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Brasil no oitocentos
Organizadoras:
Gladys Sabina Ribeiro
Adriana Pereira Campos
Os estudiosos do século XIX no Ociden-
te defrontam-se com uma dimensão tem-
poral que se alarga emoldurada por duas
crises sistêmicas (c.1776-c.1822 e c.1870-
1918). No interior desse espaço/tempo,
os discursos e os imaginários políticos do
Ocidente gravitaram em torno daquilo que,
para muitos, foi uma realização épica, para
outros, uma quimera, e, para outros tan-
tos uma impossibilidade – o estado-nação,
difícil (e às vezes impossível) engenharia
que buscava fazer convergir para a esfera
da politica, sociedades caracterizadas por
desigualdades sociais, étnicas e culturais,
aglutinando-as em estados territoriais, go-
vernados por um centro politico único.
As práticas societárias e políticas desse
novo tempo traduzem-se, sobretudo, no
plano de uma cultura escrita, ao mesmo
tempo condição e resultado de um espaço
público que se expande e que se torna o
campo privilegiado da expressão da polí-
tica, das ideias e sentimentos compartilha-
dos e das identidades coletivas.
As historias reunidas nesse volume olham
para esse tempo a partir da experiência
histórica brasileira, tendo em conta a enor-
me diversidade das suas manifestações re-
gionais e a condição estruturante da escra-
vidão que veio a impregnar todas as suas
dimensões. Através de diferentes sendas
historiográficas, elas procuram iluminar os
modos pelos quais esse território, e as pes-
soas que nele viveram, se inseriram nes-
se processo de “grandes transformações”,
dentre as quais se conta a intensificação
dos ritmos de produção da vida material e
da mobilidade das pessoas ideias e artefa-
tos.
Ao fazê-lo, realizam, em sua plenitude, os
propósitos da Sociedade para o Estudo do
Oitocentos em seu primeiro Seminário In-
ternacional.
Organizadoras:
09 Prefácio
13 Economia
15 Capítulo 1 - Bruno Aidar (UNIFAL) A reforma do tesouro nacional e os liberais
moderados
39 Capítulo 2- Doralice Sátyrio Maia (UFPB) A ferrovia nas cidades bocas de Ser-
tão: alterações na morfologia urbana e no território brasileiro
57 Capítulo 3 - Aldieris Braz Amorim Caprini (IFES) Nos vales dos rios: o desen-
volvimento do sul da Província do Espírito Santo no século XIX
73 Livros e literatura
75 Capítulo 4 - Monique de Siqueira Gonçalves (UERJ) Entre livros e apólices: a
trajetória do clínico, lente e acadêmico Antonio Corrêa de Souza Costa
91 Capítulo 5 - Cesar Augusto Barcellos Guazzelli (UFRGS) Identidades regionais-
-provinciais na História e na Literatura
105 Capítulo 6 - Adriana Dusilek (UNESP) Crítica literária e ironia: Martins Guima-
rães no periódico carioca Semana Ilustrada (1860-1876)
123 Imprensa
125 Capítulo 7 - Marcelo Marcelo Cheche Galves (UEMA) “Dirigir e retificar a opi-
nião pública”: os primeiros anos da Tipografia Nacional do Maranhão
(1821-1823)
141 Capítulo 8 - Ariel Feldman (UFPA) Circularidade entre parlamento e imprensa:
um político pernambucano alinhando-se à diretriz regressista de reaber-
tura do tráfico negreiro (1837-1842)
211 Militares
213 Capítulo 12 - Rodrigo da Silva Goularte (UFF) Tensões políticas entre o Co-
mando das Armas e a Junta Provisória de Governo do Espírito Santo no
início da década de 1820
229 Capítulo 13 - José Miguel Arias Neto (UEL) Imprensa Militar, Guerra e transfe-
rência de tecnologia para a Marinha no Brasil Oitocentista
Prefácio
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1 Entre 2004 e 2010, os projetos Nação e cidania no Império: novos horizontes e Di-
mensões da cidadania no século XIX estiveram sob coordenação acadêmica de José
Murilo de Carvalho e coordenação executiva de Gladys Sabina Ribeiro. Entre 2011
e 2014, fez parceria com o REDES- UERJ, para a execução do projeto Dimensões e
fronteiras do Estado brasileiro no século XIX, proposto por Lúcia Maria Pereira das
Neves e com a coordenação acadêmica de José Murilo de Carvalho.
sociedade: “o processo de expansão quantitativa e qualitativa”2 que passavam
as universidades brasileiras e a necessidade de se criar um novo modelo de
integração que reunisse pesquisadores, professores, alunos de pós-graduação,
de graduação, projetos coletivos, linhas e grupos de pesquisa. Assim, o docu-
mento traçou como objetivo princial “servir de fórum de debates e represen-
tação dos diversos pesquisadores e grupos, nacionais e estrangeiros, compro-
metidos com a pesquisa, o ensino e a divulgação científica das histórias desse
longo século XIX - período que se estende desde meados do século XVIII até
1930, ou, para o caso brasileiro, desde o que se conhece como a crise do siste-
ma colonial até o final da chamada Primeira República”.
Ao seguir o modelo de outras sociedades científicas, a SEO procurou se
constituir como um espaço autônomo e integrador de iniciativas de reflexão
e análise sobre os diferentes recortes temáticos, objetos e abordagens sobre o
período. Constituiu-se “aberta a todas as vertentes interpretativas e de livre
associação, sem interferir nos processos internos e na autonomia dessas en-
tidades associadas” e tomou por norte acreditar na diversidade para poten-
cializar a “emergência de identidades e interesses comuns na relação com os
diferentes setores da sociedade, do Estado e do mundo acadêmico-científico”.
O caráter nacional e internacional da SEO levou à eleição de uma dire-
toria, conselho fiscal e científico plurais, que contemplou pesquisadores bra-
sileiros e internacionais de universidades diferentes. Com relação ao Brasil,
cuidou-se de que a gestão estivesse regionalmente representada.
Esse esforço resultou no I Seminário Internacional da SEO: Brasil no sé-
culo XIX, que aconteceu entre os dias 25 e 29 de agosto, nas dependências do
Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo. Ao lon-
go desses três dias foram apresentadas 209 comunicações e 86 foram enviadas
para avaliação de um Comitê Editorial e de um Comitê Assessor, coordenados
por Adriana Pereira Campos. Desses, 77 trabalhos obtiveram pareceres favo-
ráveis e foram publicados na forma de Anais eletrônicos na página da SEO
< http://www.seo.uff.br/index.php/publicacoes/anais-do-seminario-interna-
cional>
Os treze artigos que compõem este livro foram selecionados entre essas
77 comunicações. Expressam novas perspectivas e novos horizontes de pes-
quisa e foram agrupados em cinco seções.
A primeira delas trata de aspectos econômicos e conjuga-os com posi-
ções e opções políticas. Mostra que a economia, a política e características cul-
Bruno Aidar1
dos juízes de paz, júri, Guarda Nacional, liberdade de imprensa e poder pro-
vincial. No tocante às questões fazendárias, houve avanços historiográficos
com relação à análise da repartição de rendas gerais e provinciais pela lei de
24 de outubro de 1832 e do Ato Adicional (Costa, 2005, p. 37-43; Dolhnikoff,
2005, p. 156-170 e p. 262-276; Miranda, 2009, p. 251-259; Oliveira, 2009, p.
332-348).
No entanto, talvez porque tenha um semblante aparentemente menos li-
beral do que a reforma militar e judiciária, talvez por ter sido obliterada nas
próprias obras sobre história fiscal, centradas na discussão da repartição das
receitas em 1832, os debates parlamentares sobre a reforma do Tesouro Na-
cional em 1830 e 1831 foram deixados à margem desses esforços. Sobre esse
assunto, há poucos trabalhos, presos, às vezes, a uma discussão que tende a re-
produzir friamente os textos legais (Rios, 1908; Buescu, 1984). Um estudo re-
cente aborda parcialmente a reforma, mas não apresenta a discussão política
da época sobre o tema, realizada antes da promulgação da lei (Barcelos, 2014).
Na investigação dessa reforma, ressalta-se a figura eminente de Bernardo
Pereira de Vasconcelos, um dos líderes dos liberais moderados na contestação
das medidas do governo. As pesquisas sobre os moderados e de sua atuação
no Parlamento têm sido reveladoras para a caracterização das feições específi-
cas do liberalismo brasileiro, bem como para a delimitação de diferentes dese-
nhos institucionais do Estado construídos desde a década de 1820, mormente
na questão da incorporação das elites provinciais e da realização de reformas
sociais (Costa, 1979, p. 109-126; Dolhnikoff, 2005, p. 48-65; Pereira, 2008).2
Capitaneados por Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga e
Diogo Feijó, os liberais moderados foram associados à defesa da monarquia
constitucional e do governo representativo, sem os excessos dos radicais com
tendências democráticas e sem as tendências absolutistas dos corcundas e dos
áulicos agarrados a D. Pedro I. Fruto da aliança entre grupos médios urbanos
e oligarquias excluídas das nomeações do governo e dos benefícios do Estado,
os liberais moderados possuíam bases no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São
Paulo, vínculos construídos muitas vezes pelos negócios de abastecimento da
Corte (Costa, 1979, p. 109-126; Lenharo, 1992; Basile, 2001; Needell, 2009).
2 A maior parte dos perfis biográficos dos representantes na Câmara dos Deputados
no período analisado nesse estudo podem ser consultados em Slemian (2006). De
igual interesse, também podem ser consultadas, de forma mais específica, as obras
sobre o marquês de Barbacena (Calógeras, 1982) e Bernardo Pereira de Vascon-
celos (Sousa, 1988; Carvalho, 1999, p. 9-34). Para uma caracterização geral dos
posicionamentos políticos na Câmara entre 1826 e 1831 consultar Pereira (2008).
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(art. 15). A Câmara dos Deputados possuía prioridade com relação à criação
de impostos (art. 36), o que excluía as pretensões dos Conselhos Gerais das
províncias quanto à matéria (art. 83). Por sua vez, o ordenamento da Fazenda
Nacional versava sobre três pontos principais: a criação do Tesouro Nacional,
as contribuições diretas e o orçamento anual. O artigo 170 indicava que:
A Receita, e despesa da Fazenda Nacional será encarregada a um Tri-
bunal, debaixo de nome de ‘Tesouro Nacional’ aonde em diversas Esta-
ções, devidamente estabelecidas por Lei, se regulará a sua administra-
ção, arrecadação e contabilidade, em recíproca correspondência com as
Tesourarias, e Autoridades das Províncias do Império.
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Para o imperador, “sem finanças e sem justiça não pode[ria] existir uma
nação”. Na fala de abertura de 1828, chamou novamente atenção para a ur-
gência dos dois temas. Embora a lei da dívida pública houvesse beneficiado
as finanças e o crédito público, faltavam ainda as providências legislativas que
harmonizassem os diferentes ramos da administração fazendária. Nas falas
de 1829 e 1830, o imperador tornou a repetir seu conselho aos deputados.
É interessante notar que nas sessões extraordinárias da assembleia, entre 8
de setembro e 30 de novembro de 1830, os temas financeiros aparecessem
com primazia na fala do imperador (embora sem mencionar diretamente a
reforma do Tesouro, já em discussão): a conclusão da lei do orçamento, a cir-
culação de papel-moeda e da moeda de cobre, a organização de um banco
nacional e a arrecadação dos dízimos (Brasil, 1878: parte II, aditamento, p. 4;
Brasil, 1876: parte II, aditamento, p. 7-8). Assim, apenas na segunda legisla-
tura (1830-33) o tema da reforma do Tesouro receberia o devido cuidado dos
representantes da nação. A grande quantidade de temas financeiros a serem
discutidos e uma possível oposição à concessão de meios fiscais ao imperador
pelos deputados, sobretudo após a experiência desastrosa da Cisplatina, são
hipóteses possíveis para se explicar o fato de que a reforma do Tesouro tenha
tomado corpo apenas em 1830.
Em 19 de julho de 1830, o marquês de Barbacena, na época ministro da
Fazenda, apresentou à Câmara dos Deputados uma proposta de projeto de
organização do Tesouro Nacional. Pelo que se depreende de uma discussão
posterior, realizada em 10 de agosto daquele ano, a autoria do projeto era em
parte da comissão da Fazenda para a reorganização do Tesouro, composta
pelos deputados Manuel Maria do Amaral, José Bernardino Batista Pereira
de Almeida e José da Costa Carvalho, e em parte do próprio ministro que
finalizou, com poucas modificações, o projeto da comissão. A proposta pas-
sou por três discussões na Câmara entre julho e outubro daquele ano, sendo
posteriormente discutida em quatro sessões do Senado em novembro de 1830
e julho de 1831.
O projeto original propunha a criação de um Tribunal do Tesouro Na-
cional composto por três membros nomeados pelo imperador: o presiden-
te, o inspetor-geral e o procurador fiscal. Apenas o presidente possuía voto
deliberativo, sendo os outros dois consultivos. Anexos ao tribunal, funcio-
nariam a secretaria, a contadoria de revisão, a tesouraria-geral e o cartório.
A secretaria seria chefiada pelo inspetor-geral, a contadoria de revisão pelo
contador-geral e a tesouraria-geral pelo tesoureiro-geral. As províncias te-
riam uma organização similar contando com um inspetor de Fazenda, um
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Quanto a este artigo, a única proposta apoiada foi a de Paula Sousa, que re-
duzia o ordenado anual do procurador fiscal, sendo as restantes rejeitadas.
Também foi aprovado o artigo aditivo que obrigava o ministro da Fazenda a
apresentar o quadro das finanças públicas do Rio de Janeiro até o final de abril
e das outras províncias quando chegassem ao Tesouro.
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de agosto de 1830, p. 428). Por outro lado, arguia que a existência do tribunal
reduziria os possíveis atritos entre o ministério da Fazenda e a assembleia no
caso de acusações ao ministro da Fazenda. Criticando a posição de Gervásio
Ferreira, tomava o judiciário, aliás projeto da pena de Vasconcelos, enquanto
modelo de tribunal independente do governo e exemplo a ser seguido na cria-
ção do Tribunal do Tesouro.
O deputado Paula Souza apontou que a nomeação dos empregados do
Tesouro Nacional cabia ao poder executivo e não à Assembleia Geral. Ade-
mais, segundo o deputado, não haveria a necessidade de criação de um Tribu-
nal do Tesouro, pois a própria Assembleia Geral poderia realizar a inspeção
direta, função que caberia aos Conselhos Gerais no plano provincial. Era da
opinião de que o tribunal, por ter seus empregados nomeados pelo governo,
não seria imparcial na censura às contas dos ministros. Para Paula Souza, a lei
que reformava o Tesouro não era “perfeita e boa”, mas necessária para aquela
ocasião, devendo-se ajustar anualmente o número de empregados e seus or-
denados.
Calmon, por sua vez, entendia que não cabia ao tribunal fiscalizar as con-
tas dos ministros, atributo da Assembleia Geral, apenas as contas das reparti-
ções subalternas do Tesouro. Além disso, as restrições da contadoria não al-
teravam a responsabilidade dos ministros. Ao Tribunal do Tesouro não cabia
a imposição de penas aos ministros, apenas facilitar a organização das con-
tas e facilitar sua aprovação pelo corpo legislativo. Ao legislativo cabia tomar
contas, mas não fiscalizar o poder executivo que era independente. Segundo
Calmon:
Senhor presidente, o poder executivo é poder independente e não pode
sofrer fiscalização do corpo legislativo, porque ao corpo legislativo
compete tomar contas ao poder executivo; em todas as nações este tri-
bunal de contas de Fazenda não impõe pena aos ministros: este tribu-
nal é uma espécie de fieira na qual devem ser preparadas e dispostas as
contas do ministério e facilitar sua aprovação, que o corpo legislativo
pode dar (APB-CD, sessão de 25 de agosto de 1830, p. 430).
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3 A reputação do barão não era das melhores a julgar pelos versos divulgados em pas-
quins da época: “Furta Azevedo no Paço,/ Targini rouba no Erário;/ E o povo aflito
carrega/ Pesada cruz ao calvário.”, “B. L. no Calvário/ Bom Ladrão;/ L. B. [Barão
de São Lourenço] no Erário/ Ladrão Bruto;/ Pois que faz?/Furta ao público”. Como
informa Marrocos, os planos de Nogueira da Gama não tinham aceitação devido à
influência poderosa do grupo ligado a Targini (Marrocos, 1934, p. 64 e p. 107).
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1829, a reclamação de que “as Juntas de Fazenda não obedecem, de que são
formigueiros de abusos, e que obrigam os ministros a marchar sobre terreno
fofo” (Cf. Costa, 2003, p. 190-191; Brasil, 1829, supl. 5, p. 8; Brasil, 1831, p.
12). As juntas vingavam-se dos conselhos, negando-lhes as sobras das rendas,
dizendo-lhes que estas não existiam devido às grandes dívidas. Também rea-
lizavam despesas extraordinárias à revelia dos direitos do Conselho da Presi-
dência. Dependendo da situação, também havia alianças entre as instituições,
como no caso da cunhagem de moeda de cobre na província de São Paulo
(Slemian, 2006, p. 193-194 e p. 212; Oliveira, 2009, p. 210-212).
Antes do projeto encaminhado pela comissão de Fazenda para a refor-
ma do Tesouro em 1830, há a notícia de um projeto de lei do deputado Luís
Cavalcanti apresentado na sessão de 22 de agosto de 1829. Cavalcanti propu-
nha a abolição das Juntas da Fazenda nas províncias, sendo sua administra-
ção incumbida aos presidentes de província. Os secretários auxiliariam no
expediente do despacho dos presidentes, assim como a contadoria e o procu-
rador da Fazenda nos casos competentes. A proposta mais ousada referia-se
à nomeação dos presidentes de província e seus secretários pelo ministério
da Fazenda. Na mesma sessão o projeto foi rejeitado, sem haver registro das
discussões. Além de conceder amplos poderes ao ministério da Fazenda, o
projeto continha o grave defeito de não propor forma alguma que substituísse
o trabalho de arrecadação e fiscalização das juntas.4
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petor. O deputado por Minas Gerais, José Antônio da Silva Maia, indicou que
a redação do projeto não era clara, mas deveria entender-se que a autoridade
responsável por amover os oficiais era o Tribunal do Tesouro.
Justamente o grande poder do Tribunal do Tesouro na nomeação dos
inspetores representava uma ameaça para as províncias. Lino Coutinho, até
então bastante calado, arguiu que o inspetor-geral do tribunal não iria tirar os
inspetores das próprias províncias, mas indicar aqueles pertencentes à “roda
de seus afilhados” na Corte. Os conselhos provinciais, no seu entender, eram
os representantes das províncias, assim como os deputados eram os represen-
tantes da nação. Promoviam o bem parcial para suas respectivas províncias,
enquanto os deputados fomentavam o bem geral. O deputado defendia vee-
mentemente que os inspetores fossem nomeados por indicação dos conselhos
provinciais:
Se nós formos a sujeitar as províncias sempre e sempre à Corte em tudo
e por tudo, não sei onde irá parar isto: é preciso não querer julgar das
coisas, para querer sujeitar a administração, e governança de provín-
cias tão longínquas da Corte de províncias que, para termos notícias, é
preciso um ano; querer sujeitar todas à corte do Rio de Janeiro, não sei
que sistema é este: quanto a mim é um sistema odioso, e eu me oponho
a que passe semelhante doutrina. Queria que cada um dos inspetores
fossem nomeados [sic] segundo a informação dos conselhos das pro-
víncias, porque eles é que estão mais ao fato de conhecerem os homens
mais capazes das suas províncias, para essa administração (APB-CD,
sessão de 16 de setembro de 1830, p. 521).
Assim, o deputado propôs uma emenda para que os inspetores das te-
sourarias fossem tirados da lista tríplice do conselho provincial e removíveis
por queixa formada pelo presidente em conselho. Buscava, desta forma, redu-
zir os amplos poderes do inspetor-geral, que com qualquer divergência com
os inspetores provinciais poderia suspendê-los por tempo indeterminado. O
presidente e o conselho provincial teriam mais informações a respeito dos
inspetores das tesourarias do que o inspetor-geral, defendia Lino Coutinho. A
despeito das queixas do deputado, a emenda foi rejeitada pela Câmara, sendo
que nenhum deputado apoiou a fala de Lino Coutinho.
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Considerações finais
Os debates sobre a reforma do Tesouro Nacional evidenciam alguns as-
pectos de um paradigma de administração do Estado proposto pelos liberais
moderados. Um Tribunal do Tesouro com membros independentes do gover-
no, críticas às “sinecuras” administrativas e defesa de um maior poder provin-
cial, no tocante aos empregos fazendários e às transferências de sobras, eram
os principais pontos defendidos por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Holan-
da Cavalcanti propôs que os presidentes de província fossem inspetores das
tesourarias e Lino Coutinho maior espaço dos Conselhos Gerais na indicação
dos inspetores das tesourarias provinciais. Miguel Calmon e Gervásio Pires
Ferreira apresentaram os principais contra-argumentos às críticas ao projeto,
indicando uma visão mais hierárquica, sem concessões ao poder provincial.
Na lei de 4 de outubro de 1831, nenhuma das críticas feitas por Vasconcelos,
Holanda Cavalcanti ou Lino Coutinho foi reconhecida como válida.
Ironicamente, foi durante a gestão de Vasconcelos no ministério da Fa-
zenda que a lei foi posta em execução, sendo suas críticas ao projeto com-
pletamente ignoradas até mesmo por seu principal biógrafo (Sousa, 1988, p.
95-98, 110-111). Assim, contra sua experiência parlamentar anterior, Vascon-
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Referências
Abreviaturas
APB-CD Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Deputados
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Ano da
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Nome Atual Nome da Vila Nome da Cidade elevação
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Nossa Senhora da
Sorocaba Sorocaba 1661 1821
Ponte de Sorocaba
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2 http://www3.uberlandia.mg.gov.br/cidade_cidade.php?id=429 (Acesso em 09 de
dezembro de 2008).
3 Texto escrito por Mariluci Melo Ferreira para subsidiar as escolas municipais
de Passo Fundo. http://www.pmpf.rs.gov.br/secao.php?p=1196&a=3&pm=158.
(Acesso em 08 de dezembro de 2008).
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Nos Vales dos Rios Novo e Iconha:
desenvolvimento no Sul da Província do Espírito Santo do Oitocentos
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Observemos que três relatos sobre Piúma na década de 1810 fazem men-
ção ao indígena e não menciona um desenvolvimento econômico e popu-
lacional, o que nos possibilita afirmar que Piúma consistia, nas primeiras
décadas do século XIX, em um povoado de pescadores. Podemos levantar a
hipótese de que havia um pequeno comércio, resultado da extração de madei-
ra e outras matérias-primas da região, mas esse não chegou a trazer mudanças
significativas para a população local, consistindo apenas na ação de empresas
madeireiras que adquiriam o produto dos moradores a valores insignifican-
tes. Em 1860, já podemos compreender melhor esse cenário, com os escritos
Tschudi (2004, p. 95-96), sobre Piúma em sua Viagem ao Espírito Santo, em
1860, o que nos possibilita estabelecer uma comparação de Piúma na década
de 1810, com o momento em que Tschudi esteve ali, em que relata:
[...] chegamos depois de duas horas ao rio Piúma, que os cavalos nova-
mente tiveram de atravessar nadando, enquanto seguíamos de canoas
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com a carga. Antigamente havia ali uma ponte. O rio citado está entre
os rios que tem a chamada água escura. O vilarejo de Piúma fica à mar-
gem esquerda e também era antigamente uma aldeia indígena (da tribo
dos Puris). Recentemente também outras famílias se instalaram ali e
o local tem agora algumas moradias bastante grandes e boas. Exporta
um pouco de café, farinha e algodão das fazendas da redondeza, mas
preferencialmente fornece ao Rio de Janeiro uma excelente madeira de
construção. (Tschudi, 2004, p. 95-96)
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Simão (1991) ressalta ainda que o padre Felipe vai doar as terras a qua-
tro famílias de índios. O conflito com os indígenas ocorre em 1817 e já há
população na região. No entanto, essas pessoas viviam nas proximidades de
Iconha, já que o texto diz que foram convocados aqueles que estavam sujeitos
ao ataque, ou seja, que moravam na fronteira entre a parte colonizada e aquela
habitada pelos índios que deveriam ser empurrados, e após esse confronto
houve a concessão de terras, conforme apresentado. Parece-nos, a partir da
sistematização das informações, que esse conflito foi a forma de empurrar os
indígenas e abrir espaço para o povoamento.
Desse modo, temos um panorama da região compreendida por Iconha e
Piúma de 1800 a 1860. O litoral, Piúma, ocupado por descendentes de indíge-
nas na forma de aldeia de pescadores e que servia de porto para o embarque
de madeiras. O interior, Iconha, começava a ser ocupado na parte mais baixa
do rio, pois até então era território de indígenas.
Esse cenário vai mudar a partir de 1860, pois, entre 1850 e 1860, Thomaz
Dutton Junior, um inglês, adquire terras em Piúma e no alto Rio Iconha e,
a partir do final da década de 1870, começam a chegar os imigrantes, prin-
cipalmente italianos, desenvolvendo a agricultura, especialmente o café, e o
comércio, pelos portugueses, efetivando assim o povoamento, o que apresen-
taremos posteriormente.
Thomaz Dutton Júnior, nasceu na cidade de Londres, em 1822, e fez parte
de um grupo de colonos ingleses, que se aventuraram rumo à América, em
busca de enriquecimento. Ele então, passa a viver em uma vila de pescado-
res no Sul da província do Espírito Santo, e começa a promover o processo
de povoamento da Vila, pois como apresentamos anteriormente, não havia,
em Piúma, uma estrutura para desenvolver uma agricultura para exportação.
Desse modo, Dutton estava consciente de que deveria dar condições à região
para alcançar seu intento.
Dutton era um homem com uma visão empreendedora, e essa é uma
característica marcante dele, que via naquela região litorânea, com foz de um
rio, um local ideal para seus empreendimentos. Esse, por sua vez, foi ponto
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A contribuição dos imigrantes para Iconha foi muito grande, pois eles
desbravaram o interior e o povoaram, formando comunidades em torno das
igrejas católicas, desenvolveram a cultura do café, produto econômico que
alavancou a região. Para compreender a formação do município de Iconha, é
necessário reportar-se a esse período e verificar como a imigração transfor-
mou social e economicamente a região.
Assim, a área de pequena propriedade fazia com que fossem dependentes
de alguém para comprar e vender a produção agrícola. Um grande latifun-
diário tinha meios para negociar com grandes exportadores e recursos para
beneficiar e transportar a produção. Em Iconha, como nas áreas de pequena
propriedade, a produção estava ligada a um pequeno ou médio comerciante
que era o intermediário entre o produtor e o exportador. Duarte e Beiriz as-
sumiram essa função e, com ela, o comércio cresceu chegando a ser uma das
maiores casas comerciais do estado.
A vila de Iconha foi surgindo e ganhando forma ao redor da casa co-
mercial Duarte e Beiriz. É interessante observar que o centro comercial vai
polarizar o desenvolvimento da vila que suplanta a importância de Piúma, li-
toral, tornando esse dependente politicamente e economicamente de Iconha,
localizado no interior.
Podemos dizer que a atividade comercial contribuiu direta e indire-
tamente para o coronel Duarte tornar-se o mandão local. Primeiro,
temos que ter em mente que ele chegou em Iconha como um funcio-
nário de uma exportadora de matéria - prima e, sem nenhum capital,
conseguiu abrir uma venda que mais tarde vai se associar ao Beiriz para
formar a casa comercial. Sabemos que a política requer condições fi-
nanceiras, especialmente na Primeira República onde o voto era barga-
nhado de forma explícita. Assim, foi o comércio que lhe o enriqueceu
e possibilitou que investisse na política, ou seja, acumulou fortuna que
possibilitou fazer favores, tão importantes para a política coronelística.
(Caprini, 2007, p. 121)
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Fontes Documentais
RELATÓRIO do diretor da Colônia de Rio Novo, Joaquim Adolpho Pinto
Pacca, ao Ministro da Agricultura, 1974.
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Livros e literatura
Capítulo iv
z
Entre livros e apólices: a trajetória do clínico, lente e acadêmico
Antonio Corrêa de Souza Costa
Introdução
Como já destacou Edler (2003), os médicos do Brasil Imperial não gozam
de muito prestígio entre os historiadores. Esta percepção, apesar de já mati-
zada por uma série de analistas dedicados ao estudo do processo de institu-
cionalização das ciências no Brasil (Dantes, 1988; Dantes, 2001; Edler, 1998;
Edler, 2003; Figueirôa, 1998, Benchimol, 1999) ainda está presente em mui-
tos trabalhos produzidos no campo historiográfico, no tocante à medicina e
seus ramos de especialidade (Machado et al., 1978; Schwarcz, 1993; Engel,
2001). De forma geral, tais análises tendem ou a desconsiderar a atividade dos
médicos Oitocentistas como guiadas por parâmetros de cientificidade, ou a
interpretar a adoção da ideia de “ciência” como um modismo, muitas vezes
distorcida e ultrapassada em relação ao conhecimento produzido nas estreitas
fronteiras europeias, este sim dotado de cientificidade.
Adotando uma perspectiva unicista do conceito de ciência, constroem
suas interpretações com base em parâmetros presentistas. Ou seja, avaliam,
ou mesmo, julgam a prática científica própria a atores, instituições e contex-
tos específicos, tomando como base as concepções da medicina experimental,
cuja consolidação se dera no Brasil somente em fins do século XIX e início do
XX. Assim, sem se ater às especificidades das práticas científicas aqui desen-
volvidas em termos contextuais, conformam um quadro interpretativo cer-
cado de anacronismos. Outra tendência, também presente nestes trabalhos,
é interpretar o processo de construção do conhecimento científico como um
simples produto de demandas sociopolíticas, relacionado diretamente com a
consolidação de interesses mais amplos voltados para um processo de orde-
nação social, encetado por uma nascente burguesia que tinha a cidade como
1 Doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz, Professora e pes-
quisadora de pós-doutorado da UERJ
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correlação determinista com qualquer estrato social. Conceito utilizado para pen-
sar esta categoria profissional fora de uma visão que a classifica como uma simples
ferramenta de poder.
4 A elite médica não é formada necessariamente pelos melhores médicos, mas por
aqueles indivíduos que tradicionalmente concentram em suas mãos os diferentes
tipos de poder profissional (Weiss, 1988).
5 Andrew Abbott (1998), partindo do pressuposto de que as profissões existem em
sistema − não devendo ser analisadas como unidades isoladas −, destaca que as
profissões estabelecem interações neste sistema e que estas se traduzem em com-
petições inter e entre profissões, assim definidas conceitualmente como disputas
jurisdicionais. Disputas que se dão, segundo Abbott, sob as bases objetivas (técni-
cas) e subjetivas (cultura) que, por sua vez, interagem entre si. Neste âmbito, as rei-
vindicações jurisdicionais se desenvolveriam com vistas à obtenção do monopólio
profissional.
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concurso, apenas dois anos depois de sua formação. Em 1860, foi aprovado
como membro titular da Academia Imperial de Medicina com a memória Fe-
bre biliosa dos países quentes e já em 1865 nomeado, mediante concurso, lente
da cátedra de higiene e história da medicina, cadeira ocupada pelo médico
Thomas Gomes dos Santos de 1833 a 1864.6 Assim, com apenas sete anos de
formado, Souza Costa já ocupava uma cátedra que representava uma frente
estratégica no seio da elite médica, face ao processo de busca de legitimação
socioprofissional da medicina acadêmica, tanto no combate contra as demais
artes de curar, quanto na busca pelo reconhecimento e legitimidade em meio
aos pacientes e com vistas à obtenção de prestígio e apoio estatal, haja vista o
contexto histórico vivido.
O higienismo despontava, assim, como um campo de atuação vital para
o intento de conquista do monopólio socioprofissional, então almejado pela
categoria médico-acadêmica. Isto porque desde a erupção da primeira gran-
de epidemia de febre amarela na cidade do Rio de Janeiro em 1850, seguida
pelo aparecimento da também temida epidemia de cólera em 1855, a cidade
encontrava-se totalmente fragilizada. O constante assolamento da capital do
Império e também principal porto comercial do Brasil, por sucessivas epide-
mias de febre amarela, intimidava o comércio transatlântico e principalmente
o imigrante europeu tão aguardado, desde a aprovação do fim do tráfico ne-
greiro, com vistas ao incremento da mão-de-obra livre.
Eram urgentes, pois, sob o ponto de vista da opinião pública da capital
do Império (Gonçalves, 2005), a execução de medidas, por parte do governo,
que visassem obstar a marcha do número de óbitos a cada surto epidêmico. E
6 Sua posse se dera depois de acirrada disputa com o também médico e professor da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, João Vicente Torres Homem (reconhe-
cido higienista da segunda metade do Oitocentos – que tinha apresentado, para
essa cátedra, a tese intitulada “Do aclimatamento” –, e que desde 1860 ocupava, na
mesma instituição, o lugar de opositor da seção de ciências médicas. Torres Ho-
mem (1837-1877) era um dos sete filhos do médico e professor da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Joaquim Vicente Torres Homem; foi médico da Santa
Casa de Misericórdia (1860-1877), lente da cadeira de clínica interna (1866-1877),
clínico da Casa de Saúde Nossa Senhora da Ajuda (1863-1877) e da Casa de Saú-
de São Sebastião; membro titular da Academia Imperial de Medicina (1863) e de
outras sociedades científicas como a Real Academia das Ciências de Lisboa e a So-
ciedade de Higiene de Paris. Além disso, foi um dos fundadores da Gazeta Médica
do Rio de Janeiro, ao lado de Antonio Corrêa de Souza Costa, Matheus Alves de
Andrade e Francisco Pinheiro Guimarães. In: Homem, João Vicente Torres. Dicio-
nário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Acesso em:
20/07/2014. Disponível em: http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br.
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como isso poderia ser alcançado? Até 1850 a Academia Imperial de Medicina
era, de acordo com os seus estatutos, a conselheira do Estado nos assuntos
concernentes à saúde pública, podendo, de acordo com essa prerrogativa, su-
gerir medidas de cunho higiênico a serem tomadas pelo Estado. No entanto,
a forte epidemia de febre amarela, responsável por uma cifra oficial de mais
de 4 mil óbitos7 somente nas estreitas fronteiras da corte imperial, onde a po-
pulação era estimada em 266.466 almas (Brasil, 1872), evidenciou a falta de
conhecimento da “medicina oficial” sobre aquela doença mortal. Após a in-
terpelação do Estado, foi iniciada uma longa e controversa discussão entre os
membros da Academia a respeito das medidas a serem tomadas no combate à
febre amarela, sem que fosse atingido um consenso sobre a matéria.
Essa falta de concordância se dava, sobretudo, pela falta de conhecimento
científico sobre a etiologia do “mal do vômito negro”. Naquele contexto, os
médicos acreditavam ser vital para o estabelecimento de medidas, a compre-
ensão da forma como a doença chegara ao país e se comunicava de um indi-
víduo a outro. Assim, desconhecendo a existência do mosquito como o vetor
da doença8, imputavam à falta de salubridade da cidade a responsabilidade
pela erupção da moléstia. A discordância cindira, pois, a categoria médica,
divida entre contagionistas e infeccionistas. Para os primeiros, o foco das me-
didas deveria se dar sobre a quarentena dos navios que entravam na cidade
durante o verão, partindo da ideia de que a febre amarela era importada e que
a sua comunicação se dava pelo contato entre as pessoas acometidas. Para os
outros, a insalubridade da cidade era o foco da doença, sendo a conjunção
entre as emanações miasmáticas provenientes das matérias em decomposição,
o intenso calor e as fortes chuvas de verão, a causa da tragédia ocorrida na
“estação calmosa”.
Resguardadas as devidas diferenças, tanto contagionistas quanto infeccio-
nistas não negligenciavam as péssimas condições de salubridade da cidade do
Rio de Janeiro, pois se para os primeiros elas eram as responsáveis pela pro-
pagação da moléstia que tinha sido importada, para os segundos, eram o foco
causador da emanação miasmática que redundara no aparecimento da febre
amarela. Entretanto, parcela significativa da Academia Imperial de Medicina,
dentre os quais figurava o renomado médico e conselheiro Cruz Jobim, era
partidária da teoria contagionista, o que resultava na confecção de propostas
7 Segundo Sidney Chalhoub “houve quem falasse em 10 mil, 12 mil, 15 mil vítimas
fatais” (Chalhoub, 1996, p. 61).
8 O que só aconteceria no início do século XX por Moises Finley, em Cuba (Benchi-
mol, 1999).
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pectiva de que a queda da mortalidade era uma meta a ser alcançada por uma
país que visava pertencer ao rol das nações civilizadas. Entrementes, apesar
das tímidas intervenções do Estado na saúde pública no período imperial,
seria nesse momento que se construiriam as primeiras reflexões a respeito da
responsabilidade coletiva pela ocorrência das epidemias.10 É neste contexto
que Souza Costa é nomeado como responsável pela cadeira de higiene e his-
tória da medicina da principal faculdade de medicina do Império.
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Considerações finais
Concluímos este trabalho enfatizando os esforços desenvolvidos pelos
médicos nacionais, dos quais Souza Costa é um representante exemplar, no
que tange à constante atualização sobre o que era produzido em além-mar,
como base para a construção de reflexões originais sobre as patologias na-
cionais. Atualização esta que se dava pela compra de livros e periódicos im-
portados, vendidos nas inúmeras livrarias estabelecidas nas principais ruas
do centro da cidade do Rio de Janeiro, cujo comércio assistia a uma grande
aceleração na segunda metade do Oitocentos (El Far, 2004; Ferreira, 2005;
Hallewell, 2005; Gonçalves, 2013).
A identificação do acervo pessoal de Souza Costa e a estreita relação,
anteriormente demonstrada, deste com a sua atuação profissional, tanto na
esfera do ensino quanto no âmbito acadêmico, demonstra a forma como tais
conhecimentos adquiridos pela leitura bibliográfica eram apropriados e res-
significados em meio à prática médica e ao contexto socioprofissional vivi-
do pelo ator em questão. Além disso, evidenciamos a relação entre a prática
médica, em especial na área da saúde pública, com a obtenção de prestígio e
status sócio-econômico, haja vista o patrimônio construído pelo nosso perso-
nagem. Com isso, esperamos ter contribuído com as argumentações já alinha-
vadas por uma corrente historiográfica que tem tentado desfazer a percepção
de que no Brasil Oitocentista a prática científica não passava de um modismo
ou que era defasada com relação ao que era produzido na Europa.
Fontes
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Capítulo v
z
Identidades Regionais-Provinciais na História e na Literatura
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2 “Cielitos” são poemas campestres que sempre têm um ou dois versos com as pa-
lavras “cielito ou cielo”, que, no caso, não significam “ceuzinho” ou céu”, sendo
portanto, intraduzíveis.
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real, teria vivido nos tempos de Rosas, no centro da província de Buenos Ai-
res, numa época em que já predominava a cria de ovinos e entravam traba-
lhadores europeus. Ou seja, já teria desde há muito ocorrido a perseguição e
subjugação dos gaúchos.
Já no Rio Grande do Sul, foi Simões Lopes talvez o autor mais preocu-
pado com esse tempo tão pretérito - não que isso seja central em sua obra
–, mostrando mais precisão cronológica que Hernández. Há em alguns tex-
tos referências à época em que não estavam bem definidas as propriedades, e
onde os gaúchos tinham uma notável liberdade de vagarem pelos campos. O
parágrafo inicial da lenda “O Negrinho do Pastoreio” é um exemplo: “Naquele
tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem
cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e aves-
truzes corriam sem empecilhos...” (Lopes Neto, 1974, P. 95) No conto “Correr
Eguada”, também é descrita uma situação semelhante: “Tudo era aberto; as
estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de cada
uma estavam escritas nos papéis das sesmarias; e lá um que outro estancieiro é
que metia marcos de pedra nas linhas” (Lopes Neto, 1976, p. 49).
Neste espaço ainda carente de limites, também os trabalhadores não pa-
reciam fixados ás estâncias. Esta autosuficiência é expressiva no personagem
de “A Salamanca do Jarau”: “Era um dia..., um dia, um gaúcho pobre, Blau, de
nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu un cavalo gordo, o facão
afiado e as estradas reais” (Lopes Neto, 1974, p. 21). Cavalo, facão e estrada
compunham a tríade necessária e suficiente para que o gaúcho pudesse levar
“cumprir o seu fadário”. Também em Simões Lopes se evidencia a noção de
que as lidas campeiras, mais que um trabalho árduo, eram um divertimento,
como nas temerárias ações que são relatadas em “Correr Eguada”: “Hoje...
onde é que se faz disso? É verdade que há muita cousa boa, isso é verdade...
mas ainda não há nada, como antigamente, tomar mate e correr eguada... Xô-
-mico!... Vancê veja... eu até choro!... Ah! tempo!...” (Lopes Neto, 1976, p. 53)
A transição para os “novos tempos” não é marcada por Simões Lopes,
mas é essencial em Hernández para toda a dramaticidade da saga de Martín
Fierro. Agarrado com tantos outros quando cantava numa pulpería, foi reme-
tido para o serviço militar pelo Juiz de Paz, autoridade urbana, na fronteira
com os índios no sul da província de Buenos Aires. Lá, mais que garantir os
avanços dos infieles, prestava serviços nas propriedades dos comandantes, eles
também autoridades nomeadas pelos puebleros: “¡Y qué índios, ni qué servicio,
/ si allí no había ni cuartel / Nos mandaba el coronel / a trabajar en sus chacras,
/ y dejábamos las vacas / que las llevara el infiel.” (Hernández, 1998, p. 31) Os
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primeiro duelo de morte: “Yo tenía un facón com S, que era de lima de acero”
(Hernández, 1998, p. 56).
A impressão final que fazia do negro é chamativa: “andava sozinho: quan-
do falava, era alto e grosso e sem olhar para ninguém! Era um governo, o ne-
gro!” (Lopes Neto, 1976, p. 17) Exercendo fascínio sobre a moça Tudinha,
que apaixonara a todos os gaúchos do rincão, o negro Bonifácio desencadeou
uma tragédia, matando muitos dos desafetos antes de morrer. O negro, que
o narrador Blau descreve como “mau”, “malvado”, “tão feio”, “perdidaço pela
cachaça e pelo truco e pela taba”, enfrentara vinte adversários “desmunhecando
uns, cortando outros, enquanto o diabo esfrega um olho, o chão ficou estivado
de gente estropiada, espirrando a sangueira naquele reduto.” (Lopes Neto, 1976,
p. 19) O negro, que apesar de morto é o vitorioso, é a acepção máxima de
delinquência em Simões Lopes; aqui, diferentemente de Hernández, ele não
é um produto explícito de um mundo injusto, apesar de estarem presentes as
motivações racistas, mas pelas suas más qualidades que contrastam com as
dos demais.
Há outros exemplos de comportamento desviante em Simões Lopes. Em
“Deve um Queijo”, um “castelhano alto, gadelhudo, com uma pera enorme,
que ele às vezes, por graça ou tenção reservada, costumava trançar, como para
dar mote a algum dito, e ele retrucar, e daí, nascer uma cruzada de facões, para
divertir, ao primeiro coloreado...” (Lopes Neto, 1976, p. 41-42), é surrado e hu-
milhado pelo velho Lessa, “um homem assinzinho... nanico, retaco, ruivote,
corado”, como a mostrar que a valentia dos gaúchos não se confunde com a
provocação. Em “Jogo do Osso”, Chico Ruivo joga e perde a “china” numa can-
cha de taba, tornando-se objeto de um desprezo: “Sempre és muito baixo!...,
guampudo, por gosto!...” (Lopes Neto, 1976, p. 100). O resgate da hombridade
perdida só é possível pela tragédia, com o assassinato da mulher e do rival.
Esses e outros casos apontam para desequilíbrios entre os campeiros que
se deviam mais à má índole dos protagonistas que a problemas derivados de
uma opressão social. O mundo rural está mudando, existe uma nostalgia do
passado, mas o presente na estância ainda reserva prazeres que a vida na cida-
de não compensa. Desta forma, a obra de Simões Lopes prima pelos dramas
individuais, densos e muitas vezes trágicos, talvez mais de acordo com a ide-
ologia do gaúcho como homem livre, “monarca das coxilhas” e dono do seu
destino, onde a delinquência era uma escolha; bem distante, pois, de Hernán-
dez, cujo Martín Fierro se fez vago e gaucho matrero em revide ao tratamento
que recebeu da sociedade.
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Finalizando...
Estes aportes são resultado de uma produção literária muito original,
a gauchesca, de origem platina e que se arraigou fortemente no Rio Gran-
de. Derivada da defesa dos homens da terra contra os avassaladores proje-
tos liberais de inspiração eurocêntrica, a gauchesca paulatinamente recriou
o gaúcho nas “guerras pátrias” e na preservação de uma cultura própria. No
caso rio-grandense ele tornar-se-ia gentílico para toda a população do estado
(Gomes, 2009; Figueredo, 2010). Sobre o Rio Grande do Sul, onde pairava a
ambiguidade de um povo que tomara em armas contra o próprio Império,
a literatura antecipou aos historiadores tradicionais as explicações para um
“patriotismo” que fora negado pelos intelectuais do centro do país à província
sediciosa: o amor à liberdade, inerente aos campeiros do pampa, fora atraves-
sado pelas bandeiras que fizeram a fizeram a Pátria, legado de um passado em
que a violência era parte inerente ao cotidiano.
Referências
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102
histórias sobre o brasil no oitocentos
103
Capítulo vi
z
Crítica literária e ironia: Maritns Guimarães
no periódico carioca Semana Ilustrada (1860-1876)
Adriana Dusilek1
3 As primeiras cinco edições da Semana Ilustrada estão sem data, mas pela própria
“Declaração” da edição número 32, o primeiro número é de 16 de dezembro de
1860. A quinta edição, portanto, é de 13 de janeiro de 1861.
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histórias sobre o brasil no oitocentos
4 Esses textos também fazem parte da coletânea Machado de Assis: crítica literária e
textos diversos, organizado por Sílvia Maria Azevedo, Daniela M. Callipo e Adriana
Dusilek (2013).
5 Apesar de muitos textos serem assinados pelo mesmo pseudônimo “Dr. Semana”,
eles indicam, salvo alguma “armadilha” feita para o leitor, mudança de escritor,
com expressões do tipo “O meu antecessor [...].
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gladys sabina ribeiro i adriana pereira campos (orgs.)
vejo duas iniciais, J.B. Mas que vale o nome quando temos a obra?” (Dr. Se-
mana, 17 nov. 1872, p.4979)
Para Raimundo Magalhães Junior (1981, p.72), os ensaios de crítica às
avessas de Machado de Assis eram “produtos de um espírito galhofeiro, que
contemplava jovialmente os desesperados esforços dos literatos ratés, simples
comparsas anônimos da comédia literária [...]”. Como “Dr. Semana” era um
pseudônimo de uso coletivo, e havia também outras assinaturas que entravam
na brincadeira, é possível que não apenas um espírito galhofeiro, mas vários
se irmanavam nessa jovialidade ao descreverem as tentativas fracassadas de
muitos literatos para firmarem seus nomes no rol dos grandes escritores.
Um desses candidatos a literatos, ou plumitivos, era o português José Joa-
quim Martins Guimarães, que estabelecera residência em São Paulo.6
O primeiro artigo sobre Martins Guimarães está em texto de 20 de ja-
neiro de 1867, e é intitulado “Um poeta notável”. O autor apenas assina “S.”,
e inicia sua crítica questionando o porquê da grande imprensa ignorar certos
autores:
Por que motivo a grande imprensa guarda silêncio a respeito de certas
obras e certos autores? Que desdém é esse? Acaso só os príncipes da
literatura terão direito de entrar no domínio da crítica? Não haverá por
aí talentos assaz fidalgos para merecerem a atenção da imprensa?
Estas perguntas são inúteis: a grande imprensa é surda aos talentos que
não pertencem a certa oligarquia.
Por mais legítima que seja a vocação de um mancebo, não pode achar
bom agasalho entre os grandes jornais. Que coisa ridícula! (S., 20
jan.1867, p.2547).
Para corrigir tal injustiça é que o redator se propunha a falar daqueles que
mereciam fugir do esquecimento e do abandono. Pelo tom inicial, a expecta-
tiva do leitor era que de fato se falasse de um “poeta notável”, como sugeria
o título; seria um poeta o qual não teria tido a sorte de pertencer “a certa
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histórias sobre o brasil no oitocentos
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8 Entre outras coisas, o poeta declara: “Mas ó Deus a quem este espírito meu adiro/
A quem minha ideia prendo e a ti se eleva/ Eu só creio cá na terra volver ao que já
era”. (S., 20 jan.1867, p.2550).
9 José Galante de Sousa, em Bibliografia de Machado de Assis (1955, p.24-5) afirma
que, enquanto Max Fleius ( A Semana, Rio, 1915, p.96-7) dá a entender que a
autoria da totalidade das crônicas da Seção Badaladas, assinada por “Dr. Semana”,
pertence a Machado de Assis, Lúcia Miguel Pereira no seu Machado de Assis (3. Ed,
1946, p.102) afirma que esse pseudônimo “escondeu também os nomes de Pedro
Luís, Varejão, Felix Martins, Quintino Bocaiúva e vários outros”. Assim, Galante de
Sousa julga melhor não mencionar esses trabalhos em seu índice cronológico.
10 Essa não é uma discussão encerrada, e há que se lembrar que estamos falando
apenas de Martins Guimarães, havendo muitos outros sobre os quais se fez crítica
às avessas.
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histórias sobre o brasil no oitocentos
Enfim a poesia termina com chave de ouro: o último verso é digno de ser
meditado pelos Srs. Advogados.
Não, não creio – são teorias falando aos corações,
Dos homens de exaltadas ardentes concepções;
Ungidas de amor filosofia e santidade,
Mas que alçam o estandarte das revoluções
Creio no império desta lei que nos guia,
Com decretos, pragmáticas e ordenações.
11 Cada “volume” é composto de poucas páginas, e o cronista não deixa de fazer essa
observação, com a palavra “folhetos” entre parêntesis.
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12 Possível referência ao poeta francês, escritor e libretista de ópera Paul Jules Barbier
(1825-1901). É comum perceber, nas referências da chamada “crítica às avessas”,
uma incongruente mistura, citações sem sentido, e até invenção de nomes. É uma
crítica carnavalizada.
13 Jean-Paul Marat (1743-1793), médico, filósofo, cientista e jornalista radical e polí-
tico da Revolução Francesa.
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histórias sobre o brasil no oitocentos
bilhetes para o teatro da imortalidade” (Dr. Semana, maio 1868, p.3098). Após
essas imagens grandiosas, dá exemplos de como o poeta canta a lua e a deusa
de Apolo; aponta a “filosofia” que há em outras estrofes e afirma se admirar
da “coragem” com que o poeta ousa dizer o que ninguém ousou. Antes de se
despedir é feita uma referência a um folhetinista de “O Ypiranga”, o qual teria
tido a pachorra de resumir em prosa os versos de Martins Guimarães.14
Mais de um ano depois, já na seção “Badaladas”, o Dr. Semana voltaria
a tratar de Martins Guimarães. No entanto, é importante observar que nessa
crônica de 5 de setembro de 1869, o cronista usa a palavra “antecessor” para se
referir ao cronista de “Pontos e vírgulas”, dando assim a entender que é outra
pessoa que agora assina “Dr. Semana”. Se essa é uma estratégia para despistar
o leitor, uma armadilha, ou se é realmente outro quem agora assina “Dr. Se-
mana”, é algo que precisa de mais pesquisas. Há quem insira as duas seções
como sendo da pena de Machado de Assis. Há quem atribua apenas a autoria
das “Badaladas” ao escritor.
Polêmicas à parte, é nessa edição de número 456 que há duas referências
a Martins Guimarães: uma na seção “Badaladas”, já citada, e a outra em texto
intitulado “Martins Guimarães”, e assinado por “Gil”, conhecido pseudônimo
de Machado de Assis. Em “Badaladas” há uma breve notícia do novo livro de
Guimarães, Nuvens da América, e afirma que “adiante se falará deste livro”
(Dr. Semana, set. 1869, p.3643). A análise, de fato, está em texto da mesma
edição. Texto esse que, intitulado “Martins Guimarães”, será continuado em
duas outras edições, sempre assinado por “Gil”.
Na seção “Badaladas”, assim o cronista introduz a notícia do novo livro:
Agora uma boa e grande notícia.
Atenção! Senhores! Atenção!
Ó vós que passais pelo caminho, parai e ouvi.
Mais um livro de versos!
14 Foi possível encontrar tal referência em O Ypiranga de São Paulo, no jornal do dia
3 de maio de 1868 (edição n. 225). Ali, na primeira página, na Seção “Folhetim do
Ypiranga”, está a CARTA AO AUTOR DA “CAPELA POÉTICA”, e é assinado “De
V. S. Admiradores Certos literatos de fumaças”, numa alusão a trecho do próprio
poeta. Não se descarta a hipótese de o próprio Machado de Assis ter escrito tal car-
ta, ou ainda um seu amigo, a quem Machado “recomendaria” a obra do poeta. É sa-
bido que Machado tinha relações com os diretores e redatores deste jornal paulista,
e que ele próprio já havia escrito, quatro anos antes, para a Imprensa Acadêmica:
jornal dos estudantes de São Paulo, comercial, agrícola, literário e noticioso.
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D’onde?
De S. Paulo.
De quem? [...] (Dr. Semana, set. 1869, p.3.642).
Este trecho e a menção ao fato desse novo livro ser “da têmpera do outro”
(Dr. Semana, set. 1869, p. 3643) evidenciam que o cronista, apesar de não
haver menção ao poeta na Semana Ilustrada há mais de um ano, está muito
bem informado sobre o autor e sua obra. E o cronista transcreve o prefácio
do autor, já como “aperitivo” para o leitor, que degustaria adiante, na mesma
edição, a análise do novo livro. Ao fim da transcrição daquele emaranhado de
expressões sem sentido, finaliza apenas: “Querem mais claro?” (Dr. Semana,
set. 1869, p.3643). Essa pergunta, logo após um prefácio bastante confuso,
revela a ironia em relação à obra de Martins Guimarães. Rogério Cordeiro
(2003) fala sobre a ironia, essa “inversão semântica:
O conceito de ironia remete, em primeiro lugar, a um processo verbal
que consiste em exprimir algo com a intenção de dar sentido a algo
diverso, encoberto mas não anulado pelo primeiro. Cria-se, assim, o
efeito de fundir em um único enunciado aquilo que se diz de modo
explícito àquilo que se quer dizer implicitamente. O que se opera aqui
é uma certa “inversão semântica” cuja compreensão exige que se atra-
vesse o conteúdo explícito (ou patente ou literal ou, ainda, conotativo)
do texto para alcançar seu conteúdo implícito (latente, intencional ou
denotativo) (p.1).
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Muitos “louvores” são dados ainda ao poeta por ele gostar de neologis-
mos. Em outras críticas às avessas esse é um dos itens abordados, e aqui isso
também acontece a respeito do emprego da palavra “arboragem”:
Diz-se beberagem, camaradagem, carruagem; porque se não dirá ar-
boragem? Foi essa sem dúvida a reflexão do poeta. Que não venham
por aí os praguentos defensores da língua, que a língua não é senado
emperrado15; a língua é um negociante que enriquece; se não compra
gêneros novos está no chão. (Gil, set. 1869, p. 3654).
15 Esse trecho, sobre a questão da língua, lembra outro do Dr. Semana, ao falar de
Frei Manoel na Seção “Pontos e vírgulas” (edição 438, p.3499): “A gramática há de
zangar-se um pouco; mas Frei Manuel não se importa com velhas rabugentas”.
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histórias sobre o brasil no oitocentos
palavras, já que ele não precisa atender a “certas regras antigas e tolas” (Gil,
out. 1869, p. 3679), para e confessa: “Não tenho ânimo de prosseguir. É me-
lhor ler a obra do poeta. Lê-la vale mais do que receber estas impressões de
segunda mão” (Gil, out. 1869, p. 3679). De fato, o crítico não daria conta de
comentar todos os assombrosos trechos, mas antes de remeter o leitor a mais
um fragmento poético, como fecho de seu artigo, observa:
Por isso remetemos os leitores para o monumental livro das Nuvens da
América, folheto que há de assombrar as gerações futuras, como está
assombrando as gerações presentes, monumento erguido ao simbolis-
mo do escuro e do complicado. Uma complicação escura, eis a vida; a
poesia é uma irradiação do complexo; a inspiração uma concentração
do escuro. (Gil, out. 1869, p. 3679).
16 Não é possível localizar os nomes que o cronista cita, podendo ser esse um recurso
já utilizado sobre outros poetas, como as críticas sobre o Sr. Luiz, em que mistura
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nomes reais com fictícios, numa espécie de crítica carnavalizada. Eis a citação:
“Vê-se que [Martins Guimarães] pertence à grande escola de Wallerstein, Campas,
Milliés, Chambard, Arnaud, Holloway; é a mesma altura e a mesma profundidade”
(Dr. Semana, out. 1870, p. 4090).
17 Em 2 de outubro de 1870 a crônica é toda sobre a obra de Martins Guimarães; em
9, 16 e 23 de outubro as crônicas são quase inteiras sobre o poeta.
18 Tudo indica que se trata da edição 616, que, apesar de não ter citado o nome do
poeta, há referência sobre uma mudança de estilo de um seu jovem amigo (mas ali
ainda se trata de crítica às avessas).
118
histórias sobre o brasil no oitocentos
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histórias sobre o brasil no oitocentos
121
Imprensa
Capítulo vii
z
“Dirigir e retificar a opinião pública”: os primeiros anos
da Tipografia Nacional do Maranhão (1821-1823)
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dança que afetava o teor, o formato e a dinâmica das notícias que chegavam de
Portugal. Diante das novidades do tempo, outra batalha haveria de ser travada
entre os grupos em litígio: a das ideias impressas.
Em 15 de abril, nove dias após a adesão do Maranhão ao movimento
constitucional, começou a circular em São Luís o jornal O Conciliador, ma-
nuscrito redigido por duas figuras próximas a Pinto da Fonseca: José Antonio
da Cruz Ferreira Tezo (o padre Tezinho) e Antonio Marques da Costa Soares,
oficial-maior da Secretaria de Governo, que posteriormente acumulou o car-
go de diretor da Comissão Tipográfica.
Construtores de um “constitucionalismo de ocasião”, Tezinho e Soares
formularam uma pedagogia constitucional ancorada na permanência de Pin-
to da Fonseca à frente do governo. Já no primeiro número, os redatores pon-
deraram:
[...] qual será mais bem regido nas delicadas circunstâncias em que es-
tão os domínios portugueses? Um país regido por governos compostos
de muitos membros, pela maior parte noviços na grande arte de reger
o povo, e talvez suspeitosos do mesmo povo, ou governado por um só
homem prático nos deveres relativos ao seu cargo, respeitável em virtu-
des, ativo em providências e, sobretudo, amado dos mesmos povos que
tem regido? Pode alguém preferir a incerteza do acaso à realidade da
experiência? Basta (Conciliador, nº 1, 15/4/1821, p. 4).6
A Tipografia em números
Os custos para instalação e manutenção de uma tipografia na província8
não foram pequenos. Curiosamente, podem ser vislumbrados antes mesmo
de sua instalação: em junho de 1821, o padre Tezinho recebeu dos cofres pú-
blicos a importância de 139$200 réis, referentes a “despeza feita com o Perio-
128
histórias sobre o brasil no oitocentos
dico e outras publicaçoens desde o dia seis d’Abril do prezente anno até o fim
de Maio” (APEM. Livro 63. Nº 133, p. 34).
Por vários indícios, é possível perceber que o projeto de uma tipografia
fora delineado desde abril de 1821. Em novembro de 1821, Pinto da Fon-
seca escrevia ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Joaquim Jozé
Monteiro Torres, observando que “Logo que esta Província abraçou o Siste-
ma Constitucional proclamado em Portugal, hum dos mais expressos dezejos
dos seos Habitantes foi o de terem huma Imprensa, empenhando-se athe, e
assignando para huma| Gazeta manuescrita” (Ofício..., AHU, D. 12.182); na
edição nº 52 (9/1/1822, p.3), os redatores do Conciliador afirmaram que, “des-
de o primeiro número, a imprensa já tinha sido solicitada em Londres”; em
algumas edições manuscritas, reafirmaram o compromisso de impressão des-
sas edições, tão logo a Tipografia fosse instalada; por fim, as solicitações de
passaporte do “impressor das letras” Francisco Antonio da Silva, de 26 anos
(Requerimento..., AHU. D. 12.131), e do “compositor de letras” Francisco Joze
Nunes Corte Real, de 21 anos (Requerimento..., AHU, D. 12.132), ambos resi-
dentes em Lisboa, datam de agosto de 18219.
Em 13 de dezembro de 1821, o Conciliador informava que a Tipogra-
fia Nacional desembolsara 427$424 réis com as passagens de Silva e Corte
Real, mas que tais despesas foram diminuídas em 144$632 réis, graças a ação
benemérita da Casa de Comércio dos Srs. Antonio José Meirelles, Ferreira e
Companhia (Conciliador, suplemento ao nº 46, 20/12/1821, p. 3). Meirelles
era o negociante mais rico da província, e figura próxima ao governador Pinto
da Fonseca.
Além desses dois funcionários, a Tipografia contava ainda com um aju-
dante de compositor, que também trabalhava como amanuense e um guarda,
que acumulava a função de servente da oficina. A Relação dos actuaes empre-
gados na Officina da Typographia Nacional desta Província, de novembro de
1821, oferece informações sobre o custo mensal com as despesas de pessoal.
9 É importante observar que Silva e Corte Real não aparecem no levantamento or-
ganizado por pesquisadores portugueses – para o período aqui analisado - sobre
as pessoas envolvidas na impressão e circulação de papeis em Portugal. Tal esforço
de pesquisa recebeu o nome de As gentes do livro (CURTO; et al, 2007).
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12 Na edição nº 136 o jornal informou que a primeira assinatura, válida por um ano,
venceria em 6 de novembro de 1822. A segunda assinatura foi semestral e venceu
na edição nº 190, de 7 de maio de 1823.
13 Por informarem a localidade de residência dos assinantes, essas listas permitem
a conclusão de que 174 residiam em São Luís, 212 no interior da província, e os
demais em outras províncias, como Grão-Pará e Rio Negro, Piauí e Ceará (29),
Portugal (1), Inglaterra (1), além de 24 localidades não informadas ou não locali-
zadas. Ver Marcelo Cheche Galves (2010, p. 138).
14 A relação dos assinantes pode ser consultada em Marcelo Cheche Galves (2010, p.
347-356).
15 As edições do Conciliador não oferecem maiores informações sobre a venda avulsa
do jornal, apenas informam que o periódico poderia ser comprado na botica do
padre Tezinho, na botica de Daniel Joaquim Ribeiro, e na própria Tipografia. Na
edição n. 192 (14/5/1823), o jornal informou que as assinaturas poderiam ser re-
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histórias sobre o brasil no oitocentos
novadas na casa de Costa Soares, na rua da Cruz, e em dois novos pontos de venda:
a loja de Manoel Antonio dos Santos Leal, na Praia Grande e a botica de Manoel
Antonio Godinho, no Largo do Carmo. Em outro trabalho, observei a sintomática
ausência dos opositores nas listas de assinantes do jornal (2010, p. 144-145).
16 Na edição nº 118 o Conciliador anunciou que a impressão da edição nº 8 seria a
última, propondo um novo acordo para os assinantes que pagaram pelos 34 núme-
ros. Cf. Conciliador, nº 118, 28/8/1822, p. 6.
17 Sem considerar aqui importantes variações no formato e no número de páginas,
saliento que, para a Bahia, Maria Beatriz Nizza da Silva (1978, p. 40) identificou
que o periódico Idade d’Ouro do Brasil custava primeiramente 60 e depois 80 réis;
em outro trabalho, a mesma autora (2007, p.10) observou que a Gazeta do Rio de
Janeiro era vendida a 80 réis, podendo chegar a 160 réis em edições extraordiná-
rias); Marco Morel (2005, p. 59) nos informa que os periódicos vendidos na livra-
ria do francês Pierre Plancher, no Rio de Janeiro, custavam entre 40 e 80 réis.
18 Em outro texto, observei que a novidade da impressão também alterou as formas
como o expediente do governo chegava até a população. Até então, ao som de
caixas, comunicava-se que os informes seriam afixados nos “lugares de costume”
(Galves, 2010, p. 79).
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19 Rubens Borba de Moraes (1979, p. 169-170) relacionou seis títulos impressos pela
Tipografia do Maranhão, entre 1821 e 1822, alertando para a necessidade de um
levantamento sobre essa produção, provavelmente maior. Alguns dos folhetos ci-
tados por Moraes foram reproduzidos numa publicação do Museu de Arte de São
Paulo (1979, p. 185-186).
20 Sobre o personagem, ver Marcelo Cheche Galves (2011, p. 99-122).
21 A polêmica pode ser acompanhada nas edições do Conciliador nº 52, 53, 55 e 68.
Posteriormente, Oliveira esteve a frente do periódico A Folha Medicinal.
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Considerações finais
O caráter oficial e o número expressivo de assinaturas garantiram ao Conci-
liador uma longevidade e regularidade (duas vezes por semana), pouco comuns
aos jornais da época. Com 212 edições, circulou até 23 de julho de 1823, cinco
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Referências
Documentos
Manuscritos
Arquivo Histórico Ultramarino
Requerimento do impressor Francisco António da Silva ao rei D. João VI, so-
licitando passaporte para se deslocar ao Maranhão. Anexo: 1 atestação.
CU 009, Cx. 166, D. 12.131.
Requerimento do compositor de letras Francisco José Nunes Corte Real ao
rei D. João VI, solicitando passaporte para se deslocar ao Maranhão.
Anexo: 1 atestação. CU 009, Cx. 166, D. 12.132
Representação dos moradores do Maranhão ao rei D. João VI, informando
sobre o Estado do Maranhão e solicitando que o governador, o juiz de
fora, entre muitos outros sejam substituídos. Maranhão, 24 de outubro
de 1821. CU 009, cx. 167, doc. 12.168.
Ofício do gov. e cap-gen. do Maranhão, Bernardo da Silveira Pinto da Fon-
seca, para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Joaquim José
Monteiro Torres, sobre ser útil a criação de uma imprensa e tipografia
no Maranhão. CU 009, cx. 167, doc. 12.182.
Arquivo Nacional
Arquivo Nacional, Diversas caixas 2H, caixa 741 A, pacote 24,49.
Arquivo Público do Estado do Maranhão
Livro 63.
Setor de Avulsos. Caixa: Diferentes Comissões/Presidente da Província do Ma-
ranhão – (1821-1888). Maço: Comissão da Tipografia Nacional da Pro-
víncia do Maranhão ao Governador e Capitão-General do Maranhão.
Biblioteca Pública Benedito Leite (MA)
239 (245) M1 G2 E9 - SOUSA, José Leandro da Silva. Concessão de 25% de
desconto para imprimir o Conciliador (23/12/1821).
254 (260) M1 G2 E11 - Recibo de 2 resmas de recibo para os correios
(7/3/1822).
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Protesto de lealdade e reconhecimento do povo ao Rei. Abaixo-assinado dos
cidadãos da província do Maranhão. Coleção Instituto Histórico. Lata
400, pasta 10, doc. 2.
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Impressos
Documentos oficiais
Bases da Constituição, 1821.
Disponível em: http://debates.parlamento.pt/Constituicoes_PDF/bases_
crp1822.pdf
Folhetos
LOBO, Antonio Telles da Silva. Resposta a Correspondência inserida no Spec-
tador nº CXVI - Ass. O Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Typografia de
Plancher, Impressor-livreiro de Sua Majestade Imperial, 1825. BN, Se-
ção de Obras Raras.
VELLOSO, Domingos Cadaville. Ao público. Respeito a Bruce e sua comitante
caterva... Rio de Janeiro: Tipografia de Plancher, 1826. BN, Seção de
Obras Raras.
Jornais
(O) Conciliador – MA (1821-1823)
(A) Folha Medicinal – MA (1822)
Bibliografia
CAMARGO, Ana Maria de Almeida; MORAES, Rubens Borba de. Bibliogra-
fia da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: EdUSP, 1993.
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(1799-1801). Bicentenário “sem livros não há instrução”. Lisboa: Im-
prensa Nacional-Casa da Moeda: Biblioteca Nacional, 1999.
COELHO, Geraldo Mártires. Anarquistas, demagogos e dissidentes: a impren-
sa liberal no Pará de 1822. Belém: CEJUP, 1993.
CURTO, Diogo Ramada (et al). As gentes do livro: Lisboa, século XVIII. Lis-
boa: BN, 2007.
FRIAS, J. M. C. de. (1866). Memória sobre a tipografia maranhense. 3 ed. São
Paulo: Siciliano, 2001.
GALVES, Marcelo Cheche. “Ao público sincero e imparcial”: Imprensa e Inde-
pendência do Maranhão (1821-1826). Tese apresentada ao Programa
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Capítulo viii
z
Circularidade entre parlamento e imprensa: um político pernambucano
alinhando-se à diretriz regressista de reabertura
do tráfico negreiro (1837-1842)
Ariel Feldman1
2 Alguns indícios apontam para um envolvimento de Lopes Gama e sua família mais
próxima com a propriedade agrária e a produção baseada na mão-de-obra escrava.
Pressupõe-se, contudo, que embora ele e sua família pudessem extrair algum lucro
com esse tipo de atividade, tratava-se de uma produção em pequena escala. Entende-
-se que a principal fonte de renda de Lopes Gama era oriunda de seu salário como
lente de retórica, das funções que exerceu nas instituições de instrução pública, dos
honorários que recebeu como deputado geral e provincial e da atividade jornalística.
Dessa forma, acredita-se que sua opinião em relação ao tráfico atlântico e à escra-
vidão não foi pautada em interesses pessoais ou familiares. Contudo, é preciso ter
e mente que Lopes Gama vivia em uma sociedade escravista, possuía escravos do-
mésticos e, muito provavelmente, se beneficiava de alguma forma do trabalho cativo
rural. Em 1831, ele defendeu publicamente sua irmã, Ana Boaventura do Carmo,
em uma querela envolvendo um empréstimo concedido pelo cônsul da Holanda.
Sua irmã precisava de dinheiro para comprar bois, escravos e outros materiais para o
Engenho Matupirama. Cf. Suplemento ao Diário de Pernambuco nº 74 (1831). Essa
irmã é a mesma que, segundo um amigo e biógrafo de Lopes Gama, o criara. Ainda
segundo esse biógrafo, “depois da abdicação, vendo Frei Miguel desamparada dos
bens da fortuna a sua irmã que o criara, D. Ana Benedita Boaventura do Carmo,
e suas sobrinhas, entendeu que devia secularizar-se, como, de fato, fez, [...] e cha-
mou-as para sua companhia (Diário de Pernambuco de 30/abril/1853)”. Conclui-se,
portanto, que Lopes Gama estava diretamente vinculado à renda e à sobrevivência
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convicção que a “Natureza, quando criou os homens de pele preta [...] foi de
propósito para que trabalhassem até a consumação dos séculos em lavouras
do Brasil”. Após demonstrar que o texto bíblico não corroborava com a insti-
tuição da escravidão, o Padre Carapuceiro reclamou que “pelo lado da Ciência
Econômica baldado é querer convencer a nossa gente dos prejuízos do tráfico
d’escravaria; porque eles sem estudarem por J. B. Say, por Mill, Ricardo, Store
&c., lá sabem fazer os seus cálculos, vão tirando boas safras, vão enriquecendo
aos pulos, rindo dessas teorias e provendo-se de mais escravos” (O Carapucei-
ro, n. 5, 16 jan 1839).
Lopes Gama articulou sua defesa da lenta abolição da escravatura e da
imprescindível abolição do tráfico em duas bases principais, a moral e a reli-
gião. Entretanto percebe-se, no trecho transcrito acima, que ele também esta-
va atualizado em relação às justificativas econômicas para o advento da mão
de obra assalariada. Sem entrar em maiores detalhes sobre o assunto, ele citou
os autores que lhe davam subsídio econômico-científico para justificar o fim
do trabalho escravo.
Em março de 1839, O Carapuceiro publicou artigo intitulado “Quem, ou
por que meio há de acabar entre nós a mercancia d’escravos da Costa d’África?”.
Segundo Lopes Gama, “tratados leis, regulamentos, tudo tem sido inútil, de
tudo tem zombado a cobiça dos homens”. Segundo ele, o tráfico acabaria da
mesma forma que acabou a moeda falsificada de cobre. Os falsificadores, de
tanto guerrearem entre si, de tanto atacarem fábricas de chanchã de seus ri-
vais, acabaram autodestruindo-se. Segundo Lopes Gama, “tem-se estabele-
cido companhias, cuja especulação é saltear por essas praias aos donos das
partidas d’escravos, e à força d’armas apossarem-se da preza.” Dessa forma,
acreditava ele, que o “excesso do mal trará o remédio, e as gerações futuras
ver-se-ão livres desse flagelo, desse gérmen de barbaridade e corrupção, que
só tem servido para empecer-nos no caminho da civilização e prosperidade”
(O Carapuceiro, n. 13, 23 mar 1839).5
Entre 1840 e 1841, O Carapuceiro teve uma interrupção. O motivo foi a
primeira viagem de Lopes Gama ao Rio de Janeiro. Em maio de 1840, ele as-
sumiu a cadeira de deputado geral suplente por Pernambuco, substituindo Se-
bastião do Rego Barros. Recém-desembarcado na corte, O Jornal do Comércio
noticiou: “ninguém há que não tenha lido os escritos deste insigne brasileiro...
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ninguém que não dê ao ilustre escritor um dos mais subidos lugares entre os
literatos que têm honrado a nossa Pátria”. Já O Despertador chamou-o de “o La
Bruyère do Brasil” (Mello, 1996, pp. 304-308).6 Este último jornal convidou-o
para escrever O Carapuceiro na Corte, que iniciou sua primeira edição assim:
O Carapuceiro na corte! Parece que deve estar como peixe n’água. Neste
grande e magnífico teatro nunca falece cabedal para toda laia de cara-
puças, de barretes, de toucas, bonés e berrés. Aqui a cada canto, a cada
momento, e como que à mão de semear, encontra o Carapuceiro ma-
téria prima de sobejo para o sortimento de sua fábrica. Mas o que po-
derá dizer de acertado e bom um pobre provinciano, um quase roceiro
na corte? [...] Eis-me na grande capital do império do Brasil. Sendo a
primeira vez que vejo o Rio de Janeiro, logo a entrada de seu porto me
surpreendeu pela sua grandeza e majestade (Transcrito no Diário de
Pernambuco, n. 197, 10 set 1840). 7
6 Jean La Bruyere foi um moralista francês do século XVII, que empreendeu uma
crítica aos costumes de seu tempo, principalmente através da obra Caracteres, um
dos mais famosos retratos morais da literatura francesa.
7 Conforme assinalou José Antônio Gonsalves de Mello, O Carapuceiro na Corte,
mesmo tendo um contrato de exclusividade com O Despertador, teve seus nú-
meros transcritos no Diário de Pernambuco entre setembro e novembro de 1840
(Mello informou, erradamente, que foi no ano de 1844). O Carapuceiro na Corte
foi publicado, no jornal carioca, entre 9 de agosto e 19 de outubro de 1840, nas
segundas-feiras, quintas-feiras e domingos. Cf. Mello (1996, p. 308 e 304)
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Depois de relatar a terrível condição dos cem mil escravos que a Ingla-
terra conservava no Malabar, Lopes Gama mostrou-se atento à política in-
ternacional e criticou, demonstrando indignação, o tratado que o gabinete
inglês então discutia com o governo de Madrid, o qual pretendia criar uma
comissão mista em Cuba, composta de juízes ingleses e locais. A função dessa
comissão seria a de declarar quais os africanos cativos deveriam ser libertados
por terem ingressado na ilha depois da cessação do tráfico. “E não quererão
logo o mesmo para o Brasil? E o que será de nós?” – questionava o Padre
Carapuceiro. Notemos que dessa forma ele convidava o leitor, especialmente
os “caros Patrícios Agricultores”, a descumprir a lei de 1831, a qual declarava
livre todo escravo desembarcado após aquela data. “O que seria de vós Ilustres
Agricultores, o que seria de todos nós, se esse tribunal chegasse a instalar-se
10 Jean Denis, ou Conde de Lanjuinais (1753 –1827) foi um político e pensador fran-
cês. Deputado girondino durante a revolução, refugiou-se no interior durante o
período jacobino e sobreviveu. Durante a monarquia restaurada (1815-1830) ain-
da exerceu importante atividade parlamentar.
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no Brasil?” – questionava ele –“Eu sempre entendi, e entendo, que muito nos
convirá acabar com esse tráfico de carne humana. Mas quando? Quando pode
ser, quando nós, e só nós tomarmos previamente as nossas medidas, a fim de
que nos não faltem braços” (O Carapuceiro, n. 24, 22 jun 1842).
No final do artigo, Lopes Gama defendeu a realização de tratados com
Portugal, nação com a qual o Brasil tinha estreitos vínculos históricos e, tam-
bém, econômicos; nação com a qual o Brasil compartilhava o sistema de abas-
tecimento de escravos vindos da costa da África. “Que belos amigos nossos
que são os ingleses!” – ironizava ele – “Querem tirar os braços às nossas lavou-
ras, querem reduzir-nos à extrema miséria [...]”. Por fim, mostrando estar ali-
nhado com as diretrizes do governo saquarema, que resistia à pressão inglesa,
conclamou: “coadjuvemos o governo em tão nobre, em tão vital empenho” (O
Carapuceiro, n. 24, 22 jun 1842).
A manutenção do tráfico negreiro, agora camuflada de resistência às pre-
tensões britânicas, tornava-se, para Lopes Gama, uma nobre e vital tarefa.
Menos de um mês depois, O Carapuceiro seguiu sua campanha pública
para detratar a política externa inglesa, escrevendo artigo intitulado “Iniquas
pretensões do Gabinete Inglês”. “E como se concebe que a Inglaterra, que na
Índia consente a escravidão dos brancos, [...] só tenha simpatia pelos negros?”
– perguntava Lopes Gama. Ele seguiu narrando diversas atrocidades inglesas,
como a compra que fizeram de grande quantidade de arroz em época de seca
na região indiana de Bengala, visando especular com o preço do grão. Segun-
do ele, “quatro milhões de habitantes foram vítimas desse capricho mercan-
til”. Ele narrou, também, atrocidades inglesas durante a guerra civil contra os
Estados Unidos, como a de um navio inglês “que capturou outro americano
carregado com 500 negros: tanto esses, como a tripulação foram lançados no
porão, onde mais da metade morreu nas mais horríveis angústias!” (O Cara-
puceiro, n. 29, 9 jul 1842).
Concluiu o Padre Carapuceiro que os ingleses queriam “fazer toda a ter-
ra dependente da sua agricultura, do seu comércio, das suas manufaturas, e
dos seus artistas [...]”. Seguiu ele afirmando que a Inglaterra bem sabia “que
a agricultura do Brasil, única fonte de sua riqueza, não pode sem total ruína
dispensar repentinamente os braços africanos”. Tratado bilateral, no enten-
der de Lopes Gama, apenas com “nosso irmão Portugal”. Concluiu afirmando
que não havia um só desses africanos libertados “pela humanidade britânica
e conduzido para as colônias inglesas, que no caso de poder fazer a compa-
ração, não preferissem a essa liberdade irrisória o cativeiro do Brasil”. Ele ter-
minou esse artigo de forma muito semelhante ao anterior publicado semanas
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Por que O Carapuceiro mudou tão drasticamente de posição? Por que entre
1837 e 1839 o jornal de Lopes Gama não transigia com a continuação do tráfico
negreiro e a partir de 1842, passou a defendê-la? São três as respostas possíveis.
A primeira resposta está na conjuntura da expiração do tratado comer-
cial anglo-brasileiro de 1827. Previsto para expirar em 1842, uma artimanha
inglesa na interpretação do tratado prorrogou-o por mais dois anos. Estavam,
dessa forma, abertas as negociações para a assinatura de um novo tratado
comercial. De um lado, os diplomatas brasileiros tentavam obter a redução
das altas tarifas alfandegárias que insidiam na entrada do açúcar em territó-
rios britânicos. Os ingleses, por outro lado, condicionaram as negociações à
emancipação, em data a ser negociada, do ventre escravo e a uma declaração
do governo brasileiro que consideraria a emancipação de todos os escravos
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dos britânicos, várias vezes, sentenciaram por conta própria. O resultado des-
sa nova política britânica foi contundente. Uma quantidade inédita de navios
negreiros foi interceptada, julgada e desmantelada (O Carapuceiro, nº 53, 1
out 1842).
A mudança de postura de Lopes Gama pode ser, assim, explicada por
causa da nova política externa inglesa em relação ao tráfico, mais agressiva e
unilateral.
A terceira resposta pode explicar melhor a mudança de postura de Lopes
Gama. A nova política externa inglesa não é capaz de explicar por si só essa
tão drástica transformação ideológica que sofreu O Carapuceiro. Afinal, não
seria possível o Padre criticar a hipocrisia inglesa e, ao mesmo tempo, manter
a opinião de que era urgente acabar com o tráfico negreiro? Entendemos que
Lopes Gama, durante sua breve experiência parlamentar, aproximou-se dos
saquaremas. Ao transitar nos corredores da Assembleia Geral, ao estabelecer
contato cotidiano com os políticos que capitaneavam a reabertura do tráfico
em forma de contrabando, o Padre Carapuceiro converteu-se em um defensor
da manutenção do comércio de almas. Afinal, por mais que existissem, em
Pernambuco, setores que pleiteavam o descumprimento da lei de 1831, foi o
vale do Paraíba o principal responsável pela importação massiva de africanos
a partir de 1837. Era do Rio de Janeiro que emanava a principal força do mo-
vimento escravista. Ademais, o volume do tráfico negreiro para a província de
Pernambuco caiu bruscamente na década de 1840.11
Quando deputado geral em 1840, Lopes Gama recebeu, como membro
da comissão de câmaras municipais, uma solicitação da vila do Presídio para
que a lei de 7 de novembro de 1831 fosse revogada. A solicitação foi repassa-
da para a comissão de justiça criminal, pois esse era o procedimento padrão
em petições semelhantes (Annaes do Parlamento Brazileiro, sessão de 21 mai
1840). Dessa forma, Lopes Gama pode ver na prática a enxurrada de petições
que a sociedade civil enviou ao parlamento no sentido de não obstar a entrada
de africanos no Brasil. Entre 23 e 25 de maio, o Padre Carapuceiro acompa-
nhou, silenciosamente, uma longa discussão na plenária sobre a revogação
da mesma lei (Annaes do Parlamento Brazileiro, sessão de 21 mai 1840). Ele
estava, em 1840, no centro do debate público que justificou a continuidade do
tráfico sistêmico no Brasil (O Carapuceiro na Corte, transcrito no Diário de
Pernambuco, n. 197, 10 set 1840).
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Acreditamos que a corte não impressionou Lopes Gama apenas pela “en-
trada de seu porto” e “pela sua grandeza e majestade” (O Carapuceiro na Corte,
transcrito no Diário de Pernambuco, n. 197, 10 set 1840). As discussões par-
lamentares e o seu contato com os saquaremas parece que também surtiram
grande impressão no padre provinciano. Não pode ser casual uma mudança
de postura tão drástica. Como explicar que o principal elemento do discurso
escravista foi ridicularizado e considerado imoral por Lopes Gama até 1839 e,
a partir de 1842, ele passou a ter sentido? Antes de 1840, como vimos, o Padre
Carapuceiro achava imoral justificar a importação de braços africanos usando
o argumento de que a agricultura ainda não estava preparada para prescindir
da importação de escravos. Em 1842, esse passou a ser um elemento chave em
seu discurso.
Tudo indica que sua convivência com os políticos que consolidaram o Es-
tado imperial brasileiro tendo como uma de suas principais bases o binômio ca-
fé-escravidão gerou grande impressão na mente de Lopes Gama. Até porque ele
demonstrou independência de ideias, inclusive, em relação a seu irmão. Mesmo
sendo membro do Partido da Maioria, Caetano Maria Lopes Gama defendeu
no senado, em 1843, o fim imediato do contrabando negreiro, com o argumento
de que a raça africana espantava a imigração estrangeira do Brasil (Escosteguy
Filho, 2010, p. 119-124). Seu poderoso irmão, apesar de regressista, foi carac-
terizado por Leslie Bethell (2002, p. 360) como “um inimigo do comércio de
escravos”.12 Como entender uma radical mudança de postura do Padre Carapu-
ceiro e, além disso, uma independência intelectual em relação a seu principal
padrinho político? Acreditamos que a experiência parlamentar foi decisiva nes-
sa intrigante inflexão do ideário político de O Carapuceiro.
12 Tâmis Parron (2010, p. 149), por sua vez, afirmou que o irmão de Lopes Gama,
em 1840, quando assumiu o ministério dos estrangeiros, “criticava abertamente a
reabertura do tráfico”. A politica da escravidão no império do Brasil, p. 149. Caetano
Maria Lopes Gama foi, também, plenipotenciário em Londres do gabinete regres-
sista de 23 março de 1841, quando renegociou um tratado internacional que regu-
lamentava as condições de aprisionamento de navios negreiros sem carga humana.
Se o tratado renegociado pelo futuro Visconde de Maranguape não era exatamente
o que os ingleses queriam, ele poderia ter auxiliado bastante a marinha britânica
no combate ao tráfico. O mesmo gabinete que enviara Caetano Maria Lopes Gama
a Londres, porém, rejeitou o “contra-projeto” negociado por ele em Londres. Cf.
o discurso de Paulino José Soares de Souza no parlamento transcrito no diário
pernambucano A União nº 284, (3 ago. 1850).
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Referências
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Historiografia e
escravidão
Capítulo ix
z
Sergipe oitocentista nos estudos de História da Historiografia
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te. A novidade, contudo, está no olhar preciso que Vladimir lançou sobre os
dois livros de Felisbello, destacando o valor do capítulo dedicado a Sergipe na
Historia territorial do Brazil (1906). Para o analista, os livros de Felisbello se-
riam “os dois maiores monumentos” da Historiografia Sergipana, “a ponto de,
depois deles, não aparecer nenhum outro de destaque e mérito equivalentes”
(Carvalho, 1973, p. 12).
Algumas das ausências notadas na análise de Silvério Fontes não foram
ignoradas por Vladimir Carvalho. O álbum de Clodomir Silva, por exemplo,
ocupada lugar de destaque em seu estudo sobre os fazeres historiográficos em
Sergipe. Segundo Vladimir, com o Album de Sergipe (1920), Clodomir havia
dado “excelente contribuição”, com significativos avanços heurísticos, “que fa-
zem de seu trabalho um livro sério e paciente”, e com a divulgação de uma far-
ta documentação fotográfica referente à capital e aos municípios sergipanos
de princípios do século XX.
Assinalemos que existem mais encontros que desencontros entre as aná-
lises de Vladimir e Silvério. A avaliação que fazem, por exemplo, da contri-
buição de Acrísio Tôrres de Araújo e J. Pires Wynne são convergentes. Mes-
mo notando certa superioridade de Pires Wynne em relação a Acrísio Tôrres,
Vladimir concluiu que “tanto um como o outro seguem de perto as pegadas
de Felisbelo Freire, perdendo-se a partir do instante histórico (1855) em que o
historiador itaporanguense encerra seu [primeiro] trabalho” (Carvalho, 1973,
p. 12). O veredito é, a nosso ver, justo e preciso: “nada de novo trouxeram”.
A análise de Vladimir possui conclusões dignas de nota. Esse é o caso
da avaliação que fez da tinta gasta com a questão dos limites entre Sergipe e
Bahia. Plenamente de acordo, transcrevemos sua conclusão:
Tivessem os historiadores sergipanos se dedicado à história de Sergipe
como se entregaram, em certa época, à questão dos limites de Sergipe
e Bahia, estaríamos hoje em situação diferente. A polêmica dos limites
foi o tema que mais suscitou pesquisas, e quem quer que soubesse ou
não um pouquinho de História, entrou na liça com um trabalho publi-
cado, embora por vezes irrisórios (Carvalho, 1973, p. 13).
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O cotejo das análises de José Silvério Leite Fontes e Vladimir Souza Car-
valho (somado ao estudo das obras por eles arroladas) lava-nos a concluir
que, até fins de 1972, os principais “textos historiográficos” sobre Sergipe
oitocentista eram: Historia de Sergipe (1891) e Historia territorial do Brazil
(1906), de Felisbello Freire; Album de Sergipe (1920), de Clodomir Silva; além
de estudos sobre a capital de Sergipe, como Aracaju: contribuição à História
da capital de Sergipe (1942), de José Calasans; A cidade de Aracaju (1945), de
Fernando Porto; e Laudas da História do Aracaju (1955), de Sebrão sobrinho.
Ao que tudo indica, não houve uma interlocução direta entre as interpre-
tações de Silvério Fontes e Vladimir Carvalho acerca da História da Historio-
grafia Sergipana, posto que a segunda contribuição, publicada em 1973, teve
sua redação final concluída em princípios de 1972 (conforme nota do autor),
meses antes, portanto, da veiculação da primeira nos Cadernos da UFS. Nesse
sentido, o nome de dois bacharéis em Direito, José Silvério Leite Fontes e Vla-
dimir Souza Carvalho, refletem ações pioneiras nos estudos de História da His-
toriografia Sergipana, campo que logo seria alargado por outro bacharel, José
Calasans Brandão da Silva, de cuja contribuição trataremosoportunamente.
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Capítulo x
z
A retórica cristã e o comitê pelo fim do tráfico na França (1822 -1827)
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Aurenche (2010, p. 305) destaca que esse efeito midiático era incomum
no contexto da época, mas diante da desmobilização geral, o Comité conside-
rou fundamental seguir esse caminho. Aliás, dado o clima geral de censura por
parte do governo de Carlos X, os argumentos cristãos se afiguravam no apelo
possível. Os ultrarrealistas, partido mais à direita deste período, permanecia em
alerta em relação aos princípios liberais que pudessem ser vinculados à causa.
Em abril de 1827 aprovou-se com o voto de 220 deputados a lei de re-
pressão mais severa ao tráfico. Esse fora o grande triunfo da década de 1820,
que elevara o combate ao tráfico à causa cristã. O número 46 do Jounal (1828,
p. 258-260) reproduziu a lei relativa à repressão, conferindo destaque ao as-
sunto. No número seguinte (1828, n. 47, p. 316-317), curiosamente, o perió-
dico reportou a notícia do jornal inglês, The Globe and traveller, a respeito da
discussão do relatório da Comissão que elaborou o acordo com a Inglaterra
para a abolição dos escravos no Brasil. Descreveu-se detalhadamente o clima
da votação, e destacou-se a defesa da lei antitráfico pelo Arcebispo da Bahia.
O ano de 1827 significou, consoante Lawrence Jennings (1994), a desa-
celeração das atividades do Comitê, atribuída por ele à morte do Barão de
Staël. Edward Thayer, secretário do Comitê, publicou importante pista dessa
desaceleração:
No entanto, o Comitê considerou oportuno não restringir suas atribui-
ções, e agora abraçar a grande causa da abolição da escravidão; o que
pode fazer agora, porque o trãfico, se não é impossível, tornou-se muito
mais difícil, e por consequência muito raro, por não opor obstáculo
invencível à libertação dos escravos (Journal, 1829, p. 170).
187
Certamente, a segunda lei de proibição do tráfico foi considerada mais
efetiva pelo Comitê e as articulações podem ter se desenvolvido em torno
do futuro da comissão. Em 1827, a presidência do Comitê era exercida pelo
duque de Broglie, membro da Câmara de Lordes. Pode-se considerar Broglie
herdeiro de Auguste de Staël, com quem mantinha laços consanguíneos já que
se casara com sua irmã, Abertine de Staël. Além disso, o comitê ampliara seu
quadro de associados e agora contava com 28 membros: “[...] Sessão de maio
de 1827. O Comitê, desejando dar mais atividade a seus trabalhos, decide que
o número de seus membros será aumentado.” (Jounal, 1828, p. 215). É curioso
que os assuntos daquele ano tenham sido publicados no ano seguinte, razão
pela qual a pesquisa se estendeu sobre o ano de 1828, mesmo que a segunda
lei antitráfico tenha sido promulgada em 1827. Não se encontrou justificativa
para o interregno, mas a publicação foi continuada no ano seguinte com no-
tícias do ano anterior.
À Guisa de conclusão
Com a instalação da monarquia liberal de Julho, em 1830, antigos mem-
bros do Comité ascenderam politicamente e puderam, de seus postos de co-
mando, enfrentar os poderosos interesses coloniais. Desde que a Inglaterra
decretara o fim da escravidão em suas colônias, a continuidade da escravidão
exigiria do governo liberal o confronto com forte oposição aos interesses in-
gleses. O governo francês, contudo, passou a adotar posição moderada para
não criar maiores inimigos, nem externos nem internos. Equilibrava-se entre
as exigências, principalmente, britânicas e os interesses coloniais, já que a per-
da de São Domingues, considerada a joia do Caribe, ainda resultava em certa
impopularidade do abolicionismo. Dos combates ao tráfico, restara o con-
vencimento de o gradualismo se constituir no processo mais acertado para
as possessões francesas. Os novos líderes recolhiam do vasto arsenal de ideias
estocadas nos duros anos da Restauração a construção de nova relação com as
colônias. O projeto gradualista dos membros do Comitê guiou a elite liberal e
somente a força da revolução de 1848 abalaria esse plano, que acabou com a
escravidão definitivamente em terras francesas.
Referências
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Capítulo xi
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As dimensões do complexo cafeeiro: tráfico ilegal de africanos e
segunda escravidão ao sul da antiga Província do Rio de Janeiro
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– foi vereador entre 1845-48 e 1854-56, além de Capitão Mor da Guarda Nacional
entre 1848-49; José Frazão de Souza Breves – filho do Comendador –também ve-
reador entre 1856-60; Antônio Joaquim de Souza Breves – outro sobrinho - ocu-
pou o mesmo cargo entre 1858-60 e 1865-67. O sócio Miguel Antônio da Silva
exerceu nada menos que a presidência da Câmara por uma década entre 1842-52.
O próprio Joaquim Breves, em 4 de Outubro de 1841, foi nomeado Comandan-
te Superior dos municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Paraty, e São João do
Príncipe; assim como representou o município de Mangaratiba, após nomeação
da Câmara, na Coroação e Sagração do Imperador em 18 de Julho de 1841. CRL.
AlmanackLaemert (1844-1889) e FMP, Atas da Câmara de Mangaratiba.
5 Sobre Miguel Antônio da Silva, a Câmara enfatizava ao Presidente da Província
que “lançando o olhar sob a linha dos subscritores verá que o cidadão Miguel An-
tonio da Silva que tanto se interessa pelo bem estar, aumento e grandeza desse
lugar nada subscreve apesar de lhe ter sido apresentada a lista da subscrição mais
de uma vez”. A assertiva atesta os interesses diametralmente opostos entre o sócio
de Breves e os negociantes da Vila (FMP, Atas da Câmara, Livro 5, folhas 144-47)
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José dos Santos Breves & C (1838-55); Santos Breves & C (1855); Breves & Irmão
C. (1846-53); Antônio Joaquim de Souza Breves & C. (1845-59); Antônio Lourenço
Torres (1849-64); José Frazão de Souza Breves & C. (1856-59); Miguel Antônio da
Silva & C. (1838-51). Fontes: FMP. Livros de impostos sobre Alvarás de Licença para
Casas de Negócio (1838-1882). CRL. AlmanackLaemmert (1844-1889)
9 A partir do final da década de 1850 encontramos na Corte as seguintes Casas
Comissárias vinculadas direta ou indiretamente à família Breves: José Frazão de
Souza Breves e C - Comissões de café e outros gêneros – (1858-66); Joaquim Luiz
de Souza Breves e C. - Consignações de café – (1864-78); Souza Breves & Josué -
Comissões de café (1879-89); Antônio Lourenço Torres & C.- Comissões de café e
outros gêneros – (1867-73); Antônio Lourenço Torres Junior – Comissões (1874-
76). Fontes: CRL. AlmanackLaemmert (1844-1889).
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O não dito do ofício era que a crise do município, antecipada nos anos de
1850, muito provavelmente também tinha a marca do fim do tráfico. Até os
primeiros anos daquela década, os negociantes do litoral queriam muito mais
do que apenas negociar café nos novos portos edificados em praias antes ina-
bitadas, ou nas margens e desembocaduras de rios. Os principais portos acio-
nados na cabotagem do café e no abastecimento das fazendas abrigavam tam-
bém a estrutura do tráfico negreiro durante a clandestinidade; assim como os
caminhos que desciam com o café rumo a Corte, na volta, também levavam
milhares de africanos reduzidos ilegalmente à escravidão no Império. Sobre-
puseram-se às estruturas da cabotagem e do comércio negreiro, acoitando o
ilícito trato até os primeiros anos da década de 1850.
Como vimos, o porto do Saco de Mangaratiba era um dos principais pon-
tos do comércio de cabotagem ao Sul da província do Rio de Janeiro. Para lá
desciam a produção cafeeira de São João do Príncipe, Piraí, Barra Mansa e
Resende, comercializadas em mais de duas dezenas de casas de negócio ali es-
tabelecidas em meados da década de 1840. A presença hegemônica dos Breves,
em especial de Joaquim e de seu sobrinho João, era evidente na arrematação da
reconstrução da estrada que ligava São João do Príncipe ao Saco. No litoral, re-
forçavam seu domínio com o estabelecimento de casas de negócio, armazéns e
demais propriedades em torno da Chácara dos Breves à beira da Praia do Saco.
Em meados da década de 1830, diante do fechamento do tráfico nos portos
de desembarque tradicionais da província, como o famoso mercado Valongo,
estruturas edificadas, a princípio, para atender os negócios da cabotagem, pas-
saram também a ser revertidas para o comércio negreiro em escala atlântica.
As disputas políticas locais e a crença em uma lei constituída, a priori, para ser
cumprida (Parron, 2012, p. 41-119), nos fazem ver por onde entram mais de
700 mil africanos desembarcados ilegalmente no Império do Brasil:
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vista do exposto, mas parece que V. Exa. faria uma boa caçada se man-
dasse quanto antes um vapor comandado por algum oficial de honra
que não transigisse com os contrabandistas [...].(BN, Seção de Manus-
critos I, 48, 17, 34 - grifos meus)
A figura chave dessa história é o caixeiro que “dera o serviço” para o su-
cesso da empreitada. Se o comandante do tumbeiro atracasse na praia certa,
sob a jurisdição do delegado Vieira de Aguiar, comprado pelos traficantes, a
finalização do empreendimento era dada por certa. Assim, seu sucesso depen-
deria apenas da astúcia e da sorte do dito caixeiro em seguir pelos caminhos
certos, e não esbarrar com ninguém que quisesse se assenhorar de suas “pe-
ças”, fossem ladrões de cativos, ou alguma autoridade fiel às determinações de
Euzébio após Setembro de 1850.
Voltando para a década de 1830, em 17 de abril de 1837, cerca de cinco
meses após o incidente envolvendo o Juiz de Paz da Vila de Mangaratiba, no-
vamente a Câmara notificara o governo provincial a fim de que ele impedisse
que os pacatos habitantes de Mangaratiba fossem sucumbidos por “dias tor-
tuosos e sanguinários, a sina do Ceará, um segundo Pinto Madeira” (FMP,
Atas da Câmara, Livro 5, folhas 136 e 137). A comparação não era gratuita:
Joaquim Pinto Madeira havia se tornado rico proprietário rural e ocupara
a cena política do sertão cearense em meados da década de 1820. Filiado a
Sociedade Secreta Coluna do Trono, Madeira comandou, no início de 1832, o
movimento restaurador local, em defesa do retorno do Imperador ao trono
que havia abdicado meses antes (Barão de Studart, 1910). As ações de Pin-
to Madeira, antes de seu fuzilamento em novembro de 1834, o eternizaram
na memória local como “monarquista convicto, pessoa rancorosa e vingativa,
que acumulava inimigos”.11 A pequena lembrança da Câmara ao governo do
Império tinha endereço certo: evidenciar as ações ilícitas de Joaquim Breves
no movimentado porto do Saco de Mangaratiba em Janeiro de 1837:
Em dez de janeiro [...] [1837], foi apreendido pelo juiz de paz desse mu-
nicípio o Patacho que se diz português, e que se denomina “União Feliz”
por ter-se ligado desde 1835 no ilícito, imoral e desumano tráfico da es-
cravatura, e que acabara de verificar um desembarque de africanos no lu-
gar onde fora apreendido e porque tivesse ingerência nessa embarcação,
Joaquim José de Souza Breves, e conhecendo este não poder corromper
o Juiz de Paz, então em exercício, partindo de raiva força assenhorear do
11 http://coisadecearense.blogspot.com.br/2011/08/historia-do-ceara-pinto-madei-
ra-e.html.Acessado em 2 de Janeiro de 2014.
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mesmo Patacho [...] que por cautela estaria depositado no Forte da Guia,
fazendo de novo navegar a fim de transportar talvez outro carregamento
de infelizes (FMP, Atas da Câmara, Livro 5, fl. 136 e 137).
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fim de dar por ela entrada a tão infame comercio, de nada mais serve,
porque jamais alguém se lembraria de deixar uma estrada policiada e
povoada como a que existe para se meter a uma vereda, sem um fim
sinistro. Isto vislumbra aos olhos do mesmo atilado e do maior idiota
[...] A capa do bem público com que se acobertam é cediça para cobrir
gente que já não engana a quem o conhece, e nem a esta Câmara des-
lustra a maneira porque é atacada nessa miserável representação em
que adverte se lhe opõe o desejo de favorecer a dois testeiros do dito
caminho, porque ninguém há que o conheça, que não veja que com essa
deliberação por ela tomada, nada lucraram a não ser o virem livres das
vistas de traficantes infames” (FMP, Atas da Câmara, Livro 5, fl. 191,
192 e 193 - Grifos meus)
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11 e 26
BN: Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos. I 48, 17, 34.
CRL: Center for Research Libraries. Brazilian Government Documents.Alma-
nackLaemmert (1844-1889).
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Militares
Capítulo xii
z
Tensões Políticas entre o Comando das Armas e a Junta Provisória de
Governo do Espírito Santo no início da década de 1820
revista costumeira. Haveria uma revista mais criteriosa apenas das embarca-
ções das quais se tivesse “desconfiança” (Arquivo, série 751). Ignácio Pereira
Duarte Carneiro, o primeiro Comandante das Armas do Espírito Santo, não
gostou muito dessa ordenação feita pela Junta. No dia dezoito de março de
1822 correspondeu-se com a Junta:
Tendo recaído em mim o Comando das armas desta Província [...] em
consequência da instalação do seu no novo governo, julguei como pri-
meiro dever dirigir-me no mesmo dia [...] à presença da Exma Junta
congratulando-me com ela, e asseverando-lhe a prontidão com que me
prestaria a suas aquisições, em tudo quanto fossem relativas ao Serviço
Público Nacional, obrigação imposta pelo Decreto das Cortes Gerais, e
Constituintes da Nação Portuguesa de 29 de setembro do ano passado
[...] vejo porém, que a Exma Junta desta Província não cumpre para
comigo este mesmo dever, que contraiu com as atribuições de que goza,
e que eu religiosamente lhas farei valer com a força que me está confia-
da, porquanto, ontem me participa o Tenente encarregado do comando
da fortaleza da Barra por ocasião de o repreender por deixar sair sem
as revistas, e formalidades do estilo a sumaca de João Ignácio Roiz, a
qual se fez de vela a uma hora da manhã do dia 16, que tem ordem dos
Senhores do Governo para deixar sair a qualquer hora todas as embar-
cações sem senha e só sujeitas ao registro. Todas as Fortalezas e Praças
de Guerra são sujeitas ao Governador, ou Comandante de Armas da
Província em que estão incluídas, a estes imediatamente obedecem, e
respondem; e por consequência nenhuma outra autoridade [...] pode
expedir-lhe ordens. Se a Exma Junta Provisória julga conveniente, ou
a benefício do Comércio, e da Navegação qualquer alteração no siste-
ma estabelecido, e seguido até agora nas fortalezas, deve participar-me,
para que eu lha faça por em prática, se também o julgar conveniente,
e útil pois como Comandante das Armas sou responsável pela defesa,
e segurança da Província, e por outras obrigações que me impõe o Re-
gimento que as Cortes me mandam seguir: este, e não outro o espírito
do citado decreto.
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A trajetória de José Ribeiro Pinto isso indica, uma vez que era dono de duas
embarcações. Uma vez na Junta, um dos primeiros atos foi justamente o de
cumprir essa demanda, que facilitaria as atividades mercantis da elite regio-
nal. Além disso, o Comandante das Armas usara o caso de João Ignácio Roiz
como exemplo para apontar como as ordens da Junta referentes às embarca-
ções ameaçavam a segurança da província. João Ignácio Roiz, por sua vez,
era um grande negociante local. Roiz fez três viagens comerciais entre 1817 e
1818, mas se destacou como fiador de viagens de embarcações saídas do Espí-
rito Santo, em um total de trinta entre 1815 e 1825. Também era um membro
da elite econômica local, como os membros da Junta Provisória, também in-
teressados em desatravancar o trânsito das embarcações no litoral do Espírito
Santo. Esse interesse, no entanto, esbarrou com a autoridade do Comandante
das Armas, que foi validada pelo Príncipe Regente a partir do Rio de Janeiro.
Duarte Carneiro, entretanto, não logrou por muito tempo a sua vitória
sobre a Junta. Em correspondência originada do Palácio do Rio de Janeiro, em
quinze de abril de 1822, mandava Sua Alteza Real, pela Secretaria de Estado
dos Negócios da Guerra, que a Junta Provisória do Governo do Espírito Santo
entregasse o Comando das Armas ao Coronel Inspetor Julião Fernandes Leão,
sendo o antigo Comandante conduzido à Comissão que tratava dos assuntos
relativos à estrada de comunicação entre as províncias de Minas Gerais e Espí-
rito Santo. O motivo apresentado para essa substituição era o de que o Decreto
das Cortes de 29 de setembro de 1821 determinara que o Comando das Armas
deveria recair sobre aquele que tivesse maior e mais antiga patente na provín-
cia. Segundo a mensagem palaciana, era o Coronel Inspetor de Pedestres Julião
Fernandes Leão que correspondia a essa exigência, e não o Tenente Coronel de
Pedestres Ignácio Pereira Duarte Carneiro (Arquivo, série Accioly).
Em meados de 1822, a descrição que a Junta fazia de Julião Leão apontava
que a mudança no Comando das Armas não significava tempos mais tranqui-
los. Julião, pelo contrário, foi caracterizado pela Junta como alguém sem zelo
pela segurança da Província e seus habitantes, preocupado apenas em fazer
valer a própria vontade. Para a Junta, prova disso era a atitude de Julião Leão
de querer retirar da povoação de Linhares o Quartel de Avis, que, segundo
relato da Junta, era a defesa da vida e das lavouras dos habitantes daquela
povoação contra os indígenas. Com essas e outras atitudes, o Comandante
das Armas só avivava a queixa dos povos desta província (Arquivo, série 751).
Ainda em meados de 1822, a Junta Provisória do Governo apontava ou-
tra arbitrariedade de Julião Leão. O Comandante das Armas era questionado
pelas prisões por ele efetuadas “à ordem de Sua Alteza Real”. Segundo a fala da
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diatamente era subordinado, qual seja a Junta da Fazenda Nacional, uma vez
que dela era Deputado Escrivão e não havia membros com quem se pudessem
a Junta reunir para a nomeação de outro, “[...] e o Governo não pode passar
a bem dos deveres que lhe são prescritos, portanto a estagnação dos negócios
públicos tão nociva nas presentes circunstâncias e ao bem do serviço nacional
ser por ela V.S. responsável à S.A.R.” (Arquivo, série 751)
Por meio dessas prisões, Julião Leão neutralizava importantes instâncias
de poder local, nas esferas da segurança e das finanças. Mas o Comandante
das Armas não estava sozinho em sua ação. Em correspondência enviada a
José Bonifácio em três de julho de 1822, a Junta do Governo Provisório alerta-
va ao Ministro de Dom Pedro que o Comandante das Armas Julião Fernandes
Leão era aliado do Juiz Ordinário da Vila de Vitória João Antônio Pientz-
nauer, este acusado de não querer
[...] responder aos requerimentos que lhe vão a informar dirigidos pelo
Governo em matérias de sua competência e os deixa ficarem-se não
dando execução alguma [...]; este Juiz pelas imensas arbitrariedades,
e injustiças praticadas em abuso de sua jurisdição se tem constituído
odiado de todo o Povo desta Vila que (vivem?) em geral desgostosos,
ele já estaria suspenso conforme o determina o § 8º da Carta de Lei
de primeiro de outubro do ano próximo passado se não estivesse sem
ouvidor a cabeça da Câmara para lhe formar a culpa no prazo determi-
nado, e essa mesma falta tem dado motivo a todos os acontecimentos
de falta de justiça [...]. (Arquivo, série 751)
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posta desta e das mais Câmaras poder o Governo fazer presente a S.A.R.
o sentimento unânime de todas elas e prazer que tenham com a sua
ficada no Reino do Brasil, todas as Câmaras desta Província se congratu-
laram, e responderam dizendo ser esse o seu desejo como fará presente
o secretário deste Governo nessa Corte: porém o Juiz Pientznauer não
quis que a Câmara respondesse ao ofício até o presente, e indo à casa
do presidente deste Governo disse ser perjuro o Governo em prestar
obediência a S.A.R. e por falta de resposta desta Câmara não pudemos
fazer presente a S.A.R. mais positivamente os sentimentos desta pro-
víncia quando estamos certíssimos que nunca foi esse o sentir dos mais
membros da Câmara pois agora com todo o prazer no mês da presi-
dência do Juiz Luiz da Fraga Loureiro se reuniram para arbitrarem com
público regozijo o novo título que S.A.R. se dignou aceitar, e por meio
do Procurador Geral desta província se dirigiram ao mesmo Augusto
Senhor a significar-lhe a sua adesão, e reconhecimento aquele juiz ordi-
nário [João Antônio Pientznauer] censura publicamente da deputação
com que foi a presença de S.A.R. ao secretário deste Governo diz que a
este Governo não pertencem atribuições algumas, e zomba inteiramente
por onde se acha, do governo, favorecido, e fiado no Comandante das
Armas que da mesma maneira se porta pois se rege pelos ditames da-
quele Juiz Pientznauer, e ambos procuram desassossego da Província,
e sua total ruína. Enfim Excelentíssimo Senhor, esta Província a quem
desejamos prosperar não poderá existir feliz sem S.A.R. se digne enviar
um Comandante de Armas dessa Corte, que não ignore os seus deveres,
e que entre no seu exercício sem antecipação de ódio e vingança; e um
ouvidor que debaixo das sadias leis governe com justiça os povos e casti-
gue seus subalternos quando atropelam a justiça, e se querem constituir
verdadeiros chefes do despotismo. (Arquivo, série 751)
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com os casais das Ilhas dos Açoires, que se mandarão estabelecer nes-
ta Província; concedendo-se também agora a estes nossos colonos, os
terrenos proporcionados, livros de todas as despesas de demarcações,
cartas, e confirmações destas, que às vezes importaram em tanto, ou
mais do que vale o pequeno terreno concedido. Por este meio podere-
mos afirmar que se consiga povoar aquela estrada, e que estabelecidos
estes a quem a necessidade obriga servirão então de estímulo aos mais
poderosos, que por não terem tanta necessidade não se querem arriscar
ao Gentio; ao mesmo tempo, que aqueles dizem, que o que mais temem
é para o futuro virem a perder os seus trabalhos por falta de legalidade
de seus títulos, que só uma lei, ou ordem Real pode afiançar.”
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Referências
ARQUIVO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo Governadoria Série
383. Livro 208 Ofícios recebidos Presidente de Província do Espírito
Santo. Vitória.
ARQUIVO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo Governadoria Catálo-
go da Série 751 livros. Registro de Ofícios do Governo Provisório. Vitória.
ARQUIVO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Fundo Governadoria Ca-
tálogo Provisório Série Documental Accioly Nº 3º. Correspondência
Governo do Reino. Vitória.
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Capítulo xiii
z
Imprensa Militar, Guerra e transferência de tecnologia para
a Marinha no Brasil Oitocentista1
Ano de
Título País
Referência
Fontes: Catalogues de la Bibliothèque Impériale. Paris: Librarie de Firmin Didot, frères, fils etc,
1857; Boletim del Centro Naval. Buenos Aires: 1882; 19th Century British Library Newspaper T
U Delft Library; Catálogo Metódico da Biblioteca da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Espe-
rança,1879 Apud Nascimento, 2015.
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O Militar 1839 01
O Militar 1854-1861 25
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O Soldado 1881 36
O Marinheiro 1881 01
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debatidos por esta imprensa militar. Por outro lado, estas publicações estão
perfeitamente inseridas em um mercado nacional de produção editorial parti-
cipando da constituição de um espaço público nos Oitocentos. Localizando a
origem deste processo no momento da independência, Marco Morel observou:
É neste momento crucial que começa a se fazer de maneira mais con-
sistente, no Brasil, a passagem de um espaço público marcado pelas
formas de comunicação típicas dos Antigos Regimes (como as gazetas,
pregões, bandos, exibição de cartazes impressos nas ruas, leituras cole-
tivas e proclamações em voz alta entre outros) para um espaço público
onde se consolidavam debates através da imprensa (que nem sempre
era vinculada ao poder oficial do Estado) e onde ganhavam importân-
cia as leituras privadas e individuais permitindo a formação de uma
opinião de caráter mais abstrato, fundada sobre o julgamento crítico
de cada cidadão-leitor e representando uma espécie de somatório das
opiniões. Apesar disso, é importante ressaltar que as formas antigas de
comunicação continuariam presentes mesmo após a consolidação da
imprensa periódica – caracterizando assim um hibridismo entre o ar-
caico e os primeiros passos de modernidade política, nos espaços pú-
blicos na capital brasileira. (Morel, 2010, p. 205-6)
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Insistia o periodista que estas questões poderiam ser discutias pela as-
sociação militar a despeito do princípio constitucional da obediência passiva
da Força Armada. De fato a Constituição Imperial em seu artigo 147 estabe-
lecia que ‘A força militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir
sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima’ (Constituição Política do
Império do Brazil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Consti-
tuicao24.htm). Embora o Cidadão Soldado invocasse, em 1833, este princípio
para condenar as atividades políticas conservadoras da Sociedade Militar, de
modo não intencional antecipou uma questão que apareceu nas páginas da
Revista Marítima Brasileira acerca da discussão das questões de ciência, tec-
nologia e defesa.
A Revista Marítima Brasileira foi fundada em 1851 e era editada por al-
guns oficiais da Marinha. Em sua primeira edição assim foi anunciado:
[...] Em extremo orgulhosos dos foros de cidadãos brasileiros, jamais
adotaremos o princípio de que a obediência passiva imposta ao militar
importe incompatibilidade às suas aspirações políticas, e nem entende-
remos no sistema que nos rege, justo e legal o exclusivismo em assuntos
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tabela 1 - revista marítima brasileira – 1851
Distribuição por categoria e por edição
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Categoria
n1 n2 n3 n4 n5 n6 n7 n8 n9 n 10 n 11 n 12 n 13 n14 n15 n 16 n 17 n 18 n 19 n 20 Tot
/ 1851
Política 1 1 1 1 2 4 4 2 2 4 2 1 1 1 1 0 4 2 0 34
História 1 1 - 2 3 - - - - 0 0 2 0 0 0 1 1 - 0 2 13
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Organi-
0 - 1 3 2 - 2 2 1 0 2 0 0 2 2 0 0 1 1 0 19
zação
Ciência 1 1 1 1 3 1 - 2 1 2 1 1 1 1 2 2 2 2 3 3 31
Tecnolo-
1 1 - 1 5 5 2 2 4 - 2 1 4 3 2 1 3 2 1 0 40
gia
Outro 2 1 1 - - - 1 - 2 - 0 0 0 0 1 0 0 0 1 1 10
Total 6 5 4 8 13 8 9 10 10 4 9 6 6 7 8 5 6 9 8 6 147
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Declinação Ciência
Magnética
Botes Salva Tecnologia
Vidas
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N 09 A máquina Tecnologia
de Fulton
Os mas- Tecnologia
taréus da
gávea La Flotte, Journal de la
Aparelho Tecnologia marine royale, du comerce
Meacock maritime e des colonies
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Paixhans, H. J.
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( vapor de roda/vela)
Total 59
Fonte: Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha, 1851
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Considerações finais
A Revista Marítima Brasileira foi produzida por oficiais da Marinha com
formação profissional - seus editores tinham curso na Academia de Marinha
– e que dominavam várias línguas estrangeiras. Além disto, eles participavam
dos círculos da elite intelectual do país como o Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro e a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, instituições
que coordenaram, fundadas no pensamento iluminista, esforços de definição
da nacionalidade e de modernização do país
Neste sentido participavam de uma cultura comum à elite brasileira, que
pode ser denominada como iluminismo instrumental: uma crença na possibili-
dade de um progresso fundamentado no desenvolvimento econômico e tecno-
lógico. Em outras palavras, trata-se da herança do reformismo ilustrado portu-
guês. Neste período, para além da curiosidade científica e da preocupação com
a vulgarização da ciência bem ao gosto das elites, aqueles oficiais de marinha se
distinguiam pelo fato de objetivarem um aprimoramento prático no campo da
tecnologia da guerra. Isto porque para eles a Marinha era a força fundamental
para a defesa de um país com tão extensa costa marítima como o Brasil.
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o Império do Brasil. In: PAULA, Luiz Carlos Carneiro de Paula et al.
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248
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gre 2015.
TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Esta obra foi impressa em São
Paulo na primavera de 2016. No
texto foi utilizada a fonte Minion
Pro em corpo 11 e entrelinha de
14,2 pontos.
Adriana Pereira Campos é doutora em
História Social pela Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (2003). Atualmente,
é pesquisadora do CNPq, possui pesqui-
sa financiada pela FAPES e é professora
Associada da Universidade Federal do
Espírito Santo, vinculada à graduação
de História e Direito e aos Programas de
Pós-graduação Stricto Sensu em Histó-
ria e Direito. É representante da UFES
no convênio internacional da instituição
com a Universidade Paris-Est, onde rea-
lizou estágio de pesquisa no ano de 2012,
na qualidade de Chercheur Invité, e em
2014, quando realizou missão de pes-
quisa. É 2º secretária da SEO (Sociedade
Brasileira de Estudos do Oitocentos).
ISBN 978-85-7939-423-2
,!7II5H9-djecdc!