Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
PUC-SP
SÃO PAULO
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2018
Banca examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Autorizo a divulgação do texto completo em base de dados especializadas e a reprodução total
ou parcial, por processos de fotocopiadores, exclusivamente para fins acadêmicos ou
científicos, desde que citada a fonte.
Dedico à todas as mulheres da periferia que lutam diariamente para (re)existir
Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro, sem o qual este trabalho não seria possível
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, por ter acolhido a mim e a este trabalho, com tanto carinho e
respeito desde o início. Por ter ido ao lançamento da exposição, por ter assistido ao
documentário naquele sábado à tarde. E por ter me ajudado a dar esses primeiros passos como
pesquisadora e analista do discurso.
À Silma, por ter me incentivado a desenvolver essa pesquisa, por ter me apresentado a
Análise do Discurso, e por todas as preciosas contribuições oferecidas desde o início do meu
percurso até a qualificação.
À Ana Raquel, pelas contribuições oferecidas no dia em que visitou nosso grupo.
Ao meu companheiro de vida, Gabriel, por sempre acreditar em mim e nos meus sonhos,
por dividir os prazeres e as dores de cada projeto. Por ser amor e poesia nos dias mais difíceis,
por não me deixar desistir nunca.
À minha mãe por me apoiar e cuidar de mim quando o fardo está pesado. Por ter me
ensinado o valor do amor e da partilha da vida com o outro. Por me ensinar a ser uma mulher
forte, e a enfrentar o mundo de cabeça erguida.
À minha quebrada, Cidade Tiradentes, o melhor lugar do meu mundo, e aos meus
vizinhos e amigos, por terem me ensinado o sentido da vida em comunidade.
Ao Cleber, por ser um amigo tão especial, por ser porto seguro, mesmo quando está
longe, por acreditar e me ajudar sempre que eu grito.
Ao Vagner, por me dizer que eu também conseguiria, assim como ele conseguiu, por
me inspirar tanto e por me socorrer tantas vezes durante a finalização dessa dissertação.
Aos amigos do Atelier Linguagem e Trabalho, pelos aprendizados e afeto
compartilhados.
À Maria Lúcia e aos professores do LAEL, pelo apoio durante meu percurso.
Aos amigos do Porvir, meu trabalho, Larissa, Tatiana, Marina, Vinicius, Hiolanda, Ana
Lemos e Anna Penido, por me incentivarem e apoiarem todas as vezes que precisei me ausentar
para me dedicar ao desenvolvimento dessa dissertação.
Somos maioria. Somos minoria. Pobres, pretas,
brancas, periféricas. Migrante, nordestina, baianinha,
quilombola, indígena
[...]
Somos mães solo que registram os nomes dos filhos
de pais “desconhecidos”.
Somos as 'mãezinhas' que gritam nos corredores da
maternidade. – 'Na hora de fazer não gritou!'.
Somos avós que criam os frutos da gravidez na
adolescência.
Somos aquelas que amam os filhos da patroa.
[...]
Somos quem chora quando nossos filhos são mortos
por serem suspeitos.
Somos mães de maio, de junho, setembro…
Somos quem vai ao posto atrás de remédio e pra
agendar consulta pra daqui a cinco meses.
Somos quem cria os abaixo-assinados para pedir
creches.
Somos quem trabalha em mutirão carregando bloco e
fazendo marmita.
Somos quem denuncia que a vizinha apanha do
marido.
Somos amor, perdão, paciência, doçura, fortaleza.
Somos esperança.
Somos Nós, mulheres da periferia!
Trecho do manifesto
do Coletivo Nós, mulheres da periferia
RESUMO
Esta pesquisa tem origem no trabalho desenvolvido pelo coletivo Nós, mulheres da periferia,
grupo criado em 2014 por nove comunicadoras que moram na periferia de São Paulo, com o
objetivo de produzir um jornalismo focado nas questões relacionadas às mulheres da periferia.
Em 2015, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o coletivo viabilizou,
em três etapas, o projeto Desconstruindo Estereótipos: 1) oficinas, com cerca de cem
participantes, com o objetivo de discutir as representações da mulher da periferia na grande
mídia; tais discussões foram seguidas por exercícios de pintura e fotografia que permitiram a
essas mulheres contar suas histórias de vida; 2) entrevistas, em vídeo, gravadas com nove das
participantes das oficinas; 3) exposição artística multimídia criada com parte do material
elaborado nas oficinas e captado nas entrevistas. A exposição, intitulada QUEM SOMOS [POR
NÓS], ocupou o salão principal do Centro Cultural Municipal da Juventude Ruth Cardoso, na
periferia da zona norte, e ficou em cartaz durante um mês. A partir de enunciados recortados
do material apresentado na exposição, foram analisadas entrevistas de algumas das mulheres
que participaram das oficinas, com o objetivo de compreender como elas (re)constroem,
discursivamente, sua identidade na relação com outros discursos que circulam nos espaços
públicos. Do ponto de vista teórico, a pesquisa apoiou-se nas noções de formações discursivas
temáticas, cena de enunciação e ethos, tais como propostos e desenvolvidos por Dominique
Maingueneau, e também nos princípios do feminismo interseccional, com base em Crenshaw,
segundo o qual é inextricável a relação entre as opressões de gênero, classe social e raça na
constituição de tais identidade. Cada dimensão foi apreendida na condição de formação
discursiva - noção que caracteriza os limites da identidade de um discurso - de forma a
depreender a produção dos sentidos e a interrelação entre eles no espaço interdiscursivo. A
cenografia construída apoia-se em uma topografia de opressão e anulação e em uma cronografia
de luta pela diminuição das desigualdades, mobilizando outros discursos contemporâneos de
empoderamento das mulheres. Em relação à imagem construída pela enunciação, depreende-se
o ethos de mulheres fortes que corresponde a um fiador capaz de participar desse mundo ético
de resistência e enfrentamento de tais injustiças sociais.
This research is based on the work developed by the collective “Nós, mulheres da periferia”, a
group created in 2014 by nine women communicators who live in the periphery of São Paulo
with the purpose of producing journalism focused on issues related to women living in the
periphery. In 2015, with the support of the São Paulo City Department of Culture, the collective
enabled a project entitled Desconstruindo Estereótipos, which was divided into three-stages: 1)
workshops with nearly one hundred participants aiming at discussing how women from the
periphery are represented in the mainstream media; the discussions were followed by painting
and photography exercises through which these women told their life stories; 2) video-recorded
interviews with nine workshop participants; 3) multimedia art exhibit created using part of the
material produced in the workshops and captured in the interviews. The exhibition, entitled
QUEM SOMOS [POR NÓS], was held at the main hall of the Centro Cultural Municipal da
Juventude Ruth Cardoso, in the periphery of São Paulo city north zone, and was open for
visitation during a month. Based on statements selected from the material presented in the
exhibition, the interviews given by some of the women who participated in the workshops were
analyzed with the purpose of understanding how they discursively (re)construct their identities
in relation to other discourses existing in public spaces. From the theoretical perspective, the
research was based on the notions of thematic formations discursive, scene of enunciation, and
ethos, as proposed and developed by Dominique Maingueneau, and also on the principles of
Crenshaw’s intersectional feminism, according to which the relation between gender-, social
class-, and race-based oppressions is inextricable in the constitution of identities. Each
dimension was understood as a discursive formation – notion that characterizes the identity
limits of a discourse – in order to infer the production of meanings and the inter-relation among
them in the inter-discursive space. Through the scenography, it was possible to understand that
the discourse is based on a topography of oppression and annulment as well as on the
chronography of the fight for reducing inequalities, mobilizing other contemporary discourses
of women empowerment. With regards to the image constructed by the enunciation, it is
possible to infer an ethos of strong women that corresponds to the guarantor capable of
participating in this ethical world of resistance and fight against these social injustices.
Keywords: women from the periphery; discourse analysis; gender; social class; race
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Expansão da mancha urbana do município de São Paulo, em Marta Dora Grostein,
A Cidade Clandestina, os Ritos e os Mitos, jun. 1987. Fonte: Ce SAD, 1989………....…….23
Figura 2 - Mapa da renda média domiciliar por subprefeitura da cidade de São Paulo….......27
INTRODUÇÃO
Ainda na esteira de Sodré, minoria diz respeito aos grupos que, embora
quantitativamente maiores, possuem menor representatividade nas instâncias de poder,
enquanto as elites, mesmo representando um contingente menor de pessoas, têm maior
visibilidade, por ocuparem espaços determinantes na organização social, como a política, a
mídia, a ciência etc. Dessa forma, a voz das minorias age em um espaço simbólico de
transformação e negociação das relações hegemônicas: “[...] minoria é uma recusa de
consentimento, é uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica, no círculo
fechado das determinações societárias” (SODRÉ, 2009 p. 14). No Brasil, alguns grupos ocupam
predominantemente esse lugar de minoria, entre eles, os negros, os povos indígenas, as
mulheres, os homossexuais e pessoas trans, por estarem historicamente à margem das instâncias
de poder e em embate contínuo por transformação social, e cujas vozes, ao longo da nossa
história, foram silenciadas por interesses políticos, econômicos e/ou culturais.
Como explico com mais detalhes no segundo capítulo, o coletivo Nós, mulheres da
periferia nasceu a partir de um incômodo: a imagem das mulheres pobres e negras que vivem
nas periferias, construída pelos veículos da grande mídia brasileira. Pessoalmente, senti o
preconceito em várias situações, por exemplo, quando precisei alterar o CEP no currículo para
conseguir emprego, ou quando fui obrigada a responder a perguntas jocosas sobre assaltos
e/ou falta de saneamento básico no bairro onde cresci e vivi durante 20 anos, a Cidade
Tiradentes, extremo leste de São Paulo ( lá, inclusive, nunca sofri um assalto e havia sim, água
encanada e esgoto). Tal preconceito está ancorado em imagens pré-construídas e amplamente
disseminadas no imaginário social.
Tais cenas, não necessariamente são negativas, são apenas sentidos fixados e
incorporados, que a exemplo do que afirma o autor, podem se constituir em modelos rejeitados
ou valorizados. Todavia, do ponto de vista da representação de grupos minoritários pelos
veículos da grande mídia, é possível perceber que as imagens se consolidam em tipos
socialmente negativos. De acordo com Rosane Borges (2012, p.182), a imagem associada às
mulheres negras, desde a escravidão, se consolida por meio de um imaginário racista e
machista, que reduz sua identidade a corpos à disposição do trabalho e do sexo, isto é, da
dominação masculina e capitalista.
sequer se veem representados, conforme relato do jornalista Josmar, publicado pelo estudo
Mídia e Violência (2007):
Josmar Jozino, do paulistano Jornal da Tarde, diz que são raros os repórteres que se
interessam por pautas na periferia. 'Pobre não é notícia, infelizmente. Se tem um caso
de latrocínio em Itaquera e outro em Moema, os repórteres vão querer fazer o de
Moema'. (RAMOS e PAIVA, 2007, p.79)
É fato que iniciativas de comunicação local sempre existiram, entretanto, nos últimos
anos, projetos de comunicação que buscam visibilizar temáticas ligadas à diversidade e à luta
de grupo minoritários têm conquistado cada vez mais espaço no embate por narrativas no
espaço público, entendido como os espaços onde as informações são publicizadas de modo a
ficar visíveis a qualquer pessoa. Sabemos, a partir de Krieg-Planque (2010, p.116), que muitos
18
são os meios de acessar o espaço público e dar visibilidade para questões de interesse comum:
um folheto informativo, uma bandeira na janela de um prédio ocupado, uma postagem em um
fórum online, publicações em blogs, um site onde se promova discussões sobre uma temática
específica, etc. Portanto, a concepção tradicional de mídia - televisão, rádio, imprensa - não é o
único mecanismo de acesso ao espaço público, apesar de ser ainda o lugar central de
compartilhamento das opiniões públicas. (KRIEG-PLANQUE, 2010)
Ainda que a grande mídia seja o principal caminho para a veiculação de informações,
novos canais online têm possibilitado importantes debates públicos sobre assuntos relacionados
à realidade e aos interesses de grupos minoritários: "[...] é incontestável que o desenvolvimento
dos canais eletrônicos de comunicação conduz essas grandes mídias a uma marginalização
lenta, mas inegável" (KRIEG-PLANQUE, 2010, p.115).
No âmbito das universidades, podemos citar alguns grupos de pesquisa, entre outros,
que têm se dedicado a estudar e discutir questões que dizem respeito às minorias e seus direitos:
GELCI – Linguagens, Culturas e Identidades, filiado ao Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e
Indígenas, da UFOP (Univ. Federal de Ouro Preto); CEA - Centro de Estudos Africanos da
Três pontos fundamentais justificam nossa proposta: contribuir para colocar em foco, a
partir de uma perspectiva discursiva, as relações de gênero, classe social e raça; relacionar a
pesquisa acadêmica à prática cotidiana do coletivo Nós, mulheres da periferia, permitindo a
retroalimentação entre o estudo e a atividade de trabalho do grupo; e, finalmente, tratar de um
público que ocupa a base da pirâmide social, as mulheres pobres, majoritariamente negras, que
vivem às margens geográficas da cidade, portanto, àquelas que quase nunca têm seus discursos
ouvidos e considerados em espaços públicos de poder, como a universidade.
20
Para atingir os objetivos propostos, esta pesquisa contou com enunciados gerados a
partir do projeto Desconstruindo Estereótipos, realizado em 2015 pelo coletivo Nós, mulheres
da periferia, que contou com a participação de cerca de cem mulheres. Como pesquisadora e
integrante do coletivo, participei de todas as etapas do projeto: realização de oficinas, gravação
de uma série de entrevistas em vídeo e curadoria e edição de materiais audiovisuais para
construção de uma exposição multimídia. Tais atividades estão explicitados no capítulo de
metodologia, visto que as entrevistas que compõem nosso corpus foram geradas no âmbito do
projeto.
Do ponto de vista teórico, esta pesquisa está filiada à abordagem discursiva de base
enunciativa e mobiliza primordialmente conceitos desenvolvidos por Maingueneau: o primado
do interdiscurso, as formações discursivas temáticas, a cena de enunciação e o ethos. O
princípio do primado do interdiscurso sobre o discurso, postulado pelo autor na sua obra
clássica Gênese dos Discursos (MAINGUENEAU, 2008), é o ponto inicial das análises.
Segundo tal princípio, todo discurso já nasce da interrelação com seu Outro, seja em relação de
aliança, de embate ou de aparente neutralidade.
Grandiosa em população e território, São Paulo é marcada por longas distâncias: entre
o centro da cidade e bairros do extremo leste, como Cidade Tiradentes, Lajeado, ou do extremo
Sul, como Parelheiros, Marsilac, se impõem percursos com mais de 30 km². Entretanto, o que
a extensão geográfica fala sobre São Paulo é muito mais do que seu tamanho, ela conta, antes,
uma história de forte segregação.
Formada por várias cidades em uma, dada sua extensão, São Paulo é marcada por
divisões internas entre territórios ditos “nobres” e áreas populares - bairros com menor
infraestrutura, na maioria das vezes, distantes do centro e onde os indicadores sociais são mais
baixos, as periferias. Ao contrário do Rio de Janeiro, onde ricos moradores da zona sul dividem,
forçadamente, o espaço da cidade com os morros e favelas que cresceram ao redor de prédios
luxuosos, em São Paulo, as grandes distâncias reforçam os abismos sociais porque também
afastam as pessoas e criam separações muito claras, entre territórios pobres e ricos, negros e
brancos.
Milton Santos, um dos grandes nomes da Geografia no Brasil, nos provoca a pensar a
desigualdade social a partir da construção dos espaços, segundo ele, “a pobreza não é apenas
criada por causas econômicas, mas também por causas geográficas”. (SANTOS, 1990, p.66).
Ele ainda afirma que é necessário considerar o espaço como uma instância da sociedade, assim
como a economia ou a cultura.
década de 1950, e a especulação imobiliária, que agiu, e ainda age, como força de atração dos
mais ricos a áreas cada vez mais exclusivas e excludentes. Esses fatores resultaram na produção
de aglomerados dispersos pelas margens da cidade e região metropolitana, aumentando
significativamente a mancha urbana de São Paulo, portanto a dimensão do seu território.
Isso é bem claro quando olhamos como a mancha urbana de São Paulo se modifica entre
os anos de 1952 e 1983:
De acordo com a revista Construção São Paulo (1976, citado por SANTOS, 1990, p.49),
mais de 70% das casas construídas na Grande São Paulo eram resultado de autoconstrução. E
ainda, segundo JACOB (1982, p.55 citado por SANTOS, 1990, p. 80), “em 1977, as famílias
autoconstruidoras já estavam em torno de 700 mil, localizadas, na sua maioria, na periferia da
cidade”. Isto é, a crescente demanda por moradia tanto dos novos moradores quanto dos antigos,
expulsos pelos altos custos de moradia da região central, encontrou solução na autoconstrução
e no espraiamento do território urbano. Isso se deu por iniciativa da própria população que, sem
encontrar espaço ou condição de viver nos territórios privilegiados da cidade (centro e
arredores), avançou para as extremidades sem o amparo do poder público.
Portanto, o que atrai a população mais pobre para a periferia é o baixo custo da moradia
autoconstruída, não o custo ou a qualidade de vida nessas regiões. Segundo dados oficiais da
Prefeitura de São Paulo, em 1987, 55% da população do município vivia em moradias que se
dividiam entre favelas, cortiços e habitações precárias. Entre 1975 e 1985 o número de barracos
25
Cidade ilegal, designação dada pela professora Erminia Maricato (1995), uma cidade
construída em área de proteção ambiental, na encosta de morros e córregos, sem nenhum
planejamento urbano, aos olhos de um poder público negligente e omisso diante dos riscos a
que a população mais pobre é submetida na periferia. A metrópole, segundo a autora, se divide
entre uma cidade ilegal e uma cidade legal, oficial, que compreende as áreas nobres, onde
moram os mais ricos e onde o olhar do poder público é atencioso e onde sua ação é efetiva.
Enquanto isso, a cidade ilegal é invisível, e as necessidades de seus moradores pouco interessam
ao restante da sociedade.
A oposição entre a cidade visível e invisível revela descaso e ausência da garantia dos
direitos mais básicos. A periferia é produto de um projeto intenso de segregação que parte da
dimensão territorial, mas que avança em direção às diferentes dimensões sociais e culturais dos
indivíduos. A ação do poder público parece ter um raio de alcance geográfico bem delimitado
pelos interesses dos mais ricos, e é essa linha que marca a divisão entre as duas cidades:
Também para a urbanista Raquel Rolnik (2004), que já desenvolveu diversas pesquisas
sobre a formação urbana de São Paulo, essa divisão é muito clara: a metrópole tem uma fissura
que distancia aqueles que estão incluídos, como cidadãos, e os excluídos, os conectados e os
soltos, tornando-a duas cidades extremamente diferentes e opostas.
Assim, São Paulo tornou-se um território que aparta a população mais pobre, não apenas
em relação ao centro geográfico, mas ao centro simbólico-social da cidade e da cidadania. A
existência da periferia é resultado do esforço em resistir a uma história de negligências e
descaso, que resultou em uma realidade invisibilizada e cercada de ausências. Um contingente
numeroso de pessoas se espreitam às margens da cidade em uma intensa negociação pelo direito
de existir e tornar-se visível.
Figura 2: Mapa da renda média domiciliar por subprefeitura da cidade de São Paulo.
De acordo com o Mapa da Desigualdade 2016, que é lançado todos os anos pela Rede
Nossa São Paulo, a chance de um jovem ser vítima de homicídio no Campo Limpo é 16 vezes
maior do que na Vila Mariana, por exemplo. Outro dado alarmante revelado pelo mapa diz
respeito à diferença da expectativa de vida entre os bairros de Pinheiros e Cidade Tiradentes,
um dos que têm maior população negra. Enquanto se vive, em média, 53,85 anos no bairro da
zona leste, o morador do Alto de Pinheiros vive 79,67 anos, em média, portanto, 25 anos de
diferença.
Além disso, é possível perceber que o fosso que exila pobres da cidade visível é o
mesmo que exila negros, pois eles constituem a população mais pobre da cidade, além de ser
um contingente indesejado para o projeto de cidade oficial sonhado por parte da sociedade em
fins do século 19. Após o período da escravidão, a cidade de São Paulo passou por um processo
30
Para a autora não é possível pensar a expansão urbana sem se remeter ao paradigma
gueto/senzala, isto é, a periferização é uma imposição social de separação territorial para a
população negra, assim como foram as senzalas. Entretanto, cabe ressaltar que foram nesses
espaços, eminentemente, negros, que se construíram as relações comunitárias do grupo exilado.
“Foi assim, que o pátio da senzala, símbolo de segregação e controle, transformou-se em
terreiro, lugar de celebração das formas de ligação da comunidade.” (ROLNIK, 1989, p.2)
Até aqui apresentamos uma cidade que divide ricos e pobres, brancos e negros. Mas
como isso se articula com a dimensão do feminino? Afinal, as mulheres da periferia não são
também mulheres?
O feminismo interseccional é uma das vertentes da teoria feminista, que nasce a partir
das demandas trazidas pelo feminismo negro (HENNING, 2015). Essas diferentes vertentes,
têm como princípio revelar e colocar em pauta as condições de vulnerabilidade em que vivem
determinadas mulheres.
No caso do Brasil, a intersecção entre gênero, raça e classe social se explicita nas formas
mais intensas de opressão e carestia vividas pelas mulheres negras. Matilde Ribeiro (1995)
chama atenção para esse fato, reivindicando que o movimento feminista perceba as fronteiras
que, socialmente, dividem as mulheres pela cor da sua pele e pela sua condição econômica:
Quando a mulher negra percebe a especificidade de sua questão ela volta-se para o
movimento feminista como uma forma de se armar de toda uma teoria que o
feminismo vem construindo e da qual estávamos distanciadas. Nesta procura coloca-
se um outro nível de dificuldade, questões soavam estranha, fora de lugar na cabeça
da mulher negra. Falava-se na necessidade de a mulher pensar o próprio prazer,
conhecer o corpo, mas reservava-se a mulher pobre, negra em sua maioria, apenas o
direito de pensar na reivindicação da bica d'água. (RIBEIRO, 1995, p. 448).
32
[...] o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica
e universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de
reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito
da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados
de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no
silêncio e na invisibilidade. (CARNEIRO, 2003, p. 119).
Assim, a categoria mulher passa a ser repensada como uma construção social,
abrangendo um espaço amplo para diferentes manifestações do feminino, como vemos no caso
das mulheres transgênero - grupo que inclui transsexuais, travestis, não-binários, drag queens.
33
Portanto, se a categoria mulher não é fechada, definitiva e sólida, é preciso lidar com os
diferentes contextos que não cessam de atravessar e de se somar a essa identidade do feminino.
Por isso, é impossível afirmar que mulheres cis3 sofram os mesmos tipos de violência que
mulheres trans, assim como é impossível dizer que mulheres ricas vivem sob as mesmas formas
de opressão que mulheres pobres. É preciso, portanto, subverter a fronteira que delimita a noção
de mulher e investigar que outras dimensões se entrecruzam, a fim de desconstruir a lógica
universalizante questionada por Carneiro (2003) e jogar luz sobre os marcadores sociais da
diferença e sobre as questões que eles representam.
Diante disso, a crítica de Carneiro, que reverbera nas pautas do movimento feminista
negro e, mais recentemente, do feminismo interseccional, propõe a seguinte questão: que
atenção se tem oferecido às questões específicas, de ordem social, do ser mulher, que vão muito
além da definição biológica?
3Pessoa que atende a expectativa social de coerência da matriz de gênero. Ou seja, uma mulher feminina
heterossexual ou um homem masculino heterossexual.
34
mulheres são as que apresentam maior grau de vulnerabilidade. Tais famílias, na maioria das
vezes, são monoparentais, isto é, as mulheres não têm parceiros e são responsáveis por todos
os gastos econômicos do lar e pela criação dos filhos, geralmente, após a separação, os filhos
ficam com as mães, não com os pais.
São essas mulheres - 61% do total, de acordo com o estudo “O Emprego doméstico no
Brasil” (Dieese/2013) - que ocupam a posição de domésticas e atravessam a cidade para
trabalhar, na maioria das vezes, para mulheres brancas, da classe média, moradoras das áreas
nobres, geralmente no centro expandido da capital, enquanto em casa, seus filhos crescem sem
a presença da mãe, que passa os dias em busca do sustento da família. Entre as mães que criam
os filhos sozinha, são 43,6% entre as negras e 34,8% entre as brancas, segundo dados do
“Nascidos Vivos”, do DATASUS (Sistema de Informação do Ministério da Saúde), de 2013.
São as negras também as maiores vítimas de feminicídio, 68,8% daquelas mortas por agressão
são pretas ou pardas, de acordo com dados do Ministério da Justiça de 2015. Conforme o “Mapa
da Violência”, de 2015, a taxa de homicídio entre as negras subiu 54,5%, enquanto a das brancas
caiu 9,8%. As mulheres negras têm duas vezes mais chance de morrer do que uma mulher
branca. De acordo com o “Balanço do Ligue 180”, da Central de Atendimento à Mulher 2015,
60% dos registros de violência domésticas envolvem mulheres negras,
São as negras que mais sofrem violência obstétrica, somando 65,9% do total, de acordo
com o RASEM 2014 (Relatório Anual Socioeconômico da Mulher). E ainda, segundo o mesmo
estudo, em 2012 os óbitos de mulheres negras corresponderam a mais de 60% das mulheres
mortas durante a gravidez e o puerpério.
Além do risco de morte, as mulheres negras, maioria nas periferias, são as mães que
mais temem pela morte de seus filhos. De acordo com o “Mapa da Violência, de 2016”, o
número de jovens negros assassinados por arma de fogo aumentou 46,9%, enquanto o de jovens
35
brancos diminuiu 26,1%. Já o “Atlas da Violência”, publicado em 2016, mostra que a chance
de um homem negro morrer por violência aos 21 anos no Brasil é 147% maior do que pessoas
de outra etnia. Para cada morte de uma pessoa branca, amarela ou indígena, 2,4 negros são
mortos.
Por fim, a imagem da pirâmide social demonstra que a intersecção entre gênero, classe
social e raça se operacionaliza na desigualdade que recai, prioritariamente, sobre as mulheres
negras, segundo o estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, lançado no mês de
março de 2017 pelo IPEA em parceria com a ONU Mulheres. Conforme o levantamento, a
mulher negra continua em último lugar quando o assunto é renda, enquanto elas têm um
rendimento médio mensal de R$ 1.027,00, a média dos homens brancos, no topo da pirâmide,
é de R$ 2.509,00, seguido das mulheres brancas, e, depois, dos homens negros. Não é possível,
portanto, falar de desigualdade sem nos remetermos à condição em que vivem as mulheres
negras, pois nelas estão as maiores marcas de uma história construída na violência e violação
de direitos de determinados grupos.
A esse respeito, Angela Davis (2017), em recente visita à Universidade Federal da Bahia
(UFBA), no evento que celebrava o Julho das Pretas, em comemoração ao dia 25 de Julho, dia
da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, afirmou: “[...] quando a vida das mulheres
negras importar, o mundo será transformado e saberemos, com certeza, que todas as
vidas importam”.
36
Mais do que reforçar uma aliança teórica com determinados conceitos do feminismo,
temos por objetivo tentar compreender o discurso da mulher negra da periferia e os efeitos de
sentido daí decorrentes, a partir da articulação entre gênero, raça e classe social.
37
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O objeto de análise desta pesquisa se constitui de enunciados captados e organizados
durante o projeto Desconstruindo Estereótipos realizado em 2015 pelo coletivo Nós, mulheres
da periferia (SILVA, 2017), por isso, para compreender a metodologia desta pesquisa e indicar
como chegamos ao recorte do nosso corpus de análise, é necessário que façamos uma
caracterização das etapas do projeto. Como pesquisadora e também integrante do grupo
participei de todas as etapas que estão descritas a seguir, ora no papel de produtora, ora como
observadora, o que contribuiu para ter um bom detalhamento do contexto de produção e da
realização das atividades.
Em março de 2012, quatro das sete integrantes atuais do coletivo foram convidadas pela
jornalista Izabela Moi, editora da Agência Mural, na época ainda um blog hospedado na
Folha.com, para escrever um texto em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. A proposta
era que as correspondentes contassem um pouco sobre como é ser uma mulher da periferia, a
partir das suas experiências e histórias de vida. Com o título “Nós, mulheres da periferia”, o
4Jornalismo voltado aos interesses locais de uma determinada comunidade e que procura incentivar o
engajamento dessa comunidade por meio da circulação de informações a respeito do território e realidade das
quais ela faz parte.
38
texto foi publicado como artigo de opinião na seção “Tendências e Debates” do jornal Folha de
S. Paulo, em 7 de março de 2012 (Anexo A).
A publicação obteve grande repercussão, tanto entre os leitores do jornal, quanto por
parte de movimentos sociais e moradoras da periferia. No Itaim Paulista, zona leste de São
Paulo, o artigo foi lido em um sarau feminino. Nas redes sociais, ele foi altamente
compartilhado, principalmente por mulheres que, em suas postagens, se colocavam também
como coautoras do texto. Nas mensagens, elas diziam se sentir “finalmente muito
representadas”. Esse engajamento foi o ponto de partida para a existência do coletivo.
O grupo percebeu que era necessário falar sobre periferia a partir da dimensão feminina
e evidenciar as particularidades de ser uma mulher moradora dessas regiões, dado o fato de que,
na grande mídia, os espaços reservados às histórias dessas personagens falam quase sempre
sobre episódios trágicos, casos de violência ou miséria, isso quando são contadas - a
invisibilidade é outra face da cobertura dos grandes veículos.
Além de manter a publicação de notícias e conteúdos inéditos no site e nas redes sociais,
as integrantes do Coletivo começaram a fazer palestras e participar de mesas de debate sobre
temas relacionados às mulheres da periferia em universidades, escolas, organizações privadas.
39
Os espaços para articulação do tema passaram a ser cada vez maiores e as atividades do grupo
cada vez mais diversificada, dentre as atividades já realizadas pelo grupo vamos nos deter na
realização do projeto “Desconstruindo Estereótipos”, que aconteceu durante o ano de 2015, e a
partir do qual retiramos os enunciados que compõem o corpus de análise desta pesquisa.
Quando a série foi ao ar não trouxe muitas novidades em relação à imagem das mulheres
negras e pobres já tão consolidada no imaginário social. Ao mesmo tempo que o protagonismo
pertencia às mulheres negras, a história era narrada por uma personagem branca que parecia
ocupar o papel de lucidez em relação às quatro personagens principais que se envolviam em
diversos episódios cômicos, quase sempre com foco em sexo, violência, relações de trabalho e
classe social. Assim, a série acabava por reforçar alguns estereótipos muito recorrentes: negras
no papel de empregadas domésticas, sempre disponíveis ao sexo, com corpos
hipersexualizados, explorando com humor as vulnerabilidades sociais que a maioria dessas
mulheres é submetida.
essas mulheres que, na maioria das vezes, não têm acesso, hábito e, até mesmo, tempo, para
acessar os conteúdos online produzido pelo Nós.
Dessa avaliação, surgiu a ideia de realizar uma série de rodas de conversas nas periferias
e apresentar alguns trechos da minissérie para serem analisados e debatidos com grupos de
mulheres em diferentes bairros da periferia, a fim de entender quanto elas se identificavam ou
não com a narrativa da minissérie. A ideia foi amadurecida e transformada coletivamente pelo
grupo até tornar-se o projeto intitulado “Desconstruindo Estereótipos”, que foi submetido ao
edital VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), promovido pela Secretaria Municipal de
Cultura de São Paulo, no início de 2015. Tendo sido contemplado por meio de um recurso de
R$ 30.000,00 para sua realização
2.3.1 As oficinas
A primeira etapa do projeto “Desconstruindo Estereótipos” consistia na realização de
uma série de oficinas com grupos formados por moradoras de bairros da periferia da cidade de
São Paulo. Para isso, o Coletivo realizou parcerias com organizações localizadas em diferentes
41
regiões, que desenvolvessem algum trabalho voltado às mulheres do bairro, além de escolas, e
que pudessem incluir na sua programação as oficinas do projeto.
● Casa Viviane dos Santos: localizada em Guaianases, na zona leste, um centro de defesa
e convivência para mulheres em situação de violência;
● Associação de Mulheres Amigas da Jova Rural: localizada no bairro da Jova Rural, zona
norte, entidade que promove atividades sócio assistenciais, psicossociais e educativas;
● União Popular de Mulheres: localizada no Campo Limpo zona sul, organização criada
com o intuito de lutar pela completa emancipação da mulher e pela igualdade nas
relações sociais e que desenvolve atividades assistencialistas e educacionais;
● Cieja Campo Limpo: localizado no Capão Redondo, zona sul, um Centro Integrado de
Educação de Jovens e Adultos, que tem como premissa, a inclusão; por isso é uma escola
que flexibiliza horários e métodos para incluir públicos com necessidades particulares;
● CEU Três Pontes: localizado no Jardim Romano, zona leste, um Centro Educacional
Unificado, da prefeitura, que realiza atividades no contraturno com públicos de
diferentes idades.
42
Em cada espaço o coletivo realizou dois encontros, com uma média de duras horas de
duração cada, com grupos que variaram de 10 a 40 participantes. A metodologia utilizada foi
desenvolvida pelo próprio Coletivo Nós, mulheres da periferia, com intuito de atingir os
objetivos previstos no projeto: discutir a representação da mulher da periferia construída pela
grande mídia e estimular a produção de narrativas, histórias contadas pelas próprias mulheres
Para isso, os encontros foram divididos em duas etapas: primeiro uma discussão com base na
análise coletiva de alguns produtos da grande mídia, como novelas, telejornais, revistas, jornais
impressos, minisséries; e, segundo, um momento de criação em que as mulheres eram
convidadas a refletir sobre sua própria imagem e história e, a partir dessa reflexão, produzir
fotografias e autorretratos em tela.
Para o primeiro dia de oficina, foi selecionada uma pequena amostra com conteúdo de
narrativas ficcionais (novelas, seriados e programas de entretenimento) e peças publicitárias
(comerciais de tv e anúncios), veiculados em canais da TV aberta e revistas de grande
circulação. Tal amostra foi apresentada no início da oficina, e, a partir daí, seguia-se com uma
discussão entre as mulheres sobre como elas se viam, ou se não se viam, representadas nesses
materiais. É importante dizer que a seleção dos materiais foi feita tendo como foco três eixos
de representação: gênero, raça e classe social -- dimensões que, como já dissemos no capítulo
anterior, perpassam a vida dessas mulheres, visto que, além de mulheres, as moradoras da
periferia são, majoritariamente, negras e pertencentes às classes sociais mais pobres.
Entre os materiais selecionados pelo grupo, podemos destacar dois comerciais que
representavam a figura da mulher convertida em objeto sexual a serviço do desejo masculino:
primeiro, o comercial da cerveja Itaipava, que há anos traz como personagem principal Verão,
nome da moça que, quase sempre vestida com pouca roupa, serve a cerveja a clientes homens
que ficam encantados pelo corpo sempre à mostra da personagem. No comercial selecionado,
um rapaz acompanhado de sua noiva fixa o olhar sobre o corpo de Verão, que caminha pela
praia, enquanto a noiva, que percebe a ação do companheiro, se irrita e briga com ele -- a cena
é acompanhada pelo slogan da cerveja "O verão é nosso". Segundo, outro comercial, o da marca
de lingeries HOPE, traz a modelo Gisele Bündchen interpretando uma mulher contando ao
marido que sua mãe vai morar com os dois. Na primeira cena, a modelo está usando um vestido
enquanto fala com o marido, e o enunciado que acompanha a imagem assinala que esse
45
comportamento está errado; em seguida, ela entra novamente usando apenas calcinha e sutiã,
repete a mesma frase e o enunciado dessa vez assinala que, agora sim, a cena está correta -- o
narrador do comercial encerra dizendo: “Você é brasileira, use seu charme”.
Entre as cenas de novela escolhidas, apareciam muitos trechos de briga entre mulheres.
Por ser uma narrativa muito recorrente nos romances de TV, quase sempre vemos situações em
que mulheres se enfrentam na disputa por um homem. Algumas cenas traziam situações em que
empregadas domésticas são humilhadas ou ridicularizadas pelas patroas, como na novela
“Avenida Brasil”, também da Rede Globo, em que a protagonista Carminha destrata as
personagens Janaína e Zezé, empregadas domésticas em sua casa. No trecho, a patroa chama a
46
atenção da dupla por não terem organizado bem o armário da cozinha e arremessa produtos
contra elas a fim de que saiam de sua frente, enquanto grita: “Vão ficar me olhando? Sai daqui!
”. Entre as séries de televisão, cenas de “Antônia” e “Sexo e as Negas” mostravam personagens
negras e moradoras da periferia em papéis ligados ao crime.
Depois que os materiais eram expostos e se iniciava a discussão coletiva, foi possível
perceber a influência de diferentes fatores na percepção das mulheres em relação às imagens
apresentadas. Por exemplo, enquanto na oficina de Perus, onde as participantes eram mais
jovens e onde as questões raciais já eram comumente discutidas em grupo, as imagens que
determinam padrões estéticos e raciais do corpo feminino foram mais exploradas durante a
conversa; enquanto em outra oficina, que aconteceu em Guaianases, onde as mulheres já
trabalhavam muitas questões de empoderamento contra o machismo, a questão da gordofobia,
da opressão familiar, da maternidade e da violência foram temas que ganharam maior destaque.
Na oficina do Campo Limpo, uma das mulheres comentou que a exaltação ao consumo
promovida nas novelas e comerciais a afligia porque ela não podia comprar o tênis “da moda”
para seu filho adolescente.
5 “O assassinato de mulheres pela condição de serem mulheres é chamado de “feminicídio” – sendo também
utilizados os termos “femicídio” ou “assassinato relacionado a gênero” - e se refere a um crime de ódio contra as
mulheres, justificada socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulada pela
impunidade e indiferença da sociedade e do Estado” (BRASIL, 2013, p. 1003).
50
A maioria das mulheres nunca havia manipulado uma câmera fotográfica ou feito uma
pintura em tela. As atividades, ora assumiram um aspecto lúdico, ora muito reflexivo, pois
sempre ao final da atividade elas eram convidadas a compartilhar com o grupo sua tela,
fotografias e as histórias que estavam por trás daquelas imagens.
Na prática da fotografia, uma senhora com mais de 60 anos, que acabara de ficar noiva,
pediu que outra companheira do grupo fotografasse sua aliança, indicando a seguinte legenda:
“O amor não tem idade”. Outra vestiu-se com sua roupa de trabalho para contar que a maior
alegria do seu dia estava no período que passava na rua, atuando como assistente social na
região de Guaianases, na zona leste.
ganho das oficinas foi criar um espaço de escuta para mulheres que, historicamente, têm seus
discursos silenciados.
Outros critérios fundamentais para a escolha das mulheres convidadas foi a cor, faixa
etária e diversidade territorial. Em todos os grupos das oficinas, as mulheres negras eram
maioria ou totalidade, por isso, a fim de que o grupo de entrevistadas fosse representativo das
cerca de cem mulheres com as quais o Coletivo teve contato durante as oficinas, foi importante
que ele também fosse composto majoritariamente por mulheres negras, isto é, mulheres de cor
preta e parda, conforme definição utilizada pelo IBGE. O recorte por faixa etária foi essencial
para compor um quadro bem diverso em relação às gerações e perspectivas de mundo, dado
que o racismo ou o machismo são percebidos de maneiras bem diferentes por jovens, por
mulheres de meia idade, e por idosas, e essa diversidade de ideias e tratamento dos temas que
já se via nas oficinas também foi determinante para a composição de um grupo que, novamente,
pudesse representar o grupo maior de participantes.
O roteiro das entrevistas (Anexo C) seguia objetivos comuns aos das oficinas, visava
obter informações sobre como as mulheres sentiam-se representadas nas produções da grande
mídia e como contariam suas próprias histórias se pudessem virar notícia. Apesar do Coletivo
procurar seguir um roteiro de perguntas preestabelecidos igual em todas as entrevistas, cada
52
conversa seguiu por um caminho muito individual, enquanto algumas personagem dedicaram-
se mais a refletir sobre o papel da mídia e pouco contaram sobre suas histórias de vida, outras,
no entanto, sentiram-se mais à vontade para compartilhar experiências muito íntimas.
2.3.3 A exposição
Finalmente, com todos os materiais criados durante o projeto, desde as telas de
autorretrato, as fotografias, as entrevistas em vídeo até os diálogos das oficinas registrados em
anotações e gravações, o Coletivo realizou uma curadoria e organizou a exposição que fechava
o projeto. A ideia era montar uma exposição artística a partir desses elementos com a assinatura
de todas as participantes do projeto. Para compô-la, o Coletivo precisou realizar uma curadoria
e edição dos materiais que seriam expostos, visto o volume imenso de que dispunham. O
conjunto de enunciados organizados e editados que constituíram essa exposição já poderia ser
objeto de uma extensa análise discursiva, que pretendemos realizar em outra oportunidade.
Todavia, em nível de contextualização do projeto, parece pertinente descrever algumas
características da mostra.
A exposição foi concebida por meio de uma instalação que ocupou o salão principal do
Centro Cultural da Juventude na Vila Nova Cachoeirinha, com caminhos divididos por grandes
tecidos que formaram paredes e procuravam reproduzir a ideia de ruas que se entrecruzavam,
fazendo alusão aos becos e vielas da periferia. Cada corredor da instalação foi nomeado usando
placas azuis como as que identificam as ruas da cidade. “Desconstrução” foi o nome dado ao
corredor de entrada, formado por uma fileira de tijolos adesivados com termos que
simbolizavam algumas ideias que o projeto desejava concretamente desconstruir: silêncio,
estereótipos, invisibilidade etc., além de fotografias das oficinas e uma tv, projetando parte das
entrevistas em vídeo. À esquerda, a entrada seguinte exibia uma placa com a designação
“Descoberta” e contava com um grande painel de madeira onde todas as telas de autorretrato
ficavam presas acima da cabeça dos visitantes, diversas garrafinhas penduradas e dentro delas
pequenas frases com trechos de histórias compartilhadas nas oficinas, como tesouros prontos
para serem desvendados. Logo a frente, o corredor seguinte, nomeado de “Identidades”, dava
acesso a um ambiente que lembrava o cômodo interno de uma casa; plantas e uma mesa com
imagens de santos reforçavam essa percepção, fotografias assinadas feitas pelas mulheres e uma
53
tv com outros depoimentos em vídeo completavam a seção. Saindo desse espaço, o seguinte,
designado “Polifonia”, continha uma estrutura feita com linhas, ligando fotografias de
diferentes mulheres e cartões com textos que lembravam as distâncias geográficas entre
mulheres da zona leste, norte e sul; e também informações que remetiam às proximidades que
a identidade de mulher da periferia lhes garantia, apesar dos quilômetros que podem afastá-las
fisicamente; e ao final do corredor mais uma tv com outros depoimentos em vídeo.
A partir da seção “Polifonia”, o visitante poderia ou seguir para a área “Ocupação”, que
consistia em um espaço mais amplo com mais de cem cartazes colados nas paredes, em formato
de lambe-lambe, com fotografias e frases das artistas que assinavam a mostra, ou entrar no
corredor “Fora da caixa”, que além de fotografias trazia uma intervenção com caixotes de feira,
onde foram adesivadas algumas frases ditas durante as oficinas sobre os padrões sociais que a
mídia impõe às mulheres. Por fim, o último corredor da instalação, “Ajuste de foco”, abrigava
uma tv que exibia as demais histórias gravadas em vídeo, além de fotos presas às duas laterais
do corredor.
Jennifer, integrante do coletivo Fala Guerreira, coletivo feminista e antirracista formado por
mulheres que vivem na periferia da zona sul de São Paulo.
1. Doze oficinas, duas em cada uma das seis instituições visitadas (localizadas em
três diferentes regiões de São Paulo: zona leste, zona norte e zona sul), com a participação
de cerca de cem mulheres - sendo a maioria negras e com faixa etária de 17 a 93 anos;
2. Nove entrevistas em vídeo com nove dessas mulheres, ao menos uma moradora
de cada região onde ocorreram as oficinas;
3. Uma exposição multimídia composta por telas de pintura, fotografias, vídeos,
cartazes e outros elementos cenográficos como caixotes, tijolos, garrafas. Todos os
materiais expostos nesta mostra foram editados a partir das discussões que aconteceram
durante as oficinas e das histórias contadas durante as entrevistadas em vídeo.
Para definir o grupo de protagonistas, tendo em vista as atividades realizadas, decidimos
seguir um critério que foi fundamental para o coletivo: garantir uma certa representatividade
das diferentes discussões, regiões da cidade e perfis de mulheres que fizeram parte do
projeto.
É possível perceber quanto a representativa foi um fator relevante nas escolhas feitas
nas três etapas. Primeiro, a diversidade geográfica foi um ponto primordial para a realização
das oficinas, o coletivo organizou o projeto de modo a circular pela cidade e conhecer mulheres
de diferentes regiões. Para a realização da segunda etapa, as entrevistas em vídeo, o coletivo
procurou construir um grupo que, de alguma maneira, pudesse representar o grupo maior de
participantes da etapa 1, por isso foi importante ter uma moradora de cada bairro visitado, serem
negras e ainda, de diferentes gerações. Na terceira etapa, da exposição, também as escolhas dos
materiais utilizados na mostra procuravam representar as principais discussões e histórias das
etapas anteriores.
nas oficinas, por isso, decidimos nos concentrar nas etapas 2 e 3, as entrevistas e a exposição.
O próprio coletivo operou uma série de escolhas para a realização destas duas atividades,
sempre tendo em vista, como dissemos, representar a diversidade de perfis de mulheres que
participaram da primeira etapa, territórios visitados e temas debatidos.
Desse modo, realizamos o primeiro recorte dentro do universo de discursos que temos
a disposição: as nove entrevistas em vídeo.
Todavia, apesar de termos acesso ao conteúdo das entrevistas na íntegra, optamos por
trabalhar apenas com os trechos editados e publicados na etapa 3, a exposição. Essa delimitação
se justifica por dois motivos: a exposição reuniu as principais discussões e temas tratados pelas
participantes durante todo o projeto, inclusive nas oficinas, portanto, a edição das entrevistas
exibidas na mostra foi pensada não só considerando o projeto como um todo, mas também as
histórias que tratavam de temas comuns às demais participantes; acrescenta-se a este motivo,
a dificuldade de solicitar, para a presente dissertação, a autorização de todas as mulheres para
a divulgação na íntegra de suas falas; além disso, uma delas, dona Carolina, faleceu pouco
tempo depois da entrevista. Portanto, trabalhar apenas com os vídeos veiculados publicamente
na exposição tornou-se mais viável. Os outros elementos que compuseram a mostra , como
telas de pintura, fotografias, cartazes e outros elementos cenográficos, merecem análises
posteriores, desdobramentos desta pesquisa.
Temos inicialmente um conjunto de dez vídeos com duração média de quatro minutos.
Embora tenham sido nove as mulheres entrevistadas, foram editados, para a mostra, dois vídeos
com a personagem Carolina.
A partir das nove entrevistadas, definimos um grupo ainda menor, aqui designado como
protagonistas da pesquisa, isto é, três mulheres cujos discursos serão objeto de análise. Além
desses, recorreremos, para fundamentar nossas reflexões, a trechos dos discursos das outras seis
entrevistadas.
Para chegar a esse novo recorte seguimos atendendo aos critérios de representatividade
geográfica e etária; neste momento, a questão racial não foi um critério de seleção dado que
todas as noves mulheres são negras. No entanto, baseando-nos nos conceitos teóricos do
feminismo interseccional (CRENSHAW, 1989), explicitados no capítulo anterior,
57
estabeleceremos, em nossa análise, a relação entre as três dimensões: gênero, raça e classe
social, dada sua pertinência no contexto das mulheres que vivem na periferia.
Essas três dimensões foram apreendidas no discurso das entrevistadas por meio dos
temas mobilizados em suas histórias, dentre eles, os quatro principais: machismo, maternidade,
racismo e pobreza. Tais temas se ligam diretamente com as dimensões da interseccionalidade:
maternidade e machismo com a dimensão de gênero, racismo com a dimensão de raça, e
pobreza, com a dimensão de classe social.
Do ponto de vista discursivo, sabe-se que uma entrevista não trata de um único tema,
pelo contrário, as dimensões não cessam de se entrecruzar, como aponta também o próprio
conceito de feminismo interseccional, porém, ainda assim, é possível depreender o tema de
maior destaque, ou maior saliência, nas experiências relatadas pelas entrevistadas.
2.Raça / Racismo
58
Com o auxílio dessa primeira tabela realizamos diferentes cruzamentos a fim de compor
um quadro de protagonistas que apresente diversidade nos três aspectos.
Começamos pelo bloco da zona leste, região onde existe o maior número de
entrevistadas: Estefânia, Ivoneide, Tarcila e Rosana; nesse bloco, a dimensão de gênero foi a
mais recorrente: todas as mulheres, exceto Rosana, enfatizaram, em seu discurso, a perspectiva
de ser mulher. Tal dimensão foi tratada por Tarcila a partir do tema maternidade. Se olharmos
o conjunto completo das nove entrevistas, esse tema foi o que mais circulou quando se trata da
dimensão de gênero:
Essas são, portanto, as entrevistas que vamos analisar. É importante destacar que vamos
nos ater apenas à análise da linguagem verbal, baseando-nos, portanto, nas transcrições dessas
entrevistas, deixando para um futuro trabalho o desenvolvimento dos aspectos audiovisuais do
vídeo.
De toda forma, as pistas que o texto oferece sobre como tratar os dados provenientes de
entrevistas acadêmicas também são relevantes para refletir sobre o uso das entrevistas que
selecionamos para compor nosso corpus de análise.
Com isso queremos dizer que "a entrevista não é o corpus de análise, mas sim o campo
de circulação de determinados discursos, campo esse que será recortado conforme os objetivos
da pesquisa" (ROCHA el al, 2010, p.14). Se tomarmos a entrevista em sua totalidade, sem
estabelecer um diálogo que constrói um novo objeto a partir dela, estaremos assumindo o
discurso como algo transparente e capaz de responder por si só às questões do trabalho
acadêmico. O que esvaziaria o sentido da própria pesquisa acadêmica.
Isso também aplica-se ao nosso trabalho, ainda que, como dissemos, estejamos
trabalhando com outro tipo de entrevistas, no caso, entrevistas midiáticas produzidas por um
coletivo de jornalistas, não pela pesquisadora na situação de pesquisa. No nosso caso também
é necessário estabelecer um distanciamento entre os objetivos que o coletivo assumiu na
realização das entrevistas e os objetivos desta pesquisa. É necessário capturar, no conjunto das
62
três entrevistas selecionadas, uma massa de discursos que interesse ao nosso objetivo de analisar
que identidades discursivas são construídas.
Por isso, vamos estabelecer um diálogo com tais entrevistas por meio das três
dimensões, gênero, raça e classe social, recortando apenas os enunciados que se encontrem
dentro dos temas maternidade, pobreza e racismo.
63
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Essa citação evidencia um claro distanciamento entre o que entendemos como discurso
e como texto, visto que, nesse sentido, discurso está para além da noção de texto. O discurso
pode ser composto apenas por um texto ou, como na maioria das vezes, por um grupo vasto de
textos. Por exemplo, quando tratamos do discurso das mulheres da periferia usamos a
delimitação de enunciados a partir de um grupo específico de sujeitos, ou no caso de um
discurso sobre as mulheres da periferia, delimitamos a noção de discurso por meio de um tema,
ou ainda, o discurso da mídia, como um espaço que reúne textos originários de uma área
determinada de produção.
Isso possibilita olhar para os textos dispersos na sociedade sob uma perspectiva
discursiva, entendendo que eles não são sistemas fechados em si, mas partes que constituem
práticas comunicacionais mais amplas, formadoras (e muitas vezes, deformadoras) das relações
64
sociais. Assim, seja o texto como estrutura, produto ou arquivo (MAINGUENEAU, 2015), ao
analista do discurso importa que esses textos sejam convertidos em um conjunto delimitado que
sirva aos objetivos de sua análise.
Em Arqueologia do Saber, Foucault reflete a respeito dos múltiplos prismas a partir dos
quais se apreende o discurso afirmando que mais do que elementos facilmente demarcados, o
discurso funciona dentro de uma lógica própria:
Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de
um vocabulário, mas o regime dos objetos [...] Tarefa que consiste em não - não mais
- tratar os discursos como conjuntos de signos ( elementos significantes que remetem
a conteúdos ou a representações ), mas como práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam. (FOUCAULT, 1969, citado por Maingueneau 2015,
p.31)
Maingueneau (2015) ainda lista uma série de elementos que caracterizam os discursos
e servem para nortear nossas análises, entre eles, vamos ressaltar três itens que parecem integrar
bem a concepção discursiva dos enunciados que compõem nosso objeto de estudo:
65
Mesmo que a presença do Outro não seja localizável por marcas linguísticas sua
presença se inscreve nos limites da identidade do discurso primeiro, "ele é aquele que faz
sistematicamente falta a um discurso e lhe permite encerrar-se em um todo. É aquela parte que
foi necessário o discurso sacrificar para constituir a própria identidade" (MAINGUENEAU,
2008b, p.36). Assim, o Outro não se encontra em um espaço exterior ao discurso primeiro, eles
dividem o mesmo espaço de existência, delimitando-se mutuamente.
ela tem a ver com relações diretas entre as formações discursivas, que podem constituir-se em
conflito, aliança ou uma suposta neutralidade.
É importante ressaltar que a delimitação dos campos discursivos não é uma condição
posta de maneira natural dentro do universo discursivo, ela é, antes, resultado do esforço do
analista em identificar as possibilidades de delimitação e fazê-la por meio de parâmetros que
devem ser desenvolvidos pelo próprio pesquisador, não de maneira arbitrária, mas tendo em
vista seus objetivos e o funcionamento dos discursos que estão postos a circular na sociedade.
A forma que logo se apresenta de delimitar um campo se apoia nas categorias de tipo
de discurso, religioso, midiático, político, etc. No entanto, "esse recorte em 'campos' não define
zonas insulares; é apenas uma abstração necessária, que deve permitir abrir múltiplas redes de
trocas" (MAINGUENEAU, 2008b, p.34). Por isso, nesse nível é forçoso realizar escolhas e
fundamentar-se nos conhecimentos e hipóteses da pesquisa. Em sua pesquisa sobre o discurso
de duas correntes religiosas, o humanismo devoto e o jansenismo, Maingueneau (2008b) isolou
o campo "devoto", ao invés de contentar-se com o campo "religioso", porque esse era o espaço
restrito de interesse dos seus estudos.
sociedade, para um lugar, um momento definidos, só parte do dizível é acessível, que esse
dizível constitui um sistema e delimita uma identidade" (MAINGUENEAU, 2008b, p.16). Isto
é, a identidade de um discurso se constrói dentro do espaço do seu dizível, ou poderíamos dizer,
de sua formação discursiva, e esse espaço, apesar de oferecer infinitas e inéditas possibilidades,
sempre se conforma a uma estrutura prévia e é nesta estrutura que se encontra a identidade do
discurso.
Ele permite, com efeito, designar todo conjunto sócio-histórico circunscritos que pode
relacionar-se a uma identidade enunciativa: o discurso comunista, o conjunto de
discursos proferidos por uma adminstração, os enunciados que decorrem de uma dada
ciência, o discurso dos patrões, dos camponeses, etc. (MAINGUENEAU, 2008c, p.
241)
No entanto, definir os limites de uma identidade discursiva não é uma tarefa simples.
Os critérios teórico-metodológicos que fundamentam a delimitação desse espaço e a própria
definição e aplicação do termo formação discursiva sofreram grande dispersão no uso de
diferentes pesquisadores durante décadas, fazendo com que a noção entrasse em declínio,
devido mesmo à incapacidade de lhe atribuir um estatuto muito claro.
De minha parte, prefiro seguir uma terceira opção, que consiste em mostrar o interesse
- e os limites - dessa noção; o que supõe uma reflexão sobre a natureza das unidades
atualmente reivindicadas pelos analistas do discurso, e, também, sobre a natureza da
própria análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2008a, p.11)
Para isso, o autor distingue, entre as categorias do discurso, dois grandes tipos de
unidades: as unidades tópicas, aquelas que têm seu território bem assegurado, e as unidades não
tópicas, aquelas que não possuem um território delineado a priori.
Para esclarecer a noção de tipos de discurso e como eles servem de agrupamento para
os gêneros, Maingueneau esclarece que essa organização é realizada a partir de três modos
diferentes, tendo em vista a perspectiva assumida: "a esfera de atividade, o campo discursivo e
o lugar de atividade" (MAINGUENEAU, 2015, p. 67).
Uma receita médica, por exemplo, é um gênero que circula e é produzido no espaço do
hospital, por isso, pode ser enquadrado na categoria discurso hospitalar, e ainda, enquanto
discurso médico, tendo em vista a esfera da atividade produtora. Maingueneau afirma que a
noção de tipo sempre é heterogênea e “só é pertinente se permanecer vaga” (idem, 2015, p. 67).
70
Para ilustrar essa concepção ele utiliza como exemplo uma comunicação apresentada em um
congresso de medicina, esse gênero discursivo tanto pode ser apreendido como discurso
médico, por pertencer a essa disciplina, quanto um discurso científico por tratar-se de um
congresso, daí a importância de realizar o agrupamento dos gêneros tendo em vista diferentes
perspectivas a depender de nossas hipóteses e objetivos, e utilizando os critérios pertinentes.
A própria noção de que o objeto de análise não é o discurso, mas sim o espaço
interdiscursivo de troca entre diferentes discursos, já implica que as fronteiras das unidades
tópicas sejam transgredidas.
Só pode haver análise do discurso se ela se apoia em unidades tópicas, mas elas não
podem dar conta, sozinhas, do funcionamento do discurso, que é atravessado por uma
falha constitutiva: o sentido se constrói no interior de fronteiras, mas mobilizando
elementos que estão fora delas. (MAINGUENEAU, 2015, p. 81)
Para esclarecer isso é necessário partir da constatação de que essa é uma unidade
fundamentalmente heterogênea, isto é, pode reunir enunciados de um ou de vários tipos e
gêneros, mas tal heterogeneidade encontra limites no núcleo de convergência dos enunciados.
Por exemplo, o discurso racista é regido pela intenção, ainda que secreta ou inconsciente, de
garantir a supremacia branca, este é então o núcleo de convergência dos enunciados que
compõem um discurso racista, assim, mesmo que tenhamos um corpus constituído por
diferentes gêneros, o que guia o analista a encontrar o limite dessa formação é o núcleo que
atrai unanimemente um conjunto de enunciados. (MAINGUENEAU, 2015)
Nesse sentido, é possível perceber quanto a ação do pesquisador incide sobre a "forma"
de construir o espaço da formação discursiva, visto que é "o pesquisador que em função de suas
hipóteses, dá forma à configuração de textos sobre a qual vai trabalhar" (MAINGUENEAU,
2015, p.93). Não existem fronteiras postas a priori que estabeleçam um determinado conjunto
de enunciados como "discurso racista", a concepção dessa identidade discursiva, e o que
possibilita tal inscrição, se baseia nos conhecimentos e hipóteses do pesquisador,
inevitavelmente. E ao mesmo tempo, se consolida na própria análise.
Como afirma o autor, "o que é realmente um problema não é tanto a existência de uma
formação discursiva, mas a extensão do corpus que dela deriva" (MAINGUENEAU, 2008b,
p.63). Por essa razão, é necessário estabelecer problemáticas restritivas e que sejam, no limite,
administráveis por uma pesquisa.
Dentre os tipos de formação discursiva propostas pelo autor, a que parece integrar
melhor os objetivos e conhecimentos desta pesquisa é o tipo "formação discursiva temática".
Esse tipo de formação se organiza a partir de um tema, um conjunto de enunciados que fale,
por exemplo, "sobre o aborto", "sobre o impeachment de Dilma Rousseff", "sobre as pessoas
trans" etc. A natureza desse tipo de formação pode ser muito diversa e seria impossível prever
todas as possibilidades, no entanto, Maingueneau (2015) apresenta um quadro com as
categorias temáticas mais utilizadas na análise do discurso: as entidades, os cenários, as
propriedades, os acontecimentos e os nós.
Destas, vamos nos concentrar na categoria entidades. Esse tipo de formação discursiva
temática se dedica a falar sobre uma entidade humana ou um objeto antropomórfico. No caso
de entidades humanas, é possível ainda dividir entre formações que falam sobre personalidades
públicas, como artistas e políticos, e formações que tratam de figuras, membros prototípicos de
uma coletividade, como "a travesti", "o jovem negro", ou ainda, "a mulher da periferia".
De nossa parte, interessa trabalhar com a noção da figura, exatamente pela possibilidade
de investigar como se constitui a identidade discursiva da formação que fala sobre a "mulher
da periferia" como entidade. Com isso, não pretendemos apreender uma imagem que represente
"a mulher da periferia", como uma fotografia que representa um tempo e espaço determinados,
mas "trata-se, para a análise do discurso, de apreender as entidades por meio dos
funcionamentos discursivos, e não como a expressão de realidades que estariam acima, fora da
linguagem (MAINGUENEAU, 2015, p.87).
da periferia". Para isso, reunimos, como dito no capítulo anterior, um quadro temático baseado
nas três dimensões propostas pelo feminismo interseccional: gênero, classe social e raça.
Um ponto importante para discussão é que nosso corpus não é composto por diferentes
gêneros e tipos de discurso, como supõe a construção de uma formação discursiva, pelo
contrário, ele é constituído de enunciados proveniente, todos, da transcrição de entrevistas em
vídeo que foram exibidas na exposição Quem Somos [POR NÓS], portanto, unidades tópicas.
Dito isso, chamamos atenção para dois pontos que justificam essa delimitação: primeiro, apesar
de formações discursivas se construírem majoritariamente por uma heterogeneidade de gêneros
e tipos, o autor indica que é possível utilizar-se de um ou mais gêneros, e sobretudo, atentar-se
para problemáticas restritivas que sejam administráveis em uma pesquisa (MAINGUENEAU,
2015); e segundo, o pressuposto de que toda análise é interdiscursiva por natureza já implica
que outras formações discursivas, de diferentes gêneros e até diferentes tipos de discurso, se
encontrem presentes no discurso primeiro, a heterogeneidade é constitutiva de todo discurso.
Para entender melhor como se constitui essa noção, Maingueneau (2013) oferece uma
divisão ancorada nas unidades do discursos, de que tratamos no item anterior. Segundo ele, a
cena de enunciação se divide em três: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.
A cena englobante refere-se ao que entendemos por tipo de discurso, isto é, nesse nível
percebemos a cena de enunciação a partir da esfera de atividade do discurso, se é um discurso
publicitário, religioso, midiático. Já a cena genérica é determinada pelo gênero do discurso.
“Essas duas ‘cenas’ definem conjuntamente o que poderia ser chamado de quadro cênico do
texto. É ele que define o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire sentido - o
espaço do tipo e do gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2013, p.97).
75
Quando consideramos nosso objeto de análise, sabemos que uma entrevista concedida
a um veículo de comunicação, como é o caso do Nós, mulheres da periferia, possui, a princípio,
finalidades reconhecidas. Participar de uma entrevista implica emitir opinião sobre
determinados assuntos, contar histórias ou dar informações que serão veiculadas publicamente.
O que nos leva à segunda característica do gênero: em uma entrevista espera-se a presença de
sujeitos ocupando ao menos dois papéis, de um lado o repórter que realiza uma série de
perguntas, de outro, o protagonista que as responde. Como afirma Maingueneau (2015, p.121),
76
“a cada um desses papéis são atribuídos direitos e deveres, bem como competências
específicas”.
Quanto ao lugar, Maingueneau (2015) afirma que a escolha do espaço físico onde o
acontece a enunciação nunca é fortuita. A depender do gênero, o lugar pode ser imposto, como
casamentos, julgamentos etc., ou não impostos, como é o caso do corpus que analisamos. A
realização das entrevistas poderia acontecer em qualquer lugar, seria possível, até mesmo,
reunir todas as mulheres em um determinado espaço e entrevistar uma a uma. Isso teria sido,
inclusive, mais prático, do ponto de vista logístico do projeto; entretanto, o coletivo escolheu
visitar cada mulher em sua casa, no seu bairro. Essa escolha, que assim como fala o autor, não
é feita por acaso, teve o propósito de estabelecer uma relação mais próxima entre os parceiros,
as mulheres que entrevistaram e as mulheres entrevistadas, e oferecer um ambiente mais
confortável e seguro para as protagonistas.
Com isso podemos perceber que as duas cenas, englobante e genérica, estabelecem um
espaço estável para a constituição do quadro cênico da enunciação. Entretanto, como afirma
Maingueneau (2015, p.122), “enunciar não é apenas ativar as normas de uma instituição de fala
prévia; é construir sobre essa base uma encenação singular da enunciação: uma cenografia”. A
essa terceira cena, vamos dar especial atenção.
sexual ao prazer oferecido pela cerveja, como se ao consumir a nova Devassa negra se obtivesse
o mesmo prazer que se tem ao relacionar-se sexualmente com uma mulher negra.
Essa cena de enunciação, enquanto discurso publicitário forjado pelo gênero anúncio de
revista, poderia se constituir por meio de diferentes cenografias, mas escolheu-se criar uma
cenografia que relacionava a sexualidade da mulher negra ao prazer do consumo da cerveja.
Neste caso, enquanto analista do discurso, interessa explicar e analisar por que determinadas
escolhas são feitas, isto é, a implicação dessa cenografia na construção de sentido do discurso.
É nesse caminho que procuramos analisar as escolhas e os efeitos de sentido depreendidos da
cenografia a partir da fala de nossas protagonistas.
Maingueneau afirma que é por meio da cenografia que o enunciador legitima sua
enunciação:
3.4.2 O ethos
Como vimos, os papéis desempenhados pelos sujeitos do discurso são sempre parte
essencial da cena de enunciação, assim, investigar como o enunciador manifesta seu papel na
cena também é parte fundamental da análise. O discurso, seja ele oral, escrito ou de outra
modalidade, é sempre sustentado por uma certa vocalidade, um tom, que caracteriza o
enunciador, conferindo a ele um corpo e traços psicológicos.
78
Todavia, é precisamente por meio da cena de enunciação, isto é, no ato de enunciar, que
o fiador ratifica tais representações ou as desconstrói com o desenvolvimento de novas. Isto
porque cada enunciação implica um ethos ao mesmo tempo que é validada por ele, em uma
ação circular e paradoxal, como afirma Maingueneau:
A qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse "fiador" que, mediante sua
fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir
em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é por seu próprio enunciado que o fiador
deve legitimar sua maneira de dizer. (MAINGUENEAU, 2014, p.73)
79
Para construir modelos e antimodelos de seu ethos, o enunciador também recorre a cenas
validadas, cenas cristalizadas na memória social de uma determinada comunidade ou grupo.
Isso porque "a cena 'validada' fixa-se facilmente em representações estereotipadas
popularizadas pela iconografia" (MAINGUENEAU, 2014, p.81).
Segundo Maingueneau:
Como dissemos, os vários fatores que constituem o ethos são mais evidentes em
discursos políticos, publicitários, ou mesmo, literários e religiosos, tipos de discursos, com os
quais Maingueneau tem trabalhado majoritariamente em suas obras.
80
4. ANÁLISE
Neste capítulo vamos analisar o corpus a partir das categorias teóricas apresentadas no
capítulo anterior. Para isso, dividimos cada formação discursiva temática, maternidade, pobreza
e racismo em um bloco. Vale relembrar que cada uma das três entrevistas, Tarcila, Joana e
Renata, foram selecionadas por destacarem um dos temas de nosso interesse, todavia, como já
discutimos no contexto sócio-histórico (cap.1), as dimensões de gênero, classe social e raça são
transversais, o que implica que ao analisarmos o discurso a partir da perspectiva de gênero, por
exemplo, não podemos perder de vista as implicações da classe social e da raça em relação ao
gênero, o mesmo acontece ao analisar a dimensão de classe social e raça. São todas partes de
um todo, e um todo em si mesmas.
Para introduzir nosso objeto de pesquisa e facilitar o processo de leitura das análises,
apresentamos um pequeno resumo de cada uma das entrevistas:
6 O termo "mãe solo" designa as mães que são as principais ou únicas responsáveis pelos diferentes domínios da
criação dos filhos. Essa expressão vem sendo usada nas mídias digitais como forma de substituir o termo "mãe
solteira", a fim de desassociar a condição de maternidade do estado civil das mulheres.
81
A oposição, marcada fortemente na frase que destacamos ao abrir esta seção, engendra
a construção de sentidos de todo o enunciado. Se nos detivermos no terceiro parágrafo é
possível perceber como o discurso mobiliza diversos elementos a fim de justificar porque é
difícil ser mulher:
(1) Eu gosto muito de ser mulher, (2) mas é difícil. É muito difícil. (3) Essa
semana mesmo eu fiquei pensando: “Eu tenho dois filhos pequenos e ainda
não consegui retomar minha vida amorosa depois da minha separação”. Aí
essa semana fiquei pensando mais ainda se será que eu vou conseguir, porque
eu fiquei pensando na questão da maternidade. (4) Meu Deus, agora eu tenho
todas as possibilidades do mundo, eu tenho muitas possibilidades. Eu tenho
liberdade. Hoje em dia eu consigo ver aquilo que a gente fala, que uma
mulher pode ser dona de casa, ela pode ser estudante, ela pode ser o que ela
quiser, se realmente ela escolher isso. Então eu tenho, sim, muitas
possibilidades de escolha, (5) mas, e aquilo que me for obrigatório, o que eu
vou fazer com isso? Se eu engravidar novamente? Porque pode acontecer de
82
eu ter uma relação e engravidar novamente; o que eu vou fazer? (6) Porque
se a gente parar pra pensar um pouco, a mulher sempre fica com o lado mais
pesado. Ou ela se preocupa demais porque a criança tá com o pai, que não
sabe qual vai ser o tratamento que a criança vai receber ou não, ou ela é
tachada de uma mãe ruim ou uma pessoa ruim, porque não quer ser mãe do
jeito que a sociedade pede, ou ela é tachada pelo filho como uma má mãe,
porque não contou quem era o pai, decidiu fazer uma... ter o filho,
independentemente, sem contar quem é o pai. (7) Então, de qualquer forma,
a mulher acaba sendo mais prejudicada, sempre tem um ônus muito maior,
de ser mãe, estudante, dona de casa, e ser tudo, e ser linda, e ser magra. E
ainda é muito desigual.
Algumas marcas linguísticas nos ajudam a encaminhar a análise. Entre (1) e (2) o uso
do operador "mas" atribui mais força para a segunda afirmação "é difícil", em relação a primeira
"eu gosto de ser mulher". Desse modo, apesar do entusiasmo em "ser mulher", é possível
perceber que os desafios de viver sob o gênero feminino se impõem de forma mais intensa no
discurso. Em seguida, todo o enunciado se desenvolve de modo a legitimar essa primeira
constatação.
Entre os motivos que atestam a dificuldade em ser mulher, Tarcila destaca a dúvida em
conseguir ou não voltar a se relacionar afetivamente tendo dois filhos pequenos e,
principalmente, pelas imposições sociais atribuídas à maternidade. Antes disso, ela apresenta
suas convicções a respeito da liberdade de escolha e autonomia das mulheres, porém, esse
posicionamento parece não sustentar-se ao longo da enunciação.
Se por um lado a mulher poderia escolher o que quer ser e o que quer fazer de sua vida,
por outro, a maternidade se expressa como o elemento da obrigatoriedade. É possível observar
esse movimento entre os trechos (4) e (5).
quando um locutor fala, ele não se contenta em expressar suas próprias opiniões; ao
contrário, ele faz ouvir diversas outras vozes, mais ou menos claramente identificadas,
em relação às quais ele se situa. (MAINGUENEAU, 2013, p.163)
Desse modo, ao falar sobre a maternidade, Tarcila faz ouvir essas outras vozes,
discursos Outros que se inscrevem em formações discursivas machistas e patriarcais, segundo
as quais, a mãe deve atender a uma série de obrigatoriedades socialmente impostas para merecer
o título de "boa mãe". Esse universo semântico se opõe diretamente aos sentidos de liberdade e
de autonomia da mulher. Por isso, podemos apreender que uma formação discursiva construída
84
A ilustradora Taiz Leão Gouveia, responsável pela página Mãe Solo7, que ela descreve
como um projeto de empoderamento e fortalecimento para mães, discute a maternidade a partir
da ótica de suas dificuldades cotidianas. Suas tirinhas ilustram bem o universo semântico que
o discurso de Tarcila engendra:
Apesar da cenografia mobilizada nas tirinhas ser composta por elementos de humor e
de leveza, diferente do discurso de Tarcila que forja um quadro denso e de pesar, a ilustradora
descreve cenas que poderiam fazer parte da vida de muitas mulheres, como Tarcila. Desde uma
interação informal no supermercado ou no ônibus, até uma conversa no posto de saúde, é
possível notar que discursos de opressão de gênero circulam nos mais diversos espaços
públicos, por meio de diferentes gêneros e tipos discursivos. Tais ideias atribuem sentidos ao
que significa ser uma "boa mãe" e uma "mãe ruim", e legitimam condutas sociais que eximem
a sociedade de qualquer tipo de corresponsabilização ou solidariedade no cuidado às crianças,
atribuindo essa função unicamente à mãe, eximindo, inclusive, o pai desse papel.
Além disso, a maternidade entre adolescentes, como no caso de Tarcila que teve o
primeiro filho aos dezoito anos, é cinco vezes maior entre meninas pobres do que entre meninas
ricas (RNPI, 2015). Apesar desse número de adolescentes grávidas ter diminuído 17% entre
2004 e 2015, segundo dados do Ministério da Saúde (PORTAL BRASIL, 2017), a relação de
classe social e maternidade precoce permanecem intimamente ligados.
Para a pesquisadora estadunidense, Bell Hooks, o destaque que se tem dado, nos últimos
anos, à luta pela legalização do aborto, se sobrepondo a discussões sobre outras questões
fundamentais do direito reprodutivo, demonstra como o privilégio de classe condiciona também
as discussões públicas:
89
É possível identificar traços da intersecção entre gênero, classe social e raça também na
entrevista de Joana - texto que compõe nosso corpus de análise. A imagem da maternidade
construída pelo discurso de Joana mobiliza a imagem solitária de uma jovem mulher negra e
nordestina que chega à São Paulo, a grande metrópole, com o intuito de sair da situação de
escassez e pobreza vivida no sertão da Bahia. Na chegada ela se depara com um novo cenário
de dificuldades impostas, em grande parte, pela condição da maternidade solo. No parágrafo
destacado abaixo, em que Joana descreve os motivos que não a permitiram estudar quando mais
jovem, essa imagem se evidencia:
(1) Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não
tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha
escola, mesmo. Não tinha como você estudar. (2) Depois eu vim para cá com 19 anos,
eu cheguei aqui, eu ia estudar, e aí eu fiquei... fui criar meus filhos só. A minha
prioridade foi cuidar dos meus filhos. Trabalhar e cuidar deles.
Cenografia parecida é forjada pela letra da música Negro Drama, do grupo de rap
Racionais Mc's, como é possível notar no trecho recortado abaixo:
Daria um filme
Uma negra
E uma criança nos braços
Solitária na floresta
De concreto e aço
Veja
Olha outra vez
O rosto na multidão
A multidão é um monstro
Sem rosto e coração
Ei, São Paulo
Terra de arranha-céu
8Disponível em https://medium.com/qg-feminista/cap%C3%ADtulo-5-de-feminismo-%C3%A9-para-todos-por-
bell-hooks-f172145f0abe, acesso em 05 de dezembro de 2017
90
A história que daria um filme, como afirma a música, reproduz o quadro cênico
construído pelo discurso de Joana. Ainda que não fique claro se ela chegou à São Paulo com os
filhos ou engravidou após sua chegada, a imagem de uma mulher negra que se vê "solitária na
floresta de concreto e aço" se repete, e como vimos pelos números, caracteriza bem a noção de
"família brasileira".
Sobre o "promissor vagabundo" nada se sabe pelo discurso de Joana. É possível dizer,
apesar disso, que essa figura, a do pai, ou dos pais, de seus filhos, está fortemente vinculada ao
silêncio que percebemos no trecho (2): “Depois eu vim para cá com 19 anos, eu cheguei aqui,
eu ia estudar, e aí... eu fui criar meus filhos só”. Aqui, ela toma a decisão de silenciar parte da
história, não sabemos como foi sua chegada à São Paulo, e porque teve de assumir a criação
dos filhos sozinha. Todavia, para a análise do discurso, o não dito também é objeto de análise,
pois as coerções que determinam o que pode ou não ser enunciado também tecem os sentidos
do discurso. Ao negar tratar sobre a paternidade de seus filhos, o discurso de Joana reforça o
sentido da solidão, mas valoriza o protagonismo e a força da mãe, a história é sobre "dois contra
o mundo", ou melhor, três, neste caso.
No discurso de Joana, é possível ver que o estereótipo da "boa mãe" é substituído por
um questionamento social ainda doloroso: a sua capacidade de manter os filhos longe do crime.
91
Ao trazer outras vozes para o seu discurso, o enunciado constrói um espaço de embate e
conflito:
Não é todo mundo que tem coragem, a coragem que eu tive, de criar dois filhos
sozinha, de ser discriminada, você é discriminada, você é vista com outros olhos, você
escuta coisas que lhe assusta: "Eles vão virar bandido". Eu escutei muito isso: "Ela
não vai ter coragem de trabalhar para criar dois filhos, eles vão virar bandido, ela vai
abandonar". Não! Eu tive coragem. Eu tive peito. Eu cheguei a trabalhar em dois
trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.
O número de mortes de jovens negros no Brasil por violência é uma realidade que aflige
muitas outras mães negras e periféricas como Joana. Organizações da sociedade civil
descrevem como genocídio, os casos de violência contra jovens negros Brasil, dadas as
proporções com que as mortes acontecem diariamente e o alto índice de homicídios provocados
por agentes de segurança do próprio poder público nas periferias do país.
92
O rap é um gênero musical que já retratou diversas vezes a relação do filho negro com
sua mãe, sobretudo em contextos de maior vulnerabilidade social, assim como vimos na letra
dos Racionais Mc's. Uma recente composição do rapper Emicida, intitulada "Mãe", escrita para
sua mãe, dona Jacira, reforça os sentidos da maternidade em seu papel de salvação e martírio,
ou mesmo em sentido sagrado, como é possível perceber pelas estrofes abaixo:
Ao final da canção, um enunciado pronunciado por sua própria mãe reitera a dimensão
sagrada da maternidade, que é relacionada com a sacralidade da terra produtiva:
Assim, seguimos nossa investigação tendo em vista o prisma da classe social e suas
implicações no discurso das protagonistas. A entrevista de Joana, nesse sentido, oferece um
cenário produtivo para pensar as relações de classe social.
94
Para analisar as marcas dessa cenografia, vamos nos concentrar na tensão instaurada
pela enunciadora ao tratar da relação entre possuir e não possuir, sejam bens materiais, direitos
ou mesmo afeição e respeito. O uso reiterado do verbo "ter", em diferentes momentos da
enunciação, funciona como um marcador da diferença de classes, aquilo que distingue e
demarca o limite entre pobres e ricos. Nesse sentido, é visível que a cenografia da privação
revela a classe como uma fronteira que determina, historicamente, a desigualdade social e a
opressão.
Bloco (A)
(1) Eu nunca tive isso. O meu patrão juntar todo mundo na recepção para cantar
parabéns para mim? Eu nunca tinha tido isso.
(2) Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não
tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha
escola, mesmo. Não tinha como você estudar.
(3) Essa é a oportunidade que eu tive, que eu nunca tive. Mal aprendi fazer meu nome.
E hoje eu estou voltando a estudar. Isso pra mim é o maior orgulho. Eu estou muito
feliz.
Bloco (B)
(1) As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você
para trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar
colher e garfo, copo.
95
Bloco (C)
(1) Não é todo mundo que tem coragem. A coragem que eu tive, de criar dois filhos
sozinha. [...] Não! Eu tive coragem, eu tive peito, eu cheguei a trabalhar em dois
trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.
Contudo, em (C) ela estabelece uma nova relação entre as pessoas do discurso,
atribuindo-se pela primeira vez, a condição de quem "tem": "Eu tive coragem, eu tive peito".
Ao ocupar esse espaço na cena de enunciação, a enunciadora rompe uma barreira simbólica
imposta pela classe social, pois ela também possui um patrimônio. Todavia, diferente do
patrimônio dos ricos, aqui o discurso trata de bens imateriais, a virtude da coragem necessária
para criar dois filhos sozinha. Tal atributo é altamente valorizado dado o fato de que "não é todo
mundo que tem". A coragem, assim, seria uma virtude de poucos, e por isso, tão valiosa.
Segundo Maingueneau,
Assim como afirma Maingueneau, não é necessário que o discurso demarque a presença
de seu Outro na enunciação, pois todo dizível implica um indizível:
Ainda na esteira dos sentidos mobilizados pela divisão de classe social, é possível notar,
a partir do trecho destacado acima, que o estereótipo da mulher da periferia se ancora, em
grande parte, na relação intrínseca com a pobreza. Pelo trecho destacado acima é possível
perceber que o discurso de Renata, a terceira protagonista desta pesquisa, utiliza-se da
denominação "da periferia", reconhecendo que a imagem de pobreza, disseminada pelas
novelas, se apoia na dimensão territorial.
Dito isso, é notável que a classe social é uma dimensão intimamente ligada à divisão
espacial do território. Como discutimos no capítulo 1, a geografia é uma disciplina
indispensável para refletir sobre a sociedade, pois a distribuição territorial da população diz
muito sobre como se constrói a desigualdade social (SANTOS, 1989). E para este trabalho, a
97
(1) Ah, eu tenho aqui como minha casa, às vezes eu penso em ir embora de São Paulo,
mas, eu falo: Não me vejo longe do Campo Limpo. É um pedacinho de mim aqui, eu
viajo, tudo, volto, mas parece que eu tô voltando mesmo, não só pra minha casa, mas
pro meu bairro, pra minha casa, pra minha gente. Eu gostaria que o Campo Limpo
fosse um pouco... que tivessem um pouco mais de cuidado com nosso bairro, mas, a
gente vai sobrevivendo.
(2) Eu não considero aqui periferia não. Acho que a gente tem acesso aqui a bastante
coisa. A periferia às vezes tá melhor do que o centro. A gente tem muito acesso a tudo,
tá muito amplo pra gente, entendeu? A gente já tem bastante coisa que a gente não
tinha antes: acessibilidade a muita coisa, temos o terminal aqui perto, agora, temos
muitas lojas, entendeu? A gente não precisa ir pra longe pra adquirir as coisas que a
gente quer.
(Trechos da entrevista de Adriana)
Nesses trechos, Adriana fala sobre o Campo Limpo, bairro localizado na zona sul da
cidade. Conhecido comumente como um bairro de periferia, devido a distância do centro, cerca
de 23 quilômetros, o Campo Limpo também é percebido enquanto periferia por ser um bairro
com baixos índices sociais no que diz respeito à infraestrutura, serviços e direitos fundamentais,
como podemos perceber a partir do levantamento sócio-histórico que consta do capítulo 1.
Interessa-nos agora investigar que sentidos são construídos sobre a periferia, por meio
da cenografia que depreendemos no discurso de Adriana. Primeiro, é possível perceber que ela
demonstra uma relação afetuosa com o Campo Limpo e com seus vizinhos, que chama
respectivamente de “meu bairro”, “minha gente”. Logo no início da enunciação ela afirma que
o bairro é como se fosse a própria casa, para onde deseja voltar, sempre. Apesar disso, não deixa
de reconhecer que alguns aspectos poderiam melhorar: “[...] eu gostaria que o Campo Limpo
98
fosse um pouco... que tivessem um pouco mais de cuidado com nosso bairro, mas, a gente vai
sobrevivendo”. A partir desse trecho, podemos perceber que o bairro associa-se a ideia de lar,
enquanto espaço de vivência e compartilhamento com os seus, sejam amigos ou familiares.
Dessa forma, o discurso de Adriana, bem como o de Joana, rejeita a identidade associada
à miséria. Porém, diferente de Joana, aqui o ethos mobiliza uma imagem de mulher que possui
bens e direitos, verdade atestada pelos sentidos atribuídos ao lugar onde mora. Para valorizar
suas qualidades, o ethos desvaloriza a figura de seu antiethos, representado na imagem da
mulher da periferia.
(1) A palavra periferia me diz onde eu moro, me diz tudo, diz desde quando eu acordo
até quando eu vou dormir, o pessoal passando com seus carros de funk, as mulheres
na frente da janela rebolando, a minha tia no bar com copo de cerveja, minha mãe,
significa tudo.
(2) Primeiro lugar, eu tentaria tirar aquelas biqueiras de perto de casa. Mudaria o jeito
que os outros pensam sobre nós, sobre a periferia. Mudaria a forma de viver, porque
ali, muitas vezes... a periferia tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é que todo
100
mundo é amigo, todo mundo, um ajuda o outro. Agora, o lado ruim é que é muito
barulho, muita bagunça, muito agito. Então, eu tentaria dar uma acalmada nisso.
Para empreender as análises, destacamos abaixo três trechos em que Renata responde
ao seguinte questionamento das entrevistadoras: "E como é na sua escola? Você sente algum
tipo de preconceito quando está lá?"
(1) Sinto, na escola sinto. Porque assim, eu cheguei na escola tipo... na minha escola,
na minha sala, principalmente, tem poucos negros. E quando eu cheguei na escola foi
uma coisa... foi difícil. Porque assim, na escola eles querem um povo mais... com mais
poder. Ah, se veste melhor, com roupa de marca, isso e aquilo. E eu acho que para se
vestir bem não precisa ter marca, não é uma etiqueta escrito que o negócio é original
que vai dizer quem você é. Então, como eu não sou muito disso, então, eu sofri muito
por isso. Porque o pessoal não se enturma comigo. Eu tento, eles não quer.
(2) O que eu enfrento é sufocante, isso de você entrar numa sala e não ter ninguém
pra tá conversando com você. Mas, eu levo isso como se não tivesse ninguém ao meu
redor, porque assim, ali eles podem não gostar de mim, mas, saindo dali eu vou pra
um lugar que eu vou ter bastante carinho, bastante amor.
(3) Eu gostaria de falar pra eles que... cara, eu sou igualzinha a eles. Não mudo em
nada, se tirasse a minha pele e deixasse só no vermelho e pegasse a pele de outra
pessoa e colocasse, eu seria a mesma pessoa. Tudo que eles têm eu também tenho, eu
só não posso ter a mesma cor ou ter uma roupa de marca. Nós somos tudo seres
humanos. Então, eu não entendo isso, ficar destratando só porque mora ali, porque
não tem isso, porque é negro, porque isso, porque aquilo. Então, pra mim, é todo
mundo igual.
102
Ao nos determos no trecho (1) é possível depreender que ela fundamenta, entre os
motivos que justificariam a rejeição dos colegas, a sua falta de "poder": "Porque assim, na
escola eles querem um povo mais... com mais poder". Dentre muitos significados, o universo
semântico do verbo "poder" implica possibilidade, capacidade, força e autoridade. Na escola,
então, o "poder" seria um atributo daqueles que vestem roupas de marca e que possuem a pele
clara. A questão racial é demarcada por ela logo no início do enunciado: "Porque assim, eu
cheguei na escola tipo... na minha escola, na minha sala, principalmente, tem poucos negros".
Ao identificar que a cor da sua pele é uma característica que a distancia de seus colegas, ela
reconhece que a reação dos alunos está alicerçada no racismo.
Então, para ser aceita, Renata precisaria atender aos critérios que determinam quem
tem poder e quem não tem, que são baseados, sobretudo, na distinção de classe e raça. A
condição de ser negra e pobre implicaria, assim, ocupar um lugar inferior, associado à
incapacidade, sentidos diretamente opostos ao "poder". Todavia, tal atribuição é, com efeito,
refutada pela enunciadora, que não admite e nem assume esse lugar de inferioridade, mas, pelo
contrário, se dedica a questionar sua validade.
Para isso, seu discurso se constrói, logo de início, em oposição ao discurso racista como
é possível notar ao recortarmos outro trecho da entrevista:
[...] a Beyonce, ela é uma puta de uma cantora, canta demais. A banda dela é só
mulheres que toca. Mulher tocando, tem uns dois, três dançarinos, o resto é tudo
mulher. Ela tem esse negócio de focar: nós, mulheres negras, podemos. Entendeu? E
ela é negra, é uma diva, e ela tá lá em cima, então, é uma inspiração também pra mim.
Quando descreve sua ídola, Renata constrói uma imagem de "poder", indicando que
Beyonce "está lá em cima alto", "é uma diva", imagens que a associam ao sucesso, à capacidade
de ser e realizar grandes coisas, de quem possui força e autoridade, já que encontra-se acima
dos outros. Ao mesmo tempo, Beyonce é uma figura próxima, visto que encontra-se circunscrita
sob o mesmo "nós", que denomina as mulheres negras, uma comunidade de sujeitos que tem
"poder", tal como a própria artista. Dessa forma, o discurso mobiliza um ethos de confiança e
poder à figura da enunciadora, a fim de agenciar um novo lugar de existência às mulheres negras
e pobres.
103
Essa maneira de ser e dizer-se, constitui a imagem de um fiador capaz de ocupar lugar
no enfrementamento aos sentidos do racismo, segundo os quais os negros são inferiores e
incapazes.
Onde quer que a escravidão tenha sido uma realidade, lançou mão de métodos
violentos, torturantes, agindo contra a integridade física e psicológica dos grupos
escravizados. O racismo contemporâneo guarda em sua memória marcas desse
passado. (ALMEIDA, 2014, p. 142)
Para fazer com que seu coenunciador seja capaz de entender sua dor, a enunciadora
incita-o a uma troca de lugares, a um exercício de empatia; tal movimento se evidencia pelo
emprego das pessoas do discurso no seguinte enunciado: "O que eu enfrento é sufocante, isso
de você entrar numa sala e não ter ninguém pra tá conversando com você". Ao utilizar "você"
ela convida o outro a adentrar o espaço terrível da sala de aula a fim de sentir as mesmas
sensações, todavia, o outro aí não é apenas o coenunciador direto da situação de enunciação,
representado pelas entrevistadoras, mas a própria sociedade como um locutor coletivo, um
coenunciador genérico. A prática do racismo vivenciada por Renata na relação com seus
104
colegas não pode ser apreendida na dimensão das relações pessoais, mas sim como uma prática
sustentada e incorporada por toda uma sociedade e pelos discursos que ela dissemina, assim
como afirma Dijk (2015):
[...] preconceito e discriminação não são natos, mas aprendidos, principalmente por
meio do discurso público. Tal discurso, em grande parte controlado pelas elites, inclui
debates políticos, notícias e artigos de opinião, programas de tv, manuais e trabalhos
escolares. Se tal discurso fosse sistemática e predominantemente não racista ou
antirracista, o racismo não seria tão difundido quanto é [...] (DIJK, 2015, p. 31)
Por fim, o emprego do "nós" procura romper com o abismo que separa "eu" e
"eles": "Tudo que eles têm eu também tenho, eu só não posso ter a mesma cor ou ter uma
roupa de marca. Nós somos tudo seres humanos". Ou seja, ainda que "eu" represente uma jovem
negra que não usa roupas de marcas, e "eles" sejam jovens de pele clara que usam roupas de
marca, "nós" circunscreve todos a partir dos traços e da natureza humana. Portanto, todos
possuiriam os mesmos atributos de humanidade, que não se baseiam na classe social ou na cor.
Ao reivindicar esse lugar, o discurso mostra que o racismo tem eliminado aquilo que torna
Renata igual - ainda que diferente - de seus colegas, sua condição humana.
Assim como afirma Almeida (2014), o imaginário social é cerceado pela lógica
colonialista de dominação entre os povos, e a forma mais eficiente de manter a hegemonia sobre
o outro é roubar-lhe as condições de existência:
As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você
para trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar
colher e garfo, copo. Como é que você se sente? Separando seu garfo, sua faca, sua
colher? Nossa, você se sente um lixo, você não é ninguém. A minha vida é isso? Você
se sente um lixo. Separar seu garfo, sua colher, você está com nojo… se eu tô com
nojo de você, por que que eu tô com você na minha casa? Eu preciso de você e você
precisa de mim. Tem que haver respeito com o próximo, não importa quem você é.
Se você é branco, se você é negro, se você é pobre, se você é rico. Todo mundo é
igual, o mesmo sangue que corre na sua veia porque você é branca, ou tem dinheiro,
corre na minha, igualzinho, não tem diferença.
Bem como a rejeição dos colegas de Renata, o ato de separar os talheres é simbólico
do desprezo e da repulsa dirigidos aos negros. No início do enunciado, o uso do verbo "levar"
indica sua admissão pelos patrões: "[...] quando eles levam você para trabalhar na sua casa, eles
têm nojo [...]". O particípio "levada" revela uma prática de coisificação do sujeito que
desenvolve a trabalho doméstico e remete também à imagem dos negros "levados" nos navios
negreiros na condição de objetos, mão de obra escrava.
A relação entre patrão e empregada se cria de forma tão violenta e opressora, que ela
afirma sentir-se um "lixo". Os sentidos mobilizados em torno de tal substantivo corroboram
com a percepção de que o sujeito negro não possui valor, é um objeto descartável. Diante dessa
constatação ela introduz uma pergunta retórica: "A minha vida é isso?", de forma a interpelar
seu coenunciador a refletir sobre o lugar socialmente imposto a ela. Durante todo o discurso, a
enunciadora convoca a presença de um coenunciador coletivo, genérico, inclusive quando
utiliza a pessoa "você" no texto, assim como o discurso de Renata, a fim de fazer com que seu
locutor seja capaz de colocar-se no seu lugar e compartilhar de seus sentimentos de tristeza e
revolta: "Nossa, você se sente um lixo, você não é ninguém".
naturalmente seres não humanos, naturalmente mais resistentes ao trabalho, naturalmente mais
disponíveis ao sexo, etc.
Para Joyce, “é preciso humanizar as relações, tratar o serviço doméstico como algo
essencial pra vida. Não tem como falar que não se sabe ou que não se tem informação, mas o
quartinho da empregada doméstica continua sendo a senzala de hoje" (FERNANDES, 2017).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Elaborar o texto que encerra um trabalho é sempre um exercício desafiador. Como todo
pesquisador, reconheço os limites de minha atividade diante da dimensão da problemática e de
suas inúmeras possibilidades de desdobramentos. Assim, encaminho estas considerações,
destacando os principais achados e reflexões desta pesquisa, bem como apontamentos que
visam contribuir com outras pesquisas, discussões e atividades voltadas ao enfrentamento das
desigualdades sociais no Brasil, principalmente, no que concerne às mulheres negras que vivem
nas periferias.
No decorrer das análises, ficou muito evidente que a tríade gênero, classe social e raça
constituem-se como partes inerentes do contexto social em que vivem as mulheres da periferia,
de modo que não foi possível dissociar as dimensões ao discutir cada tema. Por exemplo, o
ethos da mãe corajosa e guerreira construído no discurso de Joana só pôde ser apreendido
enquanto efeito da intersecção da classe social e da raça associadas a sua condição de mulher.
Por meio dos enunciados de Joana foi possível depreender que a coragem é um
patrimônio mais valorizado do que os bens materiais. Dessa forma, a distinção de classe social
não implicaria condição inferior as mulheres pobres, visto que a riqueza constitui-se nas
virtudes, nos bens imateriais, atributos que as mulheres pobres possuem.
Em relação ao conjunto de análises, foi possível depreender que existe uma relação de
embate entre o lugar de negação a partir do qual o discurso emerge e os sentidos de resistência
mobilizados pelo ethos das enunciadoras. Dessa forma, podemos dizer que a identidade
discursiva das mulheres da periferia implica um lugar de existência por meio da resistência.
A maior parte dos estudos no âmbito da análise do discurso com os quais tive contato
durante o desenvolvimento desta pesquisa se concentram na análise de tipos e gêneros de
discurso mais estáveis e institucionalizados, como o discurso religioso, o discurso midiático, o
discurso científico. Assim, analisar um conjunto de enunciados produzidos por um grupo de
mulheres que se encontram sob categorias e fronteiras muito instáveis foi um grande desafio
para esta pesquisa, todavia, foi uma grande oportunidade de tencionar e criar novas perspectivas
a partir das teorias que estão postas. E também de contribuir para as pesquisas do grupo Atelier,
muitas das quais valorizam o que se produz à margem da academia.
mulheres da periferia como protagonistas, também implica o desejo transpor as fronteiras que
distanciam a universidade das periferias, geográficas e simbólicas, onde essas mulheres se
encontram. Ainda que muitas - assim como eu - já tenham atravessado muitas pontes e chegado
aos bancos universitários, demarcando sua presença física e intelectual, entre a universidade e
a periferia ainda existe um grande abismo.
Desse modo, os discursos que foram nosso objeto de análise e os resultados obtidos por
esta pesquisa ainda têm um longo caminho de disseminação e de oportunidade de novos
desdobramentos por meio das atividades realizadas pelo coletivo.
113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980
BROWN, M; ROCK, E; Negro Drama. Intérpretes: Racionais MC’s. São Paulo. Grav. Casa
Nostra Fonográfica CD. Albúm: Nada Como um Dia Após o Outro, 2002.
CAMPOS, A.L; CANDIDO, Marcia Rangel; JR., João Feres. A Raça e o Gênero nas Novelas
dos Últimos 20 anos. GEMAA. 2014. Disponível em: <http://www.gemaa.iesp.uerj.br>.
Acessado em: 15, JUL 2016
CANDIDO, M.R; JR., J.F; Jornalismo Brasileiro: gênero e cor/raça dos colunistas dos
principais jornais do país. GEMAA, 2014. Disponível em: <http://www.gemaa.iesp.uerj.br>.
Acessado em: 15, JUL 2016
114
CRENSHAW, K;. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist
Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist
Politic. University of Chicago Legal Forum: 1989
DAVIS, A;. As mulheres negras na construção de uma nova utopia – Angela Davis. 1ª
Jornada Cultural Lélia Gonzales. Maranhão, 1997
______. Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo. In: UFBA,
Bahia, 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2vYZ4IJtgD0>. Acessado
em: 25 Jul, 2017
EMICIDA; Mãe. São Paulo. Grav. Sony Music Entertainment Brasil Ltda. Albúm: Sobre
Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, 2015.
HOOKS, B; Feminism Is For Everybody: Possionate Politics. South and Press, 2000.
115
IBGE. Censo Demográfico, 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 12 Set,
2017.
____________. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça – 1995 a 2015. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br>. Acessado em: 09 Set, 2017.
____________ . Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010
MANSO, B.P et al; Chance de ser mãe solteira na periferia é até 3,5 vezes maior. O Estado
de São Paulo, São Paulo, 12/05/2013. Disponível em: <http://sao-
paulo.estadao.com.br/noticias/geral,chance-de-ser-mae-solteira-na-periferia-e-ate-3-5-vezes-
maior-imp-,1030951>. Acessado em 29 Dez. 2017.
MATOS, M;. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir
do sul global. IN: Revista de Sociologia e Política. v.18, n.36. p.67-92. Curitiba, 2010
ROLNIK, R. São Paulo 450 anos. São Paulo. Colóquio São Paulo 450 anos, 2004. Disponível
em: < https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2009/08/saopaulo450anos.pdf>. Acessado em:
12 dez, 2016.
_________. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo
e Rio de Janeiro). Rio de Janeiro. Revista de Estudos Afro-Asiáticos 17 – CEAA, Universidade
Cândido Mendes, 1989.
SANTOS, M. A metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo. Ed.
Edusp. 1990.
SÃO PAULO DIVERSO. Igualdade Racial em São Paulo: Avanços e Desafios. Disponível
em: <http://www.saopaulodiverso.org.br>. Acessado em: 27 Abr, 2017.
SODRÉ, M. Por um conceito de minoria. IN: Comunicação e cultura das minorias. Paulus.
São Paulo, 2009.
___________. Mapa da Violência 2016. Homicídios por Arma de Fogo no Brasil. Brasília:
FLACSO, 2015.
119
ANEXOS
Anexo A
Sempre escutamos frases como "ela é formada, mas não na USP" ou "ela é ótima, mas mora
longe", mas o tempo ensina a não ter vergonha da periferia
Se a periferia tivesse sexo, certamente seria feminino. Como coração de mãe, ela abraça
os seus filhos sem distinção, sem ver se é belo ou feio, dentro ou fora dos padrões.
No dicionário, periferia é a região mais afastada do centro. Um termo que designa apenas um
espaço geográfico, não o pior lugar da cidade.
Em São Paulo, há mais de 650 mil mulheres vivendo na periferia -e presentes em toda
a cidade, trabalhando, estudando e saindo com os amigos. No Brasil, quase 22 milhões de
mulheres são chefes de família.
E para quem é considerada uma favelada, alcançar o ensino superior é quase impossível.
É como se ela nascesse com seu destino determinado. Jamais vai ter dinheiro para pagar a
universidade e a escola pública não vai prepará-la.
Mas agora, belas, agressivas, cheias de gana e autoconfiança, essas mulheres estão
driblando as dificuldades para ascender socialmente. Passaram a incluir mais uma atividade em
sua dupla jornada, que se tornou tripla, pois também estudam.
Hoje, mais do que nunca, mães que não tiveram oportunidades de ensino podem sonhar
com o estudo dos seus filhos. Na periferia, a mãe tem orgulho de dizer à patroa que seu filho
"fez faculdade".
Não que o diploma de ensino superior tire a sensação de ser marginalizada. "Ela é
formada, mas não na USP. É uma ótima profissional, mas mora muito longe." Essa é a realidade
de muitas das 3,6 milhões de brasileiras que fazem faculdade.
Situação que apaga e esconde diversas características da população que está longe dos
grandes centros. A periferia tem, sim, pessoas interessadas em arte, moradores engajados em
movimentos sociais e políticos que querem mostrar a pluralidade deste "outro mundo".
121
Ela é metalúrgica e se separou do marido depois de uma briga que a deixou com o dedo
torto. Já apanhou, mas também bateu. Como mulher forte que é, decidiu fazer a operação para
não ter mais filhos, encarando o machismo do então parceiro, que não quis fazer a vasectomia.
Não basta, no entanto. Quem de nós nunca ouviu a famosa afirmação: "Você não parece
que mora na periferia." Bom, até onde sabemos e vemos, as mulheres da periferia não têm
apenas um padrão de beleza, não usam as mesmas roupas e não gostam de um único tipo de
música.
Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de fotografia,
balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos cria constrangimento. "Sim,
tomo ônibus. Trem. Dois metrôs. E ônibus de novo." No happy hour, é comum escutar: "Lá
entra carro? Essa hora é perigoso. Quer dormir na minha casa?". A resposta é não. Saímos cedo,
voltamos tarde, mas sempre voltamos.
Trabalhamos perto, trabalhamos longe, dirigimos carros, usamos ônibus. Somos várias,
diferentes histórias, o mesmo lugar. É impossível nos reduzir a um estereótipo.
Com o tempo, a mulher aprende a dizer que seu bairro não é tão perigoso quanto pregam.
Aprende a não ter vergonha de dizer que é da periferia, pois é lá que estão suas raízes e tudo
aquilo que aprendeu.
Anexo B
Roteiro das entrevistas do projeto Desconstruindo Estereótipos. Fonte: Acervo do Coletivo
Nós, mulheres da periferia
Foco da entrevista
Foco na questão da mídia, buscando extrair da entrevistada suas reflexões sobre como se sente
representada nos meios de comunicação e, em contra partida, coloca-la como protagonista ao
provoca-la a refletir quais histórias da sua vida poderiam se tornar notícia e por que. Não
podemos esquecer que estes vídeos serão o fio condutor e a voz que amarrará o objetivo da
nossa exposição. Uma vez que as telas de pintura e a fotografia expressam significados diversos
e não transmitem reflexões sobre a mídia, os vídeos precisam cumprir essa função. Portanto
usando perguntas que não dispersem dos temas: gênero, mídia e periferia.
O que queremos com cada entrevista: Evidenciar a ausência da mulher da periferia na mídia
através da fala da entrevistada.
Nosso vídeo precisa ter detalhes, assim como buscamos trabalhar na fotografia. Se nossa
proposta para a oficina de fotografia foi que as mulheres escolhessem seus detalhes, precisamos
trazer essa experiência para os vídeos também. Além de trazer uma harmonia estética, reforça
o nosso zelo em valorizá-las. Os planos abertos, no estilo Eduardo Coutinho, são fundamentais.
Mas a proposta é mesclar com closes que também transmitam os gestos, os olhares, os sorrisos.
A câmera precisa captar os lábios, as mãos, os pés e etc. Serão vídeos cuidadosos e as imagens
devem comunicar tanto quanto as falas. O mesmo olhar deve ser aplicado ao local em que as
filmagens acontecerão. Se for em um lugar aberto, como na rua, buscar o movimento, o
caminhar das pessoas ao redor, as paisagens. Se for a casa da entrevistada, os retratos, a
ambientação.
Roteiro de Perguntas
Anexo C
Corpus de análise desta pesquisa: transcrição das entrevistas de Tarcila, Joana e Renata -
apenas os trechos editados e exibidos na exposição Quem Somos [POR NÓS]
Entrevista 1
O meu mais novo, de três anos, ele é muito independente. Desde os dois anos, ele acha que ele
sabe ler. Então ele toma o livro das nossas mãos e ele fala que ele vai contar a história, aí fica:
"Era uma vez...". Aí conta tudo errado, mas é tão lindo. E o meu mais velho, a professora dele...
Ele tinha me contado que tinha feito isso, mas a professora dele me falou, né, que ele tinha que
fazer uma carta pro governador, e era pra eles verem o que tinha que escrever. Eles tinham que
fazer alguma coisa, e ele pediu pro governador uma pintura pra escola, porque a escola estava
muito pichada, estava feia, cobertura pra quadra, e mais alguma coisa, não lembro agora o que
foi, mas eu falei: “Nossa, que coisa mais linda, o meu filho de oito anos já consegue ver o que
precisa de verdade na escola, então eu espero que eles continuem se desenvolvendo assim”.
Eu sempre trabalhei no centro da cidade, eu sempre aproveitei muito esse percurso, exatamente
por ser dona de casa. Mesmo antes de ter meus filhos, já ajudava nos deveres de casa, como é
comum, né, cultural da gente. Então esse período que eu tinha, da condução pra ir trabalhar, pra
ir estudar. Eu também sempre fiz faculdade no centro da cidade, e é o período que eu sempre
aproveitei mais para estudar, e para mim não é um tempo inútil. Foi um tempo ganho, sempre,
mesmo o percurso sendo longo, de uma hora e meia ou duas, sempre foi um tempo ganho. Mas
eu nunca parei pra pensar mesmo nas possibilidades ou benefícios que se possa ter de morar no
centro da cidade. Eu gosto de morar na periferia, gosto de morar na zona leste. Eu vou até lá,
numa boa, às vezes é cansativo, sim, quando precisa ter uma atividade mais legal no centro da
cidade; quando dá pra ir também com os meus filhos, é cansativo, mas, eu não vejo isso como
um empecilho.
Eu gosto muito de ser mulher, mas é difícil. É muito difícil. Essa semana mesmo eu fiquei
pensando: “Eu tenho dois filhos pequenos e ainda não consegui retomar minha vida amorosa
depois da minha separação”. Aí essa semana fiquei pensando mais ainda se será que eu vou
126
conseguir, porque eu fiquei pensando na questão da maternidade. Meu Deus, agora eu tenho
todas as possibilidades do mundo, eu tenho muitas possibilidades. Eu tenho liberdade. Hoje em
dia eu consigo ver aquilo que a gente fala, que uma mulher pode ser dona de casa. Ela pode ser
estudante, ela pode ser o que ela quiser, se realmente ela escolher isso. Então eu tenho, sim,
muitas possibilidades de escolha, mas, e aquilo que me for obrigatório, o que eu vou fazer com
isso? Se eu engravidar novamente? Porque pode acontecer de eu ter uma relação e engravidar
novamente; o que eu vou fazer? Porque se a gente parar pra pensar um pouco, a mulher sempre
fica com o lado mais pesado. Ou ela se preocupa demais porque a criança tá com o pai, que não
sabe qual vai ser o tratamento que a criança vai receber ou não, ou ela é tachada de uma mãe
ruim ou uma pessoa ruim, porque não quer ser mãe do jeito que a sociedade pede, ou ela é
tachada pelo filho como uma má mãe, porque não contou quem era o pai, decidiu fazer uma...
ter o filho, independentemente, sem contar quem é o pai. Então, de qualquer forma, a mulher
acaba sendo mais prejudicada, sempre tem um ônus muito maior, de ser mãe, estudante, dona
de casa, e ser tudo, e ser linda, e ser magra. E ainda é muito desigual.
Eu conheci o pai dos meus filhos com 17 anos. Com 18 anos a gente começou a namorar.
Sempre foi muito conturbada a nossa relação porque ele era... é usuário de droga. As
responsabilidades do lar eram só minhas. Eu sempre me cobrei muito também por isso. Eu
engravidei no começo de 2012, e nossa relação foi ficando cada vez pior.
Eu tenho até um caso de uma amiga, que a história é incrivelmente parecida com a minha. Ela
tem uma relação muito difícil de... acho, de uns 15 anos já, com um homem que ele é usuário
de drogas, e ela é dependente emocionalmente dele. Ela ainda acredita que ele vai mudar. Ela
ainda acredita que o amor dela é capaz de mudar ele. Eu acho que essa é a pior violência que
fazem com a mulher, porque a gente acredita nisso. Eu não sei em que momento é passado pra
gente, mas a gente acredita que o nosso amor vai mudar um homem. E o nosso amor não muda
ele. E aí a gente se sente fracassada porque parece que o fracasso é nosso, não foi a sociedade
que moldou o sujeito daquele jeito, foi a gente que não foi capaz, a gente que não foi mulher
suficiente para mudar um homem, porque se a gente fosse mulher suficiente a gente tinha
127
mudado ele. Isso, de certa forma, entra na nossa cabeça, e pra sair é muito difícil, são anos de
dor e sofrimento e lágrimas que ninguém vê, até você ter coragem e expor essas lágrimas.
Ninguém é capaz de mudar ninguém. A pessoa só muda quando ela quer, se ela quer. Se ela
não quiser mudar também, é um problema dela. Mas as mulheres ainda se cobram muito, se
cobram muito desse papel de mudar o outro, de só serem capazes quando conseguem fazer isso.
Eu vejo muitas histórias parecidas com isso, muitas, muitas, muitas, de mulheres que perdem o
seu equilíbrio psicológico e emocional porque tentam mudar um homem; mulheres que não se
veem como sujeitas da sua história, porque estão ali, se desgastando a vida toda, tentando mudar
um homem e não veem o quanto a vida delas poderia ser mais simples ou, pelo menos, menos
dolorosa, se elas se olhassem mais ao invés de só estarem olhando para eles.
Eu acho que muda, eu acho que acaba sendo uma seleção natural, como se fosse uma peneira,
então desde o começo, eu já falo: "Tenho dois filhos, moleques, danados. Eu tenho um parafuso
a menos, eu faço um milhão de coisas ao mesmo tempo, às vezes não concluo algumas, falo
gíria, eu não tô nem aí para o que os outros vão falar”. E aí na hora mesmo, das conversas, eu
acabo falando muita besteira, principalmente quando é essas coisas de aplicativo de celular, que
tem muito agora, aí os caras adoram pedir foto, falo: "Meu, eu não mando foto. Desculpa. Você
quer minha foto?! Tem lá no Face [Facebook]. Tem um monte de foto lá, minha, dos meus
filhos, lá no Face”. Quando é um cara que eu convido pro Face. "Você olha lá...". Foto de
biquíni eu não mando, não, meu filho. Eu não vou ficar mandando pose, desculpa. Então eu
prefiro a gente conversar. A gente conversa e vê no que vai dar. Agora, meu corpinho não é
assim não, bem [risos]. É engraçado, acaba sendo engraçado, e vamos tentando, né?! Têm uns
loucos que a gente conversa um pouco mais, têm outros que um pouco menos e a gente vai
indo.
128
Entrevista 2
Eu nunca tive isso. O meu patrão juntar todo mundo na recepção para cantar parabéns para
mim? Eu nunca tinha tido isso. Eu chorei. Eu guardo o cartão que eles me deram até hoje, com
todas as dedicatórias. Até hoje. 15 anos. Está lá, guardado. Vou levar comigo, né, para onde eu
for.
As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você para
trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar colher e garfo,
copo. Como é que você se sente? Separando seu garfo, sua faca, sua colher? Nossa, você se
sente um lixo, você não é ninguém. A minha vida é isso? Você se sente um lixo. Separar seu
garfo, sua colher, você está com nojo… se eu tô com nojo de você, por que que eu tô com você
na minha casa? Eu preciso de você e você precisa de mim. Tem que haver respeito com o
próximo, não importa quem você é. Se você é branco, se você é negro, se você é pobre, se você
é rico. Todo mundo é igual, o mesmo sangue que corre na sua veia porque você é branca, ou
tem dinheiro, corre na minha, igualzinho, não tem diferença.
Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não tinha ônibus,
não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha escola, mesmo. Não
tinha como você estudar. Depois eu vim para cá, com 19 anos. Eu cheguei aqui, eu ia estudar,
e aí eu fiquei... fui criar meus filhos, só. A minha prioridade foi cuidar dos meus filhos.
Trabalhar e cuidar deles. Quando eu tive oportunidade que eles cresceram, eu fui trabalhar num
horário que não dava, que eu chegava muito tarde. E hoje eu estou estudando por quê? Porque
eu conheci o Cieja. Lá no Cieja tem vários horários para você escolher. E a oportunidade chegou
agora.
Eu tenho amigas que estudam lá. Antigamente não tinha como, por causa do meu horário de
trabalho. Só que agora eles têm horário. O último horário é às oito, e eu posso e tenho condições
de chegar esse horário para estudar. Eu tô amando. Tô adorando. Acho tudo maravilhoso lá. Tô
me realizando de estar voltando a estudar aos 50 anos.
Essa é a oportunidade que eu tive, que eu nunca tive. Mal aprendi fazer meu nome. E hoje eu
estou voltando a estudar. Isso pra mim é o maior orgulho. Eu estou muito feliz.
129
Não é todo mundo que tem coragem. A coragem que eu tive, de criar dois filhos sozinha, de ser
discriminada. Você é discriminada, você é vista com outros olhos, você escuta coisas que lhe
assusta: "Eles vão virar bandido". Eu escutei muito isso: "Ela não vai ter coragem de trabalhar
para criar dois filhos, eles vão virar bandido, ela vai abandonar". Não! Eu tive coragem, eu tive
peito, eu cheguei a trabalhar em dois trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.
Você se sente tão feliz. Eu me sinto feliz, realizada, porque eu olho meu filho que eu via bebê,
e hoje eu vejo ele pai. Aí você olha e você fala: “Eu fiz isso? Foi eu que fiz isso? Eu criei meu
filho e eu cheguei a esse ponto?”. Eu achava que eu não ia ver meu filho crescer. Tanto que eu
pedi muito a Deus: “Eu quero ver meu filho crescer, eu quero dar pra ele o que eu não tive”. E
hoje eu vejo ele pai. Você não acredita. Você acha que está sonhando.
Eu quero ver na minha neta o que eu não vi na minha filha, que aos 15 anos faleceu, por causa
de um irresponsável bêbado, sei lá, drogado. Eu quero ver na minha neta o que eu não vi na
minha filha: ela estudar, se formar, ser uma grande mulher.
Hoje, meu sonho? Deixa eu ver.... meu sonho, acho que é pegar meu diploma. Deve ser lindo
pegar um diploma. Porque já vi meus filhos crescer, tenho minha casa, trabalho, voltei a estudar,
que era um deles, né? Acho que é pegar meu diploma. Se eu chegar até lá, né? Você já não sabe
até quando vai ficar nessa vida, né, então, eu vou ter fé, eu estou lá e vou conseguir.
130
Entrevista 3
Eu gosto muito de documentário, eu gosto muito de filme de terror, eu adoro. Eu gosto muito
de comédia, drama. Eu não sou muito de ação, essas coisas, mas outros filmes, eu adoro.
Eu tenho, a Beyonce, ela é uma puta de uma cantora, canta demais. A banda dela é só mulheres
que toca. Mulher tocando, tem uns dois, três dançarinos, o resto é tudo mulher. Ela tem esse
negócio de focar: nós, mulheres negras, podemos. Entendeu? E ela é negra, é uma diva, e ela tá
lá em cima, então, é uma inspiração também pra mim.
A palavra periferia me diz onde eu moro, me diz tudo, diz desde quando eu acordo até quando
eu vou dormir, o pessoal passando com seus carros de funk, as mulheres na frente da janela
rebolando, a minha tia no bar com copo de cerveja, minha mãe, significa tudo.
Significa muitas coisas, porque foi ali onde eu cresci. Quando eu cheguei aqui não tinha quase
nada e eu vi ele evoluindo, o bairro evoluindo, minha mãe evoluindo, eu evoluindo, todo mundo
evoluindo.
Ah, eu mudaria muita coisa. Primeiro lugar, eu tentaria tirar aquelas biqueiras de perto de casa.
Mudaria o jeito que os outros pensam sobre nós, sobre a periferia. Mudaria a forma de viver,
porque ali, muitas vezes... a periferia tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é que todo
mundo é amigo, todo mundo, um ajuda o outro. Agora, o lado ruim é que é muito barulho,
muita bagunça, muito agito. Então, eu tentaria dar uma acalmada nisso.
Pra mim, a palavra mídia não passa de mais de uma palavra, porque eu acho que a mídia veio
só pra fazer famosos. Mídia, pra mim, não serve pra nada, porque muita gente conseguiu evoluir
sem mídia, então, pra mim, mídia é uma simples palavra como qualquer uma. Porque o que
passa na novela é tudo mentira; que as mulheres ricas têm poder e as mulheres da periferia não
têm nada, só filho e saber rebolar. E isso é mentira, não é a verdade.
NMP: E como é na sua escola? Você sente algum tipo de preconceito quando está lá?
Sinto, na escola sinto. Porque assim, eu cheguei na escola tipo... na minha escola, na minha
sala, principalmente, têm poucos negros. E quando eu cheguei na escola foi uma coisa... foi
difícil. Porque assim, na escola eles querem um povo mais... com mais poder. Ah, se veste
melhor, com roupa de marca, isso e aquilo. E eu acho que para se vestir bem não precisa ter
marca, não é uma etiqueta escrito que o negócio é original que vai dizer quem você é. Então,
como eu não sou muito disso, então, eu sofri muito por isso. Porque o pessoal não se enturma
comigo. Eu tento, eles não quer.
O que eu enfrento é sufocante, isso de você entrar numa sala e não ter ninguém pra tar
conversando com você. Mas, eu levo isso como se não tivesse ninguém ao meu redor, porque
assim, ali eles podem não gostar de mim, mas, saindo dali eu vou pra um lugar que eu vou ter
bastante carinho, bastante amor.
Eu gostaria de falar pra eles que... cara, eu sou igualzinha a eles. Não mudo em nada, se tirasse
a minha pele e deixasse só no vermelho e pegasse a pele de outra pessoa e colocasse, eu seria a
mesma pessoa. Tudo que eles têm eu também tenho, eu só não posso ter a mesma cor ou ter
uma roupa de marca. Nós somos tudo seres humanos. Então, eu não entendo isso, ficar
destratando só porque mora ali, porque não tem isso, porque é negro, porque isso, porque aquilo.
Então, pra mim, é todo mundo igual.
Ai, meu cabelo gente, ai, eu adoro falar do meu cabelo. Então, meu cabelo, quando eu era
pequena, minha mãe cuidava do meu cabelo e ela insistia, falava que, pra gente ser aceita, a
gente tinha que alisar. E, ao longo do tempo, foi alisando e passava isso no cabelo e passava
aquilo e só piorava. Aí, um certo dia, eu viajei para a praia, e antes de ir minha mãe quis que eu
alisasse o cabelo. Fui e alisei. Eu fui pra praia e estragou o cabelo todinho, caiu e não sei o quê.
Aí foi que eu me irritei. Quer saber? Chega de alisar cabelo. Cortei, acho que ficou uns dois
dedos de cabelo só. Cortei até onde estava os cachinhos, cortei tudo e tô usando, tô amando. É
como uma vez eu escutei na televisão: “Em terra de cabelos lisos, quem tem cacho é rainha,
né?”. Então, eu me sinto muito bem.
132
Agora eu me sinto mais confiante, mais solta. Porque, assim, quando a mulher tem o cabelo
crespo e ela quer alisar, ele não vai ficar igual das mulheres da televisão. Por máximo que ela
pegue uma chapinha e passe, vai achar que vai ficar liso daquele jeito, não fica.
Então, eu me sentia sufocada, apertada naquilo tudo, e eu era mais tímida, eu não tinha mais...
não tinha aquela vontade. Então, depois que eu resolvi mudar tudo, eu fiquei mais liberal, eu tô
mais aberta, aberta pra conhecer gente nova, coisas novas, vida nova, então abriu tudo.
Mudou, mudou um pouco, porque, assim, o cabelo black, só por ser mais armado, o pessoal já
acha que é um cabelo duro, crespo, que tem piolho, que você não cuida, mas não é nada disso.
Teve um pessoal que ainda chegou: “Ah, tá bonito”. Mas teve um pessoal que não chega perto
porque, pode ter isso, pode ter aquilo. Então, deu uma melhorada, mas ainda tem os
preconceituosos.
133
Anexo D
Convite da abertura da exposição Quem Somos [POR NÓS], realizada pelo Coletivo Nós,
mulheres da periferia, que ficou aberta à visitação durante o período de 21 de novembro de
2015 a 21 de dezembro de 2015, no Centro Cultural Municipal da Juventude Ruth Cardoso,
Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Fonte: Acervo do Coletivo.
134
Anexo E
Planta baixa do espaço da exposição Quem Somos [POR NÓS], com a divisão dos
corredores temáticos - medidas em metros. Concepção do Coletivo Nós, mulheres da
periferia.
Fonte: Acervo do Coletivo.
135
Anexo F
Fotos da exposição Quem Somos [POR NÓS], no dia da abertura, 21 de novembro de 2015.
Fonte: Acervo do Coletivo.
136
137
138
139