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SALVADOR
2014
ANA ELIZABETH SOUZA SILVEIRA DE SIQUEIRA
SALVADOR
2014
Revisão de texto: Romulo José Ribeiro Costa
Revisão final e Formatação: Vanda Bastos
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CDD – 305.4
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ANA ELIZABETH SOUZA SILVEIRA DE SIQUEIRA
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestra em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia.
Banca Examinadora
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 19
FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS E PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS ....................................................................................................... 26
INTRODUÇÃO
1
Abaré, Adustina, Antas, Banzaê, Cansanção, Canudos, Chorrochó, Cícero Dantas, Coronel João Sá,
Euclides da Cunha, Fátima, Glória, Heliópolis, Itapicuru, Jeremoabo, Macururé, Monte Santo,
Nordestina, Novo Triunfo, Paripiranga, Pedro Alexandre, Quijingue, Ribeira do Amparo, Rodelas,
Santa Brígida e Sítio do Quinto.
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Aracatu, Boa Nova, Bom Jesus da Serra, Caetanos, Manoel Vitorino, Mirante, Planalto e Poções.
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3
Entre 2009 e 2012, o PGV atuou em 34 municípios do Semiárido da Bahia, 26, na região nordeste e
8, na região sudoeste, a saber: Nordeste ˗˗ Abaré, Adustina, Antas, Banzaê, Cansanção, Canudos,
Chorrochó, Cícero Dantas, Coronel João Sá, Euclides da Cunha, Fátima, Glória, Heliópolis,
Itapicuru, Jeremoabo, Macururé, Monte Santo, Nordestina, Novo Triunfo, Paripiranga, Pedro
Alexandre, Quijingue, Ribeira do Amparo, Rodelas, Santa Brígida e Sítio do Quinto; Sudoeste ˗˗
Aracatu, Boa Nova, Bom Jesus da Serra, Caetanos, Manoel Vitorino, Mirante, Planalto e Poções.
Foram atendidas 282 comunidades rurais, constituídas por agricultores e agricultoras familiares ou
quilombolas ou indígenas; criadas (34) e regularizadas (77), um total de 111 associações
comunitárias e apoiadas e fortalecidas 14 cooperativas. Participaram 18.820 mulheres e 17.652
homens durante o período de desenvolvimento do projeto (2007 a 2012). Dados do “Relatório de
Acompanhamento FIDA – Sistema de Resultados de Primeiro e Segundo Nível” (RIMS, 2012).
4
Estes ditames passam a empreender um processo de transformação produtiva e tecnológica,
caracterizado pela emergência de um novo padrão de organização da produção, que envolve um
aumento da concentração do capital e a criação de empresas gigantescas e poderosas operando em
escala mundial e a intensificação com as relações financeiras internacionais, sob os pressupostos
neoliberais da abertura comercial, da liberalização dos mercados financeiros, da desregulamentação
do mercado do trabalho, das privatizações e da redução do papel do Estado. Disponível em:
<http://www.simposioestadopoliticas.ufu.br/imagens/anais/pdf/AC04.pdf>. Acesso em: 28 ago.
2014.
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como vem se dando o empoderamento dessas mulheres nos espaços domésticos e públicos;
(iii) analisar de que forma e em que medida a estratégia de gênero do Estado, empregada no
Projeto Gente de Valor, tem proporcionado às mulheres agricultoras familiares o deslanchar
de processos de empoderamento pessoal, social e político; e (iv) analisar como e em que
medida o processo de formação na área produtiva (agroecológica) e organizativa
(associativismo), desenvolvido pelo PGV, contribuiu para a autonomia e empoderamento das
mulheres agricultoras nas associações e nas comunidades.
Interessa, também, examinar as tensões, dificuldades, limites e avanços na
igualdade de oportunidades que se pode observar nas relações de gênero, no âmbito familiar e
na comunidade, estabelecidas pela participação das mulheres agricultoras, principalmente no
associativismo comunitário, exercendo cargos de direção, administrando e gerindo recursos
como executoras de projetos governamentais. Se há empoderamento das mulheres
agricultoras a partir da intervenção estatal, onde, quando se pode observá-lo, como ele se
expressa, que consequências tem para o conjunto das relações sociais?
Em um plano mais amplo, esta dissertação se insere na perspectiva dos chamados
Estudos Feministas, um campo multidisciplinar de conhecimentos que se desenvolveu nas
ciências humanas e sociais a partir da década de 1970. É um estudo engajado, no sentido de
que sua proposta é contribuir para dar visibilidade às mulheres agricultoras familiares e suas
organizações.
Ao estudar as trajetórias de vida dessas mulheres agricultoras familiares que
participam das atividades do Projeto Gente de Valor, tento compreendê-las à luz das
contribuições de diversos autores e autoras que estudam gênero como uma categoria de
análise e que nos ajudam a entender as questões desta temática e sua pertinência como
explicação e/ou questionamento das situações empíricas. Sobre a proposta de intervenção do
Projeto Gente de Valor na perspectiva de gênero, que vem sendo desenvolvida desde 2007,
busco construir um olhar crítico a partir das teorias feministas, levantando argumentos para
debater estereótipos e preconceitos de gênero, raça, classe e geração.
Esta pesquisa pretende, no confronto entre a teoria e a experiência concreta,
enriquecer o debate sobre como a questão de gênero interfere na organização social do espaço
público e privado e leva a pensar nos valores e contravalores que estão associados a cada uma
das designações atribuídas a homens e a mulheres na sociedade contemporânea. A discussão
teórica se faz em torno das responsabilidades produtivas e reprodutivas assumidas por
mulheres nos espaços doméstico/privado e público, com o objetivo de iluminar os conceitos,
trajetórias e experiências das agricultoras familiares. Para tanto, dialogo com a bibliografia de
24
Joan Scott nos ajuda a compreender a categoria gênero e a defini-la. Segundo ela:
“O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (1995, p.
86). Acreditando que o propósito de Scott foi tornar bem visível e especificar como se deve
pensar o efeito do gênero nas relações sociais e institucionais, adoto aqui esta definição de
gênero, considerando-a uma categoria de análise relacional que possibilitará perceber a
dinâmica das relações sociais de gênero vividas pelas mulheres agricultoras aqui pesquisadas.
Na interpretação de Scott (1995), o gênero deve ser compreendido como uma
manifestação de relações de poder porque estabelece, entre homens e mulheres, entre as
próprias mulheres e também entre os homens, um acesso diferenciado aos recursos simbólicos
e aos recursos materiais da sociedade. O poder é entendido na perspectiva foucaultiana como
relacional, como algo que circula, se pratica e se exerce. Para Michel Foucault (1985), o poder
não é algo que se detém como uma coisa, não é apropriado como bem. O que existe são
práticas ou relações de poder nas quais, a depender da relação, podemos ora ocupar o lugar do
dominante ora ser o dominado. Estas relações se apresentam entre pessoas de classes sociais
diferentes, raças e etnias diferentes, pessoas de mesmo sexo ou de sexo diferente.
O gênero precisa ser pensado dentro de uma lógica de relações de forma
interconectada com sexo, classe, raça, idade, geração etc. A partir da orientação de Kimberlé
Crenshaw sobre o conceito de interseccionalidade, entende-se que estas relações plurais
levam a pensar a subordinação a começar desta imbricação entre os sexos, entre as classes e
entre as gerações, a pensar em sexo e gênero não como conceitos intercambiáveis, pois um
não substitui o outro, um não desaparece no outro; na realidade, eles operam e se imbricam.
Percebo como o gênero se intersecta com outras identidades e como estas intersecções
contribuem para a vulnerabilidade alimentar, trabalhista, educacional, habitacional e da vida
privada das mulheres e de seus grupos familiares. Podemos dizer, ainda com a autora, ser “a
discriminação interseccional difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas,
culturais e sociais moldam o pano de fundo de forma a colocar as mulheres em uma posição
onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação” (2002, p. 176). As
mulheres foram e continuam sendo vítimas de uma sociedade desigual; não só por serem
mulheres, também por serem pobres, são colocadas em um lugar de inferioridade social no
qual são mantidas como se sua condição e posição fossem o resultado imutável ou natural da
vida e não houvesse por trás todo um aparato social hegemônico e opressor, muitas vezes
invisível.
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Neste estudo, tentei manter todo o tempo o diálogo entre prática e teoria feminista,
adotando uma perspectiva interdisciplinar e baseando-me nas Standpoint Theories.5 Trabalhei
com estas teorias por proporcionarem uma perspectiva da visão de mundo feminista com a
qual me identifico a partir da minha própria experiência profissional. É este o lugar de onde
falo e faço minhas escolhas metodológicas. Sei das possibilidades de conexões e aberturas
inesperadas que o conhecimento situado oferece. Na verdade, o modo de encontrar, nesta
5
As teorias de perspectiva são desenvolvidas pelo feminismo, a partir da afirmação de que o lugar
de onde se vê (e se fala) – a perspectiva – determina nossa visão (e nossa fala) do mundo. Tais
teorias tendem a sugerir que a perspectiva dos subjugados representa uma visão privilegiada da
realidade. (Segundo nota de Sandra Azeredo, em artigo de Donna Haraway: Saberes localizados: a
questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p.
7-41, 1995).
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pesquisa, uma visão mais ampla desses saberes localizados da pesquisadora – meu, enquanto
assessora de gênero em um projeto de desenvolvimento rural – e dos atores – mulheres e
homens agricultores, técnicos e técnicas que participaram do projeto – é, em particular, de
onde se vê e se fala a partir da construção de um conhecimento situado e corporificado.
Neste sentido, durante a pesquisa, apoiada na minha história profissional prática,
trabalhei com uma epistemologia como reflexão ligada à própria produção do conhecimento
científico e com uma vigilância interna crítica sobre os procedimentos e os resultados.
Acredito que a epistemologia escolhida leva à reflexão de seus fundamentos e reflete sobre a
pertinência dos conceitos, das teorias e dos métodos utilizados.
Trabalhei em uma perspectiva de ciência libertadora, mesmo sabendo que a
ciência é androcêntrica, se tornou hegemônica, não é pura nem neutra, tem uma ideologia e
está a serviço de um determinado interesse e de uma visão de mundo. Trabalho com uma
perspectiva feminista da ciência por acreditar que, a partir da análise feminista, podemos
questionar a filosofia androcêntrica e contribuir para o diálogo e o embate entre a ciência e a
sociedade. O desafio é tentar compreender a ambivalência e a complexidade intrínsecas da
ciência que, mesmo sendo libertadora, traz possibilidades de subjugação. Para compreender
este problema tenho que desconstruir a ideia da ciência “boa”, que só traz benefícios, e da
ciência “má”, que só traz prejuízos. Sei que o processo de crescimento e de extensão do saber
do conhecimento científico é também de transformações e de rupturas com uma teoria.
Reconheço que a metodologia feminista é o caminho que melhor dialoga com a pesquisa aqui
proposta, pois adoto as lentes feministas durante a investigação. Concordo com Cristina
Bruschini (1992) quando afirma que, independente do método adotado durante a pesquisa,
devemos ficar atentas às questões de gênero, que devem estar presentes em todas as etapas.
Problematizo a construção da trajetória desse tema na vida dessas mulheres a
partir do olhar de gênero na perspectiva da crítica feminista, fazendo a interseção entre
gênero, classe, raça e geração. Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, busco uma
profunda identidade do método com a teoria.
A pesquisa tem como seu universo as mulheres agricultoras familiares das
comunidades rurais da região Nordeste do Estado da Bahia, que participaram do Projeto de
desenvolvimento rural, “Gente de Valor”, que é um dos projetos executados pela Companhia
de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR). Das duas áreas de atuação do PGV no
Semiárido da Bahia, Nordeste e Sudoeste, escolhi a região Nordeste por ter área de
abrangência maior e também por ser considerada uma das mais pobres do Estado. A nossa
amostra é não probabilística e intencional.
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outras pessoas referidas nas histórias de vida e nas entrevistas foram modificados, dentro do
mesmo propósito, também de forma aleatória.
As narrativas orais e histórias de vida, as entrevistas semiestruturadas e os grupos
focais foram realizados no período entre outubro e novembro de 2013. Com as narrativas e
histórias de vida, busco reconstruir as trajetórias de vida dessas mulheres, em especial,
quando e enquanto parceiras e executoras do PGV, como esta experiência é apreendida por
elas e a visão que têm agora sobre suas próprias ações.
A escolha das dez mulheres6 e também dos dois grupos focais se deu a partir da
minha própria experiência e trajetória dentro do Projeto, ao observar e facilitar os encontros
de mulheres, o que me permitiu ter um maior conhecimento da realidade vivida por elas e me
possibilitou construir o olhar de pesquisadora sobre a realidade delas, do que enfrentavam no
dia-a-dia de discriminação, preconceitos, violência doméstica, resistências e esforços pela
superação disso tudo e ao coordenar o processo de sistematização de experiências de alguns
desses grupos de mulheres que acompanhei durante as quatro etapas da sistematização.
No processo de escolha dessas mulheres, também dialoguei com os/as chefes dos
escritórios locais de Ribeira do Pombal, Cícero Dantas e Jeremoabo, já que eles/as
acompanharam diretamente as mulheres e os grupos a que pertencem. Solicitei que cada chefe
indicasse quatro mulheres para a entrevista semiestruturada, perfazendo um total de 12
mulheres, ou melhor, 12 histórias de vida. Duas tiveram que ser excluídas, uma por motivo de
viagem a São Paulo no período da coleta de campo e a outra por ser indígena, o que
demandaria mais tempo para aprofundar esta especificidade cultural.
Foram os seguintes os critérios para a escolha das mulheres agricultoras: a)
participar do Projeto, de preferência desde o início; b) assumir algum cargo na associação ou
nos empreendimentos produtivos; e c) considerar que, no decorrer do Projeto, elas
apresentaram mudanças positivas como uma maior consciência crítica nas suas falas e na
qualidade de sua participação, levando-as a mudanças em suas atitudes tanto na vida pessoal
como na relação com o grupo e com a comunidade. Duas dentre estas dez mulheres assumiam
cargos de presidentes de associações, uma na Associação dos Moradores de Beleza,
subterritório Os Batalhadores, no município de Santa Brígida, e a outra da Associação
Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, subterritório Serra Redonda, município
6
O perfil das entrevistadas segue estas características: ocupam cargos diretivos nas associações
(presidente, vice-presidente, tesoureira, secretária ou conselho fiscal); têm idades entre 20 e 60
anos; com ou sem escolaridade (analfabetas, semianalfabetas, com primário/completo ou
incompleto, com ensino fundamental, com ensino médio e com curso superior completo ou
incompleto).
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7
Entende-se observação participante como uma das técnicas de pesquisa adotada pela abordagem
qualitativa que consiste na inserção do pesquisador no interior do grupo observado, tornando-se
parte dele, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para
sentir o que significa estar naquela situação. (QUEIROZ ET AL., 2007, p. 278).
8
Celso José Alves Celes e Carla Silva Ferreira.
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9
Artesanato feito com cordão de algodão ou fibra de sisal sendo confeccionadas várias peças como
almofadas, tapetes, redes, estantes, porta revistas e outros.
10
Relatório da Sistematização de Experiências ˗˗ O que falam as mulheres; histórias de mulheres:
organização e autonomia, 2012; e Estudos de Base para o Projeto de Desenvolvimento Comunitário
das Áreas Rurais mais carentes do Estado da Bahia – PRODECAR/ Projeto Gente de Valor,
Avaliação de Impacto – Grupos Focais, 2012.
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Nas últimas três décadas, cresceu, no mundo todo, a necessidade de medidas para
aumentar a equidade social, econômica e política, na perspectiva do empoderamento de
mulheres. Pesa o predomínio de mulheres entre os pobres e o fato de que isto é consequência
do desigual acesso feminino às oportunidades econômicas e sociais. Na América Latina, no
Brasil e na Bahia, constata-se o aumento da exclusão social e da pobreza absoluta. No espaço
governamental de políticas públicas, no Brasil, a abordagem de empoderamento de mulheres
baseada em direitos sociais está mais presente nos debates sobre desenvolvimento e combate à
pobreza. E não é diferente no semiárido baiano, especificamente na Região Nordeste, área-
foco desta pesquisa.
Neste contexto, o Projeto Gente de Valor (PGV) tinha como orientação do Fundo
Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e do Governo Federal seguir como
referência os “Objetivos do Milênio da ONU” (UNESCO – Brasil, 2005), dentre os quais
consta o de “promover a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres”. As estratégias de
intervenção do PGV adotam as seguintes perspectivas: a territorial, prevendo o
desenvolvimento produtivo, social, cultural e ambiental das comunidades; e a de gênero, em
que a transversalidade do tema buscou como objetivo fomentar a equidade e o
empoderamento das mulheres que participam das ações produtivas e organizativas,
promovidas ao longo de seis (06) anos de execução do Projeto (2007 a 2012).
Nessas ações, os relatos das mulheres revelavam que elas enfrentam preconceito,
discriminação e uma série de barreiras, desde os próprios medos e inseguranças em sair da
área doméstica, dos arredores da casa, do espaço privado de seu total conhecimento, para se
arriscar em atividades de gestão administrativa e financeira, antes reduto exclusivo dos
homens, mesmo tendo que “desobedecer” a seus maridos para participarem de capacitações e
reuniões. Este é um grande desafio para estas mulheres agricultoras, nordestinas, de baixa
renda, de pouca escolaridade, formadas culturalmente para serem do lar, subordinadas aos
seus pais e maridos.
As experiências das mulheres agricultoras familiares que participaram das ações
desenvolvidas pelo PGV, estudo em que é medida a inserção e a participação das mulheres
agricultoras nos espaços organizativos e produtivos, têm gerado tensões, dificuldades, limites
e avanços no que diz respeito à igualdade nas relações de gênero no âmbito familiar e na
comunidade. Esta pesquisa tem como objetivo responder se há empoderamento das mulheres
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agricultoras que participaram das ações do PGV; onde e quando se pode observá-lo e como
ele se expressa, que consequências têm para o conjunto das relações sociais? Essa inserção
nos espaços organizativos e produtivos pode de fato contribuir para que elas se empoderem no
espaço público?
Essas questões terminaram por orientar a minha busca por um referencial teórico
metodológico/epistemológico que me permitisse entender as trajetórias e experiências dos
sujeitos de minha investigação. Busco conhecer em termos mais qualitativos, como a situação
de empoderamento vem sendo vivenciada por mulheres rurais o que significa compreender,
entre outros aspectos, a diversidade de trajetórias que terminam por levá-las à condição de
empoderadas ou não e, a partir daí, a forma como essa experiência influencia suas relações
objetivas e subjetivas com o grupo produtivo, a organização familiar e com a comunidade.
A intenção deste estudo, portanto, é buscar desvendar como se dá o entrelace de
uma série de desigualdades e discriminações nas experiências dessas mulheres agricultoras e
de que maneira são conformadas suas opções e alternativas de vida, sem, no entanto, cair em
uma perspectiva de vitimização dos sujeitos inseridos neste contexto.
Este capítulo irá discutir o conceito de empoderamento e terminará mostrando
como ele vai iluminar os capítulos seguintes, ou seja, as demonstrações (empíricas e teóricas)
de como as mulheres, a partir do PGV, se empoderam ou não. Daí surge a preocupação
teórica deste trabalho, o de buscar maior compreensão sobre o processo de empoderamento e
desempoderamento das mulheres, apresentando-o como elemento relevante para a
compreensão de possibilidades e limites na promoção da participação social e política. O
próximo passo é, pois, esclarecer de qual “empoderamento” estou falando.
Segundo Jorge Romano (2002), nos últimos anos, no debate ideológico em torno
do desenvolvimento, o empoderamento é uma das categorias, dentre outras como capital
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abolir práticas tradicionalistas e eliminar restrições ligadas aos aspectos culturais ancestrais,
difíceis de mudar. Neste contexto, a mulher sempre foi e continua a ser um pilar importante
do desenvolvimento, embora, muitas vezes, de forma invisível.
Na década de 1980, têm início os estudos sobre as relações de gênero, com papéis
específicos que envolvem não só as mulheres, mas, também, os homens. A mulher passa a ser
promotora de mudanças e de luta, agente ativa de desenvolvimento do modelo de
modernização conservadora. Só nos meados daquela década, começa-se a considerar a mulher
como um pilar do desenvolvimento econômico pelos defensores das políticas neoliberais, mas
de uma forma utilitarista, ao usarem os argumentos, antes apresentados como de exploração
da mulher pobre, tais como trabalham mais, são mais confiáveis de investir e mais fáceis de
mobilizar, então, como prova de eficiência; na medida em que as mulheres eram bem-
sucedidas na administração e gestão dos recursos econômicos, passaram a ser consideradas
como melhor investimento tanto econômico quanto político (BATLIWALA, 2013).
No paradigma do desenvolvimento humano, o princípio de empoderamento é o
que o diferencia dos outros tipos de desenvolvimento, já que os homens e as mulheres estão
em posição de exercer sua capacidade de escolher de acordo com suas ideias, seus desejos e
de decidir sobre suas vidas. Contudo, para muitas agências e órgãos governamentais, o
empoderamento das mulheres é visto como instrumento para o desenvolvimento, para
erradicar a pobreza, para inseri-las nos espaços produtivos, para levá-las a participar de
diferentes atividades de interesse coletivo, para a democracia etc. Nesta perspectiva, o
processo de empoderamento é visto como estreitamente relacionado ao de participação, um
elemento constitutivo das metodologias e estratégias que possibilitam processos de
empoderamento. Mas, tendo as mulheres agricultoras a oportunidade de participar, de estarem
presentes em todos os fatores promotores do desenvolvimento e de mudança social, saindo
finalmente do reduto doméstico isto faz com que se materialize em seu cotidiano a igualdade
de gênero. Isto implica dedicar uma atenção explícita às necessidades, interesses e
perspectivas das mulheres trabalhadoras.
Apesar desse discurso na perspectiva de desenvolvimento ser participativo e de
inclusão das mulheres, ele apresenta contradições fundamentais no uso do conceito de
empoderamento, pois coloca ênfase nos aspectos individuais.
13
Tradução nossa do original em espanhol.
14
Presentes em Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987) e nas pedagogias libertadoras, de um modo
em geral.
15
Essa linha de pensamento se refere à necessidade de criar mecanismos participativos com o
objetivo de construir democracias mais equitativas. (GRAMSCI, 1971).
40
“posição”16 da mulher como submissa. Este conceito está diretamente relacionado à noção de
interesses estratégicos de gênero e implica na mudança da posição das mulheres na sociedade.
Para tal, o processo de empoderamento das mulheres deverá levar à igualdade entre homens e
mulheres e a mudanças nas relações patriarcais, em especial, na família para que as mulheres
empoderadas, de fato, mudem a dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, de
modo que elas tenham autonomia de poder decidir sobre suas vidas, se sentirem e serem
donas delas mesmas.
Na perspectiva feminista aqui adotada, o empoderamento de mulheres é, pois,
entendido como o processo da conquista da autonomia, da autodeterminação, implicando,
portanto, na libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão
patriarcal. Neste sentido, o objetivo maior de ações voltadas para o empoderamento das
mulheres é propiciar as condições para que elas possam questionar, desestabilizar e se
organizar com vistas à erradicação da ordem patriarcal vigente (SARDENBERG, 2009).
Segundo aponta a feminista indiana Batliwala (1994), a característica mais
conspícua do termo empoderamento está na palavra “poder“, vez que, para ela,
“empoderamento” é o processo de questionar as ideologias e relações de poder patriarcais
vigentes:
16
Segundo Ana Alice Costa, no texto “Gênero, poder e empoderamento das mulheres” (2004, p. 6),
posição, aqui, “é o status econômico, social e político das mulheres comparado com o dos homens,
isto é, a forma como as mulheres têm acesso aos recursos e ao poder comparado aos homens”.
17
. Tradução do original em inglês feita por Cecília M. B. Sardenberg no texto “Conceituando
‘empoderamento’ na perspectiva feminista” (2009, p. 6).
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passiva e, muitas vezes, assexuada é um grande desafio, pois é uma luta contra essas
identidades prontas e impostas, apresentadas, ao longo da história, como naturais.
Nos espaços trabalhados nos projetos de desenvolvimento rural, as relações de
poder estão diretamente ligadas às relações de gênero, do que resulta a diferença de inserção
das mulheres nos espaços produtivos e organizativos, espaços de poder que têm uma forte
implicação de gênero, requerendo uma transformação no acesso da mulher tanto aos bens
econômicos quanto ao poder, transformação esta que depende de um processo de
empoderamento da mulher. Joan Scott (1999) diz que experiência é aquilo que queremos
explicar e não a origem de nossa explicação. Afirma, ainda, que esta abordagem questiona os
processos pelos quais os sujeitos são criados, favorecendo novos caminhos e mudanças. A
experiência de poder tende a resgatar a autoestima das mulheres como sujeitos, mudanças de
mentalidade e atitude, de modo a dar visibilidade a sua importante contribuição nos processos
familiares, comunitários, organizativos, ambientais, produtivos e de comercialização, que
deem substância à sustentabilidade desejada para o desenvolvimento rural. Mas trata-se de um
processo de mão dupla, pois, como bem atenta León (2001, p. 97), “o empoderamento como
autoconfiança e autoestima deve integrar-se em um sentido de processo com a comunidade, a
cooperação e a solidariedade”.
O empoderamento é uma categoria complexa que vem se transformando em
categoria analítica e empírica em diversas disciplinas e envolve uma multiplicidade de
métodos e indicadores os quais dificilmente podem ser universalizados, como se pode ver na
experiência de empoderamento das mulheres agricultoras familiares, um processo que tem
aspectos tanto coletivos como individuais.
A bibliografia sobre empoderamento revela como esse tema vem sendo discutido
e utilizado em vários âmbitos, dentre eles o rural, na perspectiva do desenvolvimento local18.
São tantas concepções e interpretações que elevam o grau de dificuldade em defini-las.
A palavra “empoderamento” não existe no nosso dicionário da língua portuguesa.
Sua formulação inicial – empowerment – vem de países de língua inglesa, sobretudo dos
EUA, sendo várias as versões sobre suas origens. Em termos históricos, segundo Vathsala
Aithal (1999), o conceito de empoderamento migrou da “práxis” para a “teoria”, sobretudo
através dos movimentos de base nas lutas pelos direitos civis, encabeçados, principalmente,
por ativistas feministas e negros/as. O termo “empoderamento” foi usado, pela primeira vez,
no contexto de mobilização política, na década de 1960, por militantes do Movimento
Panteras Negras, nos EUA. Desde então, este termo passou a fazer parte de campos do
conhecimento os mais diversos. Alguns autores alertam para a polissemia do conceito de
empoderamento (ROMANO, 2002; ANTUNES, 2002; GOHN, 2004), que pode ser utilizado
para ações distintas e de modo indiscriminado por todos, independentemente da posição no
espectro político-ideológico. Porém, é importante ressaltar que há duas posições radicalmente
distintas quanto ao conceito e à abordagem sobre empoderamento no campo ideológico de
desenvolvimento. A disputa se dá entre os defensores do desenvolvimento vigente regido pelo
neoliberalismo e os críticos deste desenvolvimento dominante que defendem a construção de
um outro mundo (ROMANO, 2002).
Segundo Peter Oakley e Andrew Clayton (2003), a construção do conceito de
empoderamento se deu na década de 1970, a partir do conceito de desenvolvimento então
baseado na teoria da “modernização” e na teoria da “dependência” como explicativas do
subdesenvolvimento. Na América Latina, a teoria da modernização se baseou na perspectiva
desenvolvimentista impulsionada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL), que defendia a industrialização como paradigma do crescimento econômico,
negava a importância do comércio internacional e se opunha fortemente às expectativas da
economia neoclássica. Portanto, a teoria de modernização tentou dar uma explicação às
desigualdades entre as economias nacionais, incorporando à discussão fatores de cunho
institucional e estrutural situados para além do mercado (GALLICHIO, 2002).
18
Desenvolvimento local entendido como uma estratégia para criar e favorecer as condições para que
as pessoas e as comunidades melhorem sua qualidade de vida com seus próprios recursos e
potencialidades.
44
19
São aqueles países onde os fluxos, o desenvolvimento da ciência, da técnica e da informação
ocorram em menor escala.
45
parece um pouco equivocada, pois poder implica relações, logo, não necessariamente,
precisamos perder poder para mudar as relações de desigualdade, pensando poder com base
em Mosedale e na proposta original feminista de empoderamento que foca no “poder para”,
na perspectiva da construção de capacidades dos oprimidos para a sua resistência e
emancipação.
Teóricas feministas sofreram muitas críticas por não proporem mudanças
estruturais nas relações de poder dentro de uma sociedade em que alguns o detêm e outros
não. De fato, suas estratégias estavam ancoradas na perspectiva de empoderamento baseada
no conceito de “poder sobre”, havendo apenas uma reversão da relação de poder pela qual as
mulheres deveriam conquistar espaços nas estruturas econômicas e políticas da sociedade,
ocupando posições de poder que antes eram dos homens, porém, não se questionava a forma
como o poder é distribuído na sociedade. É evidente que esta noção de poder provocou forte
resistência por parte daqueles que detinham o poder e se sentiam ameaçados de serem
destituídos desta posição, que passaria a ser ocupada pelas pessoas empoderadas, neste caso,
as mulheres. É necessário compreender como se estrutura a nossa sociedade e como as
diferenças de gênero, de classes, de etnia, de geração, de regionalidade e de políticas
comportam desigualdades a serem superadas. A perspectiva do WID foi amplamente criticada
por seus fundamentos neoliberais que não levavam em consideração o peso das estruturas
dominantes na subordinação das mulheres na sociedade (SARDENBERG, 2009).
Como uma perspectiva alternativa ao enfoque do WID, surge, em 1980, o enfoque
Gênero e Desenvolvimento (GED) – Gender and Development (GAD) –, que se concentra no
problema da desigualdade das relações entre homens e mulheres buscando promover a
participação ativa da mulher no desenvolvimento. Na realidade, mais do que integrar as
mulheres em um determinado processo de desenvolvimento, trata-se de construir um modelo
novo que modifique aquelas relações de poder baseadas na subordinação das mulheres e que
perpetuam a opressão e a exploração, sobretudo, das mulheres pobres. Nesta perspectiva, o
enfoque Gênero e Desenvolvimento pode promover uma mudança nessas relações sociais
através do fortalecimento da posição social, econômica e política das mulheres, desde que as
estratégias de desenvolvimento ataquem os fatores estruturais das desigualdades de gênero,
consequentemente, facilitando o desenvolvimento das mulheres, o que hoje vem sendo
chamado de “empoderamento” da mulher.
48
quais se discute direitos constitucionais e autoestima, mas se deixa a discussão das relações de
poder de lado. Em alguns casos, como no Projeto Gente de Valor realizado pela CAR, o tema
gênero é trabalhado em função de cumprir um requisito do FIDA e tem ocorrido a
profissionalização em gênero e desenvolvimento como se a incorporação da perspectiva de
gênero em sua intervenção fosse puramente teórica e técnica, uma ferramenta a ser aplicada e
com uma relação cada vez mais descolada, desconectada do feminismo. Sardenberg afirma
que, em muitos casos, “fazer gênero” veio para apresentar algo seguro, desvinculado da
política e, consequentemente, do feminismo (CORNWALL, 2013a, p. 19).
As agências financiadoras do enfoque de Gênero e Desenvolvimento também
recebem críticas, por levarem para seus parceiros uma abordagem hierárquica e por também
trazerem suas demandas institucionais, muitas vezes impondo aos parceiros a incorporação do
enfoque de gênero em todos os níveis, no âmbito institucional, sem que esta abordagem fosse
incorporada na missão e na prática institucional das organizações. As entidades parceiras
correm um risco ao transversalizar gênero, ao incluí-lo em tudo, pois o enfoque de gênero
pode acabar ficando diluído, como mais um, como algo secundário, desnaturado e
despolitizado. Por certo, a transversalização21 de gênero é uma estratégia fundamental para a
construção e incorporação sistemática de uma perspectiva de gênero em todas as ações
institucionais, seja nas atividades e estruturas internas de uma organização – suas políticas,
sua estrutura, seus sistemas e procedimentos – e, também, quanto ao operacional, referindo-se
às ações e programas externos que a organização desenvolve ou nas quais está envolvida
(SARDENBERG, 2010). No entanto, é importante ressaltar que as instituições de
desenvolvimento precisam incorporar as estratégias de transversalização do enfoque de
gênero não só como procedimentos técnicos, mas, também, como uma estratégia política,
caso contrário, como observam muitas feministas que trabalham com GED, “quanto mais o
gênero é transversalizado, menos encontramos políticas efetivas de equidade de gênero, nos
espaços e documentos principais de formulação de políticas” (SARDENBERG apud
CORNWALL, 2013a, p. 3).
Um fator positivo do GED é que seu campo de abordagem facilita a captação de
recursos e proporciona a criação de um corpo significativo de profissionais de diversas áreas
de formação e de organizações governamentais e não governamentais que trabalham em sua
intervenção com as temáticas de gênero transversalmente. No entanto, observa-se que uma
21
Aqui entendido com seu duplo significado, estando relacionado às estratégias de formulação de
políticas específicas versus a de “integração de gênero em todas as políticas” (SARDENBERG,
2010, p. 10).
50
parte significativa destes profissionais, homens e mulheres, não têm compromisso nem
experiência provenientes de movimentos feministas e nunca estiveram engajados com
políticas referentes a estas questões. Nestes casos, mesmo quando os profissionais têm uma
formação teórica e metodológica para o trato da categoria, falta-lhes o comprometimento
político e o entendimento analítico de que a perspectiva de gênero foi originalmente uma
construção e demanda do feminismo.
Algumas feministas que trabalham com GED reconhecem que tiveram limitados
ganhos, porém importantes, na abordagem de gênero em desenvolvimento, mas existe um
enorme abismo entre as aspirações feministas por efetivas mudanças sociais e o que se
realizou no desenvolvimento deste enfoque, já que as desigualdades de gênero têm se
mostrado muito mais profundas e a resistência das burocracias muito mais forte do que se
esperava (CORNWALL, 2013b). Para Sardenberg (2014), a situação atual daquilo que se
tornou gênero em desenvolvimento, no Brasil, tem a ver com a combinação dos processos de
globalização, com o avanço do neoliberalismo e com a reestruturação produtiva. O resultado
desta combinação tem ampliado ainda mais as desigualdades econômicas e sociais entre
homens e mulheres assim como entre raças, classes e gerações.
Apesar do cenário global e de todas as críticas, até mesmo da concordância com
algumas delas, e do reconhecimento de algumas frustrações ao enfrentarem barreiras para
efetivar uma prática transformadora de gênero, as feministas engajadas no desenvolvimento, e
aqui me incluo, acreditam que esta abordagem contribuiu para dar um sentido de direção ao
trabalho desde que focado na transformação das estruturas sociais. Ao revisitar as agendas
feministas a partir de uma visão mais ampla do contexto nacional, percebe-se que as
discussões em torno do que significam gênero e desenvolvimento permanecem disputadas e
se tornam objeto particular de contestação quando é aplicado e defendido dentro de
burocracias. A necessidade de intercambiar as conquistas e limitações com outras feministas,
nos âmbitos local, nacional e internacional, se torna extremamente necessária e vitalmente
importante para fortalecer o engajamento feminista dentro e fora das instituições de
desenvolvimento. Portanto, é preciso continuar aprofundando o debate de forma a
reposicionarmos nossas estratégias e direcionamentos na perspectiva de repolitizar o projeto
feminista com o desenvolvimento e, assim, trabalhar, de fato, no sentido do empoderamento
das mulheres.
51
22
Tradução do original em inglês feita por Cecília Sardenberg, em 2009, no texto: Conceituando
“empoderamento” na perspectiva feminista. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6848/1/Conceituando%20Empoderamento%20na%20Per
spectiva%20Feminista.pdf>.
52
afetam” (HOROCHOVSKI, 2006, p. 16). As pessoas percebem seus ambientes, sentem uma
competência pessoal, provavelmente em decorrência da sua participação no processo de
tomada de decisão, tomam consciência de sua própria capacidade de lutar pelos seus
interesses e de influenciar outras pessoas. Ao tomar parte deste processo enquanto exercício
de tomada de decisão, com uma participação ativa, o indivíduo passa a ter confiança em si
mesmo para agir diante das adversidades e sentir que sua presença tem importância e,
consequentemente, neste processo, ocorre algum grau de empoderamento pessoal.
Para Kleba (2009), no nível pessoal ou psicológico, um dos aspectos centrais é a
percepção do sujeito de suas próprias forças e esta consciência leva à mudança de
mentalidade resultando em um comportamento de autoconfiança. Seria importante, também, a
percepção das próprias limitações, além das próprias forças. Ela alerta ainda para o emprego
do conceito de empoderamento psicológico, por considerar que este revela uma perspectiva
filosófica individualista no momento em que ignora e desconecta o indivíduo de seu contexto
de inserção sociopolítica. Quanto ao empoderamento psicológico, este ocorre quando o
indivíduo vivencia seu poder através de experiências vividas no seu cotidiano, em situações
de carência ou de ruptura, quando reconhece seus recursos e possibilidades pessoais ou
coletivas e também sua capacidade de enfrentar e sair , em seu cotidiano, de uma situação de
impotência e ameaça.
Ressalte-se que esse processo de empoderamento individual pode ser ativado por
animadores externos, como agentes sociais, ONGs, órgãos do Estado, empresas, que atuam
como mediadores, tendo a função de facilitar o processo, provendo oportunidades para as
pessoas exercerem o controle sobre suas vidas, propiciando que estas formem novos grupos
empoderadores, em um processo solidário e continuado de formação cidadã.
Em nível individual, os processos de empoderamento das mulheres agricultoras
familiares podem ser alcançados através da participação em organizações ou atividades
comunitárias, ao integrar grupos de interesses (quintais produtivos, corte e costura,
beneficiamento de frutas e artesanato), do aprendizado de novos conhecimentos e do
desenvolvimento de novos potenciais e novas tarefas. O exercício de trabalhar em grupo com
outras mulheres e homens, com objetivos comuns a serem atingidos e metas a serem
cumpridas em um determinado espaço de tempo, já pode ter um potencial empoderador, na
medida em que estas “desobedecem” seus pais ou maridos, rompem com a dominação para
participarem das atividades do Projeto, e se cria uma disciplina e uma dinâmica de grupo que
as levam a experimentar a divisão de tarefas e de responsabilidades construindo laços de
confiança entre as pessoas envolvidas no processo que sofre influências diretas (positivas ou
54
negativas) do contexto social, uma vez que o empoderamento não é fruto do consenso, mas
sim resultante de tensões e conflitos.
Um exemplo disso é o conflito gerado quando as mulheres teimam em querer
participar das atividades organizativas e produtivas. Neste momento, começam a questionar as
relações patriarcais existentes, principalmente na família, desencadeando uma verdadeira
disputa de poder porque o seu empoderamento significa uma perda de poder dos homens, ou
seja, a perda da posição privilegiada concedida, histórica e culturalmente, aos homens pelo
patriarcado. Representa a perda desse poder dominante, desse poder sobre (que controla, de
forma negativa), desse poder subordinador. Poder que controla a capacidade de se mover, a
participação no mundo público, o acesso aos bens materiais, o direito a seus corpos e à
sexualidade dessa. Poder que se reflete, muitas vezes, no abuso físico, em violação impune,
em abandono e sem decisões consensuais afetando a família (LEÓN, 2001).
Para Batliwala (1994), nesse processo de empoderamento das mulheres, em meio
às disputas de poder, os homens também são libertados, libertados do seu papel de opressores
e exploradores. Olhando por outro lado, significa que os homens também se empoderam, do
poder de forma positiva, do poder da solidariedade, quando começam a vivenciar as relações
de gênero de outra forma, quando começam a desconstruir, no cotidiano, os estereótipos de
gênero aprendidos com os ancestrais, tão difíceis de remover, quando tiram o duro fardo que a
sociedade lhes deu de únicos provedores, de serem os únicos que têm a obrigação de sustentar
a família.
O empoderamento organizacional, para Rodrigo Horochovski (2006), dialoga
com o que descreve Perkins e Zimmerman (1995), sobre a organização como unidade de
análise identificando seus objetivos e processos como um sistema organizacional. Para
Horochovski é
23
Nossa tradução do original em espanhol.
55
24
DRP é um instrumento de investigação que utiliza técnicas participativas para coletar informações
acerca de uma dada realidade, sem que estejamos atrelados ao uso de técnicas tradicionais.
Segundo Miguel Expósito Verdejo: “é um conjunto de técnicas e ferramentas que permite que as
comunidades reflitam sobre a sua realidade e a partir daí comecem a autogerenciar o seu
planejamento e desenvolvimento” (2006, p. 6).
58
Este capítulo, que está voltado para a temática do empoderamento das mulheres
agricultoras no âmbito do Projeto Gente de Valor, se divide em duas partes: a primeira
contextualiza esta temática e a segunda traz os dados de nossa pesquisa para fundamentar a
nossa análise.
Nas últimas três décadas do século XX, cresceu, em nível mundial, a necessidade
de medidas para aumentar a equidade social, econômica e política na perspectiva do
empoderamento de mulheres. A incorporação de um enfoque de gênero nas políticas públicas
é um processo relativamente recente e ainda não totalmente consolidado.
O marco inicial pode ser localizado na I Conferência Mundial do Ano
Internacional da Mulher, que aglutinou mulheres de todo o mundo, em 1975, no México. Aí
foi declarado, pela ONU, o período entre 1975 e 1985 como a “Década da Mulher”. Em 1979,
como resultado de uma intensa mobilização internacional, foi proposto o primeiro tratado
internacional sobre os direitos humanos das mulheres – “Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW)26 – que contemplava direitos
civis, sociais, educacionais, econômicos e políticos. O Brasil ratificou sua assinatura deste
tratado em 1984, porém, com algumas reservas. Tais reservas só foram suspensas em 1994
quando, finalmente, o país pode endossar o documento total, que foi ratificado sem reservas.
Em 1985, em Nairóbi (Quênia), foi realizada a III Conferência Mundial Sobre a
Mulher, quando foram aprovadas estratégias de ação voltadas para o progresso da mulher.
Criou-se também o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM).
Porém, segundo Ana Alice Costa (2002, p. 132), foi na IV Conferência Mundial das
Mulheres, realizada em Beijing/Pequim (China), em 1995, que os organismos internacionais27
26
Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/eixo/internacional/documentos-
internacionais>. Acesso em: 13 maio 2014.
27
Exemplos: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Banco Mundial
(BIRD), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Mundial de Saúde (OMS),
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), entre outras.
64
28
Em 1984, criou-se o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais no Sertão Central de
Pernambuco. O MMTR-NE, atualmente, em sua intervenção, trabalha com a perspectiva da
educação popular iniciada por Paulo Freire e com a abordagem de gênero em uma perspectiva
feminista. A instituição, através de seus programas e projetos, capacita mulheres trabalhadoras
rurais na perspectiva de aumentar a autonomia das mulheres, transformar a mentalidade de
submissão e combater todo tipo de discriminação e preconceito. Disponível em:
<http://www.mmtrne.org.br/quemsomos.html>. Acesso em: 27 jul. 2014.
29
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura é um movimento sindical de
trabalhadores e trabalhadoras rurais que completou 50 anos de fundação em 2013. Ao longo de
todos esses anos luta pelos direitos dos homens e das mulheres do campo e da floresta que são
agricultores familiares, acampados e assentados da reforma agrária, assalariados rurais, meeiros,
comodatários, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais e ribeirinhos. Atualmente tem,
como filiados 27 Federações de Trabalhadores na Agricultura (FETAGs) e mais de 4.000
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs). Tem como principais bandeiras de
luta: reforma agrária, agricultura familiar, direitos dos assalariados, políticas sociais para o campo,
novas relações de gênero e geração, agroecologia e reforma política. Disponível em:
<http://www.contag.org.br/index.php?modulo=portal&acao=interna&codpag=215&nw=1>.
Acesso em: 27 jul. 2014.
66
30
A ANMTR reúne as mulheres dos seguintes movimentos: Movimentos Autônomos, Comissão
Pastoral da Terra (CPT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Pastoral da
Juventude Rural (PJR), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), alguns Sindicatos de
Trabalhadores Rurais e, no último período, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
31
A Marcha das Margaridas é uma ação estratégica das mulheres do campo e da floresta que integra a
agenda permanente do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e
de movimentos feministas e de mulheres. Tornou-se amplamente reconhecida como a maior e mais
efetiva ação das mulheres da América Latina. As três primeiras marchas, realizadas em 2000, 2003
e 2007, focaram na plataforma política e na pauta de reivindicações “Contra a fome, a pobreza e a
violência sexista”. Em 2011, o lema foi “Desenvolvimento Sustentável com Justiça, Autonomia,
Igualdade e Liberdade”. “Margaridas” faz referência à líder sindical de Alagoa Grande (PB),
Margarida Maria Alves, pioneira destemida na luta pelos direitos trabalhistas rurais, assassinada em
1983 como represália a esta luta.
67
No cenário atual, desde 2005, contamos com a presença de outro forte movimento
de mulheres rurais: o Movimento de Mulheres Camponesas, que nasceu em Santa Catarina,
mas vem crescendo em nível nacional, por sua prática de luta e por encampar um Projeto
Popular que se opõe ao agronegócio e busca o fortalecimento da agricultura familiar. Este
movimento tem um forte compromisso com as mulheres camponesas de articular a
transformação das relações sociais de classe com a mudança nas relações com a natureza e a
construção de novas relações sociais de gênero.
Butto e Leite (2010) afirmam que as grandes mobilizações nacionais, como a
Marcha das Margaridas, liderada pela CONTAG, começam a dar frutos e têm um maior
reconhecimento social com suas pautas de reivindicações, construindo assim, condições
favoráveis para a formulação e implementação de políticas públicas e para a afirmação de
uma agenda feminista no desenvolvimento rural. Ao longo dos últimos anos, os conteúdos das
reivindicações se transformaram para enfrentar e superar as desigualdades de gênero ainda
presentes no meio rural. Em busca de maiores conquistas, a Marcha passa a reivindicar, com
maior ênfase e objetividade, a inserção das mulheres nas atividades produtivas bem como a
exigir linhas de crédito especiais para as mulheres rurais (Pronaf32 Mulher), políticas de
comercialização e assistências técnicas especializadas. A agenda se ampliou para outras
demandas, como o aumento do salário mínimo, o combate à violência contra a mulher que
está presente e é naturalizada no meio rural.
Apesar da agenda política própria das mulheres no campo ter constituído
demandas legítimas de interlocução com o Estado e de organização dos movimentos sociais,
outras demandas internas ao segmento representado por estas mulheres ainda necessitam de
avanços muito maiores. É o caso das mulheres quilombolas e indígenas (povos tradicionais):
quando comparadas às trabalhadoras rurais, as proposições, o reconhecimento e a garantia dos
seus direitos estão muito distantes do êxito.
Atualmente, esses movimentos sociais, para fortalecer a luta contra o
neoliberalismo com a proposição de um modelo global alternativo de agricultura e de
desenvolvimento passaram a se articular em redes internacionais tais como a Via Campesina33
32
O Programa de Fortalecimento Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) foi criado em 1996,
no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. É uma política pública de crédito voltado
para os agricultores e agricultoras familiares e assentados e assentadas da reforma agrária.
33
A Via Campesina é um movimento internacional de camponeses e camponesas, pequenos e médios
produtores, mulheres rurais, sem-terra, indígenas, juventude rural e trabalhadores agrícolas. As 148
organizações que formam a Via Campesina são de 69 países da Ásia, África, Europa e das
Américas.
68
36
É o desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a
capacidade de atender às necessidades das futuras gerações. É o desenvolvimento que não esgota
os recursos para o futuro. Definição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas. Disponível em:
<http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/questoes_ambientais/desenvolvimento_sustentavel/>.
Acesso em: 28 jul. 2014.
70
37
Disponível em: <http://spm.gov.br/pnpm/pnpm>.
72
38
Segundo o Dicionário Aurélio, o machismo é a atitude ou comportamento de quem não aceita a
igualdade de direitos para o homem e a mulher.
39
A fabricação de uma identidade de gênero fixa.
76
atual, com toda a sua diversidade de discursos, reconhece a “mulher” como uma categoria
histórica e heterogeneamente construída e fundamenta sua análise nas práticas cotidianas das
mulheres e nas resistências destas em relação às especificidades histórico-discursivas. A
categoria “mulheres”, apesar de ser volátil e dependente do contexto conjuntural, é utilizada
para articular as mulheres politicamente (2002, p. 67).
Vivemos em uma sociedade baseada nas relações de poder. A realidade na
sociedade rural se baseia em valores patriarcalistas e o princípio masculino ainda é tomado
como parâmetro universalizante. As mulheres, com o papel de reprodução, se tornam
submissas e responsáveis pela esfera doméstica. Hoje, porém, já é possível identificar na
sociedade rural que este processo de naturalização vem se desconstruindo: já não é tão forte
como no passado.
Nos últimos anos, observa-se que o empoderamento da mulher na sociedade rural
tem tomado a atenção de grande parte da esfera pública, tanto que, para celebrar o Dia
Internacional da Mulher, em 2012, dada a importância do papel das mulheres rurais em todos
os países, a ONU Mulheres, entidade específica das Nações Unidas, escolheu o tema
“Empoderamento das mulheres rurais – Acabar com a fome e a pobreza”.
O Projeto Gente de Valor se insere nesta concepção e, em suas ações, parte do
reconhecimento do papel desenvolvido pelas mulheres agricultoras, da importância do seu
trabalho na economia rural local, concentrado nas atividades voltadas ao autoconsumo
familiar, nas tarefas domésticas, no cuidado com os filhos, na criação de pequenos animais, na
horticultura, no cultivo e resgate das plantas medicinais, no zelo pelo jardim, no manejo da
caatinga e na produção da lavoura. Por outro lado, percebe-se que as mulheres agricultoras na
Bahia ainda são discriminadas e oprimidas e têm dificuldades ou são excluídas de participar
ativamente de projetos de desenvolvimento rural com a perspectiva sustentável. O PGV, em
sua proposta de intervenção, incorpora a participação das populações excluídas do
desenvolvimento, participação que se dá na formulação e condução das políticas públicas
voltadas para o campo. Deste modo, possibilitou a inclusão das mulheres agricultoras nas
atividades de produção agrícola e nas associações comunitárias previstas no Projeto.
É o que se pretende verificar através da análise dos dados sobre a participação das
mulheres no Projeto, como se deu a promoção e a efetivação de direitos, de cidadania, de
oportunidades para transformar as relações desiguais de poder presentes no meio rural.
77
40
Disponível em: <http://www.car.ba.gov.br/institucional/a-car/>.
41
Técnico em Desenvolvimento Regional da CAR, subcoordenador do Projeto Gente de Valor. Texto
não publicado.
80
42
É um Programa promovido pelo Governo Federal, através do Ministério de Integração Social (MI)
e se integra no Plano Brasil Sem Miséria. O programa tem o objetivo de universalizar o acesso e o
uso de água para populações carentes, em situação de extrema pobreza, seja para o consumo
próprio ou para a produção de alimentos e a criação de animais, possibilitando a geração de
excedentes comercializáveis para a ampliação da renda familiar dos produtores rurais.
43
É um Programa do Governo do Estado da Bahia de inclusão produtiva, com atuação em área
urbana, que atua no fomento a empreendimentos individuais e familiares da economia informal.
Esse programa apoia um conjunto de atividades, destacando-se os arranjos produtivos urbanos de
alimentação, costura, ambulantes, agricultura urbana e resíduos sólidos.
44
A “Revolução Verde” reforçou a “modernização conservadora” da agricultura brasileira nos anos
1960. Ao introduzir, em nome do aumento da produtividade e do combate à fome, tecnologias
dependentes de insumos industriais, como equipamentos e maquinário, adubos e agrotóxicos,
concentrou a produção em grandes propriedades monocultoras, sem cuidados sociais, como a
queda do emprego agrícola, o êxodo rural e a violência no campo, e ambientais, como a degradação
de solos e águas. Aos pequenos e médios produtores, cabia a marginalização ou a integração ao
sistema, induzidos pelos pacotes tecnológicos financiados pelos bancos. Foi uma modernização
conservadora porque manteve as estruturas de propriedade e as relações de poder sob o controle
das classes dirigentes que já as controlava.
45
Missão constituída por: Dr. Benjamin Quijandria, Agrônomo, Ph.D. Especialista em
Desenvolvimento Rural e Chefe da Missão; Dra. Pilar Campaña, Antropóloga, Ph.D., Especialista
em Organização Camponesa, Capacitação e Gênero; Dr. Pedro de Hegedus, Agrônomo, Ph.D.,
Especialista em Acompanhamento e Avaliação de Projetos; Engenheiro Agrônomo Bernardo Lima,
Especialista em Organização e Gestão de Projetos; Dr. Vittorio Silvestri, Economista, e Analista
81
em processo de fechamento das suas atividades. Nesta época da elaboração, a CAR ainda
estava vinculada à Secretaria de Planejamento do Estado da Bahia (SEPLAN).
Em 2007, o Governo do Estado da Bahia cria a Secretaria de Desenvolvimento e
Integração Regional (SEDIR) e, neste mesmo ano, o Projeto recebeu o seu primeiro nome
fantasia: “Projeto Terra de Valor”. Em 2008, este nome foi mudado para “Projeto Gente de
Valor”. O motivo da mudança se deu pelo fato de o governador ter gostado do nome e ter
resolvido colocá-lo em um programa do Governo do Estado. Com prazo de execução
contratual com o FIDA de seis anos, começou a ser implementado, no início de 2007, com
encerramento previsto para dezembro de 2012. Porém, o Projeto continua com algumas ações,
por mais alguns anos, com o objetivo de acompanhar a consolidação dos grupos produtivos e
de seus empreendimentos.
Executado pela CAR é um projeto com recursos47 do Governo do Estado da Bahia
em parceria com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) órgão das
Nações Unidas (ONU), através do Contrato de Empréstimo no 696-BR-FIDA. O Projeto se
insere entre as políticas de desenvolvimento agrícola e rural, de ações sociais e de redução da
pobreza do Governo da Bahia. Como já foi dito anteriormente, a meta proposta para o Projeto
estava de acordo com as Metas de Desenvolvimento do Milênio nas quais consta a redução
significativa dos níveis de pobreza e da pobreza extrema das comunidades rurais semiáridas
do estado do Bahia. Seu objetivo geral era “melhorar as condições sociais e econômicas das
comunidades rurais pobres através de um desenvolvimento social e econômico
ambientalmente sustentável com equidade de gênero” (APPRAISAL, 2005, p. 2).
A estrutura organizacional do Projeto Gente de Valor é composta por um
Coordenador Estadual, dois Subcoordenadores – um do Componente de Desenvolvimento do
Capital Humano e Social e outro do Componente de Desenvolvimento Produtivo e dos
Mercados – e por cinco Assessorias: Administrativa e Financeira, de Monitoramento e
Avaliação, de Gênero, de Conservação e de Manejo Ambiental e da Infraestrutura, que
formam a coordenação do PGV. Sua unidade de gestão compreende a Coordenação em
Figura 1 ˗˗ Localização dos municípios pertencentes às Regiões Nordeste e Sudoeste selecionados para
o Projeto Gente de Valor, 2010
Fonte: Relatório Estudos de Base (PRAXIS, 2009, p. 14) – IBGE (mapa básico) e CAR (municípios
selecionados).
48
Manual de Operações (MOP) do Projeto Gente de Valor, 2008, p. 9.
83
49
O modelo de Desenvolvimento Territorial aqui entendido como o que é desenvolvido pelo
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e pelo MDA que concilia
combate à pobreza, segurança alimentar e nutricional, proteção ambiental e geração de renda e, no
qual o território se torna um novo espaço de construção de projeto e articulação de políticas
públicas em parceria com estados, municípios e sociedade civil. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/seguracaalimentar/desenvolvimentoterritorial>. Acesso em: 31 jul. 2014.
84
50
É o núcleo de estudos feministas mais antigo do Brasil, criado em maio de 1983 na Universidade
Federal da Bahia (UFBA). O NEIM está vinculado ao Mestrado em Ciências Sociais da UFBA,
Disponível em: <http://www.neim.ufba.br/wp/apresentacao/>. Acesso em: 21 maio 2014.
51
Cito os trabalhos nos quais essas barreiras foram refletidas e analisadas: SARDENBERG, Cecilia.
Migrações perigosas: as (des)aventuras semânticas do conceito de gênero nos projetos e políticas
para mulheres no Brasil. In: GONÇALVES, E. et al. (Org.). Iguais? gênero, trabalho e lutas
sociais, Goiânia: PUC Goiás, p. 19-48, 2014; Da transversalidade à transversalização de gênero. In:
ALVES, I. et al. (Org.). Travessias de gênero na perspectiva feminista. Salvador: NEIM/EDUFBA,
2010, p. 37-73; Liberal vs liberating empowerment: a Latin American perspective. Pathways
Working Paper 7, Pathways of Women’s Empowerment, Brighton, UK: IDS- Institute of
Development Studies, 2009; Liberal vs liberating empowerment: a latin american feminist
85
individual e coletivo. Estas reuniões forçaram os técnicos e técnicas a pensar em como se dão
as relações de gênero em suas vidas e no dia a dia do trabalho na área rural. Como resultado
deste processo de reflexão, cada equipe dos sete escritórios, a partir da sua realidade, elaborou
seu Plano Operativo com o enfoque de gênero. Esta estratégia impôs aos técnicos e técnicas o
exercício de elaborar ações e atividades com esta perspectiva. A ideia era favorecer a atuação
do Projeto em situação de desigualdade entre homens e mulheres que, antes deste processo,
era invisível aos olhos da equipe técnica, através de atividades como: reuniões dos conselhos
e comitês, participação na associação comunitária, quintais produtivos, roças comunitárias
etc., dando visibilidade às mulheres e projeção para o reconhecimento e fortalecimento de
suas capacidades.
Em 2010, foi elaborado, pela assessoria de gênero, o Plano de Ação em Gênero do
Projeto Gente de Valor, a partir dos Planos Operativos de cada escritório, que serviu para
orientar a maneira pela qual o trabalho com o enfoque de gênero do PGV deveria possibilitar
a equidade entre homens e mulheres e o empoderamento das mulheres e jovens. Para o
avanço do enfoque de gênero por dentro da estrutura do Projeto, foi necessário e essencial
desenvolver primeiro com os técnicos e técnicas o processo de sensibilização e capacitação
sobre as questões de gênero. Porém não houve uma formação teórica específica, focada só em
gênero para aprofundar este assunto de forma sistemática. A formação em gênero sempre foi
realizada com interfaces com outras temáticas desenvolvidas pelos componentes produtivo e
social, por exemplo: gênero e segurança alimentar, gênero e agroecologia, gênero e quintais
produtivos, gênero e associativismo.
A equipe técnica, formada por assistente social e pedagoga, do Componente de
Desenvolvimento de Capital Humano e Social, foi a que ficou responsável por trabalhar nas
comunidades com as famílias, com os homens e as mulheres a equidade de gênero e o
empoderamento das mulheres. O processo de sensibilização teve início com os encontros de
mulheres, que aconteceram nos subterritórios54, refletindo e visibilizando as contribuições das
mulheres agricultoras. Através do trabalho específico com as mulheres, estas se prepararam e
se capacitaram para a participação nos processos e espaços sociais representativos com uma
maior consciência de si e de seu papel, ocupando cargos de poder com autonomia.
Como estratégia metodológica, buscou-se assegurar a realização das “Cirandas
das Crianças”: espaço educativo e recreativo para as crianças, paralelo às atividades de suas
54
Conjunto de três ou quatro comunidades com características e identidades culturais semelhantes.
88
mães, uma ação afirmativa para oportunizar a participação das mulheres de forma integral, o
quanto possível, despreocupadas com seus filhos e filhas.
Essas ações estratégicas foram importantes para ir rompendo com os estereótipos
de gênero, mostrar as mulheres como profissionais e possibilitar o acesso das mulheres
técnicas e agricultoras às atividades produtivas e organizativas, consideradas na zona rural
reduto de quase exclusivo domínio masculino.
89
Cidadania Semiárido Nordeste II55. Os cinco escritórios do PGV cobrem esta região Nordeste,
com sede em Abaré, Euclides da Cunha, Ribeira do Pombal, Cícero Dantas e Jeremoabo.
No Nordeste da Bahia, predomina o bioma caatinga, região chamada de “sertão”.
O clima é tropical semiárido, que alterna um período seco (abril/maio a setembro/outubro) e
outro chuvoso (outubro/novembro a março/abril) e se caracteriza por grande irregularidade do
período chuvoso e por secas que podem ser rigorosas. O sistema de cultivo agrícola
predominante é o de subsistência. As atividades agrícolas são desenvolvidas,
predominantemente, em regime de chuvas e são voltadas, principalmente, para lavouras
alimentares como mandioca, milho e feijão, com comercialização apenas da produção
excedente, muitas vezes incerta. É importante, também, a pecuária extensiva, de bovinos, mas
sobretudo de caprinos e/ou ovinos (10 a 40 cabeças por família), para o consumo da casa e
reserva para eventualidades, em pequenas propriedades de até 100 ha em área de caatinga.
A área da pesquisa faz parte do Território Semiárido Nordeste II – BA, composto
por 18 municípios56, em uma área total de 16.056,70 km². A população do território é de
407.964 habitantes dos quais 224.676 vivem na área rural, o que corresponde a 55,07% do
total. O território possui 55.761 agricultores familiares, 668 famílias assentadas da Reforma
Agrária, três comunidades quilombolas e três terras indígenas57.
Dentre os 18 municípios que formam o Território Semiárido Nordeste II, estamos
focando nossa pesquisa em seis municípios que, juntos, apresentam uma área total de
7.019,925 km². Segundo o IBGE (2013)58, as populações estimadas, para cada um destes
municípios são: Santa Brígida – 15.381 habitantes; Jeremoabo – 40.587 habitantes; Novo
Triunfo – 15.943 habitantes; Fátima – 18.524 habitantes; Banzaê – 12.534 habitantes e
Ribeira do Amparo – 15.186 habitantes.
55
São 120 os Territórios da Cidadania, um Programa do Governo Federal lançado em 2008, que tem
como objetivos promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de
cidadania por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Disponível em:
<http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/xowiki/oprograma>. Acesso
em: 30 jan. 2014.
56
Santa Brígida, Jeremoabo, Pedro Alexandre, Coronel João Sá, Sítio do Quinto, Euclides da Cunha,
Novo Triunfo, Antas, Adustina, Paripiranga, Cícero Dantas, Fátima, Banzaê, Ribeira do Pombal,
Heliópolis, Ribeira do Amparo, Cipó e Nova Soure.
57
Fonte: Sistema de Informações Territoriais (HTTP://sit.mda.gov.br). Portal da cidadania. Governo
Federal. Disponível em: <http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/
semiaridonordesteiiba/one-community?page_num=0>. Acesso em: 11 jan. 2014.
58
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA ˗˗ IBGE. Estimativas
populacionais para os municípios brasileiros em 01.07.2013. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2013/estimativa_dou.shtm>.
91
59
O PGV decidiu utilizar a expressão “comunidades tradicionais” para aquelas comunidades de
agricultores e agricultoras familiares do semiárido, definidas por uma caracterização preliminar dos
aspectos socioeconômicos, do uso e posse da terra e da infraestrutura básica. E utilizou outras
especificidades culturais para definir as comunidades: negras ou quilombolas, fundo de pasto,
indígenas e ribeirinhas.
92
60
O IDH é constituído por três pilares (saúde, educação e renda), indicando um valor quantitativo
para a renda Produto Interno Bruto (PIB) per capita, longevidade (expectativa de vida ao nascer) e
educação, referente a cada município. O índice varia de zero (nenhum desenvolvimento humano) a
um (desenvolvimento humano total), portanto, quanto mais próximo de um (1) ele é mais alto. Para
a avaliação da dimensão longevidade, o IDH municipal considera a esperança de vida ao nascer,
mostra o número médio de anos que uma pessoa nascida naquela localidade no ano de referência
(no caso, 2000) deve viver. O cálculo do IDH municipal para a dimensão educação considera dois
indicadores com pesos diferentes: a taxa de alfabetização de pessoas acima de 15 anos de idade tem
peso dois e a taxa bruta de frequência à escola peso um. O primeiro indicador é o percentual de
pessoas com mais de 15 anos capaz de ler e escrever um bilhete simples, considerados adultos
alfabetizados, por este motivo a medição do analfabetismo se dá a partir dos 15 anos. O segundo
indicador é o somatório de pessoas (independentemente da idade) que frequentam os cursos
fundamental, secundário e superior e, também, os alunos de cursos supletivos de primeiro e de
segundo graus, de classes de aceleração e de pós-graduação universitária; é dividido pela população
na faixa etária de 7 a 22 anos do município. No critério usado para a avaliação da dimensão renda
municipal per capita, ou seja, a renda média de cada residente no município, soma-se a renda de
todos os residentes e divide-se o resultado pelo número de pessoas que moram no município
(inclusive crianças ou pessoas com renda igual a zero). Porém, o IDH apresenta imperfeições e
limitações, sendo criticado em alguns pontos em seu processo de construção pela natureza distinta
de suas variáveis; sua fórmula de cálculo apresenta limites quanto a agregabilidade e
desagregabilidade de informações; e à falta de um modelo teórico explícito de causa e efeito que
justifique a aglutinação de variáveis de naturezas distintas em um indicador único. (MOURA,
SAUER, 2009, p. 115). Disponível em: <http://www.frigoletto.com.br/GeoEcon/idhmcalc.htm>.
Acesso em: 20 maio. 2014.
93
Tabela 3 – Taxa de analfabetismo ampla da população com mais de 14 anos, por município
integrante do Projeto Gente de Valor selecionado para a pesquisa ˗˗ Bahia, 2009
Sabem ler e Taxa de
Região/Município Analfabetos Subtotal
escrever analfabetismo (%)
Banzaê 153 180 333 51,23
Fátima 229 219 448 53,46
Jeremoabo 319 246 565 53,15
Novo Triunfo 152 76 228 64,41
Ribeira do Amparo 200 76 276 40,71
Santa Brígida 208 114 322 45,8
Fonte: CAR/ASVG, Cadastro de Domicílio, 2009 – Estudo de Base
95
Tem sete irmãos e a mãe é agricultora. Seu pai é falecido, morreu em consequência do
alcoolismo. É sócia da Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio
Quente de Cima.
9. Maria Amélia, 50 anos, nasceu em 20 de junho de 1963, no município de
Fátima. Mora na comunidade Raso Pintado, Subterritório Boa Esperança. Seu estado civil é
casada, porém está separada há alguns anos por não aguentar a violência do ex-marido
alcoólatra. Tem oito filhos, cinco homens e três mulheres. É agricultora de profissão, mas tem
como ocupação cuidar da casa e ser costureira. Tem o Ensino Fundamental I completo, fez até
a 4ª série. Seu pai morreu quando ela era ainda pequena; sua mãe, que era agricultora, casou-
se novamente e teve oito filhos. Ela afirma que foi ela quem criou os irmãos para que a mãe
pudesse trabalhar na roça ou como doméstica. Na Associação Comunitária dos Agricultores
Familiares de Raso Pintado e Lage da Boa Vista ela assume o cargo de tesoureira.
10. Maria José 50 anos, nasceu no dia 8 de abril de 1963, no Estado de Alagoas.
Mora na comunidade Baixa do Mocó, Subterritório Os Batalhadores. É casada há 29 anos.
Têm sete filhas, cinco moram em São Paulo, uma em Pernambuco e apenas a mais nova mora
com ela. É agricultora de profissão e de coração, diz. Concluiu o Ensino Fundamental I, fez
até a 4ª série. Seus pais são agricultores e, atualmente, estão separados. Sua mãe teve quinze
filhos, dos quais vivos são sete homens e três mulheres. No período de nossa pesquisa (2009 a
2012), exercia o cargo de presidente na Associação dos Moradores da Comunidade Beleza;
atualmente, é apenas sócia.
Dentre as dez mulheres entrevistadas, duas têm o ensino médio completo e
afirmam ser de origem urbana, uma da cidade de Santa Brígida e a outra de São Paulo, ambas
vindas na adolescência para a comunidade rural onde moram. As outras oito entrevistadas
afirmam ser de origem rural: sete nasceram nas comunidades onde moram ou em
comunidades vizinhas e uma, no estado de Alagoas.
As duas entrevistadas mais jovens são Maria Alice, 25 anos, e Maria dos Anjos,
24 anos. A primeira de cor parda, é solteira, vive há dez anos em união consensual, sem filhos
e mora na comunidade de Bariri, município de Ribeira do Amparo. Maria Alice é alegre e
muito inteligente. Artesã, trabalha com fiapo de pano fazendo almofadas, redes, tapetes e diz
que, através do grupo do artesanato, a comunidade ficou mais unida. Ela assume o cargo de
secretária, na Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio Quente de
Cima. Durante a entrevista, lembrou-se da infância em São Paulo, do vício de jogar bingo de
sua mãe e da vida dura que o pai levava para cuidar da casa e dos filhos. É a filha mais velha e
com apenas 9 anos tinha de assumir o cuidado com os irmãos para que seu pai pudesse
98
trabalhar como pedreiro. Já Maria dos Anjos nasceu na cidade de Santa Brígida, tem cor
parda, é solteira e vive há cinco anos uma união consensual da qual tem um filho. Maria dos
Anjos tem cabelos pretos e lisos, fala baixo, é tímida, mas participa do grupo do bordado
porque queria aprender a fazer crochê. Mora na comunidade de Canabrava e participa da
Associação Comunitária dos Produtores e Produtoras Rurais Unidos por Canabrava.
Maria do Sossego é da mesma associação que Maria dos Anjos, da qual é uma
das fundadoras, e também do mesmo grupo do bordado. Enquanto conversávamos, ela fazia
crochê na barra de um pano de prato do qual não levantava a cabeça enquanto respondia a
minhas perguntas. Tem 38 anos, é parda, tem dois filhos (um menino e uma menina), é
solteira, mas vive uma união consensual há 20 anos; estudou até a 5ª série. Ela assume a
responsabilidade de tesoureira no grupo do bordado. Afirma que começou a trabalhar na roça,
desde criança, para ajudar o pai e a mãe e que não sabe viver sem trabalhar.
A idade das mulheres entrevistadas varia entre 24 e 50 anos. Duas têm 50 anos,
Maria Amélia e Maria José. As duas estudaram até a 4ª série primária; mesmo assim,
assumiram cargos em sua comunidade. Maria Amélia é tesoureira da Associação
Comunitária dos Agricultores Familiares de Raso Pintado e Lage da Boa Vista, município de
Fátima. Maria José é da comunidade Baixa do Mocó, presidente da Associação dos
Moradores da Comunidade Beleza, município de Santa Brígida. Maria Amélia, que se diz
ruiva, é uma mulher sofrida, têm oito filhos, o marido era alcoólatra, sofreu violência
doméstica até que, finalmente, separou-se dele. Já Maria José, que afirma ser morena clara, é
uma mulher fisicamente forte, de mãos grossas, casada, teve sete filhas mulheres, trabalha na
roça com hortaliça no quintal produtivo e tem orgulho de ser agricultora.
Das dez mulheres entrevistadas, nove são identificadas, pelo projeto, com a
mesma especificidade de comunidade tradicional de agricultura familiar. Apenas uma
pertence a uma comunidade que se identifica como negra/quilombola, a comunidade Maria
Preta, no município Banzaê. Há quase vinte anos atrás, este município era terra indígena da
etnia Kiriri. A comunidade Maria Preta é de difícil acesso, escondida em um relevo de
baixada e esquecida do poder público, apesar da presença de alguns órgãos executantes de
projetos específicos.
Nossa entrevistada nesta comunidade é Maria das Dores, uma mulher jovem, de
31 anos de idade, que estudou, fez o magistério, é mãe de um filho e recém-separada. Na
ocasião da entrevista, como era a primeira vez em que eu estava naquela comunidade, ainda
não conhecia Maria das Dores. Depois de descermos uma pequena ladeira, chegamos à casa
dos pais dela, ao lado da qual ficava a casinha em que morava: à frente, uma grande árvore
99
onde a família e os vizinhos costumam se reunir para conversar. O pai dela estava deitado em
uma rede e, ao lado, três cadeiras à nossa espera, eu e a técnica que trabalhava com a
comunidade. Logo, a mãe dela apareceu e iniciamos a conversa explicando do que se tratava e
como seria a entrevista. Perguntei a Maria das Dores se a entrevista seria ali com todos juntos
ou se preferia estar sozinha; neste exato momento percebi em seu rosto o alívio e ela me
chamou para irmos até a sua pequena casa, apenas as duas. Maria das Dores é uma mulher
envergonhada que está vivendo uma fase de dor e tristeza pelo fim do seu casamento. Durante
a entrevista, falava da luta da Associação das Famílias Agricultoras Remanescentes do
Quilombo de Maria Preta, onde ela assume a coordenação de gênero e da necessidade de
continuar a organização para melhorar a vida na comunidade.
Com relação à cor da pele, apenas duas delas responderam com firmeza e com
orgulho serem negras; seis delas se definiram como pardas, apesar de ter percebido a dúvida
nesta afirmação; algumas, no início da entrevista, se disseram morenas. Apenas uma disse ser
branca e uma outra afirmou (perguntando-me, porém) ser ruiva.
Maria Esperança é uma das que afirmou ser negra. Ela é uma jovem de 28 anos,
tem dois filhos (um menino e uma menina), é casada, tem o ensino médio completo e está
fazendo o 3º ano do curso técnico em agropecuária. Além de agricultora, trabalha com
apicultura e foi Agente de Desenvolvimento Subterritorial (ADS) na comunidade
Bananeirinha, no município de Jeremoabo, pelo Projeto Gente de Valor. É católica e mora ao
lado da igreja, que ela varre e cuida para as missas e reuniões; sua entrevista foi realizada
dentro da igreja. Ela é falante, responsável e muito compromissada com as atividades da
comunidade.
A única entrevistada que afirmou ser branca foi Maria de Lourdes, 41 anos, que
estudou só a primeira série primária, é solteira, vive uma união consensual de oito anos, tem
seis filhos (cinco meninos e uma menina) e é artesã de fiapo de pano. Ela conta que participar
do grupo do artesanato era difícil, pois não tinha com quem deixar as crianças, o que se
resolveu com a creche do povoado. Relata, ainda, que passou fome e sofreu violência
doméstica e hoje enfrenta sozinha a dificuldade de criar os filhos. O marido trabalha em São
Paulo e vem duas vezes ao ano, segundo ela, fato muito comum na comunidade de Bariri,
município de Ribeira do Amparo, já que não há emprego na região.
Maria da Paz é solteira, parda, tem 32 anos e um filho, sua mãe morreu de câncer
e ela cuida do seu pai. É uma mulher forte, fisicamente, de olhos verdes e um sorriso bonito.
Gosta do trabalho de tesoureira, função que desenvolve na comunidade pela Associação dos
100
61
São grupos de cristãos leigos, geralmente pobres, que se reúnem, regularmente, nas casas de
famílias ou em centros comunitários, a fim de ouvir e aprofundar a Palavra de Deus, alimentar a
comunhão fraterna e assumir o compromisso cristão no mundo. Nasceram na década de 1960,
ligados principalmente à Igreja Católica, foram incentivados pela Teologia da Libertação após o
Concílio Vaticano II e se espalharam principalmente nos anos 1970 e 80 no Brasil e na América
Latina. Disponível em: <http://comunidade-cebs.blogspot.com.br/p/blog-page_9263.htmlonível>;
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidades_Eclesiais_de_Base>. Acesso em: 30 jan. 2014.
101
Foi beneficiada pelo PGV, uma população de 17.416 mulheres, nas regiões
Nordeste e Sudoeste da Bahia, em um percentual de 48,2% do total atendido. Na região
Nordeste, área da nossa investigação, 13.569 mulheres foram beneficiadas, atendendo a um
percentual de 48,1% do total de mulheres.
Segundo os dados do Estudo de Base realizado em 2009, quanto ao responsável
pelo domicílio, tem-se uma maior participação do gênero masculino, sendo 4.912 homens
(56,4%) e 3.800 mulheres (43,6%). Na área do projeto, de um modo geral, os homens
assumem, em maior proporção, a responsabilidade pela família. Porém, vale ressaltar a
elevada participação de mulheres que se declararam na condição de responsáveis pela família,
o que é característico das camadas mais pobres da população e/ou de comunidades onde está
presente o trabalho sazonal dos homens em outras regiões. O Gráfico 2 apresenta os dados de
responsáveis pelo domicílio segundo o gênero cruzados com a especificidade sociocultural o
que nos permite observar que os domicílios que são localizados nas comunidades Indígenas
(51,1%) e Negras/Quilombolas (48,7%) são os que apresentam maior número de mulheres
responsáveis pelo domicílio.
Mulheres
62
“Constitui um sistema de ocupação coletiva de terras por comunidades, em geral com certo grau de
parentesco. Esta ocupação dá-se na forma de sistema Agrosilvopastoril”. COMISSÃO PASTORAL
DA TERRA et al. O Fundo de Pasto que queremos; política fundiária, agrícola e ambiental para os
fundos de pasto baianos. CPT e Centrais de Fundo de Pasto. Salvador, 2004, p. 1.
104
63
As temáticas Desenvolvimento Social e Organização agrupam 10 temas de capacitações: Curso de
aproveitamento integral dos alimentos; Curso de associativismo e cooperativismo; Encontro de
sensibilização das comunidades quilombolas; Encontro para sistematização de experiências;
Encontro sobre gestão de equipamentos comunitários; Encontro sobre relações de gênero; Encontro
subterritorial de cultura; Intercâmbio sociocultural; Oficina de organização e mobilização social; e
Seminário de políticas públicas e programas governamentais.
64
A temática Inclusão Produtiva agrupa 11 temas de capacitações: Curso de corte e costura; Curso de
fruticultura; Curso de horticultura; Curso de manejo alimentar animal; Curso de manejo sanitário
animal; Curso sobre agroecologia; Curso sobre apicultura; Intercâmbio produtivo; Oficina de
beneficiamento de frutas; Oficina de construção de viveiro de produção de mudas; Oficina de
plantio de mudas e espécies frutíferas; e Oficina sobre artesanato.
65
A temática Recursos Hídricos agrupa 2 temas: Curso para confecção de bombas hidráulicas e
Curso sobre gestão de recursos hídricos.
105
A mais proveitosa mesmo foi essa que eu falei no início, o DRP, porque foi
uma coisa nova, a gente nunca tinha recebido um projeto assim na nossa
associação e quando às vezes recebia alguma coisa, já vinha pronto. E esse
foi um momento de tá descobrindo [...] a nossa história e construir também
um mapa, visões do que a gente pretendia realizar durante esse processo. E
aí as pessoas nesse tempo ficavam até meio desacreditadas porque era uma
coisa muito nova e, com o passar do tempo, a gente pode perceber que isso
que a gente planejou lá no futuro talvez não fosse bem da forma que a gente
tinha pensado, mas aconteceu de alguma forma, foi realizado, mas
colocando as visões técnicas, alguns ensinamentos a mais. Mas foi
realizado. Então, pra quem participou como eu, acho que foi pra maioria
das pessoas das comunidades, essa foi uma das mais interessantes.
(PRAXIS, 2012, p. 25; Poções – Subterritório Sol Nascente).
66
Análise dos Resultados das Pesquisas Qualitativas para Avaliação dos Impactos do Projeto Gente
de Valor sobre Comunidades Selecionadas, nov. 2012 (PRAXIS, 2012).
107
Mudou 100% [...] Porque antes do projeto aqui, se formasse uma reunião
aqui só ia os homens, as mulheres diziam 'ah não vou não, porque você já
vai, não precisa eu ir, pra que nós dois? Eu fico fazendo o serviço de casa e
você vai'. Às vezes o pai ia, outra hora o filho ia e a mulher ficava em casa.
Hoje não, a mulher quer participar da reunião porque ela tá interessada em
fazer parte daquele processo [...] através de reunião e palestra, curso. Teve
aquele encontro das mulheres aqui, [...] foi uma coisa muito importante. Só
foram as mulheres, os homens não iam lá, só eram as mulheres. Aquilo foi
uma coisa muito importante pras mulheres, é por isso que incentivou muito
as mulheres na comunidade. Porque antes não tinha esse negócio.
(PRAXIS, 2012, p. 39; Manoel Vitorino – Subterritório Nova Esperança).
Olhe, acho que todos foram proveitosos, não teve um mais, outro menos. Eu
acredito assim, desde o início, tudo que a gente fez foi em grupo, e foi tudo
importante. Não tenho questão de dizer um foi mais, outro menos. É claro
que a questão, acho que, se a gente fosse citar, por eu ser mulher, por essa
questão de mulheres, o que elas mais gostaram foi essa questão de trabalhar
o gênero, que até então não era discutido [...] Agora essa questão foi
importante. Essa questão de trabalhar os alimentos é interessante, essa
questão de trabalhar pra fazer oficina de cisterna foi importante, porque
várias pessoas aprenderam [...] Então, é uma coisa que vai servir pro resto
da vida, vai servir pra que eles possam ganhar o pão, então tudo isso foi
proveitoso. A gestão de convênios também foi importante, principalmente
pro grupo da diretoria, que aprendeu a trabalhar com a questão do
dinheiro. (PRAXIS, 2012, p. 26; Euclides da Cunha – Subterritório Asa
Branca).
O encontro de mulher foi um movimento muito bom que até hoje elas pedem
outro e que teve assim uma participação. Elas começaram no começo assim,
elas estavam assim meio tímidas, mas depois todo mundo começou a falar, e
foi uma coisa assim muito importante que as mulheres começaram a
109
participar mais aí, depois desse encontro. (PRAXIS, 2012, p. 33; Jeremoabo
– Subterritório Ribeirinhos).
67
Essa dinâmica consiste em resgatar como era a vida das antepassadas das agricultoras confrontando
com a realidade atual. Perguntamos a elas quais as atitudes que eram feitas por nossas avós e mães
e que repetimos em nossas vidas.
110
– Com certeza isso aí foi mais uma valorização que a gente teve durante
todo o processo do projeto [que] vinha colocando a questão da valorização
da mulher, não apenas ser vista como dona de casa e mãe de seus filhos,
mas tem um papel também social. [...] então eu acho que isso aí, é como eu
tinha dito, é uma questão mesmo que eles chegaram com o projeto e
começaram a valorizar, porque a mulher se sentia menosprezada, então às
vezes ficava até receosa de dar suas opiniões em um ambiente que a maioria
era homens e apenas eles debatiam. E com a valorização a gente pode
perceber que o nosso papel não é esse de ficar só observando, mas também
de agir. (PRAXIS, 2012, p. 40; Poções – Subterritório Sol Nascente).
68
Sistema de gestión de los resultados y el impacto (RIMS, 2012).
111
não têm filho pequeno. E de dia, não atrapalha não, por enquanto, o trabalho aqui que elas
faz não atrapalha, porque têm a família, têm a mãe, têm as irmãs, então, ajuda bastante.
Neste depoimento, percebe-se a divisão sexual do trabalho nos moldes
tradicionais e como a coincidência entre os ciclos de vida reprodutivo e produtivo sempre cria
problemas para a mulher trabalhadora. Independentemente de ser rural ou urbana, sempre o
desafio é como conciliar responsabilidades domésticas, principalmente o cuidar dos filhos,
com o trabalho fora de casa. Sardenberg (1998), em seu estudo sobre as antigas operárias
baianas, trouxe à luz a intensa rede de ajuda mútua entre mulheres, principalmente entre mães
e filhas. Assim como as operárias, as agricultoras do nosso estudo também tecem uma rede de
ajuda mútua com suas mães, irmãs, sogras, enfim, entre mulheres, que são acionadas para
cuidar das crianças possibilitando às mulheres camponesas conciliar com as atividades
domésticas a participação nos cursos, em eventos, o trabalho nos grupos produtivos e até
viagens, e assim garantir a participação delas nestes diversos espaços públicos.
Para superar a dificuldade dessas mulheres, que são encarregadas do cuidado com
as crianças e de todos os afazeres domésticos, um papel para o qual começam a ser treinadas
desde cedo, ajudando suas mães com os irmãos menores, a estratégia metodológica buscou
assegurar a realização das “Cirandas das Crianças”. Já que, na zona rural, é muito difícil ter
creche, a alternativa foi oportunizar a participação das mulheres de forma integral, tendo uma
pessoa da comunidade que assumia o papel de “cuidadora” das crianças durante os encontros
de mulheres. Apesar da necessidade desta ação afirmativa, percebe-se que a própria
instituição executora aportou poucos recursos, por não achar ser esta uma ação relevante e
necessária, já que é uma necessidade das mulheres.
Ficou evidente que a falta de entendimento dos técnicos e técnicas fez com que
algumas dessas cirandas não funcionassem como o previsto. Alguns alegavam que, na zona
rural, as mulheres não precisavam desta ação, pois tinham as famílias ou alguém com quem
deixar seus filhos e filhas. Mas este alguém é outra mulher! já que na vida das mulheres
camponesas, desde pequenas, lhes é ensinado que cuidar de crianças é tarefa e obrigação
exclusiva da mulher. Assim aprendem e assim reproduzem a ideologia de que há uma
essência masculina e outra feminina, passando-lhes padrões de comportamento de menina e
de menino, de modo a instituir uma subordinação enquanto gênero feminino, algo que se
construiu ao longo de suas vidas. Entendendo que a identidade de gênero é uma variável
cultural, socialmente construída, ela pode, então, ser transformada. Quero acreditar que nos
projetos de desenvolvimento possamos, através de processos educativos e de algumas ações
113
a se sentirem mais seguras e com um maior domínio sobre as atividades de que estavam
participando, consequentemente, colaborando com o processo de empoderamento pessoal e
organizacional destas mulheres. O empoderamento se relaciona com o poder, mudando as
relações de poder em favor daqueles que anteriormente tinham pouca autoridade, no caso das
mulheres do Projeto, sobre suas próprias vidas. Redefinir as normas e as regras de gênero na
família, não é fácil, pois gera conflitos e tensões, porém, já se percebem sinais de mudanças
nas relações de gênero e no exercício dos papéis tradicionais de mulheres envolvidas no PGV,
quando elas superam o medo e falam para os maridos que vão participar de um encontro, de
uma feira, ou quando se sentem capazes de sair sozinhas de casa e viajar ou quando vendem
os doces que produzem e conseguem seus próprios recursos financeiros, como observamos no
depoimento de Maria dos Prazeres:
– Mudou tanto, até no relacionamento da família, marido e mulher, que eles eram
pessoa que não deixava nem sair. Hoje, ela diz “hoje é dia de fazer o doce”; ele, não tem
negócio de dizer “e a comida?” e não sei o quê... Então, elas se sentem muito poderosa, até
em viagem, pra viajar ela diz “eu vou, [ele responde] “não, quem vai sou eu”. Antigamente,
não tinha isso, porque nem elas tinham aquele incentivo das pessoas chamar elas “vamos,
vamos lá, vamos fazer isso, é bom pra você, pra comunidade, você vai ganhar o seu pão de
cada dia”... elas sentia muito medo, medo das pessoas. Hoje não. Eu sinto nelas que elas não
têm medo, não. Se quiser fazer, faz, só é querer, ela faz e não faz uma só não, o grupo chama
todo mundo e vamos fazer assim. Se uma disser “não dá certo, não vamos fazer assim”, que
dê certo [ou] que não dê, a gente vai fazer, assim a gente vai e faz, e dá certo.
Nessa fala, percebe-se as relações em que prevalecem o domínio dos homens
(maridos) sobre as mulheres, um “poder sobre”, que controla, que proíbe, que oprime e que dá
medo. Enquanto isto, contrapondo-se a este poder, percebe-se o poder de soma positiva que
Maria dos Prazeres exerce, enquanto liderança, o “poder de dentro”; com sua consciência
individual e autoconfiança, com seu exemplo e com sua capacidade, enquanto presidente da
associação: o “poder para”. Já o “poder com” (LEÓN, 2001, p. 102) se materializa quando
reivindica em nome do grupo e quando luta junto com as outras mulheres do grupo produtivo
dos doces e da cooperativa do caju, quando aí, juntas, elas se apoiam mutuamente e tecem
uma “rede de relações de empowering” (LISBOA, 2007, p. 642), insistindo no sonho de
alcançar mudanças sociais.
Para Paulo Freire (1992), pessoa, grupo ou instituição empoderada é aquela que
realiza, por si mesma, as mudanças e as ações que a levam a evoluir e se fortalecer. Não se
trata, simplesmente de construção de habilidades e competências que, geralmente, estão
115
relacionadas à escola formal. A educação pelo empoderamento tem seu foco na transformação
cultural e por dar mais ênfase aos grupos do que aos indivíduos. Já Léon (2001) afirma que a
mudança individual nos leva à ação coletiva, o que nos faz crer que o processo pedagógico de
empoderamento trabalha as duas dimensões – individual e coletiva.
Outro aspecto importante do empoderamento se dá nas relações de poder nas
unidades domésticas. As mulheres empoderadas ou em processo de empoderamento crescem
em autoestima, buscam informações, apreendem conhecimento e técnica, acumulam
capacidades e sentem vontade de participar de organizações sociais, como associações ou
grupos produtivos. Isto significa que elas estão, em um processo mútuo, exercitando um poder
social e descentralizando o poder na unidade familiar.
116
entende-se que existia união entre eles, porém, a perspectiva de uma organização mais
estruturada surge ou se consolida com o trabalho desenvolvido pelo Projeto Gente de Valor.
Com o instrumento metodológico Grupo Focal, foram percebidos alguns
elementos dos três níveis do processo de empoderamento, o individual, o organizacional e o
comunitário, vividos pelas mulheres e seus grupos. Estes níveis não acontecem em separado,
pois o empoderamento é uma composição simultânea dos três níveis, portanto, eles merecem
igual atenção, diz Horochovski (2007) que afirma, ainda, que, no nível de empoderamento
individual, é evidente a participação das mulheres nas organizações da comunidade. Já no
nível organizacional, o empoderamento é gerado na e pela organização e resta claro, neste
nível, o compartilhamento das decisões coletivas e da liderança. No nível comunitário do
processo de empoderamento, a dinâmica organizativa possibilita ações coletivas com o
objetivo de acessar recursos comunitários e governamentais.
No grupo focal da comunidade Baixa da Roça, o depoimento de um senhor
expressa o reconhecimento do grupo da associação pelo trabalho desenvolvido e pela
participação ativa no processo de organização da comunidade das duas mulheres na liderança.
Apesar da fala do depoente atribuir as conquistas da associação como resultado só da luta das
lideranças, é evidente o empoderamento organizacional deste grupo e como a dinâmica
organizativa tem possibilitado ao coletivo o acesso a vários recursos governamentais.
– Antes só tinha a escola, o colégio. Hoje temos água, temos luz, casa de farinha,
cisterna, quintal, fogão, até casa tem, forrageira. A maioria, conseguimos com o Projeto
Gente de Valor, foi o primeiro que chegou, se não fosse, não existia nada. E tudo isso foi
arranjado por mais essa aqui, de Mara [referindo-se a Maria dos Prazeres]. Foi ela que
arranjou tudo pra todo mundo, se não fosse ela ninguém tinha nada. Primeiro lugar, Mara e
Val, que levantou essa comunidade e depois dessa associação, graças a Deus, já temos água,
luz, cisterna, forrageira e mais técnico que tá aí que, de vez em quando vai na roça de um e
de outro, que comparece pra ensinar como faz uma coisa um serviço. Então, eu gostei da
comunidade, eu assisto e, por sinal, dou valor. (José, Grupo Focal da Comunidade Baixa da
Roça, 2013).
No Grupo Focal que foi realizado com alguns representantes na comunidade
Baixa da Roça, na unidade ou minifábrica da Associação Comunitária dos Produtores Rurais,
percebe-se, nas falas, que houve uma valorização da mulher e um reconhecimento de sua
importância na sociedade, tanto na visão dos homens quanto por parte das próprias mulheres.
Disse um dos homens do Grupo Focal sobre o que achava das mulheres da associação:
118
– As mulheres tão lutando, trabalhando para desenvolver cada vez mais, com
força e vontade. Na minha opinião, cada dia que se passa, eu acredito que a comunidade vai
crescer e as mulheres vão chegar lá, porque, pelo jeito que eu estou vendo, é uma força de
vontade de trabalhar e botar as coisas pra frente! Se Deus quiser, vai pra frente mesmo.
Porque elas trabalham, faz doce, puxa as pessoas de fora pra vim trabalhar aqui também, na
mini-fábrica, aqui da castanha, e faz geladinho, as garrafinhas... A Deus querer, o trabalho
tá bem desenvolvido, há visto o que era. Antes não tinha nada. E hoje, elas estão lutando
para conseguir ganhar [ter renda]. (José, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013)
Já outro homem de certa idade falou:
– Eu acredito nas mulheres, porque eu sempre ando aqui e elas estão ali
trabalhando. Aí, eu gosto de participar, aí sento ali com elas, porque até eu não tenho medo
de mulher [risos], eu fui batizado três vezes, eu tenho respeito. Ali, tenho uma fazendo doce,
outra tá fazendo um tira gosto do doce. No final, eu trouxe um monte de goiaba que estava
perdendo. Então, eu dou valor às mulheres. Eu escuto no espaço de homem: “esse negócio
dessa associação será que você não está bestando?”. Eu tô numa expectativa, no caso de
amanhã e depois, melhorar mais. (Manoel, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça,
2013).
Depois dos Grupos Focais, tal como León (2001, p. 104), ficou o questionamento:
“Que significa o empoderamento das mulheres para os homens?” Segundo a própria León, o
empoderamento das mulheres significaria o desempoderamento dos homens, pois estes
perderiam a posição privilegiada que o patriarcado lhes concedeu. Porém, os homens
agricultores que estavam participando dos dois Grupos Focais não demonstravam exercer o
“poder sobre” as mulheres, o poder subordinador que controla a participação das mulheres no
mundo público. Estes homens demonstravam, apesar da força física, timidez, fragilidade,
insegurança e desinformação com relação à própria associação de que fazem parte e à
cooperativa, à dinâmica organizativa vivida por estas mulheres. Daí que, por outro lado, a
própria León (2001, p. 105) indica, que, de fato, “o empoderamento das mulheres significa o
empoderamento dos homens”.
Durante a conversa no grupo, percebe-se nas mulheres, com o seu acúmulo de
conhecimento ali socializado, demonstrando domínio dos conteúdos por elas aprendidos
durante o processo de capacitação, a consciência coletiva do grupo de mulheres dos doces
quando questionadas sobre as conquistas e os desafios que ainda têm pela frente, a integração
entre elas e também com a comunidade e, principalmente, o reconhecimento do trabalho da
liderança e das “mulheres dos doces” junto à associação. Porém, na esfera privada, na
119
intimidade de suas casas, isto aparece, de forma sutil, através da aceitação e não mais da
proibição da participação da mulher nas atividades do grupo. Duas delas falaram que seus
maridos mudaram seus procedimentos em casa e que, agora, eles já ajudam nas tarefas
domésticas e conversam mais com elas, pois, antes do Projeto, eles eram tímidos.
Concordo com Lisboa (2007, p. 651), quando afirma que “o empoderamento das
mulheres libera e empodera também aos homens no sentido material e psicológico, já que a
mulher passa a ter acesso aos recursos materiais em benefício da família e da comunidade e a
compartilhar responsabilidades”. Portanto, na medida em que as mulheres se relacionam,
trocando ideias e experiências entre si, vão ocorrendo mudanças internas individuais e em
suas atitudes enquanto grupo. As mudanças que ocorrem na vida dessas mulheres, no
processo de empoderamento, “contagiam” também suas relações mais próximas, com seus
pais, seus maridos, seus filhos e filhas e todas as pessoas com quem elas interagem, além de
reverter os resultados do seu acesso aos recursos materiais e financeiros para o benefício de
sua família e da comunidade.
Neste sentido, no Grupo Focal realizado na comunidade Bariri, percebe-se como a
dinâmica da vivência organizativa uniu as pessoas e criou laços entre aquelas envolvidas na
associação e também no grupo do artesanato do fiapo. Há um sentimento de pertencimento. O
grupo demonstra crer em suas lideranças e percebe-se a satisfação entre os membros em fazer
parte deste processo. É o que se evidencia no depoimento de um dos homens participantes que
demonstra, também, a habilidade que o grupo já tem em discutir e analisar os processos
organizativos experimentados e como esta experiência grupal tem sido disseminada na
vizinhança, favorecendo o sentimento de pertença à comunidade, além das famílias isoladas,
como percebemos na fala de Carla:
– Antes, no subterritório do Brar, a gente era muito individual, mas hoje, depois
que a gente passou por esse processo de organização, a gente vê que não mudou cem por
cento, mas mudou uma boa parte. É uma comunidade machista, ainda não mudou cem por
cento, para acabar com o machismo, mas está em evolução. E hoje eu vejo assim, aqui no
Bariri, muitas pessoas que estavam no grupo do artesanato e saíram, hoje tão vendo que está
dando certo. A gente percebe, vem nas casas como mutirões, um estilo que acontece aqui na
unidade de beneficiamento, pessoas de 3, 4 famílias, uma ajuda a outra a produzir a rede.
Um exemplo: hoje ajuda na minha casa, amanhã na outra casa. A gente vê que é um processo
que está dando certo. Que tá saindo da unidade e migrando para outras casas. De forma que
amanhã e depois, pode está chegando algum. Então, o processo de organização que a gente
tá passando tá sendo produtivo pra gente, o pessoal que tá no grupo de interesse do
120
sindicato de dois dias, a gente vende mais. Fica R$ 80,00 reais para cada uma. (Rose, Grupo
Focal Baixa da Roça, 2013).
As mulheres vendem os produtos na própria unidade de beneficiamento, nas feiras
e na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Novo Triunfo, durante as
reuniões e encontros, ficando, permanentemente, expostos na sede, que fica aberta durante
toda a semana. E também no Instituto de Artesanato Visconde de Mauá69. Elas também
oferecem os doces e as castanhas nos mercadinhos locais, nas lanchonetes e na porta do
Banco do Brasil, em Cícero Dantas. Diz um dos homens do Grupo Focal de Baixa da Roça:
“Tô achando que deve ir pra frente que antigamente não tinha nada e hoje tem muita coisa, a
gente tá vendo”; e outro: “Vamos dar valor a ela porque ela foi vender na porta do banco no
sol quente, chega tava vermeia. Eu dou valor a ela mulher do comércio” (José, Grupo Focal
de Baixa da Roça, 2013).
Também é visível o reconhecimento e a valorização dessas mulheres e de seus
grupos pelas pessoas da associação e da comunidade, pelos resultados alcançados ao
desenvolverem essas atividades produtivas. É o que diz o depoimento de um homem da
comunidade Bariri sobre a renda, a valorização do grupo e o sucesso da organização:
– O grupo do artesanato do Brar é formado por agricultores e agricultoras
familiares que viviam basicamente do Bolsa Família, de uma aposentadoria, viam o
artesanato como um complemento de renda e hoje já vê como renda mesmo, geração de
renda. E a gente vê que está melhorando a qualidade de vida dos artesãos. E hoje, a gente,
graças a Deus, nós somos um grupo de 11 pessoas, que hoje, você chega na região, é visto
como referência em organização, em qualidade de produtos, que antes do Projeto, se
produzir uma rede era refém dos atravessadores. E hoje, através dos cursos e das oficinas, a
gente conseguiu diversificar nossos produtos, saímos da rede e estamos produzindo
almofadas, estantes, cortinas, porta-revistas. As almofadas hoje é referência, todo mundo que
vê, se apaixona pelas almofadas. E nós devemos isso a quem? À força de vontade dos
participantes do grupo e do Projeto, que deu essa oportunidade da gente trabalhar. Eu digo
ao pessoal não parar por aí, procurar sempre estar modificando, porque hoje a almofada é
referência, mas amanhã ou depois, um dia ela vai estar ultrapassada. Então, isso nós
devemos basicamente à organização. Porque o segredo do sucesso não [é] o financiamento
69
É uma autarquia da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE) do Governo do
Estado da Bahia. Foi fundado em 1939 para estimular a produção artesanal. Tem a função de
ministrar o ensino do trabalho artesanal em todo o estado, através dos cursos de capacitação e
núcleos de produção em Salvador e cidades do interior, assegurando a manutenção da produção
regional com o aproveitamento de matérias-primas locais e a comercialização do artesanato baiano.
122
elas como à comunidade e, a partir de interesses comuns, outras comunidades, que podem se
juntar para acessar projetos, programas ou recursos existentes, como afirmação de
solidariedade entre as comunidades, na perspectiva de alcançar objetivos individuais e
coletivos.
que ele ganhava. A gente tem que acompanhar os ritmos, nem todos os ritmos... A gente tem
que dividir as tarefas, vamos dizer que 78%, em casa, mas mulher manda demais. (Pedro,
Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
As mulheres do grupo do artesanato do fiapo também falam das relações de
gênero no grupo e em casa:
– Hoje, antes de começar a trabalhar, eles se combinam o que primeiro vai fazer,
se vai limpar o galpão. Homens e mulheres no grupo trabalham igual. Apesar de ter nove
mulheres e dois homens, na hora de varrer, passar pano, não tem isso aqui não, homem tem
que fazer, é pra trabalhar todo mundo. (Regina, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
A outra mulher diz que, em casa, na divisão do trabalho doméstico, as coisas não
mudaram:
– Eu tenho que acordar e deixar tudo prontinho, porque se não, eu chego meio
dia e não tem. Tenho que deixar pronto. É difícil ele fazer, só assim, ele não critica não, eu
vim. Ele me incentiva até eu vim, mas eu tenho que fazer tudo antes. “Você não sabia que ia
sair porque você não fez? Faça antes, porque você sabia que ia sair”. (Penha, Grupo Focal
da Comunidade Bariri, 2013).
Também no Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, as mulheres e os
homens falam das divisões de tarefas e não parece ter havido mudanças:
– Eu trabalho mais no doce e ele nas coisas mais pesadas do quintal, mas eu
ajudo a ele. No início, ele não acreditava, a gente só levava pra vender 10 olhos de coentro;
aí, ele foi vendo e foi gostando e foi crescendo mais. A gente não cresceu mais por causa da
[falta de] água. (Clara, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
– Quem ajeita os quintais e as galinhas sou eu, a mulher não tem jeito. Ela já tem
as tarefas dela, não é por ruindade, não. Cuida dos meninos e da casa. Eu já cuido da roça,
do quintal e das galinhas também. Ela participa do grupo e faz o doce também. (Marcos,
Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
São evidentes as desvantagens de gênero vivenciadas por essas mulheres, como
também por outras mulheres em todo o mundo, ao considerarmos gênero como uma categoria
na análise de uma série de desigualdades que atravessam a vida de homens e mulheres,
enquanto relações de poder, principalmente quando se cruzam simultaneamente dimensões
como classe, raça/etnia, idade/geração e regionalidade, entendendo-as como eixos fundantes
da vida dos sujeitos sociais, e estas dimensões vão ganhar maior ou menor relevância a
depender das formações histórico-culturais da comunidade em que os sujeitos se inserem. A
esperança de mudanças na vida dessas mulheres e também dos homens parte do
125
está submetida. Ela vem escrevendo sua história pessoal com muita dificuldade, vem lutando
contra este poder hegemônico da ordem de gênero patriarcal. Sua luta pessoal fortalece sua
participação política e estimula o desafio da luta coletiva na perspectiva de mudanças nas
relações de gênero, raça e de classe, na sua vida e na das mulheres que ainda se encontram em
condições de vulnerabilidade, para que não permaneçam nesta condição como um destino
social natural.
As associações e grupos buscam, com dificuldade, articular ações coletivas,
internamente, na própria organização, e também têm tentado acessar recursos governamentais
e na própria comunidade. Ressalta-se que, neste nível de empoderamento comunitário, estes
sujeitos individuais e coletivos, apesar de demonstrarem relações mais horizontais e de união
entre eles, vivem também disputas de interesses, discussões, tensões e conflitos por causa de
recursos. É o que se observa na fala de Maria Amélia, quando pergunto se mudou algo na vida
das mulheres que participaram das atividades do Projeto.
– Mulher, começaram a costura, mas eu mesma só fui dois dias, além da
distância, não tinha onde colocar as máquinas direito. Aí ficava um pouquinho aqui [na
comunidade] outro pouquinho acolá [na outra comunidade], e para formar um grupo tem que
ser tudo num lugar só. Também, teve umas demandas de umas pessoas e eu me afastei. [...]
as máquinas vieram todas, tem até a máquina de estampa, estão todas aí. Tenho certeza que
ia à frente, é que o caso, é que o grupo se desuniram. [...] a gente está no grupo, uma quer de
um jeito outras querem de outro, não tem aquele acordo. Se nunca tiver um acordo nunca vai
pra frente. [...] Atrapalho foi das pessoas mesmas, que não se entenderam. Falta de
entendimento das pessoas. Ou alguém querendo passar a perna um no outro. É porque
sempre tem um que quer ser mais do que os outros, coisas que quando a gente está num
grupo não pode ser. (Maria Amélia, 50 anos).
Maria Amélia continua falando das dificuldades e mostrando a disputa entre as
mulheres do grupo de corte e costura das comunidades de Raso Pintado e Fazenda Pedrinhas,
pela posse dos equipamentos e onde iriam ficar:
– Eu percebi, além da dificuldade de ir também, outra coisa também, porque
ficaram tudo lá na outra comunidade, nada nessa daqui. Apesar que a gente foi quem
primeiro iniciou a formar a associação, mas ficou tudo prá lá. E a gente dizia: “Gente, pelo
amor de Deus, divide alguma coisa pra cá, porque fica só lá?”. Quando a gente queria trazer
alguma coisa pra cá, os de lá diziam: “Se for lá, eu não vou, se for pra lá, eu não vou”. “Aí a
gente é obrigado a sair de lá e vim pra cá, e vocês não podem ir para lá também, por quê?”.
127
Aí a gente já foi desgostando por causa disso, também. Falta de conscientização das pessoas.
(Maria Amélia, 50 anos).
Vejamos o que diz Maria da Paz, que faz parte do grupo da comunidade Fazenda
Pedrinhas, sobre o grupo de corte e costura:
– As outras, ficou naquela coisa “Eu já aprendi, não quero mais participar do
grupo, não”, algumas falaram por fora. É tanto que, aqui, o aluguel, eu acabei falando um
dia numa palestra que teve aqui ao CRAS se responsabilizou de pagar o aluguel, R$ 40,00
reais o aluguel dessa casa. Só que o cartão de energia, eu acabei brigando com o menino,
brigando é maneira de falar, pagando a energia. E fica tudo aqui e cuida tudo aqui, nada
disso me pertence, isso aqui pertence à associação, eu até falo para o pessoal, nada disso
aqui é da gente, a gente sabe disso, mas se a gente também abandonar a associação, pode
vim uma atuante [e] pode levar para onde quiserem se a gente correu atrás de tudo isso, a
gente tem que trabalhar por isso. (Maria da Paz, 32 anos).
Nos depoimentos a seguir, verificamos as estratégias e ações coletivas de poder
envolvendo os grupos e as associações através da articulação em rede com outras pessoas,
organizações e movimentos sociais; na participação em instituições locais e ou regionais; e
também na representação em conselhos municipais:
– A associação percebeu que o grupo precisa de capital de giro. Eles produziram
50 almofadas no mês, para não ficar esse estoque aí sem movimento, a associação compra, aí
paga o artesão e depois a associação vai vender para tirar o capital. Porque têm vezes que
esse produto fica muito tempo estocado e eles ficam sem circular o dinheiro. Mas a almofada
não, o que fizer vende. Então, eles precisam do capital, a associação e o grupo precisa
organizar os dois para fazer parceria e ter tipo o capital de giro. Como se fosse uma
cooperativa. (Carla, Grupo Focal da Comunidade Bariri, 2013).
– A nossa cozinha é provisória, é uma área de reunião, aí a gente se reuniu para
fechar o quarto que serve para reunião da Pastoral da Criança, da associação, vamos fazer?
Com que dinheiro? Então, fiz um orçamento com as meninas: quanto custa, custa tanto, e
para cada associado é x, tirando o telhado e as paredes do lado, tudo foi os associados.
Essas outras coisas, fogão, o que tem na cozinha, foi os associados. (Clara, Grupo Focal da
Comunidade Baixa da Roça, 2013).
– Eu, como sou diretora [a presidente Maria dos Prazeres], eu participo duas
vezes no mês na sede com a diretoria executiva. A participação na Cooperacaju, eu vou pra
reunião de um ou dois dias em Ribeira de Pombal e aqui na comunidade é uma vez por mês
com os associados. Participo do Território, da Pastoral da Criança [que] tá sempre fazendo
128
reuniões e encontros e se reúnem com outros municípios – Cícero Dantas, Banzaê e Novo
Triunfo – e aproveitamos para vender doce lá. Eu participo do Conselho de Saúde de Novo
Triunfo. E, o ano passado, do Conselho de Ação Social. E participamos da Igreja Católica.
Vendemos doces no tríduo. O padre apoia, compra doces e montou barraquinha para nós
vender na festa da igreja. Também participo do Conselho da igreja todo mês. (Maria dos
Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça, 2013).
Os grupos constroem seus caminhos independentes do Projeto Gente de Valor.
Tecem parcerias dentro da comunidade e tentam construir outras na região. O grupo das
mulheres dos doces, que fazem parte da Associação Comunitária dos Produtores Rurais de
Baixa da Roça, constrói redes e parcerias com Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras
Rurais de Novo Triunfo e de Cícero Dantas e tem conseguido acessar programas
governamentais e projetos, como é o caso do Gente de Valor e da Fundação Banco do Brasil,
que financiou a minifábrica de beneficiamento de castanha de caju. O grupo de mulheres dos
doces elaborou um projeto para concorrer ao edital lançado pela Secretaria da Agricultura,
Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura (SEAGRI) em parceria com a
Superintendência de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria do Trabalho Emprego
Renda e Esporte (SETRE). O projeto foi contemplado, conforme publicado no Diário Oficial
do Estado, porém, até a data da realização do Grupo Focal, os recursos ainda não tinham sido
depositados na conta da associação. Esse projeto visa a compra de rótulos, saquinhos plásticos
e embalagens para os doces. Apesar de os recursos não terem chegado, as mulheres não
ficaram esperando, pois não podiam perder a safra das frutas, continuaram o trabalho de
beneficiamento e fabricação dos doces e conseguiram comprar os rótulos e as embalagens
com o apoio do Projeto Gente de Valor, que contribuiu com uma parte destes recursos, mas a
maior parte foi proveniente da solidariedade, mobilização e articulação delas com a
associação e a comunidade. Nos depoimentos abaixo, observamos a construção da teia de
articulações e parcerias:
– Tivemos projetos da Fundação Banco do Brasil, Gente de Valor e agora
estamos aguardando o da SPM. O povo já tava querendo desistir dessa associação porque
não saía nem projeto. Aí foi que chegou o Gente de Valor com gosto de gás pra trabalhar
com as famílias, aí é que nós juntemos e conseguimos o que queremos. E ainda tem mais, não
para aqui, não. E com esse projeto das mulheres do beneficiamento dos doces estamos
esperando também recurso da Seagri que não saiu ainda. O pessoal da agricultura vem
fazendo reunião. Na comunidade, não existe um transporte para carregar as pessoas. A
unidade de castanha não tem esse transporte para trazer o material do produtor, tem que
129
trazer a jegue, a cavalo, então, nós tamos vendo isso aí. Até um trator para carregar e fazer
algumas atividades que ele possa fazer sem prejudicar o solo. Porque aqui, nós tamos na
areia e qualquer carro fica atolado e o trator não fica. Estamos lutando pra ver se a gente
consegue, estamos lutando porque não é assim, não. Não é fácil conseguir, estamos lutando
pra vê se consegue. (Maria dos Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça).
– Com a Fundação Banco do Brasil, conseguimos a unidade, que não sabia para
onde ela ia [não tinham definido onde colocar a unidade] e, junto com o sindicato,
conseguimos trazer para a comunidade. E agora, tamos aí. Funcionamos ainda pouco porque
as famílias precisam ainda de um estudo. Porque eles têm o conhecimento de associativismo
e não cooperativismo. É um pouquinho diferente, é quase igual, mas não é igual, tem uma
coisa diferente. Então, eles não tão ainda aprendendo o que é esse negócio de
cooperativismo, mas nós tamos conseguindo com a Fundação e o SEBRAE, que vai fazer um
trabalho, que não fez ainda por estar fazendo por unidade, primeiro em Banzaê, este ano, e
em 2014, aqui. Também se o SEBRAE não ajudar, que ele tem muito conhecimento, se ele
não ajudar sobre cooperativismo, a gente vai ficar assim... a gente trabalha uma semana por
mês, aí é pouco. (Maria dos Prazeres, Grupo Focal da Comunidade Baixa da Roça).
parda e as pessoas falarem que ela é de ascendência indígena; nasceu no município de Cruz
das Almas (BA); assume a chefia do escritório de Ribeira do Pombal.
Dentre as mudanças observadas na vida das mulheres agricultoras, confirmadas
pelos grupos focais e pelos técnicos e técnica, destacam-se o aumento dos níveis de
escolarização e a participação nas atividades produtivas geradoras de renda. Nas últimas
décadas, observam-se mudanças mais amplas, como a diminuição do número de filhos,
transformações de ordem demográfica e em aspectos relacionados à subjetividade das
mulheres bem traduzidos pelo ideário em torno da “emancipação feminina”. Por outro lado,
persiste uma divisão tradicional do trabalho doméstico que perpetua a sobrecarga das
mulheres agricultoras, particularmente, em um momento em que cresce bastante a
participação delas na produção agrícola como trabalhadoras remuneradas e,
consequentemente, como provedoras das famílias.
Vale lembrar que feministas no mundo inteiro passaram a lançar um olhar crítico
sobre esta forma de inclusão das mulheres nos projetos de desenvolvimento e a apresentar a
noção pela qual o desenvolvimento só garante democracia de gênero se houver uma inclusão
das mulheres como protagonistas destes projetos além de uma decisão conscientemente
tomada de transformar as desigualdades existentes no acesso aos recursos, à tomada de
decisão e ao controle sobre os resultados das ações previstas nos projetos de desenvolvimento
com mecanismos claros para atingir este objetivo.
Mesmo em um universo relativamente pequeno de entrevistadas, há muitas
histórias, diferentes trajetórias e possibilidades de viver a experiência de ser mulher,
agricultora, mãe, artesã, professora, gestora, nos tempos de hoje. Este é um grande desafio
para essas mulheres agricultoras, nordestinas, de baixa renda, de pouca escolaridade,
formadas culturalmente para serem do lar, subordinadas aos seus pais e maridos.
A proposta de intervenção do Projeto Gente de Valor era uma proposta de
desenvolvimento rural que incluía um conjunto de melhorias econômicas, culturais,
ambientais, sociais e políticas, para o campo, das quais as populações envolvidas seriam
protagonistas e teriam o apoio dos agentes de Extensão Rural (técnicos e técnicas). O enfoque
de gênero está no objetivo geral: “melhorar as condições sociais e econômicas das
comunidades rurais pobres, através do desenvolvimento social e econômico, ambientalmente
sustentável, com equidade de gênero” (MOP72, 2008, p. 17). O “ambientalmente sustentável”
estava diretamente relacionado a promover a construção do desenvolvimento rural com base
72
Manual de Operações Projeto Gente de Valor, maio 2008.
131
Então, eu acho, para estar no Projeto Gente de Valor, um projeto com esse perfil, a gente
precisa ter experiências em todas essas temáticas que o projeto traz inclusive o da
agroecologia, que eu acho fundamental porque a gente está acompanhando todos os grupos
de produção. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– [...] eu vim do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores] e dentro a gente
tinha o plano camponês, que o MPA, a linha dele é dentro dessa questão da agroecologia e
não somente do adubo, do veneno, não, tudo que envolve aquele mundo ali dos agricultores e
das agricultoras nas comunidades. E quando eu entrei no MPA, também, a formação de
agrônomo lá em Cruz das Almas não te dá essa visão; pra mim foi importante a ida pro
MPA, por isso abriu minha mente para um outro lado, para um lado crítico do sistema que a
gente aprende dentro da faculdade. Eu lembro que, no MPA, a gente teve oportunidade de
estar conhecendo e fazendo algumas práticas também na linha agroecológica, de trabalhar
essas questões de gênero, do uso da não agressão à natureza, enfim, tudo que é relações
homem – planta – mulher, tudo. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Essa proposta exige a mudança do modelo em que esses profissionais foram
formados, de agentes de uma concepção desenvolvimentista que quer impor à repetição, aos
agricultores e agricultoras, um conhecimento e uma técnica prontos e tidos como únicos e
melhores, para um novo modelo, o de “agente de desenvolvimento”, que deve passar a ser o
facilitador de um processo de organização centrado na autonomia das comunidades.
Antes de expor outros depoimentos dos técnicos e da técnica, torna-se necessário
apresentar um perfil destes profissionais, assim, para um maior conhecimento dos agentes
facilitadores entrevistados, o Quadro 3 apresenta algumas informações gerais sobre essa
equipe.
Os técnicos e a técnica do Projeto Gente de Valor têm um papel importante no
processo de empoderamento, em especial, aqueles que vieram de uma militância dentro das
organizações da sociedade civil. Enquanto agentes externos, funcionam como simples
catalisadores iniciais no processo, já que a responsabilidade maior cabe aos sujeitos (as
próprias mulheres). Sobre isto, afirma Romano:
Não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Os agentes de
mudança externos podem ser necessários como catalizadores iniciais, mas o
impulso do processo se explica pela extensão e a rapidez com que as pessoas
e suas organizações se mudam a si mesmas. (2002, p. 6).
133
Quadro 3 – Perfil dos técnicos e da técnica do Projeto Gente de Valor da Região Nordeste da Bahia
Idade ( anos)
Estado No
Sexo
NOME Orientação Origem/
Cor Religião Profissão Cargo no PGV/Responsável Escolaridade
(fictício) Sexual Civil Filhos Município
Adailton M 40 Branco Heterossexual Rural Católico Pedagogo Chefe do Escritório de Jeremoabo Superior
Conceição casado 2 Técnico do Componente Capital
Carneiro Humano e Social
Geraldo Gomes M 48 Negro Heterossexual Rural / Católico Engenheiro Chefe do Escritório de Cícero Dantas Superior
Vargão casado 2 Macururé Agrônomo Técnico do Componente Produtivo e
de Mercado
Rejane Magalhães F 41 Negra Heterossexual Urbana / Espírita Engenheira Chefe do Escritório de Ribeira do Mestra Água e
Borges Maia Cruz das Agrônoma Pombal Solos (UFBA)
casada 2
Almas Técnica do Componente Produtivo e
de Mercado
Fonte: Pesquisa de campo – outubro a dezembro de 2013.
134
jeito mesmo e eu não tinha nenhuma visão do que era gênero quando eu cheguei aqui no
projeto, nenhuma. (Rejane, Ribeira do Pombal, 2013).
– Com a minha experiência posso dizer que não; eu tinha uma reflexão muito
superficial, muito vaga. Acho que aprendi um pouco, queria que tivesse espaço para
aprofundar mais. Acho, assim, o pouco que dialoguei contigo, em algumas atividades e
materiais que foram socializados, acho que isso me ajudou, porque tento assim entender um
pouco mais. Não estou dizendo que hoje eu tenho uma formação à altura que o projeto
esperava em relação ao enfoque de gênero, acho que preciso muito, porque não tive uma
formação específica. Eu ganhei muito com o projeto, até dialogando contigo pessoalmente,
você contribuiu muito comigo até no nosso bate-papo, nas conversas de bastidores com
outras pessoas também... detalhes que está tão impregnado que a gente já traz desde a nossa
infância, da nossa criação. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
Pelos relatos, pode se perceber que um dos primeiros desafios para concretizar a
proposta de equidade de gênero do Projeto é ter profissionais com sensibilidade,
conhecimento e compreensão sobre o que é gênero e como trabalhar este enfoque no universo
de desenvolvimento rural. Nos depoimentos, observa-se, depois desses anos da execução do
projeto, o que eles entendem por gênero:
– Eu entendo que gênero, acima de tudo, além de ser essa igualdade de
oportunidades pra ambos os sexos, eu entendo que, além disso, já fundamentado em alguns
matérias que eu cheguei a ler, eu entendo que é a capacidade, principalmente das mulheres,
de questionar o modelo que está aí, fazer as intervenções na sua estrutura, nos espaços
sociais, políticos, questionar esse modelo dentro do próprio espaço doméstico, debater mais,
dialogar [sobre] a relação com o esposo, com os filhos. Acho que, hoje, essa questão do
preconceito, a questão do machismo, a gente percebe que não é um, a questão só do homem –
entendeu? –, a gente sabe que a mulher sempre foi vítima do processo, mas tá muito forte a
mulher com essa carga e formação que ela recebe e acaba disseminando, eu diria, essa
formação machista nas meninas e nos meninos, a gente já cresce com essa cultura enraizada
do machismo, isso é muito forte. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Hoje eu tenho uma visão de gênero muito baseada pelo o que eu li, mais no
NEIM74, que também me ajudou muito; na verdade, eu já fazia o trabalho, mas, na verdade,
eu ainda não tinha trazido pra dentro de mim, não percebia, como hoje eu percebo, quanto
74
O NEIM tem realizado, na modalidade de educação a distancia (EAD) cursos para o público
externo à UFBA, dentre estes, o curso de Especialização em Gestão de Políticas Públicas em
Gênero e Raça (GPP-GER) do qual a técnica Rejane chegou a participar do primeiro módulo.
136
pra mim, se resume nisso, no respeito, na questão de você não querer se impor sobre o outro.
(Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Os depoimentos mostram que as perspectivas de gênero e seus atores se
entrecruzam. Percebe-se como é difícil para esses técnicos e técnica trabalhar a questão de
gênero no cotidiano, sem primeiro desconstruir dentro de cada um deles e dela as questões
culturais, familiares, religiosas e outras aprendidas ao longo de suas vidas. A equipe não
conseguia pensar gênero dentro de uma lógica de relações em que tudo vai acontecendo de
forma interconectada entre sexo, classe, raça, etnia, idade, geração, origem e orientação
sexual. Esses agentes não conseguiam compreender a interseccionalidade dessas relações
plurais e como sexo e gênero operam na realidade e aí se imbricam.
Percebe-se, materializado nas palavras de Rejane, a técnica, um conceito de
gênero na perspectiva de desenvolvimento puramente analítico, dissociado da política do
feminismo. Por isto, apesar de Rejane estar em um processo de desconstrução de seus valores
e crenças culturais, a sua abordagem de gênero, na prática, ainda enfatiza as divisões sexuais e
a imposição de papéis masculinos e femininos e não desafia e questiona as relações de poder
entre os sexos nem os modelos dominantes de desenvolvimento que fortalecem os privilégios
masculinos e mantêm o surgimento destes papéis. Acredito que o “medo” que esta técnica e
outros técnicos têm do “feminismo” é, justamente, por este colocar em debate a separação
entre o público e o privado, afirmando, ao longo de sua trajetória de luta, que “o pessoal é
político” e, principalmente, pelo fato de contestar, social e politicamente, aspectos
considerados incontestáveis: a sexualidade, a família, a divisão sexual do trabalho doméstico,
entre outros (BUARQUE, 2003).
Apesar das dificuldades enfrentadas por esses agentes públicos para desenvolver o
Projeto, eles afirmam ser importante trabalhar a perspectiva de gênero em um projeto de
desenvolvimento rural sustentável:
– Sem dúvida, mais do que importante é fundamental. Eu acho que o Gente de
Valor serve, não é um modelo perfeito, mas serve como uma referência para um outro
projeto. Eu fico pensando: “rapaz, que maravilha foi o Projeto Gente de Valor, no meio
desse sertão nosso, nessa região semiárida, tão forte essa cultura machista, a concentração
de poder, de poderes autoritários na própria comunidade, na associação, enfim no espaço
familiar!”. Eu estava observando a oportunidade que o Gente de Valor deu, esse critério de
equidade na participação. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Olha, antes, quando eu entrei, eu não tinha nenhuma visão dessa aí. Hoje, meu
Deus, eu acho que é fundamental. Eu acho que o Gente de Valor, ele foi um projeto que
138
trouxe mudanças significativas para minha vida enquanto mulher, trouxe mudanças assim
fantásticas tanto na minha mente, quanto no meu comportamento e, assim, chegou muito no
final, foi que eu vim mais compreender isso aí, e hoje esse projeto, eu nunca vi um projeto
com uma roupagem dessa, eu acho que até o Gavião que falam, eu acho que ele não trouxe,
ele quis trabalhar, mas não fez muita coisa o Gavião... O Gente de Valor, ele já trouxe essa
visão e tentou fazer essa desconstrução, mas ainda não foi total, ela ainda não conseguiu, é
preciso ainda muitos anos, muito tempo, aquela coisa muito da mulher. Tive também com
comunidades quilombolas e as comunidades normais de agricultoras familiares, eu tive muita
dificuldade, porque eu não entendia o que era pra eu fazer, então, a gente se limitou muito
naquele início [a] colocar só a participação, tem que ter mulher aqui, se a gente formasse um
conselho, tem que ter mulher, não trazia aquele olhar por que tinha que ter uma mulher ali.
Eu mesma, nos que a gente participou, aqui, que no início tinha a chefe de escritório, e eu a
equipe, era duas mulheres, eu não trouxe esse elemento porque que era a mulher, eu vim
entender já muito quase já no final, e agora que vim trazer esse olhar de gênero. (Rejane,
Ribeira do Pombal, 2013).
– Se for pra discutir, só pra colocar “tem que ter gênero”, como eu vinha falando
antes, eu acho que é até melhor você não mexer, pra ser sincero. Porque, primeiro, eu não
acho pra tratar dessa questão de gênero, ainda mais numa região semiárida como é a gente,
com essa criação das questões dos coronéis, os papéis definidos muito mais das mulheres pra
dentro de casa, você só chegar a gênero e você reunir o grupo de mulheres ali e não sair
mais nada do que aquilo, dar umas máquinas de costura e dizer que está fazendo gênero, uns
kits beneficiamento de frutas, “ah, tem gênero”, porque nós estamos atendendo às mulheres –
entendeu –, convidar para umas reuniões e chega lá você nem considera também a opinião
da mulher, mas a mulher está lá, então, é importante, porque estamos fazendo gênero...
Então, nesse termo aí, tinha que ser revisto, porque, outra crítica também, que eu tenho, não
deveria ser esse tal do transversal, teria que ser uma coisa obrigatório, ter pessoas ali
capacitadas mesmo para estar trabalhando de uma forma mais centrada, mais focada, um
momento ali, outro aqui, pra isso pra quilo ali... Se tiver que fazer, fazer mesmo, porque, pra
mim, isso é uma questão de justiça com as mulheres, pela história delas e, pra mim, é uma
questão de política pública do país. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Os depoimentos desses profissionais mostram que, no início, o entendimento
deles sobre “equidade de gênero” era apenas aumentar o número de mulheres que
participavam das atividades. Depois, passou a ser importante que os grupos de mulheres se
transformassem em grupos produtivos – quintais, artesanato, beneficiamento de mandioca e
139
ali traz muita coisa forte que mexe, e assim eu acho que os resultados vêm quando você pega
aquilo ali, traz pra você não só assistir – e eu tive mulheres dentro de grupos que trabalham
que mudaram, tiveram coragem de dar uma guinada porque a coragem não é pra todas, não.
Não é todas que têm coragem, o agricultor me falou “todas são dependentes do marido”, e a
gente trazer essa autonomia, trazer essa questão: “você deve estar aqui dentro do
empreendimento também”. Hoje eu tenho empreendimento de mulheres indígenas que elas é
que lideram e elas que vão tomar conta, não são homens, vão ser elas que vão administrar
aquilo ali, é um desafio muito grande pra elas, que só ficava ali dentro de casa. Eu sinto
nelas ainda um receio, querer se apegar no marido – “como é aqui, a gente precisa!” [...] E
a nossa resposta: “não, vocês podem, vai tomar a decisão no lugar deles!”. E é difícil pra
elas tomarem a decisão, elas romperem os padrões culturais, também da indígena. Eu vejo
avanços não é, não vou dizer que todas estão libertadas, que hoje está tudo maravilha, que
hoje já se divide tarefas em casa, até porque eu mesma ainda não consegui trazer isso pra
mim, divisão de tarefas, na minha casa, eu chego, eu é que lavo os pratos, eu é que vou pra
cozinha, meu marido, ele acha que trabalhou lá no comércio, que ele saiu 5 horas da manhã,
que ele está cansado; ele chega, e tem que deitar, e eu venho tentando desconstruir isso com
ele “meu filho, venha me ajudar, me ajuda fazer isso aqui”; ele já está indo fazer uma
coisinha, ele pelo menos já vai, porque não ia. (Rejane, Ribeira do Pombal, 2013).
– Na própria fala de homens e de mulheres eu já sinto, assim, que as coisas já
começam a mudar, as pessoas já não são as mesmas, que mudou qualquer coisa ali, no
comportamento, na visão; aqui, acolá, eu percebo numa reflexão. Já fico pensando que é
efeito do processo, não do meu trabalho em si, mas do nosso trabalho enquanto equipe. E
como educador que eu sou, também, eu percebo que o que a gente está fazendo é algo que
fica e os frutos... é como árvores que a gente planta e ela germina, tem todo um processo até
que ela possa dar frutos, então, assim, eu acho que a gente tem algumas plantas que estão
germinando e algumas precisam desse cuidado para que esse processo não se atrofie – temo
muito por isso. Um projeto como esse é uma passagem na vida dessas pessoas, então, essa
formação não garante que ela seja continuada, esse processo que se iniciou, então, as
comunidades vão continuar fazendo seus processos, suas dinâmicas de organização de
movimento, então, eu não tenho dúvidas que a gente vai colher muitos frutos do trabalho que
nós temos feito, eu não digo só o que a gente trabalhou... Mas a gente percebe alguns sinais,
por exemplo, eu fico muito feliz em ver alguém chegar e dizer que conseguiu sensibilizar um
pai para algumas práticas [agroecológica] lá no campo, alguém trazer exemplo da relação
em casa, reflexão sobre o trabalho doméstico compartilhado. Então quando eu percebo isso,
141
sinto que já é efeito do que nós fizemos e trabalhamos na comunidade, quando eu percebo
que as mulheres estão se encorajando e indo nos eventos fora, eu percebo que uma diretora
da associação em geral... há muita timidez, mas não é só da mulher, o homem também...
Aqui, hoje, tem uma predominância muito grande de homens, mas quando você vai para
tesouraria tem uma predominância enorme das mulheres, elas geralmente são as secretárias,
as tesoureiras e uma boa parte delas presidente também. Não há uma politização ainda,
aquela coisa de entender que ali é um espaço de poder, não há disputa ainda nas
comunidades [só com relação aos cargos de diretoria na associação], não tem bate chapa é
uma coisa muito assim de disponibilidade. Agora, no geral, a mulher sempre teve dificuldade
em sair, sempre foi mais reprimida, então, elas ainda assumem menos os cargos
considerados maior, mas eu percebo que os homens têm uma grande necessidade de contar
com a presença da mulher. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– Sem dúvida, todas, não, algumas, a gente vê muito isso, também a ter mais
iniciativa em resolver as coisas, de ficar mais à frente, de opinar na hora da reunião, de
confrontar a gente do escritório, elas confrontam também, de não concordar, mas sempre
geralmente uma, mas muitas mais em volta, mas você já sente que aquela que está ali pelo
menos ela tem um poder ali, e como na maioria era elas também, elas enxergaram isso e se
apoderaram também. Eu não sei como seria se a gente tivesse a participação balanceada
com homens e mulheres. Se a gente tinha conseguido que essa mulher se sobressaísse como
algumas por aí. Por isso que eu digo, se tivesse mais mesclado homens e mulheres, tivesse
realmente, e comparar, se a gente for analisar, a gente conseguiu: a maioria é mulher, mas
foi mais pelas atividades que as mulheres chegaram mais, e como era mais e tinha homem
ali, mas lógico que elas conseguiram o domínio. Pra mim não é um domínio completo, é
meio, não existia os confrontos mesmo, eu queria ver se elas teriam coragem de confrontar o
homem que estava ali, dizer se tivesse um número maior. Eu acho que foi mais por isso, pelas
atividades, então, os homens se afastaram um pouco, as mulheres vinham mais. (Geraldo,
Cícero Dantas, 2013).
Nos três depoimentos, pode-se perceber a concordância em relação às mudanças
internas ocorridas com as mulheres, algumas já se expressam falando no grupo sobre suas
opiniões e já demonstram capacidade de fazer suas próprias escolhas. Também concordam
que não são todas as mulheres que estão nesse processo de mudanças, porém, a questão
trazida no depoimento do Geraldo aborda, a partir da experiência do seu contexto de atuação,
o fato de que as mulheres tiveram um maior domínio dentro das atividades do Projeto.
Segundo ele, porque elas eram a maioria e porque os homens não tinham interesse nas
142
empreendimentos e pensar pela sua própria cabeça. Vejamos o que dizem os agentes
facilitadores, quando questionados se as mulheres estariam preparadas para exercer sua
capacidade de escolha com seu próprio pensar:
– Ainda não é tanto, não, porque quando chegam em casa têm as questões dos
companheiros que trava ainda, que bloqueia... Eu já percebo que elas têm vontade, eu já
percebo nelas muita vontade de ir, mas têm as pedrinhas [que] estão lá, que elas ainda não
conseguem tirar e não conseguem trabalhar a pedra – “eu não consigo tirar as pedras que eu
tenho, mas eu estou tentando intemperisar”. Isso precisa de anos, que talvez eu nem consiga
nessa encarnação. Eu não vejo elas assim totalmente, mas eu vejo algumas, empoderadas,
que eu sei que se entende enquanto mulher, essas últimas aí dos focos... Mesmo que eu fique
mais, eu já estava entendendo mais o processo, eu mexo mais um pouquinho. (Rejane, Ribeira
do Pombal, 2013).
– Sim, em alguns casos, sim. [...] Percebo habilidades para determinadas funções
na comunidade Canabrava. Por exemplo, eu admiro muito a tesoureira, lá, uma pessoa ativa,
sempre ali presente, sabe, ela consegue dar conta do recado como tesoureira da associação.
Hoje ela consegue desenvolver a função dela, hoje, com uma certa desenvoltura que eu
percebo, que isso, o projeto contribuiu muito nesse processo aí de formação. [...] Eu acho
que ainda, o processo é muito lento, eu já espero alguma coisa delas e percebo também
agora, acho ainda muito pouco tempo pra elas chegar neste ponto de só tomar grandes
decisões. Por exemplo: esses dias, em uma visita que fiz a um subterritório, aí, as mulheres
levantaram uma demanda que a gente já vê, mas por conta da estiagem tem que dar um
tempo, foi a questão da negociação aqui das mulheres de Jeremoabo, aqui, dos quintais
produtivos e que fazem parte das comissões gestoras dos kits feiras das barracas. Então, as
mulheres de Ribeirinhos levantaram, e a gente mobilizou também outros subterritórios e elas
vieram pra cá fizeram uma reunião entre elas para definir a demanda, e já tiveram uma nova
audiência com a prefeitura, eu só acompanhei, elas que deram o recado delas e negociaram
os espaços para guarda dos equipamentos aqui na cidade. Elas falaram para a prefeitura que
não tinham condições de todo dia trazer e voltar para a comunidade, ficava muito caro,
muito trabalhoso, e conseguiram, tem um lugar aí provisório que está aí guardando, começou
a semana passada, sábado passado. E conseguiram um local, um espaço na feira, só
padronizada e financiadas pelo Gente de Valor, para atender todas as nossas comunidades.
[...] É muito tímida ainda, falar em empoderamento, eu acho ainda muito tímido, apesar que
eu percebo avanços do tempo que eu estou aqui. Já percebo algumas mulheres que, a partir
do nosso espaço de reuniões de encontros, em algumas falas, eu já percebo que elas estão se
144
despertando mais para essa questão de seu valor próprio enquanto mulher e enquanto
comunidade. Eu já percebo mulheres se levantando mais, usando mais a voz, argumentando
mais, eu já percebo isso. E eu acho as mulheres mais danadas, eu acho que elas participam
mais, estão mais presentes, elas correspondem mais, e acho que quando a gente sensibiliza,
qualquer processo de sensibilização, elas respondem. (Adailton, Jeremoabo, 2013).
– A desvantagem que eu te falei de não ter tanto homem presente nos grupos de
interesse, agora, pra mim, é a grande vantagem, porque elas, de alguma forma, se
empoderaram, em alguns casos, não digo todas, elas não vão deixar de perder esse
empoderamento que elas tiveram e, pelo o que a gente vê aí, alguns grupos, não todos, se a
gente enquanto equipe incentiva elas [a] procurarem outras alternativas, elas se
identificaram, elas têm expectativas, não em termo financeiro, de mudar tanto, mas elas
estavam lá no corte e costura, no beneficiamento de frutas, porque, antes, elas ficavam em
casa, então, e hoje, eu estou aqui, eu converso com minhas colegas, a gente está produzindo,
a gente está tentando vender. A gente já sente esse lado social que tirou a mulher daquele
esquema de dentro de casa para um espaço onde discute as coisas. Eu estava observando
aquele grupo que você foi visitar e elas estavam lá, que elas pegaram a encomenda de um
suco e eu fiquei um pouco mais e vi que quando elas estavam trabalhando, elas estavam lá
discutindo, até que surgiu aquele problema da condução escolar e elas estavam discutindo
isso da forma delas, mesmo sem saber o como fazer, com os medos. Uma senhora estava com
medo da reação do marido se soubesse do problema que estava ocorrendo lá. A outra, cuidar
da filha pra filha não dar um sorriso para uma determinada pessoa que estava causando um
problema, mas ainda não tinha essa iniciativa de ir lá e resolver, mas, estavam discutindo
trabalhando numa atividade e, ao mesmo tempo, discutindo uma coisa delas e discutindo e
tentando da forma delas resolverem seus problemas. (Geraldo, Cícero Dantas, 2013).
Por tudo que foi discutido, percebe-se que o processo de empoderamento das
mulheres agricultoras e também dos homens agricultores é uma semente plantada. E, diante
das conquistas obtidas por algumas destas mulheres, sente-se que esta semente germinou e
vem crescendo, através da busca por seus direitos, com consciência de seu pertencimento ao
grupo e à comunidade, com uma representação ativa e qualificada de algumas destas mulheres
nos conselhos municipais, mesmo não tendo passado por nenhum processo de preparação ou
capacitação. Percebo este crescimento quando conseguem elaborar projetos em busca de
recursos governamentais existentes para viabilizar seus empreendimentos produtivos, quando
conseguem se articular em redes com outras comunidades, organizações e movimentos
sociais.
145
Pretende-se, nos próximos capítulos, dar voz a algumas destas mulheres, ouvir
suas histórias de vida e, a partir de suas trajetórias e experiências, perceber com mais detalhes,
em uma perspectiva do sujeito, o processo de empoderamento, observar os níveis de
empoderamento individual, organizacional e de comunidade e perceber a sua articulação
enquanto uma variável dependente das singularidades de cada contexto.
146
opressões de raça, classe e gênero, mas, inicialmente, precisam ser analisadas no seu entrelace
e na sua potencialidade de se interceptarem, como expressa Crenshaw em sua discussão sobre
o conceito de interseccionalidade:
Esse conceito é importante como uma ferramenta analítica para nos ajudar a
compreender as formas de interação dessas múltiplas discriminações que marcaram as
trajetórias e as experiências de vida das mulheres agricultoras pesquisadas. A noção de
interseccionalidade possibilita entender como estas opressões operam e se estruturam dentro
de uma “matriz de dominação”, na medida em que esclarece as maneiras como estas
opressões interseccionais de gênero, classe, raça, etnias, geração, regionalidade e outras,
ocorrem nas instituições sociais, como, por exemplo, na família e na associação comunitária,
pensando no caso das mulheres agricultoras.
Scott (1995) define gênero como categoria analítica usada para designar as
relações sociais entre os sexos e identificar as igualdades, as desigualdades e as diferenças
existentes entre eles, o que nos ajuda no conhecimento das dimensões plurais e fundamentais
da vida das mulheres agricultoras pesquisadas. O estudo de gênero possibilita uma releitura
das explicações correntes, que atribuem a homens e mulheres lugares diferenciados no
mundo, diferenças estas atravessadas e constituídas por relações de poder que irão conferir,
historicamente, uma posição dominante ao homem. Também nos possibilita observar as
mudanças na organização nas relações sociais ocorridas entre os homens e as mulheres, nas
famílias e nas associações parceiras do PGV. Baseando-se nas diferenças percebidas entre os
sexos, mostra como os sujeitos sociais estão sendo constituídos, cotidianamente, por um
conjunto de significados impregnados de símbolos culturais, conceitos normativos,
institucionalidades e a identidade subjetiva (SCOTT, 1995, p. 86).
A despeito da importância da categoria ontológica gênero para o entendimento da
realidade desses grupos e contextos sociais, como é o das mulheres agricultoras, outras
categorias relacionais, além de gênero, têm igual importância e, entre estas, destaca-se a de
148
vida das mulheres agricultoras e também das mulheres de suas famílias. Luiza Bairros sinaliza
que apesar de as mulheres passarem pela mesma opressão sexista, racista e de classe, elas
experimentam e vivenciam a opressão de maneira diferente, dependendo da posição que elas
ocupam na matriz de dominação:
Essa reflexão nos leva a entender que os pertencimentos dos sujeitos podem ser
reconfigurados a depender da combinação de gênero, classe, raça, de idade e geração ou de
outros diferentes sistemas de opressão.
Como as outras categorias sociais referidas acima, a categoria idade/geração
também se expressa no marco das relações de poder. Em articulação intricada com gênero,
raça, classe e outras dimensões fundantes de relações sociais, percebe-se que a categoria
idade/geração tem uma grande complexidade analítica e se projeta, ao mesmo tempo, natural
e socialmente. As idades constituem importante fator de análise da vida social, já que as ações
do Estado definem a inclusão e exclusão do indivíduo segundo sua condição etária, através do
aparato jurídico e das políticas sociais. Portanto, as idades são institucionalizadas, política e
juridicamente, e usadas como mecanismo de classificação e separação dos indivíduos, como
podemos observar nos dados apresentados na pesquisa. Idade e geração são, pois, importantes
fatores de organização social com posições e situações definidas.
O sentido de geração empregado por Alda Britto da Motta e por outros
pesquisadores se baseia nas teorias de Karl Mannheim77: que “designa um coletivo de
indivíduos que vivem em determinada época ou tempo social, têm aproximadamente a mesma
idade e compartilha alguma forma de experiência ou vivência” (2004, p. 350). Nos relatos das
histórias de vida, as mulheres agricultoras revelaram uma ampla gama de experiências e
vivências geracionais, quando foram entrevistadas e estimuladas a fazer um exercício de
memória, lembrar fatos de sua vida e de suas experiências individuais geracionais,
compartilhando um momento histórico de suas vidas ou de suas antepassadas.
77
Karl Mannheim, filosófo e sociólogo judeu nascido na Hungria (Budapeste) apresentou e
desenvolveu a “sociologia do conhecimento” como uma disciplina acadêmica, através da crítica do
conceito de ideologia de Karl Marx.
150
pela interseção das trajetórias individuais”. Procura-se, assim, entender, através dos relatos
biográficos (mais subjetivos), os comportamentos individuais para compreender os períodos
da vida dos sujeitos, em uma visão mais complexa e elaborada, articulados à reconstrução dos
percursos mais institucionais (estruturas objetivas), assim como na dinâmica e interação
familiar. Ao refletir sobre as relações sociais que se materializam no cotidiano e na história de
vida dessas mulheres, no âmbito do Projeto Gente de Valor, identifico matizes de gênero,
classe social, raça e geração na constituição de identidades e sociabilidades. Observa-se que
gênero, raça, geração e classe social, como categorias relacionais ou da experiência
concretamente vivida, contribuem para explicar melhor as diversas trajetórias de vida
percorridas socialmente por diferentes homens e mulheres.
Como são relações de poder, este aspecto não pode escapar à análise. Mulheres
agricultoras com experiências e trajetórias diversas tiveram de se organizar e se articular para
lutar pelos seus direitos e interesses comuns, pelo reconhecimento de seu trabalho e pela
afirmação de sua identidade de mulheres e de mulheres agricultoras. Este foi, e continua
sendo, o modo que encontraram para superar as dominações de toda ordem e viverem com
maior plenitude a vida. O “paradigma do curso da vida” (SIMÕES, 2004, p. 1) precisa ser
analisado sob uma perspectiva dinâmica, pois existe uma fluidez entre as fases que nos ajuda
a entender as inter-relações entre a trajetória pessoal e a estruturação histórica e cultural
experimentada por essas mulheres no passado, no presente e nas suas expectativas futuras.
Por fim, a noção de “experiência”, que é fundamental na investigação do processo
de empoderamento das mulheres agricultoras entrevistadas. Na pesquisa, utilizei a definição
desenvolvida por Joan Scott (1999, p. 28), segundo quem “não são os indivíduos que têm
experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência”. O conceito ajuda a
pensar as semelhanças e diferenças de vivências das mulheres agricultoras no interior das
categorias sociais como gênero, classe, raça, geração e outras. Seguindo este caminho,
percebe-se que o conceito articula a vida social dos sujeitos (individual e coletivo), a
experiência vivida e sentida por elas com o conjunto de práticas e representações simbólicas
em torno do “mundo real” em determinadas circunstâncias históricas. Portanto, é fundamental
historicizar as experiências das mulheres agricultoras, observar os níveis de empoderamento
individual, organizacional e de comunidade, dando mais atenção aos acontecimentos que se
cruzam e se repetem, perceber se e como eles se articulam no processo de empoderamento
destas mulheres, dependendo das singularidades de cada contexto.
152
5.2.1 Infância
(parda, 32 anos, solteira); Maria das Dores (preta, 31 anos, separada); Maria Esperança (preta,
28 anos, casada); Maria Alice (parda, 25 anos, em união consensual); e de Maria dos Anjos
(parda, 24 anos, em união consensual). Trata-se, portanto, de encontrar possíveis
convergências e divergências nas histórias de vida dos sujeitos, resgatar como suas vidas,
quando crianças foram construídas e modeladas dentro de padrões culturais e sociais,
impondo-lhes formas de agir e pensar. Este resgate nos ajuda a analisar as circunstâncias
sociais e as oportunidades determinadas pelo contexto social e também por escolhas e
decisões possíveis neste contexto.
Maria José é filha de agricultores alagoanos, que vieram em 1983 para o interior
da Bahia, onde compraram um pedaço de terra na comunidade Baixa do Mocó, município de
Santa Brígida. Seu pai morou em um rancho de palha, por muitos anos, e só conseguiu
construir uma casa de taipa, um pouco antes de Maria José se casar. A família era muito pobre
e sua mãe teve 15 filhos, dos quais sobreviveram dez: sete homens e três mulheres. Seu pai
trabalhava como vaqueiro nas fazendas de gado e, com sete anos de idade, ela e seus irmãos e
irmãs também foram cuidar de gado. Lembra-se que seu pai não os deixava estudar: era tanto
trabalho que não tinham tempo de estudar. Mesmo assim, teimava em ir para a escola e
conseguiu concluir a 4ª série primária (hoje, Ensino Fundamental I), mas seus irmãos e irmãs
são analfabetos. A situação econômica dos seus pais era muito difícil, pois, o que ganhavam
no gado e na roça mal dava para sobreviver. Conta ainda que saía para a roça com apenas um
cafezinho e, por vezes, desmaiava de fome, pois o que ganhavam no trabalho dava apenas
para comer, ao meio dia, “um feijão puro com farinha”.
Maria Amélia conta que, desde criança foi muito sofredora e passou muitas
necessidades. Nasceu na comunidade Raso Pintado, município de Fátima, na Bahia. Quando
pequena, foi criada pela avó, pois sua mãe era muito jovem quando ela nasceu e seu pai não
assumiu as responsabilidades de marido e pai. Sua avó era analfabeta e sua mãe sabe apenas
assinar o próprio nome. Assim como suas ancestrais, ela teve dificuldades para estudar
quando criança, porque sua família não tinha condições econômicas para pagar a escola e
comprar os materiais escolares. Conseguiu concluir a 4ª série primária (Ensino Fundamental
I) estudando com os livros emprestados de uma colega. Sua família era pobre, não tinha
acesso a terra e, durante toda a sua infância, sua mãe trabalhava no serviço que aparecesse:
como doméstica, lavadeira e vendendo dia de trabalho na roça de outras pessoas. Sua mãe
arrumou um marido e teve oito filhos desta relação e foi então que ela passou a morar com a
mãe. Maria Amélia diz que, antes de completar dez anos de idade, já cuidava dos irmãos e
irmãs, porém, foi quando completou seus dez anos que assumiu a responsabilidade de criar e
154
cuidar deles como mãe. Ela lembra que brincava de roda com os irmãos e irmãs na casa de
farinha...
A infância de Maria de Lourdes foi triste e também muito sofrida: fome e
violência doméstica estiveram presentes nesta fase de sua vida. Seus pais eram muito pobres,
não tinham terra para trabalhar. Seu pai bebia muita cachaça, ficava violento com sua mãe e
ameaçava matá-la com uma arma. Muitas vezes tiveram que fugir do pai alcoolizado, à noite,
com a mãe, e dormir debaixo de uma árvore na roça dos vizinhos. Ela, os irmãos e as irmãs
nasceram e se criaram na comunidade de Bariri, no município de Ribeira do Amparo, na
Bahia, sempre com o pai bebendo: a morte dele, há cerca de quatro anos, foi consequência do
excesso de bebida alcoólica. Seus pais não tinham terra para plantar, só tinham o lugar da casa
onde moravam. Quando seu pai não estava bêbado, trabalhava na olaria batendo tijolo, porém,
na maioria das vezes, colocava os filhos mais velhos, com idades entre nove e dez anos, para
trabalhar no lugar dele. Sua mãe era quem trabalhava e tinha que tecer cinco redes de fiapo
por semana para vender na feira e desta forma ganhava um dinheiro para comprar comida e
sustentar seus oito filhos. Ela conta que passou fome e que tinham que procurar na caatinga
“olho de macambira”78 para comer. Quando a mãe ganhava algum dinheiro, ela comprava
cabeça de gado ou de porco para cozinhar e passar a semana, mas, geralmente, só tinham para
comer feijão e farinha. Maria de Lourdes estudou só a 1ª série primária (Ensino Fundamental
I) e, na infância, brincava de casinha feita com pauzinhos e com bonequinhas de barro junto
com os irmãos, irmãs e os primos e primas.
Maria do Sossego conta que seus avôs e avós vieram do Estado de Alagoas, mas
seus pais, assim como ela, já nasceram na comunidade Tanque de Cima, município de Santa
Brígida, na Bahia. Diz que seus pais sempre trabalharam na roça como agricultores e que eles
têm um pequeno pedaço de terra onde plantam feijão e milho para subsistência da família.
Maria do Sossego lembra que sua mãe teve sete filhos, dois homens e cinco mulheres dos
quais seis nasceram em casa, com parteira, e apenas sua irmã caçula nasceu no hospital. Sua
mãe fala que ela é tão “avexada” e “agoniada” que quando a parteira chegou, ela já tinha
nascido... Desde quando eram bem pequenos e ainda não sabiam nem pegar na enxada, sua
mãe ensinou a ela e a seus irmãos e irmãs a trabalhar na roça ajudando seu pai, pois eram
muito pobres. As meninas com seis, sete anos de idade já estavam acostumadas a fazer todas
as tarefas domésticas da casa, além de ter que ir para a roça com a mãe. Reclama que não teve
78
Macambira (Bromelia Laciniosa), planta da família das Bromeliáceas, é uma vegetação espinhosa,
típica da Caatinga do Nordeste brasileiro, muito resistente à seca, cujo rizoma serve de alimento,
por ocasião das secas, tanto para as pessoas como para os animais.
155
muito tempo para estudar, fez até a 5ª série (hoje 1ª do Ensino Fundamental II). Maria do
Sossego fala que foi bom ter sido acostumada a trabalhar desde criança, pois estava tão
acostumada que nem achou ruim quando, aos nove anos de idade, teve que ir morar com a
irmã em Salvador para cuidar dos dois sobrinhos e das tarefas domésticas. Ela conta que,
quando criança, além de trabalhar também brincava “de roda”, “esconde e esconde” e de
“chicotinho queimado”. Lembra que brincava de boneca de pano que sua mãe mesmo fazia,
porém seu pai, não permitia que ela e suas irmãs brincassem “de bola” com os irmãos, por
achar que era brincadeira de homem e não de mulher.
Maria dos Prazeres nasceu na comunidade de Baixa do Mocó, município de
Novo Triunfo, na Bahia, e enfrentou, desde criança, muitas dificuldades junto com sua
família. Seu pai não tinha terra, trabalhava na roça de outras pessoas e só quando ela já tinha
dez para onze anos de idade ele conseguiu comprar 50 tarefas 79 de terra. A família passou
muita necessidade financeira, pois seu pai já tinha outra família quando foi morar com sua
mãe e, por este motivo, sua mãe viveu muitos conflitos com os filhos do primeiro casamento
do seu pai. Ela contava que abortara o primeiro filho, o único filho homem que teria durante a
vida, depois de uma briga com o filho mais velho do marido. Sua mãe teve sete filhas
mulheres e todas começaram a ir para a roça com sete anos de idade, pois seu pai tinha uma
enxadinha com cabo curto para elas começarem a limpar mandioca, feijão, capim e plantar
fumo. Para sobreviverem, às vezes, toda a família ia trabalhar “de empreita” 80. As sete irmãs
pegavam na enxada, enxadeco, foice e machado. A situação era de muita pobreza, tinha dias
que só comiam metade de um ovo e iam trabalhar e, quando voltavam da roça, sua mãe
colocava todas as filhas para irem à escola. Muitas vezes elas não queriam ir para a escola,
porque a fome era grande e não conseguiam acompanhar e aprender o que era ensinado na
escola. Seu pai e sua mãe não estudaram, são analfabetos.
Maria dos Prazeres lembra que seu pai não era carinhoso com as filhas, era um
homem muito bruto e ruim que brigava muito com sua mãe e não queria deixar suas filhas
estudarem. Dizia ele que estudo era para filho de rico, filho de pobre não é para estudar é para
trabalhar na enxada; aí, a briga com sua mãe começava e ela sempre dizia: “pobre também é
gente”. Segundo ela, seu pai não acreditava em nada, o negócio dele era a roça: acordava duas
79
Uma tarefa baiana corresponde a 4.356m², 50 tarefas a 217.800m² e correspondem a 21,78
hectares.
80
“Empreita”, o mesmo que “empreitada”: “(1) obra por conta de outrem, mediante retribuição
estipulada antecipadamente; tarefa; (2) trabalho ajustado para pagamento global, e não parcelado”
(DICIONÁRIO HOUAISS, 2009).
156
horas da manhã para catar facheiro81, que vendia e com este dinheiro comprava comida e,
uma vez no ano, uma roupa, uma sandália. No tempo da safra do caju, as sete irmãs passavam
três meses catando castanha para a vizinha, que era sua tia. O pagamento pelo serviço era
feito como um “agrado”: caderno, lápis, sandália e, às vezes, até um corte de tecido para fazer
roupas. Lembra que brincava com as irmãs e os primos e primas só no final de semana, de
“pular corda”, de “cai no poço”, de “esconde-esconde” e de montar em jegue. Ela fala com
orgulho e com muita gratidão de sua mãe e irmã, por ter conseguido, com a ajuda delas,
concluir o Ensino Superior e estar fazendo uma pós-graduação.
Maria da Paz nasceu e se criou na roça, na comunidade Fazenda Pedrinhas, no
município de Fátima, na Bahia. É filha de pai agricultor e sua mãe, já falecida, também era
agricultora. Conta que, durante a infância, sempre viveu na roça e em casa e nunca saía para
lugar nenhum. Apesar de seus pais não terem terra, possuem só um pequeno terreno onde está
construída a casa e, atualmente, as cisternas e os dois canteiros da horta, ela não falou em ter
passado fome na infância, só dificuldades. É a única filha e a mais velha do casal, que teve um
total de quatro filhos, três homens e ela. Sua mãe era analfabeta e seu pai não teve
oportunidade de estudar muito: sabe escrever seu nome, faz algumas contas e consegue ler
com dificuldade. Ela acha que o problema do seu pai é não ter estimulado nem colocado ela e
seus irmãos na escola. Lembra que foi à escola pela primeira vez, aos 11 anos, com os irmãos,
por conta própria. Eles correram atrás da professora quando ela passava na frente da casa
deles e pediram para estudar e foi assim que começaram. Lembra que iam para a escola e
também para o campo de futebol jogar bola. Conta que ficaram alegres quando, na 4ª série
primária (Ensino Fundamental I), foram estudar na sede do município de Fátima. Lá estudou
até a 7ª série do Ensino Fundamental II, quando parou os estudos para trabalhar como
doméstica. Lembra que seu pai nunca bateu nela e em nenhum dos filhos, porém, não os
deixava sair para brincar, então, ela brincava em casa com os irmãos.
Maria das Dores lembra que, quando criança, conheceu seus ancestrais – bisavôs
e bisavós, avôs e avós –, que foi a primeira família a morar no quilombo. Seus avôs eram
cortadores de cana de açúcar na região do município de Cipó, na Bahia. Sua mãe e suas tias
nasceram e se criaram, assim como ela, na comunidade Maria Preta, no município de Banzaê,
também na Bahia. Sua infância foi difícil, pois começou a trabalhar com seis anos de idade,
na roça e em casa ajudando sua mãe: pegava água na fonte, lenha na roça, lavava os pratos e
varria a casa. Desde nova, trabalhando na roça, não tinha tempo nem liberdade para brincar
81
Facheiro (Pilosocereus pachycladus) é uma planta da família das cactáceas, endêmica da Caatinga
da Região Nordeste do Brasil.
157
quando era criança nem tinha roupa para passear e nem mesmo para onde ir. Seu pai e sua
mãe sempre trabalharam na roça plantando culturas de subsistência como feijão, milho,
mandioca, andu, e também cuidavam das fruteiras do quintal da casa. Sua mãe teve cinco
filhos, três mulheres e dois homens. Seus pais não eram de bater nem de castigar os filhos e
filhas, como “o povo de antigamente”, mas, quando na infância faziam alguma coisa errada,
seu pai só precisava passar os olhos meio atravessados que eles paravam imediatamente o que
estavam fazendo, pois tinham muito respeito pelo pai. Seus antepassados mais velhos não
tiveram condição de estudar, pois, antigamente a escola era particular e eles não tinham como
pagar, assim, a maioria é analfabeta. A sua mãe conseguiu romper com esta série ininterrupta
de analfabetos, apesar de não ter tido oportunidade de estudar muito, mas aprendeu a ler e
escrever um pouco. Maria das Dores fala com orgulho do fato de ter estudado, concluído o
Ensino Médio e, principalmente, por ser o Curso de Magistério, pois sonha em ser professora
na comunidade. Segundo ela, durante sua infância, as brincadeiras foram poucas: recorda que
fazia sua boneca de milho e enrolava em um paninho. Quando já estava um pouco maior,
brincava de “cai no poço” para dar um beijo no namoradinho. Na brincadeira de roda
costumavam cantar: “O pião entrou na roda ou pião, bombeia ou pião bombeia ou pião”.
Maria Esperança conta que seus pais sempre trabalharam na roça e que, desde os
sete anos de idade, colhia tomate com seus pais e irmãos e irmã, para ajudar na renda da
família. Seu pai e sua mãe, agricultores, assim como ela, nasceram na comunidade Canabrava,
no município de Jeremoabo, na Bahia; só depois do casamento vieram morar na comunidade
vizinha, Bananeirinha, onde nasceram Maria Esperança e seus cinco irmãos, uma mulher e
quatro homens. Ela fala que seus pais não conseguiram estudar, pois sua mãe, quando criança,
tinha que ajudar a criar os irmãos mais novos para sua avó trabalhar na roça. Só depois de
adulta, aos 50 anos de idade, sua mãe foi estudar, cursando até a 2ª série primária (Ensino
Fundamental I), quando aprendeu a assinar o nome e ler com dificuldade. Maria Esperança é
o orgulho da família, por ser a que mais estudou, concluindo o Ensino Médio.
Ela recorda, ainda, da dificuldade de estudar quando era criança, pois não tinha
escola na comunidade e tinha que andar muito para outra comunidade, então, sua mãe,
preocupada com esta situação, resolveu ceder o espaço do bar que ela tinha para servir de
escola. Lembra que as pessoas da comunidade providenciaram as cadeiras e sua mãe fazia
merenda escolar no fogão a lenha, pelo que “não ganhava nenhuma paga”: o pagamento era
ver as crianças da comunidade estudando ali mesmo. Só depois de muitos anos, a prefeitura
construiu uma escola na comunidade de Bananeirinha, mas o ensino era fraco, segundo
informa, e até hoje sente dificuldade em matemática e português. A grande lembrança de sua
158
infância é de as famílias se juntarem para fazer piquenique na beira do rio, pescar e nadar,
momentos raros de lazer. Antigamente, não existia energia elétrica na comunidade e seus pais
tinham uma televisão a bateria, que era a única na comunidade, então, as pessoas iam assistir
as novelas e, enquanto isso, as crianças se juntavam para brincar de “bandeira” e de “pé de
mela”.
Maria Alice teve uma infância diferente das outras mulheres entrevistadas. Ela é
de origem urbana, morou na cidade de São Paulo até os 16 anos de idade. Nascida na
comunidade de Bariri, município de Ribeira do Amparo, na Bahia, com apenas dois meses de
vida foi com sua mãe que voltava para São Paulo onde morava. Ela lembra que passou
dificuldades, mas não do tipo que sua bisavó baiana contava, que, nos tempos dela, as pessoas
não tinham o que comer, passavam fome, a situação era tão ruim que comiam até “sopa de
pedra”...
A mãe de Maria Alice ainda sofreu com esses tempos difíceis de pobreza, tanto
que, quando casou, foi morar em São Paulo na perspectiva de ter uma vida melhor. Lá, seu
pai, que saiu de sua terra natal, no estado de Pernambuco, com 18 anos de idade e, assim
como sua mãe, não teve condição de estudar, trabalha como pedreiro. Nossa entrevistada
estudou em São Paulo até o segundo ano do Ensino Médio e, na Bahia, conseguiu concluí-lo.
Ela conta que não conhece a família de seu pai em Pernambuco, pois ele nunca mais voltou
para visitar seus parentes. A sua mãe teve seis filhos, quatro com o pai dela, sendo ela a mais
velha; os dois irmãos mais velhos por parte de mãe são do primeiro casamento e quem cria é a
avó materna. Ela fala com tristeza e mágoa de sua mãe, por ter sido viciada em jogo de bingo,
quando Maria Alice era criança, culpando o vício da mãe pelo fato de o pai não ter tido
dinheiro para visitar a família dele em Pernambuco, pelas dificuldades econômicas
enfrentadas por seu pai para criar os filhos, pela sobrecarga de tarefas e responsabilidades
assumidas por ela dos 7 aos 14 anos de idade e, por fim, pela separação do casal.
Para ela, seu pai é o melhor homem do mundo, um herói, porque, além de
trabalhar para sustentar a família, cuidava da filha e dos filhos enquanto sua mãe saía para
jogar bingo e só voltava depois de um ou dois dias. Ele costumava dividir com Maria Alice as
tarefas domésticas de lavar pratos, cozinhar, lavar roupas, dar banho nos meninos e se
preocupava quando tinha que ir trabalhar deixando sob a responsabilidade dela o cuidado com
os irmãos menores. Ela recorda, ainda, que brincava de jogar bola, empinar pipa e de ABC,
com seus irmãos e suas colegas em São Paulo, e que, no final de cada ano, vinha com sua mãe
e irmãos para a casa da avó, na Bahia, onde brincavam de pedrinha, porém, o que mais
gostava era de encontrar a bisavó e o bisavô dos quais muito gostava.
159
Maria dos Anjos também tem origem urbana, nasceu na cidade de Santa Brígida,
na Bahia, e sua infância teve muitos momentos difíceis e tristes, principalmente por não ter
sido criada nem por seu pai nem por sua mãe. Por outro lado, ela coloca que sua infância foi
boa, pois seu tio materno junto com sua esposa teve a iniciativa de acolhê-la e criá-la, mesmo
sendo pobres e tendo oito filhos para sustentar. Eles eram muito pobres, havia dias que não
tinham o que comer. Eram também muito trabalhadores: ele cuidava de animais nas fazendas
da região e ela era lavadeira, lavava muita roupa para que todos os filhos e filhas pudessem
estudar. As filhas maiores tinham de ajudar nas tarefas domésticas e no cuidado com os
irmãos menores. Maria dos Anjos afirma que deve muito ao tio, que a ensinou a perseverar e
sempre ir em frente, e à esposa dele, a pessoa que ela é hoje e por ter estudado e conseguido
concluir o ensino médio. Ela fala com alegria e com orgulho que seu tio e sua tia, apesar de
não terem tido a oportunidade de estudar, se sacrificaram para que todos os filhos e filhas e a
sobrinha estudassem e concluíssem o Ensino Médio.
Nos relatos das 10 mulheres, quando perguntadas sobre as lembranças que tinham
da infância, aparece, inicialmente, a pobreza, sendo a fome abordada por oito delas, de
maneira muito forte e dolorosa por algumas. Ao abordar a pobreza a partir de uma perspectiva
de gênero e como um fenômeno multidimensional, entende-se pobreza como Angelita Toledo
e Teresa Lisboa (2011, p. 2), como algo que “não se restringe unicamente à esfera material
e/ou econômica (salário, alimentação), mas extrapola para as dimensões subjetivas que vêm
ao encontro das necessidades básicas das pessoas, tais como carências de proteção, de
segurança, de lazer entre outras”. As entrevistadas, primeiro, falam da fome de alimentos e da
carência do recurso econômico, porém, no desenrolar dos depoimentos, vamos observando as
dimensões subjetivas desta fome, que se materializa ao longo da trajetória de vida delas. Os
depoimentos de Maria de Lourdes, de Maria José e o de Maria dos Prazeres evidenciam a
marca da pobreza vivida por essas mulheres:
– A minha infância sofrida, lembro que minha mãe se acabava de trabalhar, tecer
rede para dar de comer à gente, que meu pai só bebia. Ela fazia cinco redes na semana, rede
batida, tudo pra dar de comer à gente. Ela sai pra feira [às] 03 h da manhã com a rede na
cabeça pra vender, não tinha o que comer, a gente ia caçar olho de macambira pra comer,
era, fomos criada desse jeito. Hoje em dia tem mordomia, nosso tempo não tinha mordomia,
nós não sabia o que era comer um quilo de carne, que a mãe não podia. Ela comprava
cabeça de porco, cabeça de gado para gente passar a semana e era só o feijão e a farinha.
(Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
160
– Porque no tempo de eu pequena nós não mora que nem hoje em dia. Era um
tempo difícil. Meu pai, coitado, trabalhava lá no gado pra criar a gente. Depois de 7 anos
pra frente nós trabalhava no gado direto mais ele. Nós não tinha tempo nem de estudar. Eu
estudei até a quarta série porque eu teimava de ir e ia pra escola. Mas se não fosse isso eu
não tinha aprendido nada. Essa dali não aprendeu assinar o nome, os meninos também
nunca aprenderam. Meu pai trabalhava lá no gado e nós também pra sobreviver. E não era
pra ser bem, minha filha. Tem hora que eu digo a essas meninas: hoje em dia agradeço a
Deus, que eu me sinto uma pessoa rica. Porque antigamente nós não tinha [...] as casinhas
eram de taipa, cada buraco desse tamanho [risos]. Nós não tinha boa vida. Hoje em dia a
gente cria os filhos, eu criei seis filhos, graças a Deus nenhuma nunca foi pra roça.
Amanhece o dia pra tomar café, cafezinho com pão e ainda acha ruim se for pão [...] ainda
acha ruim se for cuscuz com leite, não quer, se for não sei o quê não quer e antigamente nós
amanhecia o dia e tomava um cafezinho, ia pra roça pra voltar meio dia. Tinha vezes que até
desmaiar na roça a gente desmaiava de fome, por que nós não tinha condições. Meu pai era
pobrezinho. O que nós trabalhava só dava pra comer de meio dia. E não tinha esse negócio
de comer feijãozinho com arroz, carne, macarrão, tinha não essas coisas, não. Era o
feijãozinho puro com farinha, às vezes nem carne tinha. Aí eu digo: hoje em dia o tempo tá
bom demais. Todo mundo tá rico, graças a Deus. Eu agradeço a Deus né. (Maria José, parda,
50 anos).
Nos depoimentos de Maria de Lourdes e Maria José, ficam evidentes que suas
famílias eram muito pobres e não tiveram acesso aos meios para melhorar as suas condições
de vida e de seus irmãos e irmãs. John Friedmann (1996, p. 50) diz que “não são os
indivíduos, mas as unidades domésticas que são ‘pobres’, a própria pobreza deve ser
redefinida como um estado de desempoderamento”. Os estudos da ONU afirmam que 70%
dos pobres do mundo são mulheres e que um grande número delas mora no meio rural.
Reconhecendo que a pobreza afeta, de maneira diferente, homens e mulheres, concordo com
Friedmann quando afirma que a pobreza constitui um desempoderamento das mulheres
agricultoras pelas desigualdades de oportunidades entre homens e mulheres.
Seguindo essa mesma visão, Marcela Lagarde fala da “pobreza de gênero” e
afirma que ela é produto da dominação e opressão de gênero:
patriarcado, por meio, sobretudo, da educação dos filhos e filhas. A família é uma instituição
que desempenha um papel muito importante no processo de socialização dos indivíduos e na
transmissão da herança simbólica cuja hierarquia de lugares sociais, aliada à autoridade da
experiência e dos saberes das gerações mais velhas, se constitui como referência para a função
socializadora.
Neste contexto, a família assume seu papel mediador entre o indivíduo, a
sociedade e o Estado permeando as fronteiras entre as esferas pública e privada. É necessário
tentar visibilizar a relação entre a família e a sociedade, suas mútuas influências e entender a
complexidade desta relação que se expressa em descontinuidades e permanências.
e foi mais oito filhos para criar. Com 26 anos de casada, separei, acabei de criar meus filhos
só mais Deus. (Maria Amélia, branca, 50 anos).
– Minha infância é assim a gente nasceu e viveu sempre na roça. Não saía para
lugar nenhum, era sempre em casa. Eu fui estudar, tinha 11 anos, quando eu fui à escola a
primeira vez. Eu mesma, a professora foi passando na estrada, eu pedi à professora que eu
queria estudar. Aí não era muito atuante, não, a escola. A gente ia para a escola e ia para o
campo de futebol. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
– Eu morava em São Paulo, minha mãe tinha seis filhos. Só que do meu pai, são
quatro, eu sou a mais velha. Meu pai ficava com a gente e ela ia pro bingo, eu tinha raiva,
minha mãe era viciada em bingo. [...] Minha mãe separou do meu pai. Veio para cá e eu vim
com ela. (Maria Alice, parda, 25 anos).
em sua vida desde criança. Na adolescência não foi diferente, só aumentou o volume de
trabalho. Segundo ela, “nós era o barro da roça”, e isto quer dizer que ela e seus irmãos e
irmãs tinham que fazer de tudo no trabalho agrícola, desde arrancar mato com enxadeco,
plantar, até bater de cacete o feijão colhido. Lembra que, naquela época, o povo da região
também sofria com a escassez de água e, assim, quando chegava da roça ainda tinha que
buscar água longe, a mais ou menos uma légua, e carregar o pote d’água na cabeça. Hoje, aos
50 anos, ela reclama de dores na coluna como consequência do trabalho pesado e de tanto
carregar sacos de feijão. Ela conta que teve que sair do convívio da família para ir trabalhar
como empregada doméstica, quando tinha 13 anos de idade, para ajudar na renda familiar, e
que sofreu muito com a saudade que sentia de sua mãe. Recorda que, desde criança, teve
dificuldade em estudar e que na adolescência ainda foi pior, porque seu pai não queria que ela
e suas irmãs estudassem e, rindo, diz “para não namorar e emprenhar”. Ainda rindo, conta que
começou a namorar escondido, com 13 anos de idade, mas afirma que antigamente o namoro
era “besta, só conversa”. Diz que começou a fazer sexo com 18 anos, conheceu seu marido
aos 20 e com 22 anos se casou. Casou pensando em sair do domínio do seu pai e que não
precisaria mais trabalhar tanto, porém, depois que casou, foi trabalhar ainda mais. Ela afirma
que a mulher tem que casar mesmo, então, foi bom ter casado porque ficou amparada e o
marido nunca a tratou mal, porém, o casamento é para trabalhar. Por outro lado, diz que hoje
pensa que devia ter ficado solteira trabalhando sossegada.
Maria Amélia conta que, durante sua adolescência e juventude, sua mãe foi
muito rígida na sua criação e não a deixava sair de casa para lugar nenhum e que piorou muito
quando, aos 13 anos de idade, menstruou pela primeira vez: seu sofrimento continuava,
sempre assumindo a responsabilidade de cuidar dos irmãos. Sentia-se uma prisioneira, por
não poder sair de casa, mas que sua mãe permitia ter algumas amigas apesar de não poder
sair. Acredita que o fato de ter suportado ser “prisioneira” durante sua juventude fez com que
ela aprendesse a ser a mulher que ela é hoje. Maria Amélia diz que namorou muito pouco,
começou sua vida sexual aos 18 anos de idade e logo com o segundo namorado, aos 19 anos,
se casou. Diz que no início do casamento foi bom, porém, não era apaixonada pelo marido,
tinha pena dele. Lembra que, com o passar dos anos, a relação foi ficando ruim. Ele bebia
todos os dias, ficava violento e ela e os oito filhos tinham que correr para não morrer. Cuidou
dele por 26 anos até que se separou.
Maria de Lourdes relata que, em sua adolescência, continuou sofrendo violência
doméstica de seu pai alcoólatra e bastante violento. Ela e seus irmãos tiveram que sair de
casa. Ela foi para Salvador e São Paulo, na juventude, em busca de emprego, e trabalhou
167
como doméstica. Conta que fez sexo pela primeira vez aos 15 anos de idade e não gostou. Diz
que fez besteira, referindo-se ao ato sexual, por causa da forma que seus pais a tratavam e aos
seus irmãos, sempre com agressividade e com palavrões. Como ela era “muito desaforada”,
depois de a mãe tê-la xingado de algo que ela não era, disse para a mãe: “já que a senhora me
chamou disso, a pois, eu vou dar é hoje”. Diz que “fez sexo” com o primeiro rapaz que
apareceu e ficou namorando com ele por um tempo e que, no início da relação, até gostava
dele, mas, depois, ele começou a beber como o pai dela, então, resolveu deixá-lo e foi embora
para Salvador. Foi quando conheceu o pai da sua filha mais velha, que está com19 anos, já é
casada e tem um filho. Não tem nenhum contato com o pai da sua filha, desde quando esta
tinha uns cinco anos de idade. Maria de Lourdes tem, no total, seis filhos, de quatro pais
diferentes. Os filhos homens mais velhos, de 16 e 14 anos de idade, têm o pai morando na
comunidade e contam com a atenção dele e uma contribuição financeira mensal. O quarto
filho tem nove anos, o pai foi para São Paulo e não contribui com nada para mantê-lo. Com o
atual marido, ela tem dois filhos pequenos, de 4 e de 2 anos de idade, porém, ele passa o ano
todo trabalhando em São Paulo e manda mensalmente uma quantia para ajudar no sustento da
família.
A juventude de Maria do Sossego foi como sua infância, de muito trabalho e
responsabilidade. Recorda que, com 17 anos de idade, voltou da casa de sua irmã em
Salvador, onde trabalhava fazendo o serviço doméstico e cuidando dos sobrinhos, para morar
com os pais no interior do município de Santa Brígida. Ela diz que nunca teve oportunidade
de namorar e acha que foi por isto que se empolgou com o primeiro rapaz que conheceu.
Segundo ela, isto acontece com quem é criada presa, sem oportunidade de sair, de se divertir,
de curtir a vida. Conta que a irmã, em Salvador, não gostava e nem deixava que ela fosse a
festas. E complementa que jamais deixaria as obrigações e responsabilidades para ir a uma
festa. Então, quando voltou para sua comunidade, logo conheceu, se apaixonou e começou a
namorar o pai dos seus filhos, com quem foi morar aos 18 anos e com quem vive até hoje.
Com vergonha e timidez, diz que foi quando começou sua vida sexual. Teve seu primeiro
filho aos 19 anos de idade.
Maria dos Prazeres lembra que, na juventude, a situação da família melhorou um
pouco, pois ela e as irmãs começaram a ganhar uma pequena remuneração trabalhando na cata
de castanha de caju e na colheita de fumo e que, quando jovem, costumava guardar um pouco
daquele dinheirinho para quando fosse casar, pois já pensava em se casar. Segundo ela, seu
pai não deixava que ela e as irmãs fossem a festas nem ao campo de futebol, nem à feira elas
podiam ir sem a mãe. Lembra que sua juventude foi boa, apesar de não ter energia elétrica
168
para assistir televisão. Elas se divertiam brincando entre si mesmas e com os primos e primas.
Sua juventude foi de muito trabalho na roça e com o machado cortando lenha e ao chegar em
casa ainda ter que dividir as tarefas domésticas com as irmãs: varrer casa e terreiro e buscar
água nos tanques. Amigas, só tinha as da escola, porque seu pai não a deixava ir para a casa
dos vizinhos. Ela lembra que sofreu discriminação por ser tão pobre que não tinha dinheiro
para comprar merenda na escola e ainda não existia a obrigatoriedade de dar merenda na
escola pública. Maria dos Prazeres conta que demorou a menstruar, tinha 15 anos, e que, por
causa disto, sofreu muita gozação das primas que diziam que ela era macho-fêmea. Com risos
soltos, ela recorda que, com 15 anos, começou a namorar; uns seis meses, apenas de olhar, de
conversar e que uma única vez eles se abraçaram, porque ele ia embora para São Paulo. Ele
era um menino bom e trabalhador, mas seu pai era racista e não aceitava o namoro deles por
ele ser da cor preta. Já o segundo namorado foi com 17 anos e ela se casou com ele, porque
além de trabalhador havia dito que a deixaria continuar estudando; com 21 anos teve sua
primeira filha.
Maria da Paz trabalhou como empregada doméstica quando era adolescente e só
parou de trabalhar em casa de família aos 20 anos de idade, porque estava grávida e sua mãe
estava doente, lutando contra um câncer. Ela afirma ser uma pessoa tímida e que, desde sua
adolescência, nunca gostou de festa e de sair de casa e que nunca foi namoradeira. Com
vergonha, fala que era adolescente com 13 anos de idade, quando menstruou pela primeira
vez, e que só começou a namorar de 17 para 18 anos de idade e sua primeira experiência
sexual foi com seu namorado com quem se relacionou por pouco tempo. Diz, rindo, que “não
é vassoura para ficar varrendo por aí”, por isto, se orgulha de só ter dito relação sexual com
dois homens, por não gostar de ficar mudando muito de namorado. Com 20 anos de idade,
teve seu filho, conviveu com o pai dele por alguns anos, porém, por ser “uma pessoa difícil de
aceitar certas coisas”, acabou se separando. Diz que, para ela, “palavra dói mais do que tapa,
então a palavra mal dita já magoa, é melhor você dá um tapa de que certas palavras”, por isto,
cada um seguiu seu caminho: ela foi para um lado e o namorado para outro.
Maria das Dores é uma mulher adulta, que se orgulha da sua cor e de ser uma
negra que nasceu na comunidade Maria Preta. Fala que, antigamente, quando ela era
adolescente, passou por muita discriminação e preconceito por ser pobre, pelo lugar de origem
e pela cor de sua pele. Conta que, quando adolescente, foi para São Paulo trabalhar como
empregada doméstica: tinha apenas 12 anos de idade. Voltou para a comunidade Maria Preta
com 15 anos de idade e logo começou a namorar iniciando sua vida sexual com 16 anos. Diz
que, quando jovem, não pensava muito e logo quando começou a fazer sexo não achou que
169
foi bom, pois acha que se deve pensar mais antes de ter uma relação sexual, porque o casal
precisa ter uma conversa sobre como vai ser o respeito de um com o outro depois de ter feito
sexo. Ela conta que se casou aos 18 anos de idade e que, durante o tempo que ficou casada, a
relação teve muitos altos e baixos: lembra que só fazia sexo quando seu marido queria, porque
não havia mais carinho e respeito entre eles. Aos 23 anos de idade, teve o prazer de ser mãe.
Maria Esperança é uma jovem negra de 28 anos, que começou a namorar na
adolescência, com 13 anos, e relata que, nesta época, namorou alguns garotos de sua
comunidade Bananeirinha e da comunidade vizinha. Casou, a primeira vez, aos 18 anos, e não
engravidou no início da sua relação conjugal, primeiro, porque tomava anticoncepcional e
segundo, por sofrer violência doméstica. Seu marido era um homem jovem de 24 anos, muito
agressivo, mulherengo e dependente do álcool. Ela conta, com tristeza, que sua primeira
gravidez foi muito complicada, pois vivia um relacionamento muito tumultuado e bastante
violento com seu marido e que foi depois de uma briga em que ele a empurrou e ela, grávida,
caiu por cima da barriga, que resolveu deixá-lo, ao perceber que estava prejudicando não
somente a ela, mas também ao seu filho que nem havia nascido. Foi morar na casa dos seus
pais e lá teve seu filho, que nasceu com alguns problemas de saúde. Lembra que, quando
ficou grávida, estava com 20 anos de idade e cursando o segundo ano do Ensino Médio,
apesar de todo o conflito vivido com seu marido para que ela não estudasse. Recorda que sua
mãe foi determinante, quando ameaçou ir para a justiça caso ele não permitisse que ela
continuasse estudando. Terminou o Ensino Médio graças ao apoio de sua mãe, que ficava
com seu filho para que estudasse. Com um sorriso envergonhado, conta que casou a segunda
vez aos 21 anos de idade, quando seu filho estava com quatro meses de vida, pois sua mãe
disse que para namorar conversando podia ser na casa dela, mas depois de ter relação sexual
não a queria mais em sua casa. Com muita alegria e gratidão, Maria da Esperança fala que seu
segundo marido é um homem bom, que registrou seu filho e o trata com o mesmo carinho e
consideração com que trata a filha que tem com ela. Segundo disse, o único problema é o fato
de ele trabalhar em outro estado, Pernambuco, só vindo uma vez por mês em casa.
Assim como a infância, a adolescência de Maria Alice foi marcada por problemas
decorrentes do vício da mãe em jogo de bingo. Recorda que, nessa época, ficava com raiva do
seu pai por não deixá-la sair com as amigas, para que tomasse conta de seus irmãos menores,
por causa da mãe ausente. Hoje, ela entende que ele precisava trabalhar. Conta que sofreu na
adolescência com a separação de seus pais, mas o seu maior sofrimento foi quando tinha 15
anos de idade e se apaixonou, durante as férias na casa de sua avó na Bahia, e não quis mais
voltar para São Paulo, o que fez seu pai ficar sem falar com ela por dois anos, muito magoado
170
por ela ter ficado na Bahia e por ter começado a namorar. Ele costumava falar “não suje meu
nome”, porque as duas coisas mais importantes que as pessoas pobres têm são o estudo e o
nome. Maria Alice começa a rir envergonhada, quando fala que, nesta época, começou a ter
relações sexuais com um amigo que se tornou sua grande paixão até hoje. Nesse período,
estava cursando o segundo ano do Ensino Médio, em uma escola pública, e suas colegas
contavam que, mesmo sendo virgens, namoravam deitadas. Ela diz que quando se deitou pela
primeira vez com seu namorado se sentiu estranha, mas continuou até o fim. Já tem dez anos
de casada e toma anticoncepcional para evitar filhos, e diz que, às vezes, pensa em tê-los, mas
não ainda.
Maria dos Anjos conta que sua infância e juventude foram marcadas pela
rejeição e pelo abandono de seus pais biológicos. O fato de nunca ter convivido com seu pai e
ter passado pouco tempo com sua mãe marcou sua vida. Quando criança, foi morar com sua
avó materna que queria cuidar dela, contudo, sua avó morreu, e ela foi criada pelo tio, filho
desta avó. Conta que, na adolescência, seu tio não a deixava sair para as festas com os amigos
e amigas da escola, mas que, mesmo assim, começou a namorar aos 16 anos de idade. Como a
situação financeira era muito difícil e para ajudar seu irmão mais velho, foi trabalhar na casa
dele como empregada doméstica, aos 17 anos de idade. Antes de começar a namorar com seu
marido, foi amiga dele e, só depois, quando estava com 18 anos, começaram a namorar e
resolveram se juntar e morar na comunidade de Canabrava, interior de Santa Brígida. Aos 20
anos, engravidou, por opção, de sua única filha, hoje com quatro anos de idade.
primas menores. Maria dos Anjos, com 17 anos, trabalhou como doméstica na casa de seu
irmão mais velho. A realização deste trabalho em âmbito privado se dava de modo gratuito ˗˗
recebendo “agrados”, roupas, cadernos, sandálias, alimentação etc. ˗˗ ou mal remunerado.
Observa-se, pelos seus depoimentos que elas não recebiam salário e que Maria das Dores
,quando trabalhava na casa dos parentes em São Paulo, não estudava:
– Assim, com 12 anos, eu fui pra São Paulo cuidar de minhas primas lá, com
quinze, voltei. Aí, dos seis aos doze foi aqui ajudando mãe; fui pra lá, não fui ganhar nada em
São Paulo, voltei, quando chegou aqui comecei namorar, casei. [...] eu só ganhava roupa. Eu
morava na casa do meu tio. Só era roupa e comida, lá mesmo era só isso. [...] fiquei três anos
sem estudar lá. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
– [...] nove anos eu fui cuidar do meu sobrinho em Salvador. Eu tenho duas irmãs
que moram em Salvador, eu fui cuidar desses dois sobrinhos, e cuidava da casa e ainda
estudava. [...] ganhava, ela, assim, me dava roupa, essas coisas, ela me dava tudo que
precisava e ainda me dava dinheiro [agrado] por fora. Eu não comprava o que eu imaginava,
na verdade nem tudo a pessoa faz o que a pessoa quer, ou come o que quer. (Maria do
Sossego, parda, 38 anos).
Em termos de relações de trabalho, quatro delas prestaram serviços a terceiros,
fora do grupo doméstico, para indivíduos de classes sociais diferentes da sua, em uma relação
de patrões e empregadas domésticas e seus serviços eram pagos sob a forma de moeda,
insumos e bens de uso. Uma delas é Maria José:
˗˗ Eu trabalhava direto. Às vezes, quando era moça, trabalhava de empregada
doméstica pra poder ganhar um dinheirinho pra poder comprar uma roupinha pra gente.
Roupa boa ninguém usava, calçado bom ninguém usava.
Ela conta que começou a trabalhar na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, em
casa de família, ainda adolescente, quando tinha 13 anos de idade, para ganhar dinheiro e
contribuir com a renda da família. Afirma que nunca ganhou salário e que ganhava tão pouco
que nem sabe quanto era:
– Menina! Oxê! Era um pouquinho e ainda dava um pouquinho pra mãe, pra
ajudar, que tinha quinze filhos, coitada. [...] depois que a gente começou trabalhar assim de
empregada doméstica, a gente ganhava um dinheirinho, dava para comprar uma roupinha,
um perfumezinho, ajudava minha mãe, coitadinha, era pior do que eu. (Maria José, parda, 50
anos).
172
Já Maria dos Anjos se lembra do valor que recebia pelos seus serviços domésticos
e que ganhou seu primeiro dinheiro aos 17 anos de idade, para ajudar na renda de sua família
que era muito pobre:
– Nossa, eu trabalhava e nessa época era R$ 80,00 reais por mês, era pouco, mas
assim, o que você pensa primeiro é ajudar em casa no que puder, como a gente era muito
necessitado. Hoje em dia todo mundo trabalha, tem o seu, mas era uma parte necessitada.
Então, eu procurava ajudar aos irmãos que eu tinha, comprar alguma coisa. Em pouco
tempo eles também começaram a trabalhar, aí foi quando foi melhorando a vida. (Maria dos
Anjos, parda, 24 anos).
Maria José, no relato a seguir, faz um discurso ambíguo quando diz não ter
sofrido discriminação nem violência quando trabalhava como empregada doméstica, mesmo
passando por uma série de inseguranças: alimentar, habitacional e de renda. Em suas palavras:
– Graças a Deus, nas casas que eu trabalhei, a primeira vez que eu fui trabalhar
com 13 anos, era uma casa de uma senhora e um senhor de idade. A segunda vez, eu fui
trabalhar também na casa de umas senhoras, mas essas senhoras eram muito ruins. Era
fome, eu quase que morri de fome, passei três dias... eu digo “eu vou embora na quarta”,
quando foi no sábado... mas não davam comida a eu... era duas, eu passava uma fome tão
grande... “eu vou embora”... antes d’eu ir tinha uma mulher, [...] que o nome dela era
Magareth, ela era professora, aí antes d’eu ir embora, tinha uma menina que disse que tinha
uma mulher que queria uma menina para trabalhar, essa era beleza comigo. Depois eu fui
trabalhar em Maceió também, eu trabalhei na casa de outra mulher que trabalhava na Caixa
Econômica. Ali era boa também, era melhor que minha mãe. Ela me dava de tudo, ela me
pagava e me dava de um tudo, roupa, calçado, de tudo, ela me dava. (Maria José, parda, 50
anos).
No depoimento, fica evidente a vulnerabilidade de Maria José, seu sofrimento
físico por passar fome, e psicológico, por sentir insegurança, dependência, medo, sobretudo
do controle das patroas sobre ela, sobre sua vida. É evidente a presença do patriarcalismo
materializado em toda forma de opressão a ela e às outras mulheres, independentemente da
sua idade, geração e raça. Neste contexto do emprego doméstico, a subordinação feminina
fica visível, embora com nuances menos ou mais incisivas, menos ou mais declaradas.
As práticas que se constituíram em torno do trabalho doméstico expressam a
dominação e subordinação na relação patroa-empregada, sendo o espaço doméstico o cenário
da intensa e viva dinâmica das relações sociais de gênero como relações de poder. Portanto,
tanto trabalhando na casa dos parentes como na casa dos patrões, estabelecem-se relações de
173
83
Compreendendo o conceito de habitus como: “[...] um sistema de disposições duráveis e
transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma
matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas
infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...]” (BOURDIEU,
1983, p. 65).
176
manga de mim: “Ei dona, você tem que tirar [depilar]”, eu fiz uma briga com ela, que não
deixava, eu era moça. [Ela:] “o que é que tem a ver com moça? Nada, não”. [Respondi:]
“Não deixo, não, que pai disse que para tirar esse negócio só era mulher casada, eu não sou
casada”, fiz uma confusão, minha fia, ela botou no prontuário. Aí o médico chegou, no outro
dia, ficou conversando de onde eu era, ficou perguntando coisa e deu risada, mas ela botou
no prontuário que se acontecesse qualquer coisa, era minha responsabilidade. Ah, quem
disse que eu ia deixar raspar, se meu pai dizia: “moça não se raspa, quem se raspar é puta
ou mulher casada. Tinha esse negócio, puta ou mulher casada, hoje a gente não usa isso,
cada qual faz a sua vida, cada qual faz o que quer, mas foi difícil, me casei, tô aqui [risos].
(Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
No depoimento de Maria José e de Maria dos Prazeres fica evidente como elas se
enquadravam, acatavam e respeitavam as regras e as determinações de seus pais. Diferente de
Maria de Lourdes, uma jovem tentando se contrapor às normas e regras estabelecidas para as
relações de gênero na sua época de adolescente no meio rural. O confronto desta jovem
“rebelde” é com sua mãe, com a forma como ela a tratava ao exigir comportamentos
adequados para uma moça, exigindo sempre cuidados para não perder a virgindade, porém, de
uma forma sempre agressiva, levando Maria de Lourdes a romper com os padrões:
– [A primeira relação sexual] acho que eu tinha uns quinze pra dezesseis. Não
gostei muito, não. Quer dizer que, naquele tempo, a gente fez mais besteira por causa dos
nossos pais que xingava muito a gente com aqueles palavrões feios. Xingava o que a gente
não era. Aí como eu sempre fui desaforada, que até hoje só, eu disse à mãe: [...] “Já que a
senhora me chamou disso, a pois, eu vou dar é hoje, ainda fui de saia branca pra ter prova.
Eu disse: “eu posso apanhar mas eu vou dar é hoje” (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
Já Maria do Sossego conta que, aos 18 anos de idade, iniciou sua vida sexual com
seu primeiro namorado e foi morar com ele desde esta época, há 20 anos atrás. Ela fala com
timidez sobre seu sentimento de prazer com relação ao ato sexual: “Foi assim, foi e tá sendo,
na verdade, ninguém pode negar”. Para Maria das Dores, que, atualmente, está separada há
apenas dois meses depois de 12 anos de convivência com seu único parceiro, a experiência
sexual na adolescência, aos 16 anos de idade, aconteceu sem refletir, sem pensar nas
consequências desta atitude, e agora, na idade adulta, com a experiência acumulada com este
parceiro, pensaria mais nas questões desencadeadas após o ato sexual:
– [A primeira relação sexual] acho que foi com uns 16 anos. Não sei por que, eu
acho que a gente quando não tem assim uma experiência, a gente vai assim, no ato, não é
assim com amor. Porque hoje, se fosse pra mim começar uma relação, eu ia pensar mais
177
antes de fazer o sexo, tem que ter uma conversa de relação, como vai ser, porque tem que ter
o respeito. E não é assim quando a gente começa, quando é jovem a gente não vai pensando
no respeito, como vai ser depois da relação. Vai namorar, tem a relação de namorar, e
depois quer continuar naquela vida, só tendo relação sem respeito. Não foi bom, não. (Maria
das Dores, 31 anos).
Maria das Dores continua falando sobre sua relação conjugal e como a dominação
masculina oprime os desejos e os quereres das mulheres agricultoras que, em suas relações de
gênero no cotidiano, ainda não conseguem confrontar a ordem de gênero patriarcal, então,
aceitam e assumem o lugar de mulher dominada. Fala que só tinha relações sexuais quando o
marido queria e sem o carinho de antes:
– Só quando ele queria porque depois que a vida da gente fica mais ou menos
descontrolada, não tem aquela conversa mais, não tem aquele carinho, faltando carinho,
faltando o respeito, aí vai levando. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
A sexualidade dessas mulheres está diretamente relacionada ao casamento e à
reprodução. O casamento no meio rural ainda se apresenta como uma imposição, um preceito
na vida destas mulheres agricultoras heterossexuais e, segundo elas, a falta de oportunidade
era, e ainda é, o grande vilão para um casamento tão precoce. Na fala de Maria José, o
casamento era a única alternativa para sair do domínio do pai, da situação de pobreza e da
exploração do trabalho familiar. Não passava por sua cabeça não cumprir com esta obrigação
moral imposta pela família e pela sociedade e por ela naturalizada e incorporada. Maria dos
Prazeres também via o casamento como um preceito: na adolescência, sonhava e juntava
dinheiro para um possível casamento, que iria acontecer um dia. Quando seu pretendente
apareceu, ela tinha uma condição para aceitar o casamento e poder continuar estudando. Esta
condição não era nem cogitada na geração de Maria José. É o que elas dizem sobre o
casamento:
– Tem hora que eu digo, assim, que acharia, porque é assim, às vezes a gente diz
vamos casar, se a gente mora de baixo dos pais, para sair de trabalho. E quando casei fui
trabalhar mais ainda, então, achei bom que casei, me amparei, graças a Deus, ele nunca me
tratou mal, mas é pra trabalhar. Eu devia ter ficado solteira mesmo, trabalhando sossegada,
mas é coisa da vida. A gente tem que casar mesmo, não pode ficar. (Maria José, parda, 50
anos).
– E a gente foi e ficou assim, namoremos e se casemos. Esse já foi namoro mesmo
[risos]. [...] Foi, graças a Deus. No início foi ruim, mas depois a gente vai vivendo a vida, vai
estudando. Eu casei e fui estudar o 2º grau, era uma turma já madura. Eu disse que casava só
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se me deixasse estudar. Ele disse que podia estudar, podia ir pra onde quisesse, então é com
esse que eu vou me casar [risos altos]: “Mãe, eu vou me casar”; [a mãe:] “Menina!”. Logo
eu ajudava demais em casa. Eu acordava era quatro e meia da manhã junto com pai, ia tirar
o leite, eu ia também. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
As mulheres agricultoras são alfabetizadas, porém, as adultas mais velhas,
nascidas nas décadas de 1960 e meados da década de 1970, mal terminaram a 4ª série
primária, hoje Ensino Fundamental I. Apesar de as mais jovens terem mais escolaridade,
chegando a concluir o Ensino Médio, elas continuam vendo o casamento como a única
alternativa na vida delas, diferentemente dos homens, que priorizam o trabalho rural ou
migram para São Paulo em busca de trabalho. Diz a jovem Maria Alice, referindo-se aos
homens jovens da comunidade Bariri, do município Ribeira do Amparo:
˗˗ Como os jovens de hoje pensam, 90 % dos jovens daqui da comunidade acha
que o futuro é esse e nem faz nada aqui, não completa 18 anos e quer ir para São Paulo, não
faz nada aqui, não quer saber do estudo porque diz que o estudo aqui não é igual ao de lá.
Os jovens, filhos de agricultores, deixam a escola muito cedo, querem começar a
trabalhar, porque isto significa entrar no mundo dos adultos; ter ido a São Paulo, ter dinheiro,
é muito importante para se afirmar em relação aos colegas e em relação às meninas. “Ser
reconhecido e se reconhecer como homem”, diria Bourdieu (1983, p. 115).
Ainda hoje, na região semiárida, observa-se pouca perspectiva quanto à geração
de renda para as mulheres agricultoras, mesmo quando elas concluem o ensino médio. Elas
sofrem do que Crenshaw (2002) chama “discriminação interseccional”: estão em uma posição
social, econômica e cultural que contribui para a sua vulnerabilidade a outros sistemas de
subordinação, colocando as mulheres rurais, pobres e, principalmente as negras, mais
vulneráveis, quando eles se intersectam. É o caso, por exemplo, de Maria das Dores, negra,
recém-separada, um filho, formada em Magistério, que não consegue exercer este ofício no
município de Banzaê nem na sua própria comunidade, tendo que fazer várias atividades para
se manter e ao filho:
– Na verdade eu me mantenho hoje, estando separada, é como eu me mantinha
junto, com Bolsa Família, trabalhando, trabalho no artesanato quando vende é uma rendinha
a mais e às vezes eu trabalho em Banzaê, ganho por dia [faz faxina]. Eu me mantenho assim.
Não tenho vontade também de ir pra São Paulo, que sei que lá a realidade não é fácil. (Maria
das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores enfrenta a discriminação de gênero, de classe social, de sua
origem rural, por estar separada, mas, principalmente a racial, que também atinge sua família
179
e as pessoas da comunidade Maria Preta. No seu depoimento, percebo que não é mais
oprimida que as outras mulheres da pesquisa, que são da mesma classe social, sejam elas
brancas, pardas, ou mesmo a outra mulher negra, mas ela experimenta as múltiplas opressões
a partir de seu lugar, de sua trajetória de vida e de sua vivência de mulher camponesa negra e
pobre, o que traz marcas profundas e um sentimento de revolta e tristeza, além de um ponto
de vista sobre a opressão racial presente na sociedade racista e sexista, de quem vivencia a
discriminação e o preconceito racial fora e dentro da própria comunidade:
– Aqui, fora, assim quando a gente chega num lugar, as pessoas não veem a
gente, é como se não tivesse chegado ninguém, aí a gente já sente aquela coisa por dentro,
por ser da Maria Preta, por não ter um cabelo liso, por não gostar muito de falar, por não
gostar de se mostrar, a pessoa não liga pra gente, não tem aquela atenção que a gente vê que
têm com outras pessoas das outras comunidades. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Em outro depoimento, ela afirma que o estudo ajuda a enfrentar a discriminação
racial, apesar das questões políticas:
– Ajuda, não é muito, porque a escola aqui, eu fiz o Magistério, tenho
autorização de estar em sala de aula, mas como tem a questão política e tem a questão que é
Maria Preta... o professor da comunidade, mas sempre que precisa de uma mobilização na
escola. Ela já sabe que eu tenho estudo, já me procura. No início do ano letivo a diretora já
vem, faz reunião com as mães e aí já diz qual o professor que vai ser, logo esclarece que
havendo falha do professor a gente tem direito de reclamar, e eu, Maria das Dores, que tem o
Magistério, que tá por dentro mais da escola, também ajuda. Aí eu acho que sim [que o
estudo ajuda]. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
O estudo não só ajuda a enfrentar o racismo, como se apresenta como um
elemento fundamental para o empoderamento das mulheres agricultoras. Dentre as mulheres
pesquisadas, Maria dos Prazeres é uma exceção, pois conseguiu concluir o ensino superior e
está cursando uma pós-graduação, com muito sacrifício e colaboração de sua família,
principalmente de sua mãe e de sua irmã, que ajudaram a pagar as mensalidades da faculdade
e assumem os cuidados com suas duas filhas, para que ela possa continuar estudando.
180
Participar do Projeto Gente de Valor não foi o primeiro desafio enfrentado pelas
mulheres agricultoras. Para participar das atividades promovidas pelo PGV, elas tiveram que
enfrentar as situações de dominação, submissão e violência sofridas na família,
principalmente por parte dos pais ou maridos. No início, elas conseguiram participar apenas
com a presença silenciosa. Depois, com o passar do tempo, esta presença ganhou voz e ação.
Durante o processo de encontros, reuniões, cursos, intercâmbios, as mulheres foram se
abrindo, trocando, com as outras mulheres, informações, expectativas, sonhos e desejos,
construindo laços de amizade e confiança mútua entre elas. Com o crescimento enquanto
lideranças, passaram a respeitar mais os outros e adquiriram o respeito deles. Permanecem os
desafios de aceitar críticas e de enfrentar os conflitos na família e no grupo. Um resultado
neste processo de empoderamento é a autoaceitação e o sentimento de autovalorização dessas
mulheres.
No relato de Maria de Lourdes, percebe-se os obstáculos que teve que superar
desde o início dentro de sua própria família para conseguir participar. “Eu estou desde o
início, até a minha mãe, ela dizia: “Besta, já vão pensar que vão arrumar alguma coisa”,
referindo-se à participação dela nas reuniões da associação e do grupo de artesanato do fiapo.
181
Ao insistir, no início, em participar das atividades, apesar da falta de apoio de sua mãe, que
não ficava com suas crianças pequenas, ela diz: “Minha única dificuldade era quando eu não
tinha com quem deixar meus filhos pra ir, porque mãe não fica com meus filhos pra nada”.
Maria de Lourdes teve que buscar alternativas para não desistir: “Se eu não tiver com quem
deixar, aí eu deixo com minha sogra o de quatro anos e o de dois anos fica na creche o dia
todo [...] A minha participação no início era mais difícil por causa das crianças”. Superada
esta dificuldade e com uma maior presença e dedicação nas reuniões e nas oficinas de
formação, percebo mudança na autoestima de Maria de Lourdes e também uma maior
integração na comunidade.
Ela ainda busca o reconhecimento junto à sua mãe, quando diz: “Hoje em dia não
comenta mais, não. Eu digo: tá vendo aí, mãe, que a gente conseguiu o que a gente queria,
apois, mais besta foi a senhora que saiu”. E continua buscando também o reconhecimento
junto à comunidade, uma vez que o grupo de artesanato do fiapo já construiu uma dinâmica
de trabalho coletivo e de cooperação entre seus membros. Ela afirma que houve mudança na
comunidade com o trabalho desenvolvido pelo grupo de artesanato do fiapo: “Mudou, porque
antigamente cada um trabalhava em suas casas, cada quem por si, e hoje em dia tem o dia da
gente se reunir, fazer o grupo para trabalhar. Aí eu acho que mudou muita coisa e quem não
se interessou, hoje em dia está arrependido”.
Para Maria Alice, que assume a liderança do grupo de artesanato do fiapo e
também é secretária da Associação Comunitária e Cultural do Bariri, Rio Seco, Alto e Rio
Quente de Cima, a dificuldade, dela e de outras mulheres, de participar, no início da
implantação do PGV, diferentemente de Maria de Lourdes, não tinha relação com a família,
marido ou filhos, e sim porque não existia relação entre as pessoas vizinhas que moravam
naquele lugar, muito menos integração. Segundo ela, tinham dificuldade em participar das
reuniões, mas acabaram superando:
– [...] não só eu, como todas aqui, era uma comunidade que ninguém se reunia.
Eu passava por minha vizinha, nem se cumprimentava, era assim. A comunidade era
desunida. O Projeto uniu a gente, hoje, se mexer com um coitado, mexeu com a comunidade
toda. Hoje, a gente está bem unida, principalmente o grupo que mantém, é como se fosse a
mesma família, e é uma família. É como eu falo, é um casamento, tem briga tem tudo, igual
um casamento. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Maria Alice conta que começou a participar desde o início e que era de seu
conhecimento que outros projetos semelhantes já tinham existido e desaparecido em
comunidades vizinhas:
182
que dava para ajudar bastante, mas como a gente não estava como foco [produtivo] (Maria
Alice, parda, 25 anos).
Maria do Sossego começou a ensinar as mulheres vizinhas a fazer crochê, antes
do PGV iniciar a sua intervenção na comunidade. Participou das reuniões do Projeto desde o
início. É fundadora e tesoureira do grupo de artesanato do bordado (costura, pintura e crochê)
da comunidade de Canabrava, formado por 30 mulheres. Ela diz perceber diferença nela
mesma:
– Na verdade, chega pelo conhecimento das máquinas, que fala nos nomes das
máquinas, nós pensava que era uma coisa de sete cabeça as máquinas. Na verdade, hoje em
dia, a gente sabe manusear as máquinas, pra mim eu acho que já foi um conhecimento bom.
Que nós não tinha nem o conhecimento de máquina galoneira – “Que máquina galoneira é
essa? –, overloque não tinha bem conhecimento... Hoje em dia, eu já sinto outra pessoa, é
motivo de muita emoção” (Maria do Sossego, parda, 38 anos).
Já para Maria dos Anjos, que também participa do grupo de artesanato do
bordado da comunidade de Canabrava, o que a levou a participar do grupo foi seu interesse
em aprender a fazer crochê, mas que foi além:
˗˗ Eu acredito que eu aprendi muito. Eu aprendi de início a lidar com muita
gente, a me misturar com muita gente. Aí eu fui aprendendo, muitas vezes não é só o crochê,
é a conversa o que há de bom no meio do grupo.
Ela fala sobre a vivência com as colegas e sobre o que conversam ˗˗ “A gente
divide problemas, têm as pessoas que desabafa em certos momentos. Quando a gente chega
com um problema, a gente gosta de desabafar, é até muitas vezes uma forma de aprender a
lidar umas com as outras, assim, a se conhecer” ˗˗ e do objetivo de aprender a fazer crochê ˗˗
“Era pra ter renda, para ocupar o tempo. Porque, na verdade, eu não trabalho, só quem
trabalha é meu esposo. Ocupar o tempo e ter uma rendinha. Ganhar alguma coisa”. Merece
aqui ser observado que ela não considera “trabalho” aquele que não obtém renda, como é o
caso do trabalho de dona de casa.
Maria José foi presidente da Associação dos Moradores da Comunidade de
Beleza até o final do ano de 2012, término da intervenção do Projeto Gente de Valor. Ela
relembra que começou a participar no início do Projeto quando quase ninguém queria
participar, pois as pessoas tinham medo. O pessoal só acreditou no Projeto depois, quando
começou a implementação, as primeiras ações, as cisternas de produção e os quintais
produtivos: “[aí é] Que foram atrás do CNPJ da associação, aqui [comunidade Baixa do
Mocó] estava com problema, aí corre prá lá [para a associação de Beleza]”. Ela, até aquele
184
se divertia, era bom demais!”. Naqueles tempos eu não ficava estressada, [porque] a gente
conversa, conversa com uma pessoa, conversa com outra, naquele tempo eu achava bom
demais, eu comecei sem querer, mas depois eu acostumei, minha filha, pense que eu achava
bom! Tem reunião eu estou lá. [risos] (Maria José, parda, 50 anos).
Dentre os cursos de capacitação promovidos pelo PGV, o que ela mais gostou
entre todos dos quais participou, foi: “As plantas! Meu quintalzinho, eu gostei”. Ela se refere
aos quintais produtivos e com alegria e orgulho de ter uma boa produção, apesar do período
de estiagem, de não ter usado veneno nas plantas e, principalmente, de ter aprendido os
ensinamentos agroecológicos: “Eu aprendi [risos]. Ainda hoje, eu planto, eu gosto de plantar,
se eu tivesse água, eu plantaria direto, porque eu gosto. Não tem muito, porque o sol está
muito quente e a água é pouca”. Com muita alegria, ela afirma: “Tenho coentro, pimentão,
pimentinha, cebola, tenho tudo ali. [risos]. Tudo agro ecológico, tomate, graças a Deus, tanto
comi quanto dei pro povo aos montes. Eu não uso veneno, até hoje, graças a Deus, nunca
usei”. Maria José fala com prazer desta prática e afirma que continua plantando verduras e
hortaliças sem usar veneno: “Aprendi com o Projeto. Foi, porque a gente come tudo com
veneno, já não é muito sadia, e tudo que for comer, com veneno, aí o bicho pega, não é?”.
Ela revela ter um maior domínio do manejo agroecológico e ter incorporado essa
prática independentemente da presença do Projeto. Ainda falta, porém, em seu discurso,
maior conscientização política sobre o que representa esta proposta em relação ao modelo
tradicional da agricultura. Apesar de ter deixado a Associação de Beleza e não mais assumir
cargo de diretoria na outra associação da qual hoje é sócia, Maria José diz que valeu a pena ter
participado da associação e aponta os benefícios alcançados: “Valeu demais. Porque veio as
coisas pra gente, veio esses quintais produtivos, veio máquina forrageira, cisternas, prá mim,
não, que eu já tinha, mas veio para as outras pessoas e foi bom demais. Aí depois veio essa
rede de água, graças a Deus”. Ela continua falando porque valeu: “Essa outra [água] é pra
gente gastar, pra gente não estar todo dia pedindo numa prefeitura ou então ir para longe
buscar”.
As mulheres agricultoras que participam efetivamente das dinâmicas
organizativas e de atividades produtivas, de capacitações temáticas, das associações
comunitárias, exercendo um cargo de direção, como presidente, tesoureira, secretária ou
mesmo como sócias ativas de sua organização, essas mulheres experimentam o poder. Já
Maria José experimentou o poder enquanto presidente da associação, no período em que
estava vivenciando a dinâmica organizativa participativa e um intenso processo de
capacitação promovido pelos técnicos durante a execução do PGV. E como o empoderamento
186
das mulheres era visto dentro do Projeto como um instrumento para o desenvolvimento e
combate à pobreza, suas ações estavam focadas nas “necessidades práticas de gênero”, através
das tecnologias produtivas e geradoras de alimento e renda monetária.
O Projeto criou as condições para que as mulheres participassem das associações,
porém, o controle sobre os recursos e informações continuou sob a tutoria dos técnicos, não
possibilitando a construção do exercício pleno da autonomia das mulheres diretoras da
associação. Todavia, estas ações não levaram Maria José nem as outras mulheres desta
associação a refletir sobre suas situações de subordinadas aos homens e a questionar a
ideologia patriarcal nem a desvelar as desigualdades sociais e a discriminação de gênero, por
elas sofridas e naturalizadas.
Como o empoderamento é um processo e este processo não é linear, parece-me
que Maria José não se empoderou, de fato, ou o grau de seu empoderamento foi baixo, já que
o ambiente que a circunda não lhe proporcionou um entendimento crítico sobre a sua
realidade, ter autonomia e capacidade de fazer suas próprias escolhas. Ao comparar a Maria
José, presidente da Associação em 2011, com ela mesma, em final de 2013, relembro que era
atuante na comunidade e fazia as tarefas relativas ao seu cargo, porém com a ajuda dos outros
e sob o comando dos técnicos e não por si mesma. Maria José, em 2011, estava em um
processo de empoderamento individual construindo capacidades em manejo agroecológico e
na prática cotidiana do associativismo comunitário, contudo, em 2013, saiu da vivência
associativa e voltou ao seu universo doméstico e agrícola: desempoderou-se. Não foi
convencida nem se convenceu da importância de estar à frente da associação como presidente,
um direito seu e das outras mulheres, como estratégia para lutar por seus interesses enquanto
grupo e servir como referência para as outras mulheres da comunidade, uma vez que era a
primeira mulher, agricultora, com pouca escolaridade assumindo a execução de um Projeto
enquanto presidente da Associação Comunitária de Beleza.
Maria Esperança, assim como Maria José, participou ativamente do grupo de
quintais e incorporou a prática e a proposta agroecológica, também acompanhada pelos
técnicos do escritório de Jeremoabo. Ela assumiu como vice-presidente da Associação
Comunitária Bananeirinha e Adriana, no município de Jeremoabo, e foi Agente de
Desenvolvimento Subterritorial (ADS) do PGV e, por este motivo, passou por um processo de
formação sistemático e mais aprofundado. É importante frisar que se trata de uma jovem de
28 anos, que tem o Ensino Médio completo e que estava cursando o penúltimo ano do Curso
de Técnica Agrícola. Para ela, participar trouxe o compromisso de compartilhar com os outros
o conhecimento adquirido. Percebe-se ainda, em seu relato, a integração na comunidade e o
187
Maria Esperança nos leva a refletir que um projeto de desenvolvimento rural que
tem como estratégia de intervenção a equidade de gênero e o empoderamento de mulheres
deve ter como “obrigação” metodológica a participação equitativa de homens e de mulheres
desde o início, no diagnóstico rural participativo (DRP), para que todas as pessoas possam
colocar suas demandas individuais e coletivas, influenciando e contribuindo para a construção
da proposta do projeto a ser executado.
Maria Amélia participou do PGV desde o início de sua intervenção no campo,
quando os técnicos estavam aplicando o DRP na sua comunidade, Raso Pintado, município de
Fátima e se tornou liderança importante do processo. Ela conta:
– [Participo] da organização da comunidade já vem uns 20 anos, eu sempre
organizava a comunidade. [...] Depois, a partir desses projetos do Gente de Valor, que a
gente começou a fazer as coisas mais diferentes, vê as coisas do outro mundo. [...] Aí foi
quando a gente formou a associação, fizemos a comissão, aí fiquei sendo a tesoureira, até
hoje continuo, não sei até quando” (Maria Amélia, branca, 50 anos).
Maria Amélia se refere às tecnologias que foram implantadas na comunidade
durante a realização das atividades produtivas do Projeto: “Fui contemplada com cisternas,
banheiro, cisterna de pote”. Isto significa que ela participava do grupo dos quintais
produtivos:
– Para te dizer a verdade, eu não plantei no meu quintal ainda. Porque, às vezes,
de vez plantar no quintal, eu preferi plantar mais por fora, que eu achava que era mais
rápido. Porque o quintal tem mais, assim, coisa para planejar. Eu mesma já acostumada já
na lavoura, eu achei melhor plantar fora do canteiro. Eu plantei como a gente plantava as
verduras – couve, tomate, um bocado de coisa, cenoura... a gente já plantou tudo, isso assim
dá, na terra da gente. (Maria Amélia, parda, 50 anos).
Maria Amélia confessa não ter seguido as orientações da técnica para fazer os dois
canteiros econômicos com lona plástica e com o cano que ficariam enterrados nos canteiros, e
que teriam que receber adubação orgânica. Resolveu continuar fazendo do seu jeito, com as
leiras e o plantio direto no solo. Quando se pergunta se ela plantou fora do canteiro, ela diz:
– Isso, porque aquele precisava de muito adubo e eu não tinha como botar. Aí
tinha que ser, e precisava daquela lajezinha que eles fazem com o plástico. Assim eu pelejei,
sabe, de uma... acho que, assim é melhor, a gente aguar melhor, não é que conserve, porque
o plástico ajuda mais a conservar a molha, mas eu sei, é o costume da gente. E do meu jeito
deu, com certeza. (Maria Amélia, branca, 50 anos).
189
foram construídas, como ela afirma, qual foi o problema? Ela responde: “Agora eu não sei,
isso foi coisa de cada um”. E se refere às barracas que seriam para o grupo comercializar as
hortaliças agroecológicas na feira da comunidade e na sede do município: “Nas reuniões,
quando veio as barracas, era pra gente juntar de três quatro pessoas para vender as coisas
do plantio mesmo da horta. [...] Depois não carregava as barracas, era um descontrole: tá
bom, eu tô caindo fora”.
Maria Amélia tem dificuldade de viver as relações de grupo, os conflitos, o jogo
de interesses pessoais que, muitas vezes, se sobrepõe ao interesse coletivo. Observo que ela
tem dificuldade de viver essa dinâmica organizativa comunitária que exige o
compartilhamento das tarefas, das responsabilidades e do poder decisório da liderança. Ela
não acredita no grupo e a disputa entre familiares é grande nesta associação. No final da
conversa, pergunto o que achou do PGV e Maria Amélia comenta:
– Pra dizer a verdade, desse projeto nada foi pra frente, de produção, não.
Porque a única produção era os quintais, doce e a costura, nenhum desses foram pra frente.
Ninguém assumiu. Espero em Deus agora, depois que a gente conversemos mais o Antônio [o
presidente da associação], se depois que arrumar a sede e colocar as coisas lá dentro, vamos
vê se a gente vai fazer alguma coisa pra vê se vai à frente. Vê se a gente dá continuidade, se
arruma um grupo que tenha consciência do que está fazendo. (Maria Amélia, 50 anos).
Ela não faz uma crítica à intervenção do Projeto ou à sua proposta, contudo, ao
longo de sua fala, vai deixando evidente que a comunidade recebeu as benfeitorias para a
implantação dos quintais produtivos, os equipamentos para o beneficiamento de frutas, as
máquinas de costuras, mas os grupos não assumiram as atividades propostas e a associação
vem tentando continuar a condução deste processo. Ao dialogar com Foucault (1984, p. 277)
me pergunto se esta atitude de Maria Amélia é uma forma de resistência ao saber técnico
dominante que, geralmente, vem sendo imposto de cima para baixo, que se impõe como um
saber mais competente e qualificado e que, usualmente, não valoriza a cultura e os costumes
dos agricultores e agricultoras aprendidos com seus ancestrais nem valoriza a prática
cotidiana, o saber da experiência da agricultora, que vive e tira seu sustento da terra durante
toda sua trajetória de vida. Ela demonstra ter conhecimento sobre a proposta e que realmente
participou das oficinas de capacitação dos quintais produtivos, no entanto, não quis incorporar
esta técnica que estava sendo experimentada pelo grupo nem esta forma de fazer os canteiros.
Ela não confia no que aprendeu.
Maria Amélia demonstrou ter autonomia ao decidir não fazer do modelo e do jeito
que estava sendo feito pelo Projeto e ao resolver continuar plantando as hortaliças nas leiras
191
mesmo contra a vontade e orientação dos técnicos e técnicas. Por outro lado, não participou,
de fato, do cotidiano da associação, ficou na superfície do processo, não mergulhou nas
capacitações nem se apropriou dos seus conteúdos, não assumiu, com consciência de si e de
seu papel, a liderança na comunidade. Ela não tinha controle sobre as situações específicas
que narrou em seu depoimento sobre os problemas enfrentados no cotidiano da associação
nem demonstrou habilidades para envolver e animar as outras mulheres a continuarem
mobilizadas nos grupos produtivos, levando-as, com o seu exemplo desmotivado e de total
desconfiança, a desistir das atividades. Fica a questão de como esperar um maior
envolvimento das pessoas da comunidade se uma das lideranças não assume seu papel
enquanto tesoureira ou como animadora das atividades organizativas e produtivas.
A quilombola Maria das Dores conta que começou a participar do PGV logo no
início, que era uma participação tímida, calada, que só ouvia os assuntos tratados nas
reuniões, mas, com o passar do tempo, foi aprendendo, crescendo e se desenvolvendo no
processo participativo. Ela relembra:
– Antes de 2009, eu participava mais ou menos; eu era secretaria da associação e
fiquei dois anos. Aí, em 2009, foi quando o Projeto Gente de Valor chegou, aí, eu não parei
mais, participava das reuniões, não era muito de participar falando, porque eu sempre fui
assim quieta, mas aí, com o passar do tempo, eu fui me desenvolvendo mais nas reuniões e eu
acho bom e foi com o Projeto, através das reuniões, das oficinas, encontros, que eu fui
pegando o gosto mesmo de participar, de tá em grupo, e hoje não consigo sair até agora.
(Maria das Dores, preta, 31 anos).
Ela relata que participou de vários cursos e encontros, que foi gostando de
trabalhar em grupo e que, dentre todas as oficinas de que teve a oportunidade de participar a
que mais gostou foi a de Sensibilização para o Reconhecimento Quilombola. Assim, diz:
– O que mais me motivou foi quando teve as oficinas que falava sobre a nossa
raça, isso foi o que mais pegou. No início, teve a pergunta, bem no início do Projeto: vocês se
identificam como quilombola? Nós dissemos que não. Aí, com o decorrer, com as
explicações, aí veio as oficinas mesmo falando sobre a questão quilombola que, aí, pra mim,
foi muito importante, porque eu aprendi e hoje eu passo nas reuniões, eu faço leitura do livro
que a gente tem explicando o que é ser quilombola, a importância da gente, pra gente
valorizar nossa raça e como se comportar diante das pessoas que nos discrimina. Porque é
muita discriminação e a gente já estando preparado, é menos, se sente menos desvalorizado.
(Maria das Dores, preta, 31 anos).
192
Maria das Dores lembra que não assumia sua identidade negra nem que era de
uma comunidade quilombola e, na medida em que as oficinas de sensibilização foram sendo
realizadas, as pessoas da comunidade foram se apercebendo e descobrindo a importância de
assumir e valorizar sua origem. Percebe-se que houve aumento da autoestima, da
autoconfiança, do sentimento de pertença e do autorreconhecimento de um ponto de vista
ético-cultural. Ao relembrar as ações do Projeto, cita, no seu entender, a mais importante, que
ficou marcada na sua vida:
– Foi na questão da organização, porque o projeto trabalhou na questão de
organização, da valorização da mulher, que algumas das atitudes da minha vida eu tomei por
conta dos esclarecimentos que eu ouvi e sobre a gente ter em mente o que é se valorizar, já
muda muita coisa na vida da gente e da comunidade também. (Maria das Dores, preta, 31
anos).
Foi durante o processo organizativo da comunidade que ela começou a entender
sua realidade social enquanto negra, mulher e pobre, a conhecer o contexto sociopolítico e ter
um olhar crítico sobre ele. Diz ela:
– [...] o Projeto focar mais na questão da organização, da importância do povo
está unido, tá buscando. Porque, numa comunidade dessa como Maria Preta, se não for o
povo unido como o Projeto sempre falava, se o povo não for unido, não chegava a canto
nenhum. Porque a gente luta tudo por um objetivo, a questão da saúde, da educação, então,
tem que ser o povo junto. Eles participam por isso eles vão pra reunião, dão sugestões,
sugere que a gente vá buscar quando falta água... a questão da água aqui é muito grande, a
falta, e aí, quando está faltando água, vamos lá, manda ofício, quando demora vim, conserta
a bomba, vamos lá que é pro carro vim trazer água. E antigamente não, nós ficava três
meses, quatro meses com sede só pegando água no barreiro, e hoje o povo, não, que nem fica
três dias, demorou três dias, é hora, o povo já vem. Eu mesmo já fico mais relaxada, eu vou
esperar pra vê se alguém diz, e aí a diferença é essa, o povo já sabe cobrar, já quer ajuda,
procura o presidente, me procura, procura até a secretaria também e aí já querem de
imediato. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores fala da sua vivência associativa com orgulho, com satisfação
entre seus membros, com consciência de pertencimento da comunidade; tem confiança e
crença nas pessoas da associação. No depoimento acima, comenta sobre a união do grupo e a
luta coletiva na busca de efetivar ações por direitos antes negados como o acesso à água.
Ressalta a participação dos membros da associação nas reuniões, sugerindo, dando opinião e
193
associação. No relato, fica evidente que a associação foi fortalecida com o aporte de recursos
vindos do PGV para que as atividades planejadas nos planos de desenvolvimento fossem
executadas pelas associações parceiras. Ela diz:
– Aí veio o Projeto, aí aprontou o projeto. Aí, graças a Deus em primeiro lugar, o
Projeto ajudou demais, demais, a associação. Porque tinha a associação e tinha pessoas que
já estava desacreditando, não vinha projeto nenhum e não tinha nada, aí o Gente de Valor
chegou na hora certa. Tem a sua hora, aí foi chegando o Gente de Valor e foi trazendo os
projetos, conseguimos kit de informática, conseguimos pessoal, sete pessoas pra fazer o
curso, já foi pra desenvolver, fazer uma ata digitada, um recibo, um negócio pra ajudar a
associação mesmo já e eles aprender. E aí foi chegando o kit forrageira, foi chegando a
cisterna, e aí foi chegando cisterna de quintal, que é essa das hortas, e tudo, e viveiro e mais
coisa, e aí foi que chegou também o incentivo das mulher, porque elas, tadinha, trabalhava,
trabalhava, reunião, reunião e nada de ganhar o pão. Aí veio um curso, a primeira vez, seu
Florisvaldo já trabalhava, aí disse assim: “Vamos fazer um curso do aproveitamento do
caju”. No início, nós dizia: “Oxe, oxe, oxe, Valei-me, Nossa Senhora, aproveitar o caju
agora!”. Já aproveitava a castanha, e a castanha era dos atravessador, vendia pro Ceará,
pra Aracaju, aí conseguiu essa unidade na luta da associação com a comunidade. (Maria dos
Prazeres, parda, 32 anos).
Ela se sente preparada para desempenhar sua função como presidente e coordenar
a minifábrica e afirma ter confiança na força da comunidade e do apoio que ela tem da
associação:
– Em primeiro lugar, Deus dá capacidade à gente, a gente pega essa capacidade
com força e confiança das pessoas da comunidade que confia, que dá todo apoio. E se tiver
qualquer coisa a gente já grita a eles: “Olha, pessoal, tem isso, como vamos fazer?”.
[Alguém responde:] “Vamos, você faz isso, você entre dentro, você vá buscar, você corra
atrás, você e outras, não sou eu, então vamos fazer!”. Primeiro lugar, a confiança do pessoal
da comunidade. Então, eu me sinto capaz. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Com autoconfiança e se sentindo capaz para desenvolver seu trabalho na
comunidade, Maria dos Prazeres diz que só não se sente preparada para entrar na política
partidária, porque não acredita nela, acha que faz mais estando na comunidade:
– Só não da questão política, porque o político não faz nada, eles diz que faz e
não faz. E se, pra mim entrar na política, eu ter o poder de tá lá, ver a comunidade sofrendo,
precisando e não fazer nada, é melhor não entrar. Nem entre na política porque não cumpre
tudo que diz, então é melhor ser uma pessoa de comunidade, faz muito mais coisas do que o
195
político. Muito mais coisas, muito mais coisas nós conseguimos, do que o prefeito que passou
seis anos no município, não fez nada, nem uma estrada passou, nem uma máquina passou na
estrada. Nós conseguimos muito mais. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres fala com orgulho das conquistas dela e da comunidade e conta
como vem se sentindo empoderada: “Eu me sinto uma mulher poderosa e eu acho que as
meninas que ficam com a gente da associação, têm muitas, poucas, que ainda não se sente,
mas 80% delas já são ‘empoderosas’ já, se dá um grito de luta, tá na luta”. Compara-se à
Presidente Dilma Rousseff:
– Eu sinto hoje, não assim como só, não sei, não, Deus que sabe. Não sei dizer
com palavras bonitas, mas sei dizer assim: a gente se considera assim, eu, nós, a gente, as
meninas, Dilma [presidenta do Brasil], porque Dilma tem dinheiro, mas nós temos muito mais
poder do que ela, muito mais vontade, o que nós qué fazer, nós consegue, e às vezes Dilma
diz uns negócios lá na televisão bonitinho, tá, tá, tá, só no papel [risos fortes e altos]. (Maria
dos Prazeres, 32 anos).
Ela tem outro diferencial, em relação às outras pesquisadas, que possibilita seu
maior empoderamento: além de ter começado, ainda adolescente, a militância em movimentos
de igreja e logo depois no movimento sindical, também conseguiu estudar e concluir o ensino
superior. Para tal, contou com o apoio de sua mãe e irmã para pagar a faculdade em Cícero
Dantas e cursar Pedagogia. Em suas palavras:
– Eita, que do Estado é difícil. A faculdade a gente precisava e aí, de vez em
quando, o pessoal me chamava, uma, duas, três semanas... [Eu:] “vá ficar no meu lugar”. Aí
eles pagavam, aí eu disse: “Eu vou estudar mais”. Aí o marido disse: “Eu não posso, não,
mas eu ajudo”. Aí ajudou. Minha mãe já era aposentada, minha irmã é professora, aí [ela]
disse: “Você vai estudar comigo”. Aí eu disse: “Eu não vou, não, porque eu não tenho
condições”. Aí ela disse: “Vai”. Na verdade foi minha mãe e minha irmã que me ajudou eu
concluir, porque, tinha vez que eu chorava e dizia: “Não vou mais, perdi todo meu dinheiro e
eu não tenho mais dinheiro pra pagar”. Aí elas iam e pagava, mãe dividia a metade e as duas
pagavam. [...] Pra ir não tinha dinheiro pra pagar passagem [até Cícero Dantas]. Ela
comprou uma motinha [motocicleta], tirou a carteira e foi nós duas, ia e vinha nós duas.
Agora os trabalhos, eu fazia e dava pronto no papel, e aí nós, aí foi quando Deus ajudou e
chegou o computador [da associação], aí digitava. [...] Já tava participando da associação. A
gente foi e estudou, mas foi ajuda de Deus e de minha família, minha mãe e minha irmã,
porque senão eu não tinha estudado, não. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
196
Maria dos Prazeres sabe que o conhecimento lhe dá poder e que, em sua trajetória
de vida, sempre teve muita luta, trabalho e sacrifício. Ela continua estudando e está fazendo
uma pós-graduação na área de educação, porém, não deixa suas origens de agricultora e
continua plantando “Na roça, trabalhava meio período como antes, teve muita ajuda, porque
eu já plantava mandioca, feijão”. Ela conta que a terra não é sua nem do seu marido, mas do
sogro.
Maria da Paz comenta que começou a participar das reuniões do PGV logo no
começo, contudo, teve dificuldade em continuar: “No começo das reuniões, minha mãe
estava doente, ela tinha câncer, eu estava grávida. Aí eu acabei desistindo, depois eu voltei
tudo de novo, quando a criança nasceu, minha mãe tinha falecido e tô até aqui. E não
pretendo desistir, não”. Ela é a tesoureira da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da
Fazenda Pedrinhas. Depois que voltou a participar do Projeto, logo entrou no comitê84 e
conselho85 formados na comunidade. Tem um forte engajamento na organização da
comunidade, sempre está à frente das atividades desenvolvidas e, por seu compromisso com
as questões da associação, recebe o apoio das pessoas da comunidade. Em suas palavras:
– No começo, eu não participava da associação, não. Essa associação, é desde
2000 que ela é atuante, só que a gente aqui não era sócio da associação. A gente veio atuar
mais agora depois do projeto. Só que, quando começou vim o primeiro pessoal, aí foi
formado os conselhos e comitê, aí já me botaram já lá direto no conselho, no começo. Aí já
fui atuando, isso foi em 2009, 2010, quando começou as primeiras visitas, por aí... Aí acabou,
veio a eleição, o pessoal não queria se candidatar [...] aí queriam me botar como presidente;
eu não sabia nada de associação, aí eu não vou não, ainda vou como tesoureira [risos], que
também não era boa função, né. Mas eu já tô aí, é bom que eu também vejo o que está
acontecendo, o que não está acontecendo, o que a gente está comprando e o que não está
comprando. A gente tem a fiscalização, que fiscaliza a gente, pelo menos, eu sou tesoureira,
mas eu tô me fiscalizando, e fiscalizando para onde está saindo o cheque, eu mesmo assino,
assim, eu sei para onde vai cada cheque pago. (Maria da Paz parda, 32 anos).
Ela relata que, dentre as muitas capacitações promovidas pelo Projeto, a que mais
gostou foi a primeira, sobre Gestão de Convênio, na qual aprendeu a fazer prestação de
contas, preencher um cheque, calcular e preencher guia de imposto, fazer cotação de preço e
até licitação. Segundo ela, quando foram preencher as primeiras guias de imposto, não se
84
Era como a comunidade se organizava para debater os problemas e soluções referentes ao PGV.
85
Os conselhos subterritoriais eram formados com os representantes dos comitês de cada comunidade
que fazia parte do subterritório (reuniam de três a quatro comunidades próximas).
197
sentiam seguras e nem confiavam se realmente tinham aprendido certo: “[No começo:] Olha,
ajuda aqui, que a gente está meio com medo de fazer [...] Mas hoje a gente já não tem mais
medo de preencher, mas as primeiras a gente tinha”. Ela garante ter aprendido e diz: “A
gente nunca aprende tudo num dia, dois dias, mas uma experiência fica e se a gente atua,
acaba aprendendo o restante”. É visível que tem habilidade e domínio na gestão
administrativa e financeira da associação. No entanto, ela conta que, geralmente, não é ela que
preenche o cheque, mas a presidente. Quando lhe perguntei se já assinou algum cheque em
branco, ela me respondeu um pouco brava: “Não, não. É porque eu fazia as cotações, era
tudo eu, então, eu ia lá e fazia as cotações, chegava lá, dizia o menor preço é esse aqui, a loja
é essa aqui, você vai preencher com esse aqui. Aí, ela preenchia e eu assinava”. Ela fala que
a responsabilidade é grande, então, eu lhe perguntei se deu medo assumir o cargo de
tesoureira, ao que responde: “No começo você fica sozinha, como é que eu faço isso? Mas
você acaba se juntando com o pessoal. Eu nunca fazia nada sozinha quando queria fazer
alguma coisa, Geraldo (chefe do escritório de Cícero Dantas) mesmo, coitado, eu acabava
ligando, nunca assinava nada”. Ela continua contando que perguntava: “Como é que faz isso
aqui?, pra não dá muita coisa errada. Mas a nota fiscal mesmo, a gente nunca teve problema
com nota fiscal”. A autoestima e o sentimento de autovalorização estão presentes na fala e na
postura de Maria da Paz quando trata da sua participação e o quanto se sente capaz com o
conhecimento aprendido para exercer seu cargo na associação:
– Me sinto [capaz], porque antes eu não sabia nada, se alguém me mandasse
fazer qualquer coisa dessa, eu não sabia nada, fazer uma cotação. As questões das cotações
servem até para minha vida pessoal, que tudo que eu vou fazer, eu faço cotações. Eu já sei
qual a loja que custa mais barato, pelo menos, dentro da minha cidade, eu já sei. Por mais
que eu já sei que não seja tão barato, mas eu já sei que custa menos que as outras, aí eu já
vou direto pra ela. Serviu pra vida pessoal, além do serviço. E eu me sinto bem fazendo
alguma coisa útil, mesmo sem ganhar dinheiro, mas para mim é a melhor coisa que eu faço
(Maria da Paz, parda, 32 anos).
O reconhecimento das pessoas e do grupo faz com que Maria da Paz se sinta
valorizada e útil: “Me sinto, graças a Deus, isso faz com que eu me sinta melhor ainda, mais
valorizada, porque antes eu não tinha muito o que fazer, era em casa, chegava o inverno, ia
arrancar um feijãozinho, era o trabalho que o pessoal tinha”. Maria da Paz gosta do trabalho
na comunidade, sente-se mais sociável e percebe mudança nela mesma: “Ah, eu sinto isso,
porque, antes, pra falar, abrir a boca, era difícil, pra falar palavra, hoje eu já consigo falar,
atender o pessoal, consigo ligar para o pessoal”. Ela comenta que a mudança dela e das
198
outras pessoas foi grande e recorda que, no início, era insegura, tinha vergonha de ligar e
pedir ajuda que até quando o celular tocava, ficava assustada: “O celular tocou: ‘É João?’. A
gente já ficava assustada. Hoje, não, a gente já está tudo calmo, já sabe por onde a gente
começa, por onde vai terminar. Antes, a gente não sabia ligar para o pessoal ajudar no que a
gente está precisando”.
Maria da Paz demonstra que se sente bem em participar e atuar na comunidade. E
sente orgulho do que vem fazendo na associação e por ser valorizada pelas instituições, que
sempre a convidam para participar das reuniões. Ela fala como vê sua atuação:
– Eu me acho até um pouquinho importante, porque o pessoal me conta, me liga:
“Tem uma reunião aqui, quero que você participe”. Vai ter alguma coisa [dizem:] “Eu quero
que você participe”. Tudo que vai acontecer... O sindicato me liga, a secretaria me liga, o
Departamento de Agricultura me liga, a Secretaria de Educação me liga. Que antes eu não
tinha nenhum contato com esse pessoal, o pessoal do CRAS me liga, eu não tinha nenhum
contato antigamente com esse pessoal. Aí faz a pessoa se sentir um pouco melhor dentro de
uma comunidade, [você] só conhece o pessoal da comunidade e depois você está sendo
procurada por todas essas pessoas, para participar de reuniões e capacitações. (Maria da
Paz, parda, 32 anos).
Quando ela começa a falar das ações que o PGV desenvolveu em sua
comunidade, recorda a atividade que achou mais importante e aproveita para fazer um alerta
ou uma crítica, de forma sutil, sobre a compra das máquinas de costura:
– É o corte e costura, eu ter aprendido a costura. Foi, mas a questão é que as
máquinas tão dando um pouco de trabalho e eu planejo comprar uma. Porque, na questão
das máquinas, tá aí, quando tiverem em outro projeto, vão vê a qualidade das máquinas... As
que a gente tem, a qualidade não é boa. Você troca de tecido, o ponto folga, aí a gente tem
tudo com o ponto folgado. Aí eu estou vendo o rapaz, para poder vim aqui, para está
ajeitando os pontos delas. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
São perceptíveis o empoderamento individual de Maria da Paz, seu crescimento
pessoal e social e o reconhecimento do seu trabalho, sempre à frente das ações coletivas na
comunidade, e de sua participação ativa em vários conselhos municipais. Mas, enquanto
liderança, assume ou centraliza nela todas as ações, não conseguindo tecer com outras pessoas
uma estrutura organizativa que crie uma dinâmica interna na associação, que leve a um
processo organizativo mais estruturado, com compartilhamento de tarefas e de poder de
decisão, mais comprometido não só com as questões individuais, mas, também, com as
questões coletivas. A interação entre os membros da associação é insuficiente para criar laços
199
casa. Maria de Lourdes também afirma que o marido, quando está em casa, a apoia,
assumindo os cuidados com os filhos e algumas tarefas da casa, para que ela possa participar
do grupo:
– [...] quando ele tá aqui, quando eu venho trabalhar ele fica com os meninos. E
ele, tando dentro de casa, ele me ajuda bastante, só não faz lavar roupa, ele cozinha, lava
louça, limpa a casa melhor do que eu. Todo mundo pode vê, ele não tem vergonha do que ele
faz. Roupa ele não lava, que é trabalho de mulher, ele não lava, de jeito nenhum. Agora,
coisa de casa ele faz tudo. Quando eu vou pra feira, quando ele tá em casa, eu já demoro pra
achar tudo limpo, quando eu chego tá tudo limpinho. (Maria de Lourdes, branca, 41 anos).
Maria de Lourdes, dentre as pesquisadas, é a que teve mais relacionamentos
conjugais (quatro), mas esta aparente liberação sexual não lhe impede de continuar reforçando
relações de gênero patriarcais. Mesmo tendo autonomia de fazer suas escolhas com relação à
sua participação no Projeto e na sua vida pessoal, de estar participando ativamente do grupo
de artesanato do fiapo na busca da sua independência econômica, mesmo questionando a
divisão sexual do trabalho em seu espaço doméstico, ainda não tomou consciência das
injustiças que padece por ser pobre, mulher e agricultora ao ponto de romper e mudar as
normas e regras de gênero.
Maria do Sossego e Maria dos Anjos afirmam que os maridos não as proíbem
nem interferem nas suas participações, todavia, fica evidente em seus depoimentos, que o
espaço doméstico continua sendo obrigação exclusiva delas e para que participem das
atividades do grupo de bordado, precisam deixar tudo pronto em casa. Observemos o relato de
Maria do Sossego:
– [O marido] não fala, não. Não, ele não reclama, não. Onde, até mesmo, assim,
eu sou uma pessoa que não deixo minha obrigação de casa, sempre eu cuido em fazer, não é
tudo, não é que eu vou dizer que eu faço tudo direitinho, eu estou[estaria] mentindo. Trabalho
aqui, saiu daqui, uma hora, aí quando eu chego em casa, tenho a unidade [galpão multiuso].
Lá, eu acordo cedinho, muitas vezes. Apois, até mesmo... eu saio daqui uma hora e quando eu
chego lá, as meninas – está de doze, onze horas – já estão no salão. Aí, o que é que eu faço?
Acordo cedo, cuido, faço o café, já faço almoço, deixo pronto, quando chegar lá, almoço e
vou para a unidade. E quando eu venho da unidade, dependendo o serviço, é quatro horas,
quatro e meia. Aí, eu vou cuidar da janta e vou adiantar o almoço para o outro dia. É assim,
eu nunca gasto, e, muitas vezes, encho meus potes de noite com a lanterna. Eu sei que nesses
dias que a gente está fazendo fardamento, eu encho meus potes de noite com a lanterna, o
balde na mão e a lanterna de outro, por causa das cobras, dos sapos, mas eu nunca deixo
201
minhas obrigações de casa por eu estar no artesanato; eu sempre tento fazer o básico. Na
verdade, eu não vou dizer que eu faço de um tudo, se for assim, eu tô mentindo. (Maria do
Sossego, parda, 38 anos).
Maria do Sossego e Maria dos Anjos integrantes do grupo do artesanato do
bordado, em relação a Maria Alice, estariam desempoderadas. Apesar de todas terem
participado de reuniões, dos processos de formação e das capacitações específicas de corte e
costura, pintura e outras, estas não foram suficientes nem tinham o objetivo de criar condições
para desencadear um processo de conscientização autorreflexivo que levasse estas mulheres a
se empoderarem e a quererem mudanças no exercício dos papéis tradicionais impostos ao
sexo feminino no espaço doméstico. Realmente, o empoderamento não é uma técnica que se
aprende em um curso, mas o conhecimento vivencial aprendido, a troca de experiência entre
as mulheres criando laços de amizade e uma dinâmica organizacional é que podem
impulsionar um processo de empoderamento das pessoas envolvidas e do próprio grupo
levando-as a que mudem a si mesmas. O que diferencia Maria Alice das demais, levando-a ao
empoderamento é a sua vivência de grupo, no artesanato do fiapo e na associação, e porque
seu marido também está diretamente envolvido, é uma das lideranças, além da sua
personalidade e trajetória próprias.
Maria Esperança, uma jovem que foi ADS do Projeto Gente de Valor, apresenta
outra dificuldade que enfrentou, enquanto mulher e mãe, para participar dos encontros de
formação promovidos pelo Projeto. Diz ela: “Quando foi pra ir pra Salvador, meu Deus,
deixar meu filho e ter que passar uma semana sem ver meu filho... Eu não vou conseguir,
não, e foi assim, um evento muito bom em Salvador. Eu senti muito em Salvador, mas valeu a
pena”. O processo de empoderamento traz sofrimento, mexe profundamente nas pessoas, em
seus valores, conceitos, cultura, hábitos, regras e normas de gênero. Na medida em que este
processo vai avançando, a pessoa sente que está crescendo, que sua presença é relevante e se
conscientiza das oportunidades que tem e dos recursos e instrumentos adquiridos durante o
processo. Ela fala: “Porque eu tive coragem de começar a viajar e deixar meu filho, eu
pensava: ‘meu Deus, eu não estou deixando meu filho para fazer coisa errada, eu tô deixando
meu filho a trabalho, e esse trabalho vai me ajuda no meu crescimento e no crescimento dele
também’”. Em seu processo, estava sempre buscando argumentos para se convencer da sua
decisão e de que o caminho escolhido lhe trouxe mais oportunidades e recursos:
– Tanto na parte de aprendizagem de vários cursos, porque, assim, nós ADS
passamos por cursos que jamais teria condição de pagar, as semanas que a gente passou em
202
Juazeiro, de preparação [sobre] como trabalhar, como incentivar as pessoas no campo, meu
Deus, foi coisa, foi muito bom, muito importante. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Observa-se que a capacitação de ADS foi determinante para desencadear seus
questionamentos e aprendizados, contribuindo para prepará-la enquanto liderança
comunitária. A grande dificuldade encontrada foi ter que viajar para passar dias fora de casa,
longe dos filhos, além de ter que convencer o marido e o pai:
– Até no meu casamento mudou tudo pra meu marido ter que aceitar eu passar
uma semana fora, três dias, tá viajando, às vezes chegava o pessoal do projeto, de carro,
homens que não conhecia: “Você é que é a ADS?”. [Eu:] “Sou”. [Eles:] “Você pode me levar
na comunidade?” [Eu:] “Posso”. Então teve aquela dificuldade, mas, graças a Deus, isso foi
superado. Teve crítica: “Como é que uma mulher casada passa três dias fora de casa, deixa
o filho com a mãe, o marido viajando, isso é um absurdo.” Eu disse: “Olhe, o que eu faço
quando você não tá, eu faço quando você tá, isso você pode ter certeza; se você chegar em
Salvador sem eu saber, porque minha proposta é participar da reunião, é aprender para
minha vida e para as pessoas que eu tô representando”. Então, o que o projeto mudou na
minha vida vai ser pro resto da minha vida. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
No depoimento de Maria Esperança, fica muito evidente que um processo de
empoderamento teve origem dentro dela, levando-a a refletir sobre suas relações de gênero e
sobre a sua situação cotidiana vivida dentro da relação familiar. O PGV, através de seus
técnicos e técnica, serviu como catalisador inicial, mas a extensão e o ritmo do processo de
empoderamento dependem exclusivamente das pessoas e suas organizações, se elas mudam a
si mesmas (ROMANO, 2002, p. 6). Assim, ela mostra a capacidade de discutir e analisar
sobre sua participação no Projeto e as mudanças ocorridas consigo mesma:
– A Maria Esperança de 2009, quando iniciou o projeto, e a Maria Esperança de
2013, eu acho que ela só tem de Maria Esperança só o nome, porque mudou muito, porque
antes eu tinha trabalhado, mas, assim, ensinando a jovem e adulto na própria comunidade e
era fácil, saía de casa e tava em casa pertinho. Mas a maior dificuldade foi pra sair de casa e
a gente, depois que é mãe, tem que aprender uma coisa, que o melhor pra vida da gente e
pros filhos, tem que está apta para sair de casa e passar a semana fora, porque a gente sabe
que está fazendo o melhor pra gente e pros filhos também. E assim, hoje, eu não gostava de
reunião, chega me dava dor de cabeça quando falava de reunião. E hoje meu marido diz que
eu já me pareço com uma reunião, só falo em reunião. Meu filho, cada reunião que eu
aprendo um pouquinho e quando ajunta aquele pouquinho, se torna uma grande coisa.
(Maria Esperança, preta, 28 anos).
203
Além de participar da associação e dos quintais produtivos ela faz parte do grupo
de apicultura cuja maioria é de homens. Ela conta que, antes do Projeto, achava que tinha
atividades só para homens, só que não pensa mais assim. Quando pergunto se apicultura é
uma atividade só para homens, ela responde:
– Não. Eu acho que a atividade de apicultura é uma coisa pra todos os gêneros,
mulher e homem. Mas, antes do projeto, eu via algumas atividades só pra homem, mas,
depois do projeto, com a orientação sua, Beth... O projeto sempre tava nas reuniões
incentivando, falando que as pessoas tinham que aprender, que antigamente mulher, homem
trabalhava e mulher ajudava... Depois do projeto eu sentei pra pensar: “Meu Deus, tanto que
mulher trabalha. Homem trabalha e mulher ajuda – isso é um absurdo, pelo amor de Deus”.
Eu comecei a conversar com meu marido: “Você trabalha, eu também trabalho, meu filho.
Eu tô estudando, eu tô trabalhando, quando a gente chegar em casa você vai ter que me
ajudar, porque você tá trabalhando lá, você faz uma coisa só na roça, eu tô trabalhando em
três comunidades, aí eu chego em casa, tem menino chorando, querendo minha atenção,
querendo comida, querendo que eu fique com ele no braço, tem janta pra fazer pra você e
você fica assistindo televisão, não dá, não.” Aí, nós começamos a conversar e mudamos
nossa visão. E, assim, depois das reuniões que as mulheres participaram com você, Beth, e
Carla e outras pessoas que vieram do projeto, mudou uns 80% nas mulheres, porque elas
começam a participar das reuniões, porque antigamente ia poucas mulheres, ia mais homens.
E, na apicultura, quando começou, só era eu de mulher. E depois eu fui conversando com as
meninas, incentivando e já têm umas mulheres no grupo, estão bem animadas. (Maria
Esperança, preta, 28 anos).
Maria Esperança não só levou a discussão da divisão sexual do trabalho para
dentro da sua relação conjugal como também começou a influenciar outras mulheres a
participarem junto com ela de uma atividade de grande interesse dos homens da comunidade
– a apicultura –, por ser rentável e, por este motivo, quase de total domínio masculino. Ela
começa a perceber o que tem por trás desta construção: manter as mulheres subordinadas aos
homens e delimitadas ao espaço doméstico, longe de atividades que lhes proporcionem maior
retorno econômico e as leve para o espaço público seja como cooperada ou integrada na
comercialização do produto. Ela se sente comprometida não só em integrar as mulheres nas
atividades produtivas rentáveis, mas também quer mudanças sociais que não incidam de
maneira diferente em homens e em mulheres reiterando assimetrias e dominações.
Neste sentido, Maria Esperança sinaliza na direção de um modelo novo de
desenvolvimento rural baseado na agroecologia, que modifique aquelas relações de poder
204
filho, não só pela questão da alimentação e educação, porque a gente dá uma educação em
casa e o mundo dá outra”. No contexto social, as dificuldades para educar os filhos nesta
sociedade são motivos para ela não mais ter filhos. Apesar de o corpo ser dela e de conseguir
convencer o marido sobre isto, ela reconhece a desigualdade existente na sua relação
conjugal, pois o marido deixa sob sua responsabilidade o controle para evitar uma possível
gravidez. Ela conta dos embates com o marido quanto aos métodos para não engravidar:
– Sim, quando minha filha nasceu, como foi um parto cesário, era pra mim ter
ligado, mas eu não estava preparada para fazer uma ligação e não aceitei. Aí, então, durante
um ano, eu usei o preservativo, que é a camisinha, só que depois meu marido não quer mais
usar o preservativo, mesmo sendo o melhor método de se evitar uma gravidez e vários
problemas como doenças sexualmente transmitidas e até de outras formas também, mas, para
evitar problema, eu tô usando um anticoncepcional. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Nessa disputa, nessa relação de poder cotidiana, ela ainda se encontra em
desvantagem, pois, mesmo não concordando em ter que tomar anticoncepcional e preferindo
usar camisinha, continua fazendo as vontades do marido. Não acha justo ter que tomar
remédio já que ele fica em casa poucos dias:
– Eu acho desumano, converso com ele que não é justo ter que tomar remédio
durante um mês pra ele ficar em casa, quando ele passa três mês [em Recife/PE,
trabalhando]. Ele tem direito de 15 dias, passa 15 dias em casa ou não, quando ele passa 15
dias, ele tem direito durante um mês, se ele quiser vim em casa, ele pode, por conta própria.
Eu tenho que tomar remédio durante um mês pra ele passar dois dias em casa, eu não acho
justo. (Maria Esperança, preta, 28 anos).
Maria Esperança vive um rico processo de empoderamento individual e um
dinâmico e comprometido processo organizacional, mas ainda continua travando batalhas
para ser ouvida, para que sua vontade seja respeitada por seu marido.
Maria das Dores também relata as relações de gênero dentro da família e nos
conta que um dos motivos da sua separação do marido e de sua emancipação, foi o
envolvimento dela no trabalho da comunidade:
– Foi um dos motivos, mas não atrapalhou. Foi um dos motivos, assim, na
questão da valorização que eu não tinha em casa, eu mulher, porque assim, tem coisas que a
gente ouve do marido e a gente fica louquinha dentro de casa, e era do jeito que eu estava
ficando, o meu psicológico tava zero. Eu pensava assim: “Eu estudei, eu preciso trabalhar,
eu preciso criar meu filho e do jeito que tá não dá”. E eu acho, com a minha participação
desde o início do Projeto, só contribuiu pra eu ser uma mulher, assim, com a mente mais
206
aberta, não ficar assim nesse mundinho só, na Maria Preta só, sem conhecer um computador,
sem conhecer livros, sem conhecer lugares, só pra isso, mas na questão do relacionamento
não atrapalhou, não, só me ajudou. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores viveu doze anos casada sob o domínio e controle de seu marido,
e agora, que está separada, começa a experimentar o poder de decidir sobre sua própria vida:
– É diferente. Assim, que tá recente, eu ainda me sinto um pouquinho presa, pra
mim ir a algum lugar, eu tinha que pedir e agora não, eu tenho que pensar, se tiver, por
exemplo, uma reunião ou ir à igreja, eu vou levar meu filho, só eu e ele agora, então eu vou,
eu me arrumo, arrumo meu filho e a gente chega e pronto. A gente chega, se deita, não tem
discussão, não vou ouvir o que eu ouvi antes, e pra mim tá muito bom, não sei daqui pra
frente como é que vai ser. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Ela continua falando sobre seus sentimentos, que agora é dona de si e por isto tem
esse sentimento de liberdade:
– É uma liberdade bem diferente, porque assim, eu sempre fui uma pessoa que
tinha dono, quando eu estava em casa era: “Pai!”... pedia mil e uma vez pra ir num lugar e
depois ele não deixava. Depois saí de casa e fui direto pro marido. Ele sempre, pra onde eu
saía, pra igreja ou pra reunião, e agora não, eu posso ir pra onde eu quiser. Sendo que pra
onde eu quiser eu posso levar o meu filho, ou se for importante, eu deixo mais mãe, é só essa
questão, mas a minha liberdade de ir ou de tá agora, pra mim tá muito bom. (Maria das
Dores, preta, 31 anos).
Maria das Dores está experimentando mudar as relações de gênero dentro da
família, ao deixar de ser subjugada pela dominação masculina, exercida, primeiro, pelo pai e,
depois, pelo marido. Para isto, ela aproveitou a oportunidade de participar na organização
comunitária, exercer cargos dentro da associação, sentir o privilégio do reconhecimento junto
à comunidade pelo seu compromisso e desempenho no desenvolvimento das suas atribuições.
Começou a sentir que, ao participar da vida da comunidade e das capacitações, não só
aprendia os conteúdos específicos, mas tomava consciência da sua realidade de mulher negra
e pobre subordinada ao marido e da sua situação de desigualdade de poder na relação
conjugal. Ao entender o que lhe oprimia, mesmo com medo e insegurança, resolveu
experimentar o poder de decidir ela mesma sobre sua vida.
O trabalho que ela vem desenvolvendo na associação e no grupo de artesanato do
bordado tem contribuído para uma maior integração na comunidade e para o seu
reconhecimento junto aos membros do grupo: “Eu participo da reunião com eles, quando
precisa ir para reunião fora, eu vou, trago informação para a comunidade, eu mobilizo a
207
comunidade. [...] Aí o povo todo se junta, eu acho que é por isso”. Ela demonstra ter um forte
sentimento de identidade e de pertencimento à comunidade.
Em seu depoimento, ressalta, ainda, a preocupação em melhorar a situação social
e econômica dela e da comunidade e acredita que esse processo de organização vivido na
comunidade com o Projeto e, agora, com o reconhecimento da comunidade como quilombola,
traga melhorias para a comunidade: “[...] o que a gente espera de ter esse reconhecimento
como quilombola, a gente espera muita mudança, que tenha uma educação melhor, que
chegue algum projeto que gere renda pra gente, pra gente trabalhar”. Maria das Dores está
lutando, junto com a associação e com a comunidade, por seus direitos e acredita que o
reconhecimento da comunidade como quilombola possibilite o acesso a outras políticas
públicas: “Acesso a algumas políticas, sim, pelo que eu leio, pelo que eu ouço, pelas reuniões
que eu participo, [...] mas se a gente buscar também, porque se ficar aqui esperando nada
acontece”.
Maria das Dores tem habilidade de discutir e de avaliar a intervenção do PGV,
demonstra crer nos membros da associação e da comunidade e, quando pergunto se com o
término do Projeto a comunidade não vai mais lutar, ela responde com muita segurança e
firmeza:
– Vai, vai mesmo, o Projeto acabando, porque a mente das pessoas ficou bem
trabalhada. A participação do povo nas reuniões agora aumentou e pelo que a gente ouve
nas reuniões, nos encontros, não só nas reuniões, ter a gente morando junto, aqui sempre se
encontra, nas conversas o povo diz o que tá precisando, o que deve buscar. Eu acho, assim, o
projeto trabalhou bem as mentes das pessoas. Precisa de uma estrada, o professor está
faltando: “Vamos lá, o que nós vamos fazer, o que aqui nós faz?” Aí, a gente conversa. Aí, eu
acho, como o projeto tá encerrando, assim, a liderança, que não é só eu que tô assim na
frente, com a liderança, tando com a mente bem focada no que a comunidade precisa, não é
só o que eu preciso, é o que a comunidade precisa, aí eu acho que dá pra levar adiante e tá
buscando. (Maria das Dores, preta, 31 anos).
Para ela, os agentes públicos cumpriram seu papel de facilitadores do processo de
empoderamento das pessoas, das mulheres, quando possibilitaram um espaço de discussão e
reflexão coletiva em sua comunidade sobre a realidade histórica vivida pelo povo negro na
sociedade. Porém, para os técnicos e técnicas do Projeto, o objetivo maior é o
desenvolvimento rural, é erradicar a pobreza e, para tal, o caminho é inserir as mulheres nos
espaços organizativos e, principalmente, nos produtivos seja no beneficiamento de frutas, nos
quintais produtivos e até no artesanato.
208
ao tentarem mudar a posição que têm em suas famílias. Acredito que este processo é resultado
da ação coletiva deste grupo de mulheres, deste suporte emocional, pois, juntas, estão
diminuindo o sentimento de impotência, de dependência e, muitas vezes, até de solidão.
Conclui-se que todas as mulheres investigadas se empoderaram, no nível
psicológico ou individual, em graus diferentes. Elas se empoderaram ao participar das
atividades produtivas e organizativas, contribuindo para as discussões, apropriando-se dos
conhecimentos, tecnologias e processos organizativos.
Nesse processo, conquistaram autoestima, autoconfiança, autovalorização e o
reconhecimento das pessoas das comunidades. No caso específico das mulheres agricultoras
aqui estudadas, estas experimentaram muitos sentimentos diferentes no percurso, desde
insegurança, incertezas, o prazer de estar com as outras mulheres, conflitos e disputas em casa
e na associação. Conclui-se, também, que, apesar da integração na comunidade e do
reconhecimento junto ao grupo, a maioria destas mulheres ainda não se empoderou ao ponto
de redefinirem as normas e as regras de gênero, principalmente no âmbito doméstico-familiar.
210
porque ela sabia que valia a pena. Tanto que ela era muito criticada, que a família dela
falava que ela estava subindo e descendo e não vai arrumar nada. A gente escutava muito
isso quando a gente passava o grupo, ia andando. As outras famílias que faziam parte
também ficavam trabalhando em suas casas. A gente falava: “A gente também tem o que
fazer em casa, mas a gente vai buscar melhoria pra gente”, a gente não pode ficar parada em
casa só naquilo. Hoje, eles querem voltar, mas a gente também vamos pensar direitinho como
que é que eles vão voltar [...]. Aí, eu acredito que ajudou muito nessa questão, sabe, de
melhorar assim, mulher não só pensar em parir todo ano, ficar em casa lavando, cozinhando
para o marido quando o marido tá aí. E quando ele não está, é como se ele estivesse, a
mulher não pode sair ali no portão porque o marido não deixa ou que ela não pode sair pro
povo não falar, mudou muito o Projeto. Hoje nós mulheres já sabemos cobrar nossos
direitos, o Projeto ajudou muito a gente nisso. (Maria Alice, parda, 25 anos).
O grupo de artesanato do fiapo é composto de 15 pessoas, dois homens e 13
mulheres, que já têm uma dinâmica organizativa interna em que refletem, planejam e decidem
em conjunto. Maria Alice é uma das lideranças do grupo e, na conversa com ela, e, depois, ao
analisar seu depoimento comparando com os dos homens e das outras mulheres artesãs do
grupo, percebo seu maior grau de apropriação de novos conhecimentos, seu maior
envolvimento com as tarefas e a mobilização do grupo e também o desenvolvimento da
consciência crítica. Ela fala como se sente, ao assumir seu cargo de secretária na associação:
– Eu me sinto mais responsável, né. Assim não é fácil, trabalhar com gente não é
fácil, imagina aí os meus vizinhos. Mas eu gosto, é o que me anima, é o artesanato e
trabalhar, eu adoro reunião, porque eu gosto de falar, viu. É o que me anima, fazer parte,
sempre, quando tem uma reunião, se eu não falar, eu, prá mim, eu não ]tive na reunião. Às
vezes, eu não gosto de falar muito porque pensam que é assim que só eu quero falar. [Aí
dizem:] ”Deixa Maria Alice falar”. Mas eu quero escutar eles também, o projeto ajudou
nisso, teve gente até hoje é difícil de falar, mas já melhorou. Nas reuniões do projeto vinham
e ficavam tudo quieto, hoje não, tem que falar o que a gente quer, o que a gente sente, desde
o começo eu ensinava. (Maria Alice, parda, 25 anos).
É evidente o processo de empoderamento que vem sendo vivido por Maria Alice,
levando-a a reconhecer estruturas de poder presentes em sua vida e, também, na vida das
pessoas do grupo, porém, ainda é bem pequena a mobilização para, juntas, alterarem as
estruturas sociais existentes na família e no próprio grupo. No entanto, reconheço a
importância do empoderamento individual de Maria Alice para o processo de mudança do
grupo e também do seu próprio marido, já que o empoderamento das mulheres significa
212
também o empoderamento dos homens (LEÓN, 2001). No caso de Maria Alice, esta
afirmação tem mão dupla: é um empoderamento de soma positiva, tanto do lado dela como do
lado de Antônio, o presidente da associação. Ela explica que seu marido também mudou e ela
não sabe se foi por causa do Projeto:
– Não, eu não sei se foi por causa do Projeto, porque ele mudou demais depois do
Projeto, ele não abria a boca, não. Ele era tímido demais, hoje eu tenho até medo que ele fala
tanto. Eu acho que era melhor ele quietinho na dele... Com certeza, ajudou. Assim, tanto que
o Projeto ajudou, que ele trabalhou como ADS no Projeto, durante quatro anos ele
trabalhou, que tem cinco do Projeto. Quem sabe, se não fosse o Projeto, porque os amigos,
porque aqui só eu das mulheres casadas pode dizer que o marido não está viajando, porque
aqui as outras passam o ano todo sozinha e o marido em São Paulo. E, quando eles chegam,
falam: “Vamos, vamos pra lá; o que estão fazendo aqui?”. Vai, se ele não estivesse no
Projeto, ele teria ido. Era pouco, mas ajudava muito, durante os quatro anos foi nossa renda.
(Maria Alice, parda, 25 anos).
Situações criadas pelo Projeto também serviram para revelar mulheres
desempoderadas, como Maria do Sossego e Maria dos Anjos que, mesmo tendo participado
de várias atividades de capacitação, de demonstrarem apropriação de conhecimento específico
(crochê e pintura), de ter assumido o cargo de tesoureira, de grande responsabilidade, no caso
de Maria do Sossego, seus depoimentos revelam fragilidade organizativa, pouca habilidade de
gestão administrativa e financeira, dificuldade de articular com outras pessoas e organizações
na perspectiva de buscar parcerias para comercializar os produtos do grupo e fornecer o
serviço de costura. Maria dos Anjos fala que acredita que o processo organizativo pode
ajudar: “Primeiro, é mais reuniões, mais entendimento porque, muitas coisas veio e a gente
não tinha entendimento, na verdade, do que era que estava vindo para gente, então, eu acho
que faltou mais entendimento do grupo para poder comercializar lá fora”. (Maria dos Anjos,
24 anos).
Maria Esperança, por sua vez, sabe que assumir um cargo de diretoria na
associação exige dela maior dedicação, compromisso, responsabilidade e capacidade para
fazer algo em prol da comunidade. Tem boa integração na associação e também conta com o
reconhecimento e o apoio da comunidade:
– Da associação, antes eu era só sócia, depois do projeto, eu passei a ser vice-
presidente e continuo sendo vice-presidente só; eu não quis assumir a presidência, porque eu
estou estudando e, para ser presidente, exige muito, têm várias reuniões que a gente precisa
participar para poder ajudar a comunidade. E se eu fosse ser a presidente poderia prejudicar
213
a comunidade, por não estar participando diariamente. Passa três dias de reunião, quando a
gente perde uma reunião dessa, prejudica a comunidade, não é isso que eu quero, quero que
a comunidade cresça, que a comunidade se desenvolva e jamais que prejudique. (Maria
Esperança, 28 anos).
Afirma gostar de fazer parte da diretoria da associação: “Eu gosto porque é muito
importante a gente estar ajudando a comunidade”. Na comunidade, existem pessoas que
criticam e as que apoiam e precisam da associação. Maria Esperança exerce um poder que
afirma seu compromisso com as pessoas mais pobres e oprimidas da comunidade, um “poder
para” que a capacita, fortalece e a motiva para o trabalho na perspectiva de um “poder com”
como fonte de luta e conquistas coletivas em prol da comunidade. É evidente, em sua
conversa, o sentimento de solidariedade e o prazer que tem em participar das atividades
coletivas, momentos em que ela pode compartilhar com as outras pessoas o seu conhecimento
acumulado. Alegra-se em lembrar que, com o PGV, veio a tecnologia dos quintais produtivos
que proporcionou às pessoas da comunidade a oportunidade de terem uma renda a mais:
– Como a questão do Projeto Gente de Valor, trouxe esses quintais produtivos
pra o subterritório, aí foi nove, foi dividido nas três comunidades. Por eles não terem
conhecimento direito como ia ser, eles ficaram com medo e também porque eles não
acreditava muito, porque já tinha vindo muitas pessoas falando, só que nunca acontecia. O
que me deixou mais feliz nos quintais produtivos foi uma família, uma mulher jovem que tinha
seis filhos, não tinha renda nenhuma, a única renda que ela tinha era do Bolsa Família, e
quando o esposo trabalhava, quando ela começou a plantar as hortinhas dela, ela gostou
tanto que ela começou a plantar mais e vender. Quando eu chegava lá, ela falava: “Maria
Esperança, eu fiz vinte reais, deu pra comprar um negócio pra Isa, uma sandália”. E eu via a
felicidade dessa pessoa: me deixou muito feliz. (Maria Esperança, 28 anos).
Maria Esperança, que também participa do grupo de apicultura, fala sobre a
construção de parceria com a Cooperativa de Apicultores de Jeremoabo que está em
construção com a colaboração do Projeto. O grupo de apicultura está articulado com a
Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido (ARCAS), uma Organização
Não Governamental que atua na região e que está executando o ATER86, no município de
86
É um serviço público de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) que a ARCAS, por meio de
chamada pública está executando. Faz parte do Plano Brasil Sem Miséria, que tem como uma das
metas o incentivo de assistência técnica continuada e individualizada aos agricultores, direcionado
a famílias em situação de vulnerabilidade social, como famílias do semiárido, povos e comunidades
tradicionais, como quilombolas, indígenas e ribeirinhos, entre outros, em conformidade com a
Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma
214
capacitarem para sair com mais chances de trabalho e cita alguns exemplos de cursos que
poderiam ser realizados em Maria Preta para as mulheres jovens:
– Curso de computação, curso de pintura, curso de manicure, eu acho que curso
de cabeleireira, porque a vaidade hoje, né, esse tipo de curso. Eu acho que esses cursos
prepara elas, os jovens, para o mundo, porque hoje as pessoas não querem sair mais da
comunidade pra ir trabalhar em casa de família, então, elas tendo curso, já se preparando
aqui para elas saírem, até pra trabalhar aqui mesmo, já ajudaria, principalmente se for pro
mercado fora, com a quantidade de curso que elas tivessem aqui, apresentar nas cidades
locais aqui mesmo – Banzaê, Ribeira do Pombal – porque aqui a maioria das jovens não
fizeram nenhum tipo de curso. É por questão de dinheiro, que não tem recurso pra fazer
nenhum curso em Banzaê, em Pombal, só na cidade. E através... se a associação puder trazer
esse tipo de curso pra comunidade seria mais fácil pra elas. (Maria das Dores, preta, 31
anos).
Ao assumir, na Associação, o cargo de coordenadora de gênero, Maria das Dores
vem tentando desenvolver, entre as mulheres jovens, um sentimento de confiança entre elas e
de valorização da cultura local, através do resgate do samba de roda e da capoeira, criando
laços de pertencimento e de identidade racial. Uma preocupação dela e dos membros da
Associação é evitar a migração destas jovens para trabalhar como domésticas nas grandes
cidades. A Associação está buscando alternativas e parcerias com o município de Banzaê para
promover alguns cursos profissionalizantes para qualificar estas jovens. A ideia é criar
possibilidade na comunidade e na região, desestimulando, assim, o fluxo para São Paulo. A
estratégia por eles pensada é acessar políticas, programas e projetos específicos para
comunidades quilombolas na perspectiva de melhorar a vida na comunidade Maria Preta.
Foi difícil para Maria dos Prazeres participar e chegar a ser a presidente da
Associação Comunitária dos Produtores Rurais de Baixa da Roça, mesmo com o apoio de
pessoas que queriam que ela assumisse a presidência. Conta que a Associação era dominada
por homens que a usavam para fins eleitoreiros e não cumpriam com sua função, não tinham
reuniões ordinárias, não faziam a prestação de contas e ainda mentiam para os associados:
– Primeiro foi constituída, eu fui a presidente que o pessoal quiseram, foi difícil
entrar como presidente. A associação era de homem, os homens ficavam aí, não fazia a coisa
certa, fazia reunião em ano em ano, pegava o dinheiro do povo todo mês, embolsava, mentia,
dizia que vinha trator sem vim, eles comendo dinheiro... Aí o povo foi se revoltando, e eu já
estava estudando e tinha a agente de saúde que era Marilda. Aí ela disse: “Mulher, vamos
216
formar uma associação”. [Eu:] “Deus me livre, quero nada, ôxe, quero não, é muita coisa, o
povo chama a gente de ladrão”. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres tinha consciência do desafio de assumir uma associação em
que os diretores anteriores não eram honestos porque ela não queria ser comparada a essas
pessoas. Mesmo assim, foi convencida pela agente de saúde da comunidade a, junto com ela,
formar a chapa para concorrer à eleição:
– Aí ela disse: “Mulher, se a gente não se organizar vai ser pior prá nós”. [Eu:]
“Então vamos, sozinha eu não consigo, não, porque eu não tenho experiência tanta assim,
não sei como é as coisas. Ela dizia: “Eu ajudo.” Aí nós foi, chamemos a comunidade, onde
todos queriam, aí eu fui presidente e ela como tesoureira. Foi difícil reunir, porque era muito
sócio, mas como veio o presidente que era enrolado na conversa, não fazia nada pra
comunidade, não era da comunidade, era de outra comunidade e só queria ganhar interesse,
aí nós lutemos, umas pessoas desistiram, porque quando a gente foi ser presidente, ele dizia
que ia denunciar de nós que invadiu a associação dele, que não sei o que, essa coisa toda.
Não, nós não invadimos, o povo quis e nós construímos a nossa. E, desde quando começou, é
mais mulher do que homem. Depois que eles viram que tava vindo as coisas, e que nós lutava
e fazia as coisas certinha, reunião todo mês, mensalidade eles pagavam, a gente dava o
papelzinho pra eles como eles estavam pagando a mensalidade, e eles viam as coisas
diferente. Via a prestação de 3 em 3 mês, de 6 em 6 mês, fazendo a prestação do que gastou,
de viagem que foi, de imposto que você sabe que tem que por, e eles vendo isso, gostaram, a
maioria é mulher e já temos homens na diretoria, mas o início foi difícil. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres e as outras mulheres que assumiram cargos na associação,
após terem passado as eleições e a perseguição do presidente anterior, mostraram que
exerciam o poder na associação de outra forma: realizando as reuniões sistemáticas, com
transparência na prestação de contas, socializando as informações para todos os membros e
cumprindo as exigências legais determinadas pelos órgãos responsáveis para a formação e
operação de uma associação comunitária de produtores rurais. Apesar de a diretoria estar
desenvolvendo um trabalho sério na Associação, alguns associados ainda desconfiavam dela
enquanto presidente. A todo momento, tinha de estar provando sua honestidade, e quando a
Associação foi administrar o recurso do Projeto Gente de Valor, novas desconfianças
surgiram, mas a eficiência e, sobretudo, a transparência da gestão levou a que ela fosse
reconduzida várias vezes à presidência:
217
– Aí, teve um momento que um chegou e disse que eu tava roubando, que eu era
isso. Aí eu disse: “Roubando o que? Agora você tem que ter prova”. Foi logo no início do
Projeto Gente de Valor, quando o Projeto Gente de Valor chegou, aí ele disse que a gente
estava roubando, aí a gente chamou ele pra fazer a prestação de contas, mostremos: “Qual é
o roubo? Onde tá o roubo?”. Aí, ele ficou com conversa besteira, aí saiu da associação, os
outros que tavam ficou e, graças a Deus, eu era presidente. Aí com dois anos, eles quiseram
de novo eu, aí, fiquei mais dois anos. Aí eu saí e ficou outra, a minha vizinha, eles quiseram,
aí, era um pouco parada, tava ficando assim que nem o outro presidente anterior. Só que a
gente ajudando demais, fazendo prestação de conta, viajando, pras viajem ela não tava
querendo ir, aí, com dois anos, eles tiraram ela de novo. Colocaram eu de novo, aí, fiquei por
mais dois anos, aí reelegeu de novo, ficou Marilda, que eles aceitaram, a comunidade
aceitou, aí, depois, volta pra mim de novo, aonde em 2014 é que vai ter a eleição, é de dois
em dois anos que vai ter eleição. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres tem uma longa trajetória à frente da associação, já é a quinta
vez que ela assume a presidência por mais dois anos. Ela reclama que as pessoas não querem
assumir a diretoria, principalmente os homens, o que se torna a maior dificuldade por ela
enfrentada: “É os homens querer tá junto com as mulher, de fazer, de ajudar. Muitos homens
não querem se envolver, eles não querem ser presidente, eles não querem ser tesoureiro, eles
só querem ser fiscal”. Ela continua explicando porque os homens não querem estar à frente da
associação: “Eu acho que eles não querem, além de ser um pouco preguiçoso, que não
querem trabalhar pra todo mundo, também não tem dinheiro. Então eles se recusam, então
deixa as mulher, porque acha que a mulher não tem o que fazer”.
Apesar de as mulheres assumirem nas comunidades responsabilidades ditas
“produtivas” e “reprodutivas”, dando uma contribuição muito importante e participando
ativamente no processo de desenvolvimento, geralmente não têm o reconhecimento e a
valorização de seu papel no desenvolvimento econômico, social e ambiental. E esta é uma
área prioritária para promover a equidade nas relações de gênero nestas comunidades o que se
relaciona diretamente com a divisão do trabalho e a distribuição do poder. Os homens desta
associação não têm interesse de assumir a diretoria porque não querem assumir
responsabilidades por atividades e projetos que não são de interesse deles, já que as atividades
produtivas desenvolvidas são consideradas de interesse e domínio das mulheres, além de não
serem, na visão deles, atividades tão rentáveis. Os quintais e o beneficiamento de frutas são
atividades vistas como extensão do espaço doméstico, assim, mesmo as mulheres estando no
espaço público ele se confunde com o doméstico. Os homens destas comunidades
218
demonstram um certo mau humor porque as mulheres estão exercendo o poder e por acharem
que o PGV priorizou as mulheres, ao aportar recursos econômicos em suas demandas
específicas. As propostas apresentadas pelo PGV não agradaram aos homens por não aportar
recursos econômicos em compra de trator, animais (gado, cabra e ovelha) nem em grandes
empreendimentos e muito menos em equipamentos e implementos agrícolas.
Maria dos Prazeres tem enfrentado, desde criança, muito preconceito, no cotidiano
das suas relações de gênero, na sua família, no trabalho da Associação e da cooperativa, no
sindicato e na sociedade de um modo geral e tem percebido, ao longo desta trajetória e
experiência, que o pessoal é político. Tem questionado e lutado, agora com mais consciência,
para mudar essas relações desiguais de poder nestes espaços privados e públicos. Neste
sentido, as ações do PGV propiciaram as condições para que ela e as outras mulheres do
grupo se empoderassem durante o processo o que foi sendo percebido, na medida em que ela,
na organização comunitária e no exercício do poder na associação, começou a desestabilizar a
ordem patriarcal vigente. Ela conseguiu tirar as mulheres do confinamento do espaço
doméstico e envolvê-las em uma atividade coletiva na unidade de beneficiamento, levando-as
a se sentirem incluídas no espaço público como cidadãs, a terem demandas atendidas e seus
sonhos realizados através de um projeto elaborado pelas mulheres.
Os homens ainda não perceberam o potencial da minifábrica – unidade de
beneficiamento de frutas e de castanha do caju – como um empreendimento que pode gerar
renda para toda a família, como um lugar de poderes, de saberes, de luta, de resistência e de
conquista de direitos, enfim, eles não despertaram o seu olhar para este espaço público, razão
pela qual ainda não houve disputa de poder entre mulheres e homens. Maria dos Prazeres fala
que os homens só querem trabalhar na unidade de beneficiamento se pagar salário e que as
pessoas que não participam da associação estão vendo o trabalho delas na unidade:
– Uns já estão vindo pra unidade, já estão vindo, já estão fazendo corte. As
dificuldades deles, eles diz assim não ganha um salário [...]. Dentro da cooperativa, ainda
não tem como pagar salário, não é empresa, não é governo federal, não é prefeitura. Tem
que ter produção, ou até diária, tem que ter um regimento porque se não, não tem como.
Muitos dizem, e outros, que é muita melança, se mela demais, se queimo todo no azeite da
castanha. Ele diz que se queima demais, que se mela demais, que as unhas fica cheia de
ferida e os outros... Nós só temos um [homem], Deus o livre desse um adoecer, a gente fica
sem nada. Os outros é merreca, vem, corta um, dois quilo, vai embora. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos,).
219
alto “Compram, muitão assim, não. Tem semana que vende 2, 3 quilos, outra semana não
vende”. Com o doce, é diferente: “As meninas do doce, faz doce, agora o doce já vende
bastante, a gente já conseguiu vender pra a merenda escolar de Cícero Dantas 300 quilos, as
feiras também a gente acompanha”. Com a venda para a merenda escolar, cada uma das
mulheres doceiras recebeu R$ 180,00.
87
Baseado no conceito de territorialidade, envolve três a quatro comunidades da área rural com
características e identidades semelhantes. Para o governo, o território representaria a
descentralização e a desconcentração das políticas públicas. O Desenvolvimento Territorial
concebido desde a perspectiva do reconhecimento e valorização dos espaços construídos –
territórios como construção social –, resultaria numa conformação que traz para o primeiro plano
os atores sociais e a espacialidade. (MIRANDA, TIBURCIO, 2010, p. 18).
221
“Tá bom!”. Aí, esquece. Hoje, a gente sabe que tem que chegar lá e protocolar um ofício, a
gente teve capacitação. As capacitações do projeto ajudaram muito a gente. Nos encontros de
mulheres, nossa, todos, pra mim mesmo, eu não perdi nenhum, participei de todos. Pra me
ajudar, todos, eu saí com uma nova experiência. (Maria Alice, parda, 25 anos).
Para Maria Esperança, a ação do Projeto ajudou a mudar algumas coisas na
realidade da comunidade. As pessoas que dele participaram se apropriaram de informações e
acumularam conhecimentos gerais e específicos. Através dos técnicos do PGV, foi iniciada
uma articulação com a Secretaria da Agricultura do município de Jeremoabo para que os
associados possam vender e fornecer para a alimentação escolar.
– Mudou muito, antes, a gente não tinha conhecimento de nada, de reunião que
tinha na Secretaria da Agricultura, nós não sabia nada do que estava acontecendo em
Jeremoabo e, hoje, por causa do Projeto Gente de Valor, que o chefe de escritório tem, assim,
ajudado muito, incentivado e falado muito sobre as comunidades. Gente de Valor, que tem
ainda essa Secretaria, tem sempre procurado a associação para participar das reuniões que
falam sobre a agricultura, sobre a apicultura, sobre tudo e depois também do Projeto tá
previsto para a associação comprar alimentos na comunidade para distribuir nas
comunidades carentes [PAA ˗˗ Programa de Aquisição de Alimentos] que não têm e também
para vender pra merenda escolar [PAE]. Então, isso tudo foi um grande avanço para nossa
comunidade, que não tem praticamente renda nenhuma ou, de ano a ano, quando chovia, o
feijão e o milho, e vive de horta. Outra alternativa não tinha. E esse ano foi assim, depois que
choveu, quase todos os apicultores tiraram mel e estão muito feliz. Disse que jamais
pensaram em ter uma renda a mais e a tendência é aumentar cada vez mais a apicultura. Eu
já tirei o consumo e estou incentivando meus filhos e minha família a consumir também, que
era uma coisa assim que a gente não dava importância para o mel e hoje, não, depois do
conhecimento que a gente tem da importância do mel na alimentação da família, todo mundo
consome o mel. E também já me ajudou, já vendi mel esse ano. (Maria Esperança, preta, 28
anos).
Percebe-se que essa articulação e as parcerias estão ainda em um processo inicial,
mas o caminho está sendo construído, com a participação mais ou menos direta dos membros
da Associação, nas decisões estratégicas e na operacionalização desta proposta. Esta
articulação, mesmo que ainda frágil para acessar políticas públicas e recursos governamentais,
224
88
Foi instituído pela Lei 10.696, de 2 de julho de 2003, como uma ação estrutural do Programa Fome
Zero. Seu principal objetivo é garantir a comercialização dos produtos da agricultura familiar,
através do estabelecimento de preços mínimos a serem praticados com a garantia de compra, ao
mesmo tempo em que articula esta produção com os mercados institucionais ou para formação de
estoques, atendendo aos princípios da segurança alimentar. (MÜLLER, SILVA, SCHNEIDER,
2012).
89
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem como objetivo ofertar uma alimentação
adequada e saudável a fim de fornecer segurança alimentar e nutricional. Também tem o objetivo
de fortalecimento da agricultura familiar, pois eles são considerados os fornecedores organizados
em grupos formais (cooperativas e associações) e ou informais.
225
Ter as informações antes das outras pessoas e das outras organizações dá a Maria
da Paz e à associação que ela representa no Conselho vantagens e poder de se articular e se
preparar antes das outras associações. Ela se preocupou, ao ficar sabendo que as pessoas que
participam do Conselho da Merenda Escolar, não vão poder vender seus produtos.
Tranquilizou-se, quando foi informada que a Associação de que é tesoureira pode participar:
– Exatamente, foi o que ela me respondeu, que pode vender no nome de outra
pessoa. Porque, no dia da reunião, foi chamada a sociedade civil, no caso são a gente, aí,
acabaram votando. Eu tava brigando com o menino da outra associação, eu não queria ser
titular, ele também não, a gente decidiu que ele é titular e eu sou suplente. Quando chegou no
outro dia lá, a coisa foi diferente, aí mudou tudo, tem votação. Aí o pessoal já me conhecia
começou a votar: ”Não vote nele, que ela é atuante”. Aí acabei ficando como titular. Aí eu
acabei dizendo, eu quero trabalhar com a merenda escolar, mas aí ela passou pra gente que
poderia vender para outra pessoa. Pelo menos eu já vou tendo conhecimento, o pessoal vai
me conhecendo e quando a gente precisar ir atrás deles, eles já vai conhecer e saber que a
gente tá lá trabalhando e fazendo alguma coisa. (Maria da Paz, parda, 32 anos).
A presença nos conselhos já trouxe para a comunidade o “Projeto Minha Sopa”
cujo recurso vem da Prefeitura de Fátima e a sopa é feita por Maria da Paz e outras mulheres
na casa da Associação. Diz:
– Aqui a gente distribui a sopa, o projeto “minha sopa”. Eles deram o aluguel,
mas depois, eles disseram: vamos procurar Maria da Paz, lá tem a casa da associação, ela
pode ceder, aí, segunda e sexta, a gente cozinha a sopa e distribui para a comunidade aqui.
Aí, eu estou na frente de tudo: “ligue para Maria da Paz, fale com Maria da Paz” (Maria da
Paz, parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres, assim como Maria da Paz, ressalta que, dentre as
capacitações que o PGV realizou com aquelas que exerciam cargos de direção na Associação,
a mais importante foi o curso de gestão de convênio, que possibilitou a apropriação de
conhecimentos técnicos e práticos de gestão administrativo-financeira levando-as a se
sentirem mais seguras e com um domínio maior para gerir o convênio do projeto.
– Nós era da associação, mas tinha que aprender muita coisa. Então, o curso de
gestão, faltava uma perninha, com o curso de gestão ele me ajudou bastante. Precisou mais
assim no Projeto a gente aprender mais de como fazer um projeto. Se a gente for fazer, hoje a
gente faz. Conseguimos fazer o projeto das mulher com ajuda de uma técnica que é mulher
também, mas quem escreveu foi nós da comunidade. Então, ela só foi que ela é técnica, nós
não somos técnica, cada caso é um caso. A gente colocou as necessidades que estava beleza,
226
então, a gente enviou, colocou os dados dela também. Tinha que ter um técnico lá, viu que
essa menina trabalhou aqui também, aí foi. Foi o curso de gestão, como fazer um cheque, via
o povo fazendo cheque, e eu sabia lá como preenchia um cheque? Eu sabia lá que o cheque
tinha que ter fundo, que tinha que ter não sei o que, se era cruzado, se era sem cruzar? Todos
foi importante, pra minha pessoa, foi o curso de gestão. (Maria dos Prazeres, parda, 32 anos).
Essa experiência mudou a vida de Maria dos Prazeres na medida em que
promoveu e concretizou seu empoderamento, ela não só aprendeu a assinar cheque e a realizar
processos administrativos e de gestão, mas, principalmente, a pensar, refletir e decidir com o
grupo de beneficiamento e com a associação o que eles querem, como e com quem. Ela e o
grupo estavam se sentindo preparados, após terem gerido o convênio com o PGV, a buscar
novos recursos, sensibilizados a elaborar projetos para dar continuidade ao trabalho,
principalmente com as mulheres do beneficiamento de frutas. Ela conta que isto mudou a sua
vida:
– Mudou, vige Maria! Mudou tudo, porque se nós quiser preencher um cheque
hoje, nós preenche, pra que, o que vai fazer com esse cheque, o que vai comprar, nós já
sabemos. E mudou tudo na nossa vida. Fazer um projeto... “Vamos fazer um projeto?”.
“Vamos!” “Vamos sentar a comunidade, primeiro sentar a comissão, eu presidente,
tesoureira, secretaria, algumas pessoas assim...”. Hoje, eu não tenho medo, não mais, porque
é assim, de primeiro a gente tinha, de vim pessoas diferentes e querer invadir, hoje não, se
você veio diferente, a gente não gostou da sua fala, a gente não vai aceitar o que você quer,
nós vamos aceitar o que nós precisa, o que necessita; hoje, eu não tenho medo. Minha mãe
diz assim: “Menina intromedida, tu não se intromete em tanta coisa!”. A gente está vendo
que precisa na comunidade, se o povo quer, então vamos correr atrás. (Maria dos Prazeres,
parda, 32 anos).
Maria dos Prazeres adquiriu compromisso e responsabilidade com a organização e
com a comunidade. Apesar de já ser uma liderança há muito tempo e sempre estar à frente das
ações, ela exerce uma liderança compartilhada, escuta as opiniões das outras pessoas, informa
e esclarece as dúvidas e os procedimentos para que, na hora de definir e tomar a decisão, seja
com a participação consciente de todos os membros da Associação. Segundo Maria dos
Prazeres, a Associação conta com 70% de mulheres e este foi um dos motivos pelos quais
elaboraram um projeto das mulheres do beneficiamento de frutas para a Secretaria da
Agricultura, Pecuária, Irrigação, Reforma Agrária, Pesca e Aquicultura (SEAGRI) do
Governo do Estado:
227
suas vidas. Não basta só ter mulher presente, participando: ela tem que ser ouvida e ter ações
direcionadas para elas que possibilitem o seu processo de empoderamento.
A dinâmica organizativa vivida por essas mulheres, ao assumirem alguma
responsabilidade na associação comunitária, tendo ou não cargo na diretoria, viabilizou um
rico processo de vivência, uma troca de conhecimentos e de experiências de vida que
favoreceu o crescimento individual e coletivo destas mulheres agricultoras. Nos casos
investigados, constatamos ambiguidades nos depoimentos das mulheres, ora demonstrando
empoderamento, ora desempoderamento. Todas as mulheres investigadas se empoderaram,
em graus diferentes, principalmente, no nível psicológico ou individual.
Quatro mulheres não se empoderaram no nível organizacional, ou melhor, o grau
de seu empoderamento foi baixo em relação às outras e ao que poderia ser. E seis dessas
mulheres demonstraram empoderamento organizacional, no grupo produtivo e na Associação,
revelaram ter sentimento de pertencimento ao grupo, realizar práticas solidárias entre elas,
mostraram respeito recíproco e apoio mútuo entre os membros do grupo. Porém, dentre as dez
mulheres agricultoras estudadas, apenas uma, Maria dos Prazeres, demonstra estar no nível de
empoderamento comunitário. Todas essas vivências e experiências possibilitaram a algumas
mulheres um processo de empoderamento efetivo.
230
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como instrumento para o desenvolvimento e combate à pobreza, suas ações estavam focadas
nas “necessidades práticas de gênero”, tais como saúde da mulher, direitos à documentação e
às tecnologias produtivas e geradoras de alimento e renda.
Na prática, as mulheres agricultoras passaram a demonstrar que era seguro
investir nos seus empreendimentos e em suas capacidades de lideranças enquanto mulheres
pobres, que são vistas como aquelas que mais trabalham, que são mais fáceis de mobilizar,
que representam menor risco para o crédito e que são mais preocupadas e comprometidas com
a família e com a comunidade. Estes argumentos, que antes eram vias para a exploração das
mulheres, passam a ser comprovações de eficiência no discurso das políticas neoliberais,
tirando proveito das qualidades das mulheres que lutam pela sobrevivência econômica,
cultural e política, ao revés de um comprometimento com a continuidade da luta no sentido do
seu empoderamento. (BATLIWALA, 2013).
Nos casos investigados, constata-se ambiguidades nos depoimentos das mulheres
agricultoras, ora demonstrando empoderamento, ora desempoderamento. No entanto, afirmo
que todas as mulheres investigadas se empoderaram, em graus diferentes, principalmente no
nível psicológico ou individual. Empoderaram-se, ao participar das atividades produtivas e
organizativas, contribuindo com as discussões, apropriando-se dos conhecimentos,
tecnologias e processos organizativos. É notório o aumento da autonomia, da autoestima, da
autoconfiança e o sentimento de autovalorização destas mulheres. Duas delas afirmam que foi
durante o processo organizativo da comunidade que começaram a entender sua realidade
social enquanto mulher, negra e pobre, a conhecer o contexto sociopolítico no qual vivem e a
ter um olhar crítico sobre o mesmo. Foi na vivência do Projeto que descobriram o sentimento
de pertença e autorreconhecimento étnico-cultural.
Conclui-se, também, que, apesar da integração na comunidade e do
reconhecimento junto ao grupo, a maioria dessas mulheres ainda não se empoderou ao ponto
de redefinir as normas e as regras de gênero, principalmente no espaço doméstico. Já no nível
organizacional, seis delas demonstram empoderamento, no grupo produtivo e na associação,
revelando a existência de respeito recíproco e apoio mútuo entre os membros do grupo.
Constatei o sentimento de pertencimento ao grupo e a existência de práticas solidárias entre
elas. No grupo, elas demonstram ter habilidades para discutir e analisar os problemas e as
soluções, através da organização e da ação coletiva, conhecimento da gestão administrativo-
financeira da organização e compreendem a importância do trabalho em grupo, seja na
associação e/ou no grupo produtivo, para lutar coletivamente por direitos. Contudo, no caso
de Maria Amélia (tesoureira), Maria José (presidente) e Maria do Sossego (tesoureira), o mero
235
fato de assumirem estes cargos de diretoria na Associação isto não lhes dá autoridade, de fato,
não significa que tenham poder efetivo. O associativismo, não obstante, pode ser um dos
caminhos do processo de empoderamento das mulheres, apesar de historicamente cooptado
como estrutura de controle social.
Ainda assim, a dinâmica organizativa vivida por essas mulheres, ao assumirem
alguma responsabilidade na associação comunitária, tendo ou não cargo na diretoria,
viabilizou um rico processo de vivência e troca de experiências de vida, que favoreceu o
crescimento individual e coletivo destas pessoas, independentemente do sexo. No caso
específico das mulheres agricultoras estudadas, experimentaram muitos sentimentos
diferentes no trajeto, desde insegurança, incertezas, conflitos e disputas em casa e na
associação, até o prazer de estar com as outras mulheres, dos laços de amizade construídos e
de estar neste espaço público que demandava delas muito mais que domínio sobre
administração e gestão. Neste processo, conquistaram autoestima, autovalorização e o
reconhecimento das pessoas das comunidades. Enquanto indivíduos, portanto, elas se
empoderaram como consequência do envolvimento no local, na comunidade, nas diversas
atividades (produtivas, organizativas e culturais), nos processos de formação (reuniões,
encontros, cursos, intercâmbios) e no exercício cidadão dentro da associação, sindicato,
grupos de mulheres e conselhos.
Entre as dez mulheres agricultoras estudadas, apenas uma, Maria dos Prazeres,
demonstra estar no nível de empoderamento comunitário. Ressalto que ela já tinha uma
trajetória de inserção social e política, em vários espaços e movimentos sociais, antes do
PGV. Então, seu engajamento, sua participação social no Fórum do Território (da Cidadania),
em instituições locais e regionais, como o sindicato e a cooperativa, já vinha de longa data. A
participação no Conselho Municipal de Educação, sua luta para elaborar projetos, na busca de
recursos para viabilizar o trabalho do grupo de mulheres doceiras, na perspectiva de obtenção
de segurança econômica, teve o estímulo e acolaboração dos técnicos e técnicas do PGV e de
outras organizações. A frequente articulação em redes com outras pessoas, organizações e
movimentos sociais, como a Associação Regional de Convivência ao Semiárido (ARCAS),
Pastoral Rural, Escola Família de Cícero Dantas etc., vem acontecendo há muitos anos em sua
trajetória.
Em um contexto político mais amplo, ou melhor, no nível comunitário, o
empoderamento, como democratização, ocorreu quando as reivindicações das mulheres
agricultoras e as exigências de apoio a suas demandas e necessidades, enquanto organizações
comunitárias da sociedade civil, tiveram impacto sobre as estratégias de desenvolvimento de
236
90
Cooperativa da Cajucultura Familiar do Nordeste da Bahia, que atua nos municípios: Água Fria,
Antas, Banzaê, Biritinga, Cícero Dantas, Cipó, Euclides da Cunha, Fátima, Heliópolis, Itapicuru,
Jeremoabo, Lamarão, Nova Soure, Novo Triunfo, Olindina, Quijingue, Ribeira do Amparo, Ribeira
do Pombal, Sátiro Dias, Sítio do Quinto e Tucano. Tem uma central de comercialização localizada
em Ribeira do Pombal e sete unidades de beneficiamento, destas, cinco construídas em Banzaê,
Novo Triunfo, Cícero Dantas, Olindina e Ribeira do Amparo. E duas unidades ainda em projeto, a
serem construídas em Lamarão e Tucano. A COOPERACAJU tem parceria com a Fundação Banco
do Brasil, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Empresa Baiana de
Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Pastoral Rural, Escola Família Agrícola (EFA) e Comissão
Evangélica dos Direitos da Terra (CEDITER). Disponível em: <http://www.cooperacaju.com.br/>.
Acesso em: 27 jul. 2014.
237
para a libertação”, visto que, assim, mais mulheres se conscientizariam da sua força, do seu
poder, dos seus direitos sociais e políticos e se fariam articuladas e mobilizadas coletivamente
para conquistá-los.
239
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