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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Regiany Silva de Freitas

HISTÓRIAS DE MULHERES DA PERIFERIA: CONSTRUINDO IDENTIDADES


DISCURSIVAS DE (RE)EXISTÊNCIA

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

SÃO PAULO
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Regiany Silva de Freitas

HISTÓRIAS DE MULHERES DA PERIFERIA: CONSTRUINDO IDENTIDADES


DISCURSIVAS DE (RE)EXISTÊNCIA

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a
obtenção do título de MESTRE em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Cecília Perez Souza-
e-Silva.

SÃO PAULO
2018
Banca examinadora

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________
Autorizo a divulgação do texto completo em base de dados especializadas e a reprodução total
ou parcial, por processos de fotocopiadores, exclusivamente para fins acadêmicos ou
científicos, desde que citada a fonte.
Dedico à todas as mulheres da periferia que lutam diariamente para (re)existir
Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro, sem o qual este trabalho não seria possível
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, por ter acolhido a mim e a este trabalho, com tanto carinho e
respeito desde o início. Por ter ido ao lançamento da exposição, por ter assistido ao
documentário naquele sábado à tarde. E por ter me ajudado a dar esses primeiros passos como
pesquisadora e analista do discurso.

À Silma, por ter me incentivado a desenvolver essa pesquisa, por ter me apresentado a
Análise do Discurso, e por todas as preciosas contribuições oferecidas desde o início do meu
percurso até a qualificação.

À professora Ana Rosa, pelo carinho e pelas importantes contribuições na qualificação.

À Ana Raquel, pelas contribuições oferecidas no dia em que visitou nosso grupo.

Às minhas parceiras, amigas e irmãs do Nós, mulheres da Periferia, Semayat, Mayara,


Bianca, Jéssica, Lívia e Aline, por acreditarem comigo que é possível contar outras histórias e
transformar um pouco o nosso mundo, a nossa quebrada e a vida de outras "Carolinas".

Ao meu companheiro de vida, Gabriel, por sempre acreditar em mim e nos meus sonhos,
por dividir os prazeres e as dores de cada projeto. Por ser amor e poesia nos dias mais difíceis,
por não me deixar desistir nunca.

À minha mãe por me apoiar e cuidar de mim quando o fardo está pesado. Por ter me
ensinado o valor do amor e da partilha da vida com o outro. Por me ensinar a ser uma mulher
forte, e a enfrentar o mundo de cabeça erguida.

À minha quebrada, Cidade Tiradentes, o melhor lugar do meu mundo, e aos meus
vizinhos e amigos, por terem me ensinado o sentido da vida em comunidade.

Às mulheres que participaram do projeto Desconstruindo Estereótipos, por terem


confiado a nós suas histórias e seus sonhos, de maneira tão generosa e afetuosa.

Ao Cleber, por ser um amigo tão especial, por ser porto seguro, mesmo quando está
longe, por acreditar e me ajudar sempre que eu grito.

Ao Vagner, por me dizer que eu também conseguiria, assim como ele conseguiu, por
me inspirar tanto e por me socorrer tantas vezes durante a finalização dessa dissertação.
Aos amigos do Atelier Linguagem e Trabalho, pelos aprendizados e afeto
compartilhados.

À Margarete, por ser generosa e assertiva.

À Maria Lúcia e aos professores do LAEL, pelo apoio durante meu percurso.

Aos amigos do Porvir, meu trabalho, Larissa, Tatiana, Marina, Vinicius, Hiolanda, Ana
Lemos e Anna Penido, por me incentivarem e apoiarem todas as vezes que precisei me ausentar
para me dedicar ao desenvolvimento dessa dissertação.
Somos maioria. Somos minoria. Pobres, pretas,
brancas, periféricas. Migrante, nordestina, baianinha,
quilombola, indígena
[...]
Somos mães solo que registram os nomes dos filhos
de pais “desconhecidos”.
Somos as 'mãezinhas' que gritam nos corredores da
maternidade. – 'Na hora de fazer não gritou!'.
Somos avós que criam os frutos da gravidez na
adolescência.
Somos aquelas que amam os filhos da patroa.
[...]
Somos quem chora quando nossos filhos são mortos
por serem suspeitos.
Somos mães de maio, de junho, setembro…
Somos quem vai ao posto atrás de remédio e pra
agendar consulta pra daqui a cinco meses.
Somos quem cria os abaixo-assinados para pedir
creches.
Somos quem trabalha em mutirão carregando bloco e
fazendo marmita.
Somos quem denuncia que a vizinha apanha do
marido.
Somos amor, perdão, paciência, doçura, fortaleza.
Somos esperança.
Somos Nós, mulheres da periferia!
Trecho do manifesto
do Coletivo Nós, mulheres da periferia
RESUMO

Esta pesquisa tem origem no trabalho desenvolvido pelo coletivo Nós, mulheres da periferia,
grupo criado em 2014 por nove comunicadoras que moram na periferia de São Paulo, com o
objetivo de produzir um jornalismo focado nas questões relacionadas às mulheres da periferia.
Em 2015, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o coletivo viabilizou,
em três etapas, o projeto Desconstruindo Estereótipos: 1) oficinas, com cerca de cem
participantes, com o objetivo de discutir as representações da mulher da periferia na grande
mídia; tais discussões foram seguidas por exercícios de pintura e fotografia que permitiram a
essas mulheres contar suas histórias de vida; 2) entrevistas, em vídeo, gravadas com nove das
participantes das oficinas; 3) exposição artística multimídia criada com parte do material
elaborado nas oficinas e captado nas entrevistas. A exposição, intitulada QUEM SOMOS [POR
NÓS], ocupou o salão principal do Centro Cultural Municipal da Juventude Ruth Cardoso, na
periferia da zona norte, e ficou em cartaz durante um mês. A partir de enunciados recortados
do material apresentado na exposição, foram analisadas entrevistas de algumas das mulheres
que participaram das oficinas, com o objetivo de compreender como elas (re)constroem,
discursivamente, sua identidade na relação com outros discursos que circulam nos espaços
públicos. Do ponto de vista teórico, a pesquisa apoiou-se nas noções de formações discursivas
temáticas, cena de enunciação e ethos, tais como propostos e desenvolvidos por Dominique
Maingueneau, e também nos princípios do feminismo interseccional, com base em Crenshaw,
segundo o qual é inextricável a relação entre as opressões de gênero, classe social e raça na
constituição de tais identidade. Cada dimensão foi apreendida na condição de formação
discursiva - noção que caracteriza os limites da identidade de um discurso - de forma a
depreender a produção dos sentidos e a interrelação entre eles no espaço interdiscursivo. A
cenografia construída apoia-se em uma topografia de opressão e anulação e em uma cronografia
de luta pela diminuição das desigualdades, mobilizando outros discursos contemporâneos de
empoderamento das mulheres. Em relação à imagem construída pela enunciação, depreende-se
o ethos de mulheres fortes que corresponde a um fiador capaz de participar desse mundo ético
de resistência e enfrentamento de tais injustiças sociais.

Palavras-chave: mulheres da periferia; análise do discurso; gênero; classe social; raça


ABSTRACT

This research is based on the work developed by the collective “Nós, mulheres da periferia”, a
group created in 2014 by nine women communicators who live in the periphery of São Paulo
with the purpose of producing journalism focused on issues related to women living in the
periphery. In 2015, with the support of the São Paulo City Department of Culture, the collective
enabled a project entitled Desconstruindo Estereótipos, which was divided into three-stages: 1)
workshops with nearly one hundred participants aiming at discussing how women from the
periphery are represented in the mainstream media; the discussions were followed by painting
and photography exercises through which these women told their life stories; 2) video-recorded
interviews with nine workshop participants; 3) multimedia art exhibit created using part of the
material produced in the workshops and captured in the interviews. The exhibition, entitled
QUEM SOMOS [POR NÓS], was held at the main hall of the Centro Cultural Municipal da
Juventude Ruth Cardoso, in the periphery of São Paulo city north zone, and was open for
visitation during a month. Based on statements selected from the material presented in the
exhibition, the interviews given by some of the women who participated in the workshops were
analyzed with the purpose of understanding how they discursively (re)construct their identities
in relation to other discourses existing in public spaces. From the theoretical perspective, the
research was based on the notions of thematic formations discursive, scene of enunciation, and
ethos, as proposed and developed by Dominique Maingueneau, and also on the principles of
Crenshaw’s intersectional feminism, according to which the relation between gender-, social
class-, and race-based oppressions is inextricable in the constitution of identities. Each
dimension was understood as a discursive formation – notion that characterizes the identity
limits of a discourse – in order to infer the production of meanings and the inter-relation among
them in the inter-discursive space. Through the scenography, it was possible to understand that
the discourse is based on a topography of oppression and annulment as well as on the
chronography of the fight for reducing inequalities, mobilizing other contemporary discourses
of women empowerment. With regards to the image constructed by the enunciation, it is
possible to infer an ethos of strong women that corresponds to the guarantor capable of
participating in this ethical world of resistance and fight against these social injustices.

Keywords: women from the periphery; discourse analysis; gender; social class; race
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Expansão da mancha urbana do município de São Paulo, em Marta Dora Grostein,
A Cidade Clandestina, os Ritos e os Mitos, jun. 1987. Fonte: Ce SAD, 1989………....…….23

Figura 2 - Mapa da renda média domiciliar por subprefeitura da cidade de São Paulo….......27

Figura 3 - Mapa da concentração da população afrodescendente por subprefeitura da cidade de


São Paulo…………………………………………………………….....……………………..28

Figura 4 - Cartaz de divulgação da primeira oficina na Casa das Crioulas, em Perus…....……42

Figura 5 - Registro da oficina na Casa das Crioulas, em Perus………………………...……...43

Figura 6 - Registro da oficina na Casa Viviane, em Guaianases………………...…………….43

Figura 7: Adelaide, personagem do programa de humor, Zorra Total......................................45

Figura 8 - Anúncio Cerveja Devassa, publicado em 2011…………………..………………...46

Figura 9 - Algumas capas de revistas apresentadas durante o primeiro dia de oficina…...……47

Figura 10 - Autorretratos feitos durante as oficinas Desconstruindo Estereótipos e exibidos na


exposição "Quem Somos [POR NÓS]"…………………………………………….…………48

Figura 11 - Registro da exposição "Quem Somos [POR NÓS]"………………..…………….54

Figura 12 – Tirinhas da página Mãe Solo............................……………………..……………85

Figura 13 – Posts da página Eu Empregada Doméstica…..........…………..………………...107


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Quadro de entrevistas……………………….……………………………………..57

Tabela 2 - Quadro de entrevistas na dimensão gênero…..……………………………………58

Tabela 3 - Quadro final de entrevistas que compõem o corpus…………..………………...…60


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 14
1. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO - PERIFERIA GEOGRÁFICA E SIMBÓLICA DA
METRÓPOLE ..................................................................................................................................... 22
1.1 Território: a segregação espacial e a face invisível de São Paulo ............................................. 22
1.2 Raça: negros das senzalas aos guetos urbanos .............................................................................. 26
1.3 Mulheres negras da periferia: desigualdades construídas sobre a tríade de classe, raça e
gênero ............................................................................................................................................................ 30
1.3.1 Uma proposta interseccional ................................................................................................................. 30
1.3.2 Gênero, raça e classe social em números .......................................................................................... 33
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .......................................................................... 37
2.1 História do coletivo Nós, mulheres da periferia ........................................................................... 37
2.2 Concepção do projeto Desconstruindo Estereótipos ................................................................... 39
2.3 Etapas do projeto Desconstruindo Estereótipos ........................................................................... 40
2.3.1 As oficinas ...................................................................................................................................................... 40
2.3.2 As entrevistas em vídeo ............................................................................................................................ 51
2.3.3 A exposição.................................................................................................................................................... 52
2.4 Composição do corpus de análise ..................................................................................................... 54
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................................................... 63
3.1 O que é discurso? ................................................................................................................................. 63
3.2 Primado do interdiscurso ................................................................................................................... 66
3.3 Formação discursiva ........................................................................................................................... 67
3.4 Cena de enunciação e ethos no palco dos sentidos ....................................................................... 73
3.4.1 A cena de enunciação ................................................................................................................................ 74
3.4.2 O ethos ............................................................................................................................................................ 77
4. ANÁLISE....................................................................................................................................... 80
4.1 O gênero no palco dos sentidos ......................................................................................................... 81
4.1.1 Sentidos em disputa ................................................................................................................................... 81
4.1.2 Maternidade pobre e negra .................................................................................................................... 87
4.2 A classe social no palco dos sentidos ................................................................................................ 93
4.2.1 Antagonismo social .................................................................................................................................... 94
4.2.2 A periferia como lugar simbólico ....................................................................................................... 96
4.3 A raça no palco dos sentidos ............................................................................................................ 100
4.3.1 O racismo e a desumanização do negro ......................................................................................... 101
4.3.2 As marcas raciais do trabalho doméstico ...................................................................................... 105
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................... 109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 113
ANEXOS ......................................................................................................................................... 119
14

INTRODUÇÃO

Em Kant, maioridade é Mündigkeit, que implica literalmente a possibilidade de falar.


Münd significa boca. Menoridade é Unmündigkeit, ou seja, a impossibilidade de falar.
Menor é aquele que não tem acesso à fala plena, como o infans (SODRÉ, 2009 p.11)

A possibilidade e a impossibilidade de falar e ser ouvido é o ponto inicial da discussão


proposta por esta pesquisa; por isso, apropriamo-nos das noções de maioria e minoria, propostas
por Muniz Sodré, como reflexão inicial sobre os lugares de poder socialmente construídos. A
noção contemporânea de minoria refere-se, segundo o autor, a um grupo social cuja voz se
insere numa dinâmica conflitual, tendo em vista uma tomada de posição contra-hegemônica.

Ainda na esteira de Sodré, minoria diz respeito aos grupos que, embora
quantitativamente maiores, possuem menor representatividade nas instâncias de poder,
enquanto as elites, mesmo representando um contingente menor de pessoas, têm maior
visibilidade, por ocuparem espaços determinantes na organização social, como a política, a
mídia, a ciência etc. Dessa forma, a voz das minorias age em um espaço simbólico de
transformação e negociação das relações hegemônicas: “[...] minoria é uma recusa de
consentimento, é uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica, no círculo
fechado das determinações societárias” (SODRÉ, 2009 p. 14). No Brasil, alguns grupos ocupam
predominantemente esse lugar de minoria, entre eles, os negros, os povos indígenas, as
mulheres, os homossexuais e pessoas trans, por estarem historicamente à margem das instâncias
de poder e em embate contínuo por transformação social, e cujas vozes, ao longo da nossa
história, foram silenciadas por interesses políticos, econômicos e/ou culturais.

Esta pesquisa nasce exatamente do desejo de questionar o silenciamento das minorias,


representadas aqui por mulheres negras que vivem nas periferias da cidade de São Paulo. Há
três anos, desenvolvo um projeto de jornalismo independente designado Nós, mulheres da
periferia, ao lado de seis mulheres que, como eu, moram em bairros periféricos da capital
paulista. Do trabalho desenvolvido por esse grupo, nasceu a ideia e o objeto de investigação
desta pesquisa.
15

Como explico com mais detalhes no segundo capítulo, o coletivo Nós, mulheres da
periferia nasceu a partir de um incômodo: a imagem das mulheres pobres e negras que vivem
nas periferias, construída pelos veículos da grande mídia brasileira. Pessoalmente, senti o
preconceito em várias situações, por exemplo, quando precisei alterar o CEP no currículo para
conseguir emprego, ou quando fui obrigada a responder a perguntas jocosas sobre assaltos
e/ou falta de saneamento básico no bairro onde cresci e vivi durante 20 anos, a Cidade
Tiradentes, extremo leste de São Paulo ( lá, inclusive, nunca sofri um assalto e havia sim, água
encanada e esgoto). Tal preconceito está ancorado em imagens pré-construídas e amplamente
disseminadas no imaginário social.

Em 2012, depois de formada e já inserida no mercado de trabalho como designer,


conheci um grupo, o Blog Mural, que reunia jovens comunicadores que moram em bairros
periféricos e com os quais eu compartilhava as mesmas experiências, e os mesmos objetivos:
desconstruir as imagens negativas que circulam sobre a periferia e visibilizar boas histórias.
Tornei-me correspondente comunitária da Cidade Tiradentes no blog e passei a escrever
notícias sobre o bairro.

A partir desse trabalho, conheci as outras integrantes do coletivo Nós, mulheres da


periferia, todas correspondentes no mesmo projeto, e então passei a me interessar e
compreender mais as questões sociais que envolvem ser uma mulher da periferia. E sobretudo,
como comunicadora e integrante do grupo, passei a perceber o papel fundamental da linguagem
e, especialmente, dos meios de comunicação na divulgação de tais representações.

Frequentemente, deparamo-nos com a imagem de mulheres pobres, negras e moradoras


de bairros populares em contextos de miséria, violência e ausência de perspectivas positivas,
seja em noticiários ou em novelas. Na teledramaturgia brasileira, as mulheres negras são, quase
sempre, domésticas e/ou têm seus corpos expostos por meio de personagens com grande apelo
sexual. Tais representações se organizam por meio de imagens cristalizadas no imaginário
social, os estereótipos. Segundo Ruth Amossy,

A estereotipagem, lembremos, é a operação que consiste em pensar o real por meio


de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim,
a comunidade, avalia e percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construído da
categoria por ela difundida e no interior da qual ela o classifica (AMOSSY, 2014,
p.125)
16

Assim, os estereótipos funcionam como grades semânticas fundamentadas em


representações culturais e memórias compartilhadas por uma determinada comunidade, e a
partir das quais, cada comunidade percebe o mundo e os sujeitos à sua volta. Outra noção que
ajuda a compreender o funcionamento dos estereótipos é a de cena validada, explicitada por
Dominique Maingueneau como cenas de fala "já instaladas na memória coletiva, seja a título
de modelos que se rejeitam ou de modelos que se valorizam" (MAINGUENEAU, 2013, p.102).

Tais cenas, não necessariamente são negativas, são apenas sentidos fixados e
incorporados, que a exemplo do que afirma o autor, podem se constituir em modelos rejeitados
ou valorizados. Todavia, do ponto de vista da representação de grupos minoritários pelos
veículos da grande mídia, é possível perceber que as imagens se consolidam em tipos
socialmente negativos. De acordo com Rosane Borges (2012, p.182), a imagem associada às
mulheres negras, desde a escravidão, se consolida por meio de um imaginário racista e
machista, que reduz sua identidade a corpos à disposição do trabalho e do sexo, isto é, da
dominação masculina e capitalista.

Desse modo, a questão de quem produz e dissemina as informações sobre grupos


minoritários nos grande veículos de mídia é um ponto importante para discutirmos como os
estereótipos negativos são construídos. Segundo levantamento realizado pelo GEMAA (Grupo
de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
entre os anos de 1995 e 2014, em um total de 101 novelas, a média de atores e atrizes negros
da Rede Globo de Televisão não ultrapassava 10% do total de profissionais (CAMPOS, 2014),
uma relação que não retrata a população brasileira, composta na sua maioria por pessoas negras,
de acordo com o IBGE 2010. Em outro levantamento realizado em 2014, o grupo constatou que
entre os colunistas dos principais jornais do Brasil: O Globo, Folha de S. Paulo e Estadão, há
uma maioria absoluta de homens e brancos (CANDIDO E JUNIOR, 2014).

Dessa forma, a ausência de diversidade entre os profissionais que produzem o conteúdo,


seja de gênero, etnia/raça, orientação sexual, classe ou de outros aspectos sociais, tem como
consequência a invisibilidade de pautas ligadas aos grupos minoritários, criando um caminho
duplo, ora esses grupos são representados em um contexto de subalternidade e preconceito, ora
17

sequer se veem representados, conforme relato do jornalista Josmar, publicado pelo estudo
Mídia e Violência (2007):

Josmar Jozino, do paulistano Jornal da Tarde, diz que são raros os repórteres que se
interessam por pautas na periferia. 'Pobre não é notícia, infelizmente. Se tem um caso
de latrocínio em Itaquera e outro em Moema, os repórteres vão querer fazer o de
Moema'. (RAMOS e PAIVA, 2007, p.79)

De acordo com o estudo, o distanciamento entre os repórteres das grandes redações e a


realidade das comunidades retratadas implica a ausência da pluralidade de vozes e o reforço de
estigmas negativos sobre bairros periféricos e sua população. Poucos são os profissionais
negros, bem como poucos moram ou conhecem bem as regiões mais afastadas das metrópoles
(RAMOS e PAIVA, 2007).

O incômodo diante desse cenário, somado à facilidade de acesso e ao uso de novas


ferramentas de tecnologias de informação, têm estimulado o surgimento de muitas iniciativas
independentes na área da comunicação. Em 2015, a Agência Pública de Jornalismo realizou um
mapeamento de jornalismo independente no Brasil e encontrou cerca de 100 veículos de mídia
que nasceram de organizações coletivas, sem relação com partidos políticos, empresas ou
grandes grupos de mídia. Destes, muitos são relacionados à temática de gênero e raça
(AGÊNCIA PÚBLICA, 2015).

Outro exemplo dessa iniciativa encontra-se na Rede de Jornalistas da Periferia, que


surgiu em 2016, da união de 12 projetos de mídia periférica, formados por comunicadores que
moram em bairros distantes do centro na grande São Paulo. A iniciativa procura fortalecer, por
meio de ações conjuntas e de formação, o trabalho de coletivos que já atuam com comunicação
nas periferias, como: Alma Preta; Capão News; Desenrola e Não me Enrola; Dicampana Foto
Coletivo; Doladodecá; Mural - Agência de Jornalismo das Periferias; Nós, mulheres da
periferia; Periferia em Movimento; Periferia Invisível e TV Grajaú.

É fato que iniciativas de comunicação local sempre existiram, entretanto, nos últimos
anos, projetos de comunicação que buscam visibilizar temáticas ligadas à diversidade e à luta
de grupo minoritários têm conquistado cada vez mais espaço no embate por narrativas no
espaço público, entendido como os espaços onde as informações são publicizadas de modo a
ficar visíveis a qualquer pessoa. Sabemos, a partir de Krieg-Planque (2010, p.116), que muitos
18

são os meios de acessar o espaço público e dar visibilidade para questões de interesse comum:
um folheto informativo, uma bandeira na janela de um prédio ocupado, uma postagem em um
fórum online, publicações em blogs, um site onde se promova discussões sobre uma temática
específica, etc. Portanto, a concepção tradicional de mídia - televisão, rádio, imprensa - não é o
único mecanismo de acesso ao espaço público, apesar de ser ainda o lugar central de
compartilhamento das opiniões públicas. (KRIEG-PLANQUE, 2010)

Alguns exemplos podem mostrar o papel dos coletivos e grupos independentes de


comunicação na publicização de pautas de interesse público. A campanha "Chega de Fiu Fiu"1,
criada em 2013 pela ONG Think Olga, reuniu centenas de relatos de mulheres que sofreram
assédio e iniciou debates sobre o tema em diversos veículos da grande mídia, os quais deram
origem a uma cartilha informativa do Ministério Público de São Paulo disponibilizada
gratuitamente em todo o estado. E ainda, a partir da denúncia realizada pela reportagem2 da
Agência Mural de Jornalismos das Periferias sobre o fato do espaço do vão entre trens e
plataformas ser bem maior que o permitido na maioria das estações da CPTM (Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos) - realidade que causou, em média, três acidentes com
passageiros por dia em 2016 -, o governo do Estado deu início a reparos em todas as estações
da região metropolitana, colocando borrachões que diminuem os espaços que chegavam a mais
de 40 centímetros em algumas estações.

Ainda que a grande mídia seja o principal caminho para a veiculação de informações,
novos canais online têm possibilitado importantes debates públicos sobre assuntos relacionados
à realidade e aos interesses de grupos minoritários: "[...] é incontestável que o desenvolvimento
dos canais eletrônicos de comunicação conduz essas grandes mídias a uma marginalização
lenta, mas inegável" (KRIEG-PLANQUE, 2010, p.115).

No âmbito das universidades, podemos citar alguns grupos de pesquisa, entre outros,
que têm se dedicado a estudar e discutir questões que dizem respeito às minorias e seus direitos:
GELCI – Linguagens, Culturas e Identidades, filiado ao Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e
Indígenas, da UFOP (Univ. Federal de Ouro Preto); CEA - Centro de Estudos Africanos da

1 Disponível em http://thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/ Acesso em 06 de janeiro de 2018


2 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1908112-cptm-tem-mil-quedas-em-vaos-com-
largura-4-vezes-maior-que-o-permitido.shtml Acesso em: 07 de janeiro 2018
19

USP (Univ. de São Paulo); NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas sediado no


Departamento de Sociologia da UFSCar (Univ. Federal de São Carlos); Núcleo de Identidades
de Gênero e Subjetividades, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
(PPGAS) da UFSC (Univ. Federal de Santa Catarina).

Esta dissertação está filiada ao grupo de pesquisa Atelier Linguagem e Trabalho


(CNPq), sob a coordenação de minha orientadora, Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva ,
formado por doutorandos e mestrandos do LAEL-PUC/SP e por pesquisadores de outras IES:
UERJ, UFF, PUCRS, UFPA, UNIFRAN, UTFPR. As investigações do grupo, ancoradas em
duas linhas de pesquisa: Estudos discursivos e Linguagem e trabalho, estão centradas no
“estudo dos mecanismos de produção e interpretação de textos que circulam em diferentes
esferas de atividade: midiática, religiosa, política, educacional e, particularmente, daqueles
relacionados ao tema trabalho”. Várias dessas investigações, pelas temáticas em
desenvolvimento – pessoas trans, pichadores da cidade de São Paulo –, valorizam o que se
produz à margem da academia. Insere-se, nesse conjunto, nossa dissertação, que se propõe a
ampliar os debates sobre os lugares de fala e de escuta dos grupos minoritários, aqui
representados pelas mulheres da periferia.

Nesse contexto, temos por objetivos: compreender como as mulheres da periferia


(re)constroem, discursivamente, sua identidade em um contexto amplo de marginalização
social e identificar as relações entre o discurso dessas mulheres e os discursos sobre elas que
circulam em espaços públicos. São duas as perguntas que nos propomos a responder: 1) Quais
são as identidades discursivas construídas pelas mulheres da periferia?; 2) Como o discurso do
Outro se mostra no discurso dessas protagonistas?

Três pontos fundamentais justificam nossa proposta: contribuir para colocar em foco, a
partir de uma perspectiva discursiva, as relações de gênero, classe social e raça; relacionar a
pesquisa acadêmica à prática cotidiana do coletivo Nós, mulheres da periferia, permitindo a
retroalimentação entre o estudo e a atividade de trabalho do grupo; e, finalmente, tratar de um
público que ocupa a base da pirâmide social, as mulheres pobres, majoritariamente negras, que
vivem às margens geográficas da cidade, portanto, àquelas que quase nunca têm seus discursos
ouvidos e considerados em espaços públicos de poder, como a universidade.
20

Para atingir os objetivos propostos, esta pesquisa contou com enunciados gerados a
partir do projeto Desconstruindo Estereótipos, realizado em 2015 pelo coletivo Nós, mulheres
da periferia, que contou com a participação de cerca de cem mulheres. Como pesquisadora e
integrante do coletivo, participei de todas as etapas do projeto: realização de oficinas, gravação
de uma série de entrevistas em vídeo e curadoria e edição de materiais audiovisuais para
construção de uma exposição multimídia. Tais atividades estão explicitados no capítulo de
metodologia, visto que as entrevistas que compõem nosso corpus foram geradas no âmbito do
projeto.

Esta dissertação está dividida em quatro capítulos: no primeiro, explicito e discuto o


contexto sócio-histórico, pano de fundo desta pesquisa, a fim de caracterizar o lugar geográfico
e social da periferia e de sua população, além de articular a noção de feminismo intersecional,
termo cunhado por Kimberle Crenshaw (1989), segundo a qual é inextricável a relação entre
gênero, classe social e raça na constituição das opressões que sofrem as mulheres negras e
pobres; no segundo capítulo, descrevo a trajetória do projeto Desconstruindo Estereótipos e da
exposição Quem Somos [POR NÓS], como etapas que antecederam e, ao mesmo tempo,
construíram a metodologia de delimitação do corpus de análise; no terceiro, explicito os
fundamentos teóricos mobilizados para a análise dos dados, disposta em três conjuntos no
quarto capítulo: o gênero, a classe social e a raça no palco dos sentidos.

Do ponto de vista teórico, esta pesquisa está filiada à abordagem discursiva de base
enunciativa e mobiliza primordialmente conceitos desenvolvidos por Maingueneau: o primado
do interdiscurso, as formações discursivas temáticas, a cena de enunciação e o ethos. O
princípio do primado do interdiscurso sobre o discurso, postulado pelo autor na sua obra
clássica Gênese dos Discursos (MAINGUENEAU, 2008), é o ponto inicial das análises.
Segundo tal princípio, todo discurso já nasce da interrelação com seu Outro, seja em relação de
aliança, de embate ou de aparente neutralidade.

A noção de formação discursiva, essencial para esta pesquisa, corresponde as fronteiras


que gerenciam as identidades discursivas. Nossas análises articulam-se em um espaço
discursivo que coloca em relação formações discursivas temáticas, discursos que convergem
para determinados temas: maternidade, pobreza e racismo.
21

Também base para as análises é a noção de cena de enunciação (MAINGUENEAU,


2013, 2015), aí compreendidas a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. Todo discurso
constrói uma relação entre os coenunciadores e a imagem do objeto sobre o qual se fala; essa
imagem é engendrada pelo discurso, ao mesmo tempo que é validada por ele. Por meio da noção
de cenografia, procuramos depreender as imagens construídas pelos discursos de nossas
protagonistas, a partir das formações discursivas temáticas indicadas.

Além da cenografia, o discurso também constrói uma imagem do enunciador enquanto


fiador do discurso, o ethos, entendido como uma maneira de ser e de falar que atribui caráter e
corpo ao enunciador por meio do próprio discurso, de forma a mobilizar um mundo ético capaz
de incorporar seu coenunciador. Essa noção abre caminhos para a depreensão das imagens de
si construídas nos discursos das mulheres da periferia.
22

1. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO - PERIFERIA GEOGRÁFICA E SIMBÓLICA


DA METRÓPOLE

1.1 Território: a segregação espacial e a face invisível de São Paulo


Segundo dados do IBGE (2010), o município de São Paulo ocupa uma área de 1.521.110
km² e abriga quase 12 milhões de pessoas. Sua região metropolitana conta com mais de 22
milhões habitantes. A maior cidade do país, reconhecida pelo seu poder econômico, político e
cultural, é também a metrópole da desigualdade.

Grandiosa em população e território, São Paulo é marcada por longas distâncias: entre
o centro da cidade e bairros do extremo leste, como Cidade Tiradentes, Lajeado, ou do extremo
Sul, como Parelheiros, Marsilac, se impõem percursos com mais de 30 km². Entretanto, o que
a extensão geográfica fala sobre São Paulo é muito mais do que seu tamanho, ela conta, antes,
uma história de forte segregação.

Formada por várias cidades em uma, dada sua extensão, São Paulo é marcada por
divisões internas entre territórios ditos “nobres” e áreas populares - bairros com menor
infraestrutura, na maioria das vezes, distantes do centro e onde os indicadores sociais são mais
baixos, as periferias. Ao contrário do Rio de Janeiro, onde ricos moradores da zona sul dividem,
forçadamente, o espaço da cidade com os morros e favelas que cresceram ao redor de prédios
luxuosos, em São Paulo, as grandes distâncias reforçam os abismos sociais porque também
afastam as pessoas e criam separações muito claras, entre territórios pobres e ricos, negros e
brancos.

Milton Santos, um dos grandes nomes da Geografia no Brasil, nos provoca a pensar a
desigualdade social a partir da construção dos espaços, segundo ele, “a pobreza não é apenas
criada por causas econômicas, mas também por causas geográficas”. (SANTOS, 1990, p.66).
Ele ainda afirma que é necessário considerar o espaço como uma instância da sociedade, assim
como a economia ou a cultura.

Para o autor, a periferização é um fenômeno provocado por diferentes fatores sociais,


entre eles, a concentração de recursos nas grandes metrópoles brasileiras, que atrai habitantes
do campo e de cidades menores, além do estímulo à imigração, principalmente a partir da
23

década de 1950, e a especulação imobiliária, que agiu, e ainda age, como força de atração dos
mais ricos a áreas cada vez mais exclusivas e excludentes. Esses fatores resultaram na produção
de aglomerados dispersos pelas margens da cidade e região metropolitana, aumentando
significativamente a mancha urbana de São Paulo, portanto a dimensão do seu território.

Um dos traços dominantes da geografia paulistana são, pois, a enorme extensão da


cidade e o ritmo crescentemente rápido com que, desde fins do século passado,
expande-se a aglomeração. Considera-se que, entre 1950 e 1980, a área urbana cresceu
nove vezes, enquanto a população se multiplicou 4,5 vezes. (SANTOS, 1990, p. 22).

Isso é bem claro quando olhamos como a mancha urbana de São Paulo se modifica entre
os anos de 1952 e 1983:

Figura 1. Expansão da mancha urbana do município de São Paulo, em Marta Dora


Grostein, A Cidade Clandestina, os Ritos e os Mitos, jun. 1987. Fonte: Ce SAD, 1989.

Fonte básica: Villaça, 1978 (citado por SANTOS, 1990, pg26)


24

O problema da habitação é fator de extrema relevância para compreendermos uma


região onde a população cresce com rapidez maior do que se pensa, ou se tem a intenção de
pensar soluções de moradia. De acordo com Santos (1990, p.54), “as regiões metropolitanas de
São Paulo e do Rio de Janeiro receberam entre 1970 e 1980, 9,5 milhões de novos habitantes,
dos quais 6,5 milhões de pessoas vão se abrigar na periferia das duas maiores aglomerações
brasileiras”. E como alocar esse contingente populacional?

De acordo com a revista Construção São Paulo (1976, citado por SANTOS, 1990, p.49),
mais de 70% das casas construídas na Grande São Paulo eram resultado de autoconstrução. E
ainda, segundo JACOB (1982, p.55 citado por SANTOS, 1990, p. 80), “em 1977, as famílias
autoconstruidoras já estavam em torno de 700 mil, localizadas, na sua maioria, na periferia da
cidade”. Isto é, a crescente demanda por moradia tanto dos novos moradores quanto dos antigos,
expulsos pelos altos custos de moradia da região central, encontrou solução na autoconstrução
e no espraiamento do território urbano. Isso se deu por iniciativa da própria população que, sem
encontrar espaço ou condição de viver nos territórios privilegiados da cidade (centro e
arredores), avançou para as extremidades sem o amparo do poder público.

Ir ao encontro dos extremos do território também significou ir ao encontro de uma


realidade muito dura: nessas regiões a infraestrutura urbana era escassa, assim como os serviços
públicos, o que favorecia o aumento da pobreza. Enquanto, no centro, os bens mais básicos
eram garantidos à população pelo poder público, na periferia vinham da iniciativa privada e
eram menos acessíveis à população devido à insuficiência de oferta. Assim, a cidade é espaço
não só de atração dos mais pobres, como espaço de criação de ainda mais pobreza, como um
círculo vicioso:

A cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de


pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico, de que é o suporte, como por sua
estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda
mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo econômico vigente, mas,
também, do modelo espacial. (SANTOS, 1993, p.10).

Portanto, o que atrai a população mais pobre para a periferia é o baixo custo da moradia
autoconstruída, não o custo ou a qualidade de vida nessas regiões. Segundo dados oficiais da
Prefeitura de São Paulo, em 1987, 55% da população do município vivia em moradias que se
dividiam entre favelas, cortiços e habitações precárias. Entre 1975 e 1985 o número de barracos
25

aumentou 713% na cidade. Enquanto a população urbana crescia 5% ao ano, o número de


pessoas residentes em favelas crescia 30%. (SANTOS, 1990)

Cidade ilegal, designação dada pela professora Erminia Maricato (1995), uma cidade
construída em área de proteção ambiental, na encosta de morros e córregos, sem nenhum
planejamento urbano, aos olhos de um poder público negligente e omisso diante dos riscos a
que a população mais pobre é submetida na periferia. A metrópole, segundo a autora, se divide
entre uma cidade ilegal e uma cidade legal, oficial, que compreende as áreas nobres, onde
moram os mais ricos e onde o olhar do poder público é atencioso e onde sua ação é efetiva.
Enquanto isso, a cidade ilegal é invisível, e as necessidades de seus moradores pouco interessam
ao restante da sociedade.

O controle urbanístico e o poder de polícia, são exercidos apenas na cidade oficial. A


fiscalização rigorosa que levou a prefeitura de São Paulo a multar o restaurante do
clube de elite por manter em estoque, leite com o prazo de validade vencido em um
dia, convive com a falta de lençóis nos hospitais públicos municipais da periferia. A
radical ação contra os cigarros nos restaurantes da cidade oficial convive com o chá
de folhas de goiabeira, colhidas pelos funcionários de hospital infantil, utilizado como
antídoto contra a diarréia. O embargo de 21 imóveis cujos usos contrariavam a lei do
zoneamento nos Jardins, bairros concentradores das moradias de alta renda em São
Paulo, foi anunciado em manchete por um dos jornais de maior circulação na cidade,
a mesma que apresenta centenas de milhares de imóveis completamente ilegais em
relação a todas as leis urbanísticas. A mídia que endossa essa dinâmica (os fatos
mencionados estão na imprensa escrita do ano de 1995 em São Paulo), fortalece a
representação urbana ficcional, seguindo o interesse dos seus eleitores que residem na
cidade oficial. (MARICATO, 1995, p. 37).

A oposição entre a cidade visível e invisível revela descaso e ausência da garantia dos
direitos mais básicos. A periferia é produto de um projeto intenso de segregação que parte da
dimensão territorial, mas que avança em direção às diferentes dimensões sociais e culturais dos
indivíduos. A ação do poder público parece ter um raio de alcance geográfico bem delimitado
pelos interesses dos mais ricos, e é essa linha que marca a divisão entre as duas cidades:

A oposição entre a cidade visível e a cidade invisível, subterrânea, é chocante. A


paisagem urbana se estende muito mais depressa do que os serviços destinados a
assegurar uma vida correta à população. Desse modo, a parcela maior da sociedade
urbana, em grau mais ou menos grande, fica excluída dos benefícios do abastecimento
de água, dos esgotos, do calçamento, dos transportes etc. Eis aí, também, um dos
aspectos mais chocantes dos contrastes entre centro e periferia. (SANTOS, 1990, p.
60).
26

Também para a urbanista Raquel Rolnik (2004), que já desenvolveu diversas pesquisas
sobre a formação urbana de São Paulo, essa divisão é muito clara: a metrópole tem uma fissura
que distancia aqueles que estão incluídos, como cidadãos, e os excluídos, os conectados e os
soltos, tornando-a duas cidades extremamente diferentes e opostas.

Os padrões urbanísticos que se configuraram a partir da potente máquina de exclusão


territorial definiram uma cidade dualizada expressa na imagem centro/periferia.
Jardim Paulista e Jardim Ângela, Cidade Jardim e Cidade Tiradentes, Higienópolis e
Paraisópolis -- só quem conhece a cidade consegue entender como nomes tão
parecidos podem designar territórios tão diferentes (ROLNIK, 2004, p. 2).

Assim, São Paulo tornou-se um território que aparta a população mais pobre, não apenas
em relação ao centro geográfico, mas ao centro simbólico-social da cidade e da cidadania. A
existência da periferia é resultado do esforço em resistir a uma história de negligências e
descaso, que resultou em uma realidade invisibilizada e cercada de ausências. Um contingente
numeroso de pessoas se espreitam às margens da cidade em uma intensa negociação pelo direito
de existir e tornar-se visível.

1.2 Raça: negros das senzalas aos guetos urbanos


Cerca de 39 km separam Parelheiros, bairro do extremo sul de São Paulo, da região
central da cidade. De acordo com o Censo Demográfico 2010, do IBGE, Parelheiros possui a
maior população negra da cidade, 57,13%, seguido por M’Boi Mirim 56.05%, também na zona
sul, e Cidade Tiradentes 55.44%, no extremo da zona leste. Ainda na zona leste, encontram-se
dois bairros com alta porcentagem, Guaianases e Itaim Paulista. Pinheiros, Vila Mariana, Santo
Amaro, Lapa, bairros que ficam mais próximos ao centro, detém a menor quantidade da
população negra da cidade, com respectivos, 7,30%, 7,87, 14,72 e 15,37%.

Se olharmos o gráfico da renda média por domicílio, vemos exatamente o inverso: os


bairros com maior percentual de população negra são os que possuem menor renda média
domiciliar, enquanto os bairros com menor taxa de população negra concentram as maiores
rendas médias: Pinheiros, em primeiro lugar, possui uma renda domiciliar média de R$
17.045,00, seguido de Vila Mariana, com R$ 15.023,00, e Santo Amaro com R$ 12.670,00,
enquanto nos últimos lugares temos Guaianases, com R$ 2.251,00, acompanhado de Cidade
Tiradentes, com R$ 2.125,00, e em último lugar, Parelheiros, com renda média de R$ 1.974,00.
27

Os mapas disponibilizados pelo relatório Igualdade Racial em São Paulo: Avanços e


Desafios 2015, demonstra o contraste por meio da inversão de cores entre a dimensão média
por domicílio e distribuição da população negra por subprefeitura, chamadas atualmente de
prefeituras regionais:

Figura 2: Mapa da renda média domiciliar por subprefeitura da cidade de São Paulo.

Fonte: Relatório Igualdade Racial em São Paulo: Avanços e Desafios, 2015


28

Figura 3: Mapa da concentração da população afrodescendente por subprefeitura da cidade


de São Paulo.

Fonte: Relatório Igualdade Racial em São Paulo: Avanços e Desafios, 2015

Segundo o Sistema Intraurbano de Monitoramento de Direitos Humanos (SIMDH) da


Prefeitura de São Paulo, que mede dimensões como população e território, gênero e violência,
de cada uma das 31 subprefeituras no ano de 2010 (hoje a cidade conta com 32 prefeituras
regionais), as regiões periféricas do município são as que mais aparecem em situação
“insatisfatória”. Enquanto isso, Pinheiros e Vila Mariana estão em situação “muito boa”. Na
dimensão violência, por exemplo, a região da Lapa, na zona oeste da cidade, registrou um índice
29

de 17% de taxas de mortalidade por agressões (homicídio) da população masculina de 15 a 29


anos, frente a 71% da região do Campo Limpo, na periferia da zona sul.

De acordo com o Mapa da Desigualdade 2016, que é lançado todos os anos pela Rede
Nossa São Paulo, a chance de um jovem ser vítima de homicídio no Campo Limpo é 16 vezes
maior do que na Vila Mariana, por exemplo. Outro dado alarmante revelado pelo mapa diz
respeito à diferença da expectativa de vida entre os bairros de Pinheiros e Cidade Tiradentes,
um dos que têm maior população negra. Enquanto se vive, em média, 53,85 anos no bairro da
zona leste, o morador do Alto de Pinheiros vive 79,67 anos, em média, portanto, 25 anos de
diferença.

Quando o assunto é infraestrutura pública de lazer, esporte e cultura, o Mapa das


Desigualdades revela outras formas que perpetuam as desigualdades sociais do território. O
índice que contabiliza o percentual de centros culturais, casas e espaços de cultura dos bairros,
a cada 10 mil habitantes, revela taxa 0 (zero) em 60 dos 96 distritos da cidade. E a maioria
desses 60 distritos está localizado nas periferias da cidade, como Brasilândia, Capão Redondo,
Jardim Ângela, Lajeado. Esses e outros distritos contabilizam indicador 0 (zero) quando se
trata de salas de cinemas.

Em relação à saúde, dados do levantamento trazem outro retrato da desigualdade: o


número de leitos públicos e privados por 10 mil habitantes é igual a zero em bairros como Perus,
Campo Limpo, Brasilândia, Raposo Tavares, Vila Curuçá, todos bairros afastados do centro.
No mesmo indicador, Bela Vista, Jardim Paulista e Consolação apresentam taxas de 46%, 35%
e 33%, respectivamente. Aqui, o desigualtômetro, índice que mede a diferença dos percentuais
de um mesmo indicador em diferentes regiões, chega a 1.138,15 vezes.

As desigualdades sociais evidenciadas por Milton Santos, Ermínia Maracato e tantos


outros estudiosos há anos sobre as desigualdades sociais reveladas pela periferização territorial
de São Paulo, se transformou muito pouco nas últimas décadas.

Além disso, é possível perceber que o fosso que exila pobres da cidade visível é o
mesmo que exila negros, pois eles constituem a população mais pobre da cidade, além de ser
um contingente indesejado para o projeto de cidade oficial sonhado por parte da sociedade em
fins do século 19. Após o período da escravidão, a cidade de São Paulo passou por um processo
30

forte de incentivo à imigração europeia, principalmente mão-de-obra de italianos, com o claro


intuito de embranquecer sua população, reservando ao negro, a imagem de sujeito sem valor,
inferior, que deveria ser eliminado por meio da miscigenação:

A substituição do escravo negro pelo imigrante livre foi acompanhada de um discurso


que difundia a solução como alternativa progressista, na medida em que europeus
“civilizados e laboriosos” trariam sua cultura para ajudar a desenvolver a nação. A
alternativa implicou também a formulação de uma teoria racial: a raça negra estava
condenada pela bestialidade da escravidão e a vinda de imigrantes europeus traria
elementos étnicos superiores que, através da miscigenação, poderiam branquear o
país, numa espécie de transfusão de puro e oxigenado sangue de uma raça livre.
(ROLNIK, 1989, p. 3).

Para a autora não é possível pensar a expansão urbana sem se remeter ao paradigma
gueto/senzala, isto é, a periferização é uma imposição social de separação territorial para a
população negra, assim como foram as senzalas. Entretanto, cabe ressaltar que foram nesses
espaços, eminentemente, negros, que se construíram as relações comunitárias do grupo exilado.
“Foi assim, que o pátio da senzala, símbolo de segregação e controle, transformou-se em
terreiro, lugar de celebração das formas de ligação da comunidade.” (ROLNIK, 1989, p.2)

1.3 Mulheres negras da periferia: desigualdades construídas sobre a tríade de classe,


raça e gênero
“Se a periferia tivesse sexo, certamente seria feminino” (PEDRINA et al, 2012)

E negra, poderíamos acrescentar.

1.3.1 Uma proposta interseccional


Arei a terra, plantei, enchi os celeiros, e nenhum homem podia se igualar a mim! Não
sou eu uma mulher? Eu podia trabalhar tanto e comer tanto quanto um homem –
quando eu conseguia comida – e aguentava o chicote da mesma forma! Não sou eu
uma mulher? Dei à luz treze crianças e vi a maioria ser vendida como escrava e,
quando chorei em meu sofrimento de mãe, ninguém, exceto Jesus, me ouviu! Não sou
eu uma mulher? (Sojourner Truth, durante a Women’s Rights Convention em Akron,
Ohio, Estados Unidos, em 1851, citada por DAVIS, 2016, p 71.).
31

Até aqui apresentamos uma cidade que divide ricos e pobres, brancos e negros. Mas
como isso se articula com a dimensão do feminino? Afinal, as mulheres da periferia não são
também mulheres?

Para responder essa pergunta procuramos articular as dimensões anteriores, classe e


raça, com a dimensão de gênero, a fim de refletir como a categoria mulher influencia e é
influenciada pelos outros aspectos que caracterizam a mulher da periferia. Porque, as
protagonistas desta pesquisa são mulheres, mas, assim como Sojourner Truth, que também era
negra e durante muitos anos, escrava, as mulheres da periferia não são tão somente mulheres,
elas são também, majoritariamente, mulheres negras e pobres, características que não podem se
perder do nosso horizonte quando pensamos o contexto sócio-histórico que compõe o pano de
fundo deste trabalho.

Kimberle Crenshaw (1989), professora de Direito da Universidade da Califórnia e da


Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, cunhou o termo feminismo interseccional
buscando explicar como acontece a sobreposição das opressões que perpassam classe, raça e
gênero. De acordo com Matos (2010, p. 88), segundo Crenshaw, “as interseccionalidades são
formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação:
sexismo, racismo, patriarcalismo”.

O feminismo interseccional é uma das vertentes da teoria feminista, que nasce a partir
das demandas trazidas pelo feminismo negro (HENNING, 2015). Essas diferentes vertentes,
têm como princípio revelar e colocar em pauta as condições de vulnerabilidade em que vivem
determinadas mulheres.

No caso do Brasil, a intersecção entre gênero, raça e classe social se explicita nas formas
mais intensas de opressão e carestia vividas pelas mulheres negras. Matilde Ribeiro (1995)
chama atenção para esse fato, reivindicando que o movimento feminista perceba as fronteiras
que, socialmente, dividem as mulheres pela cor da sua pele e pela sua condição econômica:

Quando a mulher negra percebe a especificidade de sua questão ela volta-se para o
movimento feminista como uma forma de se armar de toda uma teoria que o
feminismo vem construindo e da qual estávamos distanciadas. Nesta procura coloca-
se um outro nível de dificuldade, questões soavam estranha, fora de lugar na cabeça
da mulher negra. Falava-se na necessidade de a mulher pensar o próprio prazer,
conhecer o corpo, mas reservava-se a mulher pobre, negra em sua maioria, apenas o
direito de pensar na reivindicação da bica d'água. (RIBEIRO, 1995, p. 448).
32

A autora chama a atenção para o fato de que as reivindicações historicamente associadas


ao feminismo não contemplam as mulheres negras e pobres, não por que elas não desejem ou
não precisem lutar pela autonomia sobre seus próprios corpos e seus prazeres, em certa medida,
assim como as mulheres brancas e ricas, mas sim porque, antes disso, elas necessitam lutar pela
própria sobrevivência. A metáfora da bica d’água faz referência a diversos contextos de
escassez e negação social a que são submetidas tais mulheres. As vertentes mais atuais do
feminismo propõem exatamente que se dê atenção à bica d’água, ou seja, às demandas das
mulheres que estão em situação de maior vulnerabilidade social, seja quando se pensa em classe
social, raça, orientação sexual ou deficiência física.

O movimento feminista, segundo Sueli Carneiro (2003), procurou, durante muito


tempo, colocar a categoria de mulher como uma dimensão universal, capaz de reunir todos os
sujeitos biologicamente reconhecidos sob o sexo feminino e capaz de explicar todas as formas
de opressão que atingem as mulheres, seja ela a mulher que for:

[...] o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica
e universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de
reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito
da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados
de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no
silêncio e na invisibilidade. (CARNEIRO, 2003, p. 119).

A primeira reflexão que propomos a partir das palavras de Carneiro é a caracterização


da condição feminina baseada no aspecto biológico. Para a filósofa Judith Butler (2003),
principal nome dos estudos de gênero na teoria feminista e responsável por alavancar as críticas
do que chamam de terceira onda do feminismo, gênero é performance, e ainda, gênero, sexo e
orientação sexual são construções sociais e não fatores biológicos. Isso torna a própria
concepção de mulher por si só muito mais complexa e instável. A autora, apoiada na célebre
frase de Simone Beauvoir (1980, p. 9), “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, desmistifica
os sentidos atribuídos no binarismo feminino e masculino, e procura ampliar a noção de gênero.

Assim, a categoria mulher passa a ser repensada como uma construção social,
abrangendo um espaço amplo para diferentes manifestações do feminino, como vemos no caso
das mulheres transgênero - grupo que inclui transsexuais, travestis, não-binários, drag queens.
33

Portanto, se a categoria mulher não é fechada, definitiva e sólida, é preciso lidar com os
diferentes contextos que não cessam de atravessar e de se somar a essa identidade do feminino.
Por isso, é impossível afirmar que mulheres cis3 sofram os mesmos tipos de violência que
mulheres trans, assim como é impossível dizer que mulheres ricas vivem sob as mesmas formas
de opressão que mulheres pobres. É preciso, portanto, subverter a fronteira que delimita a noção
de mulher e investigar que outras dimensões se entrecruzam, a fim de desconstruir a lógica
universalizante questionada por Carneiro (2003) e jogar luz sobre os marcadores sociais da
diferença e sobre as questões que eles representam.

Diante disso, a crítica de Carneiro, que reverbera nas pautas do movimento feminista
negro e, mais recentemente, do feminismo interseccional, propõe a seguinte questão: que
atenção se tem oferecido às questões específicas, de ordem social, do ser mulher, que vão muito
além da definição biológica?

Seguindo a mesma linha, neste trabalho procuramos inter-relacionar os diferentes


aspectos sociais e históricos que perpassam a condição feminina das nossas protagonistas,
mulheres que vivem na periferia de São Paulo, majoritariamente negras e pobres. Portanto, nos
dedicamos, a partir daqui, ao exercício de atravessar a fronteira do gênero e entender como raça
e classe social são elementos estruturantes da opressão que atinge essas mulheres.

1.3.2 Gênero, raça e classe social em números


Algumas pesquisas e estudos realizados por instâncias do poder público e de
organizações sociais explicitam em números a íntima relação entre os marcadores de gênero,
classe e raça.

O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher de 2013 demonstrou índices muito


elevados de pobreza entre a população negra no Brasil: entre os 55 milhões de pobres no país,
37 milhões são pessoas negras. Sendo que o índice maior encontra-se entre as mulheres negras,
38,9% delas vivem em situação de pobreza, seguidas dos homens negros, com 38,1%. Entre as
mulheres brancas esse percentual é de 20,3% do total. O estudo também revela que a questão
da pobreza está fortemente associada a questão de gênero, pois as famílias chefiadas por

3Pessoa que atende a expectativa social de coerência da matriz de gênero. Ou seja, uma mulher feminina
heterossexual ou um homem masculino heterossexual.
34

mulheres são as que apresentam maior grau de vulnerabilidade. Tais famílias, na maioria das
vezes, são monoparentais, isto é, as mulheres não têm parceiros e são responsáveis por todos
os gastos econômicos do lar e pela criação dos filhos, geralmente, após a separação, os filhos
ficam com as mães, não com os pais.

Segundo dados de 2009 da pesquisa “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, do


IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 26% dos lares em favelas do país são
chefiados por mulheres negras, a frente de homens brancos e mulheres brancas, com 21,3% e
11,7%, respectivamente, perdendo apenas para lares chefiados por homens negros, que
correspondem a 40,1%.

São essas mulheres - 61% do total, de acordo com o estudo “O Emprego doméstico no
Brasil” (Dieese/2013) - que ocupam a posição de domésticas e atravessam a cidade para
trabalhar, na maioria das vezes, para mulheres brancas, da classe média, moradoras das áreas
nobres, geralmente no centro expandido da capital, enquanto em casa, seus filhos crescem sem
a presença da mãe, que passa os dias em busca do sustento da família. Entre as mães que criam
os filhos sozinha, são 43,6% entre as negras e 34,8% entre as brancas, segundo dados do
“Nascidos Vivos”, do DATASUS (Sistema de Informação do Ministério da Saúde), de 2013.
São as negras também as maiores vítimas de feminicídio, 68,8% daquelas mortas por agressão
são pretas ou pardas, de acordo com dados do Ministério da Justiça de 2015. Conforme o “Mapa
da Violência”, de 2015, a taxa de homicídio entre as negras subiu 54,5%, enquanto a das brancas
caiu 9,8%. As mulheres negras têm duas vezes mais chance de morrer do que uma mulher
branca. De acordo com o “Balanço do Ligue 180”, da Central de Atendimento à Mulher 2015,
60% dos registros de violência domésticas envolvem mulheres negras,

São as negras que mais sofrem violência obstétrica, somando 65,9% do total, de acordo
com o RASEM 2014 (Relatório Anual Socioeconômico da Mulher). E ainda, segundo o mesmo
estudo, em 2012 os óbitos de mulheres negras corresponderam a mais de 60% das mulheres
mortas durante a gravidez e o puerpério.

Além do risco de morte, as mulheres negras, maioria nas periferias, são as mães que
mais temem pela morte de seus filhos. De acordo com o “Mapa da Violência, de 2016”, o
número de jovens negros assassinados por arma de fogo aumentou 46,9%, enquanto o de jovens
35

brancos diminuiu 26,1%. Já o “Atlas da Violência”, publicado em 2016, mostra que a chance
de um homem negro morrer por violência aos 21 anos no Brasil é 147% maior do que pessoas
de outra etnia. Para cada morte de uma pessoa branca, amarela ou indígena, 2,4 negros são
mortos.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) -


Mulheres, de 2014, o Brasil possui, em números absolutos, a quinta maior população carcerária
feminina do mundo. Entre 2000 e 2014, esse número cresceu 567%, ou seja, o que antes
representava 3,2% da população carcerária brasileira em 2000, passou a representar 6,4% em
2014, destas 68% são mulheres negras. Segundo o relatório, 68% das prisões foi causada por
tráfico de drogas, no entanto, a maior parte das mulheres presas por esse crime, embora seja
usuária de drogas, não ocupa papel de liderança em grandes organizações criminosas, apenas
presta serviços. Em geral, as mulheres presas são negras, pobres, com baixa escolaridade e
jovens mães que são responsáveis pelo sustento de suas famílias.

Por fim, a imagem da pirâmide social demonstra que a intersecção entre gênero, classe
social e raça se operacionaliza na desigualdade que recai, prioritariamente, sobre as mulheres
negras, segundo o estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, lançado no mês de
março de 2017 pelo IPEA em parceria com a ONU Mulheres. Conforme o levantamento, a
mulher negra continua em último lugar quando o assunto é renda, enquanto elas têm um
rendimento médio mensal de R$ 1.027,00, a média dos homens brancos, no topo da pirâmide,
é de R$ 2.509,00, seguido das mulheres brancas, e, depois, dos homens negros. Não é possível,
portanto, falar de desigualdade sem nos remetermos à condição em que vivem as mulheres
negras, pois nelas estão as maiores marcas de uma história construída na violência e violação
de direitos de determinados grupos.

A esse respeito, Angela Davis (2017), em recente visita à Universidade Federal da Bahia
(UFBA), no evento que celebrava o Julho das Pretas, em comemoração ao dia 25 de Julho, dia
da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, afirmou: “[...] quando a vida das mulheres
negras importar, o mundo será transformado e saberemos, com certeza, que todas as
vidas importam”.
36

Mais do que reforçar uma aliança teórica com determinados conceitos do feminismo,
temos por objetivo tentar compreender o discurso da mulher negra da periferia e os efeitos de
sentido daí decorrentes, a partir da articulação entre gênero, raça e classe social.
37

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O objeto de análise desta pesquisa se constitui de enunciados captados e organizados
durante o projeto Desconstruindo Estereótipos realizado em 2015 pelo coletivo Nós, mulheres
da periferia (SILVA, 2017), por isso, para compreender a metodologia desta pesquisa e indicar
como chegamos ao recorte do nosso corpus de análise, é necessário que façamos uma
caracterização das etapas do projeto. Como pesquisadora e também integrante do grupo
participei de todas as etapas que estão descritas a seguir, ora no papel de produtora, ora como
observadora, o que contribuiu para ter um bom detalhamento do contexto de produção e da
realização das atividades.

Partiremos do histórico de formação do coletivo e do desenvolvimento do projeto em


questão até sua conclusão, passando pelas atividades desenvolvidas até a explicitação dos
critérios utilizados para a composição do nosso objeto de análise.

2.1 História do coletivo Nós, mulheres da periferia


O Nós, mulheres da periferia foi criado no ano de 2014 por nove comunicadoras que
vivem em bairros da periferia de São Paulo, sendo oito delas jornalistas e uma designer.
Atualmente, permanecem no grupo sete dessas fundadoras. Todas foram, e algumas ainda são,
correspondentes comunitárias da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, um projeto de
jornalismo hiperlocal4 que reúne comunicadores que moram em bairros localizados nas
periferias da capital e região metropolitana de São Paulo. O objetivo da iniciativa é fazer uma
cobertura jornalística dessas regiões a partir de histórias que vão além das narrativas de miséria
e violência, comuns nos noticiários em gerais. (SOUZA-E-SILVA, 2017)

Em março de 2012, quatro das sete integrantes atuais do coletivo foram convidadas pela
jornalista Izabela Moi, editora da Agência Mural, na época ainda um blog hospedado na
Folha.com, para escrever um texto em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. A proposta
era que as correspondentes contassem um pouco sobre como é ser uma mulher da periferia, a
partir das suas experiências e histórias de vida. Com o título “Nós, mulheres da periferia”, o

4Jornalismo voltado aos interesses locais de uma determinada comunidade e que procura incentivar o
engajamento dessa comunidade por meio da circulação de informações a respeito do território e realidade das
quais ela faz parte.
38

texto foi publicado como artigo de opinião na seção “Tendências e Debates” do jornal Folha de
S. Paulo, em 7 de março de 2012 (Anexo A).

A publicação obteve grande repercussão, tanto entre os leitores do jornal, quanto por
parte de movimentos sociais e moradoras da periferia. No Itaim Paulista, zona leste de São
Paulo, o artigo foi lido em um sarau feminino. Nas redes sociais, ele foi altamente
compartilhado, principalmente por mulheres que, em suas postagens, se colocavam também
como coautoras do texto. Nas mensagens, elas diziam se sentir “finalmente muito
representadas”. Esse engajamento foi o ponto de partida para a existência do coletivo.

O grupo percebeu que era necessário falar sobre periferia a partir da dimensão feminina
e evidenciar as particularidades de ser uma mulher moradora dessas regiões, dado o fato de que,
na grande mídia, os espaços reservados às histórias dessas personagens falam quase sempre
sobre episódios trágicos, casos de violência ou miséria, isso quando são contadas - a
invisibilidade é outra face da cobertura dos grandes veículos.

Assim, em março de 2014, depois de um longo período de pesquisa, planejamento e


alinhamento das expectativas e desejos, o coletivo nasce oficialmente nas redes sociais, com o
mesmo nome do artigo de 2012: “Nós, mulheres da periferia” (Anexo A).

Outras cinco mulheres, também correspondentes do Mural, se reuniram ao grupo inicial,


somando, assim, nove fundadoras: Jéssica Moreira, de Perus, zona noroeste; Semayat Oliveira,
do Jardim Miriam, zona sul; Cíntia Gomes, do Jardim Ângela, zona sul; Bianca Pedrina, de
Carapicuíba, Grande São Paulo; Mayara Penina, de Paraisópolis, zona sul; Priscila Gomes, da
Vila Zilda, zona norte; Regiany Silva, Cidade Tiradentes, zona leste; Lívia Lima, do Jardim
Nordeste, zona leste; e Aline Kátia Melo, da Jova Rural, zona norte. O Coletivo então surge
com o desejo de ocupar o espaço vazio de representação das mulheres da periferia na mídia,
com um jornalismo produzido por e sobre mulheres que vivem na periferia. No fim de maio de
2014, o grupo lançou o site www.nosmulheresdaperiferia.com.br, um portal de notícias que
cobre pautas relacionadas com a periferia de São Paulo a partir de uma perspectiva feminina.

Além de manter a publicação de notícias e conteúdos inéditos no site e nas redes sociais,
as integrantes do Coletivo começaram a fazer palestras e participar de mesas de debate sobre
temas relacionados às mulheres da periferia em universidades, escolas, organizações privadas.
39

Os espaços para articulação do tema passaram a ser cada vez maiores e as atividades do grupo
cada vez mais diversificada, dentre as atividades já realizadas pelo grupo vamos nos deter na
realização do projeto “Desconstruindo Estereótipos”, que aconteceu durante o ano de 2015, e a
partir do qual retiramos os enunciados que compõem o corpus de análise desta pesquisa.

2.2 Concepção do projeto Desconstruindo Estereótipos


A ideia do projeto “Desconstruindo Estereótipos” surgiu quando a Rede Globo,
principal canal da televisão aberta no Brasil, lançou a minissérie “Sexo e as Negas”, dirigida
por Miguel Falabella, em setembro de 2014. A proposta do programa era fazer uma releitura da
famosa série americana “Sexy and the City”, que em 1998 trouxe como protagonistas quatro
mulheres brancas e ricas em Nova York. Dessa vez, no entanto, as protagonistas seriam
mulheres negras e pobres no cenário dos morros do Rio de Janeiro.

Quando a série foi ao ar não trouxe muitas novidades em relação à imagem das mulheres
negras e pobres já tão consolidada no imaginário social. Ao mesmo tempo que o protagonismo
pertencia às mulheres negras, a história era narrada por uma personagem branca que parecia
ocupar o papel de lucidez em relação às quatro personagens principais que se envolviam em
diversos episódios cômicos, quase sempre com foco em sexo, violência, relações de trabalho e
classe social. Assim, a série acabava por reforçar alguns estereótipos muito recorrentes: negras
no papel de empregadas domésticas, sempre disponíveis ao sexo, com corpos
hipersexualizados, explorando com humor as vulnerabilidades sociais que a maioria dessas
mulheres é submetida.

Movimentos sociais ligados à questão racial se manifestaram publicamente, na época,


repudiando o programa. Diante desse cenário, o Nós, mulheres da periferia considerou que sua
maior contribuição deveria ser a de propor uma reflexão sobre essas questões com as próprias
moradoras dessas regiões, preferencialmente, as que não estivessem envolvidas em
movimentos sociais organizados e com pouco acesso às redes sociais. Um grupo muito
significativo quando consideramos a audiência desse tipo de programação - as donas de casa,
mulheres que consomem, majoritariamente, a programação da televisão aberta.

Esse desejo de aproximação mais pessoal também partiu da percepção de que o


conteúdo produzido pelo Coletivo circulava muito em mídias digitais e não conseguia alcançar
40

essas mulheres que, na maioria das vezes, não têm acesso, hábito e, até mesmo, tempo, para
acessar os conteúdos online produzido pelo Nós.

Dessa avaliação, surgiu a ideia de realizar uma série de rodas de conversas nas periferias
e apresentar alguns trechos da minissérie para serem analisados e debatidos com grupos de
mulheres em diferentes bairros da periferia, a fim de entender quanto elas se identificavam ou
não com a narrativa da minissérie. A ideia foi amadurecida e transformada coletivamente pelo
grupo até tornar-se o projeto intitulado “Desconstruindo Estereótipos”, que foi submetido ao
edital VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), promovido pela Secretaria Municipal de
Cultura de São Paulo, no início de 2015. Tendo sido contemplado por meio de um recurso de
R$ 30.000,00 para sua realização

Com as mudanças desde a ideia inicial até a apresentação da proposta à Secretaria, o


projeto permaneceu tendo como primeiro objetivo levar a discussão sobre a representação das
mulheres da periferia na grande mídia, mas acrescentou-se um segundo objetivo, que tornou-se
o mais importante: possibilitar que elas contassem suas próprias histórias. Para isso, a ideia foi
ampliada para um escopo que previa rodas de conversa com debate a partir da exposição de
trechos da minissérie “Sexo e as Negas” e outras produções da grande mídia, oficinas de
fotografia e autorretrato em tela, com o intuito de estimular que elas falassem de si e contassem
suas histórias de vida. Por fim, todo material produzido durante as oficinas seria organizado
para compor uma exposição multimídia.

2.3 Etapas do projeto Desconstruindo Estereótipos


Neste bloco, descrevemos as atividades realizadas em cada etapa do projeto, desde a
concepção das oficinas até o lançamento da exposição, de modo a explicitar como tais
atividades se relacionam com os objetivos propostos por esta pesquisa.

2.3.1 As oficinas
A primeira etapa do projeto “Desconstruindo Estereótipos” consistia na realização de
uma série de oficinas com grupos formados por moradoras de bairros da periferia da cidade de
São Paulo. Para isso, o Coletivo realizou parcerias com organizações localizadas em diferentes
41

regiões, que desenvolvessem algum trabalho voltado às mulheres do bairro, além de escolas, e
que pudessem incluir na sua programação as oficinas do projeto.

Assim, o grupo organizou as oficinas em seis diferentes espaços:

● Casa das Crioulas: na época localizada em Perus, na zona noroeste, um espaço de


convívio e acolhimento para mães autônomas e qualquer mulher com interesse de
frequentar o espaço;

● Casa Viviane dos Santos: localizada em Guaianases, na zona leste, um centro de defesa
e convivência para mulheres em situação de violência;

● Associação de Mulheres Amigas da Jova Rural: localizada no bairro da Jova Rural, zona
norte, entidade que promove atividades sócio assistenciais, psicossociais e educativas;

● União Popular de Mulheres: localizada no Campo Limpo zona sul, organização criada
com o intuito de lutar pela completa emancipação da mulher e pela igualdade nas
relações sociais e que desenvolve atividades assistencialistas e educacionais;

● Cieja Campo Limpo: localizado no Capão Redondo, zona sul, um Centro Integrado de
Educação de Jovens e Adultos, que tem como premissa, a inclusão; por isso é uma escola
que flexibiliza horários e métodos para incluir públicos com necessidades particulares;

● CEU Três Pontes: localizado no Jardim Romano, zona leste, um Centro Educacional
Unificado, da prefeitura, que realiza atividades no contraturno com públicos de
diferentes idades.
42

Figura 4: Cartaz de divulgação da primeira oficina na Casa das Crioulas, em Perus.

Fonte: Acervo do Coletivo.


43

Figura 5: Registro da oficina na Casa das Crioulas, em Perus.

Fonte: Acervo do Coletivo.

Figura 6: Registro da oficina na Casa Viviane, em Guaianases.

Fonte: Acervo do Coletivo.


44

Em cada espaço o coletivo realizou dois encontros, com uma média de duras horas de
duração cada, com grupos que variaram de 10 a 40 participantes. A metodologia utilizada foi
desenvolvida pelo próprio Coletivo Nós, mulheres da periferia, com intuito de atingir os
objetivos previstos no projeto: discutir a representação da mulher da periferia construída pela
grande mídia e estimular a produção de narrativas, histórias contadas pelas próprias mulheres
Para isso, os encontros foram divididos em duas etapas: primeiro uma discussão com base na
análise coletiva de alguns produtos da grande mídia, como novelas, telejornais, revistas, jornais
impressos, minisséries; e, segundo, um momento de criação em que as mulheres eram
convidadas a refletir sobre sua própria imagem e história e, a partir dessa reflexão, produzir
fotografias e autorretratos em tela.

Para o primeiro dia de oficina, foi selecionada uma pequena amostra com conteúdo de
narrativas ficcionais (novelas, seriados e programas de entretenimento) e peças publicitárias
(comerciais de tv e anúncios), veiculados em canais da TV aberta e revistas de grande
circulação. Tal amostra foi apresentada no início da oficina, e, a partir daí, seguia-se com uma
discussão entre as mulheres sobre como elas se viam, ou se não se viam, representadas nesses
materiais. É importante dizer que a seleção dos materiais foi feita tendo como foco três eixos
de representação: gênero, raça e classe social -- dimensões que, como já dissemos no capítulo
anterior, perpassam a vida dessas mulheres, visto que, além de mulheres, as moradoras da
periferia são, majoritariamente, negras e pertencentes às classes sociais mais pobres.

Entre os materiais selecionados pelo grupo, podemos destacar dois comerciais que
representavam a figura da mulher convertida em objeto sexual a serviço do desejo masculino:
primeiro, o comercial da cerveja Itaipava, que há anos traz como personagem principal Verão,
nome da moça que, quase sempre vestida com pouca roupa, serve a cerveja a clientes homens
que ficam encantados pelo corpo sempre à mostra da personagem. No comercial selecionado,
um rapaz acompanhado de sua noiva fixa o olhar sobre o corpo de Verão, que caminha pela
praia, enquanto a noiva, que percebe a ação do companheiro, se irrita e briga com ele -- a cena
é acompanhada pelo slogan da cerveja "O verão é nosso". Segundo, outro comercial, o da marca
de lingeries HOPE, traz a modelo Gisele Bündchen interpretando uma mulher contando ao
marido que sua mãe vai morar com os dois. Na primeira cena, a modelo está usando um vestido
enquanto fala com o marido, e o enunciado que acompanha a imagem assinala que esse
45

comportamento está errado; em seguida, ela entra novamente usando apenas calcinha e sutiã,
repete a mesma frase e o enunciado dessa vez assinala que, agora sim, a cena está correta -- o
narrador do comercial encerra dizendo: “Você é brasileira, use seu charme”.

Para tratar da questão racial, o grupo selecionou cenas da personagem Adelaide, do


programa de humor Zorra Total da Rede Globo, em que ela pede esmola no metrô dizendo:
“Será que alguém tem cinquenta ‘centarro’, vinte e cinco ‘centarro’ ou dez ‘centarro’? [...]”,
enquanto uma moça branca e bem vestida a olha com aspecto de incômodo e estranhamento. A
expressão “centarro” virou jargão popular durante muito tempo nas conversas informais; a
personagem, interpretada pelo ator Rodrigo Santana, apresenta aspectos grosseiros, nariz
exageradamente largo e ausência dos dois dentes da frente. Outro jargão da personagem, que
ficou muito conhecido, foi: “Eu sou a cara da pobreza”. Em 2012, telespectadores e Ongs
fizeram uma acusação formal de racismo da personagem por meio da Ouvidoria Nacional da
Igualdade Racial, órgão da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República.

Figura 7: Adelaide, personagem do programa de humor, Zorra Total.

Fonte: Reprodução Rede Globo.

Entre as cenas de novela escolhidas, apareciam muitos trechos de briga entre mulheres.
Por ser uma narrativa muito recorrente nos romances de TV, quase sempre vemos situações em
que mulheres se enfrentam na disputa por um homem. Algumas cenas traziam situações em que
empregadas domésticas são humilhadas ou ridicularizadas pelas patroas, como na novela
“Avenida Brasil”, também da Rede Globo, em que a protagonista Carminha destrata as
personagens Janaína e Zezé, empregadas domésticas em sua casa. No trecho, a patroa chama a
46

atenção da dupla por não terem organizado bem o armário da cozinha e arremessa produtos
contra elas a fim de que saiam de sua frente, enquanto grita: “Vão ficar me olhando? Sai daqui!
”. Entre as séries de televisão, cenas de “Antônia” e “Sexo e as Negas” mostravam personagens
negras e moradoras da periferia em papéis ligados ao crime.

Além disso, o grupo apresentou um conjunto de anúncios publicitários extraídos de


revistas: imagens machistas, racistas, gordofóbicas, representando, quase sempre, o corpo da
mulher como objeto de consumo dos homens. À título de exemplo: um dos primeiros anúncios
da marca de cervejas Devassa, que trazia a figura de uma mulher negra com corpo sensualizado
ao lado da chamada: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”, para falar sobre o
lançamento da versão preta da cerveja. O grupo selecionou, ainda, mais de 20 capas de revistas
com anúncio sobre produtos de emagrecimento e chamadas como: “Emagreça e se prepare para
o verão”, “Adeus ao pneuzinho”, “Perca 3kg em 7 dias”.

Figura 8: Anúncio Cerveja Devassa, publicado em 2011.

Fonte: Reprodução Revista Veja


47

Figura 9: Algumas capas de revistas apresentadas durante o primeiro dia de oficina.

Fonte: Reprodução / Acervo do Coletivo

Depois que os materiais eram expostos e se iniciava a discussão coletiva, foi possível
perceber a influência de diferentes fatores na percepção das mulheres em relação às imagens
apresentadas. Por exemplo, enquanto na oficina de Perus, onde as participantes eram mais
jovens e onde as questões raciais já eram comumente discutidas em grupo, as imagens que
determinam padrões estéticos e raciais do corpo feminino foram mais exploradas durante a
conversa; enquanto em outra oficina, que aconteceu em Guaianases, onde as mulheres já
trabalhavam muitas questões de empoderamento contra o machismo, a questão da gordofobia,
da opressão familiar, da maternidade e da violência foram temas que ganharam maior destaque.
Na oficina do Campo Limpo, uma das mulheres comentou que a exaltação ao consumo
promovida nas novelas e comerciais a afligia porque ela não podia comprar o tênis “da moda”
para seu filho adolescente.

Tais comentários explicitam a pluralidade das demandas entre as mulheres e os


diferentes aspectos que influenciam a maneira como cada uma delas é impactada: se o consumo,
para uma, implica sofrer a violência do machismo, para outra, implica o medo de perder o filho
para o crime, já que ela não possui condição financeira para oferecer os bens de consumo que
a televisão impõe como imprescindíveis para felicidade de um adolescente.
48

Após a discussão e reflexão coletiva sobre as representações e narrativas midiáticas


rejeitadas pelo grupo, dado que seu cotidiano e histórias são muito diferentes, passou-se, então,
à proposta de refletir sobre o modo como cada mulher se via e desejava ser vista. Duas questões
foram propostas às participantes: “quem eu sou? ” e “como eu gostaria que o outro me visse?”,
e a partir das quais as mulheres eram convidadas a fazer um autorretrato usando tinta e tela de
pintura. Nessas pinturas se revelaram sonhos, como, por exemplo, o de uma jovem menina
negra que queria ser bailarina; em outra, a figura de uma mulher sem os braços representava
uma triste história de violência doméstica, rememorada durante o exercício; ou ainda, o desenho
de um jardim florido, que sinalizava o desejo de liberdade de uma mulher, proibida pelo marido
de estudar e trabalhar.

Figura 10: Autorretratos feitos durante as oficinas Desconstruindo Estereótipos e exibidos


na exposição "Quem Somos [POR NÓS]".

Fonte: Acervo do Coletivo.


49

No segundo dia de encontro, o coletivo apresentava uma mostra prévia/selecionada de


materiais jornalísticos, todos produzidos por grandes veículos de comunicação da TV, internet
ou de circulação impressa, com o objetivo de continuar a discussão já desencadeada.

Uma das reportagens, datada de 2014, referia-se ao Fantástico, programa de


entretenimento e jornalismo exibido nas noites de domingo, na TV Globo, que trazia como
notícia a competição anual para a escolha da nova Globeleza daquele ano. Personagem criada
no início dos anos 1990, ela era sempre uma mulher negra com corpo nu coberto apenas com
tinta, que sambava ao som do enredo de carnaval nas vinhetas da emissora durante os dias da
festividade. No carnaval de 2017, após fortes e recorrentes críticas à exposição do corpo da
mulher negra, a Globo trouxe a personagem vestida e acompanhada de outros dançarinos
apresentando diferentes ritmos com a intenção de demonstrar a diversidade do carnaval
brasileiro.

A seleção de notícias também trazia trechos sobre casos de violência e feminicídio5


praticados contra mulheres que vivem na periferia. Essa é outra narrativa muito comum em
telejornais que exploram o noticiário policial: contar histórias de violência e morte de mulheres
pobres com forte apelo emocional, espetacularizando a vida das vítimas como se as tivessem
exibindo em uma arena de circo. Durante as pesquisas realizadas na época para a escolha dos
materiais, o grupo constatou que na homepage do jornal “Cidade Alerta”, da TV Record, cerca
de 80% das notícias destacadas eram sobre casos de violência e homicídios praticados contra
mulheres pobres. Além disso, a mulher da periferia também aparece como protagonista em
notícias de tragédia como o desabamento de casas na favela ou o assassinato de jovens pobres
e negros. Frequentemente nos deparamos com a figura de mulheres periféricas em momentos
de grande sofrimento, especialmente quando estão chorando, seja no cemitério sob o corpo de
um filho ou diante de tudo que perdeu no desabamento, na enchente ou no incêndio que destruiu
sua casa.

5 “O assassinato de mulheres pela condição de serem mulheres é chamado de “feminicídio” – sendo também
utilizados os termos “femicídio” ou “assassinato relacionado a gênero” - e se refere a um crime de ódio contra as
mulheres, justificada socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulada pela
impunidade e indiferença da sociedade e do Estado” (BRASIL, 2013, p. 1003).
50

Assim como na primeira oficina, algumas mulheres se envolviam mais com


determinadas temáticas do que em outras, a depender da faixa etária e de outros fatores pessoais
ou do contexto social. Isso também nos leva a considerar o fato de que a seleção dos materiais
apresentados também representa as ideias que Coletivo tem sobre a cobertura midiática dos
grandes veículos, ou seja, se essa curadoria fosse realizada por outras mulheres, possivelmente,
algumas reportagens, anúncios, trechos de novela, poderiam não ter sido escolhidos. Com isso,
queremos reforçar a concepção de diversidade das mulheres da periferia. Ainda que todas as
integrantes do Coletivo sejam, tais como as participantes das oficinas, mulheres da periferia,
não é possível reconhecer uma identidade homogeneidade e massificada.

Após a discussão sobre os conteúdos jornalísticos, a dinâmica do encontro seguiu com


a oficina de fotografia. Nesse momento, as participantes recebiam algumas dicas sobre como
fotografar, o que considerar na hora de fotografar, além de exemplos de trabalhos realizados
por mulheres. Após essa rápida formação, as mulheres eram convidadas, com o auxílio das
mediadoras da oficina e de uma fotógrafa profissional convidada pelo Coletivo, a praticar a
fotografia, registrando umas às outras, reunidas em pequenos grupos, tendo como norte a
seguinte questão: “Qual a história da minha vida deveria virar notícia? ”.

A maioria das mulheres nunca havia manipulado uma câmera fotográfica ou feito uma
pintura em tela. As atividades, ora assumiram um aspecto lúdico, ora muito reflexivo, pois
sempre ao final da atividade elas eram convidadas a compartilhar com o grupo sua tela,
fotografias e as histórias que estavam por trás daquelas imagens.

Na prática da fotografia, uma senhora com mais de 60 anos, que acabara de ficar noiva,
pediu que outra companheira do grupo fotografasse sua aliança, indicando a seguinte legenda:
“O amor não tem idade”. Outra vestiu-se com sua roupa de trabalho para contar que a maior
alegria do seu dia estava no período que passava na rua, atuando como assistente social na
região de Guaianases, na zona leste.

Aos poucos, pequenas histórias do cotidiano eram compartilhadas e ouvidas com o


respeito e a atenção de todas. Mais do que desconstruir os estereótipos negativos sobre os quais
se refletia na primeira etapa das oficinas, o projeto estimulou o resgate de memórias que ao
serem compartilhadas provocavam empatia e novas reflexões individuais e coletivas. O maior
51

ganho das oficinas foi criar um espaço de escuta para mulheres que, historicamente, têm seus
discursos silenciados.

2.3.2 As entrevistas em vídeo


Após o término de cada oficina, as integrantes do Coletivo convidaram duas
participantes para conceder uma entrevista em vídeo, a ser gravada em um momento posterior,
de preferência na casa das próprias mulheres. A ideia era captar, com mais tempo, tranquilidade
e confiança novas histórias e reflexões pessoais de algumas personagens, que pareciam mais
dispostas a falar, engajadas com a proposta do projeto, e que se integraram às atividades das
oficinas. Os vídeos também faziam parte da proposta apresentada à Secretaria Municipal de
Cultura e fizeram parte da exposição.

Outros critérios fundamentais para a escolha das mulheres convidadas foi a cor, faixa
etária e diversidade territorial. Em todos os grupos das oficinas, as mulheres negras eram
maioria ou totalidade, por isso, a fim de que o grupo de entrevistadas fosse representativo das
cerca de cem mulheres com as quais o Coletivo teve contato durante as oficinas, foi importante
que ele também fosse composto majoritariamente por mulheres negras, isto é, mulheres de cor
preta e parda, conforme definição utilizada pelo IBGE. O recorte por faixa etária foi essencial
para compor um quadro bem diverso em relação às gerações e perspectivas de mundo, dado
que o racismo ou o machismo são percebidos de maneiras bem diferentes por jovens, por
mulheres de meia idade, e por idosas, e essa diversidade de ideias e tratamento dos temas que
já se via nas oficinas também foi determinante para a composição de um grupo que, novamente,
pudesse representar o grupo maior de participantes.

Entre as doze convidadas, nove aceitaram o convite e foram entrevistadas no mês


seguinte às oficinas, sendo quatro da zona leste, dos bairros de Guaianases e Jardim Romano,
três da zona norte, de Perus e Jova Rural, e duas da zona sul, do Campo Limpo e do Parque
Santo Antônio, com idades que variavam de 17 a 93 anos.

O roteiro das entrevistas (Anexo C) seguia objetivos comuns aos das oficinas, visava
obter informações sobre como as mulheres sentiam-se representadas nas produções da grande
mídia e como contariam suas próprias histórias se pudessem virar notícia. Apesar do Coletivo
procurar seguir um roteiro de perguntas preestabelecidos igual em todas as entrevistas, cada
52

conversa seguiu por um caminho muito individual, enquanto algumas personagem dedicaram-
se mais a refletir sobre o papel da mídia e pouco contaram sobre suas histórias de vida, outras,
no entanto, sentiram-se mais à vontade para compartilhar experiências muito íntimas.

2.3.3 A exposição
Finalmente, com todos os materiais criados durante o projeto, desde as telas de
autorretrato, as fotografias, as entrevistas em vídeo até os diálogos das oficinas registrados em
anotações e gravações, o Coletivo realizou uma curadoria e organizou a exposição que fechava
o projeto. A ideia era montar uma exposição artística a partir desses elementos com a assinatura
de todas as participantes do projeto. Para compô-la, o Coletivo precisou realizar uma curadoria
e edição dos materiais que seriam expostos, visto o volume imenso de que dispunham. O
conjunto de enunciados organizados e editados que constituíram essa exposição já poderia ser
objeto de uma extensa análise discursiva, que pretendemos realizar em outra oportunidade.
Todavia, em nível de contextualização do projeto, parece pertinente descrever algumas
características da mostra.

A exposição foi concebida por meio de uma instalação que ocupou o salão principal do
Centro Cultural da Juventude na Vila Nova Cachoeirinha, com caminhos divididos por grandes
tecidos que formaram paredes e procuravam reproduzir a ideia de ruas que se entrecruzavam,
fazendo alusão aos becos e vielas da periferia. Cada corredor da instalação foi nomeado usando
placas azuis como as que identificam as ruas da cidade. “Desconstrução” foi o nome dado ao
corredor de entrada, formado por uma fileira de tijolos adesivados com termos que
simbolizavam algumas ideias que o projeto desejava concretamente desconstruir: silêncio,
estereótipos, invisibilidade etc., além de fotografias das oficinas e uma tv, projetando parte das
entrevistas em vídeo. À esquerda, a entrada seguinte exibia uma placa com a designação
“Descoberta” e contava com um grande painel de madeira onde todas as telas de autorretrato
ficavam presas acima da cabeça dos visitantes, diversas garrafinhas penduradas e dentro delas
pequenas frases com trechos de histórias compartilhadas nas oficinas, como tesouros prontos
para serem desvendados. Logo a frente, o corredor seguinte, nomeado de “Identidades”, dava
acesso a um ambiente que lembrava o cômodo interno de uma casa; plantas e uma mesa com
imagens de santos reforçavam essa percepção, fotografias assinadas feitas pelas mulheres e uma
53

tv com outros depoimentos em vídeo completavam a seção. Saindo desse espaço, o seguinte,
designado “Polifonia”, continha uma estrutura feita com linhas, ligando fotografias de
diferentes mulheres e cartões com textos que lembravam as distâncias geográficas entre
mulheres da zona leste, norte e sul; e também informações que remetiam às proximidades que
a identidade de mulher da periferia lhes garantia, apesar dos quilômetros que podem afastá-las
fisicamente; e ao final do corredor mais uma tv com outros depoimentos em vídeo.

A partir da seção “Polifonia”, o visitante poderia ou seguir para a área “Ocupação”, que
consistia em um espaço mais amplo com mais de cem cartazes colados nas paredes, em formato
de lambe-lambe, com fotografias e frases das artistas que assinavam a mostra, ou entrar no
corredor “Fora da caixa”, que além de fotografias trazia uma intervenção com caixotes de feira,
onde foram adesivadas algumas frases ditas durante as oficinas sobre os padrões sociais que a
mídia impõe às mulheres. Por fim, o último corredor da instalação, “Ajuste de foco”, abrigava
uma tv que exibia as demais histórias gravadas em vídeo, além de fotos presas às duas laterais
do corredor.

Com a instalação, o coletivo desejava fazer um convite para o público adentrar o


universo das mulheres da periferia e descobrir, na voz de suas mulheres, as diversas histórias
que moram em seus becos e vielas. Daí o nome da exposição: “Quem somos, [por] nós”, cuja
ideia central era ouvir as diferentes mulheres que falavam por meio das telas, fotografias, vídeos
e textos. Os espaços percorridos pelo visitante representavam o próprio processo realizado
durante as oficinas, que partiu da desconstrução de algumas ideias, à descoberta das identidades
tão múltiplas e diversas como uma polifonia, até o desejo de sair das caixas nas quais a
sociedade deseja colocar as mulheres e, finalmente, ajustar o foco: a partir de então não seriam
vistas pelo olhar de um outro, mas, pelas suas iguais. E tudo isso com o intuito de ocupar as
ruas, as telas de pintura, e todos os espaços possíveis, fazer reverberar as vozes.

No dia da abertura, o coletivo organizou uma roda de conversa entre algumas


participantes das oficinas e participantes de outros coletivos femininos de periferia para debater
a imagem da mulher periférica na mídia e no imaginário social. Assim, a roda foi formada por
Jéssica, uma jovem moradora de Perus, que participou da primeira oficina do projeto; dona
Amires, moradora de Guaianases e participante de uma das últimas oficinas, realizada na zona
leste; Elis, integrante do coletivo Nós, madalenas, grupo que atua com produção audiovisual; e
54

Jennifer, integrante do coletivo Fala Guerreira, coletivo feminista e antirracista formado por
mulheres que vivem na periferia da zona sul de São Paulo.

A exposição foi inaugurada em novembro de 2015, no Centro Cultural da Juventude


Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, e ficou aberta à visitação durante 30 dias.

Figura 11: Registro da exposição "Quem Somos [POR NÓS]".

Fonte: Acervo do Coletivo.

2.4 Composição do corpus de análise


Nesse item passamos a descrever os procedimentos metodológicos que realizamos para
compor especificamente o objeto de análise desta dissertação. Como será possível perceber, o
trabalho de restringir um conjunto de enunciados proveniente do projeto Desconstruindo
Estereótipos se baseia fortemente nos conhecimentos empíricos que foram adquiridos por meio
da nossa participação nas atividades descritas nos itens anteriores deste capítulo.

Diante do volume de material produzido durante o projeto é possível perceber quão


desafiador é definir o recorte de tal corpus de análise.
55

Para isso estabelecemos um foco principal: compor um grupo pequeno de mulheres,


dentre todas as participantes do projeto, cujo discurso nos interessa analisar, isto é, as mulheres
protagonistas desta pesquisa.

Primeiro, parece-nos importante recuperar um pequeno resumo das atividades


realizadas no projeto Desconstruindo Estereótipo:

1. Doze oficinas, duas em cada uma das seis instituições visitadas (localizadas em
três diferentes regiões de São Paulo: zona leste, zona norte e zona sul), com a participação
de cerca de cem mulheres - sendo a maioria negras e com faixa etária de 17 a 93 anos;
2. Nove entrevistas em vídeo com nove dessas mulheres, ao menos uma moradora
de cada região onde ocorreram as oficinas;
3. Uma exposição multimídia composta por telas de pintura, fotografias, vídeos,
cartazes e outros elementos cenográficos como caixotes, tijolos, garrafas. Todos os
materiais expostos nesta mostra foram editados a partir das discussões que aconteceram
durante as oficinas e das histórias contadas durante as entrevistadas em vídeo.
Para definir o grupo de protagonistas, tendo em vista as atividades realizadas, decidimos
seguir um critério que foi fundamental para o coletivo: garantir uma certa representatividade
das diferentes discussões, regiões da cidade e perfis de mulheres que fizeram parte do
projeto.

É possível perceber quanto a representativa foi um fator relevante nas escolhas feitas
nas três etapas. Primeiro, a diversidade geográfica foi um ponto primordial para a realização
das oficinas, o coletivo organizou o projeto de modo a circular pela cidade e conhecer mulheres
de diferentes regiões. Para a realização da segunda etapa, as entrevistas em vídeo, o coletivo
procurou construir um grupo que, de alguma maneira, pudesse representar o grupo maior de
participantes da etapa 1, por isso foi importante ter uma moradora de cada bairro visitado, serem
negras e ainda, de diferentes gerações. Na terceira etapa, da exposição, também as escolhas dos
materiais utilizados na mostra procuravam representar as principais discussões e histórias das
etapas anteriores.

Devido ao espaço e tempo limitados para o desenvolvimento desta dissertação torna-se


difícil trabalhar com o grande número de mulheres, histórias e discussões que tivemos contato
56

nas oficinas, por isso, decidimos nos concentrar nas etapas 2 e 3, as entrevistas e a exposição.
O próprio coletivo operou uma série de escolhas para a realização destas duas atividades,
sempre tendo em vista, como dissemos, representar a diversidade de perfis de mulheres que
participaram da primeira etapa, territórios visitados e temas debatidos.

Desse modo, realizamos o primeiro recorte dentro do universo de discursos que temos
a disposição: as nove entrevistas em vídeo.

Todavia, apesar de termos acesso ao conteúdo das entrevistas na íntegra, optamos por
trabalhar apenas com os trechos editados e publicados na etapa 3, a exposição. Essa delimitação
se justifica por dois motivos: a exposição reuniu as principais discussões e temas tratados pelas
participantes durante todo o projeto, inclusive nas oficinas, portanto, a edição das entrevistas
exibidas na mostra foi pensada não só considerando o projeto como um todo, mas também as
histórias que tratavam de temas comuns às demais participantes; acrescenta-se a este motivo,
a dificuldade de solicitar, para a presente dissertação, a autorização de todas as mulheres para
a divulgação na íntegra de suas falas; além disso, uma delas, dona Carolina, faleceu pouco
tempo depois da entrevista. Portanto, trabalhar apenas com os vídeos veiculados publicamente
na exposição tornou-se mais viável. Os outros elementos que compuseram a mostra , como
telas de pintura, fotografias, cartazes e outros elementos cenográficos, merecem análises
posteriores, desdobramentos desta pesquisa.

Temos inicialmente um conjunto de dez vídeos com duração média de quatro minutos.
Embora tenham sido nove as mulheres entrevistadas, foram editados, para a mostra, dois vídeos
com a personagem Carolina.

A partir das nove entrevistadas, definimos um grupo ainda menor, aqui designado como
protagonistas da pesquisa, isto é, três mulheres cujos discursos serão objeto de análise. Além
desses, recorreremos, para fundamentar nossas reflexões, a trechos dos discursos das outras seis
entrevistadas.

Para chegar a esse novo recorte seguimos atendendo aos critérios de representatividade
geográfica e etária; neste momento, a questão racial não foi um critério de seleção dado que
todas as noves mulheres são negras. No entanto, baseando-nos nos conceitos teóricos do
feminismo interseccional (CRENSHAW, 1989), explicitados no capítulo anterior,
57

estabeleceremos, em nossa análise, a relação entre as três dimensões: gênero, raça e classe
social, dada sua pertinência no contexto das mulheres que vivem na periferia.

Essas três dimensões foram apreendidas no discurso das entrevistadas por meio dos
temas mobilizados em suas histórias, dentre eles, os quatro principais: machismo, maternidade,
racismo e pobreza. Tais temas se ligam diretamente com as dimensões da interseccionalidade:
maternidade e machismo com a dimensão de gênero, racismo com a dimensão de raça, e
pobreza, com a dimensão de classe social.

Do ponto de vista discursivo, sabe-se que uma entrevista não trata de um único tema,
pelo contrário, as dimensões não cessam de se entrecruzar, como aponta também o próprio
conceito de feminismo interseccional, porém, ainda assim, é possível depreender o tema de
maior destaque, ou maior saliência, nas experiências relatadas pelas entrevistadas.

Elaboramos uma tabela representativa das três dimensões/temas de nosso interesse,


especificando a região onde cada uma das nove entrevistadas mora, a principal dimensão/tema
mobilizado em seus discursos e a faixa etária de cada uma delas:

Tabela 1: Quadro de entrevistas

Entrevistada Região onde reside Dimensão / Tema em destaque Idade

Estefânia Leste Gênero / Machismo 58

Ivoneide Leste Gênero / Machismo 49

Rosana Leste Raça / Racismo 50

Tarcila Leste Gênero / Maternidade 33

Carolina Norte 1.Gênero / Maternidade 93

2.Raça / Racismo
58

Manoela Norte Gênero / Maternidade 35

Renata Norte Raça / Racismo 17

Adriana Sul Classe social / Pobreza 42

Joana Sul Classe social / Pobreza 51

Com o auxílio dessa primeira tabela realizamos diferentes cruzamentos a fim de compor
um quadro de protagonistas que apresente diversidade nos três aspectos.

Para definir o número de protagonistas, delimitamos, em um primeiro momento, a


representantividade por território, isto é, uma entrevista por região: zona leste, zona norte e
zona sul da cidade. Para selecionar a entrevista de cada uma das regiões, combinamos os outros
dois critérios: dimensão/tema e faixa etária.

Começamos pelo bloco da zona leste, região onde existe o maior número de
entrevistadas: Estefânia, Ivoneide, Tarcila e Rosana; nesse bloco, a dimensão de gênero foi a
mais recorrente: todas as mulheres, exceto Rosana, enfatizaram, em seu discurso, a perspectiva
de ser mulher. Tal dimensão foi tratada por Tarcila a partir do tema maternidade. Se olharmos
o conjunto completo das nove entrevistas, esse tema foi o que mais circulou quando se trata da
dimensão de gênero:

Tabela 2: Quadro de entrevistas na dimensão gênero

Entrevistada Região onde reside Dimensão / Tema em destaque Idade

Estefânia Leste Gênero / Machismo 58

Ivoneide Leste Gênero / Machismo 49

Tarcila Leste Gênero / Maternidade 33


59

Carolina Norte Gênero / Maternidade 93

Manoela Norte Gênero / Maternidade 35

Assim, dada a relevância do tema maternidade dentro da dimensão do gênero,


entendemos que a entrevista de Tarcila atende melhor aos critérios de representatividade dentro
do bloco da zona leste, sendo a primeira a compor nosso quadro de protagonistas.

No bloco de entrevistas da zona norte, das personagens Carolina, Manoela e Renata,


duas dimensões circulam em seus discursos: gênero e raça. Todavia, como esse bloco
apresentou proporcionalmente, em relação ao quadro completo, maior destaque para a
dimensão racial, optamos, em um primeiro momento, pelas entrevistas de Carolina e Renata,
cuja faixa etária, 93 e 17 anos, respectivamente, está pouco representada no conjunto completo
de entrevistadas. Como se trata de duas gerações bem distintas, uma questão se colocou: qual
delas escolher. Optamos pela entrevista de Renata, que pode contribuir mais diretamente para
atingir nossos objetivos por entendermos que a fase da adolescência e juventude oferece um
contexto de relações sociais, sonhos e perspectivas de mundo bem distintas daquele que
depreendemos no discurso de mulheres que são mães e exercem a profissão de donas de casa,
como Carolina.

Finalmente, na zona sul, as duas entrevistadas, Adriana e Joana, destacam a dimensão


da classe social. Definimos, então, como critério, a faixa etária, o que nos levou a escolher Joana
como protagonista por ser uma mulher mais velha, mãe e avó, geração diferente daquelas de
Tarcila e Renata.

Chegamos, assim, à seleção que compreende a diversidade de aspectos já elencados,


com três protagonistas, Tarcila, Renata e Joana:
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Tabela 3: Quadro final de entrevistas que compõem o corpus

Entrevistada Região onde reside Dimensão / Tema em destaque Idade

Tarcila Leste Gênero / Maternidade 33

Renata Norte Raça / Racismo 17

Joana Sul Classe social / Pobreza 51

Essas são, portanto, as entrevistas que vamos analisar. É importante destacar que vamos
nos ater apenas à análise da linguagem verbal, baseando-nos, portanto, nas transcrições dessas
entrevistas, deixando para um futuro trabalho o desenvolvimento dos aspectos audiovisuais do
vídeo.

Tendo chegado a elaboração do quadro final de protagonistas, cujo discurso vamos


analisar, parece importante refletir como trabalhar com esse conjunto de enunciados a partir da
perspectiva do gênero entrevista.

Rocha et al (2004) propõem uma discussão importante a respeito do uso da entrevista


nas ciências humanas, especialmente, no âmbito da análise do discurso. O objetivo principal do
artigo é questionar a compreensão do gênero entrevista enquanto ferramenta de acesso a
determinadas verdades ou como meio de chegar às respostas que a pesquisa propõe-se a
responder.

No caso deste trabalho, não utilizamos a entrevista como um dispositivo metodológico,


pois nos apropriamos de textos produzidos, editados e publicizados anteriormente pelo trabalho
do Coletivo Nós, mulheres da periferia. Ainda que tenhamos participado de todas as etapas do
projeto Desconstruindo Estereótipos, nenhum material foi produzido tendo em vista esta
dissertação, diferente da situação de pesquisa em que a entrevista é realizada pelo próprio
pesquisador no intuito de coletar dados ainda não disponíveis, situação da qual trata o artigo.
61

De toda forma, as pistas que o texto oferece sobre como tratar os dados provenientes de
entrevistas acadêmicas também são relevantes para refletir sobre o uso das entrevistas que
selecionamos para compor nosso corpus de análise.

A questão mais pertinente do ponto de vista da análise do discurso é que a entrevista é


um recurso de investigação que impulsiona a produção de textos, mas "não é ferramenta" e "não
está a serviço da captação de verdades" (ROCHA el al, 2004, p.8). Por meio dos textos
produzidos na entrevista temos acesso aos efeitos de sentido que são mobilizados pelo discurso,
não a um significado transparente e direto, visto que nenhum discurso é transparente.

Outro aspecto importante é que o produto gerado a partir da entrevista em situação de


pesquisa se constitui em uma massa de textos disforme, sobre a qual o pesquisador deve
debruçar-se e estabelecer um diálogo. A entrevista sempre produz excedentes, isto é, nem todo
material gerado vai interessar aos objetivos da pesquisa, assim como, o pesquisador não vai
encontrar ali as respostas imediatas para suas perguntas, por isso, é necessário lapidar essa
massa a fim de criar um novo objeto tendo em vista os objetivos da pesquisa.

Com isso queremos dizer que "a entrevista não é o corpus de análise, mas sim o campo
de circulação de determinados discursos, campo esse que será recortado conforme os objetivos
da pesquisa" (ROCHA el al, 2010, p.14). Se tomarmos a entrevista em sua totalidade, sem
estabelecer um diálogo que constrói um novo objeto a partir dela, estaremos assumindo o
discurso como algo transparente e capaz de responder por si só às questões do trabalho
acadêmico. O que esvaziaria o sentido da própria pesquisa acadêmica.

O que pretendemos dizer é que o pesquisador deverá construir estratégias de


interlocução com uma dada massa de textos que possuem uma lógica própria,
objetivando ter acesso a dados que não conduzirão diretamente à resposta ao problema
de pesquisa. Uma resposta imediatamente encontrada significaria banalização do
trabalho de pesquisa (ROCHA el al, 2010, p.14)

Isso também aplica-se ao nosso trabalho, ainda que, como dissemos, estejamos
trabalhando com outro tipo de entrevistas, no caso, entrevistas midiáticas produzidas por um
coletivo de jornalistas, não pela pesquisadora na situação de pesquisa. No nosso caso também
é necessário estabelecer um distanciamento entre os objetivos que o coletivo assumiu na
realização das entrevistas e os objetivos desta pesquisa. É necessário capturar, no conjunto das
62

três entrevistas selecionadas, uma massa de discursos que interesse ao nosso objetivo de analisar
que identidades discursivas são construídas.

Por isso, vamos estabelecer um diálogo com tais entrevistas por meio das três
dimensões, gênero, raça e classe social, recortando apenas os enunciados que se encontrem
dentro dos temas maternidade, pobreza e racismo.
63

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 O que é discurso?


Segundo Maingueneau (2015) uma abordagem discursiva pressupõe assumir a noção de
discurso a partir da relação intrínseca de três dimensões: língua, atividade comunicacional e
conhecimento. Diferente de outras áreas em que cada uma das dimensões é tratada
separadamente, para a análise do discurso não é possível depreender os sentidos produzidos por
meio dos enunciados tomando como base apenas uma ou outra dimensão.

O esforço do analista do discurso está, então, em atravessar certas fronteiras


disciplinares a fim de não realizar uma análise reducionista dos enunciados que compõem seu
corpus. Isso implica não permitir que a noção de discurso seja absorvida apenas pelo seu
aspecto linguístico ou pelo seu aspecto social e psicológico, mas sim, que seja tratada como
uma prática comunicacional de sujeitos tomados em determinados contextos sócio-históricos e
materializada na linguagem, seja ela verbal ou outro recurso semiótico. (MAINGUENEAU,
2015)

Falando de um "discurso de panfleto", indica-se que não vão analisar somente


conteúdos, uma organização textual ou procedimentos estilísticos, mas que se vai
relacionar este enunciado a um dispositivo de comunicação, às normas de uma
atividade, aos grupos que dele extraem sua legitimidade. (MAINGUENEAU, 2015,
p.29)

Essa citação evidencia um claro distanciamento entre o que entendemos como discurso
e como texto, visto que, nesse sentido, discurso está para além da noção de texto. O discurso
pode ser composto apenas por um texto ou, como na maioria das vezes, por um grupo vasto de
textos. Por exemplo, quando tratamos do discurso das mulheres da periferia usamos a
delimitação de enunciados a partir de um grupo específico de sujeitos, ou no caso de um
discurso sobre as mulheres da periferia, delimitamos a noção de discurso por meio de um tema,
ou ainda, o discurso da mídia, como um espaço que reúne textos originários de uma área
determinada de produção.

Isso possibilita olhar para os textos dispersos na sociedade sob uma perspectiva
discursiva, entendendo que eles não são sistemas fechados em si, mas partes que constituem
práticas comunicacionais mais amplas, formadoras (e muitas vezes, deformadoras) das relações
64

sociais. Assim, seja o texto como estrutura, produto ou arquivo (MAINGUENEAU, 2015), ao
analista do discurso importa que esses textos sejam convertidos em um conjunto delimitado que
sirva aos objetivos de sua análise.

Nesta pesquisa, tendo em vista nossos objetivos - compreender como as mulheres da


periferia (re)constroem, discursivamente, sua identidade e seu modo de existir em um contexto
amplo de marginalização social; e identificar as relações entre os discursos das mulheres da
periferia e os outros discursos que circulam nos espaços públicos sobre a identidade dessas
mulheres - reunimos um conjunto de enunciados a fim de apreender as identidades discursivas
de tais textos e discutir as implicações sociais que se revelam por meio dos sentidos que
circulam nesse espaço discursivo.

Em Arqueologia do Saber, Foucault reflete a respeito dos múltiplos prismas a partir dos
quais se apreende o discurso afirmando que mais do que elementos facilmente demarcados, o
discurso funciona dentro de uma lógica própria:

Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de
um vocabulário, mas o regime dos objetos [...] Tarefa que consiste em não - não mais
- tratar os discursos como conjuntos de signos ( elementos significantes que remetem
a conteúdos ou a representações ), mas como práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam. (FOUCAULT, 1969, citado por Maingueneau 2015,
p.31)

Assim, também em nossa pesquisa, assumimos a abordagem discursiva para analisar


nosso objeto, as transcrições das entrevistas, tendo em vista que o discurso das entrevistadas,
mais do que um conjunto de textos delimitados por uma metodologia, é um dispositivo que
forma o próprio mundo sobre o qual se fala. Isso também evidencia o papel do analista do
discurso como pesquisador interessado na compreensão da "maneira pela qual, em uma
sociedade determinada, a ordem social se constrói por meio da comunicação"
(MAINGUENEAU, 2015, p.33).

Maingueneau (2015) ainda lista uma série de elementos que caracterizam os discursos
e servem para nortear nossas análises, entre eles, vamos ressaltar três itens que parecem integrar
bem a concepção discursiva dos enunciados que compõem nosso objeto de estudo:
65

1. O discurso é assumido por um sujeito: o sujeito do discurso, ou o enunciador, é aquele


que se apresenta como fiador do que é dito. Todo discurso é concebido por intermédio
de um sujeito que assume determinados posicionamentos e atitudes em relação ao que
diz e aos coenunciadores do discurso. Isso atribui a responsabilidade enunciativa a
alguém. Por isso, não é possível falar de discurso das mulheres da periferia sem
caracterizar quem são essas mulheres, sob qual contexto social e histórico elas se
inscrevem e analisar como esses fatores implicam a existência ou não de determinados
discursos;

2. O discurso constrói socialmente o sentido: como vimos anteriormente, partindo das


reflexões de Foucault, o discurso é uma prática que constrói simultaneamente o
elemento que ele pretende representar, isto é, o elemento que o discurso procura retratar
ganha forma e sentido a partir do discurso que se produz sobre ele. É importante ressaltar
que o sentido não é entendido aqui como um dado completamente acessível e
transparente, esse sentido é “continuamente construído e reconstruído no interior de
práticas sociais determinadas” (MAINGUENEAU, 2015, p.29), falamos por isso, de
efeitos de sentido construídos pelos discursos;

3. O discurso é assumido no bojo de um interdiscurso: os discursos não existem de


forma isolada, mas sim, na relação com outros discursos que circulam na sociedade. O
autor defende a hipótese de que o primado do interdiscurso (MAINGUENEAU, 2008b)
se sobrepõe à própria noção de discurso, porque não existe discurso que se constitua
sem a presença de seu Outro, seja, por exemplo, por meio da escolha de um gênero que
naturalmente dialoga com outros discursos do mesmo tipo, ou por um posicionamento
político que só se concretiza na anulação de seus antagonistas. Assim, para investigar
que identidades discursivas são construídas pelos enunciados que compõem nosso
objeto de análise, partimos do princípio do interdiscurso como conceito fundamental
para entender a delimitação do espaço de existência de tais discursos.

Portanto, investigar a presença constitutiva do Outro no discurso é, sem dúvida, o


aspecto que mais interessa a esta pesquisa. Se, como afirma Maingueneau (2015), o discurso
constrói socialmente o sentido, a heterogeneidade constitutiva do discurso é fator determinante
66

da heterogeneidade constitutiva também das identidades discursivas que buscando apreender


em nossa análise.

3.2 Primado do interdiscurso


O interdiscurso tem precedência sobre o discurso. Isso significa propor que a unidade
de análise pertinente não é o discurso, mas o espaço de trocas entre vários discursos
convenientemente escolhidos. (MAINGUENEAU, 2008b, p.20)

Segundo Maingueneau, a hipótese que fundamenta a análise do discurso se inscreve na


perspectiva da heterogeneidade constitutiva do discurso, isto é, no pressuposto de que todo
discurso existe em relação inextricável com seu Outro.

Mesmo que a presença do Outro não seja localizável por marcas linguísticas sua
presença se inscreve nos limites da identidade do discurso primeiro, "ele é aquele que faz
sistematicamente falta a um discurso e lhe permite encerrar-se em um todo. É aquela parte que
foi necessário o discurso sacrificar para constituir a própria identidade" (MAINGUENEAU,
2008b, p.36). Assim, o Outro não se encontra em um espaço exterior ao discurso primeiro, eles
dividem o mesmo espaço de existência, delimitando-se mutuamente.

A problemática da heterogeneidade discursiva já foi discutida por diferentes estudiosos


da linguagem, seja com o nome de polifonia, dialogismo ou mesmo intertextualidade, todavia,
Maingueneau (2008b) se diferencia dos seus precursores por propor um quadro metodológico
que orienta a apreensão dessa heterogeneidade ao mesmo tempo que valida a primazia do
interdiscurso sobre o discurso. Para isso, ele sugere substituir o termo "interdiscurso" pela
tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

O universo discursivo corresponde a uma área vasta onde se encontram formações


discursivas de toda natureza, de pouca função prática para o analista o universo discursivo
compreende um recorte, que apesar de limitado, é ainda muito amplo para ser estudado em sua
totalidade. Por isso, o analista deve delimitar dentro deste universo, os campos discursivos,
territórios que compreendem “um conjunto de formações discursivas que se encontram em
concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo
discursivo” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 34). Concorrência aqui tem um sentido mais amplo,
67

ela tem a ver com relações diretas entre as formações discursivas, que podem constituir-se em
conflito, aliança ou uma suposta neutralidade.

É importante ressaltar que a delimitação dos campos discursivos não é uma condição
posta de maneira natural dentro do universo discursivo, ela é, antes, resultado do esforço do
analista em identificar as possibilidades de delimitação e fazê-la por meio de parâmetros que
devem ser desenvolvidos pelo próprio pesquisador, não de maneira arbitrária, mas tendo em
vista seus objetivos e o funcionamento dos discursos que estão postos a circular na sociedade.

A forma que logo se apresenta de delimitar um campo se apoia nas categorias de tipo
de discurso, religioso, midiático, político, etc. No entanto, "esse recorte em 'campos' não define
zonas insulares; é apenas uma abstração necessária, que deve permitir abrir múltiplas redes de
trocas" (MAINGUENEAU, 2008b, p.34). Por isso, nesse nível é forçoso realizar escolhas e
fundamentar-se nos conhecimentos e hipóteses da pesquisa. Em sua pesquisa sobre o discurso
de duas correntes religiosas, o humanismo devoto e o jansenismo, Maingueneau (2008b) isolou
o campo "devoto", ao invés de contentar-se com o campo "religioso", porque esse era o espaço
restrito de interesse dos seus estudos.

Ainda assim, Maingueneau estabelece mais um nível dentro do quadro: o espaço


discursivo. Finalmente, é neste nível que o analista reúne, dentro do campo discursivo, um
subconjunto de formações discursivas que interessa pôr em relação, e então, opera suas análises.

3.3 Formação discursiva


Para empreender a construção do espaço discursivo de nossa pesquisa, é necessário
antes definir a noção de formação discursiva, e entender sob quais fronteiras ela se constitui.

Maingueneau (2008b) define formação discursiva como um posicionamento discursivo


regido por um sistema de coerções. Esse sistema define aquilo que pode ser dito por um
determinado discurso, de acordo com o universo semântico do qual faz parte sua formação
discursiva.

Para entendermos melhor essa formulação do autor, é oportuno partirmos da seguinte


premissa: a concepção de discurso "supõe que, no interior de um idioma particular, para uma
68

sociedade, para um lugar, um momento definidos, só parte do dizível é acessível, que esse
dizível constitui um sistema e delimita uma identidade" (MAINGUENEAU, 2008b, p.16). Isto
é, a identidade de um discurso se constrói dentro do espaço do seu dizível, ou poderíamos dizer,
de sua formação discursiva, e esse espaço, apesar de oferecer infinitas e inéditas possibilidades,
sempre se conforma a uma estrutura prévia e é nesta estrutura que se encontra a identidade do
discurso.

A formação discursiva, por isso, funciona como um sistema de gestão da identidade de


um enunciado, pois sobre ela incidem as linhas fronteiriças do discurso, possibilitando atribuir
uma personalidade a ele, assim como afirma Maingueneau ao conferir uma definição para o
termo:

Ele permite, com efeito, designar todo conjunto sócio-histórico circunscritos que pode
relacionar-se a uma identidade enunciativa: o discurso comunista, o conjunto de
discursos proferidos por uma adminstração, os enunciados que decorrem de uma dada
ciência, o discurso dos patrões, dos camponeses, etc. (MAINGUENEAU, 2008c, p.
241)

Tais fronteiras se ancoram, como dissemos, no universo semântico do qual o discurso


faz parte, desse modo, podemos dizer que a formação discursiva funciona como um local onde
um conjunto de enunciados se encontram circunscritos sob um determinado domínio de
sentidos. Ou seja, a delimitação de uma formação discursiva se apoia, sobretudo, na produção
de sentidos explorados pelos enunciados.

Nessa perspectiva, a formação discursiva não seria um conglomerado mais ou menos


consistente de elementos diversos que se uniriam pouco a pouco, mas sim a
exploração sistemática das possibilidades de um núcleo semântico.
(MAINGUENEAU, 2008b, p.62)

No entanto, definir os limites de uma identidade discursiva não é uma tarefa simples.
Os critérios teórico-metodológicos que fundamentam a delimitação desse espaço e a própria
definição e aplicação do termo formação discursiva sofreram grande dispersão no uso de
diferentes pesquisadores durante décadas, fazendo com que a noção entrasse em declínio,
devido mesmo à incapacidade de lhe atribuir um estatuto muito claro.

Diante desse cenário, Maingueneau apresenta uma nova concepção teórico-


metodológica, com a intenção de solucionar o impasse e oferecer ferramentas conceituais para
69

que o analista do discurso consiga demonstrar o funcionamento da identidade de um discurso


no espaço de sua formação discursiva.

De minha parte, prefiro seguir uma terceira opção, que consiste em mostrar o interesse
- e os limites - dessa noção; o que supõe uma reflexão sobre a natureza das unidades
atualmente reivindicadas pelos analistas do discurso, e, também, sobre a natureza da
própria análise do discurso. (MAINGUENEAU, 2008a, p.11)

Para isso, o autor distingue, entre as categorias do discurso, dois grandes tipos de
unidades: as unidades tópicas, aquelas que têm seu território bem assegurado, e as unidades não
tópicas, aquelas que não possuem um território delineado a priori.

O primeiro grupo se constitui de unidades discursivas, que ele também chama de


territoriais, pré-delineadas pelas práticas sociais. A primeira categoria que constitui as unidades
tópicas são os gêneros do discurso:

Elas se articulam em torno de categoria de gênero de discurso, entendido como


instituição de fala, dispositivo de comunicação sócio-historicamente determinado: o
jornal televisivo, a consulta médica, o roteiro turístico, a reunião do conselho de
administração. (MAINGUENEAU, 2015, p. 66)

Retomando alguns exemplos que já mencionamos, seja na publicidade da cerveja


Devassa, utilizada nas oficinas do projeto Desconstruindo Estereótipos, ou nas notícias de
feminicídio veiculadas pelo programa Cidade Alerta, facilmente identificamos o pertencimento
desses gêneros de discursos: respectivamente, anúncio de revista e reportagem televisa.
Todavia, os gêneros discursivos também são agrupados em uma categoria maior, os tipos de
discursos, classe que pode reunir uma rede com diferentes gêneros.

Para esclarecer a noção de tipos de discurso e como eles servem de agrupamento para
os gêneros, Maingueneau esclarece que essa organização é realizada a partir de três modos
diferentes, tendo em vista a perspectiva assumida: "a esfera de atividade, o campo discursivo e
o lugar de atividade" (MAINGUENEAU, 2015, p. 67).

Uma receita médica, por exemplo, é um gênero que circula e é produzido no espaço do
hospital, por isso, pode ser enquadrado na categoria discurso hospitalar, e ainda, enquanto
discurso médico, tendo em vista a esfera da atividade produtora. Maingueneau afirma que a
noção de tipo sempre é heterogênea e “só é pertinente se permanecer vaga” (idem, 2015, p. 67).
70

Para ilustrar essa concepção ele utiliza como exemplo uma comunicação apresentada em um
congresso de medicina, esse gênero discursivo tanto pode ser apreendido como discurso
médico, por pertencer a essa disciplina, quanto um discurso científico por tratar-se de um
congresso, daí a importância de realizar o agrupamento dos gêneros tendo em vista diferentes
perspectivas a depender de nossas hipóteses e objetivos, e utilizando os critérios pertinentes.

Já o segundo grupo, as unidades não tópicas, diz respeito a categorizações realizadas


pela ação do próprio pesquisador, pois não são reunidas, a princípio, por nenhuma prática social
determinada, como os gêneros e tipos de discurso que são historicamente reconhecidos
enquanto categorias discursivas. As unidades não tópicas, ao contrário, são espaços delimitados
pelo trabalho de pesquisa.

O conjunto de enunciados que se reúne sob a denominação de unidades não tópicas


podem incluir enunciados de diferentes gêneros e tipos: entrevistas, anúncios de jornal, arquivos
históricos, advindos do discurso religioso, discurso filosófico, etc; o que importa é que tais
enunciados sejam apresentados enquanto unidade discursiva, por exemplo, sob a identidade de
"discurso racista", "discurso sobre o aborto", "discurso das cotas", etc.

Finalmente, é nesse tipo de unidade do discurso que Maingueneau propõe integrar a


noção de formação discursiva, como uma unidade não tópica que se constitui fora das fronteiras
pré-concebidas pelos tipos e gêneros discursivos, ou ainda, como "um sistema de restrições
invisíveis, transversal, às unidades tópicas" (MAINGUENEAU,2015, p. 81).

A própria noção de que o objeto de análise não é o discurso, mas sim o espaço
interdiscursivo de troca entre diferentes discursos, já implica que as fronteiras das unidades
tópicas sejam transgredidas.

Só pode haver análise do discurso se ela se apoia em unidades tópicas, mas elas não
podem dar conta, sozinhas, do funcionamento do discurso, que é atravessado por uma
falha constitutiva: o sentido se constrói no interior de fronteiras, mas mobilizando
elementos que estão fora delas. (MAINGUENEAU, 2015, p. 81)

Com isso, Maingueneau demarca um distanciamento muito claro entre as unidades


discursivas estabilizadas pelas práticas comunicacionais e aquelas que se revelam apenas
quando são objeto de investigação e estudo do pesquisador, e impede um primeiro equívoco:
71

tomar as formações discursivas sob a categoria de gênero e tipos do discurso. As formações


discursivas excedem as categorizações socialmente instauradas, elas se insinuam fora desses
limites.

O desafio, portanto, está em afinar a maneira como se apreende tais unidades e


responder a seguinte questão: como, então, definir os limites de uma formação discursiva?

Para esclarecer isso é necessário partir da constatação de que essa é uma unidade
fundamentalmente heterogênea, isto é, pode reunir enunciados de um ou de vários tipos e
gêneros, mas tal heterogeneidade encontra limites no núcleo de convergência dos enunciados.
Por exemplo, o discurso racista é regido pela intenção, ainda que secreta ou inconsciente, de
garantir a supremacia branca, este é então o núcleo de convergência dos enunciados que
compõem um discurso racista, assim, mesmo que tenhamos um corpus constituído por
diferentes gêneros, o que guia o analista a encontrar o limite dessa formação é o núcleo que
atrai unanimemente um conjunto de enunciados. (MAINGUENEAU, 2015)

Nesse sentido, é possível perceber quanto a ação do pesquisador incide sobre a "forma"
de construir o espaço da formação discursiva, visto que é "o pesquisador que em função de suas
hipóteses, dá forma à configuração de textos sobre a qual vai trabalhar" (MAINGUENEAU,
2015, p.93). Não existem fronteiras postas a priori que estabeleçam um determinado conjunto
de enunciados como "discurso racista", a concepção dessa identidade discursiva, e o que
possibilita tal inscrição, se baseia nos conhecimentos e hipóteses do pesquisador,
inevitavelmente. E ao mesmo tempo, se consolida na própria análise.

Como afirma o autor, "o que é realmente um problema não é tanto a existência de uma
formação discursiva, mas a extensão do corpus que dela deriva" (MAINGUENEAU, 2008b,
p.63). Por essa razão, é necessário estabelecer problemáticas restritivas e que sejam, no limite,
administráveis por uma pesquisa.

Seguindo com o mesmo exemplo, o discurso racista ocupa um espaço de circulação


social amplo demais para que seja apreendido em sua totalidade. Por isso, o pesquisador precisa
definir o conjunto de textos que constitui a formação discursiva com a qual vai trabalhar,
fundamentando-se nos objetivos e hipóteses de seu trabalho, e sobretudo, no contexto sócio-
histórico que envolve a circulação de tais enunciados.
72

Com efeito, a forma de reunir os enunciados pode atender a diferentes critérios e


construir diferentes tipos de formação discursiva.

De fato, o interesse pela noção de formação discursiva é exatamente permitir


constituir corpora heterogêneos, reunir livremente enunciados originários de diversos
tipos de unidades tópicas. Resulta disso que a formação discursiva não recobre uma
realidade homogênea. Em função do critério em virtude do qual se reúnem textos que
nela se integram, podemos distinguir diversos tipos de formação discursa.
(MAINGUENEAU, 2015, p.83)

Dentre os tipos de formação discursiva propostas pelo autor, a que parece integrar
melhor os objetivos e conhecimentos desta pesquisa é o tipo "formação discursiva temática".
Esse tipo de formação se organiza a partir de um tema, um conjunto de enunciados que fale,
por exemplo, "sobre o aborto", "sobre o impeachment de Dilma Rousseff", "sobre as pessoas
trans" etc. A natureza desse tipo de formação pode ser muito diversa e seria impossível prever
todas as possibilidades, no entanto, Maingueneau (2015) apresenta um quadro com as
categorias temáticas mais utilizadas na análise do discurso: as entidades, os cenários, as
propriedades, os acontecimentos e os nós.

Destas, vamos nos concentrar na categoria entidades. Esse tipo de formação discursiva
temática se dedica a falar sobre uma entidade humana ou um objeto antropomórfico. No caso
de entidades humanas, é possível ainda dividir entre formações que falam sobre personalidades
públicas, como artistas e políticos, e formações que tratam de figuras, membros prototípicos de
uma coletividade, como "a travesti", "o jovem negro", ou ainda, "a mulher da periferia".

De nossa parte, interessa trabalhar com a noção da figura, exatamente pela possibilidade
de investigar como se constitui a identidade discursiva da formação que fala sobre a "mulher
da periferia" como entidade. Com isso, não pretendemos apreender uma imagem que represente
"a mulher da periferia", como uma fotografia que representa um tempo e espaço determinados,
mas "trata-se, para a análise do discurso, de apreender as entidades por meio dos
funcionamentos discursivos, e não como a expressão de realidades que estariam acima, fora da
linguagem (MAINGUENEAU, 2015, p.87).

Assim, identificamos nas formações discursivas temáticas, que se organizam em torno


de uma entidade, um caminho para investigar quais sentidos se tem construído sobre "mulher
73

da periferia". Para isso, reunimos, como dito no capítulo anterior, um quadro temático baseado
nas três dimensões propostas pelo feminismo interseccional: gênero, classe social e raça.

Como também já mencionamos no capítulo anterior, as três dimensões se encontram


caracterizadas em três temas respectivos: maternidade, pobreza e racismo. Portanto, partindo
dos temas, procuramos depreender interdiscursivamente as relações que se estabelecem nos
enunciados de nossas protagonistas. Para isso, assumimos como núcleo semântico, isto é, aquilo
rege o funcionamento dos enunciados, a concepção de ser "uma mulher da periferia", a partir
dos três temas acima citados.

Um ponto importante para discussão é que nosso corpus não é composto por diferentes
gêneros e tipos de discurso, como supõe a construção de uma formação discursiva, pelo
contrário, ele é constituído de enunciados proveniente, todos, da transcrição de entrevistas em
vídeo que foram exibidas na exposição Quem Somos [POR NÓS], portanto, unidades tópicas.
Dito isso, chamamos atenção para dois pontos que justificam essa delimitação: primeiro, apesar
de formações discursivas se construírem majoritariamente por uma heterogeneidade de gêneros
e tipos, o autor indica que é possível utilizar-se de um ou mais gêneros, e sobretudo, atentar-se
para problemáticas restritivas que sejam administráveis em uma pesquisa (MAINGUENEAU,
2015); e segundo, o pressuposto de que toda análise é interdiscursiva por natureza já implica
que outras formações discursivas, de diferentes gêneros e até diferentes tipos de discurso, se
encontrem presentes no discurso primeiro, a heterogeneidade é constitutiva de todo discurso.

3.4 Cena de enunciação e ethos no palco dos sentidos


Podemos dizer que a identidade do discurso é, de certo modo, uma imagem por meio da
qual o discurso se apresenta ao mundo, a maneira como sua existência é percebida. A
enunciação também constrói imagens, discursivamente: ao enunciar estamos sempre
construindo imagens de nós e do objeto sobre o qual falamos. Para depreender como essa
construção de imagens opera, mobilizaremos duas noções preconizadas por Maingueneau
(2013): a cena de enunciação e de ethos discursivo
74

3.4.1 A cena de enunciação


Maingueneau (2013) apresenta a noção de cena de enunciação ao mesmo tempo como
quadro e processo. A metáfora de cena remete ao universo teatral, onde todos são impelidos a
representar papéis, assim,

[...]ela é, ao mesmo tempo, o espaço bem delimitado no qual são representadas as


peças (“na cena se encontra…”, “o rei entra em cena”), e as sequências das ações,
verbais e não verbais que habitam esse espaço (“ao longo da cena”, “uma cena
doméstica”). (MAINGUENEAU, 2015, p.117)

Seríamos, portanto, sujeitos desempenhando papéis previamente determinados.


Entretanto, diferente do teatro, onde os atores podem separar-se facilmente de seus
personagens, na cena de enunciação esses papéis vão construindo e determinando a nossa
personalidade (MAINGUENEAU, 2015, p. 118). Por isso, encontramos na noção de cena de
enunciação, um caminho importante para analisar as identidades construídas por nossas
protagonistas.

Ao colocar mulheres da periferia como protagonistas de uma pesquisa como esta,


procuramos depreender os papéis mobilizados discursivamente na fala das mulheres ao contar
suas próprias histórias. Por meio da cena de enunciação podemos depreender como os papéis
impostos por esse quadro, e então encenados, constroem a personalidade e a imagem de cada
uma delas.

Para entender melhor como se constitui essa noção, Maingueneau (2013) oferece uma
divisão ancorada nas unidades do discursos, de que tratamos no item anterior. Segundo ele, a
cena de enunciação se divide em três: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.

A cena englobante refere-se ao que entendemos por tipo de discurso, isto é, nesse nível
percebemos a cena de enunciação a partir da esfera de atividade do discurso, se é um discurso
publicitário, religioso, midiático. Já a cena genérica é determinada pelo gênero do discurso.
“Essas duas ‘cenas’ definem conjuntamente o que poderia ser chamado de quadro cênico do
texto. É ele que define o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire sentido - o
espaço do tipo e do gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2013, p.97).
75

No nível da cena englobante o locutor assume um papel correspondente ao tipo de


discurso que deseja ser reconhecido pelos seus coenunciadores. Um padre precisa, por meio da
própria enunciação, garantir que seu discurso seja apreendido a partir da cena englobante
religiosa; existe então um papel determinado a ser assumido, enquanto enunciador deste
determinado tipo de discurso. Apesar disso, como falamos a respeito das unidades tópicas, um
discurso pode pertencer a diferentes tipos, e cabe ao pesquisador também a tarefa de decidir, a
partir de seus objetivos e hipóteses, onde alocar o discurso enquanto cena englobante
(MAINGUENEAU, 2015).

No caso do corpus com o qual estamos trabalhando, as entrevistas, poderíamos dizer


que pertence tanto à cena englobante midiática quanto à cena englobante artística, tendo em
vista que os vídeos circularam como gênero artístico na exposição. Todavia, vamos alocar esses
discursos sob a caraterização de discurso midiático, tendo em vista que essa é a principal área
de atividade do coletivo, o jornalismo.

A percepção da cena englobante acontece pelo contato, a princípio, com o gênero do


discurso, isto é, com a cena genérica; é ela, portanto, que se impõe de início. Assim como o
padre realiza uma homilia durante a missa, um gênero de discurso comumente reconhecido
como pertencente ao discurso religioso, a entrevista jornalística é reconhecida geralmente como
um discurso midiático. Isso acontece porque o gênero estabelece certas normas e expectativas
sobre o discurso; entre elas, destacamos algumas características importantes explicitadas por
Maingueneau (2015, p. 120): uma ou mais finalidades, papéis para os parceiros e um lugar
apropriado para o sucesso.

Quando consideramos nosso objeto de análise, sabemos que uma entrevista concedida
a um veículo de comunicação, como é o caso do Nós, mulheres da periferia, possui, a princípio,
finalidades reconhecidas. Participar de uma entrevista implica emitir opinião sobre
determinados assuntos, contar histórias ou dar informações que serão veiculadas publicamente.
O que nos leva à segunda característica do gênero: em uma entrevista espera-se a presença de
sujeitos ocupando ao menos dois papéis, de um lado o repórter que realiza uma série de
perguntas, de outro, o protagonista que as responde. Como afirma Maingueneau (2015, p.121),
76

“a cada um desses papéis são atribuídos direitos e deveres, bem como competências
específicas”.

Quanto ao lugar, Maingueneau (2015) afirma que a escolha do espaço físico onde o
acontece a enunciação nunca é fortuita. A depender do gênero, o lugar pode ser imposto, como
casamentos, julgamentos etc., ou não impostos, como é o caso do corpus que analisamos. A
realização das entrevistas poderia acontecer em qualquer lugar, seria possível, até mesmo,
reunir todas as mulheres em um determinado espaço e entrevistar uma a uma. Isso teria sido,
inclusive, mais prático, do ponto de vista logístico do projeto; entretanto, o coletivo escolheu
visitar cada mulher em sua casa, no seu bairro. Essa escolha, que assim como fala o autor, não
é feita por acaso, teve o propósito de estabelecer uma relação mais próxima entre os parceiros,
as mulheres que entrevistaram e as mulheres entrevistadas, e oferecer um ambiente mais
confortável e seguro para as protagonistas.

Com isso podemos perceber que as duas cenas, englobante e genérica, estabelecem um
espaço estável para a constituição do quadro cênico da enunciação. Entretanto, como afirma
Maingueneau (2015, p.122), “enunciar não é apenas ativar as normas de uma instituição de fala
prévia; é construir sobre essa base uma encenação singular da enunciação: uma cenografia”. A
essa terceira cena, vamos dar especial atenção.

A cenografia é, propriamente, a encenação com a qual o coenunciador é apreendido, ou


poderíamos até dizer, seduzido. Antes que o coenunciador tome consciência ou reflita a respeito
do gênero que o interpela, é pela cenografia que se percebe, primeiro, que história o discurso
conta. São os elementos da cenografia que constroem a primeira cena visível. No caso do
anúncio da marca Devassa, que já citamos algumas vezes (Figura 8), temos um copo e uma
garrafa da nova cerveja preta ao lado de uma mulher negra, com olhar sedutor e sentada no que,
aparentemente, seria o balcão de um bar. A personagem usa salto alto e um vestido curto com
as costas livres, deixando ver grande parte do corpo. Junto dessa cena temos uma chamada
principal que diz: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”. Podemos dizer que,
antes que se perceba o texto como um anúncio publicitário da cerveja, percebe-se uma cena de
muita sexualidade associada ao consumo da bebida alcoólica, relacionando diretamente o prazer
77

sexual ao prazer oferecido pela cerveja, como se ao consumir a nova Devassa negra se obtivesse
o mesmo prazer que se tem ao relacionar-se sexualmente com uma mulher negra.

Essa cena de enunciação, enquanto discurso publicitário forjado pelo gênero anúncio de
revista, poderia se constituir por meio de diferentes cenografias, mas escolheu-se criar uma
cenografia que relacionava a sexualidade da mulher negra ao prazer do consumo da cerveja.
Neste caso, enquanto analista do discurso, interessa explicar e analisar por que determinadas
escolhas são feitas, isto é, a implicação dessa cenografia na construção de sentido do discurso.
É nesse caminho que procuramos analisar as escolhas e os efeitos de sentido depreendidos da
cenografia a partir da fala de nossas protagonistas.

Maingueneau afirma que é por meio da cenografia que o enunciador legitima sua
enunciação:

A noção de cenografia se apoia na ideia de que o enunciador, por meio da enunciação,


organiza a situação a partir da qual pretende enunciar. Todo discurso, por seu próprio
desenvolvimento, pretende, de fato, suscitar a adesão dos destinatários instaurando a
cenografia que o legitima. (MAINGUENEAU, 2015, p.123).

A cenografia é, assim, a cena organizada para legitimar o discurso, todavia, esse


movimento é cíclico, visto que a própria enunciação necessita continuamente legitimar e
sustentar a cenografia construída. “Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do
discurso e aquilo que ele engendra. ” (MAINGUENEAU, 2013, p.98). Assim, a cena de
enunciação se constrói por meio de uma escala que vai desde a cena englobante, passando pela
genérica, até chegar à cenografia, sendo essa última a cena mais instável e que oferece mais
possibilidade de controle do enunciador.

3.4.2 O ethos

Como vimos, os papéis desempenhados pelos sujeitos do discurso são sempre parte
essencial da cena de enunciação, assim, investigar como o enunciador manifesta seu papel na
cena também é parte fundamental da análise. O discurso, seja ele oral, escrito ou de outra
modalidade, é sempre sustentado por uma certa vocalidade, um tom, que caracteriza o
enunciador, conferindo a ele um corpo e traços psicológicos.
78

Oriunda da tradição da retórica grega, a noção de ethos é desenvolvida por Maingueneau


de forma a ultrapassar o quadro da argumentação, própria da retórica, para pensar "sobre o
processo mais geral da adesão de sujeitos a uma certa posição discursiva" (MAINGUENEAU,
2014, p.69).

Em determinados tipos de discurso, como o publicitário e o político, discursos que se


prestam, especificamente, ao objetivo de gerar aderência de seu público alvo, a noção do ethos
parece mais evidente. Entretanto, toda cena de enunciação produz um universo de sentidos que
se destina a legitimar a própria enunciação, de forma a mobilizar seu coenunciador a filiar-se
ao universo de sentido produzido por ela. Em tal movimento, o papel do ethos é fundamental,
pois é também por meio dessa imagem de enunciador que o texto estabelece ou não uma relação
de identificação com seu coenunciador.

Ao inscrever-se em determinado ethos, o enunciador constrói um mundo ético do qual


intenciona que seu coenunciador participe também. "Como o enunciado se dá pelo tom de um
fiador associado a uma dinâmica corporal, o leitor não decodifica seu sentido, ele participa
"fisicamente" do mesmo mundo do fiador”. (MAINGUENEAU, 2014, p.90)

O papel do fiador, portanto, é o de responsabilizar-se pelo enunciado, de tal forma que


o discurso seja apreendido como produto de um sujeito histórica e socialmente inscrito em uma
situação. Não podemos ignorar também que o coenunciador pode construir antecipadamente
algumas representações a respeito do enunciador, a partir de determinadas imagens
estereotipadas que circulem no imaginário social sobre quem é tal fiador; é o que o autor chama
de ethos pré-discursivo. (MAINGUENEAU, 2008a)

Todavia, é precisamente por meio da cena de enunciação, isto é, no ato de enunciar, que
o fiador ratifica tais representações ou as desconstrói com o desenvolvimento de novas. Isto
porque cada enunciação implica um ethos ao mesmo tempo que é validada por ele, em uma
ação circular e paradoxal, como afirma Maingueneau:

A qualidade do ethos remete, com efeito, à figura desse "fiador" que, mediante sua
fala, se dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir
em seu enunciado. Paradoxo constitutivo: é por seu próprio enunciado que o fiador
deve legitimar sua maneira de dizer. (MAINGUENEAU, 2014, p.73)
79

Para legitimar seu enunciado, o fiador não necessariamente fala de si no discurso,


situação que Maingueneau chama de ethos dito, mas ele engendra a enunciação de forma que
os traços do seu caráter possam ser percebidos pelo seu leitor por meio da própria cena
enunciação, ou seja, por meio da sua maneira de dizer, o ethos mostrado. A distinção entre as
duas situações nem sempre é tão clara, pois o ethos discursivo se constrói da constante interação
entre o que é dito e o que é mostrado.

Para construir modelos e antimodelos de seu ethos, o enunciador também recorre a cenas
validadas, cenas cristalizadas na memória social de uma determinada comunidade ou grupo.
Isso porque "a cena 'validada' fixa-se facilmente em representações estereotipadas
popularizadas pela iconografia" (MAINGUENEAU, 2014, p.81).

Segundo Maingueneau:

A cena validada é ao mesmo tempo exterior e interior ao discurso que a evoca. É


exterior no sentido de que lhe preexiste, em algum lugar no interdiscurso; mas é
igualmente interior, uma vez que é também o produto do discurso, que a configura
segundo o universo próprio… (MAINGUENEAU, 2014, p.82)

O enunciador acessa o repertório de cenas que compõem a memória coletiva da


comunidade com a qual fala, de forma a persuadir seu coenunciador demonstrando que faz parte
e/ou reconhece o mundo ético dele.

Como dissemos, os vários fatores que constituem o ethos são mais evidentes em
discursos políticos, publicitários, ou mesmo, literários e religiosos, tipos de discursos, com os
quais Maingueneau tem trabalhado majoritariamente em suas obras.
80

4. ANÁLISE
Neste capítulo vamos analisar o corpus a partir das categorias teóricas apresentadas no
capítulo anterior. Para isso, dividimos cada formação discursiva temática, maternidade, pobreza
e racismo em um bloco. Vale relembrar que cada uma das três entrevistas, Tarcila, Joana e
Renata, foram selecionadas por destacarem um dos temas de nosso interesse, todavia, como já
discutimos no contexto sócio-histórico (cap.1), as dimensões de gênero, classe social e raça são
transversais, o que implica que ao analisarmos o discurso a partir da perspectiva de gênero, por
exemplo, não podemos perder de vista as implicações da classe social e da raça em relação ao
gênero, o mesmo acontece ao analisar a dimensão de classe social e raça. São todas partes de
um todo, e um todo em si mesmas.

Para introduzir nosso objeto de pesquisa e facilitar o processo de leitura das análises,
apresentamos um pequeno resumo de cada uma das entrevistas:

Sobre a entrevista de Tarcila (Anexo C – Entrevista 1): o relato desenvolve-se em


torno da temática maternidade e suas implicações na jornada tripla de uma dona de casa que é
estudante e mãe solo6 de dois meninos. Além das múltiplas tarefas cotidiana, Tarcila discute
como as imposições sociais fundamentadas por determinados discursos de opressão de gênero,
atingem, sobretudo, as mães.

Sobre a entrevista de Joana (Anexo C – Entrevista 2): a história narrada pela


protagonista, conta sobre a vida no sertão da Bahia, as dificuldades enfrentadas depois de migrar
para São Paulo sendo uma mulher pobre e negra que não pôde estudar, os desafios de criar dois
filhos sozinha, e o prazer de estar estudando, agora, aos 50 anos.

Sobre a entrevista de Renata (Anexo C – Entrevista 3): a jovem traz algumas


reflexões sobre o papel da grande mídia na construção de estereótipos negativos que circulam
socialmente a respeito das mulheres negras e da periferia. Além disso, Renata reflete sobre o
que é a periferia a partir de sua perspectiva como moradora e, sobretudo, o que é ser uma mulher
negra, diante dos episódios de racismo que enfrenta diariamente.

6 O termo "mãe solo" designa as mães que são as principais ou únicas responsáveis pelos diferentes domínios da
criação dos filhos. Essa expressão vem sendo usada nas mídias digitais como forma de substituir o termo "mãe
solteira", a fim de desassociar a condição de maternidade do estado civil das mulheres.
81

4.1 O gênero no palco dos sentidos


A primeira dimensão na qual vamos nos concentrar é a do gênero. Para tanto, vamos
analisar enunciados que constituem a formação discursiva temática da maternidade, a fim de
apreender a maneira pelo qual os sentidos atribuídos ao tema constroem as identidades
discursivas de nossas protagonistas.

A entrevista de Tarcila (Anexo C – Entrevista 1), notadamente, oferece muitos


elementos discursivos de investigação do tema. Para possibilitar nossa análise, vamos
evidenciar os parágrafos e trechos que remetem ao tema maternidade e que nos indicam mais
diretamente os sentidos empregados sob a dimensão do gênero.

4.1.1 Sentidos em disputa


"Eu gosto muito de ser mulher, mas é difícil. É muito difícil" (Trecho da entrevista de
Tarcila)

Ao longo da entrevista, Tarcila trata, fundamentalmente, dos desafios da maternidade


frente às diferentes formas de opressão social que atingem as mulheres e, particularmente, as
mães. Entre o prazer de ser mulher e as dificuldades impostas pelo cotidiano de jornada
quádrupla, se dividindo entre trabalhar, cuidar da casa, estudar e criar dois filhos sozinha, ela
parece buscar equilíbrio para realizar tantas tarefas sem anular-se, sem deixar de sonhar e de
ser "sujeita de sua história".

A oposição, marcada fortemente na frase que destacamos ao abrir esta seção, engendra
a construção de sentidos de todo o enunciado. Se nos detivermos no terceiro parágrafo é
possível perceber como o discurso mobiliza diversos elementos a fim de justificar porque é
difícil ser mulher:

(1) Eu gosto muito de ser mulher, (2) mas é difícil. É muito difícil. (3) Essa
semana mesmo eu fiquei pensando: “Eu tenho dois filhos pequenos e ainda
não consegui retomar minha vida amorosa depois da minha separação”. Aí
essa semana fiquei pensando mais ainda se será que eu vou conseguir, porque
eu fiquei pensando na questão da maternidade. (4) Meu Deus, agora eu tenho
todas as possibilidades do mundo, eu tenho muitas possibilidades. Eu tenho
liberdade. Hoje em dia eu consigo ver aquilo que a gente fala, que uma
mulher pode ser dona de casa, ela pode ser estudante, ela pode ser o que ela
quiser, se realmente ela escolher isso. Então eu tenho, sim, muitas
possibilidades de escolha, (5) mas, e aquilo que me for obrigatório, o que eu
vou fazer com isso? Se eu engravidar novamente? Porque pode acontecer de
82

eu ter uma relação e engravidar novamente; o que eu vou fazer? (6) Porque
se a gente parar pra pensar um pouco, a mulher sempre fica com o lado mais
pesado. Ou ela se preocupa demais porque a criança tá com o pai, que não
sabe qual vai ser o tratamento que a criança vai receber ou não, ou ela é
tachada de uma mãe ruim ou uma pessoa ruim, porque não quer ser mãe do
jeito que a sociedade pede, ou ela é tachada pelo filho como uma má mãe,
porque não contou quem era o pai, decidiu fazer uma... ter o filho,
independentemente, sem contar quem é o pai. (7) Então, de qualquer forma,
a mulher acaba sendo mais prejudicada, sempre tem um ônus muito maior,
de ser mãe, estudante, dona de casa, e ser tudo, e ser linda, e ser magra. E
ainda é muito desigual.

Algumas marcas linguísticas nos ajudam a encaminhar a análise. Entre (1) e (2) o uso
do operador "mas" atribui mais força para a segunda afirmação "é difícil", em relação a primeira
"eu gosto de ser mulher". Desse modo, apesar do entusiasmo em "ser mulher", é possível
perceber que os desafios de viver sob o gênero feminino se impõem de forma mais intensa no
discurso. Em seguida, todo o enunciado se desenvolve de modo a legitimar essa primeira
constatação.

Entre os motivos que atestam a dificuldade em ser mulher, Tarcila destaca a dúvida em
conseguir ou não voltar a se relacionar afetivamente tendo dois filhos pequenos e,
principalmente, pelas imposições sociais atribuídas à maternidade. Antes disso, ela apresenta
suas convicções a respeito da liberdade de escolha e autonomia das mulheres, porém, esse
posicionamento parece não sustentar-se ao longo da enunciação.

Se por um lado a mulher poderia escolher o que quer ser e o que quer fazer de sua vida,
por outro, a maternidade se expressa como o elemento da obrigatoriedade. É possível observar
esse movimento entre os trechos (4) e (5).

O uso repetido do modalizador "pode" inscreve e reforça a presença do enunciador,


demarcando fortemente a atitude de Tarcila em relação ao objeto sobre o qual fala: a liberdade
de escolha das mulheres. Ela demonstra acreditar que a mulher, portanto ela mesma, tem sim
"muitas possibilidades de escolha". Assim, o discurso apresenta-se por meio de uma
modalização epistêmica, uma modalidade que se organiza sobre as crenças do enunciador, tais
convicções são baseadas nos conhecimentos do locutor. Esse tipo de modalidade apresenta uma
escala gradativa de aderência que vai desde a certeza absoluta da realização do fato ou ideia em
questão até a certeza absoluta de sua impossibilidade.
83

De todo modo, apesar de apoiar-se na crença da ideia de liberdade, o discurso introduz


um argumento que parece mais forte: "mas, e aquilo que me for obrigatório, o que eu vou fazer
com isso? Se eu engravidar novamente?". Outra vez, a utilização do operador "mas" implica
maior importância na segunda afirmação, enquanto a primeira é negligenciada, perdendo sua
força. Em resumo, o discurso de Tarcila sugere que, apesar de as mulheres terem muitas
possibilidades de escolha, as implicações da maternidade se inserem no campo da imposição e
da obrigatoriedade, uma ideia completamente oposta a de liberdade. Temos aí uma estrutura
muito parecida com a frase que abre o bloco e de novo, duas ideias, aparentemente, em
oposição: o prazer e o desafio de ser mulher.

Partindo do princípio da primazia do interdiscurso sobre o discurso, é necessário


analisar a relação entre os discursos e a construção do espaço de sentidos atribuídos ao gênero
feminino. Uma pista importante para isso é apreender como a noção de polifonia se manifesta
no discurso. De acordo com Maingueneau,

quando um locutor fala, ele não se contenta em expressar suas próprias opiniões; ao
contrário, ele faz ouvir diversas outras vozes, mais ou menos claramente identificadas,
em relação às quais ele se situa. (MAINGUENEAU, 2013, p.163)

Ao isolarmos a ideia da dificuldade de ser mulher, observamos que a cena de enunciação


é habitada, sobretudo, por outras vozes. Tarcila atribui grande parte do peso da maternidade ao
julgamento dos outros, "da sociedade" que pode tratá-la como uma "mãe ruim" se ela não for
mãe da maneira como se "pede". A possibilidade de criar o filho de forma independente, sem
dizer quem é o pai, também é impossível diante do julgamento que pode receber do próprio
filho, e assim, a preocupação em não ser uma "mãe ruim" vai determinando suas decisões. Por
fim, a dúvida sobre a capacidade do pai em cuidar da criança, reforça que ela deve assumir
todas as tarefas sozinha.

Desse modo, ao falar sobre a maternidade, Tarcila faz ouvir essas outras vozes,
discursos Outros que se inscrevem em formações discursivas machistas e patriarcais, segundo
as quais, a mãe deve atender a uma série de obrigatoriedades socialmente impostas para merecer
o título de "boa mãe". Esse universo semântico se opõe diretamente aos sentidos de liberdade e
de autonomia da mulher. Por isso, podemos apreender que uma formação discursiva construída
84

pelos sentidos do empoderamento feminino já nasce do embate com as formações discursivas


de opressão e subordinação do gênero feminino.

O conflito entre tais sentidos, de liberdade e obrigatoriedade se instaura no discurso de


Tarcila de tal modo que ao mesmo tempo em que ele se inscreve na formação discursiva do
empoderamento feminino, ele questiona o funcionamento e a validade de tal formação.

Ao esforçar-se por desembaraçar os sentidos que estão colocados em disputa, a


enunciadora também provoca seu coenunciador a refletir sobre a existência de um discurso de
opressão de gênero que atinge mais diretamente as mulheres mães. Consequentemente, o
discurso chama atenção para o fato de que, se nem todas as mulheres são mães, todas as mães
são mulheres, e por isso, um discurso de empoderamento feminino precisaria considerar e
acolher as especificidades desse grupo.

A ilustradora Taiz Leão Gouveia, responsável pela página Mãe Solo7, que ela descreve
como um projeto de empoderamento e fortalecimento para mães, discute a maternidade a partir
da ótica de suas dificuldades cotidianas. Suas tirinhas ilustram bem o universo semântico que
o discurso de Tarcila engendra:

7 Disponível em https://www.facebook.com/amaesolo/, acesso em 28 de dezembro de 2017.


85

Figura 12 – Tirinhas da página Mãe Solo.


86

Fonte: Facebook Mãe Solo


87

Apesar da cenografia mobilizada nas tirinhas ser composta por elementos de humor e
de leveza, diferente do discurso de Tarcila que forja um quadro denso e de pesar, a ilustradora
descreve cenas que poderiam fazer parte da vida de muitas mulheres, como Tarcila. Desde uma
interação informal no supermercado ou no ônibus, até uma conversa no posto de saúde, é
possível notar que discursos de opressão de gênero circulam nos mais diversos espaços
públicos, por meio de diferentes gêneros e tipos discursivos. Tais ideias atribuem sentidos ao
que significa ser uma "boa mãe" e uma "mãe ruim", e legitimam condutas sociais que eximem
a sociedade de qualquer tipo de corresponsabilização ou solidariedade no cuidado às crianças,
atribuindo essa função unicamente à mãe, eximindo, inclusive, o pai desse papel.

Diante do reconhecimento dessa imagem, o discurso de Tarcila reforça que a


desigualdade de gênero impõe um "ônus" muito maior sobre as mulheres, que precisam
desempenhar múltiplos papéis e ainda atender às determinações sociais sobre como ser "boas
mães", sem, no entanto, deixar de "ser linda, e de ser magra", como ditam os padrões estéticos
de gênero difundidos pela publicidade e grande mídia.

4.1.2 Maternidade pobre e negra


"Eu vivi pra eles. Pros meus filhos " (Trecho da entrevista de Joana)

Se a dimensão do gênero feminino, no que diz respeito à condição da maternidade, é


cercada por um conjunto de violências simbólicas e diferentes formas de opressão, isso ainda é
mais intenso quando percebemos a intersecção de classe social e raça nesse contexto.

Entre as mulheres entrevistadas durante o projeto Desconstruindo Estereótipos, quatro


das nove, disseram ser mãe solo. Como vimos no levantamento realizado pelo DATASUS
(2013), dentre as mães que encontram-se solteiras ao parir, a maioria é negra. Outros números
publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo em 2015, revelam que a chance de uma mulher
criar o filho sem a presença do pai é 3,5 vezes maior para mulheres que vivem em bairros da
periferia de São Paulo, em relação às mulheres que moram em bairros nobres. (MANSO et al,
2013)
88

Assim, é inevitável considerar as diferentes implicações da maternidade solo a depender


da classe social e da raça. Além da chance maior que mulheres pobres e negras possuem de
encontrar-se nessa situação, são essas mulheres que, como Tarcila, necessitam trabalhar fora
para prover o sustento de sua família, além de realizar as tarefas domésticas, se desdobrando
em jornadas triplas, ou quádruplas, quando ainda estudam.

Manoela, outra das mulheres entrevistadas durante o projeto Desconstruindo


Estereótipos corrobora com a ideia de que a maternidade impõe uma série de restrições à vida
das mulheres, sobretudo quando é uma maternidade assumida sozinha por mulheres pobres:
"Ser mãe solteira é anular, cara... foi e é anular tudo: a vida social, anular os passeios, os
trabalhos". Para sustentar o filho, sem ter de deixá-lo com outra pessoa ainda muito pequeno,
Manoela fez de sua própria casa, o espaço Casa das Crioulas, um lugar de convivência e
acolhimento para mães autônomas que oportuniza a produção coletiva e a geração de renda.

A possibilidade de não trabalhar fora e/ou contar com a contratação de serviços


domésticos durante a criação dos filhos, evidencia um dos privilégios que diferenciam a
realidade de uma mãe pobre e de uma mãe rica.

Além disso, a maternidade entre adolescentes, como no caso de Tarcila que teve o
primeiro filho aos dezoito anos, é cinco vezes maior entre meninas pobres do que entre meninas
ricas (RNPI, 2015). Apesar desse número de adolescentes grávidas ter diminuído 17% entre
2004 e 2015, segundo dados do Ministério da Saúde (PORTAL BRASIL, 2017), a relação de
classe social e maternidade precoce permanecem intimamente ligados.

A gravidez perpetua o ciclo da pobreza. Assim, é importante compreendermos que a


gravidez na adolescência, principalmente em menores de 15 anos, está vinculada a
outros condicionantes sociais, tais como: renda, moradia, estrutura familiar, acesso a
equipamentos sociais, entre outros. A gravidez e a maternidade em adolescentes se
relacionam estreitamente com os contextos de pobreza e exclusão, falta de condições
para o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos e a ausência de medidas de
proteção diante de situações de risco. (RNPI, 2015, pg. 16)

Para a pesquisadora estadunidense, Bell Hooks, o destaque que se tem dado, nos últimos
anos, à luta pela legalização do aborto, se sobrepondo a discussões sobre outras questões
fundamentais do direito reprodutivo, demonstra como o privilégio de classe condiciona também
as discussões públicas:
89

Em retrospectiva, é evidente que destacar o aborto, ao invés dos direitos reprodutivos


como um todo, refletiu os preconceitos de classe das mulheres que estavam na
vanguarda do movimento. Embora a questão do aborto tenha sido e permaneça
relevante para todas as mulheres, houve outras questões reprodutivas que eram tão
vitais que precisavam de atenção e poderiam ter servido para galvanizar as massas.
Essas questões variaram desde a educação sexual básica, cuidados pré-natais,
cuidados de saúde preventivos que ajudariam as mulheres a entender como seus
corpos funcionavam [...] De todas essas questões, mulheres brancas, com privilégio
de classe se identificaram mais intimamente com a dor da gravidez indesejada. E
ressaltaram a questão do aborto. (HOOKS, 2000, p.26 - traduzido por Carol Correia8)

É possível identificar traços da intersecção entre gênero, classe social e raça também na
entrevista de Joana - texto que compõe nosso corpus de análise. A imagem da maternidade
construída pelo discurso de Joana mobiliza a imagem solitária de uma jovem mulher negra e
nordestina que chega à São Paulo, a grande metrópole, com o intuito de sair da situação de
escassez e pobreza vivida no sertão da Bahia. Na chegada ela se depara com um novo cenário
de dificuldades impostas, em grande parte, pela condição da maternidade solo. No parágrafo
destacado abaixo, em que Joana descreve os motivos que não a permitiram estudar quando mais
jovem, essa imagem se evidencia:

(1) Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não
tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha
escola, mesmo. Não tinha como você estudar. (2) Depois eu vim para cá com 19 anos,
eu cheguei aqui, eu ia estudar, e aí eu fiquei... fui criar meus filhos só. A minha
prioridade foi cuidar dos meus filhos. Trabalhar e cuidar deles.

Cenografia parecida é forjada pela letra da música Negro Drama, do grupo de rap
Racionais Mc's, como é possível notar no trecho recortado abaixo:

Daria um filme
Uma negra
E uma criança nos braços
Solitária na floresta
De concreto e aço
Veja
Olha outra vez
O rosto na multidão
A multidão é um monstro
Sem rosto e coração
Ei, São Paulo
Terra de arranha-céu

8Disponível em https://medium.com/qg-feminista/cap%C3%ADtulo-5-de-feminismo-%C3%A9-para-todos-por-
bell-hooks-f172145f0abe, acesso em 05 de dezembro de 2017
90

A garoa rasga a carne


É a Torre de Babel
Família brasileira
Dois contra o mundo
Mãe solteira
De um promissor vagabundo
(BROWN e ROCK, 2002)

A história que daria um filme, como afirma a música, reproduz o quadro cênico
construído pelo discurso de Joana. Ainda que não fique claro se ela chegou à São Paulo com os
filhos ou engravidou após sua chegada, a imagem de uma mulher negra que se vê "solitária na
floresta de concreto e aço" se repete, e como vimos pelos números, caracteriza bem a noção de
"família brasileira".

Sobre o "promissor vagabundo" nada se sabe pelo discurso de Joana. É possível dizer,
apesar disso, que essa figura, a do pai, ou dos pais, de seus filhos, está fortemente vinculada ao
silêncio que percebemos no trecho (2): “Depois eu vim para cá com 19 anos, eu cheguei aqui,
eu ia estudar, e aí... eu fui criar meus filhos só”. Aqui, ela toma a decisão de silenciar parte da
história, não sabemos como foi sua chegada à São Paulo, e porque teve de assumir a criação
dos filhos sozinha. Todavia, para a análise do discurso, o não dito também é objeto de análise,
pois as coerções que determinam o que pode ou não ser enunciado também tecem os sentidos
do discurso. Ao negar tratar sobre a paternidade de seus filhos, o discurso de Joana reforça o
sentido da solidão, mas valoriza o protagonismo e a força da mãe, a história é sobre "dois contra
o mundo", ou melhor, três, neste caso.

Assim como acontece no discurso de Tarcila, a enunciação de Joana também nasce da


aliança com formações discursivas que evidenciam os sacrifícios da maternidade gerados pela
desigualdade de gênero e que mobilizam o ethos de uma mulher guerreira. Enquanto a presença
paterna não compõe a imagem da "família brasileira" da letra dos Racionais Mc's, Tarcila, Joana
e Manoela e muitas outras mulheres, especialmente, nas periferias, continuam a lutar sozinhas
pela sua própria existência e de seus filhos.

No discurso de Joana, é possível ver que o estereótipo da "boa mãe" é substituído por
um questionamento social ainda doloroso: a sua capacidade de manter os filhos longe do crime.
91

Ao trazer outras vozes para o seu discurso, o enunciado constrói um espaço de embate e
conflito:

Não é todo mundo que tem coragem, a coragem que eu tive, de criar dois filhos
sozinha, de ser discriminada, você é discriminada, você é vista com outros olhos, você
escuta coisas que lhe assusta: "Eles vão virar bandido". Eu escutei muito isso: "Ela
não vai ter coragem de trabalhar para criar dois filhos, eles vão virar bandido, ela vai
abandonar". Não! Eu tive coragem. Eu tive peito. Eu cheguei a trabalhar em dois
trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.

Segundo Maingueneau (2008b, p.38), “todo enunciado do discurso rejeita um


enunciado, atestado ou virtual, de seu Outro do espaço discursivo”, isto é, enunciar o dizível é
ao mesmo tempo enunciar o indizível, aquele Outro que todo discurso precisa rejeitar para
existir ou ainda para construir sua identidade. Por isso, o Outro dentro do espaço discursivo
nunca está em outro palco, pelo contrário, o mesmo e seu Outro coexistem no mesmo quadro,
delimitando-se mutuamente.

Ao analisarmos o parágrafo em destaque, é possível notar que o enunciado de Joana


rejeita veementemente um enunciado anterior, segundo o qual seus filhos não possuem outro
destino, a não ser o destino do crime. Ao recuperar, em sua memória, tais enunciados constrói-
se uma cenografia de luta, onde a enunciadora ocupa o papel de uma mulher com coragem que
rechaça o estereótipo de miséria e violência atribuído às famílias negras e pobres.

A relação da periferia e da população negra com o universo da violência e morte é uma


cena validada no imaginário social, isto é, de sentidos cristalizados e naturalmente aceitos. Tal
construção se apoia, essencialmente, em discursos de racismo e preconceito de classe social. O
discurso de Joana, enquanto mãe, negra e pobre, organiza-se de forma a afastar a imagem de
sua família desse cenário, para isso, ancora-se no ethos de mãe guerreira e corajosa, que venceu
a batalha de criar seus filhos, mesmo que para isso Joana tenha anulado o desejo de estudar.
Sua realização encontra-se na própria vida dos filhos.

O número de mortes de jovens negros no Brasil por violência é uma realidade que aflige
muitas outras mães negras e periféricas como Joana. Organizações da sociedade civil
descrevem como genocídio, os casos de violência contra jovens negros Brasil, dadas as
proporções com que as mortes acontecem diariamente e o alto índice de homicídios provocados
por agentes de segurança do próprio poder público nas periferias do país.
92

O rap é um gênero musical que já retratou diversas vezes a relação do filho negro com
sua mãe, sobretudo em contextos de maior vulnerabilidade social, assim como vimos na letra
dos Racionais Mc's. Uma recente composição do rapper Emicida, intitulada "Mãe", escrita para
sua mãe, dona Jacira, reforça os sentidos da maternidade em seu papel de salvação e martírio,
ou mesmo em sentido sagrado, como é possível perceber pelas estrofes abaixo:

Um sorriso no rosto, um aperto no peito


Imposto, imperfeito, tipo encosto, estreito
Banzo, vi tanto por aí
Pranto, de canto chorando, fazendo os outro rir
Não esqueci da senhora limpando o chão desses boy cuzão
Tanta humilhação não é vingança, hoje é redenção
Uma vida de mal me quer, não vi fé
Profundo ver o peso do mundo nas costa de uma mulher
Alexandre no presídio, eu pensando em suicídio
Aos oito anos, moça
De onde cê tirava força?
Orgulhosão de andar com os ladrão, trouxa!
Recitando Malcolm X sem coragem de lavar uma louça
Papo de quadrada, 12, madrugada e pose
As ligação que não fiz, tão chamando até hoje
Dos rec no Djose ao hemisfério norte
O sonho é um tempo onde as mina não tenha que ser tão forte
[...]
Luta diária, fio da navalha. Marcas? Várias
Senzalas, cesáreas, cicatrizes
Estrias, varizes, crises
Tipo Lulu, nem sempre é so easy
Pra nós punk é quem amamenta, enquanto enfrenta a guerra
Os tanque, as roupas suja, a vida sem amaciante
Bomba a todo instante, num quadro ao léu
Que é só enquadro e banco dos réu, sem flagrante
Até meu jeito é o dela
Amor cego, escutando com o coração a luz do peito dela
Descreve o efeito dela: breve, intenso, imenso
Ao ponto de agradecer até os defeito dela
Esses dias achei na minha caligrafia tua letra
E as lágrima molha a caneta
Desafia, vai dar mó treta
Quando disser que vi Deus
Ele era uma mulher preta
(EMICIDA, 2015)
93

Ao final da canção, um enunciado pronunciado por sua própria mãe reitera a dimensão
sagrada da maternidade, que é relacionada com a sacralidade da terra produtiva:

O terceiro filho nasceu: é homem


Não, ainda é menino
Miguel bebeu por três dias de alegria
Eu disse que ele viria, nasceu!
E eu nem sabia como seria
Alguém prevenia: filho é pro mundo
Não, o meu é meu
Sentia a necessidade de ter algo na vida
Buscava o amor das coisas desejadas
Então pensei que amaria muito mais
Alguém que saiu de dentro de mim e mais nada
Me sentia como a terra: sagrada
E que barulho, que lambança
Saltou do meu ventre, contente, e parecia dizer: É sábado, gente!
A freira que o amparou tentava reter
Seus dois pezinhos sem conseguir
E ela dizia: Mas que menino danado!
Como vai chamar ele, mãe?
Leandro
(EMICIDA, 2015)

4.2 A classe social no palco dos sentidos


Doravante vamos nos concentrar na dimensão da classe social como aspecto orientador
da análise do corpus. Para isso, vamos destacar os enunciados que constituem a formação
discursiva temática da pobreza. Sabemos que a fronteira entre uma dimensão e outra não são
concretas, posto que a própria condição materna, como vimos, não poderia ser analisada fora
da perspectiva da classe social e da raça. Todavia, como já dissemos, essa é apenas uma maneira
de organizar nosso espaço de análise, de forma a evidenciar cada uma das dimensões.

Assim, seguimos nossa investigação tendo em vista o prisma da classe social e suas
implicações no discurso das protagonistas. A entrevista de Joana, nesse sentido, oferece um
cenário produtivo para pensar as relações de classe social.
94

4.2.1 Antagonismo social


Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha nada. Às
vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. (Trecho da entrevista de Joana)

Ao inscrever-se sob o ethos da mãe forte e corajosa, o discurso de Joana mobilizou,


como vimos, sentidos fortemente ligados à sua condição social e racial. Todavia, é possível
notar que a dimensão da classe social impõe outras implicações à formação de seu discurso,
sobretudo, na construção de uma cenografia marcada pela privação e pela negação de direitos.

Para analisar as marcas dessa cenografia, vamos nos concentrar na tensão instaurada
pela enunciadora ao tratar da relação entre possuir e não possuir, sejam bens materiais, direitos
ou mesmo afeição e respeito. O uso reiterado do verbo "ter", em diferentes momentos da
enunciação, funciona como um marcador da diferença de classes, aquilo que distingue e
demarca o limite entre pobres e ricos. Nesse sentido, é visível que a cenografia da privação
revela a classe como uma fronteira que determina, historicamente, a desigualdade social e a
opressão.

Destacamos abaixo alguns trechos, organizados em blocos, que oferecem pistas


importantes para nossa análise:

Bloco (A)
(1) Eu nunca tive isso. O meu patrão juntar todo mundo na recepção para cantar
parabéns para mim? Eu nunca tinha tido isso.

(2) Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não
tinha ônibus, não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha
escola, mesmo. Não tinha como você estudar.

(3) Essa é a oportunidade que eu tive, que eu nunca tive. Mal aprendi fazer meu nome.
E hoje eu estou voltando a estudar. Isso pra mim é o maior orgulho. Eu estou muito
feliz.

Bloco (B)
(1) As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você
para trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar
colher e garfo, copo.
95

Bloco (C)
(1) Não é todo mundo que tem coragem. A coragem que eu tive, de criar dois filhos
sozinha. [...] Não! Eu tive coragem, eu tive peito, eu cheguei a trabalhar em dois
trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.

Observando estes enunciados é possível identificar que o discurso estabelece um


distanciamento claro entre duas categorias de sujeito, aquele que "não teve" - escola, transporte,
alimento, água, afeto, respeito - e aquele que "tem" - dinheiro. Fazendo assim da condição
material uma forte marca de separação entre os atributos das pessoas do discurso, de um lado
"eu", e de outro, "eles", "as pessoas que têm dinheiro", ou melhor, "os patrões que têm
dinheiro", entre "nós", a fronteira intransponível da classe social. Tal movimento é evidenciado
pelos blocos (A) e (B).

Contudo, em (C) ela estabelece uma nova relação entre as pessoas do discurso,
atribuindo-se pela primeira vez, a condição de quem "tem": "Eu tive coragem, eu tive peito".
Ao ocupar esse espaço na cena de enunciação, a enunciadora rompe uma barreira simbólica
imposta pela classe social, pois ela também possui um patrimônio. Todavia, diferente do
patrimônio dos ricos, aqui o discurso trata de bens imateriais, a virtude da coragem necessária
para criar dois filhos sozinha. Tal atributo é altamente valorizado dado o fato de que "não é todo
mundo que tem". A coragem, assim, seria uma virtude de poucos, e por isso, tão valiosa.

Segundo Maingueneau,

Caráter e corporalidade do fiador apoiam-se, então, sobre um conjunto difuso de


representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a
enunciação se apoia, e, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar
(MAINGUENEAU, 2014, p.72)

Ao investir-se do ethos de mãe corajosa e guerreira, a enunciadora procura reforçar o


valor do patrimônio imaterial que a população mais pobre possui, esforçando-se por romper
com a desigualdade exercida pela divisão de classes sociais. Além da negação marcada aos
enunciados citados: "Eles vão virar bandidos [...] Ela não vai ter coragem de trabalhar para criar
dois filhos, eles vão virar bandido, ela vai abandonar", o discurso de Joana constrói um mundo
diretamente oposto a todo o universo de sentido que rege seu Outro, um discurso que naturaliza
a condição de subalternidade, miséria e violência daqueles que "não têm" dinheiro.
96

Assim como afirma Maingueneau, não é necessário que o discurso demarque a presença
de seu Outro na enunciação, pois todo dizível implica um indizível:

O Outro circunscreve justamente o dizível insuportável sobre cujo interdito se


constitui o discurso; por conseguinte, não há necessidade de dizer, a cada enunciação,
que ele não admite esse Outro, que exclui pelo simples fato de seu próprio dizer
(MAINGUENEAU, 2008b, p.37)

A identidade discursiva da mulher da periferia, encontraria-se então, no lugar daquela


que, apesar das privações impostas pelo seu contexto social, possui o grande patrimônio da
coragem e da força, atribuído principalmente às mães pobres e negras. É nesta imagem que o
discurso de Joana apoia-se a fim de construir a figura de um fiador que possa mobilizar um
mundo ético oposto ao da subalternidade.

4.2.2 A periferia como lugar simbólico


Porque o que passa na novela é tudo mentira: que as mulheres ricas têm poder e as
mulheres da periferia não têm nada, só filho e saber rebolar. (Trecho da entrevista de
Renata)

Ainda na esteira dos sentidos mobilizados pela divisão de classe social, é possível notar,
a partir do trecho destacado acima, que o estereótipo da mulher da periferia se ancora, em
grande parte, na relação intrínseca com a pobreza. Pelo trecho destacado acima é possível
perceber que o discurso de Renata, a terceira protagonista desta pesquisa, utiliza-se da
denominação "da periferia", reconhecendo que a imagem de pobreza, disseminada pelas
novelas, se apoia na dimensão territorial.

Também na entrevista de Joana, o território é carregado de sentidos, ao falar da origem


pobre, ela, antes, demarca um lugar geográfico: "Eu nasci no sertão da Bahia", e deste ponto
em diante o enunciado constrói a cenografia de escassez e privação de direitos - o sertão da
Bahia, assim, é o lugar que "não tinha nada".

Dito isso, é notável que a classe social é uma dimensão intimamente ligada à divisão
espacial do território. Como discutimos no capítulo 1, a geografia é uma disciplina
indispensável para refletir sobre a sociedade, pois a distribuição territorial da população diz
muito sobre como se constrói a desigualdade social (SANTOS, 1989). E para este trabalho, a
97

noção de "periferia" é um sema de grande importância na constituição das identidades


discursivas que analisamos.

No discurso de nossas protagonistas, o território representa algo semelhante a um


quadro ou a um palco onde as cenas desenvolvem-se, ou ainda, um espaço abstrato onde
diferentes elementos constroem os sentidos do discurso. Por isso, para apreender os sentidos
atribuídos à periferia, a articulação da noção de cenografia é muito produtiva.

Destacamos abaixo, dois trechos da entrevista de Adriana, outra participante do projeto


Desconstruindo Estereótipos, que indicam caminhos importantes de análise:

(1) Ah, eu tenho aqui como minha casa, às vezes eu penso em ir embora de São Paulo,
mas, eu falo: Não me vejo longe do Campo Limpo. É um pedacinho de mim aqui, eu
viajo, tudo, volto, mas parece que eu tô voltando mesmo, não só pra minha casa, mas
pro meu bairro, pra minha casa, pra minha gente. Eu gostaria que o Campo Limpo
fosse um pouco... que tivessem um pouco mais de cuidado com nosso bairro, mas, a
gente vai sobrevivendo.
(2) Eu não considero aqui periferia não. Acho que a gente tem acesso aqui a bastante
coisa. A periferia às vezes tá melhor do que o centro. A gente tem muito acesso a tudo,
tá muito amplo pra gente, entendeu? A gente já tem bastante coisa que a gente não
tinha antes: acessibilidade a muita coisa, temos o terminal aqui perto, agora, temos
muitas lojas, entendeu? A gente não precisa ir pra longe pra adquirir as coisas que a
gente quer.
(Trechos da entrevista de Adriana)

Nesses trechos, Adriana fala sobre o Campo Limpo, bairro localizado na zona sul da
cidade. Conhecido comumente como um bairro de periferia, devido a distância do centro, cerca
de 23 quilômetros, o Campo Limpo também é percebido enquanto periferia por ser um bairro
com baixos índices sociais no que diz respeito à infraestrutura, serviços e direitos fundamentais,
como podemos perceber a partir do levantamento sócio-histórico que consta do capítulo 1.

Interessa-nos agora investigar que sentidos são construídos sobre a periferia, por meio
da cenografia que depreendemos no discurso de Adriana. Primeiro, é possível perceber que ela
demonstra uma relação afetuosa com o Campo Limpo e com seus vizinhos, que chama
respectivamente de “meu bairro”, “minha gente”. Logo no início da enunciação ela afirma que
o bairro é como se fosse a própria casa, para onde deseja voltar, sempre. Apesar disso, não deixa
de reconhecer que alguns aspectos poderiam melhorar: “[...] eu gostaria que o Campo Limpo
98

fosse um pouco... que tivessem um pouco mais de cuidado com nosso bairro, mas, a gente vai
sobrevivendo”. A partir desse trecho, podemos perceber que o bairro associa-se a ideia de lar,
enquanto espaço de vivência e compartilhamento com os seus, sejam amigos ou familiares.

A imagem de lar tece a legitimidade do discurso, e, ao mesmo tempo, o próprio discurso


se desenvolve de forma a validar tal cena. Se avançarmos para o trecho seguinte, vamos
verificar que logo em seguida ela introduz uma negação: “Eu não considero aqui periferia não
[...]”. Aqui, embora ela use, pela primeira vez na entrevista, a designação “periferia”, ela o faz
negando a relação Campo Limpo/periferia. É interessante notar que todas as mulheres
entrevistadas, a princípio, são reconhecidas sob a denominação de mulheres da periferia,
entretanto, Adriana faz questão de começar dizendo que não o é. Essa negação da identidade
periférica é especialmente rica de sentidos para nossa análise, já que nos interroga sobre o que
vem a ser a periferia.

O discurso, então, apoia-se em argumentos que reforçam o distanciamento do bairro


com a periferia: nos últimos anos, o Campo Limpo ganhou um terminal de ônibus e muitas
lojas, por isso ela “ [...] não precisa ir pra longe pra adquirir as coisas”. Com isso, o discurso de
Adriana instaura uma relação diferente entre a periferia e o Campo Limpo. Se, por um lado,
reconhece-se o valor do bairro, da vizinhança, enquanto espaço de afetividade e carinho, isso é
inverso ao que reconhece-se na periferia, que seria o espaço da escassez, da pobreza. Dessa
forma, Adriana procura desconstruir a ligação que podia parecer natural entre o que chama de
casa e o que chama de periferia.

É importante notar também a influência da relação dos parceiros nessa cena. A


protagonista está sendo entrevistada por um grupo de mulheres que se intitula como “Nós,
mulheres da periferia” e esse é um dado que não pode ser apagado de nossa análise. Se como
afirma Maingueneau (2015), o enunciador organiza o discurso a fim de suscitar a adesão de seu
coenunciador, é importante notar que a cena construída pela enunciadora também demonstra o
desejo de convencer suas entrevistadoras sobre seu não pertencimento à categoria “mulheres da
periferia”, figura desvalorizada pelo discurso, exatamente por entender que a periferia
corresponde ao estereótipo negativo, do lugar da pobreza, da falta. Assim, Adriana não seria
uma de “nós”.
99

Todavia, isso não acontece de maneira harmoniosa e tranquila. A cena de enunciação


que podemos depreender na disparidade entre a cenografia do lar atribuída ao bairro e a
cenografia da escassez e da pobreza reservada à periferia é uma cena conflitante. Ao mesmo
tempo em que a enunciadora nega a identidade periférica de seu bairro, a protagonista também
a recupera quando afirma: “A periferia às vezes tá melhor do que o centro”, para referir-se
exatamente ao mesmo bairro, o Campo Limpo, e reforçar suas qualidades.

A partir da tensão constituída nessa cenografia, conseguimos depreender que existe aí


um movimento de intensa negociação de sentidos do uso da própria palavra periferia, enquanto
espaço da pobreza versus espaço de convívio e afeição.

A preocupação de afastar-se da imagem de mulher da periferia também se constitui


como esforço de sair do estereótipo da pobreza, porém, ainda assim, é possível perceber que ao
seguir na direção contrária, o discurso reencontra-se com os atributos que deseja negar. Por
mais que um sentido procure apagar e invalidar o outro, a periferia aparece, mais como um
lugar simbólico onde diferentes sentidos coexistem e se relacionam continuamente no espaço
interdiscursivo.

Dessa forma, o discurso de Adriana, bem como o de Joana, rejeita a identidade associada
à miséria. Porém, diferente de Joana, aqui o ethos mobiliza uma imagem de mulher que possui
bens e direitos, verdade atestada pelos sentidos atribuídos ao lugar onde mora. Para valorizar
suas qualidades, o ethos desvaloriza a figura de seu antiethos, representado na imagem da
mulher da periferia.

Do mesmo modo, o discurso de Renata procura afastar-se do ethos marginal


estereotípico da mulher da periferia, todavia, o discurso dela instaura uma instabilidade de
sentidos ao procurar desconstruir a dicotomia: mulheres ricas que têm poder versus mulheres
da periferia que nada têm:

(1) A palavra periferia me diz onde eu moro, me diz tudo, diz desde quando eu acordo
até quando eu vou dormir, o pessoal passando com seus carros de funk, as mulheres
na frente da janela rebolando, a minha tia no bar com copo de cerveja, minha mãe,
significa tudo.
(2) Primeiro lugar, eu tentaria tirar aquelas biqueiras de perto de casa. Mudaria o jeito
que os outros pensam sobre nós, sobre a periferia. Mudaria a forma de viver, porque
ali, muitas vezes... a periferia tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é que todo
100

mundo é amigo, todo mundo, um ajuda o outro. Agora, o lado ruim é que é muito
barulho, muita bagunça, muito agito. Então, eu tentaria dar uma acalmada nisso.

A topografia construída no discurso de Renata também mobiliza o paradoxo: espaço da


pobreza versus espaço de convívio e afeição, tal como a cenografia constituída por Adriana. Ao
mesmo tempo que a periferia é marcada pela presença de sua mãe e sua tia, pelo afeto e
solidariedade dos amigos, é também o lugar onde tem biqueira9, algazarra e que sofre com o
preconceito.

Contudo, diferente de Adriana, o discurso de Renata incorpora o ethos de mulher da


periferia: "mudaria o jeito que os outros pensam sobre nós, sobre a periferia". Ao utilizar o
embreante "nós" ela afirma participar da mesma comunidade de seus coenunciadores, as
mulheres da periferia, por isso, seu discurso constrói-se de forma a valorizar e proteger tal
identidade.

Para isso, a formação discursiva organiza-se em torno de sentidos contrários à cena


validada pelas novelas, das mulheres da periferia que "não têm nada, só filho e saber rebolar",
afirmando que isso é mentira. Porém, por sua própria enunciação o discurso constrói a periferia
como um lugar habitado pelos agitos dos carros tocando funk, pelas mulheres que rebolam na
janela e pelos pontos de venda de droga.

À vista disso, podemos depreender que a periferia é um espaço múltiplo e diverso, a


partir do qual diferentes sentidos e realidades são articulados.

4.3 A raça no palco dos sentidos


Finalmente, a última dimensão sobre a qual vamos tratar é a da raça. Para tanto, é
preciso trocar a lente que conduz as análises e adentrar o corpus por meio dos enunciados que
constituem a formação discursiva temática do racismo, isto é, discursos que se formam em torno
deste tema. Como foi possível perceber pelas análises anteriores, este é um tema que perpassa,
de forma muito evidente, diversas narrativas sobre a condição social das mulheres da periferia.

9 Ponto de venda de drogas.


101

Aqui, a análise baseia-se em situações vivenciadas e descritas por Renata e Joana,


respectivamente. Tais situações e a maneira como tomam forma no discurso colaboram para
perceber as implicações do racismo enquanto mecanismo de destituição da humanidade dos
negros.

4.3.1 O racismo e a desumanização do negro


"Eu gostaria de falar pra eles que... cara, eu sou igualzinha a eles" (Trecho da
entrevista de Renata)

Para identificar o funcionamento do racismo no discurso de Renata, analisamos os


enunciados em que ela descreve sua relação com os colegas de escola, observando
principalmente como se instaura a relação da enunciadora com as pessoas do discurso e sua
atitude em relação ao objeto sobre o qual fala. Assim como depreendemos marcas da opressão
de classe social no emprego das pessoas "eu" e "eles" no discurso de Joana - discutido no bloco
anterior - é possível perceber que Renata dispensa um grande esforço para ressignificar sua
existência diante daqueles que ela identifica como "eles", sujeitos que "têm", seja a roupa de
marca ou a cor de pele diferente da sua.

Para empreender as análises, destacamos abaixo três trechos em que Renata responde
ao seguinte questionamento das entrevistadoras: "E como é na sua escola? Você sente algum
tipo de preconceito quando está lá?"

(1) Sinto, na escola sinto. Porque assim, eu cheguei na escola tipo... na minha escola,
na minha sala, principalmente, tem poucos negros. E quando eu cheguei na escola foi
uma coisa... foi difícil. Porque assim, na escola eles querem um povo mais... com mais
poder. Ah, se veste melhor, com roupa de marca, isso e aquilo. E eu acho que para se
vestir bem não precisa ter marca, não é uma etiqueta escrito que o negócio é original
que vai dizer quem você é. Então, como eu não sou muito disso, então, eu sofri muito
por isso. Porque o pessoal não se enturma comigo. Eu tento, eles não quer.
(2) O que eu enfrento é sufocante, isso de você entrar numa sala e não ter ninguém
pra tá conversando com você. Mas, eu levo isso como se não tivesse ninguém ao meu
redor, porque assim, ali eles podem não gostar de mim, mas, saindo dali eu vou pra
um lugar que eu vou ter bastante carinho, bastante amor.
(3) Eu gostaria de falar pra eles que... cara, eu sou igualzinha a eles. Não mudo em
nada, se tirasse a minha pele e deixasse só no vermelho e pegasse a pele de outra
pessoa e colocasse, eu seria a mesma pessoa. Tudo que eles têm eu também tenho, eu
só não posso ter a mesma cor ou ter uma roupa de marca. Nós somos tudo seres
humanos. Então, eu não entendo isso, ficar destratando só porque mora ali, porque
não tem isso, porque é negro, porque isso, porque aquilo. Então, pra mim, é todo
mundo igual.
102

Ao nos determos no trecho (1) é possível depreender que ela fundamenta, entre os
motivos que justificariam a rejeição dos colegas, a sua falta de "poder": "Porque assim, na
escola eles querem um povo mais... com mais poder". Dentre muitos significados, o universo
semântico do verbo "poder" implica possibilidade, capacidade, força e autoridade. Na escola,
então, o "poder" seria um atributo daqueles que vestem roupas de marca e que possuem a pele
clara. A questão racial é demarcada por ela logo no início do enunciado: "Porque assim, eu
cheguei na escola tipo... na minha escola, na minha sala, principalmente, tem poucos negros".
Ao identificar que a cor da sua pele é uma característica que a distancia de seus colegas, ela
reconhece que a reação dos alunos está alicerçada no racismo.

Então, para ser aceita, Renata precisaria atender aos critérios que determinam quem
tem poder e quem não tem, que são baseados, sobretudo, na distinção de classe e raça. A
condição de ser negra e pobre implicaria, assim, ocupar um lugar inferior, associado à
incapacidade, sentidos diretamente opostos ao "poder". Todavia, tal atribuição é, com efeito,
refutada pela enunciadora, que não admite e nem assume esse lugar de inferioridade, mas, pelo
contrário, se dedica a questionar sua validade.

Para isso, seu discurso se constrói, logo de início, em oposição ao discurso racista como
é possível notar ao recortarmos outro trecho da entrevista:

[...] a Beyonce, ela é uma puta de uma cantora, canta demais. A banda dela é só
mulheres que toca. Mulher tocando, tem uns dois, três dançarinos, o resto é tudo
mulher. Ela tem esse negócio de focar: nós, mulheres negras, podemos. Entendeu? E
ela é negra, é uma diva, e ela tá lá em cima, então, é uma inspiração também pra mim.

Quando descreve sua ídola, Renata constrói uma imagem de "poder", indicando que
Beyonce "está lá em cima alto", "é uma diva", imagens que a associam ao sucesso, à capacidade
de ser e realizar grandes coisas, de quem possui força e autoridade, já que encontra-se acima
dos outros. Ao mesmo tempo, Beyonce é uma figura próxima, visto que encontra-se circunscrita
sob o mesmo "nós", que denomina as mulheres negras, uma comunidade de sujeitos que tem
"poder", tal como a própria artista. Dessa forma, o discurso mobiliza um ethos de confiança e
poder à figura da enunciadora, a fim de agenciar um novo lugar de existência às mulheres negras
e pobres.
103

Essa maneira de ser e dizer-se, constitui a imagem de um fiador capaz de ocupar lugar
no enfrementamento aos sentidos do racismo, segundo os quais os negros são inferiores e
incapazes.

No Brasil, a concepção de dominação racial de brancos sobre negros ainda é herança


dos mais de três séculos de escravidão. Os resquícios desse período, não tão distante de nossa
história, se reatualizam nas formas contemporâneas de racismo que submetem a população
negra à diferentes formas de violência física, psicológica e simbólica, assim como afirma
Almeida (2014):

Onde quer que a escravidão tenha sido uma realidade, lançou mão de métodos
violentos, torturantes, agindo contra a integridade física e psicológica dos grupos
escravizados. O racismo contemporâneo guarda em sua memória marcas desse
passado. (ALMEIDA, 2014, p. 142)

Por meio da topografia construída no discurso de Renata, podemos perceber


diferentes marcas dos sofrimentos causados pelo racismo. Retomando os enunciados
destacados anteriormente, no trecho (2), o espaço escolar é construído, discursivamente, como
um lugar de exílio e solidão: "Mas, eu levo isso como se não tivesse ninguém ao meu redor".
Tamanha é a angústia causada pela rejeição dos colegas que a sala de aula torna-se "sufocante".
É possível reencontrar esses sentidos de exílio na história dos negros submetidos à escravidão
que encontravam-se destituídos do convívio familiar e comunitário de seus países de origem,
sujeitos a todo tipo de humilhação e subordinação na nova terra. Desso modo, o discurso
mobiliza intertextualmente o abandono e o sofrimento da população negra também durante o
período da escravidão.

Para fazer com que seu coenunciador seja capaz de entender sua dor, a enunciadora
incita-o a uma troca de lugares, a um exercício de empatia; tal movimento se evidencia pelo
emprego das pessoas do discurso no seguinte enunciado: "O que eu enfrento é sufocante, isso
de você entrar numa sala e não ter ninguém pra tá conversando com você". Ao utilizar "você"
ela convida o outro a adentrar o espaço terrível da sala de aula a fim de sentir as mesmas
sensações, todavia, o outro aí não é apenas o coenunciador direto da situação de enunciação,
representado pelas entrevistadoras, mas a própria sociedade como um locutor coletivo, um
coenunciador genérico. A prática do racismo vivenciada por Renata na relação com seus
104

colegas não pode ser apreendida na dimensão das relações pessoais, mas sim como uma prática
sustentada e incorporada por toda uma sociedade e pelos discursos que ela dissemina, assim
como afirma Dijk (2015):

[...] preconceito e discriminação não são natos, mas aprendidos, principalmente por
meio do discurso público. Tal discurso, em grande parte controlado pelas elites, inclui
debates políticos, notícias e artigos de opinião, programas de tv, manuais e trabalhos
escolares. Se tal discurso fosse sistemática e predominantemente não racista ou
antirracista, o racismo não seria tão difundido quanto é [...] (DIJK, 2015, p. 31)

Ao analisar o trecho (3) é possível depreender que o processo de racialização retira a


humanidade do sujeito negro. A atitude da enunciadora em relação à problemática do racismo
culmina na tentativa de convencer o outro sobre sua condição humana: " [...] eu sou igualzinha
a eles. Não mudo em nada, se tirasse a minha pele e deixasse só no vermelho e pegasse a pele
de outra pessoa e colocasse, eu seria a mesma pessoa". Dessa forma, o discurso procura romper
com o privilégio da branquitude, afirmando que a condição humana não é definida pela cor da
pele.

Por fim, o emprego do "nós" procura romper com o abismo que separa "eu" e
"eles": "Tudo que eles têm eu também tenho, eu só não posso ter a mesma cor ou ter uma
roupa de marca. Nós somos tudo seres humanos". Ou seja, ainda que "eu" represente uma jovem
negra que não usa roupas de marcas, e "eles" sejam jovens de pele clara que usam roupas de
marca, "nós" circunscreve todos a partir dos traços e da natureza humana. Portanto, todos
possuiriam os mesmos atributos de humanidade, que não se baseiam na classe social ou na cor.
Ao reivindicar esse lugar, o discurso mostra que o racismo tem eliminado aquilo que torna
Renata igual - ainda que diferente - de seus colegas, sua condição humana.

Assim como afirma Almeida (2014), o imaginário social é cerceado pela lógica
colonialista de dominação entre os povos, e a forma mais eficiente de manter a hegemonia sobre
o outro é roubar-lhe as condições de existência:

Em uma sociedade “racializada” e fortemente marcada pela tradição colonial, o


racismo opera, dentre outras formas, para destituir sua vítima da condição humana.
Esse exercício diário transforma as pessoas em seres incapazes de reconhecer a dor
do outro. O negro é inferior pela sua condição de ex-escravo, cabendo-lhe as migalhas
do produto do trabalho, embora tenha, por mais de 300 anos, trabalhado forçadamente
sem receber nada por isso. Assim operou a ideologia dominante na colonização, que
ainda está presente no imaginário social (ALMEIDA, 2014, p. 150)
105

4.3.2 As marcas raciais do trabalho doméstico


No Brasil, a divisão de classes diz muito sobre como a desigualdade social se
estrutura também por meio da dimensão racial. Como discutido no capítulo 1, os negros são
maioria entre a população mais empobrecida e entre os que vivem sob os piores indicadores
sociais. Tal disparidade entre brancos e negros, calcada na história da escravidão, também
configurou historicamente a divisão do trabalho. No pós-abolição, restaram aos negros as
atividades de trabalho mais precarizadas.

No que tange às mulheres negras, o trabalho doméstico - que rememora as relações


servis da casa grande - representa, muitas vezes, a única alternativa de atividade remunerada
ainda hoje. Não à toa, elas representam a maioria das mulheres na categoria, 61% (DIEESE,
2013). Segundo dados do IPEA (2016), o número de mulheres, entre negras e não negras,
ocupadas do trabalho doméstico remunerado no Brasil chegava a 5,9 milhões em 2014,
representando 92% do total. No entanto, apenas em 2015, com a sanção da PEC 181, é que a
categoria passou a ter direitos trabalhistas tais como fundo de garantia, férias, jornada de
trabalho limitada.

Dessa forma, é possível notar que a condição de precarização do trabalho doméstico se


mantém, sobretudo, por ser uma atividade exercida essencialmente por mulheres, e em sua
maioria, negras.

Existe historicamente uma precariedade estrutural do trabalho doméstico no país, com


trabalhadoras que foram colocadas imersas em proletariedade extrema, à margem da
regulação salarial estatal. Sendo assim o trabalho doméstico contém, em si, a síntese
da dominação, na medida em que articula a tríplice opressão secular de gênero, raça
e classe. (PEREIRA, 2011, p.4)

No nosso corpus de análise, a questão do trabalho doméstico é evidenciada na fala de


Joana a partir da perspectiva da opressão de classes. Todavia, é possível observar que as
relações estabelecidas entre patrão e empregada reconfiguram a desumanização do negro,
própria das relações entre senhor e escravo. Ao observarmos o trecho em que Joana narra uma
situação de forte discriminação vivenciada com seus patrões, é possível apreender uma imagem
que recupera a memória das relações na casa grande:
106

As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você
para trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar
colher e garfo, copo. Como é que você se sente? Separando seu garfo, sua faca, sua
colher? Nossa, você se sente um lixo, você não é ninguém. A minha vida é isso? Você
se sente um lixo. Separar seu garfo, sua colher, você está com nojo… se eu tô com
nojo de você, por que que eu tô com você na minha casa? Eu preciso de você e você
precisa de mim. Tem que haver respeito com o próximo, não importa quem você é.
Se você é branco, se você é negro, se você é pobre, se você é rico. Todo mundo é
igual, o mesmo sangue que corre na sua veia porque você é branca, ou tem dinheiro,
corre na minha, igualzinho, não tem diferença.

Bem como a rejeição dos colegas de Renata, o ato de separar os talheres é simbólico
do desprezo e da repulsa dirigidos aos negros. No início do enunciado, o uso do verbo "levar"
indica sua admissão pelos patrões: "[...] quando eles levam você para trabalhar na sua casa, eles
têm nojo [...]". O particípio "levada" revela uma prática de coisificação do sujeito que
desenvolve a trabalho doméstico e remete também à imagem dos negros "levados" nos navios
negreiros na condição de objetos, mão de obra escrava.

A relação entre patrão e empregada se cria de forma tão violenta e opressora, que ela
afirma sentir-se um "lixo". Os sentidos mobilizados em torno de tal substantivo corroboram
com a percepção de que o sujeito negro não possui valor, é um objeto descartável. Diante dessa
constatação ela introduz uma pergunta retórica: "A minha vida é isso?", de forma a interpelar
seu coenunciador a refletir sobre o lugar socialmente imposto a ela. Durante todo o discurso, a
enunciadora convoca a presença de um coenunciador coletivo, genérico, inclusive quando
utiliza a pessoa "você" no texto, assim como o discurso de Renata, a fim de fazer com que seu
locutor seja capaz de colocar-se no seu lugar e compartilhar de seus sentimentos de tristeza e
revolta: "Nossa, você se sente um lixo, você não é ninguém".

Para recuperar os sentidos da humanidade roubada pela objetificação da relação de


trabalho, seu discurso gira em torno do universo semântico da dignidade humana, afirmando
que "o mesmo sangue" corre em todos os corpos, sem diferença, sejam eles negros ou brancos,
pobres ou ricos, de modo a reunir todos sob a mesma condição e por isso, como sujeitos que
possuem os mesmos direitos. Tal como o discurso de Renata, o discurso dela recorre a
semelhança genotípica dos seres humanos para reconstruir as relações sociais. Esse movimento
constrói uma imagem de resistência aos sentidos das narrativas históricas que fundamentaram
a racialização dos negros a partir das diferenças fenotípicas dos corpos, os negros seriam
107

naturalmente seres não humanos, naturalmente mais resistentes ao trabalho, naturalmente mais
disponíveis ao sexo, etc.

Na página "Eu empregada doméstica", a rapper e historiadora Joyce Fernandes, também


conhecida como Preta Rara, reúne centenas de relatos de domésticas que vivenciaram
experiências parecidas com a de Joana e usam o espaço na rede social para denunciar os
patrões. O projeto nasceu a partir de relatos pessoais da jovem:

Figura 13 – Posts da página Eu Empregada Doméstica


108

Fonte: Facebook Eu Empregada Doméstica

Para Joyce, “é preciso humanizar as relações, tratar o serviço doméstico como algo
essencial pra vida. Não tem como falar que não se sabe ou que não se tem informação, mas o
quartinho da empregada doméstica continua sendo a senzala de hoje" (FERNANDES, 2017).

Assim como o discurso de Joana, os posts da página procuram evidenciar e denunciar


situações de humilhação e discriminação entre patrões - principalmente patroas - e empregadas.
Apesar de apresentarem-se em diferentes gêneros discursivos, entrevistas, posts, relatos, tais
textos inscrevem-se em conformidade com uma identidade discursiva de embate às opressões
de classe, raça e gênero.
109

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Elaborar o texto que encerra um trabalho é sempre um exercício desafiador. Como todo
pesquisador, reconheço os limites de minha atividade diante da dimensão da problemática e de
suas inúmeras possibilidades de desdobramentos. Assim, encaminho estas considerações,
destacando os principais achados e reflexões desta pesquisa, bem como apontamentos que
visam contribuir com outras pesquisas, discussões e atividades voltadas ao enfrentamento das
desigualdades sociais no Brasil, principalmente, no que concerne às mulheres negras que vivem
nas periferias.

Partindo das perguntas de pesquisa: 1) quais são as identidades discursivas construídas


pelas mulheres da periferia?; e 2) como o discurso do Outro se mostra no discurso das
protagonistas?, procuramos refletir o modo pelo qual mulheres negras e pobres existem e
resistem em contextos sociais de grande marginalização, silenciamento e opressão. Para isso,
as três dimensões propostas pelo feminismo interseccional apresentaram-se como ferramentas
essenciais em nossas análises, assim como a noção de formações discursivas temáticas
preconizadas por Maingueneau.

No decorrer das análises, ficou muito evidente que a tríade gênero, classe social e raça
constituem-se como partes inerentes do contexto social em que vivem as mulheres da periferia,
de modo que não foi possível dissociar as dimensões ao discutir cada tema. Por exemplo, o
ethos da mãe corajosa e guerreira construído no discurso de Joana só pôde ser apreendido
enquanto efeito da intersecção da classe social e da raça associadas a sua condição de mulher.

A imagem da maternidade, empreendida no discurso das protagonistas, ancorou-se em


uma topografia marcada pela ausência e pela opressão, como resultado de uma sociedade
machista que impõe às mulheres a obrigação solitária da criação dos filhos, além de cobrar uma
série de condutas imprescindíveis para serem caracterizadas como "boas mães".

Ao mobilizar os sentidos da imposição e obrigatoriedade relacionados à condição de ser


mãe, o discurso de Tarcila provocou um questionamento sobre quanto a luta pela autonomia e
liberdade das mulheres está em consonância com as demandas das mães, sobretudo, negras,
pobres e solos, que precisam trabalhar, estudar, cuidar de suas casas, ou ainda, salvar a vida de
seus filhos, como percebemos a partir do discurso de Joana. As falas de Joana e Tarcila
110

estabeleceram importantes reflexões sobre como os discursos machistas e racistas constroem e


validam diversas formas de opressão que atingem diretamente as mães negras e pobres.

Também no que diz respeito à temática da pobreza, o discurso construiu um cenário de


oposição entre ricos e pobres, por meio de uma relação fortemente arraigada na opressão de
classes. Ao criar tal cenografia, o discurso das mulheres assumiu um posicionamento embativo,
buscando ressignificar os sentidos da pobreza e desconstruir as cenas cristalizadas no
imaginário social que condicionam a imagem das mulheres pobres em torno da miséria em seu
sentido mais amplo, como uma carência crônica de tudo. Tal posicionamento constituiu-se por
meio da oposição à noção de pobreza atrelada a falta de bens materiais.

Por meio dos enunciados de Joana foi possível depreender que a coragem é um
patrimônio mais valorizado do que os bens materiais. Dessa forma, a distinção de classe social
não implicaria condição inferior as mulheres pobres, visto que a riqueza constitui-se nas
virtudes, nos bens imateriais, atributos que as mulheres pobres possuem.

A ressignificação dos sentidos da pobreza também foi operada na construção da imagem


da periferia. Por meio do discurso de Adriana e Renata, foi possível apreender a periferia
enquanto lugar de afetividade, convivência e solidariedade, aspectos muito valorizados em
oposição a condição de pobreza material ou falta de direitos, todavia, a periferia ainda aparece
por meio de uma cenografia arraigada de carência e negação. Tais sentidos são mobilizados e
regulados por meio das relações interdiscursivas.

Por fim, ao mobilizar a temática do racismo, o discurso das mulheres novamente


ancorou-se em uma topografia de opressão, marcada pela solidão e pelo silenciamento. Seja na
cena angustiante da sala de aula, no "filme" da chegada à grande metrópole ou na relação com
os patrões, a fala de Joana e Renata constroem cenas onde as mulheres negras encontram-se
sempre sozinhas e desumanizadas. A partir destas imagens foi possível depreender uma relação
intertextual com o imaginário da escravidão, uma memória dos tempos em que a população
negra foi trazida ao país na condição de coisa, disponível ao trabalho, tendo sua condição
humana roubada. O racismo contemporâneo estaria, assim, fortemente fundamentado em uma
herança escravagista que ainda habita o imaginário da sociedade brasileira.
111

Ao evocar o ethos de mulheres fortes e corajosas, o discurso mobilizou a imagem de um


fiador capaz de participar de um mundo ético de resistência e enfrentamento de tais opressões
e desigualdades sociais. Essa imagem inscreve-se em um momento histórico de muitas
manifestações de luta pelo empoderamento das mulheres, recuperado pelo discurso de Tarcila
e Renata, principalmente, ao apropriarem-se de outros discursos contemporâneos sobre a
autonomia e o poder feminino.

Em relação ao conjunto de análises, foi possível depreender que existe uma relação de
embate entre o lugar de negação a partir do qual o discurso emerge e os sentidos de resistência
mobilizados pelo ethos das enunciadoras. Dessa forma, podemos dizer que a identidade
discursiva das mulheres da periferia implica um lugar de existência por meio da resistência.

O espaço interdiscursivo das formações postas em relação revelou as oposições entre o


discurso das mulheres frente aos sentidos mobilizados e disseminados nos meios mais
privilegiados ou produzidos por aqueles que podemos chamar de elites discursivas, a mídia, a
religião, a ciência - espaços habitados também pela elite social. Apesar disso, é fato que, no
movimento de resistência e embate, alguns sentidos aparentemente opostos são incorporados,
condição própria também da interdiscursividade, o discurso e seu Outro estão sempre em
relação e as fronteiras que os delimitam são sempre instáveis e movediças

A maior parte dos estudos no âmbito da análise do discurso com os quais tive contato
durante o desenvolvimento desta pesquisa se concentram na análise de tipos e gêneros de
discurso mais estáveis e institucionalizados, como o discurso religioso, o discurso midiático, o
discurso científico. Assim, analisar um conjunto de enunciados produzidos por um grupo de
mulheres que se encontram sob categorias e fronteiras muito instáveis foi um grande desafio
para esta pesquisa, todavia, foi uma grande oportunidade de tencionar e criar novas perspectivas
a partir das teorias que estão postas. E também de contribuir para as pesquisas do grupo Atelier,
muitas das quais valorizam o que se produz à margem da academia.

Como disse ainda na introdução, este trabalho nasce da urgência em questionar a


hegemonia das ditas maiorias - ainda que sejam quantitativamente minoria - na construção dos
sentidos disseminados e incorporados socialmente por meio dos discursos. Assim, o esforço de
investigar um tipo de discurso menos recorrente entre as pesquisas de nossa área, colocando as
112

mulheres da periferia como protagonistas, também implica o desejo transpor as fronteiras que
distanciam a universidade das periferias, geográficas e simbólicas, onde essas mulheres se
encontram. Ainda que muitas - assim como eu - já tenham atravessado muitas pontes e chegado
aos bancos universitários, demarcando sua presença física e intelectual, entre a universidade e
a periferia ainda existe um grande abismo.

Por fim, é importante deixar registrado os desdobramentos do projeto Desconstruindo


Estereótipos, que originou e desenvolveu-se paralela e integradamente à nossa pesquisa. Parte
das entrevistas do projeto deram origem ao documentário Nós, Carolinas, também realizado
pelo coletivo Nós, mulheres da periferia e financiado pela Secretaria de Cultura de São Paulo.
Assim, as protagonistas desta pesquisa Tarcila, Joana e Renata ao lado de dona Carolina, outra
participante do projeto, tornaram-se também protagonistas de um curta metragem que foi
lançado no dia 08 de março de 2017, no cinema da galeria Olido, localizada na região central
da cidade de São Paulo, para um público de 400 pessoas. Depois desse evento, o coletivo tem
realizado exibições do documentário e debates sobre suas temáticas em outras salas de cinema,
escolas, postos de saúde, universidades, espaços dentro e fora das periferias da cidade, e
inclusive, fora de São Paulo.

Desse modo, os discursos que foram nosso objeto de análise e os resultados obtidos por
esta pesquisa ainda têm um longo caminho de disseminação e de oportunidade de novos
desdobramentos por meio das atividades realizadas pelo coletivo.
113

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119

ANEXOS
Anexo A

Imagem do artigo Nós, mulheres da periferia publicado na Folha de S.Paulo10, em 07 de


março de 2012 e abaixo transcrição do texto para leitura

10 Também disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/29772-nos-mulheres-da-periferia.shtml


120

Nós, mulheres da periferia

Sempre escutamos frases como "ela é formada, mas não na USP" ou "ela é ótima, mas mora
longe", mas o tempo ensina a não ter vergonha da periferia

Se a periferia tivesse sexo, certamente seria feminino. Como coração de mãe, ela abraça
os seus filhos sem distinção, sem ver se é belo ou feio, dentro ou fora dos padrões.

No dicionário, periferia é a região mais afastada do centro. Um termo que designa apenas um
espaço geográfico, não o pior lugar da cidade.

Em São Paulo, há mais de 650 mil mulheres vivendo na periferia -e presentes em toda
a cidade, trabalhando, estudando e saindo com os amigos. No Brasil, quase 22 milhões de
mulheres são chefes de família.

E para quem é considerada uma favelada, alcançar o ensino superior é quase impossível.
É como se ela nascesse com seu destino determinado. Jamais vai ter dinheiro para pagar a
universidade e a escola pública não vai prepará-la.

Mas agora, belas, agressivas, cheias de gana e autoconfiança, essas mulheres estão
driblando as dificuldades para ascender socialmente. Passaram a incluir mais uma atividade em
sua dupla jornada, que se tornou tripla, pois também estudam.

Hoje, mais do que nunca, mães que não tiveram oportunidades de ensino podem sonhar
com o estudo dos seus filhos. Na periferia, a mãe tem orgulho de dizer à patroa que seu filho
"fez faculdade".

Não que o diploma de ensino superior tire a sensação de ser marginalizada. "Ela é
formada, mas não na USP. É uma ótima profissional, mas mora muito longe." Essa é a realidade
de muitas das 3,6 milhões de brasileiras que fazem faculdade.

Situação que apaga e esconde diversas características da população que está longe dos
grandes centros. A periferia tem, sim, pessoas interessadas em arte, moradores engajados em
movimentos sociais e políticos que querem mostrar a pluralidade deste "outro mundo".
121

Yhorranna Ketterman, moradora de Taipas, zona norte de São Paulo, é um exemplo.


Ficou grávida aos 17 anos. Sugeriram que ela abortasse, ela recusou. Aos 28 anos e com dois
filhos, Yhorranna sonha com uma casa, pois vive em uma moradia irregular. Na favela onde
mora, os becos são apertados. Ao abrir a porta, só vê casas coladas -ao menos pode pedir para
a vizinha ficar de olho nas crianças quando vai trabalhar.

Ela é metalúrgica e se separou do marido depois de uma briga que a deixou com o dedo
torto. Já apanhou, mas também bateu. Como mulher forte que é, decidiu fazer a operação para
não ter mais filhos, encarando o machismo do então parceiro, que não quis fazer a vasectomia.

Sozinha e chefe do lar, Yhorranna manda na sua vida.

Não basta, no entanto. Quem de nós nunca ouviu a famosa afirmação: "Você não parece
que mora na periferia." Bom, até onde sabemos e vemos, as mulheres da periferia não têm
apenas um padrão de beleza, não usam as mesmas roupas e não gostam de um único tipo de
música.

Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de fotografia,
balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos cria constrangimento. "Sim,
tomo ônibus. Trem. Dois metrôs. E ônibus de novo." No happy hour, é comum escutar: "Lá
entra carro? Essa hora é perigoso. Quer dormir na minha casa?". A resposta é não. Saímos cedo,
voltamos tarde, mas sempre voltamos.

Trabalhamos perto, trabalhamos longe, dirigimos carros, usamos ônibus. Somos várias,
diferentes histórias, o mesmo lugar. É impossível nos reduzir a um estereótipo.

Com o tempo, a mulher aprende a dizer que seu bairro não é tão perigoso quanto pregam.
Aprende a não ter vergonha de dizer que é da periferia, pois é lá que estão suas raízes e tudo
aquilo que aprendeu.

Ser mulher na periferia é também esperar mais de um mês para ir ao ginecologista. É


não conseguir creche para seus filhos. Mas nada disso intimida. Nesta semana da mulher, vale
lembrar que pobreza maior é não ter espaço para ser. Na periferia, elas são: mulheres guerreiras.

BIANCA PEDRINA, 27, é jornalista e mora em Taipas

JÉSSICA MOREIRA, 20, estuda jornalismo e mora em Perus


122

MAYARA PENINA, 21, de Paraisópolis, estuda jornalismo

SEMAYAT OLIVEIRA, 23, jornalista, vive na Cidade Ademar

PATRÍCIA SILVA, 23, é jornalista e mora no Campo Limpo

Todas são correspondentes do blog Mural, da Folha.com


123

Anexo B
Roteiro das entrevistas do projeto Desconstruindo Estereótipos. Fonte: Acervo do Coletivo
Nós, mulheres da periferia

Foco da entrevista

Foco na questão da mídia, buscando extrair da entrevistada suas reflexões sobre como se sente
representada nos meios de comunicação e, em contra partida, coloca-la como protagonista ao
provoca-la a refletir quais histórias da sua vida poderiam se tornar notícia e por que. Não
podemos esquecer que estes vídeos serão o fio condutor e a voz que amarrará o objetivo da
nossa exposição. Uma vez que as telas de pintura e a fotografia expressam significados diversos
e não transmitem reflexões sobre a mídia, os vídeos precisam cumprir essa função. Portanto
usando perguntas que não dispersem dos temas: gênero, mídia e periferia.

O que queremos com cada entrevista: Evidenciar a ausência da mulher da periferia na mídia
através da fala da entrevistada.

Linguagem dos vídeos | Estética

Nosso vídeo precisa ter detalhes, assim como buscamos trabalhar na fotografia. Se nossa
proposta para a oficina de fotografia foi que as mulheres escolhessem seus detalhes, precisamos
trazer essa experiência para os vídeos também. Além de trazer uma harmonia estética, reforça
o nosso zelo em valorizá-las. Os planos abertos, no estilo Eduardo Coutinho, são fundamentais.
Mas a proposta é mesclar com closes que também transmitam os gestos, os olhares, os sorrisos.
A câmera precisa captar os lábios, as mãos, os pés e etc. Serão vídeos cuidadosos e as imagens
devem comunicar tanto quanto as falas. O mesmo olhar deve ser aplicado ao local em que as
filmagens acontecerão. Se for em um lugar aberto, como na rua, buscar o movimento, o
caminhar das pessoas ao redor, as paisagens. Se for a casa da entrevistada, os retratos, a
ambientação.

Exemplo: O aborto dos Outros (https://www.youtube.com/watch?v=de1H-q1nN98) e A


história das mulheres no Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=BAgC9eS4EVQ).
124

Roteiro de Perguntas

1. Pra você, o que o bairro onde você mora significa?


2. Ainda pensando no lugar onde você mora, a palavra periferia te diz alguma coisa? O
que?
3. Do seu jeito e de acordo com a forma com o que você se vê, o que significa ser uma
mulher que mora na periferia?
4. Na sua opinião, tem alguma coisa que te diferencia de mulheres que moram em outra
região? Se sim, o que?
5. Pensando nas coisas que você julga essencial para uma mulher e em melhorar o seu dia
a dia, o que você gostaria de mudar no seu bairro ou nas pessoas com quem você
convive?
6. Pra você, qual é o significado da palavra mídia
7. No seu dia a dia, você costuma ler jornal, revista, ouvir rádio ou assistir televisão?
8. E o que você mais gosta de ler, assistir ou ouvir? Por quê?
9. Você já viu alguma história com a sua no jornal ou na televisão? Se sim, se lembra qual
foi?
10. Na sua opinião, por que o número de histórias nesses meios de comunicação são tão
baixos?
11. Você já deu alguma entrevista ? Se lembra como foi?
12. Se sua vida fosse uma notícia, qual história você contaria? *Nessa hora, ela precisa
responder repetindo a pergunta, do tipo: Se minha vida fosse uma notícia, eu contaria
que…
125

Anexo C
Corpus de análise desta pesquisa: transcrição das entrevistas de Tarcila, Joana e Renata -
apenas os trechos editados e exibidos na exposição Quem Somos [POR NÓS]

Entrevista 1

Tarcila, 33 anos – Guaianases, zona leste.

O meu mais novo, de três anos, ele é muito independente. Desde os dois anos, ele acha que ele
sabe ler. Então ele toma o livro das nossas mãos e ele fala que ele vai contar a história, aí fica:
"Era uma vez...". Aí conta tudo errado, mas é tão lindo. E o meu mais velho, a professora dele...
Ele tinha me contado que tinha feito isso, mas a professora dele me falou, né, que ele tinha que
fazer uma carta pro governador, e era pra eles verem o que tinha que escrever. Eles tinham que
fazer alguma coisa, e ele pediu pro governador uma pintura pra escola, porque a escola estava
muito pichada, estava feia, cobertura pra quadra, e mais alguma coisa, não lembro agora o que
foi, mas eu falei: “Nossa, que coisa mais linda, o meu filho de oito anos já consegue ver o que
precisa de verdade na escola, então eu espero que eles continuem se desenvolvendo assim”.

Eu sempre trabalhei no centro da cidade, eu sempre aproveitei muito esse percurso, exatamente
por ser dona de casa. Mesmo antes de ter meus filhos, já ajudava nos deveres de casa, como é
comum, né, cultural da gente. Então esse período que eu tinha, da condução pra ir trabalhar, pra
ir estudar. Eu também sempre fiz faculdade no centro da cidade, e é o período que eu sempre
aproveitei mais para estudar, e para mim não é um tempo inútil. Foi um tempo ganho, sempre,
mesmo o percurso sendo longo, de uma hora e meia ou duas, sempre foi um tempo ganho. Mas
eu nunca parei pra pensar mesmo nas possibilidades ou benefícios que se possa ter de morar no
centro da cidade. Eu gosto de morar na periferia, gosto de morar na zona leste. Eu vou até lá,
numa boa, às vezes é cansativo, sim, quando precisa ter uma atividade mais legal no centro da
cidade; quando dá pra ir também com os meus filhos, é cansativo, mas, eu não vejo isso como
um empecilho.

Eu gosto muito de ser mulher, mas é difícil. É muito difícil. Essa semana mesmo eu fiquei
pensando: “Eu tenho dois filhos pequenos e ainda não consegui retomar minha vida amorosa
depois da minha separação”. Aí essa semana fiquei pensando mais ainda se será que eu vou
126

conseguir, porque eu fiquei pensando na questão da maternidade. Meu Deus, agora eu tenho
todas as possibilidades do mundo, eu tenho muitas possibilidades. Eu tenho liberdade. Hoje em
dia eu consigo ver aquilo que a gente fala, que uma mulher pode ser dona de casa. Ela pode ser
estudante, ela pode ser o que ela quiser, se realmente ela escolher isso. Então eu tenho, sim,
muitas possibilidades de escolha, mas, e aquilo que me for obrigatório, o que eu vou fazer com
isso? Se eu engravidar novamente? Porque pode acontecer de eu ter uma relação e engravidar
novamente; o que eu vou fazer? Porque se a gente parar pra pensar um pouco, a mulher sempre
fica com o lado mais pesado. Ou ela se preocupa demais porque a criança tá com o pai, que não
sabe qual vai ser o tratamento que a criança vai receber ou não, ou ela é tachada de uma mãe
ruim ou uma pessoa ruim, porque não quer ser mãe do jeito que a sociedade pede, ou ela é
tachada pelo filho como uma má mãe, porque não contou quem era o pai, decidiu fazer uma...
ter o filho, independentemente, sem contar quem é o pai. Então, de qualquer forma, a mulher
acaba sendo mais prejudicada, sempre tem um ônus muito maior, de ser mãe, estudante, dona
de casa, e ser tudo, e ser linda, e ser magra. E ainda é muito desigual.

Eu conheci o pai dos meus filhos com 17 anos. Com 18 anos a gente começou a namorar.
Sempre foi muito conturbada a nossa relação porque ele era... é usuário de droga. As
responsabilidades do lar eram só minhas. Eu sempre me cobrei muito também por isso. Eu
engravidei no começo de 2012, e nossa relação foi ficando cada vez pior.

Ele nunca me agrediu fisicamente, só psicologicamente, verbalmente. No final de 2012 meu


filho nasceu, e ele foi embora. Eu me vi sozinha com duas crianças. Estava desempregada.
Então foi uma loucura total de hormônios, de sentimentos, de tudo.

Eu tenho até um caso de uma amiga, que a história é incrivelmente parecida com a minha. Ela
tem uma relação muito difícil de... acho, de uns 15 anos já, com um homem que ele é usuário
de drogas, e ela é dependente emocionalmente dele. Ela ainda acredita que ele vai mudar. Ela
ainda acredita que o amor dela é capaz de mudar ele. Eu acho que essa é a pior violência que
fazem com a mulher, porque a gente acredita nisso. Eu não sei em que momento é passado pra
gente, mas a gente acredita que o nosso amor vai mudar um homem. E o nosso amor não muda
ele. E aí a gente se sente fracassada porque parece que o fracasso é nosso, não foi a sociedade
que moldou o sujeito daquele jeito, foi a gente que não foi capaz, a gente que não foi mulher
suficiente para mudar um homem, porque se a gente fosse mulher suficiente a gente tinha
127

mudado ele. Isso, de certa forma, entra na nossa cabeça, e pra sair é muito difícil, são anos de
dor e sofrimento e lágrimas que ninguém vê, até você ter coragem e expor essas lágrimas.
Ninguém é capaz de mudar ninguém. A pessoa só muda quando ela quer, se ela quer. Se ela
não quiser mudar também, é um problema dela. Mas as mulheres ainda se cobram muito, se
cobram muito desse papel de mudar o outro, de só serem capazes quando conseguem fazer isso.
Eu vejo muitas histórias parecidas com isso, muitas, muitas, muitas, de mulheres que perdem o
seu equilíbrio psicológico e emocional porque tentam mudar um homem; mulheres que não se
veem como sujeitas da sua história, porque estão ali, se desgastando a vida toda, tentando mudar
um homem e não veem o quanto a vida delas poderia ser mais simples ou, pelo menos, menos
dolorosa, se elas se olhassem mais ao invés de só estarem olhando para eles.

Eu acho que muda, eu acho que acaba sendo uma seleção natural, como se fosse uma peneira,
então desde o começo, eu já falo: "Tenho dois filhos, moleques, danados. Eu tenho um parafuso
a menos, eu faço um milhão de coisas ao mesmo tempo, às vezes não concluo algumas, falo
gíria, eu não tô nem aí para o que os outros vão falar”. E aí na hora mesmo, das conversas, eu
acabo falando muita besteira, principalmente quando é essas coisas de aplicativo de celular, que
tem muito agora, aí os caras adoram pedir foto, falo: "Meu, eu não mando foto. Desculpa. Você
quer minha foto?! Tem lá no Face [Facebook]. Tem um monte de foto lá, minha, dos meus
filhos, lá no Face”. Quando é um cara que eu convido pro Face. "Você olha lá...". Foto de
biquíni eu não mando, não, meu filho. Eu não vou ficar mandando pose, desculpa. Então eu
prefiro a gente conversar. A gente conversa e vê no que vai dar. Agora, meu corpinho não é
assim não, bem [risos]. É engraçado, acaba sendo engraçado, e vamos tentando, né?! Têm uns
loucos que a gente conversa um pouco mais, têm outros que um pouco menos e a gente vai
indo.
128

Entrevista 2

Joana, 51 anos – Parque Santo Antônio, zona sul.

Eu nunca tive isso. O meu patrão juntar todo mundo na recepção para cantar parabéns para
mim? Eu nunca tinha tido isso. Eu chorei. Eu guardo o cartão que eles me deram até hoje, com
todas as dedicatórias. Até hoje. 15 anos. Está lá, guardado. Vou levar comigo, né, para onde eu
for.

As pessoas que têm dinheiro, os patrões que têm dinheiro, quando eles levam você para
trabalhar na sua casa, eles têm nojo, que eles separam... já chegaram a separar colher e garfo,
copo. Como é que você se sente? Separando seu garfo, sua faca, sua colher? Nossa, você se
sente um lixo, você não é ninguém. A minha vida é isso? Você se sente um lixo. Separar seu
garfo, sua colher, você está com nojo… se eu tô com nojo de você, por que que eu tô com você
na minha casa? Eu preciso de você e você precisa de mim. Tem que haver respeito com o
próximo, não importa quem você é. Se você é branco, se você é negro, se você é pobre, se você
é rico. Todo mundo é igual, o mesmo sangue que corre na sua veia porque você é branca, ou
tem dinheiro, corre na minha, igualzinho, não tem diferença.

Eu nasci no sertão da Bahia. Não tinha nada, não tinha água, não tinha luz, não tinha ônibus,
não tinha nada. Às vezes até faltava o alimento. Isso não tinha. Não tinha escola, mesmo. Não
tinha como você estudar. Depois eu vim para cá, com 19 anos. Eu cheguei aqui, eu ia estudar,
e aí eu fiquei... fui criar meus filhos, só. A minha prioridade foi cuidar dos meus filhos.
Trabalhar e cuidar deles. Quando eu tive oportunidade que eles cresceram, eu fui trabalhar num
horário que não dava, que eu chegava muito tarde. E hoje eu estou estudando por quê? Porque
eu conheci o Cieja. Lá no Cieja tem vários horários para você escolher. E a oportunidade chegou
agora.

Eu tenho amigas que estudam lá. Antigamente não tinha como, por causa do meu horário de
trabalho. Só que agora eles têm horário. O último horário é às oito, e eu posso e tenho condições
de chegar esse horário para estudar. Eu tô amando. Tô adorando. Acho tudo maravilhoso lá. Tô
me realizando de estar voltando a estudar aos 50 anos.

Essa é a oportunidade que eu tive, que eu nunca tive. Mal aprendi fazer meu nome. E hoje eu
estou voltando a estudar. Isso pra mim é o maior orgulho. Eu estou muito feliz.
129

Não é todo mundo que tem coragem. A coragem que eu tive, de criar dois filhos sozinha, de ser
discriminada. Você é discriminada, você é vista com outros olhos, você escuta coisas que lhe
assusta: "Eles vão virar bandido". Eu escutei muito isso: "Ela não vai ter coragem de trabalhar
para criar dois filhos, eles vão virar bandido, ela vai abandonar". Não! Eu tive coragem, eu tive
peito, eu cheguei a trabalhar em dois trabalhos. Eu vivi pra eles. Pros meus filhos.

Você se sente tão feliz. Eu me sinto feliz, realizada, porque eu olho meu filho que eu via bebê,
e hoje eu vejo ele pai. Aí você olha e você fala: “Eu fiz isso? Foi eu que fiz isso? Eu criei meu
filho e eu cheguei a esse ponto?”. Eu achava que eu não ia ver meu filho crescer. Tanto que eu
pedi muito a Deus: “Eu quero ver meu filho crescer, eu quero dar pra ele o que eu não tive”. E
hoje eu vejo ele pai. Você não acredita. Você acha que está sonhando.

Eu quero ver na minha neta o que eu não vi na minha filha, que aos 15 anos faleceu, por causa
de um irresponsável bêbado, sei lá, drogado. Eu quero ver na minha neta o que eu não vi na
minha filha: ela estudar, se formar, ser uma grande mulher.

Hoje, meu sonho? Deixa eu ver.... meu sonho, acho que é pegar meu diploma. Deve ser lindo
pegar um diploma. Porque já vi meus filhos crescer, tenho minha casa, trabalho, voltei a estudar,
que era um deles, né? Acho que é pegar meu diploma. Se eu chegar até lá, né? Você já não sabe
até quando vai ficar nessa vida, né, então, eu vou ter fé, eu estou lá e vou conseguir.
130

Entrevista 3

Renata, 17 anos – Perus, zona norte.

Eu gosto muito de documentário, eu gosto muito de filme de terror, eu adoro. Eu gosto muito
de comédia, drama. Eu não sou muito de ação, essas coisas, mas outros filmes, eu adoro.

Nós, mulheres da periferia (NMP): Você tem algum ídolo?

Eu tenho, a Beyonce, ela é uma puta de uma cantora, canta demais. A banda dela é só mulheres
que toca. Mulher tocando, tem uns dois, três dançarinos, o resto é tudo mulher. Ela tem esse
negócio de focar: nós, mulheres negras, podemos. Entendeu? E ela é negra, é uma diva, e ela tá
lá em cima, então, é uma inspiração também pra mim.

A palavra periferia me diz onde eu moro, me diz tudo, diz desde quando eu acordo até quando
eu vou dormir, o pessoal passando com seus carros de funk, as mulheres na frente da janela
rebolando, a minha tia no bar com copo de cerveja, minha mãe, significa tudo.

Significa muitas coisas, porque foi ali onde eu cresci. Quando eu cheguei aqui não tinha quase
nada e eu vi ele evoluindo, o bairro evoluindo, minha mãe evoluindo, eu evoluindo, todo mundo
evoluindo.

NMP: E você mudaria alguma coisa no seu bairro?

Ah, eu mudaria muita coisa. Primeiro lugar, eu tentaria tirar aquelas biqueiras de perto de casa.
Mudaria o jeito que os outros pensam sobre nós, sobre a periferia. Mudaria a forma de viver,
porque ali, muitas vezes... a periferia tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é que todo
mundo é amigo, todo mundo, um ajuda o outro. Agora, o lado ruim é que é muito barulho,
muita bagunça, muito agito. Então, eu tentaria dar uma acalmada nisso.

Pra mim, a palavra mídia não passa de mais de uma palavra, porque eu acho que a mídia veio
só pra fazer famosos. Mídia, pra mim, não serve pra nada, porque muita gente conseguiu evoluir
sem mídia, então, pra mim, mídia é uma simples palavra como qualquer uma. Porque o que
passa na novela é tudo mentira; que as mulheres ricas têm poder e as mulheres da periferia não
têm nada, só filho e saber rebolar. E isso é mentira, não é a verdade.

Eu sei o que eu sou, eu sei o que nós mulheres somos.


131

NMP: E como é na sua escola? Você sente algum tipo de preconceito quando está lá?

Sinto, na escola sinto. Porque assim, eu cheguei na escola tipo... na minha escola, na minha
sala, principalmente, têm poucos negros. E quando eu cheguei na escola foi uma coisa... foi
difícil. Porque assim, na escola eles querem um povo mais... com mais poder. Ah, se veste
melhor, com roupa de marca, isso e aquilo. E eu acho que para se vestir bem não precisa ter
marca, não é uma etiqueta escrito que o negócio é original que vai dizer quem você é. Então,
como eu não sou muito disso, então, eu sofri muito por isso. Porque o pessoal não se enturma
comigo. Eu tento, eles não quer.

O que eu enfrento é sufocante, isso de você entrar numa sala e não ter ninguém pra tar
conversando com você. Mas, eu levo isso como se não tivesse ninguém ao meu redor, porque
assim, ali eles podem não gostar de mim, mas, saindo dali eu vou pra um lugar que eu vou ter
bastante carinho, bastante amor.

Eu gostaria de falar pra eles que... cara, eu sou igualzinha a eles. Não mudo em nada, se tirasse
a minha pele e deixasse só no vermelho e pegasse a pele de outra pessoa e colocasse, eu seria a
mesma pessoa. Tudo que eles têm eu também tenho, eu só não posso ter a mesma cor ou ter
uma roupa de marca. Nós somos tudo seres humanos. Então, eu não entendo isso, ficar
destratando só porque mora ali, porque não tem isso, porque é negro, porque isso, porque aquilo.
Então, pra mim, é todo mundo igual.

Ai, meu cabelo gente, ai, eu adoro falar do meu cabelo. Então, meu cabelo, quando eu era
pequena, minha mãe cuidava do meu cabelo e ela insistia, falava que, pra gente ser aceita, a
gente tinha que alisar. E, ao longo do tempo, foi alisando e passava isso no cabelo e passava
aquilo e só piorava. Aí, um certo dia, eu viajei para a praia, e antes de ir minha mãe quis que eu
alisasse o cabelo. Fui e alisei. Eu fui pra praia e estragou o cabelo todinho, caiu e não sei o quê.
Aí foi que eu me irritei. Quer saber? Chega de alisar cabelo. Cortei, acho que ficou uns dois
dedos de cabelo só. Cortei até onde estava os cachinhos, cortei tudo e tô usando, tô amando. É
como uma vez eu escutei na televisão: “Em terra de cabelos lisos, quem tem cacho é rainha,
né?”. Então, eu me sinto muito bem.
132

Agora eu me sinto mais confiante, mais solta. Porque, assim, quando a mulher tem o cabelo
crespo e ela quer alisar, ele não vai ficar igual das mulheres da televisão. Por máximo que ela
pegue uma chapinha e passe, vai achar que vai ficar liso daquele jeito, não fica.

Então, eu me sentia sufocada, apertada naquilo tudo, e eu era mais tímida, eu não tinha mais...
não tinha aquela vontade. Então, depois que eu resolvi mudar tudo, eu fiquei mais liberal, eu tô
mais aberta, aberta pra conhecer gente nova, coisas novas, vida nova, então abriu tudo.

NMP: E mudou o jeito que as pessoas te tratavam na escola, por exemplo?

Mudou, mudou um pouco, porque, assim, o cabelo black, só por ser mais armado, o pessoal já
acha que é um cabelo duro, crespo, que tem piolho, que você não cuida, mas não é nada disso.
Teve um pessoal que ainda chegou: “Ah, tá bonito”. Mas teve um pessoal que não chega perto
porque, pode ter isso, pode ter aquilo. Então, deu uma melhorada, mas ainda tem os
preconceituosos.
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Anexo D
Convite da abertura da exposição Quem Somos [POR NÓS], realizada pelo Coletivo Nós,
mulheres da periferia, que ficou aberta à visitação durante o período de 21 de novembro de
2015 a 21 de dezembro de 2015, no Centro Cultural Municipal da Juventude Ruth Cardoso,
Vila Nova Cachoeirinha, zona norte de São Paulo. Fonte: Acervo do Coletivo.
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Anexo E
Planta baixa do espaço da exposição Quem Somos [POR NÓS], com a divisão dos
corredores temáticos - medidas em metros. Concepção do Coletivo Nós, mulheres da
periferia.
Fonte: Acervo do Coletivo.
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Anexo F
Fotos da exposição Quem Somos [POR NÓS], no dia da abertura, 21 de novembro de 2015.
Fonte: Acervo do Coletivo.
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