de propostas interpretativas relativamente descoladas do texto
legal. O julgador, ao buscar a vontade da lei, acabaria encontrando a sua própria. A
segunda crítica tem a ver com a ideia de pragmatismo do pragmatismo, a distinção
entre teoria normativa da decisão e metateoria, o “consequencialismo de segunda
ordem”: é que, a se julgar uma decisão pela correção de suas consequências, talvez o
mais adequado — considerando dados como competência institucional do Judiciário,
aptidão para julgamento rápido, simplificação de rotinas — fosse a adoção de teorias
não pragmatistas.235
De toda sorte, concordando-se ou não com Breyer, a verdade é que se trata de
importante proposta de teoria pragmática que, sem causar tanta polêmica quanto a

233
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 119-120.
234
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 120.
235
SUNSTEIN. Justice Breyer’s Democratic Pragmatism.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
71

de Posner (Breyer defende, essencialmente, uma ênfase em certos elementos da teoria


interpretativa tradicional, sem, contudo, rejeitá-la, e não opina sobre a utilidade do
pragmatismo filosófico), serve como contraponto às ideias mais radicais deste, e à
tentativa de reabilitação de Dewey formulada por Michael Sullivan.
Antes de concluirmos o item, uma última defesa do pragmatismo jurídico merece
ser lembrada, não pelo que propõe, mas pelo uso que faz do termo. É a versão de Jules
Coleman apresentada no livro The practice of principle: in defence of a pragmatist approach
to legal theory.236
Tal versão não lembra o pragmatismo filosófico clássico, o neopragmatismo de
Rorty e seguidores, muito menos o pragmatismo jurídico “pé no chão” de Posner. É
pragmatismo técnico, que lida com ideias como o significado semântico dos conceitos
e de regras inferenciais, e que não deriva de Peirce ou James, mas de Quine, Donald
Davidson e Hilary Putnam. É pragmatismo jurídico hardcore,237 que lamenta que o
termo, “com uma história longa e ilustre na Filosofia norte-americana”, tenha caído
no gosto dos juristas.
Cinco são suas características, mas deixemos que Coleman tente explicar:
(1) Um compromisso com um não-atomismo semântico; (2) a visão de que o conteúdo dos
conceitos deve ser explicada em termos de seu papel inferencial nas práticas em que figurem
(semântica inferencial prática da função); (3) a visão de que, às vezes, a explicação filosófica de
uma prática assume a forma da demonstração de como certos princípios estão incorporados
(explanação pela incorporação); (4) a visão de que o modo no qual um conceito figura em uma
prática influencia sua aplicação adequada em relação a todas as outras, e que, nesse sentido,
as práticas devem ser vistas de modo holístico; e (5) um comprometimento, por princípio,
com uma revisabilidade de todas as crenças, categorias de pensamento etc.238

O propósito do livro não é o de avançar uma teoria pragmatista do Direito, mas


o de defender três pontos: a base da responsabilização civil é a ideia de justiça corretiva;
uma versão do positivismo jurídico “inclusivo”; uma teoria descritiva do Direito. A obra
segue em tom denso, e seu pragmatismo é distante de tudo o que vimos; distancia-se
mesmo de tradição tão pluriforme quanto a do pragmatismo jurídico.
Como era de se esperar, Posner é crítico em relação à obra. Fala que Coleman usa,
no livro, versão ortodoxa do pragmatismo filosófico, entendido no sentido mais abstruso
possível — sentido que se recusa a ter qualquer coisa a ver com Dewey, James e Rorty —,
para defender o positivismo e determinada teoria de responsabilidade civil. “O livro de
Coleman é muito abstrato para servir a um profissional jurídico; não consigo ver nele
qualquer utilidade para as questões discutidas aqui”.239 Também Dworkin, criticando
o trabalho de Coleman, comenta que o autor utiliza o termo de uma maneira que não
guarda nenhuma conexão com a tradição pragmatista norte-americana.240
Três autores — Sullivan, Breyer e Coleman —, três pragmatismos jurídicos. Alguns
mais próximos, outros menos, da proposta teórica mais famosa e criticada, que é a de

236
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory.
237
Segundo Lund, essa categoria de pragmatismo — derivada de discussões majoritariamente semânticas e
conceituais — pode ser chamada de pragmatismo ortodoxo ou semântico, e se vincula a correntes semelhantes
da filosofia analítica preocupadas com a linguagem, sem, necessariamente, manter relação com o pragmatismo
clássico. Cf. HUBBS. Some Varieties of Pragmatism. In. HUBBS e LIND (eds.). Pragmatism, Law and Language.
238
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, p. 6.
239
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
240
DWORKIN. Thirty years on. Harvard Law Review.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
72 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Posner. O pragmatismo jurídico, seja como teoria normativa ou como metateoria, está
longe de ser aceito de modo tranquilo ou de significar algo único ou coeso. Ainda assim,
é uma das mais importantes teorias jurídicas contemporâneas.

1.4 O pragmatismo na argumentação jurídica


Acabamos de apresentar algumas das principais teorias do pragmatismo jurídico.
Também mencionamos que, de modo a responder a críticas, alguns sugerem que o
pragmatismo jurídico seja entendido como metateoria jurídica: teoria feita para auxiliar
na escolha de teorias normativas da decisão.
Há, entretanto, outros possíveis usos do pragmatismo jurídico.
Fala-se, por exemplo, na incidência do pragmatismo na elaboração legislativa,
terreno em que a aceitação é consensual.241 Afinal, o juízo político consistente na
produção de leis é, por excelência, pragmático. Embora condicionado pelo respeito
à Constituição, o legislador mira, antes de tudo, o resultado.242 Numa contraposição,
o juiz aplicaria a norma jurídica baseado nos fatos apresentados e, tradicionalmente, não
se preocuparia com os resultados da decisão (daí a existência de parêmias como Fiat
Justitia, pereat mundus ou Fiat Justitia, ruat caelum); já o legislador criaria a norma a partir
de resultado esperado. O juiz aplica a norma aos fatos. O legislador cria a norma a partir
de um fato hipotético: o resultado ao qual se quer chegar.
Mas é outra a incidência que vai agora nos ocupar. É o estudo do lugar do argu-
mento pragmático/consequencialista na interpretação jurídica. Vamos estudar as propostas de
Neil MacCormick, Aulius Aarnio e Luigi Mengoni. A seleção de autores não é arbitrária.
Todos irão nos auxiliar na construção de nossa proposta para o uso do pragmatismo
no Direito brasileiro, em geral, e no Direito Constitucional Econômico, em especial.

241
CALVO; VENIER. Racionalidad de las justificaciones consecuencialistas en las decisiones judiciales. Isonomía,
p. 155.
242
Tradicionalmente, a teoria (alguns chamam de “ciência”) da legislação propõe dois enfoques para as constrições
incidentes junto ao processo legislativo: o enfoque minimalista — as constrições seriam, apenas, aquelas
referentes à eficiência dos meios legislativos, sem se ocupar de qualquer análise a respeito de seus fins —,
e o enfoque maximalista, que acreditaria que os critérios da razão prática seriam aplicáveis não apenas aos
meios, mas também às finalidades dos projetos. Sem entrar no mérito da disputa, afirmamos que o propósito de
qualquer legislação é sempre o de produzir um estado de coisas tido como ideal — mesmo quando se trate de
legislação simbólica, a produção do efeito-símbolo é o que se busca —, o que envolve raciocínio pragmático. É
possível ser pragmatista tanto ao se optar por enfoque minimalista quanto maximalista; basta, ao projetar o ato
normativo, fazê-lo com vistas à produção de resultados. Há, ainda, outro sentido no qual se pode encetar estudo
pragmático da legislação, que é quanto à sua efetiva adesão pela sociedade (“a lei vai pegar?”), o que a doutrina
jurídica e os estudos sociológicos chamam de efetividade ou eficácia social da norma. Para o debate sobre os
enfoques da teoria da legislação, v. CÓRDOBA. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de la
legislación, p. 275-343. Ver ainda, sobre o processo legislativo e seus processos de valoração e avaliação, Ángeles
Galiana Saura (La ley: entre la razón y la experimentación, especialmente cap. III, IV). Interessante proposta
teórica, dando notícia da pouca atenção tradicionalmente devotada à legislação no debate contemporâneo, vem
em Luc J. Wintgens (Legisprudence as a New Theory of Legislation. Ratio Juris). Para a clássica apresentação,
no Brasil, sobre o problema (pragmático) da efetividade das normas constitucionais, v. BARROSO. O direito
constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
73

1.4.1 Os argumentos consequencialistas em Neil MacCormick:


consequências como implicações lógicas e dever de
universalização
Comecemos estudando Neil MacCormick. Ele afirma que os juízes devem con-
siderar as consequências das várias decisões possíveis em cada caso. MacCormick cita
algumas decisões judiciais para comprová-lo. A primeira é o voto do juiz Marshall, da
Suprema Corte americana, no precedente Marbury vs. Madison, que estabeleceu as bases
do controle judicial de constitucionalidade das leis.
Se [...] as cortes devem preservar a Constituição, e se a Constituição é superior a qualquer
lei ordinária, a Constituição, e não essa lei ordinária, é que deve governar o caso para o
qual ambas sejam aplicáveis.
Aqueles, então, que negam o princípio de que a Constituição deve ser considerada, em
juízo, como norma jurídica permanente, têm de sustentar que as cortes devem fechar os
olhos à Constituição e enxergar, apenas, o Direito infraconstitucional.
Esta doutrina iria subverter o próprio fundamento de todas as Constituições escritas. Ela declararia
que um ato que, de acordo com os princípios e a teoria de nosso Governo, é inteiramente
vazio, é, ao mesmo tempo, na prática, completamente obrigatório. Ela declararia que, se
a Legislatura fizer o que é expressamente proibido, tal ato, apesar da proibição expressa,
é, de fato, eficaz. Estar-se-ia oferecendo à Legislatura verdadeira onipotência prática, com
o mesmo fôlego com que se afirma a necessidade de restringir seus poderes em limites
estritos. Estar-se-ia prescrevendo limites, e declarando que tais limites podem ser livre-
mente ultrapassados.243

MacCormick encontra argumentos parecidos na discussão judicial britânica


sobre se a rainha Elizabeth poderia usar o título “Elizabeth Segunda” (no Reino Unido
[e não na Inglaterra], inexistira qualquer outra rainha Elizabeth). Os aspectos técnicos
específicos do caso não interessam, mas há ponto a respeito da admissibilidade da
demanda, levantado por Lorde Cooper, em que, segundo MacCormick, também se
utilizou o argumento consequencialista. Leia-se trecho do voto:
É verdade que a Escócia reconhece, dentro de certos limites, a actio popularis, por meio da qual
qualquer membro do povo está legitimado a vindicar certas espécies de direitos subjetivos
públicos. Mas o mecanismo nunca foi estendido a um caso assim. Não consigo ver como pode-
ríamos admitir a legitimação e o interesse destes demandantes em levar o ponto em discussão perante
a Corte sem conceder direito similar a quase todos os outros oponentes de praticamente qualquer ação
política em relação à qual surgiu oposição pública.244

Os exemplos apresentam argumentos consequencialistas. MacCormick afirma


que o processo de avaliação das consequências é feito com base num escrutínio à luz
daquilo que é tido como princípios constitucionais fundamentais. Como a Constituição
não possui sentidos fixos, as decisões judiciais dependerão da compreensão, pelos juí-
zes, do que sejam tais valores constitucionais.245 Após analisar mais casos, MacCormick
volta a afirmar que as consequências são avaliadas consoante critérios de “justiça”,
“bom senso”, e, acima de tudo, com base em princípios constitucionais básicos, que se

243
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 130, grifo nosso.
244
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 131-132.
245
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 133.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
74 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

transformariam em posicionamentos sobre Filosofia Política e sobre a correta distribuição


da autoridade pública entre os órgãos do Estado.246
O aspecto central da proposta para o uso de argumentos consequencialistas, uma
vez constatada sua onipresença, é o seguinte: considerando que as normas jurídicas
devem ser tidas como possuidoras de racionalidade intrínseca247 — não se presumem
arbitrárias —, é essencial à justificação de qualquer decisão que não seja governada por
determinação expressa oriunda de regra, ou quando a regra seja ambígua ou incompleta,
que se proceda a teste de suas possíveis consequências. E o aspecto importante: “As
consequências relevantes são aquelas produzidas a partir da criação de um standard
genérico de decisão tirado do julgamento nesse ou naquele sentido, não apenas os efeitos
específicos da decisão específica para aquelas partes individuais”.248
Em linguagem menos técnica, o que MacCormick está dizendo é que, nas situações
em que a norma não é clara, ou quando é incabível a subsunção, o argumento conse-
quencialista deve ser utilizado. As consequências a serem consideradas são as que vão
afetar o julgamento de casos semelhantes, e não apenas as consequências para o caso.
“Trata-se de exigência do elemento prospectivo no princípio de justiça da adjudicação:
tratar casos iguais de modo igual, e, assim, tratar esse caso de modo tal que seja justificável
tratar todos os casos futuros da mesma forma”.249
MacCormick apresenta o uso do argumento consequencialista como uma espécie
de aplicação do princípio da universalização. Os parâmetros de avaliação das conse­
quências, para além de seu potencial de universalização, seriam não apenas a utilidade,
mas também aspectos como a ordem pública, a justiça, os princípios constitucionais, a
conveniência administrativa. Resumindo: em casos pouco claros, o juiz deve considerar
as consequências das decisões possíveis, avaliando-as com base, de um lado, na justiça,
nos valores constitucionais, e, de outro, na possibilidade de sua universalização a casos
semelhantes.
Em artigo escrito em 1982, MacCormick desenvolve sua ideia para o uso de con-
sequências na argumentação jurídica. Afirma-se contrário a duas versões extremas de
consequencialismo jurídico. Uma, que diz que os juízes devem julgar tendo por base
todas as consequências — isso excluiria qualquer possibilidade de justificação racional
das decisões, já que o futuro é incognoscível, e as cadeias de consequências podem
se espraiar ao infinito. Outra, que rejeita qualquer consideração consequencialista (é
ruim porque ignora que as normas são elaboradas a partir da intenção de produzir
consequências, e porque é imprudente decidir sem levá-las em conta). MacCormick
quer encontrar um caminho do meio. Não que precise procurar muito, pois, segundo
afirma, os juízes já decidem considerando as consequências. “O apelo às consequências
inaceitáveis de uma decisão é característica onipresente da argumentação jurídica. De
uma forma ou de outra, a argumentação consequencialista está, como sempre esteve,
viva e saudável junto ao Direito”.250
Do que estamos tratando quando falamos de consequências? Aqui entra a ela-
boração analítica de MacCormick.

246
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 139.
247
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 149.
248
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150.
249
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150, grifo nosso.
250
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 239-241.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
75

Em primeiro lugar, consequências não são resultados. Quando alguém dispara o ga-
tilho de revólver, pratica ato que tem como resultado o arremesso de projétil no espaço.
Se a arma estava apontada para alguém, esse resultado pode ter uma consequência: João
disparou a arma e, em consequência, Pedro morreu. Aplicando ao mundo jurídico, o
ato é decidir a causa, sentenciando-a. O resultado é a condenação, absolvição, criação,
reconhecimento ou extinção de um direito.
Segunda distinção: consequências causais e consequências remotas (no original, causal
consequences e ulterior outcomes). Partindo do ato consistente na sentença que reconhece
que Carlos deve a Maria, o resultado é o reconhecimento judicial da dívida e a obriga-
ção de pagamento. As consequências causais disso podem ser o desespero de Carlos,
que vai ter de pegar empréstimo de um milhão, e a alegria de Maria. As consequências
remotas daquele ato podem ser o fechamento de uma casa de caridade — para quem
Carlos faria uma grande doação — e o alcoolismo de Maria (que recebeu o dinheiro e
resolveu gastar em bebida).251
MacCormick, até aqui, distinguiu resultados, consequências causais e consequ-
ências remotas. Nenhum desses conceitos serve à argumentação consequencialista. As que
importam são as que chama de “consequências como implicações” ou, simplesmente,
“consequências jurídicas”. São implicações lógicas de determinada decisão. Não se trata
de consequências como probabilidades estatísticas ou como resultados naturalísticos.
Para exemplificar, veja-se trecho do voto do juiz Coleridge, da Suprema Corte
inglesa, no caso Regina versus Dudley & Stephens, em que se discutiu alegação de esta-
do de necessidade em favor de dois marinheiros que, perdidos no mar por oito dias,
mataram e comeram um colega.
Não é necessário apontar o terrível risco de se admitir o pretendido princípio. Quem será o
juiz desse tipo de necessidade? Qual critério se vai adotar para comparar o valor da vida? [...]
É bastante claro que o princípio deixa a critério de quem vai se beneficiar do ato determinar
a necessidade que vai justificar a extirpação deliberada da vida de outra pessoa para salvar
a sua própria [...]. É evidente que tal princípio, uma vez admitido, poderá servir de disfarce
jurídico para paixões desenfreadas e crimes atrozes.252

MacCormick sustenta que o “terrível risco” é um perigo que vai decorrer logica-
mente do princípio, caso venha a ser adotado. “A qualidade alarmante ou inaceitável do
princípio é demonstrada ao se analisar suas implicações lógicas ao se tê-lo como norma
para casos futuros”.253 O que não é certo é se tais casos vão existir, nem se a comunidade
vai mudar seu comportamento a partir das decisões. Tais questões estão abertas apenas
a conjecturas, aliás difíceis de serem formuladas de modo não inconsequente. O ponto
é: se tais casos ocorrerem, haverá disfarce jurídico com base no precedente.
A consequência jurídica, a “consequência como implicação”, a que importa para
o teste consequencialista, está na implicação lógica contida neste “se”, “haverá”, não
na probabilidade — maior ou menor — de que os tais casos venham a ocorrer, e, caso
ocorram, de que efetivamente se venha a utilizar o disfarce.254 “Em síntese, o que chamo

251
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 246-249.
252
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 250.
253
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 251.
254
O mesmo raciocínio vale para a decisão do juiz Marshall em Marbury vs. Madison: a subversão da Constituição,
ao se admitir que leis inconstitucionais possam prevalecer diante dela, é implicação lógica. Não importa ao
argumento consequencialista se tais leis irão existir ou se, ao hipoteticamente decidir por sua validade, elas
passarão, como resultado da decisão, a ser mais comuns.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
76 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de argumentação jurídica consequencialista não está tão preocupada em estimar as


probabilidades de mudanças comportamentais quanto nas possíveis condutas, e seus
status normativos determinados, consideradas à luz da decisão sob escrutínio”.255 256
A avaliação das consequências é tema novamente tratado por MacCormick. Ele
reafirma que, na prática judiciária, as consequências são avaliadas de acordo com uma
pluralidade de critérios, em vez de apenas um — o que já descarta a utilidade como
valor único de avaliação das consequências jurídicas (e, naturalmente, descarta a as-
sociação entre seu consequencialismo e qualquer utilitarismo). Mas, afora podermos
afirmar que as avaliações são plúrimas, “todo o resto é opaco”.257
MacCormick pretende avançar no ponto ao identificar os diferentes blocos de
valores relacionados a cada área do Direito. No Direito da Responsabilidade Civil, a
integridade das pessoas e de seus bens; no Direito Contratual, a liberdade da busca
dos objetivos individuais, somada à necessidade de se respeitar o que se prometeu; por
aí adiante. Esses valores setoriais também vão guiar o julgamento das consequências
jurídicas. “Os valores contra os quais nós testamos as consequências jurídicas são aque-
les que o ramo do Direito em questão torna relevantes”.258 Em Marbury vs. Madison, o
respeito à Constituição como base escrita do corpo político; em Dudley & Stephens, o
respeito à vida.
Considerando, então, a apresentação do consequencialismo jurídico de
MacCormick, tanto em seu principal livro quanto em desenvolvimento posterior, parece
possível sintetizá-lo como (i) teoria subsidiária (aparece ao final do desenvolvimento
argumentativo, para ajudar na decisão quando houver dúvida), que (ii) lida com con-
sequências tidas como implicações lógicas de determinada proposta interpretativa, e não com
consequências como probabilidades, estatísticas ou intuitivas, a respeito de alterações
comportamentais havidas a partir de modificações legislativas ou jurisprudenciais,
que (iii) julga tais consequências como implicações a partir de critérios como a justiça, a ordem
pública, o interesse público, e baseia-se, especialmente, nas finalidades típicas da área do Direito
na qual o argumento estiver inserido, e que (iv) exige que a incidência de um argumento con-
sequencialista seja compatível com sua aplicação a casos semelhantes.

1.4.2 Aulis Aarnio e os argumentos reais: as etapas da justificação


consequencialista
Aulius Aarnio não elabora teoria completa do uso dos argumentos consequen-
cialistas. Apenas registra que a utilização de razões baseadas em circunstâncias da
realidade — que chama de “razões práticas” ou “argumentos reais”259 — costuma se
dar de modo consequencialista. O uso do argumento consequencialista envolve duas
etapas, a saber, a especificação das consequências atribuídas a cada uma das possibilidades

255
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 254.
256
“Mais do que a previsão de qual conduta a norma provavelmente irá induzir ou desestimular, o que interessa
é responder à pergunta de que tipo de conduta autorizaria ou proibiria a norma estabelecida na decisão; em
outras palavras, os argumentos conseqüencialistas são, em geral, hipotéticos, mas não probabilistas” (ATIENZA.
Teorias da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros, p. 195).
257
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 255.
258
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review, p. 257.
259
“Efetivamente, o termo ‘real’ se refere a este aspecto: a interpretação é sopesada à luz de certos fatores que
pertencem à realidade social” (AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica,
p. 180).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
77

interpretativas que se analisa e, então, a colocação delas numa ordem de preferência, de modo
a se encontrar a melhor. Depois, a argumentação retorna à análise das interpretações
sendo consideradas: a que será tida como a mais bem justificada é a que produzir a
melhor consequência.
A argumentação consequencialista, sem dúvida elemento relevante da justifica-
ção das decisões, não pode, pelo menos por si só, ser considerada modelo genuíno de
argumentação jurídica. Ela é o último passo do procedimento de justificação. Só pode
entrar quando as leis, trabalhos legislativos preparatórios, decisões dos tribunais etc.
já definiram as possibilidades de interpretação do dispositivo. A interpretação jurídica
só é legítima porque está vinculada a fontes de Direito dotadas de autoridade. Daí que
o argumento consequencialista, em si mesmo, é, tão somente, uma forma de discurso
social. Pode ser útil e necessário, mas não possui valor jurídico. Só o adquire quando
utilizado em conexão com as fontes de Direito, vale dizer, quando operado na condição
de último passo interpretativo, argumento de remate. A interpretação textual, a inter-
pretação histórica, a interpretação finalística, a compreensão do sistema legal, a pesquisa
dos precedentes, a opinião da doutrina, todos esses elementos delimitam um espectro de
interpretações possíveis; os argumentos reais, incidindo ao final da cadeia, especificam
as consequências associadas a cada uma das opções interpretativas, hierarquizam-nas
e indicam qual a decisão mais bem justificada, que será aquela associada às melhores
consequências.260
Aarnio, como MacCormick, coloca a argumentação consequencialista como última
etapa da justificação. Ao contrário daquele, não indica quais as consequências a serem
apreciadas — fala, apenas, que são argumentos “reais”, que pertencem à realidade
prática. Também nada fala acerca dos critérios de avaliação ou de dever de univer-
salização, mas descreve o funcionamento do raciocínio consequencialista: especificar
consequências, hierarquizá-las, voltar e optar por uma linha de interpretação.

1.4.3 Luigi Mengoni e as regras metodológicas e substantivas da


argumentação consequencialista
A terceira e última peça de nosso quebra-cabeça teórico vem com dois artigos
do italiano Luigi Mengoni. Começa afirmando que o argumento consequencialista
vem se difundindo no mundo da Civil Law, mas que este não se limita à interpretação
lógico-sistemática ou ao cânone teleológico, os quais ainda pertenceriam ao positivismo
jurídico, pois discutiriam consequências jurídicas internas ao sistema, integrando-as à
estrutura linguística e conceitual dos textos legais.
Na metodologia jurídica pós-positivista, o argumento consequencialista haveria
assumido outra dimensão. Enquanto o modelo positivista raciocinaria acerca de con-
sequências certas, o modelo pós-positivista refletiria sobre consequências de segunda
ordem, externas ao sistema jurídico, consequências apenas verossímeis; é modelo que
“recebe e elabora informações provenientes do ambiente circunvizinho ao sistema
jurídico a respeito de possíveis ou prováveis repercussões sociais da decisão”.261

260
AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre la justificación jurídica, p. 182.
261
MENGONI, Luigi. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi. Milão: Giuffrè Editore, 1996, p. 95. Ainda, CHIASSONI,
Pierluigi. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative. Milão: Giuffrè Editore, 1999,
p. 622-624.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
78 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Já vemos que a ênfase de Mengoni é diversa da de MacCormick. Este se preocupa


com consequências como implicações lógicas; aquele as vê como possíveis repercussões
sociais de decisões a serem tomadas pelo julgador.
Mengoni sugere duas causas para a importância atual do consequencialismo.
A primeira seria o pluralismo ético das sociedades contemporâneas. Considerando a
dificuldade de se justificar a prevalência de uma visão de mundo sobre outra, a congru-
ência axiológica de uma escolha se transformaria numa função de sua justificação com
base em suas consequências sobre o comportamento social. Conviria reduzir a questão
acerca de valores a uma questão acerca das consequências sociais das escolhas.262
Outra justificativa seriam as mudanças nas relações entre legislação e jurispru-
dência, e entre doutrina e jurisprudência. As legislações contemporâneas concederiam
espaço cada vez maior à discricionariedade judicial; a doutrina viria perdendo seu papel
de guia da jurisprudência. Com todo esse protagonismo do Judiciário, os julgadores
deveriam se adaptar à prolação de julgamentos prospectivos, realizados com base em
cláusulas gerais, sem influência da doutrina — e é aí que entraria o uso do argumento
consequencialista.263
Não que o argumento jurídico-consequencialista seja isento de riscos. O principal
deles é indeferenciar o discurso político, orientado a resultados, do discurso jurídico,
baseado em direitos. Com isso, perder-se-ia a credibilidade do Judiciário, que seria
visto não mais como repositório de garantias civilizacionais, mas como instrumento de
engenharia social.264 Mengoni opõe-se a essa crítica de dois modos: em primeiro lugar,
o fenômeno seria inevitável — far-se-ia mister discipliná-lo juridicamente. Em segundo,
porque a crítica partiria do pressuposto de que o discurso orientado às consequências
é insubmisso a restrições que não se originem da política.
Mas, para Mengoni, não precisa ser assim. É possível “domesticar” (a palavra é
nossa) o argumento consequencialista e torná-lo útil à prática jurídica. Como fazê-lo?
Luigi Mengoni propõe algumas regras metodológicas e vínculos normativos para a argu-
mentação consequencialista no Direito. Nosso interesse reside aqui.
A primeira regra metodológica diz respeito à seleção das consequências. É im-
portante selecioná-las bem, seja para reduzir o risco de mensurações equivocadas de
suas probabilidades, seja para que possam ingressar dentro dos limites da capacidade
racionalizadora do sistema jurídico (um número muito alto de consequências escapa-
ria à capacidade de reflexão jurídica). O julgador deve se fixar num ponto da cadeia
de efeitos, escolhido não de modo discricionário, mas conforme a relevância para o
caso. A identificação dessas consequências será realizada com base num cálculo de

262
“Quando dois objetos são similares em tudo, e não somos capazes de identificar a preeminência de um sobre o
outro, observem-se suas consequências. De fato, o objeto do qual segue um bem maior é preferível; se, ao invés,
as consequências são piores, mais desejável é o objeto do qual deriva o mal menor”. ARISTÓTELES. Topici, 117,
a. Bari: 1970, p. 464 apud MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97.
263
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97-99.
264
De certa forma, essa crítica reflete-se na crítica de Habermas à técnica da ponderação de interesses: “Para o
Tribunal Constitucional Federal, a Lei Fundamental da República não constitui tanto um sistema de regras
estruturado através de princípios, mas uma ‘ordem concreta de valores’ (semelhante à de Max Scheler ou de
Nicolai Hartmann). [...] Essa interpretação vem ao encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente
entre os juristas, o qual, no entanto, é frouxo. Os que pretendem diluir a constituição numa ordem concreta de
valores desconhecem seu caráter jurídico específico; enquanto normas do direito, os direitos fundamentais,
como também as regras morais, são formados segundo o modelo das normas de ação obrigatórias — e não
segundo o modelo dos bens atraentes” (HABERMAS. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. 1, p.
314-315, 318, 320-321).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
79

probabilidade tirado de regras comuns de experiência ou de modelos estatísticos, eco-


nômicos ou sociológicos cientificamente confiáveis.
Ou seja: na seleção das consequências, o julgador deve delimitar a abrangência
do círculo de consideração àquelas que, em número capaz de dar conta, sejam, científica
ou razoavelmente, prováveis de ocorrer.
A segunda regra metodológica trata da seleção dos pontos de vista sob os quais as
consequências serão avaliadas. Mengoni sugere que o Ordenamento Jurídico (italiano)
pretende conciliar três valores: a economicidade, a justiça social e a autonomia indivi-
dual. Em muitos casos, o juiz ver-se-ia diante de caso em que teria de aplicar critérios
fortemente seletivos — para garantir racionalidade ao discurso —, mas, ao mesmo
tempo, tais critérios devem ser flexíveis o suficiente para permitir sua aceitação por
uma série de atores sociais.
É por isso que, reconhecendo a importância da análise econômica do Direito para
o tema, Mengoni acredita que a argumentação consequencialista no Direito não se resu-
me a ela, embora a englobe. Na “mistura indispensável para garantir a razoabilidade”,
diversos pontos de vista, mais e menos preocupados com redistribuição de bens, mais
e menos individualistas, deverão ser integrados numa única perspectiva equilibrada
de avaliação das consequências.265
O primeiro vínculo normativo específico é o respeito à lei, ou, mais precisamente,
ao Direito Positivo. Mengoni recusa a ideia de que todo caso jurídico deva ser decidido
conforme a uma ponderação (de interesses, valores, consequências). Nas situações em
que há previsão legal expressa, a argumentação consequencialista atua como critério
de interpretação — na condição de interpretação corretiva, aparando arestas —; ou, no
máximo, como critério de integração da fatispécie, se esta possuir cláusula que remeta
aos standards sociais (por exemplo, dispositivo normativo que mencione os “melhores
interesses da criança” ou as “melhores práticas da indústria” seria necessariamente
interpretado tendo por base uma integração pragmático-consequencialista).
O vínculo ao Direito Positivo opera como condição seletiva das consequências
que poderão ser avaliadas. No plano da interpretação, isso significa abandonar o argu-
mento consequencialista que leve a atribuir ao texto significado incompatível com sua
estrutura linguística. No plano da integração jurídica, do preenchimento de lacunas,
deve-se rejeitar argumento consequencialista que leve a solução contrária a uma norma
jurídica imperativa.266 A argumentação consequencialista, em Mengoni, não é compatível
com qualquer espécie de argumentação contra legem.267
O segundo vínculo jurídico é o respeito ao precedente. Claro que não se deve en-
tender precedente como stare decisis, precedente vinculante dos sistemas da Common
Law. Mas, como presunção relativa, que justifique acréscimo na carga argumentativa
quando se trate de decidir em sentido contrário, é vínculo que pode incidir sobre os ar-
gumentos consequencialistas. De qualquer forma, é possível superar o precedente até por
razões consequencialistas, se bem que não por intermédio de cálculo probabilístico das

265
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 102.
266
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103.
267
Até porque, segundo Mengoni, a argumentação orientada a consequências não é, em si mesma, procedimento
de justificação jurídica; é, apenas, procedimento heurístico de pesquisa de hipóteses racionalmente fundadas. A
decisão jurídica deve ser propriamente justificada por intermédio de remissões e verificações de compatibilidade
em face da congruência sistemática, da universalização da decisão etc. “Os significados normativos não
podem ser obtidos senão no, e por intermédio do, sistema jurídico, e, portanto, só podem ser explicados
dogmaticamente” (MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 107).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
80 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

consequências diretas de um julgamento — o que seria o tipo-padrão do argumento —,


mas com base num juízo negativo acerca das consequências trazidas por uma linha de
decisões já adotada.268
Pois bem. Com MacCormick, vimos uma proposta pouco usual de conteúdo
para as consequências jurídicas, um destaque para o dever de universalização, e uma
generalização dos critérios utilizados para a hierarquização das consequências. Aarnio
descreveu como o raciocínio consequencialista opera na prática. Mengoni indicou
condicionantes, metodológicos e normativos, destinados a tornar controlável o uso do
argumento.
De todos os três, vamos nos apropriar de elementos no momento de formular nossa proposta
para a inserção do pragmatismo ao raciocínio jurídico. Antes, no entanto, apresentaremos
breve histórico dos usos e desusos, na doutrina e na prática jurídica brasileira, de ar-
gumentos e teorias que, de uma maneira ou de outra, poder-se-iam reconduzir a uma
noção de “pragmatismo”, “pragmatismo jurídico” ou “consequencialismo”.
Tal histórico vai nos ajudar a, no momento de propor algo, adaptá-lo às caracte-
rísticas já assentes na realidade da adjudicação e da teorização brasileira. Como William
James bem sabia, às vezes, é interessante investigar o passado e o presente e, pragmati-
camente, apresentar algo novo como derivação, em consonância com as práticas atuais,
e não como novidade desgarrada.

1.5 Contraponto: usos e desusos do pragmatismo à brasileira. Um


projeto de lei pragmatista
Considerações pragmáticas sempre estiveram presentes na doutrina jurídica
brasileira, embora raramente a partir desse referencial (argumentação consequencia-
lista, pragmatismo jurídico, Posner etc.). Mais comum são referências aos “fatos” e à
“realidade social” como condicionantes da interpretação jurídica.
Um de nossos exegetas clássicos, Carlos Maximiliano, já escrevia, em 1924, em
seu estilo característico:
A jurisprudência constituiu, ela própria, um fator do processo de desenvolvimento geral; por
isso a Hermenêutica se não pode furtar à influência do meio no sentido estrito e na acepção
lata; atende às conseqüências de determinada exegese: quanto possível a evita, se vai causar dano,
econômico ou moral, à comunidade.269 (itálico acrescentado; sublinhado no original)

E isso porque “o julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal resultantes de


seu veredictum”.270 A adoção desse pragmatismo jurídico in fieri não se dava, como hoje
não se dá, de modo descontrolado. A preocupação é a mesma: o arbítrio do julgador.
Do exposto já se depreende dever-se apelar para os fatores sociais com reserva e circunspec-
ção, a fim de evitar o risco e fazer prevalecerem as tendências intelectuais do juiz sobre as
decorrentes dos textos, e até mesmo sobre as dominantes no meio em que ele tem jurisdição,
como sucedeu em França, com o magistrado Magnaud.271

268
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 105.
269
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129.
270
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129-130.
271
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
81

Carlos Maximiliano propunha critérios para ordenar a incidência desses fatores


sociais na interpretação. Rejeitar-se-ia o sentido trazido pelos processos interpretativos
tradicionais quando o texto legal se mostrasse apto a uma “interpretação consentânea
com a época”, ou quando a interpretação levasse a uma “iniquidade manifesta” ou a
uma “conclusão incompatível com o sentir presumível de um legislador ponderado e
conseqüente”.272
Poderíamos transcrever outros trechos,273 mas o que interessa é mostrar como, na
doutrina brasileira antiga, se bem que com algumas imprecisões — Carlos Maximiliano
confunde, por exemplo, interpretação evolutiva com argumentação consequencialista —,
um certo pragmatismo in fieri já estava presente.
Também são exemplos disso as afirmações doutrinárias que, ao criticar alguma
interpretação jurisprudencial ou ato normativo, referiam-se à expressão “revolta dos
fatos diante do Direito” (ou, alternativamente, “revolta dos fatos diante dos Códigos”),
de Gaston Morand,274 em regra para vindicar solução mais conforme às percebidas
melhores consequências práticas, ou para denunciar algum pretenso atraso da norma
jurídica diante da realidade.
Pode-se dizer, portanto, que o pragmatismo jurídico ingressou na doutrina na-
cional travestido ou como interpretação sociológica, ou como apelo à importância da
realidade social na adjudicação. Ainda não se falava em análise econômica do Direito,
consequencialismo, aptidões institucionais. O pragmatismo jurídico, na época, reduzia-­
se a seu conteúdo mínimo e quase inatacável: os aplicadores do Direito deveriam se
importar com as consequências de suas decisões; deveriam prestar atenção à realidade
na qual estavam inseridos.
Nos dias de hoje, com a maior facilidade de acesso e consequente apelo do Direito
Comparado, o debate internacional ingressou na academia brasileira. Já há literatura a
respeito das muitas vertentes do pragmatismo jurídico e do consequencialismo aplicado
à argumentação jurídica. Um típico artigo a respeito do pragmatismo jurídico aplicado
vai narrar o debate teórico, escolher um aspecto prático — digamos, determinada linha
de decisões judiciais a respeito da abrangência dos planos de saúde — e criticá-la (ou
louvá-la) partindo das bases teóricas ora adotadas.

272
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
273
Apenas por amor à completude, nesta nota seguem alguns desses trechos, com os sublinhados do original e
os itálicos acrescentados: “Preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo depois que entraram em função de exegese
os dados da Sociologia, com o resultado provável de cada interpretação. Toma-o em alto apreço; orienta-se por ele;
varia tendo em mira, quando o texto admite mais de um modo de o entender e aplicar. Quando possível, evita
uma consequência incompatível com o bem geral; adapta o dispositivo às ideias vitoriosas entre o povo em cujo seio
vigem as expressões de Direito sujeitas a exame. Prefere-se o sentido conducente ao resultado mais favorável, que
melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave” (MAXIMILIANO. Hermenêutica
e aplicação do Direito. 19. ed., p. 135). “A interpretação sociológica atende cada vez mais às conseqüências prováveis de
um modo de entender e aplicar determinado texto; quando possível busca uma conclusão benéfica e compatível com
o bem geral e as ideias modernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de
tal sorte que o mundo prossiga rumo a seus altos destinos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito.
19. ed., p. 137). “O Direito é um meio para atingir os fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é
eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o seu papel antigo de entidade cega, indiferente
às ruínas que inconsciente ou conscientemente possa espalhar” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do
Direito. 19. ed., p. 138).
274
MORAND. La révolte des faits contre le code; MORAND. La revolte du Droit contre le code: la révision nécessaire des
concepts juridiques.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
82 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Luis Fernando Schuartz chega a indicar três espécies de consequencialismos


praticados na doutrina brasileira, classificados de modo crescente quanto ao respeito
à dogmática e ao precedente.275
Um consequencialismo festivo, que incorpora direta e radicalmente ideias do
movimento Law and Economics e, sem pudores para com o Direito legislado e as formas
típicas da argumentação jurídica, pretende, ao desconsiderá-los, corrigi-los, no que
se revela impotente (ao ignorar a especificidade da argumentação jurídica, mostra-se
incapaz de influenciar a prática).
Um consequencialismo militante, também reticente em relação à dogmática,
mas que, ao menos, preocupa-se com as aparências, utilizando-se de técnicas como a
ponderação de interesses e a aplicação direta dos princípios jurídicos como estratégia
de (má) retórica.
Por fim, um consequencialismo malandro, que opera, esse sim, por intermédio
da dogmática, pretendendo recombinar figuras técnicas tradicionais, e que, nos casos
bem-sucedidos, acaba por legalizar um estado de exceção, com possíveis benefícios
criativos para a própria dogmática e para os cidadãos (em termos de ampliação de
direitos e liberdades individuais).
Se a incorporação do pragmatismo jurídico ao debate doutrinário brasileiro
assumiu cores próprias — o consequencialismo, em certas leituras, pode ter virado
mais um instrumento antidogmático do que abordagem compatível com o Direito276 —,
não é menos verdade que o tenhamos incorporado, na prática jurisprudencial, de modo
intocado. Muito ao contrário.
O pragmatismo jurídico aplicado às nossas decisões judiciais não incide sempre
de modo explícito. Ainda assim, é comum. Salvo decisões administrativas de entidades
como o CADE, em que argumentos confessadamente consequencialistas têm passe
livre, na maioria das vezes tudo o que é possível fazer é detectar características mais
ou menos pragmatistas em sentenças, votos e acórdãos.
Em alguns casos, a decisão pragmatista decorre de dispositivos legais que exi-
gem argumentações da espécie. Em outros, o raciocínio pragmático é facultativo, mas
essencial à resolução do problema — o qual nem sempre é a solução de um caso (pode
ser, como já se viu, o excessivo número de recursos extraordinários a serem julgados).
O mais emblemático caso apreciado pelo STF, no qual parte da doutrina viu —
em especial no voto do relator, Eros Grau — o uso de argumentos pragmatistas,277 foi
a ADI nº 2.240-7, julgada pelo tribunal pleno em 9 de maio de 2007. A causa versava
sobre a validade da criação do Município baiano de Luís Eduardo Magalhães, efetuada

275
SCHUARTZ. Consequencialismo jurídico, racionalidade decisória e malandragem. Revista de Direito
Administrativo.
276
Em 2010, ano em que a tese de doutorado da qual se originou o presente livro foi defendida, o pragmatismo
jurídico ainda se encontrava a meio caminho da popularização acadêmica. Em 2014, ano da publicação da
primeira edição deste livro, pode-se dizer que o uso da expressão “pragmatismo” e “consequencialismo”
aparecia com alguma frequência em dissertações e teses. Também se vê as palavras “pragmatismo” e
“consequencialismo” em artigos dogmáticos — alguns fazendo uso absolutamente fuzzy das noções. No Direito
talvez tenha acontecido o que Peirce identificava na filosofia (v. nota de rodapé n. 21), mas, aqui, ainda não há
proposta para livrar as noções de pragmatismo e de consequencialismo de seus sequestradores. Em 2017, data
da segunda edição, o pragmatismo jurídico já se tornou moda acadêmica. Numa eventual quarta edição, é bem
provável que já se possa identificar — como é comum na história das ideias — um movimento contrário a ele.
Quem viver, verá.
277
POGREBINSCHI. A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões judiciais e o pragmatismo
do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
83

por intermédio de lei estadual (Lei nº 7.619/00). O Município foi criado antes da pro-
mulgação da lei complementar federal que, segundo o art. 18, §4º, da Constituição da
República, com a redação da EC nº 15/96, deverá estabelecer o período em que isso
poderá ocorrer.278 Tal lei complementar não existia e não existe até hoje.279
O que fazer? Declarar a inconstitucionalidade da lei criadora do Município sete
anos após sua criação, como pretendia o autor da demanda? Ignorar a existência de uma
Câmara dos Deputados e de um Poder Executivo legitimamente eleitos? Tornar nulas
mais de duas centenas de leis municipais e outros tantos atos de arrecadação de tributos
municipais, estaduais e federais? Anular todos os atos e contratos públicos firmados
no período? Ou fazer vista grossa à lei editada antes da vigência de lei complementar
federal expressamente requerida pela Constituição da República?
O voto do relator mostrou-se favorável à manutenção da lei estadual. “O
Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente federativo dotado
de autonomia municipal, a partir de uma decisão política”. Tratar-se-ia de situação
excepcional —excepcionalidade político-institucional — trazida pela atuação da força
normativa dos fatos, no dizer de Jellinek. A ausência de atuação do Congresso, verdadeira
“moléstia institucional”, teria gerado a circunstância que, ali, não poderia ser solucio-
nada com a pura e simples invalidação da figura jurídica do Município.280 “Criado o
Município, passou a existir e agir como ente da federação. Trata-se de um fato. Não se
anulam fatos” (p. 301).
Citando Giorgio Agamben, Eros Grau delineou a relação entre estado de norma-
lidade, norma jurídica e exceção:
A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de
exceção. Mas esta Corte, ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à
exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção.281

Raciocinando de modo consequencialista, Eros Grau perguntou-se o que me-


nos comprometeria a força normativa futura da Constituição: violar o art. 18, §4º, da
Constituição da República, ou o princípio federativo? (p. 303). Ainda pensando nas
consequências da decisão — se estimularia a criação indiscriminada de novos Municípios
(sugeriu que não seria o caso) —, o relator estimou que o julgado serviria como apelo
ao Poder Legislativo para que suprisse a omissão.
Vemos, então, três ideias-força no voto do relator: a força normativa dos fatos
(o Município é dado da realidade, que não se muda por sentença); a necessidade de
se legalizar uma situação de exceção; e a importância da ponderação entre as conse­
quências da declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da lei

278
Art. 18. [...] §4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual,
dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito,
às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados
e publicados na forma da lei (grifos nossos).
279
O Projeto de Lei Complementar nº 98/2002, originário do Senado e aprovado no Congresso, e que pretendia
regulamentar a Constituição da República no ponto, foi vetado integralmente pela Presidente da República em
novembro de 2013. Atualmente encontra-se em curso o Projeto de Lei do Senado nº 199/2015. Ele foi aprovado
no Senado e encaminhado, em agosto de 2015, à Câmara dos Deputados, onde se encontra parado desde então.
280
“Como o Legislativo omitiu-se, deixando de produzir essa lei complementar, e o ente federativo surgiu,
existindo como tal, a aplicação do preceito para que se declare a inconstitucionalidade do ato legislativo
estadual e a inconstitucionalidade institucional do Município agravará a moléstia do sistema” (Voto do Relator
Eros Grau na ADI nº 2.240-7, p. 298 dos autos do processo judicial).
281
ADI nº 2.240-7, p. 302.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
84 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

baiana, incluindo-se, no cálculo, os possíveis efeitos sistêmicos do acórdão em relação


à função estatal “em mora” (no caso, o Legislativo). Não é difícil enquadrar essas linhas
de argumentação dentro de uma lógica pragmatista.
E, de fato, é essa a proposta de Thamy Pogrebinschi. Dentro daquilo que ela
própria havia definido como “matriz pragmatista” — contextualismo, consequencia-
lismo, antifundacionalismo (ver acima) —, o voto de Eros Grau teria incorporado o
contextualismo e o consequencialismo. Sobre o contextualismo, por insistir na impor-
tância dos fatos e do contexto para a decisão — o Ministro redige longo parágrafo (p.
288-289), detalhando a estrutura política, econômica e social do Município; um dos
leitmotive da decisão é a força normativa dos fatos, isto é, a capacidade de normalização
de situação extralegal graças ao acolhimento, pela ordem jurídica, da exceção. O con-
sequencialismo aparece no adiantamento das consequências como razão para decidir,
na postura forward-looking (qual das duas decisões possíveis traria consequências que
menos comprometeriam a força normativa futura da Constituição?), na expectativa de
influenciar outra função estatal.
Na mesma demanda abstrata de fiscalização da constitucionalidade, o voto de
Gilmar Mendes também merece destaque. Não por seus aspectos dogmáticos — trata-se
de defesa da modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade —, mas por
trechos de sua argumentação que se mostram, também, pragmatistas. Adiantando a
conclusão do voto, seguida por todos os demais, salvo por Marco Aurélio (para quem
a lei baiana era inconstitucional e nada podia ser feito), Gilmar propôs a declaração de
inconstitucionalidade da lei estadual, sem a pronúncia de nulidade, oferecendo-se prazo
de vinte e quatro meses para que o legislador estadual pudesse adaptar sua obra às
condições que eventualmente surgiriam a partir da edição da lei complementar federal.
Mas não é a conclusão que nos importa.
Até chegar lá, Gilmar Mendes argumentou que a declaração prospectiva de ine-
ficácia das leis inconstitucionais “decorre de uma necessidade prática comum a qualquer
jurisdição de perfil constitucional”.282 Mais à frente (p. 317), afirma que, na modulação
dos efeitos das leis inconstitucionais, assume importância a proporcionalidade em sen-
tido estrito — teste que, como veremos, é uma das hipóteses específicas de incidência
de nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, já que se trata, em essência, de racio-
cínio a respeito das consequências da manutenção de um ato ou da tomada de uma
decisão.283 Transcrevendo estudo de Joaquín Camazano, Gilmar Mendes concorda que
“a raiz essencialmente pragmática de todas essas modalidades atípicas de declarar a
inconstitucionalidade faz supor que seu uso seja praticamente inevitável”.284 Fica claro
que, embora não pragmatista à maneira de Eros Grau, Gilmar Mendes adota técnica
de decisão em controle de constitucionalidade que é, por si mesma, exercício de conse-
quencialismo: adiantar as possíveis consequências da decisão para estabelecer o marco
temporal do início de seus efeitos.285

282
ADI nº 2.240-7, p. 313, grifos nossos.
283
A afirmação é reiterada na p. 329: “Terá significado especial o princípio da proporcionalidade, especialmente
a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de
inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), tendo em vista o confronto entre os interesses afetados pela
lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqüência da declaração de
inconstitucionalidade”.
284
ADI nº 2.240-7, p. 322.
285
Rachel Herdy, em artigo específico a respeito do perfil “pragmatista” de Gilmar Mendes, identifica três
circunstâncias que permitiriam enquadrar o Ministro neste rótulo: sua defesa das “sentenças de perfil aditivo”
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
85

A ADI nº 2.240-7 é pragmatista do início ao fim: tanto seu relator utilizou de


argumentos que apelavam ao contexto e às possíveis consequências da decisão, quanto
o Ministro que lhe deu redação final usou de técnica consequencialista para estabelecer
seu dispositivo.
Embora característica, a decisão encontra precedentes históricos marcantes. Não
com esse nome, não justificado dessa maneira, mas, por vezes, a força normativa dos
fatos foi a ratio decidendi de alguns importantes acórdãos. Nosso próximo exemplo é
chocante (e talvez nem seja bom exemplo, porque exceptions don’t make good rules). Vamos
a ele, cujo entendimento requer alguma contextualização histórica.
Com o suicídio de Vargas, Café Filho assumiu a presidência. Nas eleições subse-
quentes, em outubro de 1955, venceu Juscelino Kubitschek, sendo vice João Goulart. A
história passa-se entre a assunção de Café Filho e a posse de Juscelino. Durante o enterro
de um general, em novembro de 1955, o coronel Bizarria Mamede proferiu discurso
considerado subversivo pelo então Ministro da Guerra, general Lott, que exigiu que
Café Filho o punisse. Dois dias depois, Café Filho sofreu ataque cardíaco e foi internado.
Assumiu o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, que se recusou a punir
o coronel Mamede, e, com isso, desautorizou publicamente o Ministro da Guerra, que
renunciou. Convencido por alguns colegas de que se estava arquitetando um golpe
para evitar a posse de Juscelino, o general Lott convocou as forças do Exército e cercou
as bases da Marinha e da Aeronáutica. Carlos Luz refugiou-se no cruzador Tamandaré
e rumou para São Paulo, onde esperava receber apoio do Governador.
Nesse ínterim, o Congresso declarou o impedimento de Carlos Luz e deu posse
ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Como se a situação não fosse confusa o
suficiente, Café Filho retornou da internação, pretendeu reassumir a Presidência, e foi
impedido pelo Congresso, que decretou estado de sítio por trinta dias, prorrogado uma
vez. Finalmente, em janeiro de 1956, Juscelino e Jango tomaram posse.
Quando Carlos Luz foi deposto e Café Filho quis voltar, este impetrou mandado
de segurança junto ao STF alegando a inconstitucionalidade de seu impedimento.
O relator negou a segurança. O Ministro seguinte, entendendo que o impedimento
feriu a separação de poderes, concedeu-a. Sampaio Dória, o terceiro a votar, denegou
a segurança, alegando que, embora fosse possível discordar da atitude tomada pelo
Congresso, havia razão que se lhe sobrepunha: tratava-se de reconhecer situação de
fato, “irremovível dentro dos quadros constitucionais ou legais, qual a criada pelo
imperativo dos canhões e metralhadoras insurrecionais que barravam e continuam
barrando o caminho do Sr. João Café Filho até o Catete”.
Tratava-se de situação de fato:
Criada e mantida pela força das armas, contra a qual seria inexeqüível qualquer decisão
do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a
ser um título de glória, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infringiram;
sua vontade é que conta, e mais nada. [...]
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insur-
reição, com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal,

no Supremo; o fato de ter sido ele o idealizador do anteprojeto de lei que deu origem à Lei Federal nº 9.868/99;
e, mais importante, sua defesa, em casos e votos, de um “pensamento jurídico do possível”. V. HERDY. Gilmar
Ferreira Mendes e o “pensamento jurídico do possível”: um pragmatista no Supremo Tribunal Federal?
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
86 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

posto que este não cometeria a ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios,
expedir mandado para cessar a insurreição.286

O próximo Ministro a votar seguiu Sampaio Dória e denegou a segurança. Os


dois últimos entenderam que a apreciação do mandado dependia da suspensão do
estado de sítio, o que, na prática, tornava sem efeito a demanda.
O importante é a argumentação central da decisão: há fatos diante dos quais o
Direito tem de ceder.287 Estamos diante de decisão pragmatista porque, com os olhos no
Ordenamento, os julgadores utilizaram, como critérios para a decisão, o contexto (um
golpe militar) e as prováveis consequências do julgado (que, no caso do deferimento
da ordem, seria nenhuma, ao menos no plano concreto).
Até agora, as decisões dizem respeito a questões políticas: a inconstitucionalidade
de um Município e a posse de um presidente deposto. Contudo, o raciocínio pragmatista
não se destina apenas a decisões sobre questões políticas. Embora essas sejam algumas
das que, compreensivelmente, acabem ganhando destaque, o pragmatismo jurídico
impregna as linhas decisórias adotadas para uma série de assuntos diferentes.
Para exemplificarmos dentro do nosso tema, pensemos na decisão inicial do
STF acerca da constitucionalidade da retenção de ativos financeiros realizada pelo
Plano Collor. O tribunal entendeu que, embora inconstitucional, a medida de política
econômica da União não poderia ser invalidada naquele momento, sob pena de as
consequências prováveis da decisão serem insuportavelmente piores do que as que
decorreriam da manutenção do confisco. Chame-se de argumentação consequencia-
lista ou de pragmatismo jurídico, o fato é que o STF decidiu, em matéria de Direito
Econômico, à luz das consequências.
Os argumentos do Ministro Marco Aurélio em ações diretas de inconstituciona-
lidade envolvendo imposições de gratuidades a estabelecimentos comerciais também
são tipicamente consequencialistas. Avaliam as consequências prováveis e concluem
que se está fazendo “cortesia com o chapéu alheio”, com violação à livre iniciativa.
Foi assim na ação direta que analisou a constitucionalidade de lei estadual flu-
minense que concedia descontos parciais a idosos na aquisição de medicamentos. A
medida cautelar foi indeferida (ainda não houve julgamento de mérito) contra o voto
de Marco Aurélio, para quem “o legislador está cumprimentando com chapéu alheio”,
e, “de duas, uma: ou a farmácia arcará com o ônus do desconto, ou majorará os preços
dos remédios, ficando apenada a população”.288 Ou seja, ou se estará violando a livre
iniciativa, ou se estará despromovendo as finalidades mesmas da norma — ambas
consequências inaceitáveis.

286
COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 130-137.
287
Defendendo-se das acusações feitas pela imprensa e pelo Congresso, Nelson Hungria disse o seguinte: “Jamais
o Supremo Tribunal desertou a sua função constitucional, que não é, positivamente, a de debelar insurreições
vitoriosas. O que ocorre é que o Brasil, com a implantação da República, entrou no ciclo político da América
Latina, em que as mudanças de regime e a queda dos governos se operam, frequentemente, mediante
pronunciamentos militares, contra os quais não há de opor-se a força do direito. Bem ou mal intencionados,
tais pronunciamentos fazem calar a força das leis e dos ditames jurídicos. Contra o fatalismo histórico dos
pronunciamentos militares não vale o Poder Judiciário, como não vale o Poder Legislativo. Esta é que é a
verdade, que não pode ser obscurecida por aqueles que parecem supor que o Supremo Tribunal, ao invés de um
arsenal de livros de direito, disponha de um arsenal de schrapnels e de torpedos” (COSTA. O Supremo Tribunal
Federal e a construção da cidadania, p. 135).
288
Medida Cautelar da ADI nº 2.435, proposta contra a Lei fluminense nº 3.542/01, julgada em 13 de março de 2002.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
87

Na ADI nº 1.950, em que se questionava lei do Estado de São Paulo que con-
cedia meia-entrada a estudantes dos ensinos fundamental, médio e superior (Lei nº
7.844/92), mais uma vez, Marco Aurélio, em voto vencido, afirmou que havia cortesia
com chapéu alheio:
Não vejo como fixar esse ônus, que acaba sendo suportado, ante a transferência, pela so-
ciedade, tendo em conta a majoração da entrada para aqueles que não gozam do benefício,
mediante uma norma, repito, não razoável, porque nela não se contém a contrapartida, ou
seja, uma compensação — havendo uma desvantagem significativa — da perda por aqueles
que se lançam no mercado, na vida comercial, e precisam fugir à morte civil nessa mesma
vida comercial, que é a falência.

Na ADI nº 3.512, na qual se analisou a constitucionalidade de lei estadual do


Espírito Santo que concedia meia-entrada a doadores regulares de sangue (Lei nº
7.734/04), Marco Aurélio “continuava entendendo que o Estado, em si, não pode cum-
primentar com o chapéu alheio”. O raciocínio de “cumprimentar com o chapéu alheio”
não é outro senão o de repassar o ônus de alguém para outra pessoa que nada tem a ver
com o débito original — mas, associada à expressão, vem análise em que se adiantam
consequências (o próprio repasse do ônus econômico é uma delas) para que possam
ser avaliadas com base em sua compatibilidade com a Constituição.
Mais um exemplo é o julgamento do RE nº 693.456,289 quando o Supremo decidiu
que servidores públicos que ingressarem em greves reinvindicatórias — isto é, que não
envolvam ilícitos do Poder Público — devem ter os dias parados descontados de sua
remuneração. O voto do Ministro Luís Roberto Barroso se fundou na distribuição do
ônus a ser enfrentado em greves. Para o Ministro, caso não fosse possível o desconto,
a consequência direta seria a imputação integral dos prejuízos ao Poder Público e, in-
diretamente, à coletividade. A prevalência da consequência tida como indesejável foi
o principal fundamento do voto vencedor.
Podemos extrapolar a análise das decisões políticas e econômicas e adentrar
seara na qual o bem jurídico tutelado é o mais grave: o Direito Penal. Pois mesmo aí
o STF já teve oportunidade de decidir com base, essencialmente, no contexto. Aliás,
alguns dos exemplos recentes mais relevantes do uso do pragmatismo têm se dado
exatamente nesse âmbito.
O primeiro deles diz respeito a um habeas corpus, relatado pelo Ministro Marco
Aurélio, no qual se discutiu se a presunção de violência, no crime de estupro, é absoluta
ou relativa.290 E, pelo menos nesse caso, o relativo, o contextual, prevaleceu. No voto,
o Ministro anotou:
A presunção não é absoluta, cedendo às peculiaridades do caso como são as já apontadas,
ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da
noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes como reconhecido no depoimento e
era de conhecimento público.

Podemos ver, na decisão, um gérmen antifundacionalista, na medida em que se


ousou atacar a posição tradicional, na doutrina e na jurisprudência, acerca do caráter
absoluto da presunção de violência nos crimes sexuais. E há nela, também, aspecto
experimental compatível com o ideário do pragmatismo, seja filosófico ou jurídico.

289
STF. Plenário, Rel. Min. Dias Toffoli, RE nº 693.456, pendente de publicação.
290
STF. 2ª turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC nº 73.662/MG. Diário de Justiça, 20 set. 1996.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
88 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Resolveu-se pagar o preço da experimentação e da atenção ao contexto ao se abalar


um dogma.
Ainda no âmbito penal, em decisão recente, Luís Roberto Barroso se utilizou ex-
pressamente de premissas pragmáticas como elemento decisório. No julgamento do HC
nº 126.292291 — talvez um dos usos mais polêmicos do pragmatismo judicial no Brasil
até hoje292 — o Tribunal decidiu ser possível a execução provisória de pena criminal
quando a condenação já houver sido alvo de decisão de mérito em segunda instância.
A decisão em questão alterou a jurisprudência dominante na corte, que considerava
que a execução penal, em observância ao princípio da presunção de inocência (art. 5º,
LVII, CF), só poderia se dar após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
O voto vencedor, formulado por Luís Roberto Barroso, desenvolve o seguinte
raciocínio: uma vez que não se trata propriamente de restrição a direito fundamental,293
e como não há regra constitucional expressa que vede a execução provisória, a resolu-
ção da demanda passaria a ter como elemento central as possíveis consequências das
alternativas interpretativas.
Para justificar a superioridade pragmática da possibilidade de execução penal an-
tecipada frente à impossibilidade (as duas interpretações possíveis), o ministro sustenta
três ordens de consequências desejáveis: (i) incremento no sistema de justiça criminal
em função da perda de utilidade de recursos protelatórios nos tribunais superiores e
valorização das instâncias ordinárias; (ii) diminuição da seletividade no sistema penal
brasileiro; e (iii) quebra do paradigma da impunidade.294

291
STF, Plenário, Rel. Min. Teori Zavascki, HC nº 126.292, Diário de Justiça eletrônico, 31, mar. 2016.
292
Além de não ter sido unânime e ter sido alvo de críticas, a decisão foi objeto de resistência dentro do próprio
Supremo. O Ministro Marco Aurélio, em decisões monocráticas, chegou a relativizar o precedente estabelecido
pelo Supremo em regime de repercussão geral, decidindo de forma oposta ao determinado pelo plenário (v. HC
nºs 138.086, 138.088 e 138.092).
293
Segundo o Ministro, o princípio da presunção de inocência não teria seu núcleo afetado pela possibilidade de
execução anteriormente ao trânsito em julgado: “a presunção de inocência é princípio (e não regra) e, como tal,
pode ser aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos
constitucionais colidentes. No caso específico da condenação em segundo grau de jurisdição, na medida em que
já houve demonstração segura da responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas,
o princípio da presunção de inocência adquire menor peso ao ser ponderado com o interesse constitucional na
efetividade da lei penal, em prol dos objetivos e bens jurídicos tutelados pelo direito penal (CF/1988, arts. 5º,
caput, e LXXVIII e 144)”.
294
Segue o trecho que nos interessa: “Por fim, apontei três fundamentos pragmáticos que reforçam a opção pela
interpretação adotada, ao demonstrar que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em
2º grau de jurisdição pode contribuir para a melhoria do sistema de justiça criminal. Primeiro, a interpretação
permite tornar o sistema de justiça criminal mais funcional e equilibrado, na medida em que (i) coíbe a abusiva e
infindável interposição de recursos protelatórios, que impedia que condenações proferidas em grau de apelação
produzissem qualquer consequência, conferindo aos recursos aos tribunais superiores efeito suspensivo que
eles não têm por força de lei; bem como (ii) favorece a valorização e a autoridade das instâncias ordinárias, algo
que há muito se perdeu no Brasil, pelo fato de o juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça terem passado
a funcionar como instâncias de passagem até a apreciação pelos Tribunais Superiores. Segundo, a execução
provisória da condenação penal após a decisão de 2º grau diminui a seletividade do sistema punitivo brasileiro,
tornando-o mais republicano e igualitário, bem como reduz os incentivos à criminalidade de colarinho branco,
decorrente do mínimo risco de cumprimento efetivo da pena. Antes da mudança jurisprudencial, em regra,
apenas as pessoas com mais recursos financeiros, mesmo que condenadas, não cumpriam a pena ou conseguiam
procrastinar a sua execução por mais de 20 anos. Como é intuitivo, essa não era a situação das pessoas que hoje
superlotam as prisões brasileiras (muitas vezes, sem qualquer condenação de primeiro ou segundo graus), que
não têm condições de manter advogado para interpor um recurso atrás do outro. Boa parte desses indivíduos,
aliás, já se encontra presa preventivamente por força do art. 312 do Código de Processo Penal. Terceiro, promove-
se a quebra do paradigma da impunidade do sistema criminal, ao evitar que a necessidade de aguardar o
trânsito em julgado do recurso extraordinário e do recurso especial impeça a aplicação da pena (pela prescrição)
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
89

Questões que envolvem uma interseção entre política e Direito Penal, a exemplo
do caso acima, têm sido arenas onde o pragmatismo ganha destaque. O julgamento
do RE nº 635.659295 (ainda em curso, em função de pedido de vista), cujo objeto é uma
condenação penal em função do consumo de uma quantidade reduzida de maconha,
contou, em um de seus votos já apresentados, com explanação acerca do pragmatismo
jurídico, em que se discorreu, inclusive, sobre os cânones do pragmatismo filosófico.
Aqui, mais uma vez, o voto do Luís Roberto Barroso inseriu o pragmatismo
jurídico como um dos elementos do espectro da atividade de interpretação judicial, ao
lado da proteção aos direitos fundamentais.296 Em seu voto, Barroso afirma que:
Não estando em jogo direitos ou princípios fundamentais, frequentemente será
legítimo e desejável que o intérprete, dentro das possibilidades e limites das normas
constitucionais, construa como solução mais adequada a que produza melhores
consequências para a sociedade.

Aí está: os exemplos de decisões do STF que incorporam elementos pragmatistas


não se limitam a questões políticas, mas passam por assuntos econômicos e até penais.
É importante observar que o Supremo Tribunal Federal é a corte que mais bem se encaixa
ao figurino do pragmatismo jurídico. Há diversas razões para isso. Em primeiro lugar, a
corte é chamada a resolver uma série de questões para as quais o texto da Constituição
da República não oferece nenhum auxílio direto. Além disso, não há qualquer pressão
decorrente de suas decisões poderem vir a ser revistas por outra corte. O tipo de assunto
que é levado ao Supremo costuma convidar à interdisciplinaridade e ao pensamento
out of the box. E, como corte política, suas decisões geram efeitos prognósticos (no que
se assemelha à instância consequencialista por excelência — o Legislativo).
Para o bem ou para o mal, em nossa conformação institucional, o STF pode ser
o espaço próprio do pragmatismo jurídico. E, pelo que se vê desde a primeira edição
deste livro, o Supremo de fato está ocupando tal espaço. Pode-se dizer, sem exageros, que
o pragmatismo jurídico é uma crescente realidade na jurisdição constitucional brasileira.
Mas não apenas o Supremo pode usar tal argumento. Diversos outros operadores
institucionais do Direito deles se utilizam dia a dia. Exemplo trivial: o argumento do
“efeito multiplicador” das demandas é, na raiz do termo, argumento consequencialista.
Dia após dia, quando a Fazenda Pública ou empresas buscam anular decisões judiciais
argumentando que, com base nelas, por meio de um efeito exemplo, inúmeras outras
acabariam surgindo — com risco de prejuízos —, está-se apelando a uma das conse-
quências prováveis do julgamento (o estímulo à litigância) como motivação para nova
decisão, agora, de cassação.297
Outro exemplo é a argumentação, por parte da Fazenda Pública, a respeito da
provável perda de arrecadação caso o tributo, que se questiona em juízo, seja declara-
do inconstitucional pelo Judiciário. Como o argumento possui, na vida prática, peso

ou cause enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição. Assim, ao evitar que a punição
penal possa ser retardada por anos e mesmo décadas, fortalece-se a tutela dos bens jurídicos resguardados pelo
direito penal, bem como restaura-se a própria confiança da sociedade na Justiça criminal”.
295
STF, RE nº 635.659, Rel. Min. Gilmar Mendes.
296
A íntegra escrita do voto ainda não se encontra disponível em função do pedido de vista. De toda forma, o voto
oral já foi apresentado em sessão televisionada.
297
Cf. ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p. 7.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
90 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

considerável, observa-se que, em geral, advogados tributaristas não se mostram favo-


ráveis a argumentos pragmatistas, ou propõem que eles incidam de modo restrito.298
Há casos em que a decisão judicial não tem como deixar de ser pragmatista. É
que o próprio dispositivo normativo solicita apreciação contextual e/ou voltada às consequências.
Dois exemplos: o art. 27 da Lei Federal nº 9.868/99, que permite a modulação dos efei-
tos temporais das declarações de inconstitucionalidade emitidas pelo STF em sede de
controle concentrado,299 e o art. 15 da Lei Federal nº 12.016/09, que autoriza a suspensão
da execução de liminar ou de sentença proferida em mandado de segurança nos casos
em que tais decisões gerem lesão à ordem, saúde, segurança ou economia públicas.
Na primeira hipótese, como vimos no voto de Gilmar Mendes no caso do
Município de Luís Eduardo Magalhães,300 são preocupações de ordem prática as que
orientam a modulação dos efeitos das decisões, ainda que filtradas pela abrangência do
conteúdo mínimo das expressões “segurança jurídica” e “excepcional interesse social”,
presentes no artigo 27. Há quem se coloque de modo contrário a tal afirmação,301 mas,
para todos os efeitos, são razões “reais” (para se falar com Aarnio) as que aparecem
nas discussões a respeito da incidência do dispositivo. O art. 27 é válvula de inserção
de argumentos pragmatistas no cotidiano do controle de constitucionalidade.
O art. 15 da lei do mandado de segurança autoriza a suspensão da liminar ou da
própria sentença quando ela afetar a ordem, saúde, economia ou segurança públicas.
O dispositivo expressamente exige que o magistrado revisor analise não o conteúdo
jurídico do julgado, mas apenas as consequências da decisão.
Na suspensão de segurança, o revisor não funciona como um juiz “de Direito” —
na medida em que se entenda que decisões pragmatistas sejam externas ao Direito,

298
Veja-se, por exemplo, Fábio Martins Andrade (O argumento pragmático ou consequencialista e a modulação
temporal dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária. Tese.
299
Não apenas no controle concentrado. A jurisprudência do STF aceita o uso dessas técnicas também no controle
incidental. Ver, por exemplo, RE nº 197.917/SP, Rel. Maurício Corrêa, DJ, 07 maio 2004.
300
E poderíamos encontrar em tantas outras decisões do STF, talvez não tão momentosas como as mencionadas no
texto principal. Assim, na ADI nº 1.102, em que se discutia a constitucionalidade das expressões “empresários”
e “autônomos”, da Lei Federal nº 8.212/91, para fins de determinação do custeio da previdência pública,
argumentos como o estímulo ou desestímulo a que o legislador atue em determinado sentido (no voto de Marco
Aurélio) ou o impacto da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc nas contas públicas (no voto
do relator Maurício Corrêa), de nítida índole pragmatista, podem ser encontrados. Até a gripe suína já contou
como dado da realidade para orientar a modulação dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Embora
reconhecendo a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 300, do Espírito Santo, que permitia a contratação
temporária de profissionais da área de saúde, mas sem especificar o motivo da excepcionalidade, o STF,
considerando a epidemia de gripe suína e o risco de a população do Estado ficar sem agentes de saúde durante
aquele período crítico, concedeu prazo de sessenta dias até a cessação dos efeitos da lei, tempo suficiente para
que o ente federativo elaborasse e aprovasse novo projeto de lei que atendesse aos requisitos da Constituição
(Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/08/12/materia.2009-08-12.0747575958/view>.
Acesso em: 15 ago. 2009).
301
Adotando a ideia de Humberto Ávila, segundo a qual os argumentos pragmáticos são não institucionais e devem
aparecer em papel secundário na argumentação jurídica, Ana Paula Ávila escreveu: “Aqui merecem referência
o pragmatismo e o consequencialismo que podem ser detectados na origem de uma série de argumentos que
acabam sendo considerados na interpretação jurídica. Tome-se, por exemplo, a decisão que deixa de atribuir
efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade apenas para evitar uma enxurrada de ações individuais, ou a
decisão que atribui o efeito ex tunc apenas porque, do contrário, equivaleria a incentivar o legislador à produção
de normas em desacordo com a Constituição. Ora, não é isso que deve servir de parâmetro para a interpretação
do art. 27 da Lei nº 9.868/00. O reconhecimento da permanência dos efeitos deve decorrer justamente das normas
que, acaso existentes, sustentem essa permanência, e não de um truque de mágica que não se justifique à luz
do ordenamento jurídico” (ÁVILA. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade:
ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme à Constituição do artigo 27 da Lei nº
9.968/99, p. 119-120).
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
91

posição com a qual na verdade não concordamos —, mas como um administrador con-
sequencialista de decisões alheias. É o Direito positivo abraçando o pragmatismo jurídico.
Claro que vai ser sempre possível discordar da constitucionalidade do instituto,302 o
que não impedirá que a suspensão de segurança continue existindo, e mais: como
instituto pragmático.
Há tentativa — capitaneada pelos professores Floriano de Azevedo Marques Neto
e Carlos Ari Sundfeld — de, por meio de lei, obrigar a que decisões judiciais e adminis-
trativas considerem suas possíveis consequências. O Projeto de Lei do Senado nº 349/15
tem como objeto a inclusão de diversas normas na Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro: desde aspectos atinentes ao dever de motivação (ele seria cumprido
indicando-se a necessidade e a adequação da medida, inclusive em face de possíveis
alternativas [art. 20, parágrafo único]303), passando por exigência de constituição de
regimes de transição quando da constituição de novos estados de direito (art. 22304),
e chegando, até, à criação de ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste ou
norma administrativa (art. 24305).
Os contornos pragmáticos do PL são evidentes. O projeto se propõe a evitar
decisões inteiramente fundacionais e abstratas, que por vezes aparecem no ambiente
jurídico brasileiro.306
Em especial, é de se destacar o artigo 20 — o primeiro do projeto. Diz ele, em
seu caput, que “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base
em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão”.
De fato: as intenções do PL são irrepreensíveis. Se concretizado de modo pleno,
trará segurança jurídica. O sucesso, contudo, não é garantido: é plausível conceber,
pela prática judicial e administrativa brasileira atual, que a exigência legal desemboque

302
Assim, por todos, a opinião de Cássio Scarpinella Bueno: “Se o que o mandado de segurança tem de mais caro é
sua predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis ao impetrante, seja liminarmente ou a
final, a mera possibilidade da ‘suspensão de segurança’ coloca em dúvida a constitucionalidade do instituto. Em
verdade, tudo aquilo que for criado pelo legislador infraconstitucional para obstaculizar, dificultar ou empecer
a plenitude da eficácia do mandado de segurança agride sua previsão constitucional. Nesse sentido, não há
como admitir a constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua natureza jurídica. É instituto
que busca minimizar efeitos do mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se de figura inconstitucional”
(BUENO. Mandado de segurança, p. 179). Sem pretender ingressar em qualquer polêmica processual, a verdade é
que a opinião do Professor parece-nos partir da constitucionalização de uma maxi-abrangência do conteúdo da
referência constitucional ao mandado de segurança, até o ponto em que “tudo” que “obstaculizar” tal (enorme)
abrangência será inconstitucional. É exemplo de raciocínio equivocado que, aplicado ao Direito Constitucional
Econômico, ainda discutiremos extensamente.
303
Art. 20, par. único. A motivação demonstrará a necessidade e adequação da medida, inclusive em face das
possíveis alternativas.
304
Art. 22. A decisão administrativa, controladora ou judicial que, com base em norma indeterminada, impuser
dever ou condicionamento novo de direito, ou fixar orientação ou interpretação nova, deverá prever um
regime de transição, quando indispensável para que a submissão às exigências se opere de modo proporcional,
equânime e eficiente, e sem prejuízo aos interesses gerais.
305
Art. 24. Quando necessário por razões de segurança jurídica de interesse geral, poderá ser proposta ação
declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, com efeitos erga omnes, no
regime da ação civil pública.
306
Para uma defesa do PL, v. SUNDFELD e JURKSAITIS. Uma Lei para dar mais segurança jurídica ao
Direito Público e ao Controle. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.). Transformações no Direito Administrativo:
consequencialismo e estratégias regulatórias. Menos especificamente em relação ao PL, mas levantando as
mesmas críticas que o fundamentaram, v. SUNDFELD. Direito Administrativo para os Céticos, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
92 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

em instrumento retórico a legitimar decisionismos.307 Tratar-se-ia de um futuro do


cumprimento insincero desta nova Lei de Introdução. O art. 20, caput, acabaria não
implicando dever real de medição das consequências práticas da decisão, mas dever de
utilização de uma retórica de consequências. Deste modo, o comando não se decidirá com base
em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão seria lido como
não se decidirá sem incorporar, à gramática da decisão, alguma cogitação sobre consequências
práticas. Aqui, a norma não geraria controle da decisão, mas levaria a que o estilo da
decisão fosse alterado.
Nessa hipótese, a inovação traria consequencias subótimas, pois as normas
descambariam no mal que se pretendia curar. Haver-se-ia trocado uma retórica de
fundacionalismo abstrato (v.g., “dignidade da pessoa humana”) por uma retórica das
consequências. Em todo caso, só de o legislativo brasileiro já estar se ocupando com
o tema indica a importância que o pragmatismo assumiu nos últimos tempos. Além
disso, é de se cogitar que, entre um ótimo — a plena efetividade das eventuais novas
normas — e um cumprimento insincero, exista um caminho intermediário possível:
ao decidir, a autoridade ao menos cogitaria do impacto concreto de sua decisão. Já seria
algo. O futuro dirá.308
Finalmente, há situações nas quais o pragmatismo aparece não no conteúdo
da decisão, tampouco decorre de comando legal. Ele vem como estratégia de decisão.
Decide-se não decidir por algum motivo prático (o excesso de causas é o motivo mais
comum). Quando falamos em “decidir não decidir”, não estamos nos referindo a um
non liquet, mas, por exemplo, à prática de sugerir um sem-número de requisitos formais
como precondições à análise do mérito de um recurso extraordinário ou especial.309
Mostramos, até aqui, como o pragmatismo jurídico e os argumentos conse-
quencialistas foram incorporados na doutrina e na prática jurisprudencial brasileira.
Relembremos. Na doutrina clássica, apareceram como invectivas genéricas em favor de
um respeito pelos fatos e pela realidade social no momento de se interpretar ou julgar.
Na produção doutrinária recente, o debate estrangeiro foi incorporado, não sem alguns
exageros. Na prática, o pragmatismo jurídico aparece (i) no modo como os juízes argu-
mentam em favor de suas decisões — pensando nas consequências prováveis, na reali-
dade prática ou na interação com os outros poderes (como estímulo ou desestímulo) —,
(ii) por intermédio de comandos legais que diretamente determinam que o julgador
faça uso de argumentos pragmáticos, e (iii) em certas estratégias, comuns ao cotidiano
da adjudicação, que permitem a incorporação de circunstâncias e dados da realidade
ao próprio ofício do julgamento.
Exemplificamos que o pragmatismo, por diversos de seus traços e em várias
de suas manifestações, já tem curso na teoria e na prática jurídica brasileira. Vamos,

307
Essa parece ser a previsão de Fernando Leal, que aponta problemas e sugere possíveis soluções (notadamente
procedimentais) para o PL. Cf. LEAL. V. Inclinações Pragmáticas no Direito Administrativo: nova agenda,
novos problemas. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.). Transformações no Direito Administrativo: consequencialismo
e estratégias regulatórias.
308
Escrevemos, em outra oportunidade, acerca desses potenciais cenários decorrentes de eventual aprovação do
Projeto. V. MENDONÇA. Dois Futuros (e meio) para o Projeto do Carlos Ari. In: LEAL e MENDONÇA (orgs.).
Transformações do Direito Administrativo: Consequencialismo e Estratégias.
309
Observe-se que o art. 1.035 do CPC, o qual exige a repercussão geral como requisito para a admissão de recursos
extraordinários, é exemplo de raciocínio consequencialista solicitado pela legislação, mas surgiu, em grande
parte, a partir da prática hiper-restritiva do Supremo em relação à admissão de tais recursos.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
93

agora, a um contraexemplo, que está mais no nível da percepção psicológica do que


da prática consciente.
De acordo com pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros,
em 2005, a maioria dos magistrados afirmou que não considera importantes as consequ-
ências econômicas das decisões (eles priorizariam os “parâmetros legais”).310 Sem ques-
tionar o modo como a pergunta foi formulada e sua possível influência no resultado,311
isso só demonstra que o pragmatismo jurídico e a argumentação consequencialista,
mercê de comuns, encontram dificuldades para serem assumidos. Daí, como men-
cionamos na introdução do capítulo, o surgimento do criptoconsequencialismo como
forma de acobertar a consideração das variáveis fáticas, contextuais e consequenciais.
Depois da apresentação do tema e da análise de exemplos, já possuímos suficientes
dados para estruturar uma contribuição própria ao debate.

1.6 “Fazendo coisas com consequências”: uma proposta de


“princípio” do pragmatismo útil ao Direito Constitucional
Econômico
O que vamos defender aqui é um pragmatismo jurídico adaptativo à tradição
jurisprudencial e doutrinária brasileira. Em toda proposta doutrinária que se pretenda
útil, faz-se necessário certo grau de redundância cognitiva, ainda mais numa prática tão
intelectualmente conservadora como a jurídica.312 Nossa proposta insere-se dentro de
uma teoria normativa da decisão. Nosso modelo pretende-se útil porque imediatamente
operativo. Ele é um guia para a decisão, não uma reflexão metateórica.313
Podemos chamar a proposta de modelo cauteloso de pragmatismo jurídico, ou, com
Schuartz, de tipo fraco de consequencialismo. Se a questão é rastrear precedentes,
caminhamos na linha de MacCormick e de Aarnio, mas não na de Posner. Podemos
extrair lições úteis do pragmatismo de Posner, especialmente a respeito da importân-
cia das consequências sistêmicas e da necessidade de se evitar excessos teóricos, mas
sua proposta é inadaptável à sensibilidade jurídica brasileira, para não falar em nosso
Direito positivo.

310
Pesquisa AMB 2005 – Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões. Em 2006, a mesma pesquisa, na
pergunta XXIII, constatou que os magistrados não consideram os efeitos orçamentários de decisões relacionadas
com a área da saúde, o que também denotaria certa rejeição ao pragmatismo aplicado à seara das demandas
judiciais de remédios (no qual aparece como argumento da reserva do possível fática).
311
Colocados diante de três opções, “parâmetros legais”, “consequências econômicas” e “consequências sociais”,
não é de se espantar que os resultados tenham sido esses. Mas quais seriam as respostas preponderantes se
a pergunta dissesse respeito, por exemplo, à “consideração do contexto e das consequências prováveis” no
momento da decisão?
312
Estamos, afinal, falando de uma prática social para a qual são oferecidas sugestões como a seguinte: “Fica bem ao
magistrado aludir às teorias recentes, mostrar conhecê-las, porém só impor em aresto a sua observância quando
deixarem de ser consideradas ultra-adiantadas, semi-revolucionárias; obtiverem o aplauso dos moderados, não
misoneístas, porém prudentes, doutos e sensatos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed., p.
160, grifos no original).
313
Não concordamos com a posição de Diego Arguelhes e Fernando Leal, segundo a qual, baseados na doutrina
americana, a principal utilidade do pragmatismo jurídico é na condição de metateoria. Ao menos no Brasil,
ainda há espaço para a implementação de modelos de teorias pragmatistas imediatamente normativos, desde
que “sensíveis” à nossa tradição de operação com o Direito. Cf. ARGUELHES, Diego Werneck; LEAL, Fernando.
Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p.
1-49, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
94 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Neste item, apresentaremos primeiramente um (i) modelo geral de operação deste


“princípio” e, logo depois, (ii) três casos especiais, que apresentam características pecu-
liares, e que não seguem o modelo geral de operação, para, então, sugerirmos os (iii)
standards de incidência do “princípio”. Para que não fique dúvida, com modelo geral de
operação, referimo-nos a uma estrutura de argumentação, e, com standards, a pautas
específicas de sua aplicação. As particularidades do Direito Constitucional Econômico
estarão presentes no conteúdo de alguns dos standards e nos exemplos.
O modelo geral de operação segue, em parte, a ideia de Aarnio — quando afirma
que o argumento consequencialista não é capaz, por si só, de justificar a decisão jurídi-
ca, embora exerça papel na justificação, sendo eventualmente seu último passo —, de
MacCormick — na ênfase do dever de universalização — e, principalmente, de Mengoni.
Pois bem. Num primeiro momento, o intérprete deve identificar a fonte da delegação de
poderes ao Judiciário (ou, quiçá, à autoridade executiva) para que aja de modo pragmático, seja
graças a referência literal (“ao prudente arbítrio do julgador” ou remissões legais a jul-
gamentos por equidade),314 seja de modo circunstancial315 — e, nesse caso, o intérprete
pode fundar seu teste pragmático tanto no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro (“finalidade social da lei”, termo suficientemente amplo para abranger
quase que qualquer filiação a teorias de interpretação jurídica), quanto no art. 37, caput,
da CRFB/88 (o dever de eficiência é exigível também da Administração-julgadora, e,
naturalmente, também incide quanto ao conteúdo de suas decisões316). Dependendo
do Ordenamento setorial envolvido, as remissões podem variar. Assim, questões en-
volvendo, por exemplo, o Direito do Petróleo podem encontrar sua fonte da delegação
de poderes para a incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico no art. 1º, caput
e incisos, da Lei do Petróleo — Lei nº 9.478/97.317
Identificada a fonte dos “poderes pragmáticos”, o modus operandi do “princípio”
do pragmatismo jurídico informa que ele deve incidir como mais um argumento operado
dentro das regras da teoria da argumentação. Ele não deve entrar em contradição lógica ou
material com nenhum outro argumento, sua justificação deve vir expressa de modo
claro, e não se deve cometer nenhuma falácia.

314
Assim, por exemplo, na Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal nº 9.099/95), o art. 6º determina que o juiz deverá
adotar, em cada caso, a decisão que lhe parecer mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às
exigências do bem comum. O julgamento por equidade também é expressamente autorizado ao conciliador
(art. 25). De igual modo, a lei do processo administrativo federal (Lei Federal nº 9.748/99) determina que, nos
processos administrativos, observe-se o critério da “atuação segundo a lei e o Direito”.
315
Em duas situações os argumentos consequencialistas assumem importância na prática jurídica: quando a lei
impõe um juízo de equidade, ou quando duas ou mais decisões são possíveis. V. CALVO; VENIER. Racionalidad
de las justificaciones consecuencialistas en las decisiones judiciales. Isonomía, p. 156. Por outro lado, quando
o texto é claro, deve-se adotar o formalismo, ou, ao menos, não se deve adotar o pragmatismo como teoria
normativa da decisão.
316
MENDONÇA; FLEMMING. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência.
317
Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes
objetivos: I - preservar o interesse nacional; II - promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e
valorizar os recursos energéticos; III - proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta
dos produtos; IV - proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia; V - garantir o fornecimento
de derivados de petróleo em todo o território nacional, nos termos do §2º do art. 177 da Constituição Federal;
VI - incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural; VII - identificar as soluções mais adequadas
para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; VIII - utilizar fontes alternativas de energia,
mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; IX - promover
a livre concorrência; X - atrair investimentos na produção de energia; XI - ampliar a competitividade do País
no mercado internacional; XII - incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos
biocombustíveis na matriz energética nacional.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
95

Além disso, como terceiro e último passo desse modelo geral de operação,
o resultado indicado pelo “princípio” do pragmatismo deve ser universalizável. Com isso,
pretende-se evitar o casuísmo, a decisão ad hoc, a violação à impessoalidade. Ainda
raciocinando com o Direito do Petróleo, se, por hipótese, a fase de exploração do con-
trato de concessão foi estendida para uma concessionária, em virtude do argumento
prático quanto à inexistência de sondas de exploração no mercado, tal decisão, tomada
naquele caso, deve ser capaz de ser estendida a casos semelhantes. Do contrário, não
teríamos pragmatismo jurídico, mas argumentação prática “pura e dura”, juridicamente
incontrolável e constitucionalmente agressora, numa espécie de reversão do adágio
clássico: cumpram-se os desígnios do mundo, pereça a justiça.
Então, até aqui, temos o modo geral de operação do nosso “princípio”. Primeiro,
fundamenta-se a possibilidade de seu exercício numa atribuição normativa de poder à
autoridade julgadora. Depois, faz-se com que seu uso respeite todas as regras da teoria
da argumentação. Por fim, vê-se se o resultado priorizado pode ser estendido a casos
semelhantes.
Agora, as hipóteses especiais de incidência do “princípio” do pragmatismo ju-
rídico. São três: a proporcionalidade em sentido estrito, as hipóteses de autonegação da norma
e a “doutrina do absurdo”.
Quando da incidência da máxima da proporcionalidade — não vamos entrar em
discussões sobre se se trata de princípio, regra ou outra coisa318 —, o senso comum
brasileiro, tanto doutrinário quanto jurisprudencial, a partir de decisões do Tribunal
Constitucional Federal alemão, estabeleceu que existem três “testes”319 em sua inci-
dência: o da adequação, o da necessidade/exigibilidade e o da proporcionalidade em
sentido estrito.
Ora, a proporcionalidade em sentido estrito, que significa uma análise de custo-
benefício em relação à medida, incorpora raciocínio consequencialista: há de se adiantar
as consequências para que seja possível avaliar, hoje, a constitucionalidade do ato ou
norma. Há quem diga que os dois primeiros testes são, na verdade, derivações do
terceiro. “Os dois primeiros são, apenas, claras e simples aplicações do terceiro. Testes
de adequação e de ‘necessidade’ indicam casos para os quais, com efeito, nenhuma razão
legítima pode ser usada para justificar o que foi feito”.320 Se assim for, o princípio da
proporcionalidade como um todo é, essencialmente, um teste pragmatista, que serve
para analisar as consequências das medidas, legais ou administrativas, tomadas pelo
Estado.
Há outra perspectiva para se ver a relação entre a proporcionalidade e o prag-
matismo: é a dinâmica de funcionamento da máxima. A partir da ascensão da propor-
cionalidade, o controle de constitucionalidade e, de modo geral, as próprias atividades
judiciária e administrativa passaram a operar muito mais numa dinâmica de análise de
trade-offs, pesagem de custos e benefícios, do que numa busca por teorias interpretativas
ou filosofias morais. Isso significa que a proporcionalidade mudou o próprio estilo do
mister judicial e administrativo. Juízes deixaram de ser, em boa parte, teóricos, para se

318
Para isso, ver, por todos, na doutrina brasileira, ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 4. ed. Na doutrina estrangeira, PULIDO. El principio de proporcionalidad y los derechos
fundamentales.
319
Há, também aqui, debate sobre a natureza jurídica desses testes. Seriam subprincípios? Regras? Máximas
parciais? Cf. ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, especialmente nota de rodapé n. 84, p. 112.
320
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 163.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
96 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

focarem em resultados e consequências, tanto das políticas públicas quanto das próprias
decisões (entendidas, elas também, como políticas públicas). “A proporcionalidade
transforma o controle judicial de constitucionalidade, de exercício interpretativo, no
qual se dá significados às palavras do Texto Constitucional, numa pesquisa factual
bastante focada nos bons e maus efeitos de atos específicos do Estado”.321
Este é o primeiro caso especial do “princípio” do pragmatismo jurídico: sua in-
cidência como proporcionalidade estrita (ou, até, como máxima da proporcionalidade
tout court).
Segundo caso especial de nosso “princípio” é o da autonegação da norma. É quan-
do a aplicação da norma, naquele caso, significa negar a finalidade que lhe subjaz. A
norma se autoanula porque, ao ser aplicada, despromove sua finalidade. “Quando a
forma da norma entra em conflito com seu próprio conteúdo fundamental, diante das
circunstâncias do caso, permite-se que se decida com base em um argumento conse-
quencialista”. Assim, “as consequências devem ser consideradas se, no contexto do
proferimento da decisão, a norma a ser aplicada conduz a um resultado oposto àquele
que busca promover”.322
A ideia da autonegação da norma é pragmática, já que, pensando no pragmatismo
filosófico, se a verdade de uma proposição decorre da utilidade de suas consequên-
cias, então uma norma cujos resultados neguem seu propósito não ultrapassa o teste
pragmatista.323 Como exemplo, citem-se as normas concessivas de gratuidades para
ingresso em equipamentos culturais (o custo da gratuidade seria repassado ao preço
cheio do ingresso, encarecendo-o e, afinal, despromovendo a cultura — ver, sobre isso,
comentário acima),324 ou decisões judiciais que se justificam com base numa finalidade
que acabam, na prática, negando. Seria este, por exemplo, o caso da decisão do STF que
obrigou a verticalização nas eleições brasileiras. A promoção da coerência partidária e
da democracia eleitoral, tomadas como razões para decidir, teriam sido prejudicadas
pela própria decisão, na medida em que partidos menores e ideológicos haveriam de
se coligar com maiores para ter acesso ao fundo eleitoral e ao tempo de propaganda
gratuita, perdendo a chance de, em eleições proporcionais, elegerem candidatos.325
Terceiro caso especial de incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico,
talvez o mais comum na doutrina e na jurisprudência, é o da “doutrina do absurdo”
(absurdity doctrine), denominação americana que remete à parêmia segundo a qual “a
interpretação da lei não pode levar a absurdos”.326 Normas jurídicas não podem ser
interpretadas de modo que levem a resultados absurdos, mesmo quando o texto su-

321
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 182-183.
322
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito conceptual, normativo
e interpretativo del derecho, f. 220.
323
“Para o pragmatismo, afinal, uma vez que todas as proposições contêm intrínseca e necessariamente
uma referência ao futuro, sua verdade ou falsidade depende do sucesso ou da derrota de sua finalidade”
(POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 47).
324
A Lei Federal nº 12.993, de 26 de dezembro de 2013, estabeleceu que a meia-entrada está limitada a quarenta
por cento do total dos ingressos. Resta saber se os valores da meia-entrada e da entrada inteira, após a lei, serão
reajustados até que, por exemplo, o valor da nova meia-entrada corresponda ao valor da antiga entrada inteira,
e a entrada inteira seja duplicada. Nesse cenário, haveria uma despromoção da cultura, pois o cenário antes da
meia-entrada possuía valores totais menores do que aqueles posteriores a ela.
325
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica
consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
326
GOLD. Absurdity Doctrine, Scrivener’s error and Statutory Interpretation. Unniversity of Cincinnati Law Review.
Nas nossas doutrina e prática jurisprudencial, o uso de tal argumento é difundido. Carlos Maximiliano já
dizia: “O Direito deve ser interpretado inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo,
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
97

perficialmente determine tal exegese.327 É incidência especial do pragmatismo porque


significa que o intérprete deve adiantar as consequências práticas da norma ou do ato
para, diante do absurdo, negar-lhe vigência in concreto.328
Exemplo prosaico: quando o patrão pede para que a empregada largue tudo e
venha correndo, certamente não pretende que largue o bebê que ela, naquele momento,
salvava de um afogamento.329 Em certo sentido, a “doutrina do absurdo” é o caso geral
de que a autonegação da norma é o caso especial, porque uma norma se autocontrariar
na prática não deixa de ser um resultado absurdo.
Observação a respeito dos dois últimos casos especiais de incidência de nosso
“princípio”: é necessária contenção em seu uso, seja por razões democráticas (o julga-
dor deve respeito à existência e à presunção de constitucionalidade da norma), seja
por questões institucionais (se estivermos falando do Judiciário, este talvez não seja o
poder tecnicamente mais apto a efetuar juízos consequencialistas [embora eles sejam
inevitáveis]).
Negar in concreto a finalidade que subjaz à norma ou conduzir a resultados ab-
surdos são conceitos-limite, não argumentos do dia a dia.330 O que se quer evitar é a
trivialização interesseira do pragmatismo jurídico, até o ponto em que todos os temores
que o cercam venham a se justificar. De argumento juridicamente possível, ele poderia
se transformar no mais novo coelho a ser retirado do chapéu de juízes e administradores
autocráticos e de seus contrapartes, os advogados espertos.
Dito isso, já podemos tratar, afinal, dos standards de incidência de nosso “princí-
pio” do pragmatismo jurídico, que operam de modo conjunto e não excludente. A eles.
(i) Ele incide no final, como teste de descarte (ou de reforço) de possibilidades interpre-
tativas. Nosso “princípio” do pragmatismo jurídico incide como último passo do iter
interpretativo, descartando ou reforçando propostas interpretativas já construídas a
partir dos elementos tradicionais (linguístico, sistemático, histórico, teleológico), e isso
se chegar a ser necessário. Em nossa proposta, o pragmatismo não é capaz, por si só, de fixar
uma interpretação jurídica.331 Isso está de acordo com uma espécie de compreensão mais

prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e


aplicação do direito. 19. ed., p. 136).
327
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 108.
328
BUSTAMANTE. On the Argumentum ad Absurdum in Statutory Interpretation: its uses and Normative
Significance. In: FETERIS; DAHLMAN (Ed.). Legal Argumentation Theory: Cross-disciplinary Perspectives.
Springer, 2012.
329
FULLER. O caso dos exploradores de cavernas, p. 12.
330
Embora argumentos teóricos de exceção, como a ponderação de princípios ou de regras, ou sentidos
contraintuitivos de normas legais descobertos a partir de interpretações teleológicas ou sistemáticas, apareçam
de modo estranhamente comum em muitas obras jurídicas e em pareceres. Neste último caso, como as opiniões
jurídicas em relação a casos concretos não são, em princípio, vinculantes, fica mais fácil abusar do discurso e
operar como a coisa julgada: fazendo do quadrado, redondo, e do preto, branco. A esse respeito, anotamos o
seguinte: “A ideia de que um parecer é uma ‘mera opinião’, embora verdadeira na essência, tem sido usada,
muitas vezes, como escudo retórico com base no qual se pretende imunizar todo e qualquer arremedo de
interpretação jurídica, inclusive e especialmente as que buscam transformar uma ilegalidade candente num
‘caso difícil’ e, a partir daí, numa hipótese em que é aceitável ‘mais uma opinião’, afinal, ‘o Direito é uma
moldura’. Não é assim, pois mesmo Kelsen e Hart defendiam limites para isso. O argumento dos casos difíceis é
aplicável, quando muito, a um percentual ínfimo de hipóteses. As causas em que se precisa realmente ponderar
alguma coisa são estatisticamente irrisórias” (MENDONÇA. A responsabilidade pessoal do parecerista público
em quatro standards. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro).
331
Nesse sentido, ainda, Mengoni, citando antiga parêmia segundo a qual adducere inconveniens non est resolvere
argumentum — “aduzir inconvenientes não é resolver o argumento” (MENGONI. Ermeneutica e dogmática
giuridica: saggi, p. 94).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
98 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

consensual do pragmatismo jurídico. É o que propõem, entre outros, Aulius Aarnio e


Humberto Ávila.332
No entanto, citando decisão do STF na ADI nº 1.946/DF, em que, discutindo-se
o limite da contrapartida pública ao pagamento do salário da gestante licenciada (se
estaria limitada ao teto dos benefícios da Previdência Pública ou não), o Supremo
teria decidido com base primeiramente no argumento de que a limitação nesse valor
funcionaria como desestímulo à contratação de mulheres pela iniciativa privada, Diego
Arguelhes acredita ser possível entender a prioridade do argumento consequencialista
de modo diferente do usual.333 Segundo ele, considerando a incorporação ao discurso
jurídico contemporâneo dos princípios jurídicos, que apontam para estados de coisas, as
consequências poderiam vir a ser aceitas como “institucionais” (promover condutas que
gerem estados de coisas é, afinal, pensá-las a partir de suas consequências).334 Em termos
menos técnicos, o peso do argumento consequencialista seria igual ao dos demais: ele
não ficaria relegado a papel secundário.
Em um mundo abstrato, até concordaríamos com Diego Arguelhes. Não só os
argumentos consequencialistas, e o próprio pragmatismo jurídico (pelo menos em ver-
sões moderadas), são compatíveis com o Estado de Direito, como também não merecem
ser colocados em segundo plano, chamados de “políticos”, “não institucionais”, ou
seja lá qual denominação se invente para dizer que são argumentos de segunda mão.
Justificamos, contudo, nossa posição por questão de persuasividade de nosso
“princípio”: colocá-lo como argumento de reforço ou descarte faz parte de estratégia
de persuasão que respeita a autopercepção dos julgadores como “aplicadores da lei”.
Além disso, afirmá-lo como argumento principal traria uma série de problemas rela-
cionados a seu abuso. Ele se torna mais aceitável e mais controlável quando funciona
como argumento de reforço ou de descarte. É isso o que, de modo geral, os juízes já
pensam a seu respeito. É, mais uma vez, a utilidade da redundância.
(ii) Ele incide dentro da extensão de significados possíveis permitidos pelo texto normativo.
Exceto quando a norma se autoanula finalisticamente ou quando gera absurdos (ver
acima), a incidência do nosso princípio se faz dentro das possibilidades permitidas pelo
texto da Constituição e da lei. Com razão está Mengoni: “O argumento consequencialista
não pode ser incompatível com a estrutura linguística do texto”.335

332
ÁVILA. Argumentação jurídica e imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário. É particularmente
instrutivo o trecho a seguir: “Os argumentos transcendentes ao ordenamento jurídico passam a ser relevantes
na interpretação no momento em que a linguagem e o sistema já não proporcionam uma justificação para
a interpretação. Se o intérprete consegue construir um significado de acordo com argumentos linguísticos e
sistemáticos, não há razão suficiente para o recurso a outros argumentos. Não é noutro sentido que a doutrina
constrói as etapas na argumentação jurídica: só se recorre à próxima etapa se a anterior for insuficiente para a
justificação da interpretação”.
333
ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p. 9 et
seq.
334
“Assim, não há qualquer incompatibilidade entre a ideia de obediência como promoção e o caráter ‘deontológico’
da aplicação de normas jurídicas, que a tradição do pensamento jurídico vê como uma exigência do ideal
de Estado de Direito. Ao contrário, muitas vezes o órgão judicante dependerá de uma análise das possíveis
consequências de cada curso decisório para identificar o que a aplicação do Direito exige no caso [...]. Além
disso, em casos de interdependência entre os estados de coisas deonticamente caracterizados por normas distintas,
os argumentos consequencialistas podem funcionar como argumentos sistemáticos (“contextuais”, nos termos
de Ávila), pois tratam da combinação teleológica entre outros princípios e a norma objeto de interpretação”
(ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma compatibilização, p.
15, 17, grifos no original).
335
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103. Nossa proposta de “princípio” do pragmatismo
jurídico é compatível com a maioria das versões de positivismo jurídico e, de fato, em muitas delas, pode vir
associado às clássicas “interpretação sistemática” e “interpretação teleológica”.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
99

Não estamos, no entanto, advogando nenhuma fórmula de apego semântico.


Há suficiente espaço para a criatividade interpretativa, desde que as soluções estejam
baseadas na lei e no Direito. Uma coisa é o princípio da juricidade, que existe e vem,
cada dia mais, ganhando projeção como sinônimo de legalidade não formalista,336 e que
pode fundar uma proposta consequencialista de interpretação; outra é, a pretexto de ser
pragmatista, ignorar a Constituição e fazer pouco caso de toda espécie de argumento
institucional — a começar pelo desamor a seu texto.
(iii) Ele considera apenas consequências que possam ser reconduzidas à Constituição.
Com isso, queremos dizer que as consequências devem ser integralmente compatíveis
com a Constituição.337 Aqui, portanto, rejeitamos a ideia de Posner. Seu pragmatismo
jurídico não é adaptativo ao nosso Direito. Nossa proposta não é compatível com qual-
quer espécie de argumentação ordinária contra legem.338
O propositor de uma incidência de nosso “princípio” deverá ser, portanto, capaz
de operar com consequências que se reconduzam às normas da Constituição, isto é, que
sejam por elas solicitadas, ou, ao menos, com elas não incompatíveis. Há uma sutileza
em relação ao standard anterior: uma solução pode estar dentro do sentido textual pos-
sível da Constituição, mas lhe ser materialmente incompatível.
(iv) Ele considera as consequências certas e prováveis, mas não as apenas plausíveis. O
juízo pragmatista é juízo que olha para o futuro. Em muitos casos, não tem como estar
absolutamente certo do que prevê. Até por isso, a argumentação deve ser feita com base
em consequências certas e naquelas em que há razoável expectativa de que ocorram,
porém nunca se refere àquelas cuja ocorrência é, tão somente, plausível.
Rejeitamos, então, a proposta de MacCormick de “consequências como implica-
ções lógicas”. O que tal espécie de consequência possui em certeza perde em utilidade.339
Quem vai averiguar esse grau de certeza? A autoridade que operar o argumento;
o advogado que suscitá-lo. Por isso, faz-se mister cercar-se de cuidados. A afirmação
de Mengoni — de que será necessário um cálculo de probabilidade tirado de regras
comuns de experiência ou de indicadores/modelos estatísticos, econômicos ou socio-
lógicos confiáveis — é vaga, porém é o máximo a que se pode chegar.
O juízo de certeza é o mais simples. Entre plausibilidade e probabilidade há dife-
rença de grau. A consequência plausível é, tão somente, uma conjectura razoável; a
consequência provável é aquela para a qual concorrem os dados estatísticos, as regras
da experiência etc.
Alegações de prejuízo econômico são, em condições normais, consequências
apenas plausíveis — trata-se de infortúnio na vida de qualquer empresa —, mas, a
julgar pelo contexto e pelas provas (ver standard à frente), pode se tornar provável ou

336
Assim, por exemplo, o STF usou o princípio da juridicidade, de modo expresso, como fundamento para a
edição da Súmula Vinculante nº 13 (vedação ao nepotismo).
337
“Uma abordagem orientada para resultados em relação à interpretação constitucional é consistente com uma
ideia de fidelidade à Constituição se, e apenas se, a Constituição é a fonte dos resultados que o intérprete
pretende fazer valer” (BARBER; FLEMING. Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186).
338
Por argumentação contra legem, entendemos, citando Thomas da Rosa Bustamante, “a forma de argumentar
contrária aos significados mínimos que possui um ou mais texto jurídico cuja validade se mantém fora de
dúvida”. V. BUSTAMENTE. Argumentação contra legem: a teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos
mais difíceis, p. 182).
339
Dentro de nossa proposta incluem-se tanto as consequências extrajurídicas quanto as consequências
propriamente jurídicas (consolidação ou superação de precedentes, criação de divergência de linha interpretativa
etc.). É claro que há um processo complexo de inter-relação entre elas: v. g., a reação a uma decisão impulsiona
novas decisões contra ou naquele sentido.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
100 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

certa. É preciso cuidado com tal consequência, porque se trata da alegação preferencial
das sociedades empresárias afetadas pela atuação do Estado. Se todas fossem tratadas
como verdadeiras, a atuação do Poder Público na seara econômica seria quase sempre
antipragmática e, portanto, tendencialmente antijurídica. E o cuidado é ainda maior
porque a economia é dinâmica e, muitas vezes, sabe se reequacionar a partir de novo
equilíbrio, que incorpore o novo dado (a lei ou o programa público). Mal comparando,
estar-se-ia profetizando sobre o futuro de um mundo que nunca haveria de existir.
Alguns exemplos tornarão mais claro o que estamos dizendo.
Exemplo simples: a ocorrência de descoberta num bloco petrolífero é plausível;
não é provável nem certa. Se já houve pesquisa suficiente, a descoberta pode se tornar
provável e, em alguns casos, certa.
Exemplo nem tão simples: quando o Ministro Marco Aurélio, em seu voto no
caso do desconto para idosos nas farmácias do Estado do Rio (ADI nº 2.435, ver supra),
afirma que, ou as empresas arcarão com os prejuízos, ou os irão repassar aos preços —
o que causará prejuízo a todos —, é necessário “desempacotar” seu raciocínio em
quatro consequências, a saber: a) as empresas arcarão com o prejuízo, b) este prejuízo
é tal que significará violação à livre iniciativa, c) as empresas repassarão o desconto
dos idosos aos preços de todos os remédios, d) este aumento no preço dos remédios
causará prejuízo a todos.
Dessas consequências, a primeira aparenta ser, de imediato, plausível, embora
improvável. Contudo, uma análise crítica dos dados que acompanharam a causa pode
alterar isso. Segundo informações da Assembleia Legislativa do Estado do Rio, o público-­
alvo da lei corresponderia a, apenas, nove por cento da população do Estado.340 Será
que, definitivamente, as empresas não vão arcar com o prejuízo?
A segunda consequência — “o prejuízo violará a livre iniciativa” — é, também
de imediato, provável, considerando-se verdadeira a consequência anterior. Contudo,
será mesmo? Se o público-alvo for tão limitado assim,341 as farmácias podem resolver
absorver o prejuízo e isso nada significar em termos de violação à livre iniciativa.
A terceira consequência, a repercussão econômica do desconto em todos os me-
dicamentos, é, sem dúvida, a mais provável. Ou não? Todas as farmácias aumentariam
seus preços? Não há concorrência entre elas? Algumas aumentariam? Poucas? Quase
nenhuma? Podemos afirmá-lo com base em quê?
A última consequência — o aumento nos preços causará prejuízo aos compra-
dores em geral, indo contra um dos propósitos da lei (tornar o acesso aos fármacos
mais fácil, e não mais difícil) —, numa visão superficial, soa provável, porém, indo
mais a fundo, talvez não seja bem assim. Quem garante que, mesmo havendo repasse
nos preços, considerando a abrangência da lei (apenas nove por cento dos idosos) e
a própria diluição por todos os compradores e por todos os itens, o aumento ainda
assim será economicamente significativo? O aumento pode resultar em alguns poucos

340
Cf. trecho do voto da Ministra Relatora Ellen Gracie: “Quanto aos empresários, caso indeferida a liminar mas
no mérito julgada procedente a ação, terão condições de se ressarcir, pelas regras de mercado, dos prejuízos
que porventura julgarem haver sofrido, levando-se em conta, também, a informação prestada pela Assembleia
Legislativa (fl. 81-100) de que o público alvo da lei questionada corresponde a apenas 9% da população do
Estado do Rio de Janeiro” (ADI nº 2.435, fl. 222-223).
341
Embora também aqui exista um fator complicador. Pode ser que os idosos, por poucos que sejam no Estado
do Rio, correspondam majoritariamente ao público consumidor de remédios, afirmação plausível, para dizer
o mínimo, o que pode significar que o desconto imposto pela lei abranja, digamos, sessenta por cento das
vendas. Não importaria o percentual de idosos no Estado do Rio, mas o percentual de idosos que, no Estado,
consumissem remédios, e o quanto isso significaria em relação às vendas totais das farmácias.
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
101

centavos, o que está longe de comprometer qualquer finalidade genérica de acesso aos
medicamentos.
Enfim: o juízo de probabilidade das consequências é o ponto-chave do pragma-
tismo jurídico. É o diferencial entre a argumentação controlada e a retórica ruim.
(v) Ele considera consequências imediatas e futuras, mas não as remotamente futuras.
Há que se encontrar limite lógico-temporal razoável para as consequências a serem
apreciadas. Em tese, as consequências de uma única ação são infinitas. Como escreve
Chaïm Perelman, “nunca seria possível reunir o conjunto das consequências de que
depende a aplicação do argumento pragmático se cada consequência devesse, por sua
vez, ser apreciada consoante suas próprias conseqüências, pois a sequência destas seria
infinita”.342
O “princípio” do pragmatismo jurídico incide a partir de projeção de conse-
quências imediatas e de curto e médio prazo. Se estivermos falando, como costuma
acontecer, de consequências econômicas, projeções baseadas em expectativas superiores
a, digamos, dois anos não se prestam à análise.343
Tal standard vale também para limitar o número de eventos-causa das consequên­
cias: a incidência se dá em relação a um deles, ou, quando muito, a um grupo deles,
mas desde que vinculados por uma mesma situação fática de base.
(vi) Ele considera apenas consequências fáticas com razoável base empírica. Esse é o
standard que trata a questão da prova das alegações de fato em que se baseiam as con-
sequências com as quais se vai construir a incidência do “princípio”. Não deixa de ser,
sob outra perspectiva, a questão da probabilidade da ocorrência das consequências.
Se nosso “princípio” do pragmatismo jurídico se basear em qualquer alegação,
será, apenas, mais um artifício da má retórica. Tudo que se alega deve ser provado, se
não de modo cabal (as consequências prováveis não podem ser assim comprovadas),
ao menos de forma indiciária. Ainda mais, tal standard requer que se analise critica-
mente os dados empíricos trazidos como prova. A alegação deve ser apreciada em seu
conteúdo — se é consistente ou não —, e, ainda, com base na confiabilidade técnica da
fonte originadora. Uma situação é a empresa trazer relatório que ela própria elaborou;
outra é uma entidade internacional produzir nota técnica que não necessariamente foi
pensada para servir de prova num processo.
(vii) Ele desconsidera consequências fundacionais. Esse standard é tributário do
pragmatismo filosófico, debilitando a tese de que os pragmatismos têm pouca coisa em
comum. Há nele, ainda, certa proximidade com um dos conteúdos da razão pública,
tema do próximo capítulo.
As consequências a serem construídas e, então, ponderadas, devem ser conse-
quências que não se baseiem em crenças fundacionais, isto é, advindas de profissões
de fé insubmissas a críticas. Para o pragmatismo, tudo pode ser analisado e criticado;
nada é sagrado.
No Direito Constitucional Econômico, há duas espécies de fundacionalismos co-
muns. A hiperconstitucionalização da livre iniciativa e sua irmã gêmea, a hiperconstitu-
cionalização de objetivos constitucionais de índole social. Essas “verdades” fundadoras
costumam perpassar uma série de propostas interpretativas na área, mas devem, sob
bases pragmatistas, ser rechaçadas. Elas reificam interpretações maximalistas (em ter-
mos de abrangência e de conteúdo) do princípio da livre iniciativa ou dos dispositivos

342
PERELMAN. Retóricas, p. 17.
343
Esse dado é, como se deve imaginar, especulativo. O elemento temporal varia caso a caso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
102 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

constitucionais de sabor social como as únicas possíveis e, a partir daí, declararam


inconstitucional tudo o que esteja em contrariedade com tais “superprincípios”.
Tais linhas de interpretação ideologicamente carregadas são antipragmatistas
porque fundacionais, e, se se pretende fazer incidir tal “princípio” na prática jurídica,
não devem ser incluídas na ponderação de consequências. Sobre isso devotaremos
capítulo específico (o próximo).
(viii) Ele prioriza consequências contextuais. O pragmatismo filosófico é contex-
tualista e, uma vez mais contra Posner, nosso “princípio” do pragmatismo jurídico
também o será. Priorizar consequências contextuais quer dizer que as consequências
a serem adiantadas e analisadas serão consequências necessariamente relacionadas
ao contexto de sua aplicação. Não se deve raciocinar com base em dados externos
ou alheios às circunstâncias da discussão. Assim, por exemplo, em decisão judicial
tratando de Direito das Telecomunicações, certo magistrado preferiu invalidar, para
aquele caso, a abrangência do termo “localidade”, tal como detalhado em portaria da
ANATEL elaborada após estudos técnicos, afirmando que o sentido de “localidade”
era o que constava no Dicionário Aurélio. Essa não é decisão pragmaticamente respon-
sável, porquanto não é contextual: o sentido de “localidade”, no debate sobre Direito
das Telecomunicações, deve ser buscado no contexto da regulação jurídica do tema,
não em um dicionário comum.
Em síntese, nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, que funciona como guia
na interpretação, ou como auxílio dentro de uma teoria normativa da decisão, na con-
dição de argumento de reforço/descarte, opera primeiramente a partir de uma identi-
ficação formal dos “poderes pragmatistas” que se quer atribuir à autoridade julgadora.
Seu desenvolvimento deve seguir as regras formais e materiais da teoria da
argumentação, e o resultado tido por pragmaticamente correto só o será quando uni-
versalizável a situações semelhantes.
Ressalvando casos especiais de incidência — a proporcionalidade em sentido
estrito, a autonegação finalística da norma e a “doutrina do absurdo” —, seus standards
de aplicação determinam que funcione dentro das possibilidades textuais e materiais
de compatibilidade com a Constituição, e que, a partir daí, priorize consequências não
muito distantes no tempo, certas ou prováveis de ocorrerem, tal como comprovadas
por suficiente base empírica “acreditável”.
Na análise das consequências, nosso “princípio” solicita, ainda, o descarte de
visões fundacionalistas ou não contextuais, pois todas elas são, na essência, a negação
do pragmatismo.
Numa tabela, a incidência do “princípio” pode ser assim sintetizada:
CAPÍTULO 1
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
103

Modelo Cauteloso de Pragmatismo Jurídico (ou: tipo fraco de consequencialismo)

Qual a fonte dos • (ex. não


poderes pragmáticos contradição, clareza,
do julgador? • Circunstancial (ex. art 5º, LIND; consistência interna e
Modelo geral art. 37, caput, CRFB) externa, etc.)
• Referência direta
de operação (ex. art. 6º da Lei nº Respeita as regras da teoria da O resultado até
9.099/95; art. 2º, par. argumentação jurídica? aqui indicado é
único, I, da Lei nº universalizável para
9.784/99) casos análogos?

Considera apenas
consequências:
(iii) materialmente
(i) incide ao
(ii) incide reconduzíveis
final: serve
dentro da à Constituição (vii) descon- (viii) prio-
como teste
extensão dos Federal; (iv) certas sidera con- riza conse-
Standards de descarte
significados e prováveis; (v) sequências quências
ou reforço de
possíveis do imediatas e futuras; fundacionais contextuais
possibilidades
texto e (vi) fáticas,
argumentativas
com razoável
base empírica de
verificação

Casos Proporcionalidade em Doutrina do absurdo:


Autonegação da norma:
especiais sentido estrito:
• (ao incidir, a norma
(exigem • ao incidir, a norma anula suas
• é um teste leva a absurdos
autocontenção) finalidades
pragmatista práticos)

1.7 Conclusão parcial: o pragmatismo constitucionalmente adequado,


ou: por um consequencialismo não inconsequente
Ao anunciá-lo como incrível revolução, alguns dos defensores do pragmatismo
jurídico são seus piores inimigos. Nosso pragmatismo é menos — é instrumento que,
de forma inconsciente, muitos julgadores já utilizam — e é mais — permite saídas para
encruzilhadas colocadas pelo formalismo, mas dentro das amarras psicológicas e insti-
tucionais próprias ao Direito. Nos casos em que os precedentes e as normas legais são
claros, um juiz pragmatista vai atuar de modo idêntico a um não pragmatista. E isso
responde pela absoluta maioria das hipóteses.
Nosso pragmatismo jurídico não é, assim, nada tão extremo. É, tão somente, uma
forma de dizer ao julgador: nos casos em que você terá que exercer sua discricionarie-
dade, faça-o com olhos nas consequências de sua decisão.
Avançando um pouco mais na proposta, esse “olhar as consequências” insere-se
dentro das constrições da teoria da argumentação e busca operar consequências contex-
tuais, não fundacionais, próximas, prováveis e provadas. Unindo, com moderação, teoria —
inclusive o pragmatismo filosófico — e prática, eis aí o primeiro dos dois “princípios”
com que vamos revisitar o Direito Constitucional Econômico.
CAPÍTULO 2

RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO


PARA A INTERPRETAÇÃO
DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA

EM BUSCA DA RECIPROCIDADE E DO RESPEITO

Os anos 90 operaram uma transformação macabra.


Regras e afirmações socioeconômicas antes reconheci-
damente ideológicas assumiram as vestes de verdade
científica. Um novo determinismo social instalou-­
se, mais penetrante e assustador que os anteriores.
(SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito societário.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 15)

2.1 Introdução: a aproximação entre o Direito Econômico e a Filosofia


Política
Este capítulo se destina a apresentar o debate contemporâneo a respeito do
conceito de razão pública. A sede do assunto é a seara da Filosofia Moral e da Filosofia
Política. Por que, então, o tema poderia interessar a uma investigação de assuntos
dogmáticos de Direito Econômico?
A explicação é simples: a dogmática de Direito Público, que, em tempos pas-
sados, flertava com a História, hoje se encontra influenciada pelas Filosofias Moral e
Política.344 Se já tivemos capítulo forte em Filosofia Moral e em teoria da argumenta-
ção, nada mais natural do que capítulo flertando com a Filosofia Política. A chamada
“virada kantiana” — a reaproximação entre Direito e proposições morais, por força da

344
E atualmente há, inclusive, uma busca cada dia mais crescente pela aproximação com a Ciência Política e com
a Economia Comportamental (sobre este ponto, v. capítulo 4 da segunda parte deste livro). Sobre os aspectos
gerais dessas aproximações, v. MENDONÇA. A verdadeira mudança de paradigmas do Direito Administrativo:
do estilo tradicional ao novo estilo. Revista de Direito Administrativo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
106 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

teoria dos princípios e da teoria da argumentação — impôs que operadores do Direito


passassem a lidar com conceitos filosóficos (ou, pelo menos, com a leitura que juristas
fazem de conceitos filosóficos). No Direito Constitucional Econômico, a proximidade
interdisciplinar clássica sempre foi com a Economia. No Direito da Concorrência, há até
dispositivos legais que remetem diretamente a conceitos econômicos, como “mercado
relevante” e “posição dominante”.345
Nos últimos tempos, no entanto, apenas a Economia não basta ao Direito
Econômico: como integrante do Direito Público, também ele há de se influenciar pelos
novos ares. Como discussões sobre dignidade da pessoa humana e solidariedade so-
cial, embora úteis ao Direito Econômico, estão mais voltadas ao Direito Constitucional
propriamente dito,346 é no debate sobre a razão pública que pode ocorrer uma das mais
proveitosas interseções entre Filosofia Política e Direito Constitucional Econômico.
De fato: identificar proposições dogmáticas imparciais num ramo do Direito em
que, muitas vezes, interesses de toda espécie — econômicos, políticos, ideológicos — são
intensos e tentam produzir consequências impactantes é tarefa difícil, mas necessária.
Mais do que identificar razões não públicas, cuja definição já vai ser dada, mas que
aqui se usa pelo seu valor-face, o esforço é o de fazer com que a dogmática de Direito
Constitucional Econômico incorpore o pluralismo e a democracia, no afã de que suas
lições sejam aceitáveis por todos.
A questão é esta: buscar a ciência jurídica possível, demarcando à ideologia im-
portante papel na política infraconstitucional, no debate político ordinário, nos corações
e mentes — mas jamais gozando de um privilégio de cátedra, de um privilégio de ciência
ou de um privilégio de Constituição.
O capítulo inicia apresentando assunto conexo ao da razão pública — o da de-
mocracia deliberativa, contexto no qual se afirma, com máxima força, o uso público da
razão. Em seguida, discute-se o conceito propriamente dito, em suas origens, inserção
teórica e conteúdo. Logo depois, abrimos item para apresentar nossa proposta de critério
interpretativo, baseado na razão pública e, dogmaticamente, na Constituição de 1988,
como critério hábil para guiar a construção de proposições doutrinárias a respeito da
Constituição Econômica. O quinto item traça sumário das principais críticas lançadas
à ideia de razão pública, assim como apresenta respostas a elas. Claro que a razão pú-
blica possui limites, mencionados ainda nesse item cinco. O último ponto do capítulo
é uma conclusão parcial.

2.2 Democracia, democracias: o ideal da democracia deliberativa


O tema da democracia se insere num debate complexo travado há séculos por
filósofos políticos, cientistas sociais, juristas, políticos, entidades da sociedade civil. Não
é nossa intenção resenhá-lo. Interessa-nos apenas a noção de democracia deliberativa, uma
vez que se trata de conceito associado ao de razão pública.
É dentro de uma democracia deliberativa que se exercita com mais proprieda-
de o uso público da razão, ou seja, é a partir da adoção de uma forma de democracia

345
V. Lei nº 12.529/2011.
346
Sobre o tema da dignidade da pessoa humana, v,, por todos, SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana:
conteúdo, trajetórias e metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
107

deliberativa que cidadãos e autoridades serão chamados a exercitarem, em certas oca-


siões, o uso de razões públicas.347
Não há, contudo, associação necessária entre os conceitos de democracia delibe-
rativa e de razão pública. Muito embora a democracia deliberativa seja o espaço pró-
prio do florescimento da razão pública, democracias que não possam ser inteiramente
caracterizadas como deliberativas, desde que pluralistas, podem e devem fazer uso de
razões públicas no debate público.348 É por isso que se vai propor o uso da razão pública,
como “princípio” de interpretação do Direito Constitucional Econômico, sem que se
exija que a democracia brasileira seja inteiramente deliberativa.
O propósito deste subcapítulo é o de detalhar a ambiência teórica na qual emerge
o ideal da razão pública como forma de entendê-la melhor.

2.2.1 Origem do termo “democracia deliberativa” e características do


conceito em Joshua Cohen
Quando falarmos em “democracia deliberativa”, não tratamos de conceito unís-
sono, sobre o qual haja absoluto acordo quanto a seu conteúdo.349 Tratamos de noção
que, desde a origem, foi trabalhada por diversos autores com backgrounds distintos.350
Em rigor, não há um conceito fechado de democracia deliberativa, mas um espectro
teórico no qual se move uma noção fuzzy de democracia deliberativa.351 Mais à frente
pretendemos formular uma espécie de denominador comum da noção, que prova-
velmente não é defendido de modo expresso por nenhum autor, mas talvez possa ser
subscrito sem ressalvas substanciais por todos eles.
O termo “democracia deliberativa” foi popularizado, na acepção de hoje,
por Joshua Cohen, ex-aluno de John Rawls, num artigo seminal de 1986 chamado
“Deliberation and democratic legitimacy”.352 Cohen afirma que encontrou o termo num

347
“A democracia deliberativa é um ideal complexo com uma grande variedade de formulações, mas, seja qual
forma adote, ela irá se referir ao ideal da razão pública, à exigência de que decisões públicas legítimas sejam
aquelas ‘que todos possam aceitar’ ou, ao menos, ‘não possam razoavelmente rejeitar’” (BOHMAN. The Coming
of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy, p. 401-402).
348
Ou seja: o conceito de democracia deliberativa inclui, necessariamente, o apelo ao uso de razões públicas,
mas estas podem ser utilizadas em democracias não deliberativas, até como saudáveis espaços de deliberação
pública nela incrustados.
349
Há diversas tensões internas ao próprio grupo de autores defensores da democracia deliberativa. Numa
lista não exaustiva, temos alguns pontos de conflito nos seguintes assuntos: (i) tensões entre uma visão de
democracia deliberativa mais como ideal procedimental — quer dizer, que não se pronuncie a respeito de
questões de conteúdo, mas que, respeitadas certas condições, permita democraticamente que se chegue
a qualquer resultado — e a necessidade da existência de parâmetros independentes de racionalidade e de
julgamento, circunstância que remete a visões substantivas de democracia deliberativa; (ii) tensões entre
propostas de democracia deliberativa mais próximas à liberdade ou à equidade; (iii) tensões entre a necessidade
de se observar o pluralismo e exigências de tratamento imparcial dos cidadãos; (iv) tensões entre o ideal do
pluralismo e suas reais condições de existência nas sociedades contemporâneas. Cf. BOHMAN; REHG (Ed.).
Deliberative Democracy: Essays on Reason and Politics, p. xxviii.
350
O que não é de se estranhar, dada a proficuidade do debate a respeito do tema. Segundo Amy Gutman e Dennis
Thompson, nenhum assunto nos últimos vinte anos foi mais discutido, na teoria política, do que a democracia
deliberativa. V. GUTMAN; THOMPSON, Dennis. Why Deliberative Democracy?, p. vii.
351
Para as diversas matizes das teorias da democracia deliberativa, ver, por exemplo, BOHMAN. The Coming
of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy; FREEMAN. Deliberative Democracy: a
Sympathetic Comment. Philosophy and Public Affairs; CHAMBERS. Deliberative Democracy Theory. Annual
Review of Political Science.
352
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 16-37.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
108 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

artigo de Cass Sunstein (“Interest Groups in American Public Law”),353 o qual, por sua
vez, citava Joseph Bessette, cujo texto Cohen não havia lido.354
Etimologias à parte, fato é que o conceito permanece influente. Fala-se, mesmo,
numa “virada deliberativa” na teoria da democracia a partir dos anos noventa.355 Uma
democracia deliberativa seria, grosso modo, uma associação cujos negócios são gover-
nados por intermédio da deliberação pública356 de seus membros.
Cohen, no artigo, elabora duas propostas de conteúdo para a democracia delibe-
rativa. Num primeiro momento, apresenta sua concepção formal de democracia deliberativa,
e, a partir dela, propõe o que chama de processo deliberativo ideal, sugestão de modelo
para a constituição de instituições deliberativas. Como veremos ao longo do capítulo,
algumas das características da “concepção formal” de democracia deliberativa e do
“processo deliberativo ideal” aparecerão na definição de razão pública, o que mostra
o quão próximas algumas concepções teóricas estão umas das outras.
A concepção formal de democracia deliberativa possui cinco características: (i) é as-
sociação independente cujos membros esperam que exista por tempo indefinido; (ii)
seus membros compartilham o compromisso de coordenar suas atividades dentro de
instituições que tornem a deliberação possível e de acordo com normas às quais cheguem
como resultado da própria deliberação; (iii) é associação pluralista de membros com
preferências, opiniões e ideais diversos a respeito de como devem conduzir suas vidas
e que, ao compartilharem o compromisso de resolver os problemas de escolha coletiva
por intermédio da deliberação, não acreditam que um grupo específico de preferências
seja absoluta e necessariamente obrigatório; (iv) seus membros veem os procedimentos
deliberativos como fonte de legitimidade e, por isso, preferem instituições nas quais as
conexões entre a deliberação e resultados são evidentes, em detrimento de instituições
nas quais tais conexões são menos claras; (v) todos os membros reconhecem-se possui-
dores de capacidades deliberativas, isto é, aptidão para ingressar numa troca pública
de razões e para agir com base em seus resultados.357
Em outras palavras, uma democracia deliberativa é uma associação permanente
de membros que se reconhecem como mutuamente capazes de argumentar e decidir
os rumos coletivos a partir de uma troca de razões, e que escolhem agir por meio de
deliberações públicas, tomadas dentro de instituições que expressem claramente seu
caráter deliberativo, reservando espaço às preferências pessoais.
Joshua Coehn ainda apresenta o processo deliberativo ideal, modelo a ser seguido
por instituições que se queiram deliberativas. Tal processo possui quatro características.

353
SUNSTEIN. Interest groups in American Public Law. Stanford Law Review.
354
Tratava-se do texto “Deliberative Democracy: the Majority Principle in Republican Government”, publicado na
obra organizada de Robert A. Goldwin e William A Schambra (How democratic is the Constitution?). O autor do
termo é, portanto, Joseph Bessette, que, posteriormente, viria a trabalhar novamente com o conceito, de modo
mais elaborado, no livro The Mild Voice of Reason – Deliberative Democracy and American National Government
(Chicago: Chicago University Press, 1997).
355
DRYZEK. Deliberative Democracy and Beyond: Liberals, Critics, Contestations, p. 1-7. “The Deliberative Turn in
Democratic Theory”.
356
“Deliberação” é termo que se refere a processo discursivo específico: um que, de modo sério, imparcial e
ponderado, sopesa razões a favor e contra determinado curso de ação. Pode ser aplicado à análise interior
feita pelo sujeito antes de agir (“eu deliberei e resolvi agir da seguinte forma”). Em contraste, uma “discussão”
não precisa ser cuidadosa ou rigorosamente argumentada (tanto que não se diz “eu discuti o assunto comigo
mesmo”). “Deliberação” é uma espécie qualificada de discussão; “deliberação pública” é a deliberação que se
faz junto aos outros, e não apenas para si mesmo. V. FEARON. Deliberation as discussion. In: ELSTER (Ed.).
Deliberative Democracy, p. 63.
357
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 21-22.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
109

1. É livre: os participantes se percebem limitados apenas pelos resultados e pelas


precondições para a deliberação.
2. É argumentado: requer-se que os participantes apresentem razões para apoiar
ou criticar determinadas propostas. Tais razões são oferecidas na expectativa
de que sejam elas, e não, por exemplo, a força o que vai garantir o futuro de
suas propostas. É importante destacar que a democracia deliberativa requer
mais do que a circunstância de as escolhas públicas estarem “ajustadas” às
preferências dos cidadãos. A democracia deliberativa requer que as escolhas coletivas
sejam efetivamente realizadas de modo deliberativo.
3. O “processo deliberativo ideal” requer participantes formal e substantivamente
iguais. Formalmente, porque as regras do processo deliberativo não poderão
excluir nenhum participante que se mostre possuidor de capacidades deli-
berativas. Substantivamente, porque a distribuição preexistente de poder e
de recursos não influenciará nas chances de que se possa contribuir para a
deliberação.
4. A deliberação ideal busca chegar a um consenso motivado. Quer encontrar razões
que sejam persuasivas a todos os que estiverem dispostos a agir com base nos
resultados de uma análise aberta e franca de alternativas entre iguais. Nem
sempre isso vai ser possível, e, nesses casos, apelar-se-á à votação, baseada
em alguma versão da regra da maioria. Mesmo assim, os resultados de uma
votação como última escolha deliberativa são diferentes dos de uma votação
pura e simples, ou seja, de uma democracia agregativa que apele logo ao voto,
sem o compromisso de uma deliberação pública preliminar.358 359

2.2.2 A noção de democracia deliberativa em Amy Gutman e Dennis


Thompson: características e definição
Um pouco menos analítica e detalhada é a definição de Amy Gutman e Dennis
Thompson, escrita para “não teóricos interessados em aprender mais sobre essa con-
cepção de democracia”. Como passo para apresentá-la, faremos uma lista de suas

358
COHEN. Philosophy, Politics, Democracy: Selected Essays, p. 23-25.
359
Especificamente quanto ao ponto — diferenças entre votação posterior à deliberação pública e votação simples —,
James Fearon apresenta seis justificativas em favor da votação posterior à deliberação pública, cinco de índole
consequencialista, e uma sexta, de natureza deontológica. São elas: (i) ao deliberar, os participantes revelam
informações privadas de que eventualmente disponham e que podem ser importantes para o resultado da
votação; (ii) a discussão pode ser meio de se superar problemas decorrentes da racionalidade limitada dos
participantes (bounded rationality) — não é que os participantes não disponham de toda informação pertinente
ao caso; é que ele é muito complexo, e, ao deliberar publicamente, novas ideias, estratégias, saídas etc. podem
aparecer; (iii) a deliberação pode encorajar determinado comportamento desinteressado socialmente útil (o voto
é anônimo, e, ao fazê-lo, o votante pode agir simplesmente em favor de seu autointeresse; a deliberação pública
pode, em certo sentido, estimular os participantes a votarem no interesse coletivo); (iv) a deliberação pública
preliminar pode fazer com que se perceba o resultado da votação como mais legítimo, estimulando a coesão
social do grupo e tornando mais eficiente a concretização do resultado havido pelo voto (estudos psicológicos
mostram que se tende a aceitar mais o resultado de uma votação, qualquer que ele seja, desde que se tenha
podido, antes, deliberar a favor ou contra); (v) a deliberação preliminar pode incrementar certas qualidades
“morais” e intelectuais dos participantes do grupo (por exemplo, eloquência, capacidades retóricas, empatia,
gentileza, criatividade; e “autonomia” [enquanto cidadãos ativos que se autopercebem como influentes no
destino da comunidade na qual se inserem]); (vi) porque a deliberação pública é “a coisa certa a ser feita”,
a partir de bases morais e de autonomia individual, mesmo que não viesse a produzir consequências sociais
e individuais positivas (o que não seria o caso). V. FEARON. Deliberation as discussion. In: ELSTER (Ed.).
Deliberative Democracy, p. 44-68, passim).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
110 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

características, um pouco diferente das extraídas do trabalho de Cohen (embora com


ela compatíveis).
A democracia deliberativa é, na essência, a necessidade de se justificar decisões
tomadas pelos cidadãos e por seus representantes. Nem todas as decisões públicas,
o tempo todo, requerem deliberação. A democracia deliberativa abre espaço até para
decisões secretas, desde que, em algum momento, elas sejam justificadas em um pro-
cesso deliberativo.
Primeira característica da democracia deliberativa é, assim, (i) seu requisito de
oferecimento de razões. Não quaisquer razões — e aqui começa a proximidade com o
conceito de razão pública —, apenas razões que apelam a princípios que indivíduos que
estão tentando encontrar bases justas de cooperação não possam razoavelmente rejeitar. Razões
não meramente procedimentais (numa discussão sobre a entrada ou não de um país
numa guerra: “porque a maioria quer assim”), nem puramente substantivas (“porque
a guerra promove o interesse nacional”). A democracia deliberativa opera via razões
que sejam aceitas por pessoas livres e iguais buscando bases justas de cooperação. Para
a democracia deliberativa, as razões são tanto um modo de se produzir uma decisão
justificável quanto uma forma de expressar o valor do respeito mútuo.
Segunda característica da democracia deliberativa: (ii) as razões ofertadas devem
ser acessíveis a todos os cidadãos. Devem ser razões públicas em dois sentidos. O ofereci-
mento de razões não deve ocorrer em segredo; e seus destinatários devem ser capazes
de compreender seu conteúdo. Não seria possível apelar, por exemplo, à autoridade
de alguma revelação, seja secular ou divina.
Terceira característica: (iii) a democracia deliberativa propõe-se a produzir decisão
que é vinculante por certo período. Não é simples troca de argumentos numa universi-
dade. Ela produz consequências práticas. Donde deve ser produzida em determinado
período de tempo e sob certas constrições concretas muito específicas. Quem fala em
democracia deliberativa refere-se a um ideal, a um princípio regulador do discurso
democrático contemporâneo — i.e., um princípio que afirma como as decisões públicas
deveriam ser tomadas, ainda que, concretamente, não cheguem a sê-lo —, mas não pode
jamais se esquecer de que a deliberação pública é uma proposta para o mundo real, e,
portanto, terá de lidar com participantes que não contam nem com todo o tempo do
mundo nem com toda a informação possível.
Quarta e última característica: (iv) o processo deliberativo é dinâmico. A de-
liberação se propõe a justificar uma decisão, mas não imagina que isso seja sempre
possível, muito menos que as razões aceitas, hoje, possam valer indefinidamente no
tempo. Decisões acordadas por deliberação são provisórias. É claro que devem valer por
determinado tempo, mas devem estar abertas a revisões em algum momento futuro.
Desse dinamismo decorre o que Amy Gutman e Dennis Thompson chamam de
“princípio da economia das discordâncias morais”. É algo próximo ao conceito de razão
pública. Seu significado: ao oferecer razões para a tomada de decisões, os cidadãos e
seus representantes devem tentar encontrar justificações que minimizem as diferenças
com seus oponentes. Ao agir assim, promove-se o valor do respeito mútuo. Evitam-se
as mútuas alienações.
Das quatro características exsurge a definição de democracia deliberativa: uma
forma de governo na qual cidadãos livres e iguais (e seus representantes) justificam
decisões em um processo no qual eles se oferecem razões mutuamente aceitáveis e
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
111

acessíveis, com o propósito de chegar a conclusões vinculantes no presente, mas abertas


a mudanças no futuro.360

2.2.3 O que a democracia deliberativa não é. Vantagens e críticas ao


conceito
Boa estratégia para compreender algo é ver, também, o que esse conceito não
é.361 Todas as propostas nomeadas como “democracia deliberativa” têm em comum a
contraposição à ideia de democracia como competição baseada em interesses autocentrados
e governada por estratégias de barganha. O “núcleo conceitual duro” das propostas de-
liberativas é oferecer alternativas à concepção de democracia baseada na competição
eleitoral própria do pluralismo-competitivo.362 Democracia não deve ser chegar ao
melhor resultado possível graças a uma acomodação de interesses. Não deve ser uma
espécie de economia aplicada às escolhas públicas — aliás, geralmente, a democracia
deliberativa é proposta teórica oposta às teorias da escolha racional.
As propostas das teorias da democracia deliberativa criticam os mecanismos clás-
sicos da “democracia agregativa” por uma percebida insuficiência no trato de questões
políticas mais delicadas, especialmente as que envolvem dilemas morais. A concepção
agregativa ou adversarial (não deliberativa) produz resultados indiscutíveis, ao menos
em princípio (pensemos no resultado de uma eleição), e baseia-se em procedimentos
relativamente incontroversos (ao contrário das propostas deliberativas, em que grassa,
como sói acontecer, o debate). No entanto, é incapaz de produzir mudanças significativas
na distribuição de poder e de recursos numa dada sociedade; além disso, não fornece
aos cidadãos métodos capazes de questionar a própria democracia agregativa.363 Já os
procedimentos democrático-deliberativos, com seus apelos a ideais de justiça, raciona-
lidade e imparcialidade, estariam mais aptos a possíveis revisões “a sério” de condições
sociais eventualmente indignas.
Outras propaladas vantagens da democracia deliberativa são: (i) por seu caráter
aberto e dialogal, e porque a deliberação ocorre num período de tempo capaz de permitir
a reflexão e a troca racional de razões, ela estaria mais pronta a incorporar dados e opiniões
científicas; (ii) o modelo deliberativo forneceria condições ideais de imparcialidade —
todos os participantes estariam comprometidos com a evitação de preconceitos — e
de racionalidade, inclusive no tempo, mercê de seu caráter pró-revisões; (iii) o próprio
cumprimento de suas precondições já asseguraria grandes chances de que o resultado
final da deliberação fosse moralmente correto. Esse último ponto seria, nas palavras de
Carlos Santiago Nino, o “valor epistêmico da democracia (deliberativa)”:
Se todos os que possam ser afetados por uma decisão participaram da discussão e tiveram
igual oportunidade de expressar seus interesses e justificar aos outros uma certa solução para

360
GUTMAN; THOMPSON. Why Deliberative Democracy?, p. 3-7. É claro que nos referimos à democracia deliberativa,
uma forma de governo, mas exemplos da adoção de procedimentos deliberativos podem ser colhidos em
revistas científicas peer-reviewed, de preferência sob duplo anonimato, nas quais a análise dos artigos se faz por
troca imparcial de razões e, eventualmente, reacomodação de pontos de vista.
361
Embora definições negativas (definir algo pelo que ele não é) sejam, em termos conceituais, subótimas (definir é
dizer o que algo é, e não o que ele não é), como acréscimo de informação — tal como proposto no texto — não
parece haver problema.
362
SOARES. Democracia, deliberação e razão pública: recomendações igualitárias para a democracia liberal, f. 10.
363
GUTMAN; THOMPSON. Why Deliberative Democracy?, p. 13-21.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
112 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

o conflito, essa solução é quase sempre imparcial e moralmente correta, desde que todos
tenham aceitado a solução de modo livre e isento de coerção.364

Ao lado do elogio, há as críticas. Selecionamos algumas.


Há quem diga que a democracia deliberativa (i) imporia constrições irreais, tanto
pelo grau de restritividade quanto pelo número de exigências. Veja-se: devem-se oferecer
razões aceitáveis por todos, não excludentes, não autointeressadas. O procedimento
deliberativo deve estar aberto a todos; ninguém pode ser mais influente do que outro.
O comportamento estratégico é proibido. Todos os participantes devem possuir um
mínimo de renda e de educação. Ao elaborar seu modelo de democracia deliberativa,
Robert Talisse dá ideia do que seria um “deliberador” em sua melhor forma: um sujeito
“capaz de reconhecer considerações relevantes, balancear considerações contraditórias,
ouvir efetivamente novas considerações, ser crítico, porém aberto a objeções, capaz de
articular suas próprias ideias e sugestões, e de revisar suas crenças quando as razões
assim o recomendem”.365 Condições factíveis?
(ii) Há quem sustente que ela imporia exigências pouco claras. O que seriam “ra-
zões baseadas em princípios que sujeitos que buscam bases razoáveis de cooperação
não podem rejeitar”? O que seria “análise franca de razões”? Talvez até por conta de
exigências vagas, as propostas democrático-deliberativas poderiam se prestar, em certos
casos, (iii) à manipulação ideológica, ainda que sutil. Não haveria uma doutrinação clássi-
ca, impondo falsas relações causais (“Coca-Cola causa câncer”), mas uma manipulação
das expectativas mútuas dos cidadãos, das teorias que os indivíduos têm a respeito das
crenças dos outros.366
(iv) Crítica interessante, colhida a partir da pesquisa empírica de Diana Mutz: a
democracia deliberativa não estimularia (ao contrário, desestimularia) a participação política.
Uma cultura de ativismo político dificilmente seria, ao mesmo tempo, uma cultura
deliberativa: a melhor ambiência social para se cultivar o ativismo político seria aquela

364
NINO. The Constitution of Deliberative Democracy, p. 117. Outro trecho importante na justaposição entre
democracia deliberativa e democracia “majoritária” (na terminologia de Santiago Nino): “Quando o discurso
moral é institucionalizado e substituído, em função de considerações pragmáticas, por um substituto como a
regra da maioria, deve-se examinar se tal substituto ainda garante, mesmo que em menor grau, o requisito da
imparcialidade. Parece claro que uma solução para um conflito apoiada por uma maioria, e não por todos os
envolvidos, pode ser muito parcial. De fato, a simples oposição à minoria pode motivar as ações da maioria.
Desse modo, a democracia como regra da maioria parece ser o mecanismo arquetípico da tomada de decisões
parciais. Se isso é verdade, decisões democráticas poderiam então ser justificadas por razões que nada têm a ver
com sua correção moral” (p. 117-118).
365
TALISSE. Democracy After Liberalism: Pragmatism and Deliberative Politics, p. 113.
366
PRZEWORSKI. Deliberation and Ideological Domination. In: ELSTER (Ed.). Deliberative Democracy, p. 153. Susan
Stokes acredita que a deliberação pública pode chegar a imputar falsas crenças causais, sem falar na capacidade
de influenciar na autopercepção dos cidadãos a respeito de quem realmente são e de quais são suas capacidades.
“Se pseudo-preferências e pseudo-identidades não são fenômenos raros em democracias, então a deliberação,
por vezes, gera resultados normativamente desagradáveis: ela pode permitir que as propostas políticas sejam
direcionadas por interesses especiais que manipulam as noções dos cidadãos comuns a respeito do que eles
querem que o Governo faça; ela pode deslocar as reais preferências dos cidadãos pelas preferências que os
políticos, apoiados pela imprensa, equivocadamente atribuem aos cidadãos; e ela pode instilar nos cidadãos
identidades que eles jamais possuiriam, e que, por nenhuma razão de bom senso, seria de seus interesses”.
A autora faz algumas propostas para evitar tal efeito negativo da deliberação: um regime com mais de dois
partidos políticos significativos (ela está falando dos EUA); a introdução de regime de grande concorrência
entre emissoras de televisão e jornais, o que poderia estimular a discordância e evitar certa “mentalidade de
manada”; o apoio às associações de cidadãos com poucos recursos, para que possam competir, na arena da
deliberação pública, com tais interesses especiais dotados de mais recursos; e, finalmente, uma obrigação de
disclosure em relação às fontes da informação e dos pontos de vista oferecidos ao público (STOKES. Pathologies
of Deliberation. In: ELSTER. (Ed.) Deliberative Democracy, p. 123-139.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
113

na qual as pessoas estão circundadas por outras que pensam da mesma maneira, numa
atitude de reforço mútuo e de conclamação à ação.367
“Ambientes sociais que incluem contatos próximos entre pessoas que sustentam
diferentes perspectivas podem promover uma troca de ideias políticas, mas prova-
velmente não irão instigar o fervor político”. Assim, “as perspectivas de encontros
verdadeiramente deliberativos podem estar aumentando ao passo que as perspectivas
de participação e de ativismo político estão declinando”.368 Haveria uma tensão — em-
piricamente demonstrada — entre a promoção de uma sociedade com cidadãos entu-
siásticos e participativos na esfera política, e a promoção de uma sociedade imbuída
de ideais como a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões.
Outras críticas, mais ou menos técnicas,369 poderiam ser coligidas, mas não é nosso
propósito enfatizar o tema da democracia deliberativa propriamente dita.
Vamos resumir os percebidos vícios e virtudes da democracia deliberativa. Ela
é elogiada porque, ao contrário dos modelos democráticos tradicionais — que prezam
barganhas autointeressadas ou ajustes de interesses —, está ocupada em integrar os
cidadãos numa comunidade que leve suas razões a sério, desde que se tratem, decerto,
de razões não exclusivistas. Ao fazê-lo, não aliena nenhuma fração da sociedade, ad-
quire legitimidade, e, quiçá, alguma correção moral (ao tratar todos os cidadãos como
agentes dignos de consideração e de respeito, e não como meros otimizadores racionais
ou agentes envolvidos em barganhas posicionais). Seria o modelo perfeito, caso tais
propostas não fossem percebidas pelos críticos como utópicas, pouco claras, abertas à
manipulação ideológica e/ou neutralizadoras do próprio engajamento político (o qual
requereria antes paixão e partidarismo do que a consideração justa e imparcial de todas
as razões oferecidas no mercado das ideias).

2.2.4 Uma defesa (singela) do ideal de democracia deliberativa


Desde o título do livro, propusemos o uso da razão pública, logo, não temos como
deixar de defender as propostas de democracia deliberativa. É verdade que o tema será mais
extensamente tratado adiante (na resposta às críticas lançadas contra a razão pública),
pois, como mencionamos, os temas da democracia deliberativa e da razão que deve

367
Em certo sentido, os dias de hoje, em que muitas pessoas se encontram limitadas a câmaras de eco entre
semelhantes, parecem ilustrar o ponto: o nível de fervor ativista parece haver aumentado. Ver, contudo, a
resposta à crítica, supra.
368
MUTZ. Hearing the Other Side: Deliberative versus Participatory Democracy, p. 3.
369
Por exemplo: Charles Blattberg, ao propor sua própria modalidade teórica de democracia, lança algumas
críticas às propostas de democracia deliberativa. Em primeiro lugar, as constrições aplicáveis à deliberação
pública, excluindo coisas como o uso do humor e da arte, o exagero, a retórica, certas “mentiras úteis”, seriam
contraproducentes à boa utilização da argumentação prática, seara dentro da qual se opera a deliberação
pública. Além disso, haveria um desvio epistemológico nas propostas da democracia deliberativa: tenderiam
a ser mais próximas a opções “liberais”, entendida esta palavra à americana. Ainda, os teóricos da democracia
deliberativa traçariam distinção muito drástica entre a deliberação racional, de um lado, e a barganha/
negociação autointeressada, de outro. Por fim, Blattberg sustenta que os democratas deliberativos encorajariam
uma relação adversarial do indivíduo em relação ao Estado, o que reduziria as chances de reconciliação da
sociedade com o Estado, e isto, em última análise, minaria as probabilidades de que os cidadãos realizassem
qualquer dever cívico para com a comunidade. V. Pratiotic Elaborations: Essays in Practical Philosophy,
especialmente cap. 2 - Patriotic, not Deliberative, Democracy. Ao menos contra uma das críticas — a de que os
teóricos da democracia deliberativa são liberais — pode-se lançar mão de um trecho de livro que digressiona
a respeito do “deliberativismo antiliberal” (TALISSE. Democracy After Liberalism: Pragmatism and Deliberative
Politics, p. 92-95).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
114 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

guiar a deliberação democrática — a razão pública — estão relacionados. Seja como


for, tentaremos analisar o assunto, tanto quanto possível, a partir da ótica “apenas” da
democracia deliberativa, sem enfatizar aspectos específicos mais próprios ao argumento
da razão pública.
Quanto a não possuir critérios claros, a verdade é que, se se estiver buscando
precisão matemática, nenhum critério teórico de ascendência filosófica conseguirá
ultrapassar a exigência. Mas o uso de conceitos e expressões como “bases razoáveis
de cooperação” e “razões francas” servem como imantadores de atitudes, como critérios
aptos a invalidarem argumentos e razões totalitárias, exclusivistas, incapazes de serem
apoiadas por ampla faixa do espectro de indivíduos componentes da comunidade po-
lítica. Além disso, eles apelam a uma atitude inclusivista, dialógica, seguramente mais
complexa e indefinida do que contar votos numa urna, mas que, uma vez concretizada,
pode trazer resultados mais genuinamente democráticos do que os que poderiam ser
obtidos pela democracia clássica.
Há de se considerar, ainda, que, hoje em dia, a teoria da democracia deliberati-
va já amadureceu o bastante para ultrapassar (parcialmente) discussões conceituais.
Argumenta-se que a democracia deliberativa viveria atualmente nova fase, mais focada
no processo de deliberação propriamente dito, e não em suas precondições contrafá-
ticas; focada nos problemas de sua institucionalização (quer dizer, em como tornar
instituições como o voto, a representação política, os tribunais e o Direito Público mais
deliberativos), ou, ainda, focada na análise e comparação de diferentes procedimentos
deliberativos, indicando problemas empíricos que não se poderiam adiantar apenas
via discussão conceitual.370
Já houve, até, experimentos buscando concretizar alguns ideais deliberativos.
James Fishkin propôs a ideia de “pesquisas deliberativas de opinião”, na qual participan-
tes representativos de estratos sociais, econômicos, políticos e culturais de determinada
região são instados a debaterem certos temas em condições controladas, e, a seguir,
a votar.371 Tais pesquisas foram realizadas nos EUA, na Austrália e numa cidade da
China.372 O livro The Deliberative Democracy Handbook traz uma série de artigos a respeito
de iniciativas práticas envolvendo ideais deliberativos: iniciativas virtuais, grupos de
discussão em pequenas cidades, conselhos locais, grupos de estudo, associações cívicas
etc.373 É provável que muitas dessas propostas aproveitem-se apenas genericamente dos

370
BOHMAN. The Coming of age of Deliberative Democracy. The Journal of Political Philosophy, passim.
371
FISHKIN. Democracy and Deliberation: new Directions for Democratic Reform.
372
Há programas na televisão americana que se propõem a realizar alguns ideais deliberativos. Um deles chamava-
se “By the People”, passou no canal PBS e teve consultoria do próprio James Fishkin (<http://www.pbs.org/
newshour/spc/btp>). Outra utilização concreta de ideias deliberativas: um grupo na Universidade Carnegie
Mellon criou programa de computador, que funciona num ambiente virtual na internet, chamado PICOLA
(Public Informed Citizen Online Assembly). O programa pode ser descarregado no seguinte endereço: <http://
caae.phil.cmu.edu/picola/index.html>. Informações a respeito desse tipo de iniciativa costumam aparecer no
site do Centro para a Democracia Deliberativa da Universidade de Stanford (<http://cdd.stanford.edu/>). No
início de março de 2010, o site do Centro anunciava a primeira “pesquisa deliberativa de opinião” realizada
na América Latina, que ocorreu na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e envolveu discussões sobre
critérios de promoção de servidores públicos e formas de se obter maior produtividade no serviço público.
Os resultados podem ser encontrados em <http://cdd.stanford.edu/polls/brazil/2009/results-apresentacao.pdf>.
Todos os sites acessados em 03 mar. 2010. Em 2017, todos os sites continuavam ativos, ainda que o PICOLA haja
migrado para uma plataforma comercial.
373
GASTIL; LEVINE. The Deliberative Democracy Handbook: Strategies for Effective Civic Engagement in the 21st
Century. Na coletânea, há um artigo de especial interesse para os brasileiros; Vera Schattan, Barbara Pozzoni e
Mariana Montoya analisam o Conselho Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, seus métodos de trabalho
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
115

ideais deliberativos, mas também é verdade que há de se firmar compromissos para


transpor proposições teóricas até a realidade. Assim, no que tenham de criticável, já
representam esforços para superar as críticas de “utópica” ou “inexequível” muitas
vezes lançadas contra as formulações democrático-deliberativas.
A crítica de manipulação ideológica é injusta. Evidente que, a depender das pre-
condições materiais exigidas dos participantes da deliberação, será necessário algum
grau de igualdade entre os cidadãos — o que implica exigências redistributivas. Mas os
processos deliberativos são desenhados de modo a permitir a eclosão de uma grande
maioria de escolhas vinculadas a posições político-ideológicas, desde que estas tratem
os cidadãos de forma digna. É claro que a democracia deliberativa, qualquer que seja a
subcorrente teórica a que se filie, jamais justificará propostas políticas de inação estatal,
individualismo radical ou egoísmo ético, no mínimo porque elas contrariam as próprias
precondições deliberativas. Se isso é manipulação, que seja.
A democracia deliberativa, ao pressupor que as razões de todos, caso razoáveis,
sejam consideradas e levadas a sério pelas instâncias de decisão, é possivelmente menos
suscetível à manipulação do que concepções democráticas agregativas, que estimulam
posições autointeressadas e conciliações estratégicas. Talvez fosse o caso de se afirmar:
as propostas da democracia deliberativa são acusadas de manipulativas porque pres-
supõem um mínimo de igualdade substancial como condição para o debate, enquanto
deixam todo um amplo espaço de decisões a cargo dos indivíduos; já as propostas não
deliberativas assumem a própria manipulação como estratégia operacional.
Finalmente, a crítica do desestímulo à participação política pela adoção de pro-
postas democrático-deliberativas merece algumas considerações. Como não realizamos
pesquisa empírica, o que se vai argumentar aqui possui apenas base conceitual.
Ora, há diferença entre “fervor político” e “participação política”. É possível
que a democracia deliberativa, com seu propósito de imprimir igual consideração a
todas as razões razoáveis, acabe diminuindo a temperatura do debate político. Mas
isso é até positivo, porque são as posições extremas as que histórica e empiricamente
são mais capazes de despertar paixões. A constituição de ambiência deliberativa que
desestimula razões radicais é algo a ser celebrado, já que o “fogo” político mais ardente
tem ares fanáticos. E mais: a democracia deliberativa, se busca neutralizar fanatismos
(o que é ótimo), acaba sendo mais extensa — em termos de abrangência da comunida-
de convidada a fazer parte ativa do diálogo — do que a democracia agregativa. Basta
ler as iniciativas mencionadas há dois parágrafos: centros cívicos, discussões virtuais,
conselhos municipais. É dizer: na democracia agregativa, temos alguns militantes mais
fervorosos (às vezes pelas piores razões) e uma grande massa excluída do debate. Na
democracia deliberativa, a ideia é podar excessos, mas incluir todos.

2.3 Origens da razão pública. Kant e o uso público da razão. Aspectos


gerais do pensamento de John Rawls
A expressão “razão pública” surgiu, em sentido próximo ao que se popularizou
no campo da Filosofia e da teoria política,374 num texto de 1784 em que Immanuel

e os desafios à inclusão de todos no processo de formulação de decisões a respeito de políticas públicas para a
área.
374
Há usos anteriores, mas o sentido é diferente. Em língua inglesa, o termo public reason aparece pela primeira
vez com Thomas Hobbes, no capítulo trinta e sete do Leviatã, quando o autor afirma que a crença na ocorrência
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
116 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Kant pretendeu responder à pergunta sobre o que era o Iluminismo, lançada um ano
antes pelo reverendo Johann Friedrich Zöllner. Na famosa frase inicial do texto, Kant
anotou que o Iluminismo é a emergência do homem de sua autoimposta imaturidade.
Com dificuldade, a iluminação acabaria vindo se ao homem se fornecesse suficiente
liberdade. Liberdade de um tipo muito especial: a liberdade para usar a razão, de modo
público, em todos os assuntos.
Kant diferencia o uso público da razão, que deve sempre ser livre, do uso privado,
que pode ser restringido. “Por uso público da razão entendo o uso que alguém, como
estudioso, possa dela fazer diante de todo o mundo”. Já o uso privado ocorre, a partir de
uma função ou cargo, no endereçamento a uma audiência restrita. Assim, nos exemplos
de Kant, seria desastroso se um oficial do Exército questionasse, em serviço, a utilidade
da ordem de seu superior. Todavia, como estudioso, ele não poderia ter restringida sua
liberdade de indicar os erros no militarismo ou de expô-los ao público, para que este
fizesse seu próprio julgamento. O cidadão não pode recusar-se a pagar tributos, mas
deve possuir total liberdade de criticá-los. O clérigo, no exercício da função clerical,
deve instruir os fiéis na doutrina de sua igreja, porém, como estudioso que escreve
ao mundo, deve gozar de liberdade irrestrita para usar suas capacidades racionais.375
Uso público e uso privado da razão distinguem-se pela autonomia. O uso priva-
do tem amplitude restringida por algum tipo de autoridade (o oficial, pelas regras do
militarismo; a comunidade eclesiástica, pelas normas da religião); o uso público alcança
o mundo como um todo. Para os nossos propósitos, interessa destacar que, já em Kant,
de forma embrionária, o uso público da razão pressupõe a possibilidade de os argumen-
tos chegarem a todo o mundo, sendo publicizáveis (ainda que não necessariamente
públicos) e inteligíveis para uma audiência coercível apenas pelo próprio argumento.376

de milagres é questão “em relação à qual [...] não cabe ao homem fazer uso de sua própria razão privada ou de
sua consciência, mas da razão pública, isto é, da razão do tenente supremo de Deus na Terra, o soberano; e, de
fato, nós o tornamos soberano se lhe demos poder para fazer tudo o que for necessário para nossa paz e para
nossa defesa. Um homem privado sempre possui a liberdade, porque o pensamento é livre, de acreditar ou não,
em seu coração, que tais e tais atos derivaram de milagres. Mas, quando se trata da confissão de tal fé, a razão
privada deve se submeter à razão pública, o que quer dizer: à do tenente de Deus” (HOBBES. Leviatã).
Outro uso remoto é o de Milton, na obra Paraíso perdido, colocando o termo na boca de Satã. Este, contemplando
o Paraíso, que logo será perdido pelo homem graças a seus estratagemas, afirma, num solilóquio, que seu
coração derrete diante da inocência de Adão e Eva. Mas ele está compelido a essa vingança — vingança que,
em outras circunstâncias, abominaria. Compelido “apenas pela razão pública”, ou seja, “honra e império
aumentados pela vingança ao conquistar esse novo mundo” (MILTON. Paraíso perdido, Canto IV, p. 380-394).
Avançando na genealogia da expressão, Jean-Jacques Rousseau, em seu Discurso sobre a Economia Política,
utiliza-a duas vezes no início do livro: ao afirmar que os pais de família devem ouvir a voz da natureza, mas não
os magistrados, que devem ouvir, apenas e tão somente, “a razão pública, isto é, o Direito”; e numa elegia ao
Direito, tido como “a voz celestial que dita aos cidadãos os preceitos da razão pública” (ROUSSEAU. Discourse
on Political Economy and the Social Contract, p. 5, 11).
Finalmente, o primeiro discurso de posse de Thomas Jefferson na presidência americana também traz breve
referência ao termo, quando informa que uma de suas metas seria “a difusão da informação [sobre seu governo]
e o julgamento de todos os abusos no tribunal da razão pública” (JEFFERSON. First Innaugural Speech).
Nas utilizações mencionadas, razão pública significa então, respectivamente, razão do soberano (Hobbes),
ânsia por honra e poder (Milton), Direito (Rousseau), ou alguma espécie de percepção coletiva dos cidadãos
(Jefferson).
375
KANT. An Answer to the Question: What is Enlightement?.
376
O’NEILL. Constructions of Reason: Explorations of Kant’s Practical Philosophy, p. 35, grifo nosso: “O uso público
da razão [...] é, em primeiro lugar, o que poderia chegar ao mundo como um todo, caso se lhe desse a devida
publicidade. Uma vez que ‘o mundo como um todo’ não aceita uma autoridade externa comum, a única autoridade que
a comunicação pode assumir deve ser interna à própria comunicação. [...] O que é falado ou escrito não pode valer
como uso público da razão meramente porque foi falado, impresso ou mostrado ao mundo. A comunicação tem
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
117

Por seminal que tenha sido Kant, a verdade é que o termo só ganhou projeção
graças à obra de John Rawls. A expressão aparece no livro O liberalismo político, de
1993, como resultado de duas conferências oferecidas na Universidade da Califórnia
em 1990.377 Posteriormente, no livro O direito dos povos, Rawls reapresentou a ideia com
algumas modificações.378
A intenção, aqui, não é a de aprofundar as propostas deste autor para a organiza-
ção da sociedade, mas, tão somente, apresentar aspectos de sua teoria que contribuam
para o esclarecimento da noção de razão pública. Observamos que a teoria de Rawls
sobre a razão pública, embora a mais famosa, não é a única379 e não é aceita sem con-
testações (ver item abaixo).
Rawls parte de premissa fática: considerando a existência de instituições livres
na sociedade, não se pode esperar ampla concordância em questões fundamentais de
moralidade e de religião.380 Diversas etnias, grupos, minorias, credos, embatem-se pela
palavra final a respeito de como as pessoas devem levar suas vidas e de como os bens
sociais devem ser obtidos e distribuídos. Trata-se do que ele chama de fato do pluralismo.381
O fato do pluralismo é constituído pela existência, na sociedade, de uma série de
doutrinas abrangentes razoáveis. Tais doutrinas abrangentes são as concepções religiosas,
filosóficas e morais que as pessoas seguem em suas vidas. São exercícios de razão teó-
rica — escolhem valores e concepções abstratas de Bem — e de razão prática: além de
indicar valores, tais doutrinas estabelecem os modos como os conflitos entre eles serão
concretamente resolvidos.
São abrangentes porque não se limitam a determinado aspecto da vida — o religio-
so ou o econômico, por exemplo —, mas se espraiam por diversos setores da existência.
Assim, o feminismo ou o marxismo, exemplos de doutrinas abrangentes, partem de
pressuposições (até) antropológicas e chegam a sugestões de práticas concretas em
áreas como a Economia, a literatura, o comportamento.
São razoáveis porque se baseiam em determinado pré-requisito a respeito do
indivíduo: tratam-no como intrinsecamente digno de consideração e de respeito. O
nacional-socialismo, apesar de ser exercício de razão teórica e prática abrangente —
houve até uma arte nazista —, não é razoável, porque não considera as pessoas como
igualmente dignas de consideração e de respeito. Nesses casos, fica apenas a tarefa de

de cumprir alguns standards suficientes de racionalidade para que possa ser inteligível a audiências que não
compartilham nenhuma autoridade comum (exceto a da própria razão)”.
377
RAWLS, John. A idéia de razão pública (Conferência VI). In: RAWLS. O liberalismo político, p. 261-306. Há
vestígios do conteúdo da “razão pública” na ideia de “publicidade”, tal como desenvolvida no livro Uma teoria
da justiça. A esse respeito, v. LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls,
p. 369-380.
378
RAWLS. O direito dos povos.
379
Para recenseamento das teorias contemporâneas da razão pública, consultar Gerald F. Gaus (Contemporary
Theories of Liberalism: Public Reason as a Post-Enlightement Project).
380
“A cultura política de uma sociedade democrática é sempre marcada pela diversidade de doutrinas religiosas,
filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis. Algumas são perfeitamente razoáveis, e essa diversidade de
doutrinas razoáveis, o liberalismo político a vê como resultado inevitável, em longo prazo, do exercício das
faculdades da razão humana em instituições básicas livres e duradouras” (RAWLS. O liberalismo político, p. 45).
Tal diversidade decorre das dificuldades impostas pelo que Rawls chama de “os fardos da razão” (e, depois,
“fardos do julgamento”): as complexidades dos dados da realidade, a necessidade de se considerar em conjunto
diferentes espécies de análises, a variedade de experiências de vida na sociedade moderna. V. RAWLS. Collected
Papers, p. 475 et seq.
381
Ver definição em Catherine Audard (Glossário. In: RAWLS. Justiça e democracia, p. 376).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
118 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

conter tais doutrinas não razoáveis, “como se contém uma guerra ou uma doença”,
para que não subvertam os princípios da justiça política.382
Do fato do pluralismo, constituído pela coexistência das várias doutrinas abran-
gentes razoáveis, chega-se à singela conclusão de que todas não podem estar inteira-
mente certas ao mesmo tempo,383 o que, excluída a hipótese da força para a garantia de
um vencedor,384 vai impor a necessidade de um consenso entre as múltiplas visões de
mundo. Esse consenso não significa ceticismo ou desânimo (mais sobre isso a seguir),
senão o reconhecimento de que um juízo definitivo a respeito da verdade das doutrinas
abrangentes é impossível na prática.385
Tal consenso articula-se por intermédio de apelo aos pontos políticos em comum
entre as diversas doutrinas abrangentes razoáveis. Rawls chama-o, justamente por isso,
de consenso sobreposto.
O consenso é político, não filosófico ou religioso: sublinha os aspectos políticos —
e apenas eles — que poderiam ser aceitos por todas as doutrinas. Cada doutrina abran-
gente terá suas próprias razões, morais, religiosas ou filosóficas, para aceitar o consenso,
o qual, no entanto, continua tendo como objeto apenas e tão somente uma concepção
política de justiça. O consenso é, ainda, estável, porque, mesmo que determinada dou-
trina abrangente esteja ganhando adeptos e tornando-se dominante, seus defensores
continuarão vinculados ao consenso e não deixarão de apoiá-lo para se aproveitar da
força relativa de sua própria mundivisão.
Em termos de abrangência, o consenso sobreposto incluirá alguns princípios
procedimentais básicos da democracia (igualdade formal, contraditório, transparência,
generalidade e irretroatividade das leis, separação entre Estado e religião), além de
alguns direitos substantivos, tais como liberdade de consciência e igualdade de opor-
tunidades. Retiram-se da agenda política constitucional as questões que geram mais
divergências, já que elas poderiam solapar as bases profundas da cooperação social.386
Resumindo os conteúdos da teoria de Rawls até aqui expostos: a) considerando
a pluralidade irreconciliável de concepções de Bem atualmente existentes na sociedade,
b) e levando-se em conta que as diversas doutrinas abrangentes razoáveis não podem
ser simultaneamente verdadeiras, mas que, c) afastada a opção de impor mundivisões
à força — o que seria incompatível com a noção de pessoas igualmente dignas de
consideração e respeito —, só resta a necessidade prática do acordo, este será d) um
acordo sobreposto entre todas as doutrinas abrangentes razoáveis, as quais terão suas
próprias razões para aderir a ele. O acordo será e) estável — as doutrinas abrangentes
não poderão abandoná-lo caso se mostrem predominantes na sociedade — e seu f)
conteúdo consistirá apenas de aspectos políticos, e não filosóficos ou religiosos, tais
como g) regras democráticas e constitucionais básicas e alguns direitos fundamentais
mais importantes.

382
RAWLS. O liberalismo político, p. 108. Em algumas passagens, Rawls fala em “fato do pluralismo razoável” para
se referir à diversidade de doutrinas abrangentes razoáveis existentes numa sociedade contemporânea.
383
RAWLS. O liberalismo político, p. 104.
384
“[...] Os cidadãos, em sua condição de livres e iguais, têm uma participação igual no poder coletivo político
e coercitivo da sociedade, e todos estão igualmente à mercê do juízo. Não há razão, portanto, para qualquer
cidadão ou associação de cidadãos ter o direito de empregar o poder coercitivo do Estado para decidir
fundamentos constitucionais ou questões básicas de justiça segundo as diretrizes da doutrina abrangente desse
cidadão ou associação de cidadãos” (RAWLS. O liberalismo político, p. 106).
385
RAWLS. O liberalismo político, p. 107.
386
RAWLS. O liberalismo político, p. 179-219.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
119

2.3.1 A razão pública em Rawls: natureza jurídica, abrangência,


conteúdo, exemplo, objetivos e definição
O consenso sobreposto diz respeito a um mínimo essencial possível capaz de
motivar a cooperação entre cidadãos livres e iguais, independentemente da doutrina
abrangente a que se filiem. Já a ideia de razão pública, assunto que trataremos a partir
daqui, funciona como um filtro a respeito de quais razões poderão orientar o debate público
numa sociedade que tenha aderido ao consenso.387 A razão pública é a forma de se argumentar
publicamente na sociedade democrática. Não é, em Rawls, dever jurídico propriamente
dito, mas princípio regulador da conduta pública e privada.388 Dirige-se, apenas, a funcio-
nários públicos (administradores, legisladores e, especialmente, juízes), candidatos em
campanha, e eleitores no momento da eleição. Não se aplica, por exemplo, aos meios
de comunicação de massa ou à cultura da sociedade civil — a cultura das associações,
universidades, jornais, revistas.389 A chamada “cultura de fundo” é livre para se utilizar
de razões tiradas de doutrinas abrangentes razoáveis — razões não públicas, portanto.390
A razão pública, direcionada a poucas pessoas, abarca, também, poucos assuntos.
Somente os elementos constitucionais essenciais e as questões básicas de justiça, nos
termos de Rawls, a ela estão sujeitos.391 Do que se trata? São os princípios estruturantes
do Estado — as prerrogativas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário; o alcance
da regra da maioria — e os direitos e liberdades que as maiorias devem respeitar (isto
é, alguns direitos fundamentais, nos quais se incluem, indo além de simples elementos
constitucionais essenciais, alguma forma de igualdade de oportunidade e a oferta de
prestações sociais básicas).392 A maioria das questões públicas nada tem a ver com a
razão pública. Leis tributárias e normas de proteção ao meio ambiente, por exemplo,
são importantes, mas não se prestam a serem filtradas pelo critério.393
Outra observação importante é que a razão pública, tal como o consenso sobre-
posto, opera dentro de uma concepção política de justiça.394 A essa altura, já terá ficado
claro o sentido do termo “político” em Rawls: uma concepção é política, e não metafí-
sica, religiosa ou moral, quando é neutra em relação às diferentes visões de mundo.395

387
Como diz o próprio Rawls, “os cidadãos percebem que não podem chegar a um acordo, ou mesmo aproximar-
se da compreensão mútua, com base nas suas doutrinas abrangentes irreconciliáveis. Em vista disso, precisam
considerar que tipo de razões podem oferecer razoavelmente um ao outro quando estão em jogo perguntas políticas
fundamentais”. Tais razões são, precisamente, as razões fornecidas por um ideal de razão pública (RAWLS. O
direito dos povos, p. 174, grifo nosso).
388
RAWLS. O liberalismo político, p. 262. Acreditar que as exigências da razão pública são deveres jurídicos é
postura que viola a liberdade de expressão (Direito dos povos, p. 179).
389
RAWLS. O liberalismo político, p. 264-265; RAWLS. O direito dos povos, p. 177.
390
O oposto da razão pública é a razão não pública. Em Rawls, não existe razão privada. O que existe é razão
religiosa (argumentos usados por uma doutrina abrangente religiosa) e razão secular (argumentos de uma
doutrina abrangente não religiosa), ambas razões não públicas. Vale destacar, ainda, que só há uma única razão
pública, mas muitas e variadas razões não públicas. Ao longo da tese, usaremos “razões públicas” para se
referir, metonimicamente, às razões capazes de ultrapassar o filtro da razão pública.
391
RAWLS. O liberalismo político, p. 263.
392
RAWLS. O liberalismo político, p. 277.
393
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
394
RAWLS. O direito dos povos, p. 189.
395
HABERMAS. Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism.
The Journal of Philosophy, p. 129. Em rigor, Rawls afirma que o sentido de dizer que a razão pública é política
abrange três conteúdos: que se aplica apenas à estrutura básica da sociedade; que é neutra; que é elaborada em
termos de ideias políticas fundamentais implícitas na cultura pública de uma sociedade democrática (RAWLS.
O liberalismo político, p. 273).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
120 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Igualmente a como ocorre com o consenso sobreposto, os cidadãos defendem e se


utilizam da razão pública não por questão de estratégia/barganha política, ou como
simples modus vivendi — estariam aderindo a ela até o momento em que suas visões
triunfassem —, mas em virtude das razões de suas próprias doutrinas razoáveis, e,
ainda mais, por força de um firme compromisso com os valores políticos da sociedade
democrática. É o que torna possível, por exemplo, que pessoas religiosas endossem
um regime constitucional, mesmo sabendo que suas doutrinas abrangentes não vão
prosperar (talvez possam mesmo definhar) sob ele.396
O conteúdo da razão pública é, na essência, o de um dever de reciprocidade: as razões
apresentadas por uma pessoa só podem ser aquelas que ela própria razoavelmente aceitaria, e
que ela esperaria de boa-fé que outra pessoa razoavelmente aceitasse.397 Há outros requisitos
para a razão pública: deve-se apelar somente a crenças gerais e às formas de argumentação
atualmente aceitas e encontradas no senso comum; devem-se usar os métodos e conclusões da
ciência, mas apenas quando não controvertidos. Rawls é claro:
Isso significa que, ao discutir sobre elementos constitucionais essenciais e questões de justiça
básica, não devemos apelar para doutrinas religiosas e filosóficas abrangentes — para aquilo
que, enquanto indivíduos ou membros de associações, entendemos ser a verdade toda —, nem
para teorias econômicas complicadas de equilíbrio geral, por exemplo, quando controvertidas.
Tanto quanto possível, o conhecimento e as formas de argumentação que fundamentam nossa
aceitação dos princípios de justiça e sua aplicação a elementos constitucionais essenciais e à
justiça básica devem repousar sobre verdades claras, hoje amplamente aceitas pelos cidadãos
em geral, ou acessíveis a eles. Caso contrário, a concepção política não ofereceria uma base
pública de justificação.398

Exemplo de razão pública é o fornecido pelo ofício da corte constitucional. Diante da


força das maiorias legislativas ocasionais, o tribunal constitucional, que exerce apenas a
razão pública e nenhum outro tipo de razão, é a contraforça contramajoritária a serviço
da Constituição. Os juízes constitucionais não podem invocar sua própria moralidade,
suas visões filosóficas ou religiosas. A exigência da razão pública é que apelem aos
valores que se possa esperar que todos os cidadãos razoáveis venham a endossar.399
Um bom teste é o seguinte: para saber se algum argumento ou ideia está de acordo
com a razão pública, basta perguntar como os argumentos pareceriam sob a forma de
uma opinião do Supremo Tribunal. Pareceriam razoáveis? Abusivos?400
Argumentos não polêmicos, recíprocos, universalizáveis. Com tais peças, o ideal
de razão pública quer promover o consenso possível na sociedade quanto às questões
políticas essenciais. Rawls não possui expectativas enganosas: acredita que, mesmo sob
a razão pública, ainda existirão pontos polêmicos sustentados a partir de cada doutrina
abrangente. O importante, contudo, é que as discordâncias estejam dentro do que chama
de “margem de segurança” permitida por cada uma delas. “Ao falar dessa margem de
segurança, quero dizer o quanto uma doutrina pode aceitar, ainda que relutantemente,
as conclusões da razão pública, quer em geral, quer em um caso particular”.401

396
RAWLS. O direito dos povos, p. 196.
397
RAWLS. O direito dos povos, p. 181.
398
RAWLS. O liberalismo político, p. 274.
399
RAWLS. O liberalismo político, p. 287.
400
RAWLS. O liberalismo político, p. 305.
401
RAWLS. O liberalismo político, p. 297-298.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
121

Em outras palavras, a razão pública espera que os argumentos vencedores, se


não queridos, ao menos sejam racionalmente aceitáveis pelo vencido.402
Como ainda assim existirão problemas para os quais as partes, seguindo o mais
estrito dever de reciprocidade, à luz da razão pública, e depois de haverem minimiza-
do diferenças e destacado convergências, não encontrarão saída, a solução seria, num
primeiro momento, postergar a questão. Não para evitar o conflito, mas para obter mais
experiência e ganhar tempo de reflexão.
Caso a situação seja inadiável, a solução não seria abandonar a razão pública e
apelar às razões não públicas das doutrinas abrangentes,403 404 mas sim recorrer ao voto —
um voto, diga-se, no espírito da razão pública.
No essencial, os cidadãos, inobstante possam discordar profundamente a respeito
do significado da razão pública neste ou naquele caso, devem fazer seu melhor para,
de boa-fé, agir em conformidade com aquilo que reputem como um ideal dela.
O “dever cívico” da razão pública, como Rawls o chama, aplicado ao Direito
fortalece dois objetivos: o da estabilidade e o da legitimidade. Quanto à estabilidade, não é
difícil entender: ausente o limite da razão pública, nada impede que decisões tomadas
a partir de doutrinas abrangentes mudem radicalmente conforme, por exemplo, o sabor
das composições dos tribunais. O ideal da razão pública, ao podar excessos e conter
os argumentos dentro dos limites da reciprocidade, funciona como um estabilizador
natural. Uma corte constitucional, ao apreciar casos polêmicos como o aborto, sob a
ótica de razões não públicas (religiosas ou seculares), ora decidiria de uma forma, ora
de outra, radicalmente contrária à primeira; com isso, o grande prejudicado seria o
valor da segurança, quintessencial ao Estado de Direito.
Mais grave é o comprometimento à legitimidade. Uma coisa é ser obrigado a
aceitar determinada decisão, tomada a partir de dados factuais que, embora passíveis
de discordância, são tidos como razoáveis. Pode-se discordar de que a dioxina cause
câncer, mas, ainda assim, aceitar, sob tal fundamento, a proibição de sua comercialização.
É argumento plausível, com o qual se pode esperar que o interlocutor razoavelmente
concorde.
Outra coisa é aceitar que as mulheres devem ser submissas aos homens, sob o
motivo de que isso está no plano de Deus; ou, para um crente, ser obrigado a fazer ou
deixar de fazer algo ao fundamento de que Deus não existe.405
Em exemplo mais próximo do nosso tema, uma coisa é aceitar que o Estado possa
ou não intervir na economia, com variados graus de intensidade, em certas situações,
conforme elas estejam abrangidas pela legislação infraconstitucional. Outra coisa é

402
Embora o ideal da razão pública não aspire simplesmente a uma aceitação dos argumentos contrários. A ideia
é a de encontrar um denominador comum que, compatível com as doutrinas abrangentes, possa ser por elas
defendido — claro que essa defesa vai se dar com base nos argumentos internos a cada doutrina — e por elas
assumido como próprio. Charles Larmore explica: “Honramos a razão pública quando estabelecemos nossas
razões em concordância com as razões dos outros, esposando um ponto de vista comum para estabelecer os
termos e condições de nossa vida política. A concepção de justiça com base na qual vivemos é, assim, uma
concepção que adotamos não pelas diferentes razões que cada um possa encontrar, não apenas pelas razões que
calharam de compartilharmos, mas, ao contrário, pelas razões que contam para nós porque podemos afirmá-las
em conjunto” (LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 368).
403
Como sugere Kent Greenawalt (Private Consciences and Public Reasons, passim).
404
“O ideal de razão pública exige que não façamos isso nos casos de elementos constitucionais essenciais e
questões de justiça básica. Raramente se chega a uma concordância muito grande, e abandonar a razão pública
sempre que houver desacordo ao equilibrar os valores significa, na verdade, abandoná-la por completo”
(RAWLS. O liberalismo político, p. 291).
405
SOLLUM. Public Legal Reason. Virginia Law Review, p. 1477.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
122 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

afirmar que o Estado está constitucionalmente impedido de intervir na economia ou


que está constitucionalmente obrigado a preferir o fomento público a outras formas de
intervenção, porque a isso corresponderia uma ideologia constitucional-econômica
plasmada sob o seio de Constituição radicalmente compromissória como a nossa. Tais
afirmações são concretizações jurídicas de razões não públicas pertencentes a uma dou-
trina abrangente razoável, o liberalismo econômico. Mas veremos o assunto mais adiante.
Uma definição de razão pública em Rawls poderia ser a seguinte: a razão pública
é princípio regulador que, dirigido às autoridades, aos candidatos e ao cidadão votante,
propõe que, no debate público a respeito de questões essenciais, só sejam utilizados
argumentos capazes de serem aceitos por todas as frações razoáveis da sociedade,
jamais argumentos pertencentes isoladamente a cada uma das doutrinas abrangentes.
A razão pública prioriza, além disso, formas de argumentação e crenças aceitas (desde
que razoáveis) e conclusões científicas não polêmicas. Fazer incidir a razão pública
significa, também e finalmente, uma disposição de ouvir sinceramente o que os outros
têm a dizer, bem como a aceitar acomodações na própria visão.406

2.3.2 Pensando com Rawls contra Rawls: duas questões prejudiciais à


proposta deste livro
Antes de aplicar a razão pública ao debate doutrinário de Direito Constitucional
Econômico, há duas questões prejudiciais que devem ser solucionadas.
A primeira questão é saber se o critério da razão pública pode ser aplicado à doutrina
jurídica. À primeira vista, a resposta seria negativa. A uma, porque o próprio Rawls
limitou-lhe a incidência subjetiva a autoridades, candidatos e eleitores. A duas, porque
se poderia argumentar que a teoria jurídica é elucubração intelectual a respeito de
conceitos, institutos, técnicas. Por que autores de livros jurídicos haveriam de ter em
mente um dever de reciprocidade/neutralidade ao elaborar suas ideias?
Em princípio, dever-se-ia, sim, afastar a incidência da razão pública sobre a
elaboração doutrinária. Tratar-se-ia de proposta excessiva para uma simples prática
social de pesquisa e elucubração intelectual.
No entanto, seguindo, aqui, a lição de Lawrence Sollum, a proposta de boa parte
da elaboração teórica no campo do Direito é normativa. Quer dizer, buscar orientar
juízes sobre como devem julgar seus casos, ou, mais raramente, legisladores sobre como

406
Rawls ainda discute ponto mais técnico da razão pública: se se deve adotar uma visão exclusiva ou uma visão
inclusiva ao se operar com ela. Na visão exclusiva (melhor seria, na tradução, “visão excludente”), só se pode
argumentar, a respeito de elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica, com razões públicas.
Na visão inclusiva (ou “visão includente”), em certas situações é possível argumentar com razões tiradas de
doutrinas abrangentes junto com razões públicas. Rawls defende a visão inclusiva porque acredita que ela
estimula mais os cidadãos a usarem a razão pública, além de ser mais flexível e adaptativa a diferentes condições
políticas e sociais. Exemplifica seu argumento mencionando o debate norte-americano sobre a abolição da
escravidão, em que abolicionistas defendiam seu ponto de vista a partir de razões religiosas. “Nessa situação”,
escreve Rawls, “a razão não pública de certas igrejas cristãs apoiava as conclusões claras da razão pública”. De
qualquer forma, Rawls acredita que seja até possível que as visões não se excluam; assim, em situações normais,
prevaleceria a visão excludente e, em situações excepcionais, poder-se-ia apelar a razões não públicas em favor
de conclusões indicadas pela razão pública. “[...] Os limites apropriados da razão pública variam, dependendo
das condições históricas e sociais. [...] O principal é que os cidadãos precisam ser motivados a respeitar o ideal
em si, no presente, quando as circunstâncias o permitem, mas muitas vezes podemos ser forçados a considerar
uma perspectiva mais ampla” (O liberalismo político, p. 298-303). Sobre o tema, com base na própria discussão
exemplificada por Rawls, v. RICHARDS. Public Reason and Abolitionist Dissent. Chicago-Kent Law Review, p.
787-842.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
123

devem formular suas leis ou agentes executivos sobre como devem administrar. Para
o bem e para o mal, a doutrina jurídica típica, também no Brasil, funciona segundo a
lógica do parecer.407 Não seria lógico vindicar a incidência da razão pública quando os juízes
fossem julgar, e, ao escrever artigo cuja proposta é orientá-los em seus atos decisórios, imaginar
que se possa utilizar razões não públicas.
Mesmo acreditando que a linha distintiva entre teoria decisória normativa, de um
lado, e teoria e metateoria do Direito, de outro, é cinzenta, sustentamos que, quando a
doutrina pretende fornecer subsídios decisórios às autoridades, é de se aplicar a razão
pública.408 Nem se argumente com o texto de Rawls: a inferência é lógica.
A segunda questão também nasce a partir do texto de Rawls. Diz respeito à
abrangência da razão pública. Rawls afirma que ela só se aplica às questões básicas de
justiça e aos elementos constitucionais essenciais. Afirma que não se destina a temas
como leis tributárias, normas ambientais, regras de propriedade. É conceito restrito aos
“grandes” temas. Por que, então, haveria de se aplicar a assuntos tão prosaicos como a
constituição de monopólios públicos ou a atuação das sociedades de economia mista?
Por duas razões. A começar, pela opinião do próprio Rawls. Sim, a verdade é que,
embora ele haja afirmado que a razão pública só se aplica aos elementos constitucio-
nais essenciais e às questões básicas de justiça, não fechou posição quanto ao assunto.
No trecho em que fala sobre a restrição, também observa o seguinte: “Mesmo assim,
admito que, em geral, é extremamente desejável resolver questões políticas invocando
os valores da razão pública”.409 Vê-se que há um argumento geral a favor da incidência
da razão pública.
Além disso, ainda em Rawls, os motivos para a restrição de abrangência não
são muito convincentes. Ele apenas anota que, “se não respeitarmos aqui os limites da
razão pública, não será necessário respeitá-los em parte alguma”.410 Charles Larmore
conclui que, ao escrever isso, Rawls sugere que as restrições podem eventualmente ser
levantadas.411
Em suma: se há uma preferência em favor da incidência da razão pública em todas as
questões públicas, e se a justificativa para a restrição é, apenas, um recorte epistemológico em
prol de sua funcionalidade, então, na hipótese em que a questão seja importante, e desde que a
razão pública possa operar a contento, não se aplicará a restrição.
O segundo motivo é mais direto: a discussão sobre a intervenção do Estado na eco-
nomia é, em rigor, discussão sobre a interpretação jurídica do princípio da livre iniciativa. E a
livre iniciativa é elemento constitucional essencial — como direito fundamental — e
toca questões de justiça básica. Assim, nada mais natural do que, à sua interpretação
decisória,412 aplicar o critério da razão pública. Estar-se-ia tratando da interpretação

407
FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista
Brasileira de Pós-Graduação, v. 1, n. 2, p. 53-70, 2004. NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito
no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, p. 145-154, jul. 2003.
408
SOLLUM. Public Legal Reason. Virginia Law Review, p. 1480.
409
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
410
RAWLS. O liberalismo político, p. 264.
411
LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 381.
412
Há quem observe que Rawls não diferencia dois momentos nos quais a razão pública não incidiria e incidiria,
respectivamente: os momentos do “debate” e da “decisão”. Rawls trataria tudo de modo único, mas seria
conveniente distinguir entre o debate público, que deve ser aberto, e não pode ser limitado sequer pelo
critério da razão pública — os participantes do debate, inclusive agentes públicos, devem poder se utilizar
de argumentos particulares tirados de doutrinas abrangentes razoáveis —, e o momento da decisão, na qual
os sujeitos da razão pública, aí sim, só poderiam se valer de argumentos com ela compatíveis. Os benefícios
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
124 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

constitucionalmente adequada do princípio da livre iniciativa; a abrangência da in-


tervenção do Estado na economia seria, tão somente, exemplo de tal interpretação.413

2.4 Uma proposta de razão pública constitucional útil ao Direito


Constitucional Econômico
“Embora recentemente os filósofos políticos hajam devotado bastante conside-
ração à ideia de justificação pública, professores de Direito ainda não o fizeram”.414 A
frase é verdadeira, ainda que o assunto venha num crescendo de importância entre
autores de Direito Público.415 A jurisprudência do STF vem fazendo menções pontuais
à noção de razão pública,416 e Rawls é autor que frequenta o discurso dos ministros
daquela corte.417

de uma discussão irrestrita seriam muitos: as partes poderiam conhecer melhor as posições umas das outras;
ilimitado, o debate poderia fazer com que se mudasse de opinião de modo mais eficiente, ou, ao menos, que se
visse a opinião contrária de modo mais profundo ou nuançado. V. LARMORE. Public Reason. In: FREEMAN
(Ed.). The Cambridge Companion to Rawls, p. 382-393. Ainda, Jeremy Waldron (Religious Contributions in Public
Deliberation. San Diego Law Review, p. 817-848).
413
O argumento de Rawls a respeito da razão pública apresenta certa dificuldade para diferenciar uma discussão
sobre um elemento constitucional essencial/questão básica de justiça (em que se aplicaria a exigência da
razão pública) e uma discussão sobre sua aplicação (em que, via leitura literal de Rawls — com a qual não
concordamos, tanto que não a defendemos no corpo do texto — a razão pública não seria aplicável). Pensemos
no exemplo do aborto. Se o debate do aborto é uma das questões constitucionais essenciais/questão básica de
justiça (é assim que Rawls a discute), por que não o seriam os debates da pesquisa a respeito da implantação de
tecido fetal e dos contratos de barriga de aluguel? E mesmo que a pesquisa com fetos não seja, ela mesma, um
elemento constitucional essencial/questão básica de justiça, sua discussão pode envolver argumentos tirados
de elementos constitucionais essenciais, tais como a adequação constitucional do aborto. Essa discussão,
então, poderia incluir todo tipo de razões não públicas, exceto quando envolvesse o aborto, já que, então, só se
poderiam usar razões públicas? A distinção parece artificial. V. GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent
Law Review, p. 685-688. “Difficult lines of distinction”.
414
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 130.
415
A referência no Brasil sobre o tema, operando na interseção entre Filosofia Política e Direito Constitucional, é
a obra de Cláudio Pereira de Souza Neto (Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel
do Direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática). Prova da popularização
do assunto é a presença do tema “razão pública” num curso de Direito Constitucional como o de Luís Roberto
Barroso, que, pelas virtudes que tenha, ainda é um manual — uma obra de divulgação. V. BARROSO. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 71.
416
Exemplo de menção à razão pública na jurisprudência recente do STF vem em trecho de voto do próprio Luís
Roberto Barroso (v. nota de rodapé anterior) nos embargos infringentes da Ação Penal nº 470 (“Mensalão”). Diz
ele: “Fontes diversas divulgam o sentimento difuso de que qualquer agravamento das penas é bem-vindo e de
que a imputação de quadrilha, em particular, teria caráter exemplar e simbólico. É compreensível a indignação
contra a histórica impunidade das classes dirigentes no Brasil. Mas o discurso jurídico não se confunde com o
discurso político. E o dia em que o fizer, perderá sua autonomia e autoridade. O STF é um espaço da razão pública,
e não das paixões inflamadas. Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder
ser nem um bom exemplo nem um bom símbolo” (grifos nossos). Mais recentemente, o mesmo Luís Roberto
Barroso voltou a mencionar o argumento em seu voto-vista no HC nº 124.306, em que se discutia o aborto. Veja-
se trecho, com nosso destaque: “Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por
quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm direito de se expressar e de defender dogmas, valores
e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido,
criminalizar a posição do outro. Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar partido
e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar
do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja — geralmente porque
não pode — ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”.
417
Em seu voto como relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 — em que
discutiam as cotas étnico-raciais da Universidade de Brasília —, Ricardo Lewandowski cita os dois princípios
da justiça de Rawls para concluir a favor da medida. A referência consta do trecho inicial de João Feres Júnior e
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
125

Vamos continuar tal caminho, focando nossa proposta numa incidência da razão
pública sobre o Direito Constitucional Econômico, e baseando-a no texto da Constituição
da República de 1988.

2.4.1 O que uma razão pública não é


Comecemos com o que a razão pública não é.
Pois bem. Uma razão é razão não pública porque (i) se baseia em alegações empíricas
controversas e/ou não verificáveis, ou porque (ii) se encontra muito próxima de uma determi-
nada concepção de Bem e/ou visão compreensiva, ou, ainda, porque (iii) está profundamente
enraizada numa ideologia política.418
(i) Nenhuma pessoa razoável pode pretender extrair imposição constitucional
(via doutrina), ou decidir um julgado, com base em alegações empíricas controversas ou
incomprováveis. Afirmar que o consumo de pornografia hardcore aumenta as chances de
estupro é alegação incomprovável. Afirmar que casais homossexuais não podem adotar
porque isso é psicologicamente prejudicial aos filhos adotados é alegação duvidosa.
Afirmar que o Estado deve se abster de constituir empresas públicas porque isso, de
modo geral, é negativo para a economia do país é alegação controversa, sendo certo que
há bons estudos e pesquisas científicas a favor e contra maiores níveis de participação
pública no mercado. Por esse aspecto, o filtro da razão pública, aplicado ao Direito
Constitucional Econômico, funciona como elemento de vedação às tecnoburocracias
de todos os matizes.
Apenas verdades científicas ampla e suficientemente aceitas devem servir de
base para a interpretação constitucional.
Nem se alegue que a ciência não é neutra e que as verdades científicas de hoje
podem não o sê-las amanhã. Tudo isso procede, mas há óbvia diferença entre a verdade
científica consistente no fato de o mosquito da dengue estar mais propenso a aparecer
próximo a garrafas cheias d’água, e a afirmação “científica” de que professores primá-
rios gays podem influenciar o comportamento sexual de seus alunos. Um é platitude
científica advinda do sanitarismo — e que, em tese, pode vir a ser contestada, mas ainda
não foi até hoje —, outro é uma afirmação, que pode até haver sido produzida num
contexto científico, mas que é, sob as bases mesmo da ciência, profundamente polêmica.
Outro exemplo: a absoluta maioria dos estudos científicos indica que o vírus HIV
é o causador da AIDS, e que o uso de camisinhas durante a relação sexual é capaz de
impedir o contágio. A Igreja Católica, com base em estudos que afirmam a insuficiência
da camisinha para a prevenção da doença, orienta seus fiéis a não usarem preservativos,
e defende a abstinência ou o relacionamento sexual estável dentro de um matrimônio
como os únicos métodos eficazes de controle da patologia. Isso é válido como razão
não pública (religiosa), mas não pode servir como razão pública. Não se pode extrair
nenhuma imposição constitucional a partir de tal ciência minoritária e polêmica.419

Luiz Augusto Campos (Liberalismo igualitário e ação Afirmativa: da teoria moral à política pública. Revista de
Sociologia e Política).
418
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 141.
419
Outra exigência para que uma razão seja pública é a acessibilidade, ou, se se preferir, a clareza. Os cidadãos
comuns devem ser capazes de compreender as razões utilizadas para a interpretação da constituição. Razões
esotéricas ou ultratécnicas, entendidas somente por pouquíssimas pessoas, não são razões públicas. Isso se
conecta à ideia de incontrovérsia científica porque, por vezes, teses científicas polêmicas disfarçam-se sob
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
126 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

(ii) Uma razão muito próxima ao conteúdo de uma determinada concepção de Bem ou
de uma específica visão compreensiva e, no extremo, uma razão que (iii) está profundamente
enraizada numa ideologia política não são razões públicas. Isso porque não são capazes de
ultrapassar um filtro de reciprocidade. Elas valem para quem nelas acredita, mas não é
razoável que se espere que todos os integrantes de uma comunidade política, com seus
backgrounds, gostos, preferências, formação cultural, experiências de vida etc., estejam
obrigados a com elas concordarem.
Além do critério da submissão dos argumentos à posição de argumentos de um
tribunal constitucional, sugestão de Rawls, outro teste interessante para detectar razões
não públicas é o que segue.
Imagine que você, na qualidade de juiz, está sozinho num quarto com um réu.
Precisa explicar-lhe os resultados do julgamento que vai aprisioná-lo pelos próximos
dez anos. Quais razões seriam aceitáveis? Dizer que o réu se permite práticas bárbaras,
que extrai prazer do vício, que é um ser moralmente inferior, que é uma aberração, que
você sabe o que é melhor para a vida dele? Tais argumentos seriam inaceitáveis. Basta
se colocar no papel de réu para entendê-lo.
Pensemos em termos de Direito Constitucional Econômico e com base nas razões
não públicas que habitam seu debate. Quem discorda que o Estado deve, por suposta
imposição constitucional, abdicar da prestação de certos serviços ou do desempenho de
algumas atividades econômicas, não deve ser tido como ultrapassado e sequer ter suas
razões consideradas. E não apenas por respeito à dignidade ou à autonomia das pessoas,
mas até — e aqui, por curioso que soe, a justificação de um argumento característico da
democracia deliberativa se aproxima de certas formas democráticas não deliberativas —
por estratégia.420 É que a maioria de hoje pode vir a ser a minoria de amanhã.
Quem hoje defende, como imposições constitucionais, pautas de intervenção mí-
nima do Estado na economia deve estar aberto a aceitar, amanhã, a defesa de propostas
de intervenção substancial, também como supostas exigências extraídas da Constituição
de 1988.421 Uma espécie de viagem redonda — os dois extremos se tocam e não se sai
do lugar — das razões não públicas.

linguagem complexa para, gozando do prestígio que o status de ciência lhes traria, esconder seu conteúdo
controverso. V. OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 160.
420
Há outro motivo “estratégico”, por assim dizer, para o uso de razões públicas junto às cortes constitucionais e,
de modo geral, na interpretação constitucional: é que, ao relegar certas razões com as quais não se concorde ao
status de não razões, estimula-se o conflito por vias não ordinárias. O ideal de pacificação social é, então, mais
um motivo para o uso de razões públicas.
421
Como são comuns em algumas obras do chamado “constitucionalismo social”, da Constituição dirigente, ou em
visões mais extremadas da eficácia jurídica dos direitos sociais. A respeito da incompatibilidade entre esse tipo
de uso de razão não pública, extraído da área não universalizável de uma determinada doutrina abrangente, de
cunho social, e as propostas democrático-deliberativas, é ler o trecho de Cláudio Pereira Neto: “Para a ‘teoria
cooperativa de democracia deliberativa’, aqui defendida, não é possível estabelecer para as gerações futuras
um projeto social determinado. Isso corresponderia a petrificar uma doutrina abrangente em detrimento das
demais doutrinas que, com igual legitimidade, habitam as sociedades contemporâneas; significaria negar a
possibilidade de as demais doutrinas abrangentes razoáveis verem realizadas não só no presente, mas também
no futuro, o seu projeto social, com sérios prejuízos para a cooperação democrática em contextos de pluralismo”
(Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para
a cooperação na deliberação democrática, p. 268).
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
127

2.4.2 O que nossa proposta de razão pública é: características, natureza


jurídica, sede constitucional e uma noção de razão pública útil ao
Direito Constitucional Econômico
Mencionamos o que a razão pública não é, ou, mais precisamente, quais as
características das razões não públicas. Agora é o momento de identificar, em nossa
proposta, as características das razões públicas adaptativas à interpretação do Direito
Constitucional Econômico.
Uma razão pública é (i.a) fundada em evidência científica amplamente majoritária no
âmbito científico, ou (ii.a) não filosoficamente “profunda”, e, em todo o caso, (iii.a) universa-
lizável e passível de aceitação por todos os participantes do debate político-econômico como uma
razão que os respeita na condição de agentes igualmente dignos de consideração.
(i.a) Assim como uma razão não pública pode se basear numa afirmação científica
isolada, porque não se dirige à comunidade política por inteiro, mas “fala” apenas a
quem adira a uma doutrina abrangente particular, razões verdadeiramente públicas
só podem se basear em premissas científicas amplamente majoritárias no âmbito da ciência
tradicional. Valem, aqui, as observações anteriores. Embora a ciência progrida por su-
cessivas demonstrações de erro, e, em rigor, a verdade científica seja sempre provisória,
há, nela, um platô de segurança. É com base nesse platô que se constroem as razões
públicas fundadas em premissas científicas.
Em relação à interpretação do Direito Constitucional Econômico, tais razões
públicas são incomuns, uma vez que os saberes nas quais se poderia basear alguma
proposta interpretativa — a Economia e, possivelmente, a Psicologia Comportamental
e a Sociologia — são bastante divergentes.
(ii.a) A razão pública é “rasa”,422 no sentido não pejorativo que se popularizou no
Direito Constitucional americano. Ela não se pronuncia a respeito de questões profun-
das, fundacionais ou “de essência”, na medida em que isso pode impedir a cooperação
numa sociedade contemporânea.
Há, aqui, até certo ponto de contato com a filosofia pragmatista. Enquanto o
pragmatismo filosófico é antifundacionalista porque vê nos dogmas filosóficos vacui-
dades não experimentais, a razão pública é antifundacionalista porque quer reforçar a
estabilidade social e não quer ser injusta com quem não concorde com seus pressupos-
tos. Assim, argumentos que associam a subsidiariedade da intervenção do Estado na
economia a afirmações filosóficas quanto à natureza da ação humana ou a proposições
de Direito Natural (ver discussão no capítulo 1 da segunda parte) não ultrapassam o
filtro da razão pública. Não são “rasos”, mas profundos; tomam partido a respeito do
que é ou do que deve ser o homem, a natureza humana etc.
Se isso vale para afirmações filosóficas profundas da linha “prioridade para o
indivíduo”, vale, também, para proposições filosóficas que buscam associações orgânicas
entre o indivíduo e o Estado. Dois riscos que não valem a pena correr.
(iii.a) A razão pública é universalizável e passível de aceitação por todos os participantes
do debate político-econômico como uma razão que os respeita na condição de agentes igualmente
dignos de consideração. Ela é percebida como estando dentro do espectro de aceitabilidade
racional das razões. Talvez não seja a primeira opção de muitos agentes deliberativos,
mas é algo que não violenta sua autopercepção de dignidade.

422
LLOYD. Relativizing Rawls. Chicago-Kent Law Review, p.719.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
128 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A exigência da razão pública é, tecnicamente, algo além da acessibilidade das


razões:423 ela não apenas é capaz de ter seu conteúdo compreendido, como este é
percebido como um conteúdo que trata todos os participantes como dignos de igual
consideração e respeito.
Por exemplo: uma razão como “as mulheres devem se submeter aos homens
porque é assim que quis Jeová” não tem sequer conteúdo racionalmente acessível. É
uma razão não pública por esse motivo. Já uma razão do tipo “televisão em excesso
faz mal, e, portanto, eu me reservo o direito de indicar em quais momentos você está
autorizado a assistir-lhe” é razão cujo conteúdo é compreensível em termos racionais —
não há qualquer apelo a uma autoridade religiosa ou a conceito metafísico abstruso;
a ideia de que televisão em excesso possa fazer mal é racionalmente acessível —, mas
não é razão que trata todos os participantes de modo igualmente digno de consideração
e de respeito, porque seu destinatário é tido como alguém incapaz de ter seus gostos
levados em consideração.424
Segundo alguns, a razão pública, ao tratar todos igualmente de modo respeitoso,
seria capaz de motivá-los à cooperação democrática, sendo esse elemento essencial
de sua definição, ou, ao menos, da noção de democracia deliberativa na qual restaria
inserida uma democracia deliberativo-cooperativa.425
De fato, não é difícil imaginar agentes que tenham suas opiniões razoáveis con-
sideradas mais motivados para a cooperação democrática. Incluídos no processo de
deliberação pública, tirados da clandestinidade deliberativa, os participantes se sentem
convidados a participar de forma ativa da formação do conteúdo das decisões públicas.
Há duas doutrinas abrangentes razoáveis, que, no debate constitucional-econô-
mico, projetam-se como dois constitucionalismos econômicos: um constitucionalismo
econômico-social, ou social-dirigente, e um constitucionalismo econômico-liberal.426
Por maiores que sejam seus méritos, não se prestam à produção de razões públicas
constitucionais, embora possam, respeitadas certas garantias mínimas de ação e de
inação do Estado, influenciar legitimamente na produção legislativa infraconstitucional.
Pensemos, por exemplo, no caso do constitucionalismo econômico-liberal.
Vincular a noção de Estado de Direito à inexistência de políticas de redistribuição de
renda, de planejamento estatal ou de controle de preços, como faz Hayek, ao alegá-las
contrárias à regra da generalidade;427 ou associar a noção de Estado de Direito à ideia

423
Até porque uma razão racionalmente inacessível talvez sequer se possa afirmar como uma razão propriamente
dita. Nesse sentido, Eric Macgilvray: “Dizer que aceitamos uma razão como pública não quer dizer que a
percebemos como incontroversa, ou que acreditamos que ela forneça bases decisivas para a ação, mas, apenas,
que reconhecemos sua autoridade enquanto razão. Isso significa, dentre outras coisas, que a razão em questão
não apela a valores que não são comumente aceitos como tais; que ela não apela a uma autoridade epistêmica
que não é usualmente reconhecida — tal como um texto sagrado, uma experiência de revelação, ou um insight
esotérico metafísico; e que ela não apela a premissas empíricas que são extremamente alienígenas para o nosso
estado atual de entendimento” (MACGILVARY. Reconstructing Public Reason, p. 172, grifos no original).
424
A respeito da distinção entre razões acessíveis e razões públicas, ver Kent Greenawalt (Private Consciences and
Public Reasons, p. 6). É óbvio que estamos pressupondo participantes com plena capacidade deliberativa, ou
seja, dois adultos normais.
425
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das
condições para a cooperação na deliberação democrática, passim.
426
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo
econômico e o constitucionalismo democrático. In: COUTINHO; LIMA (Org.). Diálogos constitucionais: direito,
neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos, p. 119-131.
427
HAYEK. The Road to Serfdom, p. 80-88 (“Toda legislação ou política pública visando diretamente a um ideal
substantivo de Justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito”, p. 88); HAYEK. The Constitution of
Liberty, especialmente cap. 14, 15.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
129

de independência dos bancos centrais,428 são argumentos que, extraídos diretamente


do coração de uma doutrina abrangente razoável, não são universalizáveis e não tra-
tam todos os integrantes da comunidade política como dignos de igual consideração
e respeito. É fácil explicar.
Uma pessoa favorável a algum grau de controle político dos bancos centrais,
ou algum nível de redistribuição de renda, simplesmente não terá como ver seus ar-
gumentos disputados na arena política. Estaria pré-excluída da deliberação pública,
pois, se o Estado de Direito (ou, alternativamente, a própria Constituição) impõe uma
concepção modelar de Estado, de sociedade e/ou da relação entre ambos, quem quer
que discorde não terá sequer considerados os seus argumentos, por mais razoáveis que
possam parecer. E isso é tratar tais pessoas como agentes indignos de consideração e de
respeito, uma vez que existe importante conexão entre respeitar as pessoas e respeitar
suas opiniões.429
Identificadas as características de nossa proposta de razão pública a ser utilizada
no debate de Direito Constitucional Econômico, resta caracterizar sua natureza jurídica.
Será um princípio jurídico? Uma regra? Não ingressaremos nesse debate. Podemos chamá-
lo de “princípio”, entre aspas, critério interpretativo ou, genericamente, de filtro de argumentos
ou de razões. Ao contrário de Rawls, que acredita que a razão pública é apenas um dever
cívico, acreditamos ser possível, especialmente em conexão com outros argumentos
jurídicos, propor a inconstitucionalidade de determinada interpretação constitucional
com base na razão pública.
Ora, se é assim, nossa razão pública deve ter alguma base constitucional; ser
“mais” do que critério doutrinário. E ela tem. Propomos aqui que nosso critério da razão
pública tenha base constitucional no art. 1º, V, da Constituição da República de 1988 — o
princípio do pluralismo político.430 431
Trata-se, é óbvio, de entender pluralismo político em sentido profundo, não
apenas significando a coexistência de vários partidos no sistema eleitoral, mas também,
e principalmente, a coexistência de múltiplas concepções de sociedade e de Estado
acobertadas ao seio da Constituição de 1988.432
Dessa forma, é possível afirmar que uma interpretação jurídica que não ultra-
passe o filtro da razão pública, ao se constituir num uso de uma razão não pública, é
inconstitucional porque viola o princípio constitucional do pluralismo político, sendo,
então, inválida.

428
V. SEJERSTED. Democracy and Rule of Law: Some Historical Experiences of Contradictions in the Striving for
Good Government. In: ELSTER; SLAGSTAD (Ed.). Constitutionalism and Democracy: Studies in Rationality and
Social Change, p. 141 et seq.
429
LARMORE. Patterns of Moral Complexity, p. 62.
430
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] V - o pluralismo político.
431
Há diversos outros dispositivos normativos constitucionais, para além do art. 1º, V, que institucionalizam o caráter
pluralista do Estado Democrático de Direito brasileiro. Numa lista não exaustiva: liberdade de pensamento (art.
5º, IV), liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), liberdade sindical (art. 8º), liberdade de criação de
partidos políticos (art. 17). Outra possível base constitucional para a razão pública seria o princípio republicano
(art. 1º da CRFB/88), entendido não apenas como vedação da apropriação privada da coisa pública, mas como
dever de imparcialidade. Defendendo a fundamentação constitucional da razão pública também no princípio
republicano, v. MENDONÇA; SOUZA NETO. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do
princípio constitucional da livre iniciativa. In: SARMENTO; SOUZA NETO (Org.). A constitucionalização do
direito. Para o dever de imparcialidade, cf. ÁVILA. O princípio da impessoalidade da Administração Pública: para
uma Administração imparcial, p. 107 et seq.
432
BULOS. Constituição Federal anotada, p. 87; SILVA. Comentário contextual à Constituição, p. 39-40.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
130 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Por tudo o que foi visto até aqui, é possível apresentar uma definição nos seguintes
termos: uma razão pública constitucional útil ao Direito Econômico é uma razão prática que, sem
apelar a premissas empíricas ou filosóficas contestáveis, trata igualmente todos os participantes
de um debate público a respeito da Constituição Econômica com respeito e consideração. Ela serve
paraafastar, por inconstitucionais (contrários ao art. 1º, V, da Constituição da República), argu-
mentos que, ao interpretar a Constituição Econômica, façam-no em bases empíricas controversas,
ou segundo preconcepções filosóficas abstrusas, ou, ainda, adotando posições excessivamente
ideológicas ou muito próximas a concepções particulares de Bem.

2.5 A razão pública é útil? Sincera? Possível? Críticas à razão pública


Como tudo na vida, a proposta de Rawls não foi e não é aceita sem críticas. O
presente item não se propõe a descer a detalhes, bastando um apanhado das mais im-
portantes. Na medida em que nossa proposta de razão pública é, essencialmente, uma
proposta rawlsiana, faz-se importante identificar os principais problemas apontados
na formulação do filósofo americano.
Ei-los: ao longo de anos, foi dito que a ideia rawlsiana de razão pública (i) é es-
téril, porque foge aos principais debates de uma época e de um lugar; (ii) é impossível,
porque, em nenhuma hipótese, os juízes conseguiriam deixar de julgar questões morais
complexas sem se apoiar em convicções morais controversas; (iii) é ampla demais, dei-
xando de fornecer bons motivos para que se restringissem razões não públicas; (iv) é
restritiva demais, deixando de lado argumentos e razões importantes; (v) é incoerente, ao
fazer parte do mal cuja cura pretenderia ser: a concepção de “pessoa” e de “autonomia”
pressupostas pelo liberalismo político no qual o conceito se inclui faria com que este,
ao invés de flutuar acima de visões controversas, fosse, apenas, mais uma proposta
sectária como as demais. Analisemos cada uma das críticas.433
(i) A razão pública seria estéril, ou, mais precisamente, o liberalismo minimalista
que lhe seria subjacente, com seus requisitos de autocontenção e de imparcialidade
política, acabaria se afastando dos principais problemas — morais, religiosos — que
seriam o sal da sociedade contemporânea. Além de ser pouco plausível a diferencia-
ção entre questões políticas e questões filosóficas, e da pressuposição de que nada de
útil poderia ser extraído das porções não neutras das doutrinas abrangentes — como
se não houvesse nenhum argumento religioso, moral ou ideológico que conseguisse
“ultrapassar as amarras” da religião ou da ideologia e contribuir para a sociedade
como um todo, o que seria falso —, a razão pública afastar-se-ia das mais importantes
polêmicas de nosso tempo e lugar. Ao fazê-lo, em alguns casos, acabaria por secundar
óbvias injustiças.
Michael Sandel, crítico de Rawls, propõe exemplo baseado na história americana.
No debate travado entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas sobre a moralidade da
escravidão, Sandel sugere que os liberais ficariam ao lado deste último, o qual defendia
que, como as pessoas sempre iriam polemizar a respeito do assunto, o Estado deveria

433
Claro que outras críticas, além das que sistematizamos aqui, são sempre possíveis. Há críticas até dentro da
linha kantiana. Habermas prefere falar num “uso público da razão” por se preocupar mais com exposição do
pensamento no espaço público de modo a submetê-lo a contra-argumentos e adesões, ao invés de remeter a
critérios substantivos de democracia, cujo efeito indesejado, segundo Habermas, é promover mais a estabilidade
do que a autonomia política (HABERMAS. Reconciliação por meio do uso público da razão. In: HABERMAS. A
inclusão do outro: estudos de teoria política, p. 65 et seq.).
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
131

se manter neutro, deixando que as populações dos territórios decidissem, talvez até
em prol da estabilidade social. Lincoln, ao contrário, acreditava que o Estado federal
devesse tomar partido contra a escravidão, que considerava um mal moral.434
Ou seja: as constrições da razão pública, por vezes, levariam a uma tibieza na
ação do Estado, o que, no limite, poderia significar uma omissão imoral.
(ii) A razão pública seria impossível, porque os julgadores nunca conseguiriam
deixar de decidir questões morais complexas sem se apoiar em convicções morais
controversas.
Um dos grandes enunciadores dessa crítica é Ronald Dworkin. Num artigo
chamado “Rawls and the Law”, incluído na coletânea Justice in Robes, Dworkin critica
alguns pontos da teoria política rawlsiana, e um deles é a razão pública. Dworkin começa
a crítica resumindo a proposta de Rawls (que considera “difícil de definir e de defender”).
Só se podem usar razões que todos os membros razoáveis de uma comunidade possam
razoavelmente adotar; as justificações devem se basear nos valores políticos comuns
da comunidade, e não em doutrinas morais ou filosóficas abrangentes. Mas Dworkin
não consegue ver o que a doutrina da reciprocidade exclui: “Se acredito que uma
posição moral controversa está claramente correta, por exemplo, a de que as pessoas
são responsáveis por suas vidas e devem assumir financeiramente seus erros, como
não acreditar que as outras pessoas, e a minha comunidade, possam razoavelmente
aceitá-la, sendo ou não provável que isso venha a acontecer?”435
Dworkin ainda vê (como Michael Sandel) dificuldades na diferenciação entre valo-
res políticos e convicções morais abrangentes. Ele acredita que a própria base teórica de
Rawls — a ideia de Justiça como equidade — dependa de uma série de pressuposições
morais controversas, como a que haveria, por exemplo, no princípio da diferença, que
pode chegar a privilegiar o não esforço pessoal dos menos favorecidos na sociedade,
subscrevendo, então, a tese polêmica da irrelevância moral do esforço (se a introdução de
benefícios num dado sistema social só pode ser feita em prol dos menos favorecidos —
essa é a essência do princípio da diferença —, e isso acabar beneficiando os preguiçosos,
a proposta de Rawls é indiferente a isso). “A proposta de Rawls é certamente contro-
versa em nossa comunidade, e algumas pessoas podem rejeitá-la em favor de uma
teoria da justiça distributiva que dependa mais da responsabilidade pessoal”.436 Mas
a impossibilidade da razão pública é mais bem ilustrada, segundo Dworkin, a partir
dos próprios exemplos de Rawls.
De fato: na controvérsia do aborto, citada por Rawls em diversas ocasiões como
hipótese em que a Suprema Corte americana só deveria fazer uso de razões públicas,437
ao retirar a questão sobre se o feto possui direitos próprios, incluindo o direito à vida,
do debate constitucional — tratar-se-ia de discussão calcada em razões não públicas —,
Dworkin levanta dúvidas sobre a possibilidade de isso acontecer. Ele acredita que a visão
de que o feto não possui direitos e interesses é produto de uma doutrina abrangente

434
SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy, p. 21-23.
435
DWORKIN. Justice in Robes, p. 252.
436
DWORKIN. Justice in Robes, p. 253.
437
É importante destacar que, no Brasil, foi apresentado, pelo Professor Luís Roberto Barroso, Memorial numa
discussão judicial no STF sobre o aborto do feto anencefálico — a ADPF nº 54 — em que o argumento da razão
pública é expressamente referido (BARROSO. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54:
demonstração de seu cabimento. Memorial da autora. In: BARROSO. Temas de direito constitucional). Depois, já
como ministro do STF, Luís Roberto Barroso voltou a mencionar o argumento em seu voto no HC nº 124.306 (v.
referência em nota de rodapé acima).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
132 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

como todas as outras, e a Suprema Corte, ao julgar, acaba tendo que efetivamente esco-
lher uma delas. Não haveria, aqui, nenhum meio-termo. Mesmo ao decidir que o aborto
é possível até o terceiro mês de gravidez, resultado da Suprema Corte americana no
caso Roe vs. Wade, até hoje o precedente americano para a questão, os juízes tomaram
partido numa controvérsia moral ao afirmar que o aborto é possível.
Dworkin, essencialmente, não acredita na possibilidade do uso da razão pública.
Ou o argumento exigiria uma trivialidade — juízes não podem defender determinada
interpretação da lei apenas porque a consideram pessoalmente melhor —, ou algo
impossível: extirpar do julgamento o posicionamento moral do juiz. Em suas palavras:
Na discussão da razão pública, Rawls afirma que em nenhuma hipótese os juízes podem fazer
uso de suas convicções morais pessoais. Se isso significa que um juiz não pode argumentar
que uma justificação passada da lei é superior porque ele acha isso, então tal afirmação é
obviamente correta. A biografia intelectual de um juiz não é argumento jurídico. Mas, se isso
significa que um julgador não pode abrir qualquer espaço a opiniões morais controversas em
sua decisão, porque, aí, estaria citando as opiniões morais que ele, mas não outros, consideram
corretas, então a razão pública propõe uma exigência impossível. Em nenhuma concepção
de Direito — positivista ou interpretativista — é possível que os juízes, em comunidades
pluralistas complexas, desempenhem suas responsabilidades institucionais sem se basear
em convicções morais controversas.438

Kent Greenawalt, por sua vez, se não chega a afirmá-la impossível, possui dúvi-
das sobre a utilidade da razão pública, cujo uso seria contraintuitivo, para não falar na
dificuldade de identificar quais questões estariam a ela submetida. “Muitos cidadãos
e legisladores [...] achariam estranho que as referências às fontes de autenticidade para
muitos assuntos políticos estivessem, em algum grau, proibidas a eles em relação a uma
categoria particular de assuntos, nem sempre tão fácil de identificar”.439
De um modo geral, todas as críticas endereçadas às exigências de neutralidade
dos juízes e de intérpretes jurídicos em trabalhos que pressuponham imparcialidade
(como doutrinadores em livros e artigos jurídicos científicos) poderiam se encaixar aqui:
a neutralidade é impossível; não se pode exigir o que jamais se vai conseguir. O que se
poderia exigir, no máximo, seria a transparência — deixar clara a afinidade ideológica
do trabalho ou da decisão —, jamais a neutralidade.
Também se alega que a razão pública (iii) seria genérica demais, deixando de
fornecer bons motivos para que se restringissem razões não públicas. Genérica aqui
não no sentido de vaga, mas como sinônimo para fraca, incapaz de compelir alguém
a algo. Explica-se.
Micah Lott imagina duas situações hipotéticas. Na primeira delas, o Dr. X é cien-
tista especializado em investigar a vida dos grandes símios. Em virtude de pesquisa
inusitada, mas realizada com base em métodos científicos, Dr. X verifica que os chim-
panzés são capazes de raciocinar e de argumentar de modo próximo ao dos humanos;
eles possuem capacidade de formular uma concepção de Bem e de Justiça, daí, tal
como os homens, serem sujeitos de direitos. Os métodos da pesquisa do cientista são
inovadores, e poucas pessoas no mundo são capazes de entendê-los. A comunidade
científica em geral se mostra cética em relação aos seus resultados, que, no entanto,
são objetivamente verdadeiros. O Dr. X estaria numa situação próxima à de Copérnico:

438
DWORKIN. Justice in Robes, p. 254.
439
GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent Law Review, p. 687.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
133

conclusões científicas verdadeiras, que, inobstante isso, provocaram grandes controvér-


sias. Nesse ínterim, uma empresa conclui que é de seu interesse monetário matar (ainda
que de modo indolor) centenas de chimpanzés que estão hoje em seus laboratórios de
pesquisa. A questão do assassinato dos chimpanzés gera polêmica, e surge um projeto
de lei no Congresso tornando ilegal a morte dos símios.
Diante a situação, o Dr. X, que, além de cientista brilhante, é, em Filosofia
Política, um rawlsiano convicto, é chamado a opinar a favor do projeto de lei com o
qual concorda. Mas há um dilema. Ele sabe que suas conclusões em favor da vida dos
grandes símios são baseadas em pesquisa científica contestada e minoritária, sem falar
que os resultados são contraintuitivos, e, provavelmente, incapazes de serem aceitos
pela maioria da sociedade. Ou seja, suas razões em favor dos símios não ultrapassam
o teste da razão pública. Mesmo assim, ele sabe que os chimpanzés são agentes morais,
e, portanto, não podem ser sacrificados. E é com base nisso que ele defende o projeto
de lei: com base em seu conhecimento pessoal, mas não em razões públicas. Mesmo
querendo, ele não conseguiu respeitar o dever da razão pública.
Segunda situação: a pastora Lopez pertence a uma congregação evangélica.
Acredita que o aborto é errado porque representa a destruição de uma vida inocente.
Sua fé faz parte de uma doutrina abrangente que é razoável. Além disso, ela chegou
a uma conclusão a respeito do aborto de um modo que não é desarrazoado: lendo as
escrituras de sua fé, refletindo sobre a tradição moral compartilhada entre os crentes e
consultando livros médicos. Ela é também uma rawlsiana convicta, mas não consegue
fornecer razões públicas em favor de sua visão sobre o aborto — seja porque sua visão
possui componente irredutivelmente teológico, seja porque os recursos da razão pública
são insuficientes para embasar sua opinião.
De qualquer modo, ela se sente compelida a defender um projeto de lei, também
em discussão no Congresso, que, se aprovado, reduziria em vinte por cento o número
total de abortos em seu país. O que ela deveria fazer: respeitar o dever cívico imposto
pela razão pública, e, portanto, não se manifestar — afinal, ela não tem como oferecer
nenhuma razão conforme a razão pública em apoio à causa —, ou, ignorando tal dever,
defender o projeto de lei com base em suas razões não públicas?
Aqui novamente, parece claro que a constrição representada pela razão pública
(um dever cívico de respeito às opiniões universalizáveis) provavelmente vai acabar
cedendo terreno ao dever, muito mais concreto na opinião da pastora, de salvar milhares
de vidas inocentes.
Com base nesses exemplos, Micah Lott conclui o seguinte:
Os casos que são os alvos principais para a aplicação da razão pública — questões constitu-
cionais essenciais e de justiça básica — são precisamente aqueles casos em que as pessoas
muito provavelmente perceberão seu dever de agir em prol de determinadas medidas como
da mais alta importância, tão importantes que este dever, ao conflitar com o dever cívico
imposto pela razão pública, irá seguramente superá-lo. Assim, exatamente nos casos em que o
ideal de razão pública se destinaria a restringir as pessoas a que agissem com base nas razões
que, de outra maneira, elas agiriam, podemos esperar que ela seja incapaz de fazer isso.440

O jogo não estaria de todo perdido para a razão pública. A simples consideração do
respeito ao dever cívico imposto pela razão pública, nos dois exemplos, já seria indicativo

440
LOTT. Restraint on Reasons and Reasons for Restraint: a Problem for Rawls’ Ideal of Public Reason. Pacific
Philosophical Quarterly, p. 79.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
134 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de alguma utilidade para a proposta de Rawls. Em todo caso, a razão pública não seria
capaz de, confrontada com deveres mais urgentes — o que, para os elementos consti-
tucionais essenciais e questões básicas de justiça, seriam quase todas as situações —,
representar alguma constrição mais firme.
(iv) A razão pública seria restritiva demais, deixando de lado argumentos e razões
eventualmente necessários à motivação concreta dos cidadãos para a decisão.
Para entender a crítica, há de se considerar alguns detalhes técnicos da teoria
rawlsiana da razão pública. Num primeiro momento, Rawls defendeu o que chamou
de “visão inclusiva” da razão pública: em certas situações excepcionais, poder-se-ia
defender determinada posição com base em razões não públicas, desde que, a elas,
fossem simultaneamente agregadas razões públicas.
Posteriormente, Rawls passou a defender uma “visão ampla” de razão pública:
em todos os casos — e não apenas nas hipóteses excepcionais da formulação anterior —,
poder-se-ia avançar uma proposição apenas com base em razões não públicas, desde
que, “no tempo devido” (in due course), fossem apresentadas, também, razões públicas.
Há, então, uma nítida flexibilização nos requisitos de observância da argumen-
tação com base na razão pública. Em todos os casos, não só em situações excepcionais,
é possível argumentar com razões não públicas, desde que, depois (e não simultanea-
mente), sejam apresentados argumentos conforme a razão pública em apoio à causa.
Mesmo assim, há autores, como David Reidy, que acreditam que a “visão ampla”
da razão pública ainda não seja ampla o suficiente. Haveria dois problemas: a razão
pública não seria autônoma nem completa.
Para demonstrá-lo, Reidy cita os problemas gerados pela ação afirmativa, pela
clonagem humana, pela regulação da prostituição, da pornografia, da eutanásia. Alguns
cidadãos, afirma ele, conseguirão extrair uma resolução para a ação apenas a partir
da razão pública, mas a maioria, não. Esta maioria terá necessidade de hierarquizar
valores de modo a chegar a alguma conclusão. Ora, a razão pública não forneceria os
meios racionais de se ordenar os valores relevantes ao caso. Os agentes só teriam, via
razão pública, apelo a que decidissem “de modo a que todos os outros se sentissem
respeitados com a decisão” — o que seria pouco. A razão pública seria incompleta e
heterônoma. Para decidir, ela não seria, por si só, capaz de indicar a decisão; haver-se-ia
de apelar a outra ordem de argumentos.
Outra prova da heteronomia e da incompletude da razão pública viria por inter-
médio de alguns problemas representados pelo modo como certas questões preliminares
ou de background não encontrariam resposta apenas por ela. A questão dos direitos
dos animais ou das leis ambientais seriam exemplos. Muitas pessoas considerariam a
razão pública incapaz de guiá-los no ponto, e não exatamente porque não fornecesse
um critério de ordenação de valores, mas à conta da própria qualificação dos animais ou
da relação do homem com a natureza. Animais têm direitos? Podem ser apropriados
pelo homem? A relação homem-meio ambiente é algo pré-político ou decorre de uma
construção social? Para nada disso a razão pública é capaz de fornecer respostas.
A razão pública, mesmo numa “visão ampla” — já que, afinal, em algum mo-
mento da justificação ela vai ter que aparecer —, seria incompleta e heterônoma, e isso
seria provado por esses problemas de ordenação de valores ou de qualificação. Nessas
duas espécies de situações-limite, os cidadãos só poderiam apelar a razões não públi-
cas. David Reidy chega a sugerir a adoção de visão ainda mais ampla de razão pública,
embora reconheça que isso possa comprometer os ideais de autonomia política e de
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
135

legitimidade.441 Sem entrar no mérito dessa proposta, e para o que nos importa, a razão
pública é criticada por ser restritiva em excesso: seria incapaz de guiar a deliberação
pública numa série de casos.
(v) O conceito rawlsiano de razão pública, por fim, seria incoerente, fazendo parte
do mal cuja cura pretenderia ser. A concepção de “pessoa” e de “autonomia” pressu-
postas pelo liberalismo político no qual o conceito se inclui442 faria com que ele, em
vez de flutuar acima de visões controversas, fosse apenas mais uma proposta sectária
como as demais.
Essa crítica é comum entre conservadores americanos, que alegam que a razão
pública esconde uma contradição. Ao se colocar acima da política usual, mas preten-
dendo delimitar o espectro de escolhas políticas possíveis, ela no fundo incorporaria
uma visão controversa — tão sectária quanto as outras — de autonomia individual.443
A razão pública, aqui redefinindo o casamento, ali criando condições com base
nas quais toda discussão séria sobre ensino religioso nas escolas públicas é tida por
ilegal, permitiria a assunção de teses controversas com as quais não necessariamente
concordariam todos os cidadãos razoáveis de uma sociedade pluralista contemporânea.
Segundo tal crítica, o debate entre os defensores da razão pública e seus oposi-
tores seria apresentado, pelos primeiros, como uma luta entre os gregos e os bárbaros:
de um lado, os que tentam ser tolerantes e respeitosos; de outro, os que querem impor
ideais morais sectários.444 Uma derivação dessa crítica alega que a razão pública seria
um argumento trapaceado, já fixando, de antemão, o resultado da deliberação pública:
“A razão pública é uma doutrina elaborada e promovida por Rawls e outros liberais [...]
que quase sempre tem o efeito de fazer com que a posição liberal seja a vencedora em
controvérsias morais”.445 “A obscuridade [de seus limites] e a autoridade com que Rawls
e seguidores subscrevem-na fazem com que sirva de encantamento mágico para uso no
calor do debate — ou na tranquilidade da Academia — para avançar causas partidárias,
ao eliminar a discussão, anular o questionamento e estancar a mente inquisidora”.446

441
REIDY. Rawls’s Wide View of Public Reason: not Wide Enough. Res Publica, passim.
442
O termo liberalismo político, no contexto da discussão americana de filosofia política, relaciona-se a uma
proposta atenta à redistribuição de renda e à igualdade de oportunidades. É nela que se encaixa a filosofia
política de Rawls, cujos princípios de justiça — o princípio da igualdade e o princípio da diferença — podem
ser traduzidos, grosso modo, como uma vindicação da igualdade de oportunidades e da introdução de
restrições à igualdade apenas quando disso resultar benefício aos que estão no sopé da pirâmide social. Tais
princípios deram sustentação teórica, por exemplo, a propostas de ação afirmativa e de tributação progressiva.
Contra o liberalismo aparece o comunitarismo, linha de filosofia política cuja ênfase não está no indivíduo
nem no discurso dos direitos, mas na comunidade, nos deveres da pessoa para com a coletividade, e em
aspectos culturais. E há, ainda, o libertarianismo, antiestatal, contrário a políticas redistributivas públicas. As
três correntes são específicas à realidade americana. O sentido comum do que seja um liberal, no Brasil e na
Europa, está mais próximo ao de libertariano nos EUA. Numa analogia bastante crua, o liberal seria algo como
um social-democrata à francesa, e o libertariano, aquilo que, aqui e na Europa, convencionou-se chamar de
neoliberal.
443
“Quando alguém defende que o valor da autonomia deva ser respeitado, pode ser virtualmente impossível
para ele e para os outros afirmar se ele está se baseando numa doutrina abrangente específica ou no valor
compartilhado da autonomia em nossa cultura. Perspectivas abrangentes liberais não religiosas estão destinadas
a ‘sofrer menos’ por parte de um princípio de autocontenção do que tanto as visões religiosas quanto as não
religiosas não liberais” (GREENAWALT. On Public Reason. Chicago-Kent Law Review, p. 669).
444
“É incrível quão previsíveis e unificadas são as conclusões [dos defensores da razão pública] a respeito de
temas como o aborto, o suicídio assistido, a reforma das campanhas eleitorais e sua relação com a liberdade de
expressão” (WESTMORELAND. The Truth About Public Reason. Law and Philosophy, p. 287).
445
WOLFE; GEORGE. Natural Law and Liberal Public Reason. American Journal of Jurisprudence, p. 31.
446
BERKOWITZ. The Ambiguities of Rawls Influence. Perspective in Politics, p. 124.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
136 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Há muitas outras críticas possíveis. Pode-se alegar, por exemplo, que a razão
pública discrimina injustificadamente os cidadãos de fé, que é pouco democrática,447
ou que estimula a insinceridade no momento da deliberação pública.448
Crítica interessante, dirigida, em rigor, contra todo o projeto democrático-de-
liberativo, não apenas rawlsiano, é a formulada por Chantal Mouffe, filósofa política
belga. Analisemo-la rapidamente.
Mouffe, resgatando conceitos da Filosofia Política de Carl Schmitt, defende uma
“democracia radical” situada num “pluralismo agonístico”:449 uma concepção de de-
mocracia que não renega a ideia de conflito, mas a incorpora como essencial.
Oponentes, ainda que não sejam tidos por inimigos, são adversários, cuja existên-
cia deve ser reconhecida e tolerada (“inimigos” serão considerados apenas os que não
aceitem as regras do jogo democrático). O consenso diz respeito, apenas, às regras do
jogo democrático; o que escapa a ele é o conflito, a existência de posições diferenciadas
na vida social, a possibilidade de escolher entre alternativas reais. “Um processo de-
mocrático saudável exige um entrechoque vibrante de posições políticas e um conflito
aberto de interesses”.450 “Muita ênfase no consenso e a recusa ao confronto leva à apatia
e ao desprezo à participação política”.451
É interessante notar que a crítica de Mouffe, de base teórica, vai ao encontro da
pesquisa empírica de Diana Mutz sobre o desestímulo à participação política provocado
pela democracia deliberativa (ver acima).
Especificamente quanto às ideias de Rawls, Mouffe, em capítulo cujo título já
diz muito — “Rawls: Political Philosophy without Politics” —, argumenta que, apesar
das boas intenções, suas propostas representam um liberalismo político dissociado do
conflito (e da própria Política), que podem reforçar uma tendência, já bastante presente
nos dias de hoje, à transformação de problemas políticos em questões administrativas
e técnicas, “algo na linha do neoconservador Niklas Luhmann, que quer restringir o
campo das decisões democráticas ao remeter mais e mais áreas ao controle de experts
supostamente neutros”.452
Chantal Mouffe acredita que a teoria de Rawls deveria ser reformulada dentro
de um discurso que a articulasse com alguns temas da Filosofia Política clássica e com
a ideia de valorização da tradição cívica republicana.
Seria então possível combinar a defesa do pluralismo e da prioridade do justo, característicos
da democracia moderna, com uma revalorização do político, entendido como participação
coletiva numa esfera pública em que os interesses são confrontados, os conflitos, resolvidos,
as divisões, expostas, as confrontações, encenadas, e, dessa forma — como Maquiavel foi o
primeiro a reconhecer —, a liberdade, garantida.453

447
Para resumo dessas críticas, bem como a defesa da razão pública, v. Ronald C. Den Otter (Judicial Review in an
Age of Moral Pluralism, p. 215-219, 225-227).
448
Para uma apresentação da crítica da insinceridade e uma defesa com base numa adaptação da teoria rawlsiana,
cf. SCHWARTZMAN. The Sincerity of Public Reason. Journal of Political Philosophy.
449
Ver discussão do conceito em Chantal Mouffe (The Democratic Paradox, p. 98-105).
450
MOUFFE. The Return of the Political, p. 4. Citação na p. 6.
451
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 104.
452
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 48.
453
MOUFFE. The Democratic Paradox, p. 57.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
137

2.6 Algumas respostas às críticas


Críticas relatadas, é o momento de, na medida do possível, respondê-las. Escaparia
à abrangência do capítulo aprofundar todas as possíveis respostas, mesmo porque, hoje
em dia, há um debate infinito a respeito dos temas da democracia deliberativa e da razão
pública. Concentremo-nos em apresentar respostas simples às críticas acima indicadas.
(i’) A respeito da acusação de a razão pública ser estéril, ao fugir dos principais
debates, a verdade é que, em primeiro lugar, a razão pública não afasta a discussão de
nenhum assunto. Ela só exige que as razões decisivas, para certos debates e sob certas
circunstâncias, sejam razões públicas. A proposta não incorpora um “princípio do não
discurso”, nem é conivente com proibições de assuntos. Nada disso.
Todos os assuntos razoáveis — incluindo os mais candentes temas de cada tempo
e lugar — estão abertos à deliberação pública. A única restrição, e vamos frisar que,
para Rawls, essa restrição é apenas um dever cívico, sequer uma obrigação jurídica, é
que, para certos debates, que envolvem os principais assuntos da vida pública de uma
comunidade, as razões decisivas sejam razões públicas.
A proposta de Rawls é tão moderada que se abre, inclusive, dentro da ideia de
“visão includente” da razão pública, ao uso frequente de razões não públicas, desde
que acompanhadas (ou incorporadas “no tempo devido”) de razões públicas.
A razão pública, ao menos em visões mais consensuais, não se coaduna com um
Estado omisso, leniente, fraco em termos de intervenção por questões morais: ela só
exige que a deliberação pública não se faça exclusivamente com base em razões não
públicas. A razão pública não coonesta um Estado moralmente omisso, ela só não quer
um Estado moralmente sectário. Assim, no exemplo citado por Sandel, o do debate
entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas sobre a escravidão, um argumento que se
limitasse a defender a neutralidade do Estado na questão, considerando que sempre
haveria polêmica quanto ao assunto e que, portanto, melhor seria não tomar partido,
não seria um argumento conforme a razão pública, no mínimo porque a escravidão
não é uma prática social que trate todos os integrantes da comunidade com igual con-
sideração e respeito.
Em resumo: a razão pública não é sinônimo de tibieza moral, tanto que impõe
deveres ativos e negativos relacionados ao respeito das pessoas como agentes delibera-
tivos iguais e dignos. Ela só não quer um debate constitucional centrado exclusivamente
em posições ideológicas não universalizáveis.
(ii’) A razão pública é acusada de ser impossível, ou, no mínimo, pouco práti-
ca. É acusação injusta. Ainda que seus propósitos nunca venham a ser inteiramente
atendidos, ela continua importante. Ela é, antes de tudo, uma ideia reguladora: existe
para orientar e guiar uma prática. É tão impossível quanto todo ideal — nas palavras
do próprio Rawls, “descreve o que é possível e pode vir a ser, mesmo que isso nunca
ocorra, e não é menos fundamental por isso”.454
Por outro lado, observe-se que ter o propósito de oferecer, num debate de in-
terpretação constitucional, no mínimo um argumento decisivo que se preocupe com o
dever da universalização e com a não alienação de parcelas significativas da população
não é nenhuma impossibilidade prática. Não se trata de exigência suprarrogatória.
E mais. Rawls reconhece que não serão todos os casos que poderão ser decidi-
dos com base em razões públicas. Para esses, recomenda a decisão por intermédio de

454
RAWLS. O liberalismo político, p. 262.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
138 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

votação, mas uma votação precedida da deliberação pública, o que, em sua opinião,
faria toda a diferença.
É ainda importante lembrar que o dever de respeito à razão pública aplica-se a
contextos delimitados: cortes constitucionais, votação, certos foros públicos. A razão
pública não diz respeito a todos os espaços da vida em sociedade, do contrário esta-
ríamos diante, aí sim, de uma exigência de hipercorreção moral. Os cidadãos podem
e devem continuar tendo e professando opiniões tiradas apenas e tão somente de
doutrinas abrangentes razoáveis. Nos jornais, articulistas podem defender pontos de
vista não universalizáveis, assim como advogados continuarão devendo defender os
interesses de clientes de modos não necessariamente universalizáveis — devem se uti-
lizar dos melhores argumentos aptos a produzirem um estado de persuasão racional
da autoridade aos quais eles se dirijam, e que não necessariamente são razões públicas.
Nada muda quanto a isso.
Coisa diferente são os juízes, e, em especial, os juízes constitucionais, respon-
sáveis pela fixação do conteúdo definitivo das disposições constitucionais. Esses, sim,
devem estar comprometidos, em grau máximo, com a razão pública. As autoridades
administrativas, que, se não interpretam diretamente a Constituição, decidem com base
nela muitas questões importantes, também estão submetidas, embora em menor grau,
à constrição da razão pública.
Assim, num exemplo plausível, ao analisar a vedação do consumo de produtos
fumígenos em certos locais, a ANVISA deve fazê-lo com base numa interpretação do
princípio constitucional da defesa e promoção da saúde pública capaz de produzir
uma mínima adesão de todos os interessados e uma mínima estabilidade social no
pós-decisão, e não em visões extremadas de discursos pró-saúde ou pró-livre inicia-
tiva. Nada disso é impossível, ainda que não seja propriamente fácil. Mas estas são as
exigências de uma democracia pluralista contemporânea.
(iii’) A razão pública seria genérica, anódina, incapaz de sobreviver ao entrechoque
com qualquer outro dever extraído da defesa de uma posição fundada exclusivamente
em razões não públicas. Mesmo rawlsianos convictos acabariam aceitando argumentar
apenas com razões não públicas em muitos dos casos aos quais ela seria aplicável. Ela
não seria forte o suficiente para promover, em tais hipóteses, a autocontenção.
Apesar de os dois exemplos que citamos para essa crítica serem interessantes (o
do Dr. X e o da pastora Lopez), ocorre que a importância dada a essa ou àquela posição
moral fundada em razões não públicas não pode ser pressuposta genericamente e, com
base nisso, recusar-se um argumento em prol da autocontenção.
Em outras palavras: nada garante que o Dr. X ou a pastora Lopez aceitem o uso
exclusivo de razões não públicas, ainda que isso seja o mais provável. A importância
que essa ou aquela pessoa dará à razão pública — se “dever cívico” significará uma
constrição mínima, quase desprezível, ou algo mais sério — não pode ser deduzida de
alguns exemplos.
E a questão essencial é: mesmo que o cidadão rawlsiano não consiga apresentar
razões públicas em favor de sua posição, mas, ainda assim, resolva defendê-la no espaço
público, isso só confirma que a razão pública é uma ideia reguladora. Seu efeito já foi
causado, e consistiu na própria hesitação quanto ao fornecimento apenas de razões
não públicas.
Para alguns, isso é só uma hesitação antes de levar a cabo a defesa do jeito inicial.
Para outros, isso pode significar a busca — e o eventual encontro — de razões públicas
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
139

de apoio. Ainda, para outros, as constrições da razão pública podem significar a não
defesa de uma posição que seja baseada apenas em razões não públicas.
Hesitação derivada da consideração a sério do argumento da razão pública,
modulação da intensidade ou do conteúdo dos argumentos iniciais ou busca de razões
públicas, autocontenção: todos esses três efeitos, do menos ao mais intenso, efetivamente
decorrem da razão pública e mostram sua utilidade.
Em suma: a razão pública não é genérica porque não é possível deduzir, de ante-
mão, a resposta pessoal dos agentes deliberativos às suas exigências de autocontenção.
(iv’) Então a razão pública é restritiva demais? No essencial, ela estaria a exigir
que encontremos razões públicas onde efetivamente não as há nem poderia haver?
Nem tanto. Há mais razões verdadeiramente públicas do que faz parecer a
crítica. Não se trata de exigir que os cidadãos se tornem filósofos-reis ou exemplares
particularmente ativos de um ideal de cidadania participativa — basta que se esforcem
para produzir, analisar e aceitar razões universalizáveis e respeitosas do pluralismo.
E, repita-se: caso seja impossível decidir a questão básica de justiça ou a inter-
pretação do elemento constitucional essencial oferecendo uma única razão pública
(simultânea ou posteriormente à apresentação das razões não públicas), a decisão, via
votação, já estará mais qualificada pela deliberação prévia.
Poder-se-ia dizer que, mesmo ali onde a razão pública não conseguiu ser dire-
tamente aplicável, ela conseguiu tendencialmente impor o dever de considerar todos
os participantes da comunidade discursiva como igualmente dignos de respeito e de
consideração.
(v’) A absoluta maioria dos defensores da razão pública são filósofos políticos ou
juristas que se encaixam na seara “liberal” da categorização americana. Por sua origem,
a razão pública é, sim, liberal.
Mas a razão pública, salvo alguns pressupostos fáticos, não assume posições
prévias no debate político. Como escreveu Ronald Otter, a razão pública fornece uma
gramática para lidar com a deliberação pública, a partir da qual diversos resultados
são possíveis. E, é claro, alguns casos fáceis terão resultados previsíveis a partir do uso
do filtro da razão pública. Numa discussão a respeito de se as mulheres devem ter di-
reito ao voto ou não, com base numa suposta incapacidade racional plena, a resposta
conforme a razão pública é óbvia.
Nos casos difíceis, a razão pública, desde que corretamente entendida e operada,
não vai oferecer respostas, mas compor uma gramática para a discussão.455 De qualquer
forma, os conceitos com base nos quais opera a razão pública — autonomia, dignidade,
respeito — são conceitos filosóficos em relação aos quais certamente há muita discussão,
mas são, por assim dizer, conceitos “terrenos”, racionais, em relação aos quais se pode
esperar que haja pelo menos algum início de discussão compreensível entre todas as
pessoas integrantes de uma sociedade contemporânea complexa. Ao contrário, argu-
mentar com base em conceitos como “destinação”, “plano de Deus”, “Direito Natural”,
“alienação de classe” ou “justificação moral da livre iniciativa” é pedir para que não
haja acordo sequer no início do debate.
A diferença entre o “carregamento ideológico” da razão pública e o “carregamento
ideológico” das razões não públicas é precisamente esse: por inevitável que seja, é algo
que se preocupa em favorecer o debate e integrar todos em bases racionais.

455
OTTER. Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 210-211.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
140 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A “ideologia” da razão pública — quase um oximoro — é, guardadas as devidas


proporções, a mesma “antidemocracia” da democracia: ao vedar que o resultado de um
processo democrático negue as condições de possibilidade da democracia, esta pode
ser tida como “antidemocrática”, mas se trata de uma restrição mínima que se faz em
favor, e não contra a democracia.456 O mesmo raciocínio se aplica aqui: ao pressupor um
agente deliberativo dotado de condições materiais e psicológicas mínimas, e ao operar
com base numa gramática racional, a razão pública quer facilitar, e não restringir, a
participação de todos na tomada de decisões.
Resta analisar o argumento de Chantal Mouffe. A razão pública, de alguma
maneira, neutraliza a participação democrática, ao “amolecer” a ferocidade dos argu-
mentos em disputa? Sem repetir parte dos argumentos já mencionados a respeito da
crítica de Diana Mutz à democracia deliberativa (ver acima), que é parecida com a de
Mouffe, o fato é que a razão pública não é desestimuladora, mas exige que se discutam
vigorosamente questões concernentes à estrutura básica da sociedade ou aos elementos
constitucionais essenciais, desde que com o uso (também) de razões públicas. Pensando
no objeto e no problema deste nosso texto — a interpretação do Direito Constitucional
Econômico —, numa época e num lugar em que inevitavelmente se oferecem razões não
públicas em favor de teses extraídas de doutrinas abrangentes específicas, é possível
defender de modo contundente a própria contenção.
Outras defesas457 e adaptações458 no argumento central da razão pública poderiam
ser pensadas. No que interessa ao nosso texto, pode-se ficar com uma versão de razão
pública relativamente simplificada, operacional, capaz de ser objeto de acordo entre
diferentes perspectivas teóricas; uma versão tão mais útil quanto mais consensual.459

2.7 Limites da razão pública


A razão pública possui limites. Não estamos falando de a quais assuntos ela se
destina, nem a qual público ela é dirigida — esses também são limites, e são assim tra-
tados por Rawls. Falamos de duas espécies de limites intrínsecos ao próprio exercício
da argumentação com base em razões públicas. Limites fáticos e limites psicológicos.
Limites fáticos: não sabemos nem temos exatamente como saber, sempre, se a
opinião científica é majoritária ou é isolada, ou, ainda, se a opinião científica majoritária
se produziu com base em conhecimento acessível ou fidedigno. Temos de confiar na
excelência do método científico e na seriedade de propósitos dos cientistas da época. Mal
comparando, pode-se até dizer que Galileu, ao apresentar sua teoria heliocêntrica, estaria
fornecendo uma razão não pública: uma proposição fundada numa tese científica am-
plamente polêmica e minoritária. Um príncipe da época, que concordasse com Galileu,
deveria deixar de tomar uma determinada decisão pública com base exclusivamente na
teoria do físico italiano? É claro que, desde o século XVII, o método científico já evoluiu
muito. Mas a hipótese não é de todo absurda. E se as teses antropológicas ou genéticas,
hoje polêmicas, que afirmam uma base natural para o egoísmo ético forem verdadeiras:
não se estaria sacrificando a adoção de medidas econômicas ultraliberais em favor de

456
Ver BINENBOJM. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de
realização.
457
SCHWARTZMAN. The Completeness of Public Reason. Politics, Philosophy & Economics.
458
FINNIS. On ‘Public Reason’. Oxford Legal Studies Research Paper, p. 1-20.
459
SUNSTEIN. Designing Democracy: what Constitutions do, p. 49-66.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
141

uma contenção que se revelaria equivocada? O argumento pode ser expandido a limites
longínquos. Algumas teses ideológicas extremamente polêmicas podem ser, apenas,
a verdade mais cristalina; o Deus judaico-cristão pode de fato existir e a admissão do
casamento homossexual talvez seja causa de eterna danação.
O que fazer contra esses limites fático-cognitivos? Na verdade, não há muita
coisa a ser feita, senão buscar expandir nosso conhecimento e minimizá-los ao máximo,
sempre sabendo que todo conhecimento — incluindo o conhecimento que vai fornecer
as razões que serão reputadas como públicas ou não públicas — jamais vai deixar de ser
presa de um tempo e de um lugar. Deve-se continuar confiando na ciência majoritária,
“acreditada”, tendencialmente imparcial, exposta às críticas e às autocorreções do méto-
do científico. Entre as opções, é a que melhor cabe ao projeto democrático-deliberativo,
e, dentro dele, ao argumento da razão pública.
O afastamento de posições carregadamente ideológicas carreia, sim, o risco da
evitação de posições que, hoje tidas por ideológicas, amanhã serão tidas como padrão de
normalidade — mas é o preço que se paga à possibilidade da coexistência dos cidadãos
dentro de um pluralismo razoável feito no tempo presente.
De toda sorte, é um preço que vale pagar, até porque o que não falta são alega-
ções a respeito da existência de bases científicas em apoio a posições evidentemente
ideológicas: se aceitarmos o “comunismo científico” apenas porque ele se diz científico,
estaremos alienando o não menos “científico” “liberalismo científico”. E tais visões não
são científicas porque o conceito de ciência que lhes empresta sua “cientificidade” não é
usual tampouco majoritariamente aceito, mas sim, e sobretudo, porque estas são visões
intrinsecamente ideológicas. Em tese, pode haver algum grau de verdade científica no
comunismo ou no liberalismo científicos? Sim, é possível. Mas, como até hoje não sabe-
mos se há, melhor sacrificar tal possibilidade pela realidade da produção de consensos
estáveis e universalizáveis na interpretação de conteúdos constitucionais essenciais.
De mais fácil percepção são os limites psicológicos ao exercício da razão pública.460
Eles se expressam em duas predisposições psicológicas: a) tendemos a acreditar que
nossos melhores argumentos são sempre conformes à razão pública/estamos sempre
predispostos a achar que nossas melhores razões são universalizáveis, na medida em
que nosso padrão de aceitabilidade racional é sempre projetado a partir do nosso self;
b) tendemos a acreditar que as acomodações que nós fizemos (ou as que teremos que
fazer) em nosso argumento original são ou serão sempre maiores do que as da outra
pessoa, o que pode reduzir nossa disposição para modificar nossos argumentos até que
cheguem a uma posição mais próxima à de um ideal de razão pública.
Por essas duas predisposições, a razão pública poderia se tornar apenas mais
uma forma autoenganosa de afirmarmos a superioridade de nossas razões sobre as de
nossos oponentes. Há saída? Felizmente, há. Há de se incorporar e fortalecer um espírito
aberto, capaz de reconhecer o próprio erro e de mudar verdadeiramente de posição.461

460
Sem falar, é claro, numa possível tendência de confirmação entre os autores que defendem a razão pública —
mas isso é possível e comum a qualquer grupo de pessoas com pensamentos semelhantes.
461
“O sucesso da deliberação pública de acordo com um princípio de razão pública depende da habilidade dos
cidadãos em reconhecerem a possibilidade de que sua visão inicial de uma questão política fundamental tenha
estado equivocada ou incompleta”. “Porque muitos de nós estamos propensos a nos conceder o benefício da
dúvida ao ver nossas melhores razões como indubitavelmente públicas quando elas talvez não sejam assim,
pessoas razoáveis podem resistir a essa tendência assumindo que se lhes impõe o ônus da prova de demonstrar
que suas razões cumprem o standard da justificação pública quando pretenderem agir coativamente contra os
outros. Isso requer autorreflexão da parte delas, bem como uma boa vontade em aceitar a possibilidade de
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
142 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

2.8 Um requisito de coerência: a compatibilidade entre pragmatismo e


razão pública pela via dos acordos teóricos incompletos
Antes de concluirmos, é importante aproveitar a posição do capítulo — posterior
ao capítulo referente ao pragmatismo e anterior à segunda parte “prática” — para escla-
recer algo de fundamental relevância, verdadeiro requisito de coerência. É o seguinte:
como compatibilizar pragmatismo e razão pública? São “princípios” compatíveis, ou há
alguma dissonância entre eles?
A resposta vai depender da opinião de cada autor, e, ainda, do modo como se
entende “pragmatismo” e “razão pública” (às vezes, a discordância é só uma questão
de palavras — isso é comum no Direito).462
Vamos propor, sob uma determinada base teórica, que pragmatismo e razão pública
sejam compatíveis, não sem antes efetuar um rápido percurso por outras opiniões.
A razão pública se aproxima do pragmatismo — no caso, do filosófico, mas
nossa própria proposta de “princípio” do pragmatismo jurídico também incorpora o
elemento — pelo aspecto do antifundacionalismo.463 Ao não aceitar nenhuma ideologia
ou preconcepção, salvo, talvez, as derivadas da própria aceitação do homem como ser
racional, a razão pública seria antifundacionalista.464
Da mesma forma, o pensamento pragmatista, ao rechaçar pré-compreensões,
inclusive ideológicas, e enfatizar a praxis, o adiantamento e a análise das consequências,
também o seria (ver capítulo 1 da primeira parte, supra).
O fato de a razão pública não afirmar uma determinada proposição política fun-
dacional, mas se manter aberta, acreditando que os cidadãos, em diálogo controlado, é
quem devem formular o conteúdo político-organizacional que melhor lhes aprouver,
seria um ponto de aproximação ao pragmatismo.
Ao mesmo tempo, certo caráter experimental e incompleto da proposta da razão
pública — ela não define resultados, mas estabelece parâmetros de discussão e espera
que, na prática, as pessoas cheguem aos melhores resultados possíveis — seria, também,
outro ponto de compatibilidade. Nesse sentido, os dois trechos a seguir:
A ideia de razão pública afirma que as questões constitucionais essenciais e os elementos
de justiça básica são afirmados a partir de valores políticos que podem ser endossados
por todos os cidadãos na forma de um consenso sobreposto (overlapping consensus) entre
doutrinas abrangentes, o que demonstra uma proximidade com o pragmatismo.465
Para os liberais, a legitimidade das finalidades públicas depende do fato de que elas foram
defendidas de forma que todos podem aceitá-las como candidatas razoáveis à deliberação
pública. Essa concepção de legitimidade baseia-se na ideia de que existem algumas poucas

que as razões que apoiam podem não ser tão adequadas quanto pareciam num primeiro momento” (OTTER.
Judicial Review in an Age of Moral Pluralism, p. 157, 148, respectivamente).
462
“A desgraça da ciência jurídica está nas incertezas terminológicas” (ASCARELLI, Tulio apud OLIVEIRA. Por
uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade, p. 81).
463
Buscando a reconciliação entre pragmatismo e democracia (e não propriamente com a ideia de razão pública,
mas a noção é próxima), tem se falado em uma “democracia pragmática” como conceito que “não se priva do
diálogo com as análises empíricas”. O desenvolvimento de nova abordagem da democracia proveria alternativa
à dicotomia entre democracia deliberativa e representativa, propiciaria uma abordagem normativa e empírica
à democracia e fortaleceria o conceito de representação política. V. POGREBINSCHI. Democracia pragmática:
pressupostos de uma teoria normativa empiricamente orientada. Dados – Revista de Ciências Sociais, p. 677.
464
V. TRIFIRO. John Rawls’s Justice as Fairness: Anti-foundatinalism, Deliberative Democracy, and
Cosmopolitanism. Institute for International Integration Studies.
465
SILVEIRA. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. Filosofia Unisinos, p. 66.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
143

proposições que podem servir como base incontroversa para a ação pública — ideia que
obviamente está afinada com a ênfase pragmática no papel fundamental que desempe-
nham as afirmações prospectivas nos discursos de justificação. [...] Em vez de tratar a razão
pública como uma arena estável da qual podemos nos retirar num esforço para resolver
ou contornar nossos desacordos, devemos, sim, ver o processo de definição do conteúdo
da razão pública e o de resolver nossas diferenças substantivas como aspectos de uma
mesma conversação dinâmica. Essa concepção aberta da justificação política é, de novo,
consistente com os termos da narrativa pragmatista da experiência moderna, de acordo
com a qual estamos (ou deveríamos estar) envolvidos no projeto de desenvolver e aplicar
a inteligência experimental a todos os cidadãos, ainda que sejamos incapazes de dizer algo
muito definitivo a respeito de para onde esse projeto pode nos levar.466

Por outro lado, há quem veja bases fundacionais no liberalismo político de Rawls
e, consequentemente, em sua proposta de razão pública. Michael Sandel é um desses
autores;467 Robert Westmoreland, embora afirmando que o projeto da razão pública é
“decididamente prático”, acredita que ele não é pragmático, já que é “irredutivelmente
moral”.468
O construtivismo ético de origem kantiana que está na base da filosofia política
de Rawls seria capaz de negar o antifundacionalismo, e, assim, o pragmatismo: haveria
um modelo de homem, bem como certas afirmações fundacionais, por trás da razão
pública rawlsiana. Embora tanto o projeto racional-construtivista de Kant e, especial-
mente, de Rawls, quanto o projeto pragmatista jurídico estejam pretendendo reincluir
o discurso prático na metodologia do Direito,469 suas bases e pressuposições filosóficas
seriam irreconciliáveis.
A proposta de um “princípio” do pragmatismo jurídico para a interpretação do
Direito Constitucional Econômico seria algo que, na essência filosófica, mostrar-se-ia
incompatível com a concomitante propositura de um “princípio” da razão pública para
os mesmos fins. Ou o intérprete constitucional é um agente deliberativo autônomo
e racional, na linha kantiana, apto a operar com a razão pública, ou é o “homem em
construção”, antifundacionalista e experimental, capaz de se utilizar de um “princípio”
pragmatista. As duas coisas ao mesmo tempo, jamais.
Em nossa opinião, a resposta à potencial incompatibilidade está na expressão
“essência filosófica”. Pretendemos resolvê-la com base numa proposta de Cass Sunstein:
a dos “acordos [práticos] teorizados de modo incompleto” (incompletely theorized
agreements).470 Basta não pretender que tenha de haver uma compatibilidade teórica na essência
filosófica profunda das duas propostas.
No nível prático, da solução de problemas, por exemplo, por uma corte cons-
titucional, é perfeitamente possível resolver casos com base no adiantamento de
conse­quências contextuais prováveis, próximas, alegadas sob razoável base empírica,
e, ainda, não fundacionais (no que já começa a aparecer a proximidade com a razão
pública). Ainda, tal análise deve operar com base em razões públicas, universalizáveis,

466
MACGILVARY. Reconstructing Public Reason, p. 176-177.
467
SANDEL. Liberalism and the Limits of Justice, p. 3.
468
WESTMORELAND. The Truth About Public Reason. Law and Philosophy, p. 277.
469
SOUZA NETO. A interpretação constitucional contemporânea entre o Construtivismo e o Pragmatismo. In:
MAIA et al. Perspectivas atuais da filosofia do direito, p. 475-497.
470
Seria possível resolver o dilema por um apelo a um overlapping consensus entre os pontos em comum das
duas proposições teóricas. No entanto, como esse próprio conceito faz parte do ferramental teórico de Rawls,
preferimos apenas consigná-lo nesta nota de rodapé.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
144 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

não presas de nenhuma ideologia ou assunção empírica polêmica, capazes de serem


percebidas (e de efetivamente tratarem) por todos os integrantes da comunidade como
razões que tratam os membros como dignos de idêntica consideração e respeito.
Ou seja: tais standards são úteis e possíveis em termos práticos, ainda que, no
plano da teoria, de fato suscitem várias questões complexas, que provavelmente jamais
serão resolvidas.
Os participantes de um desses acordos incompletos não precisam concordar a
respeito de qual será o fundamento filosófico último para a tomada de ação. Eles só
precisam estar razoavelmente de acordo em relação ao que será feito, talvez concordando
com alguma abstração de menor intensidade.
Utilizando-se do conceito de dignidade humana, uma pessoa pode achar que
as pessoas não devem ser torturadas porque são criaturas criadas à imagem e à se-
melhança de Deus; outra, porque são seres humanos racionais e livres, e a tortura vai
contra a capacidade de racionalidade e de escolha; ainda outra, porque são animais
conscientes e, à imagem de todos os demais, integram um grande organismo — não
importa. Discordando radicalmente a respeito de qual seja o fundamento último para
a ação, todos concordam que existe uma dignidade intrínseca à vida humana e que a
tortura é um ato que a viola. É o que basta.
Pois bem: tanto nossa proposta de “princípio” do pragmatismo jurídico quanto
nossa proposta de razão pública constitucional, apesar de possuírem bases filosóficas
profundas, podem ser aceitas por quem delas discorde ou ignore, aceitando-se, tão
somente, alguns dados teóricos mais “rasos”, que soarão, para certas audiências não
especializadas, quase como platitudes (“devemos nos preocupar com as consequ-
ências práticas das decisões”, “devemos propor interpretações não ideologicamente
capturadas”).471

2.9 Conclusão parcial: consensos estáveis, opiniões razoáveis


A razão pública pode muita coisa, mas não pode tudo. Seu principal desafio é de
índole psicológica: exige que seus operadores estejam convencidos de sua utilidade, e,
a partir daí, de boa-fé ao momento de sua incidência.
A busca por interpretações constitucionais capazes de produzir algum grau de
consenso e de estabilidade social, de proposições teóricas e práticas que não alienem
nenhuma fração de uma sociedade cultural e socialmente rica e complexa como a bra-
sileira do século XXI não é tarefa fácil, mas também não é exigência impossível.
Ao longo do livro, a razão pública vai incidir de diferentes maneiras. No próximo
capítulo, sobre intervenção direta monopolística e concorrencial, ela incide diretamente
como parâmetro de interpretação dos limites e possibilidades dessas espécies de in-
tervenção, e, em específico, qualifica o debate sobre a natureza jurídica do chamado
princípio constitucional da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia.
No capítulo 2 da segunda parte, que trata da disciplina pública das atividades
privadas, é mais um dos critérios de controle da atuação pública de polícia. Finalmente,
no capítulo 3 da segunda parte, versando sobre o fomento de atividades privadas, a razão
pública aparece como critério material no momento da concessão das ajudas públicas.

471
SUNSTEIN. Incompletely Theorized Agreements in Constitutional Law. University of Chicago Public Law
Working.
CAPÍTULO 2
RAZÃO PÚBLICA COMO CRITÉRIO PARA A INTERPRETAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA
145

Em que pese essas diferentes incidências, a razão pública é uma só, ou melhor
dizendo, seu conteúdo básico é um só: é o de um dever de reciprocidade e o de uma
obrigação de levar a sério opiniões discordantes.
Antes de fecharmos o capítulo, uma consideração importante. Muitos podem
refutar o dever imposto pela razão pública informando que não se sentem obrigados a
produzir decisões ou trabalhos conforme a ela se se disserem transparentes. Em outras
palavras: diante de uma impossível exigência de que sejamos neutros, vamos, desde a
primeira linha, afirmar nossas filiações ideológicas, numa espécie de disclosure acadê-
mica, administrativa ou judicial. Uma vez que deixemos claro nossas origens, nossas
crenças — e talvez nossos patrocinadores —, tudo andará bem. É resposta simples,
talvez excessivamente simples, para uma questão complexa, o que é mau sinal. Dizia
Oscar Wilde que a verdade raramente é pura, e nunca é simples.472
Só a transparência não basta. É preciso ser conforme a razão pública, sob pena
de comprometimento da legitimidade do trabalho acadêmico, da decisão judicial, do
exercício do poder de polícia, da ação de fomento.
A proposta de “transparência” em artigos científicos e em decisões judiciais, e
não de atuação conforme a razão pública, pressupõe um realismo jurídico dos mais
cínicos, que pode até ser o cotidiano da advocacia, mas jamais deveria ser adotado
como proposição normativa (ou seja, por mais que o Direito seja isso, ele jamais deveria
ser tido como devendo ser isso): o Direito é um jogo de poder; escolha seus argumentos
entre uma infinidade de possibilidades; lute para persuadir a autoridade julgadora.
Escrever um artigo apenas para fornecer um argumento pró-contribuinte (ou
pró-Fisco ou pró-acusação penal ou pró-intervenção do Estado na economia ou “anti-”
qualquer dessas coisas) é advocacia de tese, não é ciência do Direito. O que não impede
que seja feita nem lhe retira a importância. Mas o problema é, sempre, de legitimidade
e de lugar do argumento. O juiz, o professor em sala de aula, o administrador público
ao interpretar a Constituição devem estar preocupados em operar com base em razões
públicas.473
Ninguém vai virar um homem sem ideologia ou sem crenças por isso; a questão
é apenas a de se ter a coragem de formular a pergunta — “será que as minhas melhores
e mais caras razões são razões que respeitam razões contrárias” — e de se ter a hones-
tidade e a capacidade de se conviver com a eventual resposta — “não, elas não são”.

472
WILDE. The Importance of Being Earnest, p. 126.
473
Cf. MENDONÇA. Brazil’s Case Against Private-Sponsored Events for Judges: a Not-Yet-Perfect Attempt at
Fighting Institutional Corruption. Edmond J. Safra Working.
SEGUNDA PARTE

APLICAÇÕES
CAPÍTULO 1

A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA


ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS

1.1 Introdução: os primeiros passos de uma polêmica sem fim


Neste capítulo, a ideia é fazer incidir a razão pública e o “princípio” do prag-
matismo a uma das atividades administrativas mais contestadas: a intervenção direta
do Estado na economia, seja como agente privado, concorrendo com outros — no que
chamaremos de intervenção concorrencial —, seja pela constituição de monopólios pú-
blicos (na intervenção monopolística).474
Não é necessário ir longe para demonstrar a polêmica. Boa parte da doutrina
nacional vê tais atividades como absolutamente excepcionais ao regime constitucional
da livre iniciativa e, se não podem proscrevê-las por inteiro — já que estão referidas na
Constituição —, vindicam, por diversas razões, critérios restritivos para sua criação e
para a interpretação de seu conteúdo. Como não podem negar os institutos, partem ou
para a criação de standards interpretativos que reduzem suas potencialidades, ou para
lições que condicionam a criação de monopólios públicos/intervenção concorrencial à

O debate terminológico a respeito das formas de intervenção do Estado na economia é extenso. Eros Roberto
474

Grau, baseado em Gerson Augusto da Silva, fala, para os monopólios públicos e as empresas estatais, em
intervenção no domínio econômico (e não sobre o domínio econômico, termo reservado ao que chama de
intervenção por indução [fomento] e por direção [atuações estatais mais diretas e incisivas sobre a economia, como o
tabelamento de preço]). Dentro da espécie intervenção no domínio econômico, Eros Grau enxerga duas espécies:
a intervenção por absorção e a intervenção por participação. A intervenção por absorção ocorre quando o Estado
não permite o exercício da atividade pela iniciativa privada — é a hipótese da monopolização da atividade. Já a
intervenção por participação é circunstância em que as empresas públicas e sociedades de economia mista atuam
em concorrência com as empresas privadas não integrantes da Administração (v. GRAU. A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93). Já Geraldo de Camargo Vidigal, apud Elival da Silva Ramos, prefere participação
do Estado no domínio econômico para englobar as atividades monopolizadas, a exploração concorrencial e o
desempenho de serviços públicos de natureza econômica, e ação do Estado no domínio econômico para se referir
à direção econômica geral (VIDIGAL. Teoria geral do direito econômico, p. 93-100). Optamos, ao longo do livro,
pela denominação mais tradicional: intervenção monopolística para os monopólios, e intervenção concorrencial
para aquela operada por intermédio das empresas estatais, em regime de concorrência com as demais empresas
privadas que não façam parte da Administração Pública. Tal denominação aparece, por exemplo, em Diogo de
Figueiredo Moreira Neto (Curso de direito administrativo, p. 475).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
150 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ocorrência de situações excepcionalíssimas, ou a uma suposta taxatividade da listagem


constitucional.
“Aceita-se” a prestação de serviços públicos — é a mais tradicional função do
Estado —, desde que numa abrangência mínima, e sempre com a possibilidade de
delegação de sua execução à iniciativa privada. A disciplina das atividades econô-
micas também não tem como ser negada (o ponto crítico sempre será sua extensão e
intensidade). O fomento público é visto, em regra, com bons olhos. Não teria como
ser diferente, pois é uma ajuda. O patinho feio das funções administrativas é a inter-
venção monopolística e concorrencial, porque, no primeiro caso, suprime o mercado,
e, no segundo, representa mais concorrência às empresas privadas não integrantes da
Administração Pública.
A intervenção direta monopolística ou concorrencial é perfeito campo para testar
a filtragem dos argumentos doutrinários pelo critério da razão pública. É onde mais se
acerbam as ideologias; é onde preferências pessoais e interesses profissionais fazem-se
lição de cátedra. Existe, ainda, o problema de que o histórico brasileiro a respeito de tais
intervenções é polêmico. As notícias dos últimos anos só acerbam tal conclusão. Há dú-
vidas, além disso, acerca de sua eficiência (embora, em certas quadras históricas, talvez
não fosse possível pensar em industrialização brasileira sem o apoio maciço do Estado).
O esforço será o de desvelar tais interesses para, na medida do possível, neutralizá-
los. Não propomos uma doutrina jurídica sem sangue nem alma. A política faz parte
da vida e é, provavelmente, a melhor forma de produzir mudanças na sociedade.475
O problema é de legitimidade e de lugar do argumento; que os argumentos políticos
sejam assumidos como tal; que a dogmática de Direito Constitucional Econômico se
esforce sinceramente — mais do que o lip service que às vezes presta — em ser não
ideologicamente carregada, mas sim aberta ao pluralismo ideológico razoável existente
numa sociedade hipercomplexa como a brasileira.
O percurso do capítulo é simples. Partimos de visão geral das duas espécies de
intervenção direta em seu aspecto institucional — isto é, baseado nas instituições que
operam as intervenções, a saber, empresas públicas e sociedades de economia mista. No
curso do capítulo, algumas polêmicas são enfrentadas (os conflitos entre a realização
do interesse público e os direitos dos acionistas, a participação das estatais no Novo
Mercado da Bovespa, a possibilidade do exercício do poder de polícia, a criação de
subsidiárias, a fiscalização pelos Tribunais de Contas, a obrigatoriedade de licitação),
sempre sob a ótica dos dois “princípios” condutores deste livro. Este trecho do livro foi
revisto, para a segunda edição, com base na Lei nº 13.303/2016 (o Estatuto das Estatais)
e seu regulamento.
Logo após, a atenção se foca nos limites e possibilidades da intervenção concor-
rencial. Analisamos tais conteúdos a partir da ideia, comum na doutrina, de “princípio
da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia”, ou seja, a assunção de
que determinado modelo econômico de base liberal teria se constitucionalizado e de
que tudo fora dele seria inconstitucional. Não concordamos que a subsidiariedade da
intervenção econômica seja princípio constitucional. Na forma como suas consequências
são apresentadas em artigos e manuais brasileiros de Direito Público, ela é diretriz
político-administrativa (infraconstitucional) de organização do Estado, e não princípio
constitucional. A lição doutrinária usual não considera o caráter compromissório da

475
No mesmo sentido, Paulo Ricardo Schier (Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
151

Constituição da República de 1988 e mostra-se presa a um aspecto não universalizável


de uma doutrina particular abrangente; portanto, não passa no teste da razão pública,
tal como apresentado no capítulo 2 da primeira parte deste livro. Nesta segunda edição,
apresentamos, rebatemos e incorporamos algumas das críticas apresentadas à posição
defendida, neste ponto, pelo livro.
Em seguida, abordamos a intervenção monopolística. Ingressamos na questão
sobre como se deve interpretar sua abrangência material (as atividades nela incluídas),
para refutar a tese de que tal interpretação deva ser, sempre, restritiva. Pensamos que
uma interpretação jurídica constitucionalmente adequada não pode jamais partir de
pressupostos fixos (“ampliativos” ou “restritivos”), mas será aquela que, em concreto,
mostrar-se proporcional e eficiente à promoção da finalidade a que se destina (desde
que tal finalidade seja, ela própria, constitucional). Também falamos a respeito do
veículo formal apto à criação de monopólios públicos. Boa parte da doutrina nacional
de Direito Público defende que os monopólios públicos, sob o regime da Constituição
da República de 1988, só podem ser criados por intermédio de emenda à Constituição.
Não concordamos. Em nossa opinião, os argumentos que levam a tal conclusão ou são
tecnicamente pouco desenvolvidos, ou representam proposições políticas contingentes,
mas não são, jamais, razões públicas.
O penúltimo item trata do que vem sendo chamado de neointervencionismo es-
tatal, entendendo-o como possível caminho do meio entre extremos. Caminho possível
não equivale a caminho sem riscos, como indica, mais uma vez, a história recente do
Brasil. Por fim, algumas palavras dão a nota conclusiva do capítulo.

1.2 Intervenções diretas monopolística e concorrencial: uma visão


institucional
Ao longo da história brasileira, os monopólios públicos e a atuação concorrencial
das estatais já foram, por diversas vezes, apontados como problema ou solução do país.
Mais até do que a respeito do serviço público, a discussão brasileira gravita em torno
dessas duas modalidades de intervenção do Estado na economia. Se “o petróleo é nosso”,
o monopólio público é a melhor forma de praticar tal nacionalismo líquido; por outro
lado, se os tempos são neoliberais, as estatais476 são dinossauros,477 e não mais agentes

476
Para se ter ideia das polêmicas que cercam o assunto, basta dizer que a primeira delas diz respeito à própria
denominação “empresas estatais” ou, alternativamente, “empresas governamentais”. Há quem rejeite a
expressão e considere-a “categoria estranha à dogmática jurídica”, “expressão com pouca ou quase nenhuma
tradição na doutrina e jurisprudência” (PENTEADO. As sociedades de economia mista e as empresas estatais
perante a Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, p. 34). Outros acreditam que a referência a
“estatais” refira-se, também, às entidades apenas controladas pelo Poder Público (controle acionário), sem
prévia autorização legal específica, e não apenas às empresas públicas e às sociedades de economia mista (assim,
verbi gratia, DI PIETRO. Direito administrativo, p. 406 e GRAU. Lucratividade e função social nas empresas sob
controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 54-55). A maioria da doutrina,
contudo, entende que “empresas estatais” seja designativo que serve para nomear, de modo indistinto, empresas
públicas e sociedades de economia mista (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 192). É a
nossa opção. “Estatais” e “empresas estatais” referem-se, tão somente, neste livro, às empresas públicas e às
sociedades de economia mista. Todas as demais são “empresas controladas pelo Estado”. Não adotamos o
termo “empresas governamentais” porque Estado, fenômeno jurídico-administrativo, não se confunde com
Governo, fenômeno político. Ainda no plano terminológico, há outra questão: a semelhança ou distinção entre
os termos “empresas estatais” e “empresas paraestatais”. Alguns autores, e, mais importante, algumas leis,
utilizavam as expressões como sinônimos parciais. Bom exemplo é a Lei nº 8.666/93, que, no art. 17, inciso I,
ao tratar da alienação de imóveis públicos, menciona as entidades paraestatais e, com todas as letras, no art.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
152 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

do desenvolvimento. Caio Tácito, em texto clássico, traçou analogia entre a percepção


jurídico-política a respeito das estatais e as voltas de um pêndulo: ora mais próximo
ao Estado, ora na ponta do liberalismo privatista.478 479 477 478 479
É sobre o ponteiro desse pêndulo (ou desses cem metrônomos, v. nota de
rodapé) que procuraremos apresentar uma visão geral. É natural que as funções e
finalidades das estatais modifiquem-se ao longo do tempo, conforme as mudanças na
postura do Estado em relação às duas atividades que essencialmente exercem: serviços
públicos e atividades privadas de interesse público ou relevantes para a segurança
nacional.480 481 482 Como não existe, nem nunca existiu, instância exegética a-histórica

84, §1º, define entidade paraestatal como, “além das fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista, as demais entidades sob controle, direto ou indireto, do Poder Público”. A confusão está formada: o que
é uma paraestatal? Uma estatal — i.e., uma empresa pública e uma sociedade de economia mista —, e, além
delas, uma fundação, e mais as sociedades empresárias controladas pelo Estado? Em que pese a letra da lei,
não é a melhor inteligência do termo. Atualmente, consolidou-se o entendimento de que as paraestatais são
entidades que se encontram formal e materialmente fora da Administração Pública (não são, portanto, empresas
públicas nem sociedades de economia mista), ainda que recebam verba pública. São as organizações sociais,
as organizações da sociedade civil de interesse público e os serviços sociais autônomos, que, juntos, formam o
chamado Terceiro Setor (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 200-201). Conclusão: para as finalidades
deste livro, convencionamos que 1. “Estatais” ou “empresas estatais” (mas nunca “empresas governamentais”)
designam empresas públicas e sociedades de economia mista; 2. “Empresas controladas pelo Estado” são as
empresas controladas pelo Poder Público que não se submeteram ao processo formal de criação das estatais;
e 3. “Paraestatais” são as entidades que compõem o Terceiro Setor (“paraestatais”, para o Anteprojeto de Lei
destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67, é designativo das corporações de fiscalização profissional e das
entidades do Sistema S [ver art. 68, I e II, do Anteprojeto]). A Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) não as trata
como “estatais”, e a palavra não aparece em seu texto. No entanto, seu regulamento — o Decreto nº 8.945/2016 —
define a expressão. Define “empresa estatal” como a entidade dotada de personalidade jurídica de direito
privado, cuja maioria do capital votante pertença, direta ou indiretamente, à União. São estatais, portanto, as
empresas públicas, as sociedades de economia mista, e suas respectivas subsidiárias (no caso, da União, pois a
lei está se referindo, nesse ponto, à abrangência federal). Nem a Lei das Estatais nem seu regulamento usam o
termo “paraestatal” ou “empresa governamental”.
477
MOREIRA NETO. Monopólios estatais: sobrevivência anacrônica.
478
TÁCITO. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. In: TÁCITO. Temas
de direito público: estudos e pareceres, p. 721-733. Antes dele, Laubadère, citado por Cotrim Neto, falando da
sociedade de economia mista, dizia que a história de seu emprego é uma alternação sistemática de preferência
e de descrédito (d’engouement et de discrédit) (COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito.
Revista de Direito Administrativo, p. 24).
479
É possível atualizar a metáfora de Caio Tácito para os tempos hipercomplexos do presente. Egon Bockman Moreira
compara a intervenção do Estado na economia, nos dias de hoje — ele não está falando apenas de estatais —,
ao Poema Sinfônico, do compositor húngaro György Ligeti. Nessa obra de música clássica contemporânea, Ligeti
dispara, num mesmo instante, cem metrônomos. Com o tempo, eles vão perdendo energia e acabam parando,
mas cada um em seu tempo. As intensidades da intervenção do Estado na economia são múltiplas e funcionam
ao mesmo tempo (com a diferença de que, ao contrário do metrônomo, elas não param por conta própria). Cf.
MOREIRA, Egon Bockman. Passado, presente e futuro da regulação econômica no Brasil. In: Revista Brasileira de
Direito Público da Economia, a. 11, n. 44. out./dez. 2013.
480
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 209.
481
Pode-se pensar que a relação seja biunívoca: tanto as novas formas de se perceber o que deve ser assumido
pelo Estado como serviço público (ou desempenhado pelo Poder Público como atividade privada de relevante
interesse público ou de segurança nacional) influenciam as funções e finalidades das empresas estatais, quanto
a própria assunção de tais atividades, em especial os serviços públicos, por tais empresas estatais, acaba
modificando a noção de serviço público. Para não ir muito longe, é de se ver que a primeira das muitas crises da
noção de serviço público relacionava-se à debilitação progressiva do elemento orgânico ou subjetivo do serviço
público (serviço público é aquilo que é desempenhado pelo Estado ou por pessoa jurídica de direito público).
Quando, mais do que delegar a execução dos serviços públicos a entes privados por intermédio de contratos
de concessão, o Estado passa a constituir empresas privadas legalmente destinadas à prestação de serviços
públicos, o elemento subjetivo deixa de fazer o sentido de antes. A esse respeito, v. GROTTI. O serviço público e
a Constituição brasileira de 1988, p. 53-54.
482
Quando falamos em “essencialmente” queremos destacar que as empresas estatais, ao desempenhar sua
atividade precípua — intervir concorrencialmente na economia e/ou prestar serviços públicos —, também
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
153

ou supraconstitucional que permita deduzir o que é “relevante interesse coletivo” ou


“imperativo de segurança nacional”, conceitos que legitimam a intervenção direta
concorrencial (art. 173, caput, da Constituição da República), muito menos que tipos
de atividades reclamam aquele dado de relevância que justifica sua transformação
em serviço público, resta buscá-los no consenso político-social de cada tempo e lugar.
Em outras palavras: as intervenções monopolística e concorrencial, e as estatais que
as operam, estão configuradas menos na estrutura da Constituição, ou nas lições da
doutrina, do que no sentimento da comunidade a respeito do que devam ser.483
O que se pode dizer é, a partir dos anos oitenta, e durante toda a década de no-
venta, assistiu-se, no Brasil e no mundo, a um processo de progressiva desestatização
de atividades, justificado por uma complexa dinâmica na qual ingressaram ideologia,
busca por eficiência administrativa e incapacidade de financiamento público.484 Por conta
disso, a pretexto da eficiência, muitas funções públicas tiveram seu exercício atribuído
a empresas estatais, e não mais a órgãos públicos ou a autarquias.
Entretanto, essa tendência foi reduzida pela crise de 2008, quando o Estado voltou
a ser útil, e sua intervenção, bem-vinda, ainda que não necessariamente sobre as mes-
mas bases das de antes do período de desestatização. Também a “empresarialização”
do exercício das funções públicas em prol da eficiência se vê questionada diante da
própria burocracia privada, e de curioso fenômeno, talvez apenas brasileiro, que faz
com que muitas amarras burocráticas persigam o Poder Público, seja qual for o tipo de
personalidade jurídica — pública ou privada — ele escolha para executar suas funções.
E provando, mais uma vez, que o ciclo nunca para, a partir de meados de 2013, no Brasil,
começou-se a detectar de forma mais saliente os aspectos subótimos da intervenção

geram efeitos que se podem reconduzir a outras funções estatais, em especial o planejamento e a disciplina.
Nesse sentido, Calixto Salomão Filho, em nota de atualização a livro de Fábio Konder Comparato: “A sociedade
de economia mista, desde que tenha poder suficiente no mercado, torna-se órgão planejador e direcionador do
desenvolvimento setorial. É particularmente importante em mercados desregulamentados, em que a empresa
estatal ou de economia mista exerce verdadeira função de planejamento e regulação setorial ao mesmo tempo
que, sentindo a pressão da concorrência das empresas privadas, tem forte estímulo para a busca de eficiência
econômica” (COMPARATO; SALOMÃO FILHO. O poder de controle na sociedade anônima, p. 137). Falando na
endorregulação, que seria a regulação econômica operada por intermédio da atuação das estatais, v. MOREIRA,
Egon Bockman. Passado, presente e futuro da regulação econômica no Brasil. In: Revista Brasileira de Direito
Público da Economia, a. 11, n. 44. out./dez. 2013.
483
“Na verdade, a empresa pública (lato sensu) não é fruto de uma idealização racional e jurídica da doutrina. Ela
é produto das necessidades políticas e econômicas, e ainda, de outro lado, resultado, pura e simplesmente,
da prática administrativa (em grande parte empírica) relativa ao Estado contemporâneo” (MUKAI. O direito
administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 155). É por isso, diga-se logo, que as estatais brasileiras
nunca se amoldaram a encaixes doutrinários, ou, quiçá, legais (no que é um desafio para a Lei das Estatais): elas
têm a cara da circunstância econômica que as gerou, e, depois, daquelas que as mantêm vivas.
484
Marie-Louise Pelletier indica três ordens de razões para a privatização: razões financeiras, administrativas e
políticas. Diversos objetivos estão englobados nas razões financeiras: o saneamento das finanças do Estado,
a redução da utilização dos recursos estatais, o alívio das contas públicas. Só em 1995, o montante total de
privatizações no mundo injetou 67,5 milhões de dólares nas economias dos Estados. Mas a autora menciona
as dificuldades de avaliação do valor das estatais, e a circunstância de, em regra, os compradores privados
recusarem-se a assumir dívidas ou débitos trabalhistas como fatores que neutralizariam a desoneração
das contas públicas via privatização. Quanto às razões administrativas, elas também podem ser de diversas
ordens: desejo de atrair investimentos estrangeiros, interesse em conceder liberdade de ação às empresas para
adaptá-las à concorrência. Marie-Louise ainda menciona uma suposta maior eficiência da empresa privada
(em comparação com as estatais) como razão usualmente evocada para justificar a privatização — dado que,
para ela, é equivocado, pois já estaria provado que, “em um ambiente competitivo, as empresas públicas e
privadas possuem rentabilidade comparável”. E há, ainda, razões políticas: um governo liberal, de direita, é
mais inclinado a privatizar do que um de esquerda. Razões ideológicas subjazem às razões políticas, mas seria
perigoso transformar a própria privatização numa ideologia (PELLETIER. L’entreprise Publique de Service Public:
Déclin et Mutation, p. 179-180).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
154 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

pública operada no Brasil dos anos anteriores. Tal movimento ganhou momento nos anos
seguintes, com a revelação de uma série de atos lesivos ao interesse público praticados
a partir de estatais. Em 2017, cogitava-se da privatização de uma série de estatais, tais
como diversas subsidiárias da Eletrobras e a sociedade de economia mista responsável
pelo saneamento no estado do Rio de Janeiro (a CEDAE).
Mas falemos especificamente das empresas públicas e das sociedades de economia
mista. Ao fazê-lo, estamos tratando, também, das intervenções monopolística e concor-
rencial, pois é para exercer o monopólio ou para competir no mercado que foram feitas.
Começamos falando de sua (i) origem histórica e, logo após, analisamos sua (ii) razão
de ser, isto é, os propósitos a que se destinam. Prosseguimos com sua (iii) conceituação e
a análise de como se dá sua (iv) constituição. Estudamos, ainda, as (v) formas societárias
que podem assumir no Direito brasileiro. Depois, é o momento de estudarmos seu (vi)
objeto e o (vii) regime jurídico a que se submetem. Adentramos então no debate sobre
a aplicabilidade da regra da (viii) licitação a suas compras e serviços e nas discussões
sobre seu (ix) regime de pessoal. Uma breve referência às formas de (x) controle de suas
atividades e dispêndios, outra acerca da incidência de alguns (xi) princípios constitu-
cionais à lógica operacional das estatais, e a análise conclui-se com a menção às formas
de sua (xii) extinção.

1.2.1 A origem histórica das estatais. As primeiras estatais brasileiras


A origem das sociedades de economia mista é a origem das sociedades por ações:
na Inglaterra e/ou na Holanda, no final do século XVI e início do século XVII.485 Há
algum dissenso na questão — existem comercialistas que veem seu surgimento na
Alemanha do início do século XX486 —, mas, ao que parece, aí, já se tratava de figura
mais evoluída.487 Sociedades por ações, sociedades de economia mista e o mercantilismo
das grandes navegações são os três vértices de uma quadra histórica na qual o Poder
Político e a burguesia resolveram buscar grandes lucros repartindo grandes riscos.488
As empresas públicas são mais recentes. Surgiram nos Estados Unidos na primeira
década do século XX. Decorreram da encampação, pelos EUA, da Panama Railroad
Company, em 1904. Durante a Primeira Guerra, surgiram várias outras empresas públicas,
muitas voltadas a atividades bancárias. O New Deal também impulsionou sua expansão.

485
SANTA MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 40. Há quem veja a origem das sociedades
de economia mista no Banco de São Jorge, instituição italiana do ano de 1406 (ou 1407). A maioria dos autores,
contudo, acredita que a holandesa Companhia das Índias Orientais, surgida em 1602, representou a primeira
manifestação mais estruturada do fenômeno jurídico-político. Nesse último sentido, Rubens Requião (Curso de
direito comercial, v. 2, p. 4).
486
ZWAHLEN, Henri. Des sociétés commerciales avec participation de l’Etat. Th. Droit Lausanne, 1935 apud SANTA
MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 40.
487
O ressurgimento das sociedades de economia mista em solo alemão ocorreu no primeiro pós-guerra, não
por deficiência de capital, mas por interesse estratégico-militar. Cidades da Renânia se uniam a particulares
para a constituição de empresas de produção e distribuição de energia elétrica. Outras cidades constituíram
diferentes sociedades de economia mista, sempre com o propósito de desenvolver atividades-chave e de ganhar
espaço no mercado internacional. “Na Alemanha, pode-se dizer, nasceram as novas sociedades de economia
mista, baseadas todas, ou na necessidade de defender o interesse coletivo, ou na de preservar as fronteiras do
Reich contra os possíveis ataques das nações vizinhas” (VALVERDE. Sociedades anônimas ou companhias
de economia mista. Revista de Direito Administrativo, p. 32). Ver, ainda, Eros Roberto Grau (Considerações a
propósito das sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 113-132, especialmente p. 123-126).
488
BORBA. Temas de direito comercial, p. 353-355.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
155

Dos EUA, o modelo da empresa pública — que, à época, era tido como de excepcional
eficiência, algo a ser imitado — foi exportado para a França, a Alemanha, a Turquia.489 490
De lá, correu mundo, espalhando-se por toda a Europa e pela América Latina.
No Brasil, a primeira sociedade de economia mista foi o Banco do Brasil, criado
em 12 de outubro de 1808 por um alvará do príncipe regente Dom João de Bragança.
Nos contornos atuais, a sociedade de economia mista moderna surge com o Instituto de
Resseguros do Brasil, em 1939, a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, e a Vale do
Rio Doce, em 1942. Para operar monopólios públicos, foram constituídas a Petrobras,
em 1953, e a Eletrobras, em 1961.
Quanto à primeira empresa pública brasileira, há quem diga que teria sido a
Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), cuja criação foi autorizada pela
Lei Federal nº 2.874, de 15 de setembro de 1956, com o propósito de operar a construção
de Brasília.491 Outros falam na Embratur — Empresa Brasileira de Turismo —, hoje au-
tarquia federal vinculada ao Ministério do Turismo, criada em 18 de novembro de 1966.
Seja uma ou outra, a verdade é que várias empresas públicas adquiriram, desde
então, proeminência no panorama econômico e social do país. São exemplos disso a
Caixa Econômica Federal, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos e o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES (criado originalmente
como autarquia).492
As listas e os apanhados históricos já são extensos. O que importa saber é que
houve grande desenvolvimento da atuação empresarial do Estado após as duas guer-
ras mundiais, e que a forma histórica mais antiga é a sociedade de economia mista. A
empresa pública, mais recente, é, por características próprias, mais “interventiva” do
que a economia mista.

1.2.2 Para que são criadas estatais? As duas finalidades para a criação
de estatais. As duas (ou três) espécies de estatais. A ênfase na
atividade da empresa
A razão de ser das estatais — aquilo para o que foram criadas — é simples. Há
duas finalidades. A primeira é a mais imediata: elas surgiram para operar a intervenção
direta do Estado na economia, seja a intervenção concorrencial — a estatal funciona em
conjunto com as empresas privadas não estatais e concorre com elas —, seja a intervenção
monopolística — a estatal opera, com exclusividade, determinada atividade econômica
que, por determinação constitucional (ou legal, como defende este livro), só pode ser
desempenhada pelo Poder Público.
A segunda finalidade, que, na prática, muitas vezes acaba sobressaindo, é a de
escapar das amarras do formalismo que, para o bem e para o mal, incide sobre os entes e

489
SANTA MARIA. Sociedades de economia mista e empresas públicas, p. 153-154.
490
Sobre a experiência das empresas públicas na Turquia, cf. HANSON. Public Enterprise & Economic Development,
especialmente p. 116-128.
491
GILSON. A administração indireta, seu controle financeiro e os tribunais de contas. Revista do Tribunal de
Contas do Distrito Federal, p. 9; MUNIZ. A empresa pública no direito brasileiro, p. 11 (embora defendendo que, tal
como a entendemos hoje, a primeira empresa pública brasileira teria sido a Embratel, ver p. 12). Analisando
a natureza jurídica da Novacap, v. COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de
Direito Administrativo, p. 33-37.
492
Desenvolver o histórico brasileiro da criação de sociedades de economia mista e de empresas públicas em Pedro
Paulo de Almeida Dutra (Controle de empresas estatais: uma proposta de mudança, p. 31-35).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
156 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

órgãos da Administração Pública, os quais, ou não possuem personalidade jurídica, ou


possuem-na de Direito Público.493 É o propósito de fugir da burocracia.
A segunda finalidade frequentemente se sobrepõe à primeira. Isso porque há
estatais que não funcionam como mãos empresariais do Estado. São as estatais presta-
doras de serviços públicos, cuja realidade se sobrepunha à definição legal (o Decreto-Lei
nº 200/67, que ainda define, sob críticas,494 o que são empresas públicas e sociedades de
economia mista, não menciona a possibilidade de prestarem serviços públicos, apenas
de “exploração da atividade econômica”).495
Com a Lei das Estatais, o ponto restou superado: o art. 1º da Lei nº 13.303/2016
afirma tratar de todas as empresas públicas e sociedades de economia mista que ex-
plorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação
de serviços, ainda que a atividade econômica seja de prestação de serviços públicos. Na nova
lei, assume-se, então, que as estatais possam prestar serviços públicos; houve, aqui, a
legalização da categoria doutrinária, tributária de Eros Grau, de “atividade econômica
em sentido amplo”, a qual inclui a atividade econômica em sentido estrito, e os serviços
públicos.
Ora, que outro motivo haveria, senão o de “fugir para o Direito Privado”, na
constituição de estatal que presta serviço público? Tal empresa, em rigor, não possuiria
qualquer motivo imediato para assumir personalidade de Direito Privado. Em princí-
pio, ela não concorrerá com outras empresas privadas no mercado — daí porque não
precisaria assumir personalidade privada para não incorrer em privilégios, ou sofrer
prejuízos, decorrentes da natureza pública496 —, tampouco desenvolverá atividade
de natureza empresarial. Assim, a natureza privada da estatal prestadora de serviços
públicos só se explica porque foi o meio encontrado para amenizar a incidência das
restrições ínsitas ao regime de Direito Público — licitações, concurso público etc. —
naquela entidade. Fugir do Direito Privado às vezes é bom propósito, mas, em certos
casos, justifica-se a ênfase no verbo “fugir”.497 498

493
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 577-578.
494
Por exemplo, BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 186-192.
495
Tentativa de salvar a letra da lei poderia investir na leitura de “exercer a atividade econômica” em sentido
amplo, isto é, como gênero de duas espécies: atividade econômica em sentido estrito, e serviços públicos, tal
como o faz Eros Roberto Grau. Entendido assim, pelo menos dessa crítica o Decreto-Lei nº 200/67 estaria livre.
496
Ressaltamos que, hoje, já é admissível — e até legalmente estimulada — a concorrência entre prestadoras de
serviços públicos. V. art. 16 da Lei Federal nº 8.987/95 (“a outorga de concessão ou permissão não terá caráter
de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5º
desta lei”). Ainda, ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 407-497, cap. IX - Serviços públicos e concorrência.
497
“O itinerário destes entes, posteriormente designados genericamente como empresas estatais, demonstra,
contudo, que a tal ‘fuga para o direito privado’ deveu-se mais à busca de maior eficiência (a libertação dos
‘grilhões do regime de direito público’) do que à necessidade de maior adequação do regime jurídico às
finalidades da atuação estatal. Daí a surgirem desvios e distorções (dentre as quais a prática de um certo
empreguismo na esteira de maior liberdade de contratação de pessoal foi exemplo veemente) foi um passo”
(MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 578).
498
Atualmente, está superada a indicação doutrinária de que as sociedades de economia mista deveriam ser
constituídas preferencialmente para a intervenção direta concorrencial, e as empresas públicas, para a prestação
de serviços públicos. Na prática, o administrador público, secundado pela lei, pode escolher tanto uma quanto
outra para desempenhar quaisquer dos misteres. Para a antiga lição, consultar Alfredo de Almeida Paiva (As
sociedades de economia mista e as empresas públicas como instrumentos jurídicos a serviço do Estado. Revista
de Direito Administrativo, p. 319). Mencionando que “fica a critério do ente criador a forma de que se revestirá a
criatura, uma vez que inexistem regras a respeito”. Cf. MUNIZ. Caminha. A empresa pública no direito brasileiro,
p. 24-25.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
157

Outros autores mencionam que, na ideia de que o principal propósito da consti-


tuição das estatais passou, hoje, a ser o de escapar ao Direito Público, além das estatais
interventivas na economia e das estatais prestadoras de serviços públicos, há, ainda,
estatais que desempenham funções públicas.499 Quem afirma isso não inclui as funções pú-
blicas (ou funções administrativas) no conceito de serviço público; do contrário, tais
estatais tratar-se-iam, apenas, de especificação das estatais prestadoras de serviços
públicos. Tais funções públicas não só dizem respeito às atividades administrativas e
burocráticas, mas também, e polemicamente, ao exercício do poder de polícia.500
É dizer: há quem defenda que as estatais, além de intervir diretamente na econo-
mia, e de prestar serviços públicos, também possam exercer atividades administrativas
típicas do Estado e atuar com poder de polícia. Em que pese a rejeição da tese, quanto ao
último ponto, pelo STF, teremos ocasião de analisá-la no curso do capítulo. Importante
agora é sublinhar que, se tais estatais existem validamente em nosso Ordenamento, a
razão de sua criação não terá sido, obviamente, a possibilidade de intervenção direta
na economia em igualdade de condições com as demais empresas privadas, e sim a
esquiva das restrições do regime de Direito Público.
É importante ficar claro que ao dizer que existem estatais prestadoras de serviços
públicos, e outras que atuam concorrencial ou monopolisticamente na economia —
sem falar nas que atuam prestando serviços à Administração —, o que interessa é a
atividade desempenhada pela empresa. O regime jurídico se procura a partir da atividade
desempenhada pela empresa, e não a partir de seu enquadramento prévio como “prestadora de
serviço público” ou como “atuante na intervenção econômica direta”.
Segundo ponto é que, hoje, é comum encontrar estatais que prestam serviços
públicos e atuam concorrencialmente na economia. A separação nunca foi estanque,501
mas atualmente a frequência de situações híbridas parece convidar à inteira superação
da dicotomia.502 O tema será desenvolvido oportunamente.
Apenas numa observação incidental, há verdadeira dinâmica pendular no histó-
rico da busca por menos formalismo. Antes da Constituição de 1988, o regime jurídico
das estatais era bastante livre — a ênfase era em sua personalidade jurídica privada —,
o que gerou abusos. A atual Constituição, antes da Emenda nº 19/98, procedeu a uma

499
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 221 et seq. No mesmo
sentido, pelo menos quanto à existência de terceira espécie de estatal, Marçal Justen Filho: “Rigorosamente, seria
possível (e necessário) reconhecer uma terceira espécie de entidade. Seria aquela composta por sujeitos cuja
função consiste em prestar apoio à Administração Pública. Nesse caso, a entidade não atua no mercado nem
presta serviços fora do âmbito estatal, mas dá suporte a atividades administrativas. Nessa categoria poderiam
ser incluídas as entidades encarregadas de processamento de dados, impressão e planejamento e assim por
diante” (O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade econômica’.
Revista de Direito do Estado, p. 124).
500
Em rigor, é inteiramente possível — aliás, é o mais comum — a defesa da existência de uma terceira espécie
de finalidade de atuação das empresas estatais, e nada se postular a respeito da existência ou não de poder de
polícia para as estatais em geral.
501
Aludindo a que a classificação entre estatais que atuam na intervenção econômica em sentido estrito, de um
lado, e as que prestam serviço público, de outro, toma por base tipos ideais (na terminologia weberiana), e que
dificilmente encontraremos empresa que desempenhe exclusivamente uma dessas duas atividades, v. GRAU.
Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial,
Econômico e Financeiro, p. 47.
502
JUSTEN FILHO. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade
econômica’. Revista de Direito do Estado, p. 135. A Lei das Estatais, em boa hora, não adota a bipartição, isto é, não
trata de duas espécies de estatais, mas, apenas, das estatais tout court.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
158 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

“recaptura” das estatais pelo Direito Público, com a exigência de licitações e contrata-
ção de agentes por meios idênticos aos das entidades e órgãos públicos.503 As estatais
passaram a ficar com o pior dos dois mundos: sem as “vantagens” do regime público —
o que poderia impactar em sua capacidade de concorrer com as empresas privadas —,
mas com todas as restrições. A Emenda à Constituição nº 19/98, na parte que nos inte-
ressa, modificou a redação dos artigos 22, XXVII, e 173, §1º, e fez com que previssem
um regime licitatório próprio, a ser editado numa lei que, depois de muitos anos, veio
à lume a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, regulamentada pelo Decreto nº 8.945,
de 27 de dezembro de 2016. A nova lei e seu regulamento ainda operam segundo uma
lógica de recaptura pelo Direito Público, se bem que com espaços de flexibilidade.
Então, os motivos para se criar uma empresa estatal são dois: intervir diretamente
na economia e evitar o formalismo do regime público; cada vez menos o primeiro, cada
vez mais, correta ou incorretamente, o segundo. Pelo segundo motivo é que existem
estatais prestadoras de serviços públicos — o que (ao menos imediatamente) não pre-
vê o Decreto-Lei Federal nº 200/67 —, e, também, segundo alguns, estatais capazes (e
juridicamente legitimadas) de desempenhar atividades administrativas e de exercer o
poder de polícia.
Como é fácil prever, a circunstância de que empresas privadas, mesmo integrando
a Administração, desempenhem atividades intrinsecamente “públicas” vai gerar con-
sequências na forma de ainda mais exceções ao regime privado de sua personalidade
jurídica.
De qualquer forma, nem sempre personalidade privada é garantia, seja de pouco
formalismo, seja da possibilidade de intervenção concorrencial isonômica: muitos
doutrinadores e instâncias de controle, alegando diversos motivos, pretendem impor
diversas restrições de Direito Público às estatais.
1.2.3 Conceituação de estatais: a definição do Decreto-Lei nº 200 e as críticas a ela
lançadas. A definição da Lei das Estatais. Uma conceituação pragmatista de empresa
pública e de sociedade de economia mista
Por tudo o que vimos, fica mais fácil avançar numa conceituação de sociedade de
economia mista e de empresa pública. O Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967,
não é fonte confiável. Embora inconfiável, é fundante. Trata-se de referência legislativa
sobre o que são e como se caracterizam as estatais.
As definições legais são as seguintes:

Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:


II - Empresa Pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado,
com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de
atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou
de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas
em direito.
III - Sociedade de Economia Mista – a entidade dotada de personalidade jurídica de
direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de

503
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 579.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
159

sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou
a entidade da Administração indireta.504 505

As críticas doutrinárias à redação do Decreto-Lei são variadas. Quanto à definição


de empresa pública, informa-se que, no art. 5º do Decreto-Lei nº 900/69 (que alterou a
redação do Decreto-Lei nº 200/67), admite-se, desde que a maioria do capital votante
permaneça com a União, a participação de outras pessoas jurídicas de Direito Público
interno — Estados e Municípios —, bem como das Administrações Públicas indiretas
de quaisquer dos entes federativos. Assim, o capital de uma empresa pública não pre-
cisaria ser exclusivo da União, tal como afirma a definição do art. 5º, II, do Decreto-Lei
nº 200/67. Seria admissível, ainda sob o rótulo de empresa pública, o domínio do capital
votante não pela União, mas por entidade de sua Administração indireta, pelos Estados
ou Municípios (ou seja, pode existir empresa pública estadual ou municipal).506

504
A redação transcrita no corpo do texto principal é a do Decreto-Lei nº 200/67 após a alteração promovida pelo
Decreto-Lei nº 900, de 29 de setembro de 1969. Na redação original, os trechos onde hoje se lê “para exploração
de atividade econômica” falavam em “para desempenhar atividades de natureza empresarial” (na empresa
pública) e “para o exercício de atividade de natureza mercantil” (na sociedade de economia mista).
505
O art. 77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989, em seu parágrafo segundo, adotou as seguintes
definições: “II - empresa pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado com
patrimônio próprio e capital público majoritariamente do Estado, criada por lei para a exploração de atividade
econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa,
podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito; III - sociedade de economia mista – a
entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade
econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria ao
Estado ou a entidade da administração indireta”. Já a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, em seu art.
144, parágrafo primeiro, refere-se a tais entidades da seguinte forma: “As empresas públicas e sociedades de
economia mista, criadas para a prestação de serviços públicos ou como instrumentos de atuação no domínio
econômico, estão sujeitas às normas de licitação e contratação de pessoal definidas na Constituição da República
e nesta Lei Orgânica”.
506
Interessa acrescentar: aceita-se hoje em dia a constituição de estatais por Estados e Municípios (v. RESP nº 642.324-
SC, DJU, p. 225, 26 out. 2006: “Inexiste óbice a que Estado-membro da Federação autorize, por intermédio de
Lei Estadual, a criação de sociedade de economia mista estadual, uma vez que o inciso XIX, do art. 37 da
Constituição Federal não faz qualquer ressalva à norma geral contida no caput do mesmo artigo, que se refere
expressamente à Administração Pública direta e indireta de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios”). Nem sempre foi assim. Quando vigia a Constituição de 1967/1969,
muitos negavam a possibilidade, alegando que, como a competência para legislar sobre Direito Comercial era
(e é) da União, e como a criação de tais entidades acabaria gerando exceções à legislação comercial em vigor,
a possibilidade inexistiria para Estados e Municípios. Nesse sentido, v. GRAU. Considerações a propósito das
sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 113-132. Outra linha de argumentação dizia que,
como Estados e Municípios não possuiriam capacidade para intervir concorrencial ou monopolisticamente na
economia, não poderiam constituir as entidades que se prestam a esse tipo de intervenção, ou, pelo menos, só
as poderiam constituir como prestadoras de serviços públicos (cf. MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p.
88). Para alentada digressão, colacionando a posição de diversos autores da época, cf. FIGUEIREDO. Empresas
públicas e sociedades de economia mista, p. 69-80. Atualmente, a aceitação é ampla na doutrina e na prática, desde
que, evidentemente, Estados e Municípios não se prestem a legislar sobre Direito Empresarial. V. RIBEIRO.
Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 109 e ARAUJO. Administração indireta
brasileira, p. 77-78 (porém registrando, com acerto, que a intervenção direta para fins de segurança nacional,
considerando a competência legislativa e administrativa da matéria, ainda continua nas mãos da União). A
doutrina e a prática estrangeiras aceitam a empresa pública estadual ou municipal (na França, há as “enterprises
publiques locales”; na Itália, os “entes públicos econômicos” criados pelos entes públicos territoriais; o Direito
espanhol é exceção). Em Portugal, a figura da empresa pública municipal e intermunicipal foi regulamentada
pela Lei nº 58/98. Sobre este último ponto, v. AMORIM. As empresas públicas no direito português: em especial, as
empresas municipais, passim.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
160 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Há crítica que ataca a expressão “criada por lei” das definições. Tais entidades,
como, aliás, todas as entidades privadas, não são criadas diretamente por lei; sua criação
dá-se a partir do registro público de seus atos constitutivos.507
Outra crítica refere-se ao fato de essas empresas não terem por finalidade ape-
nas a exploração de atividade econômica, pois muitas foram criadas para a prestação
de serviços públicos.508 509 Tal crítica também vale diante da definição de sociedade de
economia mista, que, além disso, não incorpora sua característica mais saliente, a saber,
a associação entre capitais públicos e privados.510
Algumas dessas críticas foram superadas pelo tratamento do tema na Lei das
Estatais. Às definições, e, depois, à análise das críticas.
Empresa pública, em conformidade com o art. 3º da Lei nº 13.303/2016, é a enti-
dade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por
lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União,
pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios.
Já a sociedade de economia mista, de acordo com o art. 4º, caput, é a entidade
dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei,
sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua
maioria à União, aos Estados, aos Municípios ou a entidade da Administração Indireta.
Veja-se que a Lei das Estatais não prevê que o capital social, ou as ações com di-
reito a voto, estejam apenas nas mãos da União. Ela se refere expressamente, também,
aos entes subnacionais. Também não se limita à Administração Direta: a titularidade do
capital, ou das ações, pode estar com as entidades da Administração Pública Indireta.
Outra precisão técnica da lei: as estatais têm sua criação autorizada por lei. E a indicação
da finalidade destas entidades, que está no art. 1º da Lei nº 13.303/2016, é bem abran-
gente (fala em atividades econômicas, monopólio e serviços públicos).511
Desse modo, boa parte das críticas lançadas às definições das estatais do Decreto-
Lei nº 200/67 foram solucionadas pela Lei das Estatais. No entanto, o Decreto-Lei nº
200/67 não foi revogado, no todo ou em parte, pela Lei das Estatais. As críticas ainda
subsistem, mas em nota quase histórica. Pelo critério da especialidade, e pela cronologia,

507
PINTO JUNIOR. A estrutura da Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia
controlada. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 50.
508
Ainda outra crítica, derivada da abrangência material das possibilidades de atuação das empresas públicas,
argumenta que, à luz da redação do art. 173 da Constituição da República de 1988 — que só fala em intervenção
direta nos casos de relevante interesse coletivo ou de segurança nacional —, não seria mais possível a criação
de empresas públicas “por força de contingência ou de conveniência administrativa”. A Constituição haveria
restringido as possibilidades de criação de empresas públicas. Nesse sentido, v. Odete Medauar (Direito
administrativo moderno, p. 88). Por outro lado, e aqui tentando salvar a redação do Decreto-Lei, a verdade é que,
como se trata de conceitos jurídicos indeterminados, é plausível a interpretação de “por força de contingência”
como contingência apta a realizar interesse coletivo ou causada por imperativo de segurança nacional. Talvez a
única parte do Decreto-Lei nº 200/69 que não haja sido recepcionada pela Constituição Federal seja o trecho que
fala em “conveniência administrativa”, porque se pode argumentar convincentemente que há, nele, a ideia de
“mero interesse público secundário”.
509
A referência às empresas públicas e às sociedades de economia mista da Lei Orgânica do Município do Rio de
Janeiro (v. nota de rodapé nº 506) não padece desse mal, pois menciona expressamente que as empresas estatais
prestam serviços públicos ou atuam no domínio econômico.
510
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 187-192.
511
Cf. art. 1º da Lei nº 13.303/2016: Esta Lei dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade
de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer empresa pública e sociedade de
economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica
de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja
sujeita ao regime de monopólio da União, ou seja, de prestação de serviços públicos.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
161

o intérprete deve buscar a definição da Lei das Estatais muito antes da definição do
vetusto Decreto-Lei nº 200/67.
Um bom caminho para resolver os problemas definitórios do Decreto-Lei nº
200/67, ao mesmo tempo doutrinário e, de certa forma, legislativo, é o Anteprojeto de
Lei destinado a revogar o referido decreto, elaborado por um grupo de juristas a pedido
do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.512 Vamos analisar o Anteprojeto
nos próximos parágrafos. Outra solução, essa bem simples, é, preservando o Decreto-
Lei nº 200/67, revogar apenas suas definições sobre estatais.
O anteprojeto, mantendo a distinção tradicional entre Administração Pública
Direta e Indireta (art. 3º), assume, sem medo, a terminologia “empresas estatais” (art.
8º, II) e, já em sua definição, indica claramente que elas podem atuar na exploração de
atividades econômicas ou na prestação de serviços públicos.513 Um dos problemas das
definições do Decreto-Lei nº 200/67 restaria, então, superado.
Ao ingressar na conceituação de empresa pública, o Anteprojeto define-a como
“a empresa estatal cujo capital é integralmente da titularidade de entidade ou entidades
estatais, de Direito Público ou Privado”514 (art. 16) — no que é mais claro e analítico do
que o Decreto-Lei em vigor, o qual fala em titularidade da União.
Como se sabe, e esse é o tom de uma das críticas que apresentamos, as empresas
públicas não precisam ser titularizadas apenas pela pessoa jurídica de Direito Público
chamada União. Podem sê-lo por entidades de sua Administração indireta, por outras
entidades federativas — Estados e Municípios —, e por suas respectivas entidades
indiretas. Como muitas dessas entidades indiretas possuem natureza jurídica de

512
O Ministério do Orçamento, Planejamento e Gestão, em 06 de dezembro de 2007, constituiu, por intermédio da
Portaria nº 426, comissão de juristas, integrada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Floriano Azevedo Marques
Neto, Carlos Ari Sundfeld, Almiro do Couto e Silva, Paulo Modesto, Sérgio de Andréa Ferreira e Maria Coeli
Simões Pires, com o propósito de elaborar Anteprojeto de Lei destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67. O
trabalho foi concluído em 16 de julho de 2009 e o resultado pode ser consultado no seguinte endereço eletrônico:
<http://www.planejamento.goverbr/secretarias/upload/Arquivos/seges/comissao_jur/arquivos/090729_seges_
Arq_leiOrganica.pdf> (Acesso em: 04 dez. 2009).
513
Art. 15. Empresa estatal é a pessoa jurídica de direito privado, de fins econômicos, controlada direta ou
indiretamente por entidade ou entidades estatais, que executa serviços públicos ou explora atividade econômica
caracterizada pela produção ou comercialização de bens ou pela prestação de serviços em geral.
514
Há discussão a respeito da natureza jurídica da entidade cujo capital fosse titularizado, por exemplo, pela
União e por empresa pública federal. Como a empresa pública federal possui personalidade de direito privado,
ter-se-ia a junção do capital público — da União — com o capital privado da empresa pública federal. Haveria,
então, a associação de capital público e privado, o que seria típico da sociedade de economia mista. Por outro
lado, o capital é, na prática, inteiramente pertencente à Administração Pública federal. Isso não seria típico
de uma empresa pública federal? A favor da natureza de sociedade de economia mista da entidade assim
constituída, v. FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 224: “A fim de compor uma empresa pública é
necessário que os sócios sejam, todos eles, pessoas de Direito Público. Caso uma pessoa de Direito Público e
outra de Direito Privado se reúnam para criar nova empresa, esta não será empresa pública. Caso o controle
pertença a pessoa de Direito Público, ela será uma sociedade de economia mista”. Em sentido aparentemente
contrário, temos dois dados legislativos (ou quase): 1. A redação do art. 16 do Anteprojeto, como vimos,
menciona expressamente que as estatais que vão titularizar a empresa pública podem ser de direito público
ou privado; e 2. O art. 5º do Decreto-Lei nº 900/69 (que modificou o Decreto-Lei nº 200/64), o qual afirma que,
“desde que a maioria do capital votante permaneça de propriedade da União, será admitida, no capital da
empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas de direito público interno bem como de entidades
da Administração indireta da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios” (grifos nossos). Ora, o texto fala
genericamente em entidades da Administração indireta, nas quais se incluem entidades de direito privado. Em
nossa opinião, é preciosismo categorizar uma entidade, cujos titulares sejam a União e uma empresa pública
federal, como uma sociedade de economia mista. Embora formalmente “mista”, trata-se de entidade controlada
inteiramente pela Administração Pública. Trata-se, sem dúvida, de empresa pública. E mais: tratar-se-ia de
empresa pública federal mesmo se seu capital fosse composto por participações da União e de uma sociedade
de economia mista federal (DI PIETRO. Direito administrativo, p. 429-430).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
162 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

direito privado (as próprias empresas públicas, por exemplo), o Anteprojeto incorpora
a ideia, largamente aceita e praticada, segundo a qual as empresas públicas devem ser
titularizadas integralmente por alguma entidade ou grupo de entidades estatais, com
múltiplas combinações a partir daí.515
Aliás, em seu art. 16, §1º, o Anteprojeto afirma que a empresa pública integra a
Administração Pública indireta da pessoa político-administrativa que detenha seu controle — o
que significa, contrario sensu, que podem existir empresas públicas cuja titularidade seja
repartida entre entidades, públicas e privadas, de diversos níveis federativos. Poderia
existir, por exemplo, empresa pública intermunicipal, ou que fosse controlada por
autarquia federal, mas com boa parte de seu capital em mãos de Estado da Federação.
O texto do Decreto-Lei nº 200/67 fala apenas em titularidade da União.516 Na Lei das
Estatais, a empresa pública é sempre controlada por uma Administração Direta (União,
Estado, DF ou Município), mas admite a participação de outras Administrações — sejam
diretas ou indiretas (é o art. 3º, par. único, da Lei nº 13.303/2016).
A seguir, no art. 16, §2º, o Anteprojeto fala que empresas públicas podem adotar
a forma de sociedade unipessoal ou pluripessoal. O Decreto-Lei nº 200/67 menciona
somente que esta espécie de estatal poderá se revestir de “qualquer forma admitida
em Direito”. Trata-se de especificação derivada de dado reconhecido pela doutrina517 e
aplicado na prática: a empresa pública pode adotar qualquer forma admitida em Direito,
inclusive a sociedade unipessoal518 (ver art. 251 da Lei Federal nº 6.404/76).
Ao definir as sociedades de economia mista, o Anteprojeto faz referência àquilo
que Celso Antônio Bandeira de Mello considera ser sua característica principal: a
conjugação de capitais públicos e privados.519 Assim, o art. 17: “sociedade de economia
mista é a empresa estatal de cujo capital participam pessoas físicas ou entidades não
estatais”. O parágrafo único do mesmo artigo, tal como o Decreto-Lei nº 200/67, menciona
que a sociedade de economia mista deve adotar necessariamente a forma de sociedade
anônima.
Contudo, há, no Anteprojeto, diferença importante em relação ao regime do
Decreto-Lei nº 200/67, e, na verdade, também do sistema Lei das Estatais mais regula-
mento. É que, a vingar a proposta legislativa, não será mais necessário, na sociedade
de economia mista, que as ações com direito a voto pertençam, em sua maioria, às
entidades estatais. Bastaria que o controle de fato da companhia pertencesse à entidade
estatal. Também aqui o Anteprojeto vai ao encontro da realidade, na medida em que já

515
O art. 3º, par. único, da Lei das Estatais, parece adotar tal ideia. Leia-se seu texto: “Desde que a maioria do capital
votante permaneça em propriedade da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, será admitida,
no capital da empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas de direito público interno, bem como
de entidades da administração indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
516
Uma empresa pública intermunicipal consistiria, para todos os efeitos, numa modalidade de cooperação
interfederativa. A esse respeito, Marçal Justen Filho: “Quando houver vários sócios, será possível reputar que
existe uma modalidade de convênio, utilizada a expressão para indicar uma opção organizacional entre diferentes
sujeitos, voltada à realização de fins de interesse público” (JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 174).
517
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 173.
518
FERREIRA. O direito administrativo das empresas governamentais brasileiras. Revista de Direito Administrativo,
p. 1-33. Exemplo de empresa pública unipessoal é a Caixa Econômica Federal. Antigamente se falava que
a unipessoalidade era exceção à regra da existência de dois ou mais sócios na sociedade empresarial. Hoje,
a partir da Lei Federal nº 12.441/2001, a qual criou a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, as
sociedades unipessoais passaram a ser mais comuns.
519
Contra, entendendo que a característica principal das sociedades de economia mista não é a conjugação de
capitais, mas o regime jurídico especial, derrogatório do Direito Privado, aplicável ao acionista controlador
(GRAU. Considerações a propósito das sociedades de economia mista. Revista de Direito Público, p. 128).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
163

se reconhece a existência das chamadas “sociedades de economia mista minoritárias”,


nas quais o controle estatal é assegurado estatutariamente, e não pela propriedade da
maioria das ações com direito a voto.520 521
Por outro lado, é de se ver que o critério de controle adotado tanto pelo Decreto-Lei
nº 200/67 quanto pelo regulamento da Lei das Estatais (art. 2o, II, III e VI, do decreto n.
9.945/2016) — o critério do controle majoritário: quem controla é quem possui a maioria
das ações com direito a voto — possui a virtude de ser simples. Ele é mais simples,
inclusive, do que o critério de controle utilizado para as sociedades anônimas que não
integram a Administração Pública, e que consta do art. 116 da lei das SA (controlador é
quem possui poder de influência nas votações da empresa e usa esse poder). Observe-se
que, embora a Lei das S.A. seja genericamente aplicável às estatais, seu art. 116 não é: o
critério de controle das estatais é, por expressa dicção normativa, o critério do controle
majoritário.522
O critério do controle majoritário é mais simples, ao passo que critérios materiais
podem ser mais realistas. Há, aqui, um trade-off que poderia ser futuramente estudado.
Outras propostas do Anteprojeto serão mencionadas conforme se mostrem pertinentes.
Para o momento, fiquemos com a contraposição entre as linhas gerais apresentadas pelo
Decreto-Lei nº 200/67, as definições da Lei das Estatais, e as definições do Anteprojeto.
Para além da discussão conceitual-doutrinária, tais elementos podem ser úteis à elabo-
ração de conceituação mínima de empresas públicas e de sociedades de economia mista,
formulada à luz do contexto no qual elas existem e com olhos em suas possíveis con-
sequências. Deste modo, elaboramos conceituação pragmatista das figuras institucionais
por meio das quais se dão as intervenções monopolística e concorrencial do Estado na
economia. Ela poderia ser a seguinte.
Empresas públicas são estatais cujo capital é titularizado integralmente pela Administração
Pública e que se prestam a intervir monopolística ou concorrencialmente na economia e/ou a
prestar serviços públicos. A definição é objetiva: são empresas, ou seja, pessoas jurídicas
de direito privado organizadas empresarialmente — embora a busca do lucro, ínsita à
ideia de sociedade empresária,523 deva ser relativizada, no mínimo porque essa procura
não adquire, no setor público, os mesmos contornos que na iniciativa privada524 —;

520
SCHWIND. Observações iniciais sobre o anteprojeto de lei que revogará o Decreto-Lei nº 200/67. Informativo
Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, p. 9. Carlos Ari Sundfeld, ao comentar o trecho do Anteprojeto, menciona que
o propósito foi o de modernizar o regime jurídico das estatais, hoje traçado no Decreto-Lei nº 200/67, portanto,
anterior à Lei das S.A. Importante não seria a titularidade de “metade mais um do capital votante”, como no
Decreto, mas sim, o controle estatal estável (Uma lei de normas gerais para a organização administrativa brasileira: o
regime jurídico comum das entidades estatais de direito privado e as empresas estatais. In: MODESTO (Coord.).
Nova organização administração brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de especialistas constituída pelo
Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 64).
521
A possibilidade de o Poder Público assumir o controle da sociedade de economia mista por outras formas
que não o controle majoritário sempre foi uma das críticas clássicas de Hely Lopes Meirelles à definição, para
ele excessivamente restritiva, de sociedade de economia mista no Decreto-Lei nº 200/67 (Direito administrativo
brasileiro, p. 361). Ainda, FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 224.
522
Estamos, nesse ponto, concordando com a lição de Nelson Eizirk, apresentada num debate sobre a Lei das
Estatais realizado no IAB em abril de 2017.
523
Art. 2º da Lei Federal nº 6.404/76: Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não
contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Ver, ainda, art. 966 do Código Civil de 2002.
524
Assim como se diz da atividade financeira do Estado — que é instrumental, que não é um fim em si mesma —,
também a busca do lucro, pelas estatais, é instrumental. Existe não para “enriquecer” o Estado, mas para gerar
recursos a serem investidos no desempenho de suas atividades próprias. Se a busca de lucro é instrumental em
abstrato, ela o é, ainda mais, se analisada com base no que fazem as estatais: ou intervêm concorrencialmente
na economia, porque a isso foram levadas por circunstância de interesse público ou de segurança nacional — e,
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
164 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

seu capital é integralmente titularizado pela Administração Pública, não importando a


forma institucional; sua finalidade é intervir na economia, sob os regimes de monopólio
público ou de competição, e/ou prestar serviços públicos.
Sociedades de economia mista são companhias estatais cujo capital pode contar com parti-
cipação privada, mas sempre sob controle da Administração Pública, e que se prestam a intervir
monopolística ou concorrencialmente na economia e/ou a prestar serviços públicos. Alguns ele-
mentos da definição anterior se repetem: são sociedades empresárias, pessoas jurídicas
de direito privado; suas finalidades são idênticas às das empresas públicas. As grandes
diferenças são a potencial participação do capital privado em sua formação e a forma
societária, que é sempre a de sociedade anônima (daí o “companhia” na definição).
Mais útil do que tentar elaborar (mais um) conceito doutrinário próprio de so-
ciedade de economia mista e de empresa pública é atentar para as suas diferenças, até
porque, na verdade, elas se assemelham em muita coisa.525 E essas diferenças dizem
respeito, basicamente, a dois elementos: sua constituição e as formas societárias que
podem assumir.

1.2.4 Constituição de estatais: semelhança formal e dessemelhança


material. A questão da criação das subsidiárias: uma decisão
pragmaticamente correta do STF
Falemos de sua constituição.
Em termos formais, não há diferença. Ambas, como pessoas jurídicas de direito
privado, são constituídas a partir do registro de seus atos constitutivos no local apro-
priado — a Junta Comercial ou o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, conforme a forma
societária adotada.526

aí, o propósito é mais realizar esse interesse público ou contribuir para a segurança do que gerar recursos
ao Estado —, ou prestam serviços públicos, e, como é natural, a busca é pela concretização dos objetivos
atingíveis por essa prestação (integração nacional, oferecimento de utilidades essenciais à população, satisfação
de direitos fundamentais etc.). Nesse sentido, ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 197. Por outro lado,
não há vedação, constitucional ou legal, à obtenção de lucro pelas estatais, sejam prestadoras de serviço
público ou intervenientes na economia em exercício concorrencial ou monopolístico. Em rigor, é seu dever
serem eficientes e lucrativas, podendo apenas excepcionalmente atuar de modo deficitário. No caso das que
atuam concorrencialmente, imaginá-las operando sem pretender lucrar significaria, até, violação das regras de
defesa de concorrência. Desenvolver em Eros Roberto Grau (Lucratividade e função social nas empresas sob
controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 35-59, especialmente p. 53
et seq.). Outro tratamento teórico é o que distingue entre o resultado da estatal — que é e deve ser o lucro — e
a causa determinante de sua criação — o interesse público (CRETELLA JÚNIOR. Empresa pública, p. 227). Para o
tratamento alemão do tema, v. Hartmut Maurer (Direito administrativo geral, p. 44-45). Alguns autores usam a
busca pelo lucro para diferenciar a sociedade de economia mista — na qual seria exigida a finalidade lucrativa,
com o fim de remunerar o capital privado ao qual apela (acionistas privados) — da empresa pública, que não
teria, necessariamente, tal finalidade. A diferenciação é promissora, mas pode se tornar confusa quando se
sabe que empresas públicas podem ser acionistas de sociedades de economia mista — então estas empresas
públicas teriam que perseguir o lucro? —, e que, com base no art. 173 da Constituição, que não faz menção
a espécies institucionais, também as sociedades de economia mista estão autorizadas a intervir na economia
em casos (v.g. segurança nacional) em que seria complicado falar em busca do lucro. Para a vindicação de tal
distinção, v. PINTO JUNIOR. Empresa estatal: função econômica e dilemas societários, p. 317. Ainda, SOUTO.
Direito administrativo empresarial, p. 4.
525
“Empresas públicas e sociedades de economia mista, isto é, as ‘empresas estatais’ (designativo genérico que
serve para referi-las indistintamente), apresentam uma impressionante semelhança na disciplina jurídica que se
lhes aplica. Assim, o que interessa, de logo, é apontar o que as dessemelha [...]” (BANDEIRA DE MELLO. Curso
de direito administrativo, p. 192).
526
Ver art. 1.150 do Código Civil: “Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro
Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
165

A questão fica menos óbvia a partir da exigência constitucional de lei que au-
torize a criação das estatais (art. 37, XIX, da CRFB/88 — a redação original, antes da
Emenda à Constituição nº 19/98, fala que empresas públicas e sociedades de economia
mista seriam “criadas” pela lei. O trecho era criticado porque se dizia que uma lei seria
incapaz de criar diretamente uma instituição privada, a qual só se constituiria com o
registro de seus atos.527 O constituinte originário haveria repetido o erro do legislador
do Decreto-Lei nº 200/67).528
A autorização legal para a criação das estatais é exigência que decorre do prin-
cípio democrático. Se a Administração Pública vai atuar diretamente na economia, ou
se vai prestar serviços públicos, criando entidade destacada, faz sentido a exigência de
referenciação popular presumida na atuação do Poder Legislativo.
A autorização legal para a criação de estatal consta, de modo expresso, na Lei
das Estatais (art. 2º, par. 1º, da Lei nº 13.303/2016) e em seu regulamento (art. 4º do
Decreto nº 8.945/2016).

Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar
um dos tipos de sociedade empresária”. Para as sociedades de economia mista, em específico, cf. art. 236 da Lei
Federal nº 6.404/76, a Lei das S.A.: “Art. 236. A constituição de companhia de economia mista depende de prévia
autorização legislativa”.
527
A crítica é unânime. Veja-se, por exemplo, Marcelo Andrade Féres (O Estado empresário: reflexões sobre a
eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito do Estado, p.
275). Por outro lado, deve-se considerar a observação de Eros Grau de que “a sociedade de economia mista é,
pois, criada por lei. Este o elemento primordial a caracterizá-la como sociedade de economia mista: a criação por
lei. Cuida-se aqui, evidentemente, não da criação da sociedade como pessoa jurídica, mas da criação de um modelo
jurídico especial, excepcional em relação ao modelo ortodoxo de sociedade anônima” (GRAU. Lucratividade e
função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,
p. 38). Sob essa ótica, é possível dizer que os modelos jurídicos da sociedade de economia mista e da empresa
pública são, sim, criados por lei, embora as empresas propriamente ditas tenham sua constituição autorizada
por leis específicas. Aliás, o professor paulista proferiu voto, já como Ministro do Supremo, no RMS nº 24.249,
julgado em 14 de setembro de 2004, defendendo exatamente que o “criado por lei” refere-se à criação do
modelo pela lei. Somou a isso a ideia de que existem diferentes “modelos” de sociedades de economia mista —
a sociedade de economia mista definida pelo Decreto-Lei nº 200/67, outra definida pela Lei das S.A., até a
sociedade de economia mista que era definida pela antiga legislação do Imposto de Renda —, para concluir
que o Hospital Cristo Redentor S.A., apesar de não ter sido “criado por lei”, era uma sociedade de economia
mista para os fins de incidência do art. 37, XVII, da CRFB/88 (proibição da acumulação de cargos). Seu voto
prevaleceu e o acórdão foi assim ementado: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO
DE SEGURANÇA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CONCEITO. CONCEITOS JURÍDICOS. SERVIDOR
PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. NÃO EXERCÍCIO DO DIREITO DE OPÇÃO NO PRAZO LEGAL.
MÁ-FÉ CONFIGURADA. 1. Para efeitos do disposto no art. 37, XVII, da Constituição são sociedades de economia mista
aquelas — anônimas ou não — sob o controle da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal ou dos Municípios,
independentemente da circunstância de terem sido ‘criadas por lei’. 2. Configura-se a má-fé do servidor que acumula
cargos públicos de forma ilegal quando, embora devidamente notificado para optar por um dos cargos, não
o faz, consubstanciando, sua omissão, disposição de persistir na prática do ilícito. 3. Recurso a que se nega
provimento” (grifos nossos).
528
Quando falamos “menos óbvia”, fique claro ser à luz do atual texto da Constituição da República, que não deixa
dúvidas. O tema, antes da Constituição de 1988, foi objeto de pronunciamentos doutrinários e jurisprudenciais
divergentes, que entendiam que, para os Estados e Municípios, as sociedades de economia mista e as empresas
públicas poderiam se caracterizar pelo controle acionário/titularidade do capital social, embora não tivessem
tido sua criação autorizada por intermédio de lei. Acreditava-se que, como o Decreto-Lei nº 200/67, que exige
lei para a criação (rectius, autorização para criação) das empresas públicas e das sociedades de economia
mista, afirma-se aplicável apenas para a União (em seu art. 5º, caput: “para os fins desta lei”), os demais entes
federativos, dentro de sua autonomia, possuiriam liberdade para a criação de estatais sem respeitar o figurino
federal. Só que o raciocínio nunca foi correto. Para demonstrá-lo, basta pensarmos no caso de uma sociedade
de economia mista (sempre uma sociedade anônima) regida pela Lei das S.A, bastante clara em seu art. 236: “A
constituição de companhia de economia mista depende de prévia autorização legislativa”. Logo, se a sociedade
de economia mista é uma S.A. — e ela sempre o será —, então sua criação, em qualquer nível federativo,
dependerá de autorização legal (FRANCO. Comentário ao acórdão que resolveu o conflito de competência 223
do Rio de Janeiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 140-144).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
166 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Caso inexista tal autorização, não se estará tratando de empresa pública, nem de
sociedade de economia mista, mas, tão somente, de empresa sob controle do Estado.529 É
claro que, dessa ilegalidade, não se deve argumentar em favor de uma série de outras,
como se a ausência de lei autorizativa liberasse a empresa controlada pelo Poder Público
do conjunto de restrições de Direito Público, como a obrigação de selecionar pessoal
por concurso público ou o dever de licitar. O “princípio” do pragmatismo jurídico
atua, aqui, inviabilizando resultados práticos que signifiquem, à luz do pensamento
administrativo médio, premiar uma inconstitucionalidade.530
Menos óbvia era a discussão travada a respeito da necessidade, ou não, de lei
autorizativa específica para a constituição das subsidiárias dessas mesmas estatais. O
ponto de partida é o art. 37, XX, da Constituição da República: “Depende de autorização
legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso
anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”. A partir
daí, formaram-se duas posições. A primeira defendia a necessidade de nova autorização
legislativa a cada subsidiária constituída, a qual restaria contida em lei específica (de
acordo com a referência constitucional “a cada caso”), posição que se aproximaria da
mencionada confirmação democrática da legitimidade da ação do Poder Público, por
condicionar a criação de cada subsidiária a novo debate político.531
A segunda defendia ser suficiente autorização legislativa genérica para a criação de
subsidiárias, autorização essa contida em artigo(s) da lei autorizadora da constituição
da estatal-matriz. Em favor dessa posição, o fato de que a confirmação democrática
já se poderia entender como dada na edição da lei autorizadora da empresa-matriz,
e, principalmente, o tempo da Economia, diferente do tempo do Direito, ainda mais
quando se tratasse de aprovar leis no Congresso Nacional ou nos Legislativos estaduais/

529
Ver decisões do STF publicadas na RDA, 143/118 e 145/170. Na doutrina, por exemplo, ARAUJO. Administração
indireta brasileira, p. 81-82. Antes da Constituição de 1988, admite-se que possam ter sido validamente instituídas
estatais cuja criação não haja sido expressamente autorizada por lei.
530
“Entendemos que — apesar de haverem irrompido defeituosamente no universo jurídico — a circunstância de
se constituírem em realidade fática da qual irrompeu uma cadeia de relações jurídicas pacificamente aceitas
impõe que se as considere assujeitadas a todos os limites e contenções aplicáveis a sociedades de economia
mista ou empresas públicas regularmente constituídas, até que sejam extintas ou sanado o vício de que se
ressentem. Com efeito, seria o maior dos contra-sensos entender que a violação do Direito, ou seja, sua mácula
de origem, deva funcionar como passaporte para que se libertem das sujeições a que estariam submissas se
a ordem jurídica houvesse sido respeitada” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 205).
Defendendo que tais “empresas estatais de fato” tenham suas situações consolidadas em virtude do tempo,
e argumentando com o princípio da aparência em prol da estabilização dos negócios jurídicos realizados por
essas estatais, v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 178. Raquel Melo Urbano de Carvalho,
apesar de concordar com a ideia de que as restrições de Direito Público devam ser exigidas das estatais de
fato, defende que, “enquanto não sanado o vício (ausência de autorização legislativa específica), esta entidade
não fará jus a quaisquer vantagens a que teria direito se regularmente instituída”. A estatal não teria direito a
qualquer privilégio processual ou material (CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção
do Estado e estrutura da administração, p. 687). Não concordamos com isso. Assim como tornar inteiramente
privada uma estatal de fato seria premiar uma situação inconstitucional, despi-la de todas as prerrogativas
materiais ou processuais seria punir quem não tem nada com isso: o interesse público. Imaginemos uma estatal
de fato que preste serviço relevante ao interesse público já há bastante tempo e que, apenas por não ter havido
autorização legislativa formal em sua constituição, tenha seus bens — afetados à prestação do serviço público —
passíveis de penhora. Não parece razoável.
531
NOGUEIRA. Função da lei na vida dos entes estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 34 et seq.; WALD.
As sociedades de economia mista e a nova lei de sociedades anônimas. Revista de Informação Legislativa, p. 99-
114. Defendendo que “isso equivaleria à delegação da competência legislativa para a órbita administrativa”
e “à renúncia do Legislativo ao exercício de competência reservada a ele constitucional e privativamente”,
v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 175-176.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
167

municipais.532 No limite do argumento, estar-se-ia inviabilizando a intervenção eficiente


da Administração Pública na economia, ao se abrir as portas de debate tendencialmente
lento, além de supérfluo.533
O STF foi convidado a se manifestar a respeito do tema a partir da Lei Geral do
Petróleo, Lei Federal nº 9.478, de 06 de agosto de 1997, que, em seus arts. 64 e 65, autoriza
genericamente a Petrobras a constituir subsidiárias para o cumprimento de atividades
de seu objeto social.534 Alegou-se violação à separação de poderes e ao art. 37, XX, da
Constituição da República. A decisão é interessante. O pedido de medida cautelar foi
indeferido e, por fim, a ação foi julgada improcedente. O Ministro Relator, Maurício
Corrêa, observou que “nem as subsidiárias nem as coligadas, ainda que autorizadas
por lei, são sociedades de economia mista”. São empresas comuns, apenas vinculadas,
por um ou outro motivo, à sociedade de economia mista. Depois de constituída a
subsidiária com base na autorização legislativa, eventuais subsidiárias das subsidiá-
rias poder-se-iam constituir independentemente de qualquer autorização legislativa.
Quanto à alegação de que a Lei do Petróleo não seria suficientemente específica para
autorizar a constituição de subsidiárias da Petrobras, o Ministro refutou o argumento,
afirmando que a exigência constitucional de lei específica não significa demanda por lei
especial, isto é, por lei que só trate daquele assunto.535 Citando o Consultor da União,
o relator considerou inconcebível que uma grande empresa nacional, que tivesse de
se fracionar em dez, necessitasse de dez projetos de lei diferentes. Concluiu com mais
dois argumentos de reforço: 1. Não seria a primeira vez que o Congresso Nacional teria
autorizado a criação de subsidiárias de empresas de economia mista “sem a edição
de lei específica em cada caso” (outras hipóteses seriam a Lei Federal nº 9.074/95, que
autoriza, de modo genérico, a constituição de consórcios entre concessionárias; a Lei
Federal nº 9.295/96, que autorizava a Telebras a constituir subsidiárias; e a Lei Federal nº
9.472/97, que ratifica a autorização da lei anterior); e 2. O argumento histórico: o relator
do projeto de lei que se tornaria a Lei do Petróleo pretendeu que a autorização do art.
63 permitisse a criação de subsidiárias sem leis específicas para cada caso.
O Ministro Carlos Ayres Britto apresentou argumento diferente, mas chegou a
conclusão idêntica à do relator. Suas premissas eram as de que, de fato, a Constituição
exigiria uma lei para cada subsidiária a ser constituída, e mais, que essa lei seria
“monotemática”, “monofinalista”. Para chegar a elas, Ayres Britto fez uso de um
raciocínio-padrão do Direito Econômico, e que será criticado neste livro: a de que a
constituição de uma subsidiária de uma sociedade de economia mista se inscreveria na

532
“Desta forma, a autorização genérica de criar subsidiárias, expressada na lei fundamental da sociedade de
economia mista matriz, é suficiente para transmitir à sociedade subsidiária a mesma natureza jurídica desta
última, desde que essa subsidiária atue no mesmo campo de atividade econômica da matriz. Esta seria, do
ponto de vista doutrinário, a interpretação mais correta dos dispositivos legais que regulamentam esta matéria.
Pela própria dinâmica do desenvolvimento econômico, não encontra justificativa o fato de ter o Estado que promulgar
leis específicas para a constituição de cada subsidiária” (STUBER. Natureza jurídica da subsidiária de sociedade de
economia mista. Revista de Direito Administrativo, p. 33, grifos nossos).
533
Em posição aparentemente contrária à autorização genérica, mas afirmando que “a expressão constitucional
‘em cada caso’ poderá ser entendida como indicativo apenas de área ou atividade específica a ser contemplada”
(BARROSO. Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 90).
534
ADI nº 1.649-1/DF.
535
“Seria inconcebível a compreensão de que o constituinte, ao fazer constar do Texto Constitucional a expressão
em cada caso, tenha tido a intenção de exigir que o Congresso votasse lei específica para a instituição do Conselho
Nacional de Política Energética, outra para a Agência Nacional do Petróleo, uma seguinte para a política
energética nacional, outra mais para as atividades relativas ao monopólio do petróleo, e assim por diante”.
Voto de Maurício Corrêa na ADI 1.649-1/DF (grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
168 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

atividade econômica do Estado, a qual seria “excepcional”. “Logo, está lógico o porquê
da exigência de lei específica para autorizar a criação de subsidiária, porque o Estado,
ao criar uma subsidiária, está ocupando um espaço que não é dele, mas da iniciativa
privada, um espaço estranho aos cometimentos estatais”.536
Em que pesem tais observações, na linha da “exceção” que se interpreta “restri-
tivamente”, Ayres Britto concebe que, naquele caso da Petrobras, como todo o “circuito
do petróleo” foi excluído da iniciativa privada — tratar-se-ia de monopólio público —,
a autorização legislativa genérica seria possível.
O Ministro Marco Aurélio, o próximo a votar, estabeleceu distinção. Para autorizar
a criação de sociedade de economia mista, a Constituição da República exigiria lei espe-
cífica; para a constituição de suas subsidiárias, bastaria autorização legal. “Contenta-se o
texto da Carta da República com autorização em cada caso, e não potencializo a utilização
do vocábulo ‘caso’. Devemos percebê-lo de forma genérica [...]”.537 Sepúlveda Pertence
simplesmente afirmou estar convencido de que, autorizada a criação da subsidiária, as
subsubsidiárias não estão mais submetidas à exigência de lei específica.
O acórdão restou assim ementado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 9.478/97. AUTORIZAÇÃO À
PETROBRÁS PARA CONSTITUIR SUBSIDIÁRIAS. OFENSA AOS ARTIGOS 2º E 37, XIX
E XX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA. ALEGAÇÃO IMPROCEDENTE.
1. A Lei nº 9.478/97 não autorizou a instituição de empresa de economia mista, mas sim
a criação de subsidiárias distintas da sociedade-matriz, em consonância com o inciso XX,
e não com o XIX do artigo 37 da Constituição Federal.
2. É dispensável a autorização legislativa para a criação de empresas subsidiárias, desde
que haja previsão para esse fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista
matriz, tendo em vista que a lei criadora é a própria medida autorizadora. Ação direta
de inconstitucionalidade julgada improcedente.

É possível resumir o posicionamento do STF nos seguintes pontos: a) só se exige


lei específica para a autorização da criação da sociedade de economia mista (e, natural-
mente, da empresa pública) matriz; b) ainda assim, essa lei específica, sem embargo de
uma opinião em contrário — a de Ayres Britto —, não precisa ser monotemática, quer
dizer, tratar exclusivamente da autorização da criação da estatal, bastando referir-se ao
setor ou à área da economia na qual a empresa vai intervir; c) a referência a “autorização
legislativa, em cada caso” (art. 37, XX, da CRFB/88) pode ser suprida por uma autoriza-
ção legislativa geral, na lei que autoriza a constituição da empresa-matriz. O “em cada
caso” significa “em cada caso de estatal-matriz em relação às suas subsidiárias”, e não
“em cada caso específico de constituição de subsidiária”.
O Supremo decidiu de modo pragmaticamente correto.538 Sem que seja ne-
cessário se apoiar exclusivamente na opinião de importantes juristas,539 a verdade é
que as consequências práticas de entendimento que exigisse um projeto de lei para a
constituição de cada subsidiária de empresa pública ou sociedade de economia mista
geraria, em termos econômicos, disparidade praticamente insuperável em relação às

536
Voto de Carlos Ayres Britto na ADI nº 1.649-1/DF.
537
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 1.649-1/DF.
538
Contra, afirmando que o STF decidiu “em aberta discrepância” com o preceito constitucional do art. 37, XX, da
Constituição, v. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 204.
539
“A expressão constitucional ‘em cada caso’ poderá ser entendida como indicativa apenas de área ou atividade
específica a ser contemplada” (TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, p. 684).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
169

demais empresas privadas não integrantes da Administração Pública. Se o propósito


primordial das estatais é concorrer no mercado privado com outras empresas, é inviável
submetê-las, a cada participação ou criação de subsidiária, à exigência da aprovação
de projeto de lei.540
O argumento do debate público deve ser reconduzido ao momento da aprovação
da lei que autoriza a constituição da matriz, preferencialmente deixando-se claro o que
está pretendendo fazer: autorizar, também, a criação de subsidiárias.
A título de complementação, registramos a leitura feita por Marçal Justen Filho
da decisão do STF no caso das subsidiárias da Petrobras, para quem o entendimento do
Supremo só diria respeito a enfoque específico, pois a decisão judicial só autorizaria a
“proliferação de entidades” “se e enquanto tal envolvesse o desempenho da atividade
empresarial disciplinada na lei autorizadora”. “Ou seja, o STF não reconheceu como
válida a autorização ilimitada para a criação de controladas”.541
Ora: de que outro caso se trataria, a não ser de autorização, genérica que seja, mas
incluída em algum contexto econômico de intervenção setorial? De fato, o STF não deci-
diu que uma autorização genérica solta no espaço é válida por si só — mas decidiu que,
pelo menos da forma como elas têm sido feitas, são válidas e eficazes. E é o que basta.
A Lei das Estatais e seu regulamento acolheram o entendimento do Supremo
quanto à autorização para a constituição de estatais. Diz o art. 2º, par. 2º, da Lei nº
13.303/2016, que “depende de autorização legislativa a criação de subsidiárias de empresa
pública e de sociedade de economia mista, assim como a participação de qualquer delas em
empresa privada, cujo objeto social deve estar relacionado ao da investidora, nos termos do
inciso XX do art. 37 da Constituição Federal”. (grifonosso)
De modo ainda mais explícito em relação ao entendimento do Supremo, o Decreto
nº 8.945/2016 disciplina, em seus arts. 6º e 7º, o seguinte (destaques acrescentados):
Art. 6º A constituição de subsidiária, inclusive sediada no exterior ou por meio de aqui-
sição ou assunção de controle acionário majoritário, dependerá de prévia autorização legal,
que poderá estar prevista apenas na lei de criação da empresa pública ou da sociedade de economia
mista controladora.
Art. 7º Na hipótese de a autorização legislativa para a constituição de subsidiária ser genérica, o
Conselho de Administração da empresa estatal terá de autorizar, de forma individualizada,
a constituição de cada subsidiária.

O sistema normativo das estatais, portanto, (i) permite autorização legislativa


genérica para a criação de subsidiárias, a estar presente na lei que autorizou a criação
da primeira estatal, (ii) não autoriza proliferação indiscriminada de estatais: as sub-
sidiárias a serem criadas devem possuir objeto social relacionado ao objeto social da
estatal-mãe,542 (iii) no caso de autorização genérica, requer-se, ainda, para a criação
de subsidiária, autorização específica do Conselho de Administração da estatal-mãe.

540
A única hipótese na qual se poderia argumentar, com alguma persuasividade, em favor de tal exigência seria
no caso de empresa pública ou sociedade de economia mista que exercesse, com exclusividade, a prestação de
serviços públicos.
541
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 176.
542
Há dispositivo interessante no regulamento da Lei das Estatais. É a hipótese em que, na lei que autoriza a criação
da estatal-mãe, há autorização genérica para a constituição de subsidiária cujo objeto social seja a participação
em outras empresas privadas. O grande exemplo, para a hipótese, é a do BNDESPAR, subsidiária do BNDES
cujo objeto social é participar de empresas privadas como instrumento de fomento (sobre fomento público,
v. capítulo deste livro). O art. 2º, par. 2º, do decreto, informa que “a empresa estatal que possuir autorização
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
170 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Então, voltando à constituição das estatais, ela se dá da seguinte forma: regis-


tro do ato constitutivo na Junta Comercial ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas,
sempre precedida de autorização legislativa; suas subsidiárias podem ter sua criação
genericamente autorizada na lei que autorizou a criação da empresa-matriz.
Buscávamos diferenças, e até aqui só vimos semelhanças na constituição de
empresas públicas e sociedades de economia mista. É que a diferença em sua cons-
tituição não se dá na forma, mas no conteúdo. Em outras palavras, a diferença, que é
imediata — já é prenunciada na designação das entidades —, diz respeito à composição
do capital social. As empresas públicas possuem capital e patrimônio exclusivamente estatal.
Esse “estatal” abrange pessoas jurídicas de Direito Público interno (União, Estados,
Municípios, Distrito Federal) e entidades da Administração Pública indireta, sem ex-
ceção. Não podem ocorrer entradas de particulares, mas não desnatura a natureza de
empresa pública a participação, em seu capital, de uma sociedade de economia mista,
que possui personalidade jurídica de direito privado e em cujo capital há aporte privado.
Raciocinemos: a alternativa seria chamá-la de sociedade de economia mista.
Entretanto, há ali verdadeira participação privada? O controle da entidade será estatal,
disso não há dúvida, já que nem sequer da economia mista participante o capital pri-
vado pode ser controlador. Com sua diluição pela presença do outro parceiro estatal,
a participação privada propriamente dita só vai contar para eventual recebimento de
dividendos e/ou benefício econômico via valorização acionária ou patrimonial. É o
“princípio” do pragmatismo aplicado, novamente, à teoria das empresas estatais: se
os conceitos jurídicos devem ser densificados à luz de suas consequências, nada mais
natural do que considerar a entidade composta por entidades estatais uma empresa
pública. A hipótese é excepcional, embora admitida por boa parte da doutrina,543 além de
dedutível do texto legal do Decreto-Lei nº 900/67 (que alterou o Decreto-Lei nº 200/64)544
e, agora, da própria Lei das Estatais (cf. art. 3º, par. único, da Lei nº 13.303/2016545).
Na sociedade de economia mista, pode haver participação privada em seu capital social.
Trata-se de um “pode”, porque o capital privado pode não se sentir seduzido à parti-
cipação no empreendimento econômico. Se o capital privado não chega a ingressar, a

legislativa para criar subsidiária e também para participar de outras empresas poderá constituir subsidiária
cujo objeto social seja participar de outras sociedades, inclusive minoritariamente, desde que o estatuto social
autorize expressamente a constituição de subsidiária como empresa de participações e que cada investimento
esteja vinculado ao plano de negócios”. O dispositivo é um necessário espaço de flexibilidade para a atuação
dessa espécie de estatal.
543
BORBA. Direito societário, p. 489-490; DI PIETRO. Direito administrativo, p. 429-430; ZIMMER JÚNIOR. Curso de
direito administrativo, p. 291; MUNIZ. A empresa pública no direito brasileiro, p. 35 (citando o exemplo da Embratel,
originariamente empresa pública cujo capital foi subscrito pela União e por várias sociedades de economia
mista, como a Petrobras e o Banco do Brasil).
544
Já que seu art. 5º tem a seguinte redação: “Art. 5º Desde que a maioria do capital votante permaneça de
propriedade da União, será admitida, no capital da empresa pública, a participação de outras pessoas jurídicas
de direito público interno bem como de entidades da Administração indireta da União, dos Estados, Distrito Federal
e Municípios” (grifos nossos). Ao falar em “entidades da Administração indireta”, sem exceção, abre-se
a possibilidade de que sejam, também, sociedades de economia mista. O texto do Anteprojeto destinado a
revogar o Decreto-Lei nº 200/64 também parece acompanhar o entendimento por nós defendido, ao conceituar
empresa pública como “a empresa estatal cujo capital é integralmente da titularidade de entidade ou entidades
estatais, de direito público ou privado” (grifos nossos).
545
Art. 3º, par. único, da Lei nº 13.303/2016: Desde que a maioria do capital votante permaneça em propriedade da
União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, será admitida, no capital da empresa pública, a participação de
outras pessoas jurídicas de direito público interno, bem como de entidades da administração indireta da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. (O destaque foi acrescentado)
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
171

empresa não se constitui como sociedade de economia mista, mas será uma empresa
pública si et in quantum.
Quando existente, a participação do capital privado deve ser “para valer”. Explica-
se. Nos termos do art. 146 da Lei das S.A., os membros do Conselho de Administração de
sociedade anônima serão, sempre, acionistas. No caso de S.A. constituída exclusivamente
com capital público, os integrantes do Conselho de Administração (que são pessoas
físicas) serão, também, acionistas da empresa — acionistas privados. Aparentemente,
estar-se-ia diante de sociedade de economia mista, pois há uma soma de capital público
a capitais privados. Engano. Trata-se de empresa pública, e não apenas porque prati-
camente todo o capital social está nas mãos do Poder Público, mas também porque a
integralização dos valores das ações dos conselheiros é paga com recursos da própria
Administração Pública, que lhes transfere tais ações apenas durante o período em que
exercem a função. Depois, eles são obrigados a restituí-las à Administração.546
Há evento que, segundo alguns, levaria ao surgimento extemporâneo de so-
ciedade de economia mista. É a hipótese de desapropriação do controle de sociedade
anônima.547 Fala-se, inclusive, que o parágrafo único do artigo 236 da Lei das S.A. — que
permite aos acionistas de sociedade cujo controle passou ao Poder Público o pedido
de reembolso de suas ações — seria prova disso.548 Não parece ser. A autorização legal
para a constituição da sociedade de economia mista continua sendo obrigatória. Uma
companhia desapropriada pelo Estado será apenas uma S.A. controlada pelo Estado,
até a autorização legal para a constituição de economia mista (ou de empresa pública,
se a desapropriação envolver a totalidade do capital social).549

546
SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 212.
547
Essa é, aparentemente, a posição do Ministro Eros Grau. Leia-se trecho das discussões no julgamento do RMS
nº 24.249, na fala do Ministro: “Isso é necessário esclarecer. Não em relação às sociedades de economia mista
criadas anteriormente à vigência da Constituição, ou para a hipótese de desapropriação, em que o requisito da lei
existirá na lei que autorizou a desapropriação” (grifos nossos).
548
FÉRES. O Estado empresário: reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista
na atualidade. Revista de Direito do Estado, p. 277-278.
549
“[...] as sociedades em que tal participação já existe, à míngua da referida autorização, continuam, como sempre
o foram, a constituir sociedades anônimas de direito privado, que não integram a Administração Pública,
embora possam, por via reflexa, receber orientações específicas emanadas daquela, desde que obedecido o
regime societário comum” (PENTEADO. As sociedades de economia mista e as empresas estatais perante
a Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, p. 34). Ainda, Marçal Justen Filho (Curso de direito
administrativo, p. 177). Marcelo Féres, citado na nota anterior, menciona o caso da Companhia Paulista
de Estradas de Ferro, que teria se tornado sociedade de economia mista por intermédio de desapropriação
realizada pelo Estado de São Paulo. Muitos autores, no entanto, entendem que, mercê apenas da expropriação, a
Companhia não se tornou sociedade de economia mista. Far-se-ia necessária a autorização legal. Nesse sentido,
o parecer de Moacyr Lobo da Costa: “É incontroverso, assim, que a Companhia Paulista permanece como
sociedade anônima, com natureza de pessoa jurídica de direito privado, subordinada às normas específicas da
lei das sociedades por ações e do seu estatuto social, por inequívoca manifestação de vontade do Estado. Ao
decretar a desapropriação da sociedade anônima, o Estado, se essa fosse a sua intenção, poderia ter declarado
que a desapropriação se destinava a possibilitar, como primeiro passo, a transformação da sociedade anônima
em sociedade de economia mista. Não o fez, porém. Não se conhece, até hoje, qualquer manifestação do Estado
nesse sentido. Assim, o fato de o Estado ter-se tornado acionista majoritário da Companhia Paulista não basta,
por si só, para atribuir a esta a condição de sociedade de economia mista, independentemente de qualquer outra
providência de ordem legal” (COSTA. Sociedade de economia mista e participação do Estado no capital de
sociedade anônima. Revista de Direito Público, p. 139). No mesmo sentido, citando os casos de Grupo Hospitalar
cuja totalidade do capital foi desapropriada pela União, reduzida posteriormente para 51% da totalidade do
capital social integralizado, e que foi tido pelo Tribunal de Contas da União como “empresa paradministrativa”,
espécie de meio-termo entre sociedades de economia mista e empresas inteiramente privadas, faltando-lhes a
autorização legal, cf. FERREIRA. Empresa estatal: conceito e regime jurídico. Revista de Direito Público, p. 277.
É de se registrar, finalmente, a dicção do art. 235, §2º, da Lei das S.A.: “As companhias de que participarem,
majoritária ou minoritariamente, as sociedades de economia mista, estão sujeitas ao disposto nesta Lei, sem as
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
172 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

1.2.5 As possíveis formas societárias das estatais


Falando de diferenças, já podemos avançar para a análise das formas societárias
que podem assumir as duas espécies de estatais no Direito brasileiro, uma das distinções
mais características entre empresas públicas e sociedades de economia mista.
As sociedades de economia mista só podem assumir a forma societária de sociedades por
ações (art. 5º da Lei nº 13.303/2016; art. 5º do Decreto-Lei nº 200/67). Apesar das sutilezas
doutrinárias inevitáveis a um saber como o jurídico,550 o ponto é consensual.
Já as empresas públicas, como diz o pleonástico bordão, podem adotar qualquer forma
societária admitida em Direito (como se alguma forma societária não admitida em Direito
fosse passível de ser adotada).
Essa era a lição tradicional da doutrina, e a prática, até que o art. 11 do Decreto que
regulamenta a Lei das Estatais afirmou que a empresa pública adotará, preferencialmente,
a forma de sociedade anônima, sendo esta obrigatória para suas subsidiárias.551 O dispositivo
só se encontra no decreto, e não na Lei das Estatais. A considerar válida a norma, ela
deve ser interpretada como exigência de mero reforço argumentativo quando a empresa
pública adotar forma societária diferente da sociedade anônima.
Há, aqui, ainda, duas observações.
Em primeiro lugar, as empresas públicas federais possuem amplíssima liberda-
de para adotar formas societárias, pois, se cabe apenas à União legislar sobre Direito
Comercial (art. 22, I, da CRFB/88), uma lei federal que autorize a constituição de empresa
pública com forma societária inédita já cria, por definição, aquela forma específica.552
Por isso se admite, sem problemas, empresas públicas federais que sejam sociedades
unipessoais — a Caixa Econômica é exemplo. Já as empresas públicas estaduais e

exceções previstas neste Capítulo”. Ou seja: a participação, mesmo majoritária, de uma sociedade de economia
em outra companhia não torna esta última uma sociedade de economia mista — precisamente porque faltaria
a autorização legal. No Anteprojeto destinado a revogar o Decreto-Lei nº 200/67, o art. 83 pretende mudar a
redação do art. 235, §2º, da Lei das S.A. para, ao que parece — o propósito é mencionado no relatório preliminar
à proposta legislativa —, tornar as sociedades controladas majoritariamente por sociedades de economia mista,
elas também, sociedades de economia mista (a redação proposta só excluiria as companhias cuja participação
das sociedades de economia mista fosse minoritária das regras excepcionais do capítulo legal). A mudança
pretendida é, no entanto, contrária à doutrina e à jurisprudência majoritárias a respeito do tema.
550
“Temos sustentando que a sociedade de economia mista não é uma sociedade anônima: é uma forma especial de
sociedade por ações”. Sérgio de Andréa Ferreira defende tal posição com base em que o acionista controlador,
ao contrário de na sociedade anônima “comum”, pode orientar sua atividade em prol do interesse público
que motivou sua criação (art. 238 da Lei das S.A.); na economia mista, há obrigatoriedade de Conselho de
Administração, com a garantia de a minoria escolher no mínimo um conselheiro (art. 239 da mesma lei); os
deveres e responsabilidades dos administradores da economia mista são os mesmos daqueles da companhia
aberta (art. 239, parágrafo único, idem); o funcionamento do Conselho Fiscal tem que ser permanente (art. 240).
Além dessas discrepâncias, a grande diferença seria a responsabilidade subsidiária e ilimitada da pessoa jurídica
de direito público que autorizou a instituição da economia mista em relação a esta — ou seja, a impossibilidade
de falência, prevista no art. 242 da Lei nº 6.404/76 —, o que contrastaria com a noção de sociedade anônima,
prevista no art. 1º do mesmo diploma legal, a qual limita a responsabilidade dos acionistas ao preço de emissão
das ações subscritas ou adquiridas (FERREIRA. Empresa estatal: conceito e regime jurídico. Revista de Direito
Público, p. 273-274).
551
Decreto nº 8.945/2016: Art. 11 A empresa pública adotará, preferencialmente, a forma de sociedade anônima,
que será obrigatória para as suas subsidiárias.
552
Nesse caso, a lei que autorizar a constituição da empresa pública deverá estabelecer toda uma série de regras
sobre sua organização e funcionamento, afinal, não estará apenas autorizando a criação de uma entidade,
mas inovando em um modelo de organização institucional. Caso omissa, concordamos com Marçal Justen
Filho em que a melhor opção seria adotar o modelo da sociedade por ações (JUSTEN FILHO. Curso de direito
administrativo, p. 174). A preferência, como se vê, foi adotada pelo decreto nº 8.945/2016.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
173

municipais só podem assumir as formas societárias atualmente existentes no Direito,


inclusive formas não típicas de sociedades empresárias.553
Uma segunda observação surge da opinião de Tavares Borba. A liberdade de
adoção de “todas as formas societárias admitidas em Direito” não seria, na verdade,
tão livre assim. Diz o comercialista que, com base nos arts. 48 e 167 da Constituição da
República, os quais construiriam o princípio segundo o qual “ao Poder Público não é
dado contratar obrigações de valor ilimitado”, só as formas societárias limitativas das
responsabilidades dos sócios — sociedade limitada e sociedade por ações — poderiam
ser adotadas pelas empresas públicas (e aí tanto faz a esfera federativa).554
Não concordamos. Os dispositivos constitucionais não permitem a reconstrução
de tal princípio: o primeiro é regra de distribuição de competência legislativa; o segundo
proíbe a utilização de créditos ilimitados (art. 167, VII, CRFB/88), mas isso diz respeito
a hipotética autorização genérica para o dispêndio público — e não é isso o que ocorre
num aporte em socorro de empresa pública em processo de quebra. O Poder Público não
pode gastar livremente, mas isso não é princípio constitucional, é predicado derivado
da existência de regras sobre gastos públicos. Ocorre que tanto numa sociedade simples
quanto numa sociedade limitada (ou numa S.A.), o Poder Público, se necessário, fará,
sim, aportes para salvar a empresa pública, aportes que serão devidamente autorizados,
conforme as regras que regem a despesa pública.
De nada adianta imaginar que a Administração Pública não vá assumir despesa
extraordinária com uma empresa pública apenas porque se adotou a forma societária
de sociedade por ações ou de sociedade limitada. Tal proposição seria antipragmatista
por não ser contextual: não é isso o que ocorre na realidade. O Poder Público vai acabar
socorrendo, adote a empresa pública a forma societária que for.
Melhor ficarmos, portanto, com o conhecimento convencional, prova de que
nem sempre adotar o pragmatismo importa aderir a posições doutrinárias novas.
Sociedades de economia mista sempre serão sociedades por ações. Empresas públicas,
embora frequentemente também adotem a forma de sociedades por ações, e seja essa
a recomendação do Decreto nº 8.945/2016,555 podem assumir qualquer forma societária

553
Ao contrário das sociedades de economia mista, que, como sociedades anônimas, sempre serão empresárias
(ver art. 2º, §1º, da Lei das S.A.: “Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e
usos do comércio”; também, art. 982, parágrafo único, do Código Civil de 2002: “Independentemente de seu
objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa”). Contra, entendendo que,
como existe para explorar atividade econômica privada, a empresa pública só pode adotar formas empresárias
(MUNIZ. Caminha. A empresa pública no direito brasileiro, p. 44).
554
BORBA. Direito societário, p. 490.
555
“Não obstante, temos de concordar com Caminha Muniz, para quem existe nítida tendência, no Brasil, de
se organizar empresa pública em forma de sociedade anônima; nem poderia ser de outro modo, eis que —
conforme Dimock, citado por Muniz — esta espécie de sociedade foi a mais eficiente até hoje encontrada, para
a participação dos homens ou dos governos em uma atividade colateral, distinta daquelas a que precipuamente
se devotam” (COTRIM NETO. Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de Direito Administrativo,
p. 41). A referência de Cotrim Neto a Alvaro Caminha Muniz pode ser desenvolvida em: MUNIZ A empresa
pública no direito brasileiro, p. 44-45. É interessante observar que a forma societária de sociedade anônima parece
se adaptar com facilidade à dominação racional-burocrática (para se falar com Weber), et pour cause, ser muito
propícia à constituição de uma entidade estatal. É nesse sentido a interessante observação de Fábio Konder
Comparato: “[...] Parece a todos evidente que a forma de dominação burocrática adapta-se perfeitamente à
estrutura de funcionamento de uma sociedade anônima, quer pela possibilidade de acolhimento de número
ilimitado de sócios (sabendo-se que a burocracia somente medra em grandes coletividades), quer pela
característica de governo estatutário, quer pela possibilidade de organização do poder de forma institucional,
com a nítida separação entre administradores e administrados” (Prólogo. In: COMPARATO; SALOMÃO
FILHO. O poder de controle na sociedade anônima, p. XVI-XVII).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
174 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

atualmente existente, e, no caso das federais, podem, inclusive, adotar formas societárias
especiais, criadas apenas para aquele caso (ou, no mínimo, naquele momento).

1.2.6 Objeto social das estatais. Conflito de interesse nas estatais:


diretrizes para desdramatizar a colisão entre o interesse de lucro
do acionista privado e o interesse público. Inovações da Lei das
Estatais. Podem as estatais ingressar no Novo Mercado Bovespa?
O tema do objeto das empresas públicas e das sociedades de economia mista pode-
ria ser simples: elas só podem explorar as atividades e prestar os serviços elencados em
suas leis autorizativas. A lei é necessária tanto para autorizar sua constituição quanto, no
mesmo texto legislativo, para indicar o objeto social das estatais.556 Trata-se de incidência
do princípio da legalidade,557 chamada por alguns de “princípio da especialidade”.558
Mas há outro aspecto por detrás da exigência de lei para a definição do objeto
social da empresa: a segurança do acionista privado acaso existente.559 O legislador
assegurou ao acionista privado que o risco a que este se submeteria seria, apenas,
aquele assumido a partir da configuração original da empresa. Não há juridicamente a
possibilidade de o particular adquirir ações de sociedade de economia mista que atue
com petróleo e gás natural e terminar com títulos representativos do capital de empresa
que atue junto ao saneamento básico.
A noção de especialidade do objeto social da estatal foi adotada tanto pela Lei
das Estatais quanto por seu decreto. Na Lei nº 13.303/2016, o art. 2º, par. 1º, afirma que
a constituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista dependerá de
prévia autorização legal que indique, de forma clara, relevante interesse coletivo ou impe-
rativo de segurança nacional. O Decreto nº 8.945/2016 segue na mesma linha em seu art.
4º, exigindo, ainda, no art. 5º, que o estatuto social da estatal indique claramente o re-
levante interesse público ou imperativo de segurança nacional que justificou a criação
da empresa.
Uma observação preliminar: qual a consequência jurídica de a lei que autorizar
a criação da estatal ignorar a exigência de indicação clara do motivo? Em princípio,
nenhuma. A lei autorizativa não seria inválida porque lei não vincula lei. A Lei das
Estatais não possui qualquer status superior à lei que autorizasse a criação da estatal.
A exigência é, no fundo, apenas uma recomendação ao legislador futuro.
Por outro lado, objeto social genérico, ainda mais numa estatal, viola outras
normas jurídicas — que não, especificamente, a Lei das Estatais e seu regulamento.

556
Ver caput do art. 237 da Lei das S.A.: “A companhia de economia mista somente poderá explorar os
empreendimentos ou exercer as atividades previstas na lei que autorizou a sua constituição”.
557
FÉRES. O Estado empresário: reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista
na atualidade. Revista de Direito do Estado, p. 279.
558
“O princípio da especialidade significa que, se a lei definiu expressamente a finalidade da entidade, só em
objetivos que nela se enquadrem poderá utilizar seu patrimônio, recursos, pessoal e serviços: trata-se de
traço comum a todas as entidades da Administração indireta, decorrente do próprio princípio da legalidade
estrita (restritividade), a que se sujeita a Administração (‘só fazer o que a lei determina ou expressamente permite’)”
(ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 90, grifos no original).
559
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 55; DI PIETRO.
Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e
outras formas, p. 52.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
175

Pode violar a noção de legalidade ou, por exemplo, a ideia de segurança jurídica. Mas
há um contraponto: a exigência de especificação do objeto deve ser interpretada com
bom senso, de modo a que não prejudique o propósito concorrencial das estatais.
Deve-se entender o objeto social especificado na lei que autorizou a constituição da
empresa numa abrangência razoável, para evitar que todo tipo de atividade empresarial
não detalhada taxativamente na lei seja ilegal. Pensando de modo pragmático, a conse­
quência de tal postura seria uma estatal empresarialmente manietada pela exigência de
autorização legal a cada passo. Uma coisa é exigir que o objeto social esteja autorizado
por lei; outra, é pretender que haja exaurimento de todas as atividades empresariais,
abrangidas no objeto, possíveis de serem desempenhadas pela estatal — essa opção é
contrária ao propósito de isonomia concorrencial entre as empresas da Administração e
as demais empresas privadas. Note-se, por fim, que tal abrangência razoável do objeto
social não é o mesmo que autorizações setoriais genéricas (“empresa para atuar no setor
petrolífero”). Estas não são, em princípio, aceitáveis.560
Ainda a propósito do objeto das estatais, abre-se parêntese para discutir um dos
temas mais importantes, ainda hoje não resolvido, a respeito das sociedades de econo-
mia mista. É o conflito latente de interesses entre o Poder Público, na condição de acionista, e
os acionistas privados.561 O assunto é tão clássico que o principal divulgador doutrinário
da ideia de empresa pública, Bilac Pinto, proferiu conferência em 1952, na Fundação
Getulio Vargas (depois transformada no artigo jurídico mais famoso sobre o tema das
estatais), alegando que o mundo estava no limiar da eclosão da empresa pública como
tipo de estatal preferencial, uma vez que o conflito entre o interesse público e o inte-
resse privado nas sociedades de economia mista não podia, senão excepcionalmente,
conduzir a bons resultados.562 A projeção de Bilac Pinto não se concretizou563 — talvez o
interesse público e o privado não sejam assim tão contrapostos —, na medida em que as
sociedades de economia mista continuam relevantes, mas o diagnóstico tem seu valor.
De fato, há uma tensão latente entre os dois interesses. O agente privado pode
sempre suspeitar de que a retórica grandiloquente do Direito Público, com seus apelos
ao “interesse público”, esconda filiações políticas564 e/ou populistas e/ou demagógicas.
O Poder Público também pode se municiar de preconceitos e suspeitar que o interesse
privado se mova em direções estritamente argentárias.565

560
V. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 175.
561
Esse conflito possui raízes na configuração histórica das sociedades anônimas, surgidas durante o período
mercantilista como junção entre os interesses da burguesia mercantil, do Estado e do público investidor (atraído
pela chancela estatal às companhias). Desenvolver em Fábio Konder Comparato e, Calixto Salomão Filho (O
poder de controle na sociedade anônima, p. 35-37).
562
“Ora, em uma empresa de economia mista, os fins visados pelo Estado e pelos particulares são diametralmente
opostos; eles se excluem reciprocamente. O capitalista particular não tem em vista senão seu interesse pessoal;
ele quer lucros elevados que lhe assegurarão bons dividendos e procura fixar o preço de venda mais alto que a
concorrência permita, se ela existir. O Estado, ao contrário, intervém com a intenção de salvaguardar o interesse
geral, seja o dos consumidores ou o dos utentes; ele se esforça, então, para manter o preço de venda em níveis
baixos” (BILAC PINTO. O declínio das sociedades de economia mista e o advento das modernas empresas
públicas. Revista de Direito Administrativo, p. 261).
563
Há quem diga que ela nunca foi válida, nem na época em que Bilac Pinto proferiu sua conferência. Apesar disso,
reconhece-se valor à palestra e ao artigo resultante como introdutores da figura doutrinária da empresa pública.
Nesse sentido, Cotrim Neto (Teoria da empresa pública de sentido estrito. Revista de Direito Administrativo,
p. 23).
564
No “mau sentido” da expressão: política menor, movida por interesses pessoais e/ou estritamente partidários.
565
No texto principal, mencionamos o conflito de extremos patológicos. Mas o conflito se dá também em situações
menos anômalas: o interesse do Poder Público na execução do objeto de interesse público é permanente; o
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
176 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A Lei das S.A., em seu art. 238, é o substrato legal desse caráter bifronte dos ob-
jetivos da sociedade de economia mista. Fala que o controlador da economia mista tem
os deveres e responsabilidades do controlador em geral — tais como previstos nos arts.
116 e 117 da mesma lei —, mas pode orientar as atividades da companhia de modo a
atender ao interesse público que justificou sua criação. Em todas as outras sociedades
anônimas, o controlador que perseguir outro interesse, distinto daquele dos acionistas
individuais, é responsável perante todos. Na economia mista, o controlador, que é
sempre o Poder Público,566 pode se voltar à realização do interesse público primário —
mas exclusivamente ao interesse público primário, é bom enfatizar —, em lugar da
realização dos interesses dos acionistas individuais, sem ser punido. Se tudo ficasse
por essa afirmação de platitudes, a questão estaria resolvida, embora a resposta fosse
bem pouco útil. Só que não é assim.
Mario Engler, na parte que destacamos, é claro quanto à dificuldade em se pre-
cisar o que é a conduta admissível do Poder Público na condição de controlador da
economia mista:
No caso da sociedade de economia mista, a flexibilização do poder de controle constitui a
pedra de toque das relações societárias, na medida em que o dogma da preservação dos
interesses da companhia (e por consequência lógica também dos acionistas minoritários)
admite mitigação. Todavia, nem sempre é fácil identificar com precisão as hipóteses concretas de
“desvio lícito” do controlador, assim entendida a possibilidade de sacrificar os interesses imediatos da
companhia em prol de outros interesses mediatos da coletividade social.567

Embora estejamos longe da pretensão de oferecer resposta definitiva para o


ponto — se é que isso é possível —, discutiremos alguns aspectos desse conflito potencial.
Um primeiro ponto a se destacar é a solução ao dilema, no plano teórico, contida
numa formulação de Alvaro Caminha Muniz. Trata-se de distinguir o objeto e o fim das
empresas estatais. Seu objeto é a exploração da atividade econômica (ou a prestação de
serviços públicos, ou ambos). O ato de constituição formal da estatal — o registro dos
atos constitutivos na Junta Comercial — explicita o objeto da estatal: a exploração da
atividade petrolífera, a distribuição de gás canalizado etc. Ao lado do objeto das esta-
tais, que é econômico, há seu fim, igual ao de qualquer atividade pública: a realização
do bem comum.
Assim, a equação entre interesse público e interesse privado, projetada na seara
do potencial conflito entre o acionista controlador e os demais acionistas na sociedade
de economia mista, resolver-se-ia dessa forma: na realização de seu objeto, econômico e

interesse dos minoritários, relacionado à rentabilidade das ações a partir de suas cotações, é, por definição,
flutuante. Nesse sentido, Caio Tácito (Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 696). É também nesse
sentido que se deve entender o trecho de Maria Carla Pereira Ribeiro transcrito a seguir: “Como resultado da
conciliação do inconciliável, ou a tendência será a fuga do capital particular, quando o lucro não se confirmar,
ou a centralização do ente público participante na rentabilidade e lucratividade do empreendimento, o que
refugiria à aceitação lógica do investimento público” (RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada:
estrutura e função, p. 95-96).
566
Observe-se que, na sociedade de economia mista, o controlador, que é o Poder Público, não pode deixar de
efetivamente exercer seu poder de controle em nenhum momento. Trata-se de um dever-poder administrativo.
Enquanto a companhia permanecer na qualidade de sociedade de economia mista — até sua extinção nessa
condição —, o Estado, em sentido amplo, deve controlar os rumos da vida empresarial da sociedade. Não é
possível, por exemplo, que o Estado deixe de exercer temporariamente seu poder de mando, nem que o fracione
e ceda alguma parcela aos acionistas privados.
567
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 57.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
177

lucrativo, estaria a concretização de seu fim, de interesse público.568 O interesse privado


e o público, ao contrário do sugerido por Bilac Pinto, não seriam opostos e antagônicos,
mas recíprocos e complementares.569
É importante desdramatizar o ponto, e, de modo conforme à razão pública,
neutralizar exageros ideológicos de parte a parte. Não há oposição necessária entre
interesse público e interesse privado. Frequentemente, o interesse público está em
satisfazer o interesse privado. Uma sociedade de economia mista bem administrada,
livre de más influências políticas, apta a desempenhar com eficiência econômica e
responsabilidade social seu objeto empresarial, é uma estatal que desempenha seu
destino-manifesto de realizar o interesse público ao gerar lucro e atender ao interesse
de todos os seus acionistas.
Mas, é óbvio, há situações nas quais os interesses podem caminhar em sentidos
opostos. Figure-se exemplo no qual sociedade de economia mista, prestadora de serviços
públicos, intenta expandir seus serviços até região mais pobre do Estado, arcando, ao
menos durante certo tempo, com os ônus daí decorrentes. O dever de universalização
dos serviços públicos está mais próximo aos objetivos “de interesse público” do que as
pretensões privadas de maximização do lucro. O que fazer? Na sociedade de economia
mista, o acionista privado deve estar ciente de que haverá de aceitar o cumprimento de
metas empresariais mais próximas aos objetivos de interesse geral do que numa em-
presa comum. Isso pode significar maior tolerância ao prejuízo, desde que moderado,
justificado e temporário — como, talvez, nesse exemplo da universalização.
O acionista privado, por mais que tenha uma série de proteções especiais, criadas
pelo legislador a partir do reconhecimento de que o controle público da companhia
gera situação peculiar (art. 236 da Lei das S.A., exigência de autorização para a criação e
para a delimitação do objeto social etc.),570 deverá estar ciente de que está se associando
a entidade da Administração Pública — com todos os ônus e bônus que isso costuma
gerar. A proximidade ao Poder Público traz alguns benefícios, diz-nos o dado da socio-
logia da Administração Pública brasileira — no mínimo, os gabinetes do Poder Público
estarão sempre abertos a seus representantes —, benefícios que podem se traduzir em
vantagem econômica. O acionista privado sabe disso.571

568
“Não se deve confundir o objeto com os fins da empresa. O primeiro, por ditame constitucional e definição legal,
é a exploração da atividade econômica sob qualquer das suas modalidades: comercial, industrial, bancária etc”.
[...] “Os fins são os inerentes a qualquer atividade estatal: a consecução do bem comum, a satisfação do interesse
coletivo. Na atividade privada a empresa tem por alvo a obtenção de lucro, ao passo que a entidade estatal tem
em mira o interesse público, ainda que na exploração da atividade econômica obtenha lucro, e é natural que o
procure, pelo menos para cobrir os gastos com suas necessidades básicas” (MUNIZ. A empresa pública no direito
brasileiro, p. 59, grifos no original).
569
GRAU. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. Revista de Direito Mercantil, Industrial,
Econômico e Financeiro, p. 55.
570
Adilson Abreu Dallari defende que a inclusão de capítulo próprio para as sociedades de economia mista na Lei
das S.A. destina-se a defender os interesses dos sócios minoritários (Acordo de acionistas: empresa estadual
concessionária de serviço público federal: manutenção da qualidade de acionista controlador. Revista Trimestral
de Direito Público, p. 101).
571
“Não se pode esquecer que a decisão privada de participar do capital de sociedade de economia mista leva em
conta algumas peculiaridades da sua atuação. É sabido que a companhia sob controle estatal também pode
desfrutar de vantagens estratégicas em relação às empresas particulares, a saber: oportunidades diferenciadas
de negócios (normalmente derivadas da qualidade de acionista controlador público), atuação em ambiente
regulado com demanda assegurada ou de monopólio natural, acesso a linhas de crédito especiais que dependam
de garantia prestada pelo ente controlador (instituições financeiras multilaterais), peso político para interferir
no processo político ou regulatório em assuntos que interessam diretamente à companhia. O efeito positivo
decorrente dessas situações serve para compensar o receio da adoção de políticas empresariais motivadas pelo
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
178 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Se há benefícios, há malefícios. A proximidade com o Estado implica riscos de


a orientação tendente ao interesse público se desvirtuar em populismo. Contra isso,
além dos meios ordinários de controle judicial, pode-se pensar em propostas de ação
internas à própria companhia, em defesa dos minoritários.
Resolvida a questão em termos teóricos a partir da harmonização entre objeto e
fim das economias mistas, dois pontos ainda merecem destaque. O interesse público
que justifica a incidência do art. 239 da Lei das S.A. é o interesse público primário, forma
disseminada no Brasil para chamar (a partir de Santi Romano e, depois, Renato Alessi,
com a popularização feita por Celso Antônio Bandeira de Mello) o interesse público
“propriamente dito”, isto é, o interesse do Poder Público na realização de objetivos de
interesse público não arrecadatório. Ou seja: o acionista controlador não poderá deixar
de prestigiar o interesse de todos os demais acionistas se o propósito for apenas o de
aumentar a arrecadação do Estado. Aumentar uma tarifa pode significar o incremento
da arrecadação pública, mas, se o propósito for apenas esse, e se tal aumento implicar
diminuição na base dos consumidores do serviço, com prejuízo à valorização da em-
presa, os minoritários poderão impugnar tal proposta. A arrecadação do Estado não é
e nunca poderá ser o objetivo principal de uma economia mista.
Além de o interesse a ser perseguido pelo controlador da economia mista dever
ser, sempre, o interesse público primário, jamais o interesse estatal arrecadatório —
muito menos qualquer outro interesse público que não se qualifique pela legitimidade
de propósitos e pela capacidade de ser generalizado a hipóteses semelhantes —, o art.
238 afirma que o controlador “pode” orientar as atividades da companhia de modo a
atender ao interesse público que presidiu sua criação.572
Seria o momento de a dogmática jurídica perguntar se se trata de um “pode”
ou de um “deve”. Em rigor, o interesse público que presidiu a criação da companhia
é realizado a cada dia, a todo o momento, pelo simples exercício das atividades em-
presariais ordinárias. O acionista controlador não precisa fazer nada além de contro-
lar normalmente a sociedade para que o interesse público que justificou sua criação
venha a se concretizar. Do contrário, haver-se-ia de pensar que o interesse público só
se realizaria em alguns momentos durante a vida da sociedade de economia mista, o
que deslegitimaria sua própria criação (se o interesse público só se realiza de tempos
em tempos, há formas menos complexas de se garantir tal episódica concretização).
Lógico que não é assim que se deve ler o artigo. O texto legal informa que, na
sociedade de economia mista, o acionista controlador pode fazer com que as atividades
ordinárias da estatal sejam desviadas até objetivos de finalidade não imediatamente
econômica (ainda que nunca antieconômicas), quando justificadas pela satisfação de
necessidade ou utilidade de interesse público. Voltando ao exemplo, na sociedade de
economia mista, o dever de universalização pode ser exigido de modo mais intenso do
que em uma concessionária não estatal. Tudo, é claro, dentro de limites de razoabilidade,

interesse público, que possam sacrificar o objetivo de maximização de lucros” (PINTO JUNIOR. Regulação
econômica e empresas estatais. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 147).
572
Segue a íntegra do dispositivo normativo: “Art. 238. A pessoa jurídica que controla a companhia de economia
mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (arts. 116 e 117), mas poderá orientar as
atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
179

moderação e bom senso, porque o simples fato de haver um controlador público não
significa autorização para expropriação dos acionistas privados.573 574
Em síntese: o objeto das estatais, e, de modo específico, o das sociedades de
economia mista, que é o exercício de atividades econômicas propriamente ditas e/ou
a prestação de serviços públicos, não se confunde com seu fim, que é a satisfação do
interesse público. No conflito entre os interesses do acionista controlador da economia
mista e os demais, há de se reconhecer que a hipótese resolve-se, de um lado, com a
aceitação, por parte dos acionistas privados, de que participam de um empreendimento
integrante da Administração Pública, com todos os seus ônus e bônus, e, por parte do
Poder Público, com a consciência de que o “desvio lícito de controle” até os objetivos
de interesse público deve estar devidamente justificado e não significar sacrifício insu-
portável, expropriação disfarçada ou conduta antieconômica.575 Até porque — e esse é
um dado que deve ficar claro na cabeça dos administradores da economia mista — ela
lhes acenou com o propósito de lucro à época da captação de recursos.576

573
“Os sócios públicos, controlando as sociedades, podem ser tentados a satisfazer — sem qualquer intuito
lucrativo — necessidades públicas satisfazíveis directamente com a actividade delas. Mas não têm o direito de
cumprir a tentação. Embora majoritários, devem respeitar o modo de ser das sociedades, as suas características
essenciais; não lhes é lícito anularem o escopo que, por definição (legal), é comum a todos os sócios” (ABREU.
Da empresarialidade: as empresas no direito, p. 158).
574
Carlos Ari Sundfeld defende a possibilidade da admissão de “sócio privado estratégico” — sócio minoritário
privado com poderes dos quais decorram condicionamentos ao sócio público. Isso estaria conforme à ideia de,
no interior da sociedade de economia mista, criar um contrapoder à força do Poder Público, semelhante à ideia
de divisão de poderes da teoria política. Carlos Ari ainda defende a possibilidade de acordos de acionistas
nas sociedades de economia mista — no caso, entre o Estado e seu sócio estratégico — sem a necessidade de
prévia autorização legal, por entendê-lo ato de mera gestão exercitável dentro do campo de ação do Poder
Executivo. Claro que, no contexto desse acordo de acionistas, o Poder Público não pode abrir mão de seu poder
de controle. A cessão do poder de controle — que significa, na prática, o fim da sociedade de economia mista —
demandaria, aí sim, prévia autorização legal (SUNDFELD, Carlos Ari. A participação privada nas empresas
estatais. In: SUNDFELD (Org.). Direito administrativo econômico, p. 264-285). Caso interessante envolvendo
os limites do Poder Público, ao pretender invalidar acordo de acionistas celebrado com sócio estratégico, foi
apreciado pelo STJ a respeito da pretensão do Estado do Paraná de declarar a ineficácia de acordo de acionistas
celebrado entre ele, como acionista controlador da Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR), e a
Dominó Holdings S.A. O Estado, cinco anos após a celebração do acordo, declarou sua ineficácia por decreto do
Governador, sob o argumento de que fora firmado por Secretário de Estado, quando só o Governador teria esse
poder, e porque o acordo implicava, na prática, a transferência do poder de controle do ente público ao parceiro
privado. O tribunal local denegou a segurança impetrada pela empresa contra o ato do Estado (a suspensão da
eficácia do acordo de acionistas via decreto do Governador), mas o STJ reverteu a decisão a favor da Dominó
Holdings. Sem entrar propriamente no mérito, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o Estado deveria ter
concedido oportunidade ao sócio privado de apresentar explicações e de produzir razões favoráveis ao acordo.
Ver acórdão proferido no Recurso Ordinário em MS nº 18.769/PR (2004/0112390-6), Relatora Eliana Calmon,
julgado em 02 de dezembro de 2004, DJ, 21 fev. 2005. Para o comentário à decisão (MUSSI. Acordo de acionistas
na sociedade de economia mista (comentários a acórdão do Superior Tribunal de Justiça). Revista Brasileira de
Direito Público da Economia – RBDE, p. 239-252).
575
Ainda que longo, merece ser transcrito trecho de João Pacheco de Amorim: “Todavia, se nas empresas mistas
não existe como nas empresas privadas uma ‘total coerência entre objecto social e escopo, entendido este como
destinação última dos resultados da gestão’ (contendo-se ‘um e outro estritamente nos limites da lógica do
interesse privado’), não deixam por isso de ser conciliáveis os interesses públicos e privados. Por um lado, a
prossecução do lucro não significa necessariamente e sempre a sua maximização, pelo que pode o interesse público que
presida à atividade desenvolvida pela empresa ser realizado sem o sacrifício do interesse societário dos privados; e por
outro lado, os sócios públicos não podem deixar de se preocupar, por seu turno, com o equilíbrio financeiro da empresa”
(AMORIM. As empresas públicas no direito português: em especial, as empresas municipais, p. 64-65, grifos
nossos).
576
Em termos concretos, lista de sugestões com o propósito de minimizar conflitos entre acionista controlador
e minoritários vem na lição de Mario Engler: (i) definir com clareza a missão pública de cada estatal; (ii)
estabelecer o limite de sacrifício passível de ser imposto à lucratividade da companhia para custeio de políticas
públicas incluídas em seu objeto social; (iii) ser transparente na divulgação dos custos implícitos das políticas
públicas e restringir a arbitrariedade na introdução de mudanças posteriores; (iv) valorizar a estrutura interna
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
180 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A Lei das Estatais possui algo a dizer a respeito do tema. Seu art. 4º, par. 1º,
informa que a pessoa jurídica que controla a sociedade de economia mista tem os de-
veres e responsabilidades do acionista controlador, na forma da lei das SA. Até aqui,
nenhuma novidade em relação à Lei das SA, que destaca a mesma ideia: o controlador
da economia mista é, antes de tudo, controlador de uma sociedade anônima, possuindo
os direitos e deveres de um.
O legislador de 2016, contudo, sublinhou a persecução do interesse da companhia.
Comparemos os dois artigos, com os nossos destaques:
Art. 238 da Lei das SA (Lei nº 6.404/76): A pessoa jurídica que controla a companhia de
economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116
e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público
que justificou a sua criação.
Art. 4º, par. 1º, da Lei das Estatais (lei n. 13.303/2016): A pessoa jurídica que con-
trola a sociedade de economia mista tem os deveres e as responsabilidades do
acionista controlador, estabelecidos na Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976,
e deverá exercer o poder de controle no interesse da companhia, respeitado o interesse
público que justificou sua criação.

Há diferença de ênfase entre as leis. É plausível cogitar que o legislador de 1976


quis permitir mais do que o legislador de 2016. Na Lei das SA, (i) o interesse da compa-
nhia e o interesse público estão, de certa forma, em linhas descoincidentes (daí porque
se fala em desvio lícito do poder de controle), e esse desvio é (ii) natural, talvez esperado.
Em 2016, (i) o interesse público é limite para o exercício do interesse da empresa: não
há como se desviar de um limite, senão respeitá-lo; (ii) o interesse da companhia é o
foco do legislador (o controlador deve exercer o controle “no interesse da companhia”).
Em 1976, havia, como vimos, a figura do desvio lícito do poder de controle. Em 2016, o
que há é a qualificação pública da atuação empresarial da sociedade de economia mista.
Esta qualificação se expressa no art. 8º, par. 1º, da Lei das Estatais, que pretende
identificar o interesse público na atuação da estatal. O artigo possui a seguinte redação:
Par. 1º. O interesse público da empresa pública e da sociedade de economia mista, respeitadas
as razões que motivaram a autorização legislativa, manifestar-se por meio do alinhamento
entre seus objetivos e aqueles de políticas públicas, na forma explicitada na carta anual a
que se refere o inciso I do caput.

Vamos interpretá-lo. O dispositivo pretende concretizar o interesse público da


estatal (rectius, o interesse público presente na atuação da estatal). O propósito é nobre,
mas as dificuldades são imediatas, pois “interesse público” é conceito indeterminado.

de governança, em especial o conselho de administração; (v) transferir para o conselho de administração a


responsabilidade de identificar o interesse público no caso concreto e tomar as medidas necessárias à sua
realização; e (vi) abrir espaço para a participação, no conselho de administração, de representantes de grupos
de interesse vinculados à atividade da companhia, para institucionalizar o processo decisório sobre questões
complexas envolvendo a ponderação entre o interesse público e a finalidade lucrativa (PINTO JUNIOR. A
estrutura da Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia controlada.
Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 62). Concordamos com tudo. Observe-se que o conselho de
administração, por valorizado que deva ser, sempre deverá agir dentro das condições de possibilidade trazidas
pelo objeto social. Jamais poderá decidir de modo contrário ao interesse público que presidiu a criação da
empresa, tampouco poderá expropriar os acionistas privados. Ele não pode se tornar, mercê de sua força, mais
um poder a pretender agir autonomamente conforme a seu plano de ação (como, por hipótese, o acionista
controlador e os acionistas minoritários assim o façam). Ele deve agir como um ponto de mediação, e não como
um terceiro polo de força.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
181

A Lei das Estatais sequer teria como defini-lo de modo exaustivo. O que faz é traçar
indicativos. Pois bem: de início, o dispositivo ressalva as “razões que motivaram a au-
torização legislativa” que precede a criação da estatal. É que tais razões — claro que na
medida em que estejam presentes no texto da lei autorizativa — indicam, elas próprias,
finalidades que devem pautar a atuação da empresa.
Outra manifestação do interesse público decorre do alinhamento entre os objetivos
da empresa e os objetivos de políticas públicas, no modo como este alinhamento foi
indicado numa carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de Administração da
empresa (art. 8º, I, da Lei das Estatais). A carta é um estudo sobre quais são e quanto vai
custar, para aquele ano, a concretização dos objetivos de interesse geral que justifica-
ram a criação da estatal.577 Este seria o interesse público como alinhamento economicamente
sustentável entre o fim empresarial da estatal e as políticas públicas.
Portanto, o quadro estruturado pela Lei das Estatais pode ser assim organizado.
A estatal não pode agir contra o interesse público que justificou sua criação. O foco da
empresa, no entanto, é numa atuação empresarial salutar e funcional (“o controlador
deve exercer o poder de controle no interesse da companhia”). Além de não agir contra
o interesse que justificou sua criação, a empresa pode, desde que isto se justifique econo-
micamente e esteja alinhado com sua lei autorizativa, concretizar propósitos de interesse
geral. A questão é menos jurídica do que contábil, administrativa e empresarial: o que
foge ao plano de negócios não pode ser conforme ao interesse público; o que escapa
à cultura administrativa e gerencial da empresa não pode ser conforme ao interesse
público; o que é ruinoso economicamente não pode ser conforme ao interesse público.578
Já que incursionamos na seara do Direito Empresarial, discutamos tema rela-
cionado ao objeto das estatais, especificamente ao das sociedades de economia mista
abertas. É o seguinte: podem as sociedades de economia mista abertas participar do Novo
Mercado da Bovespa? O Novo Mercado é segmento especial de listagem, na Bolsa de
Valores de São Paulo, onde só são admitidas companhias que adotem práticas avançadas
de Governança Corporativa. O interesse das sociedades de economia mista abertas em

577
Art. 8º As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão observar, no mínimo, os seguintes
requisitos de transparência: I - elaboração de carta anual, subscrita pelos membros do Conselho de
Administração, com a explicitação dos compromissos de consecução de objetivos de políticas públicas pela
empresa pública, pela sociedade de economia mista e por suas subsidiárias, em atendimento ao interesse
coletivo ou ao imperativo de segurança nacional que justificou a autorização para suas respectivas criações, com
definição clara dos recursos a serem empregados para esse fim, bem como dos impactos econômico-financeiros
da consecução desses objetivos, mensuráveis por meio de indicadores objetivos.
578
A história recente do Brasil tem sido fértil em exemplos de supostos casos de abusos de poder de controle
do acionista majoritário de estatais, em detrimento do interesse de minoritários, e, no limite, da própria
companhia. Um dos mais notórios é o da Eletrobras, a qual relatamos aqui sem proferir juízo definitivo de
valor (todas as notícias aqui indicadas são públicas). A União, controladora da empresa, haveria-a forçado a
aderir à Medida Provisória nº 579/2012 (que se tornou a Lei nº 12.783/2013). A circunstância gerou, inclusive,
multa da CVM à União, posteriormente revertida. É que, com vistas à redução da conta de energia cobrada
ao consumidor final, a MP nº 579/2012 adotou algumas medidas, sendo a mais discutível a antecipação da
prorrogação das concessões de geração, transmissão e distribuição de energia anteriores à Lei nº 8.987, de
1995. A União possibilitou às concessionárias a antecipação do término de seus contratos, estendendo-os, sem
licitação, por mais trinta anos. As concessionárias receberiam, em troca, indenização pelos investimentos não
amortizados ou não depreciados. Houve dúvida quanto à correção da indenização, e muita suspeita de redução
de receita futura. Em razão disso, as empresas de energia, especialmente a Eletrobras, perderam bastante valor
de mercado (a Eletrobras perdeu 62% do valor de mercado entre 2011 e 2016). Agradeço ao meu aluno Bruno
Arcanjo pelo resumo do caso.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
182 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ingressar no Novo Mercado está na potencial valorização das ações.579 Os requisitos


para admissão de uma companhia no Novo Mercado são: (i) possuir apenas ações
ordinárias e manter em circulação no mínimo um quarto do capital social, (ii) realizar
ofertas públicas, utilizando-se de mecanismos que favoreçam a dispersão acionária, (iii)
fornecer balanço anual segundo normas internacionais de contabilidade, (iv) cumprir
regras de disclosure por parte dos administradores e do acionista controlador em ope-
rações envolvendo valores mobiliários de emissão da companhia, (v) divulgar acordos
de acionistas e programas de opção de compra de ações, (vi) estabelecer mandato de
um ano para o Conselho de Administração, (vii) estender aos minoritários as condições
obtidas pelos controladores quando da venda do controle da companhia (tag along),
(viii) realizar oferta de compra, pelo valor econômico, de todas as ações em circulação
no caso de fechamento do capital ou cancelamento do registro do Novo Mercado, e (ix)
aderir à Câmara de Arbitragem instituída pela BOVESPA para resolução de conflitos
societários.580
Ora, vários dos compromissos exigidos de uma companhia aberta para ingressar
no Novo Mercado da Bovespa estão em linha de conformidade com muitos dos princí-
pios constitucionais incidentes sobre a Administração Pública. Assim, por exemplo, a
exigência de balanço anual segundo regras internacionais de contabilidade, o disclosure
de operações envolvendo valores mobiliários da companhia e a divulgação da exis-
tência de acordos de acionistas são obrigações que reforçam o dever de transparência
administrativa.581
É interessante observar, aliás, que muitas das exigências desse Novo Mercado —
como, de resto, regras empresariais de compliance — tiveram inspiração em regras de
Direito Público. A transmigração de ideias se faz do privado para o público, e vice-versa.
Porém, se se trata de cogitar óbices para esse ingresso no Novo Mercado, que,
aliás, acaba sendo pequeno — poucas sociedades de economia mista estão em condições
de cumprir todas essas exigências de boa governança,582 o que se espera que mude em

579
No entanto, é de dever que, por vezes, nem sequer ingressar no Novo Mercado, ou em qualquer outro índice
de governança, significa valorização diferenciada. O risco-governo existe para qualquer estatal — e tal risco é
precificado pelo mercado (JULIBONI. Empresas privadas se valorizam quase o dobro das estatais na BOVESPA.
Exame).
580
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 54. Calixto
Salomão Filho, ao reconhecer a importância, e também a insuficiência, de solução contratual, não institucional,
como a do Novo Mercado — trata-se de regulamento criado pela BOVESPA ao qual se adere por intermédio
de contrato —, para o fortalecimento de nosso mercado de capitais, vê nela três bases principais, sendo apenas
uma delas inovadora, e as demais apenas intensificações de tendências já verificadas na própria Lei das S.A.
A primeira base seria a informação completa (os requisitos de informação previstos no regulamento iriam
além das previsões legais); a segunda base, o reforço das garantias patrimoniais dos minoritários no momento
da saída da sociedade, também estaria em linha com a evolução legal; somente a terceira base do Novo
Mercado, chamada de “proteções estruturais”, por modificar a própria conformação interna das sociedades,
seria inovadora: a previsão da existência, apenas, de ações ordinárias (o que encareceria o controle único) e a
resolução de conflitos por intermédio de arbitragem (SALOMÃO FILHO. O novo direito societário, p. 58-60).
581
SALOMÃO FILHO. O novo direito societário, p. 56. Estudo empírico sobre os dados de contabilidade de uma
série de estatais federais vis-à-vis os dados de contabilidade de empresas privadas com ações negociadas no
Novo Mercado entre dezembro de 1999 e dezembro de 2006 identificou qualidade significativamente melhor
nos dados contábeis das empresas do Novo Mercado (ANTUNES et al. Empresas estatais federais e empresas
do Novo Mercado da Bovespa: um estudo comparativo acerca da qualidade da informação contábil utilizando
dados em painel).
582
Até fevereiro de 2014, apenas o Banco do Brasil e a SABESP estão no Novo Mercado da Bovespa. Em 2015, a
Bovespa lançou um programa de governança para estatais, o programa Destaque em Governança de Estatais
(informações em: <http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/listagem/acoes/governanca-de-estatais>. Acesso em:
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
183

breve —, é de se questionar a) a admissibilidade da resolução de conflitos via arbitragem,


e b) a obrigação do tag along, quer dizer, o compartilhamento dos benefícios obtidos pelo
acionista controlador, quando da venda do controle da companhia ou da atribuição de
novos direitos patrimoniais, em favor dos minoritários (poder-se-ia pensar que o admi-
nistrador estivesse transigindo com o patrimônio público ao se obrigar a compartilhar
benefícios com os acionistas privados). Enfrentemos os dois pontos.
a) A admissão da resolução de conflitos via arbitragem não é nova e representa,
com peculiaridades, o superado debate sobre a possibilidade de a Administração Pública
adotar a arbitragem como forma de resolução de suas controvérsias. Para resumir uma
longa história, admite-se a arbitragem na Administração Pública desde que o interesse
envolvido seja disponível, isto é, desde que diga respeito a interesse público patrimo-
nial, interesse público secundário, na medida em que o acesso à jurisdição estatal é uma
faculdade, e não um dever.583 584
O assunto se diferencia um pouco do tema clássico, que se refere à arbitragem
em contratos administrativos, porque, aqui, o árbitro poderia ser levado a decidir algu-
ma matéria atinente ao exercício do controle, que é do Poder Público, e, como se sabe,
pode estar voltado à execução de políticas públicas. Ter-se-ia, então, agente privado
decidindo a respeito de políticas públicas. Ora, salvo situações específicas, em que se
delineie claramente uma questão de política pública, na maioria das vezes as polêmicas
envolvendo acionista controlador e acionistas minoritários dirão respeito a interesses
patrimoniais disponíveis. Nessas hipóteses, não há problema em se aceitar a submissão
à arbitragem como meio preferencial de solução de conflitos.
O segundo suposto impedimento, a saber, b) o compartilhamento de benefícios
via tag along, só o será de fato caso se adote visão muito restriva do que venha a sig-
nificar a satisfação do interesse público. Não há proibição de que benefícios obtidos
pelo acionista controlador, o Poder Público, venham a ser repartidos com os acionistas
privados. Ingressar no Novo Mercado é opção que repercute na valorização de todas as
ações, pertencentes a seja quem for. A valorização das ações pertencentes aos minoritá-
rios não se faz em detrimento das ações ou do interesse do acionista controlador, antes
o contrário: trata-se de uma daquelas situações que o jargão da teoria da administração
apelidou de “ganha-ganha”.585
De resto, é possível realizar o seguinte raciocínio: uma sociedade de economia
mista, como sociedade anônima que é, pode ser aberta ou fechada, isto é, pode ter
suas ações comercializadas em bolsa de valores ou não. Caso seja uma S.A. aberta,

23 jul. 2017). As conclusões lançadas quanto à participação de estatais no Novo Mercado são aplicáveis à adesão
ao programa Destaque em Governança de Estatais: as empresas podem participar, e o programa é compatível
com a Lei das Estatais.
583
Na doutrina, por todos, Selma Lemes (Arbitragem na Administração Pública: fundamentos jurídicos e eficiência
econômica). O tema ganhou nova força com a edição da Lei nº 13.129, de 26 de maio de 2015.
584
O grande ponto, cuja resposta continua em aberto, é saber, de modo concreto, quais são os interesses públicos
secundários e primários para o fim de definir a arbitrabilidade objetiva. Alguns contratos públicos têm definido,
em seu corpo, uma lista de matérias que admitem e não admitem arbitragem. É boa medida.
585
“Apesar de o ingresso no Novo Mercado produzir realmente a valorização das participações minoritárias, o
efeito não pode ser creditado ao esvaziamento econômico do lote de ações pertencente ao acionista controlador.
Isso porque o incremento de valor também é fruto da maior transparência, seriedade de gestão e aumento da
liquidez do mercado acionário, que fazem parte dos compromissos assumidos pela companhia e pelo acionista
controlador, sem envolver qualquer renúncia a direitos patrimoniais” (PINTO JUNIOR. O novo mercado da
BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas de boa governança corporativa.
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 60).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
184 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

naturalmente incidirá sobre a estatal toda uma regulação mais estrita, o que é natural,
já que haverá apelo à poupança pública. Diante dessa opção, a ninguém ocorreria
questionar o administrador público sobre a constituição da companhia de capital aberto,
como se estivesse “transigindo com o patrimônio público” apenas porque adotou forma
societária mais exigente. A opção é legítima — e o grau de intensidade da regulação é
consequência natural e igualmente legítima daquela opção.586 Não há ofensa a qualquer
princípio ou regra na hipótese de sociedade de economia mista aberta ingressar no
Novo Mercado. Compartilhar benefícios com os acionistas minoritários é, apenas, uma
das regras do jogo, cuja participação pode ser interessante à Administração Pública. De
igual modo, também não há violação na adesão ao programa Destaque em Governança
de Estatais, da BOVESPA. São estratégias de valorização da empresa.
Certamente não são todas as sociedades de economia mista abertas que se qua-
lificam para ingressar no Novo Mercado, e sequer é verdade que, sempre que uma
economia mista tenha condições de cumprir os requisitos para ingressar na listagem,
o Estado deva inscrevê-la. Tudo vai depender do cálculo de vantagens e desvantagens
do caso. O que se pode afirmar é que, se for o caso de ingressar no Novo Mercado,
inexistirão obstáculos jurídicos.

1.2.7 Regime jurídico das estatais: privado, mas com exceções


finalísticas de Direito Público. Os bens das estatais: três
problemas contemporâneos
Qual o regime jurídico a que se submetem as estatais?
Aceitando como válida, não com a importância de outrora, a distinção entre
Direito Público e Direito Privado,587 três são as opções. Ou as estatais estão submetidas
ao Direito Público, ou ao Direito Privado, ou a algum modelo híbrido. A opção do
hibridismo deve ser desconsiderada porque introduz elemento de complexidade sem
ganhos satisfatórios em termos de acuidade na descrição do fenômeno. Além disso,
aceitar a existência de regime jurídico híbrido parece fazer supor a existência de regimes
“puros”, afirmação desmentida pela realidade jurídica contemporânea.588 Qual seara do
Direito se poderia dizer, hoje, como submetida, em termos qualitativos e quantitativos,
a um regime jurídico inteiramente público ou privado? Basta pensar nos exemplos do

586
PINTO JUNIOR. O novo mercado da BOVESPA e o compromisso da sociedade de economia mista com práticas
de boa governança corporativa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 59.
587
SILVA. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 172-174.
588
Essa é, contudo, a opinião da Professora Lúcia Valle Figueiredo, vazada nos seguintes termos: “Não entraremos
nessa peleja, porque todo o objetivo de nosso trabalho é o de chegar à conclusão de que as sociedades de
economia mista e empresas públicas — estas ‘formas híbridas’, para Jean Denis Brédin — não se inserem, quer
na classificação de direito público, quer na de direito privado”. E nas definições dos entes estatais, especialmente
no de empresa pública: “Empresa pública é uma forma de atuação da União, dos Estados e dos Municípios, em
um regime em estreita simbiose entre o público e o privado, quando, a isso, o Estado se encontra expressamente
autorizado por lei, forma, esta, personalizada. Por sua vez, sociedade de economia mista é um cometimento
estatal, personalizado, e associado a capitais particulares, para a consecução de fins públicos, revestindo-se da
forma de sociedade anônima, mas submissa, também, em certos aspectos, ao regime jurídico administrativo”
(Empresas públicas e sociedades de economia mista, p. 31, 38). Falando também em “regime jurídico híbrido”, na
defesa de algo mais próximo da nossa proposta (ZIMMER JÚNIOR. Curso de direito administrativo, p. 286).
Ainda sobre a “natureza híbrida” do regime jurídico das estatais, v. CARVALHO FILHO. Manual de direito
administrativo, p. 470. Na jurisprudência, v. RESP nº 417.794/RS, julgado em 03 de agosto de 2002. Na doutrina
estrangeira, sobre o “caráter híbrido das empresas públicas”, v. PELLETIER. L’entreprise Publique de Service
Public: Déclin et Mutation, p. 142.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
185

Direito Contratual ou do Direito Administrativo: um, típico de Direito Privado, há bom


tempo se vê vazado por imposições legais que modulam as condições de possibilidade
para o exercício da autonomia da vontade (o chamado “dirigismo contratual”); outro,
seara pública por excelência, encontra-se tendo que lidar com formas e instrumentos
de Direito Privado, numa “fuga para o Direito Privado”589 (sem falar que há quem
postule, mesmo, um Direito Administrativo Privado).590 Quer dizer: formas puras não
existem mais, se é que algum dia existiram; nem por isso a dicotomia clássica perde
sua utilidade, desde que entendida como propondo tipos ideais.
As estatais não podem e não devem ser entendidas como submetidas a um regime
jurídico de Direito Público. Elas são, na essência, entidades de direito privado. Afirmá-lo é
respeitar a lei (arts. 3º e 4º da Lei nº 13.303/16; Decreto-Lei nº 200/67), a Constituição
da República (art. 173, §1º) e o propósito para o qual foram constituídas (intervir, em
igualdade de condições, no mercado privado, junto às demais empresas privadas; e/ou
prestar serviços públicos de modo menos restrito pelas constrições de Direito Público).
Não há, em abstrato, nenhuma preferência pelo Direito Público, ao contrário do que
afirma, por exemplo, Caio Tácito:
No conflito eventual que entre elas [a norma pública e a norma de direito privado] se possa
oferecer como desafio ao intérprete, é fundamental ter presente que o direito privado é, no
caso, instrumental ao passo que o Direito Público é substancial e orgânico. O primeiro serve de
veículo a que se alcance o objetivo traçado pelo último, ou seja, a finalidade pública da ação
administrativa do Estado, definida em lei e visando ao bem comum.591

O problema com essa linha de entendimento é que, levada ao extremo, acaba


por desnaturar a essência privada das empresas estatais. Acabam virando autarquias
com S.A. no final da denominação. Em especial quanto à submissão aos Tribunais de
Contas e à obrigatoriedade, ou não, de se realizar procedimentos licitatórios, não são
incomuns pronunciamentos doutrinários e jurisprudenciais que olham para um só lado
da questão: as estatais integram a Administração Pública; possuem fins de interesse
público; logo, na dúvida, o regime jurídico a ser aplicado é o de Direito Público. Não
é. O regime jurídico ordinário, comum, usual, default, é o de Direito Privado.592
Uma coisa é dizer que são empresas privadas cuja forma é privada, mas o
substrato é público,593 afirmação que não se pode negar; outra é tratá-las, para todos
os efeitos, como entidades públicas. A forma tem importância, quando não porque foi
escolhida para que se pudesse mais bem realizar o fim público. A opção pelo Direito
Privado é opção legislativa e administrativa soberana e consciente. Negá-la significa
violar o Direito Positivo. Dentro de certos limites, aos quais nos reportaremos em breve,

589
ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da
Administração Pública; SOARES. Direito administrativo, p. 57-58; MAURER. Direito administrativo geral, p. 42-48.
590
GONZÁLEZ-VARAS IBÁÑEZ. El derecho administrativo privado; VÁZQUEZ. Introducción a la doctrina del
‘derecho privado administrativo’. In: AREVALO; MORENO; VARGAS (Org.). Administración instrumental: libro
homenaje a Manuel Francisco Clavero Alevaro, p. 230-239.
591
TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 698.
592
“Independentemente de serem exploradoras de atividade econômica ou prestadoras de serviço público, as
empresas públicas e as sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado. Destarte, em
regra, os seus atos submetem-se ao direito comum, o qual é apenas parcialmente derrogado pelo direito público”
(CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração,
p. 678).
593
BARROSO. Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 86.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
186 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

é preciso “levar a sério” a natureza empresarial das estatais, em especial quando atuam
concorrencialmente diante das demais empresas privadas.594
Claro que não devemos cair no extremo oposto e fetichizar a submissão ao Direito
Privado, tratando as estatais, especialmente quando prestadoras de serviços públicos,
como empresas privadas quaisquer.595 Não precisamos caminhar numa senda de extre-
mos, onde, de um lado, há uma inevitável atração ao regime de Direito Público — são “es-
tatais” e precisam ser controladas, já que o desvio e o abuso de forma andam ao lado —,
e, de outro, uma fanática defesa do regime de Direito Privado, pois são “empresas” e
só assim podem ser entendidas. Deve existir um caminho do meio. E há.
O regime é o de Direito Privado, mas com exceções de Direito Público que devem
ser interpretadas conforme o propósito da estatal naquela atuação específica. Essa proposi-
ção geral desencadeia uma série de consequências. Todavia, antes de descer a elas,
justificá-la-emos ponto por ponto.
Afirmar que “o regime é o de Direito Privado” não constitui novidade. É o
que afirma a Constituição da República em seu art. 173, §1º, II (“sujeição ao regime
jurídico próprio das empresas privadas”).596 Defender outra coisa seria agir contra a
Constituição.597 Da mesma forma, dizer que, no regime das estatais, existem “exceções

594
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 13-30. O próprio STF já se manifestou, em diversas oportunidades, a respeito da
impossibilidade de se admitir a personalidade e o regime jurídico de direito público a entidades públicas que
se prestam a intervir concorrencialmente na economia privada. Um dos casos mais famosos foi o do Banco
Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), que se afirmava uma autarquia, mas concorria com
os bancos comerciais da região. Nesse sentido, o RE nº 115.062-RS, julgado em 03 de março de 1989 (grifos
nossos): “EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL MOVIDA PELO BRDE PELO PROCEDIMENTO DA LEI
DAS EXECUÇÕES FISCAIS – OFENSA AO ART. 170 E PARAGRÁFOS DA CONSTITUIÇÃO (EC Nº 1/69).
O BANCO REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO DO EXTREMO SUL – BRDE – EMPRESA ESTATAL QUE
EXPLORA ATIVIDADE ECONÔMICA, NÃO PODE VALER-SE DE MECANISMO DE EXECUÇÃO DE DÍVIDAS
DE QUE AS EMPRESAS PRIVADAS SE VEEM EXCLUÍDAS, INDEPENDENTEMENTE DO FATO DE O
BANCO SE AFIRMAR AUTARQUIA. A NORMA DO PARÁGRAFO 2º DO ART. 170 DA CONSTITUIÇÃO DE
1967 (EC Nº 1/69) CONTÉM GARANTIA CIVIL, POR ELA CONCEDIDA A TODAS AS PESSOAS FÍSICAS E
JURÍDICAS NACIONAIS OU ESTRANGEIRAS, QUE AOS ESTADOS NÃO É LÍCITO SEQUER MODIFICAR,
MUITO MENOS, NEGAR E DESCONHECER. RECONHECIDO E PROVIDO”. Ver, ainda, RE nº 115.891 e
Orientação Jurisprudencial Transitória nº 34 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho (“O Banco Regional
de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE é uma entidade autárquica de natureza bancária, e, como tal,
submete-se ao art. 173, §1º, da Constituição Federal de 1988. Desta forma, sendo a natureza das atividades por
ele exercidas similares às de qualquer instituição financeira, seus empregados são bancários, regendo-se pelas
normas especiais a eles referentes, inclusive o art. 224 da CLT”).
595
BANDEIRA DE MELLO. Sociedades mistas, empresas públicas e o regime de Direito Público. Revista Eletrônica
de Direito Administrativo Econômico – REDAE.
596
“O que parece indiscutível, todavia, é que as sociedades de economia mista, no direito brasileiro, são pessoas
jurídicas de direito privado, por disposições expressas da Constituição Federal (art. 173, §1º) e da Lei nº 6.404/76
(Lei das S.A., arts. 2º e 235), sujeitando-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto
às obrigações trabalhistas e tributárias, com derrogações desse regime, mais significativas entre as prestadoras
de serviços públicos” (ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 87-88, grifos no original). Para as empresas
públicas, em comentário de idêntica orientação, v. p. 108, 115.
597
Curiosa é a posição de Toshio Mukai, posição que, na prática, acaba propondo a submissão da maioria das
estatais ao regime de direito público. O autor estabelece distinção entre empresas públicas (em sentido amplo,
englobando empresas públicas propriamente ditas e sociedades de economia mista) e empresas estatais: as
empresas públicas, nesse sentido amplo, seriam as que prestariam serviços públicos industriais ou comerciais;
as empresas estatais seriam as que desempenhariam atividades econômicas simples. Mukai acredita que a
distinção entre serviços públicos industriais ou comerciais e atividades econômicas está em que os primeiros
são aqueles serviços que o Estado exerce por interpostas pessoas, e que, por atenderem a necessidade essencial
ou quase essencial da coletividade, apresentam um interesse público objetivo na sua gestão; já a atividade
econômica seria aquela que o Estado resolve assumir dentro de sua política econômica, observados os
princípios constitucionais da ordem econômica (p. 359). Haveria, assim, distinção ontológica entre as duas
atividades. Para as empresas públicas, prestadoras de serviços públicos industriais ou comerciais, os quais
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
187

de Direito Público”, é apenas ler a Constituição. Em diversas hipóteses — na obrigato-


riedade da aquisição de bens ou de serviços por intermédio de licitação (art. 37, XXI), na
submissão ao teto remuneratório (art. 37, XI, c/c art. 37, §9º), na proibição do acúmulo
de cargos, empregos ou funções públicas (art. 37, XVII), no controle de suas contas pelos
Tribunais de Contas (art. 70, caput) —, o regime privado cede terreno a normas próprias
dos entes e órgãos públicos. Até aqui, estamos no terreno do óbvio.
A novidade está no reconhecimento do fato de que a incidência das exceções de
Direito Público, longe de dever ser “interpretada restritivamente” (mais sobre isso a
seguir) deve ser interpretada finalisticamente, isto é, de acordo com o tipo de atividade que
a estatal desempenha. Se se tratar da prestação de serviço público em regime não concor-
rencial, ou do exercício de atividade de apoio à Administração Pública, as restrições
publicísticas são aplicáveis. Se a estatal presta serviço público em concorrência com
outras prestadoras, as restrições devem ser menores, pois devem ser compatíveis com
a garantia de um estado de igualdade em relação às concorrentes. Se, afinal, a empre-
sa estatal encontra-se no mercado privado em concorrência com as demais empresas
privadas, as restrições de Direito Público devem ser interpretadas de modo a que sua
incidência não interfira na competitividade da empresa pública ou da sociedade de
economia mista naquela operação.

seriam, na verdade, nada mais do que serviços públicos, o regime de direito administrativo seria de rigueur —
eventuais personificações de direito privado, havidas pelo legislador, seriam simulações e não poderiam
prevalecer (“Trata-se de uma forma jurídica destituída de valor transcendental, e, por isso, no caso, é o fundo
que deve satisfazer a forma”). As consequências seriam a obrigatoriedade da licitação, o regime estatutário para
os servidores, a admissibilidade da impetração de mandado de segurança em face de suas ações ou omissões,
o controle abrangente dos Tribunais de Contas etc. Já as empresas estatais, que desempenhariam atividades
econômicas simples, só estariam submetidas ao direito público em suas atividades organizacionais internas;
todos os demais aspectos seriam regidos pelo direito privado. Há duas formas de se entender a posição de
Toshio Mukai: uma, que a torna relativamente inovadora, porém insustentável; outra, que a reduz ao consenso
doutrinário. O ponto chave de sua tese é a distinção entre serviços públicos comerciais ou industriais — vamos
chamá-los de “serviços públicos econômicos” — e atividades econômicas simples. Para a maioria da doutrina,
como se sabe, a atividade econômica é gênero de duas espécies: serviços públicos e atividade econômica em
sentido estrito (v., por todos, GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 103; a tese foi, inclusive,
adotada pela Lei das Estatais). Desse modo, é possível identificar dois sentidos para “atividade econômica”,
um sentido amplo, abrangente da ideia de serviços públicos e da atividade econômica estrita, e esta última. Os
artigos da Constituição que se referem à atividade econômica passam a ser lidos a partir de sua identificação
com o sentido amplo ou estrito: o art. 173 e seu parágrafo primeiro remetem ao sentido estrito; o art. 174 refere-
se ao sentido amplo, assim como o art. 170 (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 105, 109). O
problema da posição de Toshio Mukai está na vaguidade da conceituação “essencialística”, por assim dizer,
da distinção entre serviço público econômico e atividade econômica. Dizer que uma atividade é essencial ou
quase essencial à coletividade, havendo um interesse público objetivo em sua gestão, não permite a criação de
critério seguro para a diferenciação em relação às atividades econômicas propriamente ditas, já que, até por
determinação constitucional, para que o Estado possa exercer estas haverá que existir um “relevante interesse
coletivo” (art. 173, caput, CRFB/88). Será que o exercício de uma atividade “quase essencial” à coletividade
não é menos importante do que o exercício de um mister de “relevante interesse coletivo”? Esse embaralhado
de substantivos abstratos seria menos deletério se não pelas consequências claramente contra Constitutionem
subjacentes à proposta: afirmar que o regime da grande maioria das estatais é de direito público, quando a
Constituição afirma o contrário. É mais simples ficar com a noção sedimentada pelo conhecimento convencional:
se a empresa está prestando serviço público, entendido este a partir de definição complexa e composta de
uma série de índices identitários (índice subjetivo, índice formal, índice material), aplica-se de modo intenso o
regime de direito público; se a atividade é econômica, o regime de direito privado deve preponderar. De resto,
é verdadeira a afirmação de Marçal Justen Filho segundo a qual “aquilo que os franceses tratam como serviço
público industrial e comercial usualmente se configura, em face do Direito brasileiro, como atividade econômica
em sentido restrito”. Parece-nos que a tese de Toshio Mukai acaba invertendo a polaridade do regime jurídico
básico das estatais: deixa de ser o regime de direito privado e passa a ser o de direito público. Cf. MUKAI. O
direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 155-224, 258, 269, 358-359; JUSTEN FILHO. O
regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre ‘serviço público’ e ‘atividade econômica’. Revista de
Direito do Estado, p. 121, grifos no original.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
188 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ao falar em “propósito da estatal naquela atuação específica”, incorporamos a


noção de que as estatais não se dividem de modo estanque em prestadoras de serviços
públicos ou interventoras na economia (concorrenciais ou monopolísticas). Essa
bipartição, doutrinariamente clássica598 e adotada nos tribunais,599 é mais uma fórmula-
tipo do que uma descrição da realidade contemporânea das estatais. Na prática, muitas
estatais são ora prestadoras de serviços públicos, ora empresas privadas concorrendo com
outras empresas privadas.600 Na medida em que isso se mostre possível, a intensidade

598
Por exemplo, em Eros Roberto Grau (A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim). Contra, afirmando que,
“em parte, a linha traçada por Grau precisa ser refutada”, porque, ainda quando se trata de serviço público, a
estrutura da companhia mista continua sendo privada, e, mesmo na prática de atividade econômica em sentido
próprio, a criação, orientação e direção das estatais permanecem condicionadas à legislação de direito público,
v. RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 129. Parece haver confusão,
por parte da autora, entre as regras atinentes à estrutura e à função das estatais. Estruturalmente sempre
serão criaturas de direito privado, mas, em termos funcionais, os controles de direito público serão maiores
ou menores conforme a finalidade que estejam exercendo. Em sentido próximo ao que acabamos de defender,
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 122. Além disso, afirmar que, mesmo quando intervindo na
economia em sentido próprio, as estatais continuarão genericamente vinculadas à legislação de direito público,
é apostar numa generalidade para debilitar uma proposição específica inteiramente sustentável. É evidente
que as estatais, mesmo quando intervêm diretamente na economia, continuarão, por exemplo, integrando a
estrutura da Administração Pública indireta; continuarão “empresas estatais”; no entanto, o importante é que,
aí, seu regime jurídico preponderante será de direito privado.
599
Cf. ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 83, julgada em 24 de abril de 1991: “Administração
indireta do Estado-membro: disciplina de suas relações de trabalho (CF, art. 173, §1º): competência federal, já
quando se cuide de sociedades de economia mista e empresas públicas, sejam elas dedicadas a exploração de atividade
econômica ou a prestação de serviço público —, já quando se trate de autarquia, destinada, no entanto, a exploração
de atividade econômica: inconstitucionalidade, portanto, de disposição transitória de Constituição Estadual,
que lhes impõe prestações de natureza salarial” (grifos nossos). Ainda, a famosa decisão que submeteu
a execução em face da ECT ao regime dos precatórios, por entendê-la uma empresa pública prestadora de
serviços públicos tout court. O destaque na ementa do RE nº 229.696, julgado em 19 de dezembro de 2002, foi
acrescentado: “RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS
E TELÉGRAFOS. IMPENHORABILIDADE DE SEUS BENS, RENDAS E SERVIÇOS. RECEPÇÃO DO ARTIGO
12 DO DECRETO-LEI Nº 509/69. EXECUÇÃO. OBSERVÂNCIA DO REGIME DE PRECATÓRIO. APLICAÇÃO
DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. À empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica
equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do
artigo 12 do Decreto-Lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, §1º, da Constituição Federal, que
submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime
próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce
atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância
ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso
extraordinário conhecido e provido”. A referência à distinção entre estatais prestadoras de serviços públicos e
exercentes de atividades econômicas também está presente em outro acórdão do STF envolvendo os Correios,
no qual se reconheceu a imunidade tributária recíproca em prol de suas atividades. É ler a ementa do RE
nº 354.897, julgado em 17 de agosto de 2004: “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA
DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, ‘a’. EMPRESA
PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO
PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem
atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação
obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art.
150, VI, ‘a’. II. - RE conhecido e provido” (grifos nossos).
600
A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeronáutica (Infraero), empresa pública federal encarregada da
gestão de aeroportos, tanto presta serviços públicos relacionados à movimentação de passageiros, aeronaves
e cargas, quanto desempenha atividade econômica em sentido estrito nos aeroshoppings. Aliás, segundo consta,
a renda obtida com os centros comerciais vem superando aquela obtida com a prestação dos serviços públicos
(JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 183). O tema insere-se num debate amplo a respeito do
uso das potencialidades econômicas agregadas à prestação de serviços públicos. Marçal Justen Filho acredita
que isso se aplique, em especial, às estatais que prestem serviços públicos, já que a liberdade de empresa
traria oportunidades de ampliação das atividades empresariais. No caso das estatais que atuam no exercício
de atividades econômicas em sentido estrito, a possibilidade de que venham a prestar serviços públicos já
seria mais complicada, tendo em vista o regime público que caracteriza a prestação destes. Pois bem: essas
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
189

das restrições de Direito Público deve ser graduada de acordo com a atividade exercida,
e não conforme a uma categorização doutrinária formal, prévia e imutável. Há casos
em que não será operacionalmente possível aplicar diferentes facetas de dois regimes
jurídicos distintos a uma mesma empresa. Propomos, então, na inviabilidade da solução
ótima, que valha o regime jurídico associado à atividade predominante.601
Ainda estamos em linhas gerais, mas já começamos a divisar uma lógica de inter-
pretação. O regime jurídico é o de Direito Privado, com exceções constitucionais, cuja
incidência, maior ou menor, indo até seu quase afastamento, dependerá da atividade
que a estatal estiver exercendo: serviço público, atividade de apoio à Administração
Pública, serviço público prestado em concorrência, atividade privada propriamente dita.
Sempre que possível, as restrições de Direito Público deverão estar em harmonia
com a finalidade da atividade prestada, o que poderá levar a uma pluralidade de “as-
pectos” de regimes jurídicos distintos sendo aplicados dentro de uma mesma empresa.
Embora variadas consequências decorram dessa multiplicidade finalística de regi-
mes jurídicos, uma das mais evidentes é o tratamento dos bens das estatais. Tratar-se-ia

estatais prestadoras de serviços públicos teriam o dever jurídico de, havendo a possibilidade do exercício de
atividades econômicas privadas conexas à prestação do serviço público, viessem a fazê-lo, tirando proveito da
economia de escopo. Haveriam que aproveitar todas as oportunidades empresariais geradas pela prestação
do serviço público, em especial com a finalidade de reduzir tarifas. Caso não o fizessem, estariam violando o
princípio da indisponibilidade do interesse público pela perda da oportunidade de obter benefícios econômicos
e transferi-los aos usuários de seus serviços (via redução de tarifas). O Poder Público não teria a liberdade de
escolher desempenhar, ou não, a atividade econômica conexa à prestação do serviço público, sob o argumento
da discricionariedade. Assim, por exemplo, ao prestar o serviço público de transporte (transporte público),
a Administração Pública não poderia deixar de obter renda com eventuais áreas ociosas nos terminais. Um
possível fundamento legal para tal dever jurídico seria o art. 11 da Lei Federal nº 8.987/95 (“No atendimento
às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária,
no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares,
acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas
[...]”). Pois bem: concordamos com a proposta do Professor Marçal, embora reconheçamos que oportunidades
empresariais são circunstâncias tendencialmente instáveis, fugazes e polêmicas, sendo perigoso pretender
fundar um dever jurídico (e daí uma responsabilização jurídica) em sua perda. O que parecia uma oportunidade
empresarial pode se revelar uma ilusão. E certamente ninguém pretende impor à Administração Pública a
obrigação de assumir riscos elevados. Daí nossa revisão da proposta: há, sim, um dever jurídico de aproveitar
oportunidades empresariais conexas à prestação de serviços públicos, desde que a oportunidade empresarial
possua risco baixo ou inexistente. Ou seja: só há dever jurídico em sentido estrito de se aproveitar oportunidades
empresariais sólidas. Isso porque o outro lado da história também merece destaque: se muitos serviços públicos
podem acabar sendo subsidiados pelos lucros da atividade privada, o que é ótimo, vale lembrar que esses
mesmos serviços públicos podem ter a continuidade ou a adequação de sua prestação comprometidas por
prejuízos advindos de atividades econômicas que lhe sejam conexas. Em sentido próximo ao de Marçal — mas
tratando da atividade econômica direta do Estado, e não da prestação de serviços públicos, e subvidindo-a
em atividade de assistência existencial do Estado (transporte de pessoas, tratamento de resíduos sólidos) e
atividade privada do Estado com propósito estrito de lucro, e admitindo a legitimidade da utilização periférica
da atividade de assistência existencial para a realização de lucro (como resultado do princípio da eficiência
econômica), v. STOBER. Direito administrativo económico geral: fundamentos e princípios. In: STOBER. Direito
constitucional económico geral: fundamentos e princípios, direito constitucional económico, p. 225-229.
601
A diferenciação de tratamento, a partir dos distintos regimes jurídicos, conforme o tipo de atividade exercida,
foi uma das propostas analisadas — mas rejeitada, porque tida por impraticável — no julgamento do Recurso
Extraordinário da ECT (já mencionado). Registre-se que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, empresa
pública federal, é exemplo de estatal que simultaneamente presta serviço público (o serviço de carta selada) e
desempenha atividades privadas (a venda de cartões de Natal ou o serviço de courrier, em concorrência com
outras empresas [Fedex, Chronopost etc.]). Entretanto, em nossa opinião, com alguma boa vontade, seria
possível diferençar as atividades e os regimes jurídicos. Por exemplo, seriam penhoráveis os bens da ECT
vinculados diretamente ao Sedex, não os relacionados às cartas seladas. É algo a se pensar e, mais ainda, a se
tentar concretizar (ver proposta no corpo do texto). Do contrário, ainda no exemplo da impenhorabilidade dos
bens da ECT, esta se vai incrustar como uma eterna vantagem competitiva em favor do courrier dos Correios e
em desfavor de todos os demais serviços privados que são seus concorrentes.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
190 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de uma incidência direta do raciocínio havido para o regime jurídico: se os bens estão
afetados à prestação de algum serviço público ou ao exercício de alguma atividade de apoio à
Administração Pública,602 são bens impenhoráveis. Se não, são bens penhoráveis.603 604 Essa é
a regra de ouro, que, não obstante, é desafiada por uma série de problemas. A eles.
Em primeiro lugar, nem sempre é operacionalmente possível, numa estatal que
preste serviços públicos e atue de modo concorrencial na iniciativa privada, separar
com clareza os bens vinculados a cada uma das atividades. Foi também por isso que o
STF decidiu pela impenhorabilidade de todos os bens da ECT. Será que os caminhões
transportadores de cargas não são os mesmos que levam as cartas seladas? Como se-
parar bens em duas categorias, considerando que podem estar integrados dentro de
um único fluxo de produção? Uma solução seria impor à estatal, por via legislativa
ou judicial, uma separação relativa dos fluxos produtivos. Por mais que isso acarrete
alguma diminuição na eficiência econômica, é a solução second best à opção de tratar
todos os bens como públicos ou privados — o que é ainda mais artificial.
Segundo problema, próximo ao primeiro, é que a conexão entre as atividades de
serviço público e economia estrita gera relação de interdependência entre elas — até
por isso que se cogita de um dever jurídico de aproveitamento de oportunidades.605
Então, mais do que inseparáveis na prática, por conta do compartilhamento de bens
para finalidades distintas, as atividades tornam-se inseparáveis na essência: o serviço
público é meio para a intervenção econômica e/ou vice-versa. As atividades dinamizam-­
se reciprocamente. Nesse contexto, o que seria exatamente um bem afetado à prestação
do serviço público e um bem não afetado? Todos os bens, em certa medida, podem

602
Para uma análise aprofundada do conceito de afetação pública de bens, v. TRAORÉ. Droit des propriétés publiques,
p. 53-93. Na doutrina brasileira, cf. CRETELLA JÚNIOR. Tratado do domínio público, p. 149-166.
603
O histórico jurisprudencial do Supremo é confuso. Originalmente, no RE nº 222.041-5/RS, o STF entendeu que
os bens da ECT eram penhoráveis: o art. 12 do Decreto-Lei nº 509/59, que estabelecia a impenhorabilidade dos
bens dos Correios, foi tido como incompatível com a Constituição de 1988. Posteriormente, ao decidir o RE nº
220.906/DF, como vimos, o Supremo entendeu que o artigo 12 havia sido, sim, recepcionado, e que os bens da
ECT eram todos impenhoráveis. Depois, e curiosamente, ao decidir pela não incidência do controle do TCU
sobre o Banco do Brasil, o STF, no MS nº 23.627/DF, em voto condutor majoritário de autoria do Ministro Ilmar
Galvão, afirmou genericamente que os bens das empresas estatais eram privados — sem diferenciar, portanto,
as atividades de prestação de serviços públicos e a atuação econômica estrita. Finalmente, no MS nº 25.181/DF,
o STF, superando o entendimento do MS nº 23.627/DF, afirmou o caráter público dos bens das estatais — e o
caso tratava de uma estatal interventiva na economia, o Banco Nordeste do Brasil S.A.
604
Há, ainda, que se considerar o dado legislativo representado por duas referências, no Código Civil de 2002,
a “pessoas jurídicas de direito público com estrutura de direito privado”, a saber, no art. 41, parágrafo único
(“Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito público, a que se tenha dado estrutura de
direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código”) e no
art. 99, parágrafo único (“Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes
às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado”). O que seriam tais
entidades? As empresas estatais? Não parece que é o caso, porque, no mínimo quanto ao art. 41, a leitura
integral do artigo se refere a pessoas jurídicas de direito público — coisa que as estatais, definitivamente, não
são. Concordaremos, então, nesse ponto, com a posição de Thiago Marrara, segundo a qual tais referências
legais dizem respeito a fundações e associações públicas; tratar-se-ia, a referência legal, de uma espécie de
“conceito-coringa, que permite ao direito civil acompanhar as transformações do direito público sem dele se
desvencilhar”. As “entidades públicas com estrutura de direito privado” seriam aquelas entidades criadas em
virtude da competência dos entes federativos para legislar sobre Direito Administrativo (MARRARA. Bens
públicos: domínio urbano: infra-estruturas, p. 80-81).
605
Um ponto a se levantar: em que medida o ganho de escopo propiciado pelo exercício da atividade de serviço
público, e que eventualmente irá levar a estatal a exercer, também, a atividade privada, poderá significa
vantagem concorrencial anti-isonômica em favor desta e em detrimento das demais empresas privadas suas
concorrentes?
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
191

estar e não estar afetados.606 Aqui, não basta impor uma separação material de fluxos de
produção: ou se admite o exercício da atividade econômica conexa ao serviço público,
e aí os bens da empresa poderão estar potencialmente servindo às duas atividades, ou
não se admite a simultaneidade de funções das estatais. Para o momento, não temos
ideia de qual poderia ser a saída.
Terceiro problema: o Supremo já admitiu a penhora de bens públicos — na espécie
rendas públicas —, ao menos para a garantia de direitos fundamentais associados ao
conteúdo do mínimo existencial.607 O STJ também já aceitou penhora sobre faturamento
de sociedade de economia mista prestadora de serviço público de abastecimento de
água e saneamento.608 Ou seja: mesmo que ainda tenha utilidade didática afirmar que
os bens das estatais são impenhoráveis ou penhoráveis, conforme estejam ou não afe-
tados à prestação de um serviço público (ou sendo utilizados em ambiente de concor-
rencialidade ou de não concorrencialidade, critério também útil para a controvérsia609),
é mister reconhecer que nem sempre será possível identificar quais são eles, já que ou
poderão estar funcionalmente integrados, ou pode ser impossível separá-los na prática;
ou, ainda, a garantia da impenhorabilidade pode vir a ser superada por uma eventual
importância de outro bem jurídico a ser defendido.610 611

1.2.7.1 Estatais com poder de polícia: por que não?


Dentro da grande chave semântica do regime jurídico das estatais, pretendemos
tratar agora da capacidade de exercício do chamado poder de polícia por parte das empresas
estatais.
Direto ao ponto: em nossa opinião, uma análise rigorosamente pragmatista dos
riscos e consequências associados à atribuição, ou não, de poder de polícia às empresas
estatais levaria à conclusão de que, sob certas circunstâncias, isso é possível. Para chegar

606
No exemplo da Infraero, as escadas rolantes e todas as facilidades dos terminais aeroportuários servem para
que os usuários dos serviços públicos de gestão do transporte aéreo sejam atendidos, e servem igualmente para
que os clientes dos aeroshoppings tenham acesso a seus produtos e serviços.
607
RE nº 436.966 (penhora de renda do INSS) e ADPF nº 45.
608
DJU, p. 248, 26 out. 2006. Na defesa doutrinária da possibilidade de penhora de faturamento de empresas
estatais, já que renda jamais constituiria bem diretamente afetado à satisfação de serviço público, v. FERREIRA
JÚNIOR. Do regime de bens das empresas estatais: alienação, usucapião, penhora e falência. In: SOUTO
(Coord.). Direito administrativo empresarial, p. 82.
609
V., com a análise da jurisprudência do Supremo, FIDALGO, Carolina Barros. O Estado Empresário: das sociedades
estatais às sociedades privads com participação minoritária do estado. São Paulo: Almedina, 2017. p. 266-274.
610
O Anteprojeto destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67 propõe: “Art. 25. Nas execuções e no cumprimento
de sentenças em face de entidade estatal de direito privado, a penhora deve ser feita na forma do art. 678 do
Código de Processo Civil, vedada a penhora sobre a renda em montante que inviabilize a continuidade das
atividades em execução. Parágrafo único. A penhora não pode atingir os bens insubstituíveis e comprovadamente
indispensáveis à execução material de atividade pública; mas sobre esses bens pode ser instituído usufruto em
favor do exequente, na forma do art. 716 e seguintes do Código de Processo Civil, assegurando‐se à executada
direito ao arrendamento compulsório, cujas condições serão fixadas pelo juiz, fazendo‐se em juízo o depósito
mensal do valor respectivo”.
611
Um quarto problema é a inexistência de cultura de pagamento de precatórios por parte das estatais. Na prática,
o repasse de recursos do ente centralizado às estatais dependentes não ocorre sob a rubrica do pagamento
de precatórios, mas como subvenção orçamentária, recurso não vinculado. Ou seja, “arruma-se” um jeito
de os credores de precatórios ficarem aguardando a boa vontade dos administradores para o pagamento.
Por isso, alguns recomendam que o precatório, mesmo derivado de dívida de estatal prestadora de serviço
público, seja emitido contra a Fazenda Pública à qual ela é vinculada (SOUTO. A polêmica da execução contra
estatais prestadoras de serviços públicos. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo: estudos em homenagem a
Francisco Mauro Dias, p. 499-513.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
192 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

a tal resultado, precisamos, também de modo pragmático, assumir o antifundaciona-


lismo como postura metodológica e desafiar alguns lugares comuns da doutrina e da
jurisprudência. Confira-se.
O ponto de partida de nosso raciocínio é aquilo que, para alguns, seria conside-
rado a pá de cal no debate: a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 2.310/DF. Tal ação foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores
em face de alguns artigos da Lei Geral de Pessoal das Agências Reguladoras (Lei Federal
nº 9.986/2000) que estabeleciam o regime da CLT para os (então) novos agentes públicos
que formariam o quadro de pessoal das agências reguladoras federais.
A petição inicial alegava que, sendo autarquias, as agências deveriam ter seus
quadros integrados por servidores públicos, não por empregados públicos, e que seria
difícil aceitar a adoção do regime trabalhista privado nas agências reguladoras, “que
têm por competência o exercício de funções exclusivas de Estado na área de regulação
e fiscalização, dotadas, portanto, do exercício do poder de polícia que é inerente e exclusivo à
ação estatal” (grifos nossos).612
A inicial argumentava, na mesma toada, que as atividades exercidas pelos agen-
tes públicos são exclusivas de Estado, circunstância incompatível com o regime não
estável da CLT e com a ausência de uma série de prerrogativas características dessa
espécie de provimento.
Ao apreciar a medida cautelar requerida na ação, o Ministro Marco Aurélio, em
decisão liminar (a ADI propriamente dita perdeu o objeto em virtude da revogação
dos dispositivos normativos que tiveram sua constitucionalidade questionada pela Lei
Federal nº 10.871/2004), afirmou:
Prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos e garantias a eles ineren-
tes, é adotar flexibilidade incompatível com a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando
os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige,
até mesmo, escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros.
Atente-se para a espécie. Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia
fazem-se com envergadura ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se
seguro, atue sem receios outros, e isso pressupõe a ocupação de cargo público, a estabilidade prevista
no artigo 41 da Constituição Federal. Aliás, o artigo 247 da Lei Maior sinaliza a conclusão sobre
a necessária adoção do regime de cargo público relativamente aos servidores das agências
reguladoras. (grifos nossos)

As razões da decisão do Supremo nessa ADI foram: o regime do emprego público


não é compatível com o exercício do poder de polícia porque (i) ele é instável, (ii) ele não
é seguro o suficiente para que seu ocupante atue livre de possíveis pressões disparadas
a partir de um exercício vigoroso do poder de polícia.
Em outras palavras: só o regime estatutário, só a estabilidade do art. 41 da
Constituição da República — e, portanto, só as pessoas jurídicas de Direito Público —
podem exercer poder de polícia. A partir da decisão, a associação de ideias passou a ser:
emprego público é incompatível com poder de polícia; estatais não podem exercer poder
de polícia. A essa conclusão parte da doutrina já havia chegado há tempos, sugerindo

612
Petição inicial na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.310/DF. O texto encontra-se em <http://www.
sinagencias.org.br/conteudo_arquivo/190609_F9F040.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2009.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
193

a impossibilidade da atuação das estatais na prática de atos de autoridade ou de atos


da “essência do Estado”.613
Mas vejamos: o que pode ser mais da “essência do Estado” do que a prestação
de serviços públicos? Ora, reconhece-se, de longa data, que empresas estatais podem
prestar serviços públicos. E mais: uma concessionária, à qual foi delegada a execução
dos serviços públicos, e que é uma entidade privada que não é parte integrante da
Administração Pública — ao contrário das estatais — pode eventualmente exercer parte
do poder de polícia, inclusive promovendo desapropriações (art. 31, VI, da Lei Federal
nº 8.987/95).614 Por que dizer que uma estatal não pode exercer um poder quando uma
empresa privada, não integrante da Administração Pública, em alguns casos poderá
exercer certas atividades a ele associadas?
Focando no argumento prático central da decisão do STF — a suposta instabi-
lidade do regime de pessoal das estatais —, a verdade é que, após a Constituição de
1988, boa parte da doutrina e da jurisprudência passou a admitir uma estabilidade de
facto aos empregados públicos, seja porque ingressaram nas entidades por intermédio
de concurso público, seja porque a garantia do contraditório e do devido processo legal
aplica-se a todos. Para os empregados federais, há, mesmo, lei que veda a demissão
imotivada (Lei Federal nº 9.962, de 22 de fevereiro de 2000). Ocorrendo perseguição,
desvio de finalidade, transferência punitiva etc., o empregado público, da mesma forma
que o servidor, poderá impugnar administrativa ou judicialmente tais atos. Portanto, o
servidor público e o empregado público estão igualmente “seguros” quanto ao exercício
de suas atribuições legais e constitucionais.615
Em rigor, aliás, falar que as garantias do regime de emprego público, apesar
das aproximações ao regime estatutário, ainda não são as mesmas, é compartilhar da
percepção difusa de que o regime estatutário garante “mais” do que o celetista — o
que, no fundo, não faz sentido, pois, ou uma garantia é garantia de verdade (e, assim,
protege inteiramente seu objeto defendido), ou é uma falácia. O empregado público
está tão protegido quanto o servidor em relação a pressões — e, se não estiver, não
será a diversidade de regimes que o protegerá (nessa hipótese, é possível afirmar que
estatutário e celetista estão igualmente sujeitos aos desvios da chefia).
Além disso, é de se pensar, com Carlos Ari Sundfeld, que, se os agentes públicos
ocupantes de cargo em comissão e os servidores em estágio probatório podem exercer
poder de polícia, embora não estáveis ou ainda não, qual seria o vínculo necessário
entre estabilidade e poder de polícia?616 A resposta é uma só: não existe. Pode até ter
existido, na época em que empregados públicos eram passíveis de, na teoria, serem
livremente demitidos (vale lembrar que isso nunca foi prática administrativa das estatais

613
“É proibida pela Lei Fundamental a atribuição a título normal ou não precário do exercício de poderes ou
prerrogativas de autoridade soberana a entidades organizadas sob formas jurídicas típicas do Direito Privado,
tal como se lhes deve considerar negado o exercício normal de actividades nucleares da função administrativa”
(OTERO. Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 240).
614
“Art. 31. Incumbe à concessionária: [...] VI - promover as desapropriações e constituir servidões autorizadas
pelo poder concedente, conforme previsto no edital e no contrato”.
615
“[...] Com o advento da Constituição de 1988, os regimes de cargo e emprego público foram consideravelmente
aproximados. Tal aproximação, em primeiro lugar, decorre da necessidade de concurso público para a
investidura, tanto nos cargos públicos, quanto nos empregos públicos, consoante previsão expressa do inciso
II do artigo 37 da Constituição Federal. Em segundo lugar, referida aproximação decorre da impossibilidade
de exoneração a qualquer tempo e sem motivação de servidores e empregados públicos” (SCHIRATO. Novas
anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 224-225).
616
SUNDFELD. Empresa estatal pode exercer o poder de polícia. Boletim de Direito Administrativo, p. 102.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
194 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

brasileiras). No entanto, essa época já passou, embora, pelo que se vê, uma teoria do
passado ainda presida uma decisão do presente.
Se o pressuposto de fato que subjaz à decisão do STF sobre a impossibilidade de
empregados públicos exercerem poder de polícia não se sustenta, deve-se concluir que
as estatais, sem nenhuma outra cautela, podem exercer poder de polícia?
De forma alguma. Há dois requisitos, em nossa proposta, que devem ser
respeitados.
O primeiro deles: para evitar qualquer conflito entre interesse público e capital
privado, e de certa forma manter a proximidade institucional com a figura das autar-
quias, na estatal que for exercer poder de polícia só pode existir capital público, jamais privado.
Ou seja: em princípio empresas públicas, e não sociedades de economia mista, podem
exercer poder de polícia. Pode-se, até, admitir as sociedades de economia mista cujos
únicos acionistas privados são os membros do Conselho de Administração, já que,
como vimos, trata-se, na verdade, de empresas públicas nas quais o Estado “empresta”
ações para cumprir formalidade da Lei das S.A. Mas nunca uma economia mista “de
verdade”.617 618 Segundo requisito: as empresas públicas que exercem poder de polícia não
podem intervir concorrencialmente na economia. Só podem ser prestadoras de serviços
públicos. Ou, se atuam nas duas finalidades, nunca poderão se servir do poder de
polícia para apoiar o exercício da atividade econômica em sentido estrito que exerçam.
Do contrário, tratar-se-ia de intervenção concorrencial anti-isonômica, já que nenhuma
outra entidade privada estaria dotada de tal poder.619

617
Este trecho da obra vem sendo citado em algumas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo para afastar
multas aplicadas pela TRANSERP, sociedade de economia mista do município de Ribeirão Preto que
administra o trânsito (ex., processo nº 1040440-36.2015.8.26.0506). Não se tem notícia da composição societária
da TRANSERP, mas uma coisa é certa: se a TRANSERP possui participação efetiva de capital privado, de fato as
multas não parecem válidas. Não parece adequado que o particular lucre com a aplicação de multas de trânsito;
isso poderia levar a incentivos socialmente perversos. O ponto aqui não é a forma “sociedade de economia
mista” per se, e, sim, o potencial conflito de interesses. Com razão, assim, Rafael Wallbach Schwind, para quem a
primeira cautela na atuação de particulares junto ao poder de polícia é “que a remuneração do particular deverá
ser concebida de tal forma que não crie conflitos objetivos de interesse”. Rafael cita como exemplos do que
estaria afastado pelo critério um sistema de remuneração em que as reprovações em inspeções veiculares gera
dinheiro ao particular, ou radares fotográficos cuja quantidade de infrações é parâmetro para a remuneração
privada. Cf. SCHWIND, Rafael Wallbach. Particulares em colaboração com o exercício do poder de polícia - o
“procedimento de polícia”. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Poder de polícia na atualidade. Belo
Horizonte: Fórum, 2014. p. 153.
618
Rodrigo Pagani de Souza observa, a respeito da proibição de economias mistas exercerem poder de polícia,
que “os casos concretos podem variar muito de perfil, o que desaconselha uma conclusão, a priori, no sentido
de que toda e qualquer sociedade de economia mista, independentemente da sua conformação jurídica, de
suas práticas de governança, do nível e características da participação privada no seu capital, seja incapaz de
desempenhar poderes de polícia com a necessária isenção. Antes, é mais razoável o exame de cada caso, atento
às características da sociedade de economia mista envolvida (verificando-se quem participa de seu capital, qual
era a efetiva destinação dos recursos que arrecada etc.)”. O professor da USP está correto. Nesta segunda edição,
acolhendo a crítica, alteramos a frase: na primeira edição, lia-se “apenas empresas públicas, jamais sociedades de
economia mista, podem exercer poder de polícia”. Nesta, lê-se, como se viu, “em princípio empresas públicas,
e não sociedades de economia mista, podem exercer poder de polícia”. De fato, a análise deve ser feita caso a
caso. Cf. PAGANI DE SOUZA, Rodrigo. Empresas estatais constituídas para o exercício de poder de polícia. In:
MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Poder de polícia na atualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 168.
No mesmo sentido, BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-
jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
619
Em sentido próximo ao defendido no texto, v. SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista
de Direito Administrativo, p. 228. Schirato defende a impossibilidade da atuação concomitante da empresa
pública dotada de poder de polícia como prestadora de serviços e interventora direta na economia; defendemos
que isso só é possível se a intervenção econômica direta não se valha desse poder.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
195

Na primeira edição deste livro, suscitamos um terceiro requisito — o exercício


do poder de polícia deveria ser acidental em relação à prestação de serviços públicos.
Não poderia existir estatal cujo objeto fosse o de exercer, de modo único, a polícia ad-
ministrativa. A polícia deveria ser acidental em relação à prestação de serviços públicos.
Revendo a posição, não parecem existir óbices jurídicos a tanto. Em rigor, tais estatais
não são comuns, mas não há nada que as impeça de existir.620
É curioso que se admita, hoje em dia de modo até tranquilo, que as estatais possam
executar serviços públicos. O “medo da forma privada”, vencido há muito tempo no
campo do Direito dos Serviços Públicos — atualmente chega a haver uma euforia pela
execução privada —, ainda ronda o exercício da polícia administrativa. Se entidades
da Administração Pública, de capital integralmente público, com bens aos quais se
reconhecem garantias típicas dos bens públicos, integradas por agentes públicos que
estão garantidos contra pressões de modo tão intenso quanto servidores estatutários o
estejam, podem prestar serviços públicos, por que não poderiam exercer alguma fração
do poder de polícia que se vincule ao exercício de tal prestação?621
A não se reconhecer isso, vai-se precisar recorrer a construções algo artificiais,
como a teoria das fases do ciclo de polícia (ver discussão no próximo capítulo), para
legitimar, em certas situações, o exercício dessa ordenação administrativa por empre-
sas públicas. Uma leitura antifundacionalista, experimental e voltada à realidade da
economia e às consequências práticas das interpretações do Direito Econômico não
pode ter medo de afirmar: empresas públicas podem, em determinados casos, exercer
o poder de polícia.622

620
Acolhemos aqui a crítica, dentre outros, de Gustavo Binenbojm. BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia,
ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do Direito Administrativo
Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
621
“Sendo assim, qual a diferença prática entre uma autarquia e uma empresa pública? Como já exaustivamente
afirmado, a única diferença consiste no fato de uma ter personalidade de direito público (autarquia) e a outra
personalidade de direito privado (empresa pública). Todavia, tal diferença é por si só bastante para ipso facto
rejeitarmos a possibilidade de uma empresa estatal exercer atividades da Administração Ordenadora, como
inquestionavelmente aceitamos para as autarquias?” (SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais.
Revista de Direito Administrativo, p. 224).
622
O STF, no ARE nº 662.186 RG, rel. Luiz Fux, reconheceu a repercussão geral de Recurso Extraordinário que
discute a possibilidade de a estatal BHTRANS exercer poder de polícia. Parece oportunidade histórica de se
rever o posicionamento clássico do Supremo. De resto, tal entendimento já parece estar mudando: o Supremo
aceitou que a CODESP, uma sociedade de economia mista, exercesse poder de polícia na condição de autoridade
portuária (AI nº 351.888). Em outra decisão, na Medida Cautelar na Reclamação nº 14.284, em que se discutia
o acesso a documentos de investigação realizada pela CVM e pela BOVESPA, o ministro Marco Aurélio, ao,
monocraticamente, deferir acesso aos documentos, anotou (destaques acrescentados): “Segundo dispõe a alínea
‘d’ do inciso I do artigo 18 da Lei nº 6.385/1976, cabe à Comissão de Valores Mobiliários editar normas gerais
sobre o exercício do poder disciplinar pelas bolsas de valores. A autarquia efetivamente o fez por intermédio
da Instrução Normativa CVM nº 461/2007. Entre os poderes conferidos à entidade privada, encontram-se os de aplicar
penalidades (artigo 49 do referido diploma) e até mesmo implementar medidas cautelares (artigo 64). Em outras palavras,
o poder disciplinar das bolsas de valores decorre de delegação estatal — dependente de lei e também de ato
infralegal —, de maneira que, ao exercê-lo, está em jogo uma potestade pública. A transferência de funções públicas
tipicamente regulatórias, inclusive com poderes de polícia, para entidades privadas é um fenômeno que vem sendo verificado
cada vez com maior frequência. A autorregulação não é um problema quando se trata de associações particulares
em que o ingresso e submissão às regras por ela impostas dependem da aquiescência do participante. Contudo,
a questão ganha complexidade se essas normas se destinam a agentes não associados ou a atividades privadas de interesse
público relevante, caso do mercado de valores mobiliários. Tais delegações se tornam legítimas apenas diante da existência
de parâmetros de controle e supervisão pelo Poder Público, bem como de instrumentos eficazes para assegurá-los”. O fato
é que o ministro Marco Aurélio identificou tal delegação legislativa no caso, considerando-a válida.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
196 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

1.2.8 Licitações nas estatais: o critério da concorrencialidade da


atividade (e porque os outros critérios não são bons)
Próximo item: o polêmico e sempre atual tema das licitações nas estatais. Sobre
ele, muita coisa já se falou, mas a solução para grande parte dos problemas levantados é
simples, e bom campo de experiência para uma interpretação do Direito Constitucional
Econômico guiada pelo “princípio” do pragmatismo. A doutrina costuma introduzir o
assunto traçando histórico de como ele foi tratado ao longo do tempo.
Na época da Constituição da República de 67/69, o art. 125 do Decreto-Lei nº
200/67 afastava as estatais do regime geral de licitação, ao limitar sua abrangência à
Administração direta e às autarquias.623 As estatais podiam elaborar critérios próprios
de seleção de contratantes. Assim o entendia a doutrina,624 ratificada pelo Tribunal de
Contas da União.625 Com a revogação dos dispositivos do Decreto-Lei nº 200/67 que fa-
lavam em licitações e contratações, por força do Decreto-Lei nº 2.300/86, o entendimento
continuou o mesmo, apenas transferiu sua base para o art. 86 do novel diploma legal.626
A redação original da Constituição da República de 1988 nada falava a respeito. A
novidade foi o artigo 119 da então nova Lei de Licitações, a Lei Federal nº 8.666/93, que
dizia que as estatais federais “editariam regulamentos próprios devidamente publica-
dos” (no que seguia o entendimento anterior) e, ao mesmo tempo e contraditoriamente,
anunciava que as empresas “ficariam sujeitas às disposições dessa lei”.627 A noção de
que houve uma mudança no tratamento do assunto reforçava-se pelo parágrafo único
do art. 1º da Lei, o qual reiterava que as empresas públicas e as sociedades de economia
mista se subordinavam àquela lei.628 As estatais estariam, a partir de então, obrigadas
in totum a licitarem suas compras, e pelas regras da Lei nº 8.666/93?
Nosso histórico legislativo não para por aí. Em 1998, com a edição da Emenda
à Constituição da República nº 19, alterou-se a redação do art. 22, XXVII, e do art. 173,
§1º, para informar que uma lei trataria do estatuto jurídico da empresa pública e da
sociedade de economia mista e disporia sobre as regras de licitação e contratação de

623
“Art. 125. As licitações para compras, obras e serviços passam a reger-se, na Administração direta e nas
autarquias, pelas normas consubstanciadas neste Título e disposições complementares aprovadas em decreto”.
624
MEIRELLES. Licitação e sociedade de economia mista. Revista de Direito Público, p. 52.
625
Conforme enunciado nº 158 de sua Súmula: “As fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, as
empresas públicas, sociedades de economia mista e as demais entidades previstas no art. 7º da Lei nº 6.233,
de 14.07.75 (Lei nº 6.525, de 11.04.78), não estão adstritas às regras de licitação para compras, obras e serviços,
previstas expressamente nos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei nº 200, de 25.02.67, para os órgãos da Administração
direta e das autarquias, mas devem prestar obediência aos ditames básicos da competição licitatória, sobretudo
no que diz respeito a tratamento isonômico dos eventuais concorrentes, como princípio universal e indesligável
do procedimento ético e jurídico da administração da coisa pública, sem embargo da adoção de normas mais
flexíveis e compatíveis com as peculiaridades de funcionamento e objetivos de cada entidade”.
626
“Art. 86. As sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações sob supervisão ministerial e demais
entidades controladas direta ou indiretamente pela União, até que editem regulamentos próprios, devidamente
publicados, com procedimentos seletivos simplificados e observância dos princípios básicos da licitação, ficarão
sujeitas às disposições deste decreto-lei”.
627
“Art. 119. As sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas e demais entidades controladas
direta ou indiretamente pela União e pelas entidades referidas no artigo anterior editarão regulamentos
próprios devidamente publicados, ficando sujeitas às disposições desta Lei”.
628
“Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras,
serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos
da Administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as
sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados,
Distrito Federal e Municípios”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
197

obras, serviços, compras e alienações. Ou seja: uma lei futura, que trataria do tema global
das estatais, traria, em seu bojo, regras específicas para as licitações destas empresas. A
lei finalmente veio: trata-se da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, a Lei das Estatais.
Ela foi regulamentada, na União, pelo Decreto nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016.
Optamos por manter os próximos parágrafos, com pequenas alterações, a título
de memória histórica dos debates havidos antes da Lei das Estatais. Em seguida, in-
gressaremos em específico na nova lei.
Primeira pergunta da memória histórica: até a existência da Lei das Estatais,
estariam tais entidades submetidas às normas previstas na Lei nº 8.666/93?
Temos dois problemas. O primeiro é saber se as estatais estavam obrigadas a licitar
pelas regras da Lei Geral de Licitações. O segundo é identificar quais os efeitos jurídicos
da referência constitucional a uma lei das estatais, que trataria de suas licitações, e que
não existia até 2016. A referência constitucional autorizaria, desde logo, a existência de
procedimentos licitatórios simplificados, a partir de autorizações legislativas específicas?
As respostas a essas duas questões estavam interligadas.
Muitos autores defendiam a inconstitucionalidade material do parágrafo único
do art. 1º e do art. 119 da Lei nº 8.666/93. O raciocínio possui bases consequencialistas.
Se as estatais devem seguir o regime próprio das empresas privadas, ao menos quando
desempenham a atividade de intervenção concorrencial — e a base para tal premissa
é o art. 173, §1º, da Constituição da República —, pode-se adiantar a consequência de
um tratamento desigual entre elas e as empresas puramente privadas, caso as primeiras
sejam obrigadas a aplicar, sem temperamentos, a Lei Geral de Licitações.629 A provável
consequência, não muito distante no tempo, seria a perda da competitividade das estatais
que atuassem em concorrência com as demais empresas privadas. A solução seria a de
se admitir que as estatais, desde logo, editassem suas normas próprias de licitação, até
que sobreviesse a mencionada Lei das Estatais. Há quem afirme que esse já é o conteúdo
eficacial mínimo do art. 173, §1º: caso contrário — ou seja, caso se pretendesse aplicar a
Lei nº 8.666/93 até que sobreviesse uma Lei Geral das Estatais —, estar-se-ia dando ao
mencionado dispositivo “a qualidade de um NADA JURÍDICO, de uma norma total
e absolutamente ineficaz”.630
Outros eram menos radicais e propunham uma interpretação conforme para
o art. 1º, parágrafo único da Lei nº 8.666/93: “Ainda que se entenda recepcionado o
dispositivo em apreço [art. 1º, parágrafo único], se há de dar a ele uma interpretação
conforme para dele emergir uma aplicação menos rigorosa e vinculante das normas da
Lei nº 8.666/93 às estatais submetidas ao disposto no artigo 173”.631 632

629
DALLARI. Licitações nas empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 84; DI PIETRO. Temas polêmicos
sobre licitações e contratos, p. 25; SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito
Administrativo, p. 233; BORBA. Direito societário, p. 483.
630
DALLARI. Licitações nas empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 72. Contra, defendendo que,
enquanto não for sancionada a legislação pertinente, as estatais não poderão, de modo próprio, adotar regra
específica de licitação, cf. GROTTI. Licitações nas estatais em face da Emenda Constitucional 19, de 1998. Revista
Trimestral de Direito Público, p. 24-35.
631
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 590.
632
O caso clássico sobre a possibilidade, ou não, da edição de regulamentos licitatórios próprios por parte das
estatais é o da Petrobras, que ainda não teve decisão definitiva do STF, mas cujas decisões têm se inclinado por
sua admissibilidade. A hipótese é: a Lei do Petróleo — Lei Federal nº 9.478/99 —, em seu art. 67, afirmou que os
contratos celebrados pela Petrobras seriam precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido
em decreto do Presidente da República. Com base em tal permissivo legal, foi editado o Decreto nº 2.745/97,
que aprovou o que estabeleceu o regime licitatório simplificado da Petrobras. O Tribunal de Contas da União,
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
198 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Outra saída consistia na distinção entre estatais prestadoras de serviços públicos


e estatais que atuem no exercício de atividade econômica em sentido estrito. Para as
primeiras, a obrigação de licitar restaria hígida; para as segundas, não. Far-se-ia um
distinguishing no Texto Constitucional, que só teria incidência para as estatais cujo re-
gime jurídico não fosse idêntico ao das empresas privadas.633
Além da alegação de inconstitucionalidade dos arts. 1º e 119 da Lei de Licitações,
da proposta de um conteúdo eficacial para o art. 173, §1º, da Constituição (as estatais
poderiam editar normas próprias), e da distinção entre estatais prestadoras de serviços
públicos e estatais que desempenham atividades econômicas estritas, outro argumento
era comum. Talvez fosse o mais clássico. Ele parte da distinção entre estatais prestado-
ras de serviços públicos e estatais que desempenham atividade econômica em sentido
estrito, e afirma, num primeiro momento, que as prestadoras de serviços públicos estão
inteiramente submetidas ao dever de licitar (seja pela Lei nº 8.666/93, seja por normas
próprias). Já as estatais que atuam concorrendo com as demais, na iniciativa privada,
só estariam obrigadas a licitar bens ou serviços vinculados às suas atividades-meio,
uma vez que seria logicamente impossível exigir que elas licitassem bens ou serviços
relacionados às suas atividades-fim.634 Esse argumento, como se verá em breve, acabou
prevalecendo, à luz do art. 28, par. 3º, I, da Lei das Estatais.635
Direto às nossas opiniões.
De fato, o texto da Lei de Licitações não deixa dúvida. Embora sempre se deva pre-
tender preservar a validade das normas, em prol da presunção de constitucionalidade,
a Lei nº 8.666/93 é clara ao se declarar aplicável às estatais. É, portanto, inconstitucional,
na medida em que, aplicada a uma estatal competitiva, vai lhe minar as forças concorrenciais.
Contudo, o critério da diferenciação entre estatais prestadoras de serviços e estatais que desem-
penham atividade econômica não é o melhor para decidir quando licitar. A própria clivagem
entre estatais prestadoras de serviços públicos e estatais interventivas na economia é,

em algumas oportunidades, entendeu pela invalidade do decreto, suscitando, até, a inconstitucionalidade do


permissivo legal incluído na Lei do Petróleo. Mas, como dissemos, o STF, em decisão ainda não definitiva,
vem entendendo pela constitucionalidade tanto do decreto quanto do dispositivo da Lei do Petróleo, com
base na necessidade de velocidade e dinamismo da Petrobras em relação às demais empresas privadas,
suas competidoras, ainda mais diante do art. 173, parágrafo primeiro, da Constituição da República, que
estabelece isonomia de tratamento entre as estatais e as outras empresas. O debate também se coloca a respeito
da Eletrobras. No tema, v. BINENBOJM. Regulamentos simplificados de licitações das empresas estatais: o
caso da Petrobrás. In: BINENBOJM. Temas de direito administrativo e constitucional, p. 305-335; FIGUEREDO. A
utilização de regimes licitatórios simplificados pelas empresas públicas e sociedades de economia mista (os
casos Petrobras e Eletrobras). Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.
633
Utilizando-se dessa distinção, mas chegando a conclusões surpreendentes — como o art. 22, XXVII, da
Constituição, com a redação posterior à Emenda nº 19/98, só atribuiria competência legislativa privativa à União
para o caso das estatais que desempenhassem atividade econômica em sentido estrito, não haveria mais base
constitucional para a incidência da Lei nº 8.666/93 na hipótese de estatais prestadoras de serviços públicos, que,
inobstante isso, ainda estariam obrigadas a licitar por conta do princípio republicano, podendo, então, editar
procedimentos licitatórios próprios, desde que respeitantes aos princípios básicos da licitação —, v. GRAU. As
licitações e as empresas estatais após a Emenda 19. Revista Trimestral de Direito Público, p. 70-105, passim. Contra
a ideia de que mesmo as estatais que desempenham atividade econômica em sentido estrito possam se afastar
do dever de licitar, v. PORTO NETO. Constituição Federal: reforma administrativa: licitação nas empresas
estatais. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, p. 18-23.
634
ALMEIDA. O regime licitatório das empresas estatais. In: SOUTO. Direito administrativo empresarial,
especialmente p. 194-197.
635
Art. 28 da Lei nº 13.303/2016: (...) §3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista dispensadas da
observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações: I – comercialização, prestação ou execução,
de forma direta, pelas empresas mencionadas no caput, de produtos, serviços ou obras especificamente
relacionados com seus respectivos objetos sociais; (...).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
199

como dissemos várias vezes, simplificação equivocada. Em muitos casos há, na prá-
tica, uma integração material entre as atividades de prestação de serviços públicos e
desempenho de atividade econômica em sentido estrito, sem falar que, hoje em dia, a
própria prestação dos serviços públicos se faz, preferencialmente, sob o regime da con-
corrência. Além disso, há um problema que decorre dessa distinção, bem observado por
Carlos Ari Sundfeld e por Roberto Pagani Souza: é que ela aproxima demais o regime
das “estatais prestadoras” ao regime da Administração direta, desprezando o próprio
sentido da constituição da entidade sob o regime jurídico privado.636
Da mesma forma, o critério da atividade-meio e da atividade-fim não é o melhor, e isso
por diversas razões. Ele acabou sendo adotado pela Lei das Estatais, no art. 28, par. 3º,
II, então a crítica continua válida. Em primeiro lugar, seu habitat preferencial é o mundo
dos exemplos de manuais, não a realidade. Ele se mostra fácil de ser definido na teoria —
e difícil de ser identificado na prática.637 Uma empresa é um complexo organizacional
em que as partes estão intrinsecamente associadas. O que é atividade-meio de uma
estatal petrolífera? Alugar sondas tem mais a ver com a atividade-fim do que, digamos,
alugar armazéns, mas, e se o armazém se destinar a guardar peças de sondas? De mais
a mais, não seria injusto com seu potencial competitivo se ela tivesse que burocratizar
todas as potenciais aquisições vinculadas às atividades-meio? Será que isso, no final
das contas, não comprometeria sua competitividade?
Às vezes, a contratação de atividade que não tem a ver com a atividade-fim de-
sempenhada pela estatal — no exemplo de Floriano Marques Neto: consultoria para
realizar reorganização administrativa — pode revelar estratégia da empresa e com-
prometer sua capacidade de competir. Digamos que haja premência na reorganização
administrativa; a empresa, de modo tendencialmente anticoncorrencial, teria que licitar
o serviço, que, repita-se, sem dúvida está vinculado a atividade-meio, mas repercute
em toda a estratégia empresarial? Uma empresa, estatal ou não, é um todo produtivo. É
complicado submeter partes de suas atividades, a partir de critério abstrato — “meio”
e “fim” —, a regimes jurídicos aquisitivos distintos, quando se sabe que, muitas vezes,
o diferencial da empresa está no modo como ela organiza suas atividades-meio para
bem desempenhar suas atividades-fim.638

636
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 13-30: “Ainda que o diagnóstico do problema fosse correto (sem dúvida, não é indiferente
a atividade exercida pela empresa estatal e o regime jurídico que a disciplina), o remédio foi exagerado: as
empresas estatais prestadoras de serviço público, de acordo com este pensamento, têm um regime por demais
semelhante ao regime comum da Administração Pública, como se não fossem empresas nem precisassem agir
empresarialmente” (p. 21). “O efeito produzido por esta classificação das empresas estatais, que as aparta
em ‘prestadoras de serviço público’ e ‘exploradoras de atividade econômica’, então, é grande: neutraliza-se
a despublicização pretendida com a opção legislativa pelo figurino empresarial. Cai por terra a ideia original
da despublicização (maior agilidade, flexibilidade e comprometimento com resultados) que presidiu a criação
de entidades públicas sob o formato empresarial (notadamente no que tange às empresas classificadas como
prestadoras de serviços públicos)” (p. 22).
637
SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito
Administrativo, p. 23.
638
Além de tudo o que se falou no corpo do texto, há pelo menos um caso em que a lei expressamente dispensa
a licitação em atividades-meio de estatal não exploradora de atividade econômica — o que seria um caso
indubitável de exigência de licitação, ao menos para a teoria clássica. É a hipótese em que a estatal vai concorrer
com outras empresas privadas, não necessariamente estatais, pela outorga de uma concessão ou permissão
de serviço público. Leia-se o art. 32 da Lei Federal nº 9.074: “A empresa estatal que participe, na qualidade de
licitante, de concorrência para concessão e permissão de serviço público, poderá, para compor sua proposta,
colher preços de bens ou serviços fornecidos por terceiros e assinar pré-contratos com dispensa de licitação”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
200 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

O melhor critério não é a licitação apenas para as atividades-meio, quando isso,


muitas vezes, mostra-se indefinível e/ou intrinsecamente ligado à atividade-fim, com
repercussão na competitividade da estatal. Tampouco é a aposta na desgastada distin-
ção entre estatais prestadoras de serviços públicos e estatais desempenhando atividade
econômica. O critério constitucionalmente adequado é a presença ou não de ambiente
de competição no desempenho da atividade da estatal. O critério é, portanto, a concorrencia-
lidade da atividade.639 Pode-se até falar numa leitura da necessidade de submissão das
contratações das estatais à regra da licitação a partir da proporcionalidade-adequação,
mediante a seguinte pergunta: nesse caso, a submissão da contratação à licitação é ou
não adequada para a realização do melhor interesse público, entendido este como a
aquisição da melhor proposta à Administração Pública, em igualdade de condições
oferecidas a todos os potenciais interessados, sem que isso impeça a realização do objetivo
social da estatal?
Indo além, Floriano de Azevedo Marques Neto indica três padrões para hipóteses
de anticoncorrencialidade: (i) situações de incompatibilidade entre o procedimento lici-
tatório e a natureza do objeto da contratação (pela exposição de informações sigilosas ou
estratégicas); (ii) falta de sintonia entre a velocidade exigida pelo contexto empresarial
e os prazos da licitação; (iii) impossibilidade de definição dos contornos da contratação
ou de sua precificação à luz da realidade comercial da atividade da estatal.640
Embora concordemos com as três situações-padrão, é importante cercar-se de
cuidado em relação às hipóteses (i) e (ii), já que não seria pouco provável que dirigentes
de estatais, no afã de se verem livres da exigência da licitação, carregassem nas tintas de
um inexistente sigilo empresarial, ou sublinhassem a demora do procedimento como
impeditivo absoluto. Ora: sigilo empresarial existe em muitas empresas estatais — são
empresas, afinal —, mas, junto a ele, há o princípio constitucional da publicidade como
comando a ser maximizado (mais sobre isso à frente). E é natural que um procedimen-
to — uma sucessão de atos no tempo — seja mais demorado do que uma contratação
imediata ou simplificada. Faz-se mister alguma tolerância, pois, a valer o argumento de
que a demora torna a licitação incompatível com o propósito concorrencial de muitas
das estatais, nunca mais elas contratariam por intermédio de licitação.641 As situações
e hipóteses de anticoncorrencialidade devem ser alegadas e interpretadas, como sói
acontecer, à luz da boa-fé e da honestidade de propósitos. Em termos de Direito Positivo,

Como vai ficar claro a seguir, o dispositivo legal está em perfeita consonância com o critério que adotaremos (a
concorrencialidade da atuação da estatal).
639
“É por isso que defendo que o crivo para se verificar se uma empresa estatal deve ou não observar regras
formais de contratação atinentes ao regime de direito público deve ser a verificação (e suficiente demonstração)
no caso concreto da incompatibilidade entre o procedimento (ou formalidades a ele inerentes) e a finalidade da
contratação alvitrada no âmbito da atividade competitiva por ela exercida” (MARQUES NETO. As contratações
estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO. Direito administrativo: estudos em
homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 588). “Relevante, sobretudo, é a circunstância de serem
empresas — que desenvolvem suas atividades, portanto, de acordo com o modus operandi empresarial — e,
ainda, será a circunstância de disputarem fatias de mercado em pleno regime de competição, de sorte que
não se possa simplesmente enquadrá-las no regime comum de licitação estabelecido para a Administração
Pública não empresarial, qual seja, o da Lei nº 8.666/93” (SOUZA; SUNDFELD. Licitações nas estatais: levando
a natureza empresarial a sério. Revista de Direito Administrativo, p. 25).
640
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 593-594.
641
Basta ver que, na própria Administração Pública direta, onde nunca houve dúvidas sobre a submissão ao
dever de licitar e às regras gerais da Lei Federal nº 8.666/93, são muitíssimo comuns alegações injustificadas de
urgência para justificar contratações diretas.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
201

as hipóteses de não incidência de licitação podem ser reconduzidas à fatispécie do caput


do art. 25 da Lei de Licitações (“inviabilidade de competição”).
Em síntese, e aplicando nosso “princípio” do pragmatismo, acreditamos que
os dois artigos da Lei de Licitações que determinam a submissão das estatais a seu
regime são, em muitas incidências, inconstitucionais, porque importam a produção de
consequências prováveis que, num futuro de curto ou médio prazo, desigualarão as
estatais em relação às demais empresas privadas.
Assim, o critério para saber se se deve licitar — já se admitindo que as estatais
possam adotar procedimentos licitatórios próprios, tal como eventualmente autorizado
por leis específicas — é o do ambiente de competição no desempenho da atividade da empresa.
Estatais competitivas podem não licitar; e, nas hipóteses em que o façam, só o farão para
atividades que não repercutam negativamente sobre seu desempenho empresarial, e
conforme a seus regramentos próprios.
Desenvolvidamente, tais hipóteses anticoncorrenciais são situações de quebra de
sigilo, tempo da licitação incompatível com o dinamismo empresarial, ou impossibili-
dade de precificação ou definição do objeto a ser licitado — hipóteses que devem ser
analisadas e justificadas caso a caso, lembrando que segredos empresariais não existem
a toda hora, menos ainda em entidades integrantes da Administração Pública, e que
alguma demora é aceitável para um procedimento licitatório.642

1.2.9 Algumas questões trazidas pela Lei das Estatais sobre licitações e
contratações destas entidades.
Em 2017, legem habemus. A Lei nº 13.303/16, a Lei das Estatais, rege, em seu Título
II, as licitações e compras das estatais. Algumas das discussões indicadas no item an-
terior estão, em boa medida, encerradas. Mas outras surgem.
Analisemos, neste item, alguns pontos de seu regime de licitação e de contra-
tos, com a ressalva de que a matéria é nova. A despeito de já haver algumas obras
importantes,643 ainda não há volume na análise doutrinária, e a jurisprudência dos
tribunais e das cortes de contas não teve ocasião de se manifestar.
Em primeiro lugar, é de se notar que a inspiração direta do regime de compras das
estatais é o Regime Diferenciado de Contratações (instituído pela Lei nº 12.462/2011), com
alguns trechos trazidos da Lei nº 8.666/93. A lei adotou, ainda, o critério da atividade-
meio e atividade-fim, em seu art. 28, par. 3º, I, como base para o que se deve licitar, e
que se pode contratar diretamente. O critério, como se viu, não é dos melhores, pois
tudo pode ser “fim” numa empresa bem organizada. Apesar da menção legal, não há
como o legislador identificar, de modo preciso, o que seja a atividade-fim da estatal.
Há, apenas, critérios de identificação. Vejamos.
A lei fala em comercialização, prestação ou execução, (i) de forma direta, de
produtos, serviços ou obras (ii) especificamente relacionados com os objetos sociais das

642
Para as estatais que operam o monopólio público, não há sentido em não licitar, ainda que venham a fazê-lo
por procedimentos simplificados. Nesse sentido, v. CARDOZO. O dever de licitar e os contratos das empresas
estatais que exercem atividade econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo
econômico, v. 2, p. 802-804.
643
Por todos, veja-se ARAGÃO, Alexandre. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades
de economia mista. São Paulo: Forense, 2017. Ainda, cf. JUSTEN FILHO, Marçal (Org.) Estatuto Jurídico das
Empresas Estatais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
202 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

estatais. Do que se trata? Prestação, comercialização ou execução (i) direta é que se faz em
nome próprio, ainda que com o auxílio de terceiros. Assim, se a estatal vende plasma,
ela não precisa licitar esta venda, por mais que parte da operação (ex. a distribuição,
o marketing) haja sido terceirizada. A BR Distribuidora não precisa licitar a gasolina
que vende na rede de postos Petrobras. O que importa é que a atividade central seja
titularizada pela estatal, e que ela seja o foco de imputação de responsabilidades. É
dizer: não há sinonímia entre as expressões “de forma direta” e as expressões “de forma
unipessoal” ou “de forma exclusiva”. (ii) Especificamente relacionado com o objeto social
da estatal não quer dizer o mesmo que especificamente indicado/listado no objeto social
da estatal. Até porque objetos sociais não são catálogos de compras ou listas exaustivas
de atividades. Se a estatal possui, como objeto social, a geração de energia por meio de
centrais termonucleares (ex. Eletronuclear), está especificamente relacionado a seu objeto
a venda de energia elétrica, mas também a venda de tecnologia não restrita associada
a esse mister, ou a elaboração de projetos com uso civil de tecnologia nuclear. Realizar
interpretação restritiva do art. 28, par. 3º, I, da Lei das Estatais, especialmente quando
a empresa estiver buscando vender algo, pode manietar fontes interessantes de receita.
Outra hipótese em que se contrata diretamente, pela Lei das Estatais, é quan-
do a escolha do parceiro está associada a “oportunidades de negócio definidas e
específicas”.644 A hipótese enquadrar-se-ia conceitualmente na inexigibilidade de lici-
tação — pois não haveria competição possível —, mas é salutar, diante de vacilações
das instâncias de controle, que o legislador deixe clara a possibilidade. Ninguém licita
affectio, ninguém licita oportunidade de negócio. Se empresa chinesa oferece à Petrobras
transferência de expertise em troca da aquisição de ativos e de abertura de mercado (e
a proposta é firme, com responsabilidade assumida em contrato), é plausível cogitar a
contratação direta. Por outro lado, cabe aos administradores de estatais não abusarem
da válvula de escape: se se alegar que tudo é oportunidade específica de negócio, em
breve os tribunais de contas farão com que nada seja.
Falando de Petrobras, um dispositivo chama atenção: o art. 1º, par. 5º, afirma
que a Lei das Estatais é aplicável a empresa pública e sociedade de economia mista que
participem de consórcio como operadora.645 O dispositivo possui duas possibilidades
interpretativas: uma, redundante; outra, possivelmente problemática. Se o dispositivo
quer dizer que, por exemplo, a Petrobras, ainda quando participante de consórcio
petrolífero na condição de operadora, continue tendo que, para suas compras internas,
aplicar a Lei das Estatais, a lei está proclamando uma obviedade. Consorciada ou não,
a empresa não deixa de ser estatal, e, decerto, haverá que aplicar a Lei das Estatais (que,
por sinal, revoga expressamente a base legal para o Regime Licitatório Simplificado da
Petrobras — este deixa de existir646).
Mas a pergunta é: o próprio consórcio estaria obrigado a aplicar a Lei das Estatais?
A resposta parece ser negativa, pois o consórcio, ainda que não possua personalidade

644
Art. 28 da Lei nº 13.303/2016: (...) §3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista dispensadas
da observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações: II – nos casos em que a escolha do
parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e
específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo.
645
Art. 1º, par. 5º. Submetem-se ao regime previsto nesta Lei a empresa pública e a sociedade de economia mista
que participem de consórcio, conforme disposto no art. 279 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, na
condição de operadora.
646
O art. 98, II, da Lei das Estatais, revoga expressamente os arts. 67 e 68 da Lei nº 9.4478/97, que era a base legal
para o decreto do Regime Licitatório Simplificado da Petrobras.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
203

jurídica, é figura distinta dos consorciados. De longa data, os consórcios de exploração


de petróleo celebram acordos de operação — os famosos JOA, joint operating agreement —,
com procedimentos próprios de compras, e que, de modo geral, são compatíveis com
os princípios da Administração Pública (moralidade, isonomia etc.). A se exigir que
o consórcio, tendo a Petrobras como operadora, passe a seguir as regras da Lei das
Estatais, pode-se criar fenômeno de seleção adversa da estatal petrolífera. É assunto a
ser refletido.
A Lei das Estatais, em comparação com a Lei nº 8.666/93, amplia a expressão
pecuniária das dispensas por valor. As estatais podem contratar diretamente, em razão
do baixo valor, obras e serviços de engenharia de até cem mil reais, e serviços e compras
em geral até cinquenta mil (art. 28, incisos I e II). Tais números podem ser alterados,
por decisão do Conselho de Administração da empresa, para refletir a variação de custos,
admitindo-se valores diferenciados para cada sociedade. A lei já fixa um parâmetro — a va-
riação de custos —, de modo que alargamentos que não se justifiquem por ele podem
constituir fraude à lei. Mas o que se há de entender por tal critério?
Há duas possibilidades interpretativas. Variação dos custos pode significar ou (i)
atualização monetária, ou (ii) realidade do padrão de compras daquela estatal. Inclinamo-nos
pela segunda possibilidade. É que, se se tratasse de atualização monetária, o legislador,
a uma, haveria se utilizado de terminologia diferente; a duas, não haveria dito que se
admitem valores diferentes para cada sociedade, pois não seria este o caso: o IGPM apli-
cado a cinquenta ou cem mil não produz valores diferentes.647
É, aliás, compreensível que estatais de grande porte considerem cinquenta e cem
mil valores até modestos, ao passo que, para estatais menores, tais valores representem
um bom acréscimo se comparados aos números da Lei nº 8.666/93. Esse é um dos pontos
de dificuldade da Lei das Estatais: ela é homogênea, e as estatais, diferentes. Por isso,
parece que legislador abriu válvula de escape às diversas realidades das estatais no art.
29, par. 3º, da Lei nº 13.303/2016. Ter-se-ia aqui uma espécie de deslegalização em favor
de decisão de Conselho de Administração de estatal. Ainda assim, e por prudência, parece
que os valores de cinquenta e cem mil devem figurar como referibilidade inicial para
alterações.
Quanto à inexigibilidade, prevista no art. 30, par. 2º, a novidade é que há res-
ponsabilidade solidária entre o contratante e contratado em caso de sobrepreço ou de
superfaturamento.648

647
Esta também parece ser a indicação da interpretação histórica da norma. A Lei das Estatais é fruto do Projeto
de Lei do Senado nº 555/2015, que, por sua vez, baseou-se no Projeto de Lei do Senado nº 167/2015. O PLS nº
167/2015, em seu art. 10, §3º, estabelecia originalmente o seguinte: “No caso das empresas estatais de que trata
o §1º do art. 177 da Constituição Federal, o valor estabelecido no inciso do caput deste artigo pode ser alterado
por decreto do Presidente da República”. Trocando em miúdos, o Projeto de Lei permitia que, no caso da
Petrobras, a dispensa por valor fosse alterada por Decreto do Presidente da República. O Projeto foi alterado
por substitutivo, que ampliou a possibilidade, agora, para todas as empresas estatais, mas ainda por meio de
Decreto. Esse substitutivo foi a base do PLS nº 555/2015, que não só manteve a possibilidade para todas as
estatais — e não apenas para a Petrobras —, mas determinou que a alteração pudesse ser feita pelo próprio
Conselho de Administração, e não mais por Decreto.
648
E quando, numa contratação com fornecedores do mercado externo, estes não aceitam a colocação da cláusula
de responsabilidade soliária? A circunstância é comum em certos mercados internacionais. Em princípio, o
administrador da estatal deve esclarecer aos contratantes que se trata de regra obrigatória nos contratos
firmados com a empresa brasileira, mas é plausível cogitar, à la Karl Larenz, numa cláusula geral não escrita de
excepcionalidade diante de tais circunstâncias. O ponto deve estar justificado, e sofrer controle estrito. Não há
problemas em se identificar uma exceção; o problema é que, de ordinário, “a exceção não encontra limites”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
204 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

O art. 31 da Lei das Estatais estabelece uma série de princípios a reger as lici-
tações e os contratos das estatais.649 Aqui, a reflexão: a lei adotou fórmula clássica de
indicação de princípios. Muito em razão destes princípios, os órgãos de controle se
vêm empoderando, ao ponto de, em alguns casos, tomarem decisões rigorosamente
administrativas em lugar do administrador (como, v.g., em alterações em minutas de
editais, muitas vezes solicitadas pelos tribunais de contas650). Tal controle intenso, em
abrangência e profundidade, tem valido à pena? Alguns, como o professor Carlos Ari
Sundfeld, vêm defendendo uma retração na indicação principiológica.651 Embora análise
rigorosa da eficiência dos controles sobre a Administração Pública ainda seja tema à
procura de autor, é fato que, por mais controle que tenhamos, também tivemos muitos
escândalos. Se ocorreram a despeito ou por causa; ou se os controles teriam evitado
escândalos maiores — é algo que ainda precisamos entender.
É importante lembrar, e já vamos encerrando a digressão, que existe um direito
do administrador ao erro. Controlar-para-responsabilizar é, por vezes, realizar uma en-
genharia reversa de obra pronta, que torna necessária uma sequência de eventos que
era, até se concretizar, apenas possível.
O art. 31, em seu parágrafo quarto, informa que as estatais poderão adotar pro-
cedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e de
empreendimentos previamente identificados. O chamado PMI, que possui base legisla-
tiva geral no art. 21 da Lei nº 8.987/95, é procedimento administrativo destinado a que
o particular realize estudos (jurídicos, de engenharia, orçamentários etc.) e os transfira
ao Poder Público, para que este possa realizar projetos de relevância pública.652 É, em
linhas gerais, boa ideia, que se deve incorporar sem paranoia da participação privada,
mas, também, sem ingenuidade.
A modalidade preferencial das licitações nas estatais é o pregão (art. 32, IV), a
ser normatizado pelo regulamento interno de cada estatal. Ela também pode adotar,
adaptando-o à sua realidade, o regulamento do pregão federal. O art. 32, V, fala que
uma das diretrizes das licitações e contratos das estatais é a observância de uma política
de integridade. Pergunta-se: é possível exigir a adoção de política de integridade como
critério de habilitação ou de manutenção do contrato? Em princípio, parece-nos que
sim, eis que o comportamento íntegro decorre, desde logo, do princípio da moralidade,
aplicável também às práticas privadas, ainda mais quando diante de contratos ou de
possíveis contratos com a Administração Pública. O que não pode ocorrer, no entanto,
é a manipulação da categoria adoção de política de integridade, de modo a excluir concor-
rentes viáveis ou contratados antipáticos.653 Faz-se mister detalhar, no regulamento da

649
Art. 31. As licitações realizadas e os contratos celebrados por empresas públicas e sociedades de economia
mista destinam-se a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, inclusive no que se refere ao ciclo de
vida do objeto, e a evitar operações em que se caracterize sobrepreço ou superfaturamento, devendo observar
os princípios da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade
administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento
convocatório, da obtenção de competitividade e do julgamento objetivo.
650
JORDÃO, Eduardo. A intervenção do TCU sobre editais de licitação não publicados - controlador ou
administrador? In: Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, dezembro de 2014.
651
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos, São Paulo, Malheiros, 2012.
652
SAADI LIMA, Mário Márcio. O Procedimento de Manifestação de Interesse à luz do Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 27.
653
É importante lembrar que a categoria “corrupção” pode ser, ela própria, capturada. Observa André Rosilho
que, “baseado no diagnóstico de que a corrupção — cujo epicentro estaria na liberdade de que supostamente
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
205

estatal, quais são estes critérios de conformidade ética; eles devem ser suficientemente
abertos para permitir uma competição justa; sem falar que este ponto do regulamento
merece análise cuidadosa dos órgãos de controle.
O art. 34 da Lei das Estatais mostra como a compreensão contextual e consequen-
cialista das contratações públicas vem se tornando realidade. Ele afirma que o valor
estimado do contrato será sigiloso, podendo a estatal torná-lo público. Mesmo depois
de adjudicado o contrato, o valor não deve ser publicizado, salvo para os órgãos de
controle (art. 34, par. 3º). O sigilo também se aplica ao particular, que não deve divul-
gar o valor do contrato. O raciocínio da norma é intuitivo: caso o valor estimado do
contrato seja público, as disputas de preço quase que necessariamente tomarão o valor
máximo como alavanca, e as reduções serão menores do que as que poderiam ocorrer
num ambiente em que a expectativa máxima de gastos não fosse tornada pública.
Ainda quando era projeto de lei, havia disposição que tornava público o valor depois
da contratação. Ora, a alavanca estaria ali, funcionando para as próximas contratações
assemelhadas. A alteração veio em boa hora.
Já houve quem se opusesse ao sigilo do valor estimado da contratação, introdu-
zido originalmente no procedimento do RDC. Os argumentos contrários centravam-se
no princípio da publicidade. Em nossa opinião, trata-se de visão algo fundacionalista do
princípio da publicidade, pois, em certos casos, o sigilo não é ocultação antirrepublicana,
mas assimetria estratégica de informações em favor do interesse público.
Inovação da Lei das Estatais, quando comparada à Lei nº 8.666/93, é a circunstância
de que a participação de pessoa física, que integrava diretoria de empresa declarada
inidônea, como diretor de nova empresa, impede a licitação e a contratação desta nova
empresa (art. 38, VIII). A Lei das Estatais, contudo, fala menos do que deveria: em nossa
opinião, a participação da pessoa física em qualquer cargo significativo na nova empresa
já torna a nova empresa incapaz de ser contratada. A explicação para essa interpreta-
ção, que se pode ter como radical, é a seguinte: pela lei, apenas a ocupação do cargo
de diretor (ou cargo assemelhado) traria a incapacidade de contratação. Não é difícil
imaginar que o ex-diretor assumiria, na nova empresa, cargo de assessor, consultor,
ou algo assim. Basta que ele esteja de fato presente na nova empresa para que ela não
possa ser contratada. E, caso sua presença se faça por laranja, a restrição também deve
ser aplicada. Tudo depende, é claro, de prova, mas não podemos ser ingenuamente
restritivos, ainda quando diante de uma “restrição/exceção”.654

gozava a Administração para dirigir os resultados das licitações — deveria ser combatida a qualquer custo, o
Congresso Nacional, capturado, adotou solução bastante curiosa. Valendo-se do discurso, corrente à época, de
crença no Direito e de ampla valorização da importância das regras e princípios jurídicos — incitado, como
visto, inclusive pelo próprio texto constitucional —, buscou anular a capacidade de manobra da Administração
Pública, decidindo de antemão os critérios e procedimentos que conduziriam, pretensamente, à melhor
contratação pública. Entretanto, o que escapou à percepção da comunidade jurídica como um todo — mas não
dos potenciais beneficiados pelas contratações públicas! — foi que as normas jurídicas haviam sido moldadas
de modo a atender não ao interesse do público, mas daqueles que foram capazes de influir no processo
legislativo”. ROSILHO, André Janjácomo. Licitação no Brasil. São Paulo: Malheiros. 2013. Agradeço ao brilhante
mestrando Renato Toledo pela lembrança da referência.
654
Já tivemos oportunidade de nos manifestar mais detalhadamente sobre o tema da “interpretação restritiva das
exceções” em artigo escrito em coautoria. “A questão sobre a correta interpretação ‘restritiva’ das ‘exceções’ é
polêmica. Friedrich Muller, por exemplo, critica a regra interpretativa — que ele considera ‘pseudo-normativa’ —
por duas razões: a primeira é que se trata de um raciocínio circular, já que olha o caso concreto, reputa-o
como ‘exceção’, e, só então, ‘interpreta-o restritivamente’; além disso, porque seu único propósito é ‘deixar
de levar em conta os dados normativos’. Cf. MULLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Paris: PUF,
1996, p.274. Karl Larenz também não vê o tema com a facilidade com a qual a doutrina brasileira faz o uso do
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
206 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Enfim: na parte de licitações, a Lei das Estatais é um RDC adaptado. É claro que
as soluções poderiam ser mais criativas — por exemplo: já é hora de se abandonar a
cada dia mais anacrônica figura das modalidades de licitação —, mas cada doutrina-
dor teria sua própria lei de cabeceira. Há que se trabalhar com o que se tem. Vamos à
parte da lei que trata dos contratos das estatais. O art. 68 é, potencialmente, o artigo
mais importante da Lei das Estatais. Sua dicção é singela: “Os contratos de que trata
esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de
direito privado”. O que há nele de tão importante é o que ele não fala: rejeita-se, por
exclusão, o apelo subsidiário tanto à Lei nº 8.666/93 quanto — e até mesmo — ao direito público.
Prefere-se, na interpretação destes contratos, o que neles está escrito, a Lei das Estatais,
e, então, os preceitos do direito privado. Em rigor, a Lei das Estatais vem antes dos
contratos firmados com base nela, mas é plausível que o legislador pretendeu sugerir
que, na dúvida quanto à aplicação dos preceitos da Lei nº 13.303/2016, deva-se buscar
nos próprios contratos a solução. Mas não é só.
A rejeição ao apelo subsidiário à Lei nº 8.666/93, que até aqui venha sendo feito
por todas as leis que pretendiam “comer pelas beiradas” a Lei de Licitações,655 é signi-
ficativo. Ela vai exigir, dos operadores do direito que atuam com estatais, algo próximo
a uma revolução copernicana. Como vão reagir as cortes de contas? Os tribunais? As
controladorias externas? Até aqui, tudo o que se vem fazendo opera segundo a lógica
do direito público. É o “interesse público” quem dita e desdita comportamentos.
Agora, na dúvida, há que se interpretar o contrato à luz do direito privado, a
partir de todas as suas categorias típicas: liberdade de negociação; pacta sunt servanda;
boa fé objetiva para todas as partes; adimplemento substancial. Pode-se até dizer que
algumas dessas categorias nunca foram exclusividade do direito público, mas, antes,
encontravam-se inseridas numa teoria geral dos contratos, e é verdade. Também se pode
afirmar que uma estatal pode operar homólogos funcionais ao “interesse público” (v.g.,
“interesse estratégico”) para se avocar poderes. Também é possível. Mas a mudança
não deve ser diminuída só por isso. A Lei das Estatais é a primeira lei brasileira que trata de
licitações sem apelar subsidiariamente para a Lei nº 8.666/93. Num exemplo, no qual, pela
Lei nº 8.666/93, há limitada liberdade de negociação com o contratado — já que há,
sempre, um espectro de violação às potencialidades da licitação já ocorrida —, com a
nova lei, tal liberdade se mostra alargada (a despeito de uma reserva geral de licitação,
indicada no art. 72656). Há sempre o risco de se proceder, por inércia, desconhecimento

mote. Num primeiro momento, afirma que, em termos gerais, a afirmação de que ‘as disposições excepcionais
hão de se interpretar de modo estrito e que não são suscetíveis de aplicação analógica’ simplesmente não é
correto. O problema já está em saber quando é que se trata de uma ‘disposição excepcional’. As formulações
das proposições jurídicas na lei ou na Constituição de modo algum decidem, desde logo, a esse respeito. Nos
raros casos em que tal regra interpretativa tem seu valor, este é ‘limitado’, não significando que a disposição
excepcional deva ser interpretada ‘tão estritamente quanto possível’, ou que a analogia esteja excluída em todos
os casos. O que importa é, na verdade, saber a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses”. SOUZA
NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização e fundamentalismo na
interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO,
Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Lumen Juris: Rio de
Janeiro, 2007, p.724.
655
Assim, por exemplo, veja-se o art. 39 da Lei nº 12.462/2011 — a influente lei do RDC: “Art. 39. Os contratos
administrativos celebrados com base no RDC reger-se-ão pelas normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993,
com exceção das regras específicas previstas nesta Lei”.
656
Art. 72. Os contratos regidos por esta Lei somente poderão ser alterados por acordo entre as partes, vedando-se
ajuste que resulte em violação da obrigação de licitar.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
207

ou paranóia, a interpretações retrospectivas — interpretar o presente à luz do passado,


e fingir que o art. 68 não existe657 —, mas as potencialidades estão aí.
Todo os editais e contratos das estatais devem conter uma matriz de riscos (art.
69, X). É natural que, para bens e serviços comuns, tais matrizes sejam simples, talvez
standardizadas, ao passo que, para obras e serviços de engenharia, assumam maior
complexidade e individualização. Na definição legal, a matriz de risco é cláusula
contratual indicando eventos, riscos e responsabilidades entre as partes (art. 42, X).
Costuma assumir a forma de anexo a cada escopo do contrato, com a indicação, em texto
corrido e tabela, de eventos e alocação de responsabilidades (a responsabilidade deve
ser alocada a quem melhor consiga gerenciar o risco; riscos ingerenciáveis cabem, por
tradição, ao Poder Público). A matriz de risco da Lei das Estatais também deve conter,
por determinação legal (art. 42, X, “b” e “c”), algo além do risco: nela se deve incluir o
espaço possível de inovação metodológica e tecnológica, dentro do objeto contratado,
de que dispõe o contratado.
A ideia de matriz de risco é positiva, e vem sendo adotada em leis recentes de
contratações públicas. Há nela, contudo, um paradoxo inevitável: o risco mais grave
é, por definição, aquele que não se consegue prever. O risco previsível já estará, de
alguma forma, precificado. Então, na parte em que é verdadeiramente útil, a matriz
de riscos é impossível; e, na parte em que é possível, ela, apesar de desejável, pode ser
algo redundante.
Quanto à inovação tecnológica e metodológica, parece incidir o mesmo paradoxo:
se a inovação é, por definição, a invenção de possibilidades não previstas,658 ela não
consegue ser identificada e enquadrada numa parcela do objeto contratado. Num con-
trato de longo prazo, pode ser até mesmo do melhor interesse da estatal que a inovação
tecnológica se faça sentir em parcelas maiores do que as que indicadas na matriz de
riscos. Imagine-se que a tecnologia morra inteiramente durante a execução do contrato.
O que a estatal deverá fazer? Continuar comprando tecnologia obsoleta?
Os contratos das estatais podem durar até cinco anos, salvo aqueles vinculados
a projetos incluídos no plano de negócios da empresa, ou quando o prazo maior for
prática do mercado e o prazo inferior a cinco anos impossibilite ou onere excessivamente
o negócio (art. 71). É outro exemplo em que a lei adota válvula de escape, do regime
maximalista legal que ainda hoje caracteriza nossa legislação sobre contratações pú-
blicas, em direção a regime mais minimalista. Em concreto, a lei resolveu assunto que,
por vezes, aparecia na jurisprudência das cortes de contas, com decisões divergentes.
Alteração importante foi a limitação das prerrogativas legais da Administração
Pública. Não há mais a possibilidade de a administração contratante alterar unilate-
ralmente o contrato, tampouco de o rescindir por alegação de interesse público (art.

657
Sobre a interpretação retrospectiva, leia-se a definição de José Carlos Barbosa Moreira: “Põe-se ênfase nas
semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da
matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação em que o olhar
do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da
realidade que uma sombra fantasmagórica”. MOREIRA, José Carlos Barbosa, O poder judiciário e a efetividade
da nova Constituição. In: Revista Forense, nº 304, 1988, p. 152. No texto, Barbosa Moreira criticava a interpretação
constitucional realizada pelos ministros do STF logo após a promulgação da constituição de 1988.
658
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Administrativo e Inovação: limites e possibilidades. Mimeo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
208 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

81).659 Há plausibilidade na tese de que a inclusão de tais prerrogativas é precificada


pelo mercado e encarece a contratação para a Administração Pública.660
Na parte de sanções administrativas, deixa de existir a inidoneidade sem prazo,
tal como a referida no art. 87, IV, da Lei nº 8.666/93 (a inidoneidade da Lei de Licitações
dura “enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição”, ou até que o par-
ticular consiga se reabilitar perante a administração contratante). A suspensão, na Lei
das Estatais, dura no máximo dois anos (art. 83, III). Por outro lado, a nova lei pode
burocratizar a incidência de multas contratuais, pois exige que sejam descontadas da
remuneração devida ao contratado somente após processo administrativo (art. 82, par.
2º). Na prática, há multas cuja incidência é automática: se o fornecedor não entregou
no prazo, é multado. A solução talvez seja procedimentalizar contraditório bem sim-
plificado, diferi-lo, ou entendê-lo inconstitucional. Afinal, se a Esso pode exigir multar
automaticamente seus contratados; se seu locador pode o fazer em relação a seu aluguel,
leitor; por que a Petrobras não o poderia fazer?
A Lei das Estatais traz mudanças importantes. O maior desafio, no entanto,
talvez seja compatibilizar uma regulação homogênea à diversidade das estatais exis-
tentes. Há estatais monopolísticas, estatais que concorrem em ambientes competitivos,
estatais que prestam serviços à Administração Pública, estatais que prestam serviços
públicos; a maioria delas desempenha, no mínimo, dois desses papéis. Além disso, há
estatais federais, estaduais, distritais, municipais. Seus objetos sociais e seus mercados
são radicalmente diferentes. O que há em comum entre a Natex, do Acre, estatal que
produz e vende camisinhas (com látex de seringueiras nativas, é bom destacar), e a
Petrobras? Entre a Eletronuclear e a CEDAE? Entre a Casa da Moeda do Brasil e a BR
Distribuidora? Entre os Correios e a PPSA? Caberá à doutrina e à jurisprudência, com
o tempo, ir operando a adaptações e temperamentos na lei.

1.2.10 Regime de pessoal das estatais: questões clássicas. A captação de


clientela
Quanto ao regime de pessoal, há pouco a ser dito. Ele é celetista, como não poderia
deixar de ser no caso de empresas privadas. A “volta do regime jurídico único”, por vício
procedimental da Emenda à Constituição nº 19/98, não o afetou. Também foi superada
a discussão sobre se haveria necessidade de que o ingresso nas estatais fosse precedido
de concurso público. Após a Constituição da República de 1988, entendeu-se que a
admissão de empregados, passado um período inicial de vacilação jurisprudencial,661

659
A lei também adotou linguagem rígida na possibilidade de revogação da licitação: se, na Lei nº 8.666/93, ela
era possível “por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente
e suficiente para justificar tal conduta” (art. 49, caput, da Lei das Licitações, destaque acrescido), agora, no art. 62,
caput, da nova lei, pode-se revogar a licitação por “razões de interesse público decorrentes de fato superveniente
que constitua óbice manifesto e incontornável”. Quer dizer: para as estatais, revoga-se a licitação por interesse
público quando (i) tal razão é baseada num fato (e não numa opinião ou numa mudança de vontade da empresa);
(ii) este fato sequer dependa de prova: ele é manifesto; (iii) o fato não apenas é pertinente ou suficiente para
justificar a revogação, mas ele é incontornável, o que implica que, na prática, não há outro caminho possível a
não ser revogar a licitação.
660
O argumento é suportado por evidências anedotais, mas não se conhece, até o momento, verificação empírica
da correlação que se alega.
661
Parte da doutrina entendia que, quando o art. 173, parágrafo primeiro, II, da Constituição da República,
fala que as estatais vão se submeter a regime jurídico de direito privado, isso também significaria exceção
à regra do concurso público (art. 37, II, da CRFB/88). Com base nisso, algumas estatais passaram a admitir
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
209

deve ser precedida de aprovação em concurso, não importando se a estatal vai prestar
serviço público ou desempenhar atividade econômica em sentido estrito.662
Em relação às demissões, o tema é mais polêmico. Considerando a forma de ad-
missão, procedimentalizada e tendente à garantia da isonomia, boa parte da doutrina
e da jurisprudência passou a admitir uma garantia contra demissões imotivadas dos
empregados públicos.663 664 É bem verdade que não poder demitir livremente, igualmente
às empresas privadas, pode acrescentar algum dado de não isonomia ao regime das
estatais competitivas. Mas tal dado, funcionalmente idêntico à não isonomia trazida
pela submissão das estatais à admissão de seu pessoal via concurso público, é sacrifício
que se deve admitir em prol da incidência possível dos princípios constitucionais da
Administração Pública (art. 37, caput, da CRFB/88). De qualquer forma, o assunto é
controvertido, e apenas manifestamos nossa opinião, que se associa à ideia da admis-
sibilidade do exercício do poder de polícia pelas estatais.
Também se admite o direito de greve, com as restrições legais a seu exercício
(Lei Federal nº 7.783/89), observando que possíveis aumentos salariais dependeriam
de previsão legal. O art. 37, XVII, da Constituição da República, que veda a acumula-
ção remunerada de cargos, empregos e funções, é diretamente aplicável às estatais. O
teto salarial do art. 37, XI, só é aplicável à empresa estatal dependente dos recursos da
Administração (art. 37, §9º).665

seus empregados sem concurso — coisa com a qual os Tribunais de Contas jamais concordaram. O STF veio a
pacificar seu entendimento, favorável à submissão de todas as estatais ao regime do concurso público, somente
em 23 de abril de 1993, ao julgar o Mandado de Segurança nº 21.322/DF. Só a partir dessa data é que a exigência
passou a realmente valer, porque, para as estatais que admitiram sem concurso entre a data da promulgação
da Constituição e o dia 23 de abril de 1993, concluiu-se que havia um estado de dúvida jurídica razoável, e
as admissões de pessoal foram validadas com base no princípio da segurança jurídica (é o famoso caso das
admissões na Infraero, julgado no MS nº 22.357/DF). Registre-se que há, ainda hoje, quem defenda que, para
as estatais devotadas ao exercício da atividade econômica em sentido estrito, não se deva aplicar a regra do
concurso público diante de certas situações excepcionais, em virtude da regra da igualdade com as demais
empresas privadas. Nesse sentido, trecho de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Embora a Constituição não
o diga de maneira expressa e literal, há outras duas ordens de hipóteses de dispensa de concurso — já agora
para empregos — que hão de ser havidas como implicitamente previstas. [...] Outra, finalmente, refere-se às
hipóteses em que empresas estatais exploradoras de atividade econômica — embora também obrigadas, como
regra, ao regime de concurso público para admissão de pessoal — vejam-se na contingência de dispensá-lo
perante situações em que, se não o fizessem, frustrariam a necessidade de uma atuação expedita inerente ao
cumprimento de seus fins e requerida pelas circunstâncias do momento, ou perderiam a possibilidade de
admitir pessoal qualificado que não se interessaria em disputar concursos, por ser de pronto absorvido pela
demanda do mercado” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 277, grifos no original).
662
Mesmo assim, é válida a observação crítica de Marcelo Féres: “Isso, no entanto, dificulta a contratação de
trabalhadores pelas empresas estatais. Não apenas os custos do certame, mas também e sobremaneira o
formalismo que o reveste, embaraçam a atuação empresarial do Estado” (FÉRES. O Estado empresário:
reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito
do Estado, p. 288). De qualquer forma, há que se ponderar que o concurso é método de contratação que assegura
a isonomia entre todos os interessados. É um trade-off entre eficiência e republicanismo.
663
“Conclui-se, portanto, que, além de se considerar necessária a motivação do ato demissório de empregado
público de uma paraestatal, entende-se necessário que sejam asseguradas as garantias da ampla defesa e do
contraditório, o que não implica reconhecimento de estabilidade aos servidores celetistas, nem mesmo supressão
da discricionariedade da sociedade de economia mista ou empresa pública quando do ato de dispensa”
(CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração, p.
701).
664
No RE nº 589.998 (com repercussão geral), o Supremo afirmou que, embora o celetista não possua estabilidade,
sua demissão deve ser motivada, em atenção aos princípios da impessoalidade e da isonomia.
665
Para uma análise do conceito de estatal dependente, e de eventuais formas de sua superação, cf. SOUZA;
SUNDFELD. A superação da condição de empresa estatal dependente. In: OSÓRIO; SOUTO. Direito
administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 793-828.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
210 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Questão interessante, e que tem a ver com o regime de pessoal das estatais e
com sua natureza de direito privado, ainda assim submetida às regras das entidades
da Administração Pública, é a da possibilidade de promoção do empregado por cap-
tação de clientela, ou em razão de outra prática que soasse mais heterodoxa, agressiva
ou pró-ativa. Pergunta-se se não haveria violação ao princípio da moralidade. Claro
que resposta mais conclusiva dependeria da análise das circunstâncias do caso, mas,
de modo geral, aceita-se e estimula-se postura mais intensa do empregado da estatal,
com a ocasional bonificação por isso, em função de que estamos tratando de empresa
privada eventualmente em concorrência com outras — e concorrência não se faz sendo
gentil, mas arrojado e criativo, ainda que sempre dentro de padrões éticos e legais.666
Tratar-se-ia, aqui, da incidência de certa perspectiva pragmatista: é o contexto da con-
corrência que legitima tal postura.

1.2.11 O controle das estatais: entre a democracia e a ineficiência. O


conhecimento convencional a respeito do tema. Quatro standards
para o controle dos Tribunais de Contas sobre as estatais
O controle das estatais é assunto polêmico.667 Tudo tem origem no binômio ne-
cessidade de eficiência versus importância de se controlar o uso de recursos que são, ou
integralmente ou em parte, públicos, e de uma entidade que se presta a realizar uma ação
governamental.668 Controle tem a ver com a democracia. A accountability — a prestação de
contas, a responsabilização — tem sido vista por alguns como uma nova qualificação
para a democracia,669 apta a superar percebidos déficits democráticos de certas instituições.
Ao mesmo tempo em que incrementa a democracia, o controle — modernamente,
também de eficiência — pode tornar ineficiente a Administração: ele pode se tornar
excessivo; ele tem custos; ele periga torná-la irresponsiva aos reclames sociais.670
O ajuste entre responsabilização democrática, controle de eficiência e a própria
possibilidade de ser eficiente, tudo isso qualificado, no caso das estatais, pela circunstância
de estarmos lidando com entidades que potencialmente concorrerão no mercado com
outras empresas privadas, é tarefa complicada.671

666
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 597: “[...] Não feriria a
ética das relações concorrenciais que a diretoria de um banco estatal promovesse um gerente de agência que
conseguiu trazer para a instituição financeira estatal clientes que eram correntistas do banco privado vizinho”.
Ainda, v. SOUTO; GARCIA. Premiação para empregado de empresa estatal. Revista de Direito Administrativo, p.
177 et seq.
667
“[...] Podermos afirmar que o aspecto do controle das estatais é tido como a maior dificuldade na estruturação
dessas entidades, o ponto crucial” (MEDAUAR. Controle da Administração Pública, p. 75).
668
SUNDFELD. A participação privada nas empresas estatais. In: SUNDFELD. Direito administrativo econômico,
p. 265.
669
Citando a percepção e o exemplo da União Europeia (que realiza uma reforma em seus métodos de controle
de gestão financeira), v. MARQUES NETO. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In:
MODESTO (Coord.). Nova organização administrativa brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de
especialistas constituída pelo Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 196-
197; GARCÍA. Rendición de cuentas y control externo.
670
MARQUES NETO. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In: MODESTO (Coord.). Nova
organização administrativa brasileira: estudos sobre a proposta da comissão de especialistas constituída pelo
Governo Federal para reforma da organização administrativa brasileira, p. 202-203.
671
PELLETIER. L’entreprise Publique de Service Public: Déclin et Mutation, p. 142.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
211

O Anteprojeto destinado a substituir o Decreto-Lei nº 200/67 traz proposta in-


teressante: segundo seu art. 52, no caso das estatais que exerçam atividade econômica
em sentido estrito, o controle deve ser exercido preferencialmente por suas instâncias
de governança corporativa, “observadas as peculiaridades decorrentes da necessidade
de concorrência com empresas privadas”.672
A Lei das Estatais trouxe o art. 90, com a seguinte redação: “As ações e delibe-
rações do órgão ou ente de controle não podem implicar interferência na gestão das
empresas públicas e das sociedades de economia mista a ele submetidas nem ingerência
no exercício de suas competências ou na definição de políticas públicas”.
Além do art. 90 da Lei nº 13.303/2016, há um conjunto de outros dispositivos
normativos, decisões administrativas e judiciais, e argumentos doutrinários que, se
bem compreendidos, podem guiar o intérprete em direção a um controle eficiente e
seguro das estatais. Vamos propor, com base neles, alguns standards pragmatistas para
o controle de sua atuação. Antes disso, uma análise do conhecimento convencional.
Primeiro ponto: incide sobre as estatais o controle político. Em outras palavras,
a Chefia do Poder Executivo pode demitir seus dirigentes. Essa é, possivelmente, a
mais dramática forma de controle, principal motivo de desconfiança contra as estatais
(embora, como dissemos, a proximidade com o Poder Político também traga suas
vantagens; trata-se, no fundo, de um tradeoff). Se são, ou pretendem ser, empresas
privadas geridas de modo profissional, como admitir que um Governador ou Presidente
da República, contrariado em relação a alguma decisão tomada pela empresa pública
ou pela sociedade de economia mista, possa demitir seus dirigentes? Por menos que
isso — já que ninguém duvida de que se trata de entidades de direcionamento e de
controle público, e não de empresas — as agências reguladoras foram criadas com a
característica da estabilidade de seus diretores.
A verdade é: não há o que fazer de modo inteiramente efetivo quanto ao controle
político. A Lei das Estatais toma algumas medidas, como a exigência de carta anual
indicando se e como políticas públicas serão executadas (art. 8º, I), e a vedação de
indicação de políticos com ou sem mandato para o Conselho de Administração (art.
17, par. 2º, I e II).673 Por outro lado, é fato que o controle político não se faz sem seus
próprios condicionamentos, alguns dos quais originários da própria natureza privada
e empresarial das estatais. Há a pressão da opinião pública, que muitas vezes percebe
e reclama contra a instrumentalização política das estatais; há, no caso das sociedades
de economia mista, o interesse econômico dos acionistas privados, representado por
grupos e associações de minoritários, que, em alguns casos — pensemos nos fundos
de investimento e de pensão —, são tudo, menos desimportantes, seja no plano polí-
tico ou econômico. Nas estatais em que há sócio estratégico, há o próprio contrapoder

672
E, no artigo anterior, a referência é à compatibilidade entre o controle e o propósito da estatal: “Art. 51. O
controle deve ser compatível com a natureza do órgão ou entidade controlados e com a especificidade da
atividade exercida”.
673
A Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores do Ramo Financeiro questiona, em ADI, o art. 17 da Lei das Estatais. Ele proíbe a ocupação
de cargos, no conselho de administração e na diretoria de estatais, por dirigentes de sindicatos e por pessoas
ligadas, nos últimos meses, a partidos políticos ou a campanhas eleitorais. A ADI alega que a lei criminalizou
a militância partidária e sindical, além de haver estabelecido exigências mais rigorosas para as estatais do que
para as empresas privadas (cuja igualdade de tratamento seria exigida pelo art. 173 da Constituição). Nossa
posição é pela constitucionalidade da norma. Cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Dirigentes de estatais:
o critério ficou rígido demais? Disponível em: <https://jota.info/artigos/dirigentes-de-estatais-o-criterio-ficou-
rigido-demais-20012017>. Acesso em: 25 jul. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
212 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

representado por ele (vide, por exemplo, o caso da Sanepar); há, afinal, a pressão do
mercado, que desvaloriza atitudes políticas impensadas.674
O controle político também ocorre em outras circunstâncias. Na hipótese do art.
49, X, da Constituição da República, compete ao Congresso, diretamente ou por uma
de suas Casas, fiscalizar e controlar os atos da Administração indireta. Esta fiscalização
é usualmente exercitada com o apoio dos Tribunais de Contas, mesmo que, em rigor,
nada impeça de, em nome do Congresso (ou, se em nome de parlamentar individual,
agindo este na condição de representante designado do Congresso, de sua Casa ou de
Comissão Parlamentar),675 solicitar esclarecimentos às estatais.
O essencial é a ideia de controle republicano. O Congresso só tem a ver com a
vida de empresas privadas porque nelas está investido dinheiro público e porque se
prestam a realizar objetivos de interesse público. Assim, não pode ir além desses limites,
ou pior, pretender se autojustificar retoricamente a partir deles. Nem tudo na vida de
uma estatal é “interesse público”; os detalhes de gestão da empresa são, salvo exceções
gritantes, coisa dela própria, e que mais bem será cuidada sem que ninguém — salvo
seus próprios acionistas; salvo seus próprios mecanismos internos de responsabilização
e controle, nos quais já consta a presença do Governo e, em muitos casos, de pessoas
próximas ao Congresso — intrometa-se.
Hipótese extrema de controle político é a prevista no art. 139, VI, da Constituição
da República, segundo o qual, na vigência do estado de sítio, pode haver intervenção
nas empresas de serviços públicos — pela literalidade do texto, a intervenção só pode-
ria abranger as estatais essencialmente prestadoras de serviços públicos. Claro que o
estado de sítio não suspende a responsabilização dos agentes públicos perpetradores
de abuso,676 o que não deixa de ser um desestímulo às violações.
Em termos processuais, e agora falando do controle jurisdicional, os atos das em-
presas estatais que não digam respeito à sua gestão interna, e que mais propriamente
digam respeito ao controle republicano, admitem ser desafiados por ação popular, ação
civil pública ou mandado de segurança. São, até, comuns os mandados de segurança
impetrados contra atos de estatais relacionados a licitações públicas, o que se aceita na
jurisprudência,677 e, ainda, contra atos relacionados a concursos públicos, caso em que,
apesar de vacilação jurisprudencial,678 não há a menor razão para serem inadmitidos.

674
Observe-se, contudo, que, formalmente, o controle político/supervisão ministerial não dispõe de aparato capaz
de transformar orientações superiores em comandos juridicamente vinculantes. Com razão, Mario Engler: “Os
dirigentes de empresas estatais não devem obediência formal às ordens administrativas externas. Tais comandos
possuem natureza de mera recomendação, salvo quando editados no exercício de competência regulatória
legalmente reconhecida ou transformados em deliberação da assembleia geral de acionistas” (PINTO JUNIOR.
A estrutura da Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia controlada.
Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 57).
675
“Do relevo primacial dos ‘pesos e contrapesos’ no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma
infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos Estados-Membros — não é dado
criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra
ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder
Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada Câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembleia
Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou
presentação) de sua Casa ou comissão” (ADI nº 3.046. Plenário. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julg. 15.04.04. DJ, 28
maio 2004, grifos nossos).
676
BULOS. Constituição Federal anotada, p. 1164-1165.
677
Enunciado nº 333 da Súmula da Jurisprudência Predominante do STJ: “Cabe mandado de segurança contra ato
praticado em licitação promovida por sociedade de economia mista ou empresa pública”.
678
Assim, por exemplo, no RESP nº 65.872/SP, entendeu-se que “o ato de dirigente de sociedade de economia mista,
na gestão dos negócios da empresa, atuando como empregador, não se qualifica como ‘ato de autoridade’, no
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
213

As estatais podem requerer suspensão da execução de decisões havidas nos mandados


de segurança, e as decisões contrárias a seus interesses estão sujeitas ao duplo grau
como condição de eficácia, desde que os atos aos quais digam respeito as decisões
judiciais sejam atos praticados pelas empresas na prestação de serviços públicos e/ou
sejam relacionados a licitações ou concursos públicos.
O tema que nos interessa de modo especial é o controle parlamentar indireto feito
pelos Tribunais de Contas sobre as estatais, com base nos parâmetros gerais do art. 70 da
Constituição da República.
Comecemos com o dado pragmaticamente mais relevante: a jurisprudência. O pri-
meiro entendimento do STF excluía empresas públicas e sociedades de economia mista
do controle dos Tribunais de Contas. Assim, o Supremo decidiu que o TCU não podia
instalar uma Tomada de Contas Especial para apurar operações financeiras feitas pela
agência de Viena do Banco do Brasil, já que o BB e seus administradores se submetiam
ao regime privado, e não às regras dos administradores de bens públicos — embora,
no acórdão, o STF tenha mencionado que haveria uma exceção “quanto a questões a
envolver dinheiro, bens e valores públicos e atos de administração que causem prejuízo
ao Tesouro”.679 Ao apreciar, ainda na mesma data de julgamento, se o TCU podia ins-
talar Tomada de Contas Especial contra empregado de empresa subsidiária do Banco
do Brasil, que fez operações no Mercado Futuro de Índices BOVESPA, o STF decidiu
da mesma forma.680 É importante ressaltar que, já nesses dois julgados, votaram contra
a maioria o Ministro Carlos Velloso (relator das duas ações) e a ministra Ellen Gracie,
por entenderem que a Constituição seria expressa quanto à admissão da fiscalização
do TCU incidente sobre as estatais (no art. 71, II, da CRFB).
No entanto, ao apreciar o Mandado de Segurança nº 25.181-DF, em 16 de junho
de 2006, a orientação anterior — contrária à admissão da fiscalização do TCU, apesar da
referência à exceção quanto a valores públicos e atos que causem prejuízo ao Tesouro —
foi corretamente superada. Afirmou-se novo entendimento para o art. 71, II, da
Constituição, implicando a submissão das estatais ao controle parlamentar indireto
operado pelos Tribunais de Contas.
Dois dos votos merecem destaque: o do relator, Marco Aurélio, que, segundo a
linha de argumentos que seriam reiterados em outros votos seus a respeito de questões
envolvendo a responsabilização de agentes públicos,681 mencionou que “o momento
é de busca de mudança de postura, aprimorando-se as instituições” e que o crivo do
Tribunal de Contas, a par de autorizado constitucionalmente, seria altamente positivo,
servindo de alerta aos administradores das estatais (ou seja, o Ministro efetuou um
raciocínio consequencialista, decidindo com base nos efeitos de sua decisão na vida
prática). E, de toda forma, equívocos na atuação dos TCs poderiam ser corrigidos pela
apreciação do Judiciário.

sentido atribuído a essa expressão pela legislação de regência do Mandado de Segurança”. V. ainda o RESP nº
164.443/DF e o RESP nº 278.052/PR. Em sentido contrário, e, em nossa opinião, correto, ver Apelação no MS nº
2003.34.00.036352-8/DF.
679
MS nº 23.627/DF, Rel. Carlos Velloso, julgado em 07 de março de 2003.
680
MS nº 23.875/DF, Rel. Nélson Jobim, julgado em 07 de março de 2003. Os dois mandados de segurança foram
apreciados no mesmo dia e julgados de maneira idêntica.
681
V. MS nº 24.584-1, julgado em 09 de agosto de 2007, que tratou do tema da responsabilização de advogados
públicos pareceristas. O “tom” do voto do Ministro Marco Aurélio, também relator nesse caso, foi bem parecido.
A propósito do tema, seja-nos permitido remeter a José Vicente Santos de Mendonça (A responsabilidade
pessoal do parecerista público em quatro standards”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
214 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Já o Ministro Joaquim Barbosa ponderou que não se poderia extrair do “simples


fato” de a natureza jurídica da estatal ser privada uma insubmissão ao controle da
Corte de Contas. A agilidade operacional pela qual se busca imbuí-las com a atribuição
da personalidade privada não poderia imunizá-las aos Tribunais de Contas. A cir-
cunstância de o Poder Público deter mais da metade do capital social, ou, no caso das
empresas públicas, a sua totalidade, seria o quanto bastaria para que se lhes aplicasse
o “princípio da accountability, do qual os Tribunais de Contas constituem expressão de
alta envergadura”.682
Na jurisprudência do Supremo, passado o momento em que se entendia que as
estatais não deveriam prestar contas, hoje o posicionamento é a favor do controle e da
responsabilização dos administradores. Contudo, e aqui já ingressamos nos critérios
doutrinários, o controle e a responsabilização não podem se dar sem parâmetros, pena
de obstaculizar o funcionamento concorrencialmente adequado das estatais. Uma res-
ponsabilização irresponsável e um controle descontrolado, feitos apenas com base no
mote da “coisa pública”, é a antítese do bom funcionamento das estatais.683
Se é perfeitamente razoável abandonar a incidência do “fetichismo da forma
privada” como argumento para torná-las imunes às Cortes de Contas — é só pensar
numa empresa pública, com capital cem por cento público, para identificar o absurdo
da tese —, também não se pode, mercê do controle, amarrá-las no cipoal de burocracias
de que mal e mal a própria Administração direta vai tentando escapar.
Ainda hoje há quem, na doutrina, defenda uma insubmissão das estatais ao con-
trole realizado pelos Tribunais de Contas. O argumento é o art. 173, §1º, da Constituição
da República.684
Não concordamos com isso, porque, se não fosse pelo próprio STF, estaríamos
acompanhados da melhor doutrina685 e mesmo da própria literalidade do texto dos arts.
70 e 71, II, da Constituição. Estatais estão, sim, submetidas aos Tribunais de Contas. O fato
de serem privadas deve ser contrastado com a circunstância de serem entidades inte-
grantes da Administração Pública, até como mote para podar excessos de lado a lado.
Em rigor, elas nem são empresas privadas “comuns”, nem entidades administrativas
“típicas”. Vivem num mundo híbrido que é seu fascínio e sua desgraça. Uma propo-
sição doutrinária que ultrapasse as capturas ideológicas de cada uma das doutrinas
abrangentes que costumam adentrar essa seara da dogmática jurídica seria uma que

682
MS nº 25.181/DR, Rel. Marco Aurélio, DJU, 16 jun. 2006.
683
“O fato de serem seus recursos fornecidos pelo Estado importa na obrigação por este, como empresário, de
fiscalizar e controlar devidamente a atividade da empresa, a fim de que ela atinja o objetivo para a qual foi
instituída, embora esta ação fiscalizadora e controladora por parte do Estado deva se processar sem atingir a
flexibilidade operacional que constitui a razão de ser da existência do ente estatal” (MUNIZ. A empresa pública
no direito brasileiro, p. 29, no mesmo sentido, p. 63).
684
MUKAI. O direito administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais, p. 300-301; FÉRES. O Estado empresário:
reflexões sobre a eficiência do regime jurídico das sociedades de economia mista na atualidade. Revista de Direito
do Estado, p. 285.
685
ARAGÃO. Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas. Revista de Direito Público da Economia –
RDPE, p. 19. Ricardo Lobo Torres defende controle “genérico e global” das entidades da Administração indireta
com personalidade de direito privado, “com o objetivo precípuo de evitar a ilegalidade da ação das estatais,
mas sem lhes prejudicar o funcionamento segundo os métodos das empresas privadas” (TORRES. Controles da
administração financeira. In: MOREIRA NETO (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito
Administrativo: obra em homenagem a Eduardo García de Enterría, p. 637). Não concordamos com o Professor
Ricardo quanto à extensão do controle ser sempre genérica e global. Conforme veremos, há casos nos quais o
controle pode ser específico.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
215

reconhecesse a incidência do controle dos Tribunais de Contas, mas tratasse de dizer não o “se”,
mas o “como”. E é o que pretendemos fazer, propondo alguns standards.
As ideias centrais aos nossos standards são, de um lado, a preservação da efici-
ência, e, de outro, a preservação da accountability das estatais. Nossas propostas estão
afinadas com as ponderações da doutrina quanto à preocupação com custos excessivos
impostos às estatais em decorrência de um sem-número de controles,686 com a preser-
vação do espaço de liberdade negocial e da liberdade para a assunção de riscos das
empresas, com a preservação da característica de entidade descentralizada,687 com a
manutenção de graus ótimos de empreendedorismo e de ousadia responsável (que se
poderia estimular negativamente com uma responsabilização irrestrita), e, afinal, com
a própria preservação do interesse público, na medida em que estatais supervisionadas
de modo indevido são estatais que não funcionam de acordo com o propósito para o
qual foram criadas.
Queremos, aqui, fazer incidir uma preocupação pragmatista sobre o controle
dos Tribunais de Contas nas estatais. Fazer com que seja um controle preocupado com
o contexto no qual elas funcionam, com as consequências de sua própria atuação,688
despido de qualquer vestígio de pensamento fundacional “pró” ou “contra” quem ou
o que quer que seja.
Última observação: rejeitamos a clivagem “atividades-meio” e “atividades-fim”
das estatais. Ainda que, em muitos casos, o critério tenha se mostrado útil, a verdade é
que uma empresa é sempre um todo organizacional. Às vezes, uma atividade-meio é
a chave para o sucesso da atividade-fim e, em incontáveis hipóteses, não se consegue
delimitar, excetuando-se obviedades, o que é “meio” e o que é “fim”. Dizer que as
Cortes de Contas só podem controlar as atividades-meio, mas não as atividades-fim,
é generalização que peca por ser simples demais — não fornece melhores parâmetros
operacionais — e é, às vezes, equivocada (como vamos defender, parece-nos ser possível,
por exemplo, o controle sobre a assunção de riscos temerários por parte de um banco
estatal, atividade ligada à sua finalidade).
Não que nossos standards forneçam guias imediatos para a ação — são standards,
afinal —, nem que sejam imunes a objeções, mas esperamos que possam ultrapassar ao
menos nossas próprias críticas. Dividimo-los em standards gerais e específicos, conforme
o grau de especificidade em relação à abrangência do objeto controlado.

686
Citando artigo do jornal O Estado de S. Paulo, de 18 de maio de 1986, Odete Medauar transcreve o seguinte:
“Outro problema que contribui para o inchamento das despesas das estatais, criando o que se denominou de
‘gordura administrativa’, é a necessidade que alguns desses órgãos apresentam de criar novos departamentos
para atender aos controles de prestação de contas a diversos organismos diferentes. O técnico da SEPLAN
disse que, em alguns casos, o número de órgãos aos quais uma estatal tem de prestar contas chega a 17, algo
que, segundo ele, deverá também ser repensado, pois contribui para onerar desnecessariamente as empresas”
(Controle da Administração Pública, p. 85).
687
RIBEIRO. Sociedade de economia mista & empresa privada: estrutura e função, p. 144.
688
“Constata-se, com isso, que a atuação do TCU deve levar em conta não somente as consequências da decisão
no plano estritamente jurídico, mas também no plano dos fatos, notadamente as suas repercussões econômicas,
que são juridicizadas no conceito amplo de legalidade através, sobretudo, dos princípios da economicidade e
da eficiência, que, ao terem sido integrados à Constituição, a Lei Maior, passaram a também integrar o conceito
de legalidade-juridicidade” (ARAGÃO. Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas. Revista de
Direito Público da Economia – RDPE, p. 33). É importante destacar que este artigo possui todo um item dedicado
à perspectiva consequencialista aplicada à análise do controle dos Tribunais de Contas sobre as estatais (item
4 - A perspectiva consequencialista e os princípios constitucionais aplicáveis, p. 31-33).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
216 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Primeiro standard geral: quanto mais próxima ao desempenho de funções públicas, ou


quando no desempenho da prestação de serviços públicos, o controle sobre as estatais é mais
próximo ao que incidiria sobre uma autarquia ou sobre um órgão público.689
A explicação é simples: para muitos dos efeitos práticos, uma estatal, quando
presta serviços públicos, atua como uma autarquia ou um órgão público. É verdade que
ela não será uma autarquia ou um órgão — e isso deve ser respeitado, do contrário a
forma societária não teria valor, o que também é erro, aliás comum no pensamento de
muitos órgãos de controle —, mas o controle deve ser mais próximo, respeitada essa
individualidade empresarial, daquele aplicável a uma entidade administrativa clássica.
Exemplo: decisões da ECT envolvendo a política de distribuição de cartas pelo
Brasil podem ser revistas de modo mais aprofundado do que as referentes à distribuição
de Sedex, campo em que os Correios atuam em concorrência com outras empresas de
courrier. Ao operar com cartas, os Correios atuam prestando o serviço (público) postal
(art. 21, X, da CRFB/88). Natural que tenham de responder conforme a tal prestação,
ainda mais por não ter nenhum concorrente na prestação (conforme decisão do STF
na ADPF nº 46). Outro exemplo: ao atuarem como gestoras de fundos constitucionais
(ex., FPM, FPE), as instituições financeiras oficiais estão plenamente submetidas às
Cortes de Contas.
Segundo standard geral: quanto mais demonstradamente eficientes os mecanismos
internos de controle da estatal, mais suave será o controle dos Tribunais de Contas.
É standard de prestígio dos mecanismos de controle interno da empresa. Ele
visa evitar o desperdício de trabalho. Claro que, para que as decisões dos mecanismos
de governança da empresa estatal sejam respeitadas, é preciso que esses mecanismos
sejam, eles próprios, respeitáveis — e é por isso que o standard fala em “demonstrada-
mente eficientes”. O standard é sutil o suficiente para evitar que controles capturados,
ou existentes apenas para fins de satisfação à sociedade ou aos investidores, sirvam
para evitar a incidência do controle das Cortes de Contas.690
Uma coisa é privilegiar os mecanismos internos à empresa de fiscalização e de
controle — isso é recomendável691 —, outra é aceitar qualquer controle interno como
escape do controle dos Tribunais de Contas.
Primeiro standard específico: atividades administrativas de gestão ordinária, na me-
dida em que exercidas por formas e procedimentos de Direito Público, são controláveis pelos
Tribunais de Contas.

689
“As estatais prestadoras de serviço público estão sujeitas a regras de direito público próprias do regime especial
de prestação de serviços, diferentemente das exploradoras de atividade econômica, que se sujeitam ao regime
típico de direito privado, com as exceções constitucionalmente previstas” (ALBUQUERQUE. Os Tribunais de
Contas e o controle externo das estatais).
690
É até por essa razão que Maria João Estorninho descrê dos controles internos das estatais: “Parece-me tanto
mais importante afirmar as vinculações e os controlos jurídico-públicos, quanto é certo que, na grande maioria
dos casos, os controlos privados a que essas entidades públicas sob formas privadas estão sujeitas, não passam
de uma ficção” (ESTORNINHO. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito
privado da Administração Pública, p. 329).
691
“O conselho de administração passa a funcionar como locus privilegiado da interlocução entre autoridades
governamentais e gestores sociais, reforçando a justificativa da sua existência obrigatória prevista no artigo 239
da Lei nº 6.404/76. [...] A função orientadora e fiscalizadora exercida pelo conselho de administração substitui,
com vantagem, a supervisão ministerial distante e mal aparelhada, bem como outras formas centralizadas
de controle externo com foco restrito e dissociadas da realidade concreta” (PINTO JUNIOR. A estrutura da
Administração Pública indireta e o relacionamento do Estado com a companhia controlada. Revista de Direito
Público da Economia – RDPE, p. 58).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
217

É o controle das atividades relacionadas à admissão de empregados por con-


curso público e às licitações. Atos de admissão de pessoal estão sujeitos a registro nas
Cortes de Contas; atos e omissões havidas em procedimentos licitatórios podem ser
investigados; e, excepcionalmente, pode-se até requerer o envio do edital recentemente
publicado para análise e deliberação.692
Segundo standard específico: decisões empresariais estratégicas não são, em principio,
controláveis pelos Tribunais de Contas.693
Por decisões empresariais estratégicas queremos nos referir, numa lista não
exaustiva, ao seguinte: critérios sobre a forma e o momento para a colocação de produtos
no mercado; estratégias de captação de clientes; critérios de promoção de empregados;
política de descontos e de promoções (que, de toda forma, submetem-se às regras
concorrenciais); decisões acerca de cisões, fusões e aquisições (controladas também
pelo SBDC); política de pagamento de benefícios aos acionistas. Não são, em princípio,
controláveis porque é nelas que reside o núcleo duro da forma privada e da natureza empresarial
das estatais competitivas.
Controlar tais decisões é neutralizar a competitividade das estatais, ao encarecer
o processo produtivo e instalar a política da não ousadia. E o fato é que tais decisões, se
não são controláveis pelas Cortes de Contas, não escaparão a todo e qualquer controle.
Os mecanismos de controle interno, o Judiciário e a própria expectativa do mercado —
com sua premiação ou punição na forma de valorização ou desvalorização das ações —
funcionarão como controles muitas vezes até mais eficientes do que o controle parla-
mentar indireto.
Esse talvez seja o sentido do art. 90 da Lei das Estatais, quando registra que a
atuação dos órgãos de controle não poderá implicar ingerência nas competências das
estatais. Mas o “em princípio” se justifica porque há decisões empresariais estratégicas,
tomadas pela estatal, que podem implicar violação a direitos dos minoritários ou ruína
econômica manifesta da empresa. Nos casos em que o controlador pretende tratorar
minoritários, esbulhando-os economicamente e adotando posturas temerárias — numa
estatal, isso talvez se faça sentir pela adoção de comportamentos em prol de agenda
eleitoral —, a empresariedade da decisão não prefere à necessidade de resguardar o
interesse público. Falando em ousadia, é interessante escrever algumas linhas sobre

692
O art. 113, §2º da Lei Federal nº 8.666/93 afirma que os Tribunais de Contas podem solicitar, para exame,
cópia do edital de licitação já publicado até o dia útil imediatamente anterior ao recebimento das propostas,
impondo medidas corretivas, as quais deverão ser acatadas pelo órgão ou entidade proponente da licitação. Há
polêmica sobre a constitucionalidade do dispositivo (há, inclusive, uma ADI em curso, a ADI nº 934, ajuizada
pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná). Alguns estados, com destaque para o Rio, possuem leis
atributivas de poderes aos Tribunais de Contas locais para que apreciem todas as licitações. A posição atual do
STF é a de que é inválida uma norma tal, que, de modo genérico, submete a realização das licitações à apreciação
das Cortes de Contas; mas, inobstante isso, as Cortes poderão, caso a caso, requerer os editais para realizarem
um controle concomitante. Para detalhes, v. WILLEMAN. O controle de licitações e contratos administrativos
pelos Tribunais de Contas. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo: estudos em homenagem a Francisco
Mauro Dias, p. 299-302.
693
“Mandado de Segurança. Sigilo bancário. Sociedade de economia mista exploradora de atividade econômica.
Fiscalização pelo Tribunal de Contas. Fornecimento de informações. Sigilo bancário. Contrato administrativo.
Operações comerciais. 1. Não configura violação de sigilo bancário a intervenção dos Tribunais de Contas
visando aferir a regularidade de contratos administrativos formalizados no âmbito das instituições financeiras
exploradoras de atividade econômica. 2. Em se tratando de sociedades de economia mista ou de empresas públicas
referidas no art. 173 da Constituição Federal, a fiscalização dos Tribunais de Contas não poderá abranger as atividades
econômicas das instituições, ou seja, os atos realizados com vistas ao atingimento de seus objetivos comerciais. 3. Recurso
ordinário parcialmente provido” (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 17.949/DF. Rel. Min. João
Otávio de Noronha. DJU, 26 set. 2005, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
218 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

o controle pelos Tribunais de Contas do risco assumido pelos executivos das estatais.
Em nossa opinião, só é ilegal o risco temerário. Então, num primeiro momento, se o
administrador do banco estatal tomou a decisão de assumir risco com base em indica-
dores confiáveis, documentação acreditada, de modo conforme às melhores práticas do
mercado, nada há de ilegal, mesmo quando a situação afinal gere prejuízo a acionistas
e/ou correntistas. Há um direito ao erro na gestão de estatais.694 As Cortes de Contas podem
pretender responsabilizar ex post o administrador que agiu de modo irresponsável, mas
não o executivo arrojado. Quais os limites entre um e outro? O assunto é complicado,
envolve dados de psicologia social, percepção de mercado, e, até, considerações morais
nas quais não pretendemos ingressar.695 Gestão ordinária, instrumentalizada por forma
pública, é controlável. Decisões empresariais estratégicas, em princípio, não. É simples
assim? Nunca é. Uma grande licitação pode estar envolvida na concretização de uma
decisão empresarial estratégica — e, mesmo assim, será controlável. Uma decisão em-
presarial estratégica pode estar contida num ato realizado sob procedimento de Direito
Público: realizar mais concursos públicos para determinado setor da empresa; deixar de
fazer para outro. Mesmo assim, controlável. Outras situações poderiam ser pensadas.696
De qualquer forma, é bom ter em mente que há um dever jurídico de controle
das estatais, que, ainda que deva ser compatibilizado com a necessidade de eficiência,
continua sendo exigência constitucional e republicana. Odete Medauar faz uma pergunta
interessante: “As estatais são incontroláveis? Ou o poder central cria um arcabouço de
controles para simular o intuito de não controlá-las?”.697
Mais importante do que criar controles ou reforçá-los, controles que, por vezes,
desnaturam a característica de entes descentralizados das estatais, é fazer com que
funcionem adequadamente. De modo sensível, sim, à natureza privada das estatais
competitivas, mas também de maneira não capturada e efetiva.

694
Em rigor, a expressão “direito ao erro” não é precisa. Por ela, pretende-se afirmar que os órgãos de controle só
podem controlar a decisão ruinosa pelo processo, pelos fundamentos e pelos métodos adotados no momento
da tomada de decisão, lembrando que há elementos incontroláveis em todo resultado positivo ou negativo. Se
os órgãos de controle agirem procurando um whipping boy a cada resultado ruim, além da manifesta injustiça,
é plausível cogitar da ocorrência do fenômeno da fuga do bom servidor. Além disso, é importante lembrar que,
por vezes, o protocolo atual da decisão “segura” precisa ser mudado, e é justamente a decisão “imprudente”
que vai instaurar um novo — e melhor — protocolo. Acender as fogueiras da Inquisição na Administração
Pública é, virtualmente, matar a inovação. Se isso já é suficientemente ruim na Administração Direta, é ainda
pior em relação a estatais competitivas.
695
Para interessante discussão sobre nosso exemplo, v. SANDEL. Justice: What’s the Right Thing to do?.
696
“Em conclusão, e como já referi anteriormente, estas entidades públicas sob formas jurídico-privadas deveriam
estar (tal como, aliás, na minha opinião, as empresas públicas) sujeitas directamente à fiscalização do Tribunal
de Contas, em especial devido à sua íntima relação com o Estado e à utilização de dinheiros públicos. Parece-me,
no entanto, útil e realista, distinguir o controlo do sector público administrativo e o controlo do sector público
empresarial, procurando criar vários ‘níveis’ de fiscalização, de modo a permitir alguma flexibilidade. Aliás,
parece-me que seria bastante mais eficiente e desejável que a competência do Tribunal de Contas fosse alargada
em termos qualitativos e não quantitativos. Em relação a estas entidades públicas sob formas privadas, entendo
ser indispensável e urgente a existência desse controlo, ainda que seja apenas ‘a posteriori’ e ainda que seja
apenas em termos de legalidade. É também de ponderar a existência de controlos obrigatórios e facultativos,
de modo a permitir uma actuação seletiva por parte do Tribunal de Contas o qual, eventualmente aliviado de
certas tarefas de rotina e menos significativas do ponto de vista financeiro, poderia dedicar-se inteiramente às
questões onde verdadeiramente se ‘jogam’ hoje os dinheiros públicos” (ESTORNINHO. A fuga para o direito
privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública, p. 331-332).
697
MEDAUAR. Controle da Administração Pública, p. 86.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
219

1.2.12 Estatais e princípios constitucionais da Administração: a


incidência da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da
publicidade e da eficiência
Tema que já foi tangencialmente aludido é a submissão das estatais à incidência
dos princípios constitucionais da Administração Pública. O fato de possuírem natureza de
direito privado, mas pertencerem à Administração Pública, gera aqui também uma
série de consequências. A incidência dos princípios do art. 37, caput, da Constituição
da República — legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência — faz-
se de modo peculiar, jamais para lhes negar força normativa, mas para adaptá-los ao
conflito entre dinamismo empresarial e caráter público.
Passemos a um batimento entre os princípios e suas especificidades na incidência
junto às estatais.
A incidência da legalidade não pode se entender como necessidade de autoriza-
ção específica para cada ato. Se esse tipo de pensamento já está superado no Direito
Administrativo,698 no Direito das Estatais ele é, simplesmente, absurdo operacional, para
não falar numa flagrante inconstitucionalidade em termos pragmatistas. A depender de
autorização legislativa para cada contrato a ser firmado, cada convênio a ser celebrado,
cada operação a ser efetuada, a estatal seria a menos competitiva das empresas, ou a
mais inútil forma de se desburocratizar a prestação de serviços públicos.
A incidência da legalidade às estatais se faz como uma autorização operacional
genérica na lei que autoriza sua constituição e como um não descumprir as leis do país. Se
fôssemos pensar no antigo (e falso) binômio entre os sentidos da legalidade para a
Administração e para o particular — poder fazer tudo o que a lei não proíbe e só fazer
aquilo que a lei expressamente determina —, as estatais estariam mais próximas do
primeiro sentido. Como contemporaneamente se entende que não há fórmulas rígidas
para a incidência da legalidade junto à Administração,699 pode-se afirmar que as estatais
cumprem-na ao realizarem seu objetivo social (autorizado por lei) e ao não violarem
norma jurídica alguma.
A impessoalidade não significa obrigação de tratamento rigorosamente idêntico
a todos os potenciais usuários ou interessados nos bens e serviços, já que isso pode
significar conduta concorrencialmente subótima. Como alerta Floriano de Azevedo
Marques, um banco estatal não pode ser impedido, à conta da impessoalidade, de
desenvolver produtos específicos para cada padrão de clientela, seguindo a tendência
da customização de serviços; tampouco uma seguradora pública poderia ser obrigada
a deixar de conceder descontos em função do perfil de sinistralidade de cada um de
seus segurados.700 A impessoalidade também não pode significar, no caso da prestação
de serviço público, obrigação de gratuidade; ou, no exercício de atividade econômica
em sentido estrito, obrigação de uniformidade de preço ou de condições de venda.

698
BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização,
passim.
699
“Pode mesmo dizer-se que a relação de subordinação da Administração Pública à lei, sendo em si mesma
absolutamente indiscutível, inclusivamente em relação à actividade administrativa de direito privado, no
entanto, caracteriza-se, hoje em dia, pela inexistência de quaisquer fórmulas rígidas” (ESTORNINHO. A fuga
para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública,
p. 186).
700
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 597.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
220 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Naturalmente, as diferenciações devem ser justificáveis à luz da necessidade de fazer


frente à concorrência, e, simultaneamente, devem ser reconduzíveis à Constituição.701
Quanto à moralidade: não existe uma moralidade aplicável às estatais que seja
substancialmente diferente da aplicável à Administração como um todo. Não é aceitável
o argumento que, por causa da natureza empresarial das sociedades de economia mista
ou das empresas públicas, pretenda transigir com o patrimonialismo ou a corrupção.
O que há de diferente, aqui, é que existem práticas comuns de mercado que, se
morais, ingressam no figurino da Administração por intermédio das estatais. Já men-
cionamos uma: a promoção por captação de clientela, também supostamente em linha
de tensão com a impessoalidade (quanto ao tratamento da Administração em relação
aos empregados públicos), e que é admissível numa estatal. Já uma promoção graças à
troca de favores íntimos com o chefe não é admissível, seja numa estatal, numa empresa
privada ou na Administração Pública direta.
Outra hipótese: grande cliente da instituição bancária pública pode ser recebido
pelo gerente e ter almoço custeado pelo banco. Esse tipo de “agrado” é aceitável numa
estatal que dependa de fechar o contrato com o cliente. Evidente que o argumento da
concorrência não é desculpa para conduta antiética — até mesmo porque há concor-
rências que se fazem contra todo tipo de consideração moral ou jurídica, e aceitar isso
numa estatal seria o mesmo que legalizar o ilegal —, mas práticas usuais de mercado,
reconhecidas como legítimas por esse próprio mercado, são, em princípio, aceitáveis
numa estatal.702
O princípio da publicidade incide de modo interessante. Na verdade, o interesse
está não no modo de sua aplicação, mas no de sua desaplicação. É a hipótese do sigilo
empresarial. Embora a regra seja a transparência, há casos nos quais a publicidade da
estatal significará perda de competividade, depreciação do valor de ações e sacrifício
do interesse público.703 Ela pode ser aplicável para um projeto inovador, mas não nos

701
Assim, por exemplo, caso se verificasse que a população afrodescendente possui mais chances da incidência de
determinada doença, temos dúvidas sobre se um critério de composição de risco que expressamente excluísse
tal parcela de nosso país da abrangência do seguro fosse constitucional. Ela poderia até fazer sentido sob
o ponto de vista econômico-concorrencial, mas estaria contribuindo para a segregação e a não inclusão da
população brasileira. É de se notar que tal obrigação de compatibilidade com a Constituição aplica-se a todas
as empresas, estatais ou não. De qualquer modo, a seara da saúde é ponto tenso entre demandas econômicas e
considerações éticas (algumas das quais que se podem reconstruir como determinações constitucionais). Não
pretendemos explorar o ponto neste livro. De modo geral, é importante conciliar os impulsos pró-eficiência da
chamada economia dos incentivos com exigências derivadas de exigências de uma moralidade crítica. Sobre o
ponto, v. GRANT. Strings Attached: Untangling the Ethics of Incentives.
702
A ênfase vai para o “em princípio”. A economia de mercado, que, segundo alguns, já nos tornou uma sociedade
de mercado, por vezes busca normalizar o moralmente anormal. É preciso, nesses casos, recorrer a considerações
tiradas de uma moralidade crítica em sentido kantiano, ou, no mínimo, possuir clareza em relação aos valores
por detrás das escolhas implicadas nas práticas (SANDEL. What Money can´t Buy: the Moral Limits of Markets).
Exemplo: pode ser bastante comum, no mercado, a espionagem industrial. É aceitável que a Petrobras espione
suas concorrentes? Essa é das perguntas, como diria o ministro Victor Nunes Leal, cuja simples colocação já
prescinde da resposta.
703
“Obrigasse a lei a divulgação da estratégia competitiva, em especial os custos de produção da empresa em
função da titularidade estatal de seu controle, a igualdade com que todos os agentes econômicos devem ser
tratados estaria vulnerada, e, concretamente, ocorreria direta e indevida vantagem à empresa sob controle
privado, concorrente da empresa sob controle estatal, a esta sendo imposto direto e injustificável prejuízo. Os
efeitos da divulgação da estratégia competitiva de empresa sob controle estatal iriam além da perda da sua força competitiva:
significariam prejuízo de seu acionista majoritário, o que, na espécie, contrariaria o interesse público, pois o Estado
não intervém na exploração da atividade econômica para nela haver prejuízo em competição com empresa
sob controle privado, pois esse prejuízo seria, necessariamente, suportado por toda a sociedade” (DUTRA.
Atividade econômica, empresa sob controle estatal e livre concorrência. Revista Ibero-Americana de Direito
Público, p. 196, grifos nossos).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
221

parece, em princípio, acobertado pelo sigilo a remuneração dos empregados ou execu-


tivos da estatal (a Lei da Transparência — art. 1º, par. único, II — é aplicável a estatais
de todos os entes federativos). Embora haja algumas decisões nesse sentido, há que
se analisar de forma crítica a alegação de que a empresa se tornaria anticoncorrencial
porque se conhece a remuneração dos colaboradores. Veja-se que, no Brasil, há uma
cultura pouco republicana de esconder o contracheque, que aproveita criptoargumentos
para continuar existindo (“posso ser sequestrado” e bizarrices do gênero). Que a ale-
gação de preservação da competição não seja a forma “empresarial pública” de manter
o segredo. Até porque, se a empresa privada quiser contratar o executivo da estatal,
provavelmente vai se aproximar dele, sugerir um valor, e este, se manifestar interesse,
acabará abrindo sua remuneração.
Eficiência: quais suas possíveis incidências e aplicações a essas entidades? Por
exemplo, na promoção de empregados a partir de seus resultados. Na criação de bônus
de produtividade. Na instituição de participações no lucro. E, inclusive, na demissão —
precedida do devido processo legal — dos empregados pouco devotados. Há que se
analisar três espécies de eficiência aplicáveis às estatais: a eficiência-rentabilidade, a
eficiência como ocupação de mercado (ocupação de fatias de mercado) e a eficiência
como realização do interesse público (cumprir as finalidades para as quais a empresa
foi criada).704
Sem retornar à discussão sobre a possibilidade de lucro das estatais, fato é que,
se as duas primeiras eficiências costumam andar juntas, é de se pensar em hipóteses
nas quais há de se admitir algum decréscimo no nível ótimo de lucro, em favor da re-
alização do interesse público primário que justificou a criação da empresa. Exemplo: a
Hemobrás é empresa pública federal que fabrica elementos essenciais para o tratamento
de doenças, chamados hemoderivados (entre outros, plasma e fatores de coagulação).
Trata-se de empresa pública, mas bem poderia ser o caso de uma sociedade de economia
mista. Pensando nesta segunda hipotética natureza jurídica, não seria de todo absurda
a ideia de, sob certas circunstâncias de necessidade objetivamente demonstrada, dimi-
nuir o preço dos hemoderivados, com eventual redução na lucratividade da empresa,
sob o propósito de atender ao maior número de hospitais e doentes.705 Com a Lei das
Estatais, a restrição no nível ótimo de lucro há que ser objetivamente justificada à luz
do potencial atendimento ao interesse público, constando da carta anual.

1.2.13 A extinção das estatais: estatais não podem falir — e talvez isso
não seja tão grave
O último ponto é sobre a extinção das estatais. Aqui entramos na polêmica sobre
a possibilidade de que venham a falir. A explicação usualmente apontada pela doutrina
é simples demais. Costuma-se dizer o que se segue.

704
MARQUES NETO. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO; SOUTO.
Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 598.
705
A situação não muda se, no exemplo, a Hemobras continuar, como o é, uma empresa pública, já que empresa
pública também persegue o lucro. Apenas elaboramos hipótese em que existirão acionistas privados para tornar
o exemplo mais ilustrativo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
222 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Num primeiro momento, o art. 212 da Lei das S.A. excluía, de modo expresso, a
possibilidade de que sociedades de economia mista viessem a falir.706 Nada dizia em rela-
ção às empresas públicas (e alguns até afirmavam que isso era uma das diferenças entre
as duas espécies de estatais: as sociedades de economia mista estavam expressamente
afastadas do regime da falência, e as empresas públicas, ao menos formalmente, não).707
Pois bem: muitos alegavam que o art. 212 era inconstitucional, ao contrastá-lo
com o art. 173, §1º, da Constituição da República. Ao estarem afastadas da falência, as
estatais competitivas ganhariam vantagem concorrencial em relação às demais empresas
privadas, o que seria inconstitucional, até diante do texto da Constituição anterior, de
1967/1969.708
Outros faziam a distinção de sempre: as estatais prestadoras de serviços públicos
não poderiam falir, em virtude do princípio da continuidade do serviço público; as
estatais que desempenhassem atividade econômica em sentido estrito poderiam falir.
Eis então que o artigo 242 foi revogado, sem maiores explicações, pelo art. 10 da
Lei Federal nº 10.303/01. Os que defendiam a inconstitucionalidade do art. 242 viram
em sua revogação um atestado de vitória: estávamos certos, tanto que o próprio legis-
lador revogou o artigo.
A (suposta) vitória durou pouco, porque, com a edição da Lei de Falências e
de Recuperação de Empresas — a Lei Federal nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 —,
voltou-se a afirmar, no art. 2º, I, que a lei (e, portanto, seu regime jurídico) “não se aplica
a empresa pública e sociedade de economia mista”.709
Ou seja, tudo retornou, ao menos formalmente, a como era antes da revogação
do art. 212 da Lei nº 6.404.
Pois bem: estatais podem falir? Em caso negativo, isso violaria o art. 173, §1º,
da Constituição? Há alguma diferença, neste ponto, em relação ao objeto “prestação
de serviços públicos” ou “desempenho de atividade econômica em sentido estrito”?
Em nossa opinião, estatais não podem falir. A justificativa não se encontra, apenas,
no texto da lei.710 Essa conclusão deriva da circunstância de o regime da falência ser inaplicável

706
O texto era o seguinte: “Art. 242. As companhias de economia mista não estão sujeitas a falência, mas os seus
bens são penhoráveis e executáveis, e a pessoa jurídica que a controla responde, subsidiariamente, pelas suas
obrigações”.
707
Lembrando essa circunstância, CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado
e estrutura da administração, p. 739. Seja como for, havia quem entendesse que as empresas públicas também
estariam afastadas do regime da falência, agora não por causa do art. 212 da Lei das S.A., mas graças a
interpretação simétrica do art. 37, XIX: se precisam de lei autorizativa da criação, também demandariam lei
para autorizar a extinção. Mencionando essa posição, v. GUIMARÃES; TOURINHO. As empresas estatais e a
revogação do artigo 242 da Lei 6.404/76. Revista de Direito Administrativo, p. 190.
708
BORBA. Direito societário, p. 486-487. Além da violação do art. 173 da Constituição da República, há quem fale
numa “flagrante violação das normas de direito societário”, já que as sociedades de economia mista devem
adotar a forma de sociedade anônima, mas acabariam funcionando como sociedade em comandita por ações,
atribuindo ao Estado responsabilidade subsidiária e ilimitada pelos débitos da pessoa jurídica. Com esse
entendimento, Celso Rodrigues Ferreira Júnior (Do regime de bens das empresas estatais: alienação, usucapião,
penhora e falência. In: SOUTO (Coord.). Direito administrativo empresarial, p. 93).
709
Numa nota incidental, a Nova Lei de Falências aumentou o regime de estatais excluídas taxativamente da
falência: se antes eram só as sociedades de economia mista, agora também as empresas públicas o estão. Se isso
serviu algum dia como critério diferenciador entre elas, já não serve mais.
710
Embora esse seja, sem dúvida, um dos mais importantes dados a serem levados em consideração. Leia-se a
afirmação de Fábio Ulhoa Coelho, baseada no texto da lei: “A lei prevê, no art. 2º, a exclusão completa e absoluta
dessas sociedades. Em relação às hipóteses albergadas no inciso I, isso é verdade desde logo. A sociedade de
economia mista e a empresa pública não estão em nenhuma hipótese sujeitas à falência, nem podem pleitear a
recuperação judicial” (Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas: (Lei nº 11.101, de 9-2-2005),
p. 27).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
223

às empresas estatais. O primeiro óbice nem é o mais relevante: as estatais têm sua criação
autorizada por lei, e, em tese, teriam de ter sua extinção também precedida de auto-
rização legal. Considerando que a quebra é um dado do mundo dos fatos que opera
efeitos jurídicos a partir de declaração judicial, poder-se-ia, até, superar tal exigência
(a declaração judicial, que em alguns casos funciona como declaração de vontade do
particular, seria, aqui, excepcionalíssima declaração de vontade do legislador; poder-­
se-ia também entender que há permissão excepcional para a extinção via declaração
judicial baseada na regra da isonomia do art. 173, §1º, da Constituição).
O problema não é exatamente esse. Na linha do que é defendido por Marçal Justen
Filho, há a séria questão de que, na falência, nomeia-se credor privado para assumir a
gestão da massa falida. Isso é impensável na falência de uma estatal.711 Alguém ainda
poderia sugerir que se nomeasse gestor público para a massa falida, mas essa solução
não deriva do texto da Nova Lei das Falências. Há, ainda, o problema do vencimento
antecipado das dívidas na falência, que, em tese, ao menos em relação aos bens impe-
nhoráveis — aqueles afetados à prestação de serviços públicos —, violaria o art. 100 da
Constituição da República (regime do precatório), para não falar no argumento-padrão
do eventual comprometimento da continuidade da prestação desses serviços.
Sem dúvida que há um potencial desnivelamento entre empresas privadas e as
estatais competitivas quando se fala que estas não podem falir. Ela opera, por exemplo,
ao criar incentivos para uma atuação mais despreocupada em relação à economicidade,
quase um risco moral (afinal, falir ela não vai). Então, em tese, há, sim, uma situação de
inconstitucionalidade latente nessa imunidade, e em favor das estatais, mas, por outro lado,
não podemos ser tão radicais quanto ao ponto. Em diversos outros aspectos as estatais
saem prejudicadas em relação às empresas privadas simplesmente porque são estatais
e não há outra forma de agir em relação a elas. Exemplos: elas só podem contratar via
concurso público; elas têm de licitar em muitos casos; elas e suas contratantes são fisca-
lizadas pelos Tribunais de Contas, havendo de dispor de meios materiais e de pessoal
para fazer frente a esses custos; alguns de seus atos são desafiáveis via mandado de
segurança, ação popular, ação civil pública. Nada disso é assim em relação às demais
empresas privadas. Estas contratam quem desejarem, pagando o que for; adquirem bens
e serviços, para atividades-meio e atividades-fim, sem processo licitatório; não são em
princípio controladas por ninguém senão por seus órgãos internos.
Então, em nossa opinião, há de se verificar exatamente em que medida uma imu-
nidade contra a falência significa diferencial competitivo tão avassalador pró-estatais, em
contraposição a uma série de obstáculos antiestatais que se aceita em maior ou menor
grau. O ponto é: por mais que se queira, estatais e empresas privadas não são e nunca
serão a mesma espécie de entidade. Não é uma imunidade à falência que vai torná-las
as campeãs do mundo empresarial.
Há alguma diferença entre estatais prestadoras de serviços públicos e estatais
que desempenham atividades econômicas em sentido estrito para efeitos de se admitir
ou não a falência, como alguns sustentam?712
Na medida em que as duas atividades vão se misturando na prática, fica difícil
diferenciar distintos regimes de quebra para as duas espécies de estatais, que, no fundo,
são uma só: são as estatais do século XXI, cada vez mais sofisticadas e insubmissas a

711
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 187.
712
RODRIGUES. Sobre a falência das empresas públicas e sociedades de economia mista, em face da nova Lei de
Falências (Lei 11.101, de 09.02.2005). Revista dos Tribunais, p. 11-32.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
224 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

categorias estanques. O Supremo, no caso da ECT, entendeu que seria impossível dife-
renciar operacionalmente os bens vinculados a uma e outra atividade para a finalidade
de separá-los em penhoráveis e impenhoráveis. Embora sequer concordemos com
essa decisão, os regimes jurídicos dos bens são inteiramente aplicáveis e adequados:
ou um bem é penhorável ou não, e não há maiores dificuldades quanto a isso. No caso
da falência, não. Além do problema da confusão em concreto dos regimes jurídicos, a
própria admissão da falência para as estatais, prestadoras de serviços públicos ou não,
é terrivelmente problemática.
Claro que, de lege ferenda, é desejável que se elabore procedimento falimentar ade-
quado às estatais,713 mas, hoje, a falência não é compatível com a lei que temos, e talvez
sua inadmissão para as estatais não realize — à luz do contexto da competitividade das
estatais, à luz do contexto de que existe uma série de restrições à sua força competitiva —,
em concreto, a inconstitucionalidade que carrega em potência. Além disso, se uma
estatal chega ao ponto em que se discute sua quebra, a verdade é que terá deixado de
ser competitiva há muito tempo.

1.3 A intervenção concorrencial: limites e possibilidades pragmático-


democráticas
Quais limites constitucionais e/ou legais se aplicam à intervenção concorrencial?
Há um “princípio constitucional da intervenção subsidiária do Estado na economia”,
cuja sede é o caput do artigo 173 da Constituição da República? As empresas privadas
possuem direito a ambiente de negócios menos concorrido, baseado na ausência da
concorrência representada pelas estatais competitivas?

1.3.1 Os limites do interesse público e da proporcionalidade


A doutrina indica três limites à intervenção concorrencial do Estado na economia.
A criação de empresas estatais submeter-se-ia a três restrições de índole geral: interesse
público, proporcionalidade, subsidiariedade.714
“O interesse público representa o fundamento, o limite e o critério da actuação
econômica pública e, consequentemente, da iniciativa econômica pública”.715 Não se
justifica a criação de estatal cujo objeto não se reconduza à satisfação de algum interesse
público universalizável. Trata-se, contudo, de limite à própria atividade administra-
tiva como um todo, não apenas à atividade econômica do Estado. A Constituição da
República de 1988, no artigo 173, caput, consagrou tal restrição: a intervenção direta só
se justifica quando necessária a “imperativo da segurança nacional” ou para atender
a “relevante interesse coletivo” — ambos são subcritérios dentro do interesse público
como gênero.

713
Aliás, é importante pensar, até, num procedimento de falência da administração pública direta. O Estado do
Rio de Janeiro, entre a primeira e a segunda edição deste livro faliu. Mas falta lei para regular o que ainda for
possível de ser regulado.
714
Outro possível limite seria a não atribuição, de modo principal e permanente, de poderes públicos típicos de
autoridade soberana a tais entidades. Ver, por exemplo, João Pacheco Amorim (As empresas públicas no direito
português: em especial, as empresas municipais, p. 103-104). Como já tratamos do assunto quando discutimos se
estatal pode exercer o poder de polícia, não o retomaremos.
715
OTERO. Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 124.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
225

A proporcionalidade como limite à intervenção concorrencial também não apresenta


maiores especificidades. A conformação da atividade do Estado deve ser logicamente
adequada ao fim a que se proponha, não deve impor maiores gravames ao particular do
que outras opções com semelhante grau de eficiência e, ainda, deve “compensar”, numa
conta (evidentemente não matemática) entre prós e contras.716 Ou seja, a intervenção
deve ser adequada, necessária e proporcional em sentido estrito.
Alguns extraem do requisito da proporcionalidade-necessidade o fundamento
para a subsidiariedade. Se um dos requisitos da intervenção proporcional é ela se fazer
com o mínimo sacrifício, dentre alternativas semelhantes, aos direitos fundamentais do
particular, daí decorreria exigência de intervenção subsidiária do Estado na economia.
Não concordamos com isso, conforme ficará claro em breve.

1.3.2 A subsidiariedade da intervenção do Estado na economia


O mais importante critério a limitar a intervenção direta concorrencial do Estado
na economia seria o chamado princípio da subsidiariedade.
Sobre esse “princípio”, nada é pacífico, a começar por sua origem e suas diversas
incidências. Aliás, é a partir do relato mais convincente a respeito de sua origem que
surge um dos argumentos contra seu enquadramento como princípio constitucional.

1.3.2.1 Incidências e origem histórica da subsidiariedade


Há diversas incidências para a subsidiariedade.
No plano do Direito Internacional, fala-se numa subsidiariedade da intervenção
da Comunidade Internacional. Antes de a Comunidade Internacional intervir numa
situação local, impõe-se o esgotamento dos recursos interventivos do Governo da região.
Há uma subsidiariedade na União Europeia, essa, inclusive, constante de dispositi-
vos normativos presentes em seus documentos de fundação: a intervenção da primeira
fora de suas atribuições exclusivas só se justifica quando os objetivos não possam ser
suficientemente realizados pelos Estados-Membros.717
Fala-se, ainda, numa subsidiariedade no interior dos Estados, em nível de orga-
nização federativa. Se possível, ou na dúvida, preferem as competências das entidades
administrativas menores antes das maiores — no Brasil, o Município antes dos Estados,
e os Estados antes da União.718

716
“O fim (o interesse público) só justifica os meios (a criação de empresas desta natureza) quando eles sejam
governados pelo princípio da proporcionalidade. O interesse público determina-se aqui como conceito quando
existe uma congruência tal [...] que a afetação de recursos e a programação conducente à criação de uma
empresa desta natureza seja claramente pedida por uma situação que a faça proporcionada e congruente”
(HERNANDEZ. Las empresas municipales de promoción de iniciativas empresariales y de empleo. In:
MORENO (Coord.). Administración instrumental: libro homenaje a Manuel Francisco Clavero Arévalo, p. 1351).
717
VILHENA. O princípio da subsidiariedade no direito comunitário; QUADROS. O princípio da subsidiariedade no
direito comunitário após o tratado da União Européia. Há quem mencione que a subsidiariedade seria, em rigor,
um princípio geral de Direito. Nesse sentido, MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da
regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE, p. 11.
718
SOUZA JÚNIOR. Autonomia municipal e subsidiariedade: competência constitucional do município. Revista de
Direito da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre, p. 15-21.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
226 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Haveria ainda uma subsidiariedade genérica da ação estatal — incluindo a ação


por intermédio do Direito — em relação à sociedade civil: preferência, no que for possível,
à ação da sociedade antes da do Estado.719
Menciona-se, nessa linha, uma subsidiariedade da atuação do Direito Penal: ele só
entraria em cena quando outros meios não penais de solução de controvérsias tivessem
esgotado suas possibilidades.720
Fala-se, ainda, de “princípio da subsidiariedade” como requisito de admissibili-
dade de certas medidas processuais: assim, não se admite uma Ação de Descumprimento
de Preceito Fundamental quando existir outro meio eficaz para sanar a lesão ou ameaça
de lesão (art. 4º, §1º, da Lei Federal nº 9.882/99). Nada disso nos interessa de perto.
O “princípio da subsidiariedade” que nos importa é o da subsidiariedade da
intervenção do Estado na economia. Segundo ele, a intervenção do Estado na economia
só se justifica — “constitucionalmente”, para quem o considera princípio constitucio-
nal — como último caso, nas ocasiões em que o mercado não consiga desempenhar a
contento seus misteres.721
A partir daí, há vários corolários a serem extraídos, mas o principal é o seguinte:
a intervenção estatal é exceção e, como tal, deve ser interpretada restritivamente.722
Quanto às suas origens, nada é claro. Fala-se numa origem a partir de práticas da
Confederação Helvética, mais aí no aspecto federativo.723 Na acepção mais comum, a
que relaciona a subsidiariedade a um empoderamento do indivíduo diante de organis-
mos maiores ou mais distantes, a ideia provavelmente tem origem na doutrina social
da Igreja Católica.724 725 O princípio da subsidiariedade está formulado na Encíclica

719
DOHERING. Estado Social, Estado de Derecho y orden democrático. In: ABENDROTH; FORSTHOFF;
DOEHRING. El Estado Social, p. 129, 157. Na doutrina brasileira, v. GONÇALVES. Estado, sociedade civil e
princípio da subsidiariedade na era da globalização.
720
Nesses casos, o “princípio” costuma aparecer em conjunto com conceitos como ultima ratio da aplicação
do Direito Penal e “princípio” da insignificância. V. MOREIRA. A subsidiariedade como baliza para a
insignificância. Boletim do Instituto de Ciências Penais. Para uma interseção entre a “subsidiariedade do Direito
Penal” e a subsidiariedade da União Europeia, cf. DONINI. Sussidiarietà penale e sussidiaretà comunitária.
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p. 141-183.
721
“No sistema de sociedade aberta e de economia de mercado — que é nosso modelo constitucional — a atividade
econômica pública é complementar da iniciativa privada, dominada pelo princípio da subsidiariedade e
ocupando os espaços vazios dos quais se ausenta a iniciativa privada ou quando esta fracassa” (BARROSO.
Regime jurídico das empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 87). Defendendo o princípio da
subsidiariedade como limite horizontal à intervenção do Estado na economia (o limite vertical, em profundidade,
seria o princípio da proporcionalidade), v. MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da
regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE.
722
“[...] a atividade econômica intereventiva, de parte do Estado, é de cunho excepcional. E, por ser excepcional, a
análise jurídica de sua possibilidade far-se-á com a observância de critérios de interpretação restritiva. [...] Por
isso, em qualquer dos seus papéis — agente normativo, regulador ou produtor —, a intervenção estatal é um
protagonismo contido” (FERRAZ. Intervenção do Estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR
FILHO (Coord.). Direito administrativo contemporâneo: estudos em memória do Professor Manoel de Oliveira
Franco Sobrinho, item 7, grifos no original).
723
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 88.
724
TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 7-34.
725
Também no âmbito do protestantismo podem ser encontradas ideias relacionadas ao princípio da
subsidiariedade. Menciona-se, em especial, a noção de “esfera soberana”, formulada pelo teólogo calvinista
Abraham Kuyper. No “contexto do Direito Constitucional”, tal noção atua como critério “para identificar
instâncias de, por exemplo, totalitarismo político; quer dizer, interferência dos repositórios de poderes
governamentais nas vidas privadas dos subordinados e controle excessivo por agências governamentais dos
negócios internos de instituições que não o Estado” (VYVER. The Jurisprudential Legacy of Abraham Kuyper
and Leo XIII. Journal of Markets & Morality, p. 211).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
227

Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI.726 Na altura de sua publicação, em 1931, a Igreja
Católica estava engajada na crítica à hipertrofia estatal promovida pelo socialismo. É
como alternativa a esse modelo de Estado que a doutrina da Igreja assenta o caráter
supletivo da atuação estatal. Sessenta anos depois, quando o socialismo real já havia
sucumbido na Europa do Leste, o princípio da subsidiariedade voltaria a ser suscita-
do, na Encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II. Transpondo os objetivos iniciais,
João Paulo II utiliza o princípio para criticar o Estado de Bem-Estar Social,727 tal como
vigorava na Europa da segunda metade do século XX:
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que
levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de Estado, o “Estado do bem-estar”. Esta
alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas ne-
cessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa
humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos
mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como “Estado assistencial”.
As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das
suas próprias tarefas. Também neste âmbito, deve-se respeitar o princípio de subsidiarieda-
de: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade
de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de
necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo
em vista o bem comum. (§48).

A versão contemporânea do princípio da subsidiariedade defende padrões cada


vez mais reduzidos de intervenção estatal.728 Segue trajetória similar à do pensamento
liberal. Se, na vigência do socialismo real, os liberais voltavam sua crítica para aquela
configuração econômico-política, com seu ocaso passam a criticar o Estado de Bem-
Estar Social. Primeiro, fazem-no pela denúncia da ineficiência: mobilizam argumentos
pragmáticos centrados no problema dos déficits públicos. Depois, passam a articular
argumentos morais e, para isso, apropriam-se, por exemplo, de versões mais atuais da
doutrina social da Igreja.

726
Os parágrafos em que a Encíclica define o princípio são: “Verdade é, e a história o demonstra abundantemente,
que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam
até mesmo as pequenas; permanece, contudo, imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim
como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria para o
confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades
menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O
fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los” (§79).
“Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância,
que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela
compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade
requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as
várias agremiações, segundo este princípio da função ‘supletiva’ dos poderes públicos, tanto maior influência e
autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação” (§80).
727
Cf. SILVA. Princípio da subsidiariedade. In: BARRETO (Org.). Dicionário de filosofia do direito, p. 789-792,
especialmente, p. 790.
728
V. CIMA; SCHUBECK. Self-interest, Love, and Economic Justice: a Dialogue Between Classical Economic
Liberalism and Catholic Social Teaching. Journal of Business Ethics.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
228 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

1.3.2.2 Quatro fundamentos para a subsidiariedade. A suposta fonte


formal da subsidiariedade
Analisemos quatro fundamentos para a subsidiariedade. Ela estaria vinculada (i)
à ideia de autonomia privada, (ii) à ideia de justiça, (iii) ao pluralismo social e, ainda, (iv)
à dignidade da pessoa humana.
A subsidiariedade realizaria a (i) autonomia privada dos indivíduos. Comentando
a Encíclica Centesimus Annus, Gregory Beabout diz o seguinte:
Centesimus Annus é importante porque fornece uma defesa da economia de livre mercado
baseada na natureza da pessoa humana. Os seres humanos são livres e buscam a liberdade.
Feridos pelo Pecado Original, podemos transcender nossos próprios interesses ao mesmo
tempo que os buscamos. Uma das virtudes da economia de mercado é que ela abre espaço
para a liberdade individual e para a livre-iniciativa, tornando possível trabalhar para o bem
comum de uma maneira que não implique ignorar os interesses pessoais.729

A subsidiariedade também é associada à ideia de (ii) justiça. “O segundo grande


valor a que a subsidiariedade se vincula é a justiça. Aliás, a própria doutrina social
católica [...] assim a concebia, ao proclamar a injustiça de se subtrair aos membros da
sociedade o que eles por sua própria iniciativa e capacidade podem fazer”.730
Terceira associação/fundamento da subsidiariedade: (iii) o pluralismo político. A
seguinte citação, de José Alfredo Baracho, transcrevendo Robert Nozick, é exemplifi-
cativa dessa estratégia de suporte ao argumento:
Não se pode esquecer, como fazem todas as formas autoritárias e totalitárias, das divergências
nas vidas concretas, presas à terra e ao modelo de mundo possível. A construção de tipo
especial de comunidade, na qual o indivíduo deseja viver, não pode esquecer a natureza e
a existência de outras comunidades alternativas, onde as pessoas podem ingressar livremente.
Qualquer tipo de estrutura deverá, primeiramente, considerar que as pessoas são diferentes
entre si: “Diferem em temperamento, interesses, capacidade intelectual, aspirações, inclinações
naturais, anseios espirituais e modo de vida. Divergem nos valores que aceitam e usam pesos
diferentes para aqueles que compartilham (desejam viver em climas diferentes — alguns nas
montanhas e outros nas planícies, desertos, beira-mar, cidades grandes e pequenas). Não
há razão para pensar que haja uma única comunidade que sirva como ideal para todas as
pessoas e há muitas para pensar que não existem”.731

Finalmente, a subsidiariedade decorreria da (iv) dignidade da pessoa humana. Nas


palavras de Paolo Carozza:
A subsidiariedade não deriva sua força de um cuidado instrumental com a eficiência social
ou uma necessidade de compromisso político. Sua base é personalística, antes de contratual
ou utilitária. Ou seja, sua primeira justificação é a convicção de que cada ser humano possui um
valor inerente e inalienável — sua dignidade —, e, assim, o valor da pessoa humana é ontológica e
moralmente superior ao Estado ou a outros grupamentos sociais. Por causa desse valor, todas as

729
BEABOUT. The Principle of Subsidiarity and Freedom in the Family, Church, Market, and Government.
Journal of Markets & Morality, p. 136. Na doutrina brasileira, cf. Floriano de Azevedo Marques Neto (Limites à
abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE,
p. 11-12).
730
TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo, p. 71.
731
BARACHO. O princípio da subsidiariedade: conceito e revolução. Revista de Direito Administrativo, p. 22, grifos no
original. A parte entre aspas corresponde à citação da seguinte obra: NOZICK. Anarquia, Estado e utopia, p. 335.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
229

outras formas de sociedade, da família ao Estado à ordem internacional, devem, em última


análise, estar a serviço da pessoa humana. Seu propósito deve ser o desenvolvimento do
indivíduo.732 (grifos nossos)

Argumentação interessante, na doutrina nacional, pró-subsidiariedade, ainda


com base na dignidade da pessoa humana, é a de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
Ora, se, de um lado, os princípios da ordem econômica espontânea das sociedades humanas
sequer precisariam ser explicitados, por serem conaturais ao próprio conceito fundante de
dignidade da pessoa humana, de outro, todos aqueles que sejam artificialmente introduzi-
dos por construção da razão devem estar necessariamente expressos na Constituição. [...]
Eis a razão pela qual os princípios corretivos devem ter assento expresso nas Constituições:
porque qualquer alteração coercitiva da ordem espontânea só se pode legitimar por uma ação cons-
titucionalmente vinculada do Estado. Partiram, pois, dessas premissas teóricas, as críticas ao
texto original no campo econômico, então expostas, que desde logo sobressaíam como uma
relutância anacrônica, de viés ideológico, em abandonar um modelo de Estado obsoleto
que nos relegava à margem da História.733

A fonte formal para esse “princípio constitucional da subsidiariedade”, que


seria implícito, estaria, quando não na dignidade humana, em alguns preceitos da
Constituição da República, em especial no art. 1º, IV, que eleva o valor social da livre
iniciativa à condição de princípio constitucional fundamental; no art. 170, que caracteriza
o valor social da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica; e no art. 173,
que permite o desempenho estatal de atividades econômicas (em sentido estrito) apenas
para atender a imperativos de segurança nacional e de relevante interesse coletivo.734
Pensando apenas no art. 173, ele seria base para o requisito do interesse público, e, ao
mesmo tempo, fundamento da intervenção subsidiária do Estado na economia.
Além de justo, conforme ao pluralismo, à autonomia privada e à dignidade
humana, e com sede constitucional no texto de 1988, o princípio da subsidiariedade é
apresentado, por seus prosélitos — que, na certa, já adiantam uma das mais importan-
tes críticas que se lhe poderia fazer —, de alguma maneira, como neutro, não dogmático,
flexível.735

732
CAROZZA. Subsidiarity as a Structural Principle of International Human Rights Law. The American Journal
of International Law, p. 5. Com fundamentos próximos a esse — “não obstante a ausência de uma expressa
norma constitucional afirmando o princípio da subsidiariedade da intervenção econômica e social do Estado,
baseando-se a República Portuguesa no respeito pela dignidade da pessoa humana a Constituição terá de
acolher um princípio de supletividade ou subsidiariedade do Estado [...]” — v. OTERO. Vinculação e liberdade de
conformação jurídica do sector empresarial do Estado, p. 34.
733
MOREIRA NETO. O novo papel do Estado na economia. Revista de Direito Administrativo, p. 12, 13 (o itálico
foi acrescentado; o sublinhado corresponde ao itálico do original). Na doutrina brasileira (ainda que baseada
nas lições do italiano Franco Frattini), para uma defesa da subsidiariedade baseada na “centralidade da pessoa
humana”, v. DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização,
parceria público-privada e outras formas, p. 17.
734
Por exemplo, entre tantos, Leonardo Vizeu Figueiredo (Lições de direito econômico, p. 44-45).
735
“O que se alvitra, em resumo, é que, ao balizarem-se as fronteiras entre ingerência e não ingerência estatais — o
que constituiu o cerne da subsidiariedade —, o intérprete não se prenda a posições dogmáticas, mas se abra,
ao revés, ao caráter relativo e flexivo do princípio” (TORRES. O princípio da subsidiariedade no direito público
contemporâneo, p. 118).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
230 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

1.3.2.3 O que é a subsidiariedade: uma diretriz política, não um


princípio constitucional. Críticas à subsidiariedade: razão
pública e pragmatismo. A lição do Texto Constitucional em
vigor. O Direito Comparado
Não concordamos com nenhuma dessas afirmações. Em nossa opinião, o dito
“princípio constitucional da subsidiariedade da intervenção econômica” a) não é prin-
cípio constitucional, mas diretriz político-administrativa de organização do Estado. É uma
orientação política, que, boa ou má, deve ser aceita ou criticada em tal condição. A
subsidiariedade econômica jamais poderia gozar da superconstitucionalidade dos
princípios constitucionais porque isso significaria a constitucionalização de um modelo
econômico, de modo alienante a quem quer que dele discorde. Ela pode ser excelente
diretriz política, mas merece prová-lo na seara da política ordinária, e não no campo
das supergarantias constitucionais.
Além disso, b) a subsidiariedade econômica não tem vinculação necessária com digni-
dade humana, justiça, autonomia privada ou pluralismo político: em alguns casos, trata-se
do contrário.
Por fim, c) o “princípio constitucional da subsidiariedade” não é, e jamais poderia ser,
ideologicamente neutro ou flexível, na medida em que se trata de uma proposição ideológica per-
tencente à faixa irreconciliável de uma doutrina abrangente específica: ela é proposição política
do liberalismo econômico.
Ou seja: a subsidiariedade é argumento político, não jurídico; ela habita o campo
da política ordinária, não o terreno das garantias constitucionais fundamentais; quem
afirma o contrário está produzindo razões doutrinárias não públicas. Em palavras
diretas: o “princípio constitucional da subsidiariedade econômica” não ultrapassa o teste da
razão pública.
Comecemos as críticas a partir de seus alegados vínculos com b) a dignidade
humana, a justiça, a autonomia privada, o pluralismo político. Claro que, superficial-
mente, a subsidiariedade tem muito a ver com esses conceitos. Como negá-lo? Ela centra
o foco na ação humana, e não na atuação corporativa-institucional. Ela, de certa forma,
retira poder do Estado, reenviando-o à sociedade.
O problema é o seguinte: por detrás de todas as alegadas boas intenções do princí-
pio da subsidiariedade está, como uma espécie de contrafação que alguns não percebem,
e outros disfarçam, a ideologia econômica do Estado Mínimo. Por mais flexível que se
queira ou se pretenda; por mais que se afirme que Estado Subsidiário não se confunde
com Estado Mínimo, a verdade é que a subsidiariedade possui um inevitável imprinting
ideológico. Nesse sentido, tais debilitações soam mais como estratégias retóricas de
persuasão do que como compatibilizações lógicas racionalmente defensáveis.
E mais: a subsidiariedade, quando se constitucionaliza via condição de princípio
constitucional, vira limite às possibilidades de escolhas dos cidadãos. Mesmo diante de
situações de interesse público, eles estariam impedidos de solicitar mais intervenção
estatal, exceto como último caso, porque isso seria “inconstitucional”. Estar-se-ia diante
de democracia constitucional-econômica de poucas escolhas: ou menos Estado ou ainda
menos Estado. E, assim, a subsidiariedade passa a atentar contra todos os seus alegados
vínculos de base. Ela não vê o homem e suas opiniões como fins em si mesmos, mas os
instrumentaliza em direção a um propósito econômico. Ao banir do espectro político
posições que lhe sejam contrárias, a subsidiariedade age de modo injusto para com tais
mundivisões. Ela cerceia a autonomia decisória privada do indivíduo, ao lhe indicar um
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
231

único sentido econômico no qual suas decisões possam ocorrer (menos Estado, menos
disciplina econômica, menos intervenção concorrencial). Ela, finalmente, é a antítese
do pluralismo político, porque veda escolhas políticas legítimas.
E afinal: c) o princípio da subsidiariedade é ideologicamente neutro? Não, ele não
é. Da forma como é apresentado pela doutrina brasileira e, em certa medida, mundial,
ele é representativo de uma ideologia: a econômica liberal. Há quem diga o contrário,
mas a defesa é autoanulada em diversas passagens.736 Não teria como ser diferente. Ele
é tão flexível quanto um argumento ideológico pode ser: só aceita o que está dentro
de seu paradigma de compreensão, e rapidamente transforma opiniões contrárias em
espaços de não Direito.
Analisemos algumas estratégicas críticas lançadas contra quem rejeita a subsi-
diariedade — utilizemos o termo “não subsidiariedade” para identificar tal conjunto
de posições.
De fato: muitos que sustentam que a subsidiariedade econômica é princípio
constitucional, e não diretriz política, operam diversas estratégias, que, quase sempre,
associam a não subsidiariedade a algo que ela não é, ao mesmo tempo que reforçam
algumas de suas características secundárias.
Estratégia um: opor um modelo de princípio “constitucional” da subsidiariedade
a um modelo de Estado totalitário. Bom exemplo é a citação de Baracho que fizemos
há pouco. Ora, lançar razões em favor do pluralismo democrático é argumento a favor
da razão pública, e não a favor da subsidiariedade como “princípio constitucional”,
que é, contraditoriamente, um uso que se presta a reduzir a possibilidade de visões
alternativas a respeito de determinado aspecto da vida em comunidade (o grau de
intervenção do Estado na economia).
Em outras palavras: quem é a favor da existência de um pluralismo razoável de
concepções a respeito do que é uma “vida boa” — ou quem não acredita que esse conceito
sequer possa existir — estará contra, e não a favor, da ideia de princípio constitucional
da subsidiariedade econômica, na medida em que esse “princípio constitucional” reduz
o espectro de possíveis escolhas democráticas.
O raciocínio opera, numa apresentação estereotipada, mas útil à compreensão,
conforme a seguinte lógica: somos democráticos; o mundo contemporâneo é comple-
xo; logo, não pode existir Estado autoritário ou totalitário; portanto, a única escolha
possível, em termos de intervenção do Estado na economia, é a do Estado Subsidiário.
Falso. A oposição não é entre Estado totalitário e Estado Subsidiário, mas entre Estado
totalitário e Estado democrático, sendo que, neste último, a intervenção estatal na economia pode
ser maior ou menor, dentro de limites razoáveis (não pode haver abolição à propriedade
privada ou violação ao núcleo essencial da propriedade).
Segunda estratégia: equivaler a não subsidiariedade à antissubsidiariedade. Não é
porque não se acredita no status constitucional de determinada proposição ideológica a
respeito da vinculação de grau mínimo para a intervenção do Estado na economia que se
está defendendo tese oposta, isto é, que a intervenção esteja constitucionalmente imposta

736
Sem personalizar críticas, basta ver, por exemplo, na obra de Sílvia Faber Torres, que a própria autora que
acredita numa flexibilidade e num desprendimento de posições dogmáticas na incidência do princípio da
subsidiariedade é quem vai afirmar, ideologicamente, que “o ciclo do serviço público terminou” (p. 172), além
de, em diversos momentos, defender os movimentos de reforma do estado etc., circunstâncias que nunca foram
a-históricas ou ideologicamente flexíveis.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
232 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

num grau máximo. Isso seria indefensável, a uma, pelo próprio Texto Constitucional, a
duas, porque se estaria sendo vítima do mesmo mal que se pretende denunciar.
Outro argumento próximo a esse é igualar a não subsidiariedade a um predomí-
nio estatocêntrico de algum interesse público genérico e indefinível. Uma coisa é não
acreditar na imposição constitucional de um grau mínimo de intervenção do Estado
na economia; outra é saber qual é o grau ótimo — em termos de política ordinária,
infraconstitucional — que se vai defender. Os conceitos não são vinculados sob ne-
nhum aspecto. Por exemplo: é perfeitamente possível ser um defensor intransigente
do Estado Mínimo, e, ao mesmo tempo, acreditar que ele não esteja determinado pelo
texto radicalmente compromissório da Constituição de 1988.
É importante mencionar, em favor do caráter não constitucional do princípio da
subsidiariedade econômica, algo a respeito do próprio Texto Constitucional em vigor. A
Constituição da República de 1988 pronuncia-se sobre temas econômicos e, em alguns
casos, assume posições no debate ideológico.737 Mas o texto da Constituição Econômica
em vigor é, na essência, compromissório.738 739 É pleno de “compromissos dilatórios”,740
ocasiões nas quais o constituinte originário não quis ou não conseguiu chegar a um con-
senso a respeito de um tema e remeteu sua resolução concreta ao trabalho de densificação
infraconstitucional das gerações e dos legisladores futuros. Não é um texto liberal: lê-lo
assim é interpretar a Constituição “em tiras”, na expressão de Eros Roberto Grau.741
Algumas referências a dispositivos normativos podem demonstrá-lo. No artigo 1º,
ao lado do valor social da livre iniciativa, está o valor social do trabalho; no artigo 170,
além de mencionar novamente o valor social do trabalho como fundamento da ordem
econômica, afirma-se que esta tem por fim “assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social”, e que isso deverá ser feito observando-se os princípios da
“soberania nacional”, da “propriedade privada”, da “função social da propriedade”,
da “livre concorrência”, da “defesa do consumidor”, da “defesa do meio ambiente”,
da “redução das desigualdades regionais e sociais”; da “busca do pleno emprego”, do

737
Cf. SOUZA. Conflitos ideológicos na constituição econômica. Revista Brasileira de Estudos Políticos; BERCOVICI.
Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 11 et seq.
738
Há diversas razões para isso, mas uma das mais destacadas, sem falar na própria complexificação do corpo
social, é a extensão do Texto Constitucional e o surgimento de novas proposições ideológicas no mercado
das ideias. Nesse sentido, Raul Machado Horta: “O alargamento da matéria da Constituição, seja no aspecto
técnico como no ideológico, conduz, correlatamente, no quadro do regime democrático, a uma ampliação do
coeficiente de discordância sobre o conteúdo constitucional, com perda do generalizado consenso que envolveu
as Constituições clássicas e não expansivas” (HORTA. A Ordem Econômica na nova Constituição: problemas e
contradições. In: MARTINS (Coord.). A Constituição brasileira 1988: interpretações, p. 389).
739
Nem se alegue que a Constituição de 1988 é socialmente dirigente. Ela certamente indica objetivos estatais
de longo prazo e possui acentuado caráter social, mesmo depois das reformas. Ocorre que, na raiz do uso da
expressão no Brasil, está a tese do Professor José Joaquim Gomes Canotilho, que escrevia sua edição original
de Constituição dirigente e vinculação do legislador com os olhos postos na Constituição portuguesa de 1976,
que, essa sim, constitucionalizava um modelo específico de Estado. A atual Constituição brasileira não é em
nada semelhante a isso. Nesse sentido: “É bem de ver, no entanto, que a Constituição portuguesa de 1976
trazia em si uma ideologia, um projeto específico de poder, de inspiração socialista. Esse jamais foi o caso da
Constituição brasileira de 1988, que, desde a sua origem abrigou um modelo pluralista. Não se pode assim,
a rigor, dar à expressão constituição dirigente o mesmo sentido em Portugal e no Brasil” (BARROSO. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 215).
740
Sobre o conceito de compromisso dilatório, cf. SCHMITT. Teoría de la Constitución, p. 52 et seq.). Sobre o caráter
compromissório da Constituição Federal de 1988, cf. SILVA. Curso de direito constitucional positivo, p. 44-45, 767-
768; SOUZA. A experiência brasileira de Constituição econômica. Revista de Informação Legislativa, p. 21 et seq.;
COMPARATO. A ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Público, p. 263 et seq.;
BERCOVICI. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 37 et seq.
741
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 166.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
233

“tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis


brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. Há mais.
Ao enumerar os objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República
(art. 3º), a Constituição menciona “construir uma sociedade livre, justa e solidária”
(inciso I); “garantir o desenvolvimento nacional” (inciso II); “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III); “promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação” (inciso IV).
Como se vê, a ordem econômica projetada pela Constituição da República não
é uma ordem estritamente liberal, mas compromissória, que possui não só elementos
liberais, mas também elementos sociais, intervencionistas, nacionalistas. Além desses
princípios e objetivos gerais, propósitos de cunho social conformam regras específicas,
que autorizam ou exigem atuação pública.742
Como dissemos em outra oportunidade:
Podem existir boas razões para que o Estado não assuma tantos encargos como em outras
épocas. Mas esse juízo político não pode ser convertido em imposição constitucional. Se
jamais o seria por exigência abstrata do constitucionalismo democrático, ainda mais difícil é
sustentá-lo com fundamento no texto da Constituição de 1988. De fato: a Constituição Federal
está repleta de “compromissos dilatórios”. Como as forças políticas atuantes na Constituinte
não chegaram a um consenso sobre qual seria o modelo econômico brasileiro, inseriram no
Texto Constitucional disposições abstratas e diretrizes alternativas, deferindo ao legislador
a competência para densificá-las de acordo com as condições históricas de seu tempo.743

A questão a respeito de maior ou menor intervenção do Estado na economia não é, de


ordinário, uma questão constitucional, exceto quando se trata da supressão de direitos fun-
damentais por ação ou por omissão. A Constituição de 1988 seguramente não alberga a
criação de um Estado em que a propriedade privada seja extirpada ou coletivizada, ou
na qual não exista qualquer tipo de intervenção do Estado: nem o Estado Socialista,
nem o Estado Mínimo foram constitucionalizados, mas, fora extremos de lado a lado,
há amplo espaço de conformação legislativa infraconstitucional a partir dos próprios
parâmetros constitucionais.
O problema todo está nessa pretensa constitucionalização de um “destino mani-
festo” para a ação interventiva do Estado na economia. Um “princípio constitucional da
subsidiariedade” não se limitaria ao resguardo de espaços privados de ação econômica
(já garantidos com os direitos fundamentais à propriedade e à livre iniciativa). Ele juri-
dicizaria — com a nota da proteção reforçada própria dos princípios constitucionais —
determinado projeto econômico de uma ideologia, quando é certo que a Constituição de
1988 abre-se a muitas ideologias. E é interessante notar que quem acredita num “prin-
cípio constitucional da subsidiariedade econômica” não poderá reputar como antide-
mocrático quem identifique um “princípio constitucional da atuação forte do Estado”,
já que a estratégia de defesa seria a mesma: sublinhar alguns trechos da Constituição,
ignorar outros, buscar vinculá-los a alguma ideia forte como “dignidade humana” ou

742
Cf., p. ex., os arts. 21 e 176 da CRFB/88.
743
MENDONÇA; SOUZA NETO. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio
constitucional da livre iniciativa. In: SARMENTO; SOUZA NETO (Org.). A constitucionalização do direito,
p. 709-741.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
234 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

“solidariedade social” e, afinal, transformar em constitucionalmente necessário o que


é politicamente contingente.744
Uma boa razão para que a subsidiariedade econômica não seja tida como princí-
pio constitucional: o mundo muda, e, nessa mudança, pode haver suficiente consenso
a favor de maior grau de intervenção estatal. Só que, “constitucionalizada”, a subsidia-
riedade provavelmente não teria flexibilidade suficiente para admitir tal intervenção
mais intensa.745
É claro que sempre seria possível dizer que, “ora, nunca se defendeu uma subsi-
diariedade inflexível, mas sim uma subsidiariedade econômica maleável”. Agora bem:
qual o sentido de se defender um princípio constitucional que, no fundo, não representa
garantia real contra investidas estatais? Um princípio constitucional tão débil, flexível
e perfurado por exceções melhor estaria se relegado ao plano contingente da política
ordinária, campo do entrechoque de ideologias econômicas e políticas.
As Constituições, bem mais do que as leis, possuem uma pretensão de pereni-
dade. Ora, incorporar o conflito ideológico econômico, no nível do detalhe, às suas
normas, é, de certa forma, abrir mão dessa aspiração à durabilidade. Ela, ao se prestar
à instrumentalização ideológica, vai se transformar num puro e simples instrumento
ideológico — o que é um triste destino para uma Constituição.
Um dos pontos centrais deste livro é, então, o seguinte: além de contrário à razão
pública, na medida em que significa a adesão a uma razão não pública, o argumento em favor de
um “princípio constitucional da subsidiariedade econômica” é, ainda, antipragmático. Explica-se.
Ele não se abre a todas as consequências futuras, mas prefere fixar um momento
(ideológico) presente. Não é contextualista, já que não admite que os contextos possam
mudar (prende-se a um único contexto). É fundacionalista, pois elege uma verdade
fundacional — a livre iniciativa privada é “da natureza humana”; derivaria do Direito
Natural;746 seria uma “ordem econômica espontânea” (Diogo de Figueiredo, ver citação
acima).747
Numa sociedade complexa como a contemporânea, não existe uma essência hu-
mana a-histórica ou acomunicativa, deslocada de seu tempo e de seu lugar. Não existe
ordem econômica espontânea: o mercado privado é, em parte, fruto de uma complexa

744
“Assumindo o princípio da ‘antinomia’, um jurista liberal e tradicional excluiria de seu trabalho interpretativo
os elementos ‘socializantes’. Do mesmo modo, o jurista socialista procederia em face dos elementos liberais.
No entanto, a realidade constitucional incorporou os dois ‘princípios’, anulando a ideia de ‘conflito’ entre os
mesmos” (SOUZA. Primeiras linhas de direito econômico, p. 232).
745
Num pós-escrito a texto em que, sob certas reservas, defendeu o princípio da subsidiariedade, Enrique Rivero
Ysern anotou o seguinte: “O 11 de Setembro de 2001 provocou uma convulsão política, econômica e social
mundial cujo alcance ainda se está por determinar. Como cidadãos do planeta, isso nos exige uma reflexão
pessoal e coletiva. Em relação aos temas tratados em minha intervenção, uma breve reflexão pessoal sobre os
acontecimentos recentes. Assistimos a uma crise do neoliberalismo. O Estado tem de intervir. A desintervenção
está dando lugar, nos Estados Unidos, e creio acertadamente, a uma intervenção estatal. Assistiremos a um novo
protagonismo do Direito Público sobre o Privado” (YSERN. El principio de subsidiariedade. In: MOREIRA
NETO (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do Direito Administrativo: obra em homenagem a
Eduardo García de Enterría, p. 490).
746
Uma das teses centrais da obra de Silvia Faber Torres é a de que o princípio da subsidiariedade, em suas
múltiplas acepções, é, na essência, um princípio moral derivado do Direito Natural.
747
Aliás, quem, numa sociedade contemporânea hipercomplexa e qualificada pelo “fato do pluralismo”, pode
afirmar que a ideologia econômica pró-mercado seja ínsita à natureza humana? Aliás, o que é “natureza
humana”? Quais as bases de aceitação racional de um “Direito Natural”? Por que tantas e tão discordantes
ideologias existentes na sociedade contemporânea haveriam de aceitar a intervenção subsidiária do Estado na
economia como princípio constitucional?
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
235

interação com a força pública da disciplina das atividades econômicas (tese clássica,
defendida, entre nós, dentre outros, por Eros Grau748).749
Quem acredita que não pode existir um “princípio da supremacia necessária do
interesse público sobre o particular” não pode acreditar num “princípio constitucional
da supremacia necessária da atividade econômica do particular sobre a iniciativa pú-
blica”, porque, por idênticas razões, (i) não pode logicamente haver um “princípio da
supremacia”, (ii) melhor seria a defesa de um “melhor interesse econômico”, que, no
mais das vezes, é concretizado pelo desempenho econômico privado, mas que também
pode ser realizado pela atividade empresarial pública, sem que isso seja, obrigatoria-
mente, uma ultima ratio.750
Resta, ainda, analisar o texto do caput do art. 173 da Constituição da República
de 1988. Para quem defende o caráter constitucional do princípio da subsidiariedade
econômica, ele seria a prova definitiva. Não concordamos. Leiamo-lo: “Ressalvados os
casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou
a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A exploração econômica direta do Estado será permitida quando decorrente
de imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, um e outro
conceitos definidos e densificados em lei (ainda vamos discutir qual a natureza dessa
lei). A polêmica concentra-se na expressão “relevante interesse coletivo”, já que não é
comum a referência à “segurança nacional”.
Pois bem: “relevante” é o que tem importância, o que sobressai.751 O termo não
possui a mesma valência semântica da expressão “em último caso”. Da mesma forma,
“só será permitida” — com ênfase no “só” — é trecho que deve ser lido em conjugação
com o restante da frase. Reconstruir a norma constitucional do art. 173 em termos im-
parciais significa, simplesmente, interpretá-la em sentido literal: a atuação econômica
direta do Estado está justificada quando existir interesse coletivo suficientemente
importante. Isso não é o mesmo que afirmar um princípio constitucional da subsidia-
riedade da intervenção do Estado na economia, na medida em que o interesse coletivo
importante, que é o guia para a legitimidade constitucional da intervenção direta do
Estado na economia, pode significar uma intervenção não subsidiária.
O Estado não precisa esperar até ser a última opção para intervir concorrencial-
mente; o mercado privado pode estar funcionando de modo satisfatório e, ainda assim,
o Poder Público está autorizado, desde que haja interesse público relevante, assim defi-
nido em lei, a ingressar com suas estatais. O requisito — único, porém suficientemente

748
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim.
749
Admite-se atualmente que até o próprio Governo haja se transformado, em muitas de suas funções, numa
estrutura híbrida de governança entre Poder Público e setor privado. V. KOOIMAN. Governing as Governance. Quer
dizer: se o mercado privado é, em parte, criado pelo Poder Público; e se o Governo, como governança, é uma
ação conjunta de Poder Público e setor privado, como vindicar a preponderância de um sobre o outro? As
realidades são mais complexas do que as lições doutrinárias.
750
Com razão, Themístocles Brandão: “A chamada intervenção do Estado não constitui nenhum procedimento
revolucionário, senão processo normal da vida democrática, desde que sejam respeitados os princípios
fundamentais da Constituição, especialmente os direitos de propriedade, em todas as suas manifestações”
(CAVALCANTI. Princípios gerais de direito público, p. 22).
751
“Relevante: 1. Que tem relevo, que tem importância. 2. Que se salienta, que sobressai. 3. De grande valor ou
interesse. 4. O essencial, o indispensável” (HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa., p. 2422).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
236 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

grave — que a Constituição impõe à intervenção concorrencial é que ela esteja justificada
por um interesse público importante.752
Ao afirmarmos que não existe um princípio constitucional da subsidiariedade da
intervenção econômica estatal — a subsidiariedade é proposição político-ideológica, que
pode ou não ser adotada ao plano infraconstitucional,753 jamais servindo, por exemplo,
como critério para o exercício de controle de constitucionalidade —, também negamos
que haja algum direito subjetivo constitucional, titularizado pelas empresas privadas, a um
ambiente de negócios menos concorrido quando tal concorrência seja feita por empresas estatais.
Mais uma vez, não estamos acompanhados de parte da doutrina brasileira. Claro
que não estamos aqui advogando uma destruição do setor privado via concorrência
de estatais — até porque não haveria interesse público relevante nesta consequên-
cia.754 Simplesmente, defendemos a inexistência de um “direito constitucional à não
concorrência de estatais”, desde que tal intervenção concorrencial do Estado seja cons-
titucionalmente legítima. É de se observar, inclusive, que, em certos casos, o interesse
público relevante é, justamente, opor uma concorrência (via empresas estatais) a um
setor privado estagnado.
O tema da possibilidade constitucional da igualdade de concorrência entre estatais
e empresas privadas já foi tratado pela doutrina e pela jurisprudência estrangeiras, com
destaque para a França. Durante muito tempo, o posicionamento francês era igual ao
brasileiro de hoje: é impossível que haja tal concorrência; trata-se de proteger a iniciativa
privada contra sua usurpação pelas autoridades públicas. O fundamento normativo
para isso era uma lei de março de 1791, conhecida como décret d’Allarde, base para a
liberdade de comércio e de indústria, e que se interpretava como consagrando a exclu-
sividade do exercício das atividades econômicas em benefício das pessoas privadas. No
entanto, dizem Richard Moulin e Pierre Brunet que, “na realidade, esta análise nunca se
justificou pelos termos do texto legal, e se inscrevia dentro da lógica liberal emprestada
a seus autores pelas análises ideológicas de uma parte da doutrina”.755
Lá, como aqui, a intervenção do Estado, tida como anormal, era interpretada
de modo restritivo. Outra base para tal entendimento era a decisão do Conselho de
Estado em Chambre syndicale du commerce en détail de Nevers, havida em 1930, quando
se consignou que “as empresas possuem um caráter comercial que, de regra geral, está
reservado à iniciativa privada”. A iniciativa pública submetia-se a duas condições: a
existência de um interesse público e a insuficiência (ou a ausência) da iniciativa privada,
“este último critério atestando, de fato, a regra da não concorrência entre o setor público

752
“Não é possível deixar de interpretar o sistema da Constituição Federal sobre a matéria em exame em
conformidade com a natureza das atividades econômicas e, assim, com o dinamismo que lhes é inerente e a
possibilidade de aconselhar periódicas mudanças nas formas de sua execução, notadamente quando revelam
intervenção do Estado. O juízo de conveniência, quanto a permanecer o Estado na exploração de certa atividade
econômica, com a utilização da forma da empresa pública ou da sociedade de economia mista, há de concretizar-
se em cada tempo e a vista do relevante interesse coletivo ou de imperativos da segurança nacional” (ADI nº
234. Rel. Min. Néri da Silveira. DJ, 15 set. 1995).
753
É possível cogitar, por exemplo, que haja sido adotado, pelo programa Programa de Parcerias de Investi­men­tos –
PPI, um princípio infraconstitucional da subsidiariedade. O PPI foi criado pela MP nº 727/2016, posteriormente
convertida na Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016. Seu art. 2º, IV, afirma que é objetivo do PPI “assegurar
a estabilidade e a segurança jurídica, com a garantia da mínima intervenção nos negócios e investimentos” (destaque
acrescentado). Uma subsidiariedade infraconstitucional (como sói acontecer).
754
BANDEIRA DE MELLO. O Estado e a Ordem Econômica. Revista Brasileira de Direito Público, p. 37.
755
MOULIN; BRUNET. Droit public des interventions économiques, p. 25.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
237

e o setor privado”.756 Diversos casos foram julgados com base nessas premissas: a
validade da aquisição de um cinema pela cidade de Millau, porque isso respondia a um
interesse público local que não podia ser atendido pela iniciativa privada; nas mesmas
condições, a compra, por uma cidade, de um hotel-restaurante; a ilegalidade da venda
de perfumes aos particulares pelo serviço de essências das Forças Armadas.
Pouco a pouco, em especial depois da Segunda Guerra, a jurisprudência do
Conselho de Estado foi flexibilizando o cumprimento do segundo requisito, até que, em
31 de maio de 2006, no caso Ordre des avocats au barreau de Paris, o Conselho entendeu
que a ausência ou carência de prestação da atividade pela iniciativa privada deixou de
ser condição incontornável da iniciativa econômica pública.757
Afirmam Jean-Philippe Colson e Pascale Idoux que o caso consagra o deslocamento
[...] em direção a uma regra de livre e igual concorrência [entre empresas estatais e não
estatais], sem, contudo, dispensar as coletividades públicas da obrigação de agir dentro de
suas competências e, sobretudo, justificar suas iniciativas com a existência de uma missão
de serviço público ou de interesse público — suscetível de ter lugar graças a uma carência
da iniciativa privada ou em razão de outras circunstâncias.758

O trecho do acórdão que nos importa é o seguinte:


Considerando que as pessoas públicas são encarregadas de assegurar as atividades necessá-
rias à realização das missões de serviço público na qual elas são investidas, e se beneficiam,
para esse fim, de prerrogativas de autoridade pública; que, além disso, se elas resolvem,
independentemente destas missões, levar a cabo uma atividade econômica, elas só o podem
fazer, de modo legal, quando respeitem tanto a liberdade de comércio e de indústria quanto o
direito da concorrência; e que, em razão disso, para intervir num mercado, elas devem não apenas
agir no limite de suas competências, mas, igualmente, justificá-las com base em um interesse público,
o qual pode resultar notavelmente da carência da iniciativa privada.759 (grifos nossos)

A chave do acórdão está na expressão “o qual pode resultar”, ou, antes, na pa-
lavra “pode”. O propósito de interesse público pode ser exemplificado pela carência da
prestação da atividade pela iniciativa privada — mas não apenas por isso.760 O essencial
é que a atividade esteja justificada por um interesse público, que seu exercício esteja
lastreado dentro das regras de competência e que respeite as regras de igualdade de
concorrência com as demais empresas privadas. “Atualmente, a principal dificuldade

756
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 119.
757
Outro caso significativo, anterior a esse, foi Territoire de la Polynésie française, julgado em maio de 2005. O
Conselho de Estado, a propósito da criação de uma companhia aérea estatal na Polinésia Francesa, considerou
que o juiz recursal cometeu um erro ao entender que a insuficiência da iniciativa privada era capaz de, por si
só, consistir num interesse público local: os resultados positivos esperados em matéria de desenvolvimento
turístico eram igualmente constitutivos do interesse público. Outra manifestação importante, anterior ao
caso-símbolo que comentaremos no texto principal, é um parecer emitido pelo Conselho de Estado em 08 de
novembro de 2000 (Sté Jean-Louis Bernard Consultants) no qual se entendeu que as pessoas públicas poderiam
se candidatar a delegações de serviços públicos e a mercados públicos na condição de que não adotassem
práticas distintas dos operadores privados. No Brasil, é importante lembrar que existem estatais estaduais que
são concessionárias de serviços públicos federais. Cf. BERNARD. Droit public économique, p. 30, 32.
758
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 121.
759
COLSON; IDOUX. Droit public économique, p. 121-122.
760
Sébastien Bernard destaca, por sua vez, a palavra “notavelmente”: “A utilização do advérbio ‘notavelmente’
lembra a importância de se levar em conta a ausência de concorrentes privados no momento da determinação
do interesse público local, ao mesmo tempo que, a contrario, sinaliza sua ausência de exclusividade” (BERNARD.
Droit public économique, p. 32).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
238 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

não é mais a legalidade da criação, mas o respeito, pela atividade pública, das regras
que asseguram uma concorrência leal”.761
A posição da doutrina e, em especial, da jurisprudência alemã, difere da francesa
na forma, mas não nas conclusões. Embora, assim como a Constituição francesa, a Lei
Fundamental alemã não incorpore nenhuma concepção econômica de modo taxativo,762
é principalmente na Alemanha que se fala numa “relativa neutralidade” da Constituição
em relação à Ordem Econômica. Existem, é certo, referências constitucionais ao Estado
de Direito e ao Estado Social — o art. 20 define a Alemanha como um “Estado federal
e social”; o art. 28 impõe ao Estado a adoção de um regime constitucional fiel ao go-
verno “republicano, democrático e social baseado no Estado de Direito” —, mas essas
menções a um Rechtsstaat e a um Sozialstaat não são capazes de identificar uma política
econômica no corpo do Texto Constitucional.
Há razões históricas para isso. Autores liberais da Constituição preferiam uma
linguagem mais abrangente. Constituintes mais à esquerda acreditavam que uma agenda
social progressista poderia ser avançada por intermédio da legislação ordinária, a qual
restaria albergada sob a rubrica do Sozialstaat. E tantos outros não viam com bons olhos
o “congelamento” de determinado programa econômico no texto da Constituição.763
A neutralidade é relativa porque os extremos estão constitucionalmente afasta-
dos, pois violam, por ação ou omissão, os direitos fundamentais. “A ‘neutralidade’ da
Constituição econômica não pode ser mal entendida, no sentido de uma não intromissão
na economia ou como liberdade da economia em relação ao Estado. Não é possível
extrair limites precisos. Seriam inconstitucionais uma economia totalmente planificada do
Estado e um total liberalismo econômico”.764
Diversos casos julgados pelo Tribunal Constitucional Federal auxiliaram na
formação dessa cultura da “relativa neutralidade econômica” da Constituição alemã.
Num caso em que se discutia a legitimidade constitucional da criação, no pós-
Segunda Guerra, de um fundo de auxílio às indústrias do ferro e do carvão bancado
por contribuições compulsórias de diversas outras empresas e comerciantes, a Corte
manteve a lei, afirmando que, “embora a presente Ordem Econômica e Social seja
compatível com a Constituição, ela não é a única possível; ela é baseada numa decisão
política formada pela vontade do legislador e pode ser substituída ou superada por
uma visão diferente”.765
No caso da privatização da Volkswagen, julgado em 1961 — depois da Segunda
Guerra, o Governo Federal e o Estado da Baixa Saxônia herdaram a empresa, e, em 1960,

761
MOULIN; BRUNET. Droit public des interventions économiques, p. 29. Contra uma ideia de igualdade de
concorrência entre o Estado e as empresas privadas, e defendendo a posição jurisprudencial clássica (de
Chambre Syndicale), v. CHÉROT. Droit public économique, p. 73 et seq.).
762
Falando sobre a Constituição francesa, Jean-Ives Chérot: “A Constituição é relativamente neutra no que concerne
à organização econômica. Não acharemos na Constituição um programa de política econômica, nem mesmo
constrições substanciais para orientar a escolha entre diferentes políticas econômicas opostas. É principalmente
‘dentro’ da lei, e não na Constituição, onde figuram as bases da organização econômica” (CHÉROT. Droit public
économique, p. 27).
763
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 242. Afirmando que a
Constituição alemã deixa conscientemente abertas as questões da Constituição Econômica, para, com isso,
deixar espaço à livre discussão, decisão e configuração, v. HESSE. Elementos de direito constitucional da República
Federal da Alemanha, p. 39.
764
STOBER. Direito administrativo económico geral: fundamentos e princípios. In: STOBER. Direito constitucional
económico geral: fundamentos e princípios, direito constitucional económico, p. 54, grifos no original.
765
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 245. Caso Ajuda de Investimento I,
julgado em 1954.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
239

com o consentimento do Estado, o Governo federal pretendeu privatizá-la, vendendo


sessenta por cento de seu capital; diversos grupos ajuizaram demandas alegando vio-
lação ao art. 15 da Constituição (que fala nos bens públicos da República) e ao princípio
da igualdade —; o Tribunal Constitucional anotou que não poderia “de modo algum
[...] afirmar que a desnacionalização da Volkswagen não pode servir a um propósito
de interesse público” e que se devia aplicar ao caso uma disciplina de autocontenção.766
Outro interessante julgado é o Caso da Cogestão. Uma lei federal, promulgada
em 04 de março de 1976, criou o direito dos trabalhadores alemães à cogestão das em-
presas: sociedades anônimas, sociedades em comandita ou sociedades limitadas com
mais de dois mil empregados passariam a contar com metade dos representantes nos
conselhos de fiscalização das empresas. Várias empresas alegaram violação a seu direito
fundamental de propriedade. O Tribunal Constitucional alemão, entendendo que “a
Constituição não contém nenhuma fixação ou garantia imediata de uma determinada
ordem econômica”, e que “o legislador pode perseguir qualquer política econômica
que lhe pareça apropriada, contanto que respeite a Grundgesetz, sobretudo os direitos
fundamentais”, declarou constitucional a lei que estabeleceu a cogestão de empregadores
e empregados. Interessante é a preocupação com a manutenção da força normativa e da
perenidade da Constituição: “O elemento de relativa abertura da ordem constitucional
que ora aflora é importante, a fim de que, por um lado, se atente para a transformação
histórica que caracteriza, em grande medida, a vida econômica, e, por outro, não se
coloque em risco a força normativa da Constituição”.767
Outras jurisdições poderiam ser mencionadas. Pensemos nos Estados Unidos. É
famoso o caso Lochner vs. Nova Iorque, julgado em 1905, no qual se declarou inconstitu-
cional lei de Nova Iorque que estabelecia limite para a jornada de trabalho dos padei-
ros.768 No caso Lochner, o que nos interessa não é o resultado — tido como exemplo de
ativismo judicial pró-mercado —, mas o voto discordante do justice Holmes, aqui não
por seu pragmatismo (ver capítulo sobre pragmatismo neste livro), mas por sua defesa
de interpretação constitucional economicamente neutra.769
O voto é curto, mas famoso. Selecionamos o seguinte trecho:
Este caso foi decidido com base numa teoria econômica que não é sustentada por boa parte
do país. [...] Uma constituição não é construída com o propósito de incorporar uma específica teoria
econômica, seja o paternalismo e a relação orgânica do cidadão para com o Estado, seja o laissez faire.
Ela é feita para pessoas que possuem visões fundamentalmente diferentes, e o acidente de
considerarmos algumas opiniões naturais e familiares, e outras novas e chocantes, não deve

766
KOMMERS. The Constitutional Jurisprudence of the Federal Republic of Germany, p. 248-250.
767
SCHWABE. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, p. 159.
768
Tal decisão inaugurou era de ativismo judiciário de índole econômica, a muito apropriadamente chamada Era
Lochner, que só viria a terminar alguns anos depois. A Era Lochner encerrou-se com o caso West Coast Hotel vs.
Parrish, julgado em 1937, que declarou constitucional uma restrição legal à liberdade de contratação em prol
de interesses de proteção da comunidade, da saúde e da segurança de grupos vulneráveis. No caso, a restrição
era o próprio salário mínimo legal, cujas diferenças em relação ao que recebia foram reclamadas pela camareira
Elsie Parrish contra o Hotel West Coast. Para um resumo dos casos, v. HALL. The Oxford Companion to the
Supreme Court of the United States, p. 588-591 (Lochner vs. New York), p. 1082-1083 (West Coast Hotel vs. Parrish).
Breve comentário dos casos na doutrina brasileira está, por exemplo, em Luís Roberto Barroso (Curso de direito
constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 21, 124).
769
Mas ver contra, afirmando que o voto de Holmes em Lochner é, também, uma rejeição da neutralidade e, na
verdade, uma defesa do que hoje se chamaria de pluralismo de grupos de interesse, em Cass Sunstein (Lochn
Lochner’s Legacy. Columbia Law Review, p. 879).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
240 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ser suficiente para concluirmos o julgamento sobre se leis que as incorporem são contrárias
à Constituição dos Estados Unidos. (grifos nossos)

A partir daí e de tantos outros casos nos quais a Suprema Corte dos EUA foi
tudo, menos política ou economicamente neutra, surgiu um debate nos Estados Unidos
a respeito da possibilidade prática e da conveniência política de uma adjudicação
constitucional baseada em princípios neutros. Em muitos casos, a defesa de uma corte
constitucional baseada em “princípios neutros” escondia a manipulação de argumentos
em favor de uma ou outra tese econômica, social ou política. Herbert Weschler, autor do
artigo mais famoso sobre o assunto,770 concluía-o criticando a decisão Brown vs. Board
of Education (1954) sobre a invalidade da segregação entre brancos e negros em escolas
americanas, porque ela não seria neutra.771
De todo esse percurso pelo Direito Comparado, duas coisas devem ficar claras.
Em primeiro lugar, não advogamos a adoção de princípios neutros ao plano da adjudi-
cação, porque isso seria psicologicamente impossível. Mas afirmar a impossibilidade de
uma neutralidade absoluta não desobriga o intérprete e o aplicador de uma neutralidade
possível, como hoje é opinião pacífica. Simplesmente não há legitimidade constitucional
se juízes e aplicadores do Direito se mostrarem desinteressados em buscar uma neutra-
lidade — ideológica, psicológica — ao momento da aplicação do Direito.
Segundo ponto: a Constituição brasileira, ao contrário da francesa, da americana
e da alemã, não é uma constituição economicamente neutra. Ela afirma direitos sociais,
é vazada numa linguagem social “forte”, e, em vários pontos, assegura o direito de pro-
priedade e a livre iniciativa. Contudo, há um ponto no qual todas elas se aproximam.
É que a Constituição brasileira, ao se caracterizar como radicalmente compromissória,
acaba, na prática, criando o arcabouço de legitimação constitucional para que diversos
modelos de intervenção do Estado na economia se afirmem no plano infraconstitucional.
Ou seja: se a Constituição alemã não fala nada, ou fala muito pouco, e é (tam-
bém) por isso que a doutrina e a jurisprudência identificam uma relativa neutralidade
constitucional, a Constituição brasileira de 1988 fala muito e sobre todas as coisas, e é
por isso que permite muito. O legislador infraconstitucional alemão possui liberdade
de disciplina quanto aos aspectos econômicos não conflitantes com direitos fundamen-
tais porque a Constituição é relativamente avara no tratamento do ponto; o legislador
infraconstitucional brasileiro possui liberdade parecida, mas porque nosso Texto
Constitucional é simultaneamente “social” e “liberal”, a depender de quais dispositivos
normativos se escolha ressaltar.
Há algo que subjaz à noção de que o Estado só pode intervir concorrencialmente
quando houver interesse público e o mercado privado não estiver funcionando a
contento, tese superada na França, mas ainda presente no Brasil: é a ideia de que as

770
WESCHLER. Toward Neutral Principles of Constitutional Law. Harvard Law Review, p. 1 et seq.
771
E logo surgiu artigo defendendo que Brown havia sido julgado com base num princípio neutro — de
antissubordinação. V. POLLACK,. Racial Discrimination and Judicial Integrity: a Reply to Professor Wechsle.
University of Pennsylvania Law Review. Muitos outros textos se seguiram — alguns defendendo que a Suprema
Corte devia aparentar ser neutra, sem o ser de fato (Martin Saphiro); outros afirmando que se deveria abandonar
o propósito da neutralidade porque os juízes constitucionais jamais conseguiriam superar suas pressuposições
de formação, seus traços psicológicos, suas adesões ideológicas, etc.; outros, ainda, retomando, em bases mais
moderadas, os propósitos de neutralidade constitucional. Desenvolver em Martin Shapiro (The Supreme Court
and Constitutional Adjudication: of Politics and Neutral Principles. George Washington Law Review, p. 587 et
seq.); MUELLER; SCHWARTZ. The Principle of Neutral Principles. University of California Law Review, p. 571-
577. Para uma discussão da proposta teórica em língua não inglesa, v. ALONSO GARCÍA. La interpretación de la
Constitución, p. 31-76.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
241

intervenções estatais só podem servir para corrigir falhas do mercado. Essa é uma pro-
posição respeitável, fruto de uma ideologia econômico-liberal, mas que, em absoluto,
foi constitucionalizada sob o texto compromissório da Constituição-cidadã de 1988.772
A Constituição de 1988 não é a Constituição do Estado Mínimo, do Estado
Subsidiário, do Estado Máximo ou do Estado Preponderante: é a do Estado Democrático,
que se tornará mais ou menos interventivo conforme mudem as circunstâncias fáticas
e os propósitos legislativos. Assim, o Estado pode intervir concorrencialmente mesmo
em casos em que a iniciativa privada funcione de modo ótimo, uma vez que “relevante
interesse público” não significa “em último caso”, tampouco “deficiência da iniciativa
privada”.
Como afirma Egon Bockman Moreira, numa citação que vale o longo trecho
transcrito:
Ocorre que a intervenção não pode se dar apenas nesse plano de fascinação pelo mercado.
Isso porque, ao mesmo tempo que o Estado deve atuar para corrigir falhas nas condutas dos agentes
(objetos de ilícitos concorrenciais), ele deve fazê-lo com a finalidade de sanar falhas estruturais
(em setores onde o mercado e a concorrência dificilmente se instalariam) e implementar
políticas econômicas públicas, instalando ab ovo modificações no próprio mercado. Tais políticas não
são ancilares ao modelo mercadológico, mas inclusive podem contrariar o paradigma vislumbrado
pela teorização da concorrência perfeita. [...]
Essa ordem de intervenções promocionais do Estado pode acidentalmente gerar resulta-
dos secundários equivalentes ao modelo de concorrência perfeita. Mas tal pressuposto não
é condição necessária e suficiente para autorizar a interferência estatal. Não é necessário porque o
fundamento de tais ações diz respeito às políticas públicas estabelecidas pelo Estado em função do
interesse público por ele tutelado. Não é suficiente porque há hipóteses em que o Estado pode não
se ver obrigado a construir um mercado concorrencial perfeito, mas a atuar na geração de outros
benefícios sociais (trabalho, renda, saúde, serviços públicos etc.). [...]
O capitalismo misto previsto na Carta Magna implica a liberdade de mercado, temperada
pela repressão a abusos e também pela integração ativa do Estado em áreas em que isso se faça
necessário, a bem do interesse público. [...]
O Direito Administrativo da Economia não é ancilar ao conceito de mercado ideal vislum-
brado pelos modelos teóricos da doutrina econômica liberal. Frente à disciplina jurídica, o
mercado pode (e muitas vezes deve) estar em segundo plano.773 (grifos nossos)

É claro que a intervenção concorrencial do Estado, por intermédio das estatais,


pode ser bem ou mal feita, inteligente ou não, “sensata” ou não.774 Nada disso, no en-
tanto, afeta o parâmetro constitucional, que continua sendo, no aspecto constitutivo, a
existência de relevante interesse público ou imperativo de segurança nacional (art. 173,
caput), e, no aspecto funcional, que ela se dê conforme à máxima igualdade possível em
relação às demais empresas privadas (art. 173, §1º, II).
Assim, no exemplo mencionado: será que não existe interesse público relevante
na simples existência de mais uma empresa — no caso, estatal: a Hemobrás — fabricando

772
Na seara do Direito da Concorrência, o assunto diz respeito a embate entre duas escolas: a Escola de Chicago
(que vê a promoção e a defesa da concorrência como um fim em si mesmo) e a Escola de Harvard (que aceita o
sacrifício da concorrência em prol de um bem maior). Sobre o tema, v. FORGIONI. Os fundamentos do antitruste,
passim.
773
MOREIRA. O direito administrativo da economia e a atividade interventiva do Estado brasileiro. In: OSÓRIO;
SOUTO. Direito administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, p. 856-857, p. 859.
774
MOREIRA. O direito administrativo da economia, a ponderação de interesses e o paradigma da intervenção
sensata. In: CUÉLLAR; MOREIRA. Estudos de direito econômico, p. 53-98.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
242 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

e distribuindo plasma sanguíneo? Quem defenderia, por força de hipotético bom fun-
cionamento do mercado privado de venda desse tipo de substância, associado a um
“princípio constitucional da subsidiariedade econômica”, uma “inconstitucionalidade
institucional”775 da Hemobrás?
Se não há limitação consistente num “princípio constitucional da subsidiarie-
dade”, as únicas limitações constitucionais à intervenção concorrencial pública são
a existência de interesse público, a preservação da máxima da proporcionalidade776 e a
igualdade possível entre estatais e empresas privadas.777

1.3.2.4 Resposta às críticas


Desde a publicação da primeira edição desta obra, alguns autores apresentaram
críticas e sugestões ao argumento teórico identificado nos itens anteriores. Apenas
reforçando as ideias, o argumento é, sinteticamente, o seguinte: não há um princípio
constitucional da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia; trata-se de
diretriz infraconstitucional, que pode ser ou não adotado pela legislação infracons-
titucional; certa doutrina produz argumentos contrários à razão pública, e presos a
doutrinas abrangentes de lado a lado, para tornar constitucionalmente obrigatório o que
é politicamente contingente.
Primeiro, o óbvio. Os comentários a seguir não são realizados em tom pessoal.
Muitos dos autores das críticas são estimados ex-alunos ou colegas. Embora estejamos
todos presos a certo efeito dotação de nossas opiniões, criticar a opinião não é criticar a
pessoa.
Principiemos lendo comentário crítico, feito de modo lateral, por Leonardo Coelho
Ribeiro. Num artigo a respeito de transporte ferroviário, Leonardo anota o seguinte
(destaques acrescentados):
Não se desconhece, no entanto, a crítica ao emprego da subsidiariedade enquanto parâmetro
à atuação do Estado no domínio econômico, formulada por Claudio Pereira de Souza Neto
e José Vicente Santos de Mendonça. Todavia, acredita-se que ela parte de uma premissa invertida
à revelada pelos fatos, qual seja, a de que há uma supervalorização da liberdade de iniciativa justo no

775
A expressão consta de texto de Dinorá Adelaide Musetti Grotti e nele foi utilizada para caracterizar empresas
estatais que, anteriores à Constituição de 1988, hoje em dia não mais atendam aos requisitos do art. 173 da
Constituição da República (Intervenção do Estado na economia. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política, p. 81.
776
A sub-regra da necessidade pode ser fonte da subsidiariedade, como querem alguns, que associam a
subsidiariedade ao favor libertatis? Não acreditamos nisso. Quando se fala numa alternativa menos lesiva
a direitos fundamentais, entre várias opções que produzam resultados semelhantes, o fato é que, uma vez
consolidada a política pública consistente na intervenção direta concorrencial, poucas outras alternativas,
que não a própria intervenção, vão produzir resultados semelhantes. Não concordamos com afirmações do
tipo “o fomento público é alternativa à intervenção direta imposta pela proporcionalidade-necessidade”,
simplesmente porque não são objetos comparáveis: são formas de intervenção distintas e produtoras de
resultados diferentes. O argumento só serve para ser usado no discurso político, e, ainda assim, em sentido
aproximado. Não é, em definitivo, argumento jurídico, muito menos argumento jurídico que possa fundar um
juízo de inconstitucionalidade.
777
Pode-se dizer que “a subsidiariedade é uma falsa questão; a questão é o tamanho certo do Estado”. Essa é uma
obviedade. O problema é que o debate a respeito da subsidiariedade não se faz no terreno das obviedades, mas
no do imaginário dos juristas. Trata-se de disputa por um capital simbólico: aquilo que é “determinado pela
Constituição”.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
243

Brasil, um país histórica e precipuamente interventivo em suas atividades econômicas; no qual o Estado
ainda ocupa uma posição de centralidade.778

A crítica não parece correta. Não há, nem neste livro nem no artigo escrito em
coautoria, uma tese sociológica ou econômica a respeito da presença ou ausência do
Estado na economia. E isso não é sequer o caso: a tese aqui desenvolvida é uma tese
normativa e essencialmente conceitual sobre os limites da interpretação constitucional
acerca da intervenção do estado na economia. Ela independe de o Estado ser ou não
central na economia brasileira (aliás, ele é).
Uma outra crítica, esta interna ao argumento aqui desenvolvido, vem com
Floriano de Azevedo Marques Neto. Em artigo sobre o fomento público, o autor, que
defende a existência de um princípio constitucional da subsidiariedade, anotou o se-
guinte (destaques acrescentados):
Tenho como incontornável que o constituinte, ao eleger a livre iniciativa como funda-
mento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, IV, CF) e como fundamento da ordem
econômica (artigo 170, caput, CF), priorizou uma determinada vertente de organização
econômica que, submetida à intervenção estatal sem limites de abrangência ou parâmetros de
incidência, restaria não só desprestigiada, mas sim negada. Veja-se que a valorização do
trabalho humano é dimensão que não exclui a livre iniciativa. Muito ao contrário, com ela
se coaduna. A valorização do trabalho é fundamento a conformar a livre iniciativa (ou, de outro
lado, a impedir que a liberdade seja exercida no sentido de negar a valorização do labor) e não de
afastá-la. Do contrário, teríamos que entender que tal fundamento (a valorização do trabalho) só
seria atingido com a intervenção estatal direta, o que seria uma falácia, como demonstra o modelo
econômico chinês. Mais ainda, teríamos que pressupor que a intervenção estatal derrogatória da
livre iniciativa teria como fim último assegurar mais dignas e valorizadas condições de trabalho,
o que também não é verdade.
O máximo que se pode extrair do fundamento da valorização do trabalho humano é o fato
de que toda a iniciativa econômica, privada e pública, está submetida às formas de inter-
venção estatal promotoras da valorização laboral (normas de proteção do trabalho, regras
limitadoras de jornada, poder de polícia das relações de trabalhistas, fomento à geração
de empregos, proteção do meio ambiente do trabalho e da saúde do trabalhador etc.).779

Parece-nos que, na crítica de Floriano de Azevedo Marques Neto, há uma ilação


não suportada pelos parâmetros indicados neste livro. O modelo econômico chinês
claramente não é compatível com a Constituição da República de 1988. A intervenção
direta “sem limites de abrangência ou parâmetros de incidência” é inconstitucional
porque arbitrária. O argumento operacional defendido por este livro é mais limitado: é
o de que os parâmetros do relevante interesse coletivo e do imperativo de segurança nacional
não podem ser interpretados à luz de cosmogonias constitucionais não universalizáveis,
o que, concretamente, irá conceder maior (mas não irrestrita) liberdade ao legislador
infraconstitucional — note-se que tanto para intervir quanto para desintervir na economia.

778
RIBEIRO, Leonardo Coelho. Reformando marcos regulatórios de infraestrutura: primeiras notas ao caso das
ferrovias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 12, n. 45, jan./mar. 2014. Disponível
em: <http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=110794>. Acesso em: 27 jul. 2017.
779
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. O fomento como instrumento de intervenção estatal na ordem
econômica. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 8, n. 32, out./dez. 2010.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
244 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Alexandre Santos de Aragão, em artigo, apresenta posição interessante a respeito


da subsidiariedade da intervenção do Estado na economia.780 O autor inicia seu texto in-
formando que “fundamento normalmente invocado para o princípio da subsidiariedade
é o de ser uma expressão do elemento necessidade do princípio da proporcionalidade”.
Esse fundamento, com o qual ele concorda, não parece o melhor: como já observamos
em nota de rodapé, a alegação de que o Estado deve optar pela forma de intervenção
na economia menos restritiva de direitos fundamentais, em regra, é utilizada para
comparar alternativas que produzem resultados dessemelhantes. A máxima da pro-
porcionalidade é, quase sempre, utilizada em favor de uma conclusão a ser defendida,
e não em prol de uma verificação imparcial de alternativas comparáveis. Trata-se, na
forma como ocorre na doutrina, de argumento político, e não jurídico.
O professor observa que não há livre iniciativa a ser ponderada nos casos sub-
metidos à publicatio, isto é, nas hipóteses de serviço público em sentido estrito (art. 175
da CRFB) e de monopólio público (art. 177 da Constituição). Ou seja: não há que se
falar, internamente a essas atividades, em livre iniciativa dos particulares, pois ela não
existiria. Nessa parte, concordamos com Alexandre Aragão. O campo em que se poderia
falar em subsidiariedade seria na própria publicização das atividades, quer dizer, na
retirada da atividade do regime de livre mercado, e em sua transformação em serviço
público ou em monopólio público.781 Mas, como “a maioria dos serviços públicos” e
“todos os monopólios públicos” já estão previstos na Constituição, não haveria maior
utilidade nesta invocação. Aqui, discordância pontual: não concordamos que só possam
existir monopólios constitucionais (como já exposto anteriormente).
O autor observa que, mesmo quanto às atividades em que o Estado exerce concor-
rência com a iniciativa privada, é discutível a incidência da subsidiariedade, pois, nesses
casos, “a atividade do Estado juridicamente em nada limita o direito de os particulares
continuarem atuando no setor”. E continua: “Apenas economicamente — por trazer
mais um concorrente — poderia lhes trazer algum prejuízo. Mas, sendo a concorrência
também um dos princípios da ordem econômica constitucional (art. 170), essa atividade
econômica não pode ser considerada como restritiva da iniciativa privada”.
Concordamos com o autor neste trecho, pois, repita-se, não há um direito consti-
tucional à não concorrência de estatais. O que há, e é importante deixar isso bem claro, é
um direito a uma concorrência justa, realizada entre estatais, não estatais e estatais, e
não estatais entre si.
Alexandre Aragão afirma, ainda, que, como o art. 173 da Constituição é vazado
em termos indeterminados, seu grau de enforcement vertical — i.e., a intensidade com
que é aplicado — seria mínimo, havendo semelhança com os requisitos constitucionais
de “urgência e relevância” para a edição de Medidas Provisórias, cujo controle judicial
é autocontido. O autor crê que a utilidade do princípio da subsidiariedade reside, afinal,
não nas zonas de certeza positiva (em que ele não se aplicaria), ou em zonas gríseas,
em que há “opiniões razoáveis de ‘homens médios’ em ambos os sentidos”. A utili­
dade da subsidiariedade estaria nas situações inseridas em zonas de certeza negativas,

780
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Princípio da subsidiariedade: potencialidades e limites. Interesse Público – IP,
Belo Horizonte, ano 19, n. 102, p. 45-55, mar./abr. 2017. Ainda, v. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas
Estatais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2017.
781
No mesmo sentido daquele defendido, neste ponto, pelo texto de Alexandre Aragão, veja-se a contribuição de
SCHMIDT, Gustavo da Rocha. O conceito constitucional de serviço público. Revista Brasileira de Direito Público –
RBDP, Belo Horizonte, ano 14, n. 53, abr./jun. 2016.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
245

nas quais o relevante interesse coletivo claramente inexistiria. Assim, por exemplo, na
comercialização de sorvetes.
Pois bem. O primeiro argumento do professor Aragão parece contraditório com o
segundo, ao afirmar que não há direito de a empresa privada não sofrer concorrência da
estatal, e, depois, ao indicar que, nas hipóteses incluídas em zonas de certeza negativa,
pode haver controle judicial. Se a atividade do Estado em nada limita juridicamente a
atividade dos particulares, então ela deveria ser indiferente ao controle judicial. Mas
há ainda outros pontos a merecerem reflexão. A eles.
O argumento central de Alexandre Aragão — de que o princípio da subsidiarie-
dade é critério para o controle de atividades de intervenção estatal incluídas em zonas
de certeza negativa — parece, em alguma medida, redundante e impreciso. É redun-
dante, pois, se fosse para isso, a subsidiariedade não acresceria informação alguma a
outros critérios de controle da atuação pública, como o próprio standard do relevante
interesse público. A inconstitucionalidade de se criar uma Sorvetebrás seria mais bem
justificada não com base em suposto princípio da intervenção subsidiária do Estado
na economia, mas se se dissesse tout court que não há relevante interesse público na
criação da empresa.
Outro aspecto a se ressaltar é a própria naturalização da existência de “zonas
de certezas negativas”. O que é absurdo para um pode ser razoável, ou, ao menos,
tolerável para outro. Tudo a depender do contexto, da história, da justificativa. A in-
tervenção do Estado na economia é fenômeno político, e não, na essência, jurídico. Daí
que o campo de luta deve ser político, e não tribunalício. Afirmada em abstrato, soa de
fato desarrazoada a criação de estatal para vender sorvetes. Mas, e se vender sorvetes
for parte da história da cidade? E se se utilizar da venda de sorvetes como fomento ao
turismo local? A Natex, que já foi estatal — hoje, faz parte da Fundação de Tecnologia
do Acre —, fabrica camisinhas feitas com látex tirado de seringueiras locais. É exemplo
quase caricatural,782 mas indica que não existem tantas zonas de certezas positivas ou
negativas, exigindo-se do intérprete constitucional certo exercício de empatia política.
Existem estatais de chips eletrônicos; a que fabrica armas; as que vendem seguros,
consórcios, leasings; as que são rádio ou jornal; as que operam com processamento
de dados; com a promoção do turismo; com saneamento, energia, armazéns. Água é
bem escasso. Seria constitucionalmente inadmissível que a venda de água, no futuro,
pudesse ser estatizada?783
Nessa mesma linha, vem a proposta de André Cyrino.784 Cyrino, logo após resu-
mir uma das teses deste livro, informa que o fato de a Constituição ser norma jurídica

782
Embora nem tanto. A produção da Natex corresponderia a cerca de 20% das camisinhas distribuídas
gratuitamente no Brasil. Disponível em: <http://www.agencia.ac.gov.br/natex-responde-por-20-da-producao-
de-preservativos-distribuidos-gratuitamente-no-pais>. Acesso em: 27 jul. 2017.
783
Isso não quer dizer que tais ações públicas sejam economicamente recomendáveis. Elas só não estão
constitucionalmente vedadas. Não se acredita, nesta obra, na epistocracia, isto é, na limitação da deliberação
democrática a um grupo de escolhas tidas como intelectualmente superiores (para nosso debate, tais escolhas
assumiriam a forma de economicamente não ruinosas), ou, por vezes, a um grupo de votantes (só poderiam
votar os eleitores mais intelectualmente capacitados). Há um problema (i) epistêmico na epistocracia (não se
sabe se existem escolhas intelectualmente melhores), e (ii) um problema de hierarquia (um grupo se coloca
como intelectualmente superior a outros). Para defesa contemporânea da posição, v. BRENNAN, Jason. Against
Democracy. Prineton: Princeton University Press, 2016. Para crítica, cf. RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia.
São Paulo: Boitempo, 2014.
784
CYRINO, André Rodrigues. Até onde vai o empreendedorismo estatal? Uma análise econômica do art. 173 da
Constituição. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 16, n. 185, jul. 2016.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
246 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

“impede que simplesmente se abandone algum empenho de compreensão de um sentido


deontológico do texto constitucional”. Ele se propõe, então, a buscar tal compreensão,
ao interpretar o art. 173 da Constituição da República.
Diga-se logo: não há, neste livro ou no artigo em coautoria com Cláudio Pereira de
Souza Neto, qualquer “abandono de um sentido deontológico do texto constitucional”,
pois indicar que existem espaços de deliberação democrática na Constituição Econômica
é interpretar a Constituição e identificar-lhe este comando. Será dever do intérprete res-
peitar os espaços de deliberação democrática infraconstitucional. Não há equivalência,
ainda, entre “interpretar a Constituição” e “identificar sentidos restritivos à atuação
do legislador infraconstitucional” (como parece indicar a proposta de André Cyrino).
André Cyrino sugere que “relevante interesse coletivo”, standard do art. 173 da
Constituição da República, equivale a “necessidade transindividual, comum a número
significativo de pessoas, cuja satisfação não possa ser proporcionada senão que pela
atuação direta do Estado-empresário”. Não se trataria de “mero interesse da coletivi-
dade”. Adotando, tal como Alexandre Aragão, a teoria das zonas de certeza positiva
e negativa na interpretação do art. 173 da CRFB, Cyrino elabora, então, três exemplos:
criar estatal para fabricar chuveiros elétricos e ferros de passar roupa, que consumam
menos energia, para diminuir o consumo de energia elétrica no país (estaria na zona
de certeza negativa, ou seja, seria claramente inconstitucional); criação de estatal para
a fabricação de armas durante guerra (estaria na zona de certeza positiva: haveria evi-
dente autorização constitucional para a criação da empresa); constituição de mineradora
estatal cujo objeto seja a exploração de diamantes na Amazônia (zona de penumbra:
bons argumentos a favor e contra sua criação).
Analisemos o ponto. “Relevante interesse coletivo” não é, de fato, “mero inte-
resse da coletividade”, pois “mero” não é “relevante”. Há que se ir além. A teoria das
zonas de certeza, adotada tanto por Alexandre Aragão quanto por André Cyrino não
nos parece adequada, porque ela não é (a) uma teoria, nem (b) uma teoria correta. Ela
é uma heurística que se tornou célebre entre estudiosos de direito público. Ela confun-
de o resultado da interpretação — a norma — com o texto. Em razão disso, ela não se
mostra suficientemente preditiva (como toda teoria digna do nome), podendo-se, em
certos casos, reescrever o texto normativo de modo a que ele se torne intuitivamente
“certo positivo”, “certo negativo” ou “duvidoso”, legitimando tautologias (conclusões
autocontidas nas premissas). Ao categorizar conceitos de modo preliminar à sua incidên-
cia em concreto, pior ainda — ela supõe limites pré-argumentativos e pré-contextuais,
desobrigando o intérprete de argumentar em favor de uma ou de outra conclusão.
Pensemos em um dos exemplos de André Cyrino. A depender da forma como
suas premissas contextuais são apresentadas, os resultados a que chega podem ser in-
tuitivamente alterados, o que mostra que sua hipótese pode não estar correta. A graça
retórica do primeiro exemplo decorre da escolha de “chuveiro” e de “ferro de passar
roupa”, objetos associados à banalidade cotidiana. Mas será mesmo? Será evidentemen-
te inconstitucional a constituição de estatal que, utilizando-se de tecnologia ecológica,
sinalize para o mercado a necessidade da adoção de padrões ecossustentáveis a partir
de alguns dos objetos ordinários que mais consomem energia? Será evidentemente in-
constitucional a constituição de estatal que fabrique carros elétricos? Será evidentemente
inconstitucional a criação de estatal que produza, em larga escala, bicicletas feitas com
material reciclável? Será evidentemente inconstitucional a constituição de estatal que dis-
tribua e venda sementes de tangerina, de feijão, de arroz? (É a EMBRAPA). Logo se vê
que, ao vindicar zonas de certezas, o que alguns autores encontram são apenas as suas.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
247

Em seguida, André Cyrino expõe conclusões, tiradas de certas linhagens da teoria


da escolha pública, a respeito da qualidade da atuação de empresas estatais. Haveria
inevitáveis incentivos à ineficiência econômica de tais empresas em decorrência de
sua conexão política: controladores não possuiriam incentivos para focar no resultado
empresarial, mas na promoção de “externalidades que tenham implicações positivas
para seus eleitores”; dirigentes de estatais não correriam os mesmos riscos e não esta-
riam sujeitos ao mesmo nível de competição que dirigentes de empresas privadas; o
controlador político das estatais focaria no curto prazo; estatais possuiriam sistema mais
lento e custoso de decisão do que empresas privadas; a seleção por concurso público
seria capaz de produzir “incentivos de acomodação” no corpo de seus empregados.
Enfim: as características institucionais das estatais dificultariam o desenvolvimento de
atividades lucrativas, e, assim, a própria promoção do interesse público a elas confiado.
À crítica. Em primeiro lugar, é importante observar que nem a public choice, nem a
economia representam saberes isentos de vieses. Embora, nos últimos anos, modelos de
inclinação liberal785 tenham predominado na academia, predominância não quer dizer,
necessariamente, correção. Além disso, há várias linhas na public choice e na economia,
e seria correto identificar tais campos como vindicando diversos modelos complexos
(e que interagem entre si, gerando complexidades de segunda ordem) do que como
apresentando descrições, predições ou proposições uniformes.786 Em uma perspectiva
antifundacionalista, é desejável rever e testar mesmo conclusões assentes, como, por
exemplo, a da maior eficiência das empresas privadas vis à vis empresas estatais.787 788
Assim, é questionável se a “promoção de externalidades que tenham implica-
ções positivas para eleitores” é algo tão indesejável numa democracia representativa
complexa em que, por vezes, a forma empresarial é o caminho possível para realizá-los.
Afirmar que dirigentes de estatais não estão sujeitos aos mesmos riscos e ao mesmo grau
de competição de congêneres privados pode ser verdadeiro em alguns casos, e equivo-
cado em outros.789 O fator de discrímen talvez seja mais o nível de competitividade do
mercado do que ser estatal ou não. A pressão pelo foco no curto prazo do controlador
pode ser contrabalançada pela existência de planos vinculantes de longa extensão (tal
como exige, agora, a Lei das Estatais) e, mais do que isso, de núcleo duro de empregados
com perspectiva de carreira de longo prazo. Nesse caso, aliás, a relativa estabilidade de

785
Entendida a palavra à europeia.
786
Para uma defesa do pluralismo modelar na economia, v. RODRIK, Dani. Economic Rules: the rights and wrongs of
the dismal science. Nova Iorque: Norton, 2015.
787
Holger Mühlenkamp, realizando meta-análise de centenas de artigos econômicos que estudaram a eficiência de
estatais em comparação à de empresas privadas, indicou que os resultados são largamente diversos, mas que “a
pesquisa não indica que empresas privadas sejam mais eficientes do que estatais que lhes sejam comparáveis”.
Cf. Mühlenkamp, Holger. From state to market revisited: more empirical evidence on the efficiency of public
(and privately-owned) enterprises. In: Annals of Public and Cooperative Economics, dezembro de 2015.
788
André Cyrino sugere que seria naïve supor que o Estado tenha condições de ingressar eficientemente num
mercado competitivo, que exija inovação e presteza. Mas há indicações que permitem temperar a afirmação do
autor. A respeito, v. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs.
setor privado. São Paulo: Porfolio, 2014.
789
Além disso, eles estarão sujeitos a outros tipos de pressões, que não necessariamente políticas em sentido “ruim”:
por exemplo, a de ser vistos como “realizando políticas públicas” ou de “construindo um legado para o país”
(pressão essa mais distante da realidade do administrador privado). Há, ainda, pressões reputacionais comuns
a todos os gestores, e que, ao nível individual, poderiam neutralizar pressões políticas (ex., ser reconhecido
como “bom executivo”).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
248 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

fato do empregado de estatal, que André Cyrino intui que leva à acomodação,790 pode
significar contraforça ao “objetivo de curto prazo” do controlador político (ao contrário
do empregado privado propriamente dito, que talvez não se acomode, mas que deverá
aceitar tudo calado: afinal, é aceitar ou rua). E o processo de decisão das estatais não
é, ao que parece, necessariamente mais custoso e lento do que o de empresas privadas
que lhes sejam comparáveis. O critério de diferenciação parece ser mais o tamanho da
organização do que a natureza do regime jurídico: empresas grandes — públicas ou pri-
vadas — desenvolvem burocracias organizacionais e sistemas complexos de controle,
ao passo que empresas pequenas tendem a ser mais expeditas.
Voltemos ao texto. André Cyrino, em conclusão, propõe três standards para orien-
tar a interpretação do art. 173 da Constituição: “quanto menor a vantagem comparativa
do Estado, mais estreito deverá ser o sentido do art. 173; quanto maior o clamor demo-
crático por uma determinada intervenção, mais flexível poderá ser a interpretação das
zonas de incerteza do art. 173; quanto mais essencial for a atividade que se pretende
atribuir à empresa estatal, maiores serão as possibilidades de atuação direta do Estado
na economia”.
Quanto ao primeiro standard, importaria identificar exatamente qual(is) é(são)
essas vantagens do Estado, e sob quais critérios de comparação. O standard poderia car-
rear um ônus argumentativo genérico (quais são as vantagens a que se está referindo?)
e indeterminado (qual é o nível de vantagem apropriado para que o Estado “vença” a
preferência privada e possa, então, atuar diretamente na economia?). Registre-se, ade-
mais, o quão difícil é identificar uma vantagem comparativa do Estado senão quando
ele já está nela atuando.
Quanto ao segundo standard, ele parece de difícil operacionalidade. O “clamor
democrático” pode ser mais bem identificado por meio da eleição de políticos que
promovam leis e regulamentos mais ou menos intervencionistas. Mas, se se pretender
equivaler “clamor democrático” a “apoio popular em favor da aprovação de projeto de
lei” (o que seria forma de apresentar concretamente o standard), o fato é que o standard
se torna praticamente insuperável, pois é plausível supor que nenhuma ou quase
nenhuma lei que autorize a criação de estatal gere comoção. Projetos de lei de apelo
popular são aqueles cujos assuntos são imediatamente compreensíveis (ex. Lei da Ficha
Limpa; Lei dos Crimes Hediondos; 10 Medidas Contra a Corrupção), e não leis que
autorizam a criação de estatais, cujos objetos são, por vezes, complexos (v.g., a PPSA
é estatal federal criada para gerir a parte que a União recebe em óleo nos contratos de
partilha nas áreas do pré-sal).
O terceiro standard parece já estar contido na teoria, que André Cyrino adota,
sobre “zonas de certeza”. Ao falar em “quanto mais essencial”, o standard pressupõe que
o intérprete já haja qualificado a atividade como essencial, não essencial, ou neutra; o

790
Esse ponto merece verificação empírica, mas suspeitamos que o fator decisivo seja mais a cultura da empresa
do que a natureza do empregador. Aliás, a depender do objeto da estatal, podem existir pressões inclusive
contrárias à acomodação na atuação do empregado de estatal vis à vis a atuação de empregado em empresa privada
congênere. Por exemplo: pode-se cogitar que, para alguns empregados da Petrobras, existam componentes
nacionalistas que lhes motivem a atuação (na linha “estou trabalhando pelo meu país”), e que não existiriam se
trabalhassem, por exemplo, na Shell. De fato, os resultados mais recentes da psicologia experimental indicam
que os fatores motivacionais mais influentes no trabalho não são a remuneração nem a estabilidade no emprego,
mas estão associados a fatores como a percepção de propósito na função. Se for esse o caso, acomodar-se ou não
se acomodar não tem a ver (preponderantemente) com ser estável ou receber mais, mas, sim, com identificar
sentido/propósito no trabalho. Cf. ARIELY, Dan. Payoff: the hidden logic that shapes our motivations. Nova Iorque:
Simon & Schuster, 2015.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
249

resultado está contido na premissa (pois o standard vai solicitar que o intérprete atribua
importância àquilo que ele já atribui importância). Além disso, o standard não auxilia
no ponto crítico, que é fornecer critério para definir, justamente, “o que é essencial”.
Este livro contém sugestão: essencial é o que assim seja qualificado por deliberação
democrática legítima.
Afinal, o texto de André Cyrino, se levanta questões importantes a respeito da
vida das estatais, não parece formular parâmetros de interpretação do art. 173 que ul-
trapassem a literalidade do texto constitucional ou, quiçá, o próprio conteúdo-padrão
da subsidiariedade.
Marcelo Zenni Travassos também formula interessante crítica ao artigo em co-
autoria com Cláudio Pereira de Souza Neto, cujas posições são basilares neste presente
capítulo.791 O autor inicia com as críticas que formulamos a “posições que parecem
ter se tornado as mais aceitas pela dogmática constitucionalista e administrativista
brasileira”. Em seguida, traz críticas ao uso que fizemos de categorias da filosofia
política de Rawls. Afirma que, embora seja desejável que uma constituição não trate
de miudezas, o conteúdo da Constituição de 1988 iria além do que poderia ser o “con-
senso sobreposto” de Rawls. Afirma que “o objeto constitucional já pode sim ir além
do consenso sobreposto, configurando documento que contenha opções políticas por
doutrinas abrangentes conforme a deliberação democrática, evidentemente desde que
tais doutrinas abrangentes sejam razoáveis”.
Quais seriam as opções políticas da Constituição de 1988? De acordo com
Marcelo Travassos, uma delas seria a opção pela preponderância da livre iniciativa —
a constituição haveria, portanto, adotado o princípio da subsidiariedade —, e isto
restaria claro a partir de diversos de seus dispositivos. Por exemplo, da leitura do art.
170, par. único; ou do próprio texto do art. 173. E, se não fosse por seu texto, esse teria
passado a ser “o espírito da Lei Maior” em razão das reformas liberalizantes havidas
a partir de seus primeiros anos (por ex., com as emendas 5, 6, 7, 8, 9 e 36; ou, no plano
infraconstitucional, a partir da adoção dos programas de privatização dos anos 90). Em
nota conclusiva, registra:
(...) [M]esmo que se pudesse afirmar que a Constituição de 1988, quando de sua promulgação,
elencava a livre iniciativa tão somente como mais um entre vários princípios de igual peso
em uma Carta de natureza compromissória e politicamente neutra bem como que inexistia
na Carta de 1988 qualquer previsão para o princípio da subsidiariedade, tais afirmações não
poderiam ser reproduzidas para o estágio atual da Lei Maior pós reformas.

Pois bem: de fato, a constituição brasileira é analítica, assumindo posições na


esfera política. Concordamos, nesse particular, com Marcelo Travassos.792 Ocorre que,

791
TRAVASSOS, Marcelo Zenni. O estado subsidiário regulador e de fomento na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. In: Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 27 (janeiro-março de 2015).
Acessível em: <http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/subsidiariedade.html>. Acesso em: 15 jul. 2017. O
texto citado é SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização e
fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira; SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007.
792
“No entanto, é fato que a Constituição de 1998 se pronuncia sobre temas econômicos e assume posições no
debate ideológico”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; MENDONÇA, José Vicente dos Santos. Fundamentalização
e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira; SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
específicas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
250 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

por seu caráter compromissório, ela permite várias possibilidades ao plano da con-
cretização infraconstitucional. Mas a questão é que seus intérpretes institucionais, em
especial a Suprema Corte, não estão autorizados a se utilizar de argumentos tirados
de doutrinas não abrangentes em casos duvidosos; devem optar por argumentos que
possam, ao menos tendencialmente, ser objeto de consenso. A constituição de 1998
vai além do consenso sobreposto.793 Mas seus intérpretes não devem ir além dele: da
conexão com as premissas básicas do Estado de Direito e da produção de argumentos
conforme a um uso público da razão.
Em termos de exegese normativa, discorda-se da leitura de Marcelo Travassos
a respeito do texto da constituição. O conteúdo material do art. 173 já foi aqui tratado
(v. acima). Quanto ao art. 170, p. único, permite a reconstrução de norma jurídica que
consagra a liberdade de empresa: é livre a empresa, salvo exceções legais. Daí não se
extrai o princípio de uma intervenção ultima ratio do Estado na economia.
E, afinal, algumas emendas de fato tornaram o texto da constituição mais liberal,
o que não quer dizer que ela haja perdido seu caráter compromissório. Também houve
outras que incluíram, em seu texto, direitos sociais (ex. a emenda 26 incluiu-lhe o direito
à moradia). O fato é que a Constituição de 1988 continua compromissória, inclusive
e especialmente em sua Constituição Econômica. Legislações infraconstitucionais
liberais foram seguidas por leis intervencionistas — inclusive leis que autorizaram a
criação de estatais —, e, atualmente, vê-se o retorno do pêndulo, com a adoção de leis
e regulamentos desinterventivos. Qual vem se mostrando o “espírito da Lei Maior” ao
longo de todo esse tempo? É um espírito de tolerância, que permite o devir histórico.
Ao fim deste item, esperamos haver tratado algumas das mais salientes críticas
a um dos capítulos centrais do livro. Agradecemos aos autores aqui mencionados pela
leitura cuidadosa do nosso texto.

1.3.2.5 Alguns aspectos técnicos a respeito do art. 173 da Constituição


Antes de concluirmos, tratemos de algumas discussões técnicas a respeito do art.
173 da Constituição da República.
Ponto um: a ressalva “aos casos especificados nesta Constituição” diz respeito às
hipóteses constitucionais de monopólio público, previstas no art. 177. Quanto a isso, não
parecem existir dúvidas.794 A ressalva diz respeito, portanto, a um caso de intervenção
direta do Estado na economia, porém não concorrencial, mas monopolística.
Havia dúvida quanto à “lei” a que se refere o artigo: seria necessário, a cada inter-
venção concorrencial, nova lei que identificasse, para aquele caso, o relevante interesse
público, ou bastaria a própria lei autorizativa da criação da estatal?
Edmir Netto de Araújo acredita que, como as hipóteses de interesse público e
segurança nacional devem ser, na dicção constitucional, definidas em lei, a autorização

793
Talvez seja o caso de recuperar as noções schmittianas de constituição material e constituição formal ao
momento da interpretação de constituição tão analítica quanto a nossa, sugerindo que as normas materialmente
constitucionais (estrutura básica do estado, direitos fundamentais) possuam certa preponderância exegética
prima facie sobre normas apenas formalmente constitucionais.
794
COMPARATO. Ordem econômica na Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Público, p. 263.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
251

não se possa presumir a partir da própria lei que autoriza a criação da estatal (como
era, aliás, no regime da Constituição anterior).795
A posição não parece a melhor. É possível sustentar a existência de uma auto-
rização implícita na própria lei autorizativa da criação da estatal, em especial a partir
dos dispositivos normativos relacionados ao seu objeto. Afinal, por qual razão se vai
autorizar a constituição de uma sociedade de economia mista para, digamos, prestar
serviços relacionados à indústria do carvão e do aço, se já não se considerou, antes, que
tal atividade configura relevante interesse público?
Talvez seja o caso, apenas para maior segurança jurídica, de, na justificativa do
projeto legislativo, mencionar, com todas as letras, que a hipótese diz respeito a rele-
vante interesse público. Mas não é o caso de se exigir uma lei (que não a de autorização
para a criação da estatal) para cada intervenção, tampouco uma “lei geral definidora de
interesses públicos para fins de intervenção concorrencial”, até porque eles são muitos,
específicos e dinâmicos.
A polêmica foi resolvida pela Lei das Estatais, em seu art. 2º, par. 1º. A lei que
autoriza a constituição da empresa é a mesma que deverá definir, “de forma clara”, o
relevante interesse coletivo ou o imperativo de segurança nacional que a empresa visa
atender.796 A posição adotada pela Lei das Estatais é a mesma que este livro defendeu
e defende.
Ainda sobre a “lei”, há quem defenda que ela deva ser uma lei complementar, e
não uma lei ordinária. É o caso de Celso Antônio Bandeira de Mello, que argumenta o
seguinte: como a intervenção direta concorrencial só pode ser feita por intermédio de
empresas públicas ou de economias mistas, e tais entidades demandam, para sua cria-
ção, autorização por lei ordinária, a referência à “forma da lei” do art. 173 só adquiriria
utilidade quando interpretada de modo a exigir lei complementar.797
É interpretação engenhosa, mas que destoa da técnica legislativa constitucional,
já que, sempre que a Constituição exige lei complementar para o tratamento da matéria,
diz isso de modo expresso. Além disso, acabamos de defender que a lei autorizativa
pode ser a mesma lei “definidora do interesse público em concreto” para o caso. Não
vemos propósito em, mercê de extrair sentido útil de todas as expressões constitucionais,
propor soluções contraintuitivas.
A Lei das Estatais fala apenas em “lei”. Trata-se, ao menos pela indicação do
Estatuto, de lei ordinária. Mas, de resto, o ponto foi superado pela prática: as leis que
autorizam a criação de estatais são leis ordinárias.
Há alguma restrição, de natureza federativa, na “lei” a que se refere o art. 173?
Em nossa opinião, somente para o caso de “imperativo de segurança nacional”, em
que o assunto é de competência legislativa apenas da União (a Constituição atribui
competência privativa à União para legislar sobre defesa nacional: art. 22, XXVIII).798

795
ARAUJO. Administração indireta brasileira, p. 72. Mas v. p. 79, onde o autor, contraditoriamente, afirma que a
expressão “conforme definidos em lei” “faz supor que a própria lei que autoriza a criação da entidade possa
definir que aquele objetivo é imperativo da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, e não configurá-los
previamente, como seria de se desejar” (grifos no original). Em defesa da necessidade de duas leis, ver, ainda,
Gastão Alves Toledo (O direito constitucional econômico e sua eficácia, p. 251).
796
Lei nº 13.303/2016. art. 2º, par. 1º, A constituição de empresa pública ou de sociedade de economia mista
dependerá de prévia autorização legal que indique, de forma clara, relevante interesse coletivo ou imperativo
de segurança nacional, nos termos do caput do art. 173 da Constituição Federal.
797
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 616.
798
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 282.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
252 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Questão interessante: nos casos de intervenção por motivo de segurança nacional,


a intervenção pode se dar sob o regime de concorrência? Não seria antitético em relação
ao fundamento da intervenção? Quer dizer, o assunto é suficientemente importante
para justificar intervenção direta baseada num dos fundamentos mais graves, talvez o
mais grave para um Estado — a segurança nacional —, e, ao mesmo tempo, afirma-se
que essa intervenção vai se dar sob o regime de livre concorrência? O risco é óbvio:
a estatal pode não funcionar a contento graças às forças do mercado. Eros Grau tem
opinião clara: “Penso não restar dúvida não apenas quanto à possibilidade, mas até
mesmo à imperiosidade, de a exploração direta da atividade, na hipótese de impera-
tivo de segurança nacional — então definida por lei federal — ser empreendida em
regime de monopólio”.799 Tendemos a concordar com Eros Grau, embora prefiramos
optar por uma preferência, e não por um dever, de a intervenção sob o fundamento da
segurança nacional se dar de modo monopolístico, até em homenagem à multiplicidade
fenomênica de circunstâncias que caracterizam a realidade da economia e do Estado
nos tempos contemporâneos.
Nos casos de “relevante interesse coletivo”, a intervenção pode se dar tanto pela
União quanto pelos Estados-Membros. E os Municípios? Podem criar empresas esta-
tais municipais para intervir concorrencialmente na economia, com base no relevante
interesse coletivo, que, na hipótese, seria relevante interesse coletivo local?
Vamos partir pragmaticamente de dado contextual da realidade: essas empresas
municipais existem. Ora, o tema ainda é controverso, porque se contende a respeito da
qualificação dessa atividade legislativa. Por um lado, pode-se defender que o assunto
diz respeito a Direito Econômico, competência legislativa concorrente da União e dos
Estados (art. 24, I, da CRFB/88), mas não dos Municípios. Por outro lado, as entidades
que vão operar essa intervenção são empresas públicas e sociedades de economia mista,
que, hoje, aceita-se que possam ser, também, municipais (até porque o art. 37, XIX, da
Constituição da República, não faz distinção entre entes federativos, fala apenas em lei
autorizativa da constituição das empresas). E para qual propósito essas estatais munici-
pais poderiam ser criadas: apenas para prestar serviços públicos de interesse local? Parece
diminuição do sentido das entidades. Há diversas atividades econômicas de interesse
local que poderiam ser exploradas, em concorrência com a iniciativa privada, por em-
presas municipais. Muitos dos exemplos da jurisprudência francesa são municipais:
um hotel-restaurante, um cinema. Acreditamos, então, e em conclusão, que a lei do art.
173 pode ser, também, municipal.800
Falemos, agora, de um patinho doutrinariamente ainda mais feio do que as
estatais concorrendo com empresas privadas: as estatais operando em regime de mo-
nopólio público.

799
GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 283-284.
800
Concluindo de modo idêntico, ainda que sem enfrentar a questão sobre a qualificação da matéria como
Direito Econômico: “Segundo nosso entendimento, não há qualquer óbice para que Estados, Distrito Federal
e Municípios explorem atividades econômicas nos casos em que necessário para atendimento ao relevante
interesse coletivo, uma vez que o interesse coletivo poderá ter traço regional, típico de ser atendido pelo
ente federativo competente” (SCHIRATO. Novas anotações sobre as empresas estatais. Revista de Direito
Administrativo, p. 221).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
253

1.4 A interpretação constitucionalmente adequada para a criação e a


abrangência dos monopólios públicos
O que é um monopólio? Quais suas espécies e características? Qual o veículo
formal para sua constituição? Como deve ser interpretado? Vamos analisar estes pontos
a seguir.

1.4.1 Origem da palavra monopólio. As diversas espécies de


monopólio. A base constitucional do monopólio público
Monopólio é palavra de uso antes econômico que jurídico. Sua origem é credita-
da a Aristóteles, em A política, onde narra o feito do filósofo Tales de Mileto, que, com
pouco dinheiro, alugou todos os lagares de azeite de Mileto e de Quio. Houve safra
abundante, ele os sublocou, ganhando muito dinheiro na operação. Fez isso para de-
monstrar que seria possível a um filósofo, querendo, enriquecer. Aristóteles comenta
que qualquer um que conseguisse assegurar para si um monopólio conseguiria o mesmo:
“o monopólio é um meio rápido de fazer fortuna”, e algumas cidades, quando precisam
de dinheiro, usam o recurso.801
No dicionário, monopólio significa “privilégio legal, ou de fato, que possui uma
pessoa, uma empresa ou um governo de fabricar ou vender certas coisas, de explorar
determinados serviços, de ocupar certos cargos”.802 Mais adiante, fala-se em monopólio
estatal, que é “monopólio criado pela legislação, dando ao Estado a exclusividade no de-
senvolvimento de determinadas atividades (por exemplo, na exploração petrolífera)”.803
Talvez avançar nas distinções seja bom método para identificar a essência do
conceito. Um monopólio natural é uma situação de impossibilidade de competição em
decorrência de circunstâncias que independem da vontade do homem, seja porque
decorrem da própria natureza, seja porque estão limitadas pelo estado da técnica, seja
à conta de alguma característica da atividade que torne a competição ruinosa.804 Caso se
deseje explorar o potencial de geração de energia de uma queda d’água, só uma única
hidrelétrica conseguirá se instalar. O monopólio natural é, por assim dizer, o último
dos limites aos impulsos pró-concorrência que vêm se instalando no Direito Público
dos anos recentes. O que é verdadeiramente monopólio natural não consegue se abrir
à competição.
Há, também, monopólio, mas aí não natural, em decorrência da conquista do merca-
do por parte de agente econômico privado, à conta de sua eficiência produtiva. Durante muito
tempo, no Brasil, só havia, em termos competitivos, uma única empresa que fornecia
máquinas para cópias reprográficas, e a dominação do mercado era tamanha que o
nome dessa empresa passou a ser, literalmente, sinônimo de cópia reprográfica.
Não há qualquer ilicitude em ser muitíssimo eficiente. A Lei de Defesa da
Concorrência — a Lei Federal nº 12.529/2011 — esclarece, no §1º de seu art. 36, que “a
conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de
agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no
inciso II” (o de “dominar mercado relevante de bens ou serviços”). O problema não é

801
ARISTÓTELES. A política. A menção ao monopólio está na p. 26 dessa versão.
802
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1954.
803
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1954.
804
SALOMÃO FILHO. Direito concorrencial: as estruturas, p. 201.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
254 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

o monopólio em si, mas a prática de condutas anticoncorrenciais, indicadas nos vários


incisos do art. 36, §3º da mesma lei, que impedem a concorrência “justa”. É importante
ter em mente que, por vezes, o domínio do mercado por intermédio de práticas anti-
concorrenciais é chamado de monopólio. Embora o uso não seja técnico, ter-se-ia aí,
sim, um monopólio antijurídico.
E há, finalmente, o monopólio legal, que, ao contrário do natural, não decorre de
circunstâncias fáticas ou de incapacidade técnica, tampouco deriva de uma jurídica ou
antijurídica situação de controle total do mercado. Ele é criado pela Lei (em sentido
amplo), isto é, por algum comando normativo presente no Ordenamento Jurídico.
O monopólio legal é de duas espécies: (i) os que visam impelir o agente econômico
ao investimento, e (ii) os que são instrumento de ação do Estado na economia. Os do
primeiro tipo decorrem da propriedade industrial — proteção de marcas, patentes, know
how, insígnias — que confere a seu proprietário exclusividade em sua exploração. Os
da segunda espécie são os que nos interessam: o Poder Público assume o exercício exclusivo
de determinada atividade econômica, sem admitir concorrentes.
Por uma questão de brevidade, vamos chamar esse monopólio legal que é ins-
trumento de ação do Estado na economia de monopólio público. A definição que apre-
sentamos já nos basta.
A base constitucional do monopólio público é o artigo 177 da Constituição
da República de 1988, cuja redação de seus parágrafos foi alterada pela Emenda à
Constituição nº 9/95. Ei-lo em seus cinco incisos:
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades
previstas nos incisos anteriores;
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos
de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo
bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comér-
cio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja
produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão,
conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.

Ou seja, o monopólio público constitucional engloba muitas das atividades envol-


vidas no ciclo econômico do petróleo e do gás natural — pesquisa, exploração, refino e
transporte marítimo do petróleo nacional (o transporte marítimo do petróleo importa-
do não é atividade monopolizada, como observa Carlos Ari Sundfeld),805 o transporte
por meio de conduto (oleoduto ou gasoduto), e muitas das atividades relacionadas a
minérios e minerais nucleares.806 807

805
SUNDFELD. Regime jurídico do setor petrolífero. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico,
p. 391.
806
Em relação ao monopólio nuclear, é comum que sobre ele incida o fundamentalismo ambiental, isto é, a
propositura de razões não públicas de caráter ambiental como sugestões de razões para as decisões. Em termos
dogmáticos, tais razões apelam a referências constitucionais ao ambiente e a versões extremadas do princípio da
precaução. A construção da usina termonuclear de Angra 3, em que pese validada pelo Decreto nº 75.870/75 —
recepcionado, como ato jurídico perfeito, pela Constituição de 1988 —, foi objeto de ações judiciais que, até
hoje, não impediram sua construção, mas, à época, cercaram-na de risco. O fundamentalismo ambiental não
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
255

1.4.2 As lições da ADI nº 3.273-9/DF e da ADPF nº 46. A diferença


entre monopólios públicos e serviços públicos 807
Provavelmente a mais interessante discussão acerca de monopólios públicos dos
últimos anos envolveu análise da compatibilidade entre alguns dispositivos da Lei do
Petróleo, a Lei Federal nº 9.478/97, e o texto da Constituição pós-EC nº 9/95.
O debate travado no Supremo é útil por duas razões: mostra, em certos pontos,
o uso de razões não públicas pela Corte Constitucional; e detalhe, em especial a partir
do voto de Eros Grau, algumas características dos monopólios públicos. Vamos relem-
brar o caso.
O Governador do Paraná, em meados de 2004, ajuizou ADI (nº 3.273-9/DF) em
face de uma série de dispositivos da Lei do Petróleo, com destaque para o art. 26, que
transferia a propriedade da lavra às concessionárias privadas.808 809 A discussão que se
colocou no Supremo foi, então, se, à luz do “flexibilizado” monopólio público consti-
tucional do petróleo, seria admissível que a concessionária se tornasse proprietária do
resultado da exploração (ou do “produto da lavra”, expressão sinônima).
Para o entendimento do caso, é importante compreender qual foi o sentido e o
propósito da referida alteração na redação do art. 177. Antes da Emenda à Constituição
nº 9/95, o §1º do art. 177 tinha a seguinte redação:
§1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades
nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação,
em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o
disposto no art. 20, §1º.

Com as alterações da emenda, alguns parágrafos mudaram de ordem à conta de


inclusões, mas o que interessa são os acréscimos e as modificações:

ultrapassa o filtro da razão pública, e é antipragmático: ele é backward-looking. Os problemas ambientais são os
problemas de hoje, ou os que o recorte epistêmico atual projeta. Mas a inovação tecnológica e científica pode
vir a solucioná-los no futuro, ou se pode descobrir que eles não eram afinal problemas tão grandes (ou sequer
problemas). Há que se cogitar que a própria natureza, por algum mecanismo regulador, pode resolvê-los.
Existem, no entanto, legítimas preocupações ambientais e de segurança, algumas tiradas do dado experimental
(ex. Chernobil, Fukushima I). Ignorá-las é, também, ser antipragmático. Para visão crítica do princípio da
precaução, v. SUNSTEIN. Laws of Fear: Beyond the Precautionary Principle. V., ainda, Michelle Taveira Telles
(Meio ambiente, justificação pública e democracia deliberativa: a legitimação democrática das decisões sobre o risco
ambiental.
807
Acerca dos limites da participação privada na geração de energia elétrica a partir de fontes termonucleares,
v. MENDONÇA, José Vicente Santos de. O que pode ser a participação privada na geração de energia elétrica
a partir de usinas termonucleares: um exercício experimental de neointervencionismo público. In: JUSTEN
FILHO, Marçal; SCHWIND, Rafael Wallbach. Parcerias Público-Privadas: reflexões sobre os 10 anos da lei
11.079/2004. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2015.
808
Os outros artigos da Lei do Petróleo impugnados foram os seguintes: o art. 28, incisos I e III; o art. 37, inciso I, 2ª
parte e parágrafo único; o art. 43, II e parágrafo único; o art. 51, parágrafo único; e o art. 60, caput. No essencial,
são dispositivos normativos que atribuem à Agência Nacional do Petróleo (ANP) a possibilidade de extinguir
ou prorrogar o contrato de concessão (neste último caso, mediante a fixação de determinado valor); de indicar
o conteúdo e fixar a duração de um programa exploratório mínimo para a fase de exploração; e de autorizar a
importação ou exportação de petróleo, gás natural e derivados. A impugnação contra tais normas alegava que
elas conferiam poderes e atribuições à ANP que jamais poderiam sair do poder concedente: a União.
809
O tema também foi discutido na ADI nº 3.366, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista contra diversos
dispositivos da Lei do Petróleo. Os processos foram julgados conjuntamente, então vamos tomar por base,
didaticamente, a primeira ADI.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
256 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

§1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das ativida-
des previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.
§2º A lei a que se refere o §1º disporá sobre:
I - a garantia do fornecimento dos derivados de petróleo em todo o território nacional;
II - as condições de contratação;
III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;

O que antes era vedado agora se tornou possível: que a União contrate com em-
presas estatais ou privadas a realização das atividades incluídas no monopólio público
constitucional do petróleo. Antes de adentrarmos nos votos da ADI, outro dispositivo
importante de ser transcrito é o artigo 176, com a redação da Emenda à Constituição
nº 6, de 1995. Ele, em princípio, não tem a ver com o monopólio do petróleo e do gás
natural — suas regras são gerais em relação às regras específicas do art. 177 —, mas
essa própria relação de generalidade e especificidade foi um dos pontos discutidos na
decisão. Aos pontos importantes do art. 169:
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráu-
lica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento,
e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se
refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou con-
cessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá
as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira
ou terras indígenas. (grifos nossos)
Não detalharemos a tramitação da ADI (foi concedida, monocraticamente, liminar antes
da 6ª Rodada de Licitações da ANP, contra a qual se impetrou mandado de segurança,
que foi provido etc.), tampouco as discussões processuais acerca da legitimidade do
Governador do Paraná para propor a demanda (o STF entendeu que havia legitimidade).

Pois bem: o voto do relator, Ayres Britto, entendeu que a Constituição fizera
distinção entre os recursos minerais em sentido genérico — tratados no art. 176 — e
certos recursos minerais, como o petróleo e o gás natural, cuja disciplina encontrava-se
no art. 177. Portanto, ao contrário do art. 176, que garantia ao concessionário o produto
da lavra, o art. 177, mesmo com a redação pós-EC nº 9/95, nada falava a esse respeito,
estando, então, vedada a entrega à concessionária do resultado da exploração petrolí-
fera, que seria propriedade da União. Ayres Britto afirmou que “não se pode confundir
flexibilização [do monopólio público constitucional do petróleo] com erradicação”,810 e
procurou, no voto, decidir conforme a essa percebida não erradicação do monopólio.
O próximo a votar, Marco Aurélio, procedeu a histórico do tema da regulação
do petróleo no Brasil. Defendeu que conceder a propriedade ao explorador seria quase
“retroceder à Idade Média, por praticamente resgatar o modelo do sistema regaliano —
no qual aquele que explora é também o detentor da propriedade”.811 Afirmou que, a
perdurar o modelo de concessão imposto pela Lei do Petróleo, estar-se-ia transferindo
a propriedade do petróleo para as empresas exploradoras por meio de contratos com
prazos longos, de quase três décadas, em troca de ínfimo pagamento de dez por cento

810
Voto de Ayres Britto na ADI nº 3.273-9, p. 134.
811
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 166-167.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
257

a título de royalties, acrescido de “umas migalhinhas”, que seriam as outras espécies de


participações governamentais (bônus de assinatura, participação especial e pagamento
pela retenção ou ocupação da área).
O ponto principal do voto é a defesa de que, se o monopólio previsto na
Constituição se fizesse no sentido da Lei do Petróleo, não haveria mais qualquer tipo
de monopólio, mas simples autorização administrativa, e “ao Governo caberia tão so-
mente fiscalizar a execução das atividades por particulares, de modo que tais condutas,
desenvolvidas com o fim de atender ao interesse particular, não viessem a ofender o
interesse público”.812
Criticando o argumento consequencialista de que, sem contratos de concessão
com transferência total da propriedade do bem, não haveria interessados em explorar, já
que o risco seria grande (argumento “falacioso e que não se coaduna com a verdade”),
Marco Aurélio ainda apresenta um último argumento: o petróleo seria um bem público
de uso especial (não um bem dominical, já que estaria protegido pelo interesse coletivo
e pela soberania), que, explorado diretamente pela União, admitiria uso ordinário, mas
cuja entrega a uma empresa privada para fins econômicos significaria um uso especial,
para o qual deveria haver licitação.
Em certos momentos de seu voto, com a devida vênia, os argumentos escapam
à esfera da imparcialidade política e não ultrapassam o critério da razão pública, como
no seguinte trecho, já ao final:
Imperdoável é a visão míope da subserviência, pouco importando a quadra; imperdoável,
gerando frustração ímpar, decepção inigualável, é o entreguismo, a alienação, se possível
falar-se em alienação, considerando o caráter imensurável das vantagens que poderão
advir dos contratos autorizados na lei; desses contratos que revelam equação perniciosa —
90% para o explorador (da jazida) e 10% para a nação brasileira (porcentagem digna de
uma gorjeta), embora seja esta a detentora do monopólio. Estranho e triste monopólio,
assegurado constitucionalmente, ante os termos da lei, porque despojado do predicado
titularidade.
O imediatismo é vulgar e inexiste política pública, governamental, que não se submeta
à Constituição da República, tão mal-amada nos dias que correm. A hora é de reflexão,
de análise das questões em jogo, de apego à nacionalidade — que longe fica de implicar
isolamento ou saudosismo. O compromisso maior da Corte está voltado à visão fidedigna
do que contido na Lei Maior, à preservação do amanhã, devendo atuar, nesse mister, com
desassombro. Descabe fechar os olhos à situação, sob pena de menosprezo à Carta Federal,
surgindo omissão a ser cobrada futuramente, como um verdadeiro crime de lesa-pátria.813

O tom do trecho escapa à razão pública e ao terreno da imparcialidade constitu-


cional pelo uso de expressões como “visão míope da subserviência”, “entreguismo”,
“apego à nacionalidade”, “crime de lesa-pátria”.814

812
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 187. Em outro trecho do voto, afirma: “Entretanto, vincular a
participação das empresas privadas à entrega da propriedade do bem é desconhecer como o mercado
internacional de petróleo opera e operou ao longo desse tempo, é esvaziar totalmente o instituto do monopólio,
tornando-o ausente de qualquer significado, um mero penduricalho constitucional desprovido de substância”
(p. 190).
813
Voto de Marco Aurélio na ADI nº 3.273-9, p. 204-205.
814
Em artigo sobre o tema da interpretação do Direito do Petróleo, anotamos: “No Direito do Petróleo, e aqui
ingressamos terreno polêmico, há espécie de fundacionalismo que é comum, nem por isso menos danoso: o
hiper-nacionalismo. Este fundacionalismo, esta Verdade Fundadora, costuma perpassar uma série de propostas
interpretativas na área, mas deve, ao menos sob bases pragmatistas, ser rechaçado” (MENDONÇA, José Vicente
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
258 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Até aqui, tanto o relator, Ayres Britto, quanto Marco Aurélio votaram pela in-
constitucionalidade da entrega do produto da lavra à concessionária e, assim, pela
inconstitucionalidade do art. 26 da Lei do Petróleo. A divergência vencedora começou
com Eros Grau, o próximo a votar. Seu voto é bem útil à compreensão das características
do monopólio público.
Eros Grau começou criticando a observação de Marco Aurélio quanto ao petróleo
ser bem público especial, de uso comum pela União, e de uso especial pelas conces-
sionárias. Um bem não poderia ser as duas coisas. Além disso, se realmente fosse um
bem público especial, só poderia ser alienado se viesse a ser desafetado, i.e., caso já não
servisse ao interesse público e à soberania. Ou seja: o petróleo, em última análise, seria
inalienável — conclusão inadmissível.815
A parte mais importante de seu voto, e, em rigor, de toda a discussão da ADIN,
é a seguinte: segundo Eros Grau, com base em Fábio Konder Comparato e Pontes de
Miranda, o monopólio é sempre da atividade econômica, e nada tem a ver com o domínio e a
propriedade. E mais: a propriedade é sempre exclusiva, de modo que não faz sentido
falar em “monopólio da propriedade” ou expressões semelhantes. O art. 177 listaria
atividades que são monopólio da União, e não bens.
[...] O monopólio é de atividade, não de propriedade. Isso explica porque a propriedade do
resultado da lavra de jazidas de petróleo, gás natural e de outros hidrocarbonetos fluídos
pode ser atribuída a terceiros pela União, sem qualquer ofensa à reserva do monopólio
contemplada no artigo 177 da Constituição.816

A atribuição da propriedade do produto da lavra das jazidas ao concessionário


seria inerente ao modo de produção social capitalista. Haveria quase que impossibilidade
material na concessão se fosse de outro modo. No mais, a escolha de um modelo de
contrato de concessão para a exploração do petróleo seria uma escolha política à qual
não seria dado o Judiciário se imiscuir. O monopólio público do petróleo permaneceria
íntegro; antes, ia até à propriedade da lavra; agora, restaria circunscrito à atividade —
no que continuaria tão monopólio quanto antes.
Argumento final: como a Petrobras exerce atividade econômica em regime
de concorrência com outras empresas privadas, declarar a inconstitucionalidade do
regime de concessão petrolífera previsto na Lei nº 9.478/97 significaria inviabilizá-la
economicamente, na medida em que não se teria como lhe outorgar a exploração do
petróleo, a não ser por intermédio de contrato precedido de licitação em igualdade às
demais empresas privadas. Até que viesse uma nova regulação, ela seria remetida a
uma espécie de limbo jurídico.
Os votos dos demais Ministros, com algumas observações e ressalvas, acom-
panharam as duas linhas instaladas. Interessante é a citação do Consultor-Geral da
União, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, feita por Ellen Gracie, que, de certa forma,
é vindicação de uma interpretação constitucional judiciária filtrada pela razão pública:
Mesmo que ao intérprete “engajado” fosse fácil perceber a eventual precipitação do legis-
lador em permitir por-se à distribuição de concessões sem o cuidado do abastecimento

Santos de. O pragmatismo jurídico e a revisão dos prazos dos contratos de concessão petrolífera: limites e
possibilidades do argumento pragmático).
815
Voto de Eros Grau na ADI nº 3.273-9, p. 208-209.
816
Voto de Eros Grau na ADI nº 3.273-9, p. 219, grifos no original.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
259

futuro ou da refletiva preservação do resultado da lavra, parece inafastável a consideração


inescondível de que o Texto Constitucional atual tolera a pesquisa e a lavra das jazidas
de petróleo e gás natural e a exportação dos seus derivados mediante contratação com
empresas estatais ou privadas, observadas as condições previstas em lei.
Em outros termos, o monopólio está mitigado e é desse patamar exegético que o intér-
prete ficou obrigado a reconstruir a tese monopolista, ao menos enquanto convier ficar
limitado à extração do sentido técnico da Constituição, posto que a discussão da opção
político-econômica do Constituinte tem o foro próprio.

A Lei do Petróleo foi declarada inteiramente constitucional.


Outra decisão do STF, mais recente, que envolveu o conceito de monopólio foi a
ADPF dos Correios, questionando a exclusividade da prestação do serviço de correio
postal pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ADPF nº 46). A tese prevale-
cente no acórdão817 foi a do Ministro Eros Grau, que, em síntese, alegou ser a atividade
dos Correios serviço público, e não atividade econômica em sentido estrito, motivo pelo qual não
eram pertinentes as alegações de violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência
(tese da requerente). E, em sendo serviço público, incidem alguns privilégios, inclu-
sive, em regra, o da exclusividade na prestação, benefício que se faz, até, em proveito
de empresas privadas, quando se coloquem na posição de executoras do serviço. Eros
Grau ainda defendeu que o serviço postal só restaria aberto à iniciativa privada se a
Constituição da República o afirmasse expressamente, assim como o faz para a saúde e a
educação, serviços públicos que podem ser prestados independentemente de concessão
ou prestação pelos particulares em virtude de determinação constitucional específica
(seriam duas atividades que estariam excluídas do art. 175 por força dos arts. 109 e 299,
todos da Constituição de 1988).818
Da análise dessas duas decisões do STF, podemos identificar algumas caracterís-
ticas do monopólio público tal como entendido hoje. Ele (i) implica a exclusividade na
prestação de um serviço e/ou no fornecimento de um bem, (ii) incide sobre uma atividade,
isto é, é o exercício exclusivo de uma atividade, (iii) pode ou não englobar a titularidade
exclusiva dos bens com base nos quais se vai exercer a atividade (que, essa sim, sempre será
exclusiva de um único operador público), (iv) incide sobre uma atividade econômica em
sentido estrito, (v) não está sujeito à incidência da livre iniciativa e, em especial, da livre
concorrência, (vi) o monopólio do petróleo foi de algum modo “flexibilizado” ou relativizado
pela Emenda à Constituição nº 9/95, o que aparentemente significa poder-se admitir que
entidades não públicas exerçam materialmente algumas atividades, sendo que sua
titularidade será, sempre, pública.819
O fato de que ele (i) implica a exclusividade na prestação ou no fornecimento de
um bem não constitui nenhuma novidade: esse é o núcleo de significado da palavra
“monopólio”. A ideia de que (ii) (iii) incida sobre uma atividade, e não necessariamente
sobre os bens, foi a grande tônica do voto de Eros Grau, e assim já o vinha sendo afir-
mado pela doutrina. A observação de que “falar-se em monopólio da propriedade” não

817
Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608504>.
818
V. Informativo STF, n. 554, e os Informativos, nºs 392, 409, 510. A França também está passando por discussão
a respeito da liberalização de seus serviços postais para a concorrência, influenciada, principalmente, por
algumas diretrizes comunitárias da União Europeia. Desenvolver em Grégoire Calley (L’exploitation publique des
services postaux).
819
Vitor Schirato defende que, hoje em dia, só existem duas estatais operando verdadeiramente o monopólio
público: as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a Eletronuclear (SCHIRATO. Novas anotações sobre as
empresas estatais. Revista de Direito Administrativo, p. 220).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
260 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

faz sentido também é digna de aplausos — a propriedade, em regra, é exclusiva (há


hipóteses de copropriedade) —, embora provavelmente quem fala em “monopólio da
propriedade” quer com isso dizer que a propriedade não pode admitir um novo dono,
e não que seu dono seja, enquanto dono, um “único” dono. Também as afirmações
doutrinárias devem ser interpretadas de modo a que façam sentido. É evidente que, na
condição de monopólio, (v) a ele não se aplica a livre concorrência, elemento da livre
iniciativa, embora outros aspectos da livre iniciativa sejam, talvez, aplicáveis ao regime
do monopólio, ainda que com algumas mitigações (por exemplo: pode haver alguma
liberdade de lucro). Os itens (iv) e (vi) — o monopólio incidir sobre uma atividade
econômica em sentido estrito e o monopólio do petróleo haver sido “flexibilizado” —
merecem parágrafo à parte.
De fato, (iv) monopólio incide sobre uma atividade econômica em sentido estrito.
Em outras palavras, monopólio público não é igual a serviço público. Por outro lado,
(vi) uma vez que a “flexibilização” do monopólio significa, pelo que se viu da decisão do
Supremo no caso da Lei do Petróleo, que a atividade pode ser executada por empresas
privadas, ainda que sua titularidade continue pública, começa a haver proximidade
entre os regimes jurídicos do monopólio (do petróleo) e do serviço público (já que o
art. 175 permite a delegação da execução do serviço público à iniciativa privada, mas
a titularidade continua com o Poder Público).
E é esta a nossa tese: atualmente, há enorme proximidade, na prática, entre o
regime do monopólio público do petróleo e o regime do serviço público. Em ambas, o
instrumento da delegação da execução das atividades é a concessão (no caso de áreas
estratégicas e do pré-sal, a partilha de produção);820 em ambas, a titularidade continua
com o Estado.821 822
Qual a diferença? Resta, ainda, uma diferença por assim dizer ontológica, na es-
sência das atividades. O “interesse público” por detrás do serviço público é um interesse de
satisfação de necessidades coletivas, de oferecimento de comodidades aos cidadãos. O “interesse
público” que anima o monopólio público é um interesse estratégico, de segurança nacional,823
de defesa do país, de controle de substâncias perigosas (exemplo: material nuclear), tudo isso
muitas vezes qualificado por um interesse fiscal. Na essência, o serviço público atende a um
interesse público, na melhor raiz do termo; o monopólio público atende antes a um

820
V. WATT NETO. Petróleo, gás natural e biocombustíveis: doutrina, jurisprudência e legislação.
821
A própria relevância da distinção entre o que é objeto de monopólio público e o que é atividade privada,
exercida pelo particular por direito próprio, vai diminuindo. Leia-se a opinião de Carlos Ari Sundfeld: “Neste
novo momento diminui a relevância jurídica da distinção entre as atividades da indústria do petróleo objeto
de monopólio e as que escapam desse monopólio. É que em ambos os casos é possível a atuação privada, sob
a regulação federal. A utilidade da distinção permanece apenas, parcialmente, no tocante ao instrumento para
acesso empresarial ao setor. Usa-se uma concessão para outorgar o direito de exploração e produção de petróleo
e gás, que fazem parte do monopólio. Para as demais atividades usa-se a autorização” (SUNDFELD. Regime
jurídico do setor petrolífero. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico, p. 391, grifos no original).
822
É curioso como a ideologia, por vezes, influencia intensamente a doutrina. Gastão Alves de Toledo, ao comentar a
“flexibilização” do monopólio do petróleo, afirma que tais reformas constitucionais significariam “a possibilidade
de harmonização da Constituição consigo mesma, ao suprimirem-se algumas distorções e antinomias ideológicas prejudiciais
à funcionalidade do sistema que ela preside”. Ou seja: é como se existisse uma ideologia constitucional “correta”;
ou, no mínimo, o autor supõe que a Constituição brasileira não deveria ser compromissória (TOLEDO. O direito
constitucional econômico e sua eficácia, p. 263).
823
É por isso que tendemos a concordar com Eros Grau quanto a que a “intervenção direta” que se faça sob o
propósito do “imperativo de segurança nacional” (art. 173) ocorra, preferencialmente, sob regime de monopólio
público.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
261

interesse do Estado do que a um interesse público (embora com esse obviamente não
possa ser incompatível).824
E isso é o suficiente para uma visão geral do tema dos monopólios públicos.
Adentremos agora ponto específico, que exemplifica o uso de argumentos doutriná-
rios não politicamente imparciais, incapazes de ultrapassar o teste da razão pública.
Referimo-nos à discussão sobre qual pode ser o veículo formal para a criação de monopólios
públicos. Outra discussão conexa é sobre como se deve interpretar a abrangência material
de um monopólio público (ou, de resto, todas as intervenções do Estado na economia).

1.4.3 Como criar e interpretar monopólios públicos sem o uso de


metafísica ideológica
A Constituição brasileira de 1967, com a redação da Emenda nº 1/69, possuía
dispositivo normativo com a seguinte redação:
Art. 163. São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada
indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança
nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime
de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.
(grifos nossos)

A redação da Constituição da República de 1988 nada fala a respeito da possibi-


lidade da criação de monopólios públicos por lei ordinária. Apenas lista as atividades
que constituem monopólio da União. Há duas qualificações possíveis para a ausência
de referência, na atual Constituição, à possibilidade de criação de monopólios públicos
por lei ordinária. Ela pode ser caracterizada como omissão do legislador constitucional —
o constituinte deixou de incluir a referência porque acreditava que a possibilidade já

824
Situação curiosa é a do jogo e da aposta. O Decreto-Lei nº 204/67, recepcionado pela Constituição de 1988,
definiu a atividade de loteria como serviço público, a ser exercido exclusivamente pela União, insuscetível de
concessão (art. 1º). O jogo de bingo, uma modalidade de loteria, foi tido como atividade lícita pela Lei Federal nº
8.672/93 (Lei Zico). Posteriormente, a Lei Federal nº 9.981/00, regulamentada pelo Decreto nº 3.659, também do
ano de 2000, proibiu o jogo de bingo no país, respeitando, contudo, as autorizações em vigor até a data de sua
expiração. O artigo primeiro do decreto afirma que “a exploração de jogos de bingo, serviço público de competência
da União, será executada, direta ou indiretamente, pela Caixa Econômica Federal em todo o território nacional”.
No julgamento da ADI nº 2.996, em que se discutia a constitucionalidade da disciplina estadual dos bingos
diante do art. 22, XX, da Constituição, Marco Aurélio, a par de usar por algumas vezes a expressão “monopólio”,
colocou em dúvida a natureza jurídica da atividade. Em nossa opinião, loterias e bingos, explorados
exclusivamente pelo Estado, pelo menos intrinsecamente não são serviço público, na medida em que não
atendem a um interesse público geral. Estariam mais próximos à figura de uma atividade econômica em sentido
estrito prestada em regime de monopólio público, porque sua publicização responde a interesse de controle
de uma atividade e a um propósito de geração de recursos ao Estado. Em sentido exatamente contrário —
porque o propósito da publicização é o controle e porque gera rendas ao Estado, o jogo seria serviço público, e
não atividade econômica em sentido estrito —, v. GRAU; FORGIONI. O Estado, a empresa, o contrato, p. 129-138.
Caio Tácito, em parecer, também acredita que loterias sejam serviços públicos, embora note, significativamente,
que “é certo que a loteria instituída pela União ou pelo Estado não tem a natureza ontológica ou essencial de um
serviço público próprio, como prerrogativa inerente à atividade do Estado. Trata-se de uma forma de canalizar
recursos para a receita pública em sentido lato, como processo de financiamento de atividades de assistência
social ou de benemerência pública” (TÁCITO. Loterias estaduais criação e regime jurídico. Revista dos Tribunais,
p.747-753). Seja como for, uma coisa é certa: quem associa o elemento material do conceito de serviço público ao
atendimento a um direito fundamental, posição que nunca foi a nossa, terá muitas dificuldades de sustentar o
caráter de serviço público de um bingo ou de uma raspadinha.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
262 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

era implícita, ou, simplesmente, porque esqueceu — ou como silêncio eloquente825 — não
falou porque pretendeu vedar a prática.
Embora exista um indício formal a favor da tese de que se trata de silêncio
eloquente (o fato de a Constituição de 1969 não listar os monopólios, e a Constituição
de 1988, ao contrário, fornecer lista de atividades),826 a doutrina brasileira majoritária
prefere se utilizar de outros argumentos. Afora os casos em que ela afirma que é assim
porque é assim,827 ou quando fornece argumentos econômicos ou políticos828 — na
linha “o monopólio não é salutar para o desenvolvimento econômico do Brasil”829 —,
a principal razão justificadora da taxatividade da listagem decorre de raciocínio em
quatro passos: (i) a regra é a livre iniciativa, (ii) o monopólio é exceção, (iii) as exceções
devem ser interpretadas restritivamente, (iv) logo, os monopólios públicos devem ser
interpretados de modo restritivo — o que significa, in concreto, negar a possibilida-
de de que sejam criados por meio de lei ordinária; bastariam os casos expressos na
Constituição.830 Novos monopólios, para a maioria da doutrina, só poderiam ser criados
por emenda constitucional.
As razões não públicas pertencentes a uma doutrina abrangente razoável — no
caso, ao liberalismo econômico — atuam nos passos (ii), (iii) e (iv). Pretendem transfor-
mar o que é uma afirmação política, e, daí, contestável, em objeto científico consensual.
Quanto ao passo (ii), não é necessariamente verdade que o monopólio seja exceção, ao
menos no plano concreto (no plano lógico certamente o é), ao regime da livre concor-
rência, na medida em que nunca houve regime de livre iniciativa que prescindisse da
titularidade pública de atividades. É plausível afirmar que, assim como nas cartas o
coringa, se é exceção aos naipes, não o é ao próprio jogo — ele o integra e nele desem-
penha importante papel —, o monopólio público, se é exceção lógica ao regime da livre
concorrência, não o excepciona no plano da realidade jurídica e política, pois nunca
existiu livre concorrência sem algum grau de monopólio público. Não se teria exceção,
mas peça — destoante — integral ao sistema.

825
Sobre silêncio eloquente, cf. Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito, p. 525); MENDES. Controle de
constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, p. 318-319. Na jurisprudência, STF, RE 130.555/SP, Rel. Min.
Moreira Alves, RTJ, 139/965.
826
TÁCITO. Gás: monopólio; concessão. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, p. 54.
827
“Não há, assim, monopólio privado (a exclusividade da atividade está nas mãos do particular) e, ademais, fora
desse elenco não cabe falar em monopólio” (GASPARINI. Direito administrativo, p. 622).
828
Em linha política, criticando a ideologia — “essa doença da política”, que, “como uma endemia tropical e
subdesenvolvida, teima em retardar a modernização”. cf. MOREIRA NETO. Monopólios estatais: sobrevivência
anacrônica.
829
SCHMITT. Execução das atividades relativas ao monopólio do petróleo. Revista da AGU, p. 1.
830
“A intervenção estatal na economia, portanto, quando não estiver a serviço do valor liberdade, é excepcional,
necessariamente decorrente de dispositivos constitucionais expressos, os quais devem ser objeto de
interpretação restritiva, descabendo qualquer aplicação de métodos hermenêuticos analógicos ou que
possam importar ampliação da atuação estatal no domínio econômico” (EIZIRIK. Monopólio estatal da
atividade econômica. Revista de Direito Administrativo, p. 66, grifos no original). Falando do “viés restritivo” da
interpretação que se deve dar à intervenção do Estado na produção econômica e na fiscalização e regulação, v.
Sergio Ferraz (Intervenção do Estado no domínio econômico geral: anotações. In: BACELLAR FILHO (Coord.).
Direito administrativo contemporâneo: estudos em memória do Professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho).
Afirmando expressamente que a “não atribuição de competência ao legislador federal para criar monopólios
públicos” é “exemplo importante de silêncio eloquente na Constituição de 1988”, v. Luís Roberto Barroso
(Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 211).
Defendendo que o rol de atividades sob monopólio estatal encontra-se taxativamente previsto na Constituição,
não cabendo ao legislador ordinário ou ao operador do Direito ampliá-lo, já que “esta [é] a mens legis que
orienta o legislador constituinte brasileiro, a teor de uma exegese sistemática dos arts. 21, 170, 173 e 177, todos
da CRFB” (FIGUEIREDO. Lições de direito econômico, p. 171).
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
263

“As exceções devem ser interpretadas restritivamente”. É o passo (iii). Qualquer


estudante de primeiro ano já travou contato com esse locus da argumentação jurídica.
Mas se trata de frase polêmica na doutrina,831 e que, em seu uso habitual, costuma esconder
a intenção deliberada de imprimir maior ou menor amplitude àquilo que se esteja chamando de
exceção. “Interpretar de modo restritivo” é expressão que, em si, prepara uma série de
resultados mais ou menos restritivos — e o ponto polêmico (que se pretende esconder
dentro da naturalidade aparente do argumento) é, precisamente, a intensidade da restrição.
Quem vai graduar o quão restritiva essa interpretação das exceções deve ser? É aqui onde
aparece a doutrina abrangente liberal-econômica com seus argumentos de razão não
pública: ela vai defender o seu ponto de vista, e, para fortalecê-lo, pretenderá torná-lo
a voz única e natural, como se fosse derivação lógica da circunstância de se “interpretar
restritivamente” (mas quanto?) uma “exceção” (trata-se mesmo de exceção?).832
A “interpretação restritiva” dessa “exceção” não precisaria significar, necessa-
riamente, a vedação da criação de monopólios por intermédio de lei ordinária (iv),
conclusão que, contra a força democrática embutida numa lei, e construída graças
à presença de uma lista e ao uso não público de um clichê, mostra-se equivocada. O
grande filtro para a criação de monopólios públicos deve ser o conteúdo dos conceitos “relevante
interesse coletivo” e “imperativo de segurança nacional”, presentes no art. 173 da Constituição
da República.833 Se a questão ficar assim delimitada, ao menos o debate será claramente
político, o que é democraticamente positivo. A prevalecer o argumento “jurídico” de
que a Constituição veda a criação de monopólios por emenda, estar-se-ia constitucio-
nalizando, por obra e graça de interpretação doutrinária não pública, uma visão de
mundo. Com resultados bem drásticos.
O problema, como costuma acontecer quando se desconsidera a razão pública, é
de estabilidade e de legitimidade (ver capítulo 1 da primeira parte). Mais uma vez: nada
impediria que, a valerem argumentos não públicos tirados de doutrinas abrangentes,
outros doutrinadores se sentissem convidados a desenvolver suas teorias normativas
decisórias impondo a monopolização de atividades — o que seria o mesmo excesso, só

831
Karl Engisch identifica quatro sentidos em que se pode falar de “interpretação restritiva”. No sentido de (i)
“imediata”, “rigorosa”, contrapondo-se a interpretação “afastada”. Ou pode significar (ii) a relação entre o
sentido de determinado preceito e seu domínio de aplicação: a interpretação restritiva é aquela que refere o preceito
a um círculo menor de casos do que a interpretação extensiva. Pode vincular-se a (iii) um conceito material,
como se fala em in dubio pro libertate, equivalendo ao entendimento de que as leis penais são interpretadas de
forma a limitar, tanto quanto possível, o poder punitivo. Por fim, pode partir da (iv) oposição de interpretação
“restritiva” vs. “extensiva”, vinculando os conceitos às ideias de vontade do legislador e vontade da lei. Assim, é
“restritiva” ou “extensiva” a interpretação tanto quanto sejam os processos necessários para adequar o sentido
da disposição à vontade de um ou outro (ENGISCH. Introdução ao pensamento jurídico, p. 188-197).
832
Para se ver como a doutrina jurídica não é unívoca e não há nada “dado” na interpretação, registre-se a posição
isolada de Eros Roberto Grau a respeito do veículo formal para a constituição de monopólios públicos. Segundo
o ex-Ministro do STF, a ausência de referência a lei ordinária na atual Constituição significa que o monopólio público se
pode constituir mesmo sem lei específica para isso (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 283-285).
833
Não estamos isolados na doutrina brasileira. Embora sem basear a defesa de sua posição na ideia de razão
pública, mas na redação do art. 173 da Constituição da República, leia-se a opinião de Alessandro Walmott
Borges: “A disciplina dos monopólios do art. 177 da Constituição não exclui a definição, por lei, doutros
monopólios — positio unius non est exclusio alterius. O art. 173 fala em exploração direta de atividade econômica
quando imperiosa aos interesses coletivos e à segurança nacional. Configurada qualquer das situações (uma
isoladamente, sem necessidade de apresentação das duas), pode ser instituído monopólio de setor do domínio
econômico. [...] Quando a Constituição, no caput do art. 173, coloca Ressalvados os casos previstos na Constituição,
a exploração direta de atividade econômica [...], está mencionando tanto as hipóteses de exploração em regime
de monopólio como em regime de competição. Lícito, portanto, explorar, quando configurado o interesse
coletivo ou a segurança nacional, nos dois regimes” (BORGES. A Ordem Econômica e financeira da Constituição e
os monopólios: análise das alterações com as reformas de 1995 a 1999, p. 129-130, grifos no original).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
264 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

que com sinal invertido —, as quais, se acolhidas pelos tribunais, resultariam na quebra
da estabilidade do Direito.
Pior é o comprometimento à legitimidade do Ordenamento. Qual a legitimidade
do liberalismo econômico para, diante de Constituição compromissória como a bra-
sileira, constitucionalizar proposições ideológicas? Por que os cidadãos que tiveram
tornadas “inconstitucionais” suas opiniões razoáveis a respeito da intervenção do
Estado na economia haveriam de cooperar nesse Estado?
Por tudo isso, melhor que se admita a possibilidade da criação de monopólios
públicos por lei ordinária. É a saída doutrinária conforme à razão pública, porque não
limita opções de per si, mas permite que as diversas visões de mundo confrontem-se no
campo feito para isso — a política ordinária —, sem inviabilizar, ou, no mínimo, dificultar
a ascendência de visões político-econômicas distintas das atualmente majoritárias.834 835
Os mesmos argumentos e as mesmas respostas são aplicáveis à abrangência material das
atividades sujeitas ao monopólio. Figure-se o caso: determinada lei detalha o conteúdo de
atividade monopolizada pela Constituição. Surge dúvida a respeito de uma atividade.
Não se sabe se está incluída dentro das monopolizadas. Como se aproximar da questão?
Com um preconceito antimonopólio? “Interpretando restritivamente” a “exceção”?
Desde logo aceitando a inclusão da atividade, e de muitas outras, afinal todas são
estratégicas e podem-se reconduzir a alguma ideia de interesse coletivo? Nada disso.
A melhor interpretação constitucional do princípio da livre iniciativa é a que
submete sua abrangência ao critério da razão pública, e, por fazê-lo, considera apenas
argumentos capazes de promover consenso estável entre as diversas doutrinas abran-
gentes. No que isso importa à discussão acerca da abrangência material dos monopólios
públicos, é de se rejeitar visões que incluam ou rejeitem atividades a fórceps. Não há qual-
quer regra de interpretação minimalista ou maximalista da intervenção do Estado na economia.

834
Quanto à liberdade para a criação de monopólios públicos, é possível afirmar que, salvo a discutida questão
sobre sua criação por lei ordinária, a Constituição de 1988 é mais permissiva do que a de 1969. Pois, enquanto
a Carta de 1969 restringe a criação de monopólios estatais aos casos de segurança nacional e, em especial, às
hipóteses em que a iniciativa privada não consegue organizar e desenvolver o setor (“para organizar setor que
não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa”), a Constituição
de 1988, ao mencionar os parâmetros balizadores da intervenção estatal direta (na qual se inclui o monopólio
público), fala (como a de 1969) em segurança nacional, mas também em “relevante interesse coletivo”. Ora,
“relevante interesse coletivo” é conceito que, por indeterminado que seja, significa mais do que “organizar setor
privado que não consiga fazê-lo por conta própria”. A valer as diretrizes hermenêuticas a que tantos, denotativa
e conotativamente, apelam, poder-se-ia argumentar que, como a Constituição de 1988, vista por esse ponto, é
mais liberal do que a de 1969, dever-se-ia aplicar essa mesma vis expansiva ao raciocínio sobre a admissão de sua
criação por lei ordinária. Aliás, é nesse sentido, embora em tom crítico, que Raul Machado Horta, comentando
sobre os primeiros momentos da Constituição de 1988, aludia. V. HORTA. A Ordem Econômica na nova
Constituição: problemas e contradições. In: MARTINS (Coord.). A Constituição brasileira 1988: interpretações,
p. 391): “Sob a aparente restrição da atividade econômica do Estado, a norma constitucional que assegura ‘a
exploração direta da atividade econômica pelo Estado’ (art. 173), além de justificá-la na ressalva dos ‘casos
previstos nesta Constituição’, que são numerosos, autoriza seu exercício ‘quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo’, cujo evidente conteúdo elástico e dilatador — ‘imperativos
da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo’, sempre confiados aos critérios políticos da iniciativa
presidencial e do legislador — poderá igualmente conferir à norma a força da ‘cláusula transformadora’
da Constituição, para tornar a ‘exploração direta da atividade econômica pelo Estado’ no instrumento da
estatização”.
835
Exemplo interessante de monopolização por lei ordinária, em conformidade com um imperativo de segurança
nacional, foi trazido na prova de aula no concurso para a titularidade do professor Daniel Sarmento. Daniel
Sarmento aludiu a uma possível monopolização, por lei ordinária, com vistas a maior controle público, da
produção e distribuição de armas de fogo no Brasil. A propósito: o autor deste livro agradece a seu ilustre
prefaciador as várias citações na referida aula.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
265

A intervenção estatal não deve ser tida como um bem ou mal em si mesma, mas
como uma função destinada a cumprir uma finalidade.836 A intervenção não deve ser
ampliativa ou restritiva, mas proporcional (adequada, não excessiva, justificável) ao
fim a que se destine.
Para concluir o item, uma transcrição de trecho de voto do Ministro Sepúlveda
Pertence, que serve como resumo de boa parte das ideias aqui defendidas.
Não são tipos ideais de princípios e instituições que é lícito supor tenha a Constituição
tido a pretensão de tornar imutáveis, mas sim as decisões políticas fundamentais, fre-
quentemente compromissórias, que se materializaram no seu texto positivo. O resto é
metafísica ideológica.837

1.5 O neointervencionismo estatal como solução (não


constitucionalmente imposta) de compromisso
Se não existe um “princípio constitucional da subsidiariedade” — se ele é uma
diretriz política —, e se a intervenção direta do Estado, seja monopolística ou concor-
rencial, limita-se “apenas” — o que, se levado a sério, já é muito — pelos requisitos
do interesse público, da proporcionalidade e, no caso da intervenção concorrencial, da
igualdade possível em relação às empresas privadas, estaria a iniciativa privada correndo
risco sob a ordem econômica compromissória da Constituição de 1988?
Não acreditamos nisso. Ao contrário, o Estado e o setor empresarial público
foram e são essenciais à economia privada. É até irônico que essa doutrina de Direito
Econômico, que defende a subsidiariedade como princípio constitucional, a desestatiza-
ção como determinação e o liberalismo econômico como único caminho, depois de um
período de triunfo nos anos noventa, haja de se confrontar com uma crise generalizada
em meados dos anos dois mil, cuja solução foi, em grande parte, Brasil e mundo, ope-
rada por intermédio de mais intervenção do Estado na economia. Por coerência, talvez
tivessem de afirmá-la inconstitucional, o que provavelmente jamais fariam.
Outra saída seria afirmar que nunca de fato afirmaram o que afirmaram: defen-
diam uma subsidiariedade “relativa”, uma ordem constitucional adaptativa. Em alguma
medida, esse posicionamento doutrinário é sintomático da relação que muitas empresas
têm com o Estado, e que, com o perdão da analogia sexista, parece a que alguns teriam
com uma namorada feia: às escondidas, todos a amam; às claras, a primeira coisa a
fazer é rejeitá-la. Mais do que injusto, é cruel.

836
Eros Roberto Grau, em tom crítico, sustenta que algumas manifestações doutrinárias (“que sequer podem
constituir doutrina, visto como nutridas no emocionalismo político”) veiculam verdadeiro “delírio antiestatal”.
“Aí, de um lado, é imputado caráter conservador à Constituição de 1988, na medida em que expressa a
‘manutenção do estatismo’, ‘desprezo prático pela liberdade’, ‘desinteresse pela eficiência econômica’, e ‘sinaliza
uma inibição xenófoba à internacionalização da economia brasileira’. De outro, a afirmação de que ela é — a
Constituição de 1988 — mais liberal do que a anterior, dado que consagra o predomínio da livre iniciativa; e isso
porque os princípios que a restringem (a livre iniciativa) ‘devem ser interpretados restritivamente!’. Os que assim
deliram, deliberadamente ou porque se deixam levar pelo conhecimento sensível, superficial, enganador, que
não superam pela razão, estão a um passo da proposta de total eliminação do Estado, que, como observa Dalmo
de Abreu Dallari, ‘ou é uma fantasia anarquista, que jamais conseguiu ultrapassar os limites da especulação
teórica, ou então é um ingênuo ou fingido hino de louvor à iniciativa privada, como se esta não quisesse a
participação do Estado como financiador, incentivador, sócio, consumidor ou protetor de direitos e privilégios
econômicos’” (GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 188-189, grifos no original).
837
STF, ADInMC nº 2.024/DF.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
266 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Nos últimos tempos, uma solução para o conflito intervenção estatal versus ale-
gações de desrespeito à livre iniciativa é o que se vem chamando de neointervencionismo
público — solução política, administrativa e infraconstitucional, note-se bem, abrangida
dentro das possibilidades da Constituição Econômica de 1988, mas em hipótese alguma
determinada pelo Texto Constitucional.
Seria posição de compromisso, estratégia intermediária entre a constituição de
estatais, com a subsequente intervenção direta concorrencial (ou até monopolística, a
valer o que sustentamos no item anterior), e a disciplina pública das atividades priva-
das. É possibilidade que se abre ao Poder Público, que dela pode se utilizar conforme
isso se mostre mais eficiente à persecução do interesse público (o que pode significar,
naturalmente, atender ao interesse privado, inclusive ao interesse privado de lucro e
de intervenção mínima do Estado), mas que a ela não está obrigado por nenhum im-
perativo constitucional.
Por neointervencionismo, estamos nos referindo a métodos e técnicas de indução
e de controle soft do comportamento dos agentes econômicos privados, envolvendo,
dentre outras, estratégias como (i) a cooperação entre estatais e empresas privadas
(parcerias societárias), (ii) a detenção de golden shares em empresas privadas (em geral,
depois de privatizadas), (iii) a participação minoritária estratégica em empresas pri-
vadas (“empresas público-privadas”).838 Na definição não se inclui o fomento público,
certamente uma das formas menos invasivas na relação Estado-iniciativa privada,
porque, na essência, as técnicas de fomento não são técnicas interventivas, mas apenas
e tão somente indutivas.
O Estado, na hipótese do neointervencionismo, também não é disciplinador de
atividades privadas. Ele é participante do processo econômico, mas de maneira distinta
do método “clássico” (constituir estatal e concorrer com as empresas privadas/operar
monopólio público). Num capítulo sobre intervenção direta do Estado na economia, o
tema, novo e instigante, não poderia faltar. Só nos desculpamos pela brevidade da aná-
lise: o tratamento doutrinário, apesar de contar com textos inovadores e significativos,839
ainda é escasso. Comentemos algumas das técnicas.
(i) Uma parceria entre uma estatal e uma empresa privada propriamente dita, para
além de constituir prática comum do dia a dia empresarial, pode significar, em alguns
casos, opção estratégica para o Poder Público. O desafio de parcerias dessa natureza é,
de modo ainda mais acentuado do que numa sociedade de economia mista, realizar o
interesse público e garantir lucro, na medida em que a parceira privada, com toda razão,
não precisa admitir externalidade ou condicionante social a seu propósito lucrativo.
Em princípio, parece-nos que as parcerias de estatais com empresas privadas
prestam-se a fomentar setores da economia — leia-se: dinamizar o setor via competição
potencializada. Assim, por exemplo, não caracterizaríamos como neointervencionismo
estatal a participação da Petrobras nos consórcios de concessionárias para a exploração e,
eventualmente, desenvolvimento e produção de petróleo e/ou gás natural. A participa-
ção da economia mista nesses consórcios dá-se como simples método racional-econômico
de divisão dos altos riscos da fase de exploração. O Poder Público, aqui na condição de

838
ARAGÃO. Empresa público-privada. Revista dos Tribunais, p. 33-68.
839
Dentre eles, vejam-se as significativas contribuições de FIDALGO, Carolina Barros. O Estado Empresário: das
sociedades estatais às sociedades privadas com participação minoritária do estado. São Paulo: Almedina, 2017;
e SCHWIND, Rafael Wallbach. O Estado Acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação
estatal. São Paulo: Almedina, 2017.
CAPÍTULO 1
A INTERVENÇÃO DIRETA DO ESTADO NA ECONOMIA POR ENTRE TRAUMAS E TABUS
267

sócio controlador, não faz mais do que sua obrigação como agente econômico racional:
dividir altos riscos que custam muito.
Outra situação seria uma hipotética parceria entre estatal que atuasse no mercado
minerário e empresa privada claudicante, com o propósito de fazer frente ao domínio
de fato representado por outra empresa privada local. Como mais concorrência é, em
geral, algo positivo, a participação da estatal se prestaria a concretizar esse propósito
público sem ferir a busca pelo lucro de sua parceira estritamente privada. Teríamos,
então, neointervencionismo.
(ii) A detenção de golden shares — ações concedentes de direitos especiais a seus
proprietários — foi e é técnica comum de que o Estado se vale para manter algum grau
de controle sutil em empresas privatizadas. Embora certa doutrina não veja com bons
olhos a estratégia,840 denunciando que, por vezes, a propriedade pública das golden shares
faz surgir privatizações formais, mas não materiais,841 fato é que a técnica mostra-se
opção intermédia entre a intervenção concorrencial, que se pode mostrar excessiva, e
a simples disciplina das atividades econômicas, que se pode mostrar flébil.
(iii) A participação minoritária, como sócio estratégico, por exemplo, por inter-
médio de acordo de acionistas, em empresas privadas, na constituição do que alguns
já chamam de empresas público-privadas, é técnica de neointervencionismo estatal. O
Poder Público pode participar de empresas sem que precise de autorização legislativa
específica para tanto — se sequer precisa para constituir subsidiária de estatal (ver
discussão acima), que dirá numa participação minoritária em empresa privada842 —,
tampouco precisa licitar sua participação na empresa, na medida em que a affectio
societatis não é licitável.843 Ainda mais: aqui, o problema não é só de affectio, mas do
próprio interesse público, que se concretiza no propósito de participar da empresa com
vistas a influenciar aquela entidade para a realização de uma determinada atividade econômica
num certo setor e em certo lugar. Ora, ninguém licita propósito estatal.
O neointervencionismo abre inúmeras possibilidades, sem falar nas diversas
indagações jurídicas. Por exemplo: estratégias mais agressivas de neointervencionismo
atraem a fiscalização do Tribunal de Contas às entidades privadas parceiras do Poder
Público, mas até que ponto? Haverá limite temporal para o neointervencionismo?844
Quais os riscos concorrenciais dessas intervenções?845 Como minorá-los?

840
“Seja dissuadindo o investimento directo, seja desencorajando o investimento de carteira, as golden shares — a
existência e o modo como são realmente aproveitadas — empobrecem o desempenho empresarial, traduzindo-
se, por essa via indirecta, num prejuízo para aqueles que visavam justamente avantajar. Impõe-se escapar, tanto
quanto possível, a esta lógica, reduzindo ao máximo o seu âmbito de actuação” (ALBUQUERQUE; PEREIRA.
As “golden shares” no Estado português em empresas privatizadas: limites à sua admissibilidade e exercício, p. 67).
841
“A detenção de acções privilegiadas (golden shares) é susceptível de denunciar fenómenos de privatizações
formais encapotados por aparentes privatizações materiais. No entanto, a circunstância de o conjunto de
poderes que tradicionalmente acompanha a detenção de acções privilegiadas (golden-shares) equivaler aos
poderes de uma minoria de bloqueio não nos permite concluir, de forma decisiva, nesse sentido” (RODRIGUES.
“Golden-shares”: as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, p. 430).
842
Desde, é claro, que a participação na empresa privada se alinhe ao plano de negócios da estatal. Nesse sentido,
v. art. 2º, par. 3º, da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais).
843
ARAGÃO. Empresa público-privada. Revista dos Tribunais, p. 58-62.
844
Em palestra na USP, no final de dezembro de 2011, o Professor Floriano de Azevedo Marques Neto defendeu a
temporalidade das atuações neointervencionistas. É ideia razoável, desde que não seja vista como necessidade
intrínseca — daí seria mais um argumento tirado de uma razão não pública —, mas como temporariedade
enquanto subsistência dos fundamentos legitimadores da intervenção.
845
Ao tempo da segunda edição deste livro, estratégias equivocadas de neointervencionismo público virtualmente
destruíram o médio e pequeno mercado de proteína animal no país, concentrando-o no grupo JBS, que se
encontra sendo investigação sob suspeita de corrupção.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
268 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

De todo modo, o propósito deste item, afora apresentar o temário, é alertar que
(antes que o assunto se torne estratégia, em tempos pós-crise, da doutrina que vê cons-
titucionalismo econômico como sinônimo de constitucionalismo liberal) não há nada
na Constituição brasileira de 1988 que imponha o neointervencionismo como estratégia
“subsidiária” preferencial: ele vai valer à medida que satisfaça de modo mais inteligente
ao interesse público.

1.6 Conclusão parcial: longe da metafísica ideológica, rumo ao (neo)


intervencionismo democrático da eficiência
Eficiência na obtenção do interesse público tem a ver com pragmatismo; demo-
cracia tem a ver com razão pública. A interpretação constitucionalmente adequada da
intervenção direta do Estado na economia, seja concorrencial ou monopolística, tem de
superar traumas e tabus e orientar-se apenas por estes critérios: propor as mais eficientes
soluções, fundadas na realidade, antecipando e analisando consequências, descartando
“verdades” apriorísticas, na perspectiva de que nossa Constituição é plural e se abre
ao entrechoque de ideias e de projetos existenciais.
CAPÍTULO 2

A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS

PRAGMATISMO E RAZÃO PÚBLICA COMO NOVÍSSIMOS


LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA

2.1 Introdução
Das atividades do Estado, a única que lida quase que exclusivamente com a
restrição e a conformação de liberdades individuais é o exercício do poder de polícia.846
Natural que desperte atenção: a bibliografia a respeito do controle do poder de polícia
é copiosa.847 No capítulo que se inicia, percorremos questões conceituais acerca do po-
der de polícia, sempre à luz do pragmatismo e da razão pública, mas tais “princípios”
aparecerão em especial na condição de novíssimos critérios de controle do exercício de
tal atividade pública. O eixo condutor do capítulo é a análise dos limites ao exercício
da polícia administrativa.
Podem-se dividir os critérios de controle em duas categorias: quanto à cronologia
e quanto à abrangência do controle.
Há limites clássicos e limites novos ao exercício do poder de polícia.
Por limites clássicos referimo-nos aos elementos848 dos atos administrativos, ao
respeito ao devido processo e à circunstância de o exercício do poder de polícia dever
ser precedido de habilitação legal clara e consistente. O poder de polícia classicamente

846
“Trata-se do tema que mais diretamente se insere na encruzilhada autoridade-liberdade, Estado-indivíduo, que
permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se, pois, muito sensível à índole do Estado e às
características históricas, políticas e econômicas dos países” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito
Administrativo, p. 89).
847
Na dogmática brasileira recente, recomenda-se, por todos, MEDAUAR; SCHIRATO (Coords.). Poder de polícia na
atualidade. Ainda, BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas,
econômicas e institucionais do Direito Administrativo Sancionador. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
848
Há variação, na doutrina, a respeito de como se deve chamar a competência, a forma, a finalidade, o motivo e o
objeto do ato administrativo. Alguns chamam de elementos do ato; outros, de requisitos (por sua vez, divididos
em intrínsecos e extrínsecos); outros, de pressupostos. O debate tem sabor doutrinário. E a polêmica continua ao
momento da própria identificação dos elementos (seja lá como se chamem). Apenas registraremos a existência
da polêmica, mas adotaremos, por sua popularidade, os aspectos do ato administrativo indicados por Hely
Lopes Meirelles. E, por simplicidade, vamos chamá-los de “elementos”. V. MEIRELLES. Direito administrativo
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
270 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

válido é aquele materializado num ato administrativo respeitador da competência, da


forma legal, da finalidade pública, com motivo e objeto existentes e válidos. É o exercí-
cio da polícia que se faz com base numa autorização legal e cuja imposição de sanção
submete-se a um processo prévio.
Novos limites são o resultado da elaboração doutrinária dos últimos anos. Estamos
falando, em primeiro lugar, do respeito à dignidade da pessoa humana, e, então, dos
conceitos-chave da proporcionalidade e da preservação do núcleo essencial dos direitos
(eventualmente fundamentais) restringidos ou condicionados pelo poder de polícia.
Há, ainda, limites formais e limites materiais incidindo sobre o exercício da polícia
administrativa.
Formais são alguns dos limites clássicos: a competência é o respeito a uma norma
legal autorizativa do exercício de deveres-poderes; a forma é, por definição, e por mais
que não se reduza ao respeito anódino de formalidades, o cumprimento de deveres
insubtanciais (uma licitação dirigida pode ser formalmente válida, para isso bastando
que seus atos constitutivos hajam sido publicados na imprensa oficial com a antece-
dência devida etc.).
Materiais são alguns dos outros limites clássicos — finalidade, motivo e objeto —
e todos os limites mais recentes.849 É dizer: ao analisar se, por exemplo, um ato de
polícia fere a dignidade do homem, está-se verificando algo além do encaixe entre pre-
visão normativa e realidade praticada pela Administração. Os limites materiais são,
em termos dogmáticos, os mais férteis, mas também os mais perigosos. Boa parte dos
avanços doutrinários no Direito Público dos últimos tempos veio do “descobrimento”
de novas limitações ao conteúdo dos atos administrativos; porém, há o risco de, sob a
capa do controle, estar-se exercendo a asfixia ou o decisionismo.
Ora, o uso da razão pública e do pragmatismo como critérios de controle do poder
de polícia é mais recente do que os mais novos controles modernos — daí o adjetivo
“novíssimo” empregado no título do capítulo —, e, assim como a grande maioria, são
também limites materiais. Pressupõem uma análise de fundo do ato administrativo com
base no qual se vai exercer a polícia. É por isso que são, ao mesmo tempo, interessantes
e perigosos.

brasileiro, p. 148-152. Para discussão sobre a variedade de nomenclatura existente na matéria, v. OLIVEIRA. Ato
administrativo, p. 73-77.
849
O respeito ao devido processo legal é critério, em princípio, formal. Diz-se em princípio porque é comum a
referência a um devido processo legal de natureza substantiva, expressão de origem americana que possui
índole material, confundindo-se com o juízo de razoabilidade e/ou de proporcionalidade. A respeito do tema,
v. CASTRO. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; MARTEL. Devido processo
legal substantivo: razão abstrata, função e características de aplicabilidade. Já o respeito à legalidade pode
ser entendido em duas acepções, variando, aí, o qualificativo: quando se fala numa legalidade em sentido
formal, pensa-se num critério insubstancial, isto é, num critério que se presta à aplicação por intermédio de
subsunções simples. Quando se fala numa legalidade em sentido material, refere-se à inclusão, na aplicação ou
na interpretação da lei, de juízos de conteúdo.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
271

2.2 Poder de polícia: revisão doutrinária


2.2.1 Origem e sentidos da expressão “poder de polícia”. Base legal
e constitucional. Em defesa de um “poder de polícia” que ousa
dizer o nome
É até difícil dizer o que significava, em sua origem histórica, o termo “polícia”.
Provavelmente significava toda a ação do Estado. Sua origem etimológica é polis, pala-
vra grega para cidade.850 851 No século XVIII, toda atividade desempenhada pelo Estado
era chamada de polícia — et pour cause, o Estado então constituído chamou-se Estado
de Polícia —, daí a existência de termos como ius politiae, empregado para se referir ao
Direito Público como um todo. Nesse sentido, “polícia” aparece até em Os Lusíadas.852
Mesmo então já se identificavam duas modalidades para essa superabrangente polícia:
uma polícia da ordem (cura avertendi mala futura) e uma do bem-estar e da prosperidade
(cura promovendae salutis — v., a esse respeito, o próximo capítulo, na distinção entre
fomento e polícia). Dois conteúdos que, grosso modo, ainda se preservam até hoje.
Com o tempo, foi-se definindo de modo mais próximo ao atual o que significa-
ria a ação de polícia: atuação pública de restrição de direitos individuais em favor da
coexistência em sociedade. Ficaram, contudo, resquícios dessa polícia como ação geral
do Estado: até hoje, police power, nos Estados Unidos, é uma atuação ampla do Estado,
especialmente em sede legislativa.853 No Brasil, também há essa acepção de polícia ad-
ministrativa como edição de leis ou atos normativos, apesar de que tal sentido, aqui,
é menos comum.
De Camões, passando pelos Estados Unidos, até o Brasil de hoje, fala-se num
sentido amplo e num sentido estrito para a polícia administrativa. O sentido amplo é o
sentido de seu uso nos EUA, do qual, se adotamos a expressão — “poder de polícia”,
corrente no Brasil, é tradução do inglês, e foi incorporada à nossa doutrina graças a

850
LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 305-306.
851
Odete Medauar traça um histórico da noção: se, na Antiguidade, a palavra “polícia” significava a constituição
do Estado ou da Cidade – isto é, o Ordenamento Político do Estado —, seu uso na Idade Média acompanhou
tal tendência ao menos até o século XI, quando, de seu conteúdo, foi retirado o aspecto referente às relações
internacionais. A autora informa que, já na Idade Média, utilizava-se a noção em sentido próximo ao atual,
e nesse uso medieval estariam os antecedentes da concepção moderna, não nos regulamentos de polícia do
Código Geral da Prússia, de 1794, muitas vezes citados como precursores. V. MEDAUAR. Poder de polícia.
Revista de Direito Administrativo, p. 90. Outra boa análise histórica acerca das origens da polícia está em
Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 24-46) (“La policía en la historia”). Para uma revisão da
história do conceito especificamente na história francesa, v. MINET. Droit de la police administrative, p. 8-14.
852
No final da obra, Canto X, estrofe 92, numa parte da apresentação da Máquina do Mundo – o funcionamento do
Universo de acordo com o modelo das esferas de Ptolomeu – feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama, ela lhe fala
(grifos nossos): “Vês Europa Cristã, mais alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza”. O sentido do trecho
é claro: a Europa cristã era superior às outras regiões do mundo em poder (fortaleza) e na qualidade de sua
administração. Há outros dois usos da palavra ao longo do poema (no Canto VI, estrofe 2, e no Canto VII, estrofe
12), mas o sentido relatado no corpo do texto aparece de modo mais evidente na estrofe que transcrevemos.
853
É nesse sentido que aparece na obra de Ernst Freund, Professor da Universidade de Chigaco, Police Power (1905).
Disponível em: <http://ia360608.us.archive.org/1/items/policepowerpubli00freuuoft/policepowerpubli00freuuoft.
pdf>. Acesso em: 10 jan. 2010. No mesmo sentido, em texto mais recente – embora afirmando que “os poderes de
polícia do Estado são assunto considerado morto e sepultado pela maior parte do século XX” —, v. REYNOLDS.
The Evolving Police Power: Some Observations for a New Century. Hastings Constitutional Law Quartely. Caio
Tácito informa-nos que a expressão police power surgiu, nos Estados Unidos, num voto de Marshall havido, em
1827, no caso Brown vs. Maryland (Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 549). Ainda sobre a expressão
americana, inclusive citando o trecho do voto no qual a expressão aparece pela primeira vez, v. CRETELLA
JÚNIOR. Tratado de direito administrativo: poder de polícia e polícia, p. 4-5.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
272 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ruy Barbosa e Aurelino Leal —, não adotamos o sentido: “no Brasil, poder de polícia é,
sobretudo, atividade administrativa”.854 O sentido estrito é o sentido próprio: atividade855
do Estado que consiste em limitar o exercício de direitos privados em função do interesse
coletivo. Da frase simples, temos três conteúdos significativos — a atividade é do Estado,
ela limita o exercício de direitos privados e ela se faz em virtude do interesse coletivo.
Apesar de não mais abarcar “toda a atividade administrativa”, como no século
XVIII, seu espectro de abrangência é amplo: há uma polícia dos costumes; uma polícia
sanitária; uma polícia industrial; uma polícia das construções etc. Nos últimos tempos,
contudo, referências a uma polícia administrativa econômica caíram em desuso, nem
tanto por demérito da expressão, mais pela ascensão do termo “regulação” (ver discussão
adiante, ainda neste capítulo, sobre a distinção entre poder de polícia e regulação). Em
rigor, há mesmo impossibilidade lógica na delimitação precisa dos contornos da polícia
administrativa, já que seu objeto será toda atividade humana com possível repercus-
são social e que escape à esfera da intimidade/privacidade.856 É possível imaginar, por
exemplo, uma polícia administrativa da internet — se isso seria bom ou ruim é outra
discussão.857 Na França, país onde, tradicionalmente, o fundamento da polícia era apre-
sentado como a defesa da Ordem Pública, conceito-chave no qual se incluem apenas
a segurança, a saúde e a tranquilidade públicas, a expansão da abrangência policial
levou, inclusive, alguns autores a colocarem o conceito “em crise”858 — coisa que não se
resolve rejeitando a noção, mas lhe expandindo os limites. Mas já retomaremos o ponto.
O Direito Positivo brasileiro possui definição de poder de polícia, contida no
art. 78 do Código Tributário Nacional, cuja listagem de conteúdos é exemplificativa:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da Administração Pública que, limitando
ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato,
em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes

854
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 95. Marcelo Caetano afirma que a expressão
“lei de polícia” não deve confundir: significa, apenas, que a polícia pode ser objeto de atividade legislativa. “Mas
a actividade pela qual o Estado cria as leis de polícia não é, em si, actividade policial, pois esta tem natureza
administrativa e aquela caráter legislativo” (Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270). Eliezer
Martins investe contra a denominação “poder de polícia” (veremos que isso é comum entre os que escrevem
sobre o assunto), com base na amplitude significativa da expressão: “Trata-se de designativo manifestamente
infeliz. A expressão engloba, portanto, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes
de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos”. Ora, essa crítica aplicar-se-ia a qualquer termo
abrangente. Por exemplo: Justiça designa tanto um aparato institucional quanto a qualidade dos atos justos.
Seria a designação Justiça “manifestamente infeliz”? De resto, a verdade é que ninguém nunca se confundiu
quanto a qual polícia se esteja referindo: em primeiro lugar, porque o uso de polícia no sentido de edição de leis
é raro no Brasil; em segundo, porque, nos casos em que é utilizado, ou o sentido é deduzido pelo contexto ou
se usa o termo lei de polícia, que também não deixa dúvida acerca de sobre o que se está tratando (MARTINS.
Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico,
v. 2, p. 345).
855
“Atividade” ou “função”, e não instituição ou grupo de funcionários públicos (CHAPUS. Droit administratif
général, t. I, p. 697).
856
“A polícia intervém nas actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais. Só aquilo que
constitua perigo susceptível de projectar-se na vida pública interessa à Polícia, e não o que afecte interesses
privados ou a intimidade das existências pessoais” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo,
p. 270-271, grifos no original).
857
Falando de uma “polícia bromatológica” (higiene dos alimentos) e de uma “polícia genética”, v. PESTANA.
Direito administrativo brasileiro, p. 507.
858
LINOTTE. L’unité fondamentale de l’action administrative ou l’inexistence de la police administrative en
tant que catégorie juridique autonome. In: LINOTTE (Org.). La police administrative: existe-t-elle?, p. 10-28,
especialmente p. 10-19.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
273

de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à


propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Não é a única referência ao tema em nosso Direito Positivo. A própria Constituição


da República de 1988, em seu art. 145, inciso II, ao distribuir a competência tributária,
fala que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir taxas
em razão do exercício do poder de polícia. É por essa razão que o poder de polícia também
é estudado no Direito Tributário, como qualificativo de uma espécie tributária; no
Direito Administrativo, como modo de ação administrativa, poder jurídico ou poder
administrativo; e no Direito Constitucional, como atuação do Estado que se limita pelos
direitos fundamentais e pela proporcionalidade.
Pois, por muito estudado que seja, e talvez até por isso, não lhe cessam as con-
trovérsias. Vejamos algumas delas, então.
O poder de polícia, ao contrário dos serviços públicos, não vive em crise, o
que é de se estranhar, já que pouca gente parece gostar dele. Acusa-o de ser ou inútil
ou equivocado (e se trataria de equívoco perigoso). A primeira crítica, a da inutilidade,
foi verbalizada por Agustín Gordillo, em 1960: o poder de polícia seria inespecífico;
confundir-se-ia com a atividade administrativa em geral; com a ampliação da área de
atuação da Administração, e com a pluralidade de meios para isso, haveria uma indis-
tinção entre a atuação “de polícia” e a atuação geral da Administração, ontologicamente
inseparável da função de condicionar direitos. Assim, justamente por englobar boa parte
da atuação administrativa do Estado, não haveria utilidade científica no conceito.859 860
A segunda crítica não diz respeito ao conteúdo do poder de polícia, mas à as-
cendência histórica da noção e a um mau uso potencial implícito na expressão (e que
se pretenderia exorcizar pelo seu abandono).861 Explica-se.
O poder de polícia seria atributo essencial do Estado de Polícia, não dos atuais
Estados Democráticos de Direito. Por conta disso, a expressão teria envelhecido mal.
Mais ainda, haveria ocorrido uma espécie de desvio conceitual intrínseco no termo, já
que a palavra “poder” remeteria à época em que Administração Pública exercia-o antes
e independentemente da lei. Sem contar que a expressão poderia fazer supor a exis-
tência de um poder discricionário implícito e ilimitado de interferir na vida privada.862

859
“Não existe hoje em dia uma ‘noção’ autônoma e suficiente de ‘poder de polícia’; não existe porque essa função
se distribuiu amplamente dentro de toda uma atividade estatal. A coação estatal atual ou virtual aplicada por
algum de seus órgãos sobre os particulares para a consecução de determinados objetivos de bem comum ou
de ordem pública segue sendo uma realidade no mundo jurídico, porém não é que exista uma parte dessa
coação, uma parte desses órgãos e uma parte desses objetos que se encadeiem entre si diferenciando-se do
resto da ação estatal e institucionalizando-se no mencionado ‘poder de polícia’” (GORDILLO. Tratado de derecho
administrativo, t. II, p. V, p. 13-14).
860
Outros autores, sem necessariamente aceitarem as conclusões de Gordillo quanto à não utilização da expressão,
também mencionam a dificuldade de se precisar um “poder de polícia” diferenciado da atuação executiva
geral. Assim, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 9-10).
861
GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 104-106. A crítica vem desde a
doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola, italiana e argentina.
862
“Daí o perigo da contaminação semântica que implica utilizar o conceito de polícia para englobar o que não
é mais do que um conjunto inorgânico de atividades administrativas de limitação; um conceito que gera uma
tendência a supor a existência de potestades interventoras onde não existem, que legitima a criação de poderes
implícitos ou ‘naturais’ onde não podem existir ou, quando menos, que propicia interpretações expansivas e
ampliadoras das potestades criadas pela lei, em prejuízo da liberdade” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de
derecho administrativo general II, p. 250). É verdade que, em usos doutrinários remotos, como no de Otto Mayer, o
poder de polícia estava, sim, associado a um dever geral, imposto aos administrados, de respeitar a boa ordem
social – coisa que é incompatível com o Estado de Direito, ao menos na forma como entendido hoje, em que
corretamente se postula que só existem, para os administrados, deveres legais.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
274 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Por fim, tratar-se-ia de expressão metodologicamente insustentável nos Estados


modernos, na medida em que partiria da ideia do poder do Estado como noção fun-
dante do sistema de Direito Público, quando se deveria partir da ideia de direitos dos
indivíduos para depois se chegar à atuação pública (questão essencialmente de ênfase,
mas que diria muito).
Em suma: a polícia administrativa é acusada de ser ou um grande nada e/ou
uma noção velha, perigosa e com passado sinistro. A partir daí duas são as opções:
ou se abandona o uso do conceito, ou se modifica a sua denominação — as sugestões
são variadas: limitações administrativas à liberdade e à propriedade,863 atividade ad-
ministrativa de limitação,864 teoria dos atos de gravame,865 atividade de ordenação,866
Administração Ordenadora.867 E muitos outros nomes ainda surgirão.
Vamos refutar as críticas partindo da segunda para a primeira.
Os críticos têm razão quando sublinham a origem autoritária da expressão, mas
talvez exagerem quando falam dos riscos de sua manutenção. Ao tempo que se reco-
nhece que palavras têm poder,868 também se afirma que muitos símbolos podem ser
depurados. Não há nada de errado em se utilizar expressão (significante) consagradíssima
na doutrina, nacional e internacional, desde que fazendo ressalva quanto à evolução
do conteúdo (significado).
A questão não é nem a referência constitucional, embora isso seja importante.869
É o provável pouco ganho, em termos de acréscimo de poder explicativo, em contra­
posição ao ônus concreto de se alterar denominação consagrada.870 Longe de estarmos
adotando raciocínio imobilista,871 estamos, sim, procedendo à análise pragmatista (ver
capítulo 1, primeira parte): para além de qualquer preconceito pró ou contra o termo (não
adotamos nenhuma teoria de base, sendo, assim, antifundacionalistas),872 projetamos as

863
PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade.
864
Santi Romano trata do tema no Livro IV de seus Princípios de direito administrativo italiano, sob a rubrica “Teoria
das Limitações Administrativas à atividade privada”. Apesar da referência da Professora Odete a essa obra do
autor italiano (em seu artigo Poder de polícia, já citado), parece-nos que Santi Romano não elaborou, aqui, pro-
posta substitutiva da expressão “polícia”, tanto assim que, nos subitens do capítulo, e ao longo do texto, utiliza-­
se largamente da palavra (o subitem 2 se chama “Polícia de Segurança”, o 3, “Polícia Sanitária”, o 4, “Polícia dos
Costumes”, o 5, “Polícia Rural” etc.) (ROMANO. Principii di diritto administrativo italiano, p. 243 et seq.).
865
CASSAGNE. Derecho administrativo, v. 2, p. 319-325.
866
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 243-290.
867
SUNDFELD. Direito administrativo ordenador.
868
“Esta polivalência significativa do conceito de polícia possui causas históricas que é preciso resenhar, e não
por simples gosto pela erudição: no Direito, as palavras e seus significados possuem habitualmente uma
função prática capital; são veículos de expressão, mas também são armas, ou, quando menos, instrumentos
desenhados ou utilizados com notórias finalidades pragmáticas” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general II, p. 245).
869
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 70.
870
“Não parece adequado alterar o título de noções jurídicas consolidadas, mesmo que seu conteúdo sofra
evolução. A mudança dificulta a pesquisa nas obras e dificulta a pesquisa jurisprudencial. E também impede a
percepção clara da linha evolutiva da figura” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p.
93). No mesmo sentido, ARAGÃO. Curso de Direito Administrativo, p. 185/186.
871
Na primeira edição desta obra, a palavra adotada era “conservador”, em vez de “imobilista” (como aparece
nesta segunda edição). Acolhemos, aqui, a crítica de Estêvão Gomes Correia dos Santos a respeito do uso
impreciso da palavra “conservador”. Recomenda-se, ademais, a leitura de sua interessante dissertação. V.
CORREIA DOS SANTOS, Estêvão Gomes. Em defesa do poder de polícia: uma proposta de superação das críticas
e dos modelos alternativos ao poder de polícia no direito administrativo contemporâneo. 2016. Dissertação
(Mestrado em Direito) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
872
Ao contrário de certa crítica à utilização da expressão, que, sem favor, faz parte do mal cuja cura pretende ser:
ao denunciar a ideologia das construções tradicionais, ingressa numa crítica ideológica de sinal invertido.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
275

consequências prováveis da mudança (consequencialismo) a partir do contexto atual da


doutrina, da legislação e da jurisprudência (contextualismo) e concluímos que mudar
é mais difícil e menos útil do que manter e fazer as ressalvas — ressalvas, aliás, cujo
conteúdo continuaria sendo destacado mesmo que se adotasse outra denominação. Se
fôssemos rejeitar palavras por algum péssimo passado, deveríamos começar por “de-
mocracia”, palavra em cujo nome ascendeu o Estado Nacional-Socialista. E o Estado
de Polícia, por pior que tenha sido, não se compara ao Estado Nazista.
São contrapostos riscos virtuais, afirmações simbólicas da centralidade do ser
humano e pressuposições de poderes implícitos (que, na prática, jamais chegariam
a ser exercidos, simplesmente porque o Estado de Direito com eles é incompatível)
a dificuldades práticas que, por menores que possam ser tidas, são reais, no sentido
mais singelo da palavra.873 Caso se adote “Administração Ordenadora” por “poder
de polícia” ou qualquer outra proposta, vai-se precisar modificar uma gama de leis,
conteúdos ensinados em sala de aula, indexadores de pesquisa de jurisprudência em
tribunais etc. E isso para quê? Para que algum administrador não se sinta no Estado

873
Sempre vai ser possível insistir que, mesmo fazendo as ressalvas, o uso da expressão continuará dando azo a um
não sei o quê de autoritarismo. Alguns trechos de Luis Manuel Fonseca Pires caminham nesse sentido, verbis:
“Não basta dizer que o Estado contemporâneo encontra-se sob um arquétipo democrático e juridicamente
axiológico de bens caros à sociedade [...], pois persiste a influência, diante de casos de difícil interpretação e aplicação
do direito, de um atavismo que externa a origem e o evolver arbitrário deste instituto. [...] fatos históricos aliados ao
antigo instituto ‘poder de polícia’, os quais sugestionam, equivocadamente, a interpretação do direito – normalmente,
em prejuízo do administrado porque dissonante da ordem jurídica estabelecida na Carta Magna”. Se for esse
o caso – coisa em que não acreditamos —, será a primeira vez que o elemento histórico da interpretação, que,
entre nós, possui reduzida importância, vai prevalecer contra as advertências uníssonas da doutrina. E não se
trata do uso do elemento histórico: tratar-se-ia de completo mau uso dele. É uma força inédita para algo que
se define como a “influência de um atavismo”. Mas, para sermos honestos, o autor, em outro momento, traz o
que considera exemplos da influência: (i) os artigos doutrinários e precedentes judiciais que entendem que a
autoexecutoriedade é ínsita à função da administração ordenadora; (ii) a ênfase no exercício da força física ao
se circunscrever a finalidade do poder de polícia; (iii) a preocupação excessiva com a coação, o que conduz “a
uma maior legitimidade do uso da força pública na interpretação e aplicação do direito”; (iv) a confusão entre
o instituto do poder de polícia e a ideia de sanção administrativa; (v) o não desenvolvimento, ao menos com
a magnitude que deveria ter, do estudo sobre os limites do poder de polícia, já que o pressuposto é a ação
coativa da Administração Pública. Continuamos discordando. Ponto por ponto: (i) não há relação biunívoca
entre defesa de uma interpretação restritiva da autoexecutoriedade e defesa da superação da ideia de poder de
polícia, o que seria o caso se houvesse relação entre os conceitos. Odete Medauar e José dos Santos Carvalho
Filho defendem a interpretação restritiva da executoriedade – aliás, tal posição parece ser majoritária —, e, ao
mesmo tempo, defendem a validade do conceito tradicional de polícia. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que,
nas últimas edições de seu manual, vinha defendendo a superação da ideia de polícia, sustenta a interpretação
ampla de executoriedade (executoriedade como regra, e não apenas nos casos previstos em lei ou em situações
de urgência). (ii) Obras mais recentes não trazem tal ênfase no aspecto da força física como finalidade do poder
de polícia. Ao contrário, são cautelosas ao afirmar que se trata de uma possibilidade, mas não da essência
do instituto. (iii) Também não há mais preocupação excessiva com a coação: na apresentação mais atual do
instituto, a ênfase é nas potencialidades de compatibilização de direitos e no controle ao exercício da função
administrativa de polícia. Na obra de Raquel Urbano, por exemplo, são gastas duas páginas na questão
conceitual, e pelo menos cinco no tratamento dos limites à polícia. Detalhe: a autora é das que defendem a
denominação tradicional. (iv) Não se confunde poder de polícia com sanção. O tratamento doutrinário
contemporâneo é claro quanto à distinção entre o poder de polícia – competência ou poder administrativo – e
a sanção de polícia, fase do “ciclo de polícia”. Registre-se que, inclusive, a referência a um ciclo de polícia é
cada vez mais comum em livros e manuais, seja dos que defendem a polícia, seja dos que pretendem superá-la,
o que só incrementa a diferenciação. (v) Por fim, não se vê, de modo algum, desenvolvimento doutrinário ou
jurisprudencial subótimo do tema dos limites ao poder de polícia. Ao contrário: para o assunto, esse é o grande
tema, seja com qual denominação for. Em suma: para nós, a questão da troca da denominação é, no fundo,
uma simples questão de estilo, que se pretende mais importante do que de fato é. Para as citações da nota, v. o
excelente PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 16 (primeiro trecho), p. 153-155 (segundo
momento).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
276 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de Polícia do século XVIII? Para se exorcizar o risco de eventual abuso de poder que,
de qualquer jeito, já seria detectado?
Quanto à difusão da polícia por todas as outras atividades da Administração
Pública, tornando o termo indistinto, a verdade é que não houve negação da noção,
senão modificação e expansão de conteúdo. Continua existindo uma atividade de li-
mitação ou condicionamento do exercício de direitos, assim como reconhece o próprio
Gordillo.874 De mais a mais, se o poder estatal é uno, coisa de que ninguém duvida,
fala-se em “poder de polícia” apenas como simples agregação de atividades com perfil
homogêneo, “o que facilita sua consideração, estudo e regulação normativa adequada”.875
Em muitos casos, pode até ser difícil separar a atividade de polícia da de prestação de
serviços públicos (mais a esse respeito, adiante), mas isso só demonstra que as ativi-
dades do Estado são multifacetadas e que não admitem inteira tradução em conceitos
linguísticos ou em categorias doutrinárias formais. Assim, por exemplo, o oferecimento
público de serviço de interesse coletivo pela via da delegação contratual pode envolver
a imposição de restrições a direitos e contar com certos benefícios, prometidos pelo
Poder Público ao particular que resolver executá-los. Estamos tratando de serviço pú-
blico, do exercício de polícia administrativa ou de ato de fomento público? E, se não for
possível a caracterização precisa da operação dentro de uma dessas categorias, isso será
motivo para rejeitá-las in totum? Respondemos: não, não será. Formular uma categoria
doutrinária é exercício de simplificação para a compreensão; é a transcrição de uma
realidade necessariamente multiforme com base em elementos da linguagem que jamais
captarão sua essência inteira. A doutrina nunca vai capturar inteiramente a realidade e,
se ela for julgada com base nisso, estará sempre aquém das expectativas. O que se lhe
pode exigir é a proposta de categorias compreensíveis e realistas, coisa que, em nossa
opinião, a fórmula-tipo do “poder de polícia” continua sendo: uma noção de séculos
que sobreviveu (e ousamos dizer que sobreviverá) a tantos quantos julgam superá-la.
Ou seja: a noção de “poder de polícia” ultrapassa as críticas.876 Se se buscar meios
de torná-la aberta aos controles democráticos da teoria moderna, seu passado, por pior
que seja, será purgado.877 Seu risco virtual é compensado por sua utilidade atual.

874
Basta reler parte do trecho citado em nota de rodapé anterior, aqui repetido para maior clareza: “A coação estatal
atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os particulares para a consecução de determinados
objetivos de bem comum ou de ordem pública segue sendo uma realidade no mundo jurídico [...]” (GORDILLO.
Tratado de derecho administrativo, t. II, p. V, p. 13-14).
875
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 94.
876
É curiosa a opinião de Farlei Martins e Alexandra Campos, para quem a tese de Gordillo não é aceita, na
doutrina e na jurisprudência brasileira, ou por “receio de alguns autores em empreender uma análise crítica
da noção jurídica”, ou porque o termo “poder de polícia” consta da Constituição e das leis. Não acreditamos
nisso. Em primeiro lugar, não há motivos para se temer qualquer análise crítica. Se assim fosse, não se estaria
questionando a ideia de supremacia do interesse público, muitíssimo mais fundacional do que a de poder de
polícia. Além disso, em certas circunstâncias, é até mais difícil defender um conceito tradicional do que aderir à
posição que, com ou sem razão, coloca-se como inovadora. Se alguém tivesse de temer algo, seria quem defende
o “ultrapassado” poder de polícia, e não os que o atacam. Em terceiro lugar, o tema é tratado pela doutrina
brasileira, ainda que não necessariamente fazendo-se referência à posição de Agustín Gordillo (o que não é
grave, já que a ideia de superação do poder de polícia tem sua fonte original na Alemanha, e reflexos na Itália
e na Espanha). Numa rememoração rápida, tratam do assunto, entre outros, muitos dos quais até citados por
Farlei e Alexandra, os seguintes autores: Odete Medauar (rejeita a posição), Celso Antônio Bandeira de Mello
(concorda com Gordillo), José dos Santos Carvalho Filho (rejeita o abandono da noção), Lúcia Valle (concorda e
até mudou o título do capítulo sobre poder de polícia em seu manual), Raquel Urbano de Carvalho (menciona
a posição, mas a rejeita), Carlos Ari Sundfeld (aceita, ainda que em seus termos), Luis Manuel Fonseca Pires
(concorda e baseou um livro na concordância), Alexandre Santos de Aragão (menciona). É incorreto afirmar
que “a unanimidade da doutrina brasileira dispensa qualquer esforço metodológico de superação da noção”.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
277

877
Dito isso, já podemos avançar o assunto. Da conceituação, saber o que a polícia é,
passamos às distinções apontadas pela doutrina: identificar o que o poder de polícia não é.

2.2.2 Distinções com outras funções administrativas: o que o poder de


polícia não é
A primeira distinção é imediata. Embora ambas sejam exercício de função admi-
nistrativa, polícia administrativa não é polícia judiciária. Os critérios de distinção variam
entre os autores, e alguns doutrinadores criticam a utilidade distintiva dos elementos de
diferenciação apontados por outros, mas, de modo geral, a lista apresentada é a seguinte.
Em primeiro lugar, a polícia administrativa se exaure em si mesma: previne o
ilícito administrativo, consente no exercício da atividade privada, fiscaliza e, se for o
caso, reprime o ato antijurídico, mas sua atuação não escapa à instância administrativa.
Não extrapola até o Judiciário. Já a polícia judiciária, ao contrário, prepara o exercício
da jurisdição penal. Não se esgota em si mesma, pretendendo redundar na atuação de
outro poder.
Outra diferença, clássica, embora cada dia com menos força: a polícia administra-
tiva é essencialmente preventiva,878 ao passo que a judiciária é repressiva, atua quando
o ilícito já se perpetuou, buscando identificar suas circunstâncias e seu autor. Dissemos
que o critério perde força porque, cada vez mais, os órgãos responsáveis pela polícia
judiciária — a Polícia Civil e a Polícia Federal — atuam preventivamente.879 Também
a polícia administrativa, em muitos casos, atua reprimindo ilícitos administrativos,
quando a prevenção falha.

O que é verdadeiro é que a doutrina brasileira, em sua maioria, rejeita a tese da superação, cada autor com seus
argumentos. O esforço metodológico existe; o que não há é, em muitos casos, a concordância em relação à tese
de Gordillo. Além disso, é importante não supervalorizar a referência constitucional e legal a poder de polícia,
já que o que não faltam são posicionamentos doutrinários que interpretam referências legislativas de modo
“superador do texto legal”. Ou seja: a doutrina brasileira está ciente do debate e, em boa parte, rejeita a ideia de
superação da noção. É injusto chamá-la de medrosa ou de literalista. Quanto à jurisprudência, vale o mesmo:
se a tese não “pegou” na doutrina – pelo menos com a força com que se esperava —, provavelmente também
não vai ser incorporada tão intensamente pelos tribunais (CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à
margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a
Agustín Gordillo, p. 176-177).
877
Nesse sentido, Cosculluela Montaner e Mariano Benítez: “Não se vê a vantagem que possa ter denominar polícia
como poder de ordenação e controle, uma vez que a polícia em um Estado constitucional e democrático perdeu
sua força expansiva, como título habilitante autônomo, e conecta-se totalmente à defesa do status libertatis que
o mesmo consagra” (BENÍTEZ; MONTANER. Derecho público económico, p. 212).
878
“E cá estamos em pleno domínio da polícia administrativa. Num domínio onde as duas ideias predominantes
são a prevenção e o perigo. Evitar que os perigos se convertam em danos – eis o campo onde se desenvolve o modo
de agir administrativamente que se chama Polícia” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo,
p. 268).
879
Talvez seja o caso de se abandonar o critério. É o que faz René Chapus, que diz que elas podem ter caráter tanto
preventivo quanto repressivo, e que isso é ponto de identidade entre as duas polícias. Leia-se o trecho: “Enfim, tanto
uma quanto outra polícia podem assumir tanto um caráter preventivo quanto repressivo. Sem dúvida, a polícia
administrativa tende a prevenir os problemas de ordem pública. Mas [...] ela também pode ser suscitada para
pôr fim a problemas: ao dispersar uma manifestação, ao fazer desaparecer uma situação perigosa ou insalubre
ou ao suprimir uma causa de problema à tranquilidade pública. Sem dúvida, também, a polícia judiciária é
geralmente repressiva. Ela costuma ser posta em ação depois do golpe, em consequência da ocorrência efetiva
de certos fatos. Mas, como se verá, ela também pode ser exercida para prevenir uma ocorrência” (CHAPUS.
Droit administratif général, t. I, p. 736-737). Na doutrina brasileira, crítico desse critério, v. FURTADO. Curso de
direito administrativo, p. 660.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
278 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Outro critério: enquanto a polícia judiciária atua tendo em vista a verificação


de infrações penais determinadas, a polícia administrativa previne e reprime ilícitos
administrativos.
Por fim, o último critério distintivo. Enquanto a polícia judiciária tem seu exercício
concentrado em poucos órgãos, basicamente a Polícia Civil e a Polícia Federal, a polícia
administrativa é exercida por um sem-número de órgãos e de entidades administrati-
vas: autarquias de trânsito, secretarias de ordem pública, fundações de meio ambiente,
agências reguladoras etc.
É claro que dizer que a polícia administrativa não é polícia judiciária não quer
dizer que as atribuições sejam incompatíveis ou que uma não possa redundar na outra
ou se conjugar na prática:880 uma ação de ordenação do trânsito, atividade típica de
polícia administrativa, pode detectar um veículo furtado, cuja apreensão pode vir a
servir a uma atuação da polícia judiciária (desvendar e reprimir um crime). 881
Segunda distinção: polícia administrativa não se confunde com corporação policial-
militar. Muito embora a polícia administrativa da segurança pública seja exercida pela
Polícia Militar — e a Constituição é expressa na afirmação882 —, polícia administrativa
é mais do que isso.883 A frase é anedótica, mas verdadeira: poder de polícia não é poder
da Polícia.
Terceira distinção: poder de polícia não é prestação de serviço público. Ou é? Vejamos
o que diz René Chapus: “Exercer a polícia administrativa é assegurar um serviço pú-
blico: aquele de manutenção da ordem pública”.884 É claro que, dentro dessa acepção
amplíssima, que associa serviço público à atividade estatal prestada em regime de
Direito Público,885 a imposição de limites também o será. Só que não é nesse sentido que
serviço público está na Constituição, no mínimo porque seria indistinguível de poder
de polícia, e, desse modo, a distinção feita no art. 145, II, da Constituição (entre “poder
de polícia” e “serviços públicos”) não faria sentido.
A diferenciação doutrinária clássica, então, diz o seguinte: serviços públicos
possuem caráter positivo, enquanto o poder de polícia tem caráter negativo. O caráter
positivo derivaria do fato de que o serviço público é o oferecimento de uma utilidade
ou de uma comodidade aos usuários; ele “dá” alguma coisa. Já dizer que a polícia
administrativa possui conteúdo negativo significa duas coisas: ou dizer que ela atua
limitando o exercício de direitos (ela “retira” algo, em sentido aproximado)886 ou dizer
que ela impõe deveres de não fazer ou de tolerar. No segundo sentido, a afirmação é

880
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 466.
881
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 72.
882
Art. 114, §5º: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de
bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil”.
883
Apesar disso, há livros cuja promessa do título não se cumpre em seu interior. Por exemplo, o livro “Constituição
e poder de polícia” é inteiramente devotado a uma análise crítica da política de segurança pública do Estado do
Rio de Janeiro nos anos oitenta (PINHEIRO. Constituição e poder de polícia). Há outros que cumprem o prometido:
A polícia no Estado de direito, do Professor português António Francisco de Sousa, trata tanto do poder de polícia
quanto dos aspectos mais tipicamente associados à corporação policial propriamente dita (uso de arma de fogo,
interrogatório policial etc.). A respeito do poder de polícia do policial militar, ver, especificamente, Alexandre
Henriques da Costa (Os limites do poder de polícia do policial militar). Ainda, Cláudio Pereira de Souza Neto (A
segurança pública na Constituição Federal de 1988: conceituação constitucionalmente adequada, competências
federativas e órgãos de execução das políticas. Revista de Direito do Estado, p. 19-73).
884
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 700.
885
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 144 et seq.
886
“Mas repare-se no contraste que formam: os serviços de utilidade pública actuam fazendo prestações que
beneficiam os indivíduos, melhorando a qualidade de vida; enquanto a polícia é um sistema de restrições que
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
279

incompleta, já que existem, e são frequentes, imposições de fazer dentro do contexto


do exercício de poder de polícia,887 embora também isso possa ser polemizado pela
doutrina.888 Só que a complicação não é exatamente essa.
Na prática, muitas vezes acontece uma integração material das atividades de
polícia e de prestação de serviços públicos, na medida em que as estruturas estatais de
polícia costumam prestar serviços públicos. O inverso também é verdade: na prestação
de serviços públicos pode haver a adoção de medidas de polícia. A explicação para isso
ou decorre da insuficiência da simples imposição de restrições à atuação privada para a
produção de condutas desejáveis — não basta impor a polícia de trânsito, é necessário
investir em campanhas educativas, que é atividade de serviço público889 —, de uma
maior aproximação entre as esferas pública e privada,890 ou, no caso da prestação de
serviços públicos em que se incrustam medidas de polícia, da própria complexidade
das necessidades a serem atendidas pela prestação desses serviços: ao fornecer água
potável, é imperativo o recurso à polícia administrativa, a fim de prevenir e reprimir
o desperdício.891 892
Ainda na tônica da diferenciação da polícia em relação a outras atividades estatais:
ela não se confunde com a regulação jurídica da economia. Há, aqui, várias teorias.
Num ponto todos concordam: o poder de polícia seria o ancestral da regulação.893
Só que a regulação pública seria mais abrangente do que o poder de polícia — estamos
falando, é claro, da polícia incidente sobre atividades econômicas, já que ninguém
confunde licença de obra com ato de regulação econômica.

limita a liberdade individual” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 267, grifos no
original).
887
Assim, Eliezer Pereira Martins: “Caracterizar o poder de polícia, portanto, como positivo ou negativo depende
apenas do ângulo através do qual se encara a questão. De um lado, o poder de polícia tem, na quase totalidade
dos casos, um sentido negativo, porém sentido de abstenção (non facere). [...] De outro lado, no condicionamento
do uso da propriedade imobiliária nos termos do art. 5º, XXIII, c/c art. 182, §4º, da CF, temos exemplo típico de
atuação de polícia administrativa consistente num facere” (Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, v. 2, p. 349). No mesmo sentido, citando, como
exemplo de imposição de deveres de fazer dentro do poder de polícia a construção de saídas de emergência (na
polícia das construções) e a adoção de providências que impeçam a deterioração de alimentos perecíveis (na
polícia sanitária), v. JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 464.
888
“Os exemplos apresentados pelo Professor Justen Filho devem ser entendidos como condições ao exercício
de atividades ou de direitos, e não como a imposição de obrigação de fazer, pura e simplesmente. Se alguém
decide construir prédio, somente poderá fazê-lo se forem observadas as normas técnicas de segurança. Se
alguém decide comercializar alimentos, deve observar as normas sanitárias relativas à conservação e à higiene
dos produtos” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 669.) Na verdade, Lucas Rocha até defende
a possibilidade de que o exercício do poder de polícia implique a imposição de obrigações de fazer, mas
apenas quando se utilize de técnicas de informação, sendo o administrado obrigado a prestar informações
sobre si ou sobre sua atividade para a Administração Pública; aqui, Lucas Rocha Furtado está se utilizando
da tripartição das técnicas de polícia administrativa, proposta por Santamaría Pastor, que fala em técnicas de
condicionamento, técnicas ablatórias e técnicas de informação (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general II, p. 253-281).
889
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 467-468.
890
FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 646.
891
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 468.
892
Há uma quarta razão pela qual as atividades podem se misturar: são as hipóteses, comuns, nas quais a prestação
de um serviço público é, por assim dizer, o exaurimento do exercício da atividade de polícia. Isso ocorre quando
o consentimento público se materializa na emissão de um documento. Por exemplo: a atividade de polícia
que é o consentimento quanto à prática da direção veicular por uma pessoa – a licença para dirigir, espécie de
ato vinculado de polícia – exaure-se numa prestação de serviço público, que é o ato da expedição da carteira
de habilitação. Seja como for, a hipótese não é das mais desafiadoras, porque há, claramente, uma atividade
(polícia) que predomina sobre outra (serviço público).
893
VENANCIO FILHO. A intervenção do Estado no domínio econômico: o Direito Público Econômico no Brasil, p. 83.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
280 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Seria mais abrangente por dois motivos: em primeiro lugar, porque o poder de
polícia não incidiria sobre os serviços públicos, delegados ou não, cuja titularidade é
sempre pública (como se sabe, apenas seu exercício é objeto de delegação contratual).
É que a doutrina sempre afirmou que o poder de polícia incide, apenas, sobre ativida-
des privadas, ainda que tais atividades possam ser desenvolvidas por estatais.894 Já a
regulação pública não teria tal restrição: incidiria também sobre os serviços públicos
delegados.895
Segundo motivo: o poder de polícia acabaria se resumindo a técnicas de infor-
mação, de condicionamento do exercício de direitos (autorização, licença) e de ablação
(restrição, total ou parcial, de direitos).896 A regulação incluiria as técnicas de polícia,
mas também outras, como técnicas de composição de conflitos. Além disso, dentro do
conceito de regulação estariam abrangidas capacidades normativas e capacidades quase
judicantes. A polícia administrativa significaria menos: no sentido estrito, significaria,
apenas e tão somente, limitar direitos privados.897 898

894
Corroborando o entendimento tradicional, de que o poder de polícia não incidiria sobre atividades de
titularidade estatal, v. SUNDFELD. Fundamentos de Direito Público, p. 76-77; ARAGÃO. Agências Reguladoras, p.
37-38; MEDAUAR. Poder de Polícia. Revista de Direito Administrativo, n. 199, p. 95. Parecendo questioná-lo, v.
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 74-75.
895
“‘Regulação’, por sua vez, parece que assume sentido mais amplo do que se deu à administração ordenadora
e ao poder de polícia. A doutrina de Direito Econômico faz uso desse termo para tratar da mecânica estatal
de ordenação das atividades econômicas em geral, incluindo, portanto, os serviços públicos e as atividades
econômicas em sentido estrito” (MENDES. Reforma do Estado e agências reguladoras: estabelecendo os
parâmetros de discussão. In: SUNDFELD (Coord.). Direito administrativo econômico, p. 116).
896
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281.
897
A discussão adquiriu relevância quando se tratou de saber qual era a natureza jurídica das “taxas regulatórias”,
instituídas pelas leis criadoras das agências reguladoras. Se a atividade das agências fosse exercício de poder
de polícia, as taxas seriam taxas de polícia, e, portanto, espécie tributária, submetidas a todo o estrito regime
constitucional e principiológico aplicável aos tributos. Se a atividade das agências reguladoras fosse outra
coisa que não poder de polícia, as ditas taxas seriam enquadradas noutra categoria conceitual, de índole não
tributária: seriam preços públicos, ou seja, retribuições contratuais, devidas em razão do exercício de dever de
fiscalização (que não seria “de polícia”). É com base nisso que o Professor Alexandre Aragão entende que a
natureza das “taxas regulatórias” poderia ser ou de taxa propriamente dita, ou de uma retribuição contratual,
ou, ainda, de uma contribuição de intervenção no domínio econômico (nesse caso, a natureza jurídica só valeria
para as agências federais, porque só a União pode instituir CIDE). As retribuições contratuais seriam os valores
cobrados por agências reguladoras cuja atividade incidisse sobre serviços públicos delegados (já que o poder
de polícia não poderia incidir sobre atividades privadas). As taxas propriamente ditas seriam aquelas cobradas
por agências reguladoras cuja atividade incidisse na atividade privada em sentido estrito (por exemplo, a taxa
da Anvisa). Finalmente, as CIDES seriam as “taxas regulatórias” que, cobradas sobre a regulação de atividades
privadas, revertessem para o fomento e a promoção do setor regulado (ARAGÃO. Agências reguladoras e a
evolução do direito administrativo econômico, p. 332-333). Ainda, SOUTO. Desestatização: privatização, concessões,
terceirizações e regulação, p. 461. Por outro lado, há autores que defendem a natureza tributária para todas
as “taxas regulatórias”, porque as agências reguladoras seriam autarquias, entes de direito público, e, assim,
jamais poderiam cobrar preços públicos pelo exercício de suas atribuições legais. Com tal posicionamento,
Marçal Justen Filho (O direito das agências reguladoras independentes, p. 478). Ainda, CAL. As agências reguladoras
no direito brasileiro, p. 128. A jurisprudência, de modo geral, vem entendendo que as “taxas regulatórias” são
tributos, e não preços públicos.
898
Marcos Juruena relaciona os institutos da seguinte forma: a regulação atuaria dentro da polícia administrativa, e
não o contrário, como sustenta a maioria da doutrina. A “regulação de polícia” – o termo é do autor – teria como
propósito assegurar que “bens e serviços de interesse geral” oferecessem duas coisas: “segurança” e “preços
não abusivos”. Para fazer isso, o agente regulador colaboraria na formulação da política setorial, e controlaria
produto, fornecedor, bens de produção e preços. Exemplo típico de regulação de polícia: a atividade da Anvisa
junto aos medicamentos. Não concordamos com tal opinião. Ou as atividades mencionadas por Marcos Juruena
se enquadram na noção de polícia (por exemplo, sanitária), ou fazem parte dos deveres jurídicos gerais de
defesa da concorrência (evitar preços abusivos), ou escapam para a noção tradicional de regulação (auxiliar na
formulação de políticas públicas) (SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 76-77).
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
281

Em nossa opinião, parece que, também aqui, o subtexto disso é uma rejeição ao
poder de polícia por seus vícios de origem e de idade. No entanto, poucas coisas estão
definitivamente perdidas na vida, e isso também vale para a vida do Direito; é possível
superar vícios de nascença e remoçar conceitos.
Basta dizer: entenda-se por polícia administrativa uma função pública também
incidente sobre serviços públicos delegados e cujo exercício prático também incorpore
técnicas consensuais de composição de conflitos. Afinal, todas essas afirmações são
construções doutrinárias. Se não são mais adaptativas, se incorporam “anomalias” e
se exigem repostas ad hoc para que continuem existindo, talvez seja hora de trocá-las.899
Desse modo, um novo entendimento do poder de polícia poderia fazê-lo apli-
cável aos serviços públicos e aberto a técnicas mais consensuais. Quanto a esse último
ponto, já há até quem o admita desde agora. Aqui, abre-se rápida digressão a respeito
da consensualidade e poder de polícia.
A discussão sobre a admissibilidade de técnicas consensuais no exercício do
poder de polícia é intensa. Para alguns, haveria um dever constitucional da adoção de
técnicas consensuais — como se houvesse um “princípio da consensualidade” inscrito
em nossa Constituição. Boa parte dos autores, no entanto, ao tratar da consensualidade,
fazem-no ligando-a à proporcionalidade-necessidade, em especial quando da aplicação
de sanções: o Estado teria dever de optar por soluções menos gravosas ao particular,
o que frequentemente recairia na obrigação da adoção de soluções negociadas entre
Poder Público e administrado. Já outros acreditam que o exercício do poder de polícia
é incompatível com acordos de vontade: a fonte da imposição de obrigações deve ser,
sempre, e de modo direto, a lei.
Em nossa opinião, há de se descartar a ideia de um “princípio constitucional da
consensualidade”, trivialização tanto da noção de princípio constitucional quanto da
noção de consensualidade. Além disso, tal princípio seria inútil: ele seria, no máximo,
uma manifestação de incompreensão acerca do dever de proporcionalidade. O ponto é,
precisamente, a incidência do dever de proporcionalidade. E o problema no argumento
destes autores é que ele, interessadamente, só analisa a situação à luz das “medidas
menos gravosas ao particular”, mas se esquece da segunda parte da formulação da
“regra” da necessidade (ou subprincípio, ou postulado normativo aplicativo, ou máxi-
ma, seja lá como se queira chamá-lo): deve-se adotar as medidas menos compressivas
de direitos fundamentais do particular, na medida em que garantam, com intensidade
semelhante, a realização do objetivo.
Não foram poucas as vezes em que se vindicou adoção de medida administra-
tiva “menos restritiva a direito fundamental do indivíduo” sem que se levasse a sério
a eficiência da obtenção do propósito ao qual aquela medida se propunha, o que não
deixa de ser curioso, no mínimo porque a eficiência também é princípio constitucional
(art. 37, caput, CRFB/88). Não existe nada próximo a um “dever constitucional genérico
de suavidade no trato com o particular”. O dever de proporcionalidade-necessidade
é uma exigência de minoração de efeitos lesivos diante de alternativas que resultem em
efeitos próximos.
A partir daí muitas das propostas de “consensualização” e de “flexibilização”
caem por terra porque, (i) ou não servirão para a obtenção de resultados próximos
às soluções de força ou (ii) porque não há metodologia capaz de demonstrar que os

899
KHUN. A estrutura das revoluções científicas.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
282 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

resultados preferidos realizarão o objetivo de modo parecido (tudo o que há são afir-
mações que expressam muita confiança).
Por outro lado, e como contraponto a grande parte do que se falou, em nossa
opinião há, sim, espaço para a adoção de técnicas consensuais de polícia. Não vemos
nenhuma contradição entre tais técnicas e a polícia administrativa. E a explicação é
simples: o exercício do poder de polícia, como qualquer limitação de direitos, far-se-á
conforme a máxima da proporcionalidade, a qual inclui a ideia de necessidade, ideia
que, por sua vez, pode, entre outras alternativas, eventualmente sugerir a adoção de
uma solução consensual como meio menos restritivo dos direitos fundamentais dos
particulares afetados pela medida em consideração.900
Retome-se o argumento central do texto. Pois bem: as características normativas
tradicionalmente associadas à regulação e que, no início de sua introdução no Brasil,
geraram debate sobre sua legitimidade constitucional, também podem ser identificadas
ao poder de polícia — afinal, sempre se falou de um poder de polícia em sentido am-
plo. Assim, caso se construa noção de poder de polícia capaz de incidir sobre serviços
públicos delegados, aberto a novas técnicas901 e includente de funções normativas, é a
regulação econômica quem acabará sendo absorvida pelo poder de polícia, e não o contrário.902
Mas, claro, sempre vai restar o preconceito. Ainda está para nascer quem recupere
a dignidade da noção de poder de polícia, defendendo-a não apenas de seus críticos,
mas também, e principalmente, dos prosélitos de conceitos que lhe sejam próximos.903

900
Defendendo a ideia de que há um princípio constitucional da consensualidade, v. PESSÔA. Os paradigmas
jurídicos e as relações entre política e direito. Revista de Direito Administrativo, p. 115-131. Sobre o tema em geral, v.
MOREIRA NETO. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, p. 129-
156; ARAGÃO. A consensualidade no direito administrativo: acordos regulatórios e contratos administrativos.
Revista de Direito do Estado, p. 155-174; OLIVEIRA; SCHWANKA. A administração consensual como a nova
face da Administração Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de
ação. In: ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E ENSINO DE DIREITO – CONPEDI.
Para o uso do argumento da proporcionalidade no Direito Econômico, entre tantos, v. ARAGÃO. O princípio
da proporcionalidade no Direito Econômico. Revista de Direito Administrativo, p. 199-230; MARQUES NETO.
Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico –
REDAE. Para o princípio da proporcionalidade em geral, v. SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos
Tribunais, p. 23-50. Contra a ideia de que se possa falar da consensualidade junto ao poder de polícia (“A fonte
que legitima a intervenção estatal na ordenação das atividades privadas, impondo limitações administrativas,
vedações, condicionamentos ou sanções etc., decorre sempre e necessariamente de lei, e nunca de contrato ou
de outro acordo de vontade”), v. FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 650.
901
Quando falamos em novas técnicas, não queremos nos referir, apenas, à adoção de critérios mais consensuais
e flexíveis no momento da aplicação das sanções de polícia. Técnicas de controle e de conformação dos setores
econômicos incidentes sobre a entrada e a saída do exercício da atividade ou sobre zonas de distribuição do
mercado, eventuais limites de preço, imposição de deveres de compartilhamento de infraestrutura etc., tudo
aquilo que Gaspar Ariño Ortiz chamou, para diferenciar da polícia administrativa (para ele, sinônimo de
“regulação externa”), de “regulação interna” poderia ser incluído nesse ampliado conceito de poder de polícia.
Regulações interna e externa virariam, então, uma única coisa: o novo poder de polícia (ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 302-303).
902
“As agências reguladoras foram concebidas para o exercício precípuo do poder de polícia. O condicionamento
de liberdades e da propriedade ao interesse da coletividade está na raiz da ideia de agência reguladora”. “Não
seria despropositada a afirmação de que uma agência reguladora nada mais é que um plexo personalizado
de poderes de polícia, organicamente instrumentalizado para um setor específico do exercício das liberdades
ou gozo da propriedade” (MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS.
Curso de direito administrativo econômico, p. 363, 364).
903
Para Gustavo Binenbojm, “não parece haver identidade total entre as duas noções, como se poder de polícia
houvesse se metamorfoseado e vertido na regulação econômica”. Para o autor, “a regulação da economia
envolve um arsenal amplo de estratégias de interferência no comportamento dos agentes econômicos para
alcançar seus objetivos. Aos mecanismos próprios do poder de polícia combinam-se, em variados arranjos,
medidas de fomento econômico e social, participações societárias minoritárias em empresas privadas,
consórcios empresariais público-privados, ou mesmo a atuação direta de empesas estatais, orientados para a
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
283

Até que esse dia chegue, ficaremos presos ao conhecimento convencional: polícia ad-
ministrativa econômica não é regulação jurídica da economia.904
Por fim, poder de polícia não é relação de sujeição geral. Aqui, falamos da distinção
entre sujeição geral e sujeição especial. A relação de sujeição geral dos administrados
em relação à Administração, cuja forma de incidência se dá pelo poder de polícia, é a
possibilidade, a que todos os administrados se sujeitam pelo fato de fazerem parte de
comunidade politicamente organizada, de terem o exercício de seus direitos restringido
e, no limite, suprimido. A nomenclatura “relação de sujeição” é das poucas que, até
agora, sobreviveu relativamente incólume aos novos tempos do Direito Administrativo,
o que não deixa de ser curioso, porque não seria muito difícil alguém sugerir que
“sujeição” é palavra autoritária e pouco adequada ao Estado Democrático de Direito.
Tirante a digressão, a sujeição geral é a razão pela qual a loja de laticínios pode
ser interditada ou a feira livre precisa de autorização. A sujeição geral está presente
tanto nas atividades privadas comuns quanto nas que se convencionou chamar de
atividades privadas autorizadas ou regulamentadas: atividades privadas, exercidas
pelo particular por direito próprio e em seu nome, terreno da iniciativa privada, mas
cujo exercício depende de prévia autorização pública, nos termos do art. 170, parágrafo
único, da Constituição da República.905 A razão para a autorização é seu objeto, tido
como de interesse público: são os bancos, as seguradoras, as empresas de capitalização,
as lojas de armas ou de fogos, as farmácias etc. Nos casos de atividade privada autori-
zada, espera-se que o particular tolere uma maior interferência estatal no controle de
sua atividade. Mas, tanto na atividade privada comum como na autorizada, a razão da
intervenção do Estado é a sujeição geral, e seu modo, o poder de polícia.
Já a sujeição especial é a que decorre de um estado particularíssimo do admi-
nistrado, que o excepciona dos outros administrados e o liga de modo individual à
Administração Pública: em geral, um contrato administrativo ou um vínculo esta-
tutário.906 É evidente que, também na sujeição especial, o administrado deverá ter
respeitados seus direitos fundamentais. Assim como, na sujeição geral, o particular
autorizado sofre a incidência de um poder de polícia mais intenso, mas, ainda assim,
respeitoso de seus direitos também na sujeição especial a Administração Pública — já
aqui, não mais tecnicamente por força de um poder de polícia, por poderes específicos

consecução de fins regulatórios específicos” (BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 75-76). O
equívoco do autor, neste ponto, não é propor um conceito de poder de polícia subinclusivo, mas um conceito de
regulação excessivamente abrangente – capaz de avançar indevidamente sobre institutos que, embora possam
(e, em alguns casos, devam) perseguir finalidades regulatórias, com regulação não se confundem (veja-se,
por exemplo, a crítica que fazemos à tentativa de se construir um conceito de fomento regulador, no próximo
capítulo).
904
Mas, se for inevitável o abandono da denominação “poder de polícia”, nossa sugestão vai para disciplina das
atividades econômicas, em vez de “polícia” (por causa do suposto ar autoritário) ou “limitação” (às vezes, a
atividade administrativa não limita, no sentido técnico de “restrição”, mas impõe um fazer ao administrado).
Há também a vantagem de que a expressão “atividades econômicas” engloba as noções de serviços públicos
e de atividade privada em sentido estrito, tal como entende a maioria da doutrina de Direito Econômico (por
exemplo, GRAU. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim). “Administração Ordenadora” é boa
proposta, mas foca no aspecto institucional – “Administração” – quando a ideia é entender para controlar, e
melhor executar, a atividade.
905
Art. 170, parágrafo único: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (grifos nossos). As
atividades privadas autorizadas são, precisamente, os “casos previstos em lei” nos quais se exige a prévia
autorização.
906
Mas também, por exemplo, o usuário de uma biblioteca pública ou um aluno de um colégio público, ambos
sujeitos às regras específicas de funcionamento dos locais, que, muitas vezes, são verdadeiros miniestatutos.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
284 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

da relação contratual ou decorrentes da lei-estatuto, poderá submeter o administrado


a um regime mais adstringente, ainda que sempre respeitoso de direitos e liberdades.
Para resumir: a sujeição geral nasce com a circunstância fática de o indivíduo
pertencer ou estar em determinado país (e sua fonte são a Constituição e o conjunto de
leis válidas e em vigor naquele Estado) e ela incidirá em todas as atividades privadas ali
exercidas, sejam autorizadas ou comuns, ainda que em distintas intensidades. A forma
pela qual a sujeição geral se realiza é pela incidência do poder de polícia.
A sujeição especial, por sua vez, nasce a partir da circunstância fática de o ad-
ministrado estar vinculado à Administração por força de um contrato ou por ostentar
natureza ocupacional específica (servidor público, aluno de colégio público etc.), e sua
fonte é ou o contrato administrativo ou a lei que rege a ocupação. A sujeição especial
se realiza pela incidência dos deveres contratuais ou legais específicos.
Outra discussão, recentemente suscitada por Gustavo Binenbojm, refere-se ao
sujeito da atividade de polícia: é possível haver poder de polícia fora dos lindes esta-
tais? Em um sistema jurídico que tem dificuldades em admitir o exercício de atividades
de polícia por estatais ou mesmo por empregados públicos da Administração direta e
autárquica,907 a indagação proposta provavelmente soa como heresia. Ainda mais quando
se tem em mira que ela pretende incluir, sob essa rubrica, os “mecanismos privados de
ordenação da vida social e econômica, exercidos em paralelo e de maneira independente
do aparelho do Estado nacional, como a autorregulação e o soft law transnacional”.
Embora adotemos postura antifundacionalista, tendente a repelir restrições ao
exercício do poder de polícia que não contem com genuíno lastro normativo ou razão
de ser (v. nossa posição favorável, dentro de certos limites, à delegação do poder de po-
lícia a estatais), não concordamos com a tese defendida pelo professor Binenbojm — eis
que ela não parece possuir utilidade científica, sobretudo do ponto de vista do Direito
Administrativo, podendo levar a nova espécie de inutilidade conceitual, por excesso e
inespecificidade. Caso adotada, ela aglutinaria, sob o rótulo de expressão clássica, um
leque de atividades que não guarda qualquer identidade jurídica — poderia se falar, no
máximo, em semelhança funcional — com as figuras que são tidas como manifestações
do poder de polícia.908
Há muitas outras coisas que o poder de polícia “não é”. Ele não é, por exemplo,
poder disciplinar,909 tampouco nenhum dos outros “poderes administrativos” aos quais
a doutrina se refere. Mas é hora de se avançar na apresentação do tema rumo às suas
principais características.

907
Além de serem sustentadas pela maior parte da literatura, tais restrições foram acolhidas pelo STJ e pelo STF
(e.g., ADIn nº 1.717 e ADIn nº 2.310). O assunto será, em oportunidade próxima, reapreciado pelo Supremo
Tribunal no julgamento do RE nº 633.782, cuja repercussão geral já foi reconhecida pela Corte (“Tema 532 –
Aplicação de multa de trânsito por sociedade de economia mista”). Sobre o tema, conferir o que dissemos no
capítulo anterior desta obra.
908
Não nos negamos a reconhecer o papel de ordenação econômica e social exercido por corporações privadas e
organismos transnacionais, em um mundo progressivamente globalizado, multipolarizado, desterritorializado
e complexo. Contudo, não cremos ser adequado que fenômenos como a autorregulação privada ou o softlaw
transnacional possam ser juridicamente tratados como se manifestações do poder de polícia fossem.
909
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 271.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
285

2.2.3 Características e classificação do poder de polícia


Diz-se que o poder de polícia é (i) discricionário, (ii) presumivelmente válido e verda-
deiro, (iii) eventualmente autoexecutório, (iv) exigível, (v) instrumental à realização dos direitos
fundamentais, (vi) instrumental à realização da democracia.
A doutrina tradicional afirma que o poder de polícia (i) “é, em princípio,
discricionário”.910 Em sentido contrário, alguns autores passaram a afirmar que a polícia
administrativa seria atividade vinculada.
Tal modo de perceber a ação administrativa peca por exagero e por simplificação.
Exagero, na medida em que a afirmação da vinculação só se faz como reação à per-
cepção de que, quando se fala em discricionariedade, está-se falando em arbítrio — e
não é isso. Não é preciso ingressar no terreno da vinculação para que determinado ato
administrativo possa ser não arbitrário: basta o exercício correto da discricionariedade.
O principal problema não é esse; é que afirmar que um ato “é” discricionário
“ou” vinculado pressupõe simplificação irreal da atividade administrativa. Os atos
são mais ou menos vinculados, a depender dos termos da lei com base na qual serão
praticados. Há atos que, de fato, são bastante vinculados ou intensamente abertos à
discricionariedade, mas, no cotidiano do Direito Público, são exceções. A maioria dos
atos administrativos situa-se entre os extremos.
Há, então, predominância estatística de atos de polícia mais vinculados ou mais
discricionários — para que se possa salvar a afirmação?
Embora autores importantes afirmem uma coisa911 e outra,912 não acreditamos
nisso, sequer vemos utilidade em buscar tal classificação.913 Ela não adianta nenhum
conhecimento nem produz nenhuma função de descarga argumentativa.914
E há um terceiro ponto, de rigor técnico: não é o ato que é discricionário ou não;
não se trata de atributo dele, mas de característica das normas com base nas quais ele
vai ser exercido.915 Só se poderia falar de poder de polícia “discricionário” se se estivesse

910
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134.
911
“A multiplicidade proteiforme das actividades individuais perigosas não permite que as leis prevejam todas
as oportunidades em que as autoridades policiais hajam de actuar e os modos pelos quais devam fazê-lo.
Nasce daí o caráter normalmente discricionário dos poderes de polícia” (CAETANO. Princípios fundamentais do
direito administrativo, p. 272, grifos no original). Afirmando que a atividade de polícia é “predominantemente
discricionária”, v. ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 992.
912
“A rigor, se nos dermos ao trabalho de examinar as situações em que o Estado exerce a atividade de polícia,
verificaremos que a quase totalidade delas se insere no âmbito vinculado da atuação administrativa” (FURTADO. Curso
de direito administrativo, p. 653, grifos nossos).
913
Seria hipoteticamente possível elaborar um levantamento empírico que, para certos atos, em certo período,
em certa localidade, identificasse a predominância de atos de polícia mais vinculados ou mais discricionários.
A pesquisa, no entanto, seria metodologicamente bastante complexa (qual a métrica correta para a escala de
vinculação?) e dificilmente produziria conhecimento socialmente útil.
914
Cf. ALEXY. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, p.
254, grifos no original: “É possível à justificação dogmática adotar, ao menos provisoriamente, itens que foram
previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo do processo justificativo, a ponto de, na ausência
de alguns motivos especiais, novo exame ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a
questão de valor em cada caso. Essa função redutora de encargo não só é indispensável para o trabalho do tribunal
que ocorra sob limites de tempo, mas também de importância para a discussão jurídica científica. Também
nessa esfera – como em todas as esferas – é impossível discutir tudo de novo em todos os casos”. A função de
descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela graças à qual, segundo Atienza, “não se precisa
discutir tudo a cada vez” (ATIENZA. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Ainda, ver ÁVILA.
Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 56-57.
915
Embora se possa aceitar o uso com base numa espécie de metonímia jurídica.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
286 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

pensando no poder de polícia em sentido amplo916 — isto é, na faculdade de editar leis


restritivas ou conformadoras de direitos —, e, mesmo assim, tal discricionariedade
legislativa estará condicionada, no mínimo, pela Constituição.
Fala-se que o poder de polícia (ii) é, também em princípio, válido, e baseado em
alegações verdadeiras. É a tradicional característica apontada nos atos administrativos:
a presunção relativa de validade e de veracidade, por vezes chamada ou apresentada
conjuntamente à presunção de legitimidade.
Ocasionalmente, fala-se que a legitimidade é a soma da presunção de validade e
de veracidade. Os conceitos são distintos, embora às vezes apareçam comprimidos na
presunção. Presumir que algo é legítimo significa pressupor que seu conteúdo corres-
ponde à emanação de soberania popular. Presumir que algo é válido significa pressupor
que esta coisa é compatível tanto formal quanto materialmente com o Ordenamento. A
presunção de veracidade implica assumir que determinada pressuposição ou afirmação
pública corresponde a uma circunstância, característica ou evento realmente existente
no mundo fenomênico.
Vamos analisar a presunção de validade e de veracidade.
Há três possibilidades de se entendê-las. Sob a ótica da primeira delas, os atos
administrativos são tidos como válidos até prova em contrário: o particular deve não
apenas os impugnar, mas fazer prova de sua invalidade. Nesse sentido, tal presunção
é banal, já que quem alega tem de provar a alegação em qualquer hipótese, seja ques-
tionando ato administrativo ou não.
No segundo sentido, a presunção de validade (aqui, muito mais presunção de
veracidade) significaria que o particular teria de ser obrigado a fazer prova negativa em
relação a fatos alegados pelo Poder Público: o particular teria de provar a ocorrência
dos fatos que alega e a não ocorrência dos fatos alegados, em defesa, pelo Poder Público.
O Poder Público poderia se beneficiar da inércia, já que, sem provar o que alega, ou
alegando genericamente a presunção, a causa, em princípio, seria sua.
Nesse sentido, a presunção de veracidade é absurda e incompatível com a ideia
de publicidade, transparência, verdade material, contraditório, ampla defesa, presun-
ção de inocência, e, no limite do argumento, com o próprio Estado de Direito.917 Todos
devem provar o que alegam, e alegações genéricas são, apenas, papel e tinta em vão.
No seu terceiro sentido, a presunção de validade e de veracidade significaria
incremento no peso dos argumentos alegados pela Administração Pública, de tal modo
que, na dúvida, a causa deveria ser julgada de modo favorável ao Estado. É, talvez,
o sentido mais profundo, argumentativo e “material” da presunção: na dúvida, atos
públicos são válidos e verdadeiros. Aqui, a presunção conecta-se com a ideia de presun-
ção de legitimidade do Estado e de presunção de boa-fé na atuação da Administração.
Embora, em princípio, sejamos contrários a distribuições não equitativas de cargas
argumentativas — sem falar no quão difícil é operacionalizar isso, sem o transformar
numa blindagem dos atos públicos —, parece-nos que, em princípio, tal presunção como
peso no argumento deva ser mantida, à conta do caráter transindividual dos interesses
buscados pela Administração.

916
CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito
administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordillo, p. 165.
917
GUEDES. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação que se impõe. In:
ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 241-266, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
287

Tal presunção (como peso no argumento) deve, no entanto, ser qualificada pela
experiência. A presunção de validade e de veracidade do ato administrativo não pode
ser tomada como afirmação fundacionalista, alheia ao contexto, e, assim, antipragmática.
A presunção de validade e de veracidade dos atos administrativos é, também e especialmente,
dado fático construído experimentalmente a partir da confiabilidade da instituição que promove
o ato, da confiança e da qualidade técnica das pessoas que normalmente o executam, e da forma
como ele vem sendo praticado. É dizer: a presunção de validade e de veracidade é muito
mais algo que se conquista do que algo que se deduza da qualidade pública do ato.
A verdade é que o atributo não é característico, apenas, dos atos de polícia, mas
dos atos administrativos em geral. Logo, a característica perde força: ela não diferencia
o poder de polícia; ela só comprova a circunstância, até recentemente inobjetada, de
que o poder de polícia se trata de atuação pública.
Também se fala que o poder de polícia (iii) é, eventualmente, autoexecutório. Isso
significa que há atos de polícia que podem ser praticados independentemente da anu-
ência prévia de outros poderes918 (significativamente, do Judiciário).919 Mas há outros
cuja prática deve passar pelo crivo do Judiciário (uma multa fiscal só pode ser cobrada
em juízo).
Na vida privada, são raros os atos autoexecutórios: poucos são os que já viram
a hipótese de retenção de bagagem de hóspede (art. 1.467 c/c 1.470 do Código Civil),
embora a legítima defesa da posse exista para além do texto legal (art. 1.210, §1º, Código
Civil). Claro que os atos de polícia, mesmo os autoexecutórios, não estarão insubmissos
à apreciação, nesse caso posterior, do Judiciário. A questão não é aceitar que atos de
polícia possam ser autoexecutórios (eles podem ser, e isso é óbvio), tampouco encon-
trar motivo para tanto (a segurança e a organização da sociedade são explicações bem
cotadas;920 quem duvidar que vá sugerir que o Corpo de Bombeiros tenha de solicitar
uma injunção judicial antes de apagar um incêndio).
O problema está em delimitar parâmetros operacionais e compatíveis com o
Estado de Direito com base nos quais a autoexecutoriedade possa ser exercida.921 Embora
exista controvérsia a respeito da adoção de teoria “extensiva” (a executoriedade seria a
regra dos atos administrativos) ou “restritiva” (executoriedade só em casos urgentes ou
em hipóteses previstas em lei), acreditamos que se deva inclinar pela última, que não
é, em rigor, “restritiva” (ou só o é em comparação com a outra teoria), mas, é, simples-
mente, a única que leva a sério os direitos fundamentais dos particulares.
As hipóteses legais de autoexecutoriedade de polícia costumam envolver au-
torizações normativas para apreensão de produtos, destruição de ruínas, construções
irregulares, medidas sanitárias e de controle de doenças. Nos casos em que não há lei

918
É claro que estamos falando de “outros poderes” em prol da simplicidade do texto, já que todas as funções
estatais – e não, tecnicamente, “poderes”, já que o poder estatal é uno – praticam atos administrativos.
919
“A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de Administração decidir e executar diretamente sua decisão por
seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, é outro atributo do poder de polícia” (MEIRELLES. Direito
administrativo brasileiro, p. 134-135, grifos no original).
920
BORGES. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução? Revista de Direito do Estado, p.
137-153.
921
Boa criterização continua sendo, na doutrina brasileira, a de Celso Antônio Bandeira de Mello: “a) Quando a
lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente para a defesa do interesse público e
não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade; c)
quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração
está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito
administrativo, p. 829).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
288 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

autorizativa expressa, a autoexecutoriedade deve ser o resultado de ponderação em


concreto entre os interesses envolvidos, sempre sob o fundamento da urgência na adoção
do ato (e jamais com o propósito da sanção, cuja aplicação deve ser precedida do devi-
do processo legal), e, ainda, respeitosa do núcleo essencial do direito restringido.922 923
O poder de polícia é (iv) exigível. Aqui, não vamos gastar muita energia. Significa,
apenas, que a polícia se realiza pela tomada de decisões que independem da concor-
dância do particular. A classificação, originária da doutrina francesa, foi adotada tanto
por brasileiros quanto por autores de outras nacionalidades, mas é de reduzido poder
explicativo.
As próximas duas características do poder de polícia incorporam a principal
negação e a principal afirmação do presente capítulo. A elas.
Hoje se fala que o poder de polícia (v) teve seu conceito instrumentalizado à realização
dos direitos fundamentais. Marçal Justen Filho define polícia administrativa como “compe-
tência para disciplinar o exercício da autonomia privada para a realização de direitos funda-
mentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”.924
A expressão em itálico pode ser entendida em dois sentidos — um sentido forte e um
fraco —, e só quando ela é entendida em sentido fraco a frase neutraliza seu potencial
de autocontradição. Explica-se.
A conceituação-padrão de direitos fundamentais é o da fundamentalidade ma-
terial: direito fundamental é o direito que se presta a realizar, direta e imediatamente, a
dignidade da pessoa humana.925 Trata-se de critério não formal, que utiliza como indício
a presença do direito no Catálogo de Direitos Fundamentais da nossa Constituição. Há
direitos fundamentais que lá estão, mas há outros dispersos pelo Texto Constitucional.
Ao contrário de muitos autores, que, ao apostar numa “euforia jusfundamental”,
acabam contribuindo para a perda de relevância do conceito, a posição restringe para
valorizar: o que é direito fundamental deve ser imediatamente sindicável, inclui-se
no conteúdo protegido pelas cláusulas pétreas e é objeto de técnicas específicas de
interpretação. Mas só o que é direito fundamental de fato, quer dizer, aquele núcleo
de direitos vinculado à dignidade humana de modo direto, e que é capaz de ser aceito
de modo amplo por todas as correntes políticas e ideológicas da sociedade, à maneira
de um consenso sobreposto entre posições particulares — ou seja: só pode ser jusfun-
damentalizado o que ultrapassou o filtro da razão pública.
Assim, por exemplo, pessoas razoáveis e de boa-fé de uma sociedade
contemporânea estão de acordo a respeito de que o conteúdo “ensino fundamental”
realiza a dignidade da pessoa humana. Existe, então, um direito fundamental ao ensino
fundamental. O mesmo já não se pode dizer sobre a ideia de ensino superior: há um
bem articulado conjunto de argumentos contra a ideia de que seja conteúdo vinculado
diretamente à dignidade humana. Não existe, por isso, um direito fundamental ao

922
BOMFIM; FIDALGO. Releitura da auto-executoriedade como prerrogativa da Administração Pública. In:
ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 267-309, passim.
923
Ver, à frente, análise sobre a essencial incompatibilidade entre ponderação e núcleo essencial. Como veremos,
afirmar que algo “deve ser ponderado” e que tal ponderação “deve respeitar o núcleo essencial dos direitos” é,
na melhor das hipóteses, supérfluo.
924
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 459, grifos nossos.
925
Por todos, v. SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
289

ensino superior.926 O que não significa proibir o Estado de prestá-lo; sem dúvida, é
importante utilidade que o Poder Público pode colocar à disposição de seus cidadãos
na qualidade de serviço público. O Estado brasileiro, inclusive, historicamente presta o
serviço. É ponto pacífico entre as muitas ideologias: ninguém terá seu valor intrínseco
de homem violado se não possuir uma graduação universitária, um mestrado, um
doutorado. No entanto, tal violação é consensualmente clara ao se deparar com um
homem adulto incapaz de ler, escrever, realizar operações matemáticas. Trata-se de ser
humano incapaz de se inserir significativamente na sociedade e de partilhar das muitas
experiências compartidas pela comunicação.
Ou seja: o conceito de direitos fundamentais é menos abrangente do que uma
longa série de propósitos legítimos que podem ser (e foram) validamente perseguidos
pelo Estado, na qualidade, por exemplo, de serviços públicos. Se o Estado brasileiro
resolver assumir a prestação da atividade de fornecimento de conexão com a internet,
transformando-o em serviço público, muitos não o considerarão, pelo menos no presente
momento, conteúdo com vinculação direta com a dignidade humana.927 Repita-se: o
conceito de direitos fundamentais é subinclusivo em relação à multitude de atividades estatais.
Muitas realizam diretamente a dignidade humana; outras importantíssimas atividades,
não. Não serão inconstitucionais por isso.
O que vale para o serviço público vale para o poder de polícia, ainda mais diante
da integração material das atividades. No mesmo exemplo, o ensino público superior
não significa a realização de direito fundamental. Portanto, a atividade de polícia ad-
ministrativa incidente na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) não realiza direito fundamental, na medida em que o próprio serviço
público também não o faz. Será inconstitucional por isso?
Em sentido forte, a ideia de que a polícia contemporânea foi instrumentalizada à
realização dos direitos fundamentais é inaceitável porque restringe a atuação adminis-
trativa à “realização direta da dignidade humana” que é a essência do conceito de direito
fundamental. Tal restrição é antidemocrática. Ela limita indevidamente o espectro de
escolhas legislativas. Não há nada de inválido, por inconstitucional, se a população do
Estado do Rio de Janeiro constituiu a UERJ como uma instituição autárquica de ensino
público superior. Amanhã pode achar que a escolha não foi a melhor, revogando a lei,
porém isso pertence antes ao jogo democrático do que às categorias da doutrina.
É dizer: se se entende que a frase “o poder de polícia foi instrumentalizado à
realização dos direitos fundamentais” quer dizer “o poder de polícia só pode atuar para
a promoção dos direitos fundamentais”, ela ingressará em contradição com a ideia de
que “o poder de polícia existe para a realização da democracia”, na medida em que
existem diversas atividades públicas democraticamente referendadas que não promo-
vem direitos fundamentais.
Em sentido fraco, a ideia de “instrumentalizado à realização de direitos fun-
damentais” pode ser lida como uma “necessidade de conformação aos direitos fun-
damentais”. Esse é o sentido democraticamente possível. “Conformação” significa
“ser conforme”, “não violar”, circunstância, aliás, óbvia, já que nenhum exercício de

926
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das
condições para a cooperação na deliberação democrática.
927
Defendendo que, já hoje, o acesso à internet é direito humano, v. a excelente obra digital de Bárbara Nascimento
(O direito humano de acesso à internet: fundamentos, conteúdo e exigibilidade, 2014). O autor deste livro elaborou
o prefácio da obra.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
290 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

atividade administrativa pode violar o direito fundamental do particular à liberdade


ou à propriedade.
Em resumo: caso se entenda que o poder de polícia só pode atuar em relação a
atividades que sejam direitos fundamentais, é ser antidemocrático e irrealista (já que a
realidade da atuação estatal é mais abrangente); caso se entenda que a polícia só pode
atuar de modo respeitoso aos direitos fundamentais eventualmente tocados por seu
exercício, a frase é verdadeira, embora óbvia.
Finalmente, característica do poder de polícia, numa acepção moderna, é (vi) que
seu conceito também seja instrumentalizado à realização da democracia.
Mais uma vez, Marçal Justen Filho merece ser citado:
Trata-se de limitar o exercício de liberdades, o que propicia uma atividade estatal dotada
de grande potencial antidemocrático. [...] Não se admite que as competências de poder de
polícia administrativa sejam utilizadas de modo antidemocrático. É indispensável condicio-
nar a atividade de poder de polícia à produção concreta e efetiva da realização de direitos
fundamentais e da democracia.928

Embora a crítica que fizemos à ideia de ser “meio para a realização” seja também
aqui aplicável — o exercício do poder de polícia não deve ser entendido apenas como
instrumento de realização da democracia, mas como competência que se realiza em conformidade
com a democracia —, no essencial concordamos com o jurista. E avançamos na proposta:
boa forma de operacionalizar essa conformidade democrática é submetê-la ao limite
da razão pública. A conferir.
O assunto final desta incursão doutrinária é a classificação do poder de polícia. O
assunto é de origem francesa. Fala-se numa polícia geral e numa polícia especial. A polícia
geral seria aquela cujo objeto se voltasse ao conteúdo tradicional da Ordem Pública, na
acepção francesa: segurança, tranquilidade, saúde. Já na abrangência da polícia especial
estariam as demais: polícia industrial, econômica, das profissões etc.
Há um importante “porém” nessa classificação: no Brasil, ela não serve para nada.
A ser verdadeira a lição de Ricardo Guastini segundo a qual as distinções só se justifi-
cam pela sua utilidade,929 a classificação, no Brasil, perde sua razão de ser. Na França,
o exercício da polícia geral pode ser feito por regulamentos autônomos, já o da polícia
especial, não.930 No Brasil, não há essa diferenciação: ou se acredita nos regulamentos
autônomos, e aí eles são aceitos para o exercício da polícia como um todo, ou não se
aceitam, e aí não será uma diferenciação pelo conteúdo que os tornará admissíveis.931
Passemos ao assunto dos limites clássicos ao exercício do poder de polícia.

2.3 Limites clássicos ao exercício da polícia administrativa: elementos


do ato administrativo, devido processo e legalidade
O poder de polícia se exerce por atos administrativos, e, assim, todos os critérios
de controle aplicáveis a estes servirão àquele. Sem maiores pretensões de profundidade,

928
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
929
GUASTINI. Distinguendo: estudios de teoría y metateoría del derecho.
930
Constituição Francesa de 1958, art. 34 c/c art. 37.
931
Os regulamentos autônomos constituem atos normativos editados pela Administração com base diretamente
na Constituição, isto é, sem intermediação legal. A propósito, v. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito
administrativo, p. 824-826 e CYRINO. O poder regulamentar autônomo do Presidente da República.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
291

o ato administrativo é composto de cinco “elementos” (ver nota de rodapé no início do


capítulo): competência, forma, finalidade, motivo e objeto.
Quanto à competência, que talvez seja a própria natureza da polícia,932 afirma-se
que possui competência administrativa — na qual se inclui a competência para a prática
de atos de polícia — quem possui competência legislativa. Exerce a polícia quem pode
regular a matéria. Há, ainda, casos nos quais a competência administrativa foi direta-
mente prescrita pela Constituição, de modo privativo para a União (art. 21 da CRFB/88)
ou concorrentemente aos demais entes (art. 23). Nas hipóteses em que a competência
legislativa é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal (art. 24), também
concorrente será a competência para a polícia administrativa. Quando não houver atri-
buição constitucional específica de competência legislativa ou administrativa à União
ou a algum Estado, Município, ou ao Distrito Federal, aplica-se, de modo supletivo, a
ideia de que a competência estará vinculada ao interesse: será competente o Município
ou o Distrito Federal, se o interesse for local; se o interesse for regional, a competência
para a prática de atos de polícia é do Estado; se nacional, competente será a União.
Tudo isso é fácil de falar e difícil de fazer. Na prática, reina confusão a respeito
da distribuição de certas competências legislativas e administrativas entre os entes da
Federação, inclusive com vacilações jurisprudenciais.
A questão central, e que impede a pacificação do ponto, é que muitos dos conflitos
de competência resolvem-se em conflitos acerca da qualificação de conteúdos, com bons
argumentos para ambos os lados. O horário de funcionamento de agência bancária é
assunto que envolve a comunidade local, já que afeta as atividades do centro da cidade,
a movimentação do comércio próximo etc. No entanto, também se pode argumentar que
é assunto que transcende aos interesses local e regional, porque o banco comunica-se
com uma rede nacional e, por exemplo, efetua operações nacionais de compensação
de títulos. Qual tese deve prevalecer? Segundo o STJ, a segunda: “Súmula nº 19 – A
fixação do horário bancário, para atendimento ao público, é da competência da União”.
Mas, caso se trate de lojas comerciais, e não de bancos, a competência passa a ser do
Município (Enunciado nº 645 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF).
O respeito à forma é outro limite clássico ao exercício do poder de polícia. Já se
avançou muito desde a época em que se entendia respeito à forma como formalismo,
mas o elemento ainda importa e carreia racionalidade ao ato. Pensando, por exemplo,
nos atos de polícia arquetípicos — a licença e a autorização —, sua constituição válida
pressupõe que seus alvarás hajam sido emitidos com o cumprimento de todas as regras
formais.
O controle da finalidade do ato administrativo de polícia consiste em limite que,
nas palavras de Marcelo Caetano, é “naturalmente imposto”.933 Seria uma condição da
existência da polícia. É que seu exercício deve pretender realizar interesses públicos
razoavelmente identificáveis. A disciplina pública não se presta a reforçar injustificada-
mente interesses privados. Ela não se faz para incrementar a participação no mercado
da empresa A em desfavor da empresa B. A polícia sanitária deve revistar todos os

932
Marçal diz que a polícia administrativa é um conjunto de competências (p. 459).
933
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 276. “Não está no âmbito das suas atribuições,
por exemplo, ordenar a execução de um contrato ou fazer pagar uma dívida” (p. 277). No mesmo sentido: “O
exercício do poder de polícia deve ser submetido aos limites que decorrem da Constituição Federal e das leis.
A missão da polícia é a de proteger a ordem pública, na medida em que se fala de polícia de segurança. Logo,
a polícia não poderá colocar a força de que dispõe à disposição da proteção de interesses exclusivamente privados” (LIMA.
Princípios de direito administrativo, p. 319, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
292 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

estabelecimentos ou, no mínimo, todos os que possuam suspeita de venderem pro-


dutos contaminados. Outras hipóteses poderiam ser cogitadas, embora tal limite não
seja exatamente exclusividade da polícia administrativa: nenhuma atividade estatal
se justifica sem o propósito da persecução do interesse público. A teoria do desvio de
finalidade, clássica no Direito Administrativo, é inteiramente aplicável ao controle do
poder de polícia.934
O controle do motivo do ato de polícia — os pressupostos de fato e de Direito
com base nos quais o ato é praticado — faz-se pela verificação de se tais pressupostos
existem e se são válidos.
Muitas vezes, um ato administrativo viciado em seu motivo é, essencialmente, um
ato administrativo praticado em desvio de finalidade, então é importante ter em mente
que tais elementos existem mais como categorias racionais elaboradas com propósitos
didáticos e de simplificação do que como descrições realistas e minudentes.
Curiosamente, se o controle do motivo do ato é feito pela análise dos fatos e dos
fundamentos jurídicos invocados para sua prática, não há sentido na tese que diz que
só alguns atos devem ser motivados, isto é, que só alguns devem ter seus elementos
de motivação indicados de modo expresso. Não há ato administrativo que escape à
motivação, tanto que isso é fundamental para seu controle.935
Assim, no decreto de expropriação, para falarmos na polícia da propriedade,936
não basta alegar, genericamente, o interesse público na aquisição forçada do imóvel;
faz-se mister declinar as razões, de fato e de Direito, que qualificam aquela vontade de
fato como vontade constitucionalmente adequada.
É claro que uma coisa é a necessidade de motivação, outra, completamente diferente,
é a abrangência do controle judicial, que, em muitos dos atos motivados, será feita de
modo deferente à separação de poderes, no mínimo porque a prática de tais atos se faz
pelo preenchimento fático de conceitos jurídicos indeterminados pelo administrador.
O objeto ou conteúdo do ato de polícia é a modificação na realidade causada pelo
exercício da atividade de limitação administrativa. É a possibilidade de se dirigir pelas
ruas do país, com a licença para conduzir veículo automotor; é a suspensão das ativida-
des de preparo de refeições, com a interdição do estabelecimento. Afirma-se que deve
ser lícito e possível. Possuiria objeto ilícito uma polícia administrativa da qualidade
da heroína; impossível, uma polícia da navegação entre galáxias. Os exemplos não
precisam ser tão extremos, mas o exagero reforça o conceito.
Além dos elementos do ato administrativo, há, ainda, como limite clássico, a
submissão do ato de polícia a um devido processo legal que respeite o contraditório e a

934
“É, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da legalidade
do fim objetivado na ação administrativa adquire relevo especial. Ele corresponde à eliminação dos processos
maliciosos e sub-reptícios (e, por isso mesmo, socialmente mais nocivos) de arbítrio administrativo acobertado
pelo aparente respeito à lei” (TÁCITO. Temas de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 531).
935
Os motivos são tão importantes para o controle dos atos de polícia que, na França, há certas condutas privadas
que carreiam uma tradicionalíssima presunção (relativa) de ausência de motivo de polícia em favor do particular: são
as manifestações exteriores tradicionais de religiosidade (procissões, comboios fúnebres etc.). Presume-se que
tais condutas não ameaçam a tranquilidade pública. Se o Estado pretender limitá-las, deve não apenas motivar
tal propósito, mas fazê-lo de modo bastante justificado. V. a decisão do Conselho de Estado em Abbé Didier,
julgado em 1º de maio de 1914. Cf. GAUDEMET. Droit administratif, p. 313. De qualquer modo, nossa afirmação
no curso do texto pode ser excepcionada uma única razão: a urgência. Nesse sentido, MINET. Droit de la police
administrative, p. 233-234.
936
A doutrina discute se a desapropriação e as demais limitações à propriedade poderiam ser enquadradas dentro
do poder de polícia. A maioria dos autores, topograficamente, coloca o assunto à parte, embora alguns deem a
entender que a desapropriação é o exercício extremo de uma polícia da propriedade.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
293

possibilidade de ampla defesa por parte do administrado. É no exercício da polícia que


culmina com a aplicação de sanções que tal limite aparece em sua plenitude.937
Dois exemplos envolvendo a cidade do Rio de Janeiro: na constituição das Áreas
de Preservação do Ambiente Cultural, as APACs, qualificações jurídicas, oriundas do
exercício de polícia urbanística municipal, que restringem alguns direitos dos proprie-
tários de imóveis em áreas de valor urbanístico e cultural, algumas decisões judiciais
entenderam que o decreto do Prefeito, simplesmente listando os imóveis, não permitiu
o exercício da ampla defesa dos titulares dos bens atingidos pelas restrições.
Segundo exemplo: nos primeiros dias de governo, certo prefeito do Rio pretendeu
demolir prédio construído em área irregular, o “minhocão da Rocinha”. As escavadeiras
estavam prestes a fazê-lo, quando foi deferida medida liminar, posteriormente cassada,
questionando a ausência do devido processo legal precedentemente ao exercício da
sanção de polícia.
Quiçá o exemplo mais trivial de necessidade de devido processo legal antes da
aplicação de sanção administrativa seja o das multas de trânsito, poucos escaparam
da dupla notificação — a da autuação e a da aplicação da multa propriamente dita —,
e de seu rosário de instâncias administrativas (depois da notificação, a Comissão de
Defesa Prévia; após a multa, a Junta de Recurso de Infração de Trânsito; e, em caso de
insucesso, o Conselho Estadual de Trânsito).
O último e, possivelmente, mais óbvio limite clássico ao exercício da polícia é
o respeito à legalidade. Aqui vale a observação acaciana: trata-se de princípio geral do
Direito Público, jamais de particularidade dos atos administrativos ou dos atos ad-
ministrativos de polícia. Muitos até falam que, de todas as atividades do Estado, a de
polícia seria a que mais requereria a observância à legalidade.938
Contudo, não há de se confundir respeito à legalidade com exigência de prede-
terminação exauriente de comportamentos públicos ou privados; à luz da diversidade
da ação estatal, isso seria impossível. A lei pode facultar à Administração Pública a
adoção de uma disciplina mais discricionária, desde que dentro de certos parâmetros
de controle e de racionalidade. Não se admite autorização legislativa genérica, mas
do que se está tratando não é disso: respeitados certos parâmetros — inteligibilidade,
previsibilidade, possibilidade de controle em bases objetivas, início de descrição do
comportamento —, a atribuição de discricionariedade à Administração para identificar
condutas e aquilatar punições é, em certos casos, medida óbvia e salutar.
Falando de “parâmetros” e usando termos como racionalidade, inteligibilidade
e previsibilidade, preparamo-nos para o item a seguir: os novos limites.

2.4 Novos limites: dignidade humana, proporcionalidade e


preservação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. A
superação da teoria das limitações e sacrifícios de direitos
A expressão “novos limites” é relacional: só faz sentido em comparação com
os limites clássicos, já que alguns destes “novos limites” estão presentes há mais de

937
“As decisões individuais de polícia devem ser precedidas de um procedimento contraditório, que permite a seus
destinatários apresentar suas observações e fazer valer seus direitos” (MINET. Droit de la police administrative,
p. 234).
938
“De todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, a de polícia é a que mais requer a observância da legalidade
administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 657).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
294 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

cinquenta anos na doutrina e na jurisprudência estrangeira. Eles também são “novos”


no seguinte sentido: são os que mais recentemente foram apresentados à prática jurídica
brasileira. Verdadeiramente novos ou não, fato é que é neles que se centra a propalada
jusfundamentalização do poder de polícia.939
A dignidade humana ingressou no terreno do Direito Público justamente pelo poder
de polícia. E ela ingressou graças a um caso francês famoso no Brasil: o do arremesso
de anões. Estabelecimento comercial de pequena cidade francesa, Morsang-sur-Orge,
resolveu trazer a atração; a municipalidade proibiu a atividade alegando violação à
dignidade humana; a decisão foi mantida pelo Conselho de Estado, sob o argumento
de que a Ordem Pública incluía o respeito à dignidade humana.940
Três observações. 1) A partir daí,941 segmentos da doutrina francesa passaram a
afirmar que houve o alargamento do conceito de Ordem Pública, para eles de crucial
importância no exercício da polícia, com a inclusão de considerações de moralidade
pública (mencionamos o ponto ao tratar da razão pública como critério de controle);942

939
A respeito da submissão geral do Direito Administrativo ao regime dos direitos fundamentais, v. SANTOS
NETO. O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo. Especificamente sobre a submissão
do poder de polícia aos direitos fundamentais e aos limites mais “modernos”, além dos manuais, que hoje
em dia já se referem ao assunto —, ver, por exemplo, FREEMAN. Direito fundamental à boa Administração
Pública e o reexame dos institutos da autorização de serviço público, da convalidação e do ‘poder de polícia
administrativa’. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, especialmente p.
326-332; FREITAS. Direito fundamental à boa administração, p. 114-125; MORGADO. Direito à boa administração:
recíproca dependência entre direitos fundamentais, organização e procedimento. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 68 et seq.
940
Conséil d’État statuant au contentieux, nº 136.727, 27 de outubro de 1995. Da decisão, alguns trechos merecem
destaque: “Considerando que cabe à autoridade investida de poder de polícia municipal tomar todas as medidas
para prevenir um atentado à ordem pública; que o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da
ordem pública; que a autoridade investida de poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias
locais particulares, interditar uma atração que atente contra o respeito à dignidade da pessoa humana [...]; Considerando
que, por seu próprio objeto, uma tal atração atenta contra a dignidade da pessoa humana; [...] Considerando que o
respeito ao princípio da liberdade de trabalho e ao da liberdade de comércio e de indústria não é obstáculo
a que a autoridade investida de poder de polícia municipal interdite uma atividade, mesmo lícita, se uma tal
medida é a única capaz de prevenir ou fazer cessar um atentado contra a ordem pública” (tradução nossa, grifos
nossos). Disponível em: <http://www.legifrance.gouverfr/affichJuriAdmin.do?oldAction=rechJuriAdmin&idTe
xte=CETATEXT000007877723>. Acesso em: 6 jan. 2010. A mesma decisão foi tomada para o caso Ville d’Aix-en-
Provence, que trata de idêntica hipótese (o prefeito desta outra cidade interditou a atração local de arremesso de
anões alguns meses depois do prefeito de Morsang-sur-Orge). No Brasil, ver o comentário ao caso de Joaquim
Barbosa Gomes (O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa.
ADV Advocacia Dinâmica – Seleções Jurídicas, p. 17 et seq.).
941
Embora tenha havido referência à dignidade humana em leis e decisões judiciais francesas anteriores. O
legislador francês, em lei de 30 de setembro de 1986 sobre liberdade de comunicação, limitou-a “na medida
requerida [...] ao respeito à pessoa humana”. No Código Civil francês, lei de 1994, introduziu, no art. 16,
dispositivo segundo o qual “a lei assegura a primazia da pessoa, proibindo-se qualquer atentado a ela e garantido
o respeito do ser humano desde o começo de sua vida”. O Conselho Constitucional, também em 1994, com base
na primeira frase do preâmbulo da Constituição francesa de 1946, considerou que “a salvaguarda da dignidade
da pessoa humana contra toda forma de sevícia e de degradação é um princípio de valor constitucional”. O
próprio Conselho de Estado fez uso da expressão em dois casos anteriores: ao falar sobre controle de salários
(Ministre des affaires sociales et de l’emploi c. Syndicat CGT de la Societé Griffine-Maréchal, julgado em 11 de julho de
1990), destacou a importância de “preservar a dignidade da pessoa” e disse que “os princípios deontológicos
fundamentais relativos ao respeito à pessoa humana que se impõem ao médico em suas relações com seus
pacientes não cessam com a morte destes” (Millhaud, julgado em 2 de julho de 1993). Long, Weil et al. concluem
que “a afirmação do ‘respeito à dignidade da pessoa humana’ pelos julgados Commune de Morsang-sur-Orge e
Ville d’Aix-en-Provence constitui prolongamento de soluções bem estabelecidas no Direito Positivo” (BRAIBANT
et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 733).
942
O assunto é polêmico, porque reflete, segundo Maurice Hauriou, relutância da doutrina francesa em estender
a abrangência do poder de polícia para além da “ordem material e exterior” (suas palavras). Mesmo assim,
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
295

2) a prática difunde-se pelo mundo: há arremessos de anões em estados americanos


(embora seja expressamente proibido na Flórida e em Nova Iorque); na Austrália, projeto
de lei proibindo a atração não conseguiu ser aprovado; 3) longe de ser unanimidade, a
decisão é contestada até na doutrina francesa.943
A partir do precedente, a doutrina, brasileira e internacional, passou a afirmar
que a polícia pode se prestar a condicionar, restringir ou sacrificar o exercício de direitos
em prol da dignidade humana.944 O problema é saber o que isso significa.
Na maioria das vezes, apela-se à máxima kantiana segundo a qual o homem
jamais pode ser tratado como meio para um fim, mas como um fim em si mesmo. Boas
tentativas para a densificação de seu conteúdo foram formuladas, inclusive na doutrina
brasileira,945 mas o assunto continua polêmico.946
Saída possível é tentar identificar pontos de consenso: tortura (física e psico-
lógica) e escravidão são condutas violadoras da dignidade; prestação de educação
fundamental e de algum nível mínimo de assistência social são condutas promotoras
da dignidade humana.
Ora, se a polícia pode reprimir condutas privadas que violem a dignidade hu-
mana, como o conceito poderia lhe servir de limite?
Simples e, ao mesmo tempo, complexo. O exercício do poder de polícia não pode
implicar a prática de atos administrativos que tratem o homem como meio para um fim; que lhe
imprimam insuportável sofrimento físico e/ou mental. É claro que o critério vai se prestar a
alguma utilização retórica, tanto que, na maioria dos casos, impor restrições a direitos
não é circunstância que o particular aceite com sorrisos. Mas a violação à dignida-
de humana, no ato de polícia, é muito mais do que o desconforto com a atuação da
Administração Ordenadora. Seria o caso, por exemplo, de desapropriações sem prévio
pagamento; do banimento de cães-guias para cegos; da imobilização integral com o
uso de algemas nos pés e mãos; de medidas de polícia das moléstias que impedissem
qualquer comunicação do doente com o mundo exterior.
O segundo limite mais recente ao exercício da polícia só perde em celebri-
dade para o primeiro. Claro que estamos nos referindo à proporcionalidade. Falar da

autores como René Chapus afirmam que a moralidade pública seria o quarto componente do conceito de
Ordem Pública (ao lado da segurança, da saúde e da tranquilidade). Há mesmo alguns julgados do Conselho
de Estado que, na opinião de alguns, indicam decisões tomadas com base nesse critério (por ex., em Société “Les
Films Lutetia”, julgado em 1959, o Conselho entendeu que a projeção de um filme pode ser proibida “à razão de
seu caráter imoral e de circunstâncias locais”) (CHAPUS, René. Droit administratif général, t. I, p. 707-711, item
II – L’orde public en tant que bon ordre moral). Retomaremos o assunto quando falarmos do critério da razão
pública.
943
Destaque-se que o anão foi litisconsorte da casa de espetáculos na impugnação da decisão do prefeito, alegando
que a municipalidade o privou da possibilidade de receber remuneração digna. Alegou, ainda, que a atividade
era segura (ele usava roupa especial e capacete). Na doutrina, de modo crítico à conclusão do Conselho de
Estado, v. JEROIN. La dignité de la personne humaine: ou la difficile insertion d’une règle morale dans le droit
positif. Revue du Droit Public; MOUTOUH. La dignité de l’homme et droit. Revue du Droit Public, p. 159 et seq.
944
No Direito Constitucional, viceja debate quanto à existência de uma dimensão heterônoma do princípio da
dignidade humana (valores comunitários, associados à preservação de “padrões civilizatórios”, que seriam
capazes de limitar escolhas individuais). Defendendo a existência de tal dimensão, v. BARROSO. A Dignidade da
Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo. Em sentido oposto, cf. SARMENTO. Dignidade da Pessoa
Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia.
945
BARCELLOS. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ainda, SARMENTO. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia.
946
V. crítica em HOERSTER. En defensa del positivismo juridico.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
296 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

proporcionalidade como limite ao exercício do poder de polícia é, simplesmente, falar


do princípio da proporcionalidade, com todos os chavões (“balas de canhão não podem
matar pássaros”), discussões teóricas, exemplos, propostas de incremento em seu grau
de racionalidade etc. que o tema vem suscitando ao longo dos últimos vinte anos, no
Brasil, e cinquenta, no mundo.
A proporcionalidade surgiu como controle ao poder executivo do Estado. Só
depois é que se passou a falar em juízo de proporcionalidade dos atos legislativos. O
que faz todo o sentido: se a atividade de polícia administrativa é, na essência, a ativi-
dade de impor restrições a direitos, é o juízo de proporcionalidade quem vai graduar
tal atividade de compressão.
Não é necessário apelar a conhecimentos extravagantes para justificar a afir-
mativa. Sabe-se, pelas lições de Alexy, que a proporcionalidade é decorrência de um
sistema de direitos em que muitas de suas normas possuem natureza principiológica.
A polícia é a mão que opera a balança cujos pratos são a proporcionalidade. Autores
clássicos já diziam que na ideia mesma de Direito vai contida a possibilidade da limi-
tação de seu exercício.947 Como diz Marçal Justen, “a proporcionalidade que informa o
poder de polícia é reflexo da proporcionalidade que está na base dos direitos sujeitos à
limitação”.948 Em rigor, nem se trata de reflexo: ela é a proporcionalidade dos direitos.
A única diferença entre a proporcionalidade incidente na gradação entre dois
direitos titularizados por particulares e a que incide junto ao poder de polícia é o fun-
damento da limitação. No primeiro caso, os direitos limitam-se para que possam se
realizar máxima e mutuamente (nos casos em que isso seja possível); no segundo, a
limitação faz-se não em favor da coexistência dos dois direitos, mas na da pluriexistência
dos vários direitos individuais atendidos pelo objetivo de interesse público.
Na hipótese do conflito entre a liberdade de expressão de sujeito que usa me-
gafone na praça e o direito ao sossego dos moradores do edifício em frente, há dois
direitos individuais: o direito do protestante e os direitos individuais dos moradores.
Na circunstância de uma desapropriação para a construção de colégio público, há o
direito do titular do imóvel, e, em paralelo, o direito à educação de um número inde-
terminado de crianças.
Sem falar na compatibilidade essencial entre a proporcionalidade e outras te-
orias clássicas de controle do ato administrativo, como a teoria do abuso de poder,949
verificamos que, em geral, as referências doutrinárias nacionais à proporcionalidade na
polícia administrativa centram-se em dois aspectos: (i) na proibição do excesso nos meios
pelos quais a polícia administrativa vai atuar (proporcionalidade-necessidade) e (ii) na
relevância da intervenção pública de polícia (proporcionalidade estrita).

947
“O que devemos, entretanto, assinalar é que, na ideia de garantia de um direito vai implícita a possibilidade de
limitação desse direito ou do respectivo exercício” (LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 304).
948
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
949
LIMA. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia administrativa.
Revista dos Tribunais, p. 123-127, passim.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
297

É no primeiro sentido que vêm as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello,950


Odete Medauar,951 Ruy Cirne Lima (embora sem se referir ao termo),952 José dos Santos
Carvalho Filho,953 Raquel Urbano de Carvalho,954 Edmir Netto de Araújo.955 No segun-
do sentido, a contribuição de Lucas Rocha,956 e, na doutrina portuguesa, a de Marcelo
Caetano.957 Poucos autores falam nos três elementos da proporcionalidade — adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito — aplicados à polícia administra-
tiva.958 Há análise extensa, na doutrina brasileira, sobre o controle de razoabilidade
incidente junto ao poder de polícia: é o capítulo de José Roberto Pimenta Oliveira.959
A doutrina estrangeira é mais vertical: embora alguns autores tratem do
assunto sob a ótica da vedação do excesso nos meios e sanções de polícia960 ou como

950
“Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energicamente com a
liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de
meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido por lei, sob pena de vício jurídico que
acarretará responsabilidade da Administração” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 830,
grifos no original). Celso Antônio ainda menciona dois modos de excesso: mais intenso ou mais abrangente do
que deveria ser. Mais intenso: o uso de violência para dissolver reunião não autorizada, porém pacífica. Mais
abrangente: a apreensão de toda a edição de um jornal, quando seria possível obstar sua circulação numa região
específica para proteger o bem jurídico defendido.
951
“[...] Proporcional à gravidade da possível perturbação – por exemplo: em locais de grande afluxo de pessoas
são impostas restrições mais amplas que em locais sem nenhum afluxo de pessoas” (MEDAUAR. Direito
administrativo moderno, p. 339).
952
“Nenhuma restrição à liberdade individual deverá exceder jamais a medida absolutamente necessária à
preservação da ordem e da segurança públicas” (LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 307).
953
“O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que dispõe a Administração
ao praticar atos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção seja utilizada indevidamente pelos
agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada onde não houvesse necessidade” (CARVALHO
FILHO. Manual de direito administrativo, p. 83).
954
“O requisito da proporcionalidade no exercício da polícia administrativa impõe que a atuação da Administração
fique restrita aos atos indispensáveis à eficácia da fiscalização e do condicionamento voltado aos interesses
da sociedade” (CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da
administração, p. 331). Logo após, a autora cita Celso Antônio (no trecho que citamos) e Rogério Silva, ambos
analisando a proporcionalidade sob a ótica da proporcionalidade-necessidade.
955
“[...] O que nos vale à configuração da regra da proporcionalidade dos meios aos fins no exercício da atividade de
polícia administrativa. Com efeito, a autoridade não deve ir além do necessário à satisfação do interesse público,
não utilizar meios violentos, vexatórios, ilegais, exagerados, pois o objetivo da polícia administrativa não deve
ser a eliminação dos direitos individuais, mas assegurar seu exercício, conformando-o com as exigências do
bem-estar e tranquilidade social” (ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 999, grifos no original).
956
“Nesse sentido, a fim de que o exercício do poder de polícia do Estado seja legítimo, é necessário, além de lei
específica, que a restrição ao exercício das liberdades privadas possa ser justificada em face dos ganhos para a sociedade”
(FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 656).
957
“O emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas constitui abuso
de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios a empregar para a sua
prevenção” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 278). Em sentido próximo, Ruy Cirne
Lima (Princípios de direito administrativo, p. 321).
958
Em certo sentido, Marçal Justen Filho é exceção, já que menciona dois dos três elementos e substitui o terceiro
por uma compatibilidade geral com o Ordenamento, verbis: “Isso significa que qualquer limitação, prevista em
lei ou em ato administrativo, somente será válida se a) adequada, b) necessária e c) compatível com os valores
consagrados na Constituição e nas leis. Adequação significa um vínculo de causalidade lógica entre a providência
limitativa adotada e o fim concreto que a justifica. A necessidade impõe a adoção da providência de menor
potencial de restritividade possível dentre as diversas que se revelarem como adequadas. A compatibilidade
com a Constituição impede a consagração de providências restritivas que suprimam ou ofendam valores ou
direitos fundamentais, consagrados como intangíveis” (JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p.
461). Maria Sylvia também menciona a “proporcionalidade dos meios aos fins” como sendo uma espécie de
proporcionalidade-necessidade e uma proporcionalidade em sentido estrito (DI PIETRO. Direito administrativo,
p. 113).
959
OLIVEIRA. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro, p. 414-513.
960
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 699; GAUDEMET. Droit administratif, p. 314.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
298 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

proporcionalidade estrita,961 há obras que desenvolvem o assunto.962 Santamaría Pastor,


em visão um pouco diferente da maioria, embora mencione o favor libertatis na polícia,
fala na proporcionalidade ao momento da atribuição de faculdades para o exercício da polícia.
Isto é, não apenas na dosagem da sanção, ou genericamente nas medidas de polícia, mas
a proporcionalidade incidiria também ao vetar “a atribuição de poderes materialmente
desnecessários para lograr os fins concretos a que intervenção se propõe”.963
Desse recenseamento, vê-se que a proporcionalidade, decorrência de sistema
de direitos que assumem a estrutura, em muitos casos, de normas-princípio, incide
como graduadora da intervenção ordenadora do Estado. É o guia da ponderação en-
tre a necessidade de preservação dos direitos individuais afetados e a necessidade de
otimização da realização dos interesses públicos.
Concretamente, significa que a Administração Pública, no exercício da polícia,
deverá adotar meios logicamente capazes de obter a finalidade pretendida e, entre
esses meios, deve escolher aquele que, capaz de produzir os resultados com eficiência
semelhante, seja o menos lesivo ao direito atingido. Duas outras exigências: o benefício
atingido pelo uso da polícia deve suplantar os gravames causados; e, ao planejar a ação
de polícia, a Administração Pública não deve se “empoderar” de mais capacidades e
atribuições que realmente precisará.
O terceiro “novo” limite ao exercício da polícia costuma ser apresentado em con-
junção à proporcionalidade: é a necessidade de preservação do núcleo essencial do direito
que esteja sendo objeto da ação de polícia.
A razão para isso é singular: segundo uma das teorias a respeito de tal conceito —
a teoria externa, aplicável ao tema geral da restrição dos direitos fundamentais —, o
resultado de uma ponderação entre princípios é, necessariamente, aquele que não afeta
o núcleo essencial do direito que está sendo restringido. O resultado da incidência da
proporcionalidade é o próprio núcleo dos direitos fundamentais. Fala-se, então, num
núcleo essencial relativo.
A teoria concorrente, a teoria interna, supõe que a definição dos limites do Direito
seja algo interno a ele, quer dizer, que não se faça de modo relativo à incidência dos de-
mais direitos e circunstâncias. Quando se argumenta que certa situação “por óbvio” não
está incluída na área de proteção de determinado direito — na linha “andar pelado pelas
ruas não se inclui no direito à liberdade de expressão artística” —, está-se pressupondo,
mesmo sem saber, uma definição pré-circunstancial dos limites do direito fundamental.
Daí que o núcleo essencial dos direitos fundamentais não vai passar a depender das
circunstâncias concretas e dos direitos em jogo: tratar-se-á de núcleo essencial absoluto.
De fato: se os limites dos direitos independem de sua incidência comparativa
com a incidência dos demais nos casos concretos, isso pressupõe a existência de um
núcleo essencial também preexistente a eles, um núcleo essencial tirado “da essência
das coisas”, da “natureza do direito” ou de qualquer outra construção do tipo.

961
Pierre-Laurent Frier e Jacques Petit elaboram procedimento analítico sobre como a proporcionalidade incide
como limite à polícia que soa parecido com a proposta de ponderação de Alexy, minus o dado cognitivo presente
na mais recente fórmula da ponderação deste. Falam que, de um lado, deve-se colocar a intensidade das ameaças
à Ordem Pública e, do outro, a importância das liberdades afetadas pela polícia e o grau de oferecimento de ameaça
à Ordem que elas importam em concreto (FRIER; PETIT. Précis de droit administratif, p. 263).
962
RAMÍREZ-ESCUDERO. El control de proporcionalidad de la actividad administrativa, p. 484-575; MINET. Droit de la
police administrative, p. 249-253.
963
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 252.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
299

Diga-se, ainda, que a discussão a respeito desses conceitos — teoria externa


ou interna acerca da restrição dos direitos fundamentais, núcleo essencial relativo ou
absoluto — produz consequências práticas, em especial no plano do exercício do ônus
argumentativo. Quem aceita uma teoria interna sobre os direitos fundamentais, e a ideia
de núcleo essencial predefinido, aceitará com mais facilidade conclusões que descartam
a necessidade da justificação de uma série de premissas.964 Afinal, se o direito “cessa
onde o abuso começa”, ele também só poderá ser restringido até seu núcleo imanente,
cuja justificação é, em muitos casos, dada como implícita.965
Estamos usando a terminologia tradicional da teoria dos direitos fundamentais.
No Direito Administrativo, não é comum falar-se desse modo. A contraposição clássica
é entre limitações e sacrifícios de direitos. As limitações — também chamadas condicio-
namentos ou conformação de direitos — não incapacitam “de verdade” o exercício
dos direitos e, por isso, não são indenizáveis. O sacrifício (ou ablação), ao contrário, é
indenizável: ele retira do titular a possibilidade de exercício útil do direito.966 O exemplo
comum de sacrifício de direito é a desapropriação. Exemplo de limitação é a imposição,
por lei, de gabarito para a altura de imóveis.
Pois bem: embora muitos administrativistas professem a defesa de ideias extra-
ídas da teoria dos princípios e da teoria padrão dos direitos fundamentais, continuam
defendendo a existência de categorias conceituais como esta — limitações e sacrifícios —,
as quais, em rigor, pressupõem uma teoria interna das restrições dos direitos fundamen-
tais e uma teoria absoluta do núcleo essencial, coisa incompatível com a teoria-­padrão
dos direitos fundamentais.
Se se aceita que direitos fundamentais são direitos prima facie, isto é, não absolutos,
ponderáveis à luz do caso concreto, deve-se aceitar que não existem núcleos essenciais
predeterminados, e, assim, que não existem diferenciações predeterminadas entre
limitações e condicionamentos de direitos.
Repita-se: a distinção clássica de Direito Administrativo entre limitações e sacrifícios de
direitos é incompatível com a teoria dos direitos fundamentais e com a teoria dos princípios, na
medida em que pressupõe a existência de um grau pré-fixado de aceitabilidade para as restrições,
a partir do qual há o ingresso num núcleo essencial dos direitos fundamentais e, portanto, o
sacrifício do direito.
Se os direitos impõem deveres prima facie, a busca por critérios prévios de distinção
entre limitações e sacrifícios é, no limite, a busca por um núcleo essencial absoluto dos
direitos fundamentais. Quando se fala em “conformação” e em “sacrifício” de direitos,
a própria terminologia remete à noção de um núcleo essencial absoluto de direitos fun-
damentais, preexistente a qualquer ponderação ou à incidência da proporcionalidade.967

964
Por todos, ver Jane Reis Gonçalves Pereira (Interpretação constitucional e direitos fundamentais, p. 174-182).
965
“Em verdade, a doutrina não apresenta um método específico para determinar esses limites; sua percepção
é considerada quase intuitiva e está relacionada com a evidência desses limites para o senso comum”
(BARCELLOS. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 61).
966
“O que importa assinalar, no entanto, é que as limitações administrativas à liberdade e à propriedade, por serem
simples conformação do Direito, não geram qualquer direito à indenização, ao contrário do sacrifício do direito
que consiste na ação autorizada do Estado para diretamente combalir o próprio direito do administrado (como
ocorre com a desapropriação, a servidão e o tombamento) [...]” (PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à
propriedade, p. 319).
967
Em alguma medida, e como vimos na resposta às críticas lançadas à tese central do capítulo anterior, as críticas
aqui realizadas também podem ser direcionadas à teoria das zonas de certeza positiva e negativa dos conceitos
jurídicos. A certeza e a determinação são resultado da interpretação, e não seus pré-condicionamentos.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
300 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Exemplos da adoção da teoria interna e do núcleo absoluto são muitos na dou-


trina, embora raramente isso decorra de reflexão. Apenas se afirma, em certo momento,
a centralidade dos direitos fundamentais e a importância da proporcionalidade, e, em
outro, diz-se que há “limites” (prévios à ponderação) que não podem ser violados.968
Quais limites podem ser esses, senão os que aparecerão argumentadamente após
a incidência da proporcionalidade na restrição a direitos? O núcleo essencial é antes
o resultado da aplicação da proporcionalidade em seu tríplice aspecto — adequação,
necessidade, proporcionalidade estrita — do que um grau de restrição “além do qual
não se pode ir” e de que não se fala muita coisa senão que existe.
Ou seja: o respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais limita o exercício
da polícia por ser garantia conexa à da proporcionalidade, e não porque existem dados
supralegais que o identifiquem prévia e abstratamente a qualquer situação prática. Ele
não é limite à proporcionalidade: ele é o resultado dela.
As chamadas restrições e limitações administrativas — os sacrifícios e conforma-
ções de direitos — não são diferenciáveis na teoria senão com o apelo a generalidades
que remetem à teoria interna e ao núcleo essencial absoluto. Só se poderá identificar uma
atuação pública desproporcional, logo, inconstitucional e indenizável, à luz das circunstâncias
fáticas e jurídicas incidentes no caso concreto.
Por exemplo, em tese, gabarito predial é limitação: é aplicável indistintamente a
todos, foi instituído por lei, não transfere patrimônio do particular para o Poder Público.
Esses são os três critérios comumente apontados pela doutrina para a identificação de
uma limitação. A situação não seria indenizável. Porém, o que dizer de gabarito muni-
cipal editado posteriormente ao início da construção de prédio cujos andares comerciais
começam a partir do terceiro (o andar que passou a ser novo limite)? O prédio já não
possuiria sua principal utilidade.
Na mesma situação, digamos que o prédio em construção seria destinado à
construção de hospital público longamente esperado pela população: os três primeiros

968
Podemos utilizar, de modo figurado, as lições de Alexandre de Aragão em seu livro sobre serviços públicos,
que adota conceitos e percepções teóricas tributárias da teoria dos direitos fundamentais e da teoria dos
princípios, mas que, aparentemente, acredita num núcleo essencial absoluto, tanto que adota e menciona a
distinção entre limitações e violações de direitos. Ao tratar das atividades privadas autorizadas, informa que,
em tais casos, o Estado poderá impor obrigações de fazer aos particulares autorizatários de modo mais intenso
ao que poderia nas atividades privadas propriamente ditas – mas o limite a tal imposição é “o núcleo essencial
da livre-iniciativa”. Contudo, não delimita o que isso significaria; afirma, apenas, que “há um mínimo daquele
direito subjetivo de iniciativa privada que deverá sempre ser resguardado”. E dá, como exemplos de imposição
de obrigações de fazer que violassem o “núcleo essencial da livre-iniciativa”, uma empresa privada de plano
de saúde que fosse obrigada a tratar pessoas que não fossem seus clientes, uma universidade privada que
fosse obrigada a custear percentagem mínima de bolsistas, cinemas obrigados a realizar sessões públicas ou
à divulgação de filmes de interesse público; empresa de telecomunicação obrigada a fornecer gratuitamente
serviço à parcela mais pobre da população; banco obrigado a oferecer linhas de microcrédito. Não concordamos
que esses sejam, em todos os casos e circunstâncias, bons exemplos de intervenções públicas desproporcionais
e, por conseguinte, violadoras do núcleo essencial – sempre relativo – da livre-iniciativa. As circunstâncias
podem variar, os direitos em jogo podem assumir importâncias distintas, a capacidade econômica da empresa
pode comportar uma intervenção pública muito bem justificada etc. Pensando em cinema, se se entende que
a obrigação da exibição de filmes é inconstitucional, como justificar a exibição de curtas-metragens nacionais?
Pensando nas instituições financeiras, o que dizer quanto às propostas de instituição de seguro popular,
elaboradas, padronizadas e eventualmente impostas pela SUSEP? Será que violaria o núcleo essencial da livre
iniciativa se um dos maiores grupos de universidades privadas do país, o grupo Kroton, fosse obrigado pelo
Poder Público, caso já não contasse com um programa de bolsas (o que é o caso), a oferecer um por cento de
suas vagas a pessoas carentes? Não existem respostas fáceis a essas perguntas, ou seja, não existem respostas
prontas, tudo é relativo, e o guia de tudo é a máxima da proporcionalidade (ARAGÃO. Direito dos serviços
públicos, p. 202 et seq., os exemplos estão nas p. 209-210).
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
301

andares seriam destinados ao estacionamento de ambulâncias, o quarto e seguintes, às


instalações hospitalares. Limitação ou sacrifício?
Pensemos no exemplo de Carlos Ari Sundfeld sobre o tombamento de uma úni-
ca rua. Trata-se de limitação (é geral, afinal, é toda a rua) ou de sacrifício (é específico,
afinal é só uma rua)?969
As respostas não são simples, e, aqui, ao contrário do que sugere Sundfeld,
pensamos que o problema não se localiza nos critérios da distinção, mas nela própria.
A partir do momento em que se aceita a ideia de que normas principiológicas de direi-
tos fundamentais instituem direitos prima facie, como faz a teoria padrão dos direitos
fundamentais, todos os direitos fundamentais serão restringíveis. O problema passará
a ser, de modo mais produtivo, a justificação prática de todas as restrições incidentes sobre
os direitos fundamentais, não mais a distinção teórica entre atos que simplesmente estabe-
lecem limites e os que vão além disso, sacrificando direitos.
Como é o estado atual do entendimento doutrinário, há desoneração argumen-
tativa a partir da qualificação da situação como “mera limitação”. Na proposta aqui
formulada, já que nenhuma restrição a direito fundamental poderá ser qualificada
aprioristicamente como “limitação” ou “sacrifício”, nada poderá ser aceito sem bons
argumentos.970
Em síntese: os novos limites ao exercício da polícia, nem tão novos assim, são o
respeito à dignidade humana — a polícia administrativa deverá tratar o homem como
fim em si mesmo, jamais como meio para qualquer propósito —, a máxima da pro-
porcionalidade e, em decorrência, a garantia do conteúdo essencial, não conhecível de
antemão, dos direitos fundamentais que estejam em questão.
Os direitos fundamentais do particular, em contraposição aos direitos funda-
mentais da coletividade, implicam a instituição de direitos e deveres prima facie, cuja
resolução prática demandará a realização de ponderação de interesses guiada pela
proporcionalidade. Mas é importante lembrar que, se direitos, mesmo fundamentais,
não são absolutos, seus núcleos essenciais também só serão delimitados para e a partir
dos casos concretos.
É contraditório, assim, afirmar a adesão à teoria dos direitos fundamentais e,
ao mesmo tempo, acreditar numa categorização entre “conformações” e “sacrifícios”
de direitos, ou entre “restrições” e “limitações administrativas”. Tudo isso é restrição
de direito e, como tal, pode ou não ser aceita, a depender das razões jurídicas e fáticas
apresentadas.
A “teoria do poder de polícia” foi, nesse ponto, ultrapassada pela teoria dos
direitos fundamentais.

2.5 Novíssimos limites: pragmatismo e razão pública


Os dois novíssimos limites são o pragmatismo e a razão pública.

969
SUNDFELD. Condicionamentos e sacrifícios de direitos: distinções. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP,
p. 81.
970
As ideias dos últimos parágrafos são inspiradas em Virgílio Afonso Silva (O conteúdo essencial dos direitos
fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, p. 23-51, passim; e Direitos
fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, passim). Sobre núcleo essencial dos direitos fundamentais,
v. GAVARA DE CARA. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los
derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn; LOPES. A garantia do conteúdo essencial dos direitos
fundamentais. Revista de Informação Legislativa.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
302 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Como se pode dar uma incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico em


relação ao poder de polícia? Como ele poderia limitá-lo?
Na verdade, a ideia é que sua incidência se faça pelo controle das razões apresen-
tadas para a ação de polícia, como argumento de reforço ou de descarte de determinado plano
de ação. Trata-se de controle argumentativo — é assim que funciona nosso “princípio”.
O “princípio” do pragmatismo jurídico opera ao impor à autoridade adminis-
trativa a obrigação da adoção de medidas de polícia fundadas na realização de pro-
pósitos de interesse público justificáveis à luz de todos os seus standards de incidência
(ver capítulo 1, primeira parte), isto é, à luz (1) de sua inclusão nos sentidos textuais
possíveis da Constituição, (2) de sua compatibilidade material com a Constituição, (3)
de tais propósitos serem os mais eficientes (entre opções semelhantes) para a obtenção
de maior bem-estar social geral, (4) de a produção de tais consequências mais eficientes
ser certa ou, no mínimo, bastante provável (do contrário não se justificaria a restrição
aos direitos fundamentais), (5) de tais consequências positivas justificadoras da polícia
ocorrerem simultaneamente a seu exercício ou, no máximo, num futuro próximo, (6)
do fato de as alegadas razões de interesse público para o exercício da polícia estarem
baseadas em razoável base empírica, (7) de tais razões de interesse público não se
basearem em alegações fundacionais (dogmas, pressuposições acríticas, “verdades”),
(8) de as justificativas para o exercício da polícia serem contextuais às circunstâncias
de seu exercício.
Exemplos ilustrarão o ponto. Os números correspondem aos standards.
(1) Não é possível pretender produzir resultados que não estejam contidos nos
sentidos textual e material da Constituição. No exercício da polícia, não é
possível, por exemplo, pretender exterminar raça de animais por razões de
conveniência estética (violaria materialmente o art. 225, §1º, VII, da CRFB/88).
(2) Não é possível a restrição de propriedades privadas com o propósito da
construção de espaçoportos (a facilitação do pouso de óvnis não é propósito
que consiga ser encaixado em qualquer dispositivo da Constituição).971
(3) Não é possível proibir a circulação de veículos durante três dias corridos por
semana, sob o propósito da melhoria do trânsito ou da qualidade do ar, se
dois dias específicos produzirem comprovadamente resultado semelhante.
(4) Seria inválido o exercício de polícia administrativa econômica que, sem maio-
res estudos, a pretexto de apostar no controle da inflação, resolvesse tabelar os
preços de bens e serviços, durante certo tempo, por valores aleatórios. Entre
tantas inconstitucionalidades de tal medida, uma é a de que se trata de polícia
antipragmática por raciocinar a partir da produção de consequências incertas
ou improváveis.
(5) Não é válida a ação de polícia de trânsito que, no início de janeiro, sob o pre-
texto dos futuros desfiles de blocos de Carnaval (que só ocorrerão em meados
de fevereiro), restringe a circulação em vias públicas.
(6) É antijurídica a ação de polícia que, apoiada em discutível teoria científica
vinculando a propagação da dengue à manutenção de samambaias, pretenda
ingressar nas residências e exterminá-las. O problema não é a possibilidade
de ingressar em residências para combater a dengue — exemplo clássico de

971
Embora, sob certas circunstâncias, a questão possa se reconduzir à promoção do turismo. Exemplo: na cidade
de Varginha, em Minas Gerais, seria pelo menos defensável a construção de tal instalação.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
303

polícia —, é a falta de razoável base empírica assecuratória da produção das


consequências esperadas.
(7) Interditar a realização de atividades religiosas por fundamentos materiais
como a contradição aos “bons costumes” é exercício inválido do poder de
polícia, pois se baseia numa alegação fundacional (o fato de que possa existir
um padrão de “boa sociedade” com seus costumes próprios).
(8) Bailes de Carnaval não podem ser proibidos com o propósito de evitar a
proliferação de doenças do coração, na medida em que as justificativas não
se referem às circunstâncias do exercício da polícia.
É claro que muitas incidências desses standards de nosso princípio do pragma-
tismo jurídico indicam conclusões a que se chegaria por outros argumentos. Assim, no
caso (1), a incidência da legalidade já resolveria o problema; em (3), a proporcionali-
dade-necessidade também daria conta da solução. Mas o fato é que os argumentos se
somam, não se excluem. Em rigor, muitas das conclusões atualmente indicadas pela
incidência da máxima da proporcionalidade poderiam ser obtidas por argumentos
clássicos como a “interpretação sistemática”, a “interpretação teleológica” e, no Direito
Administrativo, a teoria dos desvios de poder. A proposição de novos “princípios” e
limites ao exercício da polícia administrativa não se dá com a finalidade de substituir
ou retificar limites antigos, e sim com a de somar-se no ideal de uma atuação pública
eficiente e controlada.
Após três anos do lançamento da primeira edição desta obra, é possível constatar
que este princípio pragmático que propusemos vem sendo, de modo geral, acolhido pela
literatura administrativista, e por aqueles que se dedicaram a escrever sobre o poder
de polícia, em especial. Tanto assim que, para Gustavo Binenbojm, o “giro pragmático”
constitui um dos principais vetores responsáveis pelas intensas transformações que a
polícia administrativa vem experimentando nas últimas décadas.972
Falemos agora do limite consistente na razão pública. Como aplicar a razão pública
como limite ao exercício da polícia?
Também aqui, como no caso de nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, a
razão pública funcionará como controle aos argumentos que possam fundar o exercício
da polícia. Só poderão ser aceitas razões universalizáveis e tendencialmente neutras.
Razões que não pertençam, de modo exclusivo, a uma das doutrinas abrangentes. Se
a polícia é a atividade de impor condicionamentos a direitos individuais em prol do
interesse geral, é natural que se faça com argumentos capazes de serem aceitos por
todo o estrato social. Além disso, os requisitos de apelo a crenças gerais, formas de
argumentação aceitas e métodos científicos não controvertidos continuam válidos.
Observação interessante: a teoria francesa clássica do poder de polícia sempre
defendeu que a polícia só se ocupasse da “ordem material e exterior, considerada
como um estado de fato oposto ao da desordem, o estado de paz oposto ao estado de
confusão”. Hauriou escreveu que a polícia “não persegue a ordem moral nas ideias e
nos sentimentos”. Caso isso ocorresse, aproximar-se-ia da Inquisição e da opressão de
consciência.973 Embora a própria jurisprudência do Conselho de Estado francês haja, em
alguns casos, ultrapassado os limites defendidos pela lição — há hipóteses em que filmes
foram proibidos por considerações morais —, ao menos a principal fundamentação

972
BINENBOJM. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação, p. 52-68, p. 153-242.
973
HAURIOU. Précis de droit administratif et de droit public, p. 549.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
304 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

dos acórdãos não foi a análise de conteúdo das obras, mas o grave comprometimento
à ordem pública causado por sua exibição.974
Ora bem: o critério da razão pública é, de certo modo, complementar à lição de
Hauriou. Em princípio, a polícia administrativa não deve se ocupar de considerações subjeti-
vas, íntimas, ideológicas ou morais. Não há razão de interesse público que, num primeiro
momento, justifique uma atuação de polícia “moral”.
Contudo, podem existir manifestações que, à luz das circunstâncias concretas,
exijam algum grau de cerceamento do exercício de direitos individuais em prol de
um interesse público qualificado por considerações de conteúdo. Nesses casos, a polícia
administrativa só poderá funcionar se suas razões para a ação forem razões públicas. Na ex-
cepcionalidade de ser necessário atuar junto a um controle material, a Administração
Ordenadora só poderá se legitimar pelo apelo a argumentos neutros, universalizáveis,
capazes de serem aceitos por toda a sociedade.
Exemplo: parece-nos possível o confisco de livros e propaganda nazista ou fas-
cista, porque, para além da previsão legal, as razões do antinazismo e do antifascismo
são conforme a razão pública.975 O mesmo raciocínio serve para legitimar a repressão
administrativa a manifestações hiperchauvinistas, apologistas do totalitarismo e da
violência. Poder de polícia não é apenas licença para construção e repressão a barulho.
A atividade é mais do que isso: é ordenar a vida em sociedade, nos limites em que
isso seja possível, sem pretender direcioná-la, mas mantendo, sempre, espaço para a
afluência de comportamentos e mundivisões diversas.
Por tal motivo, a razão pública é o critério de controle que melhor sintetiza a re-
lação entre polícia e democracia. Se o Estado só atua com base em razões públicas, é um
Estado Democrático de Direito do século XXI; se o Estado, ao muito excepcionalmente
ingressar no mérito das atividades sociais, apenas restringe as que forem radicalmente
antidemocráticas, e isso com base em razões públicas e postas a público, é um Estado
Democrático de Direito do século XXI que se preocupa em continuar sendo um.

2.6 Conclusão parcial: limites dos limites


É preciso ser realista na propositura de limites à ação pública. A Administração
Pública brasileira é, em muitos grotões, amadora. Não se espere que, ao lado de cada
administrador público, esteja um Richard Posner de carimbão, apto a chancelar a inter-
venção mais pragmaticamente correta em cada caso. Entre todas as surpresas que a bio-
grafia de John Rawls possa nos revelar, certamente não estará a de que ele elaborou seu
argumento pensando em cidades como Santo Antônio dos Milagres, interior do Piauí.
Uma interpretação jurídico-pragmatista das capacidades institucionais de gran-
de parte da Administração Pública brasileira será contextualista e, em o sendo, saberá
dar o desconto à grossa incapacidade que assola muito do mato e do asfalto do nosso
Brasil profundo.
Então o capítulo é, sob muitos aspectos, inútil?

974
BRAIBANT et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 735. Por esse argumento, tais decisões
seriam pragmatistas.
975
Por outro lado, não parece ser possível restringir o lançamento de edições críticas, devidamente contextualizadas
e comentadas, destas obras, em especial quando sua venda se direcione ao público de pesquisadores.
CAPÍTULO 2
A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
305

De forma alguma. Ele é útil como todo princípio regulador, ele serve como todo
ideal: como guia (incompleto e sujeito a críticas) do caminho a seguir, como ponte entre
o que já temos e o que desejamos construir.
CAPÍTULO 3

O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL


DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO,
EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA

3.1 Introdução
Como poucas atividades incluídas na expressão intervenção976 do Estado sobre
a economia, o fomento público arrisca-se a caminhar sobre o fio de uma navalha cujos
extremos são o excesso e a falta. Ou, continuando nas expressões literárias, é atividade
que arrisca tornar-se o que já se falou da psicanálise: o mal cuja cura pretende ser.
Existem dois grandes problemas circundando o fomento público: (i) os
critérios de sua concessão e (ii) sua intensidade e duração.977 O fomento pode ser

976
Eros Roberto Grau discute, em certo ponto de A Ordem Econômica, se o designativo para referir-se às atividades
estatais de influência sobre a economia deveria ser intervenção ou atuação. De um lado, toda atuação do
Estado na economia é, de certa forma, interventiva, e, como se trata de atuação do Estado numa área que não
é sua — o mercado —, acabaria por assumir contornos propriamente interventivos. Por outro lado, no caso da
prestação ou da regulação dos serviços públicos, área em que a titularidade é sempre estatal (art. 175, CRFB), o
termo intervenção não seria justificável — melhor seria atuação. Registrada a polêmica, optamos pela utilização
intercambiável das expressões, a uma porque a distinção é de reduzido potencial explicativo, a duas, porque
o uso fungível já é comum em nossa doutrina, e, pensando em termos pragmáticos — sendo quase um campo
de prova de nossa tese —, não se deve pretender modificar usos consagrados quando os benefícios explicativos
são pequenos. Seja como for, no caso do fomento público, ter-se-ia precisamente uma intervenção, e não uma
atuação, já que o Poder Público está tentando influir, pelo convite, no mercado. Cf. GRAU. A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93 et seq. Em sentido contrário àquele que foi aqui defendido, mas por razões distintas,
v. MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 129, grifos no original: “As intervenções estatais [...] podem ser
classificadas em quatro tipos quanto a seu conteúdo: a regulatória, a concorrencial, a monopolista e a sancionatória,
não considerada como modalidade de intervenção o fomento público, que não tem natureza impositiva”.
977
Outra questão importante circunda o fomento: a (ausência de) transparência. Por seu aspecto difuso, deixaremos
de tratá-la, neste capítulo, até porque, em certos casos, a simples adoção de critério — algum critério — já
supriria o percebido déficit. Em 1989, sobre a recém-aprovada constituição, o então deputado federal José Serra
lamentou a realidade jurídico-orçamentária do período anterior e auspiciava um futuro que, traçado no Texto
Constitucional, talvez nunca tenha existido: “Paralelamente, a Constituição obriga a que o orçamento fiscal
seja acompanhado de um demonstrativo dos efeitos das isenções, anistias, subsídios e benefícios tributários e
creditícios sobre as receitas e despesas. São itens que representam ‘gastos’ cujo conhecimento, hoje, só é menos obscuro
do que a forma como são decididos. Sua reiterada explicitação representará um largo passo no sentido de uma
avaliação qualitativa e quantitativa mais adequada da alocação dos recursos públicos” (SERRA. A Constituição
e o gasto público. Planejamento e Políticas Públicas, p. 94, grifos nossos).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
308 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

inteligente instrumento de apoio ao desenvolvimento privado em direções social e


constitucionalmente desejáveis — ou pode ser a enésima ajuda do Rei a seus amigos.978
Caminha nesse último sentido, infelizmente, nosso precedente histórico. Permita-
se, para ilustrar o ponto, a transcrição de trecho de Luís Roberto Barroso:
Quem já teve oportunidade de examinar, por exemplo, como eram geridos os bancos públicos
estaduais e os critérios de financiamento adotados, bem entende o que estou falando: dinheiro
público era entregue, sem garantias e sem projetos socialmente comprometidos, aos amigos
do poder. Este tratamento da res publica como bem privado é emblematicamente traduzido
em frase atribuída a um ex-governador de um grande Estado da Federação, referindo-se com
sarcasmo à sorte da instituição financeira oficial: “Quebrei o banco estadual, mas fiz meu
sucessor”. A frase, ao que se noticia, foi desmentida. Mas o fato real estava acima da retórica.979

Os riscos associados à intensidade e à duração do fomento são de outra ordem.


São riscos de se desnaturar a essência da intervenção. Conforme veremos ao longo
do capítulo, fomento público não deve ser auxílio indefinido, paternalismo estatal980
qualificado pela “bondade” dos objetivos perseguidos. As atividades devem ser fo-
mentadas na exata medida em que precisem do aporte público, e apenas durante o
período em que o fomento seja necessário à sua viabilidade econômica. É possível que
certas atividades nunca venham a ser possíveis se não obtiverem fomento,981 982 mas
o objetivo da autossustentabilidade deve estar presente e ser, de tempos em tempos,
averiguado. Deve-se figurar o fomento, em especial o fomento financeiro, como uma
incubadora, à qual se recorre, durante certo tempo, para preservar e garantir uma vida
futura autônoma e saudável. Mas nada além.

978
“A esfera econômica é definida por um processo de produção e distribuição de riqueza e renda, a política, pela
produção e distribuição de poder. Estas duas esferas são interdependentes. Da mesma forma que, quando as
empresas exercem poder de monopólio, elas estão incluindo, no mercado, um elemento de poder, quando
o Estado assume o papel de distribuidor de renda, através das transferências que realiza, a distribuição de
renda passa a ter um caráter eminentemente político. Neste momento, a res publica entra em jogo, e evitar que
ela seja apropriada de forma privada torna-se um problema político fundamental das sociedades civilizadas”
(BRESSER-PEREIRA. Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos. Revista de Filosofia Política –
Nova Série, p. 138).
979
BARROSO. O Estado que nunca foi. In: MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 7-8.
980
Não entraremos na discussão teórica e filosófica do paternalismo. Para detalhes sobre a relação entre um
paternalismo jurídico-constitucional e os limites à ação do Estado, cf. JORGE. Paternalismo jurídico na Constituição
de 1988: a autonomia individual contra o autoritarismo estatal. Ainda, na literatura jurídica recente, TRAVASSOS,
Marcelo Zenni. A legitimação jurídico-moral da regulação estatal à luz de uma premissa liberal-republicana:
autonomia privada, igualdade e autonomia pública: estudo de caso sobre os argumentos paternalistas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2015.
981
Talvez esse seja o caso do cinema, em que apenas as indústrias norte-americana e indiana, à conta de
particularidades sociais, culturais e econômicas, sobrevivem sem fomento público (outros falam que as
indústrias da Nigéria e da Coreia do Sul também seriam autossustentáveis). Todas as outras indústrias
cinematográficas, incluindo as europeias, existem de modo indissociável de órgãos e entidades de fomento e
promoção do mercado, sendo que, em alguns casos, a própria atividade cinematográfica é considerada serviço
público em sentido estrito. Não é o caso do Direito brasileiro, em que a atividade cinematográfica é exercida em
livre iniciativa. De nossa parte, acreditamos que o cinema é atividade privada, de óbvia relevância cultural —
mas atividade privada mesmo assim. Para análise dos aspectos mercadológicos da indústria cinematográfica,
cf. MELEIRO (Org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado.
982
Por outro lado, se a atividade é ontologicamente deficitária, mas existem suficientes razões de interesse público
para que subsista, melhor seria transformá-la, desde logo, em serviço público. Assim, fazendo referência à nota
anterior, em nossa opinião, não há nada que impeça, ao menos tendo em vista a Constituição da República, que
se proceda a uma publicatio, quer dizer, a uma transformação do regime da prestação das diversas atividades
envolvidas com a cinematografia, do atual regime de livre iniciativa para o regime de serviço público, seja
prestado de modo exclusivo, seja prestado de modo não exclusivo e concorrencial. É, no entanto, uma ideia
bastante extrema.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
309

Partindo dessas ideias, faremos uma leitura da função administrativa clássica do


fomento à luz dos “princípios” do pragmatismo jurídico e da razão pública. Eles incidi-
rão à maneira de critérios de concessão das ajudas públicas. O propósito do capítulo é o
de elaborar alguns critérios constitucionalmente adequados para nortear a formulação
legislativa e a interpretação, judicial e administrativa, da atividade.
A estrutura do capítulo, semelhante aos demais desta segunda parte, repassa a
literatura doutrinária, concentra-se em pontos polêmicos e, afinal, indica uma criterio-
logia possível (certamente não a única) para formular e conceder benefícios públicos
sem vícios privados.983

3.2 O que é o fomento público: revisão da literatura


Fomentar, no dicionário, é “cercar de cuidados para criar ou fazer crescer, estimu-
lar”. É também “proporcionar os meios para o desenvolvimento de algo”.984 A origem
etimológica vem do latim fomentum, contração de fovimentum, que significa acalentar,
abrigar.985 A ideia geral do fomento — aqui trataremos apenas do fomento público,986
i.e., do fomento realizado por entidades integrantes da Administração Pública, mesmo
quando possuidoras de personalidade jurídica de direito privado, como no caso das
empresas públicas e das sociedades de economia mista, aliás as maiores fomentadoras
na Administração Federal987 — não é difícil de indicar: é o auxílio ao desenvolvimento
e ao exercício de uma atividade privada, tida como de interesse público,988 com meios
públicos.989 990

983
Para a expressão, ver GIANNETTI. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações.
984
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1367. Outros dicionários apresentam definições parecidas.
Assim, fomentar, para o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, corresponde a “excitar, desenvolver, estimular
o crescimento; incitar; favorecer” (São Paulo: Globo, p. 367).
985
Cf. dicionário online do Projeto Arquimedes, da Universidade de Harvard. Disponível em: <http://archimedes.
fas.harvard.edu/cgi-bin/dict?name=ls&lang=la&word=fomentum&filter=CUTF8>. Acesso em: 05 jan. 2008.
986
Não estamos tratando do fomento mercantil, conhecido como factoring, atividade por meio da qual uma
empresa se torna cessionária dos créditos comerciais de outra, mediante condições especiais para o pagamento
antecipado desses créditos, assumindo, a empresa cessionária, o risco pela insolvência dos clientes da cedente
(MARTINS. Contratos e obrigações comerciais, p. 123). Esta é a modalidade mais comum de fomento privado —
embora nada impeça, e seja também comum, que empresas privadas, não integrantes da Administração
Pública, despendam recursos e esforços para o desenvolvimento de atividades, exercidas por outras entidades
ou indivíduos, tidas por socialmente relevantes. Nesse caso, teríamos um fomento privado não mercantil, o
qual também não é objeto do capítulo.
987
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, a Petróleo Brasileiro S.A. e a Caixa Econômica Federal
S.A. são, em volume de recursos, as maiores entidades fomentadoras da Administração Federal e do país.
988
Ainda que não se pretenda esgotar, por impossível detalhamento, quais seriam essas atividades, não se deve
deixar passar, sem qualificações, referências a um genérico “interesse público”. E, dentro desse esforço de
concretização, vem a calhar a indicação histórica, feita por Santamaría Pastor, aos setores que, depois da primeira
terça parte do século XX, foram objeto de fomento. “De um lado, o incremento da produção industrial e agrária,
dirigidos genericamente à criação de riqueza e de emprego, para fazer frente ao trabalho de reconstrução dos
danos ocasionados pelas guerras civis e pela Segunda Guerra. De outro, a manutenção de empresas e setores
econômicos de importância estratégica ou de forte impacto social, porém situados numa fase de declive ou de
produtividade baixa ou nula. [...] Por último, o estímulo das atividades culturais e de prestação de serviços
sociais, ambas também caracterizadas por sua escassa rentabilidade empresarial”. Já a partir da segunda metade
do século XX, o autor afirma que a atividade pública de promoção acabou por estender à imensa maioria dos
setores econômicos e a boa parte dos setores da cultura e da ação social. Teria havido uma “generalização das
medidas de fomento”, já que valeria a hipótese teórica segundo a qual tudo o que não é obviamente danoso
pode ser considerado, de alguma forma, como de interesse público, sendo, portanto, passível de ser fomentado
(SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 343-344).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
310 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

989 990
O fomento público é o resultado de uma ponderação, entendida em sentido
amplo, entre os impulsos planejadores do Estado e a proteção ao espaço privado de
atuação empreendedora. O resultado é uma técnica de atuação em que o Poder Público
indica, sugere ou recomenda — oferecendo, para isso, algum tipo de estímulo palpável,
até porque estaríamos no terreno do não Direito se todo seu conteúdo se resumisse a
sugestões991 — determinada atuação ao particular, sem, contudo, torná-la obrigatória.

989
Não ignoramos a polêmica sobre a denominação fomento. Afirma-se que a palavra fomento associar-se-ia a
uma forma de atuação do Poder Público — a persuasão —, a qual não estaria presente em todas as atuações
fomentadoras. A opção pela palavra fomento indicaria escolha implícita por uma das definições para o instituto:
a que destaca a importância da persuasividade como elemento central da atuação. Alguns autores propõem,
então, “atividade administrativa dispensadora de ajudas e recompensas”, ou “ajudas públicas”. Tais autores
possuem razão em suas críticas, e, de fato, as denominações alternativas são melhores do que o tradicional
fomento. Ficaremos com fomento pela consagração do termo e facilidade na comunicação da ideia. V. MARTINEZ
LOPEZ-MUÑIZ. La actividad administrativa dispensadora de ayudas y recompensas: una alternativa
conceptual al fomento en la teoría de los modos de acción de la Administración pública. In: GÓMEZ-FERRER
MORANT (Org.). Libro homenage al profesor José Luis Villar Palasí, p. 751-768. Ainda, cf. RIVA. Ayudas públicas:
incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, 2004, p. 118-120; ORTEGA. Derecho
administrativo económico, p. 168.
990
O Direito Positivo brasileiro adotou expressamente a noção de fomento público. Basta procurar no texto da
Constituição de 1988. No art. 23, inciso VIII, afirma-se que é competência administrativa comum dos três entes
federativos — União, Estados e Municípios — fomentar a produção agropecuária. É modalidade de fomento
que se faz, em sua maior parte, por meio da concessão de linhas especiais de crédito em bancos públicos e
pela constituição de fundos estatais, raramente por subvenções diretas — mais usuais depois de intempéries
da natureza —, mas que admite meios incomuns, como o fomento psicológico. No art. 43, §2º, incisos II e III,
fala-se que a União, sob o propósito de reduzir as desigualdades regionais, instituirá juros favorecidos para o
financiamento de “atividades prioritárias” e, ainda, estabelecerá benefícios fiscais a pessoas físicas e jurídicas.
É exemplo de fomento público, por meios creditícios e fiscais, agindo pelo filtro de um critério regional (as
discriminações fiscais com propósito fomentador de regiões são permitidas pelo art. 151, I, parte final, da
Constituição). Ainda no mesmo artigo, o §3º informa que a União “incentivará a recuperação de terras áridas”
e que ajudará pequenos e médios proprietários rurais afetados pela seca a construírem fontes de água e de
pequena irrigação. Não menciona a forma, mas não é difícil concluir que os meios econômicos e creditícios
assumirão destaque. Já no capítulo das finanças públicas, nova menção: o art. 165, §2º, ao estatuir o conteúdo da
Lei de Diretrizes Orçamentárias, afirma que ela deverá conter a “política de aplicação das agências financeiras
oficiais de fomento”. Trata-se de incluir na LDO critérios gerais, diretrizes e prioridades de empréstimo e
de subvenção dos bancos públicos e das demais entidades financeiras públicas atuantes na área. Os setores
da cultura e do esporte também merecem destaque: o art. 216, §3º, da Constituição da República, impõe a
criação de incentivos para a produção e o conhecimento de bens e de valores culturais por meio de lei. É o
fundamento constitucional imediato para todas as leis — nacionais, federais, estaduais, municipais e distritais
— de proteção e incentivo à cultura. O §6º do mesmo artigo faculta aos Estados e Municípios a vinculação da
receita tributária a fundos de incentivo à cultura. O art. 217, ao falar de esporte, mostra-se explícito desde o
caput: “É dever do Estado fomentar práticas esportivas formais e não formais [...]”. Na parte dedicada à ciência
e à tecnologia, a Constituição não é menos expressa: afirma que o Estado apoiará a formação de mão de obra
nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, concedendo, aos que a elas se dedicarem, condições especiais de
trabalho (art. 218, §3º). Tal dispositivo é fundamento constitucional para o fomento científico e tecnológico
(bolsas do CNPq, por exemplo), e, também, para a constituição de centros tecnológicos, empresas de pesquisa
e universidades públicas. O art. 218, §4º, é focado, em sua primeira parte, no fomento público: diz que a lei
incentivará empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao país. O artigo ainda faculta
a Estados e Municípios a criação de fundos de apoio ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica por meio da
vinculação de seus orçamentos. Outros dispositivos constitucionais (o art. 179 da Constituição da República,
ao estabelecer tratamento privilegiado às pequenas e microempresas, é exemplo de fomento jurídico) e legais
(a definição de subvenção no art. 12, §3º, da Lei Federal nº 4.320/64; a Lei Federal nº 13.019/14, que denominou
“termo de fomento” ao instrumento jurídico por meio do qual o Poder Público transfere recursos financeiros
a entidades do terceiro setor) poderiam ser citados. Não é nossa intenção, no entanto, elaborar um catálogo
legislativo. Bastam tais referências para identificar, com segurança, a presença do instituto em nosso Direito
Positivo.
991
Afirmam Stephen Holmes e Cass Sunstein, em livro famoso — The Cost of Rights —, que direitos “possuem
dentes”, ao passo que direitos “morais” não os possuem. Holmes e Sunstein referem-se a algo que, em nossa
tradição, reconduzir-se-ia ao conceito de direito subjetivo. A ideia é simples. Como explica Flávio Galdino, “à
figura metafórica dos ‘dentes’ corresponde a possibilidade de utilização dos remédios jurídicos previstos no
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
311

O espanhol992 Luis Jordana de Pozas, autor de texto clássico, resumiu a questão:


A ação de fomento é um caminho do meio entre a inibição e o intervencionismo do Estado,
que pretende conciliar a liberdade com o bem comum mediante a influência indireta sobre
a vontade do indivíduo, para que este queira o que convém à satisfação da necessidade
pública de que se trate.993 994

Essa ponderação entre liberdade individual e planejamento estatal cuja resultante


é um Direito Premial995 que atua por um condicionamento, em geral positivo, do admi-
nistrado-aderente (às condições postas pela Administração) chama-se fomento público.
Ao contrário de muitas das funções administrativas, com destaque para a pres-
tação de serviços públicos, o fomento não é dos campeões de popularidade nas mono-
grafias.996 Com notáveis exceções, os autores costumam traçar linhas gerais acerca da

ordenamento, isto é, os meios de acionar o ente estatal para que garanta os direitos previamente reconhecidos
pelo Direito. Há, assim, uma ligação indissociável entre o direito subjetivo e o remédio jurídico previsto para
sua garantia e efetivação”. Se se entende que o Direito é mais do que um padrão geral de avaliação e crítica do
grau de racionalidade intersubjetiva, torna-se necessário que o Direito seja, também, mais que um catálogo de
intenções, ainda que nem toda a juridicidade restrinja-se a um padrão estrito de “possibilidade de vindicação
judicial” (SUNSTEIN; HOLMES. The Cost of Rights, p. 17; GALDINO. O custo dos direitos. In: TORRES (Org.).
A legitimação dos direitos humanos, p. 187. Para a discussão da possibilidade da existência dos “direitos morais”,
e em favor de tentativa de harmonização entre as diversas utilizações do termo, v. NINO. Sobre los derechos
morales. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho. Há polêmica em relação à admissão do fomento honorífico
e do fomento psicológico como modalidades de fomento público, justamente porque seu conteúdo limita-se a
sugestões de ação.
992
A bibliografia estrangeira deste capítulo é, essencialmente, espanhola, à conta de ter sido naquele país que o
conceito surgiu — Baena del Alcázar considera-o uma das “escassas originalidades” do Direito Administrativo
espanhol — e onde mais se desenvolveu. Basta dizer que, até hoje, há um Ministério do Fomento, além de, a
partir de 2003, existir uma Lei Geral de Subvenções (Lei nº 38/2003) (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto
del fomento. Revista de Administración Pública, p. 50.
993
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46. O artigo é
considerado essencial no estudo do Direito Administrativo porque foi o primeiro a propor uma tripartição
das funções administrativas em serviço público, polícia e fomento. Antes disso, só se reconhecia, na Europa
continental, uma atividade administrativa de limitação ou de ordenação, e uma atividade de prestação de
serviços de interesse público. Cf., para esse comentário, RIVA. La figura del fomento: necesidad de encarar
una revisión conceptual. In: COMADIRA. et al. Servicio público, policía y fomento: jornadas organizadas por la
Universidad Austral, p. 413. É interessante a observação de Ricardo Rivero Ortega, afirmando que, à época em
que Jordana de Pozas elaborou seu tratamento seminal do fomento, o apogeu do fomento já havia passado,
graças à ascensão da figura do serviço público (ORTEGA. Derecho administrativo económico, p. 168).
994
Em idêntico sentido, José María Gimenu Feliú: “A ideia do fomento do desenvolvimento econômico, ademais,
expressa uma posição intermediária entre uma atitude inibicionista do Estado, em que seus poderes aparecem
reduzidos ao máximo, e aquela outra em que, com maior ou menor intensidade, atua de forma direta, com
seus próprios meios” (GIMENO FELIÚ. Legalidad, transparencia, control y discrecionalidad en las medidas de
fomento del desarrollo económico (ayudas y subvenciones). Revista de Administración Pública, p. 154.
995
No Brasil, costuma-se estudar o Direito Premial como tema do Direito Penal, em especial quando se fala em
delação premiada (instrumento que, desde a primeira edição desse livro, vem sendo cada dia mais utilizado). Só
que a designação é mais ampla. Na Espanha, por exemplo, Derecho Premial é o relacionado à concessão de títulos
de nobreza. Estamos utilizando o termo aqui numa acepção lata (Direito Premial como sinônimo de Direito
que opera não por estímulos negativos, mas positivos). Cf. BENEVIDES FILHO. A sanção premial no direito.
Partindo de perspectiva ainda mais ampla — a da existência de uma função promocional para o Direito —,
cf.: BOBBIO. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito.
996
“Ao contrário, a ação administrativa de fomento costuma-se examinar de passagem, sem reparar em sua
singularidade nem se deter na caracterização e no estudo dos atos em que se concretiza” (JORDANA DE
POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA DE POZAS.
Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 42-43. Mariano Baena del
Alcázar chama-a de “desprezada matéria administrativa” (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del
fomento. Revista de Administración Pública, p. 45). Nos últimos anos, nota-se incremento nas monografias
dedicadas ao assunto, mas a afirmação continua verdadeira.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
312 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

função, diferenciá-la das outras atividades administrativas, mencionar classificações e


resumir as principais técnicas, sem, contudo, ingressar no temário de seus critérios de
formulação ou de concessão.
O problema, no entanto, é mais grave do que simples ausência de interesse dou-
trinário. Algumas características da atividade, como a voluntariedade (o particular adere
ao plano de fomento se quiser) e a discricionariedade (há grande espaço discricionário
na formulação e na concessão dos benefícios), fazem com que a plena juridificação da
atividade seja difícil.997 O Direito tradicional, acostumado a lidar com obrigações, deveres
e sanções negativas, mostra-se pouco à vontade com situações em que tais elementos
não aparecem de modo evidente. O mundo do fomento é, assim, subteorizado, e, às
vezes, empírico no pior sentido em que este termo costuma ser usado: como sinônimo
para improvisado.998
Neste item, percorreremos o caminho tradicional. Ao buscar diferenciá-lo das ou-
tras funções administrativas do Estado, muitas de suas características restarão evidentes,
bastando, então, defini-lo, identificar seus meios de atuação e dissertar acerca de alguns
de seus instrumentos mais comuns.

3.2.1 Distinção entre fomento público e demais funções


administrativas. Há fomento entre órgãos públicos? Existe um
fomento regulador?
Fomento não é polícia administrativa. Ao menos, não na concepção moderna
de poder de polícia. Como vimos, no século XVIII, toda atividade desempenhada pelo
Estado era chamada de polícia. No século seguinte, a situação inverte-se: utiliza-se a
palavra fomento, em especial na Espanha, para se referir a todas as atividades do Estado,
incluindo as que hoje entenderíamos como típicas de polícia administrativa. Duas razões
explicam a mudança. A primeira é uma rejeição ao termo polícia, já que era — e é —
palavra associada a uma ideia de restrição da liberdade individual. A segunda decorre
da proposta iluminista de desenvolver o progresso por meios indiretamente estatais e
diretamente individuais.999 Hoje, entretanto, os conceitos já estão assentados, e pouca
gente fala em polícia incluindo fomento ou vice-versa.1000

997
FERNÁNDEZ FARRERES. La actividad de fomento en el reglamento de obras, actividades y servicios de las
entidades locales de Cataluña de 13 de junio de 1995 (régimen jurídico de las subvenciones y de la acción
concertada), p. 309-326.
998
Ignácio de la Riva, ainda que destacando recentes avanços na matéria (em especial a legislação espanhola e a
regulação da União Europeia), aponta cinco grandes dificuldades para a submissão da atividade do fomento
público ao Direito. Para o autor, (i) o primeiro problema está em que a problemática jurídica do fomento escapa
ao binômio autoridade-liberdade, típico do Direito Público — é um problema de favorecimento, para cujo
tratamento as ferramentas publicísticas não foram desenhadas; (ii) no fomento, a separação entre o jurídico e
o metajurídico não é tão clara — sobressaem aspectos não jurídicos (políticos, econômicos) que nem sempre
conseguem tradução jurídica; (iii) como decorrência do item anterior, há grande espaço de discricionariedade no
exercício do fomento, e, como se sabe, a discricionariedade ficou, por muito tempo, longe de qualquer controle
jurídico; (iv) há dificuldades metodológicas: no fomento congregam-se diversos ramos do Direito (orçamentário,
constitucional, administrativo etc.); finalmente, (v) como decorrência das muitas e variadas técnicas de fomento,
há uma completa dispersão conceitual, fruto de parcial ausência de sistematização pelos Ordenamentos Jurídicos
(RIVA. La figura del fomento: necesidad de encarar una revisión conceptual. In: COMADIRA, Julio R. et al.
Servicio público, policía y fomento: jornadas organizadas por la Universidad Austral, p. 415).
999
BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del fomento. Revista de Administración Pública, p. 45.
1000
Exceção é Aurélio Guaita, defensor de que, quando a polícia cuida da moralidade, da salubridade e da segurança,
realiza, na verdade, atividade de fomento. Cf. GUAITA. La administración de fomento. Revista Trimestral Las
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
313

O fomento diferencia-se da polícia porque, enquanto esta previne e reprime, aquele


protege e promove, sem uso imediato da coerção.1001
A frase anterior seria tradução literal de Pozas, se não por um detalhe: o acrés-
cimo de imediato após a palavra uso. Como veremos, enquanto o particular não adere
ao convite formulado pelo Poder Público, inexiste relação de fomento entre ele e a
Administração. Ele se encontra a salvo de qualquer medida coativa que possa advir
de vínculo então inexistente, ainda que esteja submetido à coercitividade advinda das
normas gerais de polícia.
Depois de aceito o convite, a situação muda: a Administração pode e deve
fiscalizar o desempenho do fomentado no cumprimento das condições fixadas — e
isso nada mais é do que poder coativo, inclusive com a possibilidade de imposição de
multas, sem contar a obrigação de devolução dos valores que eventualmente lhe foram
repassados (no caso de fomento de natureza financeira que venha a malograr). Porém, o
traço distintivo, mesmo debilitado, continua útil. Poderíamos reformulá-lo da seguinte
maneira: como meio operativo, a polícia funciona por restrições e limitações a direitos;
como meio operativo, o fomento utiliza-se de convites e de sugestões premiais.
Célia Cunha Mello critica o elemento distintivo apontado por Jordana de Pozas,
tendo como argumento a evolução conceitual da polícia. Esta já não seria mais vista
como forma negativa para a restrição de direitos; haveria de se submeter aos parâmetros
da previsão legal e da busca do interesse público. Desse modo, a polícia contemporânea
não “previne e reprime” — pelo menos, não seria esse seu foco —, antes condiciona
e limita direitos, na exata medida em que isso seja demonstradamente necessário à
satisfação do interesse público:
O que os aparta então é, de um lado, a supremacia da qual a Administração Pública é
investida para adotar medidas de polícia, e, de outro, a desnecessidade de essa recor-
rer a instrumentos imperativos e cogentes, uma vez que, na atividade de fomento, a
Administração Pública apenas induz os indivíduos a adotarem determinado comporta-
mento, concedendo a eles estímulos e incentivos.
Se o Poder de Polícia caracteriza-se pela restrição coercitiva da liberdade e da propriedade
individuais, o fomento público, ao contrário, deixa os indivíduos livres para aderir ou
não aos propósitos do Estado, independentemente de qualquer ação coercitiva. Diante
disso, pode-se dizer que a Administração Pública, no exercício do Poder de Polícia, limita
o exercício de direitos individuais, em benefício do interesse público, ao passo que atua,
ao menos formalmente, sem que apareça o menor indício de supremacia estatal, quando
recorre a medidas de fomento.
O Poder de Polícia utiliza a imperatividade estatal para assegurar o exercício dos direitos
individuais, condicionando-o ao bem-estar social. O fomento público, apesar de buscar a
mesma finalidade perseguida pela atividade de polícia — satisfazer o interesse público —,
não se coloca em nível superior em relação ao particular.1002

Parece-nos que continua possível manter a forma como Jordana de Pozas diferen-
cia fomento de polícia administrativa, desde que com o acréscimo relativo aos momentos

Ciencias, p. 878. Outro autor que defende, ainda hoje, a existência de um poder de polícia da prosperidade,
incluindo, então, fomento dentro de poder de polícia, é Daniel Edgardo Maljar (Intervención del Estado en la
prestación de servicios públicos, p. 263-301).
1001
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46.
1002
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 42-43.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
314 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de sua incidência. Quanto à inexistência de uma supremacia geral da Administração


Pública no bojo da relação de fomento, é algo que depende mais das condições eco-
nômicas do fomentado do que de uma natureza essencial do fomento.1003 Pensemos
nos festivais de música independente, que costumam recorrer ao fomento direto da
Petrobras.1004 Seu custeio vem daí, embora haja alguma busca pela autossustentabilidade.
A Petrobras, nesse caso, encontra-se em posição de superioridade prática em relação aos
empreendedores artísticos, talvez não a ponto de modificar as condições do fomento
durante seu curso, mas certamente a ponto de impor sua interpretação de eventual
cláusula duvidosa do edital. O particular não terá muitas condições de sentar à mesa
para rediscutir os termos do acordo, nem de pretender que seus argumentos possuam o
mesmo peso que o de sua patrocinadora. Já a supremacia para os fins da adoção de medidas
de polícia existe, bastando o particular embolsar inutilmente o dinheiro para senti-lo.
Quanto à inexistência de cogência no fomento, repita-se: depende do momento.
O particular é livre para aceitar, mas não é livre para gastar — e o que o faz não livre
é, precisamente, a cogência da Administração Pública.
Resumindo: a principal distinção1005 entre fomento público e polícia adminis-
trativa é o fato de que a polícia administrativa, desde o primeiro momento, funciona
“condicionando e restringindo direitos” (na expressão doutrinária clássica), ao passo
que o fomento público opera com base em convites, que, uma vez aceitos, disparam
uma cogência residual.
Passemos agora à distinção entre fomento e serviço público, tema espinhoso, como
costuma acontecer com tudo que trata de serviço público. Há quem os diferencie com
base na natureza da obrigação jurídica que seu exercício faz nascer ao Estado. Do serviço
público surgiria obrigação de fazer, a ser executada pelo Poder Público ou por dele-
gatários privados. O fomento, ainda que não obrigatório — o Estado não é obrigado a
fomentar, apenas a não atuar de forma contraditória a um plano de fomento porventura
existente —, suscita uma obrigação de dar.1006
Não é o melhor critério, porque confunde o fomento, gênero de atividade admi-
nistrativa, com o subsídio, principal forma na qual se expressa,1007 mas não a única.1008

1003
O que foi percebido pela autora da obra citada, quando menciona que, “ao menos formalmente”, inexiste
supremacia. O que se argumenta, aqui, é que só interessa o que não é formal, isto é, o plano real, de modo a que
as distinções sejam pragmaticamente operativas.
1004
É, no entanto, discutível se o patrocínio empresarial, quando realizado por estatais, configura verdadeiro fomento
público, já que há inegável interesse do patrocinador na divulgação da marca.
1005
Há outras possíveis distinções, como a executoriedade (a polícia pode ser autoexecutória), ao caráter “negativo”
da polícia e “positivo” do fomento e à “unilateralidade” da polícia e à possível “bilateralidade” do fomento
(MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 42-46).
1006
É a opinião de Diez, citado por Maljar: “A diferença fundamental está em que o serviço público implica uma
prestação obrigatória a cargo do Estado, quer a realize direta ou indiretamente, constituindo, consequentemente,
uma obrigação de fazer. Ao revés, o fomento não é de caráter obrigatório para o Estado, mas a sua realização
traz sempre consigo uma obrigação de dar”. Mais à frente, o autor parece concordar com a distinção de Jordana
de Pozas (MALJAR. Intervención del Estado en la prestación de servicios públicos, p. 283). Cf., na doutrina brasileira:
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 174-176.
1007
Afirmando que o subsídio é o punctum saliens da atividade de fomento, v. BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el
concepto del fomento. Revista de Administración Pública, p. 74.
1008
Uma das principais características do fomento público, afirmada unanimemente pela doutrina, é a
heterogeneidade de meios por quais se expressa. Não consideramos essa uma característica essencial do
fomento pela boa razão de que, no Direito Constitucional, praticamente qualquer instituto pode vir a contar
com a característica de uma expressão por uma “pluralidade de meios”, reflexo da sociedade multifária e
pluralista desses tempos pós-modernos.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
315

Figure-se exemplo de propaganda pública em prol do consumo de leite. Há doutrina


que a classifica como fomento,1009 mas não estamos diante de obrigação de dar.
O fato é que distinção de Jordana de Pozas resiste ao tempo. O espanhol afirma
que, no serviço público, a Administração realiza diretamente e com seus próprios meios
o fim (de interesse público) perseguido, ao passo que, no fomento, a Administração
limita-se a estimular o particular para que ele, por sua vontade, cumpra, de modo
indireto — a partir da perspectiva do Poder Público —, a finalidade perseguida pela
Administração.1010 No caso de o fomento público ser tão intenso que, na prática, o par-
ticular acabe não possuindo qualquer condução da atividade, não estaremos diante de
fomento, e, sim, de terceirização ou de alguma delegação pública atípica.1011
Há uma infinidade de dúvidas que poderiam ser levantadas pelas expressões
direta e indiretamente, inclusive à luz da tradição do Direito Administrativo brasileiro,
mas o ponto está na titularidade da atividade de interesse público. O indiretamente não está
se referindo à Administração Pública indireta, muito menos ao caso da concessão de
serviço público, em que, à luz do art. 175 da CRFB/88, a Administração, ao conceder a
prestação do serviço a particular concessionário, estará prestando o serviço de modo
indireto. Se a atividade fomentada é titularizada, por direito próprio, pelo particular,
estamos diante do fomento. Em caso negativo, pelo menos fomento não será.
Neste ponto, mostra-se interessante ingressar na discussão acerca da possibili-
dade de fomento a entidades públicas. O problema coloca-se diante do seguinte: se o
fomento é auxílio público a entidades privadas no exercício de atividade privada de
interesse público, talvez não seja fomento o caso em que entidade pública repassa re-
cursos ou facilita a atividade de outro órgão ou entidade pública, porque a atividade
fomentada seria pública.
Os autores se dividem. A favor da possibilidade do enquadramento do auxílio
interpúblico no fomento, na doutrina estrangeira, Fernando Garrido Falla,1012 e, na
nacional, Célia Cunha Mello:
De fato, não identificamos nenhuma razão que justifique a impossibilidade de que outros
entes públicos sejam agentes fomentados. É perfeitamente possível que o ente público
competente para fomentar determinada atividade conceda vantagens e incentivos capazes
de convencer outro ente público a proteger ou promover o objeto fomentado, presentes,
nesse caso, todos os requisitos da atividade de fomento, inclusive a satisfação indireta das
necessidades públicas.1013

1009
Com exemplo próximo, cf. MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 91.
1010
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 46.
1011
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p.176.
1012
GARRIDO FALLA. Tratado de derecho administrativo. 10. ed., v. 2, p. 301, grifos nossos: “O fomento é a atividade
administrativa que se propõe a satisfazer indiretamente certas necessidades consideradas de caráter público,
protegendo ou promovendo, sem empregar a coação, as atividades dos particulares ou de outros entes públicos
que diretamente as satisfaçam”. A Lei Geral de Subvenções da Espanha (Lei nº 38/2003) adotou a tese, conforme
se vê na transcrição parcial de seu artigo primeiro: “Entende-se por subvenção, para os efeitos desta lei, toda
disposição, em dinheiro, realizada por quaisquer dos sujeitos contemplados no art. 3º desta lei, em favor de
pessoas públicas ou privadas, e que cumpra os seguintes requisitos: [...]” (grifos nossos). Confrontar, no entanto,
com o art. 2.2 da mesma lei.
1013
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 32.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
316 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Jordana de Pozas, a partir de sua definição de fomento público,1014 e Augusto de


Ataíde apresentam opinião oposta:
Em nosso entender, tem razão Jordana de Pozas: a actividade administrativa de fomento
situa-se no campo das relações entre Administração e administrados e não no das relações
entre vários sujeitos de Direito Público. Os auxílios prestados por um sujeito administrativo
a outro (por exemplo, pelo Estado a uma autarquia local) não se podem, portanto, qualificar
como medidas de fomento, como pretende Garrido Falla. A necessidade que um sujeito pú-
blico satisfaz — mesmo quando auxiliado por outro — é sempre uma necessidade pública
directamente satisfeita pela Administração.1015 1016

Analisemos o assunto partindo da realidade, sem fetichismos conceituais.


Primeiro ponto: esses auxílios interadministrativos são frequentes no dia a dia
da Administração, operados por meio de repasses financeiros. Chamá-los de fomento
ou de outra coisa qualquer não mudará sua recorrência ou a forma como são disciplina-
dos. A verdade é que neles existem traços do regime jurídico do fomento, em especial
a união de esforços e a cooperação em prol de objetivo comum. Na maioria dos casos,
há fiscalização do uso dos recursos — como no fomento — e eventual devolução de
recursos sobrantes, também como é prática no caso do nosso paradigma de comparação.
Por outro lado, não parece muito acertado nomeá-los como fomento, para isso
tendo que alargar a definição do conceito. É importante que não alarguemos os conceitos
até que seu potencial explicativo se perca dentro da abrangência. Conceitos e classifi-
cações existem para que não se precise explicar, a cada vez, todas as características das
coisas. Mercê de tudo incluir, um tal fomento talvez esclarecesse pouco.
Ao ponto: nesse caso, não há acordo entre uma vontade pública e uma vontade
privada para a execução de atividade privada. Pensando, inclusive, em termos sistemá-
ticos, o critério da titularidade da atividade, que nos serviu para diferenciar fomento
de serviço público, restaria prejudicado. Há mero repasse de recursos entre órgãos ou
entidades.
Ignacio de la Riva defende que, num primeiro momento, poder-se-iam chamar,
simplesmente, transferências patrimoniais entre entes públicos.1017 Apesar disso, ao

1014
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 49, grifos nossos:
“A ação consistente em proteger, estimular, auxiliar ou fomentar as atividades particulares mediante as quais
se satisfazem necessidades ou conveniências de caráter geral possui, em nosso idioma, segundo tradição
administrativa de mais de um século, o nome de Fomento”.
1015
ATAÍDE. Elementos para um curso de direito administrativo da economia, p. 110-111. No mesmo sentido, a partir
do Direito Alemão: “Não são subvenções as destinações financeiras dentro do âmbito estatal, por exemplo, dos
Estados aos Municípios [...]” (MAURER. Direito administrativo geral, grifos nossos).
1016
Terceira posição, menos comum, afirma que o fomento seria possível desde que se resguardasse, para o ente
fomentado, o caráter de terceiro. Assim, não seria possível um fomento público no qual, entre fomentador e
fomentado, ambos integrantes da Administração Pública, existissem vínculos hierárquicos ou relações de
dependência. Contudo, se o fomentado, integrante da Administração Pública, pudesse ser legitimamente tido
como terceiro em relação ao sujeito ativo da relação — por exemplo, uma entidade pública de outro nível
federativo, ou, se no mesmo nível, bastante distanciada da entidade fomentadora —, aí estaríamos diante
de possível fomento público em sentido próprio, e não de simples transferência orçamentária (CORTÉS.
Aproximación al concepto de subvención y su adecuación en la Ley 3/1987, de 2 de Julio, de financiación de
partidos políticos. Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Furió Ceriol, p. 223-224.
1017
“Apesar do exposto, devo confessar que a ideia de que a própria Administração Pública, em qualquer de suas
formas, possa ser sujeito passivo de uma relação subvencional parece-me, à primeira vista, um contrassenso.
Todo ente público tende naturalmente à consecução do interesse público, razão pela qual não parece necessário
o emprego de atividade administrativa alguma por parte de outra pessoa pública para estimulá-lo nessa direção.
[...] É verdade que em determinadas ocasiões a entidade atuante necessita do suporte econômico de outra esfera
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
317

reconhecer proximidades dessa figura com a do fomento, propõe uma espécie de


meio-termo: dentro da categoria “Ajudas Públicas” — sua sugestão substitutiva para a
denominação fomento —, estas seriam Ajudas Públicas Interadministrativas.1018 Ou seja:
não estaríamos diante de um fomento puro e simples, mas de uma de suas espécies.
A proposta é boa, mas não deixa de reconhecer que as tais Ajudas Inter­
administrativas são, no final das contas, fomento público. Nada impede, no entanto,
que sejam chamadas de Ajudas Públicas Interadministrativas, sem que se incluam dentro
da categoria taxonômica do fomento, e que se afirme que, entre as características de sua
regulação jurídica, há inspiração direta e aplicação subsidiária dos princípios e regras
aplicáveis ao fomento.
É a nossa posição.1019 1020
Fomento também não se confunde com intervenção direta do Estado na economia,
seja monopolística ou concorrencial. No fomento, a Administração Pública atua de modo
indireto, pelas mãos do particular. Na intervenção econômica direta, a Administração,
com ou sem competição, desempenha, em nome próprio, atividade econômica.
Distinção interessante é a que coloca, de um lado, fomento público, e, de outro,
regulação econômica e social, nem tanto pelo que propõe, mas pelo que evita. Explica-se.
De uns tempos para cá, como epifenômeno da agencificação1021 e do destaque
que a função regulatória assumiu, buscou-se construir o conceito de fomento regulador.
A Ancine (Agência Nacional do Cinema) divulgou a ideia.1022 Em texto de seu então
Diretor-Presidente (2001-2006), Gustavo Dahl, a noção é referida da seguinte forma:

pública para poder levar a cabo satisfatoriamente suas funções específicas, ou se dê também o caso de que entes
mais hierarquizados deleguem algumas das tarefas de sua competência para outros inferiores, dotando-os dos
recursos necessários para que possam desempenhá-las. Porém, nenhuma dessas situações necessita da técnica
das ajudas públicas para ser explicada adequadamente, senão que bastaria falar, em tais casos, de transferências
patrimoniais entre entes públicos, sem mais” (RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el
funcionamiento del mercado, p. 150-151).
1018
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 153.
1019
Questão diferente é a da participação de pessoas jurídicas de direito privado, não integrantes da Administração
Pública, na gestão do fomento público. Nada impede que entidade privada exerça alguma atividade material de
dispensamento de ajudas públicas. Como afirma Sesma Sanchez, o particular será mero gestor dos fundos, ao
passo que o outorgante continuará sendo o Poder Público. Alguma dúvida persiste em relação à extensão possível
da atividade do agente privado nessa gestão do fomento. Nesse caso, costuma-se resolver o ponto apelando,
como acabamos de fazer, à fórmula-tipo das “atividades materiais”. O problema está no detalhamento dessas
atividades: o que é atividade material? Em princípio, nossa posição é a de que os critérios concessivos de tal
fomento público gerido por entidades privadas devem utilizar dados rigorosamente vinculados; deve-se tratar
de fomento acessível a todos os interessados que preencham alguns pré-requisitos de simples conferência. Seria
inconstitucional, por antirrepublicano, que entidade privada possuísse poderes discricionários propriamente
concessivos de dinheiro público (SESMA SANCHEZ. Las subvenciones públicas, p. 316).
1020
E nos casos em que o Poder Público aporta capital em favor de concessionária de serviço público? Estaríamos
diante de fomento público? Não temos posição fechada a respeito do caso. Há duas formas de encarar
o problema. Ou se entende que a atividade fomentada é, em última análise, pública, e apenas o exercício é
privado, e, portanto, não seria fomento público (a não ser que se admita que o fomento público possa ser
dado a entidades públicas, a qual não é nossa posição); ou se entende que o importante é que o fomento seja
para o exercício, afinal privado, da atividade, sendo desinfluente sua titularidade — e aí estaríamos diante de
fomento. Em qualquer hipótese, é possível a defesa da aplicação, por analogia, das normas do fomento público
a esse auxílio do Estado ao concessionário (RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el
funcionamiento del mercado, p. 127-128).
1021
DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria
público-privada e outras formas, p. 180.
1022
Na primeira versão deste texto — a que correspondia ao texto da tese de doutorado — escrevemos o seguinte:
Analisadas as atribuições da Ancine, não se consegue encaixá-las dentro de um padrão de exercício de atos
de regulação, ao menos na acepção tradicional do termo (poderes quase legislativos, quase jurisdicionais e
executivos). Vejamos a lista de poderes típicos de uma agência reguladora, tal como apresentada por Floriano
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
318 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

É sabido que a indústria cinematográfica transnacional opera em escala econômica mundial, à


qual não têm acesso as cinematografias nacionais. Esta é a noção básica que justifica a intervenção
estatal através do fomento à produção, efeito regulador desta assimetria. O subsídio da produção
é o preço pago pelos estados nacionais para não serem marginalizados da possibilidade de
ter um cinema seu. Dispensável enfatizar a importância estratégica, psicossocial e econômica deste
fomento regulador. Ele se dá forçosamente num plano interno, já que um reordenamento do
mercado mundial, que permita aos cinemas nacionais serem economicamente viáveis, levará
algum tempo.1023 (grifos nossos)

Outro ex-presidente da autarquia, Manoel Rangel, também compartilha do con-


ceito, ao menos pelo uso que faz nessa resposta a revista online de cinema:
Nosso objetivo é instituir um fomento regulador de mercado. O Prêmio nasceu com a missão de
atender os princípios de desenvolvimento de cada um dos setores da indústria, a produção, a
distribuição e a exibição. Nós identificamos uma série de gargalos que prejudicam o desenvolvimento
destes setores e resolvemos criar um mecanismo que atacasse estes problemas. O prêmio beneficia as
empresas distribuidoras de independentes, as exibidoras de pequeno e médio porte, e o produtor indepen-
dente. A ideia é valorizar, sobretudo, o trabalho destas empresas brasileiras, o compromisso
delas com o fortalecimento do cinema nacional. E com isso, estamos apoiando este tipo de
comportamento.1024 (grifos nossos)

Não é apenas a Ancine quem defende a existência de um fomento regulador. Parte


da doutrina brasileira concorda com a tese. Exemplo é a de Marcos Juruena Villela Souto.

de Azevedo Marques Neto: (i) poder normativo, (ii) poder de outorga, (iii) poder de fiscalização, (iv) poder
sancionatório, (v) poder de conciliação, (vi) poder de recomendação. A Ancine não possui poder de outorga
porque o mercado audiovisual não é serviço público, é atividade privada. Avancemos. Seus poderes de
fiscalização e de sanção existem, todavia, apreciados de forma isolada, não são capazes de distingui-la do sem-
número de autarquias “não agencificadas” que também os possuem. Não parece que exista poder de conciliação
a ser exercitado pela Ancine dentro de seu mercado. O poder de recomendação existe: é a autarquia quem coleta
dados do mercado e municia o Ministério da Cultura, que, com base neles, formula políticas setoriais e compõe
o percentual de filmes brasileiros que terão de ser exibidos a cada ano (a chamada “cota de tela”). Resta-nos
o mais polêmico de todos os poderes das agências: o poder normativo. A Ancine não o exerce. É claro que
sempre restará espaço para um ou outro exercício residual de regulamentação de caráter mais “autônomo”,
mas o legítimo poder normativo escapa ao cotidiano da autarquia. Conclusão: a Agência Nacional do Cinema é
agência de fomento. Importante lembrar que não há mal nisso. Nesse sentido, Regina Silvia Pacheco: “Entre as
agências criadas, o caso da Ancine é bastante peculiar. Definida como ‘órgão de fomento, regulação e fiscalização
da indústria cinematográfica e videofonográfica’, suas atribuições parecem caracterizar atividade de fomento mais do
que regulação. Não se justifica, portanto, o formato de agência reguladora” (PACHECO. Regulação no Brasil:
desenho das agências e formas de controle. Revista de Administração Pública, p. 529-530, grifos nossos). Ainda,
Paulo Modesto: “Esses dados de diferenciação estão aos poucos perdendo significação, pois é visível hoje a
perda de referenciais mínimos na criação de agências reguladoras. Estão sendo criadas, com a denominação de
agências reguladoras, autarquias que não regulam atividades econômicas nem agentes delegados do Estado, mas que são
ocupadas com o fomento de setores culturais ou atividades livres à iniciativa privada e, quando muito, são titulares de
restritos poderes de ‘polícia administrativa’, com evidente prejuízo para a clareza dogmática do instituto. Exemplos
dessa ‘perversão’ do conceito de ‘agência reguladora’: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, criada pela
Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, e a Agência Nacional do Cinema – Ancine, criada pela recentíssima Medida
Provisória nº 2.219, de 04 de setembro de 2001” (MODESTO. Agências executivas: a organização administrativa
entre o casuísmo e a padronização. Revista Diálogo Jurídico, p. 8. Disponível em: <http://www.direitopublico.
com.br>. Acesso em: 10 jan. 2008. Para a lista dos poderes das agências reguladoras, v. MARQUES NETO.
Agências reguladoras: instrumentos de fortalecimento do Estado, p. 26.

Pois bem: após a leitura da obra de Vinícius Portela Martins — a qual tivemos o prazer de prefaciar — e de
reflexão a respeito da Lei nº 12.485/2011, vê-se que há competências normativas distribuídas à Ancine. Mudamos
de ideia a respeito do item (i) na enumeração acima. Provavelmente, a Ancine já se tornou agência reguladora
(MARTINS. Coleção de direito administrativo positivo: leis especiais comentadas: volume 25, MP 2.28-1/2001 e Lei
12.485/2011.
1023
DAHL. Por uma política de informações. Portal ANCINE.
1024
BEZERRA. Adicional de renda estimula produção independente. Revista de Cinema On-Line.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
319

No livro Direito administrativo regulatório, item 4.2, cujo título é eloquente — “Fomento
como instrumento de regulação” —, depois de mencionar que, em função da livre
iniciativa, o setor econômico previsto no planejamento econômico do Estado deve ser
fomentado pelo Poder Público, anota que essa atividade de fomento não poderia criar
preferências fora do contexto do planejamento. O essencial, contudo, vem a seguir:
O fomento representa uma das principais técnicas de intervenção regulatória, pois influi no
mercado com vistas à opção pelo empresário no sentido dos setores incentivados; há, pois,
uma tendência a incentivar investimentos privados em determinados setores contemplados
pelas políticas públicas, sendo essa atribuição de benefícios uma regulação executiva, normal-
mente implementada pelas agências oficiais de fomento, influenciando, assim, a eficiência
na alocação de recursos.1025

Mais à frente, o autor afirma que a definição de critérios para o fomento com
vistas ao desenvolvimento regional ou setorial é feita por “agências reguladoras” como
a ADA e a Adene, no primeiro caso, e pela Ancine, no segundo.
Não concordamos com a existência do fomento regulador. Fomento regulador
nada mais é do que fomento tout court. Os objetivos de “desobstruir gargalos econômi-
cos” e de “opção do empresário pelos setores incentivados” já estão presentes na ideia
de fomento. O fomento atua de modo a sugerir que o mercado ande nesse e naquele
caminho e desenvolva essa e aquela atividade, e isso pode significar tanto auxiliar uma
ação privada socialmente relevante — alguns falam em fomento social1026 — quanto
apoiar agente econômico para que atue, de modo fortalecido, em direção a uma con-
corrência menos imperfeita.
Se não fosse esse motivo, por assim dizer ontológico-estrutural (relaciona-se com
a natureza da função de fomento), haveria, novamente, a questão de introduzir nova
qualificação, junto a conceito tradicional, sem ganhos práticos. Eis um segredo de poli-
chinelo: a doutrina e a prática administrativa brasileiras, por vezes, reciclam conceitos
e apresentam novidades datadas de décadas. Por fim, não cremos que as agências de
fomento regional que foram criadas, ADA e ADENE, em substituição à SUDAM e à
SUDENE, e que até já foram extintas, retornando-se ao modelo de Superintendências,
possam, algum dia, ter sido agências reguladoras.1027
A distinção entre fomento e regulação econômica e social — pressupondo, como
faz a doutrina majoritária, que polícia e regulação sejam coisas distintas (v. capítulo 2
da segunda parte, supra) — é simples. É claro que se pode afirmar que a intervenção

1025
SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 99.
1026
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 532 et seq.
1027
No mesmo sentido, Alexandre Santos de Aragão: “Mesmo o Legislador já utilizou a nomenclatura ‘agência’
para órgãos ou entidades díspares, a exemplo da Agência Espacial Brasileira (Lei nº 8.854/97), da Agência
de Desenvolvimento da Amazônia – ADA (arts. 11 a 20, MP nº 2.145/01) e da Agência de Desenvolvimento
do Nordeste – ADENE (arts. 31 a 40, MP nº 2.145/01”. Na mesma página, em nota de rodapé, com destaque
nosso: “Note-se que estas agências não possuem competências regulatórias e, malgrado a nomeação dos
seus dirigentes estar submetida à autorização do Senado da República, eles não possuem garantias contra
a exoneração ad nutum. Ou seja, são ‘agências’ que não são reguladoras nem independentes” (ARAGÃO. Agências
reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico, p. 297). Alexandre Mazza acredita na existência de
três espécies para o gênero “agência” no Brasil: agências de polícia, de serviço e de fomento. A ADA e a Adene,
quando existiam, e a Ancine, hoje, seriam exemplos da última espécie. A taxonomia é parcialmente adequada:
ADA, Adene e Ancine foram ou são “agências” (os diplomas normativos assim as chamam, e contra isso não
há argumentos doutrinários) e exercem ou exerceram a atividade de fomento. Só que nunca foram reguladoras
(MAZZA. O poder normativo das agências reguladoras. Revista IOB).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
320 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

regulatória pode-se dar por meio do fomento,1028 até porque o conceito de regulação
é amplo. Mas temos, na regulação, um caso em que o todo é maior do que a soma de
suas partes.
Regulação é criar a norma, fiscalizá-la, aplicá-la, compor controvérsias, induzir
comportamentos. Nem por isso ela seria mistura simples de polícia, fomento, poder
normativo, funções executivas. Ela é tudo isso, em alguns casos partindo de visões dife-
renciadas das noções clássicas (como no caso da polícia, em que não se estaria tratando
da noção oitocentista), dentro de um todo coordenado, gerando novas perspectivas e
possibilidades práticas de atuação. O fomento existe na condição de técnica da regula-
ção1029 (ainda que não deixe, por isso, de ser fomento), mas ele e a regulação são coisas
diferentes. Todo fomento é regulador, mas nem toda regulação se faz por intermédio do fomento.
Há íntima relação entre planejamento e fomento.1030 Dir-se-ia que o planejamento
estatal é o antecedente do fomento. Só se vai fomentar atividade ou setor se isso fizer
sentido dentro de programação prévia — e essa programação é o planejamento.
A proximidade é tanta que, por vezes, planos de desenvolvimento econômico e
social são chamados de planos de fomento. É claro que a execução do plano de desen-
volvimento, elaborado pelo Poder Público com, espera-se, participação da sociedade,
inclui atividades públicas e privadas. A relação planejamento-fomento só faz sentido
quando não se tratar de atividade pública ou de atividade privada desenvolvida pelo
Estado, porque, nesses dois casos, o fomento, como vimos, é inaplicável: fomento público
é conceito que se restringe à atividade econômica, em sentido estrito, desenvolvida por
entes particulares sem vínculos com a Administração Pública.
Desnecessário dizer, mas o planejamento, para o setor público, é determinante, e,
para o setor privado, é, apenas, indicativo (art. 174, caput, CRFB/88). A doutrina elaborou
tripartição entre os planos de desenvolvimento econômico e social: existiriam planos
(i) indicativos, (ii) incitativos, e (iii) imperativos.1031 A primeira espécie seriam aqueles
em que o Poder Público tão somente sinaliza em determinada direção, sem impor
compromisso ao mercado. Os planos imperativos, sem lugar no setor privado, seriam
norma jurídica em sentido forte, vinculando a atuação dos destinatários. Já os incitativos
ficariam num meio-termo: seriam aqueles em que a Administração não apenas sugeri-
ria rumo ou finalidade, mas buscaria ativamente o engajamento da iniciativa privada.
“Nestes planos há não apenas indicação, como também, e, muitas vezes, promessas
com várias medidas, quer por meio de incentivos, ou por qualquer outra forma para

1028
E nem por isso ele vira fomento regulador: continua tão fomento quanto antes. Na verdade, a grande questão
quanto ao fomento regulador é de autonomia conceitual. Aguardamos exemplo de fomento que não signifique
regulação, seja do mercado ou da vida social. Dizendo de outra forma, todo fomento é regulador — excelente
motivo para que optemos pela denominação tradicional, mais simples e consagrada.
1029
Sob essa perspectiva, concordamos com o título do capítulo de Marcos Juruena.
1030
Em referência ao caso espanhol, mas em lição aplicável ao Brasil: “Convém colocar toda ênfase possível afirmando
como, em algumas matérias concretas, a técnica da planificação se assume como técnica central e determinante da ação
ulterior das distintas Administrações Públicas; inclusive com os subsequentes efeitos jurídicos para os administrados,
fenômeno que, em alguns campos concretos, apresenta-se como um significado indubitável do que importa destacar:
assim ocorre, por exemplo, no que se refere à ação do Ministério do Fomento, em relação ao qual são constantes,
em nosso Direito Positivo, as alusões aos planos de obras, planos florestais, planos hidrográficos, planos de
ensino etc” (MARTÍN-RETORTILLO. Antecedentes del concepto de plan y referencia a la legislación del
fomento del siglo XIX. Revista de Administración Pública, p. 42-43, grifos nossos. Ainda: MARTÍN-RETORTILLO
BAQUER. Presupuestos politicos y fundamentación constitucional de la planificación administrativa. Revista de
Administración Pública.
1031
DEVOLVÉ; LAUBADÈRE. Droit public économique, p. 429-440.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
321

que a iniciativa colabore”.1032 Ora, os planos incitativos são, portanto, o próprio desenho
das ações administrativas de fomento público. Assim, a relação entre planejamento e
fomento é análoga à que pode existir entre a programação de uma atividade global e
(parte) de sua execução.

3.2.2 Definição de fomento público. O problema da intercambialidade


das técnicas
Percorremos até aqui, função por função, as proximidades e distanciamentos entre
o fomento e as demais atividades administrativas. Em essência, adotamos as lições de
Jordana de Pozas. Só que o terreno não é assim tão retilíneo. Um novo elemento teórico —
a chamada intercambialidade das técnicas de atuação administrativa — pode comprometer
a consistência das distinções apresentadas e, no limite, a própria definição do instituto.
Assentaremos o conhecimento até aqui construído sob a forma de definição:
partindo do que vimos, podemos definir fomento público, na linha de Pozas, como a
ação consistente em estimular, proteger ou auxiliar atividades particulares mediante as quais
se satisfazem necessidades ou conveniências de caráter geral, de modo diretamente não coativo,
mas persuasivo, sem implicar a criação de serviço público ou a assunção da atividade econômica
pelo Estado.
Sem contar os elementos negativos da definição (não é atividade econômica
nem serviço público), há nela um dado teleológico (a finalidade de auxiliar atividade
econômica de interesse público) e a indicação de uma técnica de atuação (a persuasão,
a ausência de meios coativos). No entanto, é possível encontrar exemplos do uso de
meios coativos — característicos da polícia — com a finalidade de auxiliar atividade
privada cujo desenvolvimento é tido de interesse público, ideia central do fomento.
Não é necessário procurar hipóteses exóticas. A chamada “cota de tela”, imposição
legal da exibição, nas salas de cinema, por número mínimo de dias ao ano, de filmes
nacionais, possui a óbvia finalidade de difundir a produção audiovisual brasileira. E o
cumprimento dessa cota é objeto de fiscalização por parte da Ancine, com a previsão
da aplicação de multas e outras penalidades em caso de descumprimento.1033 Temos
aqui exercício típico de polícia, mas com finalidade protecionista. Estamos diante de
fomento ou de polícia? Em outras palavras: é mais importante o meio — coercitivo —
ou o fim — protecionista, “fomentador” do cinema brasileiro — da atuação?
Outro exemplo: pode-se garantir a ordem pública, finalidade clássica da
polícia administrativa, por meio de técnicas persuasivas, como no caso em que se
incentiva a conservação de praças públicas em projetos da linha “adote uma praça”,
a maioria dos quais sequer prevê compensação ao adotante — são apenas estímulos

1032
FIGUEIREDO. O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento.
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 191.
1033
A base legal para a “cota de tela” é o art. 55 da Medida Provisória nº 2.228-1, de 06 de setembro de 2001,
regulamentada anualmente por decreto do Presidente da República, que estabelece o número de dias de
exibição de filmes brasileiros a partir de dados do mercado coletados pela Ancine (para o ano de 2008, Decreto
nº 6.325/2008). Esse seria um dos indícios do caráter “regulador” da Ancine. Cf. o caput do artigo: “Art. 55. Por
um prazo de vinte anos, contados a partir de 05 de setembro de 2001, as empresas proprietárias, locatárias
ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial exibirão obras cinematográficas
brasileiras de longa metragem, por um número de dias fixado, anualmente, por decreto, ouvidas as entidades
representativas dos produtores, distribuidores e exibidores. §1º A exibição de obras cinematográficas brasileiras
far-se-á proporcionalmente, no semestre, podendo o exibidor antecipar a programação do semestre seguinte”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
322 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

simples, propagandísticos, que apelam ao espírito cívico de empresas e associações de


moradores.1034
A partir dessas constatações, a doutrina passou a criticar a definição de Jordana
de Pozas.1035 Dentre várias opções, sobressai a de Ignacio de la Riva, baseada, por sua
vez, em Martinez Lopez-Muñiz, na qual se busca não o elemento teleológico da atuação
do fomento — porque o Poder Público pode auxiliar a atuação privada na direção de
sentidos socialmente úteis sem utilizar o fomento —, muito menos o elemento instru-
mental (porque a persuasão pode servir de método para outras funções administrativas).
A ênfase estaria no elemento estrutural:
Ajudas Públicas [significam] a atividade administrativa consistente na dispensação, mediata
ou imediata, de bens a determinados administrados, de forma direta ou indireta, com caráter
não devolutivo e em razão de certas atividades que lhes são próprias, a cuja realização tais
bens restam afetados.1036

É definição adequada. Sobrevive à crítica trazida pela intercambialidade das


técnicas, na medida em que ainda permite a distinção entre o fomento e demais funções
administrativas. Basta conferir: nenhuma das atividades acima confrontadas poderia
ser descrita em termos aproximados.
De toda sorte, não pretendemos abandonar o esforço que conduziu Jordana de
Pozas e sucessores até a sedimentação de uma espécie de Teoria Geral do Fomento.
Fato é que, para nossos fins, o conceito de fomento não precisaria ser burilado até a
máxima precisão.
Fomento é a atividade pública de apoio à iniciativa privada, por meios persuasi-
vos, quando esta desenvolve atividades de interesse social; ou é a atividade de dispen-
sação não devolutiva de bens e direitos a administrados, em razão de suas atividades,
para que estes a realizem de modo facilitado.1037 Tanto faz: a noção já se vai tornando

1034
Outro exemplo, qualificado tanto por ser citado por Garrido Falla quanto por nossa experiência: há casos
em que a administração de trânsito confere congratulações a motoristas, como forma de estímulo ao bom
comportamento ao volante. É exemplo da adoção de técnica persuasiva para a obtenção de finalidades que, de
outra sorte, seriam obtidas com o uso de técnicas coercitivas (fiscalização, cassação de carteiras de habilitação
etc.). O Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro, a partir de 2007, passou a enviar certificados
para condutores com mais de sessenta anos cujo prontuário não registrasse multa de trânsito. Os resultados
teriam sido positivos (GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho
administrativo. 12. ed., p. 378.
1035
Essa é uma das críticas de Baena de Alcázar ao texto de Jordana de Pozas, creditando a autoria da ideia a Ernesta
Cuenta (BAENA DEL ALCÁZAR. Sobre el concepto del fomento. Revista de Administración Pública; cf., ainda,
Lorenzo Martín-Retortillo Baquer [para quem a ideia surge com Villar Palasí em “Las técnicas administrativas
de fomento y de apoio al precio político” (Revista de Administración Pública, p. 11-121)]: “Para estimular a atuação
dos particulares em setores que apresentam importância para o interesse público, a Administração pode lançar
mão de procedimentos diversos que podem ser substituídos entre si, já que qualquer um deles pode conseguir,
com maior ou menor ajuste, o efeito pretendido pela Administração” (MARTÍN-RETORTILLO BAQUER. De la
“gestión interesada” a las “cláusulas de interesamiento”. Revista de Administración Pública, p. 70).
1036
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 122-123.
A definição de Martinez Lopez-Muñiz é a seguinte: “[É] a outorga direta ou indireta de bens ou direitos a
determinados administrados — privados ou públicos —, com caráter não devolutivo e por motivo de certas
atividades que lhes são próprias, já realizadas ou ainda por realizar, ficando, neste último caso, afetados à sua
realização” (La actividad administrativa dispensadora de ayudas y recompensas: una alternativa conceptual
al fomento en la teoría de los modos de acción de la Administración pública. In: GÓMEZ-FERRER MORANT
(Org.). Libro homenage al profesor José Luis Villar Palasí). Não concordamos com a definição de Martinez Lopez-
Muñiz apenas na parte que inclui o fomento intrapúblico.
1037
Fomento público não se confunde com atividade assistencial pública. Embora esta também signifique
dispensamento público de verbas, e, nos casos mais recentes, inclua a exigência da comprovação do
preenchimento de requisitos por parte do beneficiário — os chamados condicionantes sociais: manter os filhos
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
323

clara. Da mesma forma, seja por um ou outro conceito, já sabemos que fomento não se
confunde com nenhuma das demais atividades administrativas do Estado.
Depois de diferenciá-lo e conceituá-lo, destaquemos suas características.

3.2.3 Características do fomento público. O fomento é unilateral e


possui pretensão de temporariedade
O fomento público possui seis características principais. São elas: (i) seu exercício
se dá, num primeiro momento, sem coerção; (ii) não há qualquer obrigação de o particular
aderir a ele; (iii) não se trata de liberalidade pública; (iv) é seletivo, porém não anti-isonômico;
(v) é unilateral, isto é, não há qualquer sujeito ativo para reclamar a execução da atividade
fomentada, mas, apenas, para controlar o uso da verba pública; (vi) é, em princípio,
transitório.1038
De fato, embora o poder de polícia possa ser utilizado num segundo momento
(o da fiscalização quanto ao uso do dinheiro público), o fomento público é percebido
como (i) atividade administrativa que, por excelência, utiliza-se de técnicas indutivas e
persuasivas para a consecução de seus propósitos.
Como acabamos de ver, essa afirmação é passível de crítica, mas, mesmo assim,
usual. Alguns autores chegam a afirmar que, por esse traço, o fomento público prefere a
todas as outras modalidades de atuação estatal na economia. Não é nossa posição. Não
há vedação ou preferência constitucional relativa ao fomento. É forma de o Estado atuar
junto à economia, exposta à crítica política e à análise quanto à eficiência na obtenção
de metas, mas que não é constitucionalmente melhor ou pior do que qualquer outra.
(ii) A adesão a um plano de fomento não é obrigatória ao particular. Ele aceita o convite
se quiser.1039 Por isso, há quem afirme que, na condição de Administração-propositora, o
Poder Público sai de sua posição de supremacia, ainda que possa a ela retornar quando

na escola ou sua caderneta de vacinação em dia, por exemplo —, tal ajuda ocorre não com o propósito de
desenvolver atividade econômica (ou, em rigor, qualquer atividade), mas possui como único pressuposto a
necessidade existencial de seus beneficiários. Não há, como no fomento, unidade de propósitos em direção à
realização de atividade de interesse público. O que existe é, de um lado, alguém cujas necessidades básicas não
se encontram supridas, em estado de vulnerabilidade social, e, de outro, o Estado, que, por razões humanitárias,
fornece alguma prestação social — cesta básica, medicamentos — aos necessitados. Se entendermos que
fomento é o dispensamento de qualquer tipo de auxílio aos indivíduos, ou apenas o dispensamento afetado
de bens e direitos a determinados particulares, com vistas a que realizem atividade de interesse público, as
atividades respectivamente incluídas ou excluídas variarão bastante. Nossa posição, como a da maioria da
doutrina, é favorável a um conceito restrito, em prol de sua inteligibilidade e operacionalidade. Já Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, ao tratar de fomento público em seu Curso, inclui, no conteúdo da atividade, situações
como o auxílio aos índios, às pessoas idosas e à constituição de família — logo se vê que este autor é partidário
de conceituação superabrangente do termo. Para a observação de que fomento público, conforme se entenda
que é o dispensamento afetado ou não afetado de bens e de direitos, gerará consequências jurídicas distintas,
v. FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 266 e MOREIRA NETO. Curso de
direito administrativo, p. 522 et seq.
1038
Trata-se, naturalmente, de destaque doutrinário dentre muitos outros possíveis. Assim, por exemplo, Gaspar
Ariño Ortiz vê quatro grandes características para o fomento: a) o fato de ser uma atividade administrativa,
uma forma de ação da Administração e um título de intervenção na economia; b) com um aspecto negativo: sem
utilizar a coação nem criar serviços públicos; c) com um conteúdo positivo: o Estado “oferece” um favorecimento
ao particular; e d) com um caráter teleológico: o fomento caracteriza-se pela busca de uma finalidade. Ora, tanto
a caracterização aqui apresentada quanto a de Ariño Ortiz são válidas e, na parte em que não se complementam,
destacam aspectos distintos de uma mesma atividade (a que adotamos, por exemplo, detalha certos aspectos do
funcionamento do fomento) (ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 345.
1039
BARRAS. Los principios generales de la intervención pública: la regulación, la policía, el fomento y el servicio
público. In: SERVICIO público, policía y fomento: jornadas organizadas por la Universidad Austral, p. 52.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
324 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

da aceitação da proposta pelo particular.1040 No entanto, a partir do momento em que


o particular concorda com os termos do aporte público, está vinculado à execução da
atividade fomentada, e nos termos em que se deu a pactuação.1041
Assim, por exemplo, se empresa recorre a empréstimo num banco público regio-
nal em condições facilitadas, aderindo a ação de fomento público ao desenvolvimento
da região, não poderá, com aquele dinheiro, investir na expansão de planta produtiva
localizada em região diversa.
Costuma-se afirmar que, apesar de a compulsoriedade inexistir — num primeiro
momento — para o particular, ela existe desde sempre em relação ao Poder Público,
que, mesmo nada fazendo quanto à criação de instrumentos de incentivo, não deve
atuar de forma contrária às atividades constitucionalmente destacadas como objeto de
fomento.1042
Essa é uma grande verdade, talvez grande demais para que, além de verdadeira,
seja relevante. O Estado não está constitucionalmente legitimado a prejudicar nenhuma
atividade econômica lícita, e se adotar medida — administrativa, legislativa ou juris-
dicional — que venha a parecê-lo, só estará constitucionalmente justificado se atender
a um bem maior.
O fomento público (iii) não é doação de Direito Público. Falta-lhe característica das
doações: o chamado animus donandi, a “mera liberalidade” a que se referem os manuais
de Direito Civil.1043 A Administração Fomentadora, no exemplo da subvenção, não
está doando quantia ao particular, mas entrega certo bem em prol do desempenho de
atividade, que ela, ainda que não a titularize, acredita ser útil ao interesse público. Não
há animus donandi, porque isso parece incompatível com as finalidades, implícitas ou
explícitas, da Administração.1044

1040
O assunto é complexo. A doutrina alemã, por exemplo, formulou e sustentou, durante muito tempo, a Teoria
dos Dois Graus para explicar o status das relações jurídicas nascidas a partir de um empréstimo em condições
facilitadas (exemplo de fomento público). Haveria um primeiro grau — jurídico-público — do ato administrativo
que decidiria se o empréstimo deveria ou não ser concedido, no qual incidiria a supremacia, e um segundo
grau — jurídico-privado — que seria o contrato privado de empréstimo, no qual a supremacia inexistiria. Tal
teoria, nos últimos tempos, vem sofrendo críticas, centradas na imprecisão prática da distinção entre os dois
graus e na artificialidade que haveria na cisão de uma relação uniforme em dois momentos. Assim, a doutrina
germânica moderna prefere qualificar os empréstimos do Poder Público em condições facilitadas como uma
“relação de um só grau”, seja defendendo que são atos ou contratos administrativos, seja afirmando que são
contratos privados. Da Teoria dos Dois Graus, só se defende sua incidência, hoje, nos casos de fiança pública —
também espécie de fomento —, oportunidade na qual a Administração coloca-se como fiadora de um negócio
interprivados. Ora, essa teoria seria exata reflexão daquilo que afirmamos como sendo a posição de muitos
autores, isto é, de que a Administração Pública, no convite, encontra-se em posição de igualdade, entretanto, ao
tê-lo aceito pelo particular, retorna a seu status privilegiado. Seria, mas não é. A diferença está nos momentos
em que se centra a análise: enquanto a Teoria dos Dois Graus enfatiza a autorização para o empréstimo e a sua
materialização (que se daria por um contrato ou por um ato administrativo), nossa análise partiu do momento
anterior, em que há o convite para o fomento e sua eventual aceitação pelo particular. Sobre a Teoria dos Dois
Graus e sua superação, v. MAURER. Direito administrativo geral, p. 510-511.
1041
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 30: “De fato, o particular é livre para aderir ou não aos propósitos
do Estado, mas, a partir do momento em que manifesta sua vontade de assumir a posição de agente fomentado,
obriga-se a atender a todas as condições impostas pelo Estado, ficando inteiramente vinculado aos fins públicos
pretendidos, pois são eles os responsáveis pelos privilégios e vantagens que lhe foram outorgados”.
1042
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 524.
1043
“A definição do Código Civil, com que abrimos este capítulo, encerra todos os elementos deste negócio jurídico,
a saber: (i) Contrato. Ante a divergência de conceito como ato de aquisição de propriedade ou como contrato,
predomina esta última caracterização, à vista do acordo de vontades. (ii) Liberalidade. É fator essencial e específico
do seu conteúdo” (PEREIRA. Instituições de direito civil, v. 3, p. 247, grifos nossos).
1044
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 20. Ver, ainda, ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 359.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
325

Há autores que discordam. Julio Nieves Borrego, por exemplo, caracteriza a


subvenção como “doação modal ob causam futuram, de Direito Administrativo”.1045
As diferenças seriam, tão somente, que o sujeito ativo da subvenção deve ser público,
existirem maiores formalidades em sua concessão, e sua finalidade (precisa existir uma)
ter de ser de interesse geral.1046
Ora: com tantas e tais diferenças, é melhor considerar o fomento público como
coisa à parte, em vez de enquadrá-lo a fórceps numa categoria tradicional, ainda mais
de Direito Civil.1047
O fomento público é (iv) seletivo. Ele destaca perfis ou parcelas de segmentos
econômicos, sociais ou culturais.1048 Não são todas as empreendedoras culturais que
poderão receber o Prêmio Adicional de Renda da Ancine, mas apenas as produtoras,
exibidoras e distribuidoras de conteúdo audiovisual. As linhas especiais de crédito da
Caixa Econômica estão voltadas para o auxílio às pequenas e microempresas, não a
todas as empresas. Ou seja: a atividade fomentadora nunca implica auxílio geral, mas,
sempre, ajuda direcionada a setores ou perfis específicos.
Relembrando a definição de Ignacio de la Riva, esse recorte de conteúdo tem a
ver com o caráter afetado da ajuda. Não se pode vincular o particular ao desempenho
de atividade econômica indefinida.1049 Auxílios sem objeto econômico definido, ou
concedidos em função da condição objetiva do beneficiário — ser pobre, estar desem-
pregado —, não são medidas de fomento, mas benefícios assistenciais.1050 O “benefício
da LOAS”, ou, tecnicamente, o Benefício de Prestação Continuada, é pago pela União
a idosos ou deficientes físicos cuja renda familiar seja inferior a um quarto do salário
mínimo federal,1051 não para que estes desempenhem atividade econômica ou cultural,
mas, tão somente, porque o constituinte e o legislador imaginam que a quantia mensal
possa ser alívio para quem se encontra naquela condição de vulnerabilidade social. O
raciocínio é o mesmo para o seguro-desemprego:1052 o Estado não espera, com a quantia,
que o beneficiário desenvolva alguma atividade privada de interesse público. Portanto,
não é fomento.

1045
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28.
1046
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 70-71.
1047
No mesmo sentido, FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 340; RIVA. Ayudas
públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 131-32.
1048
“A seletividade diferencia a ajuda de uma medida geral de política econômica, fiscal ou social do Estado, a qual
se dirige a todas as empresas do Estado de forma objetiva, repercute sobre vários setores, aplica-se por igual em
todo o Estado e trata de favorecer o conjunto da economia” (SAGGESE. El derecho comunitario de las ayudas de
Estado y su articulación con el derecho español de las subvenciones y las ayudas a las actividades económicas.
In: FERNÁNDEZ FARRERES (Org.). El régimen jurídico de las subvenciones: derecho español y comunitario, p.
191-221. Complementar em ESTOA PÉREZ, Abel. El control de las ayudas de Estado, especialmente cap. II - La
definición de ayuda de Estado, p. 39 et seq., item 3 - Selectividad de una medida
1049
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 160-162.
1050
Estamos falando, aqui, de benefícios concedidos exclusivamente em função da condição do beneficiário, e
que se desvinculam de qualquer atividade que este possa realizar. Pelo raciocínio, qualifica-se como fomento
público o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos — o Fundo Partidário —, cuja maior
parte dos recursos vem da União, destinado a que partidos políticos, pessoas jurídicas de natureza privada,
possam desempenhar melhor sua atividade institucional, a qual possui óbvio interesse público. Em sentido
contrário, CORTÉS. Aproximación al concepto de subvención y su adecuación en la Ley 3/1987, de 2 de Julio, de
financiación de partidos políticos. Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Furió Ceriol, p. 222.
1051
V. art. 203 da Constituição da República e Lei Federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
1052
V. art. 7º, II, da Constituição da República, e Lei Federal nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
326 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A próxima característica — a circunstância de ser (v) unilateral — é polêmica. É


possível indicar três ou quatro posições acerca da natureza jurídica do fomento público,
mais especialmente sobre se o fomento possui natureza jurídica bilateral ou unilateral.
A discussão não é desprovida de consequências, porque, de seu resultado, vai depender
uma posição jurídica de maior ou menor proteção ao particular fomentado.1053
Como já dissemos, há quem defenda que o fomento público — em particular seu
caso paradigmático: a subvenção — signifique uma “doação modal ob causam futuram
de Direito Administrativo”.1054 O ente público doaria o bem, mas imporia encargo ao
qual o recebedor ficaria vinculado. A subvenção seria contrato unilateral, exigindo
aceitação do donatário, porém sem criar prestações recíprocas.1055
Villar Palasi, por sua vez, acredita que a subvenção é ato administrativo unilateral
sujeito a condição resolutiva: o não cumprimento da destinação pública para a qual a
verba foi concedida.1056 Portanto, o uso do valor da subvenção nos limites de interesse
público seria um modo; ou o não uso importaria uma condição resolutiva.
Fernández Farreres discorda do enquadramento desse uso como modo ou con-
dição, e, portanto, como elementos acidentais do negócio jurídico. Em sua opinião, a
determinação para que o beneficiário imprima destino de interesse público à vantagem
recebida não poderia ser tida como elemento acidental do fomento: seria da própria
essência do instituto. A se considerar que a afetação do bem seria encargo ou condição,
argumenta o autor, poder-se-ia pensar que a subvenção fosse, essencialmente, simples
atribuição patrimonial a um particular, sem nenhum propósito — afinal, a destinação
de interesse público ao dinheiro, como condição ou encargo, seria acessória, podendo
ou não existir, mantendo-se, de toda sorte, a natureza básica do instituto.1057 O que,
definitivamente, não é o caso.
Outro grupo de autores acredita que o fomento possui natureza jurídica comple-
xa, sendo impossível, a priori, classificá-lo como ato unilateral ou bilateral. A questão
se resumiria a encontrar a natureza jurídica de cada caso específico de ação pública
de fomento. Juan Alfonso Santamaría Pastor é representativo desse modo de pensar:
Como já antes advertimos, o problema da natureza da subvenção não pode receber, prova-
velmente, uma resposta unitária. A regulação que lhe faz a Lei das Subvenções oferece sinais
equívocos: inclui notas indiscutivelmente tomadas da legislação de contratos públicos (por
exemplo, o procedimento competitivo de adjudicação, ou o regime de proibições e de inca-
pacidades) e, inclusive, em certos casos prevê que a outorga da subvenção far-se-á por meio
de um convênio (art. 28.1); porém, sem embargo, evita qualificar a relação como contratual, o
que poderia ter feito sem dificuldade. E isso se deve, seguramente, a que existem subvenções
cuja outorga responde ao esquema típico do ato unilateral, e outras que se outorgam em

1053
Vamos seguir, nesse ponto, com alterações, a apresentação de Ignacio de la Riva (Ayudas públicas: incidencia de
la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 172-181).
1054
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28.
1055
NIEVES BORREGO. Estudio sistematico y consideración jurídico-administrativa de la subvención. Revista de
Administración Pública, p. 28-30, 45-46.
1056
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 90: “Em todo caso, a subvenção aparece outorgada conforme a condição de cumprimento pela
entidade subvencionada. Daí a terminologia inglesa de conditional grant. Este condicionamento se traduz, não
em um modo aposto à subvenção, como sustentou MATTI, mas em uma efetiva condição resolutiva”.
1057
FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 258-260; p. 266.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
327

forma de contrato, ou no bojo de um convênio complexo no qual, junto a outras obrigações,


a Administração se compromete a outorgar uma subvenção.1058

O comentário é pertinente, apesar de se referir à subvenção, o que não traz maio-


res problemas, já que as observações são aplicáveis tanto ao gênero quanto à espécie, e,
ainda, à lei geral espanhola de subvenções (não temos nada parecido, no Brasil). Não
o adotaremos de modo integral, apenas como ressalva a eventual tentativa de absolu-
tização da natureza jurídica do fomento público.
Apesar de acreditarmos que as ajudas públicas possam se reconduzir a uma
qualificação jurídica mais ou menos uniforme, tal qualificação pode ser superada, em
certos casos, pelos dados específicos do instrumento e da situação. Em outras palavras,
ousaremos indicar uma natureza geral, mas não absoluta.
Quem defende o caráter bilateral do fomento público afirma-o vendo, a partir da
relação de fomento, de um lado, a imposição de auxílio do Poder Público ao particular,
e, de outro, a exigência de que o particular fomentado venha a desenvolver a atividade
de interesse público. Há mesmo quem sustente que, a depender da existência de termo
escrito, que se pretenda regulador das relações internas do fomento, a bilateralidade
chegaria a se expressar sob forma contratualizada. Com a ressalva de possíveis casos
concretos bastante específicos, não é a posição que adotaremos como linha explicativa.
Nem a exigência de o particular desempenhar sua atividade a partir das con-
dições postas pelo ato de fomento é obrigação jurídica1059 em sentido estrito,1060 nem
é, como defende Fernández Farreres,1061 ônus,1062 palavra que, no Brasil, assume cará-
ter influenciado pelo Direito Processual, mas é, pura e simplesmente, dever jurídico.

1058
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 357-358.
1059
Sobre o conceito de obrigação jurídica, cf. lição de Eros Roberto Grau: “Neste sentido, estrito, a obrigação
consubstancia um vínculo em razão do qual uma pessoa (devedor) deve à outra (credor) o cumprimento de uma
certa prestação. A obrigação consubstancia um direito relativo, na medida em que o crédito que dela decorre
apenas pode ser exigido, pela pessoa ou pluralidade de pessoas dele titular, contra a pessoa ou pluralidade
de pessoas na situação de devedor. Aí a distinção fundamental entre obrigação e direito real: este pode ser
exigido erga omnes. De outra parte, diz-se também constituir, a obrigação, um direito pessoal, conquanto que,
descumprido o dever de prestação, a sua execução forçada ou providência que a substitua só é exigível por
iniciativa do credor; de toda sorte, é certo que o devedor tem, perante o credor, um dever sancionado pelo
Direito”. V. GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de São Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Município de Fortaleza e também GRAU. Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 116.
1060
“Não se pode dizer propriamente que o particular-beneficiário da subvenção assuma uma obrigação jurídica
stricto sensu diante da Administração outorgante, muito menos que a atividade que se deva desempenhar
seja uma contraprestação em favor, também, da Administração outorgante, já que com isso se esquece que
a subvenção, ainda que concedida com finalidade de interesse público, beneficia diretamente o particular,
ao qual, em ‘troca’ [...] deve executar uma determinada atividade, e a própria atividade que desempenha —
mesmo devendo acomodar-se ao interesse público concretizado nos objetivos e condições que a Administração
determinou no ato de outorga — redunda também diretamente em seu benefício” (FERNÁNDEZ FARRERES.
La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 399).
1061
Ver especialmente o item C do cap. 4 - Sobre a distinção ônus, modo e obrigação acerca dos efeitos da qualificação
jurídica do caráter afetado da subvenção como ônus jurídico que assume o beneficiário da qual depende a plena
eficácia [exigibilidade] do ato de subvenção (In: FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen
jurídico, p. 417 et seq.).
1062
“Define-se o ônus, assim, como o instrumento através do qual o ordenamento jurídico impõe ao sujeito um
determinado comportamento, que deverá ser adotado se não pretender arcar com consequências que lhe serão
prejudiciais. Ou como um comportamento que o sujeito deve adotar para alcançar uma determinada vantagem,
que consiste na aquisição ou na conservação de um direito” (GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de
São Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza). Ainda, GRAU.
Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 118-119.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
328 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

As aproximações e distinções entre essas três categorias conceituais já fizeram correr


rios de tinta.
Não é obrigação jurídica porque não há beneficiário preciso a quem favoreça o
cumprimento das exigências impostas pela Administração Fomentadora — logo, não
existe quem tenha direito de lhes exigir seu cumprimento.1063 É importante ficar claro:
no fomento público, a Administração Pública não pode exigir que o particular fomen-
tado cumpra os deveres conformados a partir da relação de fomento; caso a atividade
fomentada não venha a ser executada, ou não seja executada a contento, o Poder Público
deve declarar cessado o fomento, restituir-se da quantia, e, havendo dolo ou culpa, a
depender dos termos da outorga, impor sanções. Nunca, no entanto, a Administração
Pública estará legitimada a exigir o cumprimento específico das imposições: não há
sujeito ativo de direitos na relação de fomento; não há obrigação jurídica, em sentido
técnico; existe, sim, um gravame genérico e um dever geral de cumprimento das con-
dições da outorga.
Também não seria ideal qualificar as exigências impostas ao fomentado como
ônus. Ainda que o particular possa interromper a relação e, com isso, deixar de fazer
jus ao dinheiro (ou qualquer outro benefício), assumindo prejuízo, fomento público não
se faz em favor exclusivo do fomentado — é mistura complexa de interesses públicos
e privados. No ônus, o agente deixa de exercitar faculdade que foi instituída em seu
exclusivo benefício; com isso, arca com a ocorrência de prejuízo. Deixar de cumprir
um plano de fomento, ao contrário, por vezes resulta pior para o Estado do que para
o particular. Digamos que o Poder Público não possua recursos ou know-how para o
exercício de certas atividades. O fato de existirem agentes privados vinculados ao sub-
sídio pode ser uma das únicas chances de orientar seu exercício dentro de caminhos
de interesse público.
As imposições ao agente privado fomentado são deveres jurídicos.1064 Desenvolver
a atividade na direção indicada pela Administração é gravame genérico aposto ao con-
teúdo do ato fomentado. O agente privado deve desenvolvê-la dentro dos objetivos da
ação de fomento, mesmo que a Administração não possa compeli-lo a tal.1065 1066

1063
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 176. No
mesmo sentido, German Fernandes Farreres: “Parece que não [é uma obrigação], dada a inexistência de um
direito subjetivo da Administração outorgante tendente a exigir coativamente, a proceder à execução forçada
da atividade pela qual se outorga a subvenção” (FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen
jurídico, p. 420). É claro que existe relação obrigacional concreta entre fomentador e fomentado, mas não,
em sentido técnico, obrigação jurídica, precisamente porque não há credor delimitado que possa exigir o
cumprimento do acordado. No mesmo sentido, v. RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal
en el funcionamiento del mercado, p. 177, nota de rodapé n. 77.
1064
“O dever jurídico consubstancia precisamente uma vinculação ou limitação imposta à vontade de quem por
ele alcançado. [...] Aspecto fundamental a aproximar a sujeição do dever — porque comum à essência de
ambos — é o referido à circunstância de que tanto um quanto o outro são impostos em razão da tutela de
interesses alheios ao dos sujeitos por eles alcançados” (GRAU. A outorga onerosa do Plano Diretor de São
Paulo: ônus, não obrigação. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza. Ainda, GRAU.
Direito, conceitos e normas jurídicas, p. 115. Em sentido contrário, Fernandez Farreres, para quem o dever jurídico
genérico seria qualificação que não faria nascer relação jurídica alguma (o que não seria o caso), e demandaria
concretização por ato administrativo particular, tornando-se, então, obrigação, e carreando a crítica já lançada
a essa categorização (FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 420).
1065
Descontando-se, é claro, o efeito compelidor que a imposição de penalidades pelo descumprimento dos deveres
jurídicos possa ter sobre o agente fomentado.
1066
“Em alguns casos, com efeito, estes deveres operam em direções genéricas, de modo que os gravados por eles não
tenham, frente a si, um sujeito determinado que seja titular de um direito subjetivo propriamente tal a lhes exigir
o comportamento em que o dever consiste, senão, apenas, um poder destinado a atuar como garantia do efetivo
cumprimento do dever” (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 31).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
329

Por outro lado, parece majoritária, na doutrina e na jurisprudência, a ideia de que,


estabelecida a relação jurídica de fomento, e desde que haja cumprimento dos deveres
ajustados, o particular possui direito subjetivo ao benefício (falaremos sobre isso quando
estivermos analisando se o fomento é discricionário ou vinculado).1067
De tudo isso, vê-se que o fomento público possui, então, natureza unilateral.
Há uma obrigação por parte da Administração — prover a ajuda — e, por parte do
administrado, um dever genérico de desenvolver a atividade fomentada dentro dos
parâmetros estabelecidos no ato de fomento. Entretanto, o Poder Público não poderá
exigir o cumprimento específico do ato fomentado dentro dos moldes acordados, muito
menos pedir indenização pelo “deixar de fazer” (ou pelo fazer de modo contrário ao
que foi combinado).
A Administração Pública controla o desempenho da atividade fomentada, recu-
pera o valor se o desempenho não existiu ou não foi a contento e, se isso estiver previsto
dentro do plano de fomento, aplica multa ou medida administrativa, porém não impõe
diretamente o exercício da atividade ao particular, nem pode pleitear indenização por-
que a atividade não se realizou.
Repita-se: fomento público possui natureza unilateral. Não é ação que se possa
considerar rigorosamente atípica — há traços que se repetem —, nem é relação contra-
tual (mas é claro que pode ser formalizada por ajuste, que estabelecerá condicionantes
para cada caso). O particular assume um dever de cumprir com o que foi ajustado,
mas não é um obrigado, não estando, assim, vinculado a adimplir contraprestação
obrigacional específica.
Esse raciocínio, que não se faz em prol de qualquer posição jurídica predetermi-
nada, ainda resulta mais favorável ao administrado do que o entendimento de que se
trata de uma relação contratual, tese que, às vezes, é adotada baseando-se explicitamente
nessa premissa.1068
A última característica do fomento — sua (iv) transitoriedade — é quase tão po-
lêmica quanto a anterior. Nem tanto por divergências técnicas quanto à sua natureza
jurídica e ao seu significado (pelo contrário, o sentido de o fomento público ser transi-
tório é simples: ele deve durar por certo período, e, depois, cessar), mas, na verdade,
por sua própria admissibilidade.
Será realmente que todo fomento público deve ter hora para acabar? Não che-
gamos a tal extremo. No entanto, o extremo oposto — “fomento público não precisa
nunca ter prazo para acabar” —, que é, na prática, opinião popular, também não pode
ser admitido. Se a ideia é auxiliar o desempenho de atividade privada, mas sem que
essa atividade confunda-se com aquelas exercidas pelo Estado, não se pode admitir,
conceitualmente, um fomento público eterno.
Atividade privada que só existe graças ao fomento público não é, em princípio,
atividade privada em sentido próprio, seara do livre empreendedorismo e da busca
pelo lucro. Estado não existe para garantir nem lucratividade nem sustentabilidade

1067
“A Administração poderá modificar e, inclusive, eliminar, no futuro, essa subvenção, porém as relações jurídicas
já nascidas de modo algum poderão ser afetadas e ter cessados seus efeitos, só esgotados quando o particular
tiver cumprido ou descumprido a carga jurídica com a qual se outorgara a subvenção”; e “A precariedade,
assim como disse Albi, não existe nem nas situações em que a discricionariedade é patente, de modo que a
subvenção, a outorga aceita da subvenção, constitui um efetivo e autêntico direito subjetivo do subvencionado”
(FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 446-447).
1068
Criticando a suposta maior garantia ao administrado que traria a qualificação do fomento como relação
contratual, FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 396-397).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
330 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

empresarial. Claro que há situações e situações. Apesar de muita crítica política, fato é
que nenhuma Administração Pública pode deixar que uma crise financeira se instaure,
e, para isso, podem existir circunstâncias que solicitem aporte público de capital em
favor de instituições privadas. Mas esses aportes são excepcionalíssimos, devem ser
reembolsados e só se justificam por limitados períodos de tempo.
O mesmo raciocínio vale para o fomento: salvo exceções, se a atividade empre-
sarial é economicamente insustentável, ela deve antes falir do que viver para sempre
graças a aparelhos. Num país cuja experiência histórica do fomento não é das melhores,
salientar que o fomento não se propõe a ser eterno chega a ser posicionamento recon-
duzível ao princípio da moralidade. A defesa da transitoriedade do fomento público,
contudo, não é lançada de nenhum ponto de partida ideológico, mas da constatação —
singela — do que ele é e de para o que serve: é apoio público a atividade privada. Se
a atividade é privada, ela não é pública. Resultado da sequência de afirmações acacia-
nas: esse apoio deve ser temporalmente limitado, do contrário, a atividade deixará de
ser privada, e se tornará algum hibridismo constitucionalmente inaceitável. Por isso,
inexistindo dado temporal previamente fixado, a necessidade do fomento deve ser
periodicamente checada.
Com razão, José Roberto Dromi (na doutrina nacional, Célia Cunha Mello1069):
As medidas de estímulo, a nosso juízo, devem revestir-se de um caráter transitório, na
dinâmica da política econômica que a Administração instrumentaliza. Em princípio, todas
as medidas de fomento ou estímulo, a nosso juízo, devem possuir um caráter transitório, já
que consideramos que um protecionismo indefinido não é nem teórica nem praticamente
aconselhável. Agora bem, assim como há medidas conjunturais que se aplicam de modo
transitório e com duração pré-estabelecida, há outras, pelo contrário, que permanecem
ininterruptamente e às quais acedem aqueles que reúnem certos requisitos. Tais medidas
perseguem “fins estáveis”, referentes à estrutura econômica, por exemplo, os diferentes
regimes de promoção industrial, mineral, florestal, agrária etc.1070

A citação destaca um ponto importante: é que a transitoriedade refere-se à


situação-padrão do fomento público, vale dizer, atividade empresarial simples (ainda
que de interesse público), cujo exercício é auxiliado pelo Poder Público. Dada a abran-
gência do conteúdo abrigado pelo termo fomento público, é importante destacar que
a transitoriedade não se aplica a situações que não são passíveis de mudanças, a curto
ou médio prazo, ou, mesmo, a circunstâncias estruturais que jamais mudarão. A tran-
sitoriedade não se aplica, por exemplo, quando a Constituição da República assegura
tratamento privilegiado às pequenas e microempresas (art. 179)1071 — enquanto ostenta-
rem tal condição, as empresas farão jus a tais medidas de auxílio —, ou na hipótese de
um Fundo de Desenvolvimento Regional (o critério, aqui, é geográfico, e não temporal).
A questão fica mais complicada quando se relaciona a atividades culturais, que,
a despeito de serem exercidas em regime privado, dado seu conteúdo, não necessaria-
mente buscam o lucro. Pensemos no cinema, na música, no teatro. Será constitucional-
mente admissível que apenas produções de caráter comercial estejam aptas a receberem

1069
MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 38, 56.
1070
DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 152-153.
1071
“Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas
de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela
simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação
ou redução destas por meio de lei”.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
331

fomento público, na medida em que produções experimentais dificilmente serão au-


tossustentáveis em tempo algum? A resposta é negativa.1072 Faz-se mister, entretanto,
comprovar e detalhar as circunstâncias em que se vai dar o fomento. Se o projeto é o
de um filme de arte, é importante que isto fique claro desde o primeiro momento. Caso
a proposta seja comercial, aí, então, a perspectiva temporal volta a assumir relevância.
Em síntese: a transitoriedade do fomento é essencial à sua configuração, e deve
ser buscada como princípio regulador— se não como decorrência da definição do ins-
tituto, então como derivação de valores como a moralidade ou o princípio republicano.
Porém, há situações nas quais se mostra inaplicável (fomento a regiões ou a entidades
dotadas de características perenes) ou inconveniente (negócios privados cuja busca pelo
lucro é residual ou inexistente, e nos quais assome a finalidade de interesse público
que justifica a ajuda).

3.2.4 Os meios de atuação do fomento público


A doutrina, embora assegure que é impossível elaborar catálogo das formas que
podem revestir a administração do fomento público, aponta uma divisão preliminar.
Haveria os meios positivos e negativos de fomento.1073
Os positivos outorgariam bens ou vantagens ao particular; os negativos signi-
ficariam dificuldades ao desempenho da atividade, com vistas a seu desestímulo. Há
alguma dificuldade teórica na admissão dos meios negativos como próprios do fomento,
porque o Estado pode vir a se utilizar de meios não persuasivos para sua implementa-
ção, e isso acabaria indo contra a própria definição do instituto;1074 mas, desde que só
admitamos os meios negativos persuasivos (por exemplo, a não concessão de desconto
no pagamento parcelado de tributo como forma de estimular seu pagamento à vista;
o imposto sobre bebidas alcoólicas para combater o alcoolismo1075), e não os que sejam

1072
Em prefácio ao livro de Vinícius Portela Martins, escrevemos: “Em contextos de mercantilização da arte,
de sociedade do consumo e de comodificação de quase todas as searas da vida, o Estado ainda possui papel
importante. É irônico: o Estado caminha num tenso, mas vital, fio da navalha entre ser a única instituição
capaz de empoderar expressões e discursos contramajoritários, e ser a maior e mais bem constituída ameaça
a eles. O consumidor de arte é, antes disso, um sujeito da arte, e, portanto, um cidadão da arte: se não se permite
a experimentação — e a experimentação só se permite quando se abre espaço ao erro, e, portanto, ao não
lucro e ao prejuízo —, a arte se reduz a analgesia pós-trabalho. Vira música de repetição. [...] Arte é mais que
o enfileiramento de produtos culturais para reforço de marca. Há nela um papel errático, experimental, que
simplesmente escapa à racionalidade empresarial. É por isso que o Poder Público é essencial — e é por isso que
vale a pena correr o risco do dirigismo, se o prêmio é a possibilidade da diferença artística” (MENDONÇA, José
Vicente Santos de. Apresentanção. In: MARTINS, Vinícus Alves Portela. Coleção de direito administrativo positivo:
leis especiais comentadas: volume 25, MP 2.28-1/2001 e Lei 12.485/2011. São Paulo, 2014, grifos no original).
1073
JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA
DE POZAS. Estudios de administración local y general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 50 et seq. Essa
primeira classificação tem por base a forma de atuação sobre a vontade dos sujeitos fomentados. Observação
importante de Jordana de Pozas é a de que a escolha dos meios por que se vai realizar o fomento não é assunto
jurídico, mas de experiência, ligada à psicologia coletiva, às circunstâncias do momento etc. Enfim: a escolha
dos meios é uma questão que, como afirma Daniel Maljar, “cabe à política” (MALJAR. Intervención del Estado en
la prestación de servicios públicos, p. 284).
1074
“É impossível admitir esta classificação. Quando se tem em conta que não é tanto a finalidade perseguida
quanto o caráter formal (coativo ou persuasivo) da medida empregada o que determina sua qualificação
jurídica, é evidente que os chamados meios negativos não são, em sentido estrito, medidas de fomento. A
justificação da medida não pode se confundir com sua natureza jurídica” (GARRIDO FALLA. Tratado de derecho
administrativo. 10. ed., v. 2, p. 260.
1075
Mas, a respeito da tributação como fomento, ver o que se fala abaixo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
332 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

coativos (a desapropriação em decorrência de não se dar, ao imóvel urbano, sua função


social — art. 182, §4º, III, da Constituição da República), o problema deixa de existir.1076
Além dessa primeira divisão, os meios de fomento podem ser classificados como
a) honoríficos, b) econômicos, ou c) jurídicos.1077 Há quem fale, também, nos meios d) psi-
cológicos.1078 Analisemos cada um deles.
Os meios a) honoríficos seriam os prêmios,1079 as condecorações civis e militares,
as titulações acadêmicas, desde que anteriormente condicionadas ao desempenho
da atividade que restou premiada. Se o particular realizou a atividade e, só depois, o
Estado veio a condecorá-lo, sem que existisse relação prévia em que o Poder Público
incentivasse a prática, a conduta não se enquadraria como fomento honorífico.
É difícil imaginar como tais premiações possam ser tidas como medidas de fomen-
to. De fato, como afirma Santamaría Pastor, trata-se de atos públicos de reconhecimento,
cujo fundamento está mais em demonstrar apreço a determinados modelos pessoais,
culturais ou empresariais do que em estimular atividades. Além disso, é artificial a
construção segundo a qual tais honrarias seriam atos de fomento desde que as ações
premiadas fossem condicionadas por sua concessão. Muito mais comum é a hipótese
em que os prêmios são concedidos de forma desvinculada do momento em que tais
atos ou obras foram realizados. Até segunda ordem, ninguém escreve um livro para
ganhar um prêmio da Fundação Biblioteca Nacional. O potencial “fomentador” de tais
honrarias é reduzido.1080 Apenas num sentido muito lato é que poderiam se reconduzir
ao conceito de fomento público.1081
Os meios d) psicológicos são a propaganda oficial em favor de determinada prá-
tica. Campanha institucional, custeada pelo Erário, em favor do consumo de leite, como
a feita, em meados dos anos 90, nos Estados Unidos, seria exemplo.1082 Hoje, pode-se
até cogitar do uso de nudges e técnicas advindas da economia comportamental como
meio de fomento (v. próximo capítulo). E há também os meios c) jurídicos de fomento.
Imposição de consumo de produtos fabricados num local, contratação forçada de catego-
ria de empregados, situações de monopólio ou de restrição da concorrência, imposição
de contratação de conteúdo local, cessão de servidores ou de bens públicos (como as

1076
No mesmo sentido, MELLO, Cunha. O fomento da Administração Pública, p. 89-90.
1077
Segundo Jordana de Pozas, essa classificação é a que é feita segundo o tipo de vantagens que são outorgadas.
1078
DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 153.
1079
“Ainda que estes reconhecimentos costumem vir acompanhados de alguma dotação econômica, dada a
crescente associação entre valor e importância econômica” (ORTEGA. Derecho administrativo económico, p. 169.
Ainda, ver GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo,
v. 2, p. 382: “De resto, a eficácia do meio empregado varia conforme a psicologia dos administrados; nossos
antepassados estavam dispostos a fazer os maiores sacrifícios para assegurar a perpetuidade do nome e da
estirpe, porém, hoje, buscam-se benefícios mais imediatos”.
1080
É até possível que algumas empresas busquem titulações e certificações, públicas ou privadas, tais como
“empresa amiga da criança”, como estratégia de marketing social. No entanto, não é a certificação que as leva a
agir daquela forma, mas possíveis vantagens empresariais. Logo, o Poder Público não fomentou uma atitude
empresarial, apenas demonstrou apreço por um comportamento, que foi assumido pela empresa com base em
outros fundamentos (que não especificamente a obtenção da certificação, objeto do “agir” público). Com algum
cinismo trágico, pode-se afirmar, até, que a empresa não ficou amiga das crianças nem pelas crianças nem
pelo título público, mas, diretamente, pelo lucro. O potencial do fomento honorífico continua, assim, residual.
Citando essa hipótese como exemplo de fomento honorífico, v. GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA;
LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 385.
1081
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 349.
1082
Outro exemplo, esse próximo à realidade brasileira: a União, via Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, lançou, em 2008, campanha publicitária — “Ele ajuda a humanidade há séculos. E você nunca
desconfiou que ele é um super-herói?” — destinada a promover o consumo de café.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
333

trazidas pela Lei das Organizações Sociais e a Lei das OSCIPs) — tudo o que significar
a atribuição legal de status diferenciado, sem a entrega de valores ou a realização de
operações financeiras, é meio jurídico de fomento público.1083 1084
Santamaría Pastor critica: não são “jurídicos”, mas econômicos; estão ultrapas-
sados; a maioria dessas medidas não persegue autênticos fins de auxílio à iniciativa
privada.1085 A primeira crítica é procedente: os estudiosos do Direito possuem certo fe-
tichismo com a palavra “jurídico”. Sem entrar em qualquer marxismo vulgar, afirme-se
que tudo nesse ponto é econômico, seja a atribuição direta de verba a empresa, seja a
cessão de bens públicos (o primeiro caso dispensa explicações; no segundo, há deso-
neração na planilha de custos). Por que numa hipótese o meio de fomento é “jurídico”
e na outra é econômico, se a finalidade — econômica — é idêntica?
Poder-se-ia falar, então, em meios de fomento direta e indiretamente econômicos,
sendo certo, entretanto, que não se diminuiu a imprecisão nem se incrementou a rele-
vância da classificação. Quanto a estarem ultrapassados, não se aplica ao Brasil, país em
que, mais e mais, imagina-se que a criação de externalidades econômicas juridicamente
bem-intencionadas seja solução para diversos males. Quanto a não perseguirem fins de
auxílio a atividades privadas de interesse público, não concordamos totalmente com
o comentário. Em alguns casos — como na cessão de servidores às Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público —, o caráter de “fomento a atividades privadas
de interesse público” é, até, destacado. A análise é caso a caso.
Os meios b) econômicos de fomento são os mais comuns e importantes.1086
Significam aporte imediato de recursos, e não, como no caso dos meios jurídicos, a
colocação do fomentado em posição jurídica que lhe faça auferir proveito.1087 As clas-
sificações não param: há meios econômicos (i) reais — a colocação de bens públicos à

1083
“É um conjunto de atuações que supõem a consagração, pelo Ordenamento, de uma situação mais favorável
para determinadas pessoas” (DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 155). “São meios jurídicos aqueles
que se caracterizam pela outorga de uma situação de privilégio, a qual determina que o sujeito fomentado se
beneficie da utilização de meios jurídicos excepcionais”; e “[...] Consiste ora em que a Administração utilize
seus poderes exorbitantes em benefício dos titulares da atividade (privilégio), ora na concessão direta a estes
de dispensas frente a leis e regulamentações administrativas de caráter proibitivo” (GARRIDO FALLA;
PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 383, 396). Em certo
sentido amplo de fomento público, semelhante ao utilizado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, e que,
relembre-se, não adotamos aqui, podem-se incluir as medidas de ação afirmativa — com o intento de dar
condições de possibilidade para que grupos sociais excluídos ingressem em universidades públicas e ocupem
postos de trabalho — dentro das medidas de fomento público social.
1084
Garrido Falla et al comentam, com razão, que grande parte desses exemplos clássicos não poderiam ser
tidos propriamente como fomento, na medida em que utilizariam meios coercitivos. Hipótese mais íntegra
de fomento jurídico seria, então, a liberação do gabarito de construção de prédios em região de cidade, com
o propósito de estimular seu desenvolvimento comercial ou industrial. V. GARRIDO FALLA; PALOMAR
OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 396. Por sua vez, Gaspar Ariño
Ortiz observa, também com razão, que essas vantagens, características do fomento jurídico, possuem caráter
excepcionalíssimo, na medida em que, em princípio, caminhariam em sentido contrário ao dos princípios
constitucionais da legalidade e da igualdade diante da lei. Daí que tais vantagens devem decorrer de expressa
previsão legal (ver nosso item sobre os critérios do fomento público) e estar justificadas (ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 347).
1085
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 350-351.
1086
E isso talvez porque, “em nossa época, o principal estímulo (ideia essencial do conceito de fomento) é, sem
dúvida, o lucro” (DROMI. Derecho administrativo económico, t. II, p. 155).
1087
Ou, na definição de Jordana de Pozas, “são todos aqueles que, de um modo direto, determinam a percepção
de uma quantia ou a dispensa de um pagamento obrigatório” (JORDANA DE POZAS. Ensayo de una teoría
general del fomento en el derecho administrativo. In: JORDANA DE POZAS. Estudios de administración local y
general: homenaje al profesor Jordana de Pozas, p. 53).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
334 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

disposição do sujeito fomentado1088 (há, aqui, certa confusão com os meios jurídicos, o
que demonstra, na linha de Santamaría Pastor, a artificialidade dessas classificações) —;
(ii) fiscais (imunidades, isenções, regimes especiais de pagamento tributário); (iii)
creditícios, ou seja, as linhas privilegiadas de crédito (prazos maiores, juros menores,
não exigência de garantias) ou o fornecimento de meios para sua obtenção (por exem-
plo, o aval público para a obtenção de crédito no mercado financeiro); e, por fim, (iv)
econômicos propriamente ditos, resumidos à importantíssima figura da subvenção:
“atribuição patrimonial, a fundo perdido, de uma Administração Pública em favor de
um particular, afetando, inicialmente, a prestação, o desenvolvimento de uma atividade
do subvencionado”.1089 1090 1091
Ora: nada contra classificações, desde que úteis. A teoria jurídica não pode se
limitar a ser discurso legislativo indireto, digressões sobre naturezas jurídicas, coletânea
de classificações. Não nos parece que a classificação dos meios econômicos de fomento
signifique algo mais que seu valor-face de declaração de conteúdos. Sua utilidade é
residual.
Por outro lado, a introdução dos meios reais dentro do fomento é criticável.
A outorga de uso de bens públicos, dentro de contrato de concessão, nada mais é do
que uma das formas de retorno ao concessionário. A autorização ou a permissão do

1088
A respeito do ponto, veja-se GARCIA, Flávio Amaral. A utilização dos bens públicos como instrumento de
fomento e o processo de contratação com terceiros. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte,
ano 16, n. 182, p. 21-26, fev. 2017.
1089
FERNÁNDEZ FARRERES. La subvención: concepto y régimen jurídico, passim. Ver definição, ainda, da Lei
Geral de Subvenções da Espanha (Lei nº 38/2003): “Art. 1º Entende-se por subvenção, para os efeitos desta
lei, toda disposição, em dinheiro, realizada por quaisquer dos sujeitos contemplados no art. 3º desta lei, a
favor de pessoas públicas ou privadas, e que cumpra os seguintes requisitos: a) Que a entrega se realize sem
contraprestação direta dos beneficiários; b) Que a entrega esteja sujeita ao cumprimento de um determinado
objetivo, à execução de um projeto, à realização de uma atividade, à adoção de um comportamento singular,
já realizados ou por realizar, ou à ocorrência de uma situação, devendo o beneficiário cumprir as obrigações
materiais e formais estabelecidas; c) Que o projeto, a ação, conduta ou situação financiada tenha por objeto o
fomento de uma atividade de utilidade pública ou interesse social ou de promoção de uma finalidade pública”
1090
Existem outras classificações. A que se apresentou é a mais usual, tributada a Jordana de Pozas. Há outras,
mais ou menos úteis. Santamaría Pastor, por exemplo, apresenta classificação dos meios de fomento baseada
nas técnicas de aporte de capital. As transferências de capital podem ser diretas ou indiretas. Pela transferência
direta, conceitualmente a mais simples, ente público entrega recursos monetários destinados a financiar
atividade considerada de interesse público (a realização de filme), ou a compensar uma perda de arrecadação
(intempérie natural provoca a destruição parcial de cultivo), ou, ainda, a proporcionar ao beneficiário uma
renda pessoal que lhe permita levar a cabo determinada atividade (uma bolsa de estudos). Já a transferência
indireta de capital é mais variada; sua tipificação apresenta problemas “quase insolúveis”, afirma Santamaría
Pastor. Só se pode dizer que se trata da assunção, por órgãos ou entidades públicas, da realização de inversões
econômicas destinadas a melhorar o desempenho de determinadas empresas privadas. Campanhas publicitárias
de promoção do consumo de certos produtos; estabelecimento de sistemas de garantia de compras ou de níveis
de preços; a realização, pelo Poder Público, de atividades de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico, o
que vai reduzir o gasto empresarial; a criação ou o financiamento público de fóruns comerciais, que diminuem
o custo de exibição de produtos (passarelas, feiras etc.) — tudo isso, numa lista não exaustiva, é exemplo de
transferência indireta. Santamaría Pastor ainda afirma que, de ambas as modalidades, as transferências indiretas
são as mais problemáticas, carecendo de regime legal unitário; costumam não estar previstas em norma jurídica
alguma, realizando-se comumentemente como medida da Administração Pública (negociada com o setor
econômico), baseada numa autorização orçamentária específica. Com seu uso cada vez mais comum, o ideal é
que haja formalização normativa crescente (Principios de derecho administrativo general II, p. 353-355).
1091
A doutrina nacional acompanha os critérios utilizados pelos autores espanhóis clássicos, que espelham a
criteriologia adotada por Jordana de Pozas. Veja-se, por todos, José Cretella Júnior: “Os incentivos podem ser
de natureza não fiscal, como ocorre nos casos de doações de áreas a empresas para exploração de atividades
econômicas — industriais, comerciais, de exportação e importação — ou de natureza fiscal, como as isenções de
tributos a empresas em pleno funcionamento, quando se trate de atividade que interesse à região ou ao país”
(CRETELLA JÚNIOR. Comentários à Constituição brasileira de 1988, p. 4047).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
335

uso privado de bens públicos, por sua vez, é antes ordenação (do espaço público) ou
aquiescência com interesses privados do que meio autônomo de promoção de ativi-
dades.1092 Há, naturalmente, cessões de bens que são, de fato, meios de fomento. No
exemplo das OSCIPs, fornecer sala à entidade é forma de auxiliá-la em suas funções.
Mas daí a afirmar, por exemplo, que autorização precária de uso público, no interior
de colégio público, permitindo a instalação de pequena lanchonete, é atividade típica
de fomento, vai longa distância.
É também criticável a inclusão das medidas fiscais dentro das medidas adminis-
trativas de fomento. A razão é técnica: são medidas de política econômica, estabelecidas
diretamente por meio de lei, salvo no caso dos tributos que admitem alteração de alí-
quota por meio de ato administrativo.1093 Vale a ressalva, no entanto, de que a doutrina
brasileira, em sua maioria, ao falar de fomento, inclui, tradicionalmente, os benefícios
fiscais dentro da categoria.1094 Nesse ponto, somos minoritários.
A despeito, então, da duvidosa utilidade da classificação, defendemos, aqui, que
os meios do fomento público são, usualmente, os creditícios e os econômicos propria-
mente ditos (leia-se: a subvenção), e que os meios reais podem, por exceção, ser tidos
como tais. Já os meios fiscais não se enquadram como meios técnicos de fomento (são
política econômica). À parte disso, acreditamos que os meios honoríficos são de baixa
eficiência, e que a divisão entre meios jurídicos e econômicos é artificial; melhor seria
divisão entre meios direta e indiretamente econômicos.

3.2.5 Instrumentos do fomento público


Por instrumentos de fomento, queremos dizer os documentos formais que tornam
possível sua efetivação. E, quanto a eles, a variedade é quase tão grande quanto a dos
meios. Um simples contrato de concessão de empréstimo bancário, desde que realizado
em condições especiais, pode ser um instrumento de fomento econômico creditício.
A subvenção, se bem que não propriamente “contratada”,1095 1096 pode ter seu ato de
concessão acordado por intermédio de um documento formal (desde que nos limites
autorizativos da lei — cf. item sobre critérios do fomento a seguir). Nas ajudas públicas

1092
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 352.
1093
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 352. Outras razões: a) são regidas pelo
Direito Tributário, ao passo que o fomento é matéria de Direito Administrativo; b) o fomento público é ação que
auxilia indivíduo, empresa ou grupo de empresas, enquanto os benefícios fiscais são genéricos; c) um benefício
fiscal não transfere ao beneficiado nenhum bem, ao contrário das medidas típicas de fomento (pensemos no
exemplo arquetípico do fomento: a subvenção). Para posição intermediária, a favor de que se analise a estrutura
de cada benefício fiscal antes de se incluí-lo ou não no fomento, v. RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la
intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 135-142.
1094
Ver, por exemplo, Odair. Tramontin (Incentivos públicos a empresas privadas e guerra fiscal).
1095
VILLAR PALASÍ. Las técnicas administrativas de fomento y de apoio al precio político. Revista de Administración
Pública, p. 69: “A subvenção não se pactua. Solicita-se e é outorgada pela Administração”.
1096
Garrido Falla et al defendem que os casos em que o Poder Público, num contrato de concessão de serviço
público, acresce determinado valor ao que foi estabelecido como tarifa do concessionário, como contrapartida,
assim, ao limite tarifário fixado pelo poder concedente, tratar-se-iam de hipóteses de subvenções contratuais
(na medida em que seriam subvenções cuja concessão se deu por procedimento contratual). V. GARRIDO
FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 391. No nosso
Direito Positivo, poder-se-ia pensar, como exemplo para o caso, na concessão patrocinada da Lei das Parcerias
Público-Privadas (art. 2º, §1º, Lei Federal nº 11.079/2004), “em que o concessionário remunera-se não apenas
pela cobrança de tarifas do usuário, mas, também, pelos pagamentos realizados pela Administração Pública”
(PRADO; RIBEIRO. Comentários à Lei de PPP: Parceira Público-Privada: fundamentos econômico-jurídicos,
p. 83). O “patrocínio” público seria, então, espécie de subvenção cuja concessão se deu por meio de contrato.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
336 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

interadministrativas, são comuns os convênios de repasse. A União, digamos, repassa


recursos orçamentários para que Estados executem atividade, e os detalhes, tanto
financeiros quanto operacionais, vêm minudenciados num ajuste escrito. Convênios
comuns também podem ser instrumentos operacionais de fomento, assim como, pelo
menos na denominação formal (o papel aceita tudo), “contratos” de fomento, havidos
após a adesão do administrado à pauta apresentada pela Administração.
Mais usual, no entanto, é o fomento realizar-se, in concreto, por atos adminis-
trativos concessivos de benefícios, como, por exemplo, um ato de autorização de uso
de bem público em favor de entidade dedicada à promoção do esporte.1097 No caso do
fomento cultural, fala-se nos “editais” (da Petrobras, do BNDES etc.), o que não muito
técnico — o instrumento do fomento é o ato concessivo da subvenção —, mas serve
para ilustrar uma característica dessa espécie de ajuda pública: o fato de que seu livre
e isonômico acesso vem a ser operado, à semelhança das licitações, por intermédio da
publicação de editais.
Mesmo com toda essa liberdade quanto aos instrumentos, dois pontos merecem
ser ressaltados. Primeiro: do fato de existirem contratos não decorre uma liberdade
contratual típica às partes. Podem existir contratos que regulem, no detalhe, a relação
de fomento, mas seu conteúdo estará delimitado pelo espaço de atuação de que a
Administração disponha, o qual decorre de habilitação legal. Em outras palavras: nem
a Administração Fomentadora, nem o particular fomentado podem achar que, por te-
rem assinado um contrato, disporão livremente de bens e interesses. É importante ter
cuidado para não se deixar seduzir pela forma “contratual”, a qual, em tese, remete a
conceitos como a autonomia da vontade e a livre disposição de interesses. Aqui, esta
vontade autônoma existe apenas de modo supletivo. Fomento público é função admi-
nistrativa e, portanto, sujeita a todos os controles típicos incidentes sobre essa espécie
de manifestação do poder estatal.
Segundo ponto: não nos parece que exista regra interpretativa em favor da
concessão do benefício ou em prol do agente fomentado. Não é porque se trata da con-
cessão de benefício que existirá um princípio geral de favorecimento do particular.1098
Ao contrário do que ocorre em outras searas do Direito Constitucional Econômico, em
que muitos autores, por diversas razões, defendem a existência de um favor libertatis
em prol de posições mais garantistas do exercício da iniciativa privada (posição com
a qual não necessariamente concordamos), aqui não há sequer bons argumentos em
favor dessa posição interpretativa prévia.
Durante a vigência do benefício, deve-se concedê-lo da forma mais fidedigna
possível às condições estabelecidas. Na dúvida, não vindicamos nenhuma posição
preconcebida, nem favor da Administração Fomentadora nem do particular. Da mesma
forma que não se deve falar na existência de uma regra de “não desperdício do esforço

1097
Nesses casos, o ato administrativo funciona como ato-condição, quer dizer, como condição para que o beneficiário
da ajuda pública adquira o status de agente fomentado, na qualidade de bolsista, beneficiário da linha de crédito
etc. V. GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 34.
1098
Até porque, “ainda que o fomento signifique ampliar a esfera do particular, também pode ter uma eficácia
indiretamente limitadora das condutas dos particulares competidores daquele favorecido pela ajuda” (ORTIZ.
Principios de derecho público económico, p. 349). Nesse caso, de intervenção em ambiente competitivo, muito
embora desorganizar a competição seja risco a se a evitar (ver item neste capítulo), é de se perguntar se o
fomento amplia a esfera de direitos de determinado agente econômico sob o risco de restringir a de outros
(concorrentes). Vale, então, a regra de que, “na dúvida, age-se em prol do fomento”, ou a regra de que “o
fomento é exceção à livre iniciativa, e, como as exceções são interpretadas de modo restritivo, na dúvida, não se
concede/amplia/permite o fomento”? A enunciação dessas “regras” já dá medida de sua artificialidade.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
337

de fomento” para a finalidade de impor, na obscuridade da lei ou do instrumento de


fomento, sua concessão, também não se alegue uma propensão teleológica ou uma vo-
cação finalística pró-fomento (“afinal de contas, o que se pretende é ajudar, mesmo”),
direcionando o intérprete a uma concessão do benefício.
A técnica da ponderação de interesses e o critério da razão pública tornaram
letra morta tais pré-compreensões: o que se busca é a interpretação mais ajustada às
circunstâncias concretas, “justa” e imparcial. Na dúvida, valem as regras e técnicas gerais
de interpretação das leis e dos ajustes1099 e, afinal, a correta compreensão do instituto
e de suas características: na interpretação do fomento, assim como na interpretação
jurídica em geral, o caminho dos atalhos posicionais costuma ser muito mais armadilha
estratégico-argumentativa do que estrada segura rumo a soluções harmônicas.

3.3 O risco do fomento é o risco da intervenção desmedida: a paralisia.


Outros riscos: violação à concorrência, administrativização do espaço
privado, violação à legalidade e ineficiência econômica
Retomando assunto sugerido na introdução do capítulo, destacamos que a ativi-
dade de fomento gravita em torno a dois riscos: ser excessiva (ou, de modo simétrico,
insuficiente) e ser arbitrária. Só num dos casos, o da insuficiência, é que o particular
fomentado costuma reclamar. No caso do excesso, o agente fomentado, que se vê para-
doxalmente desestimulado por um estímulo, não possui qualquer motivação psicológica
para solicitar a cessação da ajuda. E, no caso da arbitrariedade, é natural que os afetados
busquem anular o ato concessivo do fomento, mas, de toda sorte, seria melhor prevenir
do que remediar o problema.
Portanto, registrar os riscos do fomento público poderá nos auxiliar na construção
de critérios que sirvam para eliminá-los ou, no mínimo, para indicar, de forma mais
clara, a presença dos males aos quais se referem tais riscos. Não estamos discutindo
o primeiro e principal risco de toda intervenção pública, que é o de, mercê de falta de
planejamento ou de uma miríade de fatores imponderáveis, simplesmente não dar
certo. Nem toda ação de fomento público vai atrair interessados; nem toda atividade
privada fomentada atingirá os objetivos de interesse público que motivaram a atuação.
Não é difícil imaginar modalidades esportivas olímpicas que, apesar dos altos valores
de patrocínio público, resultem em resultados medíocres. Nem todo filme bancado
pela Petrobras será sucesso de bilheteria, ou, para usarmos outro signo presuntivo de
sucesso, nem sempre despertará discussões acaloradas sobre seu sentido ou sobre o
sentido da arte. Os riscos do insucesso são comuns a toda e qualquer atividade, pública
ou privada, e o fomento não escapa a isso.
Outro assunto que também não será tratado neste item — ao menos, não direta-
mente — é o óbvio risco da corrupção, seja em sentido estrito (envolvendo dinheiro),
seja num sentido mais lato, quando a atuação do agente público deixa de ser o fomento
a uma atividade privada de interesse público, e passa a significar o auxílio a atividade

1099
Na medida em que, naturalmente, àquele fomento, em específico, sejam aplicáveis regras exegéticas relativas a
ajustes, isto é, na medida em que aquele fomento seja mais ou menos “contratualizado”.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
338 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

privada de seu interesse pessoal não econômico (corrupção do sentido de interesse


público).1100
É claro que, numa atividade cujo conteúdo discricionário é elevado (v. discussão
a seguir), não se pode assumir postura fanática em relação a possíveis direcionamen-
tos do fomento público. Até porque, a uma, ele sempre possuirá conteúdo seletivo; a
duas, há razoável liberdade para que a Administração Pública conduza seus planos de
ajuda conforme os critérios que lhe pareçam satisfativos do interesse público. É para
isso que a Administração existe; é para isso que o administrador foi eleito. Discutir se
a chefia do Executivo faz bem ou mal em direcionar esforços para o fomento da região
norte ou nordeste do Brasil, para a atividade agropastoril ou para o setor tecnológico é
matéria que escapa à análise jurídica — são questões políticas. Não se pode pretender
“juridicizar” conteúdos desse quilate, que se reconduzem à velha e boa conveniência
e oportunidade da Administração.
O primeiro risco do fomento é o risco da intervenção desmedida (em termos tem-
porais ou de intensidade). É a paralisia, a perda do élan privado. O fomento é atividade
pública não substitutiva da iniciativa privada. Fomento que se eterniza, ou que, por
excessivo, neutraliza todo risco do negócio, acaba transformando-se numa iniciativa
privada com riscos socializados. Ainda que assim não seja, pode acabar por desestimular
a competividade da região, do setor ou do agente, ao funcionar como seguro público de
propostas fracassadas.1101 Atentar para a duração e a intensidade do fomento é fazê-lo
adequado à sua finalidade.
A Administração deve ser cuidadosa ao apreciar demandas de extensão de crédito
ou de prorrogação de prazo, porque há uma — economicamente justificável — propen-
são a que os fomentados dependam demais das espécies de fomento. Sugestão seria os
agentes fomentados demonstrarem a obtenção de determinados graus de performance
como condição de acesso a outras intensidades ou períodos de fomento,1102 tendo a

1100
“Como a prática das subvenções desenvolve-se à margem do Direito, o grande problema é que, à sua sombra,
floresce a fraude e a corrupção. Por um lado, por detrás de cada subvenção surgem alguns espertos que se
colocam na posição adequada e são subvencionados. São os ‘caça-prêmios’, que utilizam a subvenção como
veículo de enriquecimento, à custa do bolso dos contribuintes, e de modo contrário à justiça e à eficiência. [...]
Por outro lado, ao abrigo da discricionariedade em sua outorga, surge a permanente tentação de vincular a
subvenção ao favor político. As subvenções geram, assim, um novo caciquismo, praticado com dinheiro público.
Já não se compra o voto com o centavo, como antigamente, mas [...] com a promessa de reindustrialização detrás
da qual tudo cabe, ou com a manutenção de produções puramente subvencionadas”. V. ORTIZ. Principios de
derecho público económico, p. 370. A respeito do tema da corrupção em geral, v., AVRITZER et al. (Org.). Corrupção:
ensaios e críticas. Vale dizer que sempre existiram vozes que propõem a completa extinção dessa atuação do
Estado, sugestão, a nosso ver, equivocada; o que se impõe é propor critérios possíveis para sua “juridicização”,
mas não sua extinção.
1101
A política brasileira de reserva de mercado para bens de informática, introduzida pela Lei Federal nº 7.232/84
(a chamada Política Nacional de Informática; a lei foi revogada pela Lei nº 8.248/91, mas a reserva de mercado
durou os oito anos originalmente previstos, expirando em outubro de 1992), exemplifica o ponto: os antigos
computadores brasileiros, quando não cópias piratas de sistemas estrangeiros, estavam abaixo de seus similares
internacionais. O fim da reserva de mercado implicou o acesso de mais brasileiros aos produtos tecnológicos e
incrementou a qualidade dos bens. Ou seja: uma posição de fomento público, na modalidade fomento jurídico
(atribuição de monopólio temporário), que redundou, por seu tempo ou intensidade, numa situação de perda
de qualidade. V. PEDERSEN. The use of Historical Lessons in Studies of Economic Development. In: NORDIC
POLITICAL SCIENCE ASSOCIATION – NOPSA CONFERENCE, 14., especialmente p. 14-17. Outro exemplo
é a indústria automotora brasileira, que, antes da liberação comercial dos anos noventa, teve seus produtos
considerados, pelo então presidente da República, não carros, mas carroças.
1102
Indicando a possibilidade do fracionamento do pagamento das subvenções contra a justificação, por parte
do beneficiário, do cumprimento da atividade, v. GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA
GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo, v. 2, p. 394.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
339

Administração Fomentadora o cuidado de separar, para a análise, indicadores que


comprovem resultados majoritariamente atribuíveis ao desempenho do agente priva-
do (organização dos meios de produção, qualidade do produto ou do serviço etc.).1103
Há o risco inverso, de o fomento não durar o suficiente, ou ser financeiramente
inútil ao estímulo da atividade. É óbvio que um planejamento bem feito evitará esse
problema. Em prol de sua detecção, a Administração Pública pode contar com os
dados do agente privado, que, ao contrário do “excesso”, não possui estímulo para
permanecer em silêncio na hipótese de o fomento ser curto ou insuficiente. De toda
sorte, a característica da transitoriedade do fomento serve como boa ideia-/força para
que excessos temporais — por excesso ou por falta — sejam evitados desde a própria
formulação do programa de ajuda.
Muito próximo à paralisia é o risco da introdução de distorções no mercado,
à conta de algum falseamento das condições de concorrência. Essa é uma das principais
preocupações dos europeus.1104 Curiosa, aliás, a posição do fomento público, que, para
alguns autores brasileiros, é saudado como mecanismo típico e preferencial de uma nova
Administração Pública, mais próxima ao administrado, consensual e, quiçá, liberal (no
sentido que latino-americanos e europeus emprestam ao termo), e, para os europeus,
em especial os espanhóis, é mecanismo cujo grande risco é o de ser antiliberal, daí as
ressalvas e garantias, inclusive legais, no âmbito da União Europeia.1105
Tudo, na verdade, depende do ponto de vista: se fomento público é a opção à
constituição de monopólios ou à criação de estatais, é instrumento de política econômi-
ca liberal; ao servir para desordenar a livre concorrência por intermédio de empresas
privadas “próximas” e fomentadas pelo Poder Público, é ferramenta do antiliberalismo
econômico. A verdade, no entanto, é que a primeira opção advém de um exagero, e a
segunda, de um desvio. Nem o Estado deve necessariamente optar pelas ações de ajuda
pública — deve, sim, agir conforme o que for mais adequado às circunstâncias —, nem
é fomento público constitucionalmente admissível aquele que desorganiza o mercado
e falseia injustificadamente as condições de concorrência.1106
Há um destaque gráfico na última sentença. Injustificadamente. Decerto, res-
tringir ou limitar, sem motivo lícito, a livre concorrência, é infração administrativa a
ser punida, mesmo quando cometida pela Administração Pública, na forma da Lei nº
12.529/2011 (arts. 31 e 36, I). Restrições justificáveis à livre concorrência, por exemplo,

1103
Do contrário, poder-se-ia averiguar não a eficiência do particular no exercício da atividade, mas o desempenho
global da atividade fomentada — o que poderia mascarar um particular “acomodado” com seu status de
beneficiário. Exemplo do que vindicamos é a exigência, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal,
órgão vinculado ao Ministério da Educação, de relatórios periódicos, demonstrando a produtividade acadêmica
de seus bolsistas, como condição para a continuidade da ajuda.
1104
Ver, por todos, ESTOA PÉREZ. El control de las ayudas de Estado.
1105
Art. 92 do Tratado de Roma – 1. Salvo disposição em contrário do presente Tratado, são incompatíveis com
o mercado comum, na medida em que afetem as trocas comerciais entre os Estados-membros, os auxílios
concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam,
que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.
1106
Posição moderada, vinda de autor que ninguém poderá acusar de antiliberalismo econômico, é a expressada
por Gaspar Ariño Ortiz: “[...] em certas ocasiões não bastará a figura do Estado regulador, e será necessária a
oferta, não intrusiva da liberdade nem distorcedora da competência, de incentivos econômicos para corrigir
as falhas do mercado, os desequilíbrios sociais e regionais” (Principios de derecho público económico, p. 372). Este
mesmo autor, pouco antes, apresenta quatro razões para a necessária persistência das ações de fomento: (i)
alguns bens fomentados são, no fundo, públicos ou semi-públicos, como a pesquisa industrial; (ii) a ocorrência
de externalidades como o meio ambiente; (iii) a assimetria informacional e a restrição de crédito que sofrem as
pequenas e médias empresas no mercado financeiro; (iv) a pobreza.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
340 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

o controle temporário de preços, ou a admissão de fusões e aquisições que, ao mesmo


tempo que comprometem a concorrência, melhoram a qualidade de bens e serviços e/
ou propiciam a eficiência e o desenvolvimento econômico, podem ser admitidas (art.
88, §5º, da referida lei). O mesmo se diga quanto ao fomento público, que pode, sim,
restringir ou falsear a livre concorrência e, ainda assim, ser admitido, importando
destacar, na construção normativa da admissibilidade, o art. 88 da Lei nº 12.529/2011,
em seu parágrafo 6º.
Assim, à atuação administrativa fomentadora da iniciativa privada seria aplicá-
vel o art. 88 e o parágrafo sexto da Lei Federal nº 12.529/2011: em princípio, o fomento
público faz-se sem condicionamento ou restrição da concorrência, e, caso isso ocorra,
que seja justificável à luz das condicionantes impostas pelo dispositivo.1107
Esse risco se comprovou nos últimos anos. A atuação fomentadora de bancos
públicos teve impacto concentrador em certos setores econômicos, como o da proteína
animal, com aparente prejuízo ao interesse público.
O risco anterior é, por assim dizer, risco técnico, para o qual, na medida do possí-
vel, o Ordenamento Jurídico brasileiro traz solução. Por muito comum, o falseamento do
regime de concorrência competitiva via fomento público produziu literatura e julgados.
Só que o risco de que vamos tratar agora é algo que decorre de uma ação de fomento
que, em princípio, seria impecável: é o risco da compressão das liberdades individuais, de
certa administrativização do espaço privado por meio da ajuda pública.
O risco de “dominar ali onde ajuda”1108 resulta tentador para a Administração
Pública, não por alguma inclinação de seus integrantes, mas porque todas as organiza-
ções burocráticas tendem a impor sua mundivisão assim que conseguem espaço.1109 1110
Nunca é demais lembrar que o planejamento é apenas indicativo para o setor privado
(art. 174, CRFB/88), o que se deve interpretar pela adoção de medidas e técnicas que
permitam suficiente espaço de liberdade individual privada — empreendedora e de
consciência. Exemplos clássicos são editais culturais com conteúdo ideológico-material,
que podem, em curto prazo, selecionar negativamente obras artísticas que não estejam
conforme ao “bom pensamento” administrativo do momento.
Claro que o fomento é seletivo, o que importa dizer que a Administração pode
selecionar atividades, regiões, perfis de entidades. O Poder Público não está obrigado a
oferecer bolsas estudantis para todo e qualquer estudante superior, mas pode destacar
cursos cujo desenvolvimento seja de interesse para a nação/região/Estado/Município.
Do contrário, não existiria fomento público digno do nome, mas simples repasse ge-
nérico de verbas. A questão é haver justificativa razoável para a seletividade proposta;

1107
Seria o caso de se exigir, inclusive, que o ato público de fomento tendencialmente limitador da livre concorrência
seja previamente autorizado pelo CADE, a teor do art. 88, §2º da Lei Federal nº 12.529/2011.
1108
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 371.
1109
O condicionamento pode referir-se não só a aspectos gerais da vida social — cultura, economia —, mas também
a orientações político-eleitorais. Sobre os problemas constitucionais do Estado social, Ernst Forsthoff anotou que
“o indivíduo orienta-se relativamente pouco por princípios ou ideologias; não é primordialmente conservador
ou liberal ou socialista, senão agricultor, importador, pensionista, proprietário de imóveis”, assim, “é uma das
características do Estado Social que o eleitor, quando vai às urnas, oriente-se primeiramente em função de sua
existência individual concreta e vote em consequência” (FORSTHOFF. Problemas constitucionales del Estado
Social. In: ABENDROTH; DOEHRINGFORSTHOFF. El Estado Social, p. 55).
1110
Tanto que também há risco de que patrocínio privado implique direcionamento das liberdades artística ou
empresarial do empreendimento fomentado. Comentando sobre o tema, o diretor de teatro Amir Haddad
observa: “Empresário não é dirigismo? É. Qual empresário já quis colocar dinheiro num projeto do Tá na Rua?
Isso não é dirigismo? Se sopra para o seu lado está tudo bem, mas se deixa de soprar é dirigismo?” (DUARTE.
Lorca por Amir. Prestes a estrear ‘Bodas de Sangue’, diretor fala de Rouanet e dirigismos. O Globo.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
341

é a abrangência dessa seletividade (a seletividade é legítima ou é escolha de alguns


apaniguados?); é, finalmente, a intensidade e a duração do fomento, comparado ao
pano de fundo da economia e da eventual concorrência sofrida pelo agente fomen-
tado. O objetivo de interesse público encartado na atividade privada que venha a ser
fomentada não pode significar — por excesso na medida de fomento, ou por simples
exclusão na abrangência de conteúdo — boicote dissimulado às demais atividades ou
agentes privados. Esta é, parafraseando Owen Fiss, a “ironia do fomento público”: certos
conteúdos e atividades privadas só poderiam existir à sua conta, mas ele também pode
ser o maior inimigo da liberdade de expressão e da livre iniciativa.1111
De forma concreta, tais riscos, derivados dessa funcionalização do interesse
público contido na ideia de fomento, relacionam-se, exemplificativamente, a condi-
cionamentos na liberdade sindical, na liberdade de opinião, na liberdade de ensino.
Devem ser tratadas como suspeitas regras que restrinjam em demasia acesso a fundos
públicos com base em critérios como representatividade ou legitimidade.1112 Bolsas de
estudo cujos resultados de pesquisas sejam moderados pelo Poder Público, ou revistas
científicas cuja linha editorial não permita críticas (desde que embasadas) a ações de seu
patrocinador estatal, são outros casos, nem um pouco incomuns, em que fomentador e
fomentado sucumbem a uma suave corrupção de ideias e ideais.
Nos últimos anos, questão polêmica surgiu em razão de suposto fomento público
a sites — blogs, páginas etc. —, que demonstrassem simpatia pela liderança política da
Administração Central. Se a afirmação é verdadeira ou não, é algo a se verificar. Mas o
ponto de destaque para o capítulo é o seguinte: afinidade com a Administração não pare-
ce ser critério republicano à seleção do fomento, eis que tal critério não trata de modo
equânime potenciais candidatos e eleitores. A administrativização do espaço privado
ocorreria, aqui, não por restrição à liberdade de manifestação do particular fomentado
(que acabaria deixando de poder ter opiniões contrárias a seu patrocinador), mas em
relação a particulares não fomentados, que passariam a ser objeto de sobreinfluência
patrocinada pelo Estado.
Outro risco, comum a todos os atos discricionários, é o de haver uma insubmissão
ao princípio da legalidade por via da discricionariedade. O ponto será discutido no próximo
item. Da mesma forma, registramos, aprofundando a seguir, a possibilidade de inefi-
ciência econômica no exercício da função administrativa. A impossibilidade de garantia
do sucesso de empreitada privada fomentada pelo Poder Público não é cheque em
branco para a má utilização dos recursos públicos. Deixar de agir de modo racional ao
empregar recursos públicos é, no limite, atentar contra a economicidade que deve reger
os gastos do Estado (art. 70, CRFB/88). O fomento não é aposta vã; é, espera-se, ação

1111
FISS. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública.
1112
O Supremo Tribunal espanhol, em decisão antiga (sentença de 07 de novembro de 1984), entendeu que
violava o princípio da isonomia uma regra, contida em resolução administrativa, que distribuía oitocentos
milhões de pesetas às centrais sindicais “em proporção à sua representatividade”. Algum tempo depois, a
sentença constitucional nº 20, de 14 de fevereiro de 1985, declarou inconstitucional a própria referência, na Lei
Orçamentária Anual, a uma distribuição desses fundos de acordo com a representatividade dos sindicatos.
Em nossa opinião, não há nada de errado, em princípio, em distribuir verbas segundo tais critérios práticos;
o problema pode estar no grau concreto de restritividade implicado pelo critério, e na eventual ausência
de “válvulas de escape”, isto é, da distribuição de verbas para entidades que não se encaixam nos limites
apresentados. Um bom exemplo de criterização objetiva e razoável — e, assim, constitucionalmente adequada —
é a atual repartição do fundo partidário, em que determinado percentual vai para os partidos mais bem votados,
e o restante é dividido, de forma isonômica, entre todos os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral
(FERNÁNDEZ FARRERES,. De nuevo sobre la subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista
de Administración Pública, p. 39-75, passim).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
342 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

planejada e racional do Estado em favor de ação privada de interesse público. Simples


assim. Complicado assim.

3.4 Fomento público é discricionário ou vinculado? Fomento público


pode ser revogado?
Perguntar-se se o fomento “é” discricionário ou vinculado é falsa questão. Ela
traz embutida a afirmação de que uma ação administrativa, disjuntivamente, tenha
de ser discricionária ou vinculada. Isso corresponde a simplificação: na verdade, atos
administrativos são mais ou menos discricionários e vinculados.1113 1114 Os conceitos de
vinculação e de discricionariedade representam, numa imagem, extremos de uma linha,
em cujas pontas estão (raros) atos administrativos em que o espaço da discricionariedade
é quase absoluto1115 ou praticamente inexistente.1116
No primeiro caso, por exemplo, decretos do Chefe do Poder Executivo, que con-
sideram determinado imóvel como de utilidade pública ou interesse social para fins
de desapropriação. No outro extremo, a concessão de licenças a particulares, tiradas a
partir de leis que consagram o direito subjetivo à sua obtenção quando do cumprimento,
por aqueles, de requisitos objetivos.1117
Mesmo com tudo isso, a doutrina, tanto nacional quanto estrangeira, também
aqui (como o fazia a respeito do poder de polícia), por vezes, não hesita em encaixar o
fomento público dentro das categorias tradicionais, ora entendendo-o como discricio-
nário, mais raramente como vinculado.

1113
FIORINI. La discricionariedad en la Administración Pública, p. 46-47. V., ainda, KRELL. Discricionariedade
administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista ESMAFE – Escola de Magistratura
Federal da 5ª Região, p. 184-185: “Entretanto, vale frisar, já nesse ponto, que a vinculação dos agentes
administrativos aos termos empregados pela lei apresenta uma variação meramente gradual. Por isso, o ato
administrativo ‘vinculado’ não possui uma natureza diferente do ato ‘discricionário’, sendo a diferença no grau
de liberdade de decisão concedida pelo legislador quantitativa, mas não qualitativa” (grifos no original).
1114
Há quem afirme, a nosso ver sem razão, que a força normativa dos princípios jurídicos (costuma-se citar, dentro
da lógica desse discurso, o princípio da moralidade, o da juridicidade, o da eficiência etc.) teria causado o
desaparecimento dos atos discricionários. Só haveria atos administrativos vinculados, mas vinculados, agora,
a uma legalidade entendida em sentido amplo. Afora aspectos técnicos — a linguagem jurídica simplesmente
não comporta tal grau de predeterminação fática — e práticos bastante evidentes, resta claro o potencial
antidemocrático e judicialesco da opinião.
1115
“Quase”, porém nunca absoluto, na medida em que a discricionariedade “significa uma condição de liberdade,
mas não de liberdade ilimitada”. “Só vai se exercer com base na atribuição legal, explícita ou implícita, desse
poder específico a determinados órgãos ou autoridades. Por outro lado, o poder discricionário sujeita-se não só
às normas específicas para cada situação, mas a uma rede de princípios que asseguram a congruência da deci-
são ao fim de interesse geral e impedem seu uso abusivo” (MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 110).
1116
Há discussão doutrinária sobre a existência de ato administrativo completamente vinculado. No plano teórico,
e na vida prática, mas em casos incomuns, talvez o assunto faça sentido, até porque pode existir alguma
margem de manobra mesmo para o cumprimento de deveres extraídos de atos administrativos vinculados (cf.
MARTINS JUNIOR. A discricionariedade administrativa à luz do princípio da eficiência. Revista dos Tribunais).
Contudo, para o cotidiano usual, existem atos que, para todos os efeitos, são “inteiramente” vinculados, sem
que a afirmação signifique a adoção de nenhum ingênuo positivismo legalista na linha “o juiz é a boca da
lei”. Exemplo: cumpridos os requisitos de idade e de tempo de contribuição, o servidor público possui direito
subjetivo à aposentadoria. O ato de aposentadoria é, então, para todos os efeitos práticos, “inteiramente”
vinculado.
1117
Tradicionalmente, a doutrina administrativista brasileira defendeu que as licenças eram exemplo de ato
administrativo vinculado. Entretanto, não basta que o ato em análise seja nomeado, pela doutrina ou por
uma eventual legislação, como “licença” para que se transforme em exemplo de ato vinculado. Faz-se mister
a inexistência, na legislação que o institui, de termos linguísticos concessivos de poderes discricionários à
Administração Pública (“poderá”, “concederá conforme critérios de conveniência e oportunidade” etc.).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
343

Exemplo desta última posição vem, no Brasil, com Marcos Juruena, para quem
“o setor e/ou a atividade previstos no plano [...] deveriam ser fomentados à iniciativa
privada por meio de atividade vinculada, sem a atribuição de privilégios, preferências,
favores e proteções fora de contexto associado ao planejamento [...]”.1118
Na doutrina estrangeira, afirmando que, em superação a um passado em que os
atos administrativos que viabilizavam as medidas de fomento público eram entendidos
como discricionários, Gaspar Ariño Ortiz defende que, “hoje, a doutrina assinala que
se trata de atos vinculados”.1119
Não é difícil entender o motivo pelo qual tais autores adotam a posição. Basta
reler o item anterior. Fomento público, no Brasil e em muitas partes do mundo, quase
sempre significou, junto à ocupação de cargos em comissão, o lugar por excelência
do patrimonialismo. Afirmá-lo como “vinculado” é pretender contribuir, a partir da
dogmática, para um uso tendencialmente mais aprimorado.
Boa parte da doutrina acredita que a atividade de fomento é discricionária. Assim,
por exemplo, Garrido Falla, Alberto Olmeda e Herminio Losada defendem tal caráter
discricionário, mesmo afirmando que, na outorga de muitas subvenções, aparecem
elementos vinculados. Desse modo, “a determinação do grau de discricionariedade está
determinado e concretizado na convocatória pública da correspondente subvenção”.1120
Fala-se, ainda, e como exemplo do poder discricionário do Estado, do “poder discricio-
nário de iniciativa”, no qual se inclui a possibilidade de o Poder Público adotar medidas
assistenciais e de fomento.1121
Nosso posicionamento é simples: o fomento público, se não pode ser considerado dis-
cricionário ou vinculado de modo estanque, está mais próximo da discricionariedade do que da
vinculação.1122 1123 Podem existir hipóteses nas quais a ajuda pública restará vinculada, ou
por uma norma legal específica, ou pelos termos do edital ou do contrato. Além disso,

1118
SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 99, grifos nossos. Em outra obra, o mesmo autor afirma que o
fomento é “atividade vinculada, não cabendo a atribuição de privilégios, preferências, favores e proteções,
sem que amparados por um contexto maior, voltado para o bem-estar de toda a coletividade; daí serem
indissociáveis o fomento do planejamento, sob pena de quebra do princípio da igualdade” (SOUTO. Aspectos
jurídicos do planejamento econômico, p. 54). Aparentemente concordando com o caráter vinculado do fomento, v.
Célia Cunha Mello (O fomento da Administração Pública, p. 85).
1119
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 350. O destaque foi acrescentado.
1120
GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo. 12. ed., v.
2, p. 391.
1121
MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 111. Ainda, MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p.
525, grifos no original: “Finalmente, observe-se que, para o desempenho das funções administrativas de execução
do fomento público, inexistem privatividade, exclusividade, reserva legislativa ou administrativa, que inibam os
entes políticos de empregá-las ampla e intensamente [...]”.
1122
Decerto que não defendemos a insubmissão do fomento a qualquer controle público, muito menos entendemos
discricionariedade como sinônimo de “espaço de arbítrio”. Como disse o Tribunal Supremo Espanhol, “sua
[da ajuda pública] outorga como ato discricionário exige a necessária observância de um condicionamento
que elimina essa qualidade em sua concepção como atuação de pura disponibilidade” (v. FERNÁNDEZ
FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista de Administración
Pública, p. 50). Só afirmamos que, no comum da formulação e da execução de ajudas públicas, há mais espaço
para escolhas públicas, desde que razoáveis, proporcionais e legítimas, do que em muitas outras atividades
administrativas.
1123
“Ainda que, em algum caso de arbitrariedade clamorosa, produziu-se a anulação de um ato de concessão (ou
de denegação) por um tribunal, o normal é que os juízes renunciem a revisar, em seu fundamento material,
a adjudicação de uma subvenção, pois, de fato — dizem —, ‘é à Administração que cabe determinar, em
função das necessidades da economia nacional, as medidas que devem ser adotadas para conceder ajudas,
subvenções e créditos’ (assim, STS de 28 de maio de 1985). Desta forma, nas subvenções existe uma margem de
‘discricionariedade técnica’, e neste campo o controle judicial é muito limitado” (ORTIZ. Principios de derecho
público económico, p. 368).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
344 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

as medidas de fomento público que importem dispêndio de verbas ou desonerações


fiscais devem se submeter às constrições normativas trazidas pela Constituição e, em
específico, pela Lei de Responsabilidade Fiscal (autorização orçamentária, indicação
de fonte de custeio etc.).
Essa posição é a que mais se amolda à realidade das ajudas públicas. Afirmá-la
como atividade vinculada na esperança de reduzir sua malversação é equívoco, por-
que apela a uma incompreensão teórica no afã de reduzir um abuso prático. O papel
da doutrina, no que toca a construção de um fomento republicano, é essencialmente
o de estabelecer e difundir critérios dogmáticos consistentes e operacionais. A partir
daí, discutir se o fomento é vinculado ou discricionário pode passar a segundo plano.
Além disso, não é porque todas as atividades públicas, hoje em dia, submetem-se a
controles finalísticos e principiológicos, que o fomento vai deixar de ser, em princípio,
atividade discricionária. A valer esse argumento, já não existiria discricionariedade em
nosso Direito — opinião equivocada, que parte de uma boa intenção (um mundo sem
abusos da Administração), investe em instrumentos inservíveis (os princípios jurídicos
não são oráculos que apontem respostas corretas) e acaba por legitimar excessos dos
órgãos de controle (Judiciário, Ministério Público e Tribunais de Contas sempre estarão
a postos para discordar acerca de qual é o “único” caminho que tais princípios jurídicos
indicam para aquela atividade).
Outra questão é a da revogabilidade, ou não, das ações públicas de fomento. Se
o fomento público é, em princípio, discricionário, daí decorre que se consagre, também,
uma regra geral de sua revogabilidade. A Administração Pública pode desistir de uma
medida de fomento. Não está obrigada a continuá-la até sua conclusão, seja lógica (a
conclusão do filme) ou econômica (a maturação do negócio e sua autossustentação).
O dinamismo da economia contemporânea reflete-se na admissão de grande
flexibilidade à Administração Pública para o exercício do fomento. Se, num primeiro
momento, a opção que realiza o melhor interesse público é, por exemplo, a de ajudar o
setor sucroalcooleiro, pode ser que, mudadas as condições macroeconômicas, atingida
a maturidade parcial do negócio, ou surgido novo objeto ou região que justifique nova
programação de investimentos, seja necessária a descontinuidade do auxílio. O Estado
não se autovincula para sempre a determinada opção de ajuda pública. Interromper
motivadamente uma ação de fomento não significa “despromover” a atividade, no
sentido que alguns autores consideram constitucionalmente vedado.1124 Trata-se de
adequar a ação do Estado à realidade,1125 ou, no mínimo, de fazer incidir o princípio
democrático: diversos governos, diferentes prioridades, distintas políticas de fomento.
Há outras consequências advindas da revogabilidade. Em primeiro lugar, o fato
de se ter recebido subvenção em determinado período não serve como precedente para
se pretender obtê-la em período subsequente. Além disso, não existe direito à renovação

1124
“Esta é a eficácia mínima dos comandos expressos na Constituição: a proibição, dirigida ao Estado, de inibir,
prejudicar e embaraçar as atividades que deve fomentar, ressalvada a tributação de caráter geral” (MOREIRA
NETO. Curso de direito administrativo, p. 524, grifos no original). “Ao Estado, por sua vez, fica vedado, comissiva
ou omissivamente, atuar de forma a prejudicar as atividades destacadas pelo ordenamento jurídico como objeto
de fomento público” (MELLO. O fomento da Administração Pública, p. 84).
1125
CARVALHO. Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração,
p. 95: “Por força do referido princípio [da realidade], não pode qualquer norma administrativa ignorar o
mundo dos fatos a que se refere”. Ainda, v. MENDONÇA. O princípio da realidade como limite ao exercício
da discricionariedade administrativa: um novo nome para algumas velhas formas de se argumentar?. Justiça e
Cidadania, p. 24-25.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
345

ou ao aumento da subvenção.1126 Tudo isso pode parecer draconiano em desfavor do


agente privado fomentado. É hora, então, de mitigar excessos: a Administração Pública
é fundamentalmente livre para encerrar uma ação específica de fomento, o que não quer
dizer que o particular fomentado, presentes determinados requisitos, esteja comple-
tamente refém dos humores do Poder Público. Há limites e condicionantes. Vejamos
alguns.1127
O próprio edital, ou alguma legislação especial, pode garantir direitos subjetivos
do fomentado em face da Administração Fomentadora.1128 1129 Além disso, são aplicáveis,
aqui, os argumentos de boa-fé objetiva e de proteção da confiança legítima do adminis-
trado em relação à Administração, desde que presentes os requisitos justificadores desses
argumentos: (i) a prática de atos contraditórios pela Administração Pública; (ii) o ato da
Administração, cuja continuidade se pretende, deve consistir numa conduta intencional,
firme e segura, e não em mera tolerância; (iii) ausência de norma jurídica autorizativa
da contradição entre os dois atos; (iv) a violação concreta à boa-fé do administrado.1130
Se o particular assumiu compromissos financeiros com base em indícios consis-
tentes de que a ação fomentadora continuaria, e se inexistia impedimento legal para
que isso ocorresse, afigura-se-nos possível pleitear compensação pecuniária, ainda que
não a continuidade do fomento.1131 A questão, aí, estaria mais na violação à confiança do
que na busca da persistência forçada de um programa de auxílio, o que é impossível.

1126
GARRIDO FALLA; PALOMAR OLMEDA; LOSADA GONZÁLEZ. Tratado de derecho administrativo. 12. ed., v.
2, p. 392.
1127
Há quem afirme que a revogabilidade não existe. Assim, Fernández Farreres: “A Administração outorgante
não pode, em consequência, tornar sem efeito a ajuda concedida, fora das causas fixadas que, previstas com
antecipação, hajam presidido o ato de outorga aceito pelo beneficiário, devendo-se concluir que o caráter
‘gracioso’ da ajuda [...] não dota a Administração de uma faculdade de livre revogabilidade a ponto de poder
deixar sem efeito, a qualquer momento, a ajuda concedida” (FERNÁNDEZ FARRERES. De nuevo sobre la
subvención y su regimén jurídico en el derecho español. Revista de Administración Pública, p. 51). Desenvolver
em Germán Fernández Farreres (La subvención: concepto y régimen jurídico, p. 443 et seq. Ainda, nesse sentido,
partindo do caráter contratual de eventual subvenção, Cassagne: “O certo é que, se a fonte da subvenção deriva de
um contrato, sua concessão deixa de ser discricionária e o particular terá ação para reclamar seu cumprimento ante a Justiça
[...]” (CASSAGNE. Derecho administrativo. 7. ed., t. II, p. 348, grifos nossos). Preferimos adotar a posição clássica,
favorável à revogabilidade do fomento, porém mitigá-la com exceções.
1128
CASSAGNE. Derecho administrativo. 7. ed., t. II, p. 392.
1129
De toda sorte, é incomum que tanto os acordos quanto as leis garantam direitos a renovações ou a aumentos
automáticos, em especial porque isso iria de encontro à ideia de eficiência econômica no desempenho da
atividade fomentada.
1130
Adaptado a partir de GONZÁLEZ PÉREZ. El princípio general da la buena fe en el derecho administrativo, p. 69-
74. Segundo a literalidade da apresentação do autor, existem cinco requisitos para a aplicação do princípio da
proteção da confiança legítima do administrado em relação à Administração Pública: a) o ato da Administração
deve ser suficientemente conclusivo para produzir no afetado a confiança de que a Administração atua
corretamente, ou de que é lícita a atuação que ele mantém em relação ao Poder Público, ou, ainda, de que suas
expectativas, como interessado, são razoáveis; b) a Administração deve gerar sinais externos, que, inclusive sem
necessidade de serem juridicamente vinculantes, orientem o cidadão a uma determinada conduta; c) um ato
da Administração que reconhece ou constitui uma situação jurídica em cuja continuidade o particular podia
confiar; d) deve existir uma causa idônea para provocar a confiança legítima do particular afetado, a qual não se
poderá gerar por mera tolerância, negligência ou ignorância da Administração Pública; e) o administrado deve
haver cumprido todos os deveres e obrigações que lhe incumbem no caso. V., ainda, CASTILLO BLANCO. La
protección de confianza en el derecho administrativo; SCHONBERG. Legitimate Expectations in Administrative Law. Na
doutrina brasileira, v. ARAÚJO. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante
do Estado. Sob o prisma do Direito privado, cf. SCHREIBER. A proibição de comportamento contraditório: tutela da
confiança e venire contra factum proprium, p. 131-162.
1131
Discute-se, nas doutrinas alemã e suíça que tratam do princípio da proteção da confiança legítima, sobre se a
indenização é a melhor solução jurídica para os casos de violação àquela norma, ou se a saída seria a anulação
do ato administrativo violador. No caso do fomento, por suas particularidades, a indenização parece a única
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
346 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Exemplo: decreto do Poder Executivo federal prometeu diminuir o imposto


de importação de veículos estrangeiros. É medida que se pode considerar, sob certo
aspecto, como de fomento negativo.1132 Com base nisso, uma série de contribuintes
comprou carros importados, para serem surpreendidos com a revogação da medida
antes que os carros houvessem chegado ao Brasil. Tirante o debate tributário acerca de
qual é o momento da ocorrência do fato gerador da obrigação de pagar o imposto (se
no desembaraço alfandegário, como o STF entende,1133 ou no momento da celebração
do contrato de importação, como pretendem os contribuintes), fato é que se pode ler
tal situação à luz da teoria do fomento público e da violação à confiança legítima dos
particulares.1134 A União pode modificar as alíquotas do Imposto de Importação, dado
o caráter extrafiscal com que se reveste tal tributo, mas não o poderá fazer em cir-
cunstâncias violadoras da boa-fé dos contribuintes. Caberia, aqui, a responsabilização
civil da União, com a determinação de pagamento, além de danos morais, do valor do
acréscimo do tributo, a título de danos patrimoniais.
Em outras palavras: mesmo mais próximos dos atos discricionários do que dos atos
vinculados, os atos administrativos que servem para operar o fomento público podem perder
gradativamente essa característica conforme a) leis específicas assim o determinem, b) existam
cláusulas concessivas de direitos no contrato ou no edital, e/ou c) surjam, concretamente, condições
que permitam o uso de argumentos relacionados ao princípio da segurança jurídica (proteção da
confiança legítima, boa-fé objetiva, Teoria dos Atos Próprios etc.).
O particular pode não ter direito a novo período da subvenção, mas, se isso es-
tiver presente no acordo escrito, caso haja cumprido todos os requisitos, e se a ação de
fomento houver sido imotivadamente interrompida, terá direito a receber a quantia: o
Poder Público não pode, de modo aleatório e não geral, simplesmente deixar de repas-
sar os valores ao agente fomentado. Havendo prazo predeterminado, a Administração
Pública a ele se vincula.1135
Existindo indícios sólidos da concessão de benefício, ainda que ausente sua
formalização, pode-se pretender alguma responsabilização civil: fulano recebe carta,
enviada pela Secretaria de Cultura, comunicando a aprovação de seu projeto cultural
e convocando-o para a assinatura de documento que formalize a ajuda pública e, na
confiança, adquire insumos necessários à consecução de seu trabalho, apenas para ser
surpreendido com negativa do Poder Público. Parece-nos provavelmente exitosa a ten-
tativa de responsabilizar civilmente a Administração Fomentadora. Outra hipótese, não
de todo incomum no mundo do fomento, é a da alteração dos critérios de concessão da
ajuda no meio de processo seletivo/concessivo: essa postura é, naturalmente, inválida.1136

alternativa (CALMES. Du principe de protection de la confiance légitime en droit Allemand, communautaire et Français,
especialmente p. 457 et seq., item C - Indemisation.
1132
Há certa concessão teórica neste argumento, porque o propósito da redução do imposto de importação não é
exatamente o de despromover determinada atividade — no caso, a montagem de carros no país —, mas o de,
pelo incremento na concorrência trazido pelo acesso fácil aos carros importados, forçar a indústria nacional a
baixar seus preços e melhorar seu nível de qualidade.
1133
V., por exemplo, STF, RE nº 224.285-9.
1134
Analisando o problema a partir da regra da irretroatividade tributária, v. ÁVILA. Sistema constitucional tributário,
p. 149.
1135
Essa é hipótese ilustrativa, portanto, de completa inversão da regra da revogabilidade, o que se admite apenas
na presença de atos explícitos de vontade, seja da vontade legislativa ou da vontade das partes em um acordo.
1136
O STF decidiu, nos Mandados de Segurança nºs 27160, 27253 e 27165, confirmando posição do Conselho
Nacional de Justiça, que não é possível modificar os critérios seletivos de concurso público no curso de sua
realização. Embora concurso público não seja fomento público, as razões de fundo da decisão — “o edital é
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
347

Dissemos, quando tratávamos da natureza jurídica da relação de fomento, que


o particular possui direito subjetivo ao recebimento do benefício fomentado. Como
conciliar tal afirmação com a assertiva de que uma ação de fomento, como regra, pode
ser revogada?
Do seguinte modo: cumpridos os requisitos específicos daquela relação de fomento, o
agente fomentado possui direito subjetivo ao recebimento dos benefícios, desde que o fomento
público não haja sido terminado pela revogação motivada. Repita-se que, se a Administração
Pública fixou prazo, este deve ser respeitado.

3.5 Critérios para o fomento constitucionalmente adequado.


A legalidade e o fomento público
Chegamos à nossa proposta acerca dos critérios de formulação e de concessão do
fomento. Como o próprio nome diz, são critérios, isto é, maneiras de se orientar uma
ação. É claro que serão gerais. Quanto mais genérica a indicação do que se deve fazer,
menos precisa e, portanto, menos útil ela será; o desafio é traçar caminhos simultane-
amente consistentes e versáteis.
Optamos por dividir os critérios de concessão em formais e materiais. Os critérios
formais dizem respeito à maneira como se vai decidir. Os critérios materiais são rela-
cionados ao conteúdo da decisão. Dois dos critérios materiais — o critério da eficiência
do gasto e o critério da razão pública — estão diretamente ligados aos “princípios”
estudados na primeira parte deste livro, a saber, o “princípio” do pragmatismo e a
ideia de razão pública.
Além dos critérios de concessão, ainda comentaremos dois critérios relativos à
formulação de políticas de fomento.
Eis os critérios formais da concessão: (i) transparência e procedimentalização; (ii)
competitividade; (iii) objetividade.
Quanto aos critérios materiais de concessão do fomento público, são eles: a) a não
lucratividade, b) a eficiência do gasto público e c) a razão pública.
Os critérios de formulação do fomento são dois: (i) a submissão ao debate público
e (ii) a compatibilidade entre os requisitos de acesso ao fomento e o direito fundamental
que se pretende fomentar.1137
A título de completude, não se pode deixar de comentar o maior de todos os requi-
sitos — em rigor, nem é critério, já que não orienta qualquer decisão, seja de concessão

a lei do concurso” — também são aplicáveis ao nosso tema. A única possibilidade de revisão dos critérios de
concessão durante o período de seleção dar-se-ia mediante a devolução do prazo de inscrição, e, ainda assim, a
Administração deveria assumir a reparação de eventuais gastos que os participantes houvessem realizado, em
função do certame, até a data da alteração.
1137
Tais critérios refletem escolha pessoal, porém justificada, à luz do contexto teórico aqui elaborado. Outros
autores farão outras escolhas. Assim, Ariño Ortiz sustenta, como “princípios” do fomento (o que se pode ter
como critérios, na nossa terminologia), a legalidade, a livre concorrência e a eficiência do gasto público (Principios
de derecho público económico, p. 349 et seq.) Já Ignácio de la Riva defende, por exemplo, como “princípios jurídicos
reitores da atividade subvencional” (idem), entre os materiais, o princípio da subsidiariedade, o princípio da
igualdade, o princípio da proporcionalidade e o princípio da eficácia; como princípios formais, o princípio da
legalidade e da reserva de lei, o princípio da transparência e o princípio do controle (RIVA. Ayudas públicas:
incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 193 et seq). Recentemente, na doutrina
brasileira, Maria Hermínia Pacheco e Silva Moccia, a partir de inspiração tirada do presente livro, apresentou os
seguintes critérios: igualdade, motivação e transparência (parâmetros formais); eficiência e suas implicações e
razoabilidade (parâmetros materiais). V. MOCCIA, Maria Herminia Pacheco e Silva. Parâmetros para a utilização
do fomento econômico: empréstimos pelo BNDES em condições favoráveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
348 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ou de formulação de política de fomento, mas é o próprio pano de fundo a partir do


qual elas são executadas: a exigência de que o fomento faça-se com base no princípio
da legalidade. Já se defendeu que, porque a atividade de fomento público é benéfica,
ela não se regeria pelo princípio da reserva de lei.1138 Atualmente, ninguém imaginaria
atividade pública alheia à legalidade.1139 Não defendemos, aqui, a exigência de que todo
e qualquer ato administrativo que concretize ação de fomento público tenha de estar
rigorosamente predeterminado numa lei em sentido formal e material. Tal concepção
de legalidade é pragmaticamente impossível.1140
O que se exige é autorização legislativa genérica para a atuação do fomento
público. Ainda assim, há limites: seus termos não podem ser nem tão gerais que não
permitam o controle, ou que se tornem, na prática, cheque em branco; nem tão específicos
que impossibilitem a atuação administrativa (pois tudo seria “ilegal”). Há requisitos
para essa lei. Sempre, na medida da generalidade possível, a indicação de eventuais
beneficiários; os requisitos para a obtenção das ajudas; os benefícios e deveres impostos
ao agente fomentado.1141
Dessa forma, não cumpre o requisito da legalidade um ato de fomento cujo
fundamento legal seja, única e exclusivamente, uma autorização na Lei Orçamentária
(ainda que isso seja essencial). O fomento não corre à margem da lei, mas dentro de
uma normatividade que, de modo seguro, permita suficiente plasticidade para cada ato
concreto. Tudo o que se disse a respeito dos atos dispensadores de ajuda vale também
para os regulamentos sobre fomento: devem possuir base legal que indique, na medida
do possível, beneficiários, benefícios e critérios de seleção. A partir daí, a liberdade de
criação é ampla.

3.5.1 Critérios formais de concessão do fomento: transparência/


procedimentalização, competitividade e objetividade
Imaginemos a seguinte situação: desportista solicita ingresso em programa de
fomento de sua modalidade. Dias depois, recebe telefonema: pedido negado. Por qual
motivo? A funcionária não tem como responder, já que os pedidos, por medida de
economia e de “efetividade do processo”, são decididos de modo oral pelo responsável
do setor, que não guarda registro, também por economia — agora, de espaço.

1138
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 349. A favor de que os atos ampliativos de direitos estejam
fora do âmbito do princípio da reserva de lei, ver, por todos (GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de
derecho administrativo II, p. 577): “Por outro lado, os atos ampliativos não necessitam, em relação ao destinatário,
de uma cobertura legal superior, sem prejuízo de que, com frequência, as regras de garantia do gasto público,
ou de igualdade ante a Lei, ou de outro caráter, possam impô-la para condicionar estritamente sua emissão”.
1139
“Pois bem, em que pese tratar-se de medidas consistentes em estímulos positivos de caráter voluntário, em
qualquer caso estas medidas devem ter cobertura legal prévia que habilite expressamente a Administração,
dado incidirem de forma clara nos direitos de liberdade de empresa e de igualdade, do que decorre sua
submissão ao princípio da legalidade” (GIMENO FELIÚ. Legalidad, transparencia, control y discrecionalidad
en las medidas de fomento del desarrollo económico (ayudas y subvenciones). Revista de Administración Pública,
p. 167).
1140
EISENMANN. O direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista de Direito Administrativo, p. 54-55.
1141
RIVA. Ayudas públicas: incidencia de la intervención estatal en el funcionamiento del mercado, p. 223.
Os atos concretos de dispensação de ajudas, como mencionamos, estão, via de regra, mais próximos da
discricionariedade do que da vinculação; a existência de leis com esse conteúdo mínimo é, por assim dizer, seu
registro mínimo de vinculação, que pode aumentar ou diminuir conforme as circunstâncias.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
349

Muito embora tal realidade possa corresponder aos sonhos de muitos adminis-
tradores, bem ou mal intencionados — os bem intencionados acreditarão que desbu-
rocratização significa total ausência de formalismo, os mal intencionados preferem não
deixar rastro —, a verdade é que se faz necessária a existência de formalidades prévias e
concomitantes à concessão do fomento. Formalidade, desnecessário dizer, não é forma-
lismo excessivo, “gaiola de ferro” da burocracia, amontoado de papel. É a medida entre
a segurança, tanto do administrado quanto da Administração, e a eficiência no serviço.
Tais formalidades, ainda, deverão ser expostas à supervisão e à crítica do olhar público.
Daí nosso primeiro critério formal: (i) transparência e procedimentalização do fomento.
Nem todos os procedimentos concessivos de ajudas públicas serão iguais, mas
todos deverão estar estabelecidos à data da seleção. Deverão ser públicos, não apenas
em sentido burocrático-formal, mas também em sentido material: não deve bastar a
publicação, em órgão oficial, de edital de seleção de propostas de apoio à música; deve
haver divulgação em revistas, jornais, sites, mídias sociais e ambientes frequentados
por possíveis interessados. Transparência, contudo, não é sinônimo de invasão de
privacidade. Se, por exemplo, constam dados empresariais sigilosos numa solicitação
de fomento (a empresa abre seu balanço ou indica planos empresariais em algum do-
cumento encartado aos autos), a publicidade daqueles autos restará limitada, mesmo
que tão somente quanto ao conteúdo sigiloso.1142
A existência de procedimento concessivo prévio, e o acesso e o conhecimento,
por todos os interessados, de todas as suas fases é, numa síntese, o conteúdo mínimo
do primeiro critério formal do fomento público. Este critério, a par de possibilitar a
incidência de controles sobre o ato concreto do benefício, sendo, assim, derivação do
princípio democrático,1143 é tido, por Ariño Ortiz, como uma das únicas formas de se
submeter o fomento ao mundo do Direito: “Por isso, já que é impossível o controle sobre
as questões de fundo, a submissão ao Direito da atividade de fomento deve realizar-se
por intermédio do procedimento e do órgão gestor”.1144
Se não concordamos integralmente com o autor — em nossa opinião, é possível,
ainda que bastante complicado, o controle sobre questões materiais —, a existência de
procedimento transparente é critério da maior importância. Apenas por ele, muitas das
arbitrariedades que compõem a história do fomento no Brasil jamais teriam ocorrido.
Além de outorgado por intermédio de um procedimento administrativo transpa-
rente, o fomento deve promover, à medida que as circunstâncias daquele objeto fomen-
tado assim o permitam, a (ii) competitividade. É claro que uma ação de fomento não é uma
licitação; a competitividade é valor-instrumental, existente na medida em que permita a
seleção de um particular apto a desempenhar melhor a atividade. Todavia, ao contrário

1142
O STF, no Mandado de Segurança nº 21.729/DF, entendeu que o sigilo bancário não se aplicava, quando o
requisitante das informações era o Ministério Público Federal, a operações de financiamento creditício realizadas
pelo Banco do Brasil na condição de “executor da política creditícia e financeira do Governo Federal”. Logo, há
exceções quanto à abrangência subjetiva desse sigilo: o MPF pode requisitar dados e documentos relacionados
a seleções e instrumentalizações formais de fomento público.
1143
“Um novo tratamento para o tema [da discricionariedade] acarretaria a atenção, não tanto para o ato discricionário
como resultado do exercício de poder, mas para o processo formativo da decisão ou para o conhecimento dos
mecanismos decisionais. Daí resultaria a preocupação com regras organizacionais e instrumentos pelos quais
se realizaria o conhecimento e consideração dos diversos interesses; e, ainda, a preocupação com os meios de
assegurar informação ao público, o acesso da população às decisões da Administração. [...] A democracia não se
exaure na eleição, na existência de vários partidos políticos e no funcionamento do legislativo; deve transpor o
limiar da Administração e aí vigorar” (MEDAUAR. O direito administrativo em evolução, p. 197).
1144
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 373.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
350 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

do que usualmente ocorre numa licitação, aqui o particular pode, justamente, precisar
da ajuda pública de forma a adquirir melhores condições de ser competitivo (junto ao
mercado em geral, não em relação ao processo seletivo instituído pela Administração).
Ou seja: o interessado pode precisar da ajuda para ser mais competitivo e, portanto,
não se lhe poderia exigir uma máxima competitividade antes disso.
Assim, o desenho da seleção pública deve ser tal que, de modo competitivo,
selecione aquele agente que tenha condições de melhor desempenhar a atividade a partir
do fomento público, ainda que, não necessariamente, ele já seja o melhor dentro do setor.
Trata-se de selecionar o agente privado que comprove, da melhor forma possível dentre
todos os outros agentes privados colocados em igualdade formal e material de condi-
ções, que vai realizar, dentro dos parâmetros esperados pela Administração, a atividade
fomentada. Não se trata, no entanto, de uma “engenharia de obras prontas”. É preciso
saber dosar a esperada eficiência na execução do objeto fomentado com a necessidade
do fomento. Uma boa estratégia para isso pode ser, por exemplo, dividir os processos
de seleção por faixas de faturamento das possíveis empresas interessadas, de forma a
que apenas entidades assemelhadas concorram entre si.
É claro que nem sempre é possível o disparo de um processo competitivo. Nesses
casos, a regra é o livre acesso ou, se isso também não for possível (o que provavel-
mente ocorrerá, pois os recursos públicos não são infinitos, e o número de potenciais
interessados em ajudas públicas não costuma ser pequeno), pode-se adotar o critério
cronológico do ingresso dos requerimentos junto à repartição competente. É critério
simples, mas, na falta de outro melhor, e desde que não haja fraudes, dos mais eficazes
na garantia da isonomia.
Outro critério formal importante é a (iii) objetividade. A competitividade deve-se
basear em critérios objetivos. Construções como “a critério da Administração Pública”,
ou que se refiram a padrões ou pautas subjetivas de julgamento, devem ser evitadas.
Caso isso não seja possível — nem todas as opções administrativas envolvidas no
exercício do fomento público conseguiriam ser tão objetivas —, que, ao menos, o ônus
da decisão seja delegado a um painel de julgadores. Um grupo de juízes, quando bem
escolhidos, inclusive a partir de critérios como a diversidade de posicionamentos polí-
ticos, culturais e ideológicos, pode produzir decisões com acréscimo de racionalidade
em relação a juízos singulares.1145

3.5.2 Critérios materiais de concessão do fomento: não lucratividade,


eficiência pragmática do gasto, razão pública
Quanto aos critérios materiais para a concessão do fomento público, o primeiro
é imediato: a) a não lucratividade da ajuda. O art. 19, item 3, da Lei Geral de Subvenções
da Espanha, resume a ideia: “O aporte das subvenções, em nenhum caso, poderá ser

1145
É importante que os painéis sejam compostos por julgadores com bakcgrounds diversos. Painéis compostos de
forma homogênea frequentemente significam intensificação de desvios cognitivos, o que redunda em piores
decisões. Acerca da importância da heterogeneidade na composição de grupos julgadores, v. Cass Sunstein
(Why Societies Need Dissent, especialmente, p. 111-144, cap. 7 - The Law of Group Polarization). Há ainda a
questão de que órgãos colegiados costumam reduzir a possibilidade de corrupção, se não por gerarem maior
chance de descoberta da fraude, então porque aumentam os custos do suborno (POSNER. Law and Economics
in Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris, p. 78.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
351

de tal quantia que, isolada ou conjuntamente com outras subvenções, ajudas, ingressos
ou recursos públicos, supere o custo da atividade subvencionada”.
O fomento não deve servir, por si mesmo, como fonte de enriquecimento do
agente fomentado. Significa dizer que o montante deve ser quantificado na exata pro-
porção da demanda do negócio ou da atividade. Nem mais, nem menos. Não há nada
de errado em que o empresário persiga e obtenha lucro com a atividade (pelo contrário:
dependendo do caráter da atividade, isso até deve ser buscado), mas a fonte de lucro não
deve advir do fomento. Esse critério material é a fonte imediata da obrigação de devolu-
ção de quantias sobrantes à execução do projeto; do contrário, poder-se-ia pensar, até
mesmo, num enriquecimento indevido do particular, por falta de causa legítima.1146
Diretamente conectado com a discussão sobre o pragmatismo no Direito é o
próximo critério material: a análise da b) eficiência do gasto público em sua concessão.
Pode-se dizer que analisar a eficiência do gasto é fazer incidir um filtro de praticidade
junto à seleção das características subjetivas do particular a ser fomentado. Não se
pode gastar dinheiro com quem não possui condição de dar algum retorno, social ou
econômico, à sociedade. Não estamos falando de lucro, mas da realização de algo tão
diáfano e indefinível quanto sentido no dia a dia: o bem comum.
Aqui, o que vale é algo próximo à adequação, assim como tratado nas explica-
ções da proporcionalidade: é uma relação lógica entre a finalidade proposta e o meio
a ser empregado. Só que não lidamos com relação de capacidade lógica — “ser capaz
de fazer” —, mas, além disso, acrescente-se o “ser capaz de bem fazer” ou, em alguns
casos, o “ser o melhor a ser capaz de fazer”.1147 Busca-se afastar, com a seleção pública,
os lunáticos, os nefelibatas, os cronicamente incapazes, aqueles que só buscam drenar
o Erário em troca de adulação de seus egos, sem produzir nada de útil ou de relevante.
Decerto que esse filtro tem de ser realista o suficiente para ser útil, e largo o bastante
para que não exclua quem mais precisa do fomento (v. debate à frente).
Algumas indicações: as receitas que constituem o orçamento tanto do Comitê
Olímpico Brasileiro (COB) quanto do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), as quais
decorrem de fundos desportivos, receitas de concursos de prognósticos, doações e
patrocínios, prêmios de loterias não reclamados (art. 65 da Lei Federal nº 9.615/98),
devem ser, por questão de proximidade com o objeto fomentado, descentralizadas
para as diversas entidades esportivas nacionais filiadas aos comitês. O COB e o CPB, ao
analisarem o projeto de cada entidade — que é a instrumentalização prévia ao repasse

1146
V. art. 884 do Código Civil. Desenvolver em, Maria Cândida do Amaral Kroetz (Enriquecimento sem causa
no direito civil brasileiro contemporâneo e recomposição patrimonial). Ainda, Cledi de Fátima Manica Moscon (O
enriquecimento sem causa e o novo Código Civil brasileiro). A seguir Luís Manuel Menezes Leitão, ter-se-ia, aqui,
enriquecimento sem causa por prestação: “O enriquecimento por prestação respeita as situações em que alguém
efetua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer, por
parte desse, a recepção dessa prestação. [...] Verifica-se, nesta sede, uma situação de enriquecimento sem
causa se ocorre a ausência de causa jurídica para a recepção da prestação que foi realizada. A ausência de causa
jurídica deve ser definida em sentido subjetivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação. Haverá, assim, lugar
à restituição da prestação, quando for realizada com vista à obtenção de determinado fim, e tal fim não vier a ser obtido”
(MENEZES LEITÃO. O enriquecimento sem causa no novo Código Civil brasileiro. Revista do Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal, p. 28, grifos nossos).
1147
A análise acerca de qual deve ser o meio logicamente mais adequado para a realização da finalidade pretendida
pela medida estatal é, precisamente, o que a sub-regra da adequação não significa: seu sentido, a julgar pela
lição de Virgílio Afonso da Silva, é o de censurar medidas que são logicamente inadequadas para a obtenção
dos fins postulados, ou, pelo menos, que sejam incapazes de fomentá-los. Não se trata de juízo acerca da
eficiência da medida. “Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização
não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido”. A menção à regra da adequação foi,
em nosso texto, tão somente aproximativa (SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, p. 14-15).
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
352 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

dos recursos, formalizado, após a aprovação daquele, por meio de um convênio —,


verificam, entre outros itens, o rendimento dos atletas, o desempenho das entidades, a
viabilidade da proposta. Típico exercício de fomento público (as entidades desportivas
são entidades de direito privado), cuja concessão se baseia, também e principalmente,
em aspectos práticos voltados à maximização da “utilidade” do dinheiro empregado.
A análise da situação econômica da empresa pleiteadora de crédito, o pedido para
que o candidato demonstre a execução de obras ou de projetos anteriores, a análise de
currículo (desde que pautada em critérios objetivos), a indicação de mínima expertise
ou penetração no mercado, tudo isso são formas de se fazer valer o critério da eficiên-
cia do gasto, concretização, aqui, da ideia de um Direito adequadamente pragmático.
Há, no entanto, outra faceta da eficiência do gasto público, que não diz respeito
à concessão, mas à formulação do fomento, e, em especial, às suas finalidades e aos
seus meios: objetivos fúteis não devem ser fomentados. Tanto as finalidades a serem
ajudadas quando os meios a serem empregados devem se justificar por análise, social e/
ou econômica, da eficiência da atuação do Estado. Não se vai fomentar setor econômico
maduro ou próximo a sê-lo. Não se deve fomentar atividade econômica reconhecida-
mente fracassada. Ariño Ortiz resume o ponto:
As medidas de fomento de caráter econômico traduzem-se em gasto público e, como tais,
submetem-se não apenas ao princípio da igualdade, mas, também, ao princípio de economia
e eficiência do gasto. Desse ponto de vista, não só restam proibidas ajudas públicas para
fins supérfluos, por violação ao princípio da austeridade na gestão do gasto público, senão
que, da mesma forma, exige-se a análise econômica rigorosa dos efeitos sobre a eficiência
(econômica e social) das diferentes medidas de fomento aplicáveis a uma finalidade de
reconhecida utilidade pública.1148

Em suma: a incidência específica do pragmatismo, no fomento público, faz-se por intermé-


dio do critério da eficiência do gasto público, que impõe, na concessão das ajudas, a inclusão
de mecanismos práticos indicadores da capacidade de o agente bem realizar a atividade,
e, na formulação, a exclusão de finalidades e/ou meios supérfluos ou ineficientes.
É hora de fazer incidir nosso segundo pressuposto teórico: c) a ideia de razão
pública. O critério da razão pública é, aqui, material; incide sobre o conteúdo da decisão
de fomentar. Só que, ao mesmo tempo que é critério material, seus limites são extensos,
o que o impede de se tornar instrumento antidemocrático que inviabilize a atuação e
as escolhas possíveis da Administração Pública.
A razão pública faz-se sentir, junto à seara das ajudas públicas, impedindo que
sejam fomentadas ações e atitudes desarrazoadas ou grosseiramente polêmicas. O teste
é simples: caso a ideia angarie opositores, será que estes, com a efetivação do fomento,
restarão radicalmente excluídos, quiçá lançados no terreno de total inaceitação ideo-
lógica? A ação, obra ou atividade fomentada é tal que pessoas razoáveis, agindo com
suficiente tempo e reflexão, seriam absolutamente incapazes de aceitar? O teste da razão
pública quer desativar extremos de intolerância, de negação da possibilidade de diálogo.
Como discorremos ao longo do capítulo 2 da primeira parte, razão pública não
significa emasculamento de polêmicas — é a constituição de campo neutro e aberto de
debates, de onde possam emergir argumentos em relação aos quais a parte “perdedora”
seja capaz de, se não a eles aderir, aceitá-los como razoáveis e dignos de consideração
e de respeito.

1148
ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 354.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
353

Os exemplos da incidência desse critério são polêmicos, mas auxiliarão no enten-


dimento. A eles. Uma obra que pretenda discutir a comercialização do sentimento, de
culpa e de horror, trazidos pelo Holocausto — como A indústria do holocausto, de Norman
Finkerstein1149 — é produto cultural cercado de críticas,1150 mas defende tese que seus
opositores, ainda que bem a contragosto, poderiam aceitar. Já obra que negue a existência
do holocausto, com base em suposições e pseudofatos, não merece ser considerada.1151 A
primeira produção pode ser objeto de fomento (ainda que seja recomendável, também
em homenagem à razão pública, destinação de verba ao fomento de obra devotada a
provar tese contrária); a segunda, não, porque não ultrapassa o teste. Documentário
que analise, cientificamente, os efeitos dos esteroides anabolizantes no corpo humano
e nas competições esportivas, para, ao final, chegar à conclusão de que há exagero na
apresentação do tema pela mídia, é obra que sobrevive ao teste da razão pública;1152
documentário que ensine sua fabricação e aplicação para o público em geral, não.
O mesmo vale para o investimento em políticas públicas de distribuição de serin-
gas para usuários de drogas (que podem envolver o fomento econômico de empresas
produtoras desses materiais). Em que pese a polêmica envolvendo ações de redução de
danos das drogas, observadores não ideologicamente carregados, adotando posições
não extremas, podem vir a concordar com tal uso de recursos, sob condições estritas,
condições decerto importantes para constituir a razoabilidade da medida, descaracte-
rizando sua principal crítica, que é a de que se estaria diante de proselitismo público
da drogadição.1153
Interessante é a possibilidade de fomento público a obras pornográficas.1154 Se
a obra for pornográfica, não nos parece possível; além do aspecto de desnecessária

1149
FINKELSTEIN. A indústria do holocausto.
1150
Entre os muitos críticos de Finkelstein, contam-se Alan Dershowitz (The case for Israel), Peter Novick (The
Holocaust in American Life) e Omer Bartov (Hitler’s Army: Soldiers, Nazis and War in the Third Reich).
1151
Como os da Revisão Editora, do editor Siegfried Ellwanger Castan, cuja ilegalidade/inconstitucionalidade foi
confirmada a partir de decisão do STF em 2003 (Habeas Corpus nº 82.424/RS). Sobre o caso, v. MILMAN (Org.).
Ensaios sobre o anti-semitismo contemporâneo: dos mitos e da crítica aos tribunais. Ainda, cf. JESUS. Anti-semitismo
e nacionalismo, negacionismo e memória: revisão editora e as estratégias da intolerância (1987-2003).
1152
O exemplo vem do documentário norte-americano Bigger Stronger Faster, que, ao recriminar o estilo de vida
que subjaz ao consumo de esteroides anabolizantes na cultura dos Estados Unidos (“seja o melhor a qualquer
preço”) e suas implicações morais em relação ao fair play nos esportes competitivos, pretende desmitificar
alguns dos riscos de saúde envolvidos no consumo dessas substâncias (BELL. Bigger Stronger Faster).
1153
REGHELIN. Redução de danos: prevenção ou estímulo ao uso indevido de drogas injetáveis. O debate
contemporâneo a respeito da descriminalização da maconha também nos soa como possível campo de teste do
argumento. Seria possível ajuda pública para uma Marcha da Maconha? Deixo a pergunta para o leitor.
1154
O debate acerca da possibilidade de fomento público a obras pornográficas revela apenas uma das facetas da
discussão sobre se o Estado deve permitir a pornografia. De um lado, conservadores alegam que a pornografia
deve ser proibida, por possuir conteúdo que, em sua visão, é moralmente corrompido. A defesa liberal clássica
afirma que discursos envolvendo indivíduos adultos, mentalmente sãos, em atos consensuais, a despeito de
seu baixo valor artístico, ou mesmo de seu mau gosto, não podem ser censurados apenas com base na opinião
de outros (sobre esse valor ou sobre sua eventual perniciosidade à sociedade). Apenas atos que efetivamente
causem mal podem ser restringidos. A visão feminista, aproximando-se, quanto às conclusões práticas, da
opinião conservadora, acredita que a pornografia deve ser proibida, mas porque agride e reduz a mulher,
objetificando-a e naturalizando comportamentos de subjugação e de domínio. Alguns liberais mais recentes,
concordando com as feministas, entendem que a pornografia, se não causa prejuízos diretos, é atentatória às
ideias de liberdade e autonomia, devendo ser proibida. Para a visão feminista, v. CHESTER; DICKEY (Ed.).
Feminism and Censorship. A posição conservadora sobressai em BAIRD; ROSENBAUM (Ed.). Pornography:
Private Right or Public Menace?. A visão liberal “renovada” aparece em Caroline West (The free Speech
Argument Against Pornography. Canadian Journal of Philosophy). V., ainda, DWORKIN. Temos um direito
à pornografia?. In: DWORKIN. Uma questão de princípio, p. 497-554. O debate a respeito do tema toca com
questão maior, a respeito da legalização da prostituição. Quanto a este último assunto, referência no Brasil é a
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
354 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

polêmica, há o fato de que não há qualquer interesse público no produzir excitação


sexual entre a plateia (que é o propósito de filme ou de livro pornô). Há de se considerar,
contudo, que certas manifestações artísticas vanguardistas contêm nudez ou simulação
sexual, o que, para alguns, associa-se à pornografia.1155 É importante destacar que, de
maneira alguma, o critério da razão pública é a nova cara do “politicamente correto”.
Estimular a discussão pode ser considerado, dentro de limites de tolerância, e presentes
certos requisitos de qualificação e de controle do ambiente dialogal, também a realização
de um interesse público, a ser perseguido por intermédio dos particulares fomentados.
Se a pornografia pura e simples não sobrevive ao teste da razão pública,1156 nada impede
que temas “polêmicos” — assim como entendidos, é claro, a partir da ótica de uma
moralidade de senso comum — venham a ser fomentados.1157
Ainda dentro do critério da razão pública, e em conjunção com o debate sobre
a isonomia frente ao fomento público, importa trazer luz a disposições, presentes em
editais, que, ao priorizar certas preferências, podem se mostrar democraticamente
injustificáveis. Por mais que a razão pública seja critério material, sua abrangência
é limitada: ela veda a escolha de agentes fomentados (e de planos de fomento) para
os quais não se possam formular argumentos universalizáveis, mas não indica o que
deve ser objeto do fomento público, ou que medidas devem ser tomadas. Tudo isso fica
a cargo da Administração. Ao concretizar, para cada ação, os critérios concessivos, a
Administração Pública possui liberdade de escolha, embora deva tomar cuidado com a
indicação de requisitos excessivamente materiais. São critérios suspeitos, a se falar com

instigante dissertação de mestrado de Marcio Senra (FARIA. A prostituição no Brasil no século XXI: razões para
sua regulamentação).
1155
Numa lista não exaustiva, e para ficarmos apenas nos filmes, poderíamos citar, nessa categoria, O Último Tango
em Paris, de Bernardo Bertolucci; Salò ou Os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini; Calígula, de Tinto Brass;
Brown Bunny, de Vincent Gallo; 9 Songs, de Michael Winterbottom.
1156
Caso interessante, em cuja resolução citou-se, aliás, o presente livro, foi a discussão sobre o fomento público,
autorizado pela ANCINE, à série Mulher Arte, exibida pela HBO. A ANCINE fomentou a primeira temporada
por meio de autorização para compensação tributária. Na segunda temporada, a agência negou o pedido, ao
fundamento de que a obra seria pornográfica. O produtor negou, considerando-a apenas “erótica”. A série, em
rigor, caminha numa zona cinzenta entre a pornografia soft e um erotismo exotique de exportação. Um artista
plástico desenha mulheres despidas ou semi-despidas, enquanto lhes faz perguntas de índole sexual (“como é
que você depila? você tira tudo?”). Apoiamos a decisão da Diretoria Colegiada da ANCINE, eis que o propósito
da série acaba sendo o de destacar a mulher por sua atratividade sexual, mostrando-se secundária a narrativa
turístico-cultural. Mas o caso é, de fato, controverso.
1157
Sem fazer qualquer juízo de valor, e tão somente apresentando outra questão interessante, que se reconduz não
apenas ao debate acerca do fomento público (embora, nesse caso, de modo específico), mas também, de modo
geral, à discussão sobre os limites da liberdade de expressão: em 1989, o fotógrafo americano Andres Serrano
recebeu prêmio público, bancado pelo Centro Nacional de Apoio às Artes dos EUA (“National Endowement
of Arts” – NEA), com obra que consistia numa fotografia de crucifixo mergulhado num pote de urina (“Piss
Christ”). O prêmio despertou reação de setores religiosos e políticos. Alguns alegaram que o pagamento do
prêmio violaria a separação entre Estado e Igreja. Como parte da reação à controvérsia, o Congresso dos EUA
aprovou lei, em 1990, que obrigava o NEA a levar em consideração, em seus apoios, “standards gerais de
decência e respeito à diversidade de crenças e valores do público americano”. Quatro artistas performáticos,
uma delas Karen Finley, famosa por cobrir seu corpo nu com chocolate durante apresentações, questionaram
a constitucionalidade da lei junto à Suprema Corte, alegando, para tanto, violação à Primeira Emenda, porque
a norma suprimiria a liberdade de expressão artística e serviria como justificativa para a discriminação em
desfavor de pessoas com ideias heterodoxas. Depois de uma vitória na 9ª Corte de Apelos, na qual se anotou que a
frase “decência e respeito à diversidade de crenças e valores do público americano” seria inconstitucionalmente
vaga e restringiria o ponto de vista artístico, a Suprema Corte reverteu o julgamento anterior e declarou a
constitucionalidade da norma. A propósito da polêmica artística, v. CASEY. Sacrifice, Piss Christ and Liberal
Excess. Arts & Opinion. Notícia sobre a decisão judicial — Finley versus National Endowement of Arts (1998) —
pode ser encontrada no sítio do Washington Post (BISKUPIK. ‘Decency’ can be Weighed in Arts’ Agency
Funding. 26 June 1998).
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
355

a terminologia da doutrina e da jurisprudência constitucional norte-americanas — à


luz, pelo menos, da razão pública.
Ao exemplo. Em princípio, não há nada de errado com a escolha de regiões
geográficas a serem fomentadas (o norte, o nordeste), mas soam preocupantes indica-
ções de conteúdo como “arte autêntica”. Não é que tal conceito inexista; é que, salvo
exceções, sua densificação é complexa, e não faltarão excluídos que jamais aceitarão
as razões de não haverem obtido o benefício. Esse problema é verdadeiro para todo
critério que se resolva num conceito indeterminado, porém, aqui, os argumentos em
defesa das inclusões, exclusões e premiações — que arte é “mais genuína”? que mídia
é “livre”? — podem não ultrapassar o teste da razão pública, na medida em que se
mostrarão incapazes de produzir consensos minimamente estáveis.
O ideal é que os recortes temáticos sejam pautados por requisitos, na medida do
possível, objetivos ou objetiváveis, e, quando impossível, valem as recomendações de
sempre (juízos colegiados, apresentação de razões escritas e/ou documentais etc.).1158
Oportuno lembrar que existem critérios materiais de índole mais consensual, os quais
poderão ser adotados sem problemas (o conceito de “arte renascentista italiana do séc.
XV” produz um consenso que o de “arte popular contemporânea de alta qualidade”
jamais vai conseguir).
Conclusão: a razão pública incide no fomento ao excluir, da seara de possíveis
agentes fomentados, ou, mesmo, dos critérios de cada fomento específico, aqueles para
os quais não se possam dar razões geradoras de consensos minimamente universali-
záveis e estáveis.

3.5.3 Critérios de formulação do fomento


Por fim, estudemos duas propostas de critérios para orientar a formulação do
fomento.
Deve-se, sempre que possível, até para aumentar a adesão dos administrados
à proposta, (i) submeter o plano de fomento ao debate público. A ideia é fazer com que os
administrados tenham conhecimento prévio e possam debater seus detalhes antes que
eles venham a ser colocados em prática.
Faz-se mister ponderar, contudo, que nem sempre é útil ou interessante, pelo
menos sob o ponto de vista da Administração, investir tempo e dinheiro em debates,
audiências e consultas públicas: como, no fomento, não há nada como uma obrigação
legal de submissão a tais procedimentos (este é o caso dos atos normativos produzidos
por agências reguladoras), trata-se, então, de dever jurídico em sentido fraco.
Como quase tudo na vida, também a boa ideia do diálogo na Administração,
concretizada por meio de debates, presta-se a desvios. Não é incomum que, por detrás
da retórica, escondam-se grupos de pressão interessados na inação, no tumulto ou na
demora do Poder Público. Vai depender do bom senso, e, em alguns casos, do uso de
técnicas de controle de pauta. Para planos de fomento mais ambiciosos, recomenda-se
que as partes potencialmente interessadas manifestem-se — há sempre alguma compres-
são de liberdades mesmo em ações “favoráveis” como o fomento (o agente fomentado
adquire capacidade competitiva diante do mercado etc.). Ajudas mais singelas, ou cujo

1158
O critério da razão pública é próximo ao da objetividade, mas se foca no aspecto possibilidade de produção de
consenso estável a partir da escolha realizada, enquanto este se centra na possibilidade da realização de escolha
não subjetiva.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
356 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

espectro de potenciais afetados negativamente seja mais remoto, provavelmente não


vão requerer tanto debate.
O segundo critério para a formulação das ajudas públicas é o dever de se asse-
gurar (ii) a compatibilidade entre os requisitos de acesso ao fomento e o direito fundamental
que se pretende fomentar. Por vezes, considerando os riscos de exercício mal planejado
de fomento, a Administração restringe demasiadamente o acesso às ajudas. Trata-se
do outro lado do critério concessivo da eficiência do gasto público: por não pretender
gastar em vão, o Poder Público restringe em excesso a entrada, até o ponto em que a
ajuda torna-se inútil ou iníqua. Inútil, porque já ninguém, ou quase ninguém, consegue
obtê-la. Iníqua, porque quem consegue pode ter de, em contrapartida, sacrificar bens
ou direitos que lhes são caros.1159
Os requisitos de acesso ao fomento devem ser tão somente aqueles que dizem
respeito, de modo direto, à confiável consecução do objeto fomentado. Exigências me-
ramente burocráticas, ou restritivas em demasia, não são aceitáveis. Dizendo de modo
singelo: se não for para ajudar quem precisa, para que ajudar? Nem todos os possíveis
interessados no fomento conseguirão apresentar extenso currículo, obras prévias,
capacidade de crédito. Exigir “retornos” e repasses remuneratórios ao Poder Público
também pode desnaturar o fomento, que não é aplicação de risco do Estado, mas meio
de estímulo à iniciativa privada.
Assim, no fomento cultural, exigir mais do que um histórico consistente, mesmo
que “de iniciante”, pode ser o caminho para restringir as ajudas a figuras já estabele-
cidas. No fomento creditício, cobrar garantias para além do que recomendariam as
boas práticas bancárias reduzirá o espectro de beneficiários; limitar a concessão de
subvenções a empresas ou atividades consolidadas significará transferir recursos, do
contribuinte, para quem deles não necessita tanto. O Estado não precisa lucrar com
a atividade fomentada; na verdade, tudo de que ele precisa é de que a atividade se
desenvolva a contento, daí por que não se-lhe vai exigir uma cautela de quem espera
lucrar com o investimento, mas sim a de quem pretende que a atividade se desenvolva
de modo consistente. O mundo das ajudas públicas não é o terreno do conservadorismo, mas
o da ousadia responsável.
Nessa delicada equação, em que, de um lado, entra a necessidade de o Poder
Público não empregar bens ou valores em projetos ou iniciativas fracassadas, e, do
outro lado, figura o dever de auxiliar iniciativas privadas de interesse público, reside
o problema. O fomento não pode servir, graças a requisitos ou condicionantes, como
instrumento de despromoção.1160 Como sintetizou Fernández Farrerez, ao comentar
uma série de decisões do Tribunal Supremo espanhol, mas em lição aplicável ao caso
brasileiro:
Em suma, o Tribunal Supremo ratifica a tese segundo a qual, nessas ajudas conectadas ao
exercício de direitos fundamentais, as condições e requisitos que se estabeleçam para vir a
recebê-las não devem pressupor nem determinar maiores exigências que a de seu real destino
à atividade para a qual se outorgam, sem incorporar condicionamentos que restrinjam ou

1159
“[...] a outorga de subvenções não pode se configurar como um meio ou mecanismo tendente a condicionar —
restringindo-o de maneira indevida — o exercício dos direitos fundamentais, e isso por intermédio da imposição
de exigências jurídicas que incidem diretamente com o conteúdo essencial de tais direitos” (FERNÁNDEZ
FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su régimen jurídico en el derecho español. Revista de Administración
Pública, p. 73).
1160
Exceto, é claro, o fomento negativo.
CAPÍTULO 3
O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO PATERNALISTA
357

limitem a plenitude de desenvolvimento dos direitos que, em termos rigorosos, precisamente,


busca-se potencializar por meio desse sistema de ajudas econômicas.1161

São esses, então, possíveis critérios — formais e materiais —, aplicáveis à conces-


são ou à formulação do fomento público. Não esgotam o tema nem se creem imunes à
crítica. Considerando a pequena produção sobre fomento público na doutrina brasileira,
pretendemos, aqui, apenas haver reavivado o debate, numa visitação ao assunto partindo
de nossa proposta teórica centrada no pragmatismo e na razão pública.

3.6 Conclusão parcial: em busca do meio-termo de ouro


O tema do fomento é inglório. É pouco “jurisdicizado”. Seu histórico não é dos
melhores. A discricionariedade que acompanha sua concessão é dado da realidade
que não parece ser facilmente vencido pelas melhores intenções da doutrina e da
jurisprudência.
Por tudo isso é que o esforço dogmático mais se justifica. Tentar apreendê-lo den-
tro do filtro conceitual da doutrina é uma das formas de se avançar sua prática. Há que
se ter, contudo, humildade e paciência. Paciência, porque séculos de patrimonialismo
não se vencem facilmente. Humildade, pois os critérios que foram apresentados, e tantos
outros que poderiam ser estabelecidos, estão abertos a desvios e a fraudes, sem contar
sua deficiência epistemológica: são guias para a ação, mas nunca poderiam descer a
minúcias, pena de se tornar úteis para alguns casos, mas inócuos para todos os demais.
A conexão entre a primeira parte do livro — os “princípios” da razão pública e
do pragmatismo — e o capítulo veio por sua incidência em dois critérios concessivos:
a eficiência do gasto, e a própria razão pública.
De parte isso, estabelecemos que um bom fomento é um fomento calculado, que
não falte nem exceda, e que dure o tempo suficiente para atingir seus objetivos (o que
pode ser o tempo todo, mas isso tem que estar justificado). É a busca de um aristotélico
meio-termo de ouro: entre dois extremos, um meio-termo que é a virtude. Funciona
mais como um princípio regulador do que como uma regra operativa, mas já é um
parâmetro numa matéria tão escassa de referências.
Falando ainda em critérios, esse fomento se deverá pautar pela existência de um
procedimento competitivo, público e transparente, com razões objetivas para a escolha
dos vencedores, simultaneamente capazes de selecionar (de modo não alienante) o
melhor interessado e de produzir consensos minimamente estáveis, entre todos, acerca
da justiça (ou da não injustiça) daquela escolha. Continua não sendo fácil. Continua
sendo importante tentar.
*
Ao tempo da segunda edição deste livro, estamos convencidos de que o Brasil
precisa, tal como a Espanha já possui, de um Marco Regulatório do Fomento Público.
Mais uma lei?, o leitor poderá, com justiça, se perguntar. Mas a verdade é que uma
lei que abarcasse ampla gama de modalidades de fomento, conectando-a com as leis
orçamentárias e identificando, ainda que de modo geral, critérios para a concessão e a
formulação de fomento (tais como os aqui propostos), poderia auxiliar a imprimir algu-
ma racionalidade nesse terreno pantanoso. Seria importante, ainda, que tal lei destacasse

1161
FERNÁNDEZ FARRERES. De nuevo sobre la subvención y su régimen jurídico en el derecho español. Revista
de Administración Pública, p. 75.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
358 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

a conexão entre o fomento e o sistema de defesa da concorrência. A Lei nº 13.019/2014 e


seu Decreto caminham em sentido positivo, mas ainda não tratam do assunto em toda
sua abrangência. Do contrário, a normatividade do tema, por dispersa, acaba obscura.
CAPÍTULO 4

A NEORREGULAÇÃO

PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES

4.1 Introdução: os problemas da regulação pública


Este capítulo trata de alguns problemas associados à regulação pública da eco-
nomia. Ele também resenha propostas apresentadas para solucioná-los. Na maioria
das vezes, são propostas de sabor pragmatista.1162 O capítulo é menos extenso do que
os demais porque lida com instrumentos tentados no calor do momento. A palavra
neorregulação é usada para indicar o conjunto de instrumentos contemporâneos que
pretendem resolver tais desafios.1163
Os dois principais problemas da regulação pública são a (i) informação e (ii) a
adesão.
(i) O Poder Público não possui domínio epistêmico total sobre a realidade. A
informação é sempre mais complexa do que qualquer tentativa de instrumentalizá-la.
Hayek observava que mesmo sistemas de preços, que são sistemas de transmissão de
informação em regra mais eficientes do que governos — pois possuem, como motivador,
o autointeresse das pessoas1164 —, não conseguem transmitir certo tipo específico de
informação, que é única a cada pessoa, prática e bastante dispersa.1165 Podemos chamá-la

1162
O pressuposto operacional deste capítulo é o de que a regulação pública seja uma função autônoma em relação
ao poder de polícia. Como se sabe, esta não é, no fundo, nossa posição (cf. capítulo 2 da segunda parte).
1163
Haverá algum benefício na função de descarga da argumentação jurídica com o uso do neologismo? Acredita-se
que sim.
1164
Uma possível comprovação dessa alegação é o sucesso dos mercados de previsão (predicion markets). Tratam-se
de sites de previsão de eventos futuros e incertos, em que os interessados apostam dinheiro em determinado
resultado. O mais famoso deles é o Intrade (<www.intrade.com>), que, a despeito de haver sido fechado pelo
governo americano, apresentou resultados mais precisos a respeito do resultado da eleição presidencial
americana de 2012 (Barack Obama vs. Mitt Romney) do que as pesquisas de opinião tradicionais. Quando há
dinheiro próprio em jogo, as pessoas produzem informação mais acurada do que quando não há (ARROW et al.
The Promise of Prediction Markets. Science).
1165
É claro que a eficiência na transmissão da informação não é o único fator a ser considerado quando da adoção
de um sistema de preços. Alguns sugerem, por exemplo, que uma bolsa de apostas em relação a atividades
terroristas conseguiria reunir informação de modo mais eficiente do que os sistemas tradicionais de inteligência.
Por outro lado, muitas pessoas rejeitam tal ideia, considerando-a bizarra. Michael Sandel traz uma série de
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
360 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de informação derivada do know how. Sistemas de preços são bons para transmitir
informações como “houve safra recorde de uva no sul do Brasil”, mas são incapazes
de transmitir informações da espécie “como se produz o tradicional vinho do vinhedo
Fombrauge”.1166
De certa forma, é bom que seja assim. A inovação — tecnológica e social — sur-
ge, também e especialmente, a partir dos espaços deixados pelo acaso. Um regulador
inteiramente informado é um regulador poderoso demais.1167
Sob a perspectiva de o regulador público, no entanto, não ter acesso a toda a
informação relevante, ou não conseguir operá-la, é problemático. É fonte de erros, que
acabam sendo repassados para toda a sociedade. Um regulador desinformado é um
regulador ruim.
O problema da (ii) adesão é parente próximo ao da informação. O regulador
deve contar com algum nível de adesão dos regulados à sua pauta de ação. O mercado
regulado aceita o regulamento proposto pela agência, ou a norma é objeto de rejeição?
Decerto que críticas sempre existirão, e faz parte do agir estratégico do mercado regulado
que existam. O ponto, contudo, é outro. Trata-se de diferença de grau. Um regulamento
radicalmente contestado pelo mercado é, potencialmente, um regulamento inefetivo.1168
Grosso modo, o problema da informação é enfrentado por meio de duas espécies
de soluções. A saída é ou buscar a centralização da informação, ou assumir sua disper-
são. O problema da adesão é enfrentado por meio de instrumentos que ou incluam os
regulados no processo de elaboração do ato regulatório, ou busquem ultrapassar as
barreiras psicológicas que podem gerar a rejeição da ação. Os próximos itens detalham
os pontos.

4.2 Reduzindo os problemas de informação


4.2.1 Centralização da informação
A primeira e mais intuitiva estratégia para lidar com os problemas de dispersão
de informação é buscar centralizá-la num órgão ou entidade, em regra de natureza pú-
blica. Este órgão irá recolher a informação dispersa entre empresas, entidades e órgãos
públicos, e universidades/grupos de pesquisa, a respeito de determinada regulação. Uma
vez recolhida a informação, ele irá tratá-la criticamente, e, provavelmente, submetê-la
à apreciação dos setores regulados e da sociedade civil.
Nesse tópico, a experiência norte-americana do Office of Information and Regulatory
Affairs — OIRA — vem a calhar. O Escritório de Informação e de Assuntos Regulatórios, na
tradução literal, faz parte do Office of Management and Budget, órgão de assessoramento

exemplos em que a introdução de sistemas de mercado soa contraintuitiva, em seu livro What Money Can’t Buy
(SANDEL. What Money can’t Buy: the Moral Limits of Markets). O problema parece se inserir num debate mais
amplo a respeito dos limites morais da economia dos incentivos. Ver, quanto a isso, Ruth W. Grant (Strings
Attached: Untangling the Ethics of Incentives).
1166
HAYEK. The Use of Information in Society. The American Economic Review.
1167
Sobre o temário da inovação especificamente no Direito Administrativo, cf. MENDONÇA, José Vicente Santos
de. Direito Administrativo e Inovação: limites e possibilidades. Mimeo.
1168
Por qual motivo o Poder Público haveria de propô-lo ou de mantê-lo? Aqui, novamente, ou por um problema de
informação — o Poder Público não possui domínio sobre os pressupostos de fato —, ou por uma determinação
de vontade dos órgãos deliberativos e/ou executivos, o Estado acredita que sua mantença produzirá um
efeito social global positivo. O Poder Público acredita que a rejeição poderá ser superada no futuro, que seus
benefícios superem seus prejuízos, ou que há alguma razão simbólica para a manutenção da regulação.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
361

do Presidente da República na administração federal e na elaboração do orçamento.


Cass Sunstein, responsável pelo OIRA durante quatro anos — de 2009 a 2012 —, relata
suas funções.
Em primeiro lugar, uma função epistêmica: o OIRA recolhe informações disper-
sas pelo Governo federal e pela sociedade. “O OIRA detém primordialmente a função
de ajudar a identificar e agregar visões e perspectivas saídas de uma ampla gama de
fontes, tanto de dentro quanto de fora do Governo federal. Não seria demais descrever
o OIRA como, em grande parte, um agregador de informação”.1169
O OIRA irá, por exemplo, recolher informações dispersas entre diversos minis-
térios — o Ministério da Energia sabe sobre as implicações energéticas da proposta; o
Ministério dos Transportes, sobre os efeitos no setor dos transportes, e assim por diante —
e, na medida do possível, promover um consenso intergovernamental razoável entre
os departamentos. Muitas vezes, quando o consenso não existe, o OIRA irá postergar
a edição da norma até que seja possível. Caso inexista, a norma não será editada.1170
Outra das funções do OIRA é garantir o bom funcionamento das consultas e
audiências públicas. Trata-se de identificar os pontos em discussão, e assegurar que as
sugestões e críticas sejam consideradas e, eventualmente, incorporadas na versão final da
norma ou da ação. O OIRA também se ocupa de proceder a análises de custo-benefício
das medidas regulatórias que se cogitam adotar, mas, de acordo com Sunstein, este não
é o aspecto dominante da atuação do órgão.
No Governo Federal brasileiro, não há nada com as mesmas características.
Entre nós, inexiste órgão ou departamento governamental que, de modo sistemático
e estruturado, consolide as opiniões intragovernamentais, intergovernamentais e da
sociedade, e fiscalize a qualidade e o resultado das consultas e audiências públicas.
Pode-se dizer que, residualmente, a Casa Civil da Presidência da República — e, nela,
a Subchefia para Assuntos Jurídicos — assuma parte destas tarefas. Ainda assim, neste
último caso, o foco é jurídico. Chegou-se a cogitar que o PRO-REG, o Programa de
Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, vinculado à
Casa Civil, viesse a funcionar desse modo. Tal não ocorreu. O PRO-REG é um centro
de análises e pesquisas, mas não possui capacidade executiva.1171
O Governo federal brasileiro não optou por reduzir o problema da informação
por meio da centralização. A estratégia é outra.

4.2.2 Assumir a dispersão da informação


Em nossa experiência, assume-se a dispersão da informação como dado inerente à
regulação, e, talvez de modo impensado, vive-se a experiência da pluralidade epistêmica.
Diversos órgãos, ministérios, fundações, autarquias e setores possuem seus próprios
mecanismos de coleta de informação; as visões parciais fazem-se presentes a todo o

1169
SUNSTEIN. The Office of Information and Regulatory Affairs: Myths and Realities, p. 3. A versão consultada
para a elaboração deste capítulo foi o primeiro rascunho. O artigo, com algumas alterações, foi publicado, sob
o mesmo título, na Harvard Law Review (v. 126, 1838, [2013]).
1170
SUNSTEIN. The Office of Information and Regulatory Affairs: Myths and Realities, p. 4.
1171
Discute-se, há algum tempo, na Administração Federal, a respeito da criação de uma estrutura de supervisão
regulatória. O PRO-REG, inclusive, produziu estudos a respeito do tema. Chegou-se a cogitar de inclui-la num
projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras. Contudo, a última versão deste projeto de lei, e que ora está em
tramitação no Congresso — o Projeto de Lei do Senado nº 52/2013 —, não inclui a criação de tal estrutura.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
362 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

tempo. Há trocas pontuais de informação entre órgãos e agências. O resultado é, por


vezes, pouco coerente — ainda que, paradoxalmente, um pano de fundo de informação
dispersa possa ser mais conforme a um ideal de experimentação.
De fato, o experimentalismo regulatório pode florescer no terreno minado das
visões parciais e dos dados incompletos. Com a centralização, o resultado final é mais
racional, e tende a ser socialmente mais efetivo. No entanto, a centralização da infor-
mação pode acabar redundando, justamente pela pluralidade de perspectivas que estarão
sendo consideradas, numa situação em que quase nenhuma norma ou ação regulatória
venha a ser tomada.
Quando o regulador possui ampla extensão de dados confiáveis a considerar, ele
pode acabar sofrendo de uma espécie de doença da decisão. Como conhece extensivamente
os riscos da atuação pública, não toma decisão alguma. Caso, no entanto, ignore parte
deles, poderá decidir em favor da regulação.
Ora, faz sentido regular quando se sabe que há riscos? Depende. Os riscos mais
salientemente percebidos pelo regulador são riscos presentes, ou extraíveis das expe-
riências passadas mais facilmente recuperadas pela memória (social e individual).1172
No entanto, a realidade é mais complexa do que o cálculo racional: os riscos percebidos
como preexistentes, ou prováveis, antes da regulação, podem mostrar-se desimportantes
após a introdução da regulação.
E não é só isso: a realidade é dinâmica. O mercado, mercê da inovação tecnológica
e empresarial, frequentemente consegue se adaptar ao que se percebia como problemas.
Por vezes, descobrem-se novas oportunidades a partir, justamente, da introdução da
regulação.1173
O presenteísmo da análise de riscos tornada mais eficiente pelo acesso a uma
ampla gama de informação de melhor qualidade pode levar à inação regulatória — o
que inibe a adoção de medidas que poderiam vir a ser, ao final, boas. É como se um
superego hiperativo inibisse decisões. Por outro lado, e aqui se retorna ao conhecimento
convencional, decisões melhores costumam resultar de análises levadas a cabo com
mais informação de boa qualidade.
Em síntese: a estratégia de centralização da informação, tal como a adotada
nos Estados Unidos por meio do OIRA, parece fazer sentido. Contudo, a estratégia
brasileira de, meio que sem pensar, assumir a dispersão radical da informação também
pode fazer algum sentido para nossa experiência.1174 É provável que alguma espécie
de mistura entre as duas perspectivas — descentralização e coordenação — viesse a
produzir resultados ótimos.1175

1172
Trata-se da incidência da heurística da disponibilidade na avaliação dos riscos da regulação. Ver discussão à
frente no texto principal.
1173
Essa é, em termos de racionalidade econômica, a razão pela qual não existe diferença entre sacrifício e limitação
de direitos anteriormente a uma ponderação para o caso concreto (ver capítulo 2 da segunda parte): está-se
aplicando uma lógica formal a uma realidade dinâmica. O resultado é, quase sempre, equivocado, porque
ingênuo. Uma digressão ilustrativa a respeito do ponto foi realizada quando se analisou o caráter probabilístico
das consequências a serem assumidas para a incidência de nosso “princípio” do pragmatismo (item 1.6).
1174
A hipótese aqui levantada, e que depende de verificação empírica, é a de que mecanismos de centralização de
informação acabam sendo mais refratários à produção de novas regulações do que estratégias de dispersão de
informação.
1175
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
363

4.3 Buscando a adesão dos regulados


4.3.1 Audiências e consultas públicas. Uma possível taxonomia
A primeira estratégia para minorar o problema da adesão é a realização de
audiências e consultas públicas. As audiências são sessões únicas (ou realizadas em
poucos dias) em que interessados na ação regulatória trocam informações e pontos de
vista com o Poder Público. A consulta pública é período de tempo em que o texto do
regulamento se coloca à disposição de interessados — hoje em dia, usualmente pela
internet — e em que lhe são feitas críticas e sugestões, depois apreciadas, e incorporadas
ou rejeitadas pela Administração.
Num primeiro período da regulação no Brasil, muito caso se fez sobre a impor-
tância das audiências e consultas públicas. Falava-se que elas serviriam para reduzir a
assimetria informacional de reguladores e de regulados, para incrementar a eficiência
da regulação, para minorar o problema da adesão dos administrados, e, até, para resol-
ver, em parte, problemas de legitimidade democrática na atuação de tecnoburocracias
especializadas. Alguns afirmavam que as consultas seriam substantivamente mais de-
mocráticas do que o debate parlamentar. Hoje, vê-se que elas são úteis, mas nem tanto.
No momento atual do debate sobre a regulação no Brasil — não estamos mais na
fase conceitual e constitucional, mas na fase eficacial1176 1177 —, vive-se certo desencantamento
com as audiências e consultas. Por certo que há redução na assimetria informacional de
lado a lado. Claro que regulamento em que os regulados foram efetivamente chamados
a participar de sua elaboração é mais legítimo, e tendencialmente mais efetivo, do que
norma baixada de cima para baixo.
Contudo, (i) audiências e consultas públicas podem levar à ossificação do processo
regulatório, especialmente no que toca à elaboração de normas.1178 É dizer: à conta de

1176
Na fase conceitual e constitucional, discutia-se o que eram as agências reguladoras, seu encaixe constitucional, e
os limites e abrangência dos poderes que, desde então, foram-lhes atribuídos. Lugares-comuns do debate eram
a legitimidade democrática das agências, a discussão sobre seu poder normativo, e a polêmica sobre a existência
de mandato de seus dirigentes. Atualmente, vive-se fase eficacial, com discussões sobre qualidade da regulação,
governança regulatória, Análise de Impacto Regulatório, propostas de metrificação da interação entre agências,
Judiciário e Legislativo etc.
1177
Não é correto, no entanto, afirmar que a jurisprudência brasileira haja resolvido por inteiro o problema do poder
normativo das agências. Assim que as agências reguladoras federais surgiram, em meados dos anos 90, havia
decisões judiciais que rejeitavam a validade dos regulamentos normativos por elas editados. Hoje, na maioria
dos casos, tais regulamentos são validados pelo Judiciário, ainda que a lei nos quais se baseiem a eles se refira
de modo bastante indireto. Mas veja-se a ADI nº 4.874/DF. Ela ataca resolução da ANVISA que proibiu o uso de
ingredientes nos cigarros (acidulantes, sabores etc.), alegando que a vedação deveria vir por intermédio de lei, e
não por regulamento. Em 13 de setembro de 2013, a ministra Rosa Webber suspendeu cautelarmente a eficácia
da proibição. Parece que o STF está adotando o que os americanos chamam de “big deal principle”, tal como
enunciado no voto condutor do justice O’Connor no caso Food & Drug Administration v. Brown & Williamson
Tobacco Corp (U.S. 120 [2000]). Este juiz afirma que, “em casos extraordinários, pode haver razão para hesitar
antes de concluir que o Congresso pretendeu tal delegação implícita [para a agência]”. “Estamos confiantes
de que o Congresso não poderia ter pretendido delegar uma decisão de tamanho significado econômico e
político para uma agência de forma tão críptica”. Ou seja: o princípio do big deal significa que não se presume
que assuntos importantes hajam sido delegados, pelo legislador, para que a agência possa deles normatizar.
Tratar-se-ia de matéria que se espera que o Congresso delibere por meio de lei. No entanto, no voto vencido
do caso, os justices Breyer, Stevens, Souter e Ginsburg discordam do raciocínio, afirmando que as eleições de
presidentes da República são justamente sobre isso — sobre big deals. Quando o eleitor elege Bush ou Bill
Cliton, ele também elege um programa regulatório sobre questões importantes, e, portanto, as agências por eles
compostas possuem capacidade para editar normas que sigam tais programas. No Brasil, a questão, como se
disse, ainda está em aberto.
1178
PIERCE JR. Rulemaking Ossification is Real: a Response to Testing the Ossification Thesis. The George Washington
Law Review.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
364 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

tanto analisar dados, ponderar críticas, e incorporar ou rejeitar sugestões, especula-se


que a regulação pode acabar nada fazendo, ou fazendo muito pouco e só depois de muito
tempo. Sem falar que (ii) audiências e consultas públicas podem ser instrumentalizadas,
pelos administrados, como estratégia de bloqueio.1179 (iii) O inverso também pode ser
verdadeiro: audiências e consultas públicas podem ser instrumentalizadas pelo Poder
Público como meios de legitimação retórica de sua atuação. As entidades administrativas
não levariam verdadeiramente em conta os comentários, mas apenas fingiriam fazê-lo.1180
Há ainda outro ponto. (iv) Como os interesses de empresas e grupos econômicos
são, em regra, mais organizados e coordenados vis-à-vis os interesses difusos de cida-
dãos, cogita-se que consultas e audiências seriam dominadas por tais grupos, levando,
no limite, a uma espécie de captura epistêmica, na qual as agências atuariam com viés
pró grandes interesses econômicos, não em função de algum tipo de corrupção, mas
porque a informação que as agências obteriam em tais circunstâncias seria, ela própria,
enviesada.1181 1182
E mais: (v) engana-se quem aposta fichas numa afirmação da qualidade das au-
diências e consultas públicas feitas por entidades administrativas, em contraposição à
superficialidade do debate parlamentar, sobretudo em questões técnicas. Sim: em mui-
tos casos, a polarização ideológica e o generalismo do debate parlamentar significam
concordar ou discordar sem conhecer o assunto. Ainda assim, há exagero na descrição:
assuntos importantes passam por análises em comissões temáticas parlamentares;
técnicos do Congresso podem realizar análises rigorosas; cortes de contas (órgãos de
apoio ao legislativo) emitem relatórios que são usados como material de discussão. E
há dois pontos, específicos ao debate parlamentar, que são perdidos nas audiências e
consultas públicas de agências.
Primeiro: o debate parlamentar pode trazer temas à opinião pública de uma
forma que os limites de divulgação de uma audiência ou consulta jamais permitirão.
Basta ver que as manifestações do meio do ano de 2013 tinham como uma das bandeiras
a rejeição à PEC 37. É de se duvidar se as massas iriam às ruas se o assunto estivesse
sendo tratado numa consulta pública.
Segundo: em muitos casos, a perspectiva generalista é boa, e pode corrigir
vieses de foco gerados por análise especializada (sobre o viés de foco, v. discussão à
frente). Os técnicos das agências conhecem profundamente seus setores, mas, às vezes,
a melhor regulação é produzida por quem conhece moderadamente vários setores.
O debate parlamentar, que por vezes é caótico, é, também, multifocal e agregador de

1179
Pode-se especular, no entanto, que as agências reguladoras brasileiras não estejam efetivamente ossificadas por
razão singela: elas não levam as audiências e consultas públicas a sério. Se isso for verdade — o que depende de
verificação empírica, mas é bem plausível —, ter-se-ia um problema (a má qualidade das consultas e audiências)
que acaba sendo solução a outro possível problema (a ossificação do processo regulatório normogenético).
1180
V. SEELYE. Flooded with Comments, Officials Plug Their Ears. The New York Times. Nesta matéria, a jornalista cita
Chris Wood, conselheiro do Serviço de Florestas da administração Clinton, o qual afirma que o comportamento
típico das agências é “criar um plano de ação, anunciar um período de consulta pública, e então agir como
quiser” (typical agency behaviour is to “develop the plan you want, announce a public comment period and then do what
you want to do”).
1181
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law, p. 15.
1182
Uma forma institucional de resolver o dilema interesses econômicos privados organizados versus interesses
públicos/sociais desorganizados — o que pode implicar irresolúveis problemas de ação coletiva destes — é
evitar o modelo de agências ligadas a objetos econômicos setoriais, e criar agências de jurisdição geral. É mais
difícil capturar a agência se você torna difusos os destinatários da regulação, já que isso agora lhes impõe,
também, problemas de ação coletiva (ainda que tais problemas não sejam incontornáveis: o que ocorre é que as
indústrias se organizam em associações ideológicas de ação comum).
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
365

informação. Aceitar ou rejeitar antenas de celulares pode ser visto não só como assunto
de engenharia de telecomunicações, mas também como tema urbanístico, de saúde
pública, de desenvolvimento econômico; talvez a aceitação ou rejeição do ponto deva
depender, afinal, também do escopo, e não só (e talvez nem mesmo especialmente) da
profundidade da análise.1183 1184
Portanto, consultas e audiências públicas têm utilidade na obtenção da adesão
dos regulados. Mas não convém aceitá-las acriticamente.
Diante do que se disse, pode-se cogitar de três modelos de consultas/audiências
públicas na prática brasileira. Trata-se de tipos ideais.1185 Em concreto, as diversas con-
sultas e audiências dificilmente poderiam ser reconduzidas a um só tipo, mas conjugam
aspectos pertencentes a vários modelos.
O primeiro modelo é o da (i) insinceridade deliberativa. Aqui, as decisões já estão
tomadas. A Administração Pública trata a consulta/audiência como formalidade a ser
ultrapassada rumo à decisão, que todos já sabem qual será. O sentido da consulta/
audiência é duplo: legitimação retórica; blindagem em face de revisões judiciais. É
modelo comum, no Brasil e no mundo, especialmente quando o debate envolve te-
mas moralmente carregados (por ex., consulta e audiência públicas, promovidas pela
ANVISA, a respeito de proibição de sabores em cigarros) ou em que exista forte pressão
política direcionada a certa decisão (ex., governos intervencionistas debatendo medidas
intervencionistas; governos liberais promovendo debates sobre medidas liberalizantes).
Ao passo em que bastante praticadas, as audiências e consultas insinceras são,
também, ilegais. A questão é realizar a prova, que é bastante difícil.
O segundo modelo é o modelo (ii) informativo. A Administração Pública não
possui ideia precisa do que fazer. Quer ouvir os regulados, e, a partir daí, identificar
soluções. É, de todos, o modelo mais aberto a inputs dos administrados.
O modelo da obtenção de informação é o adotado nas audiências públicas que
ocorrem junto ao Supremo Tribunal Federal em ações objetivas.1186 Os juízes do Supremo

1183
Este ponto também pode vir a ser corrigido por uma perspectiva mais centralizadora no que toca ao problema
da informação. Ver discussão acima.
1184
Há outro aspecto na contraposição entre agências reguladoras e Parlamento. A defesa do modelo das agências
se fazia por uma contraposição entre dois modelos caricaturais: o modelo pré-agências era uma caricatura de
sistema político, e o modelo agencificado era uma idealização de modelo técnico. Ora, quando se comparam
uma caricatura e uma idealização, é claro que a última sai vencendo. No entanto, a verdade é que não existe
uma divisão em sentido forte entre técnica e política. Aliás, o ideal democrático é que se coordenem propósitos
políticos a uma viabilização técnica. É possível encontrar argumentos técnicos para variados propósitos
políticos (a palavra “técnica” não equivale à palavra “precisão”). Também é verdade que a alegação de se estar
agindo tecnicamente pode esconder a pretensão de impor, para além do debate democrático, opiniões isoladas
de burocracias estatais. O argumento defendia o poder normativo das agências pressupondo que elas agiriam
de modo exclusivamente técnico, ao passo que o Congresso atuaria de forma apenas política. A realidade, no
entanto, é que tais extremos raramente se apresentam no cotidiano da produção de normas.
1185
A noção de tipo ideal é associada à obra de Max Weber. Leia-se, nas palavras do próprio, uma definição para
o termo: “Um conceito ideal é normalmente uma simplificação e generalização da realidade. Partindo desse
modelo, é possível analisar diversos fatos reais como desvios do ideal. Tais construções (...) permitem-nos ver
se, em traços particulares ou em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de nossas construções,
determinar o grau de aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse aspecto,
a construção é simplesmente um recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas”.
WEBER, Max. As rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria
Ligia de Oliveira; MONTEIRO DE OLIVEIRA, Márcia Gardênia. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim, Weber.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 103.
CAMARGO, Margarida Lacombe; LEGALE, Siddharta; JOHANN, Rodrigo. As audiências públicas no STF nos
1186

modelos Gilmar e Fux: a legitimação técnica e o papel do cientista no laboratório dos precedentes. Disponível
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
366 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

não devem possuir pré-julgamentos sobre os casos que irão decidir, e realizam audiên-
cias públicas para se municiar de informações.
Por fim, há o modelo (iii) deliberativo. Neste modelo, a Administração Pública
possui proposta de ação, mas quer ouvir os regulados, e, a partir daí, confirmar, adaptar
ou desistir dela. É modelo que corre o risco de descambar para o modelo insincero, se
a Administração Pública não contiver o viés de confirmação de seu plano. Teste simples
para se verificar se se adotou o modelo deliberativo é analisar se houve mudanças
significativas da proposta inicial, ou, mesmo, sua rejeição.
Pois é entre a insinceridade, a informação e a deliberação que corre nossa prática
de partipação na formação da vontade administrativa. Em todos os casos, contudo, a
Administração busca a adesão dos administrados.

4.3.2 Economia comportamental: empurrõezinhos e simplificação


A segunda estratégia neorregulatória que pretende promover adesão à regula-
ção pública consiste em desenhar ações que estejam conforme ao modo como os seres
humanos usualmente processam informações e tomam decisões.
Para entender o ponto, é preciso breve digressão.
Em meados dos anos 70, um programa de pesquisa levado a cabo pelo psicólogo
Daniel Kahneman e pelo economista Amos Tversky identificou que, quando tomamos
decisões, usamos muitas vezes heurísticas — atalhos mentais. Na maioria das vezes,
utilizar heurísticas é estratégia bem-sucedida.1187 Confiamos na opinião de experts;
seguimos as recomendações de amigos sobre o que fazer em viagens; na dúvida entre
dois produtos, um caro e outro barato, optamos pela terceira opção intermediária.
Mas heurísticas são traiçoeiras. Úteis em muitos casos, tais atalhos, em certas
circunstâncias, levam-nos a erros (eles produzem vieses cognitivos).1188 Kahneman e
Tversky, em estudo seminal, identificaram três heurísticas e seus vieses: a heurística da
representatividade, a heurística da disponibilidade, e o efeito de ancoragem.
A heurística da representatividade faz com que nos desviemos da estatística
em prol de associações de ideias fundadas em estereótipos.1189 O efeito de ancoragem
sugere que o ser humano tenda a escolher respostas próximas à dos valores ou infor-
mações sugeridos pela pergunta — ainda quando tais valores nada tenham a ver com a
resposta.1190 A heurística da disponibilidade afirma que as pessoas concluem a respeito

em: <http://www.ufjf.br/siddharta_legale/files/2014/07/Margarida-Siddharta-Rodrigo-As-audi%C3%AAncias-
p%C3%BAblicas-no-STF-nos-modelos-Gilmar-e-Fux.pdf>.
1187
GIGERENZER; TOOD; ABC RESEARCH GROUP. Simple Heuristics that Make us Smart.
1188
O estudo clássico é “Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases” de Amos Tversky e Daniel Kahneman
(Science).
1189
Exercício clássico: imagine que João seja tímido, fechado em si mesmo, ainda que prestativo. João é alguém que
procura, antes de tudo, ordem e estrutura. É mais provável que João seja um bibliotecário ou um fazendeiro? A
resposta correta é fazendeiro — existem mais fazendeiros do que bibliotecários no mundo. No entanto, muitos
creem que João seria provavelmente um bibliotecário apenas porque ele se pareceria com um.
1190
Num experimento de Kahneman e Tversky, perguntava-se a um grupo qual o percentual de países africanos
que participavam da ONU. Antes da resposta, rodava-se uma roda com números que variavam entre um e
cem, mas que estava “maceteada” para cair sempre ou no número 10 ou no número 65. Quando a roda parava
de girar no número 10, os participantes respondiam que, na média, vinte e cinco por cento dos países da ONU
eram africanos. Quando a roda parava em 65, a média das respostas era de que os países africanos compunham
quarenta e cinco por cento da ONU. Em outro experimento, pedia-se a dois grupos diferentes de estudantes
do ensino médio para, em cinco segundos, estimar os resultados de (8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1) ou de (1 x 2 x 3
x 4 x 5 x 6 x 7 x 8). O primeiro grupo chutava números maiores (estimativa média de 2.250) do que o segundo
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
367

da probabilidade de determinado evento com base na facilidade na qual ocorrências


dele podem ser lembradas.1191
Após tais pesquisas, uma nova área do conhecimento surgiu — a economia
comportamental —, e dezenas de heurísticas e de vieses cognitivos foram propostos.
Alguns dos mais importantes incluem o viés de status quo (em geral, prefere-se manter
opções já feitas); a aversão à perda (as pessoas possuem mais medo de perder do que
ânsia de ganhar); e os efeitos da forma de apresentação da informação (a informação
é mais persuasiva quando é direta; quando se afirma que “pessoas parecidas a você”
estão fazendo o mesmo; quando há elementos visuais de auxílio [cores, formatos etc.];
quando o conteúdo da informação é apresentado antes como um ganho potencial que
um risco potencial).1192 1193
Pois bem. Richard Thaler e Cass Sunstein escreveram artigo e livro no qual su-
gerem que o Poder Público deve agir como um arquiteto de escolhas. O Poder Público
deveria elaborar estruturas de escolhas que incrementassem o melhor interesse dos
cidadãos. Tais estruturas de escolhas seriam baseadas em heurísticas e vieses cogniti-
vos. Aos exemplos:
- As pessoas consomem mais o que veem primeiro. Assim, uma estratégia para o
combate à obesidade infantil poderia ser a da colocação de frutas ao alcance do
olhar das crianças.
- Considerando o viés do status quo, o Poder Público, mercê de estimular o in-
cremento da adesão de trabalhadores ao sistema de previdência voluntária,
poderia deixar opção pré-marcada a favor de contribuições para um plano
em todos os contratos de trabalho. Caso o empregado não concorde com ela,
bastaria desmarcá-la.
- Ainda considerando o viés de status quo, a pré-opção em todos os documentos
seria em favor da doação de órgãos em caso de acidente fatal.
- Campanhas públicas a favor de certa conduta utilizar-se-iam de elementos
visuais (cores e formatos), e referir-se-iam à prática de outros cidadãos (“tantas
pessoas fizeram isso”).1194
Tais práticas seriam nudges — empurrõezinhos. Na definição dos autores: “Um
‘nudge’ é qualquer aspecto de uma arquitetura de escolha que altera o comportamento
das pessoas de uma forma previsível sem vedar quaisquer opções ou alterar signifi-
cativamente seu incentivo econômico”.1195 Os nudges usam, como técnicas básicas, os
poderes da apresentação da informação e a força das opções default.

(estimativa média de 512). A sugestão é a de que os estudantes tenham sido guiados por uma âncora mental
associada aos primeiros números de sua respectiva sequência.
1191
É por isso que, em geral, preocupa-se mais com furacões logo após haver-se passado por um; e é por isso que
riscos mais recentes ou mais espetaculares são mais combatidos do que riscos mais triviais ou mais distantes
no tempo. Piscinas domésticas são mais perigosas do que depósitos de lixo nuclear, mas o público em geral não
parece acreditar nisso (BREYER. Breaking the Vicious Circle: Toward Effective Risk Regulation).
1192
Uma taxonomia de vieses pode ser encontrada em Matthew Rabin (Psychology and Economics. Journal of
Economic Literature).
1193
Estudos explicam a estrutura cognitiva que gera tais desvios usando um modelo bipolar. É como se existissem
dois sistemas de pensamento dentro de nós: um responsável pela intuição e por processos mentais automáticos;
outro, responsável por processos conscientes e deliberados. Cabe ao sistema automático a maioria das tarefas
cotidianas. Sua domesticação, pelo sistema consciente, leva tempo e requer esforço. As interações entre os
sistemas são o que geram os vieses (GILBERT. Thinking Lightly about Others: Automatic Components of the
Social Inference Process. In: ULEMAN; BARGH. (Ed.). Unintended Thought, p. 189-211).
1194
Outros exemplos podem ser obtidos em Cass Sunstein (Simpler: the Future of Government).
1195
THALER; SUNSTEIN. Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness, p. 6.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
368 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Quando haveria justificativa para o Poder Público arquitetar escolhas? Na opinião


dos autores, quando as pessoas estão diante de situações nas quais há probabilidade de
que façam escolhas ruins. Quatro são os casos. (i) Quando há diferenças significativas
de tempo entre os custos e os benefícios da escolha (ir para a academia versus comer um
chocolate). (ii) Quando é difícil realizar escolha racional por ausência de informação
ou de capacidade de processamento daquele tipo de informação. Ao escolher entre
dois produtos financeiros complexos, o cidadão médio não possui tempo, capacidade
de reflexão ou acesso a todas as informações relevantes. (iii) Quando não há qualquer
feedback a respeito das escolhas (daí não existir qualquer curva de aprendizado). (iv)
Quando há pouca possibilidade de obtenção de informação via repetição da prática
(ex.: compra de imóveis).
É diante desse pano de fundo de escolhas equivocadas e agentes enviesados que
Thaler e Sunstein teorizam sobre sua proposta. Chamam-na de paternalismo libertário. Há
nela algo de paternalista, pois a arquitetura de escolhas visa induzir comportamentos.
Mas ela também seria libertária, pois a possibilidade de escolha estaria presente.
Há quem critique a ideia. Pode-se resumir o conteúdo da crítica em sete blocos
de conteúdo, a seguir mencionados.
1. O paternalismo libertário é oportunista. O paternalismo libertário lida com os
problemas de autocontrole e de deficiência cognitiva não com o propósito de
neutralizá-los, mas para tirar proveito deles.
2. Há dúvida sobre a realidade das “escolhas” que estão sendo oferecidas. Talvez o elemen-
to de “escolha” do paternalismo libertário seja apenas uma ilusão autojustificadora.
Se noventa por cento das pessoas escolhem a opção determinada pelo Poder
Público, podemos realmente falar em escolhas livres?
3. Há um problema moral no fato de as pessoas não saberem que estão sendo influen-
ciadas a fazer algo pelo Governo. O Poder Público estaria abusando da boa-fé
dos cidadãos quando desenha escolhas sem deixá-los informados a respeito
disso.
4. O paternalismo libertário vai contra a experimentação. Talvez fosse melhor que
as pessoas fossem livres para aprender com o resultado de suas — boas ou
más — práticas.
5. O paternalismo libertário troca os vieses individuais pelos vieses dos reguladores. O
paternalismo libertário não leva em consideração a possibilidade de falha de
governo.
6. O risco do terreno escorregadio: o paternalismo libertário pode começar certo, mas
fornecer base para o abuso regulatório. Existem graus para que se identifique um
paternalismo libertário e um não libertário?
7. O paternalismo é libertário apenas para um dos lados. Quando se obriga o dono da
cafeteria a exibir frutas na frente de biscoitos achocolatados, para que crianças
tendam a fazer a escolha saudável, está-se obrigando o empresário a algo.
O nudge é novidade no Brasil. Ainda não há, por exemplo, teoria brasileira da
compatibilidade constitucional do empurrãozinho. Ele seria compatível com o princípio
da proporcionalidade? Com todos os seus sub-testes? O empurraçãozinho seria empiri-
camente adequado a seus propósitos declarados? O sub-teste da necessidade obrigaria
o Poder Público a utilizar o nudge antes de técnicas mais interventivas?1196 O nudge seria

1196
Para uma resposta negativa a esta última indagação, v. SCHWEIZER, Mark. Nudging and the principle of
proportionality: obliged to nudge? Mimeo.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
369

menos custoso do que outras opções de atuação pública, e, assim, seria comandado pelo
princípio da eficiência? Também a abordagem que propõe — baseada em psicologia
experimental — é-nos ainda majoritamente estranha.1197 Seria, entretanto, interessante
replicar entre nós, no Brasil, as pesquisas realizadas no exterior, para verificar a efeti-
vidade das técnicas e identificar alguma possível variância cultural.1198
Antes disso, no plano teórico e teórico-prático, é importante analisar se a proposta
sobrevive, inócua ou adaptada, às críticas. Outra dúvida seria se nossa realidade rejeita
o paternalismo não libertário como a sociedade americana o faz. Faz sentido falar num
empurrãozinho à brasileira? Quais os vieses a se priorizarem na nossa realidade?
Seja como for, o fato é que ações públicas baseadas em dados da economia com-
portamental são instrumento que vêm sendo usado na promoção da adesão à regulação.
Desde a primeira edição deste livro, o cenário mudou relativamente pouco.
Surgiram, é verdade, interessantes dissertações e teses a respeito do assunto, mas a
adoção (ou a consciência da adoção) de políticas públicas baseadas em economia com-
portamental ainda é baixa.
Vejamos dois exemplos. O primeiro, bem notório, foi a proibição, por lei do estado
do Espírito Santo (Lei Estadual nº 10.369/2015), da exposição de saleiros em mesas
de bares e restaurantes naquela unidade federativa. A lei, no entanto, foi declarada
inconstitucional, em maio de 2015, pelo TJ-ES, sob o argumento de violação à livre
iniciativa e à razoabilidade.1199 Outro exemplo, menos famoso, é o art. 1º da Lei Federal
nº 12.618/2012, que cria a modalidade automática de adesão aos fundos de previdência
complementar dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União.1200 Trata-se de
regra default em favor da adesão à previdência complementar dos servidores federais.
Ela é objeto da ADI nº 5.502/DF, ajuizada pelo PSOL.
Ora: em nenhum dos casos indicou-se que as estratégias de ação foram motivadas
por inspiração da economia comportamental. E, como se vê, ambas estão sendo objeto
de duras críticas. De resto, não há, no Brasil, ao que se saiba, unidade governamental
que trate de políticas públicas sob a ótica do comportamento real dos administrados.1201
Até agora, importamos o debate acadêmico, mas esquecemos de trazer na mala a in-
teireza da prática.

1197
Mas não o será em alguns anos. A formação da maioria dos operadores institucionais do Direito — juízes,
advogados, promotores —, e a de seus professores, deu-se num período de limitação epistêmica do Direito.
Não se trata, sequer, de saber se se era positivista ou antipositivista: as fronteiras do Direito eram limitadas. Não
mais. Hoje, a revolução da informação, a internacionalização da academia, associados ao cansaço dos temas
tradicionais, estão tornando a formação em Direito mais aberta a métodos e conteúdos heterodoxos.
1198
A hipótese da variância cultural no uso de nudges é secundada por uma série de estudos comparativos.
Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (The Good, the Bad, and the Ugly: Assessing Nudging
Initiatives From a Brazil-USA Comparative Perspective).
1199
Processo nº 0037560- 21.2016.8.08.0000, Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
1200
Art. 1º (...) §1º - Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo que tenham ingressado no serviço
público até a data anterior ao início da vigência do regime de previdência complementar poderão, mediante
prévia e expressa opção, aderir ao regime de que trata este artigo, observado o disposto no art. 3º desta Lei.
§2º - Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo com remuneração superior ao limite máximo estabelecido
para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, que venham a ingressar no serviço público a partir do início
da vigência do regime de previdência complementar de que trata esta Lei, serão automaticamente inscritos no respectivo
plano de previdência complementar desde a data de entrada em exercício. §3º - Fica assegurado ao participante o direito de
requerer, a qualquer tempo, o cancelamento de sua inscrição, nos termos do regulamento do plano de benefícios.
1201
No Reino Unido, o Behavioral Insights Team — conhecido também como Nudge Unit — fez parte do Gabinete
do Primeiro Ministro, e hoje é instituição privada, prestando serviços, além de ao Reino Unido, também aos
Estados Unidos e à Austrália. Disponível em: <http://www.behaviouralinsights.co.uk>. Acesso em: 30 jul. 2017.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
370 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

4.3.3 Análise de Impacto Regulatório


A terceira estratégia destinada a resolver o problema de adesão é a realização
de análises de impacto regulatório antes, durante ou depois da ação regulatória. Ao
contrário das audiências e consultas, as análises de impacto estão em ascensão, tanto
na prática quanto na doutrina.
Elas nos interessam por sua base pragmatista e porque, em certos momentos,
realizá-las impõe operar com razões conforme à razão pública.
Surgida nos Estados Unidos nos anos 70,1202 a Análise de Impacto Regulatório
rapidamente se transportou ao Reino Unido1203 e, após, a boa parte dos países da Europa.
Resumindo as ideias em termos usuais no discurso jurídico brasileiro, numa
tentativa de definição, pode-se falar que a Análise de Impacto Regulatório é procedimento
administrativo, prévio ou concomitante à eventual prática de atos regulatórios, por intermédio
do qual o Poder Público identifica e avalia os possíveis efeitos de sua atuação, e, então, deixa de
agir, age como pretendido, ou corrige o rumo de sua atuação.
Ainda não há, no Brasil, lei geral ou ato normativo que sirva de marco das AIRs —
tudo o que temos são referências normativas esparsas e experiências em agências
reguladoras.1204 1205 Trata-se de prática administrativa de raiz utilitarista, empregada por

1202
O pioneirismo dos EUA na AIR se dá com a criação, nos anos 70, do Office of Management and Budget, e,
posteriormente, do Office of Information and Regulatory Affairs, ambos ligados à Casa Branca. Em 1974, no
governo Nixon, publica-se a Ordem Executiva nº 11.821, a qual obriga a avaliação do impacto inflacionário
das medidas regulatórias. Contudo, o grande marco normativo da AIR, nos EUA, é a Ordem Executiva nº
12.291, editada durante o governo Reagan, a qual introduziu, no Ordenamento americano, o uso do método
da análise de custo-benefício, com o propósito de reduzir o fardo regulatório, aumentar a accountability das
agências reguladoras, estimular a supervisão presidencial do processo regulatório e diminuir as regulações
duplicadas ou conflituosas. É de se registrar, ainda, a Ordem Executiva nº 12.498, editada no governo Reagan,
que estabeleceu um programa anula de regulação; a Ordem Executiva nº 12.866, de 1993, já no governo
Clinton, que, revogando as Ordens anteriores, estabeleceu procedimentos e métodos a serem seguidos na AIR
norte-americana; e, finalmente, a Ordem Executiva nº 13.563, de janeiro de 2011, atualmente em vigor, e que
estabeleceu novos propósitos para as AIR. Sobre o tema, cf. FONTELLES. Avaliação de impacto regulatório e sua
aplicação no Brasil, f. 96-100. Ainda, MORALL III. An Assessment of US Regulatory Impact Analysis Programme.
In: DEIRGHTON-SMITH et al. Regulatory Impact Analysis: Best practices in OECD Countries. Afirmando que
só a partir da Ordem Executiva nº 12.291 é que os EUA passaram a se preocupar com a Análise de Impacto
Regulatório com esse nome, v. HAHN et al. Assessing Regulatory Impact Analysis: the Failure of Agencies to
Comply with Executive Order 12,866.
1203
V. MIRANDA; BARTHOLOMEU; LIMA. A análise de impacto regulatório como novo instrumento de gestão
pública no Brasil.
1204
Mas qual seria o encaixe jurídico das análises de impacto regulatório atualmente feitas? Elas podem se
reconduzir a cinco topoi. Eis nossa proposta.
a) À eficácia positiva do princípio constitucional da eficiência administrativa. Tal princípio não apenas invalida ações
públicas ineficientes — eis sua eficácia negativa —, mas também impõe o dever de planejamento ao Estado. E
tal planejamento se faz, na seara da regulação pública, também e especialmente por intermédio de análises de
impacto.
b) Ao teste da proporcionalidade em sentido estrito. O terceiro teste da proporcionalidade consiste em ponderar os
custos e benefícios da ação ou rejeição de certa linha de ação. Ou seja: trata-se de proceder a uma análise de
custo-benefício, método típico da análise de impacto.
c) Ao princípio democrático e ao dever de motivação dos atos administrativos. A análise de impacto, em boa parte
de suas etapas, requer a participação dos regulados. Embora a análise de impacto não produza, por si só, a
legitimidade democrática, ela pode auxiliar nisso, ao amenizar “silêncios políticos” e permitir que grupos de
interesse — por exemplo, trabalhadores — contestem os dados oficiais e produzam suas próprias avaliações.
Essa possibilidade de participação plural conflui para efetivar o princípio democrático.
Por outro lado, a análise de impacto serve como instrumento de controle do Estado. Só é possível controlar
os rumos daquilo que é fundamentado técnica e juridicamente. A análise de impacto é procedimento útil por
fomentar a tomada de decisões com conhecimento de causa e não com base em conjecturas ou fundamentalismos.
Além disso, atualmente todos os atos administrativos que limitem ou condicionem direitos — como o serão boa
parte dos atos regulatórios —, nos termos do art. 50, da Lei Federal nº 9.784/99, e do art. 93, X, da Constituição
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
371

economistas próximos a tal pensamento, compatível com uma teoria padrão da análise
econômica do Direito. Ela é o que o bom senso de um economista médio recomendaria
fazer: coletar o máximo de dados, buscar meios de quantificar custos e consequências,
sopesá-los, optar por uma linha de ação a partir dos resultados.1205
A última frase adianta as cinco etapas da análise de impacto. São elas: (i) a qualifi-
cação e a coleta de dados a respeito das possíveis consequências dos atos regulatórios; (ii) a
adoção de critério de valoração a respeito de tais consequências; (iii) a avaliação delas; (iv)
a adoção, correção ou rejeição do ato; (v) seu monitoramento.1206 Analisemo-las brevemente.
(i) A qualificação trata do estabelecimento de filtro dos dados relevantes.
Recomenda-se visão abrangente. É para isso que deve ser transparente: reguladores
devem declinar o que estão considerando como resultados, e, ato seguinte, devem se
abrir à contribuição dos regulados. Depois de qualificar dados, é hora de coletá-los.
Diversas estratégias podem ser utilizadas: consulta a especialistas, entrevistas, apli-
cação de questionários, uso de grupos de discussão controlada, acesso à experiência
internacional, revisão da literatura especializada, realização de painéis com empresas.
A adoção de (ii) critério de valoração dos dados coletados é a próxima etapa. Eis o
momento de estabelecer parâmetros a propósito do que será considerado consequência
positiva, e o que será visto como consequência negativa. Etapa complexa, em que se impõe
que os critérios sejam universalizáveis, não mutuamente excludentes, e compatíveis
com a Constituição.
Reflexo da etapa anterior é (iii) a avaliação das consequências à luz dos critérios.
A partir daí, não teremos mais meras consequências, mas consequências positivas —
benefícios — e consequências negativas — custos — associadas à adoção (ou à rejeição
ou à alteração) da regulação que se pretende implantar ou que se revisa. O resultado é
(iv) a adoção, a revisão ou a rejeição de uma linha de ação regulatória.
Por fim, (v) há o monitoramento dos resultados da regulação. É importante veri-
ficar se o curso dos acontecimentos está se dando de acordo com o esperado, e, se for
o caso, realizar ajustes.

da República, devem ser motivados. E o que é motivar? É declinar as razões de fato e de Direito que justificam
a prática dos atos. Isto se consegue, em se tratando de atos regulatórios, especialmente por intermédio das
análises de impacto.
d) A uma analogia com os instrumentos de medição de impacto ambiental. Institutos análogos à Análise de Impacto
Regulatório são o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), referidos no
art. 225, §1º, IV da Constituição da República, na Lei Federal nº 6.938 /81 e na Resolução nº 1/86 do CONAMA.
O procedimento — tanto do EIA quanto do RIMA — busca identificar as externalidades e o custo-benefício
do empreendimento que se pretende levar a cabo. Ora, nada impediria a extrapolação do argumento até a
admissão de relatórios de impactos regulatórios em sentido amplo. A própria Lei nº 6.938/81, vista de forma
global, indica a necessidade de mensurar os impactos sociais e humanos do projeto.
e) A uma referência normativa. Não há lei das AIRs. O que mais próximo há é o Decreto Federal nº 4.176, de 2002,
que estabelece, em seus Anexos I e II, conjunto de questões a serem analisadas ao momento da elaboração de
atos normativos. Além disso, o decreto cria um passo a passo, em forma de questionário, com vistas a auxiliar
na exposição dos fatos que motivaram o ato. Considerando que muitos atos regulatórios são, antes disso, atos
administrativos normativos, o Decreto seria aplicável, por analogia, como base normativa das análises de
impacto.
1205
O Projeto de Lei do Senado nº 52/2013 — o projeto da Lei Geral das Agências Reguladoras — conta com
dispositivo que institui, de modo geral, a Análise de Impacto Regulatório, delegando o detalhamento a
regulamento. E a Medida Provisória nº 791, de 25 de julho de 2017, que criou a Agência Nacional de Mineração,
estabelece a mesma exigência em seu art. 20, caput.
1206
MENDONÇA. Análise de impacto regulatório: o novo capítulo das agências reguladoras. Justiça e Cidadania,
p. 30. Em sentido semelhante, mas mencionando três etapas — o processo de tomada de decisão da política
regulatória, a implementação e o monitoramento —, v. VALENTE. A análise de impacto como mecanismo de
controle do tabaco. Revista de Direito Público da Economia – RDPE.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
372 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Há dois métodos mais usuais para a Análise de Impacto Regulatório. Trata-se da


(i) análise de custo-benefício — ACB — e da (ii) análise de custo-efetividade — ACE.
A (i) análise de custo-benefício é o método mais comum e, segundo alguns, repre-
senta a melhor prática de AIR.1207 Suas vantagens são o custo relativamente baixo, a
facilidade do controle de resultados por agentes externos e a relativa dispensa de expertise
profunda por parte das agências.1208 Ela identifica, lista e a atribui valores — monetários
ou não — às consequências positivas e negativas da linha de atuação pretendida, e,
em seguida, hierarquiza opções. A ACB deve, ainda, verificar e explicitar, sempre que
possível, quem arcará com os custos e quem receberá os benefícios.
Nem tudo pode ou deve ser monetizado, ou, sequer, classificado hierarquica-
mente a partir de escala numérica. Nesses casos, há a possibilidade de se lançar mão
da ACB branda (soft cost-benefit analisys), a qual lista consequências incomensuráveis e
as apresenta à sociedade.
Segundo método é (ii) a análise de custo-efetividade. A análise de custo-efetividade
é variação da ACB que foca em hipóteses nas quais metas estão predeterminadas. A
análise se centra em qual alternativa de regulação, daquelas capazes de obter o resultado
determinado, será a menos custosa em termos de custo social global.
Existem dois graus de profundidade nas análises de impacto regulatório. Há a AIR
preliminar e a AIR exaustiva. A AIR preliminar é versão simplificada, que se faz para
saber se compensa a realização de AIR exaustiva.1209
Falando em AIRs preliminares e profundas, vem à tona o ajuste fino que deve
haver na tensão entre abrangência de dados e consistência dos resultados. Mencionou-se que
os critérios de qualificação do que será contado como dado devem ser abrangentes e
que a coleta de dados deve ser a mais ampla possível. É hora de indagar: isso é factível?
Apenas como princípio regulador. É o caso que irá indicar a extensão da pesquisa.
Dois extremos devem ser evitados: excesso de informação pode se prestar a manipu-
lações, ou tornar incompreensíveis os resultados; simplicidade em excesso, além de
também poder conduzir a falsificações, pode ignorar aspectos cruciais. No Reino Unido,
de início, as AIRs eram complicadas; o formulário-padrão das AIR possuía sessenta e
três páginas. Os agentes públicos encarregados de realizá-las tornavam-se conferidores
de listas. Hoje, o formulário possui duas páginas, e é construído a partir de questões-­
chave. Se mais páginas forem necessárias, diz-se que a política pública não é clara, ou
que se está buscando complicações.1210 A solução não é ideal. Não há como ter certeza
se um formulário de duas páginas é excessivamente simples ou se sessenta páginas
é complexo. Mas fica a inspiração britânica: abrangência sem excessos; simplicidade
sem reducionismos.

1207
OECD. Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), p. 10.
1208
POSNER; ADLER. Implementing Cost-Benefit Analysis When Preferences are Distorted. Journal of Legal Studies,
p. 1106-1147.
1209
Na Coreia do Sul, por exemplo, exige-se AIR apenas para regulações “significativas” — aquelas que possuem
impacto anual acima de novecentos mil dólares, impacto sobre mais de um milhão de pessoas, restrição clara
sobre a concorrência de mercado ou afastamento de padrões internacionais. Já nos EUA, a AIR completa se
faz quando os custos anuais da regulação excedem cem milhões de dólares, ou quando as regras implicam
acréscimo de custos para setor ou região, ou geram significativo efeito adverso na concorrência, no emprego, no
investimento, na produtividade ou na inovação.
1210
MACRAE. Análise de Impacto Regulatório-AIR: a experiência do Reino Unido. In: RAMALHO (Org.). Regulação
e agências reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, p. 255 et seq.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
373

Não há prazo ideal para a conclusão da AIR. Considerando, no entanto, a cir-


cunstância de que o ponto é suficientemente complexo para justificar a realização da
AIR — o que terá sido concluído a partir do resultado positivo da AIR preliminar —,
estima-se que não deva ser curto demais. Na União Europeia, considera-se razoável pe-
ríodo superior a dozes meses para sua conclusão, sendo o período de coleta de dados
a etapa mais demorada.
A Análise de Impacto Regulatório possui óbvias utilidades. Se bem feita, serve
para incrementar a adesão da sociedade à política regulatória.1211 Além disso, há o in-
cremento da credibilidade do regulador. Há os benefícios de se adotar algum grau de
planejamento na ação pública. Não se pode tomar decisões baseado em convicções ou
preconceitos.1212 A AIR pode tornar explícitas premissas assumidas de forma intuitiva —
o que significa ganho em termos de accountability. Em síntese: uma AIR bem feita é um
instrumento concreto da razão pública, e uma técnica colada no pragmatismo jurídico
recomendado por este livro.
Mas a AIR também possui limites. Em primeiro lugar, ela não substitui a decisão
política. A AIR não é o último suspiro da tecnocracia: decisões — e decisões trágicas —
continuarão tendo que ser tomadas. Além do que, está-se operando com políticas
públicas, que, ao mesmo tempo que são comandos racionais, são, também, políticos,
isto é, decisões que expressam visões de mundo.1213 É importante conter — e por isso
mesmo empoderar, ao torná-las realistas — as pretensões econométricas atuantes junto
à regulação pública.
Além disso, há variáveis inesperadas em qualquer racionalização, razão pela qual
a AIR é uma previsão racional, não uma profecia. Falando em imponderável, observe
que nem tudo pode, ou mesmo deve, ser quantificado; isso é, em si mesmo, limite à AIR.
A AIR também possui riscos. O primeiro deles é que seja malfeita, e aí se vai estar
dando poderes ao erro. Contra isso, a melhor coisa a se fazer é divulgar os resultados,
e abri-los, e ao próprio método da AIR realizada, à crítica pública.
Há o risco de que as AIRs sejam contaminadas: há o risco de qualificar, esconder ou
acrescentar dados com o propósito de forçar resultados. Se tidas como mera burocracia
preliminar à elaboração de regulações, não chegariam a seu propósito de racionalização,
e seriam, em si mesmas, mais um custo público. As AIRs devem ser para valer.
Teste simples para identificar o nível de adesão à noção de razão pública da AIR:
seu método permitiria que a entidade que a realizou deixasse de agir da forma como
pretendia inicialmente? Historicamente, a entidade deixou de agir, ou agiu de modo
diferente, com base nos resultados de AIRs? Em qual percentual? As mudanças foram

1211
O Decreto Federal nº 4.176/2002 sugere, no segundo item de seu Anexo I, que um dos fatores desfavoráveis, ao
se considerar um projeto de ato normativo a ser encaminhado ao Presidente da República, é a possibilidade
de impugnações judiciais. Em outras palavras: a expectativa da adesão dos administrados ao ato é fator de
influência na decisão de encaminhá-lo ou não.
1212
SEN. The Discipline of Cost-Benefit Analysis. The Journal of Legal Studies, p. 935.
1213
A Análise de Impacto Regulatório não é e não pode ser tida como justificativa para a subsidiariedade da
intervenção do Estado na economia. Ela é um procedimento de transparência da ação pública que, ao torná-la
mais controlável e racional, torna-a, também, mais aberta aos influxos democráticos. A AIR convive com um
Estado mais e menos intervencionista na economia.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
374 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

significativas? Pode-se cogitar, inclusive, uma regulação da regulação — à semelhança


do que faz a OIRA nos EUA: avaliação da qualidade das AIRs.1214 1215
Nas AIRs, como nas consultas e audiências, há o risco da ossificação: a regulação
pública deve ser eficiente no tempo. Nem sempre regular bem é produzir mais normas
ou agir mais (v. discussão no próximo item), mas o cumprimento de procedimento
prévio traz sempre o risco de se tornar, com o tempo, excessivo. A sugestão é a adoção
de limiar para a realização das análises.
Há, por fim, mais uma vez como nas consultas e audiências públicas, o risco da
captura epistêmica: se toda informação relevante é aquela disponível a partir do mer-
cado, é de se cogitar um viés, via exposição informacional, àquela posição. E há o risco
que é irmão da AIR como legitimação retórica: a exigência de AIRs como estratégia
privada de bloqueio da regulação pública.

4.4 Outros problemas da regulação. Um paradoxo da regulação


Há dois problemas da regulação que, pela importância, merecem ser menciona-
dos. A rigor, eles não seriam problemas autônomos, mas são, ambos, especificações do
problema da informação. O primeiro deles é (i) o viés de foco.
(i) O problema regulatório do viés de foco, na expressão da economia comporta-
mental, é a tendência a identificar soluções a partir do campo de expertise da entidade
administrativa a quem coube tratar o ponto. É espécie de miopia seletiva, que reconhece
o mundo a partir do ângulo de visada da atribuição funcional. Figure-se exemplo.
Em hipótese de acidentes com veículos em certo ponto da estrada, o engenhei-
ro de tráfego tenderá a enxergar o assunto como deficiência de sinalização, e, assim,
proporá um novo sinal de trânsito no local. O especialista em pisos poderá identifi-
car deficiência na cobertura asfáltica, e, para ele, a solução será recapear o trecho. O
patrulheiro rodoviário associará o problema à imprudência ao volante — direção em
alta velocidade e motoristas embriagados —; para ele, a solução está em penas mais
rigorosas para tais ilícitos, melhores condições de trabalho para os patrulheiros, e maior
número de servidores de fiscalização. Cada um vê o problema a partir de seu ponto de
vista. Quem está certo?1216
Há, é claro, riscos associados a fatores multicausais, mas não é certo que alguma
dessas respostas precise estar correta. Pode ser que o problema esteja longe de todos
e de cada um deles: o problema pode ser de alguma falha na construção dos veículos
que se acidentaram. Nenhum dos especialistas consultados sequer teria capacidade

1214
No Brasil atual, pode-se imaginar que os Tribunais de Contas venham a atuar analisando a qualidade das análises
de impacto regulatório realizadas por agências. Os Tribunais de Contas podem atuar identificando falhas e
omissões regulatórias. Em nossa opinião, em princípio isso não impacta na autonomia dessas entidades —
é claro que há risco de que diálogos técnicos escondam disputas de poder. Desenvolver em José Vicente Santos
de Mendonça (A propósito do controle feito pelos Tribunais de Contas sobre as agências reguladoras: em busca
de alguns standards possíveis. Revista de Direito Público da Economia – RDPE).
1215
No Direito americano, é bom observar que as independent agencies — as agências independentes, como o
Securities and Exchange Comission e o National Labor Relations Board — não submetem suas propostas de
normas ao OIRA. Só as executive agencies — as agências excutivas — estão obrigadas a tanto. Embora a analogia
deixe a desejar, é possível afirmar que nossas agências reguladoras estão mais próximas às independent agencies
(embora sem gozar de toda a autonomia destas) do que às executive agencies (que são, em muitos casos, órgãos
públicos comuns). Outro ponto interessante a se destacar é que, historicamente, os presidentes norte-americanos
vêm tentando submeter a atuação das agências independentes à análise do OIRA, até hoje sem sucesso.
1216
O exemplo foi sugerido pelo Professor Mark Tushnet em sala de aula.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
375

de identificar o problema. A regulação setorial, com as virtudes da especialização, traz


também seus defeitos: o mundo do especialista é um mundo epistemicamente limitado.
Em tese, uma estratégia de centralização da informação (v. supra) funcionaria
de modo a neutralizar o viés de foco. Um órgão como o OIRA consolida as diversas
perspectivas e busca encontrar a verdade na multiplicidade. No entanto, estratégias
de dispersão da informação também podem buscar neutralizar tal viés por meio da
criação de equipes multidisciplinares, e da troca de informação com órgãos públicos
e privados. O período de consulta pública, e a audiência pública, servem como etapas
de autoexposição crítica.
(ii) O segundo viés é o de comprometimento com a missão. Toda agência possui uma
missão institucional: regular tal setor; neutralizar tais riscos; promover tais e quais obje-
tivos. Ora, quando elas são apresentadas a um problema que toque com seus objetivos
de criação, a resposta que racionalmente darão a ele é, na média, regular mais. Por quê?
As explicações para o comportamento são simples. Porque é isso o que sabem fazer.
Porque, com isso, autoatribuem-se mais poder e posição de barganha institucional.
Porque, em última análise, é pela criação de mais normas e pela prática de mais atos
que elas justificam sua existência.1217
O viés de comprometimento com a missão é inevitável em qualquer instituição
não autorreferente. O Ministério Público vai, na média, buscar se autoatribuir mais
poderes. As polícias irão, na média, buscar mais atribuições. As agências reguladoras
estarão, na média, identificando novos pontos associados à sua missão principal, e, com
isso, praticando mais atos e expedindo mais normas.1218 O viés de comprometimento com
a missão pode redundar, se não for contrabalançado por alguma instância de controle,
num estado de hiper-regulação. Regular é, em certo sentido, sempre mais regular.
Situações de desregulação e de não regulação serão, na perspectiva das agências
reguladoras, contraintuitivas e excepcionais: agência que sistematicamente propõe
estratégias de desregulação é entidade que vai negando sua própria razão de existir,
seja na prática, seja no imaginário da administração central e, quiçá, no da sociedade.1219
O problema é que nem sempre o que é melhor para as entidades reguladoras
é o melhor para a sociedade. O viés de comprometimento com a missão gera o que
é, na essência, um desalinhamento entre os interesses das entidades reguladoras e o

1217
Em nossa experiência administrativa, o viés de comprometimento de missão encontra um estado de “tempestade
perfeita” a partir de certos exemplos de atuação do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, os quais
buscam responsabilizar as agências e demais entidades reguladoras pela chamada omissão regulatória. Como
ninguém sabe ao certo do que se trata tal omissão, o viés de comprometimento de missão se encontra com o
medo de responsabilização pessoal de dirigentes e servidores, e o resultado é uma regulação cada vez mais
intensa, abrangente e espetacular.
1218
O viés de comprometimento com a missão deve ser diferenciado do viés de cruzada, que é seu paroxismo. O viés
de cruzada é a assunção, pela instância reguladora, do dever moral da extirpação de algum comportamento
ou produto. O viés de cruzada possui traços moralistas e paternalistas. O grande exemplo do viés de cruzada
é o comprometimento com a missão das agências reguladoras do consumo de produtos como o tabaco e o
álcool. O viés de cruzada, além dos problemas associados ao viés de comprometimento com a missão, mostra-se
contrário à razão pública, pois aliena existencialmente parcelas significativas da sociedade a partir de um dado
tão singelo quanto um padrão de consumo.
1219
A explicação para isso é outro viés — o viés de saliência —, causado pela heurística da representatividade.
Todos sabemos que desregular e não regular são, também, estratégias regulatórias, considerando-se a ideia de
regulação em sentido amplo. Mas tais estratégias são evidentemente menos visíveis do que a prática de atos e
a expedição de normas regulatórias. Portanto, a agência reguladora possui mais estímulos a adotar posturas
comissivas do que omissivas, pois as primeiras fazem com que seja percebida, pelos atores políticos e sociais
significativos à sua existência, como “atuante”, “pró-ativa” — o que é estratégico para que receba recursos
públicos, acumule capital político-administrativo etc.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
376 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

interesse da sociedade. Aquelas querem, antes de tudo, existir; a sociedade quer uma
regulação democrática e eficiente. Por vezes, a melhor estratégia regulatória pode ser
a desregulação ou a não regulação; a autorregulação privada, acompanhada ou não
de validação pública; etc. Tais estratégias são, contudo, ontologicamente contrárias aos
interesses das entidades reguladoras (ainda que, por vezes, elas possam adotá-las de
modo pontual: é-lhes estratégico, também, passar a imagem de moderação).
O viés do comprometimento com a missão requer algum tipo de controle pú-
blico da atuação das entidades reguladoras. Os argumentos de mérito técnico e de
autonomia das agências, usuais no discurso prático-acadêmico do Direito Regulatório
brasileiro dos anos 90, podem acirrá-lo. É importante que sejam respeitados em seu
núcleo, mas não é recomendável que a regulação se faça de modo imune aos padrões
usuais de accountability republicana. O Judiciário, os Tribunais de Contas, o Ministério
Público, as advocacias públicas, ainda que de modo deferente às decisões e normas das
agências — até pelo dado pragmático da expertise1220 —, podem e devem opinar sobre e
controlar a qualidade da regulação pública feita por agências, e, como instâncias com
interesses diversos daqueles das entidades reguladoras, são alguns dos mecanismos
possíveis para gerar suficiente fricção institucional capaz de reduzir, preventiva ou
repressivamente, o viés de comprometimento com a missão.1221
Falando em comprometimento de missão e em tendência à hiper-regulação, é
hora de apresentar o paradoxo regulatório mencionado no título. Ei-lo: super-regulação
pode causar sub-regulação. Entenda-se.1222
A super-regulação — a regulação intensa recaindo sobre um único risco — inten-
sifica o problema de “acabar com os últimos dez por cento do risco potencial”. Ou seja,
a busca pela exterminação por completo do risco. Só que os custos da inteira redução
de certo risco — quando isso é possível, e raramente o é — são inversamente propor-
cionais à sua incidência estatística.1223 Econômica e socialmente, isso não faz sentido:
se já se gastou novecentos milhões para reduzir noventa por cento de determinado
risco, não é racional gastar oitocentos milhões para reduzi-lo em mais cinco por cento.
Se o Poder Público insiste nisso, faltarão recursos públicos para regular outros setores.
Assim, super-regulação causaria sub-regulação.
Mas há uma segunda razão para tanto: é que, se o Poder Público concentra todas
as energias numa intensa campanha regulatória sobre certo setor, há natural contraofen-
siva por parte das empresas afetadas. Questionamentos judiciais, lobbies, contraofensiva
política financiada pelo capital privado interessado. Tudo isso gera custos e desgaste
para a máquina pública; recursos que serão potencialmente desviados de seu uso na
regulação de outros setores ou riscos. Observe-se, inclusive, que é mais fácil invalidar
judicialmente uma regulação que pareça excessiva do que uma que soe moderada. E,
uma vez invalidada, passa a não existir regulação alguma. Super-regulação gerando
sub-regulação.
Melhor faria o Poder Público se optasse por regulação mais abrangente — isto é,
sobre mais setores, já que neutralizaria mais riscos potenciais —, porém menos intensa,

1220
De lege ferenda, poder-se-ia pensar num opinamento prévio da racionalidade técnica de projetos legislativos a
ser exercitado pelas agências reguladoras. O Congresso consultaria as agências a respeito da tecnicidade de
projeto de lei, e estas emitiriam parecer não vinculante.
1221
É importante observar, no entanto, que tais instâncias também podem acirrar tal viés. V. nota de rodapé supra.
1222
Em sentido próximo (mas não idêntico), v. SUNSTEIN, Cass. Paradoxes of the Regulatory State. University of
Chicago Law Review, p. 407 et seq.
1223
BREYER. Breaking the Vicious Circle: Toward Effective Risk Regulation.
CAPÍTULO 4
A NEORREGULAÇÃO
377

quer dizer, que acabasse não lhe sendo tão custosa. Essa é uma estratégia possível para
buscar neutralizar o paradoxo.1224

4.5 A Nova Governança e a regulação pragmatista-experimental


Dos approachs neorregulatórios sugeridos na teoria e, em alguns casos, adotados
na prática, escolhemos descrever, para encerrar, um que se identifica com uma das
pedras de toque do livro: a noção de pragmatismo como abertura à experimentação.
Ele adota uma estratégia de subsidiariedade, mas numa linha compatível com a razão
pública. É proposta, ainda, que incorpora a importância da informação derivada do know
how (v. item 4.1, supra). É a perspectiva que vem se chamando de Nova Governança.1225
A Nova Governança atribui autoridade regulatória ao menor nível em que possa
ser feita. São as empresas que devem elaborar políticas de redução de riscos ambien-
tais; são as organizações que devem criar mecanismos de incremento da qualidade
da prestação de serviços; são as escolas que devem construir seus cardápios para os
alunos. Processos de baixo para cima são melhores do que os de cima para baixo, pois
há informação derivada de know how que pode ser usada — informação que o Poder
Público desconhece (v. item 4.1).
Num primeiro momento, o Poder Público estabelece objetivos preliminares:
“queremos reduzir a obesidade infantil em dez por cento em dois anos”. Mas o regu-
lador público não diz como fazê-lo. “Não vamos dizer como fazer; confie em seu know
how para tanto”. O Poder Público realiza monitoramento constante do desempenho
na obtenção do índice. Caso este haja se mostrado inadequado — muito ambicioso,
ou insuficientemente ambicioso —, o regulador pode modificá-lo. “Talvez devêssemos
reconsiderar o percentual de dez por cento em dois anos, e reduzi-lo para cinco por
cento”. Tal monitoramento permite identificar e disseminar práticas que estão pro-
duzindo os melhores resultados. Elas são, então, divulgadas às entidades reguladas,
mas não impostas. “Não estamos dizendo que você deve segui-las; estamos apenas
disseminando práticas que vêm dando certo”. No final do período, caso haja inobtenção
extrema do índice, e descartado o irrealismo dos objetivos, algum tipo de punição pode
ser aplicada à entidade regulada. Caso o índice seja ultrapassado, pode-se premiá-la.
A Nova Governança permite que as entidades reguladas experimentem diferentes
formas de cumprir as metas propostas pelo Poder Público, inclusive e especialmente a
partir de sua expertise. Ela é recursiva: aprende com os resultados, e os usa para corrigir
rumos e propor novas metas. É regulação focada em resultados, não em processos.
Outra forma de incidência da Nova Governança é por meio de negociações
entre o Poder Público e entidades reguladas com vistas a que estas criem mecanismos
internos de redução de risco ou de incremento da qualidade dos bens ou serviços. A
iniciativa Maine 200 é exemplo da estratégia. Em 1990, a agência americana responsá-
vel pela segurança no trabalho verificou que o Maine possuía índices maiores do que

1224
Há outros paradoxos regulatórios identificados pela literatura. Outro bem interessante é o paradoxo “richer
is safer”. A introdução de qualquer nova regulação possui um preço para a sociedade. Na média, populações
com mais renda livre se expõem a menos riscos. Assim, uma regulação introduzida para reduzir certo risco
pode, ao reduzir a renda disponível, agravar os riscos aos quais aquela comunidade estaria disposta a se expor
(WILDAVSKY. Richer is safer. The Public Interest, 1980).
1225
V., por todos, SABEL; ZEITLIN. Experimentalist Governance. In: LEVI-FAUR (Ed.). The Oxford Hanbook of
Governance.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
378 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

a média nacional de acidentes com empregados. Propôs no ano de 1993, às duzentas


empresas do Estado com maiores índices de acidentes de trabalho, em caráter experi-
mental, o seguinte: na primeira opção, a agência realizaria inspeções regulares a cada
seis meses. Na segunda opção, a empresa apresentaria programa próprio de redução
de acidentes, sujeito à validação pela agência, e, em troca, as inspeções seriam anuais
(ainda que as optantes tivessem que enviar relatórios a cada quatro meses à agência, e
estivessem sujeitas a inspeções-surpresa). Caso as empresas não enviassem relatórios,
seriam movidas para a primeira lista. Quer dizer, as empresas ganhavam menos inspe-
ções regulares em troca de elaborar sistema interno de redução de acidentes, com base
em seu conhecimento local, que funcionasse de modo comprovado. Ao que consta, a
iniciativa produziu bons resultados.1226 1227
A Nova Governança é flexível de um modo que a regulação coercitiva não pode
ser. Aproveita a expertise interna às empresas de uma forma mais rápida e orgânica do
que o recolhimento de comentários numa consulta pública. É subsidiária, não num
sentido ideológico-econômico, mas num sentido pragmático-experimental: prefere
unidades menores para reduzir riscos, e permitir a eclosão de diversas experiências de
modo mais rápido (“começar pequeno”).
Não se pode, entretanto, cair no erro de sempre: sugerir que modelos regulatórios
estejam constitucionalmente impostos em virtude de interpretações fundamentalistas
do princípio da livre iniciativa ou da eficiência, ou abdicar do controle coercitivo do
Estado, como se este fosse algo passée.

4.6 Conclusão parcial: o futuro da regulação e a regulação do futuro


A regulação pública do futuro é uma que trata de modo transparente seus pro-
blemas de informação e de adesão. É a que experimenta estratégias inovadoras; a que
se abre ao aprendizado contínuo; a que trata consultas e audiências como fonte de
informação e de erro; a que não vilaniza nem santifica atores privados; a que se abre
à democracia e ao controle público; a que trata seus vieses com o mesmo afã com o
qual identifica vieses alheios; a que usa mecanismos da economia comportamental e
de análises de impacto como estratégias inteligentes de atuação; a que recolhe, trata e
troca informação o tempo inteiro; a que não é autoritária nem ingênua; a que identifica
o valor moral e epistêmico da democracia; a que entende que eficiência administrativa
e racionalidade econômica são meios, não fins; a que lê as entrelinhas da disputa pela
captura do imaginário entre os discursos da política e da técnica.
Numa palavra: a regulação do futuro não é subsidiária. É complexa.

1226
Descrição da iniciativa Maine Top 200 e indicação de seus resultados pode ser encontrada em: ASH CENTER
for Democratic Governance and Innovation. Disponível em: <http://www.innovations.harvard.edu/awards.
html?id=3693>. Acesso em: 09 mar. 2014.
1227
Apesar dos bons resultados, o legalismo adversarial da cultura jurídica norte-americana impediu a pretendida
expansão do programa para o resto do país: a Câmara de Comércio do Estado ajuizou demanda alegando
que a iniciativa era regulação tão intensa que, na prática, equivalia a uma norma regulatória, a qual teria sido
criada de forma ilegal, sem a observância do rito da consulta pública. A Corte de Apelação do Distrito de
Colúmbia invalidou o programa em 1999. Posteriormente, a administração Bush criou programa semelhante —
o “Voluntary Compliance Program” —, mas sem nenhum benefício atrelado (LOBEL. Interlocking Regulatory
and Industrial Relations: the Govenance of Workplace Safety. Administrative Law Review).
CONCLUSÃO GERAL

Síntese objetiva
Ao final do livro, é possível apresentar, sob a forma de proposições objetivas,
algumas das ideias aqui defendidas.

I - Quanto ao pragmatismo
1. O pragmatismo surge na filosofia com Charles Peirce, na condição de uma
teoria da significação, tornando-se, a partir da recepção das ideias deste por William
James, uma teoria da verdade, e, afinal, com John Dewey, uma teoria social. Afora dis-
cussões clássicas sobre o assunto — se o pragmatismo é de fato uma filosofia ou um
modo de se fazer filosofia; quantos pragmatismos existem —, a verdade é que se pode
afirmar a existência de uma “matriz pragmatista” consistente no antifundacionalismo,
no consequencialismo e no contextualismo.
Por muito criticado no final do século XIX, o pragmatismo desapareceu, só vindo
a ressurgir, de modo modificado, em meados do século XX, com Richard Rorty e sua
antifilosofia.
Questão que se coloca é a da utilidade do pragmatismo filosófico para o debate
sobre o pragmatismo jurídico. Embora autores como Richard Posner e Thomas Grey
acreditem que o pragmatismo filosófico tem pouco a contribuir ao mundo do Direito,
pensamos que, ao contrário, é possível aplicar a “matriz” pragmatista para examinar
questões jurídicas.
Além disso, é interessante conhecer o pragmatismo filosófico como meio de
contextualizar as propostas das teorias do pragmatismo jurídico, que, em maior ou
menor grau, derivam algumas de suas características da filosofia pragmatista. Todas
as teorias do pragmatismo jurídico têm sua exposição iniciada com explicações de por
que possuem muita, alguma ou nenhuma relação com o pragmatismo filosófico, daí
que conhecê-lo é útil no mínimo nesse momento.
2. O pragmatismo jurídico de Richard Posner é a mais famosa teoria dentro da
chave semântica dos “pragmatismos jurídicos”. Ela se diz uma teoria distante de todas
as variadas versões dos pragmatismos filosóficos. Na essência, é uma teoria da decisão
que sugere aos julgadores decidirem com os olhos postos nas consequências de suas
decisões. Os julgadores devem decidir de modo a produzir as consequências mais razo-
áveis, consideradas todas as variáveis relevantes para o caso — incluída a consideração
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
380 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

dos efeitos sistêmicos da decisão, isto é, os efeitos para o sistema jurídico como um todo:
a importância de se preservar a generalidade, a previsibilidade, a segurança jurídica etc.
O pragmatismo jurídico de Posner possui seis características: é (i) eclético — usa
de diversas teorias, sem maiores preocupações com consistências —, (ii) instrumental —
vê as normas jurídicas e a teoria jurídica como instrumento para um fim —, (iii) contex-
tual — dá importância ao contexto —, (iv) antiformalista — não vê a forma como um
fim em si mesmo, ainda que na maioria das vezes opte por ela graças a uma decisão
de preservação de valores socialmente percebidos como importantes ao Direito —, (v)
empírico — importa-se com a experiência e com as ciências experimentais —, e (vi)
retórico: liberta-se das amarras do discurso formal e formalizante do Direito.
Muitas críticas foram lançadas contra a teoria de Posner. Selecionamos seis: (i)
o pragmatismo de Posner estimularia uma amplíssima discricionariedade judiciária;
(ii) seria desrespeitoso para com os direitos fundamentais; (iii) seria incompleto, pois
mandaria decidir da melhor forma possível, mas não diria como se chegar a isso; (iv)
seria pouco prático, uma vez que o caminho mais fácil, seguro e barato, consideradas
as características do processo judicial e a aptidão institucional do Judiciário, seria a
adoção do formalismo como teoria da decisão. Ainda, (v) o pragmatismo posneriano
estimularia o Legislativo a produzir leis “ruins”, já que, de todo modo, elas poderiam
ser “consertadas” pelos juízes pragmatistas. Por fim, as visões instrumentalistas do
Direito (de que o pragmatismo posneriano seria exemplo) (vi) destruiriam a noção de
bem comum, porque estariam prontas a desconsiderar normas jurídicas em favor de
considerações utilitárias.
Diante de tais críticas, Posner provavelmente replicaria que seu pragmatismo
não concede discricionariedade aos juízes — apenas é transparente em relação ao que
efetivamente já ocorre — e não é menos desrespeitoso para os direitos fundamentais
do que um formalismo manipulador. Ainda, diria que os juízes, ao decidirem com
base no que pensem ser o melhor para cada um, chegarão a decisões melhores do que
as determinadas pelo formalismo. Aliás, seu pragmatismo recomendaria, por razões
pragmáticas, a adoção do formalismo como teoria da decisão na maioria dos casos. E o
argumento da crítica referente às leis “ruins” poderia ser revertido, uma vez que os le-
gisladores, mercê das virtudes do pragmatismo jurídico, poderiam se sentir convidados
a elaborar leis “melhores”, porque confiantes na complementação ativa do Judiciário.
3. Além de Posner, outros autores elaboraram teorias do pragmatismo jurídico.
Dentre eles, Michael Sullivan, procurando resgatar o pragmatismo filosófico de Dewey
numa incidência liberal junto ao Direito; o justice Stephen Breyer, reconhecendo a im-
portância dos elementos tradicionais da interpretação jurídica, mas ressaltando o papel
da análise prospectiva das consequências, bem como de se decidir de modo a reforçar a
participação dos cidadãos nas escolhas; e Jules Coleman, com uma teoria do positivismo
inclusivo que, do pragmatismo filosófico (ou jurídico), só tem o nome.
4. O pragmatismo jurídico também pode ser estudado junto às teorias da argu-
mentação jurídica. Nessa seara, uma das mais célebres é a teoria de Neil MacCormick,
que, partindo de importantes decisões judiciais na história dos EUA e da Inglaterra,
acredita que, nas hipóteses em que as normas não são claras, ou quando são omissas,
haver-se-á de apelar às consequências da decisão. Tais consequências devem ser analisa-
das à luz dos valores constitucionais e de uma possível universalização do julgamento.
Para MacCormick, consequências são implicações lógicas necessárias, e não resultados
imediatos de uma decisão, ou probabilidades estatísticas da ocorrência de eventos.
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
381

Já Aulius Aarnio apenas detalha como os argumentos consequencialistas ope-


ram em concreto. Há uma especificação das consequências atribuídas a cada uma das
possíveis decisões em análise e, então, a colocação delas numa ordem de preferência.
Logo após, retoma-se o primeiro passo, considerando-se mais bem justificada a opção de
decisão que gerará as melhores consequências. Aarnio, tal como MacCormick, acredita
que a argumentação consequencialista é o último passo do procedimento de justifica-
ção, aplicável quando as leis, a análise dos trabalhos preparatórios etc. já definiram
as possibilidades de interpretação do dispositivo. Aarnio não crê que a argumentação
consequencialista possua valor jurídico próprio: além de só incidir ao final da justifica-
ção, ela é apenas uma forma de discurso social, sem valor jurídico, na medida em que
o discurso jurídico está vinculado a fontes de Direito dotadas de autoridade.
Luigi Mengoni, ao notar a importância da argumentação consequencialista no
Direito, propõe-se a estabelecer regras metodológicas para seu uso. A primeira seria
a seleção das consequências: dever-se-ia escolher consequências prováveis, conforme
a um cálculo baseado em regras de experiência ou em modelos científicos confiáveis.
Além disso, haver-se-ia de selecionar os pontos de vista com base nos quais as conse-
quências seriam avaliadas: pontos de vista conciliadores, que conseguissem conjugar
perspectivas mais e menos “econômicas”, e outras ligadas à justiça social e ao respeito
à autonomia individual. Além de tais regras metodológicas, existiriam dois vínculos
normativos para a argumentação consequencialista: o respeito à lei e ao precedente.
5. Na doutrina brasileira, considerações pragmatistas e consequencialistas, ainda
que sem esse nome, não são novidade. Carlos Maximiliano, em 1924, alertava para a
importância de se avaliar as consequências de determinada interpretação. Hoje, com
o influxo do Direito comparado, o debate americano e europeu sobre o pragmatismo
jurídico ingressou formalmente na Academia nacional. Na prática judicial brasileira,
salvo em situações específicas — como nas decisões do CADE —, as razões consequen-
cialistas não aparecem de modo expresso — opera-se, aqui, uma espécie de criptoconse-
quencialismo —, o que não as impede de desempenharem papel importante. Decisões
recentes e antigas do STF, e o próprio comando de certos dispositivos legais (como o art.
27 da Lei Federal nº 9.868/99 ou o art. 15 da Lei do Mandado de Segurança), são prova
disso. Há, ainda, ocasiões nas quais as cortes adotaram raciocínios consequencialistas
de modo estratégico, em geral para se desafogarem da apreciação e do julgamento de
altos volumes de causas tidas por desimportantes.
6. À luz de todas as considerações anteriores, ousamos propor nosso próprio
“princípio” de pragmatismo jurídico útil ao Direito Constitucional Econômico. Ele
é um modelo cauteloso de pragmatismo jurídico; caminha ao lado de Aarnio e de
MacCormick, e distancia-se de Posner (cuja teoria, embora inaplicável à nossa realidade,
pode ser aproveitada em alguns pontos).
Num primeiro momento, apresentamos um modelo geral de operação de nosso
“princípio” do pragmatismo jurídico, que leva aspas porque não se trata, a rigor técnico,
de princípio jurídico tal como atualmente definido pela metodologia constitucional. O
modelo geral de operação consiste no cumprimento das seguintes etapas: (i) a indicação
da fonte de delegação dos poderes pragmatistas à autoridade julgadora; (ii) o uso do
argumento segundo as regras usuais da teoria padrão da argumentação; (iii) afinal,
a observância de que o resultado indicado pelo “princípio” deva ser universalizável.
Além de um modelo geral, apresentamos três hipóteses especiais de incidência do
“princípio” do pragmatismo jurídico: a) a proporcionalidade em sentido estrito — que
consiste numa análise consequencialista de custos e benefícios da adoção de decisões;
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
382 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

b) a autonegação da norma — os casos em que a incidência da norma vai negar os pro-


pósitos que ela pretende realizar; c) a “doutrina do absurdo” — quando a incidência
da norma produz consequências absurdas.
7. Além de um modelo geral de operação, e de hipóteses especiais, apresentamos
oito standards destinados a guiar a incidência de nosso “princípio” do pragmatismo.
São eles: (1) o “princípio” incide ao final da interpretação/argumentação, como teste
de reforço ou de descarte das propostas interpretativas já construídas pelos elementos
tradicionais; (2) incide dentro da extensão de significados possíveis permitidos pelo
Texto Constitucional; (3) considera apenas consequências que possam ser reconduzidas
materialmente à Constituição; (4) considera as consequências certas e prováveis, mas
não as apenas plausíveis; (5) considera consequências imediatas e futuras, mas não as
remotamente futuras; (6) considera apenas consequências fáticas cuja ocorrência se
possa provar por razoável base empírica; (7) desconsidera consequências fundacionais;
(8) prioriza consequências contextuais.

II - Quanto à razão pública


8. O debate sobre o conceito de razão pública insere-se no tema da democracia
deliberativa. A ideia é disputada por diversas correntes teóricas. Destacamos, entre tan-
tas, a proposta fundante de Joshua Cohen, que caracterizou a democracia deliberativa
como uma associação permanente na qual seus membros, reconhecendo-se mutuamente
capazes de argumentar e decidir os rumos coletivos a partir de uma troca franca de
razões, escolhem agir por intermédio de deliberações públicas, tomadas dentro de
instituições que expressem claramente seu caráter deliberativo.
Outra caracterização da democracia deliberativa é como uma forma de governo
na qual cidadãos livres e iguais justificam decisões por intermédio de um processo no
qual se oferecem razões mutuamente aceitáveis e acessíveis, com a finalidade de chegar
a conclusões vinculantes no presente, mas abertas a mudanças no futuro. A democracia
deliberativa opõe-se a uma ideia de democracia como competição baseada em interesses
autocentrados e governada por barganhas. Como vantagens da democracia deliberativa,
temos que ela (i) estaria mais pronta a incorporar dados científicos; (ii) que o modelo
deliberativo forneceria condições ideais de imparcialidade e de racionalidade; e que (iii)
os resultados havidos a partir do processo deliberativo seriam muito provavelmente
moralmente corretos.
Claro que há críticas. Quem discorda da proposta democrático-deliberativa alega
(i) suposta irrealidade das constrições discursivas assumidas como necessárias à deli-
beração; (ii) que a democracia deliberativa formularia exigências pouco claras; (iii) que
ela imporia algum grau de manipulação ideológica; (iv) que a democracia deliberativa
desestimularia a participação política.
Respostas a essas críticas passam pela indicação de operacionalidade aos crité-
rios democrático-deliberativos, pela vindicação de maturidade e institucionalização à
proposta (hoje já conta com algumas experimentações e práticas sociais), pela rejeição
da alegação de manipulação ideológica (ela só imporia certos pressupostos básicos para
a deliberação, mas os resultados estariam abertos) e, afinal, pela aceitação de algum
grau de debilitação no fervor político em prol de uma expansão nas bases de inclusão
de partícipes na deliberação.
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
383

9. A expressão “razão pública”, de origens políticas e literárias diversas, teve sua


primeira utilização dentro da filosofia política e moral por Kant, mas ganhou projeção
graças à obra do filósofo político americano John Rawls.
Na proposta teórica de Rawls, as sociedades contemporâneas ocidentais, diante
da existência de instituições livres, encontram-se diante do fato do pluralismo, cons-
tituído pela coexistência de uma série de doutrinas abrangentes razoáveis. Como tais
doutrinas pronunciam-se simultaneamente a respeito de ampla gama de assuntos —
religiosos, culturais, econômicos, filosóficos —, elas não podem estar todas certas ao
mesmo tempo. Excluída a resolução de divergências pela força — o que não seria
razoável —, resta às sociedades apelarem a um consenso sobreposto, consenso estrita-
mente político, não religioso ou filosófico. Cada doutrina aderirá ao consenso por suas
próprias razões, que será estável e incluirá alguns princípios procedimentais básicos e
alguns direitos substantivos.
As razões públicas serão as razões que poderão orientar o debate público numa
sociedade que tenha aderido ao consenso. É um ideal cívico dirigido a juízes, adminis-
tradores, legisladores, candidatos em campanha e eleitores (ao momento da votação)
para que, quando argumentarem a respeito de elementos constitucionais essenciais e
questões básicas de justiça, façam-no apenas com o uso de razões capazes de serem
aceitas por todas as parcelas da sociedade, e, se for o caso, baseadas em assunções
empíricas não polêmicas.
O uso das razões públicas fortaleceria dois ideais: o da estabilidade social e o da
legitimidade das decisões. Considerando que a ideia de razão pública pode ser aplicada
à doutrina jurídica, que é quase sempre normativa, e, portanto, busca guiar juízes e
administradores em suas decisões, e, ainda, que sua abrangência material pode dar-se
para além dos limites propostos por Rawls — em especial nos casos em que se trate
de interpretar um direito fundamental —, elaboramos uma proposta de razão pública
operacional e baseada na Constituição brasileira.
10. Nossa proposta de razão pública acredita em razões públicas quando elas (i)
estejam fundadas em evidência científica amplamente majoritária, e/ou (ii) sejam rasas/
não filosoficamente profundas, e, em todo caso, (iii) sejam universalizáveis e capazes
de serem aceitas por todos os participantes do debate político-econômico como razões
que os respeitem na condição de agentes igualmente dignos de consideração.
Será, quanto à sua natureza jurídica, um critério interpretativo baseado, em termos
dogmáticos, no art. 1º, V, da Constituição da República — o “princípio do pluralismo
político”.
11. Como nenhuma proposta é aceita sem críticas, muitas foram lançadas contra
o ideal da razão pública formulado por Rawls. Se nossa proposta é dela tributária, as
críticas deverão ser analisadas e, na medida do possível, respondidas.
Diz-se que a razão pública é (i) estéril, pois foge dos principais debates de uma
época e de um lugar; (ii) impossível; (iii) ampla demais, incapaz de fornecer razões su-
ficientemente motivadoras para uma ação diante de um tema polêmico; (iv) restritiva
demais; (v) incoerente, e, no fundo, ideológica.
Possíveis respostas incluem afirmar que (i) o conceito não é estéril — ele apenas
exclui, e assim mesmo só para certos assuntos e pessoas, visões ideologicamente car-
regadas e/ou baseadas em dados empíricos duvidosos, deixando livre a maior parte
dos conteúdos, polêmicos ou não, em curso na sociedade —; (ii) ele não é impossível:
é uma ideia regulativa, e deve ser aproximado até o máximo possível, ainda que ja-
mais seja cumprido na prática; (iii) não há como se afirmar que a razão pública seja
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
384 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

insuficientemente motivadora para a ação; na pior das hipóteses, a simples consideração


de sua existência já lhe significará uma atribuição de eficácia; (iv) ela não é restritiva: há
diversas razões públicas, e Rawls admite mesmo o fornecimento de razões não públicas
junto às razões públicas; (v) ela não é “trapaceada”: só exige alguns requisitos mínimos,
mas permite a eclosão de diversos resultados.
A razão pública possui limites fáticos e psicológicos. Os fáticos seriam incertezas
quanto ao estado da ciência (e eventuais repercussões disso junto à assunção da verdade
ou da falsidade de ideologias). Os psicológicos seriam a tendência a se autoconsiderar
um emissor de razões públicas, e de se perceber o esforço de acomodação das próprias
razões como superior àquele despendido pelos outros participantes da deliberação.
Contra tais limites, só resta investir no acréscimo do conhecimento científico e na boa-fé
e autoconsciência dos agentes deliberativos.
12. Uma compatibilização entre o “princípio” do pragmatismo jurídico e o cri-
tério da razão pública — cujas proximidades e distanciamentos centram-se no caráter
fundacional ou antifundacional do liberalismo político de Rawls, no que seria, ou
não, um ponto de contato com o pragmatismo — faz-se pelo apelo a acordos práticos
teorizados de modo incompleto — conceito de Cass Sunstein: acordos operacionais
baseados em platitudes ou em assunções filosóficas de “média” profundidade. Ao
fazê-lo, evitamos infindáveis discussões a respeito da harmonia entre os pressupostos
filosóficos de cada critério.

III - Quanto à intervenção direta


13. A origem das sociedades de economia mista é a origem das sociedades por
ações. A origem da empresa pública é mais recente. A razão de ser de ambas é seme-
lhante: surgem para operar a intervenção direta do Estado na economia e para escapar
às amarras do formalismo. Sua conceituação legal está no Decreto-Lei nº 200/67 e na
Lei nº 13.303/2016, a Lei das Estatais.
Quanto à sua constituição, ambas vêm do registro de seus atos constitutivos no
registro apropriado, após autorização legal. A respeito desse ponto, houve discussão
no STF sobre se poderia existir autorização legislativa genérica para a constituição de
subsidiárias, com solução positiva, o que se mostra pragmaticamente correto, à luz
das possíveis consequências da decisão. Esta também é a solução da Lei das Estatais.
Diferença entre as espécies estatais há quanto ao conteúdo: empresas públicas pos-
suem capital e patrimônio exclusivamente estatal, ao passo que sociedades de economia
mista possuem controle acionário público, mas capital misto. Empresas públicas podem
adotar qualquer forma societária — inclusive formas inéditas, no caso das federais —,
ainda que, preferencialmente, devam ser SAs, ao passo que sociedades de economia
mista só podem ser sociedades por ações. Quanto ao objeto, ambas só podem explorar as
atividades e prestar os serviços elencados em suas leis autorizativas — como incidência
da legalidade e como garantia do acionista (no caso das sociedades de economia mista).
Falando em objeto, surge o debate a respeito dos conflitos, potenciais ou reais,
entre o Poder Público e os acionistas privados na sociedade de economia mista. O
ponto necessita ser desdramatizado. Talvez interesse público e privado não estejam tão
em linha de colisão. Pode-se até buscar harmonizá-los por uma distinção entre objeto
e fim das estatais: ao realizar seu objeto econômico, as estatais cumprem seu fim de
interesse público. Seja como for, ao acionista privado é importante entender que não
está concorrendo com seu capital para empresa privada comum — tanto mais que ele
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
385

está ciente da existência de benefícios advindos da própria condição de estatal —, e


ao Poder Público é importante entender que não pode se desviar muito da finalidade
lucrativa ou impor sacrifícios insuportáveis ao particular. Há regras específicas sobre
o ponto na Lei das Estatais.
Outra discussão reside em saber se estatais podem participar do Novo Mercado
da Bovespa. Parece-nos possível, tanto que as supostas incompatibilidades derivam
mais de preconceitos do que de óbices reais.
O regime jurídico das estatais é privado, ainda que submetido a exceções, cuja
incidência deve-se interpretar de modo contextualista, isto é, a depender do contexto
da atuação: maiores ou menores conforme estejam prestando serviços públicos ou
exercendo atividade econômica em sentido estrito.
Os bens das estatais são, em princípio, bens privados, mas, se afetados direta-
mente à prestação de um serviço público, serão impenhoráveis. Esta regra de ouro é,
no entanto, desafiada por uma série de problemas: nem sempre é possível distinguir o
uso do bem para uma atividade econômica e para a prestação de um serviço público; às
vezes há conexão funcional entre as duas atividades; e, de qualquer modo, já se admite
a penhora de bens públicos, em situações excepcionalíssimas.
Assumindo posição num antigo debate, defendemos que estatais podem exercer
poder de polícia, desde que, em princípio, só possuam capital público e que não
intervenham concorrencialmente na economia. Outro debate importante é sobre as
licitações das estatais. Defendemos que o critério central é o da concorrencialidade da
atuação (e não, por exemplo, o critério mais frequentemente citado da atividade-meio
e da atividade-fim), em especial porque, à parte a por vezes difícil distinção entre o
que é meio e o que é fim na empresa, há muitos casos em que o diferencial de eficiência
no exercício da atividade-fim da empresa está na organização eficiente da atividade-
meio (eficiência que a exigência de licitação poderia vir a neutralizar). Mais uma vez,
portanto, defendemos uma visão pragmatista-contextualista.
A Lei das Estatais, contudo, adotou o critério da atividade-fim e da atividade-
meio, e merece leitura que lhe tempere as regras indeferenciadas sobre licitação e
contratação, tornando-as adaptativas à radical heterogeneidade das estatais brasileiras.
Ainda escrevendo sobre temas clássicos, veio o do controle das estatais. No debate
que causa maior espécie, o da abrangência e da intensidade do controle dos Tribunais
de Contas, sustentamos que, se é inegável o controle (posição mais recente do STF), o
problema então está no “como”, e não no “se”.
Construímos dois standards gerais e dois standards específicos. Os gerais são: (i)
quanto mais próxima ao exercício de uma função pública ou da prestação de serviços
públicos, maior o controle; (ii) quanto mais demonstradamente eficiente a atuação dos
controles internos às próprias estatais, menor o controle. Os standards específicos: (i)
atividades de gestão ordinária estão submetidas ao controle das cortes de contas; (ii)
decisões empresariais estratégicas, não.
Quanto à incidência dos princípios constitucionais da Administração às estatais,
percorremos os cinco do caput do art. 37, analisando suas possíveis especificidades.
Finalmente, defendemos que a extinção das estatais pela falência é, atualmente, ina-
plicável. A par a dicção expressa da lei em vigor, o mecanismo é operacionalmente
inviável — sem falar que, muito provavelmente, isso jamais ocorreria na prática.
14. A doutrina aponta tradicionalmente três limites à intervenção direta concor-
rencial na economia: o interesse público — pressuposto da ação estatal —, a propor-
cionalidade e a subsidiariedade.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
386 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Falando na subsidiariedade, sua origem histórica é controversa, mas suas in-


cidências, com diversos conteúdos operacionais, são amplas. O que nos interessa é a
subsidiariedade da intervenção do Estado na economia.
Nessa incidência, a origem apontada são ensinamentos da Igreja Católica lan-
çados contra o socialismo, posteriormente deslocados até uma crítica ao Estado de
Bem-Estar Social.
Quatro fundamentos são apontados para justificar a subsidiariedade: a autonomia
privada, a justiça, o pluralismo social e a dignidade da pessoa humana.
Sua fonte constitucional formal estaria principalmente na redação do art. 173 da
Constituição da República.
Não concordamos que a subsidiariedade seja um princípio constitucional — ela
é uma diretriz infraconstitucional de organização do Estado, que pode, ou não, ser
adotada pela legislação — e acreditamos, mesmo, que tal argumentação não configure
uma razão pública.
Tal princípio não teria base na autonomia privada, na justiça, no pluralismo ou na
dignidade humana — em alguns casos, ele iria até em sentido contrário à afirmação de
tais valores —, mas seria rematada expressão de uma área não abrangida pelo consenso
sobreposto de uma doutrina abrangente, razoável, específica.
O que estaria constitucionalizado seria o Estado Democrático, não o Estado
Mínimo ou o Estado Máximo.
A questão a respeito de maior ou menor intervenção do Estado na economia não
seria, de ordinário, questão constitucional, exceto quando se tratassse da supressão de
direitos fundamentais por ação ou omissão.
A vindicação de um princípio constitucional da subsidiariedade seria, ainda, anti-
pragmática, na medida em que anticontextual (os contextos mudam) e fundacionalista.
A inexistência da subsidiariedade como princípio constitucional estaria em
consonância com a jurisprudência francesa recente, e poderia ser extraída da lição do
Direito comparado dos EUA e da Alemanha.
Em que pesem as críticas recebidas a este ponto, na primeira edição do livro,
acreditamos que o argumento possa ser preservado.
15. Falando de intervenção monopolística, monopólio é palavra antes econômica
que jurídica, cuja origem pode ser reconduzida a Aristóteles, em A política.
Há monopólios naturais, monopólios derivados da conquista do mercado à
conta de eficiência produtiva, e monopólio legal, assunto que nos interessa na espécie
monopólio público, cuja sede constitucional é o art. 177 da Constituição.
O Supremo, ao julgar a chamada ADI da Lei do Petróleo (ADI nº 3.273-9/DF),
estabeleceu alguns parâmetros para sua compreensão. Monopólio é sempre de atividade,
nunca de um bem. Monopólio incide sobre atividades econômicas; a ele não se aplica
a livre iniciativa e seu conteúdo foi flexibilizado pela EC nº 9/95.
Ao contrário da maioria da doutrina, sustentamos que seja possível a criação de
monopólios legais por lei ordinária. A uma, porque o Texto Constitucional não per-
mite a extração de dados com base nos quais se possa afirmar que houve um silêncio
eloquente quanto ao ponto (em relação à redação da Constituição de 67/69); a duas,
porque a lição de que “exceções” se “interpretam restritivamente” costuma esconder
manipulações argumentativas que configuram exceções — sem explicar o porquê — e
pressupõem graus de intensidade para tal “interpretação restritiva”.
O grande filtro à criação de monopólios públicos seria, então, apenas e tão
somente — no que já bastariam, se levados a sério —, os pressupostos do “relevante
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
387

interesse coletivo” e do “imperativo de segurança nacional” presentes no art. 173 da


Constituição da República. Argumentar a favor da vedação constitucional implícita à
criação de monopólios públicos por intermédio da legislação infraconstitucional signi-
ficaria usar de razões não públicas extraídas do constitucionalismo econômico-liberal.
Também não haveria um princípio exegético geral “restritivo” que orientasse
a interpretação da abrangência do conteúdo material dos monopólios: a intervenção
estatal não é um bem ou um mal em si mesma, mas uma função destinada a cumprir
uma finalidade.
16. Atualmente, fala-se na adoção de uma série de técnicas menos constritivas,
se comparadas à intervenção direta do Estado. É o chamado neointervencionismo —
opção de índole infraconstitucional — operado no uso de golden-shares, na cooperação
entre estatais e empresas privadas e na participação minoritária estratégica em empre-
sas privadas. São ideias possíveis, cujo uso dependerá da eficiência na obtenção dos
resultados a que se proponham, e não de uma diretriz ideológica extraída de alguma
metafísica constitucional.

IV - Quanto ao poder de polícia


17. Na origem, o conceito de poder de polícia confundia-se com a atuação estatal,
mas a evolução depurou seu conteúdo.
Há um sentido amplo — disciplinar a conduta privada, inclusive pela edição de
leis — e um sentido estrito — a atuação administrativa propriamente dita.
Em que pese o conceito possuir referência constitucional e legal, boa parte da
doutrina nacional e estrangeira sustenta que poder de polícia é noção inútil — porque,
hoje em dia, confundir-se-ia com uma série inespecífica de atuações do Estado — e pe-
rigosa, pois teria uma origem pré-constitucional, no chamado Estado de Polícia, e não
colocaria em relevo aspectos importantes do Estado Constitucional de Direito, quiçá
fazendo supor um poder coercitivo genérico e pré-legal do Estado.
Não concordamos com isso. É pragmaticamente útil continuar dispondo do
conceito de poder de polícia; seu risco virtual é compensado por sua utilidade atual.
18. Poder de polícia não é polícia judiciária, não se confunde com atividade
policial-militar, não é prestação de serviço público, não é regulação jurídica da econo-
mia — pode até englobar tal conceito, bastando alguns ajustes doutrinários —, não é
relação de sujeição geral.
Como características, apontam-se (i) sua discricionariedade (o que é afirmação
discutível, na medida em que os atos não “são” discricionários ou vinculados, são mais
ou menos discricionários ou vinculados), (ii) sua presunção de validade e de veracidade,
(iii) sua autoexecutoriedade, (iv) sua exigibilidade, (v) sua instrumentalidade em relação
à realização dos direitos fundamentais (o que se deve entender apenas como “confor-
mação aos direitos fundamentais”, nunca como “apenas para a realização de direitos
fundamentais”, na medida em que os propósitos legítimos e democráticos de atuação
pública são superabrangentes em relação à noção usual de direitos fundamentais), e (vi)
sua instrumentalidade à realização da democracia (o que, na nossa proposta, far-se-á
pela incidência do critério da razão pública).
19. Falando de limites ao exercício da polícia administrativa, os limites clássicos
são os elementos do ato administrativo — competência, forma, finalidade, motivo e
objeto (ou conteúdo) —, a submissão ao devido processo e a incidência do princípio
da legalidade.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
388 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Os novos limites são o respeito à dignidade humana, a incidência da proporcio-


nalidade e a preservação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Quanto a esse último limite, é de se notar que a dogmática majoritária de Direito
Administrativo, em que pese afirmar seguir a teoria dos direitos fundamentais e a teoria
dos princípios, acaba defendendo a existência de conceitos como o de conformações
e o de restrições de direitos (ou limites e sacrifícios de direitos), o que é compatível
com a adoção de uma teoria dos princípios, já que estabelece limites prévios — e não
argumentados — à ponderação. Assim, não existiria uma necessidade autônoma de
respeito ao núcleo essencial dos direitos, nem diferenças entre restrição e conformação:
tudo dependeria da ponderação a ser realizada nos casos concretos.
20. Os novíssimos limites ao poder de polícia seriam o “princípio” do pragma-
tismo jurídico, o qual incidiria em conformidade com os standards por nós propostos,
e a razão pública.
Quanto a essa, ela impediria, em princípio, controles “substanciais”, de conte-
údo, quando no exercício da atividade de polícia — no que estaria em conformidade
com a lição clássica de Hauriou —, mas, quando isso se mostrasse imperioso, imporia
a necessidade de que as razões para a ação fossem não polêmicas e respeitosas a todos
os participantes da comunidade política.

V - Quanto ao fomento público


21. Fomento público significa apoiar, por meio do Estado, o desenvolvimento de
atividades privadas de interesse social. Não é polícia, porque não é disciplina de ativida-
des privadas, mas sua promoção. Não é serviço público porque este está a cargo, direta
ou indiretamente, do Estado, ao passo que a atividade fomentada é tipicamente privada.
Por essa mesma razão, não é intervenção direta, seja monopolística ou concorrencial.
Também não é regulação — a se crer na existência de conceito autônomo de regulação —;
não se crê na existência de um fomento regulador: todas as potencialidades de um
fomento regulador já são realizadas pelo puro e simples fomento.
22. O fomento público possui diversas características. (i) Seu exercício se dá, num
primeiro momento ao menos, sem coerção. (ii) O particular não é obrigado a aderir
a ele. (iii) Não é doação nem liberalidade pública. (iv) É seletivo, ainda que não anti-
isonômico. (v) É unilateral, na medida em que não há um sujeito ativo que lhe reclame
a execução. (vi) É, em princípio, transitório e, ainda que possam existir atividades que
demandem ajudas públicas mais temporalmente extensas, é de bom alvitre submeter
qualquer plano ou propósito de fomento a revisões periódicas.
23. Há vários meios de atuação do fomento, bem assim instrumentos operacionais.
Os meios podem ser negativos ou positivos; honoríficos, econômicos (divididos
em meios reais, fiscais e econômicos propriamente ditos), jurídicos, e, talvez, psicoló-
gicos. Mais importantes são os meios econômicos, em especial a subvenção.
Instrumentos comuns de fomento público são os convênios, os editais, e os con-
tratos (ainda que a atividade de fomento público não seja propriamente uma atividade
contratual, à qual se apliquem os princípios clássicos da teoria dos contratos; também
não há de se falar em qualquer razão não pública orientando uma interpretação pró ou
contra a concessão da ajuda pública).
24. O fomento público carreia riscos. O principal deles é a paralisia do elã privado,
da eficiência operacional. Outro risco é o falseamento das condições da concorrência.
Risco interessante é o da administrativização do espaço privado, o risco de “dominar ali
CAPÍTULO 4
CONCLUSÃO GERAL
389

onde ajuda”. O particular fomentado acabaria cedendo em sua autonomia intelectual,


artística, empreendedora etc. a algum direcionamento não republicano do agente fo-
mentador. Para tentar evitar ou, no mínimo, reduzir a força de tais riscos, propusemos
alguns critérios.
25. Tais critérios dividem-se em duas categorias: formais e materiais. Podem,
ainda, dizer respeito à elaboração ou à concessão do fomento público.
Os critérios de elaboração são (i) a submissão ao debate público (desde que isso
seja possível) e (ii) a compatibilidade entre os requisitos de acesso ao fomento e o direito
ou atividade que se pretenda fomentar.
Os critérios formais de concessão são: (i) transparência e procedimentalização,
(ii) competividade, e (iii) objetividade.
Os critérios materiais de concessão são: a) não lucratividade, b) eficiência do gasto
público (critério que configura incidência específica do pragmatismo jurídico junto à
seara do tema), e c) razão pública. Quanto à razão pública, ela veda o uso do fomento
para o avanço de atividades, teses e conteúdos que não tratem todos os cidadãos como
membros dignos de igual consideração e respeito.

VI - Quanto à regulação pública


26. Os principais problemas da regulação são de (i) informação e (ii) de adesão.
(i) O Poder Público não possui domínio epistêmico total sobre a realidade, o que, se, por
um lado, abre espaços de liberdade à sociedade, por outro pode implicar erros custosos.
(ii) O Poder Público deve poder contar com um grau mínimo de adesão à sua ação.
27. Contra os problemas de informação, a primeira estratégia é a da centraliza-
ção: uma entidade pública recolhe a informação dispersa na sociedade e no Governo
a respeito de determinada ação pública. É como ocorre nos Estados Unidos, por força
da atuação do OIRA, órgão de apoio do Presidente da República.
A segunda estratégia, adotada no Brasil, é a de assumir a dispersão da infor-
mação. Órgãos e entidades públicas possuem seus próprios mecanismos de coleta de
informação; visões parciais fazem-se presentes a todo tempo.
A estratégia da centralização gera, em média, regulações mais coerentes. Por
outro lado, pela amplitude da exposição à informação múltipla, ela pode fazer com
que os órgãos reguladores atuem menos — e isso pode ser problemático. A estratégia
da dispersão, embora produzindo, muitas vezes, regulações incoerentes, permite mais
facilmente a eclosão de regulações novas. É provável que alguma mistura entre as duas
perspectivas viesse a produzir resultados ótimos.
28. Diante dos problemas de adesão, a primeira estratégia é a de realizar audiên-
cias e consultas públicas. Muito populares até pouco tempo, hoje, a par de suas inegáveis
virtudes, já se questiona se não levariam à ossificação da atividade regulatória, se não
acabariam sendo instrumentalizadas como estratégia de bloqueio da ação pública, se
não permitiriam a captura epistêmica do regulador, e se, em certos casos, não seria
preferível o debate parlamentar a elas. Conviria, então, adotá-las, mas sem esperar
mais do que o que podem dar.
A segunda estratégia é investir em ações regulatórias que respeitem o padrão
como os seres humanos processam informações e realizam decisões. Aqui, as contri-
buições da economia comportamental vêm-se mostrando promissoras, o que permitiu
a alguns autores sugerirem que o Poder Público atue como um arquiteto de escolhas,
guiando os invidíduos em prol de direções socialmente úteis. A proposta, no entanto,
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
390 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

recebe críticas, e, no Brasil, começa a ser estuda, mas ainda não é significativamente
aplicada.
A terceira estratégia é realizar análises de impacto regulatório, o que permite
prever e monitorar os efeitos práticos da regulação. Atualmente populares, são pro-
cedimentos que pretendem identificar e qualificar dados, prever consequências, e, a
partir daí, traçar cursos de ação regulatória. Podem ser úteis, mas também possuem
limites — um deles é esquecer que se tratam de racionalizações, e não de profecias —
e riscos, muitos dos quais semelhantes àqueles que recaem sobre as audiências e con-
sultas públicas.
29. Há dois problemas da regulação que merecem destaque: (i) o viés de foco e
(ii) o viés de comprometimento com a missão.
O viés de foco é miopia seletiva, comum em especialistas, que impossibilita a
abordagem do problema sob perspectivas ignoradas pelo regulador. Busca-se neutralizá-
lo por meio da centralização da informação, pela realização de audiências e consultas
públicas, pela adoção de análises de impacto, e, em ambientes em que a informação é
dispersa, pela troca local de expertises.
O viés de comprometimento com a missão é a tendência, das autoridades re-
guladoras, a sugerirem propostas que impliquem mais regulação, pois é isso o que
sabem fazer e é isso o que elas fazem. Busca-se atenuá-lo pela existência de instâncias
de controle da atuação das entidades reguladoras.
30. É possível cogitar do paradoxo segundo o qual a super-regulação cause a
sub-regulação. A busca pela extirpação do risco pode causar o esgotamento de recur-
sos públicos. A regulação intensa pode redundar na rejeição intensa. Sendo assim, na
média, é melhor optar por regulação mais abrangente — cobrindo mais riscos e mais
atividades —, e menos intensa.
31. Das várias propostas que, hoje, são apresentadas na seara da regulação públi-
ca, uma das mais interessantes é a da Nova Governança. Trata-se de indicar objetivos
regulatórios preliminares, de liberar as entidades reguladas para os perseguirem da
forma como souberem melhor fazê-lo, e de monitorar, revisando, os resultados alcan-
çados. Então, é hora de divulgar as melhores práticas adotadas para que as entidades
reguladas, querendo, venham a adotá-las. Outra forma de se praticar a Nova Governança
é negociando, junto à iniciativa privada, a adoção de mecanismos internos de controle
de riscos e de aferição de qualidade.
A Nova Governança abre-se à experimentação e incorpora o know how da socie-
dade. É regulação focada em resultados, não em processos. É pragmatista: incorpora a
inovação como dado essencial.

Encerramento
Fazer incidir o pragmatismo e a razão pública na interpretação jurídica da
Constituição Econômica significa acreditar que é possível ser prático e democrático.
Há nessa dupla proposta um caráter experimental e criativo que se adapta às individu-
alidades e coletividades plurais deste início de século XXI. A história da Constituição
Econômica está longe de terminar: ela está sempre plena de retornos e de ciclos. Daí
que, resguardadas certas garantias civilizacionais, ela só se deve permitir capturar pela
vontade democrática de cidadãos livres e iguais. No mais, a História não acabou. Na
verdade é exatamente o contrário: é hoje — como em todos os dias — que tudo começa.
POSFÁCIO

ATUALIDADE DO LIVRO

O Brasil em que a tese de doutorado que deu origem a este livro começou a ser
escrita, em 2005, não é o Brasil do ano em que o livro foi publicado — meados de 2014.
O Brasil da segunda edição — final de 2017 — não é mais o Brasil de 2014 (Stephen
Dedalus talvez tenha razão: a história é um pesadelo do qual estamos tentando acordar).
Mudou o Brasil, mudou o Direito, mudaram até os livros de Direito.
Comecemos pelo Direito, e por um dos temas do livro: o pragmatismo (o outro
será mencionado à frente). O pragmatismo jurídico e palavra próxima — o conse-
quencialismo — chegaram à moda acadêmica e, em grau crescente, à prática forense.
Consequencialismo tornou-se termo utilizado para seja lá o que for que tenha a ver
com consequências.
Este livro, que percorre horizontal e verticalmente o assunto, talvez encontre
momento mais oportuno hoje do que à época em que a tese foi escrita.
Exceto por um dado, que tem a ver com a mudança nos livros de Direito: hoje,
ninguém mais lê nada em profundidade. A era dos livros jurídicos acabou: vivemos a
era da informação picotada, obtida pela internet, e repetida memeticamente — inclusive
e perigosamente nas salas de aula e nos tribunais. A informação jurídica do ano de 2017
é um meme com pretensões letradas. Livros de Direito são, hoje, cartões de visita, ou,
na melhor das hipóteses, fetiches vintage. Eles podem ser, ainda, pontuação-para-a-
CAPES: números, e não ideias.
E aqui chegamos ao terceiro ponto, ponto mais geral, mas com implicações para o
Direito. Há, em nossa sociedade (mas também no mundo), cada vez mais informação e
cada vez menos atenção. Esse excesso de informação fez com que só sobressaísse o que
é gritado — e a solução foi gritar mais alto, até o ponto em que só os gritos importam.
Ora, embora gritar seja por vezes necessário — e, até, a única coisa que se tem —, não
se constrói uma democracia sem moderação, virtude republicana por excelência.
Diante do fenômeno da polarização da sociedade brasileira, mais do que nunca
se faz importante a cultura da razão pública. Razões não públicas — não só afirmadas
em comunidades virtuais de reforço epistêmico de semelhantes, mas especialmente
nelas — estão se polarizando ao limite do infinito.
É claro que a cultura de fundo pode usar razões não públicas. O problema não
é esse. É que, mercê da impregnação da vida por razões não públicas afirmadas até o
limite da violência — infelizmente, não apenas simbólica —, a atuação pública pode se
ver levada a agir por razões não públicas. É um erro e é um perigo.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
392 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A era dos extremos não acabou. Na verdade, é exatamente o contrário: ao que


parece, é por agora que ela começa. Mais do que nunca, precisamos, nos foros adequa-
dos, formular razões práticas conforme a um ideal de razão pública. E, sempre, recusar
a simplificação, a etiquetagem. Dizia Oscar Wilde: a verdade raramente é pura, mas
ela nunca é simples.
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