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INTERNACIONAL
Como o SUS se prepara para enfrentar
epidemias como a do novo coronavírus
#EUNÃOSOUDESPESA — A campanha #EuNãoSouDespesa, do Conselho Nacional de Saúde, reúne depoimentos
de cidadãos que se posicionaram nas redes sociais contra falas que criticaram o custo do tratamento oferecido pelo SUS
às pessoas que vivem com HIV. Integrante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e aids, Vanessa Campos foi
uma das que usou a hashtag: “A saúde das pessoas que vivem com HIV/Aids é um direito garantido pela Constituição”.
EDITORIAL CONGREPICS
3 Todos precisam fazer sua parte 22 Saúde em várias dimensões
27 Entrevista | Nelson Filice de
4 VOZ DO LEITOR
Barros “Temos que aprender
5 SÚMULA com outros modelos de cuidado”
PUBLICAÇÃO SANITARISTAS
10 Câncer: 625 mil novos 30 Memória preservada
casos por ano
34 SERVIÇO
MARATONA TECNOLÓGICA
12 Tecnologia a serviço da Saúde PÓS-TUDO
35 Por uma pedagogia
CAPA | EPIDEMIA das reticências...
14 Alerta global
18 Os termos de uma emergência
19 Que vírus é esse?
21 Diagnóstico em rede
EDITORIAL
SUA OPINIÃO
Para assinar, sugerir pautas e enviar a sua opinião, acesse um dos canais abaixo
E-mail radis@ensp.fiocruz.br Tel. (21) 3882-9118 End. Av. Brasil, 4036, Sala 510 Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ CEP 21040-361
ENSP
Tenho o grande privilégio de ler a revista, Hermano Castro
muito me informa, anos a leio, parabéns Diretor
a equipe Radis!
Marly Dala Paula, Muriaé, MG PROGRAMA RADIS
Rogério Lannes Rocha
Já faz um ano que sou assinante da Radis, Coordenador e editor-chefe
RACISMO E LUTA que é da Fiocruz. Ela traz vários temas Justa Helena Franco
Feliz ao ler a entrevista Thula de Oliveira com uma discussão bem importante. Cada Subcoordenadora
Pires (foto acima) “A saída para o negro é mês vem uma revista totalmente de graça. REDAÇÃO
a luta” (Radis 179), porque concordo com Eu usei ano passado para me atualizar Adriano De Lavor
Editor
o seu pensamento e análise em relação ao em notícias para o Enem e o tema mais Bruno Dominguez
racismo, quando ela fomenta a necessidade top foi sobre a mulher na ciência. Eu me Subeditor
de luta. Parabéns, professora, pela pessoa apaixonei. Se quiserem assinar é só buscar Reportagem
humilde e humana que é, pelo exemplo no site da Radis e clicar em assinatura. Ana Cláudia Peres, Liseane
que dá, e pelo testemunho para que nós Simples e prático. Chega na sua casa sem Morosini e Luiz Felipe
negros continuemos firmes, esperançosos e pagar nada. Stevanim; Moniqui Frazão
e Rodrigo Reis (estágio
principalmente ativos na caminhada. Lucilene Aleixo, via Instagram supervisionado)
Robélia Silva, Andaraí, BA
Arte
RUGA NA TESTA Felipe Plauska
É sempre muito abrangente afirmar “a saída Eu me identifiquei muito com o texto
para o negro é a luta”. Sim, precisamos de “Ruga na testa”, de Maíra Valério (Radis DOCUMENTAÇÃO
Jorge Ricardo Pereira
terras, mas as terras permitiram a sobre- 206). De uns tempos pra cá tenho me in-
e Eduardo de Oliveira
posição do homem ao homem e tivemos comodado bastante com essa marca, que (fotografia)
um processo de humilhação, crueldade e acredito ter herdado do meu pai. Ando
ADMINISTRAÇÃO
passividade. bastante de “cara fechada” como ele,
Fábio Lucas e Natalia
Rodolfo Abreu, Rio de Janeiro, RJ apesar de gostar bastante de rir também. Calzavara
Wesley Vitiritti, São Paulo, SP
Que entrevista encorajadora!
Ruberval Silva, Rio de Janeiro, RJ Gostei do texto! “Percebo, então, que mi-
nha ruga na testa não é necessariamente
Belo depoimento! Com muita clareza, a questão... O envelhecer é intrínseco ao
objetividade consciente desta PHD negra. nascer e nossas marcas são as memórias ASSINATURAS
Agir para mudar! de nossas experiências”. Assinatura grátis (sujeita a
Iracu de Souza Ferreira, Porto Alegre, RS Mírian Dos Santos Pereira, Rio de Janeiro, RJ ampliação) Periodicidade
mensal Impressão Rotaplan
Tiragem 119.700 exemplares
As provocações trazidas são um chama- PACIENTE FAVORITO
mento à reação coletiva contra o racismo! Lendo o texto “Meu paciente favorito”, USO DA INFORMAÇÃO
Vera Lúcia Santana Araújo, Brasília, DF de Fernando Tenório (Radis 204) fiquei Textos po dem ser
pensando que enquanto muitos adoecem reproduzidos, citada
a fonte original.
O povo negro tem que se unir, se respeitar, porque necessitam de pouco para pagar
se amar e lutar. as contas e viver com dignidade, poucos
Josefina Jesus Agostinho, Nova Granada, SP adoecem porque têm sobrando e querem
mais. Mas nesse meio que não é o côncavo
Maravilha! É preciso atitude e assumir a e o convexo, tem singularidades, subjeti-
negritude pra ser muito mais Brasil!! (Poeta vidades, complexidade que vão além da
Luiz Carlos da Vila). nossa vã filosofia.
Vando Diniz, Rio de Janeiro, RJ Noélia Barboza Lira de Almeida,
no site da Radis
REPRODUÇÃO
modelo urbanístico e ambiental, como afir-
mou Nabil Bonduki, professor da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo (USP) e relator do Plano Diretor
da capital paulista, em artigo na Folha de S.
Paulo (10/2). “Os eventos extremos gerados
pelas mudanças climáticas vieram para ficar
e serão cada vez mais contundentes. O
governo não pode mais continuar negligen-
Representatividade ciando essa questão”, ressaltou.
Uma combinação de descaso do poder
na cabeça público com a política ambiental, em que se
mostra a ausência de medidas capazes de
garotinha entra em desespero porque não consegue arrumar o mitigar os efeitos do aquecimento global,
A cabelo crespo da maneira como sua mãe costumava fazê-lo. É a
vez do pai aprender a lidar com potes de cremes, elásticos, fitas colo-
e crescimento das cidades sem respeitar o
meio físico, com solo impermeabilizado e
ridas, pentes e escovas para ajudar a filha com o penteado. Esse é o cada vez menos áreas verdes, leva ao cenário
mote de “Hair Love”, ganhador do Oscar de melhor curta-metragem visto em São Paulo no início de fevereiro, de
de animação na cerimônia de 2020. Com pouco mais de 6 minutos de acordo com o urbanista. Para Silvia Passarelli,
duração, o filme tem uma força arrebatadora e foi uma das premia- professora de Engenharia Ambiental e
ções mais comentadas da noite de entrega do prêmio em Los Angeles Urbana da Universidade Federal do ABC
(9/2) por tratar de representatividade e autoestima de forma delicada, (UFABC), a justificativa dos governos de
potente e bem-humorada ao mesmo tempo. atribuir o cenário de caos à chuva excessiva
“Queremos ter mais representatividade na animação. Precisamos não é válida, como afirmou ao Nexo (10/2).
normalizar o cabelo negro”, disse a produtora Karen Rupert Toliver, que “Não há nenhuma ação de redução de da-
subiu ao palco com o diretor do curta Matthew A. Cherry. Ele aproveitou nos. O que está sendo feito para melhorar
o espaço para fazer campanha por uma lei que pune a discriminação as condições dos rios?”, questiona.
contra o cabelo afro e que já entrou em vigor em alguns lugares dos Em Belo Horizonte, janeiro foi o mês
Estados Unidos. A estatueta concedida a “Hair Love” também fez lem- mais chuvoso em 100 anos: as enchentes
brar a ausência de negros no Oscar deste ano. Como apontou o site destruíram parte da cidade e provocaram a
Alma Preta (10/2), apenas uma pessoa negra foi indicada aos prêmios morte de 55 pessoas em 6 dias. O Ministério
de atuação — Cynthia Erivo, protagonista de “Harriet”, história de uma Público de Minas Gerais (MPMG) manifestou
ex-escravizada abolicionista. preocupação com os municípios mineiros e
O site recordou ainda que a cerimônia de 2019 havia feito história capixabas por onde passam os rios Doce e
no combate à desigualdade racial com o maior número de prêmios já Paraopeba, que foram atingidos respecti-
entregues a profissionais negros. No total, sete estatuetas: Regina King vamente pelos rompimentos das barragens
(atriz coadjuvante por “Se a rua Beale falasse”), Mahershala Ali (ator da Samarco, em 2015, e da Vale, em 2019.
coadjuvante por “Green Book: O Guia”), Peter Ramsey (animação por O depósito dos rejeitos de mineração no
“Homem-Aranha no Aranhaverso”) e Kevin Willmott (roteiro adaptado leito e nas margens dos rios potencializou a
por “Infiltrado na Klan”, filme do diretor negro Spike Lee, que também tragédia provocada pelas enchentes: imóveis
estava concorrendo a melhor diretor no ano passado). Segundo levan- ficaram alagados em cidades em Minas e
tamento do portal Adoro Cinema, ao longo de toda a história do Oscar, no Espírito Santo banhadas pelo rio Doce.
profissionais negros levaram apenas 44 estatuetas, ou seja, menos de O MP cobra medidas para que não ocorram
2% dos troféus entregues. Assista ao belíssimo curta-metragem “Hair novos impactos produzidos pelos rejeitos
Love” premiado este ano aqui: https://bit.ly/37mbgxu dispersos no ambiente, como noticiou a
Agência Brasil (4/2).
PEXELS
CÂNCER:
625 MIL NOVOS
CASOS POR ANO
Números destacam perigo da obesidade e importância
do diagnóstico precoce na atenção básica
ADRIANO DE LAVOR
Instituto Nacional do Câncer (Inca) divulgou Hospitalares de Câncer (RHC) e do Sistema de Informações
contar o câncer de pele não melanoma, os mais incidentes “A atenção básica é uma das chaves para o controle do
serão mama (29,7%), cólon e reto (9,2%), colo do útero câncer”, disse Liz, explicando que os profissionais devem
(7,4%), pulmão (5,6%) e tireoide (5,4%). A alta incidência estar capacitados para, pelo menos, suspeitar de casos pos-
do câncer de cólon e reto (também conhecidos como cân- síveis e pedir os primeiros exames. Ela argumentou que nem
cer no intestino), em ambos os sexos, chamou atenção dos todos os tipos podem ser detectados por exames preventi-
pesquisadores. Os tipos de câncer relacionados a estilos de vos, como colo do útero e intestino grosso, e que por isso
vida pouco saudáveis passam a compor o perfil dos mais é importante conhecer os sinais de alerta para que tão logo
incidentes, comentou com a Radis a médica Liz Almeida, seja diagnosticado, o usuário inicie o tratamento. Segundo
chefe da Coordenação de Prevenção e Vigilância do Inca. ela, a medida é essencial para o tratamento do câncer, já que
A pesquisadora frisou que neste caso a expressão é mais efetivo iniciar as intervenções adequadas a cada caso,
“estilos de vida” não é apenas sinônimo de “escolhas como cirurgia, braquiterapia, radioterapia e quimioterapia,
individuais”, mas inclui os contextos socioculturais e econô- logo após o diagnóstico. “O mais importante para o controle
micos que moldam comportamentos não saudáveis como do câncer é a garantia do fluxo contínuo do paciente no
fumar, consumir bebidas alcoólicas, não praticar atividade sistema, desde o diagnóstico até o tratamento”, avaliou.
física e manter dieta pobre em frutas e vegetais. Isso inclui A pesquisadora destacou a importância dos sistemas de
o consumo de alimentos extremamente calóricos e de informação do SUS, que garantem a qualidade da informa-
baixa qualidade que favorecem a obesidade e também as ção coletada pelo relatório, o que permite estimativas mais
condições de vida que estimulam o sedentarismo entre as precisas e, consequentemente, ações melhor planejadas. As
pessoas, observou. Liz citou as condições desfavoráveis à informações atuais, segundo ela, resultam de ferramentas
aquisição de uma dieta saudável, e por outro lado, à prá- mais sofisticadas de análise que, graças à certa “regulari-
tica de atividade física, como exemplo. Ela salientou que, dade” no comportamento histórico da doença (em termos
para optar pelo uso da bicicleta, o cidadão não depende numéricos) e no acúmulo de informações ao longo dos anos
apenas da decisão individual, mas também de condições possibilitam obter melhores indicadores. “As séries histó-
estruturais, como a existência de ciclovias e de segurança ricas nos permitem utilizar modelos preditivos”, explicou.
para trafegar nas mesmas, o que é da governabilidade do Liz também ressaltou a importância da comunicação
poder público. no controle da doença. “Na verdade, tudo começa com
Os números — que podem ser consultados por neo- a oferta de informação para o indivíduo, que entre um
plasias, regiões, estados e capitais — contribuem não so- exame preventivo e outro, também pode perceber algum
mente para que os cidadãos despertem para hábitos menos sinal de alerta”, analisou, lembrando que estes podem
nocivos à saúde, mas também para que gestores possam se manifestar por meio de uma tosse que não passa, um
planejar espaços urbanos mais saudáveis e desenvolver a mal-estar no estômago que não alivia ou um sinal na pele
rede de saúde com uma estrutura mínima para a prevenção que mudou de cor, entre outros. “Presta-se mais atenção
de novos casos e a assistência de pessoas diagnosticadas, hoje nas mensagens que chegam pelo celular do que nos
reporta a pesquisadora do Inca. “Isso é muito importante avisos que o corpo dá”, advertiu, lembrando que, mesmo
para que o usuário não perca tempo para iniciar a investi- sabendo que na maioria das vezes a suspeita se trata de
gação da doença e ir até o fim do tratamento”, destacou, uma condição benigna, não se deve esperar. “Na dúvida,
advertindo para a necessidade de capacitação do pessoal vale conferir”, recomendou. Acesse a Estimativa 2020 em
que trabalha na porta de entrada do sistema. https://www.inca.gov.br/estimativa
TECNOLOGIA A
SERVIÇO DA SAÚDE
Já estão em fase de desenvolvimento protótipos
premiados no Hackathon Fiocruz
MONIQUI FRAZÃO
ecnologia a serviço da saúde pública e do SUS. Já Entre os desafios propostos em 2019 que resultaram nos
ALERTA
GLOBAL NOVO CORONAVÍRUS É A SEXTA EMERGÊNCIA EM
SAÚDE PÚBLICA DE IMPORTÂNCIA
INTERNACIONAL DECLARADA PELA OMS
BRUNO DOMINGUEZ
Q
uando a Organização Mundial da Saúde declarou a epidemia do novo coronavírus uma emergência de saúde
pública de importância internacional, em 30 de janeiro, estava acendendo seu mais forte alerta. Até então, os
casos confirmados eram 7.834, desde 31 de dezembro de 2019, data das primeiras notificações de quadros
inexplicados de pneumonia na cidade de Wuhan, na província chinesa de Hubei. Três dias antes, a OMS falava
em “risco alto” para o mundo e “muito alto” para a região — mas não em emergência.
Para a organização, emergência de saúde pública de importância internacional é “um evento extraordinário” que
“constitui um risco de saúde pública para outro Estado por meio da propagação internacional de doenças” e por “poten-
cialmente requerer uma resposta internacional coordenada”, como define no Regulamento Sanitário Internacional (RSI)
— instrumento jurídico aprovado em 2005 por 196 países justamente para ocasiões como essa, em vigor desde 2007.
OMS, 17/2
MAR 2020 | n.210 RADIS 15
“Um comitê de especialistas faz uma avaliação epidemio- na China. Outros 794 se espalhavam por 25 países. O Brasil
lógica do evento e recomenda ou não a designação de emer- seguia sem registro da doença, depois de descartar 45 sus-
gência internacional, com base em critérios como gravidade, peitas — 3 casos ainda eram investigados.
possibilidade de expansão e necessidade de coordenação em
nível global para garantir o controle da ameaça”, explica à
OUTRAS EMERGÊNCIAS
Radis Jarbas Barbosa, diretor adjunto da Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas), escritório regional da OMS para Esta é a sexta vez que a OMS decreta emergência de
as Américas. saúde pública internacional. A primeira, em 2009, foi devido
“No contexto do novo coronavírus, o comitê se reuniu à pandemia de gripe provocada pelo vírus H1N1, que estava
uma primeira vez e não considerou que havia elementos restrito aos suínos e por uma mutação começou a infectar
suficientes para essa recomendação. Havia gravidade, por se humanos no México, antes de se espalhar. Pelos dados oficiais
tratar de um vírus novo, mas os casos estavam ainda muito da época, foram 18,5 mil mortes no mundo (mas que teriam
localizados na China”, observa Barbosa, que foi diretor-pre- totalizado 200 mil segundo revisões posteriores), sendo 2.060
sidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), delas no Brasil. Em 2014, a poliomielite — doença infecciosa
secretário de Vigilância em Saúde e secretário de Ciência, gerada por um vírus que invade o sistema nervoso e pode
Tecnologia e Suprimentos Estratégicos do Ministério da Saúde. causar paralisia total — saiu dos três países em que era en-
O que mudou foi a ocorrência de infecções em pessoas dêmica (Paquistão, Afeganistão e Nigéria) depois de ataques
que não viajaram para o território chinês — oito casos de contra campanhas de vacinação, atingindo Camarões, Guiné
transmissão de humano para humano na Alemanha, no Equatorial, Etiópia, Iraque, Israel, Somália e Síria.
Japão, no Vietnã e nos Estados Unidos. “O principal motivo Em 2016, a epidemia de ebola (febre hemorrágica
dessa declaração não diz respeito ao que está acontecendo na transmitida por contato próximo com pessoas ou animais
China, mas o que está acontecendo em outros países. Nossa infectados, incluindo chimpanzés, morcegos frugívoros e
maior preocupação é o potencial do vírus de se espalhar por antílopes da floresta), detectada na África Ocidental em
lugares com sistemas de saúde mais fracos e mal preparados março de 2014, foi decretada emergência, quando já havia
para lidar com ele”, afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros perto de mil mortos na Guiné, Libéria, Serra Leoa e Nigéria.
Adhanom Ghebreyesus. “Devemos todos agir juntos agora No total, morreram mais de 11 mil. No mesmo ano, cerca de
para limitar a propagação”. 30 países relataram casos de bebês nascidos com microcefalia
Até 17 de fevereiro, data de fechamento desta edição, e outras malformações congênitas relacionadas com o vírus
foram confirmados 71.429 casos, dos quais 70.635 estavam zika, disseminado principalmente por picada de mosquito. Só
NOTIFICAÇÃO OBRIGATÓRIA
Um ponto de dúvida é quanto tempo o governo chinês
demorou para admitir a gravidade do quadro de pneumonia
de origem desconhecida. O primeiro alerta foi emitido à
OMS em 31 de dezembro de 2019, cerca de duas semanas
depois do aparecimento dos primeiros casos. “O que vemos
em situações como essa é a dificuldade das autoridades de
JÉRÉMY STENUIT/UNSPLASH
Os sintomas mais comuns são febre, tosse e dificuldade de atendê-lo causa um estrago, infectando profissionais e outros
respirar. Já há diversos trabalhos científicos publicados desde pacientes”, diz, a partir de relatos da China. Daí a importância
o início da epidemia, mostrando a velocidade da resposta da de haver protocolos, treinamento, unidades especializadas
ciência. Os principais destacam que o covid predomina na atuando no início de uma epidemia — caso do INI. “Já temos
faixa etária de 45 anos a 60 anos, e quase não aparece na experiência em relação ao ebola, em que nossa unidade era
população abaixo dos 20 anos. “Provavelmente, isso se deve hospital de referência para todo o Brasil, em que seguimos
aos casos mais graves, aqueles que procuram o sistema”. normas ainda mais rígidas de proteção individual e precisamos
Quanto à transmissão, presume-se que acontece apenas de equipamentos mais caros”.
por gotícula — ou seja, uma pessoa tosse, fala ou expectora No Brasil, cada estado tem ao menos uma unidade de
e em contato próximo com outra passa o vírus. As máscaras referência do SUS preparada para receber casos; e, na cir-
descartáveis viraram símbolo da epidemia. Em muitos lugares, cunstância de a epidemia se espalhar, outras também terão
mesmo alguns que sequer registraram casos, o produto se es- que atuar. A contenção caberá ao INI; ou seja, o papel de
gotou. Estevão, no entanto, não recomenda a máscara como identificar, isolar e controlar a mortalidade dos primeiros
item de proteção individual. “Em geral, ela é mal usada. Há casos. “Passamos por treinamento constante para saber
quem a tire para tossir, por exemplo, ou use por um tempo onde o paciente vai ser recebido, a máscara que será usada,
longo demais, quando já está molhada e sem capacidade de a equipe que vai atendê-lo, qual o caminho que fará dentro
proteger”. Segundo o infectologista, a melhor maneira de se do hospital. Tudo isso tem que estar escrito e treinado, ou se
prevenir de qualquer tipo de resfriado é lavar as mãos. “A perde um tempo preciso ‘batendo cabeça’”.
lavagem das mãos é fundamental em qualquer epidemia e
em qualquer época”, aponta. “O álcool gel pode ser usado,
mas lavar as mãos com água e sabão já é excelente”.
“A ameaça de pandemia não se concretizou, mas também Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde
não está descartada, porque ainda desconhecemos o padrão https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/
de transmissão do novo coronavírus”, avalia. Estevão explica janeiro/23/Boletim_epidemiologico_SVS_04.pdf
que em toda epidemia os casos fatais são a ponta da pirâmide,
os que mais aparecem, mas o vírus se dissemina pela base Regulamento Sanitário Internacional
da pirâmide, pelos que tem infecção leve e sequer procuram https://www.who.int/ihr/publications/9789241580496/en/
o sistema de saúde. “Nos casos severos, os pacientes vão
aos serviços e podem ser diagnosticados, isolados e ter seus Especial da Agência Fiocruz
contatos rastreados. Os casos médios ou assintomáticos não https://portal.fiocruz.br/coronavirus
chegam até a rede e não recebem o diagnóstico, podendo
espalhar o vírus para seus contatos”. Acervo da Biblioteca de Manguinhos
A preparação, para ele, é chave. “Um paciente com http://www.fiocruz.br/bibmang/cgi/cgilua.exe/sys/start.
coronavírus que chegue a um hospital despreparado para htm?tpl=section_BOLETIMN124.htm
DIAGNÓSTICO EM REDE
O Brasil repatriou 34 pessoas que estavam em Wuhan, na
China, quando explodiram os casos do novo coronavírus.
Eles e a equipe que atuou na chamada Operação Regresso
referência regionais no Pará e em São Paulo, respectiva-
mente, para o diagnóstico laboratorial do patógeno. “O
fato de já existir uma rede dentro do SUS que trabalha
estavam desde 9 de fevereiro em quarentena em Anápolis, com vírus respiratórios possibilitou a disseminação do
Goiás. Todos os primeiros 58 exames para identificação do conhecimento com rapidez seguindo metodologia única”,
novo coronavírus, a partir de saliva e secreção nasal, deram ressalta Fernando.
negativo. A Rede Nacional de Alerta e Resposta às Emergências
Os procedimentos para o diagnóstico laboratorial no em Saúde Pública conta com 54 Centros de Informações
Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) de Goiás foram Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS) em todo o
implementados e supervisionados pela equipe do Laboratório Brasil, com representações em 26 estados, um no Distrito
de Vírus Respiratório e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz Federal, em todas as 26 capitais, e no município de Foz
(IOC/Fiocruz), referência nacional para vírus respiratórios junto do Iguaçu (PR), integrados por tecnologia de informação
ao Ministério da Saúde. e comunicação que permite a resposta coordenada.
“Assim que os primeiros casos foram notificados na China, Também houve coordenação com profissionais de
nossa equipe se mobilizou para se preparar para a possibilida- outros países da região: especialistas de Argentina, Bolívia,
de de identificar o novo vírus no país, inclusive durante a noite Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e
e os fins de semana”, conta o virologista Fernando do Couto Uruguai estiveram no Laboratório de Vírus Respiratório e
Motta, chefe substituto do laboratório, que integra há mais do Sarampo do IOC, em 6 e 7 de fevereiro, para se capa-
de 60 anos a rede da OMS de centros nacionais de Influenza citarem quanto a vigilância laboratorial, protocolo para o
e desempenhou papel estratégico em outras emergências de diagnóstico do novo coronavírus, recomendações sobre
saúde pública, como nos surtos de Sars, em 2002 e 2003, de biossegurança e transporte de amostras.
influenza A (H1N1), em 2009, e de ebola, em 2015. “O que estamos fazendo aqui é um exemplo de
“Nos primeiros três casos suspeitos, adaptamos um pro- como se responde à uma emergência: juntos”, disse Jairo
tocolo para descartar casos por diagnóstico diferencial, mais Méndez, assessor regional para Doenças Virais da Opas.
artesanal. A partir de 29 de janeiro, quando a Opas repassou Jarbas Barbosa, também da Opas, explica que, nessas situ-
insumos específicos para diagnóstico por RT-PCR em tempo ações, a coordenação da resposta deve ser regionalizada.
real do novo coronavírus, capaz de detectar o genoma viral, “Nosso papel é ter diálogo técnico com os ministérios da
conseguimos dar mais celeridade ao processo”. Saúde, abarcando desde o treinamento de laboratórios
Coube ao laboratório capacitar profissionais do Instituto quanto da comunicação adequada para a população evitar
Evandro Chagas e do Instituto Adolfo Lutz, serviços de pânico, incompreensões, preconceito e xenofobia”.
SAÚDE
EM VÁRIAS
DIMENSÕES
Congresso discute inserção de práticas integrativas
e complementares no SUS,
evidências científicas e formação profissional
ELISA BATALHA
JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
e é importante fomentar isso, exatamente nos momentos dentes] e trabalhos sobre auriculoterapia para tratar a dor em
políticos e sociais mais conturbados, quando as pessoas mais pacientes de chicungunya. A farmacêutica Carla Holandino,
precisam. As PICS atendem a uma necessidade, têm uma po- coordenadora do LabPICS da UFRJ, mostrou no Congresso em
tência de vida que as pessoas estão buscando”, explicou ela. Sergipe que o Brasil é um dos líderes mundiais em pesquisa
A política determina diretrizes gerais para a incorpo- básica em homeopatia, e falou dos diferentes tipos de estudos
ração das práticas nos serviços, mas compete ao gestor que podem se desenvolver para avaliar os resultados das PICS
municipal elaborar normas para inserção da PNPIC na rede na saúde das pessoas.
municipal de saúde. Os recursos para as PICS integram o Esses estudos estão disponíveis para consultas, e divulgá-
Piso da Atenção Básica (PAB) de cada município, podendo o -los é também o objetivo do ObservaPICS, informa Islândia.
gestor local aplicá-los de acordo com sua prioridade. Alguns Sediado na Fiocruz Pernambuco, o observatório pretende, de
tratamentos específicos, como acupuntura, recebem outro acordo com a coordenadora, articular e sistematizar pesqui-
tipo de financiamento, que compõe o bloco de média e alta sa e política pública. No site (ver link no Saiba Mais) há um
complexidade. Estados e municípios também podem instituir repositório e acesso aos bancos de dados existentes sobre
sua própria política, considerando suas necessidades locais, o tema. “Fizemos um levantamento de todos os grupos de
sua rede e processos de trabalho. pesquisa que trabalham com PICs, que está disponível para
Levando em conta a atenção básica e os serviços de download”, explicou à Radis.
média e alta complexidade, existem atualmente 9.350
estabelecimentos de saúde no país, que ofertam 56% dos
CAPACITAÇÃO E PRECONCEITO
atendimentos individuais e coletivos em Práticas Integrativas e
Complementares nos municípios brasileiros, compondo 8.239 A formação profissional no campo das PICS é uma preocu-
(19%) estabelecimentos na atenção básica que oferecem pação que apareceu em diferentes momentos do Congresso.
PICS, distribuídos em 3.173 municípios. Islândia registrou que os profissionais de saúde e de outras
áreas atualmente investem majoritariamente de seus próprios
bolsos em suas formações. “Não existe fomento porque não
EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS
existem recursos indutores. Mesmo sem recursos indutores,
Estabelecidas as bases para a inserção das práticas, os me chama a atenção que os profissionais da Saúde invistam
desafios atuais são encontrar maneiras de consolidar e au- em sua formação ainda que sem apoio governamental”,
mentar a produção de conhecimento científico. Os resultados declarou.
a serem observados estão relacionados tanto à eficácia e à Para ela, isso se deve aos resultados visíveis das práticas.
segurança das práticas, avaliadas nos moldes tradicionais, Nelson Filice apontou que essa é a principal razão para o fato
como aqueles que registram a percepção do usuário sobre de os médicos buscarem aprender práticas menos conven-
sua própria qualidade de vida. cionais. “Havia um estereótipo do profissional médico que
Entre eles, há, por exemplo, revisões sistemáticas sobre só queria ganhar dinheiro, ter consultórios privados. Diziam
o uso da meditação para redução de risco cardiovascular que eles iam para essas práticas por motivos financeiros. Isso
e melhora em casos de depressão, estudos que avaliam o me incomodava, eu imaginava que não tem dinheiro que
uso de homeopatia no tratamento do bruxismo [ranger de compense o profissional ficar fazendo regularmente aquilo
em que não acredita. Observei que, na realidade, eles falavam Organização Mundial da Saúde (OMS), que formou grupos
de um esgotamento do modelo de cuidado, e buscavam de trabalho para definir critérios mínimos de formação em
outras formas de cuidar”, contou ele à reportagem da Radis. PICS. O texto da carta reforça que “é importante que os cursos
“A Constituição diz que o exercício profissional é livre ofertados estejam pautados no compromisso com a saúde da
desde que siga a lei e cabe ao Ministério da Educação esta- população, e não apenas na aferição de lucros”.
belecer as diretrizes dos cursos de formação”, afirmou Daniel Islândia questionou a força do preconceito contra as
Amado, na mesa que discutia regulamentação e acreditação. PICS entre profissionais de saúde. “O preconceito não vem
Ele salientou que as PICS são práticas de cuidado e não de quem usa nem de quem faz. Existe uma falácia de que
práticas de cura. “Gostaria de lembrar que curandeirismo é os médicos têm preconceito com as PICS. Não é possível
crime”, alertou, afirmando ser contrário ao que chamou de generalizar”, afirmou. Ela observa que existem instituições e
“hiper-regulamentação”, que segundo ele, “enrijece e não conselhos que demonstram algum grau de preconceito, mas
permite criar o novo”. argumenta que os médicos de família, por exemplo, têm em
Enquanto a fala do representante do governo apontava sua própria associação um grupo de trabalho que estuda as
para uma maior liberalização do exercício profissional, mui- PICS. “Dentro da Enfermagem há também vários profissionais
tos participantes e integrantes das redes de pesquisadores que atuam em PICS. Eu identifiquei 178 grupos de pesquisa-
e profissionais alertavam para o perigo representado pelo dores nos diretórios do CNPq. Então não se pode generalizar
surgimento de cursos à distância, na esteira do aumento que há preconceito, e quando há, é totalmente alimentado
da demanda. Preocupados com a qualidade do ensino, os por uma visão positivista que já é superada”, defendeu.
participantes do Congresso produziram a “Carta de Lagarto”,
documento com recomendações aos Ministérios da Saúde e
PRÁTICAS TRADICIONAIS
da Educação e aos próprios profissionais da área.
O documento, assinado pela Rede de Atores Sociais Sem o acesso à terra não há conexão com a natureza,
em PICS (RedePICS Brasil), Consórcio Acadêmico Brasileiro ensinou José Bonifácio Baniwa, líder de um dos 23 povos que
de Saúde Integrativa, ObservaPICS, além do Grupo de vivem no Alto Rio Negro, no Amazonas. Ele fez a conferência
Trabalho de Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e principal do último dia do congresso, quando enfatizou a
Complementares da Abrasco, sugere “um processo democrá- importância da preservação do meio ambiente e das áreas
tico e participativo de construção de critérios mínimos para indígenas. “A medicina indígena não é complementar, ela é
formação na área, iniciando pelas práticas mais presentes no a principal, o SUS precisa respeitar nossa cultura”, defendeu.
SUS, com a participação de profissionais de saúde, praticantes A médica sanitarista e educadora popular Vera Dantas, que
de diferentes PICS (e suas associações) e instituições formado- atua no espaço Ekobé, na Universidade Estadual do Ceará
ras de profissionais de saúde (notadamente as universidades)”. (Uece), observou que há cuidados a se tomar na inserção de
Para o grupo, isso permitirá avaliar e fiscalizar a formação, práticas e saberes tradicionais no sistema público, e deve-se
principalmente os cursos na modalidade EAD, que “podem percorrer o caminho do diálogo.
ser mais informativos do que formativos”. Conforme lembra o “A meu ver, não é exatamente levando essas pessoas, que
grupo de organizações que assina a carta, uma fonte impor- estão realizando as práticas de maneira tradicional, nos terri-
tante de informação sobre o tema é a coordenação da área tórios e nos movimentos sociais, para fora do lugar onde elas
de Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas da atuam, onde elas têm todo um contexto, uma base cultural e
Esse paradigma não está posto ainda? A questão é como incorporar as práticas como política?
Acredito que nós temos o desafio de construir um novo E também na prática. Como validar ao mesmo tempo o co-
paradigma. Ele está posto em disputa. Ele está posto em nhecimento de uma raizeira e de uma médica. Essas são as
experimentação. Todos nós estamos tentando experimentar grandes questões em que a gente segue tentando avançar.
Foi criada a Política Nacional de Práticas Integrativas e As PICS são alvo de preconceito? De que forma?
Complementares em Saúde (PNPICs) em 2006. Ela foi criada Nós fizemos uma pesquisa sobre Medicina Baseada em
sem financiamento indutor. E desde que ela foi criada ela Evidências em que 48% dos entrevistados, alunos de medici-
só cresce. na, responderam que eram contra o ensino da homeopatia. Aí
a gente foi fazer uma entrevista aberta com eles. Aquele que
Como você avalia a ampliação da PNPICS, que aumenta respondeu que era contra porque acreditava que não tinha
o número de práticas incorporadas no sistema para um evidência científica, a entrevistadora interrompia. Então ela
total de 29? perguntava: “Mas quais são as evidências que você conhece
Essa é uma pergunta muito difícil. Implantou-se o que existia de que não existem evidências?” E não sabiam responder.
em maior frequência e uso na atenção primária no SUS. Essa “Mas você fez uma pesquisa? Uma busca?”, ela insistia. E aí
é a justificativa para a implantação. Foi feita uma consulta a resposta era “não, não conheço a literatura”. Isso caracte-
aos municípios para a implantação da política em 2006, e riza o paradoxo e demonstra exatamente o preconceito. O
naquele momento era fitoterapia, homeopatia, medicina preconceito é uma reprodução de um saber não investigado.
tradicional chinesa, acupuntura e medicina antroposófica.
Depois do PMAC teve-se evidência de que outras práticas Como o atual contexto de subfinanciamento do SUS
deveriam ser incluídas em 2017. Em 2018, outras 14 prá- interfere na consolidação da política de PICS e na incor-
ticas foram incluídas. A justificativa tem sido de que elas poração das práticas na assistência?
são as mais comuns já praticadas na atenção primária no Na medida em que se subfinancia o SUS, todas as práticas são
SUS. Esse crescimento ainda precisa de muita investigação, subfinanciadas. Na medida em que mudam os sistemas de
pesquisa, para a gente identificar onde está sendo feito, pagamento, a gente não sabe como vai ser feita a inserção
como está sendo feito, e todos esses elementos que dão dessas práticas nas equipes de saúde da família, nos Núcleos
mais crédito — ou descrédito — às práticas. É uma questão Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasfs-AB).
muito complexa. Se você levar em consideração que, no Há uma incerteza sobre os sistemas de pagamento no SUS e
Brasil, existem mais de duzentos povos indígenas, e cada a inserção dessas práticas nas equipes de Saúde da Família.
povo tem um conjunto de práticas de cuidado próprio, À medida que está mudando a estrutura organizacional
só aí nós temos mais de duzentas formas diferentes para dos serviços, a gente ainda não sabe exatamente o que vai
serem investigadas no Brasil. E tem o que vem da China, da acontecer. O que a gente já sabe é que o subfinanciamento
Índia, de outros povos da Europa, da América do Norte... causa danos ao Direito Constitucional que é o SUS. O SUS
São muitas práticas e decidir quais delas implantar em uma é a política que operacionaliza o direito constitucional da
política é difícil e causa muito debate. Mesmo as 29 que já universalidade. Quando a gente tem isso ameaçado todas
foram implantadas precisam de muito mais investigação. as outras práticas estão ameaçadas.
MEMÓRIA
PRESERVADA
Acervo de David Capistrano Filho, precursor do SUS,
é doado à Casa de Oswaldo Cruz
LISEANE MOROSINI
íder estudantil, médico, jornalista, autor e editor o que o possibilitou entender que a desigualdade é o
FELICIDADE E COMUNIDADE
criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),
em 1976, e da Revista Saúde em Debate, David foi ainda As marcas da atuação precursora de David
responsável por ações inovadoras na gestão de saúde Capistrano, seu pensamento crítico e a luta perma-
coletiva em Santos (SP), onde implementou intervenções nente por uma sociedade justa, foram relembradas
pioneiras em áreas diversas, como a prevenção ao HIV/aids, por meio de depoimentos de quem conviveu com ele,
a humanização na saúde mental e a reciclagem de lixo. como a psicóloga Adélia Benetti de Paula Capistrano,
O legado deste importante ator da reforma sanitá- filha do sanitarista, e os médicos Paulo Amarante,
ria em breve estará acessível a pesquisadores e demais pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas
interessados com a cessão do seu acervo para a Casa de em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp)
Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), unidade dedicada à preser- e Aparecida Linhares Pimenta, integrante do Conselho
vação da memória e às atividades de pesquisa, ensino, de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São
documentação e divulgação da história da saúde pública Paulo (Cosems–SP).
e das ciências biomédicas no Brasil. São documentos, Um dos pontos altos da homenagem foi a fala da
fotos, cartilhas e livros, ainda em fase de catalogação, que filha do sanitarista, que relembrou histórias pessoais e
podem revelar facetas ainda desconhecidas do sanitarista e revelou um pouco da intimidade com o pai. Para falar
iluminar e ajudar a pensar o futuro, como salientou Paulo dele, Adélia partiu de uma frase que estampava um pôs-
Elián, diretor da COC, na cerimônia que marcou a entrega ter que havia em sua casa e que, segundo ela, refletia o
do material, durante o Fórum Fiocruz de Memória, que pensamento e a prática de seu David: “Felicidade é viver
aconteceu no início de dezembro de 2019. em comunidade”. Segundo ela, falar sobre o pai é “falar
O acervo doado à COC revela aspectos da vida do mé- de redes de pessoas que conversam, se reúnem, que
dico, gestor, intelectual e dirigente político que permitirá não aceitam passivamente a manutenção da violência
que diversas gerações de pesquisadores, historiadores, das instituições públicas sobre o seu povo”.
sanitaristas e profissionais de diferentes áreas do conhe- Adélia revelou que, apesar de o pai ter morrido há
cimento se debrucem sobre sua história, possibilitando quase duas décadas, ela ainda sente sua presença por
a articulação entre memória e história. “Esse material é meio da voz e do afeto de seus companheiros de luta.
parte de uma trajetória coletiva que garante elementos “Convivi com ele 18 anos. Agora são 19 anos sem,
para a pesquisa e para o conhecimento desse importante mas todas as pessoas que eu encontro, em todos os
momento da nossa sociedade que foi a reforma sanitária”, lugares, falam dele”, disse emocionada, na mesa “David
ressaltou Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz. Ela Capistrano: luta e memória da reforma sanitária”.
destacou que David tinha uma visão ampla de cidadania, Em seu depoimento, ela também destacou como a
abrangência das políticas implementadas pelo pai se refle- importante para que superassem a perda. Adélia enfatizou
tiu em sua própria vida. “Estudei em escola municipal na a figura de David como um dos principais formuladores de
época em que ele era prefeito [de Santos, de 1993 a 1996]. programas que, tempos depois, viriam a ser implementados
Lembro que eu recebia cadernos que explicavam como como políticas públicas de saúde.
fazer reciclagem de lixo, que tinha ônibus de graça aos
domingos, escovação dos dentes na escola e que gostava
PRECURSOR DO SUS
das aulas de dança, teatro e música, do cinearte, e da ilha
de conveniência, um espaço destinado para adolescentes. Mediador da mesa, o jornalista Rogério Lannes, coor-
Esse espaço hoje é ocupado por um posto policial, o que denador do Programa Radis, destacou que as lembranças
já explica muita coisa”, destacou. e histórias de David Capistrano Filho revelam a extensão de
A filha de David também defendeu que a memória e uma prática sanitária humanista, voltada para o outro, e que
os feitos do pai servissem de estímulo para que seus segui- o definem como um “revolucionário”. “Ele dedicou a vida a
dores continuassem a luta por uma realidade mais justa. defender o povo brasileiro, sem deixar de lado o contraditório.
“Vamos contar as histórias dele, registrar, compartilhar, Ele era a favor de discutir as coisas claramente“, observou.
executar, avaliar, validar, discordar, mostrar que é possível, Colega de trabalho de David e também amiga da família,
mesmo um pouco amedrontados, continuar transformando a médica Aparecida Linhares Pimenta, atualmente secretária
este país, seja pelo SUS, pela assistência social, educação, municipal de Saúde de Poços de Caldas (MG), relembrou o
trabalho, cultura, economia, música, festa, onde der”, disse tempo em que conviveu com o sanitarista. Ela observou que o
Adélia. Para ela, não é mais possível “aceitarmos calados colega era incansável e motivador. “Era David quem colocava
a violência e o genocídio contra o nosso povo, que tem a mão na massa e aproveitava as oportunidades políticas.
cor, classe e sexo. Não dá para a gente reproduzir essa Ele tinha sentido de urgência para resolver os problemas da
violência”, afirmou. população. Trabalhar com ele era uma delícia e uma tensão
Ela ainda aproveitou para dividir com a plateia os mo- ao mesmo tempo”, brincou.
mentos difíceis vividos pela família com o desaparecimento Aparecida e Capistrano se conheceram na década de
[oficializado em 1995] de seu avô, durante o período 1970 e atuaram juntos nas cidades de Santos e Bauru (SP).
de ditadura militar, e como a atuação política do pai foi “Davi tinha uma capacidade enorme de integrar e agregar
RUÍNAS DO BRASIL
Para entender o Brasil, a jornalista e documentarista
Eliane Brum decidiu inverter o ponto de vista de
onde olhava os fatos. Era preciso ir para o centro
dos acontecimentos. E o centro não era Brasília, São
Paulo ou Rio de Janeiro. Em 2017, ela se mudou
de São Paulo para Altamira, no Pará — “epicentro
do impacto de Belo Monte, a mais violenta cidade
da Amazônia e a região mais atingida pelo desma-
tamento da floresta”, como explica em seu livro
“Brasil, construtor de ruínas — Um olhar sobre o
país, de Lula a Bolsonaro” (Arquipélago Editorial).
Para ela, a floresta passa a ser o centro do mundo
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em um planeta que vive em emergência climática.
Com base em artigos e reportagens produzidas em
duas décadas de jornalismo, Eliane analisa as con-
tradições vivenciadas pela sociedade brasileira, da
eleição de Lula aos cem dias do governo Bolsonaro.
As transformações geradas por um modelo de desenvolvimento capitalista e predatório deixa um rastro de destruição,
como se observa no exemplo da Usina Hidrelétrica de Belo Monte: mesmo com os impactos profundos no ambiente,
na saúde e na vida dos povos do Xingu, a obra já em 2019 corria o risco de ser considerada inviável. Para a jornalista,
o que acontece em Altamira é símbolo de um Brasil em ruínas.
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ÊXITO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA
A erradicação da poliomielite no Brasil é um caso de sucesso de ações integra-
das no setor saúde, que envolveram o reconhecimento da doença e estratégias
de vacinação e educação. Essa história é narrada no livro “Poliomielite no
Brasil” (Editora Fiocruz), organizado por João Baptista Risi Junior, especialista
em vigilância epidemiológica e ex-secretário nacional de Ações Básicas de
Saúde do Ministério da Saúde. A doença, que já era conhecida no Brasil
ESCRAVIDÃO PERSISTE desde o início do século 20, só chamou atenção da opinião pública quando
Milhares de trabalhadores brasileiros as epidemias atingiram as principais cidades do Brasil. Mas foi só a partir
são submetidos todos os anos a dos anos 1980 que as ações de vacinação potencializaram as chances de
condições desumanas de trabalho e controle e erradicação da doença, conhecida por sua principal sequela, a
impedidos de deixar o serviço, seja “paralisia infantil”.
por ameaças, dívidas ou cerceamento
de liberdade. O regime de trabalho
escravo persiste no Brasil do século 21. 7º CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE MENTAL
O livro “Escravidão Contemporânea” Organizado pela Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), o
(Ed. Contexto), organizado pelo jor- evento acontece no Recife, na Universidade Federal de Pernambuco
nalista Leonardo Sakamoto, diretor da (UFPE), entre 28 e 31 de julho de 2020. Com o tema “Desorganizando
ONG Repórter Brasil, mergulha nessa posso me organizar: Lutas, afetos e resistências antimanicomiais”, a
realidade com a análise de especialistas proposta é debater experiências de resistência construídas a partir dos
brasileiros e estrangeiros. O autor lem- saberes e práticas do cotidiano no contexto de crise da democracia e
bra que o sistema brasileiro de combate da reforma psiquiátrica brasileira e latino-americana.
ao trabalho escravo completa 25 anos Quando: 28 a 31 de julho de 2020
em 2020. Nesse período, mais de 54 Onde: Recife
mil pessoas foram resgatadas. Info: https://www.congressoabrasme.org/
vida está repleta de ponto final. Cristalizam-se situações e humanidade do outro e também aquela que nos habita,
A sujeitos no molde do confinamento. Ninguém parece poder
mudar e as coisas parecem não poder ganhar outras formas,
pois nessa relação de dominação reforçamos uma cultura
capacitista que controla e determina o que o outro é. Aí
dimensões e tamanhos. Se a dita polarização nos mostra que mora a questão, não enxergamos o outro como um ‘’está
as afirmações e o seus pontos finais não têm se traduzido em sendo’’, mas diante da lógica cristalizadora do ele/ela é
diálogos, esquecemos que é através das perguntas e da escuta assim, definimos que os resultados são frutos de uma
que criamos pontes e nos aproximamos de construir relações forma de ser única do sujeito no mundo. Simplificamos o
mais afetuosas, ou seja, de afetar propriamente uns aos outros. debate, justamente quando a conjuntura nos impele maior
Na educação escolar obviamente não é diferente. Os pontos complexificação dele.
finais são muitos. As dimensões do sucesso e do fracasso são Aprendemos basicamente por curiosidade e/ou necessi-
atribuídas aos sujeitos como mérito ou demérito próprio – o que dade. Não aprendemos apenas o que nos interessa e nem
se aplica a estudantes, famílias, professores, coordenadores... apenas o que o mundo nos sugere. Aprendemos se nos
Responsabilizamos indivíduos e negamos processos, afinal é relacionamos — tanto com o conhecimento em si, como
mais fácil encontrar supostos culpados do que se debruçar também com as pessoas que nos estimulam. Se realmente
profundamente na análise das situações. acreditamos que cada indivíduo é um e, portanto, possui
Em geral, se um estudante não aprendeu é porque ele seu tempo, suas maneiras de aprender, é difícil imaginar que
supostamente não deu conta, não se esforçou, ou pior, não é uma única abordagem didática e metodológica dê conta da
capaz... como se as dificuldades existentes fossem um atributo diversidade que a escola nos apresenta.
unilateral de ‘’su persona’’. Os mesmos pontos finais são co- É por isso que sinto falta das reticências nas escolas.
locados nas sentenças de nós professores – como se a culpa São elas que deixam a reflexão pairando. São elas que
pela má alfabetização, dificuldades básicas em matemática e permitem um silêncio genuíno ao invés da gritaria. São elas
construção de um pensamento científico fosse nossa, pois não que valorizam mais os processos do que a substância final.
estamos explicando direito... Precisamos de pontes e não de um único ponto.
Deixamos de elaborar perguntas que nos aproximariam de Sermos mais gerúndio e não infinitivo. Pelo menos
construir outros mundos: por que a escola, num sentido genera- com as reticências já são três caminhando.... Pensar uma
lista, está historicamente estruturada dessa maneira hierárquica, pedagogia das reticências é valorizar mais a construção e a
opressora, robotizadora, silenciadora e não de outra? O que isso desconstrução de estados do que o apego pelo resultado
tem a ver com o mundo capitalista-patriarcal-moderno-colonial em si. É estar e não meramente ser. É quebrar muros e não
que vivemos? No chão da escola, como as pessoas se sentem aprisionar. É construir alteridade e não familiaridade. É di-
no seu dia a dia? Felizes? Tristes? Angustiadas? Empolgadas? mensionar as facetas e não petrificar uma imagem.
Ávidas pelo conhecimento? Desestimuladas? Por que muitos Voltemos a necessidade de elaborar perguntas. Somos
estudantes não estão aprendendo os conteúdos lecionados? escolarizados a todo tempo a dar respostas em exercícios,
Ensinar e aprender são sinônimos? O que isso revela sobre a me- testes, reuniões e provas e não a questionar na mesma
todologia pedagógica e as relações que se constroem na escola? proporção, mesmo sendo as perguntas o catalisador da
Por que definimos que todos os estudantes devem apresentar transformação. Como fazer a escola ensinar que os sonhos
os mesmos resultados nos mesmos tempos? Qual é o momento podem ter vida? Como fazer a escola ser o espaço que
em que os profissionais da educação se debruçam sobre essas não nos responsabiliza e nos diagnostica quando não sabe
questões de maneira coletiva? O que acarreta na construção das lidar conosco? Como a escola pode ser o espaço que não
subjetividades dos atores escolares quando o suposto fracasso silencia, mas que valoriza o silêncio que emerge da escuta
está integralmente concentrado em suas costas? ativa? Como a escola nos potencializa e não nos cristaliza?
Parece ser um tempo em que mais do que nunca fazemos O ‘’como’’ parece ser o anfitrião de onde reside as re-
questão de reafirmar que o outro é diferente. Parecemos, mais ticências, pois com ele podemos admitir que não sabemos
uma vez, esquecer que quando criamos a categoria diferente, ou não temos uma única resposta. E, daí entendemos, que
também criamos a categoria normal, que bem define onde nos as reticências carregam como o vento o que não vemos ou
situamos. O diferente passa a ser não aquele que apresenta outro pegamos, porém sentimos. E é desse sentir que se emergem
ponto de vista, mas aquele que é inferior, mais limitado e não novas relações, novos mundos, novas escolas. É preciso
alcança as nossas perspectivas e expectativas. estar aberto a mutação que a educação nos sugere, caso
Se aprender é uma dimensão humana, quando dize- contrário, entenderemos que cristalizamos os sujeitos e
mos que alguém não é capaz de aprender, esvaziamos a situações, quando nós mesmos já estamos cristalizados.
■ Professor de Química da rede básica, coordenador geral do Projeto Construindo Saber, membro do coletivo [Re]
considere, criador do curso Amã - Desformação Docente, poeta e escritor