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Desenvolvimento Rural e Gênero: abordagens analíticas, estratégias e


políticas públicas

Book · January 2015

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2 authors, including:

Jefferson Andronio Ramundo Staduto


State University of Western Parana
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DESENVOLVIMENTO
RURAL E GÊNERO:
abordagens analíticas, estratégias
e políticas públicas
DESENVOLVIMENTO
RURAL E GÊNERO:
abordagens analíticas, estratégias
e políticas públicas

Organizadores
Jefferson Andronio Ramundo Staduto
Marcelino de Souza
Carlos Alves do Nascimento
© de Marcelino de Souza
1ª edição: 2015

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Imagine Design


Fotos de capa: Shutterstock e Pierre-Yves Babelon / Shutterstock.com.
Revisão: Press Revisão
Normatização das Referências: Isabel Cristina Pereira

A grafia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 1° de janeiro de 2009.

“Esta publicação contou com o apoio da FAPERGS e da CAPES através do


Programa de Editoração e Publicação de Obras Científicas."

D451 Desenvolvimento Rural e Gênero: abordagens analíticas, estratégias e


políticas públicas / Organizadores Jefferson Andronio Ramundo Staduto,
Marcelino de Souza., Carlos Alves do Nascimento. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2015.
348 p.
(Série Estudos Rurais)

ISBN 978-85-386-0260-6

1. Desenvolvimento rural. 2. Gênero feminino. I. Staduto, Jefferson


Andronio Ramundo. II. Souza, Marcelino de. III. Nascimento, Carlos
Alves do.
CDU 631.115

CIP - BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


Bibliotecária Responsável: Vanessa I. Souza CRB - 10/1468
APRESENTAÇÃO

O livro Desenvolvimento Rural e Gênero é composto por 13 capítu-


los e reuniu 19 pesquisadores com longas trajetórias acadêmicas e cientí-
ficas e, também, novos investigadores com grande potencial intelectual.
Os autores foram convidados para escrever sobre as várias dimensões do
tema desenvolvimento rural e gênero, com a clara ideia de trazê-lo para
dentro do livro como uma única temática, e com vários pontos de vista.
Normalmente, esses dois termos surgem nas pesquisas como palavras-
-chave e, por muitas vezes, dissociadas e afastadas entre si. A intenção
dos organizadores é transformar os termos – desenvolvimento rural e
gênero – em um tema, por meio de abordagens teóricas e empíricas. Neste
sentido, vale destacar as dimensões dos dois conceitos (desenvolvimento
e gênero) que são tratados neste livro.
O conceito de desenvolvimento está, por um lado, em constante ela-
boração e transformação ao longo do tempo e no espaço, e se distanciou
da ideia unidimensional do crescimento econômico e aumento da renda
per capita; por outro lado, aproximou-se das relações e justiças sociais, e
de outras temáticas, como participação política e meio ambiente. Existem
barreiras de várias ordens para uma sociedade alcançar novos estágios
de desenvolvimento. A despeito dessas dificuldades, entendemos que os
avanços reais não serão alcançados caso qualquer grupo populacional
não puder ser participante do processo de desenvolvimento e desfrutar
da qualidade de vida que os recursos tangíveis e intangíveis possam ofe-
recer para a sociedade. Particularmente neste livro, foram levantadas não
somente as dificuldades, mas também as estratégias e as políticas públi-
cas direcionadas ao grupo populacional das mulheres, e, sobretudo, para
as relações de gênero construídas no meio rural.
Nesta obra, o gênero feminino é privilegiado no debate e nas estra-
tégias de desenvolvimento rural, reconhecendo que prevalecem relações
assimétricas de gênero na construção e no processo de desenvolvimento
em curso. No meio rural, a invisibilidade das mulheres é maior e poten-
cializada pelos padrões culturais e pelas normas sociais vigentes e, ainda,
pela grande dispersão espacial, tornando mais acentuada a invisibilidade
social e do trabalho, e, especialmente, na agricultura familiar em que as
atividades de produção e reprodução se embaralham. E nos anos mais
recentes, no Brasil, as pesquisas mostram que há um grande desequilí-
brio demográfico entre mulheres e homens, gerando potenciais perdas do
ponto de vista social, econômico, político e mesmo ambiental.
O livro agrupa os capítulos em quatro partes, as quais estão refle-
tindo as transformações recentes ocorridas no meio rural brasileiro e
também da América Latina, que afetaram em várias dimensões a vida
econômica, política e social da população rural e o uso dos recursos
naturais. Essas transformações resultaram em novos processos de organi-
zação produtiva e social, e em novos contextos políticos e institucionais.
Nesse novo ambiente, as mulheres são percebidas pelas pesquisas e, mais
recentemente, pelas políticas públicas a partir das análises de gênero e
sua relação com as várias dimensões do desenvolvimento do meio rural.
A primeira parte do livro é composta pelos três primeiros capítulos,
e trata-se de uma contribuição para a estrutura analítica e conceitual,
bem como para a compreensão e apreensão de alguns conceitos introdu-
tórios sobre desenvolvimento rural e gênero. O primeiro capítulo, intitu-
lado “Abordagem teórica sobre a questão de gênero e desenvolvimento
rural: dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero”, de autoria
de Rosângela Saldanha Pereira, tem o papel importante de apresentar ao
leitor alguns conceitos mais relevantes, os quais permitem refletir sobre
o tema desenvolvimento rural e gênero. E também lança um olhar mais
crítico sobre o processo de desenvolvimento e, especificamente, sobre o
rural a partir das questões de gênero, comentando os distintos paradig-
mas e modelos de gênero no desenvolvimento, tecendo alguns breves
comentários sobre a adequação das estratégias de gênero.
O segundo capítulo, sob o título de “Algunos abordajes teoricos
para el analisis del desarrollo rural con una perspectiva de genero”, de
autoria de Maria Adelaida Farah Quijano, aborda as mudanças nas rela-
ções de gênero nas famílias particularmente do poder e da negociação em
relação aos recursos disponíveis, como parte das transformações rurais.
Foram consideradas cinco abordagens teóricas e conceituais: as novas
questões da ruralidade e de gênero; “caminho ou modo de vida”, como
uma boa base teórica para a construção de uma compreensão da dinâmica
das mudanças nas relações de gênero dentro da família e de sua intera-
ção com outras mudanças institucionais; as relações de gênero como
relações de poder para entender a negociação dentro da casa; o enfoque
institucional em que a interação entre instituições é um elemento-chave
que ocorre no contexto socioeconômico da nova ruralidade na América
Latina, e o conceito de poder de negociação, entendido a partir da abor-
dagem dimensional dos recursos, agências e resultados.
O terceiro capítulo, “Desenvolvimento e gênero: um olhar sobre o rural
a partir da perspectiva de Amartya Sen”, de autoria de Jefferson Andronio
Ramundo Staduto, examina as discussões mais recentes sobre desenvolvi-
mento e gênero à luz da literatura elaborada a partir das formulações teóri-
cas de Amartya Sen e os seus desdobramentos analíticos. As discussões são
conduzidas para o meio rural, visto que é o lócus privilegiado e onde predo-
minam os processos econômicos e sociais associados à produção familiar. O
capítulo mostra como vários conceitos que são discutidos na literatura, tais
como empoderamento e agência, podem ser incorporados na abordagem de
Amartya Sen de “desenvolvimento como liberdade”, em que o autor consi-
dera que as disposições sociais tornam mais complicadas para as mulheres
desfrutarem de uma vida de liberdade plena.
A segunda parte da obra é composta por dois capítulos que apre-
sentam, de forma panorâmica, a ocupação, a renda e a distribuição
espacial das mulheres e dos homens na região Sul do Brasil. O quarto
capítulo, intitulado “Análise regional das formas de ocupações e dos ren-
dimentos das mulheres e homens nas áreas rurais do Sul do Brasil na pri-
meira década do século XXI”, de autoria de Carlos Alves do Nascimento,
Marcelino de Souza e Jefferson Andronio Ramundo Staduto, descreve,
com riqueza de detalhes, o comportamento das ocupações de mulheres
e homens por tipo de famílias rurais ao longo da primeira década deste
século, bem como as principais fontes de rendas das famílias rurais e a
participação relativa das mulheres nas composições das rendas na região
Sul do país. O estudo simultâneo de mulheres e homens permite discutir
as relações de gênero apoiado na literatura que privilegiam os estudos
de caso e situações particulares. Dessa forma, este capítulo traz algumas
evidências sobre quais tipos de atividades predominam entre as mulheres
no meio rural do Sul do Brasil.
O capítulo cinco, sob o título “Distribuição espacial das trabalha-
doras rurais na agricultura familiar na região Sul do Brasil”, de autoria
de Alessandra Juliana Caumo, faz praticamente um estudo inédito sobre
a localização por município onde as mulheres são em maior número em
termos absolutos e em relação aos homens, particularmente na agricul-
tura familiar. O capítulo apresenta, na forma de mapas, a distribuição
das mulheres ocupadas e relaciona com outras importantes variáveis, por
exemplo, nível de instrução, pluriatividade e outras. Para tanto, foram
utilizadas técnicas de análise exploratória de estatística espacial, as quais
possibilitaram evidenciar dados interessantes que associam espaço e os
processos produtivos e sociais com a maior concentração de mulheres e
homens nos municípios da região Sul do Brasil.
A terceira parte da obra é a mais longa, sendo formada por cinco
capítulos, refletindo a grande produção acadêmica que discute as estraté-
gias de desenvolvimento rural e as relações e papéis de gênero. O capítulo
seis, “Gênero e pluriatividade na agricultura familiar do Rio Grande do
Sul”, de autoria de Carolina Braz de Castilho e Silva e Sergio Schneider,
aborda as relações de gênero relacionadas à prática da pluriatividade e
do desenvolvimento rural nos municípios de Veranópolis e Salvador das
Missões, no estado do Rio Grande do Sul. Este capítulo analisa as infor-
mações sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho desses dois
municípios por meio de pesquisa de campo. Apesar dos vários estudos
sobre os papéis de gênero, ainda pouco se sabe em relação às mudanças
recentes no mercado de trabalho no meio rural e à inserção feminina
nestas novas formas de ocupação da mão de obra.
O capítulo sete, intitulado “Trabalho e relações de gênero no turismo
rural”, de autoria de Raquel Lunardi, Marcelino de Souza e Fátima Cris-
tina Vieira Perurena, procura compreender a organização do trabalho em
empreendimentos de turismo rural e identificar a nova divisão sexual do
trabalho, decorrente do envolvimento das mulheres nas atividades turís-
ticas, em uma perspectiva de gênero. Este capítulo descreve as práticas
laborais masculinas e femininas realizadas nos ambientes produtivo e
reprodutivo. Para tal, foi estudado o turismo rural que ocorre no entorno
do canyon do município de São José dos Ausentes, no estado do Rio
Grande do Sul.
O capítulo oito, “Gênero e agroecologia: os avanços das mulheres
rurais no enfrentamento das iniquidades”, de autoria de Emma Cademar-
tori Siliprandi, propõe examinar e refletir como as lideranças femininas
enfrentaram os obstáculos à sua participação na construção da agroeco-
logia – seja nas famílias, nas comunidades, nos movimentos sociais –, e
como foi o envolvimento com a agroecologia que permitiu a construção
de uma visão alternativa do que seria um modelo de desenvolvimento
rural centrado nas formas familiares de produção agrícola, mas com
igualdade de gênero. Este capítulo baseia-se em alguns depoimentos que
ilustram as histórias e trajetórias dessas mulheres.
O capítulo nove, sob o título “As mulheres nas agroindústrias
rurais familiares: a construção de mercados e a especificidade da produ-
ção na região Central do Rio Grande do Sul”, de autoria de Chaiane Leal
Agne e Paulo Dabdab Waquil, busca entender qual é a função das mulhe-
res nas agroindústrias familiares, destacando a estratégia de mercado que
elas constroem para fidelizar consumidores. Nas agroindústrias familia-
res, as funções desenvolvidas pelas mulheres não podem ser resumidas
ao ambiente produtivo, pois elas também estão ocupando um espaço
importante nas atividades de negociação. Este capítulo examina a rotina
das agricultoras familiares da região do Conselho Regional de Desenvol-
vimento Jacuí Centro, localizada na porção central do Rio Grande do Sul.
O capítulo dez, intitulado “O empoderamento da mulher: um estudo
empírico da feira do produtor de Toledo, Paraná”, de autoria de Fabíola
Juliana Rubim de Andrade e Yonissa Marmitt Wadi, aborda a estratégia
de vida adotada por mulheres que participam da Feira do Produtor no
município de Toledo, na região oeste do estado do Paraná. Este capítulo
procura narrar a construção dessa feira resgatando a sua história e o
envolvimento das mulheres neste processo. E, fundamentalmente, exa-
mina como as mulheres se veem em relação ao trabalho que desenvolvem
– produção e comercialização de diferentes produtos – e, assim, compre-
ender o quanto se sentem empoderadas em relação à sua atividade.
A quarta parte do livro apresenta e debate a inserção da categoria
gênero nas políticas de desenvolvimento rural nos anos mais recentes.
Este tema é extremamente importante, principalmente em relação às pes-
quisas que avaliam estas políticas implantadas para contemplarem as
mulheres. O capítulo onze, “Potencialidades e limites do Pronaf-Mulher
no processo de empoderamento das mulheres agricultoras”, de autoria
de Carmem Osorio Hernández, analisa algumas evidências empíricas
sobre os efeitos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) no processo de empoderamento das mulheres agricul-
toras, que tiveram acesso ao Pronaf-Mulher no período de 2005-2006, no
município de Rodeio Bonito, na região do Alto Uruguai, no estado do Rio
Grande do Sul. Este capítulo avalia se as políticas públicas direcionadas
às mulheres são também sensíveis ao gênero, pois isso é fundamental
para verificar se a mesma possui um caráter transformador e contribui
efetivamente para o desenvolvimento rural no seu sentido mais amplo.
O capítulo doze, denominado “Mulheres na agricultura familiar do
Semiárido Norte Mineiro: exclusão, inclusão e desenvolvimento rural do
feminino”, de autoria de Ana Alves Neta Barbosa e Marta Júlia Marques
Lopes, apresenta um olhar amplo sobre situações de vida e trabalho das
mulheres, contemplando as questões referentes ao processo decisório, à
unidade familiar e às relações comunitárias no âmbito do Projeto Jaíba,
no município de Montes Claros, no estado de Minas Gerais. O capítulo
estuda também os fatores de inclusão/exclusão e as possibilidades de
empoderamento das mulheres como estratégia de desenvolvimento, e
presta especial atenção no acesso das mulheres ao Pronaf-Mulher.
Finalmente, o capítulo treze, intitulado “Previdência rural social e
gênero”, de autoria de Ana Cecília Kreter, avalia a importância das apo-
sentadorias no meio rural como geradora de renda e justiça social e dá
ênfase às mulheres trabalhadoras rurais, por serem as que sofreram maior
impacto com a nova legislação. A assimetria das relações de gênero é
claramente externalizada não somente no convívio entre mulheres e
homens no meio rural, como também se manifesta na estrutura do Estado
brasileiro por meio das leis e normativas, sendo que a mais explícita assi-
metria era a lei que regia o sistema previdenciário, uma vez que possuía
um viés negativo para as trabalhadoras rurais. Desta forma, havia uma
dupla discriminação em relação às mulheres, por elas serem trabalhado-
ras do setor agropecuário e pela discriminação de sexo.

Jefferson Andronio Ramundo Staduto


Marcelino de Souza
Carlos Alves do Nascimento
(Organizadores)
PREFÁCIO

Nos últimos 40 anos, ampliou-se a mobilização das mulheres na luta


pela universalização da cidadania feminina, questionando tanto o papel
reprodutor como a exclusão que as mulheres vivem na sociedade. Em um
mundo social, em que os princípios masculinos e femininos atuam como
ordenadores das relações sociais, de modo que o masculino indica superiori-
dade e o feminino, inferioridade, essa realidade está no cerne da rebelião das
mulheres que varreu todos os continentes na segunda metade do século XX.
Tanto a inferioridade feminina como a superioridade masculina se expressam
em práticas sociais, nas leis e instituições, que limitam os espaços e distribuem
seus membros de acordo com esta dicotomia e contra isso lutam as mulheres.
A questão da inferioridade feminina é mais visível na análise das
relações sociais do mundo rural, onde o impacto da modernização da
agricultura sobre a mão de obra feminina, o lugar da mulher na produção
de alimentos e no seio da família no meio rural, aparentemente ainda não
foram totalmente contaminados pela construção do novo papel feminino,
alardeado pelos quatro cantos do planeta.
A história do Brasil é uma história de conflitos pela apropriação
da terra como forma patrimonial de riqueza, exploração predatória de
recursos naturais, expulsão e incorporação tanto de populações locais,
como de indígenas e migrantes. A partir da “Lei de Terras”, promulgada
em 1850, pelo governo imperial, foi definido que a posse da terra no
Brasil dependia de uma escritura de compra e venda. Esta legislação pro-
vocou uma disputa feroz, silenciosa em alguns momentos ou conflitos
abertos pelos nossos sertões e terras profundas. Assim, as lutas sociais no
campo brasileiro – que explodiram dramaticamente nos anos 1950, com
o movimento das ligas camponesas e calado pelo golpe militar de 1964
– retornaram com vigor, nas últimas décadas, com as diversas mobiliza-
ções de homens e mulheres que trabalham e vivem no mundo rural com
a consigna da Reforma Agrária e de melhores condições de vida.
Do ponto de vista econômico, desde a década de 1960, a agropecu-
ária brasileira vem passando por um processo de modernização e indus-
trialização. Esse processo tornou a estrutura social e produtiva do campo
muito mais complexa, porque redefiniu o papel de seus agentes, não no
sentido da democratização da propriedade da terra, mediante uma ampla
reforma agrária, mas da concentração fundiária e do êxodo rural; em
paralelo, juntamente com a luta pela posse da terra e pela transformação
do meio rural em um espaço de cidadania, emerge o questionamento do
papel feminino no campo.
A essa luta pela Reforma Agrária, por melhores salários, condições
de produção e preços agropecuários, agregou-se a mobilização das mulhe-
res do campo pela ampliação de sua cidadania. Pequenas produtoras, sem
terra, empregadas temporárias e permanentes nas fazendas surgem no
cenário político buscando uma nova identidade que as diferencie do tradi-
cional papel feminino. Dessa forma, desde meados dos anos 1980, as tra-
balhadoras rurais vêm se organizando em todo o país, em uma mobilização
extraordinária em congressos específicos e nos sindicatos locais, lutando
pela extensão dos direitos trabalhistas à sua categoria (CUT, 1991).
Apesar de toda a reivindicação feminista para colocar a questão
dos afazeres domésticos na agenda política, isso ainda não se transfor-
mou em uma consigna política, este ainda é realizado predominante-
mente por mulheres. Na análise do trabalho feminino rural, esta ideologia
patriarcal permanece uma marca profunda. O número de pessoas do sexo
feminino que se declaram trabalhadoras sem remuneração no meio rural
expressa de maneira contundente essa problemática.
O trabalho da mulher é visto como uma extensão do seu papel
de mãe/esposa/dona de casa, que se superpõe na atividade agropecuária
– principalmente na horta e no quintal. Essas atividades são majorita-
riamente exercidas pelas mulheres e marcam a diferenciação no mundo
rural dos sexos feminino e masculino.
Há ainda uma lacuna na literatura socioeconômica nacional sobre
o trabalho feminino rural. Mudaram as relações no campo entre mulheres
e homens? Qual é a percepção que têm as mulheres de que seu trabalho é
definido socialmente como um jeito de ser mulher, sempre enredado com
as lides domésticas e como essas tarefas não se expressam em relações
monetárias, são esquecidas e desvalorizadas pela sociedade?
Com agradável surpresa, recebi o convite dos organizadores desta
coletânea para escrever o prefácio deste livro intitulado Desenvolvimento
Rural e Gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas.
Um texto organizado por diversos pesquisadores e professores univer-
sitários, que se dedicam ao estudo deste tema, com experientes acadê-
micos e jovens talentos que trilham os caminhos de fazer “ciência” no
Brasil, privilegiando o recorte de gênero e enriquecendo o campo dis-
ciplinar das relações de gênero, mulheres e feminismos que o governo
brasileiro, desde 2005, incentiva através do Programa Mulher e Ciência,
administrado pela Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência
da República, Ministério da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, atra-
vés do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), Ministério da Educação e Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Os recursos financeiros no valor de 20 milhões de reais, propiciados por
este programa nestes anos, seguramente explicam o avanço dos estudos
feministas e de gênero que se espalharam pelos centros universitários
nacionais e que esta coletânea reúne de forma exemplar.
O livro, ao longo dos seus 13 capítulos, faz uma excursão pelos cami-
nhos das abordagens analíticas sobre as relações entre desenvolvimento rural
e gênero, incorporando olhares diversos sobre o significado do desenvolvi-
mento socioeconômico, revitalizado no pós-guerra com as célebres contri-
buições dos pensadores latino-americanos Prebisch e Celso Furtado. Mas,
a obra Woman´s Role in Economic Development, da dinamarquesa Esther
Boserup (1910-1999), publicada em 1970 depois de uma estadia dela na
Índia, será seminal para a discussão da problemática de gênero e desenvolvi-
mento rural. Dos enfoques da teoria do desenvolvimento à “nova ruralidade”
para relações de gênero e à divisão sexual do trabalho, a primeira parte desta
coletânea nos oferece um rico e didático painel.
A segunda e terceira parte, com sete artigos, tratam do desenvolvi-
mento rural e gênero, mas em uma abordagem regional. Em um enfoque
da nova ruralidade e sua pluriatividade, estes estudos de caso tratam de
analisar o desenvolvimento que acontece no interior rural da região Sul
do Brasil. Estas pesquisas apresentam um prisma analítico novo, dado
pelo campo disciplinar dos estudos de gênero.
A quarta parte tem como fio analítico condutor as políticas públicas
realizadas no Brasil. O financiamento público através do Pronaf-Mulher e
o empoderamento que esta linha de crédito pode possibilitar às mulheres
agricultoras, seu questionamento como uma política para as mulheres, mas
não como uma política com a perspectiva de gênero. Este olhar é contem-
plado em dois artigos, e, por último, há um capítulo sobre a importância da
previdência rural na vida das mulheres do campo e da floresta. As relações
de trabalho nas atividades agropecuárias foram lentamente incorporadas
no processo de desenvolvimento nacional, e só no governo João Goulart
(1961/1964) foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, este significava
uma das políticas que o Presidente Goulart vinha propondo para equacionar
a luta pela terra no Brasil. Deposto, coube ao Marechal Castelo Branco regu-
lamentar esta proposta que, posteriormente, foi completada pelo governo do
General Geisel nos idos de 1970. Esta legislação, em uma lúcida abordagem
de gênero, encerra esta coletânea que espero seja uma leitura para o movi-
mento social, como para as universidades e estudiosos do tema.

Uma boa leitura para todas e todos!


Hildete Pereira de Melo
Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia e
professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense.
SUMÁRIO

PARTE I - DESENVOLVIMENTO RURAL E GÊNERO:


ABORDAGENS ANALÍTICAS

Capítulo 1
Abordagem teórica sobre a questão de gênero e desenvolvimento
rural: dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero ______ 17
Rosângela Saldanha Pereira

Capítulo 2
Algunos abordajes teoricos para el analisis del
desarrollo rural con una perspectiva de genero __________________ 43
Maria Adelaida Farah Quijano

Capítulo 3
Desenvolvimento e gênero: um olhar sobre o rural
a partir da perspectiva de Amartya Sen ________________________ 69
Jefferson Andronio Ramundo Staduto

PARTE II - DESENVOLVIMENTO RURAL E GÊNERO:


UM PANORAMA REGIONALIZADO
Capítulo 4
Análise regional das formas de ocupações e dos rendimentos
das mulheres e homens nas áreas rurais do Sul do Brasil
na primeira década do século XXI _____________________________ 97
Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Capítulo 5
Distribuição espacial das trabalhadoras rurais
na agricultura familiar no Sul do Brasil _______________________ 123
Alessandra Juliana Caumo

PARTE III - ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL


E OS PAPÉIS DE GÊNERO
Capítulo 6
Gênero e pluriatividade na agricultura familiar do Rio Grande do Sul __ 149
Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider
Capítulo 7
Trabalho e relações de gênero no turismo rural _________________ 173
Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

Capítulo 8
Gênero e agroecologia: os avanços das mulheres rurais
no enfrentamento das iniquidades ___________________________ 199
Emma Cademartori Siliprandi

Capítulo 9
As mulheres nas agroindústrias rurais familiares: a construção
de mercados e a especificidade da produção na Região Central
do Rio Grande do Sul _______________________________________ 221
Chaiane Leal Agne, Paulo Dabdab Waquil

Capítulo 10
O empoderamento da mulher: um estudo empírico
da feira do produtor de Toledo, Paraná ________________________ 245
Fabíola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

PARTE IV - POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO RURAL


E GÊNERO
Capítulo 11
Potencialidades e limites do Pronaf-Mulher no processo
de empoderamento das mulheres agricultoras __________________ 269
Carmen Osorio Hernández

Capítulo 12
Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural do feminino _________ 293
Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

Capítulo 13
Previdência rural social e gênero _____________________________ 321
Ana Cecília Kreter
CAPÍTULO 1

Abordagem teórica sobre a questão


de gênero e desenvolvimento
rural: dos projetos assistenciais ao
planejamento de gênero

Rosângela Saldanha Pereira


Rosângela Saldanha Pereira

1 INTRODUÇÃO

O desvendamento das inter-relações entre transformações econômi-


cas, sociais, modelos produtivos e as relações de gênero no meio rural é
tema de análise em nossos dias nos distintos âmbitos acadêmicos, o que
tem contribuído em grande medida para o avanço dos pressupostos teó-
ricos e metodológicos de um novo modelo de desenvolvimento, definido
como sustentável e endógeno. Desde esta perspectiva teórica, a categoria
gênero tem uma importância crescente por uma série de razões, as quais
serão discutidas ao longo deste capítulo, mas, desde já, podemos destacar o
fato de que muitas das potencialidades relacionadas com os recursos endó-
genos mobilizáveis nas sociedades rurais estão ligadas ao rol de gênero,
no sentido de que grande parte das ofertas potenciais da sociedade rural
para os mercados está constituída por produtos e serviços que, tradicio-
nalmente, têm sido produzidos pelas mulheres. Os estudos sobre gênero
têm suas raízes na primeira metade do século XIX, embora, no tema de
desenvolvimento, a investigação é muito mais recente, sendo a obra de
Boserup (1970) considerada o ponto de partida dos distintos paradigmas
científicos sobre gênero e desenvolvimento. Desde então, os aportes cien-
tíficos sobre essa temática são crescentes, e a literatura produzida nas três
últimas décadas é muito abundante, constituindo-se um tema-chave nas
investigações sobre desenvolvimento rural. Apesar da abundância de estu-
dos sobre o tema, Calatrava Requena (1997) destaca que ainda predomi-
nam estudos descritivos e de análise das diferenças de gêneros globais ou
setoriais, sendo mais escassos os que tratam o gênero e desenvolvimento
rural, desde o ponto de vista de seus fundamentos teóricos.1
O presente capítulo, sem a pretensão de esgotar e abarcar toda a
complexidade do sistema de gênero no mundo rural, tem como objeti-
vos apresentar alguns comentários de natureza conceitual, refletir sobre
o porquê da relevância atual dos temas de gênero no desenvolvimento
rural, para, em seguida, comentar os distintos paradigmas e modelos de
gênero no desenvolvimento e finalizar com alguns breves comentários
sobre adequação das estratégias de gênero.

2 ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS

O termo gênero aplicado ao desenvolvimento refere-se ao conjunto


de relações socioeconômicas e culturais entre pessoas de distinto sexo.

1 Ver Garcia Ramón e Baylina Ferré (2000) sobre uma revisão bibliográfica sobre gênero e mundo
rural.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 19


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

O sexo é determinado biologicamente, enquanto o gênero é um conceito


socioeconômico, é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas
sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e é, segundo Scott (1990),
um primeiro modo de dar significado às relações de poder. Assim, a teoria
de gênero2 desconstrói as identidades descritas, analisando sua genesis
sociocultural e relacionando-as com um sistema hierarquizado de cará-
ter patriarcal, no qual existem umas relações de poder que primam pela
soberania masculina e o domínio do homem sobre a mulher, as quais
experimentam uma subordinação em diferentes aspectos da vida social,
particularmente no econômico e naqueles relativos à tomada de decisões
e à participação em assuntos de interesse público e coletivo. Conforme
Valiente (1997, p. 113), podemos dizer que “[...] tanto un hombre como
una mujer no ‘nacen’, sino que culturalmente se construyen: se llega a
ser mujer u hombre a lo largo de todo un proceso en el cual intervienen
agentes socializadores tales como la familia, la escuela y otras institucio-
nes sociales”.
Além da distinção entre gênero e sexo, já comentada, e cuja cla-
reza constitui a base conceitual para qualquer aproximação ao tema de
gênero, existe uma série de conceitos que são necessários expor para
melhor compreensão do tema que estamos tratando neste capítulo intro-
dutório. Assim, é preciso definir rol/papéis de gênero como as funções
que as pessoas de distintos sexos exercem na sociedade. Normalmente,
consideram-se 3 tipos de papéis sociais: o reprodutivo ou doméstico
(relacionado com as tarefas da casa, criação dos filhos, subsistência); o
produtivo ou mercantil (atividades secundárias e terciárias, e também
primárias de caráter comercial); e o comunitário (trabalhos para a comu-
nidade ou sociedade). Tradicionalmente, a mulher é vinculada ao traba-
lho reprodutivo e o homem com o trabalho produtivo. Na literatura sobre
gênero, considera-se o triplo papel que pode ter a mulher: rol reprodu-
tivo, produtivo e o rol comunitário, trabalhando de diversas formas para
a comunidade. Quando as relações de gênero são de desigualdade, o que
ocorre em maior ou menor grau em todas as sociedades, diz-se que há
desigualdades funcionais ligadas aos papéis de gênero. Frequentemente,
a desigualdade de gênero é tratada na literatura como o “problema de
gênero”, tratamento este que não é o mais adequado, posto que a pro-

2 Ressalte-se que a teoria de gênero, apesar de ser fruto do Pensamento Feminista, é distinta
deste. Não é uma teoria sobre as mulheres, e sim sobre a construção sociocultural do gênero
e a atribuição de qualidades, aptidões e atitudes às pessoas em função de seu sexo biológico.
Atribui importância à socialização (família, trabalho, escola, etc..) na construção da identidade
de gênero (ver STOLKE, 2004).

20 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

blemática não vem estritamente da existência da “desigualdade” e sim da


“assimetria” (PEARSON, 1999). O conceito de assimetria de gênero implica
na existência da desigualdade funcional, como também na existência de
situações de domínio ou subordinação de gênero em uma ou várias fun-
ções sociais, e estão relacionadas com o desigual poder na tomada de deci-
sões, tanto no âmbito doméstico como produtivo e comunitário.
Denomina-se sistema de gênero a estrutura dos papéis de gênero
em uma sociedade em determinado momento, assim é possível falar de
rigidez, dinâmica de mudanças, etc... de um sistema de gênero. Normal-
mente, as distintas sociedades apontam razões de índole sociocultural
para justificar os distintos papéis de gênero. O estudo dessas razões é
parte importante das análises de gênero. Gasson (1995), por exemplo, em
um estudo sobre o tema de gênero nos sistemas agrários europeus, no
qual trata de analisar a divisão de trabalho entre gêneros na agricultura,
cita uma série de razões apontadas pelas sociedades rurais da Europa e
dos EUA para justificar a divisão do trabalho no núcleo exploração-casa.
Assim, os entrevistados afirmam que as mulheres têm características
diferenciadas (positivas e negativas) que determinam sua melhor adap-
tação a certas tarefas. Estas características, sempre expressas em relação
ao homem, são: a falta de força e capacidade física, maior habilidade e
destreza manual, instinto maternal, limitações para temas de mecânica,
falta de cultura de trabalho, etc.
Os fatores de natureza física são de objetividade duvidosa, pois,
como afirma Gasson (1995), na maioria das características físicas, as
distribuições de frequência de homens e mulheres não se confirmam,
pois, ainda que “o homem médio” é mais alto que a “mulher média”, há
mulheres mais altas e mais fortes que o homem médio. Quanto aos temas
de habilidade, destreza ou aptidões para a mecânica, dificilmente podem
se sustentar como causas objetivas de diferenciação de rol de gênero,
posto que estão relacionadas a aspectos educacionais e de formação pro-
fissional, ficando, assim, evidente que as razões socioculturais são as que,
em definitivo, determinam a divisão do trabalho.
Além dos conceitos básicos comentados, existem outros de grande
importância para a compreensão do tema de gênero no desenvolvimento:
trata-se dos conceitos de “interesse” e “necessidades” de gênero. Deno-
mina-se “interesse” de gênero os interesses que as mulheres e os homens
podem ter em virtude de sua posição na sociedade como consequência
de seu papel de gênero. Os interesses de gêneros condicionam e determi-
nam as “necessidades” de gênero, as quais são o elemento-chave para as
análises de gênero em desenvolvimento (FELDENSTEIN; POATS, 1990).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 21


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

Moser (1993) indica que as necessidades de gênero podem ser


práticas e estratégicas. As necessidades práticas de gênero (NPG) estão
relacionadas com o papel de gênero e, por sua vez, com as carências e
necessidades da vida cotidiana (creches, infraestrutura sanitária, abas-
tecimento de água, escolas, e outros). E as necessidades estratégicas de
gênero são derivadas de interesse de gênero, cuja consecução altera subs-
tancialmente os papéis de gênero, corrigindo assimetrias, ou seja, dimi-
nuindo situações de dependência ou subordinação social ligada ao sexo,
as quais se relacionam com temas como a divisão sexual do trabalho,
controle do poder social, violência doméstica, direitos legais, e outros.
Por fim, convém destacar um termo de uso recente, porém genera-
lizado, que é o de mainstreaming,3 o qual trata da perspectiva de incor-
poração da simetria de gênero nos projetos e processos políticos, fruto do
acordo final em 1995, na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres
em Beijing.
Após estes breves comentários conceituais, trata-se de explicar a
importância atual e crescente dos temas de gênero no desenvolvimento
rural, para, em seguida, proceder à breve apresentação dos distintos para-
digmas e modelos de gênero no desenvolvimento e reflexão sobre as
estratégias de gênero.

3 GÊNERO E DESENVOLVIMENTO RURAL

Registra-se nas últimas três décadas interesse crescente pelos estu-


dos sobre gênero e o desenvolvimento rural. As razões deste crescimento
são de índoles muito diversas, e, ademais, podem ser interdependentes
entre si, sendo que algumas delas são expostas e comentadas a seguir.
Frequentemente, justifica-se na literatura o interesse atual pelo
tema em razão de a mulher realizar porcentagem elevada das tarefas e
dos trabalhos nas sociedades rurais, particularmente nas mais tradicio-
nais.4 Por um lado, este argumento é certo; por outro, ele per si não é uma
causa desse interesse, pois o intenso trabalho da mulher em sociedades
rurais é algo que sempre foi uma realidade social, e não algo que tenha
aparecido recentemente, o que poderia equivocadamente se considerar

3 Mainstreaming tem o significado de integração de partes em um fluxo principal sem que fiquem
partes diferenciadas e se refere quando aplicado a gênero, à integração igualitária de homens e
mulheres em mesmo sistema socioeconômico, sem que dessa integração resultem diferenças.
4 A FAO (2000) estima que as mulheres produzem cerca de 70% a 80% dos alimentos para con-
sumo familiar nos países em desenvolvimento, e mais de 50% em todo o mundo.

22 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

que uma das causas deste interesse tem sido a tomada de consciência do
problema. Bella Abzug5 destaca, no prefácio da obra de Braidotti et al.
(1995), que da mesma forma que o burguês de Moliére surpreendeu-se
ao descobrir que passou a vida falando em prosa sem saber, as mulhe-
res estão surpreendendo-se ao perceberem que têm um papel-chave no
desenvolvimento e na interação com a natureza.
Para Calatrava Requena (2001), esta tomada de consciência geral
da problemática de gênero tem dois grandes motores: um nas socieda-
des ricas e outro nas menos favorecidas. A atenção social aos temas de
gênero decorre, de um lado, das mudanças no sistema de gênero dos
países mais desenvolvidos, especialmente nas zonas urbanas, e da influ-
ência social dos movimentos feministas, que acabam afetando também
as zonas rurais. Recentemente, o fenômeno da globalização, o uso de
novas tecnologias de comunicação de massa, o surgimento de estatísticas
e informações com elementos de gênero favorecem a expansão por todo
o planeta desta preocupação social pelas reivindicações de simetrias de
gênero. De outro lado, a implementação de projetos com componentes
de gênero nos países mais pobres, como estratégia de luta mais eficiente
contra a pobreza rural, também chamou a atenção para o tema. Note-se
que, nesse caso, a atenção nasce da práxis do desenvolvimento nas zonas
rurais e é expandida depois ao conjunto da sociedade.
Outro fator que tem contribuído para a visibilidade das questões de
gênero é a realização de determinadas ações institucionais, especialmente
durante a década da mulher (1975-85) declarada pelas Nações Unidas, e
que se concretizam tanto no âmbito do legislativo como na criação de
organismos nacionais e internacionais, e nas Organizações Não Gover-
namentais (ONG) específicas de gênero. Verifica-se que as orientações
dos organismos internacionais nesta temática têm seu precedente mais
importante na denominada Emenda Percy, a Lei de Cooperação Exterior
dos Estados Unidos, aprovada pelo Congresso norte-americano em 1973,
que introduzia estratégias de gênero explicitamente, pela primeira vez,
nos programas de cooperação de um país.
Ainda que o conhecimento sobre gênero e desenvolvimento tenha
ganho visibilidade, na prática, as realizações internacionais, até mea-
dos da década de 1970, não podiam ser consideradas satisfatórias, pois
somente 3,5% dos projetos de desenvolvimento patrocinados pelas
Nações Unidas tinham algum enfoque de gênero, e representavam cerca
de 0,2% do orçamento empregado (CALATRAVA REQUENA, 1998).

5 Fundadora da WEBO (Women's Environmental and Development Organization).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 23


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

Recentemente, temos registrados avanços importantes, como, por


exemplo, a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Beijing, em
1995, onde os governos acordaram a Plataforma de Ação Internacional,
subscrita por mais de 180 países, para aplicar estratégias de igualdade de
gênero, no contexto da estrita aplicação às mulheres dos Direitos Huma-
nos.6 Acordo firmado em 1998 entre várias ONGs internacionais de gênero
e o Banco Mundial, segundo o qual os investimentos que este organismo
realiza nos distintos países seriam considerados estratégias de gênero,
financiando projetos de desenvolvimento que promovessem o desenvolvi-
mento da mulher como também reduzissem as assimetrias de gênero. Pelo
acordo firmado, os membros das ONGs supervisionam a perspectiva de
gênero nos projetos de desenvolvimento do Banco Mundial.
É importante notar a evolução de abordagem dos Planos de Ação
da FAO: a denominação do Plano de 1989-1995 era Plano de Ação para a
Integração da Mulher no Desenvolvimento; a do Plano de 1996-2001 era
Plano de Ação para a Mulher no Desenvolvimento; já o Plano de 2002-
2007 era denominado de Plano de Ação sobre Gênero e Desenvolvimento.
De uma abordagem assistencial para mulher, evoluiu-se para uma atu-
ação de gênero inserida no paradigma Gênero e Desenvolvimento, a ser
discutido na próxima seção.
Kandiyoti (1990) identifica outras razões para a incorporação das
questões de gênero no desenvolvimento rural: por uma parte, o sistema
de gênero é uma característica sociodemográfica de uma comunidade
rural, da mesma forma que são o grau de envelhecimento, os níveis de
desigualdade social, o desemprego, e outros problemas sociais. Como
característica sociodemográfica, tem importância na hora de determinar
as possibilidades de desenvolvimento e elaborar estratégias adequadas.
Por outra parte, as potencialidades relacionadas com os recursos endó-
genos mobilizáveis estão ligadas aos papéis de gênero vigentes no sis-
tema sociocultural da comunidade local, e à medida que a maioria dos
potenciais do mundo rural aos mercados está constituída por produtos e
serviços que, tradicionalmente, vêm sendo realizados pelas mulheres, por

6 Balanço realizado pela FAO dos cinco anos da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher,
celebrada em Beijing, destaca que, após esta Conferência, registrou-se a crescente inclusão de
mulheres nas políticas e nos planos nacionais de ação em um número cada vez maior de países.
“Los gobiernos y los encargados de tomar las decisiones por fin se están dando cuenta de que
las mujeres, en particular las del medio rural, participan activamente en la economía y son un
vehículo importante del cambio social”, afirma Sissel Ekaas, titular de la Dirección de la Mujer y
de la Población. (ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA ALIMENTACIÓN Y LA
AGRICULTURA, 2000, on-line).

24 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

exemplo, artesanato, turismo rural e produtos processados de qualidade,


tornando-se relevante compreender e considerar tema de gênero nos pro-
cessos de desenvolvimento de áreas rurais.

4 PARADIGMAS E ESTRATÉGIAS

A compreensão da temática de gênero no desenvolvimento rural


requer rápida abordagem e comentários sobre a evolução de alguns con-
ceitos básicos vinculados ao desenvolvimento rural.7
Em meados do século XVIII, começa na Inglaterra a Revolução
Industrial, um fenômeno sem precedentes na história da humanidade que
permitiu a geração contínua de riqueza, sendo que esta, pela primeira vez
na história mundial, não foi parar totalmente nas mãos de nobres, reis e
imperadores, mas também afetou as grandes massas da sociedade. Este
fenômeno, conhecido como crescimento econômico, o qual Shumpeter,
em 1911, o denominou, pela primeira vez, de desenvolvimento econô-
mico, tem sido objeto de profunda reflexão desde então. Foi a partir da
Segunda Guerra Mundial que se desenvolveu na Europa e nos Estados
Unidos o que se denominou o “debate pré-paradigmático”,8 no qual foi
se configurando e sedimentando uma série de enfoques e modelos para
explicar o desenvolvimento e que resultou no paradigma da “expansão
do núcleo capitalista”, considerado na literatura como o primeiro para-
digma explicativo do desenvolvimento, configurado no âmbito da orto-
doxia da Teoria Econômica neoclássica.
Nos anos 1950, surge o paradigma neomarxista do desenvolvi-
mento-subdesenvolvimento, elaborado inicialmente por Paul Baran e
ampliado posteriormente, nos 1960, por Gunder Frank e Enmanuel. Desde
então, os diferentes paradigmas que se foram propondo para explicar e
analisar o fenômeno do desenvolvimento-subdesenvolvimento o fizeram
a partir do enfoque baseado no paradigma neoclássico ou no enfoque
neomarxista, ou seja, os modelos de “equilíbrio” e de “conflito”, respecti-
vamente, denominados pela sociologia do desenvolvimento.
Além destes tradicionais paradigmas, têm surgido outros que bus-
cam explicar, com maior ou menor acerto, o fenômeno desenvolvimento.
Assim, podemos falar dos paradigmas da dependência ou centro-Peri-
feria, maoísta, de necessidades básicas, neoclássico revisado, e, recen-

7 Para visão mais ampliada sobre o assunto, ver Calatrava Requena (1993).
8 Rosentein-Rodan, Nurkse, Hirshman, Leibenstein, Myrdal, Lewis e Rostow são, entre outros, os
pensadores que participaram, em maior ou menor grau, deste debate pré-paradigmático.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 25


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

temente, ecodesenvolvimentista, que se postula como independente da


confrontação neoclássicos-neomarxistas, e tem o respeito pela natureza
como sua característica principal.9
Até chegar à situação atual no pensamento sobre o desenvolvi-
mento, e a partir do conceito de desenvolvimento como crescimento eco-
nômico global baseado na concentração urbana de atividade industrial e
de serviços, tem existido uma evolução que se manifestou, entre outros,
e, sobretudo, em dois sentidos, a saber: o âmbito espacial do desenvolvi-
mento e os objetivos perseguidos com o desenvolvimento.
No âmbito espacial, a aplicação de modelos globais de desenvol-
vimento de natureza centralizada e de concentração industrial urbana
propiciou diferenças de interterritorialidades, já que o desenvolvimento
industrial estava acrescentando às desigualdades socioeconômicas de
classe as desigualdades territoriais inter e intrapaíses. Essas desigual-
dades geraram, nos países mais desenvolvidos, uma preocupação pelos
espaços que iam ficando mais atrasados, dando lugar, inicialmente, aos
conceitos de desenvolvimento regional e, posteriormente, de desenvolvi-
mento local, o qual ganha destaque nas estratégias de desenvolvimento,
motivado tanto pela crise econômica de 1973 como pela crescente pre-
ocupação ambiental e uma valoração cada vez maior dos espaços rurais
por parte da sociedade urbana. Ressalte-se que esta valorização crescente
dos espaços rurais decorre, por um lado, da constatação de despovo-
amento desses espaços e pela situação das comunidades locais, como
também da consciência ambiental e do nascimento de uma demanda
urbana de atividades recreativas no meio rural. Com efeito, os paradig-
mas desenvolvimentistas mais recentes, gerados depois da década de
1970, já levam implícita em sua filosofia a dimensão local do desenvol-
vimento, por exemplo, o paradigma ecodesenvolvimentista. Enfatize-se
que o enfoque de desenvolvimento local surge praticamente ao mesmo
tempo nos países mais ricos, os quais estavam culminando o seu pro-
cesso de desenvolvimento industrial, e nos países com maior pobreza e
maiores níveis de subdesenvolvimento em suas zonas rurais. No primeiro,
surge como um instrumento, em certa medida, marginal, para corrigir os
efeitos negativos que algumas zonas rurais exerciam sobre o desenvolvi-
mento industrial, enquanto nos países mais pobres, como a Índia, ocorre
como uma estratégia genérica e prioritária de desenvolvimento para ten-

9 Não podemos abordar aqui o conteúdo de todos estes paradigmas que marcam a evolução do pensa-
mento sobre o fenômeno do desenvolvimento. A literatura sobre eles é mais que abundante e deta-
lhada. Entre muitos outros autores, Hunt (1989) oferece uma descrição dos diferentes paradigmas.

26 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

tar resolver problemas de subdesenvolvimento da abundante população


rural e, portanto, do conjunto do país. A proposta do desenvolvimento
local não nasce especificamente para zonas rurais, no entanto, é nelas em
que atinge maior especificidade teórica e vigência.
Esta dupla origem do desenvolvimento local de áreas rurais, sur-
gindo, ao mesmo tempo, de duas realidades tão diferentes (mundo desen-
volvido e mundo em desenvolvimento), marcará uma verdadeira polari-
zação nas teorias e praxis de muitos aspectos do desenvolvimento rural:
o caso dos estudos de gênero no desenvolvimento é um exemplo dessa
polarização.
Efetivamente, o tema das análises do gênero vinculadas ao desen-
volvimento rural surge ao mesmo tempo nas sociedades rurais dos países
mais avançados e nas sociedades mais tradicionais dos países em vias de
desenvolvimento, criando, em ambos os casos, elementos conceituais,
terminológicos, teorias e instrumentos de análises que têm enriquecido o
corpus científico sobre o problema de gênero no desenvolvimento.
Quanto aos objetivos do desenvolvimento, é possível afirmar que
evoluíram, passando da interpretação de mero crescimento econômico
como finalidade primordial do desenvolvimento para a consideração das
demandas de melhoria dos níveis de distribuição do produto, de equidade
econômica entre os diferentes grupos sociais, de bem-estar social e ser-
viços sociais, de maior lazer, tempo livre, qualidade de vida e ambiental,
entre outros. Assim, atualmente, o desenvolvimento, enquanto modelo
teórico, aparece como um processo que trata de maximizar o bem-estar
social, conceito complexo que é função das dimensões de natureza eco-
nômica, social e ambiental. Ademais, os aspectos ambientais já aparecem
claramente contemplados nos modelos de desenvolvimento como com-
ponentes do bem-estar social (SAINT MARC, 1971).
Mas dado que o conceito de bem-estar é um conceito dinâmico e
que pode variar bastante de uma geração a outra, qual seria o bem-estar
que devemos sustentar para as gerações futuras? Ante a impossibilidade
de responder a esta pergunta, parece que o mais lógico é sustentar o nível
de recursos naturais para que as gerações futuras tenham ao menos as
mesmas possibilidades que a geração atual tem para utilizar esses recur-
sos na consecução do seu bem-estar (GRAHAM-TOMASI, 1991; LOCKE-
RETZ, 1991). Assim, chega-se ao conceito de sustentabilidade em termos
de recursos naturais: nesse contexto, a sustentabilidade pode ser conce-
bida em sentido estrito ou “forte” (strong sustainability) ou em sentido
“débil” (weak sustainability): no primeiro caso, a consecução da sustenta-
bilidade exige que, no mínimo, se mantenha o estoque de capital natural,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 27


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

enquanto no segundo basta a manutenção do estoque de capital global.


Qualquer enfoque minimamente ecológico do desenvolvimento exige um
objetivo de sustentabilidade10 em sentido estrito (BRAIDOTTI et al., 1995).
García Ramón e Baylina Ferré (2000) chamam a atenção para o
fato de que as características genéricas básicas postuladas na literatura
do desenvolvimento, como desejáveis ou necessárias para um modelo
de desenvolvimento rural – integralidade, endogeneidade, naturalidade,
harmonia e equilíbrio, autonomia local de gerenciamento e controle,
seletividade, especificidade e sustentabilidade –, não estão relacionadas,
de forma explícita, com o tema de gênero, ainda que este surja, necessa-
riamente, ao instrumentalizar, na prática, essas características.
Para Molyneux (1985), isso ocorre porque o tema de gênero, nos
enfoques mais convencionais de desenvolvimento local, surge mais
como uma necessidade instrumental do que como um objetivo. Nisso
reside, precisamente, a diferença entre os enfoques mais convencionais
de gênero no desenvolvimento e o enfoque de planejamento de gênero
(gender planning), no qual o tema de gênero constitui-se em objetivo
prioritário, praticamente uma condição necessária para o desenvolvi-
mento, enquanto nas demais abordagens a simetria de gênero é tratada
como possível resultado dos objetivos de índoles diversas (econômicos,
socioculturais e ambientais).
É consenso que a evolução dos objetivos do desenvolvimento não
se deterá na sustentabilidade ambiental, uma vez que novas exigências
são constantemente postas e incorporadas aos processos de desenvol-
vimento. Da mesma forma que hoje não se pode falar de desenvolvi-
mento sem sustentabilidade, certamente, em um futuro muito próximo,
não será possível considerar como desenvolvimento aquele processo de
crescimento econômico, com certos lucros sociais e culturais, econômico
e ecologicamente sustentável, mas que mantém as assimetrias de gênero.
Antes da década de 1970, a visão do problema de gênero por parte
das organizações responsáveis pelo desenvolvimento era muita limitada,
pois o papel da mulher era percebido somente em sua faceta reprodu-
tiva ou produtiva em pequena escala, ligada às atividades domésticas.
Nesse período, a maioria das atividades e abordagens ao tema de gênero
no meio rural estava relacionada com as seguintes atividades: estudos,
referentes ao impacto que o desenvolvimento estava tendo sobre o tema

10 Sobre a problemática conceitual do termo sustentabilidade e desenvolvimento sustentável e


suas implicações agrárias, existem diversos trabalhos: Graham-Tomasi (1991), Lockeretz (1991)
e Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura (2002).

28 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

de gênero nas comunidades rurais; e de análises da situação e programas


de apoio à mulher rural nas zonas rurais, basicamente focalizados em
apoiar a mulher em seu rol reprodutivo e produtivo ligado à atividade
doméstica. Os trabalhos de Economia Doméstica dos Serviços de Exten-
são Agrária são bons exemplos.
Nos países desenvolvidos, estes estudos preocupavam-se mais em
identificar os efeitos do desenvolvimento sobre as situações de gênero do
que compreender o impacto das situações de gênero sobre o desenvolvi-
mento. No caso dos países em desenvolvimento, as análises e os projetos
estavam relacionados à luta contra a pobreza da mulher rural, e tinham
um componente assistencial de apoio e ajuda à mulher.
É somente a partir dos anos 1970 que a cegueira em relação ao
papel ativo da mulher é superada, pelo menos em parte, com as análises
da economista Esther Boserup (BOSERUP, 1970), a qual demonstra que
o processo de industrialização nos países do Terceiro Mundo provocou
a perda de trabalho das mulheres, já que os produtos artesanais que elas
fabricavam no seio da produção familiar são substituídos por produtos de
fábrica que foram produzidos por uma mão de obra predominantemente
masculina. Assim, conclui que a modernização, ao reduzir a participação
da mulher nas atividades econômicas, teve um efeito prejudicial para
a mulher das zonas rurais dos países periféricos. A perspectiva desta
autora sustenta-se na convicção de que as desigualdades sociais de cará-
ter sexual são o resultado da expulsão da mulher do sistema produtivo
(FERNÁNDEZ-KELLY, 1991).
A partir de então, surgem diversos modelos ou enfoques que incor-
poram a dimensão de gênero no desenvolvimento. A seguir, descrevem-se
os traços básicos dos principais paradigmas sobre gênero e desenvol-
vimento, quais sejam: Mulheres e Desenvolvimento (MED), Gênero e
Desenvolvimento (GED), Mulher, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sus-
tentável (MMA) e Planejamento de Gênero (PG).

4.1 Paradigma Mulheres e Desenvolvimento (MED)

Este enfoque foi proposto na Conferência do México, em 1975,


quando a Organização das Nações Unidas celebrou o Ano Internacional
das Mulheres e inaugurou a Década da Mulher (1975-85), cujo desafio
era o que e como fazer para que as mulheres fossem beneficiárias do
desenvolvimento.
A base teórica do enfoque MED foi o livro de Esther Boserup,
Women’s role in economic development (1970), que descortina os efeitos

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 29


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

do desenvolvimento (ou modernização) sobre as mulheres do Terceiro


Mundo. A partir de uma visão dual da sociedade, Boserup sustenta a tese
de que a mulher formava parte do setor arcaico e atrasado das sociedades
periféricas e, portanto, permanecia marginal ao desenvolvimento.
O objetivo inicial desta corrente é alcançar a visibilidade da mulher
como categoria nas investigações e nas políticas de desenvolvimento,
com o fim de eliminar sua marginalização nos processos de desenvolvi-
mento. Pela primeira vez, afirma-se que a posição subordinada da mulher
é um obstáculo para o desenvolvimento, ainda que esta corrente não
questione os postulados do enfoque da modernização (AFSHAR, 1999;
LUNA, 1999).
Sob a denominação de “Mulheres e Desenvolvimento” (MED)11, há
uma série de enfoques que têm em comum o fato de implementar, de
forma prioritária, programas específicos para incrementar a participação
da mulher no desenvolvimento. As principais características desses enfo-
ques MED são:
Identificam a mulher como um grupo com necessidades especiais
dentro da comunidade local.
Consequentemente, este grupo deve ser “ajudado”. “É um enfoque
de ajuda” à mulher.
Não questionam, de forma pelo menos explícita, os papéis de
gênero.
Consideram a mulher, normalmente dentro de seu papel, como
um recurso humano não bem utilizado, o qual pode gerar uma
importante contribuição econômica ao desenvolvimento.
Atendem geralmente às necessidades práticas de gênero.
As críticas ao enfoque liberal feminista dos anos 1970 são oriundas
principalmente da corrente feminista marxista ou socialista, e podem ser
agrupadas em dois blocos: o primeiro concentra-se na análise do desen-
volvimento existente e o papel das mulheres; o segundo centra-se na
questão da caracterização da subordinação feminina e sua relação com
outras opressões.
A premissa básica do MED de que “o desenvolvimento tem mar-
ginalizado as mulheres e é necessário integrá-las a ele” é falsa segundo
a posição crítica. As mulheres estão integradas no processo de desen-

11 Para maior aprofundamento sobre os enfoques MED, ver: Bhasin (1977), Kandiyoti (1990),
Moser (1993), Organización de las Naciones Unidas para la Alimentación y la Agricultura
(1995), Pereira e Rambla (2010), United States Agency International Development (1978, 1982)
e Whatmore (1991).

30 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

volvimento, porém, é a forma de integração que deve ser questionada e


investigada. O enfoque MED, ao definir os problemas das mulheres em
termos das necessidades básicas das famílias, e não tanto com base na
subordinação que elas experimentam na esfera reprodutiva, resulta em
programas de desenvolvimento que priorizam a produção das mulheres
pobres no âmbito doméstico e nos ofícios tradicionalmente femininos
– como a costura. Este tipo de programa serve para reforçar o caráter
secundário da mulher na esfera produtiva, assim como para estimular o
trabalho gratuito das mulheres e reafirmar sua posição na esfera reprodu-
tiva. Ante este panorama, é improvável que ocorram mudanças das rela-
ções de poder entre homens e mulheres (AFSHAR, 1999; ZABALA, 1999).
Ademais, ao estimular o trabalho comunitário e de baixa produtivi-
dade, o enfoque MED contribui para aumentar a carga de trabalho total das
mulheres, sem, contudo, representar maior renda e acesso ao poder econô-
mico. Diante dessa realidade, afirma-se na literatura que o enfoque MED
tende a estimular que as mulheres trabalhem para o desenvolvimento, em
vez de oportunizar que o desenvolvimento trabalhe para elas.12

4.2 Paradigma Gênero e Desenvolvimento (GED)

É em 1985, com a Terceira Conferência Mundial da Mulher, em que


as mulheres dos países em desenvolvimento questionam as estratégias de
desenvolvimento, evidenciam a necessidade de promover um paradigma
alternativo, no qual os problemas das mulheres não sejam considerados
como um problema isolado de um grupo social, e sim como resultado e
responsabilidade do funcionamento do sistema de gênero, que impõe às
mulheres papéis de subordinação e marginalização na sociedade. Não se
trata de adaptar a forma de vida das mulheres ao modelo de desenvolvi-
mento existente, e, sim, desenvolver um novo paradigma que contemple
a realidade de um sistema desigual que não permite a geração espon-
tânea de autonomia para as mulheres. Assim, no marco da cooperação
para o desenvolvimento das Nações Unidas, surge o enfoque denominado
Gênero e Desenvolvimento – GED.
O enfoque GED diferencia-se do MED principalmente por superar
a visão do “essencialismo feminino” e adotar uma “visão relacional de

12 Estes programas sintonizam perfeitamente com os objetivos das políticas de ajuste estrutural,
cujas premissas se traduzem na redução da despesa pública a título de utilizar o trabalho gra-
tuito das mulheres como recurso infinitamente elástico para seguir satisfazendo as necessidades
familiares, informa Parella (2003).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 31


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

gênero”, ou seja, ao invés de centrar sua atenção nas mudanças que as


mulheres devem experimentar para que o processo de desenvolvimento
seja possível, considera que o desenvolvimento compete tanto a mulheres
como a homens e centra a ênfase na análise e nas estratégias de modifi-
cação das relações de gênero (LUNA, 1999).
Calatrava Requena (1998) identifica quatro características diferen-
ciais entre estas abordagens:
Enquanto o enfoque MED pretende “ajudar” a mulher no desen-
volvimento, o enfoque GED não considera correta a estratégia
de tratar as mulheres como um grupo isolado do resto da comu-
nidade local, que requer atenções e programas especiais, senão
que reclama um tratamento do tema do gênero no conjunto da
comunidade.
GED é um enfoque de conflito, pois propõe que, enquanto não se
resolvam os problemas de igualdade e de subordinação, a eficá-
cia de programas e projetos de ajuda à mulher é muito limitada.
É um enfoque, portanto, bem mais radical que o MED, o que
explica, em grande parte, a popularidade deste último enfoque
entre os organismos de cooperação internacional.
GED propõe priorizar o atendimento das necessidades estratégi-
cas de gênero.
O paradigma GED requer que sejam introduzidos elementos
analíticos específicos de gênero na fase de diagnóstico, do planeja-
mento do desenvolvimento, de forma a detectar e identificar clara-
mente todos os elementos que constituem o sistema de gênero (papéis,
interesses, necessidades, etc). Devido a essa necessidade, organismos
internacionais têm elaborado propostas metodológicas específicas,
como a ASEG (Análise Sócio-Econômica e de Gênero), postulada pela
Food Agriculture Organization (FAO), e a Organização Internacional
do Trabalho (OIT).

4.3 Paradigma Mulher, Meio Ambiente e Desenvolvimento


Sustentável (MMD)13

Este paradigma começou a ser gestado no final da década de 1970


e cristalizou-se em trabalhos e artigos durante a década de 1980. Resu-
midamente, suas principais características são:

13 Identificado na literatura pela sigla WED (Womem, Environment, Development).

32 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

Defende a tese de que, como consequência da desigualdade de


papéis, atualmente, a mulher está mais próxima da natureza e de
sua conservação do que o homem, já que, durante séculos, é ela
que vem ocupando-se das necessidades de subsistência.
Considerando que a sustentabilidade ambiental é o objetivo
fundamental do desenvolvimento, afirma que a mulher deve
adquirir especial relevância na gestão e execução dos proje-
tos de desenvolvimento sustentável. Ou seja, deve ter um papel
mais relevante que o do homem se o objetivo for alcançar a
sustentabilidade ambiental no desenvolvimento de forma mais
eficiente.14
Considera-se a Conferência de Nairobi, de 1985, como o marco ini-
cial deste paradigma. Os estudos de Mies (1986), desde o neomarxismo, e
o de Shiva (1989, 1990), a partir da filosofia hindu e a preocupação com
a pobreza e desenvolvimento rural na Índia, são os trabalhos pioneiros.
Outros trabalhos que podem ser consultados sobre o tema são os de Aga-
rwal e Narain (1985), Agarwal (1989, 1992), Brow (1991), Dakelman e
Davidson (1988), Buechner (1991) e Sachs (1996).
Existe uma forte polêmica em torno do postulado de maior capaci-
dade feminina para a gestão de recursos naturais e o respeito à natureza
vis-à-vis ao homem, que busca, pelo contrário, dominá-la. Este para-
digma constitui a base do Essencialismo, uma corrente atual do Ecofe-
minismo, que está aportando à literatura científica valiosos elementos
de reflexão tanto sobre o tema do gênero, meio ambiente e desenvol-
vimento, como também de natureza epistemológica, pondo em questão
o atual conceito de ciência e de método científico, o qual se considera
como associado ao gênero masculino (BUECHNER, 1991).
Na literatura socioeconômica da década de 1990, tem se registrado
um crescimento de trabalhos de base empírica, empregando técnicas eco-
nométricas, tendentes a contrastar, quase sempre na agricultura, uma
maior aptidão feminina, não somente para os temas de meio ambiente,
como também para aspectos relacionados com a capacidade para a ado-
ção de novas tecnologias, para o aproveitamento de ensino agrário, e
de maior produtividade na exploração agrária. Os estudos de Granados
e Calatrava Requena (1993), Haugen e Brandth (1994), Alderman et al.
(1995), Quisumbing (1995) e Quisumbing et al. (2000) são exemplos de
trabalhos que retratam este tema.

14 Para uma discussão mais detalhada do Paradigma Mulher, Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável, ver Braidotti et al. (1995).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 33


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

4.4 Paradigma Planejamento de Gênero (PG)

Nos paradigmas anteriores, o problema de gênero está sempre


subordinado aos objetivos do desenvolvimento. No paradigma de Pla-
nejamento de Gênero (PG), pelo contrário, o gênero adquire por si a
dimensão do objetivo, supondo, portanto, uma nova tradição de pla-
nejamento do desenvolvimento rural orientada para a consecução dos
objetivos de gênero. Nessa perspectiva, um objetivo principal do desen-
volvimento é corrigir as assimetrias de gênero existentes na comuni-
dade local, liberando a mulher de seu papel subordinado e proporcio-
nando uma situação de igualdade e equidade entre ambos os sexos.
Essa igualdade há de ser obtida nos seguintes planos: igualdade no rol
de gênero na divisão do trabalho e da capacidade de decisão sobre os
recursos domésticos (simetria no rol reprodutivo doméstico); igualdade
de gênero no mercado de trabalho (simetria no rol produtivo); igual-
dade de participação em nível local e nacional nos processos políticos
(simetria no rol comunitário).
No paradigma PG, a simetria de gênero é o objetivo principal
do desenvolvimento, tão necessário quanto o incremento e a distri-
buição da riqueza ou a sustentabilidade ambiental. A diferença entre
PG e GED está no fato de que, no paradigma GED, o gênero aparece
como estratégia para o desenvolvimento e, no PG, é um objetivo em
si mesmo.
O PG baseia-se nos mesmos conceitos e elementos analíticos dos
demais enfoques aqui apresentados, e surge no final dos anos 1980,
como consequência, segundo Moser (1993), de dois fatores: esfriamento
no interesse, no final da década de 1980, das questões de gênero, em
virtude da mudança no contexto econômico global, que é substituído
por um enfoque mais dirigido para a consecução de maior eficiência
produtiva e na alocação de recursos; em segundo lugar, pelo relativo fra-
casso dos enfoques MED e GED na obtenção de maior simetria de gênero
nas sociedades rurais, e dos objetivos convencionais do desenvolvimento
mediante estratégias de gênero.
Essas razões influenciaram a radicalização da teoria de gênero no
desenvolvimento com o surgimento deste novo paradigma, mais contun-
dente que os anteriores.15

15 Para exposição mais detalhada deste paradigma e sua aplicação a projetos concretos, o leitor
interessado pode consultar os trabalhos pioneiros de Levy (1991), Kabeer (1992), Hannan-Ander-
son (1992) e Moser (1989, 1993).

34 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

5 MODELOS DE PROJETOS EM GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO

Os paradigmas anteriormente descritos respondem a distintos enfo-


ques sobre o tratamento dos problemas de gênero no desenvolvimento,
que não necessariamente são alternativos, nem facilmente separáveis e
identificáveis como tais em reais processos de desenvolvimento.
Por isso, com frequência, na literatura definem-se modelos de
gênero no desenvolvimento baseados no objetivo principal que se esta-
belece como meta das estratégias de gênero. Com base em proposta de
Moser (1993), Calatrava Requena (1997) estabeleceu tipologia de mode-
los, os quais são utilizados, especialmente, pelos organismos de coopera-
ção internacional.
De Bem-estar (Welfare Approach):16 é anterior ao aparecimento
do enfoque MED, e representa a abordagem de gênero no desenvol-
vimento praticada no período 1950-1970. Ainda hoje, utiliza-se
este modelo que considera o papel reprodutivo e doméstico como
o mais importante da mulher. Trata de atender àquelas necessi-
dades práticas de gênero relacionadas com a nutrição e o plane-
jamento familiar: as mulheres são, de acordo com Moser (1993),
“beneficiárias passivas do desenvolvimento”, mediante a imple-
mentação de projetos específicos e assistenciais à mulher.
De Equidade (Equity Approach): contempla a mulher como
participante ativa no desenvolvimento em seus três papéis, e o
objetivo é atingir maior igualdade entre homens e mulheres no
desenvolvimento. Trata, portanto, de atender às necessidades
estratégicas de gênero. Desenvolveu-se, principalmente, durante
a Década da Mulher (1975-1985). Está identificado na literatura
com os enfoques GED e PG, e, dado seu caráter de conflito, tem
sido muito criticado e considerado como originário do feminismo
ocidental mais radical. Por isso, conforme Kabeer (1992), não
é muito popular entre governos e organismos internacionais de
cooperação.
Antipobreza (Anti-Poverty Approach): considerado como o
modelo típico do enfoque MED. Trata de incrementar a produtivi-
dade do trabalho da mulher. Neste modelo, a situação de pobreza
da mulher é vista e tratada somente como resultado do subdesen-
volvimento e não da subordinação de gênero. O modelo procura

16 Para mais detalhes e crítica a este modelo, ver Ajamil (1999).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 35


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

potencializar o papel produtivo da mulher mediante projetos de


produção de pequena escala para incrementar seu nível de renda
(ou sua contribuição à renda familiar). Apesar de suas limitações
ideológicas, na prática é um enfoque muito utilizado, sobretudo
por pequenas ONGs que não podem abordar projetos demasia-
damente ambiciosos. Atende somente a necessidades práticas de
gênero. Para Schmukler (1998), esta estratégia tem resultado em
projetos de pequena escala, com baixa produtividade, assentados
na lógica do setor informal e em atividades que reforçam o papel
tradicional feminino.
De Eficiência (Efficiency Approach): é o enfoque MED que pre-
domina. Sua ideia básica é a de que a contribuição econômica da
mulher no desenvolvimento será maior quanto maior for a equi-
dade entre gêneros. No entanto, o modelo prioriza o atendimento
das necessidades práticas de gênero (carências e necessidades da
vida cotidiana das mulheres), não porque ignore as necessidades
estratégicas (divisão sexual do trabalho, violência doméstica, dis-
criminação, etc), particularmente as associadas com a equidade,
mas porque entende que a atenção às primeiras tem, no curto
prazo, maior impacto na contribuição da mulher à economia
local, que é o principal objetivo do modelo. É um modelo em que
podem ser localizadas muitas das atuações atuais. Registre-se
que o paradigma Mulher, Meio Ambiente e Desenvolvimento, em
sua filosofia, aproxima-se deste modelo de eficiência, ainda que
sua prática seja distinta.
De acesso a maior poder social (Empowerment Approach): alguns
autores consideram-no como uma versão atualizada do enfoque
de Equidade, com o qual tem grandes similitudes, e realmente
nasce, de acordo com Moser (1993), para corrigir falhas e contra-
dições deste último. A ideia básica é que se a mulher adquire maior
poder social e institucional na comunidade local, isso favorecerá o
desenvolvimento. Propõe a consecução das necessidades estratégi-
cas de gênero, mas não como objetivos de desenvolvimento, senão
de forma indireta, a partir de atendimento das necessidades prá-
ticas. Poderíamos dizer que se trata de um modelo com intenções
GED, mas com estratégias de ação baseadas no paradigma MED.
É um modelo que vem sendo utilizado de forma crescente pelas
ONGs de pequena e média dimensão.
De sustentabilidade do meio ambiente: a sustentabilidade
ambiental é o principal objetivo, e para ser alcançado de forma

36 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Rosângela Saldanha Pereira

mais eficiente, precisa de estratégias de gênero, no qual a mulher


contempla um papel preponderante no desenvolvimento, devido
ao seu valor intrínseco do gênero feminino em ter maior habili-
dade para a gestão sustentável da natureza. Poderia ser enqua-
drado como modelo de eficiência, porém sua peculiaridade
ambiental confere-lhe características diferenciadas. Coincide
com a filosofia de base do paradigma MMD.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As teorias e os modelos existentes sobre gênero e desenvolvimento,


que foram expostos brevemente neste capítulo, proporcionam bases con-
ceituais e ferramentas analíticas suficientes para, a princípio, elaborar
estratégias de gênero mais adequadas para o processo de desenvolvi-
mento de uma comunidade rural. A natureza da função de bem-estar
social, o conhecimento das características do sistema de gênero vigente,
das necessidades práticas e estratégicas de gênero e seu grau de per-
cepção local devem permitir, pelo menos teoricamente, identificar esta
estratégia. Por outra parte, hoje é possível analisar a eficiência de um
processo de desenvolvimento rural concreto a partir da perspectiva de
gênero, tanto em nível global como projeto a projeto, utilizando os ele-
mentos conceituais e analíticos existentes. Na prática, no entanto, o tema
não é tão fácil, pois, na intenção de elaborar a estratégia ótima de gênero
para o desenvolvimento, a comunidade rural poderá deparar-se com o
problema de priorização das necessidades de gênero, e de difícil solução.
A consideração do tema de gênero no desenvolvimento rural sus-
cita uma polêmica crucial: dados os papéis de gênero vigentes em uma
sociedade rural, os quais encerram em si um potencial endógeno de
desenvolvimento local, o desenvolvimento poderia, pelo menos em curto
prazo, aprofundar as assimetrias de gênero. A questão relevante é como
atuar se o objetivo de eficiência e crescimento econômico do desenvolvi-
mento e a redução das assimetrias de gênero podem aparecer, pelo menos
no curto prazo, como objetivos contrapostos? Qual deve ser a estratégia
de gênero em cada caso?
Os paradigmas ou enfoques gerais aqui comentados supõem dis-
tintos posicionamentos para responder a estas perguntas, e nenhum deles
aparece como superior aos demais sob o ponto de vista de estratégias.
O enfoque MED, e em grande parte também o GED e o MMD, trata o pro-
blema de gênero dentro da esfera do desenvolvimento e subordinam, par-
ticularmente, o MED às estratégias de gênero à consecução dos objetivos

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 37


Abordagem Teórica sobre a Questão de Gênero e Desenvolvimento Rural:
dos projetos assistenciais ao planejamento de gênero

de desenvolvimento. O enfoque baseado no PG, pelo contrário, considera


que o planejamento de gênero é diferente do processo de desenvolvi-
mento, e que os objetivos de gênero devem ser considerados, em certa
medida, uma exigência para o desenvolvimento, assim como é hoje a
sustentabilidade ambiental, por exemplo.
Na maioria dos casos de comunidades rurais no Terceiro Mundo,
e também em muitas zonas rurais de países desenvolvidos, a aplicação
estrita e imediata do PG seria, segundo Calatrava Requena (1997), incom-
patível, a curto e médio prazo, com a cronologia de qualquer processo
de desenvolvimento. Isso não significa que a satisfação de necessidades
de gênero, tanto práticas como estratégicas, seja incompatível com os
objetivos próprios do desenvolvimento, mas o tempo necessário para o
atendimento destes objetivos é que é diferente.
A literatura recomenda que se deve avançar por etapas, de tal
maneira que, em um primeiro momento, sejam atendidas as necessida-
des práticas de gênero, as quais não irão ser nunca incompatíveis com
os objetivos econômicos de desenvolvimento, e quando o processo de
desenvolvimento tenha atingido um maior grau de maturidade, incorpo-
ram-se objetivos relativos ao atendimento das necessidades estratégicas
de gênero, de modo que o desenvolvimento contemple todas as necessi-
dades de gênero.
Hoje, em um mundo globalizado, conectado e estruturado em redes,
onde a informação e o conhecimento fluem rapidamente, e a tomada de
consciência dos problemas dissemina-se espacialmente, tendendo a uni-
versalizar-se, ainda estamos em busca da “mulher rural nova”, expressão
utilizada por Busard (1928),17 em princípios do século XX, especialmente
nas sociedades rurais dos países em vias de desenvolvimento, onde o
patriarcado limita em grande medida qualquer atividade laboral, empre-
sarial ou institucional da mulher rural que queira romper com os limites
do papel social que a sociedade atribui.

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17 Odette Bussard é uma conhecida agrônoma francesa, que, em 1906, escreveu sobre a polêmica
de gênero e desenvolvimento, no qual sua visão, ainda válida atualmente, é a de atuar, no curto
prazo, no atendimento às necessidades básicas de gênero (BUSARD, 1928).

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 41


CAPÍTULO 2

Algunos abordajes teoricos para


el analisis del desarrollo rural con
una perspectiva de genero

Maria Adelaida Farah Quijano


María Adelaida Farah Quijano

1 INTRODUCCIÓN

Este capítulo busca ofrecer algunos abordajes teóricos y concep-


tuales para el análisis de las transformaciones rurales con una perspectiva
de género, y contribuir de esta manera al entendimiento de las dinámicas
de género que están imbuidas en los cambios productivos, sociales, cul-
turales y demográficos del mundo rural latinoamericano. Autoras como
Deere y León (2001), y Chant y Craske (2003) han explicado e ilustrado
cómo estas transformaciones han implicado cambios en las relaciones de
género. Sin embargo, todavía hay muchos vacíos de investigación que
necesitan ser abordados con el fin de tener una mayor comprensión de
la complejidad de las dinámicas de género en América Latina en un con-
texto de ruralidades cambiantes. La nueva ruralidad ha sido un enfoque
que desde mediados de los años noventa del siglo XX ha contribuido al
entendimiento de las transformaciones rurales en América Latina. Algu-
nos de sus estudios han analizado los efectos de dichas transformaciones
sobre las mujeres, como los resultados presentados por Staduto, Souza
y Nascimento en este libro y anteriormente por otros autores como por
ejemplo Lara Flores (1995), Pérez y Farah (1998, 2003a, 2003b), Castro,
Porras y Ranaboldo (2008), Paulson (2010) y Portillo (2010). Sin embargo,
muy pocos investigadores han introducido una perspectiva de género
más amplia al estudio de las dinámicas en los espacios rurales.
Este capítulo se enfocará en especial en los cambios en las relaciones
de género al interior de los hogares rurales y en concreto en el poder de
negociación que se da al interior de los hogares en relación con los recur-
sos (por ejemplo: tierra, vivienda, dinero, alimentos, entre otros) como
parte de las transformaciones rurales. Se explicarán aquí cinco abordajes
teóricos y conceptuales. En primer lugar, se hará una breve presentación
sobre el enfoque de la nueva ruralidad y las cuestiones de género que hay
en él. En segundo lugar, el enfoque “trayectoria o curso de vida” es una
buena base teórica que permite construir una comprensión dinámica de
las transformaciones de las relaciones de género dentro del hogar y su
interacción con otros cambios institucionales. El tercer componente con-
ceptual es la noción de relaciones de género entendidas como relaciones
de poder, en donde no sólo se pone atención en las mujeres sino también
en los hombres y las relaciones entre los dos. También es importante la
división sexual del trabajo entre las actividades productivas y reproducti-
vas, lo cual forma parte del poder de negociación dentro del hogar. Dado
que la negociación en los hogares no está aislada sino que está conectada
con lo que ocurre en otros ámbitos institucionales, como la comunidad,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 45


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

el mercado y el Estado, el cuarto componente del marco conceptual es el


enfoque institucional en el que la interacción entre las instituciones es un
elemento clave que ocurre en el contexto socio-económico más amplio
de la nueva ruralidad en América Latina. El quinto y último componente
del abordaje teórico es el concepto de poder de negociación, entendido
desde el enfoque tridimensional (recursos, agencia y resultados) tal como
es usado por Kabeer (1999a).

2 EL ENFOQUE DE LA NUEVA RURALIDAD

Desde mediados de la década del noventa ha habido un enfoque


de desarrollo rural hecho en y para América Latina, y que aún está en
construcción: la nueva ruralidad. Este enfoque se relaciona con concep-
tos como “desarrollo territorial rural”, “enfoque territorial del desarrollo
rural”, “dinámicas territoriales rurales”, y “desarrollo rural sostenible”.11
La nueva ruralidad intenta superar las limitaciones de otros enfoques
de desarrollo rural en América Latina con el fin no sólo de entender las
transformaciones rurales, sino también para ofrecer recomendaciones de
políticas eficaces para el desarrollo rural en el continente.
La nueva ruralidad contribuye a una comprensión más amplia
de los territorios rurales, al ir más allá de un análisis sectorial de la
agricultura y reconocer que, aunque las actividades agrícolas son muy
importantes para los medios de vida rurales en América Latina, el empleo
rural no agrícola y otras estrategias de generación de ingresos (minería,
turismo, comercio, restaurantes, industria, servicios de transporte, manu-
factura, comunicaciones y servicios financieros) son también relevantes
(REARDON et al., 2001; DIRVEN, 2004; SCHEJTMAN; BERDEGUÉ, 2008).
La nueva ruralidad rompe la dicotomía rural-urbana, al reconocer
las cada vez mayores interacciones entre los mundos rural y urbano. La
nueva ruralidad analiza las complejas relaciones económicas, sociales,
políticas, culturales y ambientales y los vínculos entre las zonas urba-
nas y rurales (migraciones, rururbanización, remesas, periurbanización,
urbanización de las zonas rurales, ruralización de las zonas urbanas,
entre otros fenómenos).

1 Para una mayor profundización ver, por ejemplo: Llambí (1994), Instituto Interamericano de
Cooperación para la Agricultura (2000), Llambí (2000), Giarracca (2001), Gómez (2001), Pérez
(2001, 2002), Pérez y Farah (2001, 2004, 2007), Sepúlveda et al. (2003), Schejtman y Berdegué
(2004), De Janvry y Sadoulet (2007), Llambí y Pérez (2007), Kay (2008), Pérez et al. (2008), Rese-
arch Programme Consortium for Improving Institutions for Pro-Proo Growth y RIMISP (2008),
Schejtman y Berdegué (2008).

46 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

La nueva ruralidad también tiene en cuenta la heterogeneidad


multidimensional de las zonas rurales, lo que requiere un énfasis en polí-
ticas diferenciales. El reconocimiento de la heterogeneidad rural implica
tener en cuenta la diversidad rural de América Latina en términos de la
producción, las estructuras de propiedad de la tierra, las desigualdades
económicas y sociales, los recursos naturales y el patrimonio cultural e
histórico.
El enfoque de la nueva ruralidad plantea la importancia del género
en el desarrollo rural (CENTRO INTERNACIONAL DE DESARROLLO
RURAL, 2001; RICO; DIRVEN 2003; DIRVEN, 2004; PORTILLA, 2004;
PAULSON, 2010). Se han realizado estudios que investigan los efectos
de las transformaciones rurales sobre las mujeres y su papel en la nueva
ruralidad y desarrollo rural territorial (LARA FLORES, 1995; PÉREZ;
FARAH, 1998, 2003a, 2003b; CASTRO; PORRAS; RANABOLDO, 2008;
PAULSON, 2010; PORTILLO, 2010). Sin embargo, una perspectiva de
género que observe las relaciones entre hombres y mujeres y no a las
mujeres y los hombres por separado, ha estado prácticamente ausente en
la investigación de la nueva ruralidad, tal como Paulson (2010) afirma
acerca de los estudios llevados a cabo y financiados por RIMISP. Este
capítulo busca aportar en este sentido, al explicar un conjunto de abor-
dajes teóricos y conceptuales que permitan analizar las transformaciones
rurales desde una perspectiva de género.

3 ENFOQUE “TRAYECTORIA O CURSO DE VIDA”

Para lograr hacer un análisis dinámico de las relaciones de género


dentro del hogar y sus vínculos con el cambio en los otros espacios ins-
titucionales como son la comunidad, el Estado y el mercado, se necesita
una teoría del cambio social. La teoría de la trayectoria o curso de vida es
muy útil para este propósito, ya que permite comprender de una manera
sistemática la dinámica de “la interacción entre los eventos generales
y las biografías personales” (LLOYD-SHERLOCK; LOCKE, 2008, p. 1189,
traducción propia).
Elder Jr y Shanahan (2006) establecen cinco principios rectores de
la teoría de la trayectoria de vida:
1. El principio del desarrollo de la vida: las decisiones y acciones
tomadas por una persona en relación, por ejemplo, con la ges-
tión de recursos dentro del hogar, se ven afectadas no sólo por
la coyuntura familiar y las expectativas del futuro, sino también
por sus antecedentes familiares y las experiencias de la infancia,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 47


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

entendiendo que las etapas pasadas, presentes y futuros están


relacionadas entre sí y son procesos de toda la vida. Estos proce-
sos involucran tanto limitaciones como oportunidades históricas
y coyunturales, lo cual nos lleva al segundo principio.
2. El principio del tiempo y lugar históricos: “Las elecciones en la
vida dependen en gran medida de las circunstancias y los acon-
tecimientos históricos que se dan en el momento del nacimiento
y de los hitos o cambios importantes” (HEINZ; KRUGER, 2001,
p. 34, traducción propia). Las instituciones y eventos cambian-
tes en el tiempo, como las políticas sociales, la legislación, las
normas sociales, el mercado laboral, el sistema educativo y las
tendencias económicas y coyunturas, afectan los patrones de
las trayectorias de vida de los individuos. Estas condiciones son
claramente diferentes entre las personas que, por ejemplo, cre-
cieron y se casaron en las zonas rurales de Colombia, durante el
período de una rápida transición demográfica desde la década
de los sesenta, y las personas que crecieron y se casaron en la
década de los cuarenta y cincuenta, o para las personas que ini-
ciaron su vida matrimonial a partir de mediados del decenio de
los ochenta, cuando el estado introdujo políticas y programas de
apoyo a las mujeres rurales y las jefas de familia. Por otra parte,
estas diferencias no ocurren sólo entre los diversos períodos de
tiempo, sino también entre los diversos lugares en el mismo
período (por ejemplo, zonas rurales y urbanas). Esto implica que
es muy difícil hacer generalizaciones a través del tiempo y entre
lugares. Aunque el impacto del tiempo y el lugar en la vida de
los individuos es incuestionable, es necesario reconocer que los
individuos no son pasivos, sino agentes activos al enfrentar las
diferentes circunstancias y al configurar sus propias biografías,
lo cual nos lleva al tercer principio.
3. El principio de la agencia humana: “Los individuos construyen
su propio curso de la vida a través de las decisiones y acciones
que toman teniendo en cuenta las oportunidades y limitaciones
de la historia y las circunstancias sociales” (ibid, p. 692; traduc-
ción propia). Aunque estas situaciones afectan claramente las
decisiones de los individuos, la agencia humana significa que las
personas tienen control sobre su trayectoria de vida y sus “elec-
ciones aseguran un grado de acoplamiento entre las transiciones
sociales y las etapas de la vida” (ELDER JR.; SHANAHAN 2006,
p. 692, traducción propia). La agencia humana, por supuesto,

48 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

varía de persona a persona y varía en diferentes etapas de la


vida. Esto nos lleva al cuarto principio.
4. El principio del momento en el tiempo: el impacto de una suce-
sión de acontecimientos en la vida depende de cuándo se pro-
ducen en la vida de una persona (ELDER JR., 1998, p. 3). Esto
significa que las personas de los mismos grupos de edad experi-
mentan diferencias en el orden temporal de los acontecimientos
de la vida. Por ejemplo, la trayectoria educativa y laboral de una
mujer puede verse afectada negativamente por el hecho de que
se case y comience a tener hijos muy joven, mientras que esto
no ocurre necesariamente a quienes se casan y tienen hijos más
adultos. El curso de la vida involucra no sólo disposiciones y
experiencias anteriores, iniciativas individuales, limitaciones y
oportunidades situacionales, y el momento del tiempo, sino tam-
bién involucra las decisiones, acciones y experiencias de otros
individuos dentro de la familia y la comunidad. Esto nos lleva al
quinto principio.
5. El principio de las vidas relacionadas: las decisiones y acciones
individuales se inscriben en las relaciones familiares y sociales,
y en este sentido lo que una persona decide y hace afecta y se ve
influida por las decisiones, acciones y expectativas de su cón-
yuge, hijos, padres, amigos, y demás.
Uno de los elementos más relevantes de la perspectiva del curso o
trayectoria de vida ha sido la interacción de las dimensiones estructurales
e individuales con respecto al género. La interacción de los procesos de
los individuos a lo largo de la vida, con los acontecimientos históricos,
las instituciones, las decisiones y acciones de las personas, y las vidas
interconectadas, está permeada por el género, en el sentido de que dicha
interacción involucra relaciones de género e implica diferentes experien-
cias y efectos para mujeres y hombres. Debido a esto, es necesario expli-
car algunos de principales elementos del concepto de género.

4 LAS RELACIONES DE GÉNERO Y LA DIVISIÓN


SEXUAL DEL TRABAJO

El punto de partida básico del enfoque de género es que

[...] una persona nace hombre o mujer, pero aprende a ser niño o niña
que se convierte en hombre y mujer. Se le enseña cuál es el compor-
tamiento apropiado y las actitudes, los roles y las actividades que son

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 49


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

propias de él o ella, y cómo debe relacionarse con otras personas.


Este comportamiento aprendido es lo que construye la identidad de
género, y determina los roles de género. (WILLIAMS et al., 1994, p. 4,
traducción propia).

Esta idea fundamental significa por lo menos dos cosas. En primer


lugar, el género es una construcción socio-cultural, no natural, que iden-
tifica y valora las características, oportunidades, expectativas, derechos,
responsabilidades y funciones asignadas a las personas en función de su
sexo (una condición biológica). Por lo tanto, el género varía en función de
la cultura y grupo social (por ejemplo, raza, clase, condiciones económicas,
edad), y como estas condiciones son dinámicas, el género también cambia
a través del tiempo. En segundo lugar, el género es relacional en el sen-
tido de que se produce dentro de las relaciones sociales, y por lo tanto las
características de género de una mujer se configuran siempre en relación
con las de otras mujeres y los hombres en un lugar y tiempo específicos.
Al igual que todas las relaciones sociales, las relaciones de género
son relaciones de poder. Las relaciones de poder implican comúnmente
“poder de control” o “poder sobre” (ROWLANDS, 1997, p. 13), que repre-
sentan un juego de suma cero: un aumento en el poder de uno significa
una pérdida de poder para el otro. Pero las relaciones de poder también
pueden tener un lado positivo, en el sentido de que pueden crear nuevas
posibilidades y acciones sin dominación (“poder para”) o pueden implicar
buenos resultados para un grupo de personas que se ocupan juntos de
ciertos problemas juntos (“poder con”), o pueden fortalecer la auto-acep-
tación y auto-respeto que se reflejan, a su vez, en el respeto y aceptación
de los demás como iguales (“poder interior”) (ibid). “Poder para”, “poder
con”, y “el poder interior” “son todos positivos y aditivos: un aumento en
el poder de uno aumenta el poder total disponible o el poder de todos”
(DEERE; LEÓN, 2001, p. 24, traducción propia).
Rowlands (1997, p. 12), usando el punto de vista de Foucault acerca
del poder, afirma que el poder es relacional y existe sólo en su ejercicio.
Las relaciones de poder no implican sólo los conflictos sino también las
relaciones de cooperación, y esto tiene implicaciones no sólo para las
diferencias y desigualdades de género, sino también para la solidaridad
y la complementariedad de género, en términos de acceso y toma de
decisiones sobre los recursos y bienes (por ejemplo, tierras e ingresos),
la satisfacción de los intereses y necesidades, y las contribuciones al
bienestar de los hogares, entre otros temas. Por otra parte, el análisis de
género del poder puede revelar las diferentes formas de patriarcado y

50 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

las negociaciones patriarcales que son susceptibles de transformaciones


históricas que abren nuevos espacios de lucha y de renegociación de las
relaciones de género (KANDIYOTI, 1988, p. 275).
Uno de los aspectos claves de las relaciones de género es la división
del trabajo en la sociedad entre las actividades productivas y reproductivas,
que se refleja en todas las instituciones, como por ejemplo en el hogar en el
proceso de negociación que se da entre los esposos sobre diversos aspectos
(por ejemplo, ingresos, activos). El análisis feminista de la economía hace
hincapié en la inseparabilidad de las esferas productivas y reproductivas,
dado que la economía incluye no sólo las actividades orientadas al mercado
(productivas), sino también la “economía reproductiva” (trabajo doméstico
no remunerado, incluyendo cuidado de niños y de las personas mayores).
La inseparabilidad de las esferas productivas y reproductivas no quiere decir
que estas sean lo mismo: por el contrario, cada una tiene características
diferentes y la gente las valora de diferentes maneras. Sin embargo, una
comprensión amplia del ámbito productivo debe incluir su relación con los
aspectos de la reproducción en la sociedad. En otras palabras, para entender
la división sexual del trabajo es necesario analizar la dinámica de los pro-
cesos reproductivos en la sociedad y tener en cuenta el hecho de que esta
relación varía según las condiciones históricas y culturales.
En conclusión, la interacción entre los ámbitos productivo y repro-
ductivo es inherente a las relaciones de género, y dentro del hogar dicha
interacción determina los procesos de negociación entre la pareja en rela-
ción con los recursos, los deberes y derechos. Esta negociación dentro del
hogar está vinculada a lo que ocurre en otros ámbitos institucionales,
como la comunidad, el mercado y el estado en el contexto socio-econó-
mico más amplio de la nueva ruralidad en América Latina. Este hecho
nos lleva a explicar el enfoque institucional que resulta útil para el aná-
lisis del desarrollo rural con una perspectiva de género.

5 ENFOQUE INSTITUCIONAL

En este capítulo se hace énfasis en la “construcción institucional


de las relaciones de género” (KABEER; SUBRAHMANIAN, 1996, p. 17),
centrándose en el hogar y sus relaciones con los otros tres espacios ins-
titucionales, a saber, comunidad, estado y mercado, pero sobre todo los
dos primeros, y los enlaces entre ellos. El análisis institucional examina
las relaciones sociales de producción dentro de estas cuatro instituciones
con el fin de entender cómo las desigualdades de género se crean y se
reproducen a través de sus interacciones (KABEER, 1994, p. 280-281).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 51


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

El análisis institucional se centra en cinco dimensiones distintas pero


interconectadas entre sí: las reglas (cómo se hacen las cosas), los recursos
(lo que se utiliza, lo que se produce), la gente (quién está en, quién está
excluido y quién hace qué), las actividades (lo que se hace) y el poder
(quién decide, los intereses de quién son cubiertos).
La introducción de una perspectiva de género en el análisis insti-
tucional tiene como punto de partida la familia por su papel central en
permitir, restringir y diferenciar la participación de sus miembros en la
economía y la sociedad en general (KABEER, 1994, p. 283). Sin embargo,
este punto de vista tiene que ir más allá y examinar la reproducción de
las desigualdades de género a través de los otros sitios institucionales y
las conexiones entre ellos. El análisis institucional puede observar, en un
sentido restringido, las relaciones de género y las desigualdades como
resultados, pero también se pueden ver, en un sentido más amplio, como
procesos. Por lo tanto, es pertinente hacer preguntas acerca de cómo las
relaciones de desigualdad (o igualdad) de género se reproducen en cada
sitio institucional en un proceso complejo y dinámico en el que las nor-
mas, recursos, personas, actividades y el poder afectan y satisfacen o no
los intereses prácticos y estratégicos de género. Además, es importante
observar cómo las prácticas rutinarias reflejan las obligaciones y respon-
sabilidades de mujeres y hombres y contribuyen a desarrollar las habi-
lidades y capacidades necesarias para ciertas tareas y actividades. Como
parte de este proceso, las normas, recursos, actividades y el poder de las
mujeres y los hombres son reelaborados por estas prácticas rutinarias.
El análisis institucional muestra cómo las instituciones sociales y
sus relaciones son “portadoras de género”. Cada institución opera con sus
propias normas y valores, pero también todas las instituciones “[...] com-
parten ciertas normas comunes y supuestos que dan lugar a la creación
sistemática y al refuerzo de las desigualdades sociales en los espacios
institucionales” (KABEER, 1994, p. 281, traducción propia). El género
permea la estructura institucional a través de las normas sociales. Estas
normas sociales no son inmutables y sus cambios son parte de un proceso
dinámico y complejo (TODARO, 2003). El análisis de las normas tiene
que tener en cuenta no sólo que los actores tienen diferentes capacidades
para la definición y la interpretación de estas normas sino que también
existen conflictos de intereses (KABEER; SUBRAHMANIAN, 1996).
Llevar a cabo un análisis institucional puede ayudar a identificar
elementos de género que limitan o facilitan el acceso y control de recur-
sos por parte de las mujeres y los hombres dentro de los hogares. En par-
ticular, puede permitir realizar un análisis de la influencia de las normas

52 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

sociales y costumbres, de las leyes y políticas estatales y de los programas


de género sobre la negociación que se da entre las parejas al interior de
los hogares en los territorios rurales en transformación.
A continuación, se explican los enfoques conceptuales de cada uno
de los tres sitios institucionales (hogares, la comunidad y el Estado) a los
que se refiere este capítulo.

5.1 La Noción de “Hogar” y “Familia”

En la literatura hay muchas discusiones sobre la diferencia entre


los conceptos de hogar y familia, y las implicaciones, ventajas y des-
ventajas del uso de cada uno en diversos contextos y para diferentes
propósitos en el análisis de género (JELIN, 1991; KABEER, 1994; CHANT,
1997; CHANT, 2003). Por lo general, la “familia” se entiende como un
conjunto de relaciones normativas (y con frecuencia patriarcales) centra-
das en la consanguinidad y el matrimonio, y el “hogar” como una unidad
de co-residencia (CHANT, 2003). En este capítulo no se va a profundizar
en esta discusión, pero es importante decir que el concepto de “hogar”
se entiende como el conjunto de relaciones en una sociedad a través de
las cuales las principales actividades reproductivas se organizan, reco-
nociendo que dichas relaciones se basan principalmente en principios de
parentesco y de residencia (KABEER, 1994). Sin embargo, como los hoga-
res no son entidades cerradas (CHANT, 2003), la familia como una unidad
más amplia que el hogar es también relevante porque las relaciones de
pareja se ven afectadas no sólo por la interacción con otras personas
que viven con ellos en la misma casa (por ejemplo, hijos/as, suegros/as,
nietos/as), sino también por las relaciones con otros parientes, especial-
mente sus hijos/as, que viven en otros lugares. Un aspecto importante en
relación con los hogares es que no son estáticos, sino unidades dinámi-
cas, y sus cambios afectan las relaciones de género dentro de ellos.

5.2 Modelos del Hogar

Los economistas han desarrollado diversos modelos para ayudar-


les a entender cómo las parejas toman decisiones sobre los recursos del
hogar. En general, ha habido dos enfoques: unitario y colectivo.2 Como

2 Para ver una explicación amplia de estos dos enfoques se recomienda ver Nash (1950, 1953), Becker
(1965, 1973, 1974, 1981), Manser y Brown (1980), McElroy y Horney (1981), Bourguignon y Chiap-
pori (1992), Kabeer (1994), Agarwal (1997), Katz (1997), Lundberg y Pollak (1997) y Jackson (2008).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 53


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

parte de estos últimos, Sen (1990) propone el “modelo de conflictos coo-


perativos”, cuyo “[...] punto de partida es una crítica a los enfoques de
negociación que suponen que ambas partes valoran por igual su bienes-
tar personal, y que ignoran la manera en que las percepciones influyen
en los resultados de la negociación” (JACKSON, 2008, p. 16, traducción
propia). Este modelo aborda explícitamente las cuestiones de género y el
poder dentro del hogar. A pesar de que no ha sido modelado matemáti-
camente en la economía, el modelo de Sen de los hogares ha sido muy
influyente en los estudios de desarrollo como una manera de entender las
relaciones de género dentro del hogar. En este modelo,

[...] los miembros de la familia se enfrentan simultáneamente a dos


tipos diferentes de problemas, uno que implica cooperación (que suma
a las disponibilidades totales) y el otro conflicto (que divide las dis-
ponibilidades totales entre los miembros de la familia). Los acuerdos
sociales con respecto a quién hace qué, quién consume qué y quién
toma las decisiones pueden ser vistos como respuestas a este problema
que combina la cooperación y el conflicto. La división sexual del tra-
bajo es una parte de esa estructura social, y es importante verla en el
contexto de todo acuerdo (SEN, 1990, p. 129, traducción propia).

Sen explica tres tipos de respuestas diferentes en el hogar, las cuales


no son sólo fenómenos objetivos sino también percibidos. Las tres respues-
tas son: la respuesta en relación con la disminución en el bienestar, la res-
puesta en relación con el interés percibido, y la respuesta en relación con
la contribución percibida. La respuesta en relación con la disminución en el
bienestar es una propiedad cualitativa general de los conflictos cooperativos
que se produce en la negociación cuando la capacidad de una persona para
obtener un resultado favorable se debilita. “La posición de disminución en
el bienestar indica la vulnerabilidad o fortaleza de la persona en la nego-
ciación” (SEN, 1990, p. 135, traducción propia), lo cual afecta la capacidad
de los cónyuges para influir en los resultados. Así que esta respuesta indica
el grado en que una persona está dispuesta a negociar teniendo en cuenta
tanto las implicaciones materiales como sociales del divorcio para que él o
ella. La respuesta en relación con el interés percibido establece que la per-
cepción que una persona tiene frente a su interés propio en la negociación,
en cuanto a que esta puede darle un valor mayor o menor a su propio bien-
estar, influye en el resultado de la cooperación. Por otra parte, Sen establece
la necesidad de diferenciar entre la percepción de intereses y del bienestar y
los aspectos objetivos de estos conceptos, El hecho de que una mujer o un
hombre no tenga una auto-percepción de su propio bienestar no significa

54 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

que el bienestar real no exista y que la gente no pueda hacer algo por su
bienestar. La idea de la respuesta en relación con los intereses percibidos
asume una “falsa conciencia”, lo que significa que los desposeídos pueden
aceptar las desigualdades y también pueden ser instrumentales en la perpe-
tuación y el mantenimiento de las ideologías opresoras. Las feministas han
criticado la noción de falsa conciencia, al considerar que las mujeres tienen
capacidad de acción y no son víctimas pasivas, y que expresan sus propios
intereses, así como su descontento acerca de las desigualdades de género
que se manifiestan no sólo a través de acciones y conductas expresas sino
también a través de formas encubiertas, como Fraser (1989), Folbre (1994)
y Agarwal (1997) ilustran ampliamente.
Sen (1990) no sólo examina los intereses percibidos, sino también
las contribuciones percibidas, indicando que la base de la información de
los conflictos cooperativos “[...] debe incluir información sobre la percep-
ción de quién está contribuyendo y cuánto a la prosperidad de la familia
en general” (SEN, 1990, p. 134, traducción propia). La respuesta en rela-
ción con la contribución percibida indica cómo las contribuciones perci-
bidas de una persona influyen en el resultado de la negociación. Además,
es importante distinguir entre las contribuciones percibidas y las reales,
porque estas son casi siempre diferentes. Esta diferenciación es relevante
para las discusiones de género, ya que ayuda a clarificar no sólo la per-
cepción frente al trabajo y la contribución productiva de las mujeres sino
también su real trabajo y contribuciones productivas, y cómo repercuten
en el poder de negociación de las mujeres dentro del hogar. Por otra
parte, esto es útil con el fin de hacer visible la poca valoración del trabajo
reproductivo que es realizado principalmente por mujeres.

5.3 Contribuciones Feministas a la Discusión sobre los Hogares

Los estudios feministas han contribuido a la discusión sobre la


negociación al interior de los hogares al considerar la relevancia de los
factores ideológicos y las relaciones de poder. Por una parte, muchas
autoras feministas resaltan cómo el hogar y el matrimonio son institu-
ciones de subordinación, opresión e inequidad de género que favorece
a los hombres (DEERE; LEÓN, 2001; PAPANEK, 1990). Por otra parte,
otros estudios feministas ven el hogar como un espacio de resistencias
de género (CHANT, 2003; AGARWAL, 1997; HART, 19913 apud KABEER,

3 HART, G. Engendering everyday resistance: gender, patronage and production politics in rural
Malaysia. The Journal of Peasant Studies, v. 19, n. 1, p. 93-121, 1991.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 55


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

1994; KANDIYOTI, 1988). Por su parte, Whitehead (1984) introduce la


noción del “contrato conyugal” según la cual la familia era entendida
como un espacio de subordinación y dominación, en el contexto de la
literatura feminista de principios de los ochenta. Este concepto es todavía
útil para entender parte de la complejidad de las relaciones de género en
el hogar, y en particular las relaciones entre esposo y esposa. El contrato
conyugal se refiere a los términos en los cuales la pareja intercambia,
distribuye y consume los activos, los bienes, el ingreso y los servicios,
incluyendo el trabajo, en el hogar con el fin de satisfacer las necesidades
personales y colectivas, entre las que están la alimentación y el cuidado
de los hijos. El análisis del contrato conyugal examina cómo el poder
relativo de un miembro del hogar en relación con los demás, así como
sus intereses materiales, influencian aquellos términos. Este poder y estos
intereses dependen no solo de la producción sino también del consumo.
Otras feministas más que poner énfasis en el hogar como un espa-
cio de subordinación, confrontación, conflicto y resistencias de género,
plantean que este es una institución más compleja que tiene estas carac-
terísticas pero que también presenta intereses compartidos, cooperación
y negociación entre sus miembros. Esto significa que el hogar no es
simplemente un espacio con individuos con características de género; es
un espacio con relaciones de género, con individuos con género que se
relacionan entre sí de múltiples maneras que implican conflictos, coope-
ración, subordinación y equidad. Como Jackson (2007, p. 109) dice: “El
hogar implica bienestar e intereses tanto separados como compartidos,
sus miembros tienen conflictos pero también cooperan de distintas y
cambiantes maneras a lo largo de la vida, y estas interacciones son abso-
lutamente críticas para los trabajos de género”.

5.4 El Concepto de “cabeza o jefe de hogar”

Uno de los aspectos que han atraído más discusión en los debates
sobre el hogar y la familia es quién es la cabeza o el jefe. Ha habido
criterios tanto subjetivos como objetivos para definir quién es el jefe o
cabeza de hogar. De acuerdo con el criterio subjetivo que es usado prin-
cipalmente en los censos, la “cabeza” o “jefe” es la persona designada
como tal por otros miembros del hogar por diferentes razones (por ejem-
plo, quien gana el mayor ingreso, quien toma las principales decisiones,
la persona más respetada en el hogar) (BRUCE; LLOYD, 1997; BUVINIC;
GUPTA, 1997; CHANT 1997). El foco del criterio objetivo, cuyos orí-
genes están en el derecho de familia (FOLBRE, 1991), ha estado en el

56 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

ingreso relativo generado, las horas relativas de trabajo contribuidas o


la responsabilidad relativa en la toma de decisiones (BRUCE; LLOYD,
1997). La literatura muestra que ninguno de los dos criterios está ausente
de problemas (BRUCE; LLOYD, 1997; CHANT, 1997; BUVINIC; GUPTA,
1997; FOLBRE, 1991; HARRIS, 1981), ya que la asignación que se hace
generalmente de la cabeza o jefe de hogar al esposo/padre está basada en
supuestos de la filosofía patriarcal y refuerza a su vez el pensamiento y
las prácticas patriarcales. Además, el hecho de que se haga referencia a
una sola cabeza de hogar, principalmente masculina, “[...] enmascara la
complejidad de los sistemas de distribución en el hogar y puede actuar
como una herramienta para reforzar el poder masculino en la sociedad en
general” (ILLO, 1992, p. 1824 apud CHANT, 1997, p. 7; traducción propia).
Folbre (1991, p. 93) también plantea que el término “jefe” o “cabeza”
simplifica las relaciones entre los miembros de la familia al definirlas en
términos de una sola persona de referencia.
La jefatura femenina también ha atraído mucha discusión acerca
de temas como la característica asimétrica de este término en relación
con el de jefatura masculina, dado que se considera que un hogar está
encabezado por una mujer si no reside un hombre adulto (FOLBRE 1991;
BRUCE; LLOYD 1997; CHANT, 1997). Muchos autores han propuesto
desagregar este concepto en términos más específicos tales como hogar
“mantenido por una mujer”, “de madre soltera”, “sin hombres”, “liderado
por una mujer”, “centrado en la madre”, “de madre sola”, “hogar exten-
dido encabezado por una mujer”, “con una mujer sola”, “con personas de
sexo femenino solamente”, “con predominio de mujeres”, “encabezado
por la abuela”, entre otros (BUVINIC; GUPTA, 1997; CHANT, 1997).

5.5 Comunidad y Normas Sociales

Para el propósito de este capítulo, la comunidad es definida en


términos de una identidad compartida basada en la localización (por
ejemplo, un pueblo) (AGARWAL, 1997, p. 29). La comunidad es una de
las instituciones en la cual las inequidades y equidades de género son
creadas y reproducidas. Esto ocurre principalmente a través de normas
sociales que determinan el comportamiento social. Las normas socia-
les se entienden como las reglas morales informales relacionadas con

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 57


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

los principios de un comportamiento bueno o malo los cuales están


apoyados por sanciones sociales que pueden ser internalizadas por los
individuos (RUTHERFORD, 1996).
Muchos autores han prestado mucha atención al papel de las nor-
mas sociales en la distribución y toma de decisiones sobre los activos
dentro del hogar, teniendo en cuenta que muchas de estas normas socia-
les tienen contenidos de género. Lundberg y Pollak (1997), Carter y Katz
(1997) y Katz (1997) han tratado de introducir normas sociales en los
modelos económicos del hogar. Muchas feministas han involucrado las
normas sociales en su análisis de la negociación de género en el hogar de
una manera más cualitativa (AGARWAL, 1997; FOLBRE, 1997; DEERE;
LEÓN, 2001). Agarwal (1997) sugiere que las normas sociales afectan la
negociación en el hogar de diversas maneras. En primer lugar, en deter-
minados momentos y en contextos específicos algunas normas sociales
pueden ser admitidas sin discusión o debate (BOURDIEU, 1977), o son
algo aceptado como una parte natural y evidente del orden social y no
está abierto al cuestionamiento (AGARWAL, 1997). Otras normas pueden
ser campos de la opinión (BOURDIEU, 1977), es decir que pueden ser
explícitamente cuestionadas. Las normas sociales pueden obtener su legi-
timidad de la religión y otras creencias. Dichas normas se transforman
cuando las percepciones sobre las necesidades y derechos de las personas
cambian debido a la influencia de, por ejemplo, acciones estatales o pri-
vadas (por ejemplo, políticas, leyes, publicidad, programas).
En segundo lugar, las normas pueden determinar o restringir el
poder de negociación de uno o más miembros de la familia, al, por ejem-
plo, restringir sus posibilidades de generar ingresos o al dar justificacio-
nes para mantener leyes de propiedad que son inequitativas en términos
de género o al definir hasta qué punto una persona tiene voz en el hogar
(AGARWAL, 1997).
En tercer lugar, las normas afectan cómo la negociación es llevada
a cabo, al definir primero cómo los miembros de la familia deben desem-
peñarse dependiendo principalmente del género, la edad y el estado civil.
Por ejemplo, la construcción cultural del comportamiento apropiado de
las mujeres en muchas sociedades que establece que las mujeres deben
ser dóciles y reservadas mientras que los hombres deben ser agresivos y
locuaces, genera que las mujeres participen menos que los hombres en la
negociación y cuando ellas participan otros las ven como “masculinas”
(AGARWAL, 1997, p. 17).
En cuarto lugar, las normas sociales pueden ser endógenas en el sen-
tido que pueden estar sujetas a negociación y pueden ser transformadas.

58 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

Agarwal (1997) resalta tres puntos en relación con la negociación de las


normas sociales: uno, el rol de los factores económicos que empujan a la
gente a retar las normas; dos, el rol de los grupos en mejorar la habilidad
de las personas para retar las normas; y tercero, la naturaleza interactiva
de la negociación dentro y fuera del hogar para retar efectivamente las
normas sociales.

5.6 El Estado: Leyes, Políticas y Programas

Folbre (1997) introduce la noción de parámetros ambientales con


contenido de género al adaptar el concepto de parámetros ambientales
extra-domésticos propuesto por McElroy (1990). Estos parámetros son
factores institucionales que afectan la distribución, control y uso de los
activos del hogar, tales como la legislación del matrimonio y el divor-
cio y las políticas públicas relacionadas con, por ejemplo, la promoción
de los derechos y las condiciones laborales y de seguridad y protección
social. Estos parámetros tienen contenido de género en el sentido que su
impacto en los hogares está afectado por la identidad de género de los
miembros de la familia y sus relaciones.
Folbre (1994) pone especial énfasis en las estructuras limitantes
que influencian la pertenencia de unas personas a diferentes grupos.
Esta autora considera que los programas de seguridad social de Amé-
rica Latina son ejemplos de estas estructuras limitantes. Molyneux (2006)
plantea que las políticas sociales recientes en América Latina, contrario
a lo que dicen varios autores, no son ciegas al género sino que por el
contrario trabajan con concepciones, con contenidos de género, de las
necesidades sociales, entre las que están concepciones atadas a la familia
y que surgen de visiones patriarcales y paternalistas. Mientras que las
mujeres han ganado acceso a la educación y la salud, y han entrado al
mercado laboral, al mismo tiempo sigue existiendo la idea de que sus
principales responsabilidades están con la familia. Es claro que las muje-
res han tenido más visibilidad ahora que antes en las políticas sociales:
si durante el periodo de las políticas de ajuste estructural las mujeres
fueron el ejército invisible que asumió los costos del ajuste para asegurar
la sobrevivencia del hogar, la Nueva Agenda de la Pobreza apareció para
hacer más visibles a las mujeres (MOLYNEUX, 2006). En términos de
Fraser (1989), los clientes de la nueva política social en América Latina
parecen ser las mujeres, especialmente las mujeres con niños. Aunque las
mujeres son los sujetos visibles y explícitos de la política y pueden resul-
tar marginalmente empoderadas, parece ser que los programas socia-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 59


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

les refuerzan las divisiones sociales a través de las cuales las asimetrías
de género son reproducidas, tal como Molyneux (2006, p. 440, traduc-
ción propia) muestra: “Con los padres al margen del cuidado de los hijos
y además marginalizados por el diseño del programa, el Estado juega
un papel activo en re-tradicionalizar los roles e identidades de género”.
Adicionalmente, estos programas ponen énfasis en el papel reproductivo
de las mujeres y no tienen en cuenta ni sus responsabilidades productivas
ni cómo se conectan con el papel productivo de los hombres.
En términos de la tierra, Deere y León (2001) demuestran cómo
algunas políticas y programas de los gobiernos de América Latina en
relación con la tierra, así como la legislación sobre el matrimonio, el
divorcio y la herencia, han tenido efectos significativos sobre la pro-
piedad de la tierra de hombres y mujeres. Estas autoras muestran que la
inequidad de género en este tema se debe a las preferencias masculinas
en la herencia y a los sesgos de género en los programas estatales de
distribución de tierra, entre otros factores.

6 PODER DE NEGOCIACIÓN

El poder de negociación en el hogar es la capacidad para tomar


decisiones e influir en el proceso de negociación al interior del hogar.
Esto significa que el poder de negociación es una habilidad que un miem-
bro de la familia tiene en relación con los demás, como Doss (2003,
p. 44) plantea: “Es la cantidad relativa de influencia que un individuo
tiene en comparación con otros individuos en el hogar”. Retomando los
cuatro tipos de poder propuestos por Rowlands (1997) (“poder sobre”,
“poder para”, “poder con” y “poder interior”), el poder de negociación
en el hogar se entiende comúnmente como la noción negativa de “poder
sobre” que implica relaciones de subordinación, dominación, inequidad
y conflicto entre esposa y esposo. Sin embargo, las otras tres nociones de
poder más positivas pueden ser también parte del poder de negociación
en el sentido que la pareja está en una relación en la cual ambos miem-
bros ejercen diferentes poderes que no siempre conducen a resultados
negativos para uno de los esposos sino que también pueden crear efectos
positivos para ambos. En este capítulo, poder implica no solo conflicto
sino también relaciones de cooperación, y el poder de negociación toma
lugar en un proceso constante donde hay conflictos y cooperación entre
las mujeres y hombres en el hogar.
Los modelos de negociación en el hogar entienden el poder de
negociación al interior de este como una función de la “posición de reti-

60 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

rada” o “punto de amenaza” de cada miembro de la familia en relación


con los otros; o los recursos relativos que ella o él es “capaz de manejar
independientemente de los otros miembros del hogar” (KABEER, 1999b,
p. 11). Esto significa que la posición de retirada indica las opciones exter-
nas que determinan que tan bien ella o él estarán si la cooperación falla.
Una mejora en la posición de retirada de una persona (mejores opciones
externas) conducirá a una mejora en el manejo que la persona tenga en
el hogar (AGARWAL, 1997). En otras palabras, si una persona tiene una
posición de retirada más fuerte esto significa que ella o él tiene más poder
que antes en la negociación, mientras que una posición de retirada más
débil indica menos poder. Desde esta perspectiva, el poder de negocia-
ción se mide principalmente por sus fuentes, como por ejemplo aquellas
relacionadas con factores económicos (ingreso, riqueza, educación, por
ejemplo) y aquellas relacionadas con recursos comunitarios y estatales
(normas sociales y leyes, por ejemplo) (DOSS, 2003).
Lo anterior es una comprensión útil pero parcial del poder de nego-
ciación debido a dos cuestiones. En primer lugar, está relacionada con
dos de las tres dimensiones del poder de negociación (recursos y logros),
pero la dimensión de agencia no está incluida. En segundo lugar, el enfo-
que sobre la posición de retirada no tiene en cuenta la interrelación entre
las tres dimensiones. Veamos esto con más detalle.
Kabeer (1999a, 1999b) establece que las tres dimensiones interrela-
cionadas del empoderamiento (recursos, agencia y logros) corresponden
a tres momentos en la negociación: pre-condiciones, proceso y produc-
tos. La dimensión de los recursos o las pre-condiciones incluye tanto el
acceso presente como el futuro a recursos materiales, humanos y sociales.
La agencia o proceso incluye la toma de decisiones y la negociación. Los
logros o resultados de la negociación pueden ser vistos en términos del
bienestar. Las tres dimensiones de poder son indivisibles porque no es
posible establecer el significado de un indicador, cualquiera que sea la
dimensión de poder que se esté midiendo, sin hacer referencia a las otras
dimensiones de poder. En otras palabras, las tres dimensiones son indivi-
sibles cuando se quiere determinan el significado de un indicador y por
tanto su validez como una medida de empoderamiento (KABEER, 1999a).
El acceso a recursos indica un potencial más que un poder real,
y por tanto un indicador de acceso puede indicar una opción poten-
cial pero no es válido para mostrar directamente la real agencia o los
resultados concretos de una negociación. Algo similar sucede con un
indicador de logros: si queremos usarlo como un indicador de poder es
necesario observar hasta qué punto este logro ha transformado, refor-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 61


Algunos Abordajes Teoricos para el Analisis del Desarrollo Rural con una Perspectiva de Genero

zado o no ha modificado las inequidades en los recursos y la agencia.


En términos de un indicador de agencia, debemos observar su efecto
tanto en el acceso presente como futuro a recursos, y en los logros
finales. La implicación metodológica de esta indivisibilidad entre recur-
sos-agencia-logros es la necesidad de triangular las evidencias mostra-
das por un indicador con el fin de asegurar que este sea entendido de
acuerdo a su significado real.

7 CONSIDERACIONES FINALES

Entender las transformaciones en las relaciones de género al inte-


rior de los hogares rurales en un contexto de ruralidades cambiantes es
una tarea compleja que requiere abordajes conceptuales que permitan
capturar adecuadamente dicha complejidad. En este capítulo se han
ofrecido cinco abordajes teóricos y conceptuales que contribuyen a este
propósito. Estos tienen conexiones entre sí pero también hay vacíos,
lo cual implica que los enfoques presentados aquí tienen fortalezas
pero también debilidades para el análisis del desarrollo rural con una
perspectiva de género. Hay tres principales fortalezas del marco con-
ceptual presentado en este capítulo. En primer lugar, una fortaleza es
la interrelación entre el enfoque de las tres dimensiones para el análisis
del poder de negociación en el hogar (KABEER, 1999a, 1999b) y los
modelos de negociación en el hogar, en el marco del enfoque de las
relaciones institucionales (KABEER, 1994; KABEER; SUBRAHMANIAN,
1996). Esto es útil para analizar los indicadores de las tres dimensiones
del empoderamiento teniendo en cuenta que ellas están actuando en un
contexto institucional.
En segundo lugar, la aplicación de la teoría de la trayectoria
de vida al enfoque institucional le da a este una dimensión temporal,
dado que permite observar de una manera sistemática los cambios en el
tiempo en las biografías personales y cómo estas están relacionadas con
las dinámicas interacciones institucionales más amplias. En particular,
la teoría de la trayectoria de vida permite examinar las transformacio-
nes a lo largo del tiempo en el poder de negociación entre los esposos
y su interrelación con las cambiantes normas sociales, legislación y
políticas y programas estatales.
En tercer lugar, es útil integrar en el análisis el modelo de conflic-
tos cooperativos de Sen con algunas contribuciones de autoras feministas
tales como el contrato conyugal (WHITEHEAD, 1984) y la idea de que
el hogar es un espacio con relaciones de género que son tanto conflicti-

62 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


María Adelaida Farah Quijano

vas como cooperantes, injustas pero también benéficas, con comporta-


mientos, intereses y bienestares diferenciados, pero también compartidos
(JACKSON, 2007). Esta combinación de elementos conceptuales es útil
para tres propósitos. Primero, permite entender que la negociación tiene
lugar en un proceso constante en donde hay conflictos y cooperación
entre mujeres y hombres en el hogar. Segundo, es útil para observar que
diferentes tipos de recursos (por ejemplo, dinero, tierra, alimentos) pue-
den ser distribuidos de acuerdo con lógicas distintas. Tercero, es útil para
mostrar la relevancia de entender el poder de negociación en el hogar
no solo sobre aspectos materiales sino también sobre aspectos sociales,
culturales, ideológicos y emocionales.
En términos de las debilidades, aunque el marco conceptual ofre-
cido en este capítulo permite ver los aspectos emocionales involucrados
en el proceso de toma de decisiones que hacen los esposos sobre bienes
materiales en el hogar, la ausencia de conceptos psicológicos en dicho
marco conceptual limita la explicación de estos elementos emocionales,
qué tanto ellos moldean el poder de negociación, y viceversa, y hasta qué
punto estos elementos interactúan con aspectos materiales e ideológicos.

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 67


CAPÍTULO 3

Desenvolvimento e gênero:
um olhar sobre o rural a partir da
perspectiva de Amartya Sen

Jefferson Andronio Ramundo Staduto


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo examina as discussões mais recentes sobre desenvol-


vimento e gênero à luz da literatura elaborada a partir das formulações
teóricas de Amartya Sen e os seus desdobramentos analíticos, e que está
tendo grande espaço na literatura internacional, bem como no Brasil e
na América Latina. Estamos particularmente interessados em conduzir
as discussões para o meio rural, visto que é o locus privilegiado em que
predominam os processos econômicos e sociais associados à produção
familiar. A presença patriarcal está fortemente presente no meio rural,
e que imprime profundas marcas no comportamento das comunidades
rurais e nas relações intrafamiliares.
O processo de divisão intersetorial gerado pela dissociação entre
as atividades rurais e manufatureiras do trabalho ao longo da revolução
industrial, ou nos processos de industrialização mais recente das econo-
mias dos países em desenvolvimento, lançou passos importantes para
aumentar a visibilidade das mulheres na esfera da família e produtiva.
O processo de crescimento econômico liberou mão de obra do meio
rural para trabalhar nas indústrias, de tal ordem que homens e mulheres
tornaram-se ofertantes da força laboral no mercado de trabalho fabril.
Mas a participação massiva da mão de obra feminina sempre teve bar-
reiras e custos pessoais em razão das atribuições de tarefas reservadas
a cada um dos sexos; às mulheres estavam reservadas as tarefas de cui-
dar do espaço privado – serviços domésticos – e dos demais membros
do núcleo familiar; e aos homens estava reservado majoritariamente o
espaço público.1
No meio rural e nas sociedades agrárias, as atividades exercidas
pelas mulheres são quase totalmente invisíveis. Elas participam ativa-
mente da esfera reprodutiva que praticamente não tem valoração, apesar
de gerarem renda de forma indireta ou mesmo diretamente, e quando
geram algum excedente, essa produção chega ao mercado majoritaria-
mente por meio dos homens, encarregados de ocupar e atuar no espaço
público. Apesar de os serviços de reprodução serem parcialmente com-
prados no mercado ou ofertados pelas políticas públicas, mas, especial-
mente, nas famílias que carregam a tradição camponesa, são produzidas
pelos seus membros e, particularmente, pelas mulheres.

1 O conceito de “trabalho produtivo” está vinculado ao trabalho remunerado, ao espaço público;


e o “trabalho reprodutivo” está ligado às atividades não remuneradas, aos afazeres domésticos,
ou seja, ao espaço privado.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 71


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

As mulheres reduziram a invisibilidade social e produtiva à


medida que aumentaram a participação na força de trabalho, contri-
buindo diretamente para o produto nacional. Por outro lado, o tra-
balho denominado invisível exercido na forma de serviços prestados
aos demais membros das famílias não é capturado pelos registros das
contas nacionais; no entanto, corresponderia a uma parcela expressiva
do produto nacional. De fato, todos os dias uma legião de mulheres e
homens faz rotineiro trabalho não remunerado em seus lares. Segundo
estimativas de Melo, Considera e Di Sabbato (2007), no Brasil o tempo
gasto na execução de atividades domésticas corresponde em média a
11,2% do Produto Nacional Bruto no período de 2001 a 2005. As ativi-
dades produtivas para autoconsumo realizado no quintal da casa podem
aumentar ainda mais a participação da renda da atividade doméstica
das famílias rurais.
As atividades exercidas majoritariamente pelas mulheres remetem
ao conceito de reprodução social da família e de difícil valoração, mas são
imprescindíveis para o equilíbrio e desenvolvimento econômico, princi-
palmente na agricultura familiar, onde as atividades de reprodução social
são fortemente ligadas à produção econômica. O relativo envelhecimento
e masculinização da população rural (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999;
CASTRO; AQUINO, 2008), os aspectos de sociabilidade e estruturação
familiar e a ativa participação das famílias e de todos os seus membros
nas diversas estratégias de desenvolvimento rural são pontos importantes
para pensar o desenvolvimento das comunidades rurais.

2 TEORIA E POLÍTICAS ECONÔMICAS E A


NEUTRALIDADE DE GÊNERO

Segundo Benería (1995), as análises econômicas, incluindo o tema


mulher de forma mais clara, se iniciaram na década de 1930, por meio
do exame mais cuidadoso sobre as razões de existir diferenças salariais
entre mulheres e homens. Os estudos foram realizados majoritariamente
por economistas homens, com uma notável exceção da economista Joan
Robinson. Entretanto, as análises ficaram mais centradas no mercado de
trabalho do que nas relações assimétricas de gênero desempenhadas nesse
mercado. Na década de 1950, os trabalhos de Jacob Mincer, entre outros
teóricos do capital humano, foram pioneiros nas análises sobre o cres-
cente aumento da taxa de participação da mulher no mercado de trabalho,
e constataram que foi principalmente em razão do aumento dos custos de
oportunidade das mulheres em relação às atividades domésticas.

72 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Os trabalhos de Mincer também representaram uma transição no


sentido de aumentar o interesse da análise econômica para esfera familiar,
visto que nos países industrializados as economias operavam em pleno
emprego. Consequentemente, a participação da mulher era uma forma de
reduzir a pressão de demanda por trabalho. Nas décadas de 1960 e 1970,
estes estudos foram intensificados por Gary Becker, também relatados no
Capítulo 2, por meio dos modelos de produção familiar e de análise da
alocação do tempo, segundo a divisão sexual do trabalho com a finalidade
de avaliar a produção familiar. As assimetrias na divisão do trabalho e a
desigualdade na distribuição das tarefas domésticas foram explicadas atra-
vés das escolhas feitas pelas mulheres, dadas a maximização da utilidade
individual e a harmonização familiar (BENERÍA, 1995). A literatura recente
privilegia os modelos de utilidade coletiva que considera o poder de barga-
nha intrafamiliar (QUISUMBING; MALUCCIO, 1999), os quais avançaram
para os modelos mais flexíveis e menos restritivos, que procuram incorpo-
rar as relações de gênero para entender a dinâmica de poder de barganha
entre os membros das famílias (AGARWAL, 1997).
Ainda, na década de 1970, a literatura econômica teve grande
avanço nas análises mais acuradas sobre as diferenças salariais a partir
da aplicação da metodologia de análises contrafractuais proposta por
Oaxaca (1973) e Blinder (1973). Essas pesquisas contribuíram para men-
surar a discriminação por sexo no mercado de trabalho. O conjunto de
artigos publicados no período aumentou a sensibilidade dos estudos eco-
nômicos sobre a discriminação no mercado de trabalho. Os atributos não
produtivos que reduzem a remuneração do trabalho foram mensurados,
dessa forma, quantificando discriminação pura. Do ponto de vista empí-
rico, foram produzidas várias pesquisas sobre discriminação indireta,
segregação, estudos relacionados às barreiras de ascensão hierárquica
dentro das empresas, entre outros. Estas temáticas foram renovadas com
aplicação de métodos econométricos mais sofisticados, tal como correção
de viés de seleção.
De acordo com Bruschini (1993), a mulher, ao ingressar no mer-
cado de trabalho, se depara com a discriminação (pura) e, ainda, tem
dificuldade em conciliar os trabalhos domésticos e profissionais, sub-
metendo-se a condições mais desfavoráveis de trabalho. Nesta situação,
elas tendem a procurar por ocupações que tenham jornadas com cargas
horárias menores e mais flexíveis, submetendo-se a receberem menores
salários em ocupações que exigem menores graus de responsabilidade.
Apesar dos limites sociais das mulheres para a venda da sua força
de mão de obra, a participação no mercado de trabalho foi crescente

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 73


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

no século XX. Pode-se atribuir esse comportamento ao aumento da


demanda por trabalho, principalmente do setor terciário, fenômeno este
relacionado à segregação do trabalho feminino; e, também, ao aumento
da escolaridade das mulheres, que conduziu à maior participação delas
nos mercados mais especializados.
Mais recentemente, na década de 1980 e 1990, com o incremento
das relações do trabalho mais flexíveis, as mulheres novamente torna-
ram-se um interessante grupo ofertante de mão de obra, e aumentaram
a sua participação no mercado de trabalho. A necessidade de conciliar
as atividades do espaço doméstico torna as mulheres mais propensas à
demanda de trabalho com horários mais flexíveis e pouco convencionais
ao padrão fordista de produção. A decisão pessoal das mulheres e fami-
liar de trabalhar deve otimizar a harmonia no lar, o qual imputa valores
não fiduciários. A flexibilidade traduzida como uma precariedade inexo-
rável para as mulheres poder ser entendida mais recentemente como uma
oportunidade de ocupação remunerada e de aumentar a taxa de partici-
pação no mercado de trabalho.
Para analisar a diferença de sexo e, principalmente, o tema mulher,
um novo conceito surgiu na literatura e com grande inspiração nos
movimentos feministas ocidentais da década de 1970: o gênero. O con-
ceito gênero tem várias interpretações, como discutido nos capítulos
anteriores, sendo que as abordagens da igualdade e da diferença são as
mais utilizadas, e, recentemente, esta última é a mais difundida. Segundo
Farah (2004, p. 47), na abordagem da igualdade “[...] as únicas diferenças
efetivamente existentes entre as mulheres estão centradas em relação à
biologia, e que as demais diferenças observáveis são culturais, derivadas
das relações opressões e, portanto, devem ser eliminadas para dar lugar a
relações entre seres ‘iguais’.” Por outro lado, “[...] para os teóricos da dife-
rença, o conceito [gênero] remete para traços culturais femininos (ou, no
pólo oposto, masculinos) construídos socialmente sobre a base biológica”
(FARAH, 2004, p. 47).2
A abordagem de gênero da desigualdade considera que homens e
mulheres apresentam diferenças que têm de alcance mais largo do que
os aspectos biológicos. Por exemplo, são ensinadas a cultura feminina e
a masculina, respectivamente, e o próprio corpo, com formato e funções
diferentes, imprime marcas diferenciadas no comportamento psicosso-

2 Há também uma terceira vertente, a pós-estruturalista, que destaca o caráter histórico das diferen-
ças entre os gêneros e a própria construção social da percepção da diferença sexual, o qual chama
a atenção para romper com a homogeneização interna a cada um dos gêneros (FARAH, 2004).

74 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

cial, o que cria situação binária entre os gêneros. Neste sentido, INS-
TRAW (1995, p. 15) faz menção a um conceito de gênero bastante usual
nas perspectivas analíticas sobre o desenvolvimento: “[...] gênero é um
conceito que se refere a um sistema de papéis e de relações entre mulhe-
res e homens, os quais não são determinados pela biologia, mas pelo
contexto social, político e econômico”.
As estruturas analíticas formuladas pelos economistas clássicos,
marxistas e neoclássicas, aplicando os pressupostos básicos de concor-
rência, oferta, demanda, luta de classes e outros conceitos usados para
estudar e explicar o funcionamento do mercado capitalista, são inade-
quadas para analisar a condição feminina na sociedade (MELO; CONSI-
DERA; DI SABBATO, 2007). De tal ordem que na literatura ampliam-se as
pesquisas que adotam abordagens teóricas e metodológicas centradas em
instrumentos que privilegiem instituições, padrões culturais, estratégias
de discriminação para tratar o tema gênero. Conforme Kon (2002, p. 90),
uma literatura mais fluída entre as abordagens teóricas que permita “[...]
um pensamento menos rígido em suas fronteiras e rejeitando a idéia da
economia como uma entidade a-histórica e desvinculada das transfor-
mações que possam ocorrer na base do comportamento dos agentes e
fenômenos econômicos”.
As teorias de crescimento econômico de inspirações neoclássicas
apresentaram forte evolução analítica, tais como os modelos endógenos
de rendimento crescente à escala e os modelos econômicos que incorpo-
ram as externalidades produtivas como importante variável explicativa.
No entanto, as teorias ainda tendem a serem neutras ao gênero, os agen-
tes econômicos – indivíduos e firmas – representativos são insuficientes
para captar as diferenças no comportamento em relação ao gênero. No
entanto, Stotsky (2006b) ressalta que uma postura analítica mais refle-
xiva vem sendo adotada por alguns autores, sendo que as variáveis eco-
nômicas, tais como consumo agregado, poupança, investimento, com-
portamento em relação ao risco, gastos governamentais e crédito, são
influenciadas pelas diferenças de gênero.
A discussão sobre desenvolvimento e gênero é reflexo dos movi-
mentos das mulheres no cenário internacional, e que pressionaram prin-
cipalmente as organizações supranacionais para incluir em suas agendas
a questão de gênero. As políticas públicas somente passaram a contem-
plar as questões de gênero de forma mais clara a partir da organiza-
ção desses movimentos e da realização das Conferências Mundiais das
Mulheres, as quais aconteceram no México em 1975, Nairobi em 1985 e
Pequim em 1995.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 75


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

De acordo com Singh (2007), o paradigma desenvolvimento e


gênero tem ocupado lugar de destaque nos estudos sobre as sociedades
em desenvolvimento. A natureza dinâmica destas sociedades e a comple-
xidade dos processos de mudanças levaram esses paradigmas a evoluir
em quatro fases: mulheres no desenvolvimento (WID); mulheres e desen-
volvimento (WAD); gênero e desenvolvimento (GAD); e mulher, cultura
e desenvolvimento (WCD). Outras divisões do debate e nomenclaturas
são encontradas na literatura sobre o papel das mulheres e das relações
de gênero no debate e nas políticas públicas do desenvolvimento, assim
como está detalhado no primeiro capítulo. Todas as fases tinham como
objetivo explicar a situação das mulheres em países em desenvolvimento
e planejar um programa de trabalho para o seu bem-estar.
Boserup (1970) liderou a literatura sobre WID que aclamava a
incorporação das mulheres no desenvolvimento econômico; entretanto,
segundo Singh (2007), ficou no âmbito, principalmente, das Organiza-
ções Não Governamentais. INSTRAW (1995, p. 19) reconhece a grande
importância dessa abordagem para “[...] chamar a atenção para as múl-
tiplas dimensões dos papéis das mulheres e impactos da inclusão das
mulheres no desenvolvimento [...]”, no entanto, foi ignorado “[...] como
esses papéis eram articulados, subestimando as relações sociais e de poder
entre mulheres e homens”. Já a abordagem WAD foi desenvolvida no
interior da Organização das Nações Unidas (ONU), entre 1975 e 1985, e
generaliza a sua aplicação nos organismos internacionais e na academia.
A ONU incorporou em 1997, na reunião do Conselho de Economia Social,
o mainstream de gênero nos seus documentos e estratégias de ação.
De acordo com Cornwall (1997), o conceito de Gênero e Desenvolvi-
mento (GAD) também foi compartilhado pelo INSTRAW, apresenta avanços
importantes, ao afirmar que devem ser criadas iniciativas com o objetivo
de corrigir os efeitos da desigualdade de gênero, a fim de incluir a mulher
na busca do processo de desenvolvimento. A autora observa, também, que
a categoria gênero se tornou um meio para desinstitucionalizar privilégios
masculinos, dentro do planejamento e de políticas de desenvolvimento.
Finalmente, Singh (2007) propõe mais um avanço conceitual, o WCD, que
foi elaborado no período de 1990 a 2000, no qual valoriza o equilíbrio
entre o ambiente local e o global, ciência e tecnologia, valores, identidades,
instituições e produção. A mulher é incluída no processo de desenvolvi-
mento e vê a necessidade de resgatar a cultura tradicional como forma de
manter o sistema local de valores, convicções e ações.
O papel das organizações supranacionais é importantíssimo para
influenciar e direcionar as ações e políticas públicas das nações menos

76 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

sensíveis às questões de gênero, forçando esses países a incorporarem


essas temáticas em suas agendas de Estado. O Banco Mundial tem o
entendimento que os projetos ou políticas públicas têm impactos diferen-
ciados entre homens e mulheres; por exemplo, conforme Stotsky (2006a),
as políticas de complementação de renda familiar têm efeitos diferen-
ciados em relação aos gastos, caso seja o homem ou mulher que recebe
o benefício. É por essa razão que nos projetos e nos estudos do Banco
Mundial as questões de gênero estão ganhando espaço.
De acordo com Stotsky (2006b), existem fortes evidências de que
há uma associação entre a redução das desvantagens das mulheres nos
vários aspectos da vida social e no campo econômico – crescimento
e estabilidade econômica. Essa relação é gerada pelas externalidades
positivas das políticas que promovem a equidade de gênero e aumen-
tam a capacidade de as mulheres intervirem em todas as esferas: do
social ao econômico, de tal ordem que justifica que as políticas públicas
e, consequentemente, os gastos públicos não sejam neutros ao gênero.
Stotsky (2006a) sugere que as organizações internacionais levem em
conta o efeito diferenciado das políticas e programas governamentais
sobre mulheres e homens. A perspectiva de gênero deve ser colocada
em evidência nos orçamentos públicos (gender budgeting), e sugere que
o Fundo Monetário Internacional deveria aumentar a sua preocupação
com este tema.
Houve avanços na percepção e no reconhecimento da importância
da mulher vista sob a ótica de gênero nos programas das políticas públi-
cas no Brasil e das agências financiadoras estrangeiras. Do ponto de vista
teórico, estão em processo de elaboração várias abordagens que contri-
buíram para preencher as lacunas na literatura dos estudos empíricos. De
acordo com Melo, Considera e Di Sabbato (2007, p. 441), as abordagens
nas teorias econômicas para analisar o trabalho e a condição feminina
têm pouco respaldo, porque são utilizados conceitos para estudar o mer-
cado capitalista. Então, são necessários outros instrumentais que “[...]
privilegiem instituições, padrões culturais, estratégias de discriminação,
questões psicossociais para desvendar o real sentido do feminino em
nossa sociedade”.
Apesar da abrangente literatura para conceituar a ideia de desen-
volvimento, em todas permanece uma das finalidades últimas da pro-
dução econômica, que é gerar bem-estar para os indivíduos, e a sua
mensuração recai nos campos mais diversos de valoração. Neste sentido,
conceitos de desenvolvimento em termos mais abrangentes, nos quais
somente a dimensão renda é considerada atualmente, são pouco válidos.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 77


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

No processo econômico de geração de riqueza, deve-se considerar a


diversidade das pessoas, e entre as várias possibilidades pode-se destacar
a diferença de sexo e, principalmente, os papéis de gênero no processo
produtivo. Diante de novas dimensões, é preciso uma abordagem teórica
que considere a categoria analítica gênero. Na literatura, a estrutura ana-
lítica de Amartya Sen vem apresentando acelerada evolução sobre esse
ponto vista do desenvolvimento e, não obstante, possibilita o imbrica-
mento com os conceitos de outras correntes teóricas.

3 A ABORDAGEM DAS CAPACITAÇÕES:


UMA PERSPECTIVA PARA A DIVERSIDADE

Conforme Kerstenetzky (2000), Amartya Sen propõe uma visão


mais ampla dos propósitos humanos; a ciência econômica está centrada
nas relações humanas com a finalidade de gerar riqueza e a sua distribui-
ção, sendo a riqueza, fundamentalmente, o instrumento de medição do
bem-estar. Amartya Sen propõe que os propósitos humanos não fiquem
restritos ao espaço de valoração do “ter”, e também devem abranger o
“fazer” (doing) e o “ser” (being)”. Na mudança de espaço avaliatório sobre
o bem-estar das pessoas, a dimensão ética ganha espaço importante e
lança reflexões sobre os fins últimos das atividades econômicas.
A abordagem das capacitações é um marco normativo geral para
avaliação e valoração do bem-estar individual e das disposições sociais,
bem como para o desenho de políticas públicas e as propostas de mudan-
ças sociais. Não é uma teoria que explique pobreza, desigualdade e bem-
-estar, em vez disso, ele fornece uma ferramenta e um quadro para concei-
tuar e avaliar esses fenômenos. A característica principal da abordagem
é a sua capacidade de concentrar no que as pessoas são efetivamente
capazes de fazer e ser, isto é, nas suas capacidades (ROBEYNS, 2005).
A perspectiva teórica das capacitações é liderada por Amartya Sen
e, posteriormente, teve importantes contribuições de Martha Nussbaum3.
Suporta análises que incorporam vários aspectos das relações humanas,
sendo que o desenvolvimento se afasta exclusivamente de uma visão
centrada na renda. A discussão dessa abordagem se fundamenta inicial-
mente considerando as críticas formuladas à teoria neoclássica do bem-
-estar, a qual está alicerçada no utilitarismo. A utilidade é uma inter-
pretação do bem individual que negligencia toda e qualquer informação

3 Ver mais detalhes entre os conceitos de capacitação (capability) em Crocker (1993) e Robyens
(2005).

78 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

sobre as condições que constituem a vida que alguém leva.4 De acordo


com Mattos (2006), nessa abordagem não tem espaço para se considerar
reivindicações de direito e liberdade ou outros aspectos que não sejam
considerados na construção das utilidades.
Alguns conceitos-chave da abordagem proposta por Amartya Sen,
tais como as capacitações e os funcionamentos, são muito difundidos na
literatura, mas ela ainda pode gerar aplicações e novos olhares para os
estudos de gênero e desenvolvimento. Vale a pena revê-los para refletir
sobre o quanto pode ser adequado para a condição feminina no quadro
social e econômico brasileiro. O funcionamento são as várias coisas que
as pessoas podem fazer ou ser, que são valorados como valiosos, as quais
podem ser mais elementares possíveis para existência humana, tais como
a saúde e nutrição, e podem avançar para as atividades mais complexas
da vida social contemporânea, participação ativa na comunidade, ou ainda
atividades complexas do indivíduo, como autoestima e confiança. Este tipo
de abordagem descarta a homogeneidade e coloca a diversidade entre indi-
víduos como um elemento fundamental no conceito de desenvolvimento.
As capacitações são as combinações alternativas de funcionamen-
tos possíveis de realizar, isto é, formam um conjunto de capacitações que
permite às pessoas conduzirem a vida como desejam, significa que as
pessoas têm liberdade de ter o estilo de vida que desejam, e as políticas
públicas têm condições de aumentar as capacitações dos indivíduos. São
várias trajetórias de vidas que são construídas a partir dos valores pes-
soais e acesso aos ativos tangíveis e intangíveis.
De acordo com Kuklys e Robeyns (2004), a crítica central que é
oferecida pela abordagem das capacitações à teoria neoclássica é o uso
exclusivo da utilidade, a qual é representada pela renda ou pelo dispên-
dio como mensuração do bem-estar. Mais especificamente, há três pro-
blemas com o uso exclusivo da renda: a) omissão do impacto sobre os
indivíduos de bens e serviços que não são comercializados; b) desconsi-
dera a heterogeneidade interpessoal na conversão de renda em bem-estar,
particularmente na análise da pobreza e desigualdade; e c) negligencia o
valor intrínseco da escolha.
Na década de 1980, Sen (1983) publicou um estudo em que verificou
que os Produtos Nacionais Brutos per capita do Brasil e México eram supe-
riores em relação aos da Índia, China e Siri Lanka, porém o desempenho
de alguns indicadores sociais, por exemplo, expectativa de vida e taxa de

4 Ver mais detalhes em Mattos (2006).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 79


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

mortalidade infantil, conceituados como funcionamentos, era inferior em


relação a esse segundo grupo de países. As constatações dessa natureza
contribuem para a perspectiva que o processo de desenvolvimento tem que
ser concebido no que a pessoa pode fazer e ser – vida longa, escapar da
mortalidade, ser bem nutrido, saber ler, escrever, comunicar e outros.
Amartya Sen elabora uma série de conceitos para sustentar a sua
estrutura analítica sobre o desenvolvimento, sendo que privilegia a abor-
dagem normativa, e considera como elemento básico as liberdades dos
indivíduos, as quais podem ser várias. A liberdade individual é essen-
cialmente um produto social, e existe uma relação imbricada entre as
disposições sociais que visam expandir as liberdades individuais, e o seu
uso, por sua vez, não é só para expandir as vidas de cada um, mas tornar
as disposições sociais mais apropriadas e eficazes (SEN, 2000).
Sen (2001, p. 52) procura ver o “[...] desenvolvimento como um
processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam [...]”
e as considera tanto fim quanto meio do desenvolvimento. Além disso,
aborda a articulação das diferentes liberdades para promover o desenvol-
vimento. Conforme Sen (2000), o desenvolvimento tem de estar relacio-
nado, sobretudo, com a melhoria da vida que levamos e das liberdades
que desfrutamos. A expansão das liberdades torna a vida mais rica e
mais desimpedida, pois permite que sejamos seres sociais mais completos,
pondo em prática volições e interagindo com o mundo.
As questões de liberdade e escolha são muito mais problemáticas
para as mulheres em uma sociedade de origem e, ainda, de forte presença
patriarcal, porque as disposições sociais impõem limites menos amplos
em relação aos homens. E as desigualdades de gênero são uma barreira
para articular o desenvolvimento a partir da concepção de baixo para
cima. Neste sentido, Sen (2000) questiona se o modo de vida tradicional
deve ser seguido à medida que reduz as liberdades das pessoas. A pri-
vação de liberdade pode surgir em razão de processos inadequados, ou
de oportunidades inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o
mínimo do que gostariam. A visão de liberdade considera tanto os pro-
cessos que permitem a liberdade de ações e decisões como de oportuni-
dades reais que as pessoas têm, dadas as circunstâncias pessoais e sociais.
Amartya Sen, no texto “Faces da desigualdade de gênero”5, des-
creve que a desigualdade de gênero existe em todas as partes do mundo, e
pode assumir várias formas. As mais perceptíveis estão na esfera pública

5 SEN. A. Many faces of gender inequality. The Frontline, India, v. 18, n. 22, on-line, Oct.-Nov.
2001.

80 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

e produtiva, no entanto, se alicerçam na rede primária de proteção social,


ou seja, na família e nos comportamentos sociais, éticos e morais.
Um importante grupo de autores6 vem pesquisando sobre a ideia e
os trabalhos de Amartya Sen na perspectiva de gênero. Segundo Robeyns
(2004), a estrutura social e os constrangimentos de gênero são aspectos
importantes para todas as teorias de bem-estar e justiça, mas não são
todas que são capazes de incluí-las, e cita a abordagem das capacitações
como sendo uma das que suporta este tipo de análise.
De acordo com Benería e Bisnath (1996), as abordagens sobre
direitos e as capacitações de Amartya Sen propiciam um ponto de vista
essencial para sensibilização de gênero como estratégia da erradicação
da pobreza e abrem caminho para o desenvolvimento. Pesquisadores do
INSTRAW (1995) afirmam que as relações de gênero devem ser obser-
vadas em qualquer área ao se buscar o desenvolvimento, sob pena de
se basear em considerações imperfeitas. As diferenças entre mulheres e
homens devem estar presentes ao se elaborar estratégias de desenvolvi-
mento, políticas públicas, entre outras ações.
A dimensão de gênero da pobreza pode ser entendida utilizando-se
a noção de intitulamento (entitlements) e capacitações. Sen (1983, 1990)
definiu intitulamento como a somatória de bens sobre a qual as pessoas
são capazes de estabelecer direitos por meio da produção e comercia-
lização usando os seus próprios meios de produção, e está associado à
capacidade de obter meios materiais para o bem-estar. Por exemplo, no
caso da população rural é extremamente importante para as mulheres
terem acesso à propriedade da terra e ao seu uso, bem como ao crédito e
a outros insumos de produção que facilitem a geração de renda.
Paulilo (2004, p. 233) observa que “[...] mesmo quando o direito
garante a igualdade de gênero, isso não significa que na partilha da pro-
priedade agrícola as filhas herdem como os filhos [...]”. Esta circunstância
evidencia a forte pressão das normas culturais que estão impregnadas na
sociedade. Segundo Deere (2004), a importância do direito da mulher à
posse da terra se justifica principalmente por duas razões que a autora
chama de argumento produtivista e de empoderamento. O argumento
produtivista refere-se ao reconhecimento de que o direito das mulheres
à terra está associado ao aumento de bem-estar das mulheres e seus
filhos, bem como sua produtividade, e, portanto, com o bem-estar de
sua comunidade e sociedade. O argumento do empoderamento reconhece

6 O livro editado por Agarwal, Humphries, Robyens (2005) sintetiza uma parcela importante des-
sas obras.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 81


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

que o direito das mulheres à terra é decisivo para aumentar seu poder de
barganha dentro da família e na comunidade, de tal ordem que os papéis
de gênero possam ser relativizados na dimensão familiar e encorajadas a
participarem da esfera pública da comunidade.
De acordo com Sen (2000), em geral as mulheres se encontram em
posição social, econômica e política inferior ao homem, considerado o
arrimo de família, aquele que detém o poder econômico – fato que lhe
atribui respeito. Entretanto, quando as mulheres têm a oportunidade de
assumir estes papéis, elas têm se mostrado eficientes, e, muitas vezes, as
mesmas são penalizadas por não terem acesso aos recursos econômicos,
ao título de propriedade da terra ou a outras posses.

O ganho de poder das mulheres é um dos aspectos centrais no pro-


cesso de desenvolvimento em muitos países do mundo atual. Entre os
fatores envolvidos incluem-se a educação das mulheres, seu padrão
de propriedade, suas oportunidades de emprego e o funcionamento do
mercado de trabalho. [...]. A condição de agente das mulheres é um dos
mediadores da mudança econômica e social, e sua determinação e suas
conseqüências relacionam-se estreitamente a muitas das característi-
cas centrais do processo de desenvolvimento. (SEN, 2000, p. 234-235).

O ser humano deve ter acesso às liberdades sociais para que possa
moldar seu destino enquanto agente7 (agency) e não ser apenas um
sujeito passivo que segue sua vida segundo a decisão de outras pessoas
(SEN, 2000). Dreze and Sen (1995), estudando a Índia, levantaram a
importância do papel de agente que as mulheres podem desempenhar
na economia, ou seja, como pessoas ativas e promotoras de mudan-
ças e transformações sociais que podem alterar as vidas de mulheres e
homens.
Conforme Keleher (2007), a ideia de empoderamento é parte central
do conceito de agente, bem como do conjunto de capacitações. A autora
acredita que, na produção de Amartya Sen, está presente a importân-
cia da institucionalização do poder, apesar de ele não tratar diretamente
desse tema, mas indiretamente, quando ele aborda sobre as possíveis
limitações que alguns grupos sociais podem ter para acessar um conjunto
de capacitações desejadas. Amaryta Sen, de forma consistente, reconhece
a institucionalização de padrões e práticas, mesmo sem fazer referência
ao termo institucionalização.

7 “Refere-se à realização de objetivos e valores que uma pessoa tem razão para buscar, estejam
eles conectados ou não ao seu próprio bem-estar” (SEN, 2001, p. 103).

82 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Segundo Kabeer (2005), o processo de empoderamento está for-


temente associado à habilidade de fazer escolhas para agir e expressar
livremente. Neste mesmo raciocínio, o desempoderar-se significa ter esta
habilidade prejudicada. De acordo com o Departamento para o Desenvol-
vimento Internacional do Reino Unido, empoderar-se é quando “[...] os
indivíduos adquirem o poder para pensar e agir livremente, exercer esco-
lhas, e expressar seu potencial como um membro pleno de igualdade na
sociedade” (DEPARTMENT FOR INTERNATIONAL DEVELOPMENT, 20008
apud SMYTH, 2007, p. 584).
A relação entre mulheres e homens é ordenada devido à diferença
de sexo e é, em grande parte, um produto institucional em uma socie-
dade. A ambos são traçados diferentes papéis, responsabilidades, liberda-
des, condições de filiação, participação relativa no poder do grupo social
(KELEHER, 2007). Para (2003), a perspectiva das capacitações reconhece
o impacto das instituições sociais e o poder social, e seu exercício é con-
gruente com essa abordagem.
O poder está na raiz do empoderamento e pode ter vários entendi-
mentos e, conforme Oxaal e Baden (1997),9 provém de diferentes movi-
mentos sociais e políticos e tradições. O movimento feminista tem enfati-
zado as organizações coletivas (power with) e tem sido influenciado pelas
ideias do desenvolvimento (power within), ou seja, o empoderamento da
mulher pode ser entendido como um processo individual e consciente em
relação à vida, à aquisição de autoconfiança e à força, as quais são fun-
damentais para desafiar a desigualdade de gênero. E pode ser entendido
por meio de práticas que atingem diferentes níveis: institucional, familiar
e individual.
Segundo Robeyns (2004), o fundamental é que os bens e serviços
disponíveis – produzidos pelo mercado e não produzidos pelo mercado,
renda líquida e transferências em espécie – não são importantes por si só,
mas o que possibilitam as pessoas fazer e ser, isto é, nas capacitações que
elas podem gerar. Potencialmente, as pessoas podem gerar capacitações
oriundas de um conjunto de bens e serviços que têm acesso, no entanto,
dependem de alguns fatores que determinaram o quanto será facilitado
essa conversão de tal ordem que permitam conduzirem e desfrutarem
de uma vida que desejam. A autora enfatiza que mulheres e homens
possuem condições de conversão diferenciadas, tornando-se uma proble-

8 DEPARTMENT FOR INTERNATIONAL DEVELOPMENT. Poverty elimination and the empower-


ment of women. London: DFID, 2000. (DFID Target Strategy Paper).
9 Ver outras abordagens nos Capítulos 1, 2, 10, 11 e 12.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 83


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

mática que toma relevo a partir da ótica de gênero em várias esferas: da


familiar às instituições sociais, políticas e econômicas.
Vários fatores influenciam na conversão: a) sociais, que estão rela-
cionados às instituições sociais (sistema educacional, político, familiar e
outros), normas sociais (gênero, religião, cultura, moral) e outros com-
portamentos sociais; b) ambientais, relacionam-se à exposição das pes-
soas às diversidades climáticas e ambientais, tais como desmatamento,
erosão, enchente e impactos de novas tecnologias; e c) pessoais, que
são determinados pelas características físicas e psicológicas das pessoas
(ROBEYNS, 2004).
Amartya Sen incorpora em sua estrutura analítica a diversidade, e
isso surge como um aspecto considerado intrínseco ao desenvolvimento
não apenas do ponto de vista regional e na dinâmica dos processos de
desenvolvimento, mas, sobretudo, do ponto de vista pessoal e das trajetó-
rias de vidas tramadas pelo acesso aos bens e serviços, as quais permitem
fazer escolhas. Pode ser analisado como algo que enriquece as relações
entre as pessoas e que pode se estruturar como um importante fator de
conversão, e as relações assimétricas de gênero interferem diretamente
na diversidade e conversibilidade.

4 DESENVOLVIMENTO RURAL E O GÊNERO

As análises sobre o desenvolvimento a partir da escala região


apresentaram, recentemente, vigoroso fortalecimento na academia e na
agenda do Estado, tomando como ponto de partida, principalmente, a
geografia econômica e dos estudos sobre territorialidade. Esta última
abordagem teve grande evolução no estudo sobre desenvolvimento nas
áreas rurais, renova algumas perspectivas mais amplas, e possibilita o
reagrupamento de variáveis que mensurem as capacitações das pessoas,
as quais são diretamente afetadas pela heterogeneidade dos locais: pro-
cessos históricos, socioeconômicos e políticos, e as condições clima e
relevo, grau de isolamento, sistemas de produção, bem como as condi-
ções de agente de homens e mulheres. Portanto, nas estratégias de desen-
volvimento o papel dos processos socioeconômicos das regiões e os ato-
res/agentes são fundamentais para criar dispositivos a fim de engendrar
um ciclo virtuoso de desenvolvimento.
Nos estudos sobre desenvolvimento rural, a inclusão da dimensão
espaço contempla a denominada perspectiva territorial, na qual valoriza
o potencial de desenvolvimento a partir dos recursos tangíveis e intan-
gíveis, construídos ou naturais. O conceito de território está associado à

84 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

trajetória histórica da construção de identidades deste espaço, conside-


rando os aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos relativamente
comuns, que propicia desenvolver ambientes favoráveis à interação,
cooperação e confiança de uma população de uma determinada área.
Na literatura, há vários conceitos de território para aprender a relação
entre a sociedade e o espaço. De acordo com Haesbaert (2004), as
diferentes concepções abrangem quatro óticas: política ou jurídico-
política, cultural, econômica e natural. A ideia do desenvolvimento rural
como desenvolvimento territorial, na proposta de Schejtman e Berdegué
(2003), pode ir mais além de uma “intuição fundamentada” e chega a se
constituir em uma teoria de ações para a superação da pobreza rural.
Alguns autores apontam que no território há diversos tipos de
capitais ou ativos tangíveis e intangíveis, sendo de difícil mensuração,
mas são importantes para as comunidades rurais. Nas abordagens que
valorizam o papel do crescimento endógeno, é fundamental a articulação
das escalas analíticas para ativar certos capitais dentro dos territórios, ou
seja, do indivíduo à comunidade rural. Conforme Boisier (1999, p. 65),
toda comunidade possui nove tipos diferentes de capitais (econômico,
cognitivo, simbólico, cultural, institucional, psicossocial, social, cívico
e o capital humano) e quando “[...] adequadamente articulados entre si,
deveriam quase que inexoravelmente produzir desenvolvimento [...]”.
Já Bebbington (1999) considera a existência de cinco ativos em um
território: produzido, humano, natural, social e cultural, os quais propiciam
suporte a um sistema analítico para pensar a sustentabilidade regional do
ponto de vista econômico, social e ambiental. Esses diferentes capitais são
concebidos em termos de acesso na trajetória de vida das pessoas (live-
lihood). Para Soares (2009), a partir de determinadas condições de capaci-
dades e titularidades, em um ambiente social com certo grau de liberdades
e oportunidades, condicionado por fatores estruturais, uma família ou con-
junto de famílias atua no jogo do acesso, mobilização e defesa de ativos
necessários para a construção de suas trajetórias de vida.
A unidade familiar é importante na organização do tempo e do tra-
balho e dependerá das relações sociais. Os papéis de gênero fruto do pro-
duto social são “gerenciadores” da participação dos membros da família
em todos os espaços de atuação, do produtivo ao político, nas comunidades
rurais. Caso sejam desprezadas as relações de gênero, todos os capitais
disponíveis, muito provavelmente, estarão subativados para gerar o desen-
volvimento, e subutilizados quando da implantação de políticas públicas.
As mulheres têm menor acesso aos ativos narrados por Bebbington
(1999) e expressam pouco dos vários tipos de capitais primordiais para o

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 85


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

desenvolvimento territorial levantado por Boisier (1999), e, consequente-


mente, a ideia de que o resultado total é maior que a soma das partes fica
fortemente limitada. A condição de agente para as mulheres é primordial para
otimizar a concepção de desenvolvimento estruturado de baixo para cima.
Além disso, a oportunidade de desenvolver diferentes tipos de capitais poderia
contribuir para aumentar a articulação social, a fim de refletir na eficácia das
políticas públicas e na alocação ótima dos recursos privados, uma vez que
as mulheres estariam mais preparadas para atuar tanto no ambiente familiar
quanto na comunidade, promovendo, assim, o aumento de qualidade de vida.
Segundo Ellis e Biggs (2001), as ideias correntes sobre o desenvol-
vimento rural seguem um processo que classifica a década de 1960 como
a da modernização produtiva; a década de 1970 como a da intervenção
do Estado; a década de 1980 está relacionada à liberalização do mercado;
e a década de 1990, como a da participação e do empoderamento, bem
como da importância de gênero.10 Ellis (1998) associa o desenvolvimento
rural às estratégias de sobrevivência familiar por meio da diversificação
dos modos de vida rurais. Os agricultores familiares constroem um port-
fólio de atividades econômicas e sociais que garantam as condições de
manter e prover os seus padrões de vida. O desenvolvimento rural tem
como finalidade reduzir a pobreza em áreas rurais, e isso ocorreria pelo
processo de empoderamento da população rural.
Na perspectiva de Ellis (1998), a questão de gênero emerge dentro
do contexto da diversificação, por tratar-se de uma dimensão que afeta
diretamente a intensidade dessa estratégia de sobrevivência. A diversi-
ficação dá importância à problemática de gênero, principalmente nas
famílias rurais. Conforme Kageyama (2003), as evidências mostram que,
em vários países na última década, parte da renda familiar rural é oriunda
das fontes de renda não agrícola, revelando grande diversificação na pro-
dução e renda. As pesquisas mostram que na década de 1990 aumentou
o número de famílias com membros dedicando-se a atividades agrícolas
e não agrícolas e residentes no meio rural, as denominadas famílias plu-
riativas (GRAZIANO DA SILVA, 1999).
De acordo com Start (2001), a diversificação deve transformar a
estrutura econômica e societária, e também podemos avançar nos aspec-

10 Os autores alertam que esta classificação incorre em uma análise superficial, pois essa seg-
mentação temporal e seus efeitos práticos não têm seguido uma transição dessa maneira.
A interpretação acerca do desenvolvimento rural é complexa, uma vez que as ideias que apa-
recem, principalmente em uma década, frequentemente começam a ganhar força na década
seguinte e começam a surtir efeitos sobre a prática do desenvolvimento rural de uma forma
ampliada, dez a quinze anos depois de formuladas.

86 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

tos relacionais das sociedades rurais, principalmente da agricultura fami-


liar e as suas respectivas comunidades rurais. A intensa diversificação
da produção da agricultura familiar se aloja na valoração monetária do
espaço rural e nas várias formas de produção rural. Essa forma de produ-
ção atribui necessidade de ampliar a participação de todos os membros
da unidade familiar como poderosa estratégia da economia interna ao
estabelecimento rural e está intimamente associada às economias exter-
nas ao estabelecimento. A somatória de elementos tangíveis e não tangí-
veis para o desenvolvimento rural está na percepção coletiva de aumen-
tar substancialmente a capacidade de todos os membros da família em
expressar o potencial produtivo na força laboral e organizacional, para
que todos possam participar na decisão de alocação dos recursos intrafa-
miliares. Segundo Tondo (2008) e Souza, Nascimento e Staduto (2011), a
estratégia de diversificação, as atividades não agrícolas, exercidas pelos
moradores rurais, têm sido muito importantes na ocupação e geração de
renda das mulheres.
A cooperação e o empoderamento das comunidades rurais terão
contornos mais claros à medida que as famílias propiciarem com um
mínimo de consenso aos membros com menor visibilidade social, política
e econômica – jovens e mulheres – de poderem adquirir mais liberdade de
funcionamento e instrumentalizando a família a alcançar patamares de
bem-estar maiores. De acordo com Sen (2000), o processo de desenvolvi-
mento é muito influenciado por inter-relações como as facilidades eco-
nômicas, liberdades políticas, oportunidades sociais, garantias de trans-
parência e segurança. Além disso, conforme Sen, existe uma necessidade
de desenvolver e sustentar a ligação entre o privado e o público para
que haja uma perspectiva de desenvolvimento. Neste sentido, o aumento
das economias externas que produzem eficiência coletiva de o território
articular-se em um nível de capacitação em que todos possam contribuir
para uma estratégia coletiva por meio da ampla expressão da condição
de agente cria, dessa forma, um cenário mais favorável para engrenar um
desenvolvimento a partir do território.

5 DIVERSIFICAÇÃO E DIVERSIDADE NO MEIO RURAL:


ALGUMAS EXPERIÊNCIAS

A mulher inserida nas atividades de reprodução tem pouco espaço


para manifestar o seu capital social e enriquecer a sua própria vida, da
família e contribuir para o empoderamento das áreas rurais. A divisão das
tarefas e o empoderamento intrafamiliar afetam especialmente as famí-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 87


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

lias rurais em razão das dificuldades de separação das atividades pro-


dutivas e reprodutivas, de tal ordem que há uma forte perda de recursos
para o desenvolvimento dessa unidade e das comunidades rurais. Mesmo
considerando do ponto vista da renda e trabalho, conforme Schefler
(2008), o volume do trabalho doméstico na composição do tempo da
família para sobrevivência e reprodução produtiva gera uma contribuição
importantíssima para a renda dessas famílias. A produção gerada a partir
das atividades do “quintal” da propriedade rural não é monetária, mas é
fundamental para o autoconsumo e interligada ao trabalho doméstico.
Dentro do quadro de diversificação produtiva que alcançaram
algumas propriedades agrícolas, há muitas inovações relacionadas e rea-
lizadas no espaço rural, oferecendo serviços na propriedade rural asso-
ciados ao lazer, tal como o turismo rural, o qual envolve todos os mem-
bros da família. A agroindustrialização rural também é uma estratégia
de geração de renda, e, igualmente, cria novos tipos de ocupações. Essas
duas atividades produtivas originam das atividades de reprodução social,
as quais fazem parte do aprendizado feminino de cuidar das pessoas e
cozinhar, respectivamente.
A produção agroecológica, segundo Karam (2004) em pesquisa
realizada na região metropolitana de Curitiba, é coordenada majoritaria-
mente pelas mulheres. Além disso, a diversificação requer participação de
força de trabalho de todos os membros da família. Considerando que o
mercado de trabalho brasileiro apresenta altas barreiras para contratação
de trabalhador temporário em razão da pouca adequação da legislação
e dos altíssimos custos diretos e de transação (STADUTO; ROCHA JR.;
BITENCOURT, 2004; REZENDE; FERREIRA; KRETER, 2008), consequen-
temente, aumenta a importância do trabalho familiar.
Segundo Gasson e Winter (1992), muitos sociólogos rurais acre-
ditam que a pluratividade11 motivará o questionamento dos papéis e as
relações de gênero entre os casais agricultores com o argumento básico
de que a pluriatividade aumentaria o poder da mulher sobre a proprie-
dade familiar em relação ao do esposo, devido ao seu ganho, indepen-
dentemente do espaço produtivo organizado pelo marido, caso ela tivesse
ocupações agrícolas e não agrícolas. Ou pelo grande envolvimento das
mulheres nas atividades da propriedade, caso o chefe de família tivesse
envolvido em atividades fora da propriedade rural. Por outro lado, outros
autores têm uma visão negativa sobre essa situação, porque o aumento

11 Famílias que têm pelo menos um de seus membros em ocupação agrícola e em ocupação não
agrícola.

88 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

da carga de trabalho para contribuir com a receita da propriedade pode


ocorrer sem desfrutar de aumento expressivo do poder de intervir nas
atividades realizadas. Sem dúvida, a literatura questiona o custo laboral
– tempo e desgastes físico e mental – para a mulher aumentar a sua par-
ticipação organizativa e executora das atividades da propriedade rural.
A migração rural-urbano foi mais intensa entre jovens do sexo femi-
nino, gerando uma relativa masculinização e envelhecimento da popu-
lação do campo (CAMARANO, ABRAMOVAY, 1999; CASTRO, AQUINO,
2008). Por exemplo, no caso do Sul do Brasil, o número de mulheres que
trabalham fora da propriedade rural é muito superior aos dos homens
(TONDO, 2008; SOUZA; NASCIMENTO; STADUTO, 2011). A literatura
aponta algumas situações que conduzem a esse processo demográfico e
esta segregação produtiva: a condição de subalternidade da mulher nas
relações familiares; desvalorização das atividades que desempenham na
agricultura familiar (BRUMER, 2006); dificuldade em distinguir entre as
atividades de produção e reprodução12 (ABRAMOVAY; SILVA, 2000); o
pouco espaço destinado às mulheres na atividade agrícola comercial, na
qual atuam apenas como auxiliares (LOMBARDI, 2006; BRUMER, 2006);
dificuldade de acesso à terra, porque prevalecem os contratos sociais que
privilegiam os homens na transmissão da herança e na direção da pro-
priedade rural (DEERE; LEÓN, 2002; DEERE, 2004); mais oportunidades
de as mulheres encontrarem emprego no centro urbano em relação ao
rural (GOMEZ GARCÍA; RICO GONZÁLEZ, 2004); e ao árduo trabalho
desenvolvido nos ambientes rurais (MELLO et al., 2003).
Todas essas circunstâncias mostram que as condições de agente da
mulher rural são pequenas, apesar de terem mais anos de estudo do que
o homem. As atividades não agrícolas tanto para o homem quanto para
mulher podem abrir espaço de sua valorização que possibilitem aumentar
a capacitação e suas taxas de conversão de funcionamento. A estratégia de
diversificação é complexa e requer o emprego de mão de obra e de todos os
membros da família. A dimensão da diversificação produtiva também abre
espaço para alterar o comportamento de decisão centrada no homem, de
tal ordem que a cooperação e a participação de todos os membros da famí-
lia na atividade produtiva passam a ser preponderantes para a evolução da
atividade. Ou seja, a distribuição de poder aumenta o empoderamento das
mulheres e, consequentemente, desempodera os homens, pois se espera que

12 As mulheres fazem trabalhos que geram renda diretamente por meio da venda da produção do
“quintal da casa” e/ou indiretamente na produção para o autoconsumo, em ambas as atividades
elas geram renda, mas não as obtêm monetariamente.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 89


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

nesta equação de ajustes feita nas relações familiares resulte em estratégias


mais efetivas para as famílias gerarem o caminho de desenvolvimento,
pautada no aumento de liberdade para os membros familiares.
Do ponto de vista do Estado, nas áreas rurais, a externalidade
gerada por políticas públicas sensíveis ao gênero, tal como apresentada
por Stotsky (2006), tem mais importância, pois influencia diretamente
a unidade familiar – produção e reprodução – e, por sua vez, está dire-
tamente conectada com a concepção de desenvolvimento territorial.
Os indivíduos podem ser mais do que agentes econômicos, mas também
atores sociais ativos em suas comunidades contribuindo diretamente para
o aumento do produto, por meio do aumento da eficácia organizativa e
eficiência produtiva, fundamentalmente, na agricultura familiar.
Sorj (2000) alerta que é preciso reconhecer a ambiguidade pre-
sente nos estudos de gênero. De um lado, se enfatiza a importância dos
valores culturais na compreensão do funcionamento dos mercados e das
relações do trabalho. Por outro, contraditoriamente, introduz-se uma
abordagem econômica no cálculo do valor das atividades domésticas, as
quais passam a ser contabilizadas em termos da sua contribuição para o
funcionamento do sistema. Nesta perspectiva, a leitura seniana conduz
outras dimensões de valoração, além da dimensão da renda, e o trabalho
doméstico não gera renda diretamente para a família, mas tem enorme
importância social e econômica.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, procurou-se examinar a partir da abordagem de


Amartya Sen o tema desenvolvimento. Esta estrutura analítica propicia
um suporte teórico para analisar a relação desenvolvimento e gênero, de
tal grandeza que possibilita dilatar o máximo possível as ciências sociais
e, principalmente, a teoria econômica para que se aproxime e incorpore
as outras áreas do conhecimento. Foi possível retratar minimamente as
relações sociais e, particularmente, as de gênero e evidenciar que elas
impactam diretamente no comportamento das famílias e das mulheres.
A relativa redução do número de mulheres e o envelhecimento da popu-
lação no meio rural brasileiro exemplificam claramente que as relações
de gênero são relevantes para a dinâmica demográfica e para o desen-
volvimento rural, de tal ordem que as políticas sensíveis ao gênero são
fundamentais para o desenvolvimento dessas comunidades.
A ideia de desenvolvimento rural permite vários conceitos, os quais
disputam espaço no campo político e na literatura. De modo geral, estão

90 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Jefferson Andronio Ramundo Staduto

no sentido de superar o estado de pobreza e em um cenário de produção


ambientalmente sustentável. A redução da desigualdade das capacitações
é insuficiente para avançar nas estratégias de desenvolvimento, pois as
mulheres têm fortes limitações em convertê-las em funcionamento em
razão das disposições sociais e institucionais, apesar dos recentes avanços.
O empoderamento das mulheres é produto da capacidade de agir e
expressar com liberdade, a despeito de tradições e da cultura majorita-
riamente patriarcal no meio rural. As mulheres precisam ter capacidade
de escolha para que possam desfrutar de uma vida livre e para alçar a
condição de agente, no entanto, ficam limitadas e circunscritas ao pro-
cesso histórico de construção social e cultural que definem os papéis
de cada sexo. O aumento dos capitais tangíveis e, principalmente, dos
intangíveis disponíveis nos territórios é fundamental ao considerar a
participação das mulheres. As relações intrafamiliares organizam o
tempo e o trabalho dos membros da família, dando condições reais para
contribuir ou não com o desenvolvimento das comunidades rurais, e
aumentar a eficácia das políticas públicas de incremento de renda e
qualidade de vida.
O desenvolvimento das comunidades rurais está associado à diver-
sificação, portanto, considerar as relações de gênero – a mulher e o jovem
– nesta estratégia é privilegiar a própria ideia de que a diversidade enri-
quece a vida humana e a sociedade. A diversidade corre ao lado da diver-
sificação produtiva.
A participação da mulher no núcleo familiar, assim como na comu-
nidade rural, “oxigeniza” a diversidade produtiva e social. Reduzir as
diferenças de gênero é fundamental para empoderar todos os membros
da família para que possam construir uma estratégia de desenvolvimento.
A geração e a distribuição da renda entre os membros da família na agri-
cultura são importantíssimas para melhorar as condições de permanên-
cia da família enquanto agricultores e, principalmente, de as mulheres
desfrutarem de uma vida produtiva e não ficarem predispostas a fazer o
movimento migratório campo-cidade.
Ainda pairam no ar algumas questões nada finais, pois a literatura
empírica evidencia que a participação das mulheres enquanto agentes do
desenvolvimento não se livra das atividades de reprodução, no sentido
de partilhar as responsabilidades cotidianas da tarefa da reprodução com
os demais membros da família. O gerenciamento do tempo é delineado
pelas instituições sociais, as quais foram construídas historicamente pelas
relações sociais, bem como pela estrutura econômica, pois elas realizam
um trabalho não pago no espaço doméstico e pouco pago fora do espaço

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 91


Desenvolvimento e Gênero: um olhar sobre o rural a partir da perspectiva de Amartya Sen

doméstico. Problematizar as relações de gênero no meio rural a partir das


relações intrafamiliares está no sentido de que o diferente seja tratado
como igual.

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 95


CAPÍTULO 4

Análise regional das formas


de ocupações e dos rendimentos
das mulheres e homens nas áreas
rurais do Sul do Brasil na primeira
década do século XXI1

Carlos Alves do Nascimento


Marcelino de Souza
Jefferson Andronio Ramundo Staduto

1 Pesquisa financiada pelo CNPq.


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos 20 anos no Brasil, foram realizadas intensas investi-


gações sobre a evolução das formas de ocupações e renda das famílias
rurais. Este capítulo retoma este tipo de pesquisa para a primeira década
deste século, particularmente para a região Sul do Brasil, além de analisar
as famílias, examina o comportamento das mulheres e de homens, privi-
legiando a abordagem de gênero. Nesta pesquisa, as relações de gênero
serão percebidas no exame do comportamento do conjunto das mulheres
e homens a partir do diálogo com a bibliografia sobre o tema, conside-
rando o ponto de vista em que essas relações afetam profundamente o
comportamento das famílias. As pesquisas com base em dados empíricos
do conjunto das trabalhadoras e trabalhadores das famílias rurais são
potencialmente importantes ferramentas complementares para pensar as
políticas públicas sensíveis ao gênero.
As áreas rurais vêm passando por transformações importantes
revelando-se mais complexas e menos dependentes das atividades exclu-
sivamente agrícolas. As famílias pluriativas, ou seja, com membros ocu-
pados em atividades agrícolas e não agrícolas, são interpretadas por mui-
tos autores como uma estratégia de viabilizar a agricultura familiar, ou
simplesmente reação a situações de pobreza rural, como é o caso notável
da região Nordeste (NASCIMENTO, 2005; SACCO DOS ANJOS, 2001).
O desenvolvimento rural ou territorial2 pode estar associado à expan-
são das famílias pluriativas e não agrícolas, pois as pesquisas revelam que
ambos os tipos de famílias têm renda superior às famílias exclusivamente
agrícolas (NASCIMENTO, 2002, 2005). Osakabe (2005) verificou, a partir da
análise dos microdados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio –
PNAD, que nas famílias pluriativas a participação das mulheres ocupadas
pode ser mais expressiva, sustentando que a pluriatividade entre os mem-
bros da família se deve ao trabalho provavelmente das mulheres.
Nascimento (2002) aponta que o serviço doméstico remunerado era
a principal atividade não agrícola das mulheres ocupadas no meio rural, o
qual ainda hoje é uma atividade precária e com grande grau de informa-

2 Desenvolvimento territorial consiste em um processo de transformação produtiva e institucional


em um espaço rural determinado, cujo fim é reduzir a pobreza rural. A transformação produtiva
tem o propósito de articular competitiva e sustentavelmente a economia do território a mercados
dinâmicos. O desenvolvimento institucional tem os propósitos de estimular e facilitar a interação
e a concentração dos atores locais entre si e entre eles com os agentes externos relevantes, assim
como de incrementar as oportunidades para que a população pobre participe do processo e de
seus benefícios (SCHEJTMAN; BERDEGUÉ, 2004).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 99


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

lidade. Melo e Di Sabbato (2005) argumentam que as mulheres no meio


rural brasileiro também têm nível de instrução superior ao dos homens.
Tal situação abre uma “janela de oportunidades” para melhor responder a
políticas públicas e de inserção dessas mulheres no mercado de trabalho.
No espaço privado, dentro das relações familiares, a divisão social
do trabalho construído na agricultura familiar pode ter algum desloca-
mento com a renda proveniente da ocupação das mulheres em atividade
não agrícola. A inserção das mulheres rurais no mercado de trabalho
abriu oportunidades de novas sociabilidades semelhantes ao que já vem
ocorrendo com as mulheres urbanas, contribuindo, desta forma, para elas
próprias problematizarem os papéis de gênero no âmbito familiar, e tam-
bém nos espaços públicos.
As mulheres das famílias rurais que têm ocupação não agrícola
também sofrem discriminação de forma direta no âmbito salarial e indi-
reta no interior das próprias empresas. Segundo Soares (2000), as mulhe-
res de renda mais baixa apresentam maior discriminação salarial, por
exemplo, nas atividades de serviços domésticos, e estão ainda hoje forte-
mente associadas ao trabalho precário.
A discriminação no trabalho pode se tornar mais grave do ponto de
vista das oportunidades que refletem diretamente nos papéis de gênero3
nas unidades familiares. As mulheres tendem a ampliar a sua jornada de
trabalho quando trabalham fora da propriedade rural, pois, além de o
trabalho ser de natureza precária devido à segregação produtiva, há tam-
bém no cotidiano laboral do trabalho não remunerado de manutenção da
propriedade agrícola e o cuidado com demais membros da família, con-
forme o processo socialmente construído para elas serem responsáveis
pela reprodução na família.
De acordo com Abramovay e Silva (2000) e Heredia e Cintrão
(2006), a mulher rural é responsável pelo trabalho doméstico e ainda
pelos cuidados com o quintal, atividade que abrange desde o cuidado
com pequenos animais, bem como o cultivo e a transformação de ali-
mentos para o autoconsumo. Abramovay e Silva (2000) evidenciaram
certa dificuldade em distinguir estatisticamente a produção4 e a repro-
dução5 quando se trata da trabalhadora rural e destacam a necessidade

3 Para o INSTRAW (1995, p. 15), “[...] gênero é um conceito que se refere a um sistema de papéis e de
relações entre mulheres e homens, os quais não são determinados pela biologia, mas pelo contexto
social, político e econômico. O sexo biológico é dado pela natureza; o gênero é construído”.
4 O conceito de “trabalho produtivo” está vinculado ao trabalho remunerado, ao espaço público.
5 O “trabalho reprodutivo” está ligado às atividades não remuneradas, aos afazeres domésticos, ou
seja, ao espaço privado.

100 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

de desagregar os dados por sexo, possibilitando, desse modo, diferenciar


as atividades desenvolvidas por homens e mulheres. Salientam que as
atividades produtivas são desempenhadas por homens e mulheres, no
entanto, as tarefas reprodutivas são responsabilidades exclusivamente
femininas. Os padrões culturais e sociais reforçados pelas instituições, os
obstáculos ao acesso à terra, ao crédito e à tecnologia constituem os prin-
cipais empecilhos para a efetiva contribuição da mulher na agricultura,
uma vez que a sociedade considera o homem como chefe da família, e ele
deve responder pelo sucesso ou fracasso da propriedade rural.
O aumento do número de arranjos familiares6 chefiados por mulhe-
res tem crescido continuamente no país e, conforme o IBGE (2006), no
ano de 2005 correspondia a 30,6%. Essa informação traduz a necessidade
de atenção especial das políticas públicas para atender à atual configura-
ção das famílias brasileiras.
Segundo Momsen (2004), normalmente, a maior parte da renda da
mulher é direcionada à educação e alimentação dos demais membros das
famílias sem renda, tais como os filhos, de tal forma que reduz o risco
social da família. Silva, Almeida e Souza (2005) citam o exemplo do
turismo rural que o envolvimento das mulheres rurais em atividades não
agrícolas gera remuneração que lhe garante independência financeira
para gastar em “suas coisas” ou para ajudar nas contas de casa.
A região Sul do Brasil teve sua dinâmica econômica fortemente
impactada pela política de modernização da agricultura implantada na
década de 1970. Apesar do longo período que já se passou, ainda estão
em curso várias mudanças no meio rural sulista, muitas das quais geram
profundas alterações nas ocupações agrícolas e não agrícolas, e a relação
de gênero é um elemento importantíssimo no processo de desenvolvi-
mento socioeconômico. No entanto, a discussão de gênero e desenvolvi-
mento rural é recente na literatura e particularmente relacionada à “nova
ruralidade”,7 a qual pode se constituir em uma contribuição importante
no enfrentamento dos problemas atuais das áreas rurais.
Neste sentido, este estudo examina o trabalho de homens e mulhe-
res residentes em áreas rurais na região Sul do Brasil na década passada,

6 “[...] conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, de dependência doméstica ou normas
de convivência, residentes na mesma unidade domiciliar ou pessoa que mora só em uma unidade
domiciliar [...].” (IBGE, 2004, p. 398).
7 Trata-se de um conceito cuja abrangência transborda a difusão de atividades não agrícolas no
meio rural, pois inclui uma noção de desenvolvimento regional fundado na integração sistêmica
de atividades dos distintos setores da economia e envolve a noção de desenvolvimento com base
nos recursos locais (LAURENTI, 2000).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 101


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

quanto aos aspectos da ocupação e da renda. Os estudos sobre mulheres


rurais e emprego na América Latina como um todo ainda são escassos, e as
análises realizadas pelos organismos internacionais têm sido concentradas
especialmente em sua situação com respeito ao emprego no setor urbano
(BALLARA; PARADA, 2009). Portanto, neste capítulo procurou-se especifi-
camente evidenciar os tipos de ocupações das mulheres e homens nos distin-
tos tipos de famílias rurais; identificar nos tipos de famílias rurais a presença,
especialmente, das mulheres ocupadas e a sua evolução, e também analisar
a composição da renda oriunda do trabalho feminino segundo cada tipo de
família rural. O exame dos dados das mulheres é realizado em conjunto e
comparando o comportamento dos dados dos homens, o que permite melho-
rar a análise na perspectiva de gênero à luz da literatura sobre o tema.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

As informações foram obtidas através de tabulações especiais


realizadas a partir das Pesquisas Nacionais de Amostras de Domicílios
(PNADs) dos anos de 2002 a 2009 do IBGE. No que diz respeito à unidade
de análise utilizada, esta é a chamada família extensa, que comporta,
além da família nuclear, os parentes e agregados que vivem no mesmo
domicílio. Desta forma, procurou-se construir uma unidade de consumo e
de renda das pessoas que vivem sob um mesmo teto e que partilham entre
si um “fundo comum” de recursos monetários e não monetários.
Não foram analisados os pensionistas que pagam pensão ao chefe
do domicílio, os empregados domésticos e seus parentes. A composição
da família extensa é composta por membros denominados de “pessoas de
referência”, “cônjuge”, “filhos”, “outros parentes” e “agregados”.
Essa opção metodológica se deve a duas razões: a primeira é a
necessidade de se ter em conta a dissociação crescente entre a família
e a exploração agropecuária, seja em relação à renda, seja em relação
à ocupação dos seus membros, o que leva a um processo crescente de
individualização da gestão da unidade de produção, mesmo naquelas
regiões onde predominam pequenas explorações familiares. A segunda
é que não se pode mais reduzir o rural ao setor agropecuário, seja em
função das múltiplas atividades que são lá realizadas, seja porque há uma
dissociação crescente entre local de moradia e local de trabalho para um
determinado local ou território.8

8 A esse respeito, ver o trabalho de Brun (1989).

102 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

A inserção na atividade econômica (agrícola e não agrícola) dos


homens e das mulheres dos tipos de famílias rurais foi analisada com base
nas seguintes variáveis: setor de atividade e rendimento na ocupação prin-
cipal. A pesquisa apresenta como universo de análise diferentes tipos de
famílias classificadas da seguinte forma: 1) pela posição na ocupação dos
membros da família (empregador, conta-própria, assalariado): a) famí-
lias empregadoras: se na família houver algum membro empregador, tal
família é classificada como empregadora; b) famílias conta-própria: não
havendo nenhum membro empregador, mas pelo menos um conta-própria,
a família é compreendida como de conta-própria; c) famílias assalariadas:
na ausência de empregador e de conta-própria, a família será considerada
de assalariados caso algum membro esteja ocupado como tal na semana
de referência da PNAD; 2) pelo ramo de atividade em que estão inseri-
dos (agrícola, não agrícola, pluriativo): a) famílias agrícolas: pelo menos
um membro ocupado na agricultura e nenhum outro fora da agricultura,
ou todos os membros exercerem atividades agropecuárias como ocupação
principal; b) famílias pluriativas: pelo menos um membro ocupado na ati-
vidade agrícola e pelo menos um outro ocupado em outro setor econômico,
ou exerce dupla atividade agrícola (principal e secundária) na semana de
referência da pesquisa; c) famílias não agrícolas: pelo menos um membro
ocupado fora da agricultura e nenhum outro na agricultura.
Por ser uma pesquisa anual, a PNAD possibilita uma análise tem-
poral das variáveis que lhe são pertinentes. Com isso, podem ser constru-
ídas séries históricas das variáveis que foram analisadas no estudo. No
presente artigo, trabalhamos com o período 2001 a 2005; apesar de que, a
partir de 2002, a Classificação Brasileira de Ocupação – CBO-Domiciliar –
e a Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE-Domiciliar
– tenham sofrido alterações substanciais, para a classificação das ocu-
pações e atividades investigadas na PNAD, tais alterações não são pro-
blemáticas quando se trabalha com os ramos de atividades no agregado
(exemplo das famílias agrícolas, pluriativas e não agrícolas).
Outra classificação importante para a realização da pesquisa con-
sistiu na delimitação dos domicílios urbanos e rurais. Graziano da Silva
(2002) explica que, com o objetivo de superar a dicotomia rural-urbana, a
qual prevaleceu até a última PNAD dos anos 1980, e, também, buscando
reduzir as distorções nos dados provocados pela não atualização dos perí-
metros urbanos por parte de muitos municípios, passou-se a incluir as
seguintes situações para a localização dos domicílios pesquisados: 1) Áreas
Urbanas (Urbanizadas): áreas efetivamente urbanizadas dentro dos limites
do perímetro urbano dos municípios. Como urbanizadas são classificadas:

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 103


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

i) as áreas com construções, arruamentos e intensa ocupação humana;


ii) as áreas afetadas por transformações decorrentes do desenvolvimento
urbano, tais como áreas de lazer, aterros, etc.; iii) as áreas reservadas à
expansão urbana e adjacentes às áreas anteriores; 2) Áreas Urbanas Não
Urbanizadas: áreas localizadas dentro do perímetro urbano que não apre-
sentam efetiva urbanização e ocupadas com atividades agropecuárias ou
ociosas (não contíguas àquelas dos itens 1.i e 1.ii acima); 3) Áreas Urbanas
Isoladas: casos de vilas e distritos, consideradas legalmente como áreas
urbanas, mas não contíguas ao núcleo do município.
A propósito dos aglomerados rurais, dois critérios foram considera-
dos: o tamanho e a densidade dos mesmos. A partir desses critérios, clas-
sificou-se: 4) Áreas Rurais – Extensão Urbanas (critério de contiguidade):
áreas urbanizadas adjacentes ao perímetro urbano dos municípios (com
distância inferior a 1 km), resultado do crescimento horizontal das cida-
des, e que ainda não foram incorporadas legalmente ao perímetro urbano
do município; 5) Áreas Rurais – Povoados: aglomerações no espaço rural
que se caracterizam por não estarem vinculadas a um único proprietário
e possuírem um conjunto de edificações permanentes e adjacentes, for-
mando área continuamente construída, com arruamentos reconhecíveis,
ou disposto ao longo de uma via de comunicação, e com serviços para
atender a seus moradores, da seguinte forma: pelo menos um estabeleci-
mento comercial vendendo bens de consumo e pelo menos dois dos três
serviços seguintes: estabelecimento de ensino de segundo grau, posto de
saúde, templo religioso de qualquer credo; 6) Áreas Rurais – Núcleo: é o
aglomerado rural isolado (com mais de 10 e menos de 51 domicílios), cujo
solo pertence a um único proprietário (empresa agrícola, indústria, usina,
etc.), e que dispõe ou não de serviços ou equipamentos definidores dos
povoados; 7) Áreas Rurais – Outros: são os aglomerados que não dispõem
dos serviços definidores de povoado e não estão vinculados a um único
proprietário; 8) Áreas Rurais – Exclusive: áreas que não atendem a nenhum
critério de aglomeração, existência de serviços ou densidade populacional,
caracterizando-se assim como as áreas rurais propriamente ditas.
Neste estudo, consideraremos, portanto, apenas as famílias rurais
residentes nas áreas não metropolitanas denominadas rurais agropecuá-
rios (junção dos itens 6 e 8).9

9 Um fator para não se analisar as áreas metropolitanas é que, conforme Cromartie e Swanson
(1996), a expansão das grandes cidades localizadas nas regiões metropolitanas torna muito
“borrada” a distinção entre o rural e o urbano, dificultando as análises (é como se fosse formada
uma grande área “homogênea” entendida pelo seu caráter urbano – toda a dinâmica é dada pelo
caráter metropolitano dessa área contínua).

104 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

A verificação de se existe ou não uma tendência na evolução do


número de famílias e de pessoas (homem e mulher) é baseada em um
modelo de regressão log-linear contra o tempo.10

3 MULHERES E HOMENS OCUPADOS NO RURAL DO SUL DO BRASIL

Na Tabela 1, podem ser vistas a distribuição e evolução dos con-


tingentes dos diferentes tipos de famílias que residem e estruturam as
áreas rurais agropecuárias não metropolitanas da região Sul, no período
de 2002 a 2009.
Conforme pode ser observado na Tabela 1, a totalidade das famílias
analisadas exibiu uma taxa de crescimento significativa11 de 1,0% a.a.
Note-se que, do ponto de vista dos tipos de famílias classificadas de acordo
com a posição na ocupação, esse crescimento da totalidade das famílias
deveu-se somente ao crescimento significativo das famílias de empre-
gadores com mais de dois empregados (5,0% a.a.), empregados (3,0%
a.a.) e de não ocupados (8,6% a.a.), uma vez que o número de famílias
de conta-próprias apresentou queda significativa (1,8% a.a.) e o número
de famílias de empregadores com até dois empregados manteve-se,
do ponto de vista estatístico, estabilizado.
A Tabela 1 revela também que entre as famílias classificadas,
segundo o ramo de atividade, as que mais se destacaram em termos de
crescimento significativo dos números foram as famílias não agrícolas –
de empregadores com mais de dois empregados (3,9% a.a.) e de emprega-
dos (5,0% a.a.). Somente entre as famílias de empregados é que se regis-
trou crescimento significativo das famílias pluriativas (3,1% a.a.). Em
nenhum dos tipos familiares houve registro de crescimento das famílias
agrícolas. Pelo contrário, entre as famílias de contas-próprias (agricultura
familiar) sulinas, observa-se uma queda de 3,0% ao ano.
Como consequência desses resultados, pode-se verificar na Tabela
2 que as famílias de empregados e as famílias de não ocupados foram as

10 Ver mais detalhes em Neder (2000).


11 O qualificativo significativo concerne ao teste estatístico feito para verificar se a evolução dos
dados (número de famílias) apresenta alguma tendência, de crescimento ou de queda. Dessa
forma, sempre que for usado doravante esse qualificativo (representado pelos asteriscos que
acompanham algumas taxas nas tabelas), a intenção será a de mostrar que os dados apresentam
certa tendência estatística, de modo que nos casos em que as taxas de crescimento das tabelas
não estiverem acompanhadas de asteriscos significará que as mesmas não são estatisticamente
significativas e, portanto, não representam nenhuma tendência – o que poderá ser traduzido, por
conseguinte, como uma estabilidade na evolução dos dados.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 105


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

Tabela 1 – Distribuição e evolução dos tipos de famílias extensas segundo o local de


domicílio: Sul, 2002 a 2009 (1.000 famílias).

Local domicílio 2008 2009


tx cresc.
/ tipo de 2002 2003 2004 2005 2006 2007
família 2002/2009ª (% aa.)
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora
com mais de 2 17 13 15 14 16 17 19 22 5,0 **
empr
Agrícola 4 1 4 3 1 5 4 4 - -
Pluriativo 3 3 4 3 4 2 4 7 - -
Não agrícola 10 8 8 8 11 11 10 11 3,9 **
Empregadora
com até 2 32 47 55 62 54 46 44 56 3,5
empr
Agrícola 16 27 31 38 31 24 22 31 2,7
Pluriativo 13 17 18 20 18 18 16 16 1,2
Não agrícola 3 2 6 5 5 5 5 10 - -
Empregadora
49 59 70 76 69 64 62 78 3,7 *
Total
Agrícola 20 29 35 40 32 29 26 34 2,9
Pluriativo 16 21 22 23 22 20 21 22 2,3
Não agrícola 13 10 13 13 15 15 15 21 7,7 ***
Conta-Própria 723 715 708 669 683 669 670 620 -1,8 ***
Agrícola 504 492 472 446 445 406 435 408 -3,0 ***
Pluriativo 173 152 178 170 175 203 160 162 0,3
Não agrícola 46 71 59 53 62 61 75 51 1,6
Empregados 334 330 343 363 333 382 395 403 3,0 ***
Agrícola 144 159 164 154 135 172 171 153 0,9
Pluriativo 51 47 42 46 46 51 50 64 3,1 *
Não agrícola 139 124 136 164 153 159 174 187 5,0 ***
Não ocupado
107 110 107 123 155 152 171 176 8,6 ***
na semana
Total 1214 1215 1226 1232 1240 1268 1299 1277 1,0 ***

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

106 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Tabela 2 – Evolução da participação relativa (%) dos tipos de famílias extensas


segundo a posição na ocupação e o local de domicílio: Sul, 2002/09 (1.000 famílias).

tx cresc.
Local domicílio (% aa.)
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
/ tipo de família 2002/
2009ª
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora com
1,4 1,1 1,2 1,1 1,3 1,4 1,5 1,7 4,0 **
mais de 2 empr
Empregadora
2,6 3,8 4,5 5,0 4,3 3,7 3,4 4,4 2,6
com até 2 empr
Empregadora
4,1 4,9 5,7 6,2 5,6 5,0 4,8 6,1 2,7
Total
Conta-Própria 59,6 58,9 57,7 54,3 55,1 52,8 51,6 48,6 -2,7 ***
Empregados 27,5 27,2 27,9 29,5 26,8 30,2 30,4 31,6 2,0 ***
Não ocupado na
8,8 9,1 8,7 10,0 12,5 12,0 13,2 13,7 7,6 ***
semana
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 - -
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.
Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

que mais elevaram sua participação relativa no conjunto total das famí-
lias analisadas. As famílias de empregados saíram de uma participação
relativa de 27,5%, em 2002, para 31,6%, em 2009, apresentando uma
taxa média de crescimento significativo de 2,0% a.a., e as famílias de não
ocupados passaram de uma participação relativa de aproximadamente
8,8%, em 2002, para 13,7%, em 2009, em uma velocidade mais destacada
(7,6 % a.a.).
Entre as famílias classificadas de acordo com o ramo de atividade,
foram as famílias não agrícolas as que mais se destacaram em termos de
tendência estatística de crescimento (Tabelas 1 e 3). Na Tabela 3, pode-se
ver o somatório dos tipos de famílias, agrícolas, pluriativas e não agrí-
colas, de todas as posições na ocupação. Observe-se que o único caso
de crescimento significativo, em termos absolutos, é o das famílias não
agrícolas (4,3% a.a.), e esse tipo familiar eleva sua participação relativa
no conjunto das famílias ocupadas em 5,6 pontos percentuais, passando
de 17,9% para 23,5%, no período em questão.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 107


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

Tabela 3 – Evolução absoluta e da participação relativa (%) dos tipos de famílias


extensas, segundo o ramo de atividade e o local de domicílio: Sul, 2002/09 (1.000
famílias).

tx cresc.
Local domicílio (% aa.)
/ tipo de 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
família 2002/
2009ª
Não metropolitano rur agropecuário
Evolução absoluta
Famílias
669 680 670 640 612 606 632 595 -1,8 ***
Agrícolas
Famílias
240 220 241 238 243 274 231 247 1,1
Pluriativas
Famílias Não
198 205 208 229 230 236 264 259 4,3 ***
Agrícolas
Evolução da participação relativa (%)
Famílias
60,4 61,6 59,8 57,8 56,4 54,3 56,1 54,0 -1,9 ***
Agrícolas
Famílias
21,7 19,9 21,6 21,5 22,4 24,6 20,5 22,5 1,0
Pluriativas
Famílias Não
17,9 18,6 18,6 20,7 21,2 21,1 23,4 23,5 4,2 ***
Agrícolas
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 - -
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.
Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

No caso das famílias agrícolas, estas exibem trajetórias de decres-


cimento absoluto significativo e de perda de participação relativa (Tabela
3) – as famílias agrícolas perdem participação, caindo de 60,4% para
54,0%. As famílias pluriativas mantêm, do ponto de vista do teste esta-
tístico, sua participação relativa, no mesmo período.
Esses resultados se refletem no conjunto da agricultura familiar,
conforme registrado na Tabela 4, no qual tanto o número de famílias da
agricultura familiar total experimentou uma redução significativa (1,9%
a.a.), quanto o número de famílias agrícolas que a compõem também
registrou queda significativa (2,8% a.a.). As famílias pluriativas mantive-
ram-se estáveis (sentido estatístico).

108 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Tabela 4 – Evolução dos tipos de famílias extensas da Agricultura Familiar, segundo


o local de domicílio: Sul, 2002/09 (1.000 famílias).

Local tx cresc.
2009
domicílio / 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 (% aa.)
tipo de família 2002/2009ª
Não metropolitano rur agropecuário
Agricultura
29 45 49 57 49 42 38 46 2,1
Familiar A
Agrícola 16 27 31 38 31 24 22 31 2,7
Pluriativo 13 17 18 20 18 18 16 16 1,2
Agricultura
677 644 649 616 620 609 595 569 -2,1 ***
Familiar B
Agrícola 504 492 472 446 445 406 435 408 -3,0 ***
Pluriativo 173 152 178 170 175 203 160 162 0,3
Agricultura
706 689 698 673 669 650 634 615 -1,9 ***
Familiar Total
Agrícola 521 520 503 484 476 429 457 438 -2,8 ***
Pluriativo 186 169 196 190 193 221 177 177 0,3
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.
Nota: 1) Agricultura Familiar A: Famílias de empregadores com até dois empregados; Agricultura
Familiar B: Famílias de conta-próprias; 2) Exclusive os tipos de famílias com menos de seis obser-
vações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

Está ocorrendo uma persistente e expressiva trajetória de queda


do número de famílias sulinas rurais agropecuárias agrícolas (particu-
larmente entre famílias de empregados) nas últimas duas décadas. Nas-
cimento (2005) já havia observado este comportamento na década de
1990, e, neste estudo, se constatou o mesmo comportamento para a pri-
meira década deste século. Por outro lado, no que diz respeito às famílias
sulinas da agricultura familiar (em especial, famílias de conta-próprias12
agrícolas), de forma semelhante ao comportamento verificado nos anos
1990, período em que, segundo Nascimento (2005), registrou-se decrés-
cimo significativo (sentido estatístico) da agricultura familiar sulina, nos
anos 2000, de acordo com o observado anteriormente, o universo da

12 A partir da Tabela 4, pode-se conferir que as famílias de conta-próprias (agrícolas + pluriativas)


correspondem a 92,5% do universo da agricultura familiar analisada.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 109


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

agricultura familiar residente nas áreas rurais agropecuárias sulinas con-


traiu-se significativamente, abrindo espaço para uma maior participação
relativa das famílias não agrícolas.
Resumidamente, a partir desse conjunto de informações, pode-se
inferir que a redução do contingente da agricultura familiar sulina ana-
lisada pode ter implicado em uma conversão de uma parte menor desse
contingente em famílias de empregados pluriativas, e uma parte maior
em famílias de empregados não agrícolas, e em famílias de não ocupados.
Esses resultados são reforçados pelos dados das Tabelas 5 e 6, pois
tanto a quantidade de homens quanto a de mulheres sulinas, ocupados
em atividades agrícolas, reduziram-se significativamente nas áreas rurais
e no período analisado, sendo que a queda mais severa ocorreu para os
homens e mulheres das famílias conta-próprias agrícolas.
Em ambos os sexos, essa redução significativa da ocupação em
atividades agrícolas é notória entre os dois tipos familiares da agricul-
tura familiar (famílias agrícolas e pluriativas). Por outro lado, entre as
famílias de empregados pluriativas, enquanto as mulheres reduziram sua
ocupação em atividades agrícolas (3.9% a.a.), os homens passaram a se
ocupar mais em atividades agrícolas (3,3% a.a.), neste ficou evidenciada
a predisposição dos homens a se dedicarem mais às atividades agrícolas.
Em sentido contrário ao engajamento em atividades agrícolas,
pode-se ver nas Tabelas 7 e 8 que os homens e as mulheres residentes nas
áreas rurais agropecuárias sulinas passaram a se ocupar cada vez mais em
atividades não agrícolas a taxas anuais significativas médias de 2,8% e
5,0%, respectivamente, nos anos 2000 – os homens, especialmente entre
as famílias de empregadores e as famílias de empregados (pluriativas e
não agrícolas); as mulheres, notadamente entre todos os tipos familiares
conforme a posição na ocupação.
As Tabelas 5, 6, 7 e 8 revelam que o número de mulheres ocupadas
no rural do Sul do Brasil é muito menor do que o dos homens. Por exem-
plo, em 2009 existiam 1.453 mil homens ocupados; em contrapartida,
existiam 1.004 mil mulheres. As mulheres estavam majoritariamente
ocupadas em atividades não agrícolas, evidenciando que as mulheres
estão se adaptando mais a este tipo de atividade. Isso revela a maior pre-
disposição das mulheres migrarem para a cidade em relação aos homens.
Os estudos de Camarano e Abramovay (1999) e Castro e Aquino (2008)
evidenciam o grande desequilíbrio demográfico entre homens e mulhe-
res, a proporção de homens é muito superior à das mulheres, colocando
em risco, desta forma, a estrutura familiar no meio rural. Essa situação
é em decorrência de vários fatores, dentro os quais podemos destacar a

110 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Tabela 5 – Evolução do número de homens ocupados em atividades agrícolas, segundo


os tipos de famílias extensas e o local de domicílio: Sul, 2002 a 2009 (1.000 pessoas).

Local domicílio 2008 2009 tx cresc.


2002 2003 2004 2005 2006 2007
/ tipo de família 2002/2009ª (% aa.)
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora
com mais de 2 7 4 8 9 2 8 8 10 - -
empr
Agrícola 6 1 4 3 1 6 5 5 - -
Pluriativo 1 3 5 6 1 2 3 5 - -
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregadora
42 61 64 74 65 54 46 52 -0,7
com até 2 empr
Agrícola 24 37 39 47 34 30 27 36 0,2
Pluriativo 18 24 26 27 31 24 19 16 -2,3
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregadora
49 65 73 83 68 62 53 63 0,1
Total
Agrícola 30 38 42 50 36 36 32 41 0,6
Pluriativo 19 27 30 33 32 26 21 22 -0,9
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Conta-Própria 948 894 895 833 805 785 730 710 -4,0 ***
Agrícola 728 685 663 613 590 543 540 526 -4,8 ***
Pluriativo 220 208 232 219 215 241 190 184 -1,9 *
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregados 220 237 239 227 195 240 241 219 -0,1
Agrícola 174 204 199 186 154 199 194 166 -0,9
Pluriativo 46 34 40 41 40 41 47 53 3,3 *
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Não ocupado
0 0 0 0 0 0 0 0 - -
na semana
Total 1216 1196 1207 1143 1067 1087 1024 991 -3,0 ***

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 111


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

Tabela 6 – Evolução do número de mulheres ocupadas em atividades agrícolas, segundo


os tipos de famílias extensas e o local de domicílio: Sul, 2002 a 2009 (1.000 pessoas).

Local domicílio / 2008 2009 tx cresc.


2002 2003 2004 2005 2006 2007
tipo de família 2002/2009ª (% aa.)
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora
com mais de 2 4 1 1 3 2 5 4 4 - -
empr
Agrícola 1 0 1 1 1 4 3 2 - -
Pluriativo 3 1 1 2 2 1 2 1 - -
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregadora
21 36 41 39 34 31 23 23 -3,0
com até 2 empr
Agrícola 14 21 28 27 26 18 16 17 -1,9
Pluriativo 7 14 13 12 8 13 8 6 -5,4
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregadora
25 37 42 42 36 36 28 26 -1,9
Total
Agrícola 15 21 29 28 26 22 18 19 0,1
Pluriativo 10 16 13 15 10 14 9 7 -5,6 *
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Conta-Própria 567 538 522 482 480 414 383 377 -6,1 ***
Agrícola 461 441 402 378 382 299 293 288 -7,1 ***
Pluriativo 107 97 119 104 98 115 90 89 -2,1
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Empregados 52 60 59 58 56 60 46 59 -0,5
Agrícola 37 47 48 44 45 49 33 49 0,3
Pluriativo 14 14 11 14 10 11 13 9 -3,9 *
Não agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Não ocupado
0 0 0 0 0 0 0 0 - -
na semana
Total 644 635 623 582 572 510 457 462 -5,3 ***

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

112 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Tabela 7 – Evolução do número de homens ocupados em atividades não agrícolas, segundo


os tipos de famílias extensas e o local de domicílio: Sul, 2002 a 2009 (1.000 pessoas).

Local domicílio 2008 2009 tx cresc.


2002 2003 2004 2005 2006 2007
/ tipo de família 2002/2009ª (% aa.)
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora
com mais de 2 17 13 10 11 19 11 18 19 3,9
empr
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 5 2 1 1 4 0 4 5 - -
Não agrícola 12 11 10 11 15 11 14 14 3,6 *
Empregadora
com até 2 6 9 16 12 8 10 13 17 9,6 *
empr
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 2 7 9 6 2 4 6 6 - -
Não agrícola 4 2 8 6 6 6 7 11 - -
Empregadora
23 22 27 23 27 21 31 36 5,5 **
Total
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 6 9 9 6 6 4 10 11 1,6
Não agrícola 16 12 17 17 20 17 21 25 7,3 ***
Conta-Própria 126 140 140 113 133 143 154 129 1,1
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 68 53 71 57 66 78 66 72 2,2
Não agrícola 58 86 69 57 68 65 88 58 0,2
Empregados 160 150 150 180 171 180 186 201 3,8 ***
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 23 31 26 26 25 26 23 25 -0,9
Não agrícola 138 120 125 154 147 154 163 176 4,7 ***
Não ocupado
0 0 0 0 0 0 0 0 - -
na semana
Total 309 312 317 317 331 344 371 366 2,8 ***

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 113


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

Tabela 8 – Evolução do número de mulheres ocupadas em atividades não agrícolas, segundo


os tipos de famílias extensas e o local de domicílio: Sul, 2002 a 2009 (1.000 pessoas)

Local domicílio 2008 2009 tx cresc.


/ tipo de 2002 2003 2004 2005 2006 2007
família 2002/2009ª (% aa.)
Não metropolitano rur agropecuário
Empregadora
com mais de 2 9 8 6 8 10 11 12 16 10,4 ***
empr
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 2 3 1 1 3 1 1 5 - -
Não agrícola 7 4 5 7 7 9 11 10 11,9 ***
Empregadora
com até 2 9 6 11 14 12 17 12 16 10,5 ***
empr
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 7 5 7 10 8 12 7 11 7,8 **
Não agrícola 2 1 4 4 4 4 5 5 - -
Empregadora
17 14 18 22 22 27 25 31 10,3 ***
Total
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 9 9 8 11 11 14 9 16 7,3 **
Não agrícola 9 5 9 11 11 14 16 15 13,3 ***
Conta-Própria 107 122 130 128 136 128 136 122 1,8 *
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 84 79 86 92 92 89 83 85 0,5
Não agrícola 23 43 44 36 44 39 53 37 5,1 *
Empregados 110 109 111 124 135 139 156 175 7,2 ***
Agrícola 0 0 0 0 0 0 0 0 - -
Pluriativo 35 31 28 26 33 40 37 52 6,1 **
Não agrícola 75 78 83 98 102 98 119 123 7,6 ***
Não ocupado
0 0 0 0 0 0 0 0 - -
na semana
Total 234 246 258 274 293 294 317 328 5,0 ***

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: Exclusive os tipos de famílias com menos de seis observações.
a) estimativa do coeficiente de uma regressão log-linear contra o tempo. Neste caso, o teste t indica a
existência ou não de uma tendência nos dados. ***, **, * significam respectivamente 5%, 10% e 20%.

114 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

desequilibrada relação de gênero que são apresentadas e discutidas ao


longo de vários capítulos do livro e, especialmente, nos capítulos 1 e 2.
Em relação à participação de homens e mulheres na formação da
renda média familiar de cada um dos tipos familiares sob análise, as
Tabelas 9 e 10 revelam a menor participação relativa das mulheres na
composição das rendas médias familiares, tanto entre as rendas médias
somente do trabalho (rendas agrícolas e não agrícolas, Tabela 9) quanto
no conjunto de todas as fontes de renda familiar (do trabalho, e do não
trabalho: aposentadorias e pensões e outras, Tabela 10). Somente no caso
das famílias de não ocupados é que as mulheres exibem uma participação
relativa um pouco maior do que a dos homens na composição da renda
média familiar (Tabela 10).
É importante termos ciência que a composição da renda depende
de quem informa, e podemos classificá-la de maneira mais cuidadosa de
duas formas: primeira, a contribuição de cada membro da família, espe-
cialmente homens e mulheres, para a renda total; e a segunda renda pelo
lado de quem se apropria e orienta os gastos que devem ser realizados na
propriedade e no núcleo familiar. Os dados das Tabelas 9 e 10 refletem
muito mais a apropriação da renda gerada pelo núcleo familiar, e menos
a contribuição de cada membro para a geração desta renda familiar. Por
exemplo, se a mulher ajuda na geração da renda no espaço laboral mas-
culino, a sua contribuição não será claramente registrada nas estatísti-
cas oficiais, e será subestimada, e, principalmente, se o informante for o
chefe de família homem.
Esses resultados confirmam o importante papel social e econômico
desempenhado pelas rendas oriundas da previdência social no meio rural,
fato que outros autores já comprovaram, em especial Delgado e Car-
doso Jr. (2000), e também reafirmam as conquistas dos movimentos das
mulheres rurais que passaram a adquirir a aposentadoria aos 55 anos
de idade, direito previsto na Constituição de 1988, mas que passou a
ser concedido apenas a partir de 1991. Até então as mulheres rurais só
tinham acesso ao benefício aos 65 anos de idade (HEREDIA; CINTRÃO,
2006; NAVARRO, 1996).13
Entretanto, comparando a Tabela 9 com a Tabela 10, observa-se
que as menores participações relativas das mulheres na composição das
rendas médias familiares verificam-se quando se consideram apenas as
rendas do trabalho (Tabela 9). Note-se, na Tabela 9, que as mulheres par-
ticipam com apenas 17,0% da formação da renda média (R$ 1.384,12) do

13 O Capítulo 13 discute detalhadamente a aposentadoria rural.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 115


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

Tabela 9 – Composição das Rendas Médias (do Trabalho) dos tipos de famílias exten-
sas: Sul, 2009 (R$ set. 2009)

Homem Mulher
Local domicílio / tipo 2009
Agrícola Não-agric Agrícola Não-agric
de família
% % % % R$
Não Metropolitano
59,0 24,0 4,4 12,6 1.384,12
Rural Agropecuário
Empregadora com
40,6 42,6 0,6 16,2 5.239,65
mais de 2 empr
Agrícola 100,0 0,0 0,0 0,0 7.018,27
Pluriativo 41,5 41,4 1,9 15,2 5.514,07
Não agrícola 0,0 72,1 0,0 27,9 4.329,42
Empregadora com até
65,1 21,0 4,4 9,5 2.490,80
2 empr
Agrícola 95,9 0,0 4,1 0,0 2.238,85
Pluriativo 51,4 23,5 6,5 18,5 3.107,87
Não agrícola 0,0 83,1 0,0 16,9 2.170,80
Empregadora Total 53,0 31,7 2,5 12,8 3.364,46
Agrícola 97,3 0,0 2,7 0,0 2.960,24
Pluriativo 46,9 31,7 4,4 17,0 3.883,67
Não agrícola 0,0 75,1 0,0 24,9 3.415,31
Conta-Própria 73,6 13,4 4,7 8,2 1.549,53
Agrícola 94,9 0,0 5,1 0,0 1.320,06
Pluriativo 59,2 21,0 5,2 14,7 2.048,47
Não agrícola 0,0 67,7 0,0 32,3 1.518,92
Empregados 29,7 43,2 5,0 22,2 1.140,08
Agrícola 83,4 0,0 16,6 0,0 756,89
Pluriativo 41,1 31,5 4,1 23,3 1.483,51
Não agrícola 0,0 68,1 0,0 31,9 1.312,00
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.
Nota: Exclusive as famílias com renda zero e os tipos de família com menos de seis observações.

total do trabalho das famílias residentes nas áreas rurais agropecuárias


sulinas. Contudo, ao se considerar todas as fontes de renda, do traba-
lho e do não trabalho, (Tabela 10) observa-se que a participação rela-
tiva das mulheres aumenta para 25,6% na composição da renda média

116 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

Tabela 10 – Composição das Rendas Médias (de todas as fontes) dos tipos de famílias
extensas: Sul, 2009 (R$ set. 2009).

Homem Mulher
Local domicílio 2009
Agrí- Não Apos/ Out Agrí- Não Apos/ Out
/ tipo de
cola agric pens fonte cola agric pens fonte
família
% % % % % % % % R$
Não Metropo-
litano Rural 45,1 18,4 8,3 2,5 3,4 9,6 10,5 2,1 1.808,64
Agropecuário
Empregadora
com mais 2 38,6 40,5 2,5 0,7 0,6 15,4 1,7 0,0 5.511,07
empr
Agrícola 94,0 0,0 3,9 1,4 0,0 0,0 0,8 0,0 7.467,53
Pluriativo 38,2 38,0 4,2 1,0 1,7 14,0 2,8 0,0 5.995,92
Não agrícola 0,0 71,0 0,0 0,0 0,0 27,5 1,5 0,0 4.393,87
Empregadora
54,0 17,4 6,0 3,6 3,7 7,9 6,3 1,1 3.002,03
com até 2 empr
Agrícola 76,4 0,0 9,1 3,1 3,3 0,0 6,6 1,6 2.809,90
Pluriativo 46,4 21,2 4,1 0,2 5,9 16,7 4,7 0,9 3.446,86
Não agrícola 0,0 64,3 0,8 12,5 0,0 13,1 9,0 0,3 2.804,63
Empregadora
46,9 28,0 4,4 2,3 2,3 11,3 4,2 0,6 3.799,47
Total
Agrícola 82,0 0,0 7,4 2,5 2,2 0,0 4,7 1,1 3.512,91
Pluriativo 42,7 28,8 4,1 0,6 4,0 15,5 3,8 0,5 4.268,73
Não agrícola 0,0 68,9 0,3 4,0 0,0 22,9 3,9 0,1 3.720,87
Conta-Própria 58,5 10,7 7,2 2,2 3,7 6,5 9,9 1,3 1.951,67
Agrícola 71,8 0,0 8,8 2,8 3,8 0,0 11,4 1,4 1.744,86
Pluriativo 49,9 17,7 4,7 1,4 4,4 12,4 8,7 0,9 2.428,36
Não agrícola 0,0 56,3 7,9 1,7 0,0 26,9 5,1 2,1 1.825,10
Empregados 23,5 34,2 6,7 2,5 3,9 17,5 8,5 3,2 1.441,32
Agrícola 62,6 0,0 6,0 5,9 12,5 0,0 7,9 5,1 1.008,14
Pluriativo 35,1 26,9 4,3 0,3 3,5 19,9 6,8 3,2 1.737,37
Não agrícola 0,0 53,5 8,0 1,8 0,0 25,0 9,5 2,2 1.671,40
Não ocupado
0,0 0,0 39,1 7,3 0,0 0,0 43,4 10,2 940,65
na semana

Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.


Nota: Exclusive as famílias com renda zero e os tipos de família com menos de seis observações.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 117


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

(R$ 1.808,64) do total geral das famílias residentes nas áreas rurais agro-
pecuárias sulinas.
Um comentário adicional acerca das chamadas “outras rendas”,
última coluna da Tabela 10, é que essas são geralmente menos impor-
tantes, representando em torno de 5% na composição das rendas médias
familiares. Esse resultado encontra-se de acordo com a literatura interna-
cional, a qual aponta que “outras rendas são muito menos importantes”
na composição da renda familiar rural (MACKINNON et al., 1991, p. 63).

Tabela 11 – Participações relativas (%) das mulheres nas composições das rendas
médias familiares (do trabalho, e de todas as fontes de renda), segundo o tipo familiar
e o local de domicílio: Sul, 2009

Local domicílio / tipo de família (A) (B) (B - A)


Não Metropolitano Rural
17,0 25,6 8,6
Agropecuário
Empregadora com mais de 2 empr 16,8 17,7 0,9
Agrícola 0,0 0,8 0,8
Pluriativo 17,1 18,5 1,4
Não agrícola 27,9 29,0 1,1
Empregadora com até 2 empr 13,9 19,0 5,1
Agrícola 4,1 11,5 7,3
Pluriativo 25,1 28,1 3,1
Não agrícola 16,9 22,4 5,5
Empregadora Total 15,4 18,4 3,0
Agrícola 2,7 8,0 5,4
Pluriativo 21,4 23,8 2,4
Não agrícola 24,9 26,9 1,9
Conta-Própria 12,9 21,5 8,5
Agrícola 5,1 16,6 11,5
Pluriativo 19,8 26,3 6,5
Não agrícola 32,3 34,1 1,8
Empregados 27,1 33,1 6,0
Agrícola 16,6 25,4 8,8
Pluriativo 27,4 33,4 6,0
Legenda:
(A): Participação relativa (%) das mulheres na renda média familiar do trabalho (Fonte: Tabela 9).
(B): Participação relativa (%) das mulheres na renda média familiar de todas as fontes (Fonte: Tabela 10).
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD/IBGE.

118 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carlos Alves do Nascimento, Marcelino de Souza, Jefferson Andronio Ramundo Staduto

A Tabela 11 apresenta, de maneira clara, as diferenças das partici-


pações relativas das mulheres nas composições das rendas médias fami-
liares exibidas nas Tabelas 9 e 10. Desta Tabela 11, se tem observações
muito semelhantes que podem ser extraídas das Tabelas 9 e 10 quanto às
composições das rendas médias dos diferentes tipos familiares. Em pra-
ticamente todas elas, a participação relativa das mulheres na formação
da renda média familiar é bem menor do que a participação relativa dos
homens. A participação se eleva quando se consideram as demais fontes
de renda (aposentadorias e pensões e outras), além das fontes do trabalho
(agrícolas e não agrícolas). E não há distinções muito expressivas, em tais
observações, entre famílias de conta-próprias e famílias de empregados.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo central deste capítulo consistiu em examinar o compor-


tamento das ocupações e das fontes de rendas dos homens, mas princi-
palmente das mulheres residentes em áreas rurais da região Sul do Brasil
no período 2002 a 2009.
Três conclusões mais gerais podem ser apresentadas a partir das
análises realizadas para o período estudado. A primeira delas é que, no
período analisado, mesmo estando presentes políticas agrícolas favo-
ráveis aos agricultores familiares, em especial o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar, PRONAF, este não possibilitou a
contenção do abandono de atividades agrícolas tradicionais por parte dos
pequenos produtores familiares. A redução da participação da agricultura
familiar sulina no conjunto das famílias analisadas pode ser explicada
pela conversão de uma parte menor desse grupo em famílias de emprega-
dos pluriativas, uma parte maior em famílias de empregados não agríco-
las, e, finalmente, também em famílias de não ocupados. A confirmação
dessa hipótese verifica-se ao se analisar as tabelas de formas de ocupação
apresentadas anteriormente neste capítulo.
A segunda conclusão importante é que, na análise da composição
das fontes de rendas de homens e mulheres, verifica-se que os homens
ainda se constituem nos maiores responsáveis pela formação da renda
familiar, tanto do ponto de vista de todas as fontes de renda do trabalho
como de todas as fontes de renda. Ou seja, pode-se verificar que, ape-
sar da importante participação da mulher em atividades não agrícolas,
as mulheres estão relativamente distantes para igualar a participação
dos homens na formação da renda familiar, mesmo considerando que
haja subestimação de registro dos dados para as mulheres. Essas infor-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 119


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
e Homens nas Áreas Rurais do Sul do Brasil na Primeira Década do Século XXI

mações sobre a composição da renda média familiar entre mulheres e


homens revelam, do ponto de vista do desenvolvimento rural, dois pon-
tos importantes: i) as mulheres precisam ser mais valorizadas em termos
das rendas do trabalho; e ii) as transferências governamentais de renda
sob as diversas formas deveriam ser cada vez mais direcionadas para
as mulheres.
A terceira conclusão é que a redução das ocupações agrícolas afeta
mais intensamente as mulheres. De acordo com a literatura, as disposi-
ções sociais vigentes no meio rural contribuem para as mulheres migra-
rem para as cidades. A despeito do potencial da melhora na qualidade de
vida das mulheres em exercerem atividades não agrícolas fora do meio
rural, esta situação pode criar dificuldades nas vidas do núcleo familiar
tanto do ponto de vista produtivo como social, bem como o desenvol-
vimento rural baseado na agricultura familiar A ocupação não agrícola
no grupo de famílias de conta-própria (agricultura familiar) e no grupo
de empregados está tornando-se grande ‘refúgio’ ocupacional para as
mulheres gerarem e obterem renda morando no meio rural, distante do
espaço laboral masculino. Isso pode contribuir para reduzir a predisposi-
ção de as mulheres migrarem para a cidade.
Enfim, esses resultados apontam para a necessidade de aprofunda-
mento das análises dos dados, considerando-se outros aspectos que ainda
não foram abordados, os quais fogem às possibilidades de discussão deste
capítulo. A questão de gênero coloca-se como fundamental e altera deci-
sivamente a formulação de políticas públicas e que podem impactar posi-
tivamente no processo de desenvolvimento das áreas rurais. Nos capítu-
los 11 e 12 são apresentados os resultados de pesquisa de estudos de caso.

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120 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 121


Análise Regional das Formas de Ocupações e dos Rendimentos das Mulheres
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122 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 5

Distribuição espacial das


trabalhadoras rurais na agricultura
familiar no Sul do Brasil1

Alessandra Juliana Caumo

1 Esta pesquisa é parte da dissertação de mestrado realizada com o apoio da Fundação Araucária.
Alessandra Juliana Caumo

1 INTRODUÇÃO

A proposta deste capítulo foi analisar a ocorrência e a distribuição


no espaço da mulher ocupada no meio rural por meio da análise explo-
ratória de dados espaciais (AEDE). Esta pesquisa pretendeu ser uma con-
tribuição para os estudos sobre as mulheres ocupadas na agricultura do
Sul do Brasil, a partir de outro ponto de vista, especificamente da análise
espacial. Trata-se de um instrumental estatístico expresso em mapas, que
auxilia para analisar como ocorre a distribuição das mulheres ocupadas
no Sul do Brasil.
O Censo Agropecuário de 2006 registrou que no Brasil havia apro-
ximadamente 12,3 milhões de pessoas ocupadas na agricultura fami-
liar, e aponta que a maioria dessas pessoas eram homens (66%), sendo
que as mulheres ocupadas eram uma parcela muito menor, apenas de
4,1 milhões do total, ou seja, cerca de 34% dos ocupados. Na divisão
sexual do trabalho, os homens são majoritariamente responsáveis pelo
trabalho produtivo e pelas atividades públicas, isto é, todas as ativi-
dades que se associam ao mercado, e as mulheres ao trabalho repro-
dutivo. Neste sentido, elas são responsáveis pelos afazeres domésticos
e ao seu entorno, e, muitas vezes, não geram rendimento fiduciário, e
também são responsáveis pela educação dos filhos e cuidar dos mais
idosos, sendo que são atividades extremamente importantes para a
manutenção do núcleo familiar, mas geram pouca visibilidade (NOBRE,
1998; DEERE; LEÓN, 2002; MELO; DI SABBATO, 2005; BRUMER, 2004;
HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
A análise espacial da distribuição das mulheres ocupadas no
meio rural procurará examinar as desigualdades de gênero presentes
na dinâmica da agricultura familiar. O impacto de algumas mudan-
ças observadas nas vidas das mulheres, e, como ocorre em diferentes
regiões do país, por exemplo, verifica-se a predominância de mulheres
jovens migrarem para as cidades em busca de trabalho, de formação
educacional, fugirem da pobreza e das precárias atividades no meio
rural. Para Brumer (2004) e Abramovay (2000), esse fenômeno pode
ser explicado por diversos fatores ligados às dinâmicas intrafamilia-
res, tais como as questões de sucessão geracional dos estabelecimen-
tos agropecuários, divisão sexual do trabalho e a invisibilidade do
trabalho feminino.
O meio rural é lócus onde se desdobram os processos econô-
micos e sociais associados à produção familiar. A agricultura fami-
liar no setor agropecuário tem importante participação na geração do

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 125


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

produto e é fundamental para o desenvolvimento das comunidades


rurais. Os estudos sobre desenvolvimento rural, assim como a dimen-
são espaço-territorial valorizam seus recursos internos à comunidade
e o potencial endógeno de desenvolvimento. A presença das mulheres
como agentes do desenvolvimento das comunidades rurais é funda-
mental (STADUTO, 2009).
Segundo Sacco dos Anjos (2003), o desenvolvimento rural é dado
por duas estratégias ou proposições fundamentais: diversificar e aglutinar.
A diversificação diz respeito a todos os tipos de atividades e iniciativas que o
agricultor e seus familiares exploram na propriedade ou fora dela, enquanto
a aglutinação consiste na possibilidade da união dessas atividades devido à
diversificação garantidora de um nível de vida socialmente aceitável.
De acordo com Wanderley (2001), o meio rural deve ser integrado
ao conjunto da sociedade brasileira e ao contexto das relações interna-
cionais, e não de forma isolada ou autônoma à sua relação com a socie-
dade no funcionamento e na reprodução. Desse modo, o meio rural deve
manter suas particularidades históricas, sociais, culturais e ecológicas.
Para Abramovay (2000), o desenvolvimento rural não se reduz ao cresci-
mento agrícola e se caracteriza por uma densa rede de relações entre ser-
viços e organizações públicas, iniciativas empresariais urbanas e rurais,
agrícolas e não agrícolas.
Neste estudo, foram utilizadas variáveis extraídas do Censo Agro-
pecuário de 2006 para a região Sul do Brasil, que foram consideradas as
características que descrevem como mulheres e homens estão organizados
nos estabelecimentos com agricultura familiar. As variáveis para elucidar
esta dinâmica das propriedades familiares são estabelecidas como, por
exemplo, quem é o responsável pela direção da propriedade, o número
de pessoal ocupado entre mulheres e homens, o seu grau de escolaridade
(fundamental, médio e superior) e se a mulher na agricultura familiar
exerce alguma atividade fora do estabelecimento, atividade agrícola e
não agrícola e a combinação de ambas as atividades.

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O trabalho adotou como metodologia o uso de técnica estatís-


tica denominada de Análise Exploratória de Dados Espaciais (AEDE).
A intenção de utilizar AEDE é de visualizar melhor o comportamento das
variáveis associadas à propriedade familiar e determinar onde elas são
mais recorrentes, e, particularmente, verificar a localização geográfica
das mulheres ocupadas em relação à direção dos estabelecimentos fami-

126 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

liares e o grau de escolaridade (fundamental, médio e superior) delas e


dos homens, e a se exercem alguma atividade fora dos estabelecimentos,
agrícolas, não agrícolas e a combinação de ambas.

2.1 Análise Exploratória de Dados Espaciais:


Uma Breve Descrição

Segundo Perobelli et al. (2005), a análise exploratória de dados


espaciais (AEDE) é uma coleção de técnicas de análise estatística de infor-
mação geográfica para expor distribuições espaciais, encontrar padrões
de associação espacial ou cluster, verificar a presença de diferentes regi-
mes espaciais ou outras formas de instabilidade e identificar comporta-
mentos fora do padrão (outliers).
A partir da AEDE2 serão extraídas medidas de autocorrelação espa-
cial global e local, com o uso dos indicadores de análise exploratória que
identificam, além da posição absoluta dos eventos no espaço, também
sua distribuição relativa. Dessa forma, detectam-se os padrões de aglo-
merações espaciais, possibilitando a avaliação da influência dos efeitos
espaciais por meio de instrumental quantitativo (ANSELIN, 1998).

2.1.1 Autocorrelação Espacial Global

Para a realização da análise exploratória dos dados espaciais


(AEDE), o primeiro passo é verificar a aleatoriedade desses dados, o que
significa se os valores de uma região dependem ou não dos valores das
regiões vizinhas. Dessa maneira, a autocorrelação espacial investiga se
existe a coincidência de similaridade de valores de uma variável com
a sua similaridade da localização dessa variável (ALMEIDA, 2004). Isso
verificado pela estatística I de Moran.3

2 Para mais informações sobre a metodologia da AEDE, verificar Almeida (2004) e Anselin (1998).
3 Isto verificado pela estatística I de Moran pode ser expressa como:
n wj ( yi - Y )( yi - y )
I= . (1)
wj ( yi - y )²
Em que: n é o número de unidades espaciais; yi é a variável de interesse; wij é o peso espacial
para o par de unidades espaciais i; e j é a medida do grau de interação entre elas. Essa é uma
estatística que fornece, de maneira formal, o grau de associação linear entre os vetores de valo-
res observados em um tempo t (yt) e a média ponderada dos valores dos seus vizinhos, ou as
defasagens espaciais (wij). Os valores dessa estatística variam entre –1 e +1, onde –1 representa
um coeficiente de correlação linear negativa e +1 representa um coeficiente de correlação linear
positivo (ANSELIN, 1998).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 127


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

Para realizar o cálculo do coeficiente I de Moran, é necessário


escolher uma matriz de peso, a qual define o grau de proximidade entre
os municípios. A matriz de pesos espaciais está associada à distância
entre os municípios ou aos limites geográficos (fronteiras) existentes
(ALMEIDA, 2004). Para o trabalho, adotou-se a estrutura de pesos espa-
ciais binários, com vizinhos de primeira ordem; após os procedimentos
recomendados pela literatura, escolheu-se convenção de k3-Vizinhos
para as mulheres ocupadas com os dados transformados em percentual.
Para os homens ocupados em forma de percentual, a convenção usada
será a de k4-Vizinhos.
Conforme Perobelli et al. (2005), o diagrama de dispersão de Moran
é uma das formas de interpretar a estatística I de Moran.4 Os quatro
tipos de associação linear espacial são representados por: Alto-Alto (AA),
Baixo-Baixo (BB), Alto-Baixo (AB) e Baixo-Alto (BA). Os municípios que
estão localizados nos quadrantes AA e BB apresentam autocorrelação
espacial positiva, ou seja, formam agrupamentos de valores similares, ou
seja, clusters. Por outro lado, os quadrantes BA e AB apresentam auto-
correlação espacial negativa, formando clusters com valores diferentes.
Entretanto, a estatística I de Moran é uma medida global que
informa como está a correlação no espaço, mas não é possível localizar
onde estão as estruturas de correlação espacial regional, sendo necessário
o cálculo de autocorrelação local.

2.1.2 Autocorrelação Espacial Local

Os indicadores locais, ao contrário das estatísticas globais, produ-


zem um valor específico para cada área, permitindo a identificação de
agrupamentos com valores semelhantes (clusters) ou diferentes (outliers)
e de regimes espaciais, não percebidos através dos resultados globais.
Um indicador LISA5 – Indicador Local de Associação Espacial – é qual-
quer estatística que satisfaça a dois critérios: a) permite a identificação de
padrões de associação espacial significativa para cada área da região de
estudo; e b) constitui uma decomposição do índice global de associação
espacial, ou seja, o somatório do LISA para todas as regiões é propor-
cional ao indicador de autocorrelação espacial global (ANSELIN, 1995).
Para Almeida (2004, p. 12), a LISA “[...] provê uma indicação do grau de

4 A representação dos diagramas não é apresentada no texto; para consulta, está disponível em
Caumo (2012).
5 Local Indicators of Spatial Association – LISA

128 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

agrupamento dos valores similares em torno de uma observação, identi-


ficando clusters espaciais”.6

2.2 Descrição das Variáveis e Fonte de Dados

Os dados utilizados para fazer a Análise de Dados Espaciais


(AEDE) foram extraídos do Censo Agropecuário de 2006, mas espe-
cificamente no Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA.
Para analisar os mapas produzidos sobre a participação de mulheres
e homens, não foram utilizados números absolutos, os dados foram
transformados em participação percentual de mulheres ocupadas em
relação aos homens e vice-versa. Neste caso, o mais importante do
ponto de vista demográfico é perceber o desequilíbrio entre os sexos
no meio rural, principalmente da agricultura familiar. Além disso, isso
foi importante porque nos municípios menores pode-se observar de
forma relativa a participação de trabalhadoras e trabalhadores, pois,
naturalmente, em termos absolutos, terão pouca relevância em relação
aos municípios mais populosos, mas os processos sociais e econômicos,
fruto desse desequilíbrio demográfico, estarão em curso, independente-
mente da dimensão da população.
Na análise bivariada a participação relativa das mulheres em rela-
ção aos homens foi relacionada com outras variáveis no espaço, as quais
estas últimas são transformadas em taxas com a finalidade de melhorar
os resultados e a visualização, e estão apresentadas na Tabela 1. Pode-se
ilustrar esta transformação, por exemplo, para a situação da relação
bivariada da variável independente mulher relacionada com a variável
dependente direção da propriedade por mulher, esta última variável é cal-
culada pelo número de mulheres na direção do estabelecimento dividido
pelo total de estabelecimentos, gerando, assim, o valor em taxa.
Muitas variáveis sobre estes produtores rurais estão incorporadas
à base de dados do IBGE, possibilitando que os pesquisadores ou interes-
sados possam analisar todas as informações disponíveis com o recorte da
agricultura familiar, como consequência do reconhecimento da impor-

6 Estatisticamente significantes.
( yi - Y ) JWij ( yi - Y )
Ii = = Yi i
Wij (2)
i
( yi - y )2 /n
Em que: yi e yj são variáveis padronizadas e a somatória sobre j é que somente os valores dos
vizinhos j e ji são incluídos. O conjunto ji abrange os vizinhos da observação i, definidos com
uma matriz de pesos espaciais. Sob o pressuposto da aleatoriedade, o valor esperado da estatís-
tica I de Moran local é dado por: E (Ii) = -wi/ (n-1), em que wi é a soma dos elementos da linha.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 129


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

Tabela 1 – Variáveis extraídas do Censo Agropecuário de 2006.

Variáveis por Taxas Sigla


Direção do estabelecimento por Mulher DM
Direção do estabelecimento por Homem DH
Escolaridade Fundamental da Mulher EFM
Escolaridade Média da Mulher EMM
Escolaridade Superior da Mulher ESM
Escolaridade Fundamental do Homem EFH
Escolaridade Média do Homem EMH
Escolaridade Superior do Homem ESH
Pluriatividade Agrícola da Mulher PLUAM
Pluriatividade Não Agrícola da Mulher PLUNM
Pluriatividade Agrícola e Não Agrícola da Mulher PLUANM
Fonte: Elaboração própria.

tância econômica e social e da legitimidade das demandas e reivindica-


ções da agricultura familiar (IBGE, 2009).
No estudo sobre as mulheres ocupadas, foram avaliadas as variá-
veis de direção do estabelecimento e o número de pessoas ocupadas por
sexo, com o objetivo de traçar a maior participação das mulheres ocupa-
das na agropecuária. As escolhas destas variáveis são importantes para
fazer a comparação da direção dos estabelecimentos em que as mulheres
possuem em relação aos homens, e visualizar como ocorreu a distribui-
ção. Para a variável escolaridade, foram considerados os ensinos de 1º
grau completo correspondente ao atual ensino fundamental, ensino de
2º grau (ensino médio), no qual foi somado o ensino normal de 2º grau
mais o ensino técnico agrícola. Em relação ao ensino superior, o Censo
Agropecuário de 2006 traz discriminadas as formações dos produtores
nas direções dos trabalhos na propriedade agropecuária, como enge-
nheiro agrônomo, veterinário, zootecnista, engenheiro florestal e outra
formação superior, que foi somada em uma única variável de escolari-
dade superior. Além disso, o Censo Agropecuário 2006 disponibilizou os
grupos de idade (somados todos os grupos) e sexo, fornecendo o total de
pessoas em cada grupo de escolarização. E, por fim, as variáveis das ati-
vidades exercidas fora do estabelecimento, como as atividades agrícolas,
não agrícolas e a combinação das atividades agrícolas e não agrícolas.
A amostra é composta por 1.188 observações, referente aos muni-

130 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

cípios dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, na


região Sul do Brasil. Utilizou-se, neste trabalho, o software Geoda versão
1.0.1, que combina mapas com gráficos estatísticos, utilizando a tec-
nologia de janelas dinâmicas, ligada à análise espacial para Sistemas
de Informação Geográfica (SIG). Inclui funcionalidades que vão desde
mapeamento simples de análise exploratória de dados até a visualização
da autocorrelação espacial local e global e regressão espacial.

3 MULHERES DISTRIBUÍDAS NO ESPAÇO SULISTA

Para Guilhoto et al. (2007), o setor agropecuário familiar é sempre


lembrado por sua importância na absorção de emprego e na produção
de alimentos, especialmente voltada para o autoconsumo, contribuindo
mais especificamente com funções de caráter social do que as econômi-
cas, considerando neste setor a sua menor produtividade e incorporação
tecnológica. Mas, para os autores, a produção familiar, além de fator
redutor do êxodo rural e fonte de recursos para as famílias com menor
renda, também contribui expressivamente para a geração de riqueza,
considerando a economia não só do setor agropecuário, mas também do
próprio país.
No Censo Agropecuário de 2006 foram identificados 4.367.902
estabelecimentos de agricultores familiares, o que representa 84% dos
estabelecimentos brasileiros. Os agricultores familiares ocupavam uma
área de 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24% da área ocupada pelos
estabelecimentos agropecuários brasileiros. Estes resultados mostram
uma estrutura agrária concentrada no país; os estabelecimentos não
familiares, apesar de representarem 16% do total dos estabelecimentos,
ocupavam 76% da área ocupada. A região Sul do Brasil – Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul – é a segunda mais importante em termos
agrícolas, depois da Região Sudeste, liderada pelo estado de São Paulo.
A Região Sul abrigava 19% do total dos estabelecimentos familiares
(849.997) e 16% da área total deles (IBGE, 2009).
Em termos dos indicadores sociais, a Região Sul, comparada
às demais regiões brasileiras, não só é consequência da qualidade e
eficiência de suas estruturas produtivas, mas também das singulares
características em que se deu o processo de colonização iniciado a
partir da segunda metade do século XIX (SACCO DOS ANJOS, 2003).
Esse processo produziu, assim, dois grandes desdobramentos: em pri-
meiro lugar, contribuição do mais importante setor de agricultores
familiares do Brasil; em segundo lugar, porque sustentou as bases e

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 131


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

os fundamentos que, posteriormente, desencadearam o processo de


industrialização regional.
A média das mulheres ocupadas e dos homens ocupados na agri-
cultura familiar no Sul do Brasil é cerca de 40% e 60%, respectivamente.
A Figura 1 mostra o mapa da distribuição das mulheres ocupadas e dos
homens, ou seja, a participação relativa entre mulheres e homens para a
agricultura familiar nos municípios do Sul do Brasil (2006). Observa-se
na Figura 1 que os quatro primeiros estratos (1% a 43%) revelam a
proporção reduzida de mulheres na agricultura que estão distribuídos
em 922 municípios, o que representa 77% do total dos municípios do
Sul do país. Já a participação relativa de homens nos dois estratos mais
altos (60% a 100%) equivale a 714 municípios, o que representa 60%
do total dos municípios da Região Sul. Esses dados ilustram muito bem
a dimensão desproporcional entre mulheres e homens na agricultura
familiar. Caso seja uma tendência que não se altere no longo prazo,
trará risco à estrutura da agricultura familiar tradicional formada pelo
casal heterossexual.
O menor número de mulheres ocupadas na agricultura familiar
está refletindo possivelmente o que é relatado na literatura, o qual está
relacionado à invisibilidade das suas atividades desempenhadas na pro-
priedade, por estar ligada ao sustento da família, isto é, na reprodução
da família, como observado por Souza, Nascimento e Staduto (2011),

Mulher Ocupada Homem Ocupado

Legenda Legenda
-0,01 – 0,11 (18) -0,01 – 0,20 (3)
0,11 – 0,22 (54) 0,20 – 0,40 (0)
0,22 – 0,32 (174) 0,40 – 0,60 (473)
0,32 – 0,43 (676) 0,60 – 0,80 (650)
0,43 – 0,55 (268) 0,80 – 1,01 (64)
0 70 140 km 0 70 140 km

Figura 1 – Mapa da distribuição das ocupações para as mulheres ocupadas e dos


homens, para a agricultura familiar nos municípios do Sul do Brasil (2006).
Fonte: Resultados da pesquisa.

132 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

Melo e Di Sabbato (2006) e Brumer (2004). Além disso, também pode ser
apresentado e relacionado à importância das mulheres para a agricultura
familiar e as dificuldades que elas se defrontam no seu cotidiano social,
econômico e mesmo na participação política no meio rural.
Detalhando mais esta distribuição das mulheres e homens ocupa-
dos em percentual na agricultura no Sul do Brasil, a Figura 2 apresenta
esta distribuição espacial dos outliers7 nos municípios dos estados do
Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Os outliers altos são
representados pela cor cinza-escuro e os outliers baixos pela cor preta.
As mulheres ocupadas possuíam outliers baixos, representados pela cor
preta, como observado na Figura 2. Estes outliers não seguem o mesmo
padrão de dependência espacial dos demais municípios, principalmente
nas regiões que não apresentam concentração de propriedades com agri-
cultura familiar, como representado pelo estado do Paraná nas regiões do
Noroeste, Norte-Central e Norte-Pioneiro. Já para os homens ocupados que
estão representados por outliers altos, com a cor cinza-escura, ao contrário
do que verificado nas mulheres ocupadas nas regiões que não seguem a
mesma dependência espacial dos demais municípios, estes outliers altos
significam que os números de homens ocupados estão distantes da média.

Mulher Ocupada Homem Ocupado

Outlier Outlier
Padrão Normal Padrão Normal
Padrão Alto Padrão Alto
Padrão Baixo Padrão Baixo
Zero Zero
0 70 140 km 0 70 140 km

Figura 2 – Cartograma de outliers das mulheres ocupadas e homens ocupados na


agricultura familiar para os municípios do Sul do Brasil (2006).
Fonte: Resultado da pesquisa.

7 Os outliers são observações discrepantes, tanto superiores como inferiores, dos dados referentes
às mulheres ocupadas e dos homens ocupados por municípios no Sul do Brasil.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 133


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

Apesar dos cartogramas apresentarem informações importantes, ao


destacarem as áreas com os maiores ou menores números de mulheres ou
homens ocupados na agricultura familiar da região Sul do Brasil, a mera
visualização pode levar ao erro. Neste caso, torna-se necessário reali-
zar os testes de autocorrelação no espaço para verificar a tendência dos
dados em análise, isso significa verificar que não estão aleatoriamente
distribuídos no espaço estatisticamente.
Como forma de verificar a existência ou não da formação de clusters
para as mulheres ou homens ocupados na agricultura familiar no Sul do
Brasil, foi realizada, primeiramente, uma análise espacial univariada rela-
tiva à distribuição espacial. Após seguirmos os procedimentos recomenda-
dos pela literatura especializada, confirmamos que um determinado per-
centual de participação de mulheres ocupadas estava correlacionado com o
seu vizinho, formando manchas, ou seja, clusters no mapa.8 Neste caso, os
municípios que possuem alta proporção de mulheres ou homens ocupados
na agricultura familiar estavam rodeados por municípios que possuem alta
proporção de mulheres ou homens ocupados, formados pelos clusters tipo
Alto-Alto (AA), e são representados pela cor cinza-escura. Consequente-
mente, neste mesmo estudo, o inverso acontece: municípios que possuem
baixo número de mulheres ou homens ocupados na agricultura familiar
estavam rodeados por municípios que possuem baixo número de mulheres
ou homens ocupados na agricultura familiar no Sul do Brasil, pela forma-
ção dos clusters tipo Baixo-Baixo (BB), e são representados pela cor preta.
A Figura 3 apresenta a formação dos clusters para as mulheres e homens
ocupados. A ideia básica é ilustrar que certos fenômenos não ocorrem ale-
atoriamente no espaço, existe uma relação estatística que naquele local há
algo de importante para que este fenômeno ocorra de forma concentrada.
No caso deste estudo, mostra que em alguns lugares há uma concentração
de mulheres na agricultura familiar maior do que em outros lugares, isso
nos sugere que existem territórios que propiciam ter grandes proporções
maiores de mulheres em relação aos outros.
Na visualização do mapa de clusters da Figura 3, a representação
da formação AA das mulheres ocupadas, os estados que mais represen-

8 Os valores acima do I de Moran calculado representam a existência da autocorrelação espa-


cial positiva e os valores abaixo representam a autocorrelação espacial negativa. Na Tabela
2, encontram-se os valores de I de Moran calculado para as variáveis descritas anteriormente.
Quando não existe um padrão espacial nos dados, o valor encontrado é o I de Moran esperado
para as mulheres e homens ocupados foi analisado o E (I) = - 0,0008. Portanto, os valores acima
de E (I) = - 0,0008 indicam a autocorrelação espacial positiva e os valores inferiores indicam a
autocorrelação espacial negativa.

134 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

Mulher Ocupada Homem Ocupado

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Figura 3 – Mapa de clusters das mulheres e homens ocupados na agricultura familiar


do Sul do Brasil (2006)
Fonte: Resultado da pesquisa.

taram esta tipologia foram o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sendo
o estado catarinense que se destacou, principalmente, pela região Oeste,
com aproximadamente 63 municípios. O desenvolvimento do Oeste
de Santa Catarina tem sua base na agricultura familiar, cuja forma de
organização do trabalho e da produção congrega quase 100 mil famílias
distribuídas no território rural e representa 95% dos estabelecimentos
agropecuários (MELLO; SCHNEIDER, 2010). Na formação de clusters tipo
BB para a variável mulher ocupada (Figura 3), o estado do Paraná foi o
que mais apresentou municípios com baixo número de mulheres ocupa-
das, com 130 dos 399 municípios que estavam localizados nas principais
regiões do Noroeste, Centro-Ocidental, Norte-Central e Norte-Pioneiro.
Este resultado já era esperado para estas regiões do Paraná, dada a sua
formação demográfica e de produção agropecuária, e, ainda, com poucas
propriedades familiares que têm suas bases de produção nas commodi-
ties, extrativa e pecuária.
Em consequência, o estado do Paraná apresentou maior forma-
ção de clusters tipo AA, na variável do número de homens ocupados
na agricultura familiar, na Figura 3, representado pelas mesmas regiões,
com 149 municípios. Como se pode observar na formação de clusters
tipo Baixo-Baixo (BB), a menor representatividade para o número de
homens ocupados estava localizada na região do Oeste catarinense e nas
regiões Noroeste e Centro-Oriental sul-rio-grandense, em que o número

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 135


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

de propriedade familiar é relativamente maior, e por apresentarem uma


parcela maior de propriedades e de produção familiar, conseguindo assim
a integração de todos os familiares.
Por outro lado, também podemos realizar uma análise bivariada
em relação ao número de mulheres ocupadas na agricultura fami-
liar comparando-as com outras variáveis explicativas, por exemplo, a
direção da propriedade familiar e o grau da escolaridade (fundamental,
médio e superior) entre mulheres e homens. Também foi feita uma aná-
lise bivariada, apenas para as mulheres, entre as variáveis das atividades
fora da propriedade familiar, as quais são as atividades agrícolas, as não
agrícolas e a combinação de ambas. Essas análises bivariadas apresenta-
ram os quatro tipos de padrões espaciais de clusters: o padrão Alto-Alto,
o padrão Baixo-Baixo, o padrão Baixo-Alto e o padrão Alto-Baixo.
Assim, na análise bivariada para as mulheres ocupadas em relação
à variável direção da propriedade familiar, o padrão Alto-Alto (AA) sig-
nifica municípios que possuem uma alta quantidade de mulheres ocupa-
das, tendo como vizinhos municípios que têm elevado número de mulhe-
res na direção da propriedade representadas pela cor cinza-escura. Já o
padrão Baixo-Baixo (BB) revela municípios que possuem reduzido número
de mulheres ocupadas e estão circundados por municípios que têm baixo
número de mulheres na direção da propriedade, representadas pela cor
preta. O padrão Baixo-Alto (BA) apresenta um baixo número de municípios
de mulheres ocupadas, cercados por municípios com elevado número de
mulheres na direção da propriedade, representadas pela cor cinza-claro.
Por sua vez, o padrão Alto-Baixo (AB) mostra municípios com alto número
de mulheres ocupadas que são vizinhos de municípios com baixo número
de mulheres na direção da propriedade, representados pelo último estrato
da figura. Esta interpretação de cada análise dos quatro padrões de clus-
ters (AA, BB, BA e AB), como no caso da direção da propriedade familiar
(citada anteriormente), também foi interpretada para a escolaridade e para
as atividades das mulheres (agrícolas, não agrícolas e em ambas). A Figura
4 apresenta os mapas com formação de clusters das análises bivariadas e
está dividida nas categorias de associação espacial para a direção da pro-
priedade familiar entre mulheres e homens.
Observou-se que os clusters para as mulheres ocupadas relaciona-
das à direção da propriedade familiar por mulher (DM) na tipologia AA
em toda a Região Sul são poucos, mas apresentaram um maior número de
municípios nas regiões em que a agricultura familiar é mais expressiva,
por exemplo, o Sudoeste e Centro-Sul paranaense, a região Oeste cata-
rinense e no Rio Grande do Sul com a região Noroeste. Nestas regiões, a

136 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

produção agropecuária é mais diversificada, como o leite e a produção


frutífera, que contribui para a maior participação das mulheres na pro-
priedade ou, ainda, ter o reconhecimento da sua profissão.
Para Heredia e Cintrão (2006), a profissão agricultora é uma forma do
trabalho da mulher ser reconhecido, desta maneira, se diminuiu a invisibi-
lidade das suas ocupações. Conforme Deere (2004) e Sen (2000), o direito à
propriedade para a mulher é decisivo, pois contribuiu no empoderamento,
por meio do aumento do seu poder de barganha intrafamiliar se reconhece
que existem direitos das mulheres à terra, dentro da família e na comunidade,
conseguindo assim atingir uma real igualdade entre homens e mulheres.
Na análise da mulher ocupada em relação à direção da propriedade
por mulher (DM), os clusters tipo BB, representada pela Figura 4, o Paraná
apresentou o maior número de municípios (93). Nas regiões em que predo-
mina este tipo de distribuição espacial, também predomina o baixo número
de ocupados na agricultura familiar, tanto para os homens quanto para as
mulheres, e a diferença para a DM fica mais acentuada, uma vez que são
regiões especializadas na produção de commodities agrícolas mais tradi-
cionais, como é caso da pecuária (gado de corte), a soja, a madeira e a cana
de açúcar, as quais são geralmente dirigidas por homens.
Já para a análise dos clusters referentes à mulher ocupada em relação
à direção do homem na propriedade (DH), formação do padrão AA (Figura
4), observou-se uma distribuição de um número baixo para os municípios
do Paraná – visto que é preciso ter um alto número de mulheres ocupadas –,
e, consequentemente, municípios que apresentaram mulheres ocupadas em
um número maior, como ocorrem no estado de Santa Catarina, com a con-
centração no Oeste (49 municípios), ou ainda no Rio Grande do Sul, com
50 municípios que estavam localizados, principalmente, no Noroeste.
Nesta análise do tipo AA das mulheres ocupadas em relação à dire-
ção dos homens na propriedade (DH), o número de homens na direção
da propriedade é expressivamente maior. Na mesma análise, as mulheres
apresentaram número maior de municípios com mulheres ocupadas em
que a agricultura familiar está mais presente, mas, ainda assim, não são
responsáveis pela direção da propriedade. Além disso, essa proporção
também pôde ser verificada nos clusters das mulheres ocupadas em rela-
ção à DH, na formação BB (Figura 4), onde somente dois estados apa-
recem: o Paraná (40 municípios) e o Rio Grande do Sul (10 municípios).
Nesse contexto, esses municípios que não aparecem na formação AA são
as regiões que menos representaram a agricultura familiar, como o Noro-
este, Norte-Central e Norte-Pioneiro, do Paraná, e a Região Metropolitana
de Porto Alegre (RMPA) no Rio Grande do Sul.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 137


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

Direção da Propriedade Direção da Propriedade


por Mulher por Homem

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Figura 4 – Mapa de clusters bivariados da direção das propriedades familiares de


mulheres e homens no Sul do Brasil (2006).
Fonte: Resultado da pesquisa.

Além da análise da direção dos estabelecimentos entre os sexos,


também foram analisadas as relações entre as mulheres ocupadas na
agricultura familiar e a escolaridade que ambos apresentam, como no
caso do ensino fundamental, médio e superior. O objetivo de analisar
este tipo de variável está relacionado com o potencial de desenvolvi-
mento rural, e, além disso, a escolaridade tem importante potencial para
que aumente a equidade de gênero, e, desse modo, mudar de contexto
social de subordinação para uma relação de divisão de responsabilidades
mais igualitária. Segundo Deere e León (2002), quando a mulher passa
a dividir as responsabilidades que antes pertenciam aos homens, elas
ganham poder em relação ao homem no sentido material e psicológico.
Este processo de empoderamento não é linear, não sendo igual para todas
as mulheres, o qual se modifica em cada indivíduo por meio da sua rela-
ção com a sua vida, contexto e história, e pode ocorrer de acordo com a
posição de subordinação nos níveis pessoal, familiar, comunitário e em
outros níveis mais elevados de política e econômico.
Na Figura 5, foi possível verificar os agrupamentos das mulheres
ocupadas em relação aos níveis educacionais de ensino fundamental,
médio e superior para mulheres e homens. Assim, na formação de clusters
das mulheres ocupadas em relação à escolaridade de ensino fundamen-
tal da mulher (EFM), os clusters AA, o Paraná apresentou sete municí-

138 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

Escolaridade Fundamental da Mulher Escolaridade Médio da Mulher

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Escolaridade Superior da Mulher Escolaridade Fundamental do Homem

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Escolaridade Médio do Homem Escolaridade Superior do Homem

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Figura 5 – Mapa de clusters para a escolaridade de ensino fundamental, médio e


superior para mulheres e homens ocupados na agricultura familiar, para dados biva-
riados no Sul do Brasil (2006).
Fonte: Resultado da pesquisa.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 139


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

pios, Santa Catarina, 17 municípios e o Rio Grande do Sul, 28 municí-


pios. Observou-se que a escolaridade da mulher ocupada nos municípios
era baixa, como pôde ser visualizado pela formação de clusters tipo AB
(municípios com número alto de mulheres ocupadas que foram vizinhos
de municípios com baixo número de EFM), com representação de 45
municípios no Paraná, dois municípios em Santa Catarina e nove no Rio
Grande do Sul.
Quanto ao número de mulheres ocupadas com escolaridade de
ensino médio da mulher (EMM) – AA (Figura 5), os estados que apre-
sentaram maior número de municípios foram o Rio Grande do Sul nas
regiões que apresentaram um número maior de propriedades familiares,
seguido do estado de Santa Catarina, com 19 municípios, concentra-
dos na região Oeste. Em contrapartida, com relação aos municípios que
apresentaram o padrão Baixo-Baixo, ou seja, baixo número de mulhe-
res ocupadas também apresentou baixa EMM, o Paraná teve a maior
representação, com 100 municípios, concentrados nas regiões Noroeste,
Norte-Pioneiro e Norte-Central; Santa Catarina, três municípios, e o Rio
Grande do Sul, nove municípios.
Para o ensino médio da mulher (EMM), assim como ocorreu no
ensino fundamental da mulher (EFM), observou-se que os municípios
que apresentaram um número maior de mulheres ocupadas também
apresentaram escolaridade baixa entre as mulheres. Isso aconteceu no
ensino médio na formação de clusters de padrão tipo Alto-Baixo (muni-
cípios que apresentaram um número alto de mulheres ocupadas e foram
vizinhos de municípios com baixa escolaridade de EMM), em que 38
municípios estavam localizados no Paraná e cinco municípios no Rio
Grande do Sul. Além disso, a formação de clusters tipo BA (municípios
com número baixo de mulheres ocupadas que foram vizinhos de muni-
cípios com alta EMM), na Figura 5, o Paraná teve 21 municípios, Santa
Catarina e o Rio Grande do Sul com 54 municípios cada um. Neste
caso, a escolaridade de ensino médio da mulher (EMM) apresentou um
menor número de municípios, em relação às mulheres não ocupadas na
agricultura familiar. As mulheres não ocupadas na agricultura familiar
apresentaram uma escolaridade maior, esses tipos de resultados apre-
sentam uma relação da visibilidade e da oportunidade das ocupações
das mulheres enfrentada nas propriedades familiares. Conforme Bru-
mer (2004), as mulheres são incentivadas a estudar justamente por não
terem o reconhecimento no campo, e a dedicação é maior se comparada
aos homens. As mulheres têm menos oportunidades profissionais que
os homens para permanecer no meio rural; uma forma de alterar isso

140 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

pode estar relacionada com as conquistas em relação aos direitos de


poder exercer seu trabalho e serem reconhecidas.
Na variável de escolaridade de ensino superior da mulher (ESM) na
tipologia de clusters AA, Figura 5, o Paraná apresentou cinco municípios,
Santa Catarina, 35 municípios, concentrados no Oeste, e no Rio Grande
do Sul, 36 municípios, com as mesorregiões principais do Noroeste e
Centro-Oriental. As mulheres ocupadas apresentaram menor escolaridade
no ESM, isso ficou evidenciado na formação de clusters BA (municípios
com número baixo de mulheres ocupadas que foram vizinhos de muni-
cípios com alta ESM), Figura 5, novamente as mulheres que não estão
ocupadas apresentaram um nível maior de escolaridade, como no caso do
Paraná, que apresentou 18 municípios, Santa Catarina e o Rio Grande do
Sul com 42 municípios cada. E nas análises de clusters tipo BB, as regiões
continuaram sendo: Noroeste, Norte-Central e Norte-Pioneiro do Paraná
ou a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), no Rio Grande do
Sul, em que o número de mulheres ocupadas é menor.
Dessa forma, além de ser analisada a escolaridade das mulheres
ocupadas, também é possível avaliar se o número de mulheres ocupa-
das na agricultura familiar exerce alguma influência na escolaridade do
homem. Como se observou, a autocorrelação espacial da variável mulher
ocupada em relação à escolaridade de ensino fundamental do homem
(EFH), para o padrão de clusters AA, Figura 5, mostrou o Paraná com
16 municípios, Santa Catarina com o maior número de municípios, 52,
situados principalmente na região Oeste, e o Rio Grande do Sul com 50
municípios, com concentração na região Noroeste. Constatou-se que os
municípios que apresentaram um número maior de mulheres ocupadas
estavam rodeados por municípios que apresentaram a escolaridade de
ensino fundamental do homem elevado. Já na formação de clusters tipo
BB, verificou-se esta formação pouco significativa em municípios que
apresentaram baixo número de propriedades familiares. No Paraná, essas
formações estavam presentes nas regiões do Centro-Ocidental, Norte-
-Central e o Norte-Pioneiro; em Santa Catarina, na região da Grande
Florianópolis e no Vale do Itajaí, e no Rio Grande do Sul, na Região
Metropolitana de Porto Alegre (RMPA).
As mulheres ocupadas na agricultura familiar, em relação à esco-
laridade de ensino médio do homem (EMH), Figura 5, na formação de
clusters tipo AA, ou seja, municípios que apresentaram um elevado
número de mulheres ocupadas também apresentaram municípios com
alto número de homens com ensino médio, em que os três estados
se destacaram, no Paraná (29 municípios), Santa Catarina (69 municí-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 141


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

pios), com a região do Oeste em destaque, e no Rio Grande do Sul (92


municípios), em que a grande parcela dos municípios estava situada no
Noroeste (69). Ressalte-se que isso ocorreu novamente em regiões em
que o número de propriedades familiares é em maior número. Em con-
trapartida, quando o número de mulheres ocupadas era baixo, a esco-
laridade dos homens ocupados também é baixa, como observado na
escolaridade de ensino médio do homem (EMH) na formação de clusters
BB (municípios com número baixo de mulheres ocupadas que foram
vizinhos de municípios com baixa EMH), Figura 5. Nessa condição, o
Paraná teve 48 municípios distribuídos entre as regiões do Noroeste,
Norte-Central e Norte-Pioneiro, em Santa Catarina, três municípios, e
no Rio Grande do Sul, 16 municípios.
Em se tratando da análise das mulheres ocupadas em relação à
escolaridade de ensino superior do homem (ESH), na formação de clus-
ters do tipo AA, Figura 5, o estado do Paraná apresentou 26 municípios,
Santa Catarina 61 municípios, situados principalmente no Oeste, e no Rio
Grande do Sul, 85 municípios, concentrados nas regiões do Noroeste e
Centro-Oriental, ressaltando que, quando os municípios apresentaram um
número maior de mulheres ocupadas, maior era a escolaridade do homem
em todos os níveis. Isso pode ser evidenciado no caso da ESH em clusters
que apresentaram a tipologia BB (baixo número de mulheres ocupadas
que foram vizinhos de municípios com baixo número de homens que têm
ESH), neste o Paraná apareceu com 64 municípios, Santa Catarina dois
municípios, e o Rio Grande do Sul com 15 municípios.
Em resumo, observou-se que o número de mulheres ocupadas na
agricultura familiar interfere diretamente na escolaridade dos homens
ocupados na agricultura familiar. Quando o número de mulheres ocupa-
das nos municípios era elevado, o número de municípios com homens de
escolaridade de ensino fundamental, médio e superior também era maior,
como no caso dos padrões de clusters Alto-Alto (AA) e Baixo-Baixo (BB).
Entretanto, pode ser avaliado que o número de mulheres ocupadas inter-
fere na escolaridade do homem ocupado, mas, em contrapartida, o resul-
tado obtido pela relação das mulheres ocupadas e a sua escolaridade foi
baixo, considerando através dos dados que as mulheres que não estavam
ocupadas na agricultura familiar apresentaram um nível educacional
maior do que as mulheres ocupadas na agricultura familiar, evidenciadas
pelas formações de padrão de cluster Alto-Baixo ou Baixo-Alto, em que
municípios que apresentaram um número menor de mulheres ocupadas
eram vizinhos de municípios em que a escolaridade de ensino fundamen-
tal, médio e superior era maior.

142 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

De acordo com Sen (2000), o ganho de poder dessas mulheres está


relacionado com o melhoramento da educação das mulheres, nas mudan-
ças do padrão de propriedade, em oportunidades de emprego e ganho
da visibilidade de seu trabalho. Complementarmente, foram analisadas
também as atividades exercidas por essas mulheres fora das propriedades
familiares, representado pela Figura 6.
Na análise de correlação espacial para atividades fora das proprie-
dades familiares em atividades agrícolas (PLUAM), na Figura 6, as forma-

Pluriatividade Agrícola – Mulher Pluriatividade Não Agrícola – Mulher

Legenda Legenda
Não significante Não significante
Alto – Alto Alto – Alto
Baixo – Baixo Baixo – Baixo
Baixo – Alto Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo 0 70 140 km Alto – Baixo

Pluriatividade Agrícola e Não Agrícola – Mulher

Legenda
Não significante
Alto – Alto
Baixo – Baixo
Baixo – Alto
0 70 140 km Alto – Baixo

Figura 6 – Mapa de clusters para as mulheres ocupadas bivariadas pelas variáveis


das ocupações fora da propriedade familiar, como as atividades agrícolas, não agrí-
colas e a combinação das atividades no Sul do Brasil.
Fonte: Resultado da pesquisa.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 143


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

ções dos clusters do tipo AA mostraram o Paraná com seis municípios;


Santa Catarina, 23 municípios e o Rio Grande do Sul, 26 municípios.
Na formação de clusters tipo BB, observou-se o Paraná com 84 municí-
pios; Santa Catarina, quatro municípios, e o Rio Grande do Sul, com 15
municípios. Neste caso, da atividade fora do estabelecimento com ati-
vidade agrícola, pôde-se perceber que, quando o número de municípios
foi menor para as mulheres ocupadas, maior era o número de mulheres
ocupadas com atividades fora da propriedade na atividade agrícola –
PLUAM, como ocorreu na formação de clusters tipo BA, tendo o Paraná
com 19 municípios, Santa Catarina, 50 municípios, e o Rio Grande do
Sul, 51 municípios.
Na atividade exercida pelas mulheres ocupadas em relação às
atividades fora da propriedade familiar em atividades não agrícolas
(PLUNM), Figura 6, na tipologia de clusters AA, o Paraná apresentou 12
municípios, Santa Catarina 26 municípios e o Rio Grande do Sul com
32 municípios, distribuídos entre as mesorregiões do Noroeste e Cen-
tro-Oriental. Para as atividades não agrícolas em relação às mulheres
ocupadas, também se evidenciou que o número de mulheres ocupadas
com atividades fora das propriedades familiares está relacionado com
a ocupação delas na propriedade. Isso ocorreu na formação de clusters
do tipo AB (municípios com número alto de mulheres ocupadas que
foram vizinhos de municípios com baixa atividade não agrícola fora da
propriedade – PLUNM), em que foram verificados números menores de
clusters entre os estados, como Santa Catarina, três municípios, e o Rio
Grande do Sul, 16 municípios. Ou ainda, quando o número de mulheres
ocupadas é menor, a PLUNM é maior, como pôde ser vista na forma-
ção de clusters tipo BA (municípios com número baixo de mulheres
ocupadas que foram vizinhos de municípios com alta PLUNM), ficando
o Paraná com 24 municípios, Santa Catarina, 71 municípios e o Rio
Grande do Sul, 86 municípios.
Na concepção de desenvolvimento rural, a pluriatividade pode
ser um condutor na valorização e fortalecimento da agricultura fami-
liar (SCHNEIDER; 2003; VEIGA; 2001; GRAZIANO SILVA; DEL GROSSI;
CAMPANHOLA, 2002). Sendo assim, também foi analisada a combina-
ção de atividade exercida fora da propriedade familiar com atividades
agrícolas e não agrícolas (PLUANM), para tipologia de clusters tipo AA,
representada na Figura 6, o Paraná apresentou cinco municípios, Santa
Catarina e o Rio Grande do Sul com 12 municípios cada. Nesta variável
PLUANM, a relação de mulheres ocupadas e as atividades exercidas fora
dos estabelecimentos agropecuários continua sendo influenciada pelo

144 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

número de municípios que apresentaram maior número de municípios


com mulheres ocupadas, como foi o caso da formação de clusters tipo
BA (municípios com baixo número de mulheres ocupadas que foram vizi-
nhos de municípios com alta PLUANM). Nesta formação, o Paraná apa-
receu com 25 municípios, Santa Catarina, 82 municípios e o Rio Grande
do Sul, 93 municípios.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo examinou a ocorrência da distribuição das mulheres


ocupadas na agricultura familiar no Sul do Brasil, considerando uma pers-
pectiva de gênero. O período de análise foi o do ano de 2006 pelo Censo
Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
desagregado por municípios nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. Foi possível verificar em quais municípios a distribuição
das mulheres ocupadas ocorre com maior frequência, com a aplicação do
método de análise exploratória de dados espaciais que mostra a correla-
ção no espaço entre as variáveis bivariadas, particularmente das mulheres
ocupadas na agricultura familiar no sul do Brasil, com outras variáveis
relevantes: direção da propriedade, educação e atividades fora das proprie-
dades (agrícola, não agrícola e a combinação de ambas). Esta pesquisa pre-
tendeu ser uma contribuição para os estudos sobre o trabalho das mulheres
do meio rural, a partir de outro ponto de vista utilizando a visualização da
distribuição das mulheres ocupadas por mapas.
Primeiramente, a distribuição das mulheres ocupadas na agri-
cultura familiar mostrou que os municípios que apresentaram o maior
número de mulheres ocupadas estavam localizados em regiões em que
a agricultura familiar é mais diversificada e com maior número de pro-
priedades familiares, por exemplo, no Sudoeste, Sudeste e Centro-Sul
no estado do Paraná; para Santa Catarina, a região do Oeste, e no Rio
Grande do Sul, as regiões do Noroeste e Centro-Oriental foram as princi-
pais. Ao contrário das mulheres ocupadas, os homens ocupados estavam
em maior número nas regiões mais tradicionais dos estados, como no
Noroeste, Norte-Central e Norte-Pioneiro do Paraná, que apresentaram
na sua formação econômica e social a produção agrícola em commodi-
ties, pecuária (gado de corte) e parte extrativa de madeira.
Na autocorrelação espacial bivariada das mulheres ocupadas em
relação à direção da propriedade familiar por mulher apresentou uma
formação de baixo número de municípios; em contrapartida, as regiões
que apresentaram alto número de municípios com homens ocupados

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 145


Distribuição Espacial das Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar no Sul do Brasil

mostraram baixo número de mulheres ocupadas na direção da proprie-


dade familiar, como já era esperado. Esta relação é percebida também
em municípios que apresentaram um alto número de mulheres ocupadas,
mas que não têm a direção da propriedade, cabendo ainda ao homem a
direção da propriedade.
A autocorrelação espacial bivariada para as mulheres ocupadas em
relação à escolaridade destas mulheres para os níveis de ensino funda-
mental, médio e superior revelou uma baixa escolaridade de homens e
mulheres. Para os homens ocupados, a escolaridade de ensino médio e
ensino superior apresentou um número maior de municípios; já para as
mulheres, a variável de escolaridade de nível médio mostrou um número
maior de clusters que estavam localizados nos municípios com maior
número de mulheres ocupadas. Para a escolaridade da mulher ocupada
na agricultura familiar, observou-se que a escolaridade é menor do que
a escolaridade das mulheres não ocupadas na propriedade, como nos
padrões de clusters tipo Baixo-Alto e Baixo-Baixo.
Nos resultados para a escolaridade dos homens em relação ao
número de mulheres ocupadas, neste caso, onde se apresentou maior
número de mulheres ocupadas também se apresentou um número maior
de homens ocupados com escolaridade do nível médio e superior. Desse
modo, pôde-se concluir que a mulher ocupada na propriedade influen-
cia na escolaridade dos homens, em que municípios que apresentaram
um número maior de mulheres ocupadas, maior era a escolaridade do
homem, como no caso do padrão de clusters Alto-Alto e Baixo-Baixo.
E como elas apresentam maior escolaridade, estão mais aptas para
conseguir uma atividade fora da propriedade. Este tipo de relação para
o Sul do Brasil fica evidenciado por meio da influência no aumento da
escolaridade de homens e mulheres, pela cultura observada, pelo fato
de a relação ainda ser patriarcal e cultural, e por a mulher não conse-
guir espaço dentro da produção da propriedade, os níveis de escolaridade
apresentam maior número para elas, sendo a dedicação maior. Já para
homens, elas influenciam de forma positiva para que também busquem
níveis maiores de escolaridade.
Este trabalho evidenciou, ainda mais, os problemas que o meio
rural vem apresentando, principalmente, quanto à diferença da esco-
laridade das mulheres ocupadas na agricultura familiar, uma vez que
as mulheres que não conseguem ocupação dentro da propriedade estão
buscando alternativas nas atividades exercidas fora das propriedades
agropecuárias familiares, para uma renda maior e, principalmente, a
visibilidade das suas ocupações. Para a autocorrelação bivariada das

146 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Alessandra Juliana Caumo

mulheres ocupadas em relação às atividades exercidas fora da proprie-


dade, um número menor de municípios apresentou esta dinâmica, dis-
tribuídos entre as atividades agrícolas, não agrícolas e na combinação
de ambas as atividades. A relação das mulheres ocupadas que exerciam
alguma atividade fora da propriedade estava associada com o baixo
número de mulheres ocupadas na agricultura familiar. Assim, para os
municípios com menor número de mulheres ocupadas, maior era o
número de municípios em que as mulheres exerciam alguma atividade
fora da propriedade, como observado na formação dos clusters tipo
Baixo-Alto e Alto-Baixo.
Em termos gerais, a distribuição das mulheres ocupadas se revelou
por meio do método da AEDE, no qual ocorre a distribuição do número
de mulheres ocupadas na agricultura familiar com maior frequência.
Contudo, esse tipo de estudo abre novas perspectivas para que se possa
investigar o processo das mulheres ocupadas entre os outros estados e
regiões do Brasil para melhor aprofundamento no assunto.

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148 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 6

Gênero e pluriatividade na agricultura


familiar do Rio Grande do Sul1

Carolina Braz de Castilho e Silva


Sergio Schneider

1 Este capítulo é uma revisão do artigo agraciado pela 8ª edição do prêmio Construindo a Igualdade
de Gênero, realizado em uma parceria entre a Secretaria de Políticas para as Mulheres, o Ministé-
rio da Educação, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, o CNPq e a ONU Mulheres.
Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

1 INTRODUÇÃO

Todas as sociedades apresentam definições de atividades apropria-


das ao sexo masculino e ao feminino, dividindo as tarefas relativas à
produção e à reprodução social. Ao longo da História, foram considera-
das atribuições femininas as atividades domésticas, envolvendo a pro-
dução de valores de uso direcionados para a família, as atividades de
reprodução da espécie, do cuidado com crianças, velhos e incapazes. Por
outro lado, as atividades realizadas no espaço público, como a produção
social e a direção da sociedade, ficaram sob a responsabilidade masculina
(HOLZMANN, 2006).
Partindo da separação das atividades masculina e feminina e das
transformações ocorridas no meio rural com o aumento da pluriativi-
dade, neste capítulo são analisados dados quantitativos e qualitativos,
para conhecer algumas características de homens e mulheres rurais, con-
forme o tipo de família ao qual pertencem, e estudar o trabalho das
mulheres rurais, seus limitantes, vantagens e desvantagens. São aborda-
dos os papéis sociais de gênero, definidos como um conjunto de regras
sociais e de expectativas do que a sociedade espera como práticas de
homens e de mulheres para analisar as relações de gênero relacionadas à
pluriatividade e ao desenvolvimento rural nos municípios de Veranópolis
e Salvador das Missões no Rio Grande do Sul.
No meio acadêmico, a emergência dos movimentos feministas no
século XX gerou uma nova perspectiva para as pesquisas sobre mulhe-
res, na qual homens e mulheres passaram a ser compreendidos de forma
relacional, através de processos sociais e não mais individualmente, por
aspectos físicos e biológicos. A consagração da categoria de análise de
gênero, nos anos 1980, fez ultrapassar os limites biológicos nos estudos,
sob a ótica de papéis sociais historicamente construídos (SANTOS, 2002).
Desse modo, abordando o peso do social para as diferenças e para as
relações entre homens e mulheres, a perspectiva de gênero permitiu com-
preender e modificar a situação social da mulher.
Nos anos recentes, tem se ampliado o debate em torno do tema
do desenvolvimento, agora sob novas perspectivas, as quais destacam
a busca por emprego e renda e diminuição das desigualdades sociais,
ampliação dos direitos sociais para segmentos negligenciados, igualdade
de gênero, ampliação das liberdades individuais, entre outros.
Apesar da abrangência dos estudos de gênero, ainda pouco se sabe
sobre as mudanças recentes no mercado de trabalho no meio rural e a
inserção feminina nessas novas formas de ocupação da mão de obra.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 151


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

Os estudos brasileiros sobre a mulher rural tenderam a considerá-la a


partir de seu lugar na unidade de produção, enquanto trabalhadora não
remunerada e com baixa valorização (BRUMER, 1996; DEPARTAMENTO
SINDICAL DE ESTUDOS RURAIS; COMISSÃO ESTADUAL DE MULHE-
RES TRABALHADORAS RURAIS DO PARANÁ, 1996). Embora relevantes,
esses estudos não englobaram situações de superação da desigualdade
percebida, motivando a realização deste trabalho.
Para Silva, Del Grossi e Campanhola (2002), os anos 1980 ini-
ciaram uma série de transformações no meio rural brasileiro, as quais
vieram a caracterizar “o novo rural”. Tais mudanças são centradas na
intensificação e maior valorização econômica de atividades já existentes,
como a existência de uma agroindústria moderna (ligadas à agroindústria
e voltadas para a produção de commodities), a realização de atividades
não agrícolas devido à maior urbanização no meio rural (relacionadas
com indústria, serviços e turismo), e a agregação de novas atividades
agropecuárias (voltadas para nichos especiais de mercado).
A dispensa de mão de obra nas atividades agrícolas devido à meca-
nização favorece o mercado de trabalho não agrícola, bem como maio-
res facilidades no transporte, que permitem à população de baixa renda
encontrar no meio rural uma alternativa para a moradia, frente as difi-
culdades habitacionais e de inserção laborais no meio urbano (SILVA;
DEL GROSSI; CAMPANHOLA, 2002). Assim, cada vez mais, as ativida-
des não agrícolas ganham importância no meio rural, favorecendo que
tenham renda mais elevada do que famílias exclusivamente agrícolas.
Considerando que as políticas públicas de desenvolvimento rural
devem aumentar a qualidade de vida, visando à cidadania plena, Silva,
Del Grossi e Campanhola (2002) apontam para a necessidade de uma
política de combate à pobreza, voltada para os municípios mais pobres,
onde a menor capacidade institucional freia as iniciativas de inclusão
social. Além das políticas notadamente agrícolas, promover o desenvol-
vimento rural engloba ações que deem conta da nova realidade, abando-
nando o viés urbano e agrícola, tais como políticas compensatórias ati-
vas, como urbanização e moradia rural, por exemplo, além do fomento às
atividades não agrícolas, estimulando a pluriatividade e a requalificação
profissional (SILVA; DEL GROSSI; CAMPANHOLA, 2002).
A pluriatividade, ou seja, a combinação de atividades não agríco-
las com a agricultura por parte de um ou mais membros de famílias de
agricultores (SCHNEIDER, 2005), a partir de transformações das últimas
décadas, referida como nova ruralidade, tem sido relacionada à maior
dinamização das regiões rurais, contribuindo para a ocupação de mão de

152 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

obra excedente, aumento e estabilização das rendas, entre outros fatores


(SCHNEIDER, 2007).
Conforme Schneider (2007), embora nem todas as famílias possam
ou devam tornar-se pluriativas, há razões para a criação de políticas públi-
cas que as incentivem, uma vez que a combinação de atividades pode con-
tribuir para o desenvolvimento rural sustentável, devido ao seu potencial
de inclusão social, redução da pobreza e combate às desigualdades.
As novas e mais frequentes possibilidades de inserção no mercado
de trabalho não agrícola diminuem as diferenças entre o mundo rural e
urbano e dinamizam economias locais e rendimentos familiares (SCH-
NEIDER, 2005; SCHNEIDER; MATTOS, 2006). A pluriatividade contribui
para a reprodução familiar e da atividade agrícola ao incrementar a renda
utilizada para sustento da família e para investimentos na propriedade
(SCHNEIDER et al., 2006). Ao contrário da renda agrícola (familiar), este
rendimento individual pode representar a independência financeira de
jovens e mulheres, cujo trabalho na propriedade tende a ser desvalori-
zado e não remunerado. Por ser estável e previsível, pode também alterar
as posições sociais e questionar o papel de provedor e chefe de família
do homem.
Para citar um exemplo, Carvalho e Schneider (2013) argumentam
que as mulheres em Cabo Verde inseridas na produção de cana de açúcar
devido à migração masculina passaram a dominar novas dimensões do
espaço público (masculino), gerando sua renda própria, sem, no entanto,
abandonar o espaço privado feminino da casa e afazeres domésticos. Essa
inserção no trabalho remunerado ocorre, inclusive, contra a vontade dos
homens da família, tradicionalmente responsáveis pela produção de cana.
Assim como atividades não agrícolas são importantes na busca
pelo desenvolvimento rural, a participação feminina no mercado de tra-
balho e a igualdade de oportunidades em relação aos homens são rele-
vantes nesse processo. Em recente publicação, Paulilo (2013) questiona
a afirmação da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
Alimentação (FAO) de que as mulheres agricultoras podem contribuir
para alimentar mais de 900 milhões de pessoas subnutridas ao redor
do mundo, caso sua inserção na agricultura seja equiparada à mascu-
lina. No entanto, conforme Paulilo (2013), a participação das mulheres
para o desenvolvimento é entendida a partir de uma lógica masculina,
valorizando a produtividade obtida pelos homens como um ideal a ser
repetido, desconsiderando a importância dos trabalhos domésticos, rea-
lizados pelas mulheres, além das diferenças de distribuição de recursos
produtivos entre ambos os sexos.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 153


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

2 DESENVOLVIMENTO, GÊNERO E PLURIATIVIDADE

A pluriatividade e as relações de gênero são apontadas como fato-


res que interferem no desenvolvimento rural. Para Silva, Del Grossi e
Campanhola (2002), a pluriatividade deve ser estimulada através de polí-
ticas públicas, para aumentar o desenvolvimento e melhorar a qualidade
de vida, sobretudo em regiões rurais empobrecidas. Schneider (2007)
aponta também as atividades não agrícolas como geradoras de melhorias
no meio rural, envolvendo a inclusão social e redução das desigualdades,
inclusive as de gênero.
Sen (2000), embora não aborde especificamente o meio rural, afirma
que o desenvolvimento consiste em aumentar a liberdade de escolha de
vida das populações mais vulneráveis, em uma perspectiva que ultrapassa
a definição de desenvolvimento vinculada ao ganho econômico. De acordo
com Sen (2000), a renda é importante enquanto um meio para alcançar o
que se deseja. Dessa forma, a renda torna possível uma série de realizações,
relacionadas ao desejo de viver mais tempo uma vida boa, e o desenvolvi-
mento pode ser entendido para além da análise de produção e renda.
Para Sen (2000), o desenvolvimento pode ser visto como ganho
de liberdade, ou seja, os indivíduos devem ter autonomia para escolher
e realizar uma grande quantidade de coisas, partindo das mais básicas
(como se alimentar), de modo que a pobreza pode ser entendida como
privação de liberdade, bem como as privações políticas, por exemplo.
Nesta perspectiva, desenvolvimento é um processo que envolve os seres
humanos e suas capacitações (a capacidade de realizar algo, como ler ou
escrever, por exemplo), no qual interferem os intitulamentos, ou seja, os
recursos de que as pessoas dispõem para alcançar seus objetivos.
A busca por atividades não agrícolas nas regiões rurais tem aumen-
tado, sem que haja, necessariamente, o abandono da atividade agrícola.
No Rio Grande do Sul, em 2005 a prática da pluriatividade corresponde a
44,1% das famílias de agricultores, sendo mais ou menos concentrada de
acordo com a região e a dinâmica local (SCHNEIDER et al., 2006).
Dentre as motivações que levam uma família a combinar ativida-
des agrícolas e não agrícolas como estratégia de reprodução social, estão
a queda dos rendimentos agrícolas, a modernização tecnológica que dis-
pensa mão de obra, as políticas de incentivo a atividades não agrícolas,
de geração de emprego e de contenção de migrações e as mudanças nos
mercados de trabalho, especialmente com a descentralização das indús-
trias (SCHNEIDER, 2005). Outro fator de influência é a disponibilidade de
força de trabalho.

154 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

Combinar atividades contribui para a reprodução familiar e da


agricultura à medida que grande parte dos recursos obtidos em ativi-
dades não agrícolas é aplicada para suprir as necessidades básicas das
famílias e para investimentos na propriedade (SCHNEIDER et al., 2006).
A pluriatividade é apontada como fator de um desenvolvimento rural que
extrapola o desenvolvimento da agricultura. Por ser uma alternativa para
a geração de emprego e renda e para o êxodo dos jovens, entre outros
problemas, ela possui um papel estratégico para o desenvolvimento rural,
de um ponto de vista qualitativo (SCHNEIDER; MATTOS, 2006).
Cabe destacar que a combinação de atividades não é mero fruto
da vontade dos indivíduos, mas está ligada às dinâmicas locais nas quais
estão inseridos. Significa dizer que o recurso à pluriatividade tende a
aumentar conforme a diversificação das relações entre o ambiente socio-
econômico e os agricultores (SCHNEIDER, 2005).
Contudo, é preciso considerar, além das trajetórias internas das
famílias, as mudanças mais gerais que ocorrem nos dias atuais. A estru-
tura da agricultura e a vida rural estão se modificando devido à libera-
lização e à globalização dos mercados, da agricultura internacional e de
mudanças nas políticas de desenvolvimento. As famílias precisam arcar
com a crescente competição global, aumento dos custos de produção e
declínio dos preços de venda, o que, para Bock (2006), gera migrações e
abandono das unidades de produção (UPs), além de incentivar as combi-
nações de atividades, deixando para trás a lógica familiar de organização
e diminuindo o desenvolvimento.
Todas essas transformações afetam a estrutura e a identidade em
comunidades rurais e interferem, conforme as características dos países e
das regiões, nas relações de gênero nas propriedades e áreas rurais. Mas
se as relações de gênero se alteram pelas mudanças na agricultura e nas
áreas rurais, elas também geram tais transformações. Por isso, segundo
Bock (2006), é importante estudar as relações de gênero para compreen-
der o desenvolvimento rural.
Apesar da necessidade de sua apreensão, a definição de gênero
não é consensual. Louis (2006) demonstrou que as formas de utilização
do “gênero” são diversas, tanto nas ciências sociais quanto no campo
político, e apontou diversos tipos de estudos e pesquisas sobre gênero,
fazendo perceber que a questão do gênero no meio rural não foi demons-
trada de maneira expressiva, especialmente em relação às modificações
recentes, introduzidas pelo aumento da prática da pluriatividade.
As grandes linhas de interpretações sociológicas para as diferen-
ças e desigualdades de gênero se dividem em três. A primeira explica os

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 155


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

comportamentos de homens e mulheres por uma base biológica, através


das características físicas. A segunda corrente destaca a socialização como
fundamental para a formação do gênero, mesmo que aceite o pertenci-
mento a um sexo biológico (a criança nasce com um sexo e desenvolve
um gênero em relação a ele). Na terceira perspectiva, o sexo e o gênero
são produtos sociais, já que o corpo humano é moldado conforme forças
sociais, e podem ser modificados, contrariando os padrões “naturais”, com
atividades físicas, dietas, vestimentas e mesmo cirurgias (GIDDENS, 2004).
O gênero orienta os tipos de oportunidades disponíveis e influen-
cia os papéis de homens e mulheres nas instituições sociais. Em todas
as sociedades, as mulheres tendem a possuir papéis menos valorizados e
recompensados do que os homens. Geralmente, na divisão do trabalho,
elas são as responsáveis pelos cuidados com a família e a casa, enquanto
eles devem sustentar a família, gerando posições desiguais de poder
(GIDDENS, 2004, p. 114).
Bourdieu (2005) estuda a dominação masculina e a considera uma
forma de violência simbólica, exercida por vias simbólicas, como a comu-
nicação e o conhecimento, não percebida pelas vítimas, que transmitem
e legitimam formas de agir e pensar dominantes, reafirmando, assim,
categorias masculinas que ordenam o mundo social.
Recorrendo à sociedade cabila, baseada no princípio androcêntrico
e com a qual nossas sociedades guardam coincidências entre zonas quen-
tes (masculinas) e frias (femininas), propõe a análise de nosso incons-
ciente para romper com um processo coletivo de socialização do bio-
lógico e de biologização do social, que inverte a relação entre causas e
efeitos e faz ver uma construção social naturalizada, como o fundamento
natural de uma divisão arbitrária (BOURDIEU, 2005, p. 9-10).
A divisão sexual se mostra como natural ou até mesmo inevitável
e está objetivada nas coisas, no mundo social e incorporada nos corpos
e habitus, funcionando como sistemas de percepção, pensamento e ação.
Isso, pois, existe uma concordância entre estruturas objetivas e cogni-
tivas que leva a uma referência ao mundo, a qual apaga as condições
sociais que a tornam possível, e o arbitrário é legitimado como se fosse
natural (BOURDIEU, 2005, p. 17).
Assim, a ordem masculina ganha força à medida que não precisa
justificar-se, ao impor-se como neutra e dispensar discursos de legitima-
ção (BOURDIEU, 2005, p. 18). Atuam aí a divisão social do trabalho, que
designa tarefas para cada sexo, o local, o momento e os instrumentos
atribuídos a elas, bem como a estrutura do espaço, atribuindo ao homem
os espaços públicos e à mulher o espaço privado, da casa, e a estrutura do

156 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

tempo, que divide a duração do trabalho ou ciclo da vida, relacionando


longos períodos de gestação com a mulher, enquanto períodos de ruptura
são relacionados aos homens (BOURDIEU, 2005, p. 18).
A diferença entre os sexos biológicos é construída pelo mundo
social, de acordo com uma visão mítica de mundo, que está enraizada na
relação de dominação masculina, reiterada na ordem social pela divisão
do trabalho, de forma que as diferenças biológicas servem de justificativa
natural de uma diferença social entre gêneros, especialmente na divisão
social do trabalho (BOURDIEU, 2005, p. 20).
Assim, os papéis sociais aqui analisados podem ser definidos como
um conjunto de regras sociais e expectativas daquilo que a sociedade
espera que sejam práticas de homens e mulheres. Esses papéis são estu-
dados com base nas reflexões de Bourdieu (2005), sobre a posição das
mulheres e os ensinamentos do que se espera delas, juntamente com a
análise da divisão do espaço, mesmo em situações em que experimentam
certo distanciamento da unidade de produção, da família e de seus côn-
juges. Para isso, são utilizadas, sobretudo, as informações sobre o tipo e
setor de atividade não agrícola realizada pelas mulheres (por exemplo,
vendedora no comércio) e mesmo a localização (dentro ou fora da UP).

3 VERANÓPOLIS E SALVADOR DAS MISSÕES/RS: UM PANORAMA LOCAL

Nascido a partir da colonização italiana no estado, no final do século


XIX, o município de Veranópolis está localizado na Serra Gaúcha, região
que ainda mantém fortes traços da sua formação colonial. A região é uma
das mais desenvolvidas economicamente, e apresenta um mercado de tra-
balho não agrícola atraente para muitos agricultores. A região da Serra
Gaúcha, mesmo após a ampliação da economia e urbanização, manteve
os seus costumes, formas de sociabilidade e a importância das relações de
parentesco e de interconhecimento (RADOMSKY, 2006).
Até a colonização, em 1884, as atividades econômicas na locali-
dade eram praticadas esporadicamente por indígenas, tropeiros e viajan-
tes. Após sua fundação, a colônia cresce e logo se torna independente do
município original, o que reforçou os laços de solidariedade existentes
no início da colonização, devido ao seu isolamento (RADOMSKY, 2006).
Com os imigrantes europeus em Veranópolis, criou-se um modo
de vida semelhante ao camponês, designado de sociedades de interco-
nhecimento por Henri Mendras, imperando relações personalizadas, com
homogeneidade cultural e sociabilidade baseada no parentesco. Socieda-
des camponesas também se caracterizam por certa autonomia social, pela

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 157


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

importância estrutural do grupo familiar, pela indistinção entre produção


e consumo e pela participação dos mediadores e notáveis da comunidade
(RADOMSKY, 2006, p. 45-46).
A colonização italiana na região gerou uma sociedade centrada no
parentesco e nas amizades, na etnia e no catolicismo, com relações de
interconhecimento estruturando o trabalho e a participação política, base
do desenvolvimento local, permitindo a diversificação da base produtiva
e a industrialização a partir de pequenas unidades (RADOMSKY, 2006,
p. 169).
Na década de 1950, a região deixa de ser o celeiro do trigo e do
milho, pelo deslocamento da produção de cereais para outras regiões, e
diminui a produção de suínos pelo surgimento de óleos à base de soja.
Introduziram-se, então, novas culturas como a maçã, o alho e a batata-
-inglesa, e a especialização em uva e vinho. A partir daí, houve melhoria
nas condições de moradia e instalações da propriedade e aumento da
monetarização da economia (estimulando comércio e indústria), incenti-
vando a criação de bancos e diversificando o comércio. Atividades fora
da agricultura, como a indústria e o comércio de pequeno porte, se tor-
naram atraentes para suprir o sustento familiar e receber os recursos da
agricultura colonial (SILVA, 2006).
Na década de 1960, a agricultura torna-se dependente do mercado,
e o sistema colonial de reprodução social (produção para autoconsumo e
venda de excedentes) passa a estar fundado na especialização produtiva
de algumas culturas e no uso de insumos industriais. Nos anos 1980, as
agroindústrias começam a investir em leite, frango e suínos, e agriculto-
res denominados “fruteiros” passam a escoar a produção agrícola local.
Forma-se um grupo excluído da especialização agrícola, composto pelos
jovens rurais e agricultores mais pobres, e que é absorvido pelo mercado
de trabalho local, diferenciando Veranópolis da maioria das regiões onde
ocorreram mudanças na base tecnológica agrícola (SILVA, 2006).
Atualmente, a vida colonial mistura-se com novas relações de tra-
balho e produção. No desenvolvimento do capitalismo na agricultura,
novas formas não aboliram as particularidades da estrutura do traba-
lho e da produção da agricultura familiar, pois agricultores passaram a
produzir mercadorias, mantendo a propriedade dos meios de produção
(terra, trabalho e capital) a custos menos elevados, sem remunerar terra
e trabalho. Esse processo influencia a reprodução da agricultura familiar,
já que os agricultores submetem-se a condicionantes no meio capitalista,
alterando o funcionamento e a reprodução na propriedade, fortalecendo
o vínculo com a sociedade que o envolve (RADOMSKY, 2006).

158 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

Esses fatos tornam Veranópolis um município distinto de grande


parte do meio rural brasileiro, que reagiu diferente à modernização da
agricultura dos anos 1960 e 1970, como é o caso de Salvador das Mis-
sões, na microrregião de Cerro Largo. Diferindo da colonização italiana
de Veranópolis, a região Missioneira do estado, na qual se localiza Salva-
dor das Missões, é uma das principais produtoras de grãos e commodities
agrícolas, havendo pouca absorção da mão de obra em mercados não
agrícolas.
A região presenciou a colonização por descendentes de alemães
no século XX, embora o território já tivesse sido ocupado por indíge-
nas, jesuítas e caboclos anteriormente (NIEDERLE, 2007). Até meados do
século XVIII estavam ali dispostos os Sete Povos das Missões, nas quais
indígenas e jesuítas criaram uma forma de organização social e de traba-
lho bastante incomum, que veio a se desfazer pelas disputas territoriais
entre Espanha e Portugal. Com a destruição das colônias indígenas, em
finais do século XVIII, o território foi ocupado por caboclos, até que se
iniciou o reassentamento de colonos alemães, oriundos das “Colônias
Velhas” (fundadas em 1824).
No início da colonização dos descendentes de alemães, estes se
apropriaram da agricultura de corte e queima para a subsistência e de
atividades extrativistas, como da erva-mate, que permitiram pequena
participação mercantil (NIEDERLE, 2007). O isolamento, causado pela
distância dos centros regionais mais próximos e pelas condições das
estradas, dificultava a venda da produção, a qual ficava voltada para a
subsistência, com produtos típicos produzidos pelos caboclos devido às
características da região (NIEDERLE, 2007).
Em um momento seguinte, há a diversificação das culturas com
novos produtos e agroindustrialização. Ocorrem o melhoramento técnico,
geração de excedentes, e estradas de ferro chegam a localidades próxi-
mas. Na então linha São Salvador (Salvador das Missões), há a constru-
ção da escola, capela, casas comerciais, moinhos, entre outros, aumen-
tando a relevância da vila para os colonos. Na fase seguinte, acontecem
a integração da agricultura colonial à sociedade (incorporando o modo
de vida urbano) e aumento da diversificação produtiva. Há também uma
crise do modelo colonial, devido ao desgaste do solo, aos baixos preços
pagos pelos produtos agrícolas e ao pequeno tamanho das propriedades.
O modelo de reprodução social, no qual cada filho recebia um lote para
produzir, foi ameaçado pelos altos preços e pela impossibilidade de novas
partições na terra, o que levou à migração para Santa Catarina e Paraná
(NIEDERLE, 2007).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 159


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

Na década de 1960, com a modernização tecnológica brasileira,


instalaram-se as primeiras indústrias de tratores, máquinas agrícolas, fer-
tilizantes, defensivos e medicamentos veterinários, afetando, sobretudo,
os estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul (COSTA FILHO, 1994).
Nos anos de 1960 e 1970, as mudanças ocorridas foram influenciadas
pelo Estado e pelo capital externo, visando à maior produtividade. Con-
solidou-se então o binômio trigo-soja, diminuindo produções de grande
importância até então (milho, mandioca e suinocultura). A mão de obra
na agricultura diminuiu, e a mecanização e o uso de defensivos, adubos e
corretivos aumentaram, dispensando a mão de obra. Aumentou também
a interligação com os mercados e com bancos, agroindústrias e coopera-
tivas (NIEDERLE, 2007).
Este estudo apresenta dados dos municípios de Veranópolis e Salva-
dor das Missões, do Rio Grande do Sul, obtidos através da pesquisa Agri-
cultura Familiar, Desenvolvimento Local e Pluriatividade no Rio Grande
do Sul (AFDLP), desenvolvida em parceria com a Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e Universidade Federal de Pelotas, através da aplicação
de questionários semiestruturados, seguindo o procedimento de amostra-
gem sistemática por localidade/comunidade, envolvendo 234 famílias.
Em trabalho anterior, geraram-se informações variadas que per-
mitiram as primeiras análises sobre as características das mulheres que
compõem as famílias de agricultores em Veranópolis e Três Palmeiras
(SILVA, 2006), conduzindo ao questionamento da influência da pluria-
tividade quando ela é realizada por mulheres, e para esta pesquisa, foi
analisado o município de Salvador das Missões.
Ambos os municípios foram escolhidos porque apresentam índi-
ces de desenvolvimento mais elevados em relação à amostra original da
pesquisa, embora tenham origem, formação étnica e formas de agricul-
tura distintas, o que possibilita a comparação entre diferentes dinâmicas
locais, considerando que as características regionais influenciam a maior
ou menor participação em atividades não agrícolas (RADOMSKY, 2006;
CONTERATO, 2008). Além disso, as amostras de Veranópolis e Salvador
das Missões com 117 famílias, 59,33% e 46,4%, respectivamente, são
pluriativas, sendo os valores mais elevados entre a amostragem original,
e apresentam elevada participação em atividades não agrícolas.
Para a coleta de dados qualitativos, foram feitas entrevistas indivi-
duais semidiretivas em profundidade com mulheres rurais que realizam
somente atividade não agrícola e que a conciliam com atividades não
agrícolas. As entrevistas permitiram aprofundar a obtenção de dados,
uma vez que os questionários de base apresentavam um único respon-

160 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

dente, podendo ocultar conflitos de gênero. Os encontros ocorreram em


locais variados, como a propriedade rural, a sede do clube de mães, o
local de trabalho, ou mesmo o salão do hotel.
Realizaram-se também observações de campo, complementando as
informações das entrevistas, buscando ultrapassar os limites impostos
pela situação de desigualdade entre entrevistador (que coloca questões) e
entrevistado (que oferece informações sobre a própria vida). As entrevis-
tas, norteadas pela aplicação do tópico-guia, sugerido por Gaskell (2004),
geraram informações descritivas (como idade, escolaridade, composição
familiar e outros) e sobre os tipos de trabalho em que as mulheres se
inseriam, de que forma se deu esta inserção e quais as consequências
percebidas após seu ingresso no mercado de trabalho alheio ao familiar.
Buscaram-se informações sobre o período de início das atividades
não agrícolas, quais motivações e entraves influenciaram nessa decisão,
como sua realização é percebida pelas mulheres e suas famílias, como
isso altera (se altera) a divisão do trabalho doméstico e na UP, entre
outras, buscando compreender as trajetórias de inserção no mercado de
trabalho não agrícola, pelas mulheres, relacionando-as com os papéis
sociais de homens e mulheres.
Para a realização das entrevistas, optou-se pela formação de um
corpus, uma vez que, na pesquisa qualitativa, é impossível definir uma
amostra representativa aos moldes quantitativos, devendo-se construir
um corpus equivalente a uma amostra representativa (BAUER; AARTS,
2004). O corpus cresce durante sua formação, não tendo um número
predefinido de casos. Assim, a seleção dos entrevistados foi através da
indicação das responsáveis pelos programas sociais da Emater nos muni-
cípios, além das funcionárias da Secretaria de Assistência Social e de
setores de pesquisa em saúde de Veranópolis.
Por ser impossível prever o número de entrevistas para uma pes-
quisa, um critério usado é a inexistência de informações novas, afinal,
as representações individuais são também sociais e tendem a se repetir
em grupos e ambientes específicos (GASKELL, 2004). Esse limite também
se relaciona com o fato de que muitas entrevistas muito longas podem
acarretar perda de informação (GASKELL, 2004). Dessa forma, foram fei-
tas entrevistas até o ponto de saturação, quando não há mais novidades
relevantes.
Em Veranópolis, as entrevistas analisadas foram as de cinco mulhe-
res e dois homens, além de conversas informais, sobretudo com funcioná-
rios da Assistência Social e do Centro de Proteção à Mulher, inaugurado
havia poucos meses na época da visita a campo. Em Salvador das Missões,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 161


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

além das entrevistas, houve a apresentação do documentário brasileiro


Nem honra nem gravata, que trata das percepções de homens e mulheres
de várias idades sobre as diferenças entre eles. Revelaram através deste
estímulo visões sobre a importância da família e do diálogo familiar na
resolução de conflitos, o trabalho na agricultura, as igualdades e desigual-
dades, o lazer e sobre a participação dos maridos nas tarefas “femininas”.

4 QUESTÕES DE GÊNERO EM REGIÕES DE COLONIZAÇÃO ITALIANA


E ALEMÃ: O CASO DE VERANÓPOLIS E SALVADOR DAS MISSÕES

A análise dos dados demonstra que, da mesma forma que em


outros contextos (GELUK-GELUK, 1994; BONI, 2006; DEPARTAMENTO
SINDICAL DE ESTUDOS RURAIS; COMISSÃO ESTADUAL DE MULHERES
TRABALHADORAS RURAIS DO PARANÁ, 1996), as mulheres no meio
rural gaúcho são vistas como colaboradoras, sem poder de decisões, já
que não são as responsáveis pelas propriedades. Em Veranópolis e Sal-
vador das Missões, a maioria dos homens figura entre o responsável pela
propriedade ou filho deste, enquanto grande parte das mulheres é consi-
derada cônjuge do responsável ou são suas filhas.
As posições ocupadas conforme os tipos de famílias demonstram
que apenas em famílias pluriativas de Veranópolis as mulheres estão
entre as responsáveis pela propriedade e em pouca quantidade (2,25%).
Por consequência, de forma geral, os homens figuram entre os responsá-
veis pela família e raramente são considerados os cônjuges das respon-
sáveis, demonstrando uma forte identificação masculina com o comando
do grupo familiar.
A porcentagem de filhos e filhas evidencia a seletividade das
migrações, corroborando a afirmação de Brumer (2004) de que mulheres
jovens tendem a migrar com mais frequência. Na amostra, predominam
os rapazes na posição de filhos e filhas, em ambos os municípios, e é nula
a quantidade de moças entre as famílias monoativas de Veranópolis, ou
seja, famílias exclusivamente dedicadas à produção agrícola.
Em relação ao tipo de trabalho realizado pelos membros das famí-
lias, de acordo com a Tabela 1, o trabalho doméstico e o trabalho na uni-
dade de produção são predominantes entre as mulheres, reafirmando ao
mesmo tempo as atividades domésticas e o espaço privado enquanto legi-
timamente femininos, de acordo com o que demonstra Bourdieu (2005).
Nas famílias monoativas de Veranópolis, as mulheres que realizam
trabalhos no âmbito da UP, seja agrícola ou doméstico, totalizam 84,21%.
Nas famílias pluriativas, há menor porcentagem de mulheres nestes gru-

162 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

pos (50,56% no somatório), mas a porcentagem de homens com ativi-


dades domésticas indica que são ainda quase exclusivamente femininas.
Em Salvador das Missões, a quantidade de mulheres dedicadas
somente à propriedade é similar em famílias monoativas (23,64%) e plu-

Tabela 1 – Tipo de trabalho realizado, por tipo de família e município.

Veranópolis Salvador das Missões


Tipo de Trabalho
realizado Fam. Fam. Fam. Fam.
Monoativa Pluriativa Monoativa Pluriativa
H M H M H M H M
Tempo integral na UP 64,71 39,47 44,57 23,60 67,21 23,64 20,29 22,22
Tempo parcial: fora
0,00 0,00 15,22 3,37 0,00 0,00 40,58 14,29
e dentro da UP
Trabalho parcial UP
1,96 34,21 0,00 22,47 0,00 32,73 0,00 15,87
+ trabalho doméstico
Trabalho parcial UP
7,84 0,00 6,52 0,00 9,84 9,09 13,04 7,94
+ Estudo
Tempo integral fora
0,00 0,00 21,74 21,35 0,00 0,00 7,25 11,11
da UP
Somente trabalho
1,96 10,53 0,00 4,49 0,00 9,09 0,00 3,17
doméstico
Somente estuda 3,92 0,00 3,26 8,99 3,28 5,45 13,04 12,70
Criança menor de
3,92 7,89 5,43 6,74 11,48 10,91 1,45 6,35
7 anos
Idoso: apenas tempo
11,76 5,26 0,00 7,87 6,56 9,09 2,90 6,35
parcial na UP
Não trabalha por
deficiência ou 3,92 2,63 2,17 1,12 1,64 0,00 1,42 0,00
invalidez
Desempregado 0,00 0,00 1,09 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: Elaboração própria a partir da pesquisa Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Plu-
riatividade no Rio Grande do Sul – CNPq/UFRGS/UFPel (2003).2
Nota: * A condição de famílias monoativas impede que apresentem trabalho em tempo parcial: fora
e dentro da UP ou tempo integral fora da UP.

2 Foi utilizado o banco de dados da pesquisa “Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e


Pluriatividade no Rio Grande do Sul” realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 163


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

riativas (22,22%). Nos dois municípios, a maior busca por atividades não
agrícolas é por parte dos homens (somando-se “tempo parcial: fora e
dentro da UP” e “tempo integral fora da UP”), enquanto as mulheres rea-
lizam as tarefas domésticas, embora em Salvador das Missões a inserção
delas em atividade de tempo integral fora da UP (11,11%) seja superior.
Mesmo em famílias pluriativas, grande parte dos homens se ocupa
de forma integral na UP, uma vez que a atividade agrícola (produtiva e
“pesada”) é de responsabilidade masculina. Somente nas famílias pluria-
tivas de Salvador das Missões a quantidade de homens que trabalham em
tempo integral na UP é menor, já que as atividades disponíveis fora do
âmbito familiar são, em geral, atividades agrícolas em propriedades de
terceiros ou na distribuição de produtos agropecuários, em cooperativas,
ou seja, são atividades masculinas e indisponíveis para mulheres.
Quanto ao trabalho doméstico, a tendência dos homens era de lavar
a louça, varrer, esquentar o próprio almoço que as mulheres deixavam
pronto pela manhã, denotando que neste âmbito são eles que apenas “aju-
dam”, como dizem as esposas e filhas na agricultura. E, mesmo havendo a
valorização do trabalho produtivo feminino dentro e fora da propriedade
e com a participação masculina nas atividades domésticas, permanece a
visão da mulher enquanto dona de casa, por um dom natural.
Apesar da valorização do trabalho fora da propriedade, algumas
mulheres preferem os trabalhos domésticos para melhor cumprir suas
atribuições de esposa e mãe. Para muitas, a valorização do emprego
fora da UP está mais ligada a precisar aumentar a renda familiar do
que a benefícios próprios de independência e realização profissional
e pessoal. Da mesma forma, permanecer em casa quando os filhos são
pequenos é a melhor opção encontrada, uma vez que o pagamento de
babás e creches corresponde à grande parcela dos baixos rendimentos
que obtêm. Assim, as funções de mãe se sobressaem, com destaque para
a criação dos filhos.
De acordo com as entrevistas realizadas em Veranópolis, com a
saída das esposas para uma atividade fora de casa, o trabalho na UP é
percebido pelo marido, ao afirmar que sua atuação era relevante. Quando
ambos os cônjuges saem para trabalhar fora da propriedade, deixando
filhos em casa, a divisão das tarefas domésticas torna-se mais complexa.
“[Para cuidar da família] tinha que se organizar pra conseguir fazer.
A [filha] mais velha tinha que tomar conta da mais nova, e daí o almoço
eu fazia de manhã, antes de começar a trabalhar. Ela tinha 12, 13 anos
[...] cuidava a pequena, 5:30 acordava, fazia o almoço... Deixava tudo
pronto, daí eu ia”. (Entrevistada nº 8).

164 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

Quanto ao trabalho dentro e fora da agricultura, foram apontadas


vantagens nos dois casos, mas a carteira assinada e a renda fixa aparecem
como fatores relevantes do emprego fora da propriedade familiar. Diante
disso, a escolha individual por determinada atividade é influenciada pelo
conjunto da família. “É... estar longe... [...] eu me sinto assim, obrigada,
que nem a ficar com eles, ajudar eles, porque a gente quase nunca que
ficou junto, agora que nós estamos morando juntos [...] eu sempre paguei
aluguel, sempre fiquei longe. Aí quando eu vou trabalhar [...] mas fico
pensando aqui, né. O pensamento aqui, o pai já tem uma certa idade...
Acho que é isso.” (Entrevistada nº 2).
Conforme a Tabela 2, em Veranópolis há predominância das fai-
xas etárias acima dos 51 anos para homens e mulheres, enquanto as
monoativas têm maior concentração na faixa etária de 61 anos ou mais,
para ambos. Em Salvador das Missões, há maior concentração de jovens
até 16 anos para homens e mulheres, e também no estrato entre 41 e
50 anos.
Comparando-se as famílias pluriativas e monoativas de Veranópo-
lis e de Salvador das Missões, percebe-se, de forma geral, um incremento
de pessoas de até 30 anos na amostra das primeiras famílias, o que indica
a seletividade das migrações e a importância da pluriatividade e maior
autonomia para a permanência das jovens no meio rural (BONI, 2006;
BRUMER, 2004).

Tabela 2 – Faixa etária, por tipo de família e município.

Veranópolis Salvador das Missões


Fam. Fam. Fam. Fam.
Faixa etária
Monoativa Pluriativa Monoativa Pluriativa
H M H M H M H M
Até 16 anos 11,76 7,89 14,13 13,48 24,59 20,00 31,88 25,40
17 até 21 anos 7,84 0,00 15,22 10,11 1,64 5,45 7,25 4,76
22 até 30 anos 7,84 10,53 11,96 15,73 4,92 3,64 8,70 7,94
31 até 40 anos 15,69 5,26 14,13 11,24 18,03 21,82 8,70 20,63
41 até 50 anos 7,84 23,68 11,96 13,48 19,67 12,73 26,09 19,05
51 até 60 anos 17,65 21,05 16,30 17,98 8,20 12,73 7,25 7,94
61 anos ou mais 31,37 31,58 16,30 17,98 22,95 23,64 10,14 14,29
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: Elaboração própria a partir da pesquisa Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Plu-
riatividade no Rio Grande do Sul – CNPq/UFRGS/UFPel (2003).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 165


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

Em Veranópolis e em Salvador das Missões, as faixas de escolari-


dade mais frequentes estão entre os primeiros e últimos anos do Ensino
Fundamental. Entre as famílias pluriativas, há maior participação em
estratos mais elevados de escolaridade, como o Ensino Médio, chegando
a somar 8,99% as mulheres com Nível Superior (In)completo (Tabela 3).
Tal situação corrobora a afirmação de Silva, Del Grossi e Campanhola
(2002), de que nem todos terão acesso ao mercado de trabalho não agrí-
cola, ou apenas o terão nas profissões mais penosas, com menor exigên-
cia de educação formal. Assim, a pluriatividade, conforme a atividade
disponível no mercado de trabalho local, fica acessível para aqueles com
maiores níveis de escolarização.
Conforme a Tabela 4, em Veranópolis, a principal localização da
atividade não agrícola feminina (41,67%) e masculina (53,13%) é o
centro urbano do município. No entanto, 20,83% das mulheres realizam
as atividades no interior da propriedade e apenas 4,17% deslocam-se
até outros municípios. A maioria das mulheres de Salvador das Missões

Tabela 3 – Grau de escolaridade, por tipo de família e município.

Veranópolis Salvador das Missões


Fam. Fam. Fam. Fam.
Escolaridade
Monoativa Pluriativa Monoativa Pluriativa
H M H M H M H M
Analfabeto/lê e
3,92 5,26 2,18 5,62 3,28 3,64 1,45 0,00
escreve
1ª a 4ª série (in)
43,14 57,89 27,17 37,08 34,43 36,36 42,03 41,27
completo
5ª a 8ª série (in)
35,29 28,94 43,48 24,72 36,07 29,09 33,33 22,22
completo
E. M. (in)completo 9,80 2,63 18,47 14,61 13,12 16,36 17,39 23,81
Nível técnico 0,00 0,00 1,09 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
Superior (in)
3,92 0,00 2,18 8,99 1,64 3,64 5,80 6,64
completo
Criança em idade
3,92 5,26 5,43 6,74 11,48 10,91 0,00 6,35
escolar
NS/NR 0,00 0,00 0,00 2,25 0,00 0,00 0,00 0,00
Total 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00
Fonte: Elaboração própria a partir da pesquisa Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Plu-
riatividade no Rio Grande do Sul – CNPq/UFRGS/UFPel (2003).

166 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

encontra atividades na própria comunidade rural, enquanto os homens


deslocam-se para o centro urbano do município. A parcela de mão
de obra, masculina e feminina, que se desloca para outros municípios
(cerca de 13% para ambos) não causa espanto, devido ao tamanho do
município e à sua proximidade com outros de maior porte, como Cerro
Largo, por exemplo.
As relações familiares e conjugais podem tanto ser fonte de estí-
mulo como de limitações para as possibilidades e desenvolvimento indi-
viduais, à medida que os papéis sociais se manifestam através dos ciúmes
dos cônjuges. Dessa forma, também para se colocar no mercado de traba-
lho não agrícola, há indicações de algumas das dificuldades sofridas por
parte das mulheres rurais. “Eu gostaria muito de voltar a estudar agora.
[...]. É, é difícil porque ele não concorda. Porque, se fosse pelo meu pai,
minha mãe, meu Deus, o sonho deles é me ver numa faculdade. [...].
É aquele ciúmes forte doente. [...]. Ele nunca gostou que eu trabalhasse.
[...] eu ficava fazendo hora, já não gostava. Não dava certo. Daí eu penso,
se eu vou trabalhar e pra vim pra casa para me incomodar, eu já me
incomodo aqui.” (Entrevistada nº 2).
A divisão das tarefas domésticas não é igualitária, mas também
não gera maiores conflitos explícitos, já que as mulheres tomam para
si a maior parte da obrigação de cuidados com as casas e a família,
tanto pela representação do feminino quanto pela recusa ao conflito.
No entanto, quando se trata da atividade agrícola, a divisão das tarefas
ocorre de forma diferente, sendo igualitária na visão feminina, porém
diferenciada na visão masculina: “Todo mundo faz a mesma coisa. Mas
assim, quando é época, se é safra de uva, essas coisas, é trabalho igual.

Tabela 4 – Localização da atividade não agrícola, por município.

Salvador das
Veranópolis
Missões
Localização da atividade não agrícola H M H M
No domicílio ou na UP 12,50 20,83 0,00 0,00
Na localidade/comunidade rural onde reside 25,00 33,33 36,36 73,33
No centro urbano do próprio município 53,13 41,67 50,00 13,33
Em outro município 9,38 4,17 13,64 13,33
Total 100 100 100 100
Fonte: Elaboração própria a partir da pesquisa Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Plu-
riatividade no Rio Grande do Sul – CNPq/UFRGS/UFPel (2003).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 167


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

Pra homem, pra mulher, tem que pegar parelho. [...] [o serviço] leve é
eles, o leve. Que na hora de carregar caixa, então as mulheres também
têm que ajudar. Ah, sim, eles dizem isso, mas não existe [trabalho femi-
nino leve].” (Entrevistada nº 3).
Além disso, evidenciou-se maior apreço pela postura frágil e
dependente da mulher, que permitia ao marido ajudá-la nas tarefas
domésticas somente enquanto desempenhava este papel, situação
rompida quando a esposa passou a encarnar uma postura mais inde-
pendente e autônoma, a partir do seu crescimento profissional. Além
disso, a dupla jornada feminina e a recusa masculina em participar
das atividades domésticas acabam por gerar conflitos indissolúveis,
em alguns casos: “Mas, o conflito ele é em casa, assim, em relação
ao meu marido, tem aquele bloqueio. Normalmente é homem que sai
muito de casa para trabalhar e lá é o contrário. Ele sai bastante, mas
eu tava sempre em casa, agora não tem nenhum em casa. E ele tá
sentindo muito forte essa mudança. [...] [em casa] não tem divisão de
tarefas, é tudo comigo. [...] o meu filho me ajuda um pouquinho até,
mas em relação a ele [o marido] não. O meu filho ele me ajuda a esten-
der roupa, recolhe roupa, põe na máquina. Arruma alguma louça, mas
em relação a eu e ele [o marido], não tem muito isso não. Ele já teve,
agora não tem mais.” (Entrevistada nº 7).
Sobretudo nas entrevistas obtidas em Salvador das Missões, as
mulheres valorizaram mais a harmonia familiar, destacando a participa-
ção de todos os familiares nas decisões sobre a propriedade. Em outras
situações, a posição do “ganhador do pão”, conforme cita Geluk-Geluk
(1994), é questionada pelas mulheres com salário fixo, já que são elas que
pagam as despesas mensais, que compram a prazo objetos para a casa,
ajudam nas despesas dos filhos. “Lá não tem chefe, a gente trabalha tudo
junto. Os filhos tudo, a gente... até os filhos ajudam a cuidar, às vezes, a
gente pede. Um pede o que que o outro acha melhor, geralmente é tudo
junto.” (Entrevistada nº 9).
Dessa forma, as informações analisadas indicam determinadas
situações em que emerge o conflito entre homens e mulheres, porém, não
se apresenta um questionamento contínuo e explícito, uma vez que foi
evidenciado, sobretudo, em situações informais e não pelas entrevistas.
Apesar de haver uma grande carga de trabalho para as mulheres, espe-
cialmente entre as que realizam também atividades não agrícolas (elas
possuem emprego, cuidam da casa e da família e ocupam-se da atividade
agrícola), a necessidade de realizar as atividades tem se sobreposto aos
questionamentos acerca de uma divisão de tarefas mais igualitária.

168 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carolina Braz de Castilho e Silva, Sergio Schneider

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessas análises, evidenciou-se que na fala dos homens eles


são os responsáveis pelas propriedades, enquanto na fala feminina elas
dividem essa responsabilidade com seus cônjuges e o restante da famí-
lia. As mulheres se consideravam também responsáveis à medida que
contribuíam para as despesas do lar, questionando o papel masculino de
“ganhador do pão” (GELUK-GELUK, 1994).
Observaram-se, sobretudo em situações informais, posições demarca-
das entre homens e mulheres de Veranópolis, ao passo que parecia não haver
uma “questão de gênero”, as relações sendo interpretadas a partir do natural,
conforme Bourdieu (1996). Surgiram, ainda, elementos de análise relevantes,
como pressão na escolha do tipo de trabalho a ser realizado por parte do
cônjuge, limitando as possibilidades femininas de inserção laboral.
Apesar dos benefícios atribuídos à pluriativade, em algumas situa-
ções o resultado não é o esperado, contribuindo também para aumentar
as atividades femininas. Em Veranópolis, as mulheres dividiam grande
carga de trabalho com cônjuges e familiares, enquanto que em Salva-
dor das Missões havia a menor participação delas na produção, e menor
carga de trabalho, devido aos modelos de produção distintos. Ainda em
Veranópolis, grande parte das mulheres dedicava-se ao trabalho domés-
tico, parcial ou integralmente. Em Salvador das Missões, são os homens,
no entanto, que mais recorrem às atividades fora da UP, devido ao tipo
de atividades disponíveis (ligadas à agricultura).
A análise das faixas etárias comparando-se o tipo de famílias reforça
a seleção das migrações, mais frequentes entre os(as) jovens, e demonstra
que nas famílias pluriativas de Veranópolis há uma menor concentração
em determinadas faixas etárias, embora haja predominância em todos os
casos de jovens até os 16 anos, seguida de uma diminuição dos jovens
entre 17 e 21 anos, denotando o abandono do meio rural por parte dos(as)
jovens, que afeta a longo prazo a reprodução social da agricultura familiar.
A análise do grau de escolaridade demonstra ser mais frequente o
Ensino Fundamental, o que pode limitar o acesso às atividades não agrícolas
menos penosas e melhor remuneradas. Apesar disso, 8,99% das mulheres de
famílias pluriativas de Veranópolis figuravam entre o nível superior incom-
pleto, aumentando sua liberdade (SEN, 2000). Em Salvador das Missões, este
número era de 3,17%, mas era maior a porcentagem das mulheres de famí-
lias pluriativas que concluíram o ensino superior (também 3,17% do total).
Conforme os dados sobre a localização do trabalho realizado, as
mulheres tendiam a executar as atividades no centro urbano de Veranó-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 169


Gênero e Pluriatividade na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul

polis, enquanto em Salvador das Missões elas tendiam ao deslocamento


para municípios vizinhos. Isso pode ser explicado pelas dinâmicas locais,
pois o primeiro município apresenta maior desenvolvimento econômico
e maior concentração de população urbana, superando o segundo em
termos populacionais.
As observações em Veranópolis demonstraram também predominância
das mulheres nos estabelecimentos comerciais locais, repletos de vendedoras
e atendentes do sexo feminino – em maior quantidade do que masculino.
Não obstante, grande parte das mulheres realiza atividades não agrícolas no
domicílio ou na própria comunidade em que reside, nos dois municípios, de
forma que não precisam se afastar dos cuidados com a casa e com a família.
As análises das entrevistas indicaram diferenças e mudanças nas
relações de gênero em comparação a épocas anteriores e aos tipos médios
descritos pelas teorias. No entanto, os papéis de gênero tendem a se repro-
duzir, mesmo quando as mulheres têm ocupações remuneradas fora da
propriedade pela tendência de elas se reconhecerem com uma feminilidade
que lhes atribui a função de cuidar da casa e da família, e por esbarrarem
em conflitos considerados indissolúveis com os seus cônjuges.
O meio rural gaúcho não apresenta ainda uma situação de igual-
dade entre homens e mulheres, devido às posições e papéis sociais tra-
dicionais permanecerem sendo referências na socialização de homens e
mulheres, de modo que, para ampliar o processo de desenvolvimento, é
preciso haver novas formas de masculinidade, de acordo com as novas
atividades femininas, para que essas novas possibilidades se efetivem
para as mulheres rurais, uma vez que a identidade de gênero se constitui
na relação com o sexo oposto.
Apesar disso, considera-se que a pluriatividade continua sendo
relevante para o desenvolvimento rural, visando à melhoria da quali-
dade de vida e à ampliação de liberdade, incluindo-se aí as situações
em que são as mulheres que realizam as atividades não agrícolas, tanto
por melhorar e estabilizar a renda familiar, gerar emprego, desacelerar o
êxodo rural, entre outros efeitos, como também por abrir novas possibi-
lidades para elas (quando estas não acarretem forte sobrecarga), permi-
tindo questionar a dominação masculina, pela expansão das realizações
profissionais e pessoais no espaço público.

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172 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 7

Trabalho e relações de gênero


no turismo rural1

Raquel Lunardi
Marcelino de Souza
Fatima Cristina Vieira Perurena

1 Este trabalho apresenta os dados produzidos na tese de doutorado intitulada “Mudanças nas
relações de trabalho e gênero no turismo rural” da primeira autora e orientada e co-orientada
pelos segundo e terceiro autores, respectivamente. Foi financiado com recursos do CNPq.
Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

1 INTRODUÇÃO

Neste capítulo, procuramos compreender a organização do traba-


lho em empreendimentos de turismo rural e identificar a nova divisão
sexual do trabalho decorrente do envolvimento na atividade turística,
em que se buscou descrever as práticas laborais masculinas e femininas,
realizadas nos ambientes produtivo e reprodutivo.
O meio rural brasileiro passa, principalmente após a década de
1970, por mudanças significativas em seu espaço, não só econômicas,
mas, também, sociais. Essas modificações vêm ocorrendo em virtude da
modernização agrícola, que surge com a implantação de novas técnicas e
de métodos de plantio e colheita, com inovações genéticas e com melho-
ramento na mecanização (GRAZIANO DA SILVA, 1999). Em resposta a
este ambiente de mudanças que vive a agricultura brasileira, novas tra-
jetórias estão emergindo em um campo que não é mais somente agrí-
cola, e, além disso, cenário para o desenvolvimento de novas atividades
e de multifuncionalidades, alterando valores sociais, culturais e também
o processo de organização, bem como alocação do trabalho no interior
do grupo doméstico.
Esta reorganização ocorre especialmente a partir da inserção de
atividades não agrícolas, e permite a inserção de novas formas de uso do
espaço rural relacionadas ao consumo de novos produtos e serviços, o
que tem possibilitado que o produtor rural, que era somente supridor de
matéria-prima, passe a ser um prestador de serviços através de opções de
lazer, diversificando suas formas produtivas. Esta última afirmação tem
incentivado muitos agricultores a desenvolverem o turismo, alterando o
ritmo de vida local e familiar, a estrutura na divisão das atividades, tanto
no turismo quanto na agricultura e no ambiente doméstico, assim como
os valores sociais e culturais dos agentes envolvidos (LUNARDI, 2012).
No Brasil, estudos contemporâneos têm demonstrado a impor-
tância do debate da categoria gênero no meio rural, sobretudo a partir
da modernização da agricultura, que culminou na diminuição do tra-
balho agrícola feminino e, consequentemente, no aumento do trabalho
doméstico. Este modelo tem ocasionado um forte impacto na dinâmica
econômica de famílias rurais, provocando alterações nas ocupações des-
tas, o que tem causado mudanças nas relações de gênero no meio rural.
Os debates acadêmicos sobre gênero e desenvolvimento rural, tanto no
Brasil como em países europeus, estão relacionados ao novo modelo de
desenvolvimento proposto, ou seja, à multiplicidade do meio rural e ao
conceito de “nova ruralidade”.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 175


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

A proximidade entre as tarefas realizadas no ambiente doméstico


com a atividade produtiva turismo rural permite que homens e mulheres
desenvolvam e reestruturem suas funções dentro da unidade familiar.
Porém, não se sabe se essas mudanças possibilitam transformações na
divisão sexual do trabalho. Para compreender essa teia de relações, foi
preciso refletir sobre as relações internas à família, como a organização
das tarefas diárias.
Buscamos analisar estas famílias a partir do entendimento de como
uma categoria histórica (SAFFIOTI, 2009), que expressa não apenas desi-
gualdades e hierarquias entre homens e mulheres, também é assentada
no substrato material que é o corpo, sobre o qual a sociedade atua: “[...]
embora tenham existido inúmeras mediações, o gênero, socialmente
construído, se assenta no sexo, situado no campo biológico, na esfera
ontológica orgânica” (SAFFIOTI, 2009, p. 8) entre os corpos sexuados.
Nesse sentido, procuramos compreender o gênero como um processo
social construído historicamente, passível de mudanças e representado
pelo patriarcado, pois ele é a base do sistema de gênero, na medida em
que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente desi-
guais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias, e
isso demonstraremos no decorrer do estudo.2

2 GÊNERO, TRABALHO E TURISMO RURAL

As mudanças ocorridas no meio rural têm permitido que esse


espaço, que até então era somente agrícola, passasse a desenvolver ati-
vidades não agrícolas, especialmente as relacionadas com o beneficia-
mento de produtos (agroindústria e artesanato) e com as atividades de
lazer, como o turismo rural, levantando novas questões na agenda acadê-
mica sobre o papel de homens e mulheres no desenvolvimento rural. Essa
reorganização do meio rural, segundo Brandth (2010), tem ocasionado
novas configurações de trabalho, econômicas, sociais e de gênero no
meio rural. Diversos estudos têm trazido à tona essa realidade, sobretudo
no que se refere à reorganização do trabalho em comunidades rurais a
partir do turismo (GARCÍA RAMÓN; BAYLINA FERRÉ, 2000; SPARRER,
2003; LUNARDI, 2007; NOGUEIRA, 2004). Esses estudos têm demons-

2 Gênero é um conceito por demais palatável, porque é excessivamente geral, a-histórico, apolí-
tico e pretensamente neutro. Isso reflete na sua compreensão. O patriarcado ou ordem patriarcal
de gênero “[...] só se aplica a uma fase histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem
da neutralidade, e deixando, propositadamente explícito, o vetor da dominação-exploração.”
(SAFFIOTI, 2009, p. 37).

176 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

trado que a mulher é peça-chave no desenvolvimento do turismo e que


o resultado de seu trabalho tem se instituído em um importante fator de
valorização (econômica, social e política) das mulheres rurais envolvidas
nestas atividades. Villarino Pérez e Valiente (2000) consideram o envolvi-
mento das mulheres no turismo, na sua gestão e no envolvimento social
com os turistas como uma das suas contribuições mais significativas para
o desenvolvimento rural da Espanha.
Brandth (2002) demonstra que o turismo rural, como trabalho não
agrícola, tem maior ocupação das mulheres do que na agricultura, e isso
aumenta o seu poder dentro da família, o que tem resultado na luta
de mulheres por um estatuto profissional não agrícola. Isso é relatado
a partir da França, onde as mulheres foram consideradas como força
motriz importante para o turismo rural, e onde têm desempenhado papel
importante no seu desenvolvimento e, consequentemente, têm assumido
uma posição central em unidades desse tipo. Esse fato trouxe o marido e
a mulher a um estado mais igualitário dentro da propriedade, e, a partir
de novas práticas, produtos e atividades, têm surgido novos discursos de
gênero no meio rural.
Contudo, os indivíduos que se envolvem com o turismo são aque-
les que não estão ocupados em atividades assalariadas, ou seja, idosos,
crianças e mulheres, e os serviços oferecidos no turismo são aqueles
desempenhados por mulheres dentro do grupo familiar. Esse é um dos
fatores do seu maior envolvimento com a atividade. Os homens con-
tinuam sendo os responsáveis pelas atividades realizadas fora da casa,
mesmo que estas tenham mudado suas características, e as mulheres per-
manecem realizando as atividades internas à casa. Mesmo que a mulher
seja, em grande parte das propriedades rurais, a principal mão de obra, a
decisão sobre investir ou não no turismo é uma decisão familiar, e parte
da necessidade da manutenção da atividade agrícola e não da sua exclu-
são. Isso mostra que, conforme Brandth e Haugen (2010a), mesmo que
a inserção do turismo tenha provocado uma mudança na percepção das
relações de gênero, a estrutura tradicional de divisão sexual do trabalho
permanece nas propriedades rurais.
A busca por uma nova atividade (não agrícola), segundo Shortall
(2002), parte geralmente das mulheres, ainda que a decisão seja do grupo
familiar. São elas que desempenharão essa nova atividade e o fazem
como uma estratégia de sobrevivência da propriedade e para manterem o
trabalho do homem na agricultura. Porém, o envolvimento em atividades
não agrícolas proporciona às mulheres maior independência financeira
e as colocam em posição em que elas esperam e recebem maior poder de

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 177


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

decisão familiar. Contudo, mesmo com os rendimentos auferidos pela ati-


vidade não agrícola, não há uma negociação dos papéis de gênero e das
responsabilidades domésticas, permanecendo as mulheres em situação de
invisibilidade produtiva. No entanto, para Shortall (2002), o trabalho não
agrícola permite às mulheres desafiar a dominação masculina e afirmar
sua independência na exploração agrícola, mesmo que esta ainda seja
parcial. Nesse sentido, mulheres assumiram novas posições e se envol-
veram em novas práticas, porém, as relações de poder se mantiveram
praticamente as mesmas, pois o trabalho feminino continua a manter
baixo estatuto em conformidade com os discursos do sistema de gênero.
Entretanto, analisar o trabalho no turismo rural traz à discussão
dois princípios que estão relacionados à organização tradicional do tra-
balho: a separação e a hierarquização. Separação no sentido de que há
trabalho de homens e há trabalho de mulheres, e hierárquico no sentido
da valorização, em que o trabalho do homem vale mais que o trabalho
da mulher. O primeiro princípio que faz referência à separação das ativi-
dades pelo sexo classifica as atividades que são de mulheres e atividades
que são de homens. Por exemplo: as lidas da casa, da horta, de pequenos
animais e dos filhos são delegadas às mulheres; atividades tidas como
de caráter masculino, como lidas na roça, com o gado, com maquinário
pesado são delegadas ao sexo masculino. O segundo princípio, o de hie-
rarquização, está relacionado com o valor dessas atividades, em que as
atividades femininas têm um valor periférico em relação às masculinas,
pois estas são organizadas a partir de um sistema de produção de bens,
isto é, produtivo, e aquelas são organizadas a partir do sistema de produ-
ção de seres humanos, a reprodução.
Essa subdivisão entre separação e hierarquização tem explicações
nos argumentos de que estão associadas a aspectos de ordem natural e
social. O de ordem natural estaria relacionado ao sexo, ou seja, o sexo
definiria o que é trabalho de homem e o que é trabalho de mulher, a
ordem física do corpo, e estaria relacionado “[...] às deficiências físi-
cas e mentais dos membros da categoria sexo feminino que determi-
nam a imperfeição das realizações empíricas das sociedades competiti-
vas” (SAFFIOTI, 1976, p. 35). O fator de ordem social estaria vinculado à
construção histórica e social da sociedade, na qual a condição da mulher
é fruto não do físico e biológico, mas, sim, da cultura (SCOTT, 1995).
Essa divisão, para Oldrup (1999), está relacionada à identidade social do
trabalho, em que o ser mulher e o ser homem estão associados às tarefas
desempenhadas na divisão sexual do trabalho na propriedade. Para esta
autora, o “[...] discurso sobre a identidade das mulheres agrícolas con-

178 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

tinua a se concentrar sobre o papel das mulheres na divisão tradicional


do trabalho na propriedade agrícola, e esse discurso ainda é dominante”
(OLDRUP, 1999, p. 344).
Para Hirata e Kergoat (2007), novas configurações da divisão sexual
do trabalho estão emergindo, dado esse que muda com o tempo e com
o espaço. Essas configurações estão ligadas à reorganização do trabalho
no campo assalariado e doméstico, este último com maior envolvimento
de homens; aparição dos “nomadismos sexuados”, ou seja, a exploração
do trabalho em tempo parcial, tanto para mulheres como para homens;
e aumento da participação da mulher no mercado de trabalho de nível
superior simultaneamente ao aumento do número de mulheres em situ-
ação de pobreza.
Esta nova configuração do trabalho citada pelas autoras também é
sentida no espaço rural, onde, a partir do processo de modernização da
agricultura, toma novas formas e ressignificações e, consequentemente,
novas fontes de renda são inseridas, especialmente as não agrícolas. Esse
fenômeno está associado ao mercado de trabalho local, à condição de
reprodução, sobretudo econômica da família, decorrente de fatores como
mudanças nos sistemas de cultivo, da introdução de novos produtos e
tecnologias, modificações nas relações de produção, e ainda da identi-
dade profissional de homens e mulheres; e, por outro lado, há também
um aumento na participação das mulheres na agricultura.3
No entanto, esse aumento não é tão expressivo significativa-
mente para chegarmos às conclusões apontadas por Deere (2006) sobre
a feminização da agricultura na América Latina, onde houve considerá-
vel crescimento na participação de mulheres como agentes econômicos.
Esse fenômeno está atrelado a fatores como migração dos maridos para
outras áreas em busca de empregos agrícolas ou não agrícolas, divórcio,
viuvez, e solteirice. No Brasil, estudos apontam para a relativa masculi-
nização e envelhecimento da população rural.4 Estudos de Deere (2006),
assim como os feitos particularmente para o Brasil, mostram que, nas
últimas décadas, houve uma diversificação nas atividades econômicas
das mulheres rurais. A principal hipótese da autora é de que o traba-
lho da mulher rural tem se tornado mais visível, e que as mulheres têm

3 Os dados do PNAD (IBGE, 2009) apresentam um crescente aumento na participação de mulheres


na atividade agrícola entre os anos de 2002 e 2009. Porém, há que se destacar que as mulheres
continuam em menor número na agricultura, e o trabalho não remunerado e de autoconsumo
ainda prevalece em mais de 70% das mulheres envolvidas com a agricultura, e quando estas
assumem a direção de um empreendimento agrícola, este é de agricultura familiar.
4 Ver mais a respeito desta literatura no Capítulo 3.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 179


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

deixado de serem apenas trabalhadoras familiares não remuneradas na


agricultura e ido buscar trabalho remunerado no setor. Porém, existe
ainda muita dificuldade em avaliar o trabalho das mulheres rurais, visto
que elas desenvolvem muitas atividades, ao mesmo tempo reprodutivas e
produtivas, como é o caso do turismo rural.5 O fato do trabalho doméstico
não ser contabilizado leva as mulheres à condição de ajudantes, e não de
trabalhadoras ativas economicamente (DEERE; LEÓN, 1984).
Apesar disso, a crescente participação das mulheres rurais no tra-
balho remunerado tem gerado importantes mudanças nas estratégias
pessoais e familiares de organização do tempo e do espaço (SABATÉ
MARTÍNEZ; DÍAZ MUÑOZ, 2003; GARCÍA RAMÓN, 1990). A conciliação
entre trabalho familiar e trabalho remunerado tem conotações específicas
no meio rural, pois as questões estruturais (transporte, saúde e alimen-
tação), as relações sociais e a organização social são distintas da cidade.
O trabalho das mulheres deve ser conciliado com o trabalho doméstico,
e essa conciliação está relacionada ao espaço físico onde este trabalho
é realizado e com o tempo que este desprende das mulheres, existindo
uma estreita relação entre rural e família e entre produtivo e reprodutivo/
doméstico (BOCK; HAAN, 2004). Outro fator importante, destacado por
García Ramón (1990), é que o trabalho das mulheres não deve ameaçar o
trabalho dos homens, devendo estar sempre relacionado com a ajuda, ser
descontínuo, fracionado e irregular.
Por esses e outros fatores, os trabalhos que são possíveis de serem
conciliados com os trabalhos domésticos são os mais investidos no meio
rural, como é o caso do turismo rural, das agroindústrias e do artesanato,
os quais são atividades que podem ser aproveitadas para a manutenção
da família e do trabalho doméstico por elas realizado, permitindo assim
a conciliação entre trabalho remunerado e vida familiar. Esta conciliação
depende das circunstâncias pessoais de cada mulher, do tipo de trabalho
realizado e do contexto familiar em que se organizam as atividades labo-
rais, sejam elas domésticas ou produtivas (SABATÉ MARTÍNEZ; DÍAZ
MUÑOZ, 2003). Essa relação tem facilitado, também, a entrada da mulher
no mercado de trabalho fora da propriedade, pois são nesses empregos
que expressam seu “perfil profissional feminino”, sua maior forma de
acesso. Já trabalhos que são considerados como do “perfil profissional
masculino” são os que menos estão abertos para as mulheres. Essa rela-

5 Dados da PNAD (IBGE, 2009), referentes à base de dados de 2002 a 2009, demonstram que
houve aumento de rendimento das mulheres em atividades dos setores doméstico, indústria de
transformação, comércio e reparação e educação, saúde e serviços sociais.

180 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

ção demonstra que as formas de trabalho, seja rural ou urbano, estão


atreladas à divisão sexual do trabalho.
A introdução de novos produtos, no caso deste estudo, o turismo
rural, tem garantido o trabalho produtivo da mulher, mesmo que durante
determinado período de tempo. Seu caráter doméstico tem se apresentado
como fator incentivador para o envolvimento de mulheres nesta ativi-
dade. Contudo, a organização desse trabalho tem se apresentado dentro
da divisão sexual do trabalho. No momento em que se organiza dessa
forma, com base no sexo, assume a separação e a hierarquização.

3 O TRABALHO DE HOMENS E MULHERES NO TURISMO RURAL EM


SÃO JOSÉ DOS AUSENTES: COISA DE MULHER E COISA DE HOMEM

Para analisar o trabalho de homens e mulheres no turismo rural


em São José dos Ausentes, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas
e observação não participante como instrumentos de coleta de dados.
A unidade de análise desta pesquisa foram famílias rurais,6 sendo estas
agrícolas e pluriativas. Foram realizadas no total trinta e nove entrevis-
tas, sendo que destas vinte e uma foram aplicadas às famílias pluriativas,
em que foram direcionadas ao homem, à mulher e à caracterização da
propriedade e dezoito aplicadas nas famílias agrícolas, os procedimentos
foram os mesmos. A pesquisa foi realizada no período de novembro de
2010 a janeiro de 2011 no município de São José dos Ausentes, no noro-
este do Rio Grande do Sul, e foram contempladas sete propriedades que
desenvolvem o turismo rural e seis que são somente agrícolas.
O Produto Interno Bruto (PIB) do município tem na agropecuária
sua principal arrecadação, seguido da prestação de serviços.7 Na agrope-
cuária, destacam-se o cultivo de macieira, que representa para o Estado a
segunda maior produção, o cultivo da batata-inglesa, a quinta maior pro-
dução do Estado, e a silvicultura, cultivo mais recente na região (IBGE,
2009). Além disso, o município é produtor do queijo “serrano”. Na área de
serviços destaca-se o turismo rural. O município apresenta-se como um
dos principais destinos de turismo rural do Estado, perdendo em expressão

6 Para Schneider (2001, p. 170), a “[...] família rural é entendida como um grupo social que com-
partilha um mesmo espaço (não necessariamente uma mesma habitação) e possui em comum
a propriedade de um pedaço de terra. Esse coletivo está ligado por laços de parentesco e con-
sanguinidade (filiação) entre si, podendo a ele pertencer, eventualmente, outros membros não
consanguíneos (adoção)”.
7 A participação da agricultura no PIB é de 61,48%, enquanto a dos serviços é de 32,91% e da
indústria de 5,61%.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 181


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

para o município vizinho, Cambará do Sul, e a Regiões da Serra Gaúcha.


É aqui que se encontra o ponto mais alto do Estado, o Monte Negro, com
1.403 metros de altitude. Por isso, é usual a ocorrência de baixas tempe-
raturas no inverno, com geadas e neve.
O turismo nas famílias pesquisadas emerge a partir das dificulda-
des econômicas encontradas por essas famílias, e seu principal resultado
é a reorganização do trabalho familiar. Porém, essa reorganização ainda
está baseada dentro de uma estrutura de divisão sexual do trabalho, que
segue a estrutura tradicional. Essa estrutura segue os princípios de sepa-
ração e hierarquização colocados por Hirata e Kergoat (2007). O primeiro
aspecto está relacionado ao sexo, às atividades que são de homens e
que são de mulheres, e o segundo aspecto diz respeito ao valor dessas
atividades. Entender como se constroem essas relações e que mudanças
estão ocorrendo neste ambiente após o turismo é uma discussão que se
faz importante no momento em que “novas atividades” são inseridas e
que “antigas” são excluídas e/ou modificadas. Ocupações tradicionais,
que passaram de geração para geração e que tinham importância eco-
nômica para a família, como a produção do queijo, são algumas vezes
substituídas por outras, mais rentáveis e que desprendem menos esforço
físico. Porém, há que se destacar que a atividade “principal” das proprie-
dades, a pecuária, não foi substituída pelo turismo, pelo contrário, ela foi
reforçada no momento em que recursos e conhecimentos8 adquiridos no
desenvolvimento da atividade turística são aplicados na pecuária.
É unânime nas famílias pluriativas pesquisadas a importância que
tem a atividade pecuária para o turismo e vice-versa, gerando assim uma
complementação de renda e não uma dependência entre uma atividade e
outra. Nenhuma das famílias sobrevive com recursos apenas de uma das
atividades. A pecuária não foi substituída, ela passou por reestruturação
com a implementação do turismo rural, fato devido, principalmente, em
função da mão de obra familiar, visto que o trabalho no turismo rural
provém basicamente do grupo doméstico, entendido como um sistema
econômico e social baseado no convívio comum, na mesma residência.
Além desse grupo, ainda podemos citar o grupo familiar, que compreende
demais membros da família com algum tipo de parentesco (cunhada,
prima, sobrinha), mas que não residem na pousada, e o grupo dos vizi-
nhos, amigos, compadres, que são aqueles que moram nas proximidades
da pousada, podendo ou não ter vínculo familiar.

8 Estes conhecimentos se referem ao contato com pessoas de diferentes áreas, sejam elas hóspedes
ou que trabalham em instituições envolvidas com o turismo, ou com a Prefeitura Municipal.

182 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

O trabalho no turismo rural na região pesquisada está sustentado


nas bases tradicionais de divisão sexual do trabalho, cujas características
físicas são fundamentais para o seu entendimento, tendo em vista que é
ela que sustenta a identidade profissional de homens e mulheres no meio
rural, onde o homem é o agricultor e a mulher, mulher de agricultor,
como apresenta Carneiro (1998). Com o turismo rural, essa identidade
passa por ressignificações, contudo, ela não é substituída por uma nova,
mesmo que agora ela se reconheça como empresária do turismo rural.
Como empresária, ela reforça sua identidade como agricultora, talvez
pelo fato do turismo exigir isso, que acaba por se constituir parte do
produto turístico. Se antes do turismo elas eram donas de casa e mulhe-
res de agricultores, hoje elas são donas de casa, agricultoras/pecuaristas
e empresárias do turismo rural. Porém, cabe destacar que esta mudança
de caracterização do perfil profissional pouco muda na sua posição/par-
ticipação dentro da família. Ela continua sendo dona de casa e desem-
penhando trabalhos domésticos, e o homem segue sendo provedor da
propriedade em todas as suas instâncias produtivas.
Por um lado, o turismo rural permitiu maior visibilidade ao traba-
lho doméstico da mulher e reforçou a invisibilidade do trabalho feminino
na pecuária. A isso está relacionado o fato da pecuária ser definida como
atividade predominantemente masculina, estar relacionada com o uso da
terra, ou seja, ao campo, e também ao aumento das horas trabalhadas
pelas mulheres dentro da casa. Anteriormente à existência da atividade
turística, as mulheres “ajudavam” os homens na pecuária. Atualmente,
com o turismo, é praticamente impossível, pois elas não têm mais tempo
disponível para isso. As tarefas relacionadas ao turismo ocupam apro-
ximadamente quinze horas diárias de trabalho, inviabilizando a ida da
mulher para o campo. A ela são destinados trabalhos mais próximos ao
ambiente doméstico, como o trato dos animais e os cuidados da horta.
A ajuda que a mulher dedica ao homem na pecuária é dada por ele
no turismo rural. Na maioria das pousadas, o trabalho do homem é consi-
derado, tanto por elas como por eles, como “ajuda”, sobretudo quando diz
respeito às atividades realizadas dentro da casa. No entanto, há trabalhos
que são específicos dos homens, como os passeios, cavalgadas e limpeza
do pátio. As mulheres são as responsáveis pela maior parte das tarefas
realizadas dentro da casa, como a alimentação e a limpeza, fundamentais
na execução do turismo. Isso aponta para a proximidade existente entre as
tarefas desempenhadas no turismo rural com as tarefas domésticas, iden-
tificada também em outros estudos, como os de Nogueira (2004), García
Ramón, Canoves e Valdovinos (1995), Rivera (2000) e Brandth e Haugen

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 183


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

(2010a; 2010b), que demonstraram em seus trabalhos que as mulheres são


as que realizam a maior parte do trabalho no turismo e o maior número
de trabalhos combinados, com maior jornada de trabalho diário. Segundo
Rivera (2000, p. 161), as mulheres realizam cinco tipos de trabalhos dife-
rentes dentro da propriedade: “[...] o trabalho doméstico, o trabalho no
turismo, o trabalho agrícola, o trabalho para o autoconsumo e outra ati-
vidade remunerada”. Vallarino Pérez e Valiente (2000) também destacam
esta aproximação e consideram o turismo rural como uma ampliação do
trabalho doméstico das mulheres, pois este é realizado simultaneamente
ao trabalho doméstico, tendo as mesmas características, podendo elas
continuarem com sua atividade principal, que é a reprodução, ou seja,
a realização do trabalho doméstico para a manutenção da família. Para
Brandth e Haugen (2010a), essa continuação do trabalho doméstico para o
turismo pode resultar na permanência das tradicionais práticas de gênero
rural. Atrelado a isso, as mulheres podem realizar esta atividade dentro
do ambiente doméstico, podendo conciliar o atendimento aos turistas ao
dos familiares. Além disso, elas destacam a qualificação necessária para
desenvolver tais atividades, a mesma que elas necessitam para realizar
as tarefas domésticas, ou seja, o conhecimento popular adquirido com o
passar do tempo e passado de geração a geração.
No turismo rural, os resultados de nossa pesquisa apontam que as
mulheres são as responsáveis pela alimentação e tudo o que a envolve,
por exemplo, os cuidados com a horta (plantio e colheita dos alimentos),
trato dos pequenos animais (vacas e aves), relacionamento com os for-
necedores de matéria-prima para elaboração de alimentos utilizados no
turismo, e cuidados com árvores frutíferas, como as figueiras, matéria-
-prima para a figada, doce típico da região. O doce de figo, seja ele em
calda ou como figada, é uma prática social entre as mulheres das pou-
sadas mais próximas. Na época do figo, elas colhem o fruto e se reúnem
em uma das pousadas para a elaboração dos seus derivados. Depois, os
produtos são divididos igualitariamente, consumidos ou comercializados
no turismo rural.
Outro produto importante para o turismo e que é de domínio da
mulher é o queijo serrano. Algumas propriedades ainda produzem o
queijo, especialmente para o consumo na atividade turística, como prá-
tica cultural demonstrativa, e para a venda ao turista quando há exce-
dente. A produção do queijo envolve toda a família. Os homens, na sua
maioria, são os responsáveis por buscar as vacas no pasto e prepará-
-las para a ordenha, realizada pelas mulheres. Enquanto isso, a mulher
vai arrumando os equipamentos e utensílios necessários para a ordenha.

184 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

A ajuda do homem na ordenha é dada pelo número de animais. A mulher


é quem ordenha as vacas, às vezes, com a ajuda do homem, se o número
de animais for grande. Depois da ordenha, os homens retornam com as
vacas no pasto e organizam a estrebaria. Enquanto isso, as mulheres
destinam-se à casa do queijo (que em muitas propriedades já não existe
mais) para preparar o produto. A produção é demorada e envolve, ini-
cialmente, pelo menos uma hora de trabalho. Produzir queijo exige da
mulher cuidados durante o dia todo e por dias consecutivos, visto que é
necessário limpar e virar o queijo diariamente. Em uma das propriedades,
é o homem que produz o queijo, porém, este fez cursos de qualificação
para produzir melhor, tecnicamente, e outros tipos de queijo, isso não
quer dizer que o queijo que ele produza seja melhor.
Esse fato nos remete ao trabalho de Nogueira (2004), quando a
autora destaca três modalidades de turismo rural realizadas predomi-
nantemente pelos homens, e em nossa pesquisa encontramos exemplos
dessas modalidades: o primeiro é um pesque-pague e restaurante caseiro,
administrado somente pelos homens, onde as mulheres que trabalham
são contratadas; o segundo é um sítio, considerado um dos principais
produtos turísticos da região, no qual são desenvolvidas várias ativida-
des, como produção de café, leite, reflorestamento, e há também ponto
de venda de produtos coloniais, tudo administrado pelo homem, e, nesse
caso, as mulheres também são contratadas; a terceira é a propriedade do
seu José, que, impossibilitado de trabalhar na agricultura por problemas
de saúde, decidiu investir no turismo rural em um pesque-pague.
Esses exemplos são de empreendimentos de grande porte ou estão
associados a uma atividade masculina, como a pescaria. Entretanto, o que
fica mais evidente a partir dos dados é a relação existente entre qualifi-
cação e atividade produtiva. No momento em que a atividade passa a ter
caráter profissional, o homem busca a sua inserção e qualifica-se. Quando
é uma produção doméstica e de autoconsumo, é negócio de mulher reali-
zado a partir dos conhecimentos adquiridos durante a sua vida.
Ainda referente ao beneficiamento de produtos, são as mulheres,
donas de casa, que são as responsáveis pela produção de doces (chimias
e compotas), pães, bolachas, massas e licores, este último sendo dividido
com os homens, pois, como é considerada bebida quente, sua identidade
está relacionada ao masculino, assim como o carnear e fabricar produ-
tos derivados da carne, como o salame ou a linguiça. O beneficiamento
desses produtos é realizado por elas mesmas, pois, conforme seus relatos,
não confiam em outra pessoa para fazê-lo, fato identificado também nas
pesquisas de Villarino Pérez e Valiente (2000). Os achados de suas pes-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 185


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

quisas identificaram a alimentação como sendo atividade que exige mais


dedicação das mulheres, e é a única tarefa que não é delegada a outra
pessoa. Já a limpeza da casa, dos quartos e da roupa são atividades que
podem ser realizadas por outras pessoas, sob a supervisão delas. Quando
a elaboração destes produtos é feita fora da pousada, geralmente este
trabalho é realizado por algum membro da família. Essa participação
das mulheres no beneficiamento de produtos também foi identificada
nos estudos de Nogueira (2004). Segundo a autora, os principais produ-
tos vendidos com o rótulo de agroturismo9 estão relacionados com os
afazeres domésticos das mulheres, como o beneficiamento de alimentos
(doces, massas, bolachas, e outros), licores e artesanato. Já o trabalho dos
homens no agroturismo está relacionado à produção de vinhos, licores, e
ao artesanato em madeira ou pedra.
Além da alimentação, as mulheres são as responsáveis pela limpeza
da casa, que compreende atividades de camareira, limpeza geral (varrer,
lavar e encerar a casa). A limpeza da cozinha não é contabilizada aqui,
pois se relaciona com o preparo dos alimentos. Fato importante desta ati-
vidade é o aumento do trabalho, considerado por todas as mulheres como
um dos fatores de maior investimento do tempo, pois há necessidade de
manter diariamente a casa limpa. Quando há hóspede alojado, esse tra-
balho triplica, e isso justifica ser a atividade que mais emprega mulheres
temporariamente nas pousadas e, também, a que mais recebe ajuda dos
homens dentro da casa nas atividades relacionadas à limpeza da casa,
tais como encerar e lustrar.
Todas as pousadas são construídas com a utilização de madeira,
fato característico da região em função da existência de produção de
madeira e também pelo clima. Encerar a casa é atividade da mulher, já
o lustrar pode ser tanto delas quanto dos homens: “[...] hoje eu passo a
enceradeira, né, eu limpo as mesas, eu ajudo ela... antes não [...]” (Pedro).
Atrelados à limpeza da casa, estão a limpeza do pátio, cortar a grama,
varrer e cuidar das flores. Essas atividades são divididas entre homens e
mulheres. Hoje, as mulheres são tidas como as ajudantes, ficando prio-
ritariamente destinadas às atividades como varrer o pátio e cuidar das
flores, o que, segundo Brandth e Haugen (2010a), mantém a segregação
do trabalho por gênero. Com o turismo, essas atividades passaram a ter
maior participação dos homens e a serem consideradas por elas como
atividades secundárias. As atividades prioritárias relacionadas às mulhe-

9 Citamos agroturismo aqui devido ao fato de que a autora utilizou esta nomenclatura.

186 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

res são a alimentação e a limpeza da casa, as quais são consideradas as


“peças-chave” para o desenvolvimento do turismo.
Além dessas atividades, as mulheres realizam outras no turismo
rural, como as relacionadas com a administração e a gerência da ativi-
dade. Mas o que compreende a administração do turismo rural? Compre-
ende o planejamento das atividades a serem realizadas, as compras no
mercado, as reservas dos hóspedes e a contabilidade da atividade. Como
o turismo é uma atividade realizada dentro da casa, nesta circunstân-
cia, são as mulheres as mais envolvidas na administração das tarefas,
e isso está diretamente relacionado com o espaço onde essas atividades
ocorrem, logo, a administração do turismo também será. Cabe destacar
aqui que a administração está estritamente relacionada com a execução
e não com o pensar da atividade. O pensar envolve todos os membros da
família. Quando as atividades turísticas são feitas no espaço externo à
casa, como cavalgadas e passeios, estes ficam sob a responsabilidade do
homem, já que são eles que as executam, conforme relata dona Fernanda:
“[...] é que, assim, o Marcio é mais da cavalgada, e de receber os turistas
conversar, e essa parte de fazer comida e mandar na pousada é comigo,
o que que eu vou fazer no dia a dia é eu que decido, ele faz a cavalgada,
aí é com ele, o resto é comigo, e a parte da execução também é com ele,
assim conversar [...]”.
A fala retrata que não há um entendimento ainda do que com-
preende a atividade turística para essas famílias. Existe uma divisão de
tarefas oriunda da divisão tradicional do trabalho. A pousada é minha,
a cavalgada é dele, ou seja, as duas atividades não fazem parte de um
mesmo produto, são tratadas por eles como separadas, como sempre foi
dentro da estrutura de divisão sexual do trabalho. Isso nos faz pensar
que a mulher não está mais inserida na administração da propriedade do
que antes. Ela continua administrando o que é de seu domínio, a casa,
e o homem continua administrando o que é de seu domínio, o campo.
Essa constatação também foi evidenciada nos estudos de Rivera (2000),
segundo a qual não se observou uma mudança no sistema atual de divi-
são sexual do trabalho, porque a mulher continua dentro do seu espaço
físico habitual (a casa) e realiza as tarefas domésticas e reprodutivas,
mesmo que a atividade turística tenha produzido efeitos significativos
para as mulheres, como a valorização do seu trabalho, maior indepen-
dência econômica devido à sua contribuição ser mais visível, aumento da
qualidade de vida e da autoestima, obtida através do contato com outras
realidades sociais e atividades, como as burocráticas e administrativas.
Isso nos levaria a questionar sobre o papel do turismo nas relações de

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 187


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

gênero: afinal, este está mudando, ou até mesmo transformando a posi-


ção da mulher dentro da propriedade ou apenas reforçando esta posição,
agora na esfera pública? Os resultados trazidos aqui demonstram que há
uma mudança na divisão de algumas tarefas, sobretudo das domésticas,
mas que essa mudança pode ainda não ser suficiente para uma transfor-
mação no sistema de gênero.
Relacionada à administração, está a contabilidade. A maioria das
mulheres relata serem elas as responsáveis pela contabilidade, ou seja,
receber os valores dos turistas e ter o controle das contas. Porém, quando
questionadas se são elas que gastam esse recurso, a maioria respon-
deu negativamente. Elas ficam com o dinheiro e têm o domínio dele
enquanto está dentro da casa. No momento em que esse recurso vai para
o ambiente externo, elas já não têm mais controle sobre o mesmo. Elas,
por vezes, participam das negociações, no entanto, não decidem, mesmo
que a negociação envolva questões relacionadas à casa, por exemplo, as
reformas, a aquisição de equipamentos e utensílios domésticos, e também
a compra de alimentos. A decisão, nesses casos, é sempre combinada.
Essa combinação é feita no âmbito do casal quando não há filhos maio-
res, e quando há, é uma combinação familiar.
A compra dos alimentos é um fator importante para se destacar,
pois envolve a mobilidade espacial das mulheres rurais. Esta atividade é a
que possui menor envolvimento da mulher, sobretudo quando diz respeito
à efetivação da compra. São elas que fazem a “lista” das compras, o que
precisa e a quantidade, porém não são elas que vão ao mercado buscar os
produtos. Esse fenômeno está relacionado, especialmente, a dois fatores: a
mobilidade das mulheres, aqui materializado no ter ou não Carteira Nacio-
nal de Habilitação (CNH), e ao tempo que esta atividade exige pelo menos
um turno, pois todas moram a pelo menos 30 quilômetros do centro da
cidade, e o acesso é por estrada de chão batido. As mulheres que possuem
CNH planejam esse deslocamento para os dias em que não há hóspedes.
As que não sabem conduzir veículos automotores necessitam do auxílio
dos filhos ou do marido, sendo este um fator limitante, pois dependem do
tempo deles. Para Villarino Pérez e Valiente (2000), esta atividade é a que
as mulheres menos dedicam tempo, e isso tem várias razões: grande parte
dos produtos se tem em casa; outros são vendidos em feiras ambulantes;
e, quando é necessário ir à cidade, são outros membros da família que
o fazem. Outra atividade realizada pelas mulheres é o atendimento do
hóspede ao telefone para efetivar a reserva. Essa tarefa ficou destinada a
elas, porque permanecem a maior parte do dia dentro de casa ou em seus
arredores. De acordo com Villarino Pérez e Valiente (2000) e Brandth e

188 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

Haugen (2010a, 2010b), isso está relacionado também ao trato pessoal, ou


seja, a necessidade de ser simpática e atenciosa.
Assim, esse exemplo de administração da atividade turística pode-
ria muito bem desfazer convenções tradicionais de divisão sexual do
trabalho com base no gênero. O trabalho de gestão da pousada é, com
certeza, um grande salto na direção de mais poder e influência para as
mulheres na propriedade. “No entanto, vemos que ela é concebida, ou
recodificada, como qualquer trabalho doméstico ou trabalho de escritó-
rio e, assim, está sendo normatizada em termos de poder de relações de
gênero” (BRANDTH; HAUGEN, 2010b, p. 440).
Além da expressiva participação das mulheres no turismo rural,
não poderíamos deixar de mencionar a participação masculina, visto que
nosso estudo pretende compreender as relações de gênero no meio rural.
Os homens são considerados pelas mulheres e por eles mesmos como
“ajudantes” no turismo. A eles, como já dito, são destinadas tarefas rea-
lizadas no espaço externo à casa, como os passeios, as cavalgadas e a
limpeza do pátio. Os passeios são atividades tidas como mais esporádicas
do que a alimentação e a limpeza da casa, fato este que permite o envol-
vimento dos homens, já que eles não deixaram a atividade pecuária.
Caso o homem não possa realizar essas atividades, não serão oferecidas
aos turistas, mas raramente isso ocorre. A paisagem natural e o ambiente
rústico são complementados por essas atividades, e necessárias dentro do
produto turístico, sendo dificilmente realizadas por terceiros, exceto em
casos em que estes façam parte da família e do contexto da propriedade,
pois exige conhecimento e envolvimento com a história e cultura do
local, além do conhecimento ambiental da propriedade e do seu entorno.
Os passeios geralmente levam aos canyons10 e exigem organização
e planejamento, principalmente nos aspectos tempo e espaço. Os homens
também são os responsáveis pelas atividades de limpeza da parte externa
da casa, como corte e capina do pátio e seus arredores, bem como auxi-
liam as mulheres em atividades como fazer o fogo, buscar lenha para
o fogão e para a lareira, e tratar os pequenos animais. Assim como as
mulheres, os homens têm importante presença nas decisões relacionadas
com o turismo rural, em que tudo é combinado entre o casal, mas quem
geralmente decide é o homem.
Além do trabalho de homens e mulheres empreendedores, analisa-
mos no nosso estudo o trabalho contratado no turismo, e identificamos

10 Os canyons são os principais atrativos turísticos naturais da região. Localizam-se dentro do


Parque Nacional dos Aparados da Serra, área protegida.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 189


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

que as contratações são essencialmente de mulheres com vínculos de


parentesco, como primas, cunhadas, sobrinhas, ou, ainda, vizinhas. Elas
são contratadas como diaristas, ou seja, pessoas que trabalham por dia,
aquelas que não são casadas e não têm filhos permanecem na propriedade
por período mais longo, fato que permite que a mão de obra feminina
jovem seja contratada. Isso ocorre porque as propriedades são distantes
da cidade e também de outras propriedades, dificultando a mobilidade
das pessoas contratadas. A cidade não oferece trabalho para todos seus
habitantes, a não ser na época de colheita da maçã e da batata, período
em que muitas mulheres se envolvem no trabalho de colheita com seus
maridos ou pais, gerando uma renda extra para a família.
As mulheres no turismo são contratadas para realizar tarefas rela-
cionadas com a limpeza da casa, como passar cera, limpar os banheiros
e vidros, atividades que são consideradas mais demoradas e “pesadas”.
Além disso, cabe a elas o desempenho de funções de camareira e de auxi-
liar de cozinha. Como auxiliares de cozinha, elas preparam as saladas,
lavam e cortam legumes e lavam a louça. Essas atividades representam o
caráter doméstico da contratação do serviço no turismo, sem qualifica-
ção, esporádico e informal, sendo que as mulheres apenas reapresentam
o trabalho realizado por elas nas suas casas, que foi aprendido e passado
de mãe para filha sem qualquer qualificação profissional. Esse trabalho
é esporádico e tem caráter informal, o que o caracteriza como auxiliar
e hierarquizado. Um exemplo disso é a alimentação. A alimentação é
um dos principais produtos das propriedades turísticas, representando a
valorização social e cultural da pousada. Assim, esse alimento deve ser
preparado pelas donas da casa e não pelas mulheres contratadas, eviden-
ciando o caráter de hierarquia entre as mulheres trabalhadoras, relacio-
nado, sobretudo, à valorização desta atividade.
Mais uma vez, a contratação assume o caráter de ajuda, ou seja,
mesmo as mulheres que sempre foram consideradas como ajudantes na
agricultura continuam ocupando a mesma “categoria” quando são con-
tratadas no turismo, permanecendo ainda a divisão tradicional de gênero,
bem como para as mulheres empreendedoras, o trabalho das mulheres
contratadas é uma reapresentação do trabalho realizado em suas casas
e tem caráter auxiliar. Elas estão ali para auxiliar as donas das pousadas
e não para substituí-las. Além do caráter doméstico, o trabalho que elas
desempenham como diarista que não traz praticamente nenhum direito
trabalhista, por exemplo, férias, 13º salário, auxílio-maternidade, e outros,
bem como não recolhe a previdência pública, tornando-o extremamente
informal e relativamente precário. Muitas dessas mulheres, especialmente

190 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

as jovens, não possuem nota de fiscal de vendas do produto rural, situação


que as exclui, também, de seus direitos como agricultoras; no Capítulo 13,
é apresentada e discutida a previdência especial rural para as mulheres.
Para as mulheres jovens, isso é mais agravante ainda. Quando questio-
nadas se gostam de trabalhar no turismo rural, todas afirmaram que sim,
que é um trabalho bom de realizar, além de não exigir qualificação e gerar
recurso financeiro para elas e para a família. As mulheres estão aprovei-
tando seus conhecimentos adquiridos pelo trabalho doméstico desde a sua
infância em uma atividade profissional, que está inserindo-as no mercado
de trabalho rural, porém, no mercado de trabalho informal e arraigado
na divisão sexual tradicional. Porém, em nenhum momento foi manifes-
tada a vontade delas de continuar na mesma atividade e se qualificarem,
tornando-se assim profissionais da área.
Os homens também são mão de obra contratada pelo turismo, con-
tudo, em menor número e para atividades que possam ser aproveitadas
tanto para o turismo como para a pecuária, otimizando assim o trabalho.
Apenas uma propriedade contrata um homem com periodicidade maior,
para um número estipulado de dias por semana. Mesmo assim, esse não
possui vínculo empregatício com a propriedade. As tarefas realizadas
por estes “diaristas” são a limpeza do pátio, a preparação da terra para
lavoura e dos canteiros para a horta, o recolhimento de esterco, o apara-
mento da grama e a realização de algum tipo de reparo em equipamentos
ou na estrutura física da propriedade. Essas atividades são também consi-
deradas como auxiliares e são gerenciadas por algum membro da família,
geralmente homem: “[...] é, ele ajuda, ele não trabalha diretamente fixo
[...]” (João). O depoimento do entrevistado evidencia, novamente, o cará-
ter valorativo do trabalho. O trabalho é de ajuda, por isso ele não é fixo.
No momento em que este trabalho seja considerado indispensável, talvez
esse caráter também mude. O mesmo ocorre em relação ao trabalho das
mulheres contratadas.
Além do trabalho de diaristas, outro tipo de trabalho que é utili-
zado pelas pousadas, tanto para atender à demanda no turismo como
na pecuária, é a contratação de trabalho terceirizado. O trabalho ter-
ceirizado dá-se pelo beneficiamento de produtos utilizados no turismo,
como pães, bolachas, queijo, embutidos e doces, os quais são realizados
pelas mulheres; e pela contratação de horas-máquina,11 sendo que exe-
cutados pelos homens.

11 Horas-máquina é o tipo de serviço contratado utilizando máquinas agrícolas.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 191


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

Entretanto, vale destacar que o turismo rural permitiu a inserção


das mulheres no mercado de trabalho rural local, mesmo que informal.
No entanto, isso traz para a discussão se esta inserção está se dando
da forma adequada para estas mulheres, ou se não estaria reforçando
ainda mais o trabalho doméstico e sem valorizar o trabalho produtivo da
mulher rural. É reconhecido que se essas mulheres não estivessem tra-
balhando no turismo, ou estariam sem ocupação, ou estariam ocupadas
em atividades agrícolas sazonais, por exemplo, a colheita da maçã e da
batata. Assim como outros trabalhos agrícolas, o trabalho no turismo
rural continua sendo desqualificado e informal, sendo este caracterizado
como trabalho de “diarista”. Contudo, há que se destacar que o turismo
rural insere as mulheres no mercado de trabalho, sobretudo as contra-
tadas, e pouco os homens. O trabalho de homens é menos valorizado
nesta atividade do que o das mulheres, e, quando necessário, os próprios
homens das propriedades o desenvolvem, salvo naquelas propriedades
onde o homem está à frente da atividade turística ou quando a produção
pecuária exige muito envolvimento. A contratação masculina dá-se para
as funções agrícolas, já que estas, sim, são “coisa de homem”.
As mulheres mais e os homens menos, porém, ambos são funda-
mentais para o desenvolvimento do turismo nestas propriedades, sendo
que cada um tem uma função a ser desempenhada. Todavia, cabe aqui
ressaltar que a participação da mulher na execução das atividades turís-
ticas é maior do que a dos homens, visto que as atividades domésticas
são a base para o desenvolvimento da atividade turística. Isso nos remete
à coletânea de estudos organizados por García Ramón e Baylina Ferré
(2000), os quais destacam que o turismo rural é uma extensão do tra-
balho doméstico ou um trabalho doméstico ampliado, o que justificaria,
também, o envolvimento “natural” da mulher com a atividade. Quando a
unidade familiar identifica o trabalho no turismo como similar ao domés-
tico (elaboração de alimentos, atenção a terceiras pessoas, limpeza da
casa, etc.), se atribui imediatamente a mulher como a pessoa mais indi-
cada para se encarregar do trabalho (RIVERA, 2000).
Porém, há que se considerar que o turismo rural possibilitou maior
inserção das mulheres no mundo do trabalho produtivo e, consequente-
mente, maior valorização do trabalho feminino, ocasionando aumento da
autoestima, melhoria da qualidade de vida, maior autonomia financeira e
ampliação do ambiente de socialização. “O elevado grau de satisfação que
as mulheres apresentam com a inserção neste trabalho tem muito a ver com
a possibilidade de manter relação com diferentes pessoas, ver outros modo
de vida, ter com quem falar, ter a mente mais aberta” (VILLARINO PÉREZ;

192 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

VALIENTE, 2000, p. 190). Por outro lado, é possível identificar também a


ampliação do trabalho doméstico feminino, como já relatado, o que pode-
ria provocar um reforço a esse tipo de trabalho, ainda desvalorizado eco-
nômica e socialmente. Entretanto, cabe destacar que o turismo rural trouxe
mudanças no comportamento do homem quanto à execução de atividades
domésticas. Antes, eles não ajudavam as mulheres em nenhuma atividade,
hoje eles participam, mesmo que seja como ajuda, de boa parte das ativi-
dades domésticas. Brandth e Haugen (2010b) também identificaram essa
mudança nas suas pesquisas. Para esses autores, os homens estão mais
flexíveis e ajudando mais as mulheres nas atividades domésticas. Contudo,
a “[...] necessidade de ambos, marido e mulher, intervirem para acomodar
os convidados indica que o padrão de gênero comum nos casais rurais
está desestabilizado e isso abre possibilidades para transgredir conven-
cionais fronteiras de gênero” (BRANDTH; HAUGEN, 2010b, p. 435). Nesse
sentido, o trabalho no turismo rural estaria mudando o comportamento de
alguns membros e reforçando o de outros. Visto por outro lado, é possível
dizer que o turismo rural é uma semente que foi plantada visando a essas
mudanças, mas que ainda é necessário tempo para germinar e crescer.
Nesse sentido, cabe enfatizar que o trabalho das mulheres apre-
senta-se como indispensável para o turismo, tendo em vista que as ati-
vidades por elas desempenhadas para a família e para o turista são as
mesmas. O turismo, nas famílias pesquisadas, proporcionou aumento de
trabalho para os membros da família, o que resultou na necessidade de
contratar mão de obra externa à família, seja para o trabalho realizado
no turismo ou na pecuária.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos de gênero têm por muito tempo focado suas análises


nas diferenças relacionadas ao trabalho, seja urbano ou rural. Trazem em
seu debate dois conceitos que consideramos imprescindíveis para a nossa
discussão, que é a separação e a hierarquização, separação no sentido de
que há trabalhos de homens e de mulheres, e hierarquização no sentido
da valorização desses trabalhos. Essa divisão ficou evidente na nossa
análise, mesmo que com o turismo as práticas masculinas e femininas
continuam praticamente inalteradas.
Atividades de caráter masculino continuam sendo de responsabi-
lidade de homens, enquanto as de caráter feminino seguem predomi-
nantemente sendo de responsabilidade de mulheres. O que ocorre com
o turismo rural é uma reformulação nas configurações deste trabalho,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 193


Trabalho de Relações de Gênero no Turismo Rural

como o aumento de horas trabalhadas, de tarefas e de responsabilidades,


pois agora, além dos cuidados com a família, a mulher precisa dedicar-se
a outra atividade.
Algumas tarefas novas têm sido incorporadas como a administra-
ção de recursos humanos e econômicos, o contato com o público externo,
o que exige que elas sejam mais polidas, receptivas e, também, mais
cuidadosas na aparência física. Os homens, mesmo no turismo, são os
responsáveis por atividades identificadas como sendo masculinas, ou
seja, com a organização externa da casa, tais como a limpeza do pátio, o
trato dos animais, especialmente os cavalos utilizados nas cavalgadas e o
acompanhamento das trilhas ecológicas. O fato novo que ocorre é que os
homens passam a se inserir mais nas atividades tidas como domésticas,
e essa é a mudança sentida na organização do trabalho, pois isso sempre
foi visto como uma das barreiras na divisão sexual do trabalho a serem
transpostas. Os homens tiveram de reorganizar o trabalho na pecuária
para poder conciliá-lo com suas atividades no turismo, assim como as
tarefas das mulheres são de significativa importância para o desenvolvi-
mento da atividade turística atualmente.
Esta conciliação e/ou negociação é de ambos os lados, ou seja, as
mulheres tiveram que conciliar suas atividades domésticas com as do
turismo, e os homens tiveram que conciliar as tarefas na pecuária com
as do turismo. Porém, são as mulheres que desempenham maior parte
das tarefas no turismo, as quais são consideradas como uma extensão do
seu trabalho doméstico das mulheres. No entanto, a atividade apenas se
desenvolve se não trouxer prejuízos para o trabalho familiar, tanto para o
doméstico como para o da pecuária, podendo ser conciliado com estes, já
que nenhum é passível de abandono pelas famílias. O trabalho produtivo
da mulher está relacionado estritamente ao tipo de atividade realizada e ao
espaço onde é realizado, existindo uma estreita relação entre rural e famí-
lia, e entre produtivo e reprodutivo/doméstico. Talvez seja essa a grande
descoberta do turismo nestas propriedades, ou seja, que ele pode ser conci-
liado com as demais atividades, produtivas e reprodutivas, e ainda inserir
membros da família que não estavam ocupados produtivamente. A hierar-
quização é resultado (ou causa?) dos processos anteriores e é caracterizada
como “ajuda” e complementar. Assim como a mulher ajuda o homem na
atividade agrícola, o homem ajuda a mulher na atividade turística. Entre-
tanto, o caráter de ajuda do trabalho da mulher na pecuária perde espaço
para a valorização dada ao seu trabalho no turismo.
O turismo foi desenvolvido nestas propriedades, assim como na
maior parte dos estudos já realizados sobre a temática, é uma alterna-

194 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Raquel Lunardi, Marcelino de Souza, Fatima Cristina Vieira Perurena

tiva complementar à renda da atividade agropecuária. Em um primeiro


momento, o turismo supriu essa necessidade e passou, em um segundo
momento, a ser mais valorizado, agora como meio de socialização, sobre-
tudo para mulheres rurais. Para elas, o turismo rural representa mais que
uma fonte de renda, representa a valorização do seu trabalho domés-
tico, o qual é transferido para a valorização social delas próprias. Além
da valorização fora da família, há também a valorização da mulher por
parte dos membros da família, sobretudo do homem. O turismo rural leva
implícitos valores sociais e culturais, que significam mudanças nestes
âmbitos; há também uma forte valorização social a partir do convívio
com os turistas. Além disso, o turismo rural permitiu uma maior inser-
ção das mulheres no mundo do trabalho produtivo e, consequentemente,
maior valorização do trabalho feminino, ocasionando melhoria da auto-
estima e da qualidade de vida, maior autonomia financeira e ampliação
do ambiente de socialização.
Outrossim, mudanças importantes a serem destacadas são atribu-
ídas por homens e mulheres às atividades domésticas, ao contato com
o público externo, às formas de negociação e de conciliação das tarefas
domésticas com as produtivas, à visibilidade do trabalho da mulher, por-
que agora esse trabalho, que antes era somente doméstico, é remunerado.
O fato de as atividades domésticas serem pagas e representarem parte
da renda das famílias gera uma nova configuração simbólica sobre suas
vidas e sobre as relações sociais e familiares. No entanto, essas mudan-
ças não foram capazes de alterar a hierarquia e o status do trabalho
de homens e mulheres nestas propriedades, porque estas permanecem
ancoradas pela divisão sexual do trabalho tradicional, pela qual cada um
tem uma função a ser desempenhada no sistema de gênero patriarcal,
visto que as tarefas continuam sendo separadas e hierarquizadas. Assim,
concluímos que a tradicional divisão sexual do trabalho nas áreas rurais
permanece inalterada, mesmo que esta se apresente reestruturada a partir
da inserção do trabalho em atividades não agrícolas.

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CAPÍTULO 8

Gênero e agroecologia: os avanços


das mulheres rurais no
enfrentamento das iniquidades

Emma Cademartori Siliprandi


Emma Cademartori Siliprandi

1 INTRODUÇÃO

A ação política das mulheres agricultoras nos últimos anos no Bra-


sil tem chamado a atenção da mídia, das instituições acadêmicas e dos
próprios movimentos sociais rurais, que cada vez mais são obrigados a
aceitar que as camponesas são sujeitos políticos independentes, com rei-
vindicações próprias, as quais vão além do que vem sendo colocado pelos
movimentos rurais mistos. Por meio de marchas e ações diretas, assim
como de experiências concretas de produção, beneficiamento e comer-
cialização dos seus produtos, essas mulheres vêm mostrando que as rela-
ções de gênero no meio rural estão sofrendo mudanças. Cada vez mais
as mulheres agricultoras – em conjunto com seus companheiros e suas
famílias, ou mesmo em grupos formados apenas por mulheres – apare-
cem como dirigentes de associações e de cooperativas, vendendo para
instituições públicas, participando de feiras, recebendo financiamentos
em seu próprio nome, organizando e gerenciando grupos produtivos.
Esse papel ainda é relativamente novo. Apesar de as mulheres
rurais brasileiras terem um histórico de organização que remonta ao
período da abertura democrática (meados da década de 1980), somente a
partir dos anos 2000 é que conseguiram obter alguma visibilidade polí-
tica enquanto agricultoras/camponesas, e conquistaram reconhecimento
enquanto agentes produtivos no meio rural – papel que, por sinal, sempre
exerceram, apesar de tradicionalmente serem vistas apenas como donas
de casa. Em paralelo, ao longo dos anos, foram conquistando uma série
de direitos, tais como a aposentadoria especial como agricultoras, a titu-
lação conjunta da terra nos assentamentos de reforma agrária, assim
como outros programas voltados para o atendimento às suas demandas
como trabalhadoras, cidadãs e moradoras do mundo rural.
Em artigo publicado há alguns anos (SILIPRANDI, 2009b, p. 147),
analisei como a produção agroecológica estava sendo um dos campos em
que o protagonismo das mulheres aparecia com mais clareza, em função
de uma série de fatores, mas essa valorização não se dava de forma auto-
mática, como veremos em seguida:
a) O enfoque agroecológico valoriza as atividades tradicional-
mente desenvolvidas pelas mulheres (hortas, pomares, cria-
ção de pequenos animais, transformação caseira de produtos),
envolvendo-as necessariamente em várias etapas do processo
produtivo na unidade familiar.
b) A transição agroecológica muitas vezes é vivida pelos agricul-
tores e agricultoras como uma mudança radical no modo de se

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 201


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

relacionar com a natureza e com as pessoas, numa perspectiva


ética de cuidado com o meio ambiente e com os demais seres
humanos. Além de valorizar uma atitude geralmente atribuída
às mulheres (o cuidado), essa postura abre espaço para o ques-
tionamento de relações autoritárias.
c) A forma como se dá a transição agroecológica pressupõe a parti-
cipação de todos os membros da família, uma vez que esse pro-
cesso exige a integração do conjunto das atividades da proprie-
dade, muitas vezes sob responsabilidade de diferentes pessoas,
quebrando o monopólio gerencial do homem.
d) No período mais recente, passaram a existir pressões por parte
de entidades externas às famílias (Estado, ONGs financiadoras
de projetos, movimentos de mulheres rurais) para que as mulhe-
res estivessem presentes em maior número nos espaços onde as
propostas de apoio à transição eram discutidas, tais como cursos
e seminários.
e) A participação das mulheres em espaços públicos, principal-
mente onde se realiza a comercialização (como as feiras), per-
mite o contato com pessoas e grupos exteriores à propriedade,
assim como a aquisição de novos conhecimentos e habilidades,
possibilitando o reconhecimento social do trabalho desenvol-
vido por elas, gerando maior autoestima.
f) O fato de as mulheres poderem obter, por si mesmas, rendas mais
permanentes, recebidas por elas individualmente e fruto direto
do seu trabalho, tende a melhorar o seu poder de barganha den-
tro das famílias, permitindo avanços quanto à sua autonomia.

O termo “agroecologia” começou a ser conhecido no Brasil, assim


como em outros países, no final da década de 1980, a partir da publica-
ção do livro de Miguel Altieri, Agroecologia: Bases Científicas para uma
Agricultura Sustentável (2002). O termo passou a ter a conotação de um
conjunto de conhecimentos capaz de dar suporte científico aos processos
de transição para estilos de agricultura sustentáveis.
Durante as décadas de 1980 e 1990, assistiu-se em várias partes
do mundo ao surgimento de propostas que se contrapunham ao modelo
da Revolução Verde, baseado em grandes propriedades, uso intensivo
de insumos e tecnologia moderna e centrado no aumento da produti-
vidade. No Brasil, essas propostas foram encampadas por movimentos
organizados de trabalhadores rurais, pesquisadores, acadêmicos e técni-
cos da burocracia estatal, ainda que desarticulados entre si. Experiências

202 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

práticas de produção “alternativa” de vários tipos (ecológica, orgânica,


biodinâmica, natural) foram realizadas – muitas vezes sob auspícios de
organizações não governamentais. Herdeiro de propostas advindas da
contracultura e dos movimentos internacionais de contestação social
da década anterior (como os movimentos hippie, antinuclear, pacifista
e feminista, entre outros), esse campo de atuação foi se consolidando
e ganhou o nome de “agricultura alternativa” – tendo como espaços
privilegiados de articulação os quatro EBAAs, Encontros Brasileiros de
Agricultura Alternativa, que ocorreram entre 1981 e 1989 em diferentes
regiões do país. Na década seguinte, esse conjunto de experiências veio a
se unificar em torno das propostas da agroecologia, em contraposição ao
que passou a ser chamado de “agricultura convencional”.
O campo agroecológico no Brasil se formou, portanto, a partir de
diferentes sujeitos: (i) o Projeto Tecnologias Alternativas (PTA) ligado à
Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), o
qual deu origem a várias organizações não governamentais que ainda
hoje atuam em todo o país; (ii) movimentos de trabalhadores rurais: o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); os movimentos
sindicais “cutista” (ligado à Central Única dos Trabalhadores) e “conta-
guiano” (ligado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agri-
cultura); e (iii) setores da burocracia estatal federal, os quais iniciaram
a implantação de políticas públicas de apoio à agroecologia, principal-
mente após 2003 (exemplificados pela Política Nacional de Assistência
Técnica e Extensão Rural, sob coordenação do Ministério do Desenvolvi-
mento Agrário; e do Marco Referencial em Agroecologia, publicado pela
EMBRAPA) (LUZZI, 2007).
A Agroecologia é definida por seus principais teóricos como um
conjunto de disciplinas científicas por meio das quais é possível analisar
e atuar sobre os agroecossistemas, de forma a permitir a implantação de
estilos de agricultura com maior nível de sustentabilidade. O agroecossis-
tema é um tipo específico de ecossistema, modificado pela ação humana
através das atividades agrícolas. É uma unidade geográfica delimitada
em que se dão complexas relações entre as práticas agrícolas e o ecos-
sistema original. Para se entenderem essas relações, é necessário analisar
não apenas os fenômenos ecológicos que ali ocorrem (bioquímicos, agro-
nômicos), mas também as interações entre os seres humanos, sua história
e sua cultura.
No Brasil, o campo agroecológico pode ser visto também como um
movimento social, pois se organizou em torno de questões que ultrapas-
savam o foco apenas na tecnologia e passou a incorporar outros temas e

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 203


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

problemáticas sociais. Hoje, no país, esses movimentos possuem expres-


são nacional; estão articulados em redes de organizações de base, ins-
tituições de assessoria, movimentos da agricultura familiar, de consu-
midores, setores da academia e do próprio Estado. Trabalham em temas
variados, tais como: valorização do conhecimento popular; defesa do
rural como um modo de vida; preservação da cultura camponesa e da
biodiversidade; questões envolvendo gênero e geração; educação rural;
construção de novas relações com o mercado, com bases éticas e solidá-
rias; soberania e segurança alimentar, que incluem os temas dos trans-
gênicos, dos agrotóxicos, das sementes crioulas, da democratização do
acesso aos recursos naturais, da valorização da qualidade dos alimentos
e da produção para o autoconsumo (LUZZI, 2007, p. 16).
Uma das principais novidades trazidas pela agroecologia foi a
afirmação do protagonismo dos agricultores/camponeses/indígenas
como elemento central na construção de um novo desenvolvimento
rural. A perspectiva transdisciplinar, incluindo o “diálogo de saberes”
entre os conhecimentos científicos e o conhecimento popular, aparece
como uma exigência para a resolução dos problemas pertinentes à
temática agroecológica, dadas as premissas éticas nas quais se baseia.
O protagonismo dos agricultores (e das agricultoras) será central no
pensamento agroecológico basicamente em três aspectos: na constru-
ção das suas propostas técnicas, por conta da capacidade da agricultura
camponesa de coevoluir, respeitando os processos ecológicos; por sua
crença de que somente o modo de produção familiar/camponês/indí-
gena é capaz de garantir um desenvolvimento rural efetivamente sus-
tentável; e pelo reconhecimento da necessidade de promover o empo-
deramento desses grupos sociais, que foram marginalizados econômica,
social, política e culturalmente ao longo da história da humanidade
(SILIPRANDI, 2009a).
O fato de valorizar-se a agricultura familiar/camponesa/indígena
como elemento central em um modelo de produção agroecológico traz,
por um lado, uma série de possibilidades para a valorização das mulheres
na sua construção. No entanto, existem pesquisas que mostram que essas
transformações não são automáticas, havendo casos em que, mesmo com
o aprofundamento das práticas ecológicas no conjunto da propriedade,
quando há uma maior integração ao mercado, as mulheres tendem a
voltar a ficar à margem das decisões. Verifica-se, então, uma espécie
de paradoxo: as atividades que antes eram de domínio das mulheres
começam a ser controladas pelos homens, e elas perdem poder de bar-
ganha dentro das famílias, voltando a atuar somente como mão de obra.

204 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

São citados casos de hortas, produção de leite, doces, queijos, produtos e


atividades tradicionalmente femininas, as quais passam a ser do interesse
dos homens. Reconfigura-se, de certa forma, a divisão do trabalho dentro
da família – entre o que antes era considerado “trabalho de homem/
trabalho de mulher” –, mas a distribuição do poder entre os gêneros
permanece igual.
No contexto da agricultura familiar (de base ecológica ou não),
em que predominam formas patriarcais de organização social, o poder
sobre as decisões que afetam a família enquanto unidade de produção
e, também, enquanto núcleo de convivência tende a ser outorgado aos
homens, cabendo às mulheres um lugar subordinado. É exatamente a
questão do poder dentro e fora da família – cuja expressão maior é o
exercício ou não da autonomia por parte das mulheres – que começa
a ser questionada quando mais agricultoras se envolvem em atividades
para “fora da porteira” e participam mais ativamente das comunidades e
dos territórios em que vivem. No caso do “campo agroecológico”, é nítida
a tendência à maior participação das mulheres em atividades coletivas,
mas o processo de autonomia só se completa quando as mulheres
conseguem se organizar em grupos próprios e resistem à apropriação dos
“seus espaços” pelos homens.
Neste capítulo, em vez de fazer uma análise mais ampla dos pro-
cessos organizativos das mulheres rurais no campo da agroecologia (que
extrapolaria o tempo e o espaço disponível), optei por apresentar alguns
depoimentos de mulheres colhidos na pesquisa que deu origem à minha
tese de doutorado, defendida em 2009 junto à Universidade de Brasília
(SILIPRANDI, 2009a).1
Embora as mulheres tenham participado das experiências de base
ecológica desde o início desses movimentos no Brasil, elas sempre foram

1 A tese é centrada no estudo das trajetórias de vida de mulheres agricultoras participantes de


movimentos agroecológicos no Brasil, tendo como referência a Articulação Nacional de Agroe-
cologia (ANA). A ANA é uma rede da sociedade civil brasileira, criada em 2002, e que congrega
diferentes instituições de técnicos e agricultores, assim como representantes de movimentos
sociais. Foram entrevistadas, entre 2006 e 2008, lideranças de associações e cooperativas eco-
lógicas, de movimentos sindicais, de sem-terras, de quebradeiras de coco babaçu, de redes de
economia solidária, de entidades feministas, assessoras de organizações não governamentais,
abarcando diferentes tendências e grupos políticos em várias regiões do país. O objetivo era
evidenciar como, através das suas práticas sociais e também dos seus discursos, as mulheres
lideranças dentro da ANA vinham obtendo legitimidade para as suas reivindicações, e vinham
disputando, com outras forças políticas, espaço para o reconhecimento da existência de pontos
de vista próprios das mulheres sobre os temas da gestão ambiental e do desenvolvimento sus-
tentável. As entrevistas em profundidade foram realizadas nas casas das agricultoras ou ainda
durante encontros, cursos e seminários sobre o tema.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 205


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

minoritárias na sua coordenação. Isso fez com que, até o início dos anos
2000, as questões trazidas pelas mulheres não tenham ocupado um lugar
importante nas suas pautas políticas. No entanto, em várias partes do
país, algumas lideranças femininas foram teimosamente despontando e
conseguiram fazer-se reconhecer. Muitas delas, ao entrarem “na luta”
(quase sempre iniciando a sua participação em organizações religiosas
ou sindicais), incorporaram discursos e práticas centradas na autonomia
das mulheres.2
A proposta deste capítulo é examinar e refletir como as lideranças
femininas enfrentaram os obstáculos à sua participação na construção
da agroecologia – seja nas famílias, nas comunidades, nos movimentos
sociais – como exemplos das dificuldades que muitas mulheres enfren-
tam ainda hoje, e como o seu envolvimento com a agroecologia per-
mitiu a construção de uma visão alternativa do que seria um modelo
de desenvolvimento rural centrado nas formas familiares de produção
agrícola, mas com igualdade de gênero. Optei então por trazer alguns
depoimentos que ilustram em primeira pessoa as histórias e trajetórias
dessas mulheres.
A riqueza desses depoimentos está em mostrar o ponto de vista
de mulheres que ocupam um lugar privilegiado, por estarem vivendo
e refletindo sobre essas mudanças a partir de suas próprias práticas
e histórias de vida, misturando o pessoal e o coletivo, o familiar e o
político, a sua subjetividade e os condicionamentos sociais a que estão
submetidas.
Ainda que tenham se passado poucos anos desde a realização
daquela pesquisa, é importante salientar que algumas mudanças já vêm
ocorrendo. Essas mudanças podem ser percebidas, por exemplo, pelo
maior espaço que as questões das mulheres têm ocupado nos eventos do
campo agroecológico, pela criação de instâncias próprias de organização
de mulheres dentro de movimentos mistos, pelo aumento no número de

2 Na tese (SILIPRANDI, 2009a), mostraram-se como os caminhos de algumas lideranças femininas


se cruzaram com as histórias do próprio movimento ecológico brasileiro, de forma que ambos
– movimentos de mulheres e movimentos agroecológicos – passaram a alimentar-se mutua-
mente. A presença ativa dessas mulheres no seio dos movimentos formados majoritariamente
por homens provocou mudanças em ambos os sentidos: tanto essas organizações (de agriculto-
res e agricultoras) acabaram por incorporar alguns enfoques “feministas”; como muitos grupos
de mulheres que originalmente haviam se formado em torno de uma agenda “de gênero”, se
aproximaram mais das questões da sustentabilidade na agricultura. Nesse caso, principalmente
pelo viés da soberania alimentar, um conceito bastante caro às mulheres, dado o seu envolvi-
mento direto com os temas da saúde e da alimentação. Vale ressaltar que esses processos não se
deram sem resistências, principalmente quanto ao reconhecimento da autonomia das mulheres
por parte dos movimentos camponeses.

206 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

publicações dedicado ao tema (livros, teses acadêmicas, revistas, bole-


tins), assim como nos materiais audiovisuais produzidos pelos movimen-
tos (vídeos, cartilhas).3
Por outro lado, assiste-se hoje em dia a um aprofundamento das
lutas políticas dessas mulheres, para além das reivindicações de maior
visibilidade do seu trabalho. Ampliaram-se, por exemplo, as reivindi-
cações quanto à necessidade de criação de regras e estruturas especí-
ficas para o seu atendimento nas políticas públicas, tais como no Pro-
grama de Aquisição de Alimentos, no Pronaf-Agroecologia, entre outros.
Da mesma forma, aprofundaram-se as exigências de implantação de
medidas efetivas de prevenção e erradicação da violência contra as
mulheres no campo e na floresta – tema que ganhou importância com
a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006, com forte ressonância
entre os movimentos de mulheres rurais atuantes no país.
Certamente, a atuação política dessas e de outras lideranças
rurais femininas, assim como das organizações e movimentos a que
elas pertencem, aliada a uma maior sensibilidade às questões de gênero
por parte de setores públicos ajudaram a construir essas mudanças. Um
especial destaque deve ser dado para os Encontros Regionais e Nacio-
nais de Agroecologia, promovidos pela Articulação Nacional de Agro-
ecologia (ANA) e especialmente ao Grupo de Trabalho (GT) – Mulheres
da ANA na interlocução com o governo federal nesse período. Este
GT, criado em 2004 no âmbito da ANA, tem mantido uma capacidade
impressionante de articulação entre os movimentos de mulheres rurais,
que abarcam diferentes categorias sociais (agricultoras familiares,
assentadas, sem-terras, quebradeiras de coco, ribeirinhas, indígenas,
quilombolas), em todo o país.4

3 Para citar alguns exemplos: os Encontros Regionais e Nacionais de Agroecologia, promovidos


pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA); os Congressos Brasileiros e Latino-america-
nos de Agroeocologia, promovidos pela ABA-Agroecologia e pela SOCLA (Sociedad Científica
Latinoamericana de Agroecología); os encontros da Rede Ecovida; o Encontro “Diálogos e Con-
vergências – Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária
e Feminismo”, ocorrido em Salvador, em 2011; entre outros, que abriram espaços para debates,
painéis e oficinas sobre os temas de gênero e da participação das mulheres; em alguns casos,
havendo inclusive a implantação de cotas por gênero entre os delegados e delegadas. A bibliogra-
fia publicada sobre o tema também se ampliou muito no período, tanto editada por instituições
públicas (acadêmicas ou não), como por organizações não governamentais. Fazendo uma rápida
busca em sítios eletrônicos de vídeos, por exemplo, com os termos “mulheres+agroecologia” ou
“gênero+agroecologia”, encontram-se dezenas de títulos em português e em espanhol, produzi-
dos em vários países nos últimos anos, mostrando experiências protagonizadas por mulheres.
4 Para uma avaliação do processo de diálogo governo x sociedade civil que levou ao estabeleci-
mento de um conjunto das políticas públicas referentes às mulheres rurais no Brasil nos últimos
anos, ver Cintrão e Siliprandi (2011).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 207


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

2 AS DIFICULDADES PARA PODER PARTICIPAR


DENTRO E FORA DA PROPRIEDADE

Os caminhos trilhados pelas mulheres rurais para assumir qualquer


tipo de militância social não são fáceis. Como mulheres, elas enfren-
tam muitos entraves, seja na família de origem, nas novas famílias que
formam com o casamento, na sua vizinhança, no mundo institucional.
A lógica patriarcal deslegitima a participação social das mulheres em
espaços que não sejam os consentidos (a igreja, as associações recreativas
e filantrópicas, a família); para poder romper essas barreiras, elas têm
que usar diferentes estratégias, que implicam inúmeros custos, pessoais
e familiares. Para além das dificuldades normais sentidas pelo conjunto
dos camponeses, por exemplo, distâncias, falta de acesso a informações,
baixa escolaridade e descapitalização, elas enfrentam outras ordens de
empecilhos, específicas da condição feminina: a oposição de familiares e
vizinhos, a falta de apoio para ausentar-se de casa, o descrédito sobre a
sua capacidade, por serem mulheres. Essas questões também estão pre-
sentes no processo organizativo para a produção com base ecológica.

A primeira oposição foi dentro da minha família. Quando eu comecei


a me envolver com a Pastoral, ainda jovem, o pessoal lá em casa só
aceitava porque era coisa de igreja. (Izanete – RS).5

A gente leva muita crítica. Principalmente se você é o único da famí-


lia que tem essas ideias. O povo fala que você sai muito. [...] Outros
falam assim: mulher já tem tanto direito, não sei o que mais discutem.
(Efigênia – MG).

[Nas Comunidades Eclesiais de Base] também não foi fácil. A igreja


também é um espaço conservador. Lá mulher não podia ser nada, só
podia participar. Eu passei um tempão lá discutindo isso; por que as
mulheres não podem, e só os homens podem? Não era fácil, nem no
sindicato. Só tinha eu e uma outra companheira. (Zinalda – MA).

Quando eu comecei [a viajar para participar de reuniões e manifes-


tações], escutei até me chamar de mulher-da-rua. Teve homem que
me chamou assim, porque eu ia participar desses atos. Antes não era
comum [mulheres participarem]. (Neguinha – RN).

Vivi isso de escutar coisas horríveis, de humilhação. Quando eu fiquei


grávida, parecia que eu estava doente, incapaz, me tratavam assim.

5 Para mais detalhes, consultar Siliprandi (2009a).

208 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

Os meus colegas da direção do sindicato tinham filhos pequenos, mas


me cobravam: “Por que você resolveu ficar grávida agora?” Eles tinham
as mulheres que cuidavam dos filhos para eles. Fui chamada de irres-
ponsável. [...] Quando eu chegava tarde porque tinha filho doente, eles
me olhavam com cara feia. (Carmen – PA).

Os homens, nos movimentos, se incomodam com isso [a participa-


ção das mulheres]; soltam piada, dizem que a gente quer inverter os
papéis. Isso acontece em todos os espaços, até com os homens que a
gente diz que são parceiros. Eles têm medo da liberdade que a gente
possa ter. [...] Se eles veem uma mulher falando, eles dizem que a
gente quer ser mais do que eles. Eles dizem: “Vocês estão tomando o
nosso espaço”, como se o espaço fosse todo deles, como se a gente não
tivesse direito a ter um espaço nosso. Eles não podem nem pensar, por
exemplo, as mulheres “deles” [suas esposas] num espaço como esse.
(Neneide – RN).

Mulheres que são lideranças vivem uma forte contradição com rela-
ção ao seu papel de gênero: ao mesmo tempo em que se mostram fortes,
determinadas, e testemunham a existência de muitas outras igualmente
fortes ao longo da sua vida (mães, lideranças comunitárias, religiosas),
também sabem que esse lugar de protagonistas da própria vida não lhes
é assegurado a priori. É preciso uma série de “batalhas” para, permanen-
temente, conquistarem o direito de dizerem o que pensam, serem sujeitos,
agirem conforme as suas convicções.
Uma das questões mais fortes que recai sobre elas é a exigência de
darem conta, ao mesmo tempo, do trabalho da roça e do trabalho domés-
tico, em função da recusa da maioria dos homens em realizar essas ativi-
dades (incluindo cuidar dos filhos). Essa não é uma questão menor, por-
que limita a sua autonomia para participar de eventos fora de casa. Nos
casos em que os homens aceitam compartilhar esse papel, tudo parece
fluir mais harmonicamente. Elas usam mesmo o termo “libertação” – do
trabalho doméstico, das amarras da casa –; ou ainda “sair da cozinha”,
quando passam a ter acesso ao “mundo lá fora”. É uma questão funda-
mental e que está presente todo o tempo, porque está vinculada ao papel
das mulheres na divisão sexual do trabalho, e às hierarquias e, portanto,
ao poder dentro da família.
Outro componente crucial desse modelo de representações sociais
sobre o feminino e o masculino, motivo de questionamentos entre as lide-
ranças, é o que dispõe sobre o que deveria ser uma mulher “correta”. Pode-
ria ser resumido pela expressão: em qualquer circunstância, “obedecer ao
homem”, seja ele pai, irmão, marido, liderança do sindicato, da igreja.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 209


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

Existem várias formas de materialização dessa exigência, em particular, na


organização da unidade produtiva e da família no meio rural. Rebelar-se
contra isso pode ser motivo de muitas sanções, desde a responsabilização
por estar gerando “desarmonia” na família, passando pela desautorização
das suas opiniões, e até a violência física. Mas muitas dessas mulheres têm
consciência da importância de se questionar tal preceito.

É a questão do poder, nós fomos criadas para obedecer, e eles para


mandar. Quando eles acham que a mulher não está obedecendo, metem
o pau. É como se fosse assim “Eu mando, eu bato". É assim e pronto.
E como não tem ninguém por perto, a mulher vai aguentando. As
mulheres acham que foram criadas para isso: obedecer, obedecer, obe-
decer. E o pior, se ele bate, elas acham que deram motivo; foi porque
ela fez alguma coisa que ele não gostou; se cortou o cabelo, vestiu uma
roupa curta, falou com alguém. (Neneide – RN).

Eu vejo que até mesmo a igreja prega essa submissão das mulheres,
que as mulheres têm que ser submissas aos maridos. Se o marido diz
“Tu não vai”, ela não vai e pronto. Não vê que se ela for [participar de
alguma organização], se ela melhorar a sua condição financeira, vai
melhorar para ele também. O que ela vai trazer vai ser para a família,
não vai ser para ela só. (Zinalva – PA).

Os homens sempre foram muito machistas. Eles foram educados desta


forma, de que eles é que têm o poder, têm o direito, é ele quem grita
mais. Eles eram os senhores de tudo. A mulher só pode mandar da
porta para o fundo da casa. Para a frente, quem manda é o homem.
(Del – BA).

Elas sofrem muito com violência psicológica, todo dia. Elas ouvem
coisas depreciativas sobre o trabalho delas. Isso para mim é violência,
não precisa bater. É só não valorizar o trabalho que elas fazem, não
cuidar dos filhos. Se alguém se machuca, a culpa é delas; qualquer
coisa, se o filho vai mal na escola, tudo. (Inês – SC).

No caso específico da agricultura familiar, em que é fundamental o


acesso aos bens de produção para a sobrevivência das pessoas, torna-se
imperativo compreender o significado, para a vida dessas mulheres, do
fato de elas ocuparem um papel subordinado nas atividades produtivas.
Não é novidade dizer o que muitos estudos sobre as desigualdades de
gênero no meio rural já demonstraram, ou seja, via de regra, elas não
têm acesso à terra; quando têm, são pequenas parcelas, de pior qualidade;
têm menos acesso aos meios de produção, insumos, crédito, tecnologia.
Ademais, elas lutam muito para ver os conhecimentos que detêm serem

210 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

considerados importantes, suas ideias serem escutadas. Muitas vezes, o


que fazem dentro da unidade produtiva está sujeito à aprovação dos
maridos, ou pais, ou irmãos, que podem desfazer, inclusive, o que elas já
tenham realizado. Quase sempre são “eles” quem têm a última palavra.

A mulher trabalha muito, mas não tem o reconhecimento. Nem mesmo


ela tem esse reconhecimento do trabalho dela mesma. [...] O marido
acha que o dinheiro da roça é só dele; ele compra o adubo, e bota na
roça dele. Se ela pega um pouquinho para botar na horta, e ele desco-
bre, é aquela briga, porque ele acha que só pertence a ele, e que colocar
no quintal é desperdiçar. A mesma coisa com as ferramentas: eles não
deixam elas usarem os facões, o carrinho de mão, nada. É tudo deles.
Elas têm que trabalhar sem nada. (Del – BA).

Já aconteceu aqui de uma delas ter preparado o terreno, feito as mudas e


plantado uns pés de abacate no quintal; o marido veio, e cortou tudo. Sem
nem falar com ela. Ele desprezou o trabalho dela, só para mostrar que era
ele quem mandava. Ela contou isso pra nós com muita dor. Ele podou a
pessoa, não as plantas; passou por cima mesmo. (Luciano – BA).

A gente precisa lutar muito para ter autonomia econômica. [...] Essas
miudezas que elas trabalham, é tudo no pior cantinho, no lugar que
sobra para elas, nos barrancos, nos carrascos. Porque a terra boa os
homens usam para a soja, ou outra coisa para vender, e não tem
discussão. E aquilo que se planta para comer, que dá o sustento da
família, ninguém dá bola, isso não se valoriza no dia a dia da família,
e nem no banco, nem na assistência técnica. Só importa o que é do
homem. (Izanete – RS).

Os homens são considerados os “chefes” da família; controlam a


maior parte dos recursos financeiros, ainda que tenham sido obtidos (e
normalmente são) com a colaboração das esposas, das filhas e filhos,
além de outras pessoas da família que participam como mão de obra.
Como afirmam Silva, Ávila e Ferreira (2005),

O controle sobre a renda da propriedade [...] é um dos pilares que


sustentam a dominação masculina sobre as mulheres, seja por lhes
retirar o dinheiro do rendimento do seu trabalho, e, com isso, afetar
diretamente sua possibilidade de autonomia, seja porque permite ao
homem uma liberdade que só existe às custas da privação feminina
(SILVA; ÁVILA; FERREIRA, 2005, p. 85).

Na maioria das vezes, também são os homens que dominam as


informações sobre o que se passa na propriedade e fora dela, nas relações
com os bancos, com a assistência técnica. Muitas vezes, elas devem pedir

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 211


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

permissão para participar de qualquer atividade fora de casa; relatam que


eles tentam controlar a roupa que elas vão usar, em quem elas devem
votar, se podem ou não ir ao médico. Mesmo o veículo da família (carro,
moto) é considerado deles, elas não podem usar a não ser com o consen-
timento do marido/companheiro. E a lista das situações em que elas não
têm, a princípio, poder de autodeterminação não para por aqui.
Essas questões só começam a mudar quando elas se organizam de
alguma forma e começam a se insubordinar contra essas tentativas de
controle; mas, para isso, muitas vezes precisam saber que existe algum
tipo de coletivo que lhes dará suporte em caso de conflitos. Outro fator
de mudança são os programas públicos que reconhecem a titularidade da
mulher no recebimento dos recursos, como é o caso do Bolsa-Família e
da aposentadoria rural.

Aqui na região, quem coordena o recurso é o homem, e ela nem sabe


no que foi usado. Embora ela trabalhe até mais do que ele. Ela está
envolvida na produção, mas não existe isso de discutir na família:
“Como é que vamos fazer?” (Efigênia – MG).

Quando você começa a participar do movimento, isso transforma a sua


vida, porque você deixa de viver naquele mundinho que era só seu, e
você começa a perceber o mundo. Um mundo que você faz parte dele, um
mundo que você pode contribuir para transformar ele, e que você começa
a saber a importância que você tem nele. [...] Quando você não participa
de nada, você vive aquilo ali, você não se importa com um vizinho, com
as outras pessoas. Quando você sai dele, você começa a perceber que
outras pessoas precisam de você, que você tem algo para dar para outras
pessoas, que você pode estar transformando. (Neneide – RN).

Eu já recebi críticas de ser feminista, de defender as mulheres, de ser


advogada das mulheres. É preciso mesmo que as mulheres se reco-
nheçam, se valorizem. Tinha uma senhora no grupo que dizia assim:
“Antes eu me calava, eu não tinha coragem de nada, nem de me apre-
sentar. Eu tinha medo até de falar”. E depois que começou o grupo, ela
disse que aprendeu que gênero era isso, era não se calar. (Del – BA).

O pai é quem concentra tudo, nem a mãe vê o dinheiro. E as filhas, os


filhos, não conseguem receber nada. [...] Às vezes, ele é quem recebia
o dinheiro delas, elas nem sabem quanto tinham que ganhar. E depois
tem que pedir dinheiro para eles para qualquer coisa. Agora mudou
um pouco com o Bolsa Família, e com a aposentadoria. Esse dinheiro
fica com elas, e elas não deixam eles pegarem. Para poder estudar,
elas só vão se eles deixarem. Tudo tem que pedir permissão, e muitas
acham que isso é normal. Elas acham que ter ideias próprias é errado,
mesmo sendo adultas, tendo filhos. (Del – BA).

212 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

3 O SIGNIFICADO DA AGROECOLOGIA PARA AS MULHERES

As mulheres entrevistadas na pesquisa relataram ter tido diferentes


formas de aproximação com a agroecologia, em função da sua histó-
ria pessoal e de sua família, do tipo de relação que mantinham com as
entidades de assessoria e com os movimentos sociais, e do seu próprio
interesse e envolvimento com a questão. Todas elas, no entanto, relata-
ram que, no contato com as propostas agroecológicas, viram abrirem-se
novas perspectivas de relação com a agricultura.
Para as agricultoras que faziam a transição para a agroecolo-
gia em seu cotidiano, essa forma de trabalho mostrou-se mais atrativa
do que a agricultura convencional, como já comentamos no início do
capítulo, em função de vários fatores. Em primeiro lugar, porque repre-
sentava uma alternativa viável de melhoria nas condições de vida das
famílias, pois, em contextos de poucos recursos para investimento na
atividade agrícola, o fato de aproveitar mais intensamente o potencial
de cada agroecossistema, e de exigir menos gastos com insumos exter-
nos torna-se uma vantagem significativa, apesar do aumento da carga
de trabalho. Por outro lado, ao valorizar as atividades que já vinham
sendo realizadas pelas agricultoras, a proposta agroecológica oferecia
a essas mulheres a possibilidade de reafirmarem-se como sujeitos na
agricultura, exercitando a sua criatividade, a sua capacidade de obser-
vação e de experimentação. Também significava um compromisso con-
creto com a preservação do ambiente e com o modo de vida camponês.
Mesmo assim, muitas vezes enfrentavam situações adversas dentro das
próprias casas para poder implantar as mudanças produtivas em que
acreditavam.

A gente queria ir além de uma substituição de adubo, queria tudo o que


é a agroecologia. Queria ter um preço mais acessível para quem estava
comprando, sair dessa história de comercialização só para algumas
pessoas da classe média. A gente queria estar levando os nossos pro-
dutos para o público, para a feira livre, para as pessoas comuns terem
condições de comer também. (Neguinha – RN).

A decisão firme mesmo de trabalhar nesse sistema eu fui tomando no


decorrer da vida. Porque a gente trabalhava num lote de menos de 2
hectares, a vida toda, e essa terra estava morta, não dava mais nem
mandioca. A terra ficou de um jeito que nem mato não nascia mais.
Porque era tanto fogo, tanto adubo, tanto veneno pra formiga. A terra,
quando recebe assim tanta coisa, ela não aguenta, ela morre, porque
a gente mata todos os micro-organismos dela. Aí eu aprendi, pelo tra-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 213


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

balho com o SASOP [organização não governamental de assessoria] e


com o sindicato, que, quando uma terra começa a ter um sapé, ela está
pedindo socorro, e a gente começa a fazer uma cobertura morta, umas
plantas leguminosas, ela se transforma, ela reage, ela tem uma vida.
E eu fui observando. Porque para trabalhar nesse sistema, a gente tem
que ir observando, não adianta só trabalhar se não observar; a gente
vai sentindo o que está dando certo e o que não. Quando eu comecei
a ver, eu comecei a ter a segurança de dizer: a gente tem que ir por aí
mesmo, isso que vai dar certo. (Del – BA).

A gente trabalha desde o quintal até toda a propriedade, tudo. Se a


gente fizer só uma parte, não está sendo agroecológico. O quintal faz
parte, mas a roça também, é tudo um sistema. Até os animais fazem
parte, os grandes e os pequenos, tudo, os remédios, a ração. Em tudo
a gente tem que se livrar dos químicos e do mercado. Aproveitar tudo
o que a gente tem na propriedade, para não ter que comprar. [...]
Tem pessoas que só usam o orgânico no quintal; mas isso é porque o
homem não quer usar a agroecologia, porque o parceiro não quer, e ele
acha que a roça é dele. Então ela faz só no quintal, porque no resto ela
não manda, não é dela. (Del – BA).

Algumas mulheres acham difícil, eu mesma acho difícil, trabalhar o


dia todo, fazer uma broca, como eles trabalham. Das mulheres, só
temos a A. que aceita o desafio, e segura mesmo, trabalha o dia todo
junto com os homens. Em broca, em poda. Os SAFs [sistemas agro-
florestais] dela foi ela mesma que construiu. Do ponto de vista do
trabalho físico, do cansaço, é mais difícil trabalhar assim. Chega no
final do dia, a gente está com calos nas mãos, estourando sangue.
A A. sofreu muito. E sempre é mais difícil, não é só na implantação.
Exige mais esforço físico, a broca seletiva e a poda. Porque você tem
que subir na árvore, e cortar lá em cima, onde você não tem susten-
tação, não tem apoio. É um esforço danado. E também tem que ter
coragem. As pessoas fazem porque estão convencidas de que no médio
prazo vai valer a pena. Elas pensam: “Eu não preciso derrubar as
plantas, e no futuro, elas me ajudam”. (Zinalva – PA).

Uma parte das lideranças femininas chegou à agroecologia pela via


da discussão política e sindical e tende a entendê-la como inserida em um
modelo de desenvolvimento adequado às demais lutas sociais às quais já
estão engajadas. A agroecologia passa a ser defendida não apenas por
preconizar sistemas agroalimentares ambientalmente sustentáveis, mas,
sobretudo, por ser construída “de baixo para cima”, por buscar a redis-
tribuição de renda e de poder, e promover a justiça social. Às vezes, já
mobilizadas por outras questões relacionadas com as lutas pela sobre-
vivência da agricultura familiar, essas trabalhadoras tomarão para si a
agroecologia enquanto proposta de produção e consumo que simboliza a

214 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

resistência a um modelo produtivo considerado injusto, ao mesmo tempo


em que orienta uma utopia de sociedade rural a ser construída. Essas
lideranças tendem a defender que as lutas ambientais são mais facilmente
abraçadas pelas mulheres, em função, entre outros fatores, das suas atri-
buições de gênero, ligadas ao cuidado.

As mulheres são mais prevenidas do que os homens. São mais pre-


ocupadas com a questão ambiental que os homens. A gente, pela
convivência da conservação, de não poder fazer isso ou aquilo, a
gente sente mais na pele se a terra está sendo ofendida ou não.
Se a natureza, os recursos naturais estão ou não sendo abusados
pelos extrativismos. Nós e a palmeira, na qualidade de mães, somos
muito semelhantes. Porque aí agrega a qualidade de mãe com o pró-
prio ambiente. Esse ambiente é quem nos alimenta, é quem nos dá o
ar, é quem também tem suas riquezas e potencialidades. E a gente é
muito semelhante. Nessas questões é que eu acho que a gente é mais
prevenida. Eu quero viver, mas eu quero dar oportunidade; eu quero
viver, mas aproveitando a potencialidade e as coisas que nós temos.
(Zulmira – MA).

A discussão sobre transgênicos, por exemplo, foram as mulheres que


trouxeram, em 2000, na Marcha das Margaridas. Saúde também,
incluindo a questão dos agrotóxicos, e dos alimentos saudáveis, e tam-
bém a agroecologia. De 2000 pra cá, as mulheres têm trazido esses
debates para dentro da CONTAG [Confederação Nacional dos Traba-
lhadores na Agricultura] com muita força. Esses temas praticamente só
aparecem na pauta das mulheres. Estão na generalidade, no discurso,
mas só as mulheres é que têm discutido isso. A pauta da Marcha desse
ano [2007] está cheia dessa discussão. Do ponto de vista concreto, são
as mulheres que estão fazendo lá na ponta. Vamos fazer um levanta-
mento de experiências agroecológicas construídas pelas mulheres para
forçar o debate dentro da entidade. Queremos que as mulheres estejam
nas discussões onde se definem as estratégias do movimento sindical,
para poder dar mais relevo às questões da agroecologia. São coisas que
a gente tem que promover aqui dentro. (Carmen – PA).

Elas são muito mais conscientes, tanto nos grupos que eu participei
trabalhando, como nos que eu visito, no Brasil inteiro. As mulheres
têm muito mais consciência ecológica do que os homens. Acho que isso
se deve à questão do cuidado mesmo, de ser uma atribuição delas. Por
outro lado, a produção do quintal, das frutas, tudo isso é mais fácil
de trabalhar de forma orgânica, porque não é “o econômico”, é para
subsistência; não é aquele negócio só para vender. Tem alguns grupos
em assentamentos que trabalham com orgânico, onde têm homens e
mulheres, mas as mulheres estão muito mais nesses grupos do que os
homens. O problema é que ainda são experiências localizadas, que não
conseguem incidir sobre o geral. (Lourdes – CE).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 215


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

4 COMO PENSAR UM NOVO SISTEMA AGROALIMENTAR BASEADO


NA AGROECOLOGIA COM IGUALDADE DE GÊNERO?

As lutas de resistência em que os movimentos de mulheres rurais


estão envolvidos – por acesso à terra, ao crédito, à água, à assistência
técnica; enfim, por mudanças tecnológicas e de infraestruturas no campo
que ajudem a melhorar as condições de sobrevivência dos agricultores
– apontam para um objetivo comum: a construção de um modelo de
desenvolvimento que, no meio rural, apoiar-se-ia em outras relações de
produção e de apropriação da natureza.
Parte-se da avaliação de que o desenvolvimento do capitalismo
no campo, baseado na concentração da propriedade e da renda, tem
sido socialmente excludente, destruidor do meio ambiente e gerador
de dependência econômica perante grandes capitais transnacionais.
Em contraposição, propõe-se um desenvolvimento baseado em pequenas
propriedades organizadas em regime familiar, que produziriam alimentos
e outros produtos por meio de tecnologias ambientalmente sustentáveis,
o que permitiria todas as pessoas que trabalham na agricultura a viver
com dignidade e a realizarem-se pessoalmente.
Alguns movimentos sociais, como a Via Campesina, têm definido
esse modelo como sendo um “modelo camponês” – em contraposição a
outros movimentos rurais como o sindical, por exemplo, que defendeu,
durante muito tempo, a “inserção competitiva da agricultura familiar no
mercado” (CARVALHO, 2005, p. 21). Ambos os movimentos, no entanto,
contrapondo-se à noção de agronegócio: grandes propriedades, grandes
capitais privados, homogeneização da produção, exploração da mão de
obra mediante relações de assalariamento e/ou outras formas de submis-
são e expropriação dos camponeses e pequenos agricultores. Na defini-
ção de um modelo familiar, são incluídas todas as unidades de produção
autônomas existentes, sejam estas produtoras agrícolas ou extrativistas,
reconhecidas genericamente como “camponesas” (no caso da Via Campe-
sina) ou da “agricultura familiar” (no caso dos demais movimentos): pos-
seiros, parceiros, meeiros, pequenos proprietários, pescadores artesanais,
seringueiros, quilombolas, e tantos outros.

Os principais problemas hoje, do ponto de vista da ecologia, são: a


monocultura, as queimadas, o desmatamento, a destruição. Onde tem
agronegócio, você vê muita terra sem nada, o chão queimado, tudo
destruído. Destrói a diversidade, o ambiente, a água, a alimentação.
As mulheres também estão discutindo isso: o aquecimento global, por
exemplo. Às vezes, o povo vê na televisão e acha que isso não tem nada

216 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

que ver com a gente. Eu digo que tem: um pé de pau que você queima,
uma coisa que você destrói, tudo tem a ver. Um veneno que você bota
no seu pé de planta pode ir para um rio, para um riacho; são coisas
que a gente percebe que existem, que as pessoas fazem. (Neneide – RN).

Hoje, o mais importante é a questão ambiental, que atinge todo mundo,


o planeta inteiro, a vida, pois a gente pode resolver algumas questões
camponesas – a terra, por exemplo –, mas se o meio ambiente estiver
todo poluído, contaminado, nós vamos morrer igual. Então a luta é
bem maior. Claro que queremos barrar, sim, essa gente que destrói
tudo; mas não só barrar. É preciso que a sociedade tenha consciência
do porquê isso está acontecendo. [...] A gente não pode ficar só na
crítica, a gente tem que ter uma alternativa. Por isso, a campanha
de alimentos saudáveis. Se a gente não fizer diferente na prática, não
vamos ter como cobrar. (Izanete – RS).

Hoje, eu considero a agroecologia assim: é um movimento que traz


muito essa transformação da nossa realidade, da nossa vida, porque
a gente é agricultora, é outra relação com a terra. A gente aprendeu o
quanto a natureza é importante, o quanto você pode estar utilizando
ela, sem fazer mal a ela. A agroecologia vem exatamente para isso,
para mostrar que você pode tirar as coisas, dependendo do local em
que você está, pode utilizar aquele local sem queimar, sem prejudi-
car, e ir reutilizando. Você pode pegar uma folha que cai e fazer uma
cobertura morta noutro canto, e sempre estar devolvendo isso para o
ambiente, para o solo. Isso foi mudando a nossa vida, porque você vai
aprendendo outras práticas, que não é só tirar o fruto, não é só quei-
mar, plantar, e tirar, tirar, tirar até acabar. Você começa a ver aquela
terra como uma vida, você começa a estar cuidando dali. Não é só que-
rer que sempre ela lhe dê, mas que você também dê a ela. [...] Por outro
lado, com a economia solidária, você vai vendo que não é só o lucro
que é importante, que a gente pode produzir e também comercializar
de outra forma. (Neneide – RN).

A questão da agroecologia veio somar com as lutas e indagações que


os movimentos ambientalistas na Amazônia defendiam para poder se
contrapor às políticas do governo, que são de devastação, dos grandes
projetos. A gente já tinha uma aliança com os povos da floresta; a
agroecologia veio somar, embora a gente tenha também muitas diver-
gências. Muitos movimentos não têm o olhar da agroecologia como nós
temos. Nós, as quebradeiras, os seringueiros, as mulheres da floresta,
os movimentos indígenas, a gente se identifica mais entre nós, porque
a gente tem uma outra história. Os movimentos sindicais, por exemplo:
nós concordamos com eles na questão da economia, de que precisa ter
políticas de renda para os agricultores. Mas nós vamos além, a gente
tem que ver os impactos das políticas no ambiente. Nós, mulheres,
sabemos que têm projetos que não dá para conviver, mesmo que tra-
gam dinheiro para o agricultor; se for destruir a mata, a gente não

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 217


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

concorda. A gente questiona isso. O nosso conceito de agroecologia é


diferente. (Zulmira – MA).

Se, na visão delas, a construção de um modelo econômico, social


e político baseado em formas familiares de produção exige, estrategi-
camente, o enfrentamento com as políticas públicas e com as grandes
empresas transnacionais, como é o caso da luta contra os transgênicos,
os agrotóxicos, as redes de fast-food, os acordos comerciais internacio-
nais, também são necessárias ações no nível micro. Os enfrentamen-
tos serão de outra ordem, voltados aos próprios companheiros, para
transformar desde agora o próprio modelo “camponês” que vem sendo
discutido. Uma das questões levantadas, já comentada no item anterior,
diz respeito às atribuições de gênero, materializadas na divisão sexual
do trabalho e, particularmente, na execução dos trabalhos domésticos
e no cuidado com os filhos. A divisão sexual do trabalho no modelo
“camponês” terá que ser modificada, na visão delas, para que o trabalho
invisível que as mulheres hoje fazem seja considerado e melhor divi-
dido, e também para que as suas experiências e conhecimentos sejam
reconhecidos e valorizados.

É muita injustiça se só as mulheres ficarem com o trabalho dentro de


casa, além da roça. Por que o homem não pode cuidar de um menino,
fazer uma comida, lavar uma roupa? Tem homem aqui que não levanta
da cadeira nem para pegar um copo d’água. Se ficar tudo nas costas
da mulher, não funciona. A gente discute isso muito na Comissão [de
Mulheres]; não é porque sempre foi assim que tem que continuar, não
tem lei nenhuma que obrigue que isso seja assim. (Efigênia – MG).

Se a mulher é importante na agricultura familiar, por que ela não é


valorizada? A mulher é importante para manter a família lá, traba-
lhando, isso é necessário. Quando você coloca essa discussão, as pes-
soas vêm com perguntas assim: “Ah, mas se tu vai discutir questão de
gênero, evidentemente vai haver separações, divórcios, isso vai acabar
com a agricultura familiar”. Eu digo: “Se isso for o custo que a agri-
cultura familiar tem que pagar, se essa é a condição, não respeitar o
direito de cada um, de ir e vir, de viver a sua vida, então, paciência”.
É a mesma lógica que aceitar uma sociedade que faz a mutilação
genital, como dado de uma cultura. É você aceitar tudo acriticamente.
(Inês – SC).

Sempre achei que eu estava no lugar certo, como liderança, como


mulher. O mundo a vida inteira foi manobrado por homens, e a
gente chegou no ponto que chegou. E nós temos que ser compa-
nheiros, os homens e as mulheres. Eu sempre digo isso para os
companheiros: “Você pode ter a melhor posição do mundo, mas se

218 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Emma Cademartori Siliprandi

você não dialogar com a sua companheira, o negócio não vai para
a frente”. Isso reforça que tem que ter um diálogo, do gênero, do
homem e da mulher. (Zulmira – MA).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas mulheres estão se mobilizando politicamente em favor da


agroecologia a partir de sua identidade de trabalhadoras na agricultura
– tendo em conta, portanto, as tarefas que assumem na divisão sexual
de trabalho no campo, e o lugar que ocupam na estrutura social. Mas
isso não se faz de forma acrítica, aceitando esses papéis como dados e
imutáveis. Elas mostram que é possível construir, de forma coletiva, uma
militância feminina questionadora dos estereótipos da mulher submissa:
estimulando o seu senso crítico e combatendo a naturalização das desi-
gualdades de gênero.
Suas histórias podem ser esclarecedoras sobre como vêm sendo
gestados novos modos de pensar a sustentabilidade na agricultura, a par-
tir de um olhar feminino que não abre mão, portanto, de questionar o
lugar subordinado atribuído às mulheres na sociedade atual. A agro-
ecologia pode, sim, contribuir para a mudança das relações de gênero
no meio rural, mas para isso terá que respeitar e incorporar o que vêm
propondo essas mulheres.
A fala de uma das entrevistadas resume essa utopia a ser cons-
truída, em que as mulheres rurais participem em pé de igualdade das
definições dos rumos dos movimentos sociais, contribuindo para o seu
enriquecimento e sentindo-se parte integral de um processo de mudança.

Como eu me defino hoje: sou mãe, esposa, agricultora, e militante.


Não posso me ver sem ser assim. Sou uma pessoa, uma cidadã, que
luta para mudar o mundo. Essa é a minha religião. [...] Eu acho que
seria terrível minha vida se eu não pudesse acreditar no movimento,
na luta; eu não consigo me ver sem isso. E é principalmente uma luta
das mulheres, apesar de ser uma luta social. Porque eu estou dentro de
um movimento de mulheres, é um espaço privilegiado para poder levar
essa luta. A luta mais importante da minha vida é a luta das mulheres,
porque essa luta vê o todo. A gente luta por outro modelo, por crédito,
pela terra, para mudar a família. Eu posso estar enganada; tem gente
que diz que a gente faz “lutinhas”. Eu não concordo, porque eu acho
que o movimento de mulheres é muito amplo. Ele enxerga tudo: é
contra o capital, é contra essa organização de família que está aí, que
explora as mulheres, explora os filhos. O jeito de se organizar a família
também sustenta o capitalismo, que está explorando os homens e as
mulheres. É completo. [O Movimento de Mulheres] olha a natureza,

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 219


Gênero e Agroecologia: os avanços das mulheres rurais no enfrentamento das iniquidades

olha a vida como um todo, tudo o que está aí, sobre a Terra. A Terra,
que é o suporte da gente. A gente compara as mulheres com a Terra:
sem a Terra, não tem vida. E sem a luta das mulheres, não tem vitória,
não tem vida. E a gente diz também que sem feminismo, não há socia-
lismo. Pode até se começar um socialismo, mas não vai chegar muito
longe, porque daí a exploração vai continuar. (Izanete – RS).

REFERÊNCIAS

ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Guaíba:


Agropecuária, 2002.
CARVALHO, H. M. O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes do
desenvolvimento do campesinato no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2005.
CINTRÃO, R.; SILIPRANDI, E. O progresso das mulheres rurais. In: BARSTED, L. L.;
PITANGUY, J. O progresso das mulheres no Brasil 2003-2010. Rio de Janeiro: CEPIA;
Brasília, DF: ONU Mulheres, 2011.
LUZZI, N. O debate agroecológico no Brasil: uma construção a partir de diferentes atores
sociais. 2007. 182 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricul-
tura e Sociedade) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
SILIPRANDI, E. Mulheres e agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na agri-
cultura familiar. 2009. 291 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) – Centro
de Desenvolvimento Sustentável. Universidade de Brasília, Brasília, DF: UnB/CDS, 2009a.
______. Um olhar ecofeminista sobre as lutas por sustentabilidade no meio rural In:
PETERSEN, P. (Org.). Agricultura familiar camponesa na construção do futuro. Rio de
Janeiro: ASPTA, 2009b, p. 139-152.
SILVA, C.; ÁVILA, M. B.; FERREIRA, V. Nosso trabalho tem valor! Mulher e Agricultura
Familiar. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia; Movimento da
Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, 2005.

220 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 9

As mulheres nas agroindústrias rurais


familiares: a construção de mercado
e a especificidade da produção na
Região Central do Rio Grande do Sul

Chaiane Leal Agne


Paulo Dabdab Waquil
Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo tem como objetivo compreender qual é a função das


mulheres nas agroindústrias, destacando quais são as estratégias que
elas constroem para fidelizar consumidores. O foco da discussão sobre as
mulheres justifica-se pelo relevante papel que elas estão desempenhando
no desenvolvimento destas atividades. Uma série de estudos demonstra a
capacidade das mulheres na coordenação e acumulação de diversas fun-
ções na agricultura, que incluem ocupações relacionadas ao trabalho e à
família. Nas agroindústrias, as funções desenvolvidas pelas mulheres não
podem ser resumidas ao ambiente produtivo, pois elas estão ocupando,
também, um espaço importante nas atividades de negociação.
O papel que as mulheres ocupam na agricultura foi sendo modi-
ficado ao longo do tempo. Atualmente, a participação feminina é com-
plexa, não podendo ser resumida à fonte de trabalho complementar ao
masculino e tão pouco reduzido às funções de cuidar dos filhos e do
marido. A partir da década de 1970, mudanças relevantes foram desen-
volvidas. A atuação de movimentos e organizações sociais contribuiu
para a emergência de discussões sobre as desigualdades de gênero na
sociedade, conquistas dos direitos femininos e o crescimento de interes-
ses na realização de pesquisas sobre este tema.
A discussão proposta neste capítulo associa temas relevantes ao
desenvolvimento rural, quais sejam: o papel feminino nas atividades da
agroindústria e os mercados. Desenvolver alimentos industrializados a
partir do uso de produtos agropecuários é uma atividade que faz parte
da rotina das agricultoras familiares da região do Conselho Regional de
Desenvolvimento (Corede)1 Jacuí Centro, localizada na porção central do
estado do Rio Grande do Sul. As motivações que conduzem as mulheres a
iniciarem a industrialização de alimentos englobam dimensões econômi-
cas, sociais, históricas e culturais. O trabalho das mulheres nas agroindús-
trias faz parte de um conjunto de atividades da família, tais como: a produ-
ção agrícola e pecuária, as relações mercantis e sociais, os modos de vida,
experiências e trajetória familiar. Neste contexto, as mulheres são um dos
atores-chave no processo de emergência destas atividades, especialmente
quando a produção está associada com as tarefas domésticas.

1 Os Coredes – Conselho Regional de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul foram construídos


pela Lei 10.283, de 17 de outubro de 1994, através de mobilização social e institucional, com o
objetivo de identificar os problemas relacionados ao Desenvolvimento Regional, além de apro-
ximar a comunicação entre esta esfera e a administração pública (BANDEIRA, 1999).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 223


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

Porém, não é somente nas atividades de industrialização de ali-


mentos que as mulheres desempenham as suas funções nas agroindús-
trias. Elas possuem participação efetiva no processo de construção social
de mercados, que envolve a interação das mulheres com outros atores
sociais, tais como organizações, agentes de extensão rural, intermediários
e consumidores. Entender que os mercados são construídos socialmente
está relacionado às contribuições da nova sociologia econômica. As redes
sociais como um instrumento analítico auxiliam na compreensão sobre
como as mulheres inovam, diferem seus produtos e desenvolvem merca-
dos para os alimentos industrializados pela agricultura familiar.

2 A REGIÃO DO ESTUDO E METODOLOGIA DA PESQUISA

A região do Corede Jacuí Centro localiza-se na porção central do


estado do Rio Grande do Sul – RS – e abrange os municípios de Cacho-
eira do Sul, Cerro Branco, Paraíso do Sul, Novo Cabrais, Restinga Seca,
São Sepé e Vila Nova do Sul. Possui uma área territorial de 8.098,6 km²,
população total de 143.340 habitantes, sendo que 26% destes residem no
meio rural e 74% na área urbana (FEE, 2010). Nessa região, a agricultura
familiar representa 80% do total de propriedades, tendo como principais
atividades o plantio de grãos (arroz e milho), mandioca e a produção ani-
mal (pecuária de leite e de corte e galinhas) (INCRA, 2008).
A seleção das mulheres que participariam da pesquisa obedeceu
aos seguintes critérios: o desenvolvimento da atividade agroindustrial,
com base no conceito de Mior2 (2007); a comercialização da produção
agroindustrial para qualquer canal de venda (consumidor direto/inter-
mediário); e a vinculação com a agricultura familiar, ou seja, a gestão
e a produção coordenadas pela família (WANDERLEY, 2001). É conve-
niente destacar que os produtos gerados pelas agroindústrias podem
ter origem no beneficiamento e/ou transformação de produtos agros-
silvopastoris, aquícolas e extrativistas, incluindo o artesanato (BRASIL,
2004). Optou-se pela pesquisa com as agroindústrias rurais familiares
que produzem alimentos, embora possam existir unidades na região
que desenvolvem outros produtos cuja origem da matéria-prima é a
agropecuária, como o sabão, a vassoura, o algodão, a lã, os artigos de
couro e madeira, etc.

2 Com base na definição de Mior (2007, p. 10), “[...] agroindústria familiar rural é uma forma de
organização onde a família rural produz, processa e/ou transforma parte de sua produção agrícola
e/ou pecuária, visando, sobretudo, à produção de valor de troca que se realiza na comercialização”.

224 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

Foram entrevistadas 18 mulheres, nos municípios de Cachoeira do


Sul, Restinga Seca, Paraíso do Sul, Cerro Branco e São Sepé. As localida-
des de Vila Nova do Sul e Novo Cabrais não fizeram parte da pesquisa,
devido à presença de poucas unidades produtivas, segundo os dados do
Censo Agropecuário 1995/1996. É pertinente ressaltar que não foi defi-
nido, a priori, o número de mulheres que foram entrevistadas. A realiza-
ção das entrevistas seguiu os critérios de qualidade dos dados fornecidos,
grau de recorrência e divergência das informações. A decisão de cessar o
número de entrevistas seguiu o método qualitativo chamado “ponto de
saturação”. A saturação representa o momento em que não há geração
de novas informações e/ou pistas que possam indicar a necessidade de
realizar outras entrevistas (DUARTE, 2002).
A coleta de dados foi feita no período compreendido entre os meses
de maio e junho de 2009. Os instrumentos de coletas de dados foram: o
formulário semiestruturado de perguntas abertas, que foi aplicado por
meio de entrevistas; e os diários de campo (GARCIA FILHO, 1999; GIL,
2008). Foram elaboradas questões relacionadas aos produtos desenvolvi-
dos, agentes participantes dos processos de produção e comercialização,
canais e locais de venda, vantagens e desvantagens da comercialização
direta com os consumidores.
Para análise dos resultados, foi empregada a metodologia qualitativa
e quantitativa. A análise qualitativa serviu de suporte para a descrição do
conteúdo do texto, com base nos relatos das mulheres entrevistadas (aná-
lise de conteúdo). Neste método de análise, é desenvolvida a interpretação
do autor sobre uma determinada realidade social, considerando que esta
interpretação é formulada pelo pesquisador e não pelos sujeitos pesquisa-
dos (MARTINS, 2004). Na análise quantitativa, utilizou-se a distribuição de
frequências absolutas, além da média aritmética. Este método serviu para
representar os resultados no que se refere aos canais de comercialização
das agroindústrias. Foram coletadas informações sobre a participação por-
centual da comercialização de cada canal, por exemplo, vizinhos, parentes,
intermediários, organizações sociais, consumidores urbanos, de cada ARF.

3 OS MERCADOS SOCIALMENTE CONSTRUÍDOS


NA AGROINDÚSTRIA FAMILIAR

3.1 Contribuições da Nova Sociologia Econômica

A percepção diferenciada dos fenômenos econômicos em relação


como é vista pela economia neoclássica pode ser verificada pelas inter-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 225


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

pretações dadas por Durkheim, no livro The Division of Labor in Society


(1964), e em Weber, no segundo capítulo da obra intitulada Economy
and Society (1978). Teoricamente, essas primeiras discussões fazem parte
da Sociologia Econômica Clássica (SMELSER; SWEDBERG, 2005). Para
Smelser (1968, p. 62), a sociologia econômica pode ser definida como
“[...] a aplicação do esquema geral, variáveis e modelos explicativos de
sociologia a este complexo de atividades que se refere à produção, à dis-
tribuição, às trocas e ao consumo de bens e serviços escassos”.
Dentre os principais autores que atualmente fundamentam a socio-
logia econômica enquanto um campo teórico, destacam-se: Smelser
(1968); Swedberg (1991, 1998, 1999) Smelser e Swedberg (1996; 2005).
E, dentre as abordagens, ressaltam-se duas vertentes: a americana e
a francesa. Enquanto que os autores da vertente americana (Harrison
White, Brian Uzzi, Richard Swedberg, Mark Granovetter, Neil Fligstein,
Viviana Zelizer) concentram-se seus debates sobre enraizamento, redes e
construção social da economia, já os autores da vertente francesa (Pierre
Bourdieu, Luc Boltansky, Michel Callon) estão preocupados com o capital
social, as convenções e a teoria do ator-rede (ANT) (FONTELLA, 2009).
Uma das principais temáticas que envolvem as discussões teóri-
cas da sociologia econômica refere-se à compreensão sobre os mercados.
É comum encontrar nos textos de autores da sociologia econômica críti-
cas sobre a forma como a economia neoclássica define o mercado. Para
Polanyi (1980), a noção de mercados não pode ser resumida como equilí-
brio entre oferta e demanda, racionalidade ilimitada e informação perfeita.
O erro da economia neoclássica é desconsiderar a ação dos indivíduos e
de suas interações sociais como elementos que desenvolvem os mercados.
Neste sentido, de acordo com Schneider e Niederle (2008, p. 45),
“[...] os mercados deixam de ser percebidos como estruturas rígidas e
externas, e passam a ser vistos como arenas sociais resultantes das inte-
rações entre os próprios agricultores e outros atores”. O indivíduo está
enraizado (a palavra original em inglês é embeddedness) em um conjunto
de relações sociais que influenciam o seu comportamento e sua ação nas
atividades de aquisição, comercialização e produção de bens e serviços.
O interesse próprio e o cálculo racional utilizados na teoria econômica
neoclássica para explicar o comportamento dos indivíduos são substi-
tuídos nesta perspectiva pela motivação social e pelo interesse coletivo.
Como destaca Polanyi (1980, p. 61), o indivíduo

[...] age para salvaguardar a sua situação social, suas exigências sociais,
seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em

226 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

que eles servem a seus propósitos. Nem o processo de produção, nem


o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos rela-
tivos à posse de bens. Cada passo deste processo está atrelado a um
certo número de interesses sociais.

A discussão sobre a noção de embeddedness, proposta original-


mente por Karl Polanyi, teve continuidade com os trabalhos de Granovet-
ter (1985, 1973), fundador da nova sociologia econômica. A originalidade
do autor é a complementação a esta abordagem pela adição da noção de
redes sociais como um elemento teórico-analítico para compreender as
atividades econômicas.
É pertinente ressaltar que o autor propõe uma interpretação dife-
rente de duas formas de determinar o comportamento humano, fazendo
críticas tanto à economia como à sociologia, que ele denomina, respec-
tivamente, de abordagem subsocializada e supersocializada. Para Gra-
novetter (1985), a economia não é suficiente para interpretar o com-
portamento humano devido ao determinismo no modo de interpretar o
indivíduo como um ser que maximiza a sua utilidade. No que se refere
às críticas à sociologia, o autor destaca que a ação do indivíduo não está
unicamente determinada pelos costumes, hábitos e normas.
A proposta do autor, portanto, é a interface entre os dois pensa-
mentos (sociologia e economia), já que os indivíduos questionam, esco-
lhem, refletem e modificam os costumes, hábitos e normas, assim como
também possuem interesses econômicos (GRANOVETTER, 2007). Uma
das principais contribuições de Mark Granovetter (1985, 1973) refere-se
à discussão sobre os laços fortes e fracos na composição de redes sociais.
A proposição de análise dos fenômenos econômicos através de redes
sociais, especialmente a noção de laços fracos, consagra o autor como
precursor da nova sociologia econômica, diferenciando-o das contri-
buições da sociologia econômica. Para Granovetter (1973, p. 2), “[...] a
força de um vínculo é uma (provavelmente linear) combinação de tempo,
intensidade emocional, intimidade (confiança mútua) e os serviços recí-
procos que caracterizam os vínculos”.
Esta perspectiva teórica pode ser útil para compreender o funcio-
namento dos mercados na realidade da agricultura familiar, uma vez
que estes são organizados mediante relações que envolvem reciproci-
dade, parentesco, amizade e vizinhança, como será mais bem discu-
tido a seguir. As redes sociais constituem, nestas realidades, como um
mecanismo de ação coletiva, pois os atores compartilham objetivos e
interesses comuns.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 227


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

3.2 Agricultura Familiar, Agroindústria e os Mercados

Primeiramente, faz-se necessário apresentar uma breve contextu-


alização do uso do termo “agricultura familiar” antes de relacioná-la
com as atividades de industrialização de produtos agropecuários. É
comum o uso na literatura da expressão “categoria social” como forma
de representar as famílias de agricultores que utilizam a sua própria força
de trabalho nas atividades produtivas (SCHNEIDER; NIEDERLE, 2008).
A consolidação da agricultura familiar no meio acadêmico e político está
relacionada com a emergência de políticas públicas específicas, a partir
da década de 1990 (SCHNEIDER; MATTEI; CAZELLA, 2004; SCHNEIDER;
NIEDERLE, 2008).
É pertinente destacar que inúmeras noções do que se pode definir
como “agriculturas familiares” estão em jogo, tanto no aspecto teórico-
-analítico como no político-público. O que se pode afirmar é que as dife-
rentes definições teóricas encontradas na literatura relacionam-se com
a diversidade de trajetórias de inúmeros pesquisadores envolvidos nesta
temática, e traduzem as formas como os mesmos observam e interpretam
esta realidade social.
Um dos debates associados aos estudos sobre a agricultura familiar
relaciona-se com o campesinato. Uma das características que definem a
agricultura camponesa, para Mendras (1978), é a responsabilidade que
a família possui para organizar as suas atividades econômicas e sociais.
Entende-se que este aspecto é um elemento-chave para a compreensão
da agricultura familiar no Brasil, especialmente no que se refere ao seu
dinamismo em associar uma série de atividades, que vão desde a produ-
ção à comercialização e gestão das atividades produtivas.
As agroindústrias rurais familiares (ARFs) estão relacionadas a esta
discussão, uma vez que são atividades complexas e dinâmicas, já que os
agricultores e suas famílias executam (parcialmente ou totalmente) as
ações que compõem a cadeia produtiva, que vão desde a produção da
matéria-prima até a comercialização. Este acúmulo de funções por parte
dos agricultores familiares está relacionado ao processo de desenvolvi-
mento de estratégias que vão além das atividades agrícolas, e referem-se à
própria caracterização do que pode ser considerada a agricultura familiar
da atualidade (WANDERLEY, 2000). Este “novo” perfil da agricultura fami-
liar pode ser caracterizado pela diversificação de atividades agrícolas e não
agrícolas e pela constante interação com mercados dinâmicos e complexos.
Considerando que o sentido da noção de mercados proposta pela
sociologia econômica não está reduzido à interpretação sobre as relações

228 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

de compra e venda e tão pouco sobre o equilíbrio entre oferta e demanda,


outros aspectos são pertinentes nesta análise. O primeiro deles refere-se às
relações de reciprocidade entre os agricultores, em que as tarefas de pro-
dução e comercialização estão sendo organizadas através da ajuda mútua.
Os comportamentos dos indivíduos envolvidos nestes mercados não
estão reduzidos à forma como eles comercializam a produção, mas podem
ser explicados pelas próprias relações sociais, ou seja, pelo comportamento
coletivo. Abramovay et al. (2003) destacam a ineficácia das ações de orga-
nizações não governamentais (ONGs) no que diz respeito à elaboração de
estratégias para desenvolver os mercados para a agricultura familiar no
Nordeste. Algumas ONGs, na tentativa de comprar os produtos da agricul-
tura familiar por preços mais altos daqueles oferecidos pelos comerciantes
locais, nos quais os agricultores já tinham contratos informais, não obti-
veram sucesso. Esta fidelidade pode ser compreendida pela relação de con-
fiança entre os agricultores e comerciantes locais, assim para Abramovay
et al. (2003, p. 247) “[...] este comerciante, além de financiar o consumo de
sua família, preenche uma função social importante de atendê-lo no caso
de doença familiar, de um animal e não pode ser simplesmente substituído
por alguém cuja presença na região é inteiramente efêmera”.
Outro exemplo são as trocas. Para os agricultores familiares, as tro-
cas constituem mecanismos importantes para a reprodução social, pois,
através delas, é possível ampliar o acesso a bens e produtos que a família
necessita. A discussão sobre as relações de troca e agricultura familiar não
é nova. Essas relações já foram caracterizadas como um mercado para
Mendras (1978, p. 66), “[...] a sociedade camponesa organiza o essencial
da vida econômica no seio dos grupos domésticos: cada grupo doméstico
assegura a produção de certos bens alimentícios ou outros, que consome
ou troca por outros bens e serviços com outros grupos domésticos”.
Assim, as trocas, as relações de reciprocidade, amizade e paren-
tesco são elementos complementares para o entendimento sobre os mer-
cados nos quais estão envolvidas a agricultura familiar e, especialmente,
as agroindústrias rurais familiares. No conjunto de pessoas envolvidas
no processo de industrialização da produção agropecuária, alguns ato-
res têm se destacado como elementos-chave no desenvolvimento destas
atividades. É o caso das mulheres, as quais, em muitos casos, são respon-
sáveis pela fabricação de alimentos industrializados, organização, gestão
da produção e das atividades de negociação. A relevância do papel das
mulheres na agricultura e agroindústria é resultado de um processo em
mudanças, onde se destaca a atuação de movimentos sociais e políticos,
como será apresentado a seguir.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 229


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

3.3 O Papel das Mulheres na Agricultura


e nas Agroindústrias Rurais Familiares

Na agricultura, o trabalho feminino foi caracterizado como rela-


cionado à reprodução social da família. Os papéis das mulheres na dedi-
cação aos filhos e ao marido foram elementos que as caracterizaram
apenas como fonte de trabalho complementar às atividades masculinas
na agricultura (MEDEIROS; RIBEIRO, 2003). No entanto, percebe-se que,
ao longo do tempo, o papel desempenhado pela mulher foi sendo modi-
ficado. Os principais fatores dessas mudanças estão relacionados pela
emergência de movimentos sociais e organizações a partir da década de
1970, que reivindicaram direitos sociais às mulheres, tais como a sindi-
calização, documentação, direitos previdenciários e participação política
(SALES, 2007; SILVA, 2009). Esses movimentos contribuíram significa-
tivamente para o desenvolvimento de uma série de políticas públicas
para este público-alvo, e, dentre tantas outras, pode-se destacar a criação
de uma linha específica para as mulheres, o Pronaf-Mulher, dentro do
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)
(SILIPRANDI, 2011). No Capítulo 11 é feita detalhada discussão sobre o
Pronaf-Mulher e as políticas públicas sensíveis ao gênero.
Porém, é conveniente destacar que as relações de gênero e, mais
especificamente, o papel que as mulheres desempenham nas famílias
urbanas e rurais são desiguais (SILVA, 2009). E essa desigualdade tam-
bém pode ser observada em diferentes atividades que são desenvolvi-
das no meio rural, uma vez que as mulheres têm maior participação
nas funções relacionadas ao ambiente doméstico, no trato de pequenos
animais, na horticultura e no artesanato (SALES, 2007). A partir da
necessidade de geração de alternativas econômicas, as mulheres aper-
feiçoaram as funções que já desenvolviam e também buscaram novas
atividades, tendo em vista complementar a renda da agricultura. A par-
tir desta motivação, as mulheres iniciaram a desenvolver o turismo, o
artesanato, o lazer e a agroindústria, que se tornaram fontes de renda
familiar (LUNARDI, 2006).
Um dos elementos que favoreceram a valorização do trabalho da
mulher na propriedade rural refere-se à sua participação na industria-
lização de alimentos. Se antes a mulher era representada apenas como
uma força de trabalho eventual e complementar nas tarefas da lavoura
(atividades de liderança masculina), pode-se afirmar que, com a emer-
gência de agroindústrias, a mulher passou a ocupar um importante papel
na propriedade rural (NIEDERLE; WESZ JUNIOR, 2009).

230 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

No que diz respeito ao desenvolvimento de agroindústrias, as


mulheres rurais estão destacando-se como um dos principais atores neste
processo, especialmente no que se refere à emergência destas atividades
(NICHELE; WAQUIL, 2011). Sobre a realidade das agroindústrias da região
oeste de Santa Catarina, por exemplo, são as mulheres que realizam a
maior parte dos serviços de industrialização. Apesar da maior concen-
tração do trabalho para as mulheres, elas estão conciliando, ainda, estas
atividades com os afazeres domésticos (BONI, 2005).
Marchi et al. (2007), ao analisarem a divisão de trabalho entre
homens e mulheres nas agroindústrias do Sudoeste do Paraná, verifica-
ram que em 43% das unidades a mulher é responsável pelo desenvolvi-
mento das tarefas. De acordo com Passador, Rosa e Passador (2004), as
mulheres não estão somente coordenando as atividades relacionadas à
produção dos alimentos, mas também estão acumulando outras funções,
como as ações referentes à venda e negociação dos produtos da agroin-
dústria. Os mesmos autores destacaram, ainda, a habilidade das mulheres
no ambiente comercial do município de Londrina, no Paraná, onde elas
estão liderando o atendimento ao consumidor nas feiras da cidade. Esta
realidade é similar ao contexto das agroindústrias rurais familiares da
região metropolitana do RS, onde 79% das agroindústrias são lideradas
pelas mulheres (NICHELE; WAQUIL, 2011). Outro exemplo é a organiza-
ção destas atividades na região das Missões, também no estado do RS, as
mulheres estão ocupando um papel de liderança na atividade de produção
e venda dos produtos das agroindústrias (WESZ JUNIOR; TRENTIN, 2006).

4 AS MULHERES NA ATIVIDADE DE INDUSTRIALIZAÇÃO DE


ALIMENTOS: OS MERCADOS E O DIFERENCIAL DA PRODUÇÃO

Os resultados da pesquisa de campo mostram que a principal moti-


vação que conduziu as mulheres a iniciar a atividade de industrializa-
ção de alimentos diz respeito à oportunidade de construir alternativas de
renda. A possibilidade de incrementar as receitas da família e não depender
exclusivamente dos ganhos financeiros da venda de produtos agropecuá-
rios foi mencionada por 12 das 18 mulheres entrevistadas, correspondendo
a 66,7% do total da amostra. Para três mulheres, este interesse também
está relacionado com a motivação em desenvolver esta atividade como
uma forma de terapia e ocupação. Assim, percebe-se que, nestes casos, é
possível afirmar que há uma convergência entre os ganhos monetários e
de bem-estar, como pode ser observado no argumento das mulheres asso-
ciadas da COOPASA, uma cooperativa de quilombolas da localidade de São

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 231


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

Miguel dos Morenos, do município de Restinga Seca: “Nós começamos pela


família, pensamos nos jovens, nas mulheres... as mulheres sempre ficavam
sobrando e aí construímos essa cooperativa” (Agricultora 9).
A satisfação que a industrialização destes alimentos pode propor-
cionar às pessoas também foi um fator que motivou 7 mulheres (38,9%
da amostra) a dar início a essas atividades, sendo que 3 destas mulhe-
res enfatizaram que “o gostar do que faz e a terapia” foram os únicos
elementos que foram considerados quando elas tomaram a decisão de
investir na agroindústria. Esse argumento ficou evidente nas agricultoras
do município de Cachoeira do Sul: “Tenho muito carinho pelo que eu
faço, faço por prazer, eu gosto do que eu faço” (Agricultora 2). “Eu tenho
problemas de saúde e isso me faz bem, é uma autoajuda, ajuda numa
ocupação” (Agricultora 4). Outras motivações, como a oportunidade de
continuar a atividade que era desenvolvida pelos pais e avós e a indus-
trialização como um meio de aproveitar a matéria-prima agropecuária
excedente, também foram citadas.
É pertinente ressaltar que, ao analisar o tipo de produto desenvol-
vido, as mulheres estão liderando alguns setores específicos, especialmente
quando esta produção está associada com as tarefas do preparo de ali-
mentos para a família. Assim, a produção de panificados e confeitaria (9
mulheres), além de doces e geleias de frutas (9 mulheres) e derivados do
leite (8 mulheres) são os principais produtos em que a mulher destaca-se
na gestão e organização do negócio, conforme informações da Tabela 1.
Esta liderança no negócio também pode ser explicada pela relação
entre as atividades da agroindústria e a cozinha da família, já que 72%
utilizam a estrutura física da cozinha tanto para preparar as refeições
familiares, como também para desenvolver as atividades de industriali-
zação. Além disso, as atividades de confeitaria, panificados e produção

Tabela 1 – Produtos industrializados e número de mulheres líderes no negócio.

Produtos industrializados Número de mulheres


Panificados e confeitaria 9
Doces e geleias de frutas 9
Derivados do leite (queijo, ricota, nata) 8
Derivados de cana de açúcar (melado) 4
Embutidos e produção de origem animal 3
Outros (mandioca, mel, conserva de pepino) 6
Fonte: Elaboração própria a partir de dados de 2009.

232 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

de doces são tipicamente femininas, pois exige um trabalho minucioso


e detalhista, que é comum das mulheres. Essas atividades também estão
relacionadas com a tradição e história das famílias, como mencionam
Duval e Ferrante (2010, p. 8): “[...] produzir pães, bolos e doces caseiros
é uma atividade cujas receitas vêm de antepassados distantes, oriundas
de uma tradição de servir às famílias e que agora passa a ser um meio de
gerar trabalho e renda às mulheres rurais”.

4.1 A Atuação das Mulheres nos Mercados: os Canais de


Comercialização dos Produtos das Agroindústrias

De acordo com a Figura 1, pode-se observar que as mulheres uti-


lizam diferentes canais de comercialização para escoar a produção da
agroindústria. Em média, as mulheres comercializam 45% da sua produ-
ção para os consumidores urbanos, 29% para organizações sociais (coo-
perativas e associações), 8% para intermediários, 16% para vizinhos e
parentes. Nas relações de troca, vizinhos e parentes ora são fornecedores
de serviços ou matéria-prima para a agroindústria, ora são atores do pro-
cesso de troca de um produto agroindustrial por outro (agroindustrial ou
agropecuário). Embora, quantitativamente, as relações de troca não sejam
significativas para esta amostra, pois representaram apenas 2%, do ponto
de vista qualitativo elas são pertinentes, uma vez que é através dessas
relações que as mulheres conseguem mobilizar mão de obra, viabilizar a
industrialização e atender aos diferentes canais de comercialização.

Consumidores urbanos; 45%

Organizações sociais; 29%

Vizinhança e parentes; 16%

Intermediários; 8%

Relações de troca; 2%

Figura 1 – Canais de comercialização dos produtos das Agroindústrias Rurais Familiares.


Fonte: Elaboração própria a partir de dados de 2009.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 233


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

De acordo com o sentido no qual os mercados são interpretados


pela nova sociologia econômica, o conjunto de relações sociais que as
mulheres interagem não se reduz aos canais de comercialização. Além
dos agentes que estão participando dos canais de comercialização cita-
dos anteriormente, pode-se destacar a atuação de organizações não
governamentais, universidades, igrejas e órgãos de assistência técnica.
As mulheres, ao interagir com essas organizações, acessam informações
oriundas, por exemplo, dos cursos e palestras sobre a industrialização de
alimentos; das trocas de conhecimentos sobre a atividade produtiva com
outros produtores; e das organizações para aumentar a divulgação dos
seus produtos.
Essas interações oportunizaram, ainda, o aperfeiçoamento produ-
tivo e, em alguns casos, o aumento nos tipos de produtos desenvolvidos.
Quando questionada sobre a origem da fórmula do produto, uma agri-
cultora de Cerro Branco enfatizou a importância dos cursos técnicos e
da troca de conhecimentos com outros agricultores: “Fiz um curso em
Montenegro, pela EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural), muito bom. O grupo era grande e o professor era acessível. Nós
trocamos ideias com os outros produtores e também tiramos as dúvidas
com o professor” (Agricultora 15, Cerro Branco). Em outros discursos, se
percebem também as relações de comunidade e familiares como cola-
boradores do conhecimento técnico tão importante quanto às informa-
ções recebidas nos cursos fornecidos pelos órgãos de assistência técnica:
“A minha sogra era doceira, eu aprendi com ela. Mas, os vizinhos tam-
bém me ensinaram. Nos cursos da EMATER aprendi a fazer só os crista-
lizados” (Agricultora 18, São Sepé).
Outra questão pertinente refere-se ao acúmulo de funções ao longo
da cadeia produtiva. Sobre isso, 55% das mulheres entrevistadas afir-
maram que elas são responsáveis tanto pela produção e industrialização
como também pela venda dos produtos. O restante da amostra (45%)
declarou que há um conjunto de pessoas responsáveis pela comercializa-
ção e que a atuação dessas pessoas varia de acordo com a disponibilidade
delas para executar este tipo de serviço.
Dentre as mulheres que acumulam todas as funções ao longo da
cadeia produtiva, desde o processamento até a comercialização, o que
corresponde a 55% da amostra, duas delas enfatizaram que são elas que
possuem vocação para a atividade de negociação quando comparadas
aos seus maridos. A diferença entre o comportamento masculino e femi-
nino na negociação é ressaltada pela Produtora 17, de Restinga Seca:
“Eu gosto de negociar, meu marido não é como eu. Eu tenho uma visão de

234 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

negociante”. Este acúmulo de funções, para algumas mulheres, é empe-


cilho para ampliação de mercados, já que assumir o compromisso de
produzir e também comercializar não permite a elas atender a toda a
demanda. “Até tenho ideias para aumentar minha produção e comercia-
lizar mais, mas não posso, não tenho tempo. Sou sozinha, meu marido
está doente e meus filhos só me ajudam para me trazer até a cidade, mas
não produzem e nem vendem” (Agricultora 3, Cachoeira do Sul).
Esse acúmulo de funções nas atividades das agroindústrias gerou a
necessidade, por parte das mulheres, de criar estratégias para viabilizar o
acesso à zona urbana. Automóveis, motos, caminhoneta coletiva, carona
e ônibus são relatados como meios de transporte do produto. Destaca-se
a estratégia de uma produtora que comercializa cucas e pães em Cacho-
eira do Sul: na ausência de um sistema de transporte próprio, a produtora
se desloca semanalmente até a cidade através de ônibus e utiliza para o
transporte dos produtos na cidade um carrinho de bebê adaptado com
prateleiras, construído para facilitar a entrega de encomendas e a venda
de porta em porta. “Comercializo com um carrinho de bebê que adaptei
e coloquei umas prateleiras, e ainda coloco produtos numa sacola e levo
na mão”. “Venho uma vez por semana na cidade e não consigo atender a
todos, pois só eu comercializo” (Agricultora 4, Cachoeira do Sul).

4.2 A Arte das Mulheres na Negociação


e a Relação com os Consumidores

Do total das mulheres entrevistadas, apenas uma não comercializa


produtos diretamente para o consumidor. A relação das mulheres com
os consumidores, seja através da participação delas em feiras, eventos,
da realização de vendas de porta em porta e até mesmo nas suas pro-
priedades rurais, destacou-se como um importante ator para fortalecer
os canais de comercialização. Os mercados estão sendo construídos por
meio das relações face a face, com o contato direto entre as agricultoras
e os consumidores. Nesta forma de comercialização, o consumidor pode
adquirir informações sobre os processos produtivos, e as agricultoras
podem modificar seus produtos, tendo em vista manter a fidelidade dos
clientes e ampliar seus mercados. Em alguns casos, ainda, as agricultoras
e os consumidores são beneficiados economicamente neste tipo de troca,
tendo em vista que as mulheres conseguem obter o pagamento no ato da
venda do produto, enquanto que o consumidor pode negociar o alimento
por um preço mais baixo. Porém, é pertinente destacar que nem todas as
mulheres afirmaram que esta forma de comercialização é vantajosa.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 235


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

Não comercializa diretamente


para o consumidor; 1

Não faz diferença vender para


consumidor ou intermediário; 1

Quem tem vantagem


é o consumidor; 3

Vantagens e desvantagens; 3

Somente
vantagens; 10

Figura 2 – Opinião das mulheres sobre a comercialização com os consumidores dire-


tos: vantagens ou desvantagens nesta forma de venda
Fonte: Elaboração própria a partir de dados de 2009.

De acordo com a Figura 2, quando questionadas sobre a existência


ou não de vantagens na comercialização direta com o consumidor, houve
vários posicionamentos. Três mulheres afirmaram que os consumidores
são os que têm vantagens nesta forma de venda, já que eles possuem
oportunidade de adquirir o produto por um preço mais baixo e obter
conhecimento sobre a origem do produto. Para três mulheres, essa forma
de comercialização apresenta tanto vantagens como desvantagens. Duas
produtoras de Cachoeira do Sul relataram a necessidade de disponibili-
zar maior tempo na venda quando comparado à entrega dos produtos
em estabelecimentos comerciais e o trabalho necessário para atender aos
pedidos dos clientes por novos produtos. Dez mulheres mencionaram que
esta forma de comercialização apresenta somente resultados positivos,
quando comparada aos demais canais de venda (Figura 2).
É pertinente evidenciar alguns aspectos dos argumentos das mulheres
que destacaram que existem somente vantagens em manter contato com o
consumidor. Nesses casos, todos os discursos estão relacionados com a gera-
ção de benefícios sociais neste meio de comercialização. Assim, o entendi-
mento dos mercados nestas realidades está associado às ideias de Granovetter
(1985) de que toda atividade econômica é também uma atividade social. A
geração de conhecimentos, a troca de ideias, a interação com o cliente como
uma forma de distração são alguns elementos sociais que estão sustentando
a motivação das mulheres em continuar comercializando seus produtos dire-
tamente ao consumidor, como pode ser observado nos seguintes discursos:

236 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

[...] é mais fácil entregar para os consumidores porque eu recebo


elogios e o que não está muito bom, eu faço melhor. (Agricultora 4,
Cachoeira do Sul).

[...] porque se vende o produto e consegue passar para a pessoa como


tu faz. Nos mercados não se consegue fazer isso, mas assim eu posso
explicar como eu faço. (Agricultora 6, Restinga Seca).

[...] acho que é vantagem, porque a pessoa vê o produto, a pessoa que


está comercializando. Muitas vezes podemos até adquirir um conheci-
mento novo. (Agricultora 15, Cerro Branco).

4.3 Estratégias das Mulheres para Fidelização dos Consumidores:


a Diferenciação e Inovação dos Produtos das Agroindústrias

Entender o funcionamento dos mercados dos produtos das agroin-


dústrias também requer a compreensão sobre como as famílias organi-
zam o seu ambiente produtivo. As mulheres da região do Corede Jacuí
Centro estão associando o conhecimento e a experiência que adquirem
com o contato com os consumidores com as técnicas utilizadas na pro-
dução. Os consumidores, por sua vez, destacam-se como uns dos atores
que influenciam a ocorrência de mudanças na maneira como as mulheres
produzem estes alimentos. Neste sentido, eles podem ser considerados
como coautores do processo de produção nas agroindústrias, na medida
em que as mulheres consideram a opinião dos clientes quando acrescen-
tam novos ingredientes nas receitas, modificam técnicas e desenvolvem
outros produtos. Assim, a proximidade entre as agricultoras e os consu-
midores é um dos elementos que favorecem a ocorrência de inovações.
Esta assertiva pode ser observada nos seguintes discursos:

[...] se eles querem a rapadura redonda, eu faço. (Agricultora 16, São


Sepé).

[...] eu mudo o sabor conforme o consumidor, às vezes eu uso uma


receita diferente. Muitos consumidores não podem comer pão branco,
e querem comer pão integral, de centeio. O segredo é atender sempre
aos consumidores, fazer a vontade e as exigências deles. Atender e
produzir aquilo que eles querem, por exemplo: tem uns que querem a
cuca e pão mais corado, então tem que fazer de acordo com os gostos
de cada um. (Agricultora 3, Cachoeira do Sul).

[...] já me pediram a chimia diet, mas ainda não pesquisei e não sei
ainda como faz. A goiabada eu faço mais firme e mais mole, conforme
o consumidor quer. (Agricultora 6, Restinga Seca).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 237


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

Quando questionadas sobre quais aspectos estão diferenciando


seus produtos nos mercados, as mulheres relataram que os consumido-
res estão relacionando estes alimentos com o natural, com a utilização
de ingredientes da “colônia” e a isenção de aditivos químicos nas recei-
tas. Esses atributos conferem uma qualidade que é distinta de outros
produtos similares que podem ser facilmente encontrados em grandes
redes de supermercados, por exemplo. Em alguns momentos, as mulhe-
res também compararam os alimentos desenvolvidos por elas aos pro-
dutos encontrados em supermercados. Esta assertiva pode ser observada
nos comentários da Agricultora 17, da cidade de São Sepé: “O produto é
caseiro. É outra coisa produto caseiro. O do mercado é diferente, é duro,
não tem gosto. O que não puder comprar do mercado melhor, porque vai
muito corante. E o que puder fabricar em casa melhor. Os doces são da
própria fruta, é fruta caseira”. E, também, no argumento da Agricultora
4 de Cachoeira do Sul: “A cuca do mercado é pesada, dura e crua. É só
aparência”.
Percebeu-se, ainda, que os hábitos de alimentação das famílias e
os dos clientes são bastante similares. Essa consideração justifica-se pela
razão de que os produtos que as mulheres desenvolvem e comercializam
são os mesmos alimentos que elas e seus familiares também consomem,
como pode ser constatado no seguinte discurso: “As minhas bolachas são
macias, as do supermercado são duras, porque a nossa é natural”. Meu
filho até diz: ‘o doce de leite do supermercado não tem gosto, não tem
gosto de nada, e o teu é diferente’” (Agricultora 2, Cachoeira do Sul).
Alguns consumidores estão, também, relacionando a produção ao
local e à família produtora, especificamente às mulheres que produzem,
como mencionou a Agricultora 7, de Restinga Seca: “Eles chamam o
produto pelo meu nome, é o queijo da Dona Ilce”. Relacionar o produto
à agricultora é uma das formas que os consumidores estão utilizando
para identificá-lo e diferenciá-lo. Essas formas de identificação incluem
o sabor peculiar e a maneira pela qual ele é desenvolvido. Outro elemento
que se destacou nas entrevistas refere-se às características naturais de
algumas localidades rurais, que influenciam o desenvolvimento de pro-
dutos com aspectos específicos, como destacou a Agricultora 12 de Para-
íso do Sul: “O nosso melado é mais doce e mais branco. O gosto dele é
ótimo. É clarinho. Quanto mais claro, é melhor de comer. E o nosso dife-
rencial é que a terra ajuda. Mas, também, tem que saber mexer e parar
de mexer na hora certa”.
Desta forma, pode-se inferir que as mulheres constroem diferentes
estratégias para conquistar e fidelizar consumidores. A forma como o

238 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Chaiane L. Agne, Paulo Dabdab Waquil

produto é desenvolvido adquire importância nesta análise, uma vez que


são as características de diferenciação que aproximam as produtoras dos
seus consumidores. As mulheres da região do Corede Jacuí Centro são
agentes pertinentes no processo de construção de mercados dos produtos
das suas agroindústrias rurais familiares, na medida em que consolidam
relações sociais ao longo de toda a cadeia produtiva.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os debates que associam o papel das mulheres agricultoras, os mer-


cados e as agroindústrias são pertinentes ao desenvolvimento rural, tanto
do ponto de vista acadêmico quanto das discussões sobre políticas públi-
cas. As mulheres destacaram-se como um dos atores-chave não somente
na constituição das agroindústrias, mas, também, como agentes partici-
pantes da atividade de negociação dos alimentos. Embora esta temática
ainda não tenha sido suficientemente estudada, algumas observações
podem ser realizadas, principalmente no que diz respeito à mudança nas
relações de gênero. Se antes as mulheres eram responsáveis apenas pelas
tarefas relacionadas ao ambiente doméstico e como fonte complemen-
tar ao trabalho masculino na agricultura, atualmente, na realidade das
agroindústrias, se percebe que a mulher ocupa um espaço diferenciado e
cada vez mais complexo.
Esta complexidade está relacionada ao acúmulo de funções ao longo
do processo produtivo e comercial das agroindústrias, que exigem das
mulheres a busca de informações e novos aprendizados, no sentido de
acompanhar as diferentes necessidades dos consumidores. Na região do
Corede Jacuí Centro, as mulheres estão interagindo com uma série de ato-
res sociais, que contribuem para a consolidação dos seus mercados. E o
entender mercados como construção social significa compreender não só
os aspectos relacionados à venda destes alimentos, mas, também, todas as
ações desenvolvidas nos ambientes produtivo, comercial e de consumo.
Desta forma, a participação dos agentes nos processos de interação
com as mulheres explica a diferenciação desses alimentos e auxilia a
compreensão sobre como as inovações e mudanças estão sendo constru-
ídas nas agroindústrias. Ademais, a forma como as mulheres organizam
os hábitos de consumo familiar e as motivações para iniciar a atividade
de industrialização também são elementos de análise pertinentes para
compreender o processo de construção social de mercados. Disponibilizar
aos clientes o mesmo tipo de alimentos que as mulheres oferecem às suas
famílias consolida a confiança que os atores possuem na qualidade dos

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 239


As Mulheres nas Agroindústrias Rurais Familiares: a Concentração de Mercado
e a Especificidade da Produção na Região Central do Rio Grande do Sul

produtos das agroindústrias. Esse fato pode auxiliar no entendimento de


que os participantes desses mercados não estão exigindo que os produtos
tenham um selo ou um registro específico.
Outra característica desses mercados é a proximidade entre consu-
midor e agricultora. Em muitos casos, as mulheres percebem a atividade
como uma forma de associar satisfação pessoal com os ganhos econômi-
cos. Essa satisfação pessoal é completada na medida em que elas conse-
guem, além de produzir os alimentos, interagir com os clientes no ambiente
da venda. Nesta forma de venda, é possível receber elogios e ideias para
mudanças produtivas. Esta interação também oportuniza momentos de
conversa, troca de ideias com os consumidores sobre problemas diários,
não somente na área da agroindústria. Através desses aspectos, pode-se
destacar que o ambiente mercantil se confunde com o social, e que as
motivações econômicas não estão isoladas das outras esferas da vida.
Por fim, há outros elementos que podem contribuir para esta dis-
cussão, especialmente sobre os temas que associam relações de gênero,
políticas públicas e desenvolvimento rural. Um dos aspectos refere-se ao
conhecimento sobre o papel que as mulheres desempenham no gerencia-
mento da propriedade rural e da renda das agroindústrias. Embora não
tenha sido o foco deste trabalho, a análise sobre a autonomia das mulhe-
res nas agroindústrias deve abordar as suas funções em todas as etapas
da cadeia produtiva, inclusive nas suas formas de gestão. Pesquisas que
problematizam a autonomia das mulheres e a sua relação com os maridos
e filhos podem contribuir para a ampliação do conhecimento científico
sobre as relações de gênero no meio rural.

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 243


CAPÍTULO 10

O empoderamento da mulher:
um estudo empírico da feira do
produtor de Toledo, Paraná

Fabíola Juliana Rubim de Andrade


Yonissa Marmitt Wadi
Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

1 INTRODUÇÃO

Este capítulo discute alguns aspectos relacionados ao trabalho


de mulheres produtoras rurais e urbanas, moradoras do município
de Toledo, no estado do Paraná, que comercializam seus produtos na
Feira do Produtor local. O objetivo principal foi compreender em que
sentido as atividades ligadas a esta feira – produção e comercializa-
ção de diferentes produtos, como hortaliças, pães, doces, salgados,
embutidos, bordados, etc. – e, por conseguinte, a renda advinda deste
trabalho permitem algum tipo de empoderamento às mulheres que o
realizam.
O termo empoderamento, tradução da categoria em língua inglesa
empowerment, segundo Gohn (2004) e Baquero e Baquero (2007), tem
recebido definições variadas e, portanto, não tem caráter universal.1 Tem,
muitas vezes, sido definido “mais pela ausência – referindo-se a alie-
nação, impotência e desamparo –, do que pela presença de alguns dos
seus indicadores”, os quais, em sentido positivo, designam um “processo
por meio do qual pessoas, organizações e comunidades adquirem con-
trole sobre questões de seu interesse” (LAWSON, 20012 apud BAQUERO;
BAQUERO, 2007, p. 140), podendo cobrir “diferentes dimensões: a indi-
vidual, a organizacional e a comunitária (ISRAEL et al., 19943 apud
BAQUERO; BAQUERO, 2007, p. 140).
Considerando a complexidade do termo, neste estudo toma-se como
referência a definição proposta por Baquero (200644 apud BAQUERO;
BAQUERO, 2007, p. 142):

[...] o empoderamento, como processo e resultado, pode ser concebido


como emergindo de um processo de ação social, no qual os indivíduos
tomam posse de suas próprias vidas pela interação com outros indiví-
duos, gerando pensamento crítico em relação à realidade, favorecendo
a construção da capacidade pessoal e social e possibilitando a trans-
formação de relações sociais de poder.

1 Nos capítulos 1, 2 e 11 são discutidos outros autores que debatem e conceituam o empodera-
mento.
2 LAWSON, A. Freedom to be one’s self: Appalachian women’s perspectives on empowerment.
Blacksburg Virginia: The Virginia Polytechnic, 2001. Thesis.
3 ISRAEL, B. A. et al. Health education and community empowerment: conceptualizing and
measuring perceptions of individual, organizational and community control. Health Education
Quarterly, v. 21, p. 149-170, 1994.
4 BAQUERO, R. V. A. Empoderamento: questões conceituais e metodológicas. Redes, Santa Cruz do
Sul, v. 11, n. 2, p. 77-93, maio/ago. 2006.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 247


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

Partindo-se desta definição geral, busca-se entender as possibili-


dades de empoderamento das mulheres da Feira do Produtor de Toledo,
a partir de dois tipos de aquisição de poder, descritos por Oxaal e Baden
(1997): o “power to” ou “poder para”, que está relacionado a ter autori-
dade para tomada de decisões, poder resolver problemas, permitindo ser
criador de seus atos; e o “power within” ou “poder de dentro”, o qual se
refere à autoconfiança, à autoconsciência e às decisões dos indivíduos.5
Considera-se assim, neste estudo, a Feira do Produtor de Toledo
como um espaço social, onde não apenas são comercializados produtos
elaborados artesanalmente ou oriundos de produção agropecuária familiar
em pequenas propriedades, mas como um espaço que oferece possibili-
dades de mudança social, que se traduzem, no caso estudado, pela busca
dos sujeitos por mudanças na condição socioeconômica de suas famílias e
na sua própria condição, e também, especialmente no caso das mulheres
estudadas, nas relações de gênero. Considerando-se que o gênero é um ele-
mento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças perce-
bidas entre os sexos e um primeiro modo de dar significado às relações de
poder, ou seja, um campo/domínio primário no seio do qual, ou por meio
do qual, o poder é articulado (SCOTT, 1995), acredita-se, e esta foi a hipó-
tese do estudo, que, ao ocuparem o espaço da feira, as mulheres estudadas
se empoderam de diferentes maneiras, gerando mudanças no equilíbrio
deste tipo específico de relações de poder que são as relações de gênero.
A ocupação de novos espaços de trabalho, como a Feira do Produ-
tor de Toledo, pode estar relacionada à busca de reconhecimento profis-
sional e individual de mulheres, consideradas como mulheres “do lar” ou
“domésticas”, mesmo quando realizam inúmeras atividades importantes
para a manutenção familiar, atividades estas que garantem, inclusive,
incremento de sua renda (CUNHA, 2006).
Com o objetivo de discutir a questão anteriormente destacada,
apresenta-se na sequência deste capítulo uma breve história da Feira
do Produtor de Toledo, ressaltando suas características atuais em ter-
mos de organização e o perfil das/os feirantes, a partir de documentos
administrativos, questionários e depoimentos. Por fim, considerando-se
as informações levantadas através de entrevistas coletivas com homens
e mulheres feirantes e depoimentos individuais das mulheres, além da

5 Além destes dois tipos de poder, que configuram o empoderamento, Oxaal e Baden (1997) des-
crevem outros dois tipos: o “power over” ou “poder sobre”: este poder envolve um relaciona-
mento de dominação e subordinação; e o “power with” ou “poder com”: este tipo de poder
envolve as pessoas que se organizam com uma determinada finalidade e que possuem objetivos
em comum para poder conseguir objetivos coletivos.

248 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

observação participante, são discutidos aspectos de seu cotidiano e traba-


lho, procurando compreender as dimensões do empoderamento.

2 A FEIRA DO PRODUTOR DE TOLEDO

Toledo é um jovem município com pouco mais de 50 anos, cerca de


120 mil habitantes e muito urbanizado. O seu desenvolvimento ocorreu em
torno das pequenas propriedades rurais em regime de policultura, ou seja, em
torno da produção da agricultura familiar, que gerava os bens necessários à
subsistência da família de forma dinâmica, diversificada e autossuficiente,
sendo o excedente destinado ao mercado para suprir as necessidades não
atendidas pela produção agropecuária. Porém, com o processo da moderni-
zação da agricultura iniciado na década de 1970, surgiram novos modos de
produzir e, consequentemente, houve uma mudança na estrutura da região,
principalmente na metade desta década, constituindo-se propriedades rurais
maiores, nas quais passou a predominar a monocultura, bem como ocor-
rendo migração rural para as cidades. Mais recentemente, intensificou-se
a revalorização da produção diversificada com a finalidade de aumentar a
viabilidade econômica das pequenas propriedades que não têm condições
de seguir o padrão de produção de commodities, principalmente a soja.
Neste sentido, a criação de uma feira livre6 apresentou-se em
Toledo, como em outros municípios da mesma região,7 como uma alter-
nativa para viabilizar economicamente as pequenas propriedades fami-
liares, ao facilitar a venda de um conjunto de produtos nelas gerados,
oriundos tanto diretamente da agropecuária, quanto da produção arte-
sanal. Na feira, a produção é vendida diretamente ao consumidor, o que
aumenta a margem de lucro dos produtores por não haver interferência
de intermediários. Ao mesmo tempo, a feira é destinada à venda de pro-
dutos no varejo, ideal para os pequenos produtores.
Não há registros escritos de quando começou, como foi organi-
zada e onde se localizava a feira livre de Toledo. No entanto, a memória
de algumas feirantes, como das senhoras Maria e Lúcia, torna possí-
vel conhecermos aspectos de sua trajetória desde os primeiros tempos.
Segundo a Senhora Maria,8 a feirante mais antiga em atuação na feira:

6 Sobre a organização de feiras livres, ver Ribeiro (2007) e Sousa (2004).


7 Sobre as feiras livres na região oeste do Paraná, ver Pagliarini (2009).
8 Como grande parte das feirantes entrevistadas não quis ser identificada, optou-se por nomeá-las
através de codinomes. Mantiveram-se os nomes completos dos demais entrevistados não feiran-
tes, pois estes não se opuseram.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 249


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

Há trinta anos mais ou menos fizemos nossa primeira feira. A pri-


meira feira era aqui mesmo nesta mesma rua [15 de novembro, atrás
da Catedral], aí tinha o William, da EMATER, daí nós fizemos feira
de peixe eu e a minha irmã. Daí depois nós continuamos e começou
a entrar outra feira, daí nós fizemos ela aqui um tempo, daí mudou,
entrou mais gente e fizemos ela perto do Hospital Campanholo. Lá
tinha umas trinta barracas de novo pois aumentou, daí nós saímos
de lá por causa do terreno que era na rua e fomos lá para o lago, que
agora é a SENAI. Daí nós tínhamos lá barraca fixa também, continuou
com mais ou menos trinta feirantes também. Daí depois nos saímos de
lá pois a SENAI queria ocupar o terreno. Daí nós fomos para a J. J.
Muraro, daí a prefeitura construiu um pavilhão lá, aí fizemos lá. Lá
não deu certo porque o movimento era aqui e o povo não ia lá comprar,
daí ficou bem fraca a feira e foi meio falindo, uma turma desistiu, uma
continuou, daí nós voltamos de novo aqui sábado de manhã nesta rua,
daí nos éramos entre nove barracas, daí continuamos aqui [fazendo
referência à Rua XV de Novembro atrás da catedral].9

Mais detalhes sobre os lugares da cidade de Toledo onde funcionou


a feira, nas décadas de 1980 e 1990, foram dados pela Senhora Lúcia per-
mitindo-nos conhecer também as mudanças que ocorreram neste período
de tempo, fruto de movimentações e demandas diversas, e que levaram a
configuração contemporânea da feira:

Bem, na verdade, eu conheço a feira desde 1982, mas eu não partici-


pava como feirante, pois eu vendia verdura, mas não na feira. Comecei
a vender na feira em 1992, quando o pessoal da EMATER me convidou
para participar da feira. Mas o que eu conheço da feira, ela era aqui
na [Rua XV de Novembro] de 1982 a 1984, com cerca de 3 ou 4 fei-
rantes que aguentaram ela no sábado de manhã, mas não dava quase
ninguém. Daí a Prefeitura entrou e fez um trabalho em cima chamando
mais feirantes e, em 1988, ela mudou para ao lado do Colégio La Salle,
aí tinha umas 30 barracas, aí ela ficou bem forte e ficou ali durante
um ano, um ano e pouco. Daí os feirantes não estavam gostando de
fazer a feira ali na rua e pediram um barracão para a prefeitura, que
ficava ali onde é o shopping, mas ali não deu certo. Aí os feirantes
foram saindo e ficou a metade e os clientes não iam comprar também.
Devido a isso, os feirantes resolveram formar uma associação de ver-
dureiros e passaram ela [se referindo à feira] de 1990 a 1998 para a
J.J. Muraro. Daí nesta época eu entrei e nós nos reunimos de novo e
decidimos passar ela aqui no sábado de manhã, onde estamos até hoje.
Mas no sábado de manhã também não dava muita gente e aí a feira
reduziu muito o tamanho, pois ninguém conseguia vender. Acho que

9 Depoimento da Sra. Maria, feirante do município de Toledo há trinta anos, em entrevista reali-
zada no dia 03 de junho de 2009.

250 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

isso ocorria devido à cultura da população e, mesmo porque, acho que


a maioria que comprava na feira trabalhava no sábado de manhã. Foi
aí que a EMATER e a Prefeitura se reuniram de novo e foram visitar as
feiras da região que já atendiam à noite e foram também visitar a feira
de Londrina-PR. Aí eles fizeram estudos para revitalizar a feira desde
as barracas até o nosso uniforme. E decidiram passar a feira para a
quarta-feira à noite aqui no Centro. Depois disso, a feira tem crescido
muito, a qualidade dos produtos aumentou, pois agora a Vigilância
Sanitária fiscaliza os produtos e temos que entrar no padrão da vigi-
lância pois senão, não podemos comercializar.10

Apesar de ser uma atividade antiga, conforme relato das feirantes,


a feira livre de Toledo somente obteve o reconhecimento formal pela
administração pública em 1984, quando o então prefeito Albino Corazza
Neto editou o Decreto nº 090, em 03 de setembro daquele ano. O Decreto,
que instituiu a feira livre de Toledo, nomeada como “Feira do Pequeno
Produtor de Toledo”, e definiu suas finalidades, tinha como intuitos prin-
cipais desenvolver programas de produção de alimentos, estimular a pro-
dução agropastoril, como forma de melhorar a condição de vida dos
pequenos produtores fixando-os em seu meio, além de proporcionar o
intercâmbio direto entre produtor e consumidor, como modo de garantir
melhores preços aos primeiros e a aquisição de produtos frescos e de
melhor qualidade aos segundos (TOLEDO, 1984).
Com o decreto, foi estabelecido também o regulamento da feira,
elaborado pela Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente
em conjunto com algumas entidades locais, como o Núcleo Regional da
Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado do Paraná, Empresa
de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Paraná (EMATER),
Associação de Crédito e Assistência Rural do Paraná (ACARPA), Coope-
rativa Agropecuária Mista Oeste Ltda. (COOPAGRO), Sindicato dos Traba-
lhadores Rurais e Sindicato Rural de Toledo (TOLEDO, 1984).
Segundo o secretário municipal da Agricultura de Toledo, na época
da pesquisa, a partir de 1999 a Prefeitura Municipal de Toledo, em con-
junto com a EMATER11, iniciou estudos para que houvesse a revitalização
da feira, a qual havia sofrido oscilações em seu tamanho e quantidade
de participantes. Assim, em julho de 2001, a Secretaria Municipal da
Agricultura, juntamente com a Secretaria de Assistência Social, EMATER,

10 Depoimento da Sra. Lúcia, feirante do município de Toledo desde 1990, em entrevista realizada
no dia 03 de junho de 2009.
11 Nesta data, denominado de Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 251


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

Sindicato dos Trabalhadores Rurais e uma Associação Municipal de Fei-


rantes (que estaria em processo de constituição), coordenou um programa
municipal de apoio à “Feira Municipal”. Ocorreu então a transformação
da Feira do Pequeno Produtor de Toledo, cuja ênfase era a venda direta
de produtos oriundos da produção rural, em Feira do Produtor de Toledo,
voltada à comercialização de produtos oriundos tanto de pequenos pro-
dutores do campo quanto da cidade. O objetivo deste programa era:

[...] viabilizar a comercialização dos produtos produzidos ou trans-


formados pelas pequenas propriedades rurais e unidades de transfor-
mação agro-industriais e artesanais, rurais e urbanas estabelecidas no
município, através da realização de feiras livres em local definido,
e previamente autorizadas pela coordenação do programa. (TOLEDO,
2001).

Segundo depoimento do então secretário de Agricultura, José


Augusto de Souza, o programa de apoio à realização da feira municipal
serviu para estimular a produção nas pequenas indústrias caseiras, con-
tribuir com a geração de emprego e renda e aumentar a produção muni-
cipal de hortifrutigranjeiros e artesanais.12
Em um primeiro momento, mais produtores foram convidados para
comercializar seus produtos na feira, e o apoio materializou-se através da
aquisição de 18 barracas montáveis e em padrão comum, com cores da
bandeira do município; a identificação e aprovação do ponto de venda
e adequação dos produtos comercializados pela Vigilância Sanitária; a
assistência técnica na produção, transformação e padronização dos pro-
dutos para venda.13
De acordo com a estratégia operacional do Programa Municipal de
Apoio à “Feira Municipal”, a operacionalização de feiras livres deveria
ser regida por regimento interno específico, feito com a concordância da
maioria dos participantes. Desta forma, em 09 de junho de 2005, a Asso-
ciação dos Feirantes de Toledo (organizada pelos próprios feirantes) ela-
borou e estabeleceu alguns pré-requisitos para que o agricultor e o pro-
dutor urbano pudessem participar de uma ou mais feiras e comercializar
seus produtos, destacando-se: provar a condição de produtor declarando
o lugar de sua produção; declarar os produtos que serão comercializados;
os produtos embalados deverão conter o nome do produtor, o nome do

12 Depoimento do Sr. José Augusto de Souza, titular da Secretaria Municipal da Agricultura de


Toledo na época da realização da pesquisa, em entrevista realizada no dia 15 de junho de 2009.
13 Idem.

252 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

produto, peso, endereço do fabricante data de fabricação e vencimento;


os produtos industrializados deverão ser liberados pela Secretaria de
Saúde de Toledo, do Estado ou Federal; o produtor deve filiar-se à asso-
ciação de feirantes (ASSOCIAÇÃO DOS FEIRANTES DE TOLEDO, 2005).
Em entrevista, a assistente social Claudete Galhardo, responsável
pelo programa de apoio à feira, relatou que uma das motivações para a
realização da feira era que, naquele momento, três vilas rurais do municí-
pio apresentavam sérios problemas de comercialização dos seus produtos.
Desse modo, o objetivo primeiro da Feira do Produtor de Toledo figura
como forma de desenvolvimento local e de geração de emprego e renda.

No início, buscamos embasamento em outras feiras que já existiam


em municípios vizinhos como Londrina. A feira do produtor de Toledo
já ocupou diversos pontos da cidade, mas hoje possui locais fixos em
vários bairros da cidade [...] No começo, era exigido como requisito
para a comercialização que as mercadorias se tratassem de produtos
da terra, vindos da zona rural. Porém, a experiência demonstrou que
o número de expositores era relativamente pequeno e, diante desta
inesperada situação, a feira abriu-se para outros tipos de expositores.
De uma forma geral, todo produtor pode ser um expositor da feira,
independente do ramo que atua. Exige-se apenas que seja produtor (e
não somente comerciante) e que tenha firma legalmente aberta.14

A Feira do Produtor de Toledo passou por diversas alterações para


se configurar na feira dos dias atuais, como se pôde observar no relato
até agora. Essas transformações resultaram na abertura de espaço de
venda para pequenos produtores urbanos e artesãos, além da normatiza-
ção que estabeleceu regras para os feirantes, como horários de montagem
e desmontagem das barracas, local para estacionar os veículos dos fei-
rantes (deixando as proximidades para os clientes), vestuário adequado,
cuidados com higiene pessoal e dos produtos comercializados.
Atualmente, a Feira do Produtor de Toledo ocorre semanalmente,
iniciando às quartas-feiras no centro da cidade, com uma feira de maior
porte, que reúne quase todos os feirantes em um único ponto e com
um grande número de consumidores. Em outros dias da semana, ocorre
em diferentes pontos da cidade, predefinidos pela administração munici-
pal: às quintas-feiras, a feira está no Jardim Coopagro; às sextas-feiras,
nos bairros Vila Pioneiro e Jardim Porto Alegre, e nos distritos de Novo
Sarandi e Vila Nova; e aos sábados, no bairro Jardim Panorama.

14 Depoimento da Sra. Claudete Galhardo, Assistente Social da EMATER, em entrevista realizada


no dia 02 de junho de 2009.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 253


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

A Feira do Produtor de Toledo, no momento da pesquisa de campo


em junho de 2009, tinha 46 barracas cadastradas na EMATER, sendo que
39 compunham a feira das quartas-feiras realizada no centro da cidade.
Foi este o universo selecionado para a pesquisa, sendo possível realizá-la
em 36 das 39 barracas. Destas barracas, 19 eram de produtores urbanos
e 17 de produtores rurais.15
Muitos produtores comercializam mais de um tipo de produto,
diversificando os produtos colocados à disposição dos consumidores em
sua barraca. Os produtos comercializados na feira do produtor dividem-se
da seguinte forma: 27,78% hortaliças, 25% massas/pães/biscoitos, 25%
alimentos prontos (comidas rápidas, como pastéis, tapiocas, esfihas, etc.),
11,11% produtos diversos, 8,33% embutidos e 5,56% artesanato.
Responderam ao questionário semiestruturado da pesquisa, que
buscava conhecer o perfil socioeconômico, 53% de feirantes homens e
47% de mulheres, sendo 94% casados e 6% solteiros. Um fato que merece
atenção e destaque, no sentido da problematização proposta neste capí-
tulo, é que, apesar da maioria dos cadastros estar no nome de homens de
uma família, no entanto, quem comercializa e está à frente das barracas
são as mulheres, fazendo com que estas representem 89% do total de
feirantes, enquanto somente 11% são do sexo masculino.
Verificou-se também que 39% dos feirantes possuem idade entre
30 e 39 anos, 33% estão na faixa etária de 40 a 49 anos, 17% na faixa
etária de 50 a 59 anos e apenas 6% possui idade superior a 60 anos.
O número de dependentes dos responsáveis pela barraca da feira do pro-
dutor varia de 1 a 4 dependentes, sendo que 39% possuem 2 dependentes,
28% não possuem dependentes, 28% possuem apenas 1 dependente e 6%
dos participantes possuem de 3 a 4 dependentes.
A Feira do Produtor de Toledo, conforme relatado por depoentes e
visualizado em documentos que a regulamentaram, tinha como um dos
seus objetivos principais inserir no meio social e econômico o pequeno
produtor rural. Contudo, a necessidade de ampliação e diversificação dos
produtos oferecidos abriu espaço para os pequenos produtores urbanos,
que se tornaram a maioria nos dias atuais, ou seja, a Feira do Produtor é,
hoje em dia, composta por 53% de feirantes provindos do meio urbano e
47% de feirantes oriundos do meio rural.

15 Traçou-se o perfil dos feirantes por meio da aplicação de questionário semiestruturado contendo
dados cadastrais (nome, endereço e telefone), sociais e técnicos, além de perguntas voltadas
exclusivamente às mulheres feirantes. A partir de agora, e salvo indicações ao contrário, as
informações e dados referem-se à pesquisa realizada.

254 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

Verificou-se que a maioria, ou 53% dos feirantes, participa há cerca


de 3 ou 4 anos da feira, seguidos por 22% que participam há 1 e 2 anos,
17% que participam há cerca de 7 ou 8 anos, 6% que participam entre 5 e
6 anos e 3% que participam há menos de 1 ano. Apenas uma feirante tem
participação desde o início da feira do produtor de Toledo, há cerca de 30
anos, ou seja, antes da feira do produtor ser documentada formalmente.
A mão de obra utilizada na produção dos produtos para a venda
na feira do produtor, tanto para o produtor urbano como para o rural,
é essencialmente familiar, ou seja, 83 das 127 pessoas envolvidas no
processo pertencem a esta categoria, sendo 46 mulheres e 37 homens.
A maioria das famílias não utiliza mão de obra contratada, devido ao fato
de não produzirem em quantidade suficiente para que se possa pagá-la.
Mas quando a mão de obra de terceiro é utilizada na propriedade, é pos-
sível perceber que ela é majoritariamente masculina, ou seja, 27 homens
e apenas 14 mulheres eram empregados à época da pesquisa. Os contra-
tos são, em sua maioria, temporários, e a contratação da mão de obra
feminina é utilizada principalmente no processamento dos produtos,
enquanto a mão de obra masculina é requerida especialmente nas ativi-
dades agrícolas.
Quando da comercialização dos produtos nas barracas da feira,
é também a mão de obra familiar a preponderante, sendo que 42% das
barracas utilizam tanto a feminina quanto a masculina. No restante das
barracas, ou seja, em 58% delas, a participação de mulheres e homens
é diferente, pois apenas 8% das barracas não utilizam a mão de obra
familiar feminina, enquanto 50% não empregam mão de obra familiar
masculina. As barracas que contratam para a comercialização, na maio-
ria, contratam entre 1 e 2 pessoas, e apenas dois entrevistados contratam
entre 3 e 4 pessoas. Esses dados indicam que a contratação de mão de
obra de terceiros depende do tamanho da barraca e dos produtos ofereci-
dos, ou seja, aqueles que têm maior demanda, como as hortaliças, pastéis
e tapioca.
Perguntados sobre a renda obtida na Feira do Produtor, 78% das/os
entrevistadas/os responderam que ganham entre 1 e 3 salários mínimos;16
19% responderam que conseguem obter renda de 4 a 6 salários mínimos;
e apenas 1 entrevistado relatou que ganha acima de 7 salários. Pode-se
observar que as/os feirantes que obtêm maior renda são aquelas/es que
produzem e vendem seus produtos quase exclusivamente na feira.

16 O valor do salário mínimo na época da pesquisa era de R$ 465,00.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 255


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

A renda obtida na Feira do Produtor significa para 33%, ou a maio-


ria das/os feirantes, 50 a 60% da renda familiar. Para 25% das/os feiran-
tes, ela representa 30% a 40% desta renda; enquanto para 17% significa
20% e para outros 17%, compõe a maior parte da renda familiar, ou seja,
70% a 80%. Apenas 11% responderam que sua renda é obtida totalmente
da comercialização na feira.
O questionário também procurou abordar a satisfação das/os pro-
dutoras/es com suas atividades ligadas à Feira do Produtor. Houve una-
nimidade dos entrevistados a respeito da questão, em que afirmam que
estão satisfeitos por estarem comercializando seus produtos na Feira do
Produtor.
O questionário aplicado possibilitou ainda vislumbrar outros dados
socioeconômicos importantes, os quais delineiam os perfis das pessoas
que participam da Feira do Produtor de Toledo, evidenciando que a maior
parcela é composta por pessoas do sexo feminino, que residem em sua
maioria no meio urbano. Outro fator de destaque refere-se aos dados
relativos à renda, que comprovam a importância da feira para as famílias
produtoras/comercializadoras, principalmente para as mulheres.

3 AS MULHERES DA FEIRA DO PRODUTOR DE TOLEDO


E SUA TRAJETÓRIA DE EMPODERAMENTO

A rotina de trabalho das mulheres pesquisadas na Feira do Pro-


dutor de Toledo é dupla, ou seja, possuem uma jornada de trabalho bem
maior que a dos demais membros da família. Percebeu-se, através das
entrevistas, que as atividades diárias desenvolvidas pelas mulheres come-
çam antes das de todos os outros membros da família. São elas quem pri-
meiro levantam-se para preparar o café para a família e, assim, quando
os demais membros da família levantam-se, o café já está servido.
Em seguida, no caso das mulheres rurais, passam a cuidar de afazeres
relativos à horta ou, no caso das trabalhadoras urbanas, da compra para
a produção de seus produtos, como geleias, pães, bolos, salgados ou
outros produtos artesanais para a venda na feira.
Além disso, arrumam a casa, lavam e passam as roupas da família,
preparam o almoço e depois deste, fazem a limpeza da cozinha e, no caso
das mulheres rurais, continuam com as atividades fora de casa, na horta,
no pomar ou com os animais. Cabem à maioria delas também atividades
como as compras nos mercados ou levar os filhos ao médico. À noite,
depois do jantar, são elas que arrumam a cozinha e são as últimas que se
deitam para dormir. No dia ou dias que comercializam seus produtos na

256 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

feira, saem logo depois do almoço e voltam tarde da noite. A responsa-


bilidade pelos filhos pequenos fica então com os maridos, quando estes
não estão envolvidos nas atividades da feira e, em alguns casos, com os
avós. Tal rotina não é, porém, igual para todas as entrevistadas, variando
de acordo com a necessidade de cada uma, com o tamanho da família e
com a distribuição de tarefas dentro do lar.
O trabalho remunerado na Feira do Produtor tem possibilitado
às trabalhadoras entrevistadas mudanças econômicas e sociais. Em
conjunto com outros trabalhadores, as mulheres aprendem a superar
valores culturais arraigados que, segundo Duran (1983), as mantiveram
na solidão política, no isolamento do lar, na posição desvantajosa de
participação e no negarem-se como trabalhadoras, principalmente na
pequena produção familiar. Ao entrarem no mercado de trabalho, as
mulheres aprenderam a se ver como trabalhadoras e a lutar pelo obje-
tivo comum de serem reconhecidas como profissionais que possuem
direitos e deveres e que, acima de tudo, podem ganhar seu próprio
dinheiro, ou seja, obter sua própria renda através das diferentes ativida-
des, como a Feira do Produtor. Aumenta, desta maneira, a consciência
da mulher de sua importância na economia, na família e na sociedade,
produzindo seu empoderamento.
Com a tomada de decisão de se integrar ao mercado de trabalho e,
no caso estudado, expor seus produtos na Feira do Produtor de Toledo, as
mulheres se inserem no processo de comunicação, ou seja, no processo de
integração com outras pessoas, auxiliando, desta forma, no seu processo
de empoderamento. Uma trajetória de aprendizagem ocorre na Feira:
segundo as trabalhadoras entrevistadas, elas convivem com diferentes
pessoas, das/os colegas de trabalho aos compradores, pessoas com dife-
rentes visões de mundo, o que contribui para reduzir, por exemplo, sua
própria timidez, uma timidez que, na maioria das vezes, acomete mulhe-
res que sempre viveram na sombra do elemento masculino, seja ele o pai
ou o marido. Tal questão ganha densidade na fala da feirante Daniele:

Eu iniciei a minha atividade na feira porque eu queria uma renda minha


e dar início ao salário meu, sem sair da propriedade, aí eu comecei a
parte de panificação e fui vender de porta em porta e depois, com o
convite da EMATER para comercializar meus produtos. Aí depois disso
comecei a conhecer mais pessoas, me envolvi com sindicatos e comecei
a me sentir com mais vontade de buscar saber sobre outras pessoas, a
tomar mais decisões sobre a minha barraca e produtos e até mesmo den-
tro da propriedade. Aí eu me tornei mais desinibida e mais ativa, agora
eu posso resolver situações difíceis e os problemas do dia a dia, porque
lidar com o público e com os próprios feirantes não é fácil, a gente tem

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 257


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

que saber falar com os dois lados para poder se dar bem com as pessoas
e a discutir sobre os problemas aqui da feira [...].17

Esse desenvolvimento comunicativo também fica explícito na fala


de outras duas feirantes que exerciam suas atividades somente no meio
rural e que, depois de tomarem a decisão de ir comercializar seus produ-
tos na feira, se sentem mais valorizadas, ou seja, empoderadas no sentido
de conseguir se desenvolver como pessoa e de se comunicar:

Na verdade, você acaba perdendo a vergonha, né, porque eu não gos-


tava de fazer isso e achava que não servia pra vender, e hoje nem
parece aquela mulher que ficava lá acanhada, me sinto valorizada,
“nota 10”, porque eu era muito vergonhosa, não queria sair de casa
conversar com ninguém. Aqui eu mudei porque comecei a conversar
com as pessoas e não tenho mais medo de falar em público [...].18

[...] vim trabalhar na feira porque eu não gostava de morar no sítio, eu


só ficava em casa e não gostava porque meu esposo trabalhava o dia
inteiro na propriedade e eu ficava sozinha. [...] Aí surgiu a oportuni-
dade da gente morar em Toledo fazer feira. Nossa! Eu mudei muito, me
tornei mais comunicativa porque lido com gente diferente sempre [...]
aprendo um monte com isto [...].19

O processo de empoderamento da mulher, conforme Deere e León


(2002), desafia as relações familiares. Isso ocorre pelo fato de que há
uma mudança nas relações entre homens e mulheres, pois não existem
mais decisões unilaterais, seja em relação ao controle das opções de vida,
dos bens ou das opiniões das mulheres pelos homens. Neste sentido, o
empoderamento da mulher implica em mudanças em suas próprias expe-
riências e também nas de seus companheiros e familiares, alterando sig-
nificativamente as relações de gênero.
As mulheres entrevistadas, sejam elas do meio rural ou do urbano,
possuem a mesma opinião a respeito do seu trabalho dentro e fora do lar.
Deixam claro em suas falas que, apesar de terem dupla jornada de traba-
lho, se sentem valorizadas pelo trabalho na feira, porque deixam de ser
vistas apenas como donas de casa e passam a ser vistas como trabalha-

17 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2009 com a Sra. Daniele, 37 anos, feirante rural,
pequena produtora rural, que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
18 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2009 com a Sra. Jacira, 31 anos, feirante urbana
que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
19 Entrevista realizada no dia 27 de setembro de 2009 com a Sra. Elizabete, 35 anos, feirante
urbana que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

258 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

doras. Elas consideram também um grande avanço a ajuda dos homens


(maridos e pais) nas pequenas tarefas domésticas, algo que antes de seu
trabalho na feira não existia, bem como a possibilidade de explicitarem
suas opiniões e serem ouvidas quando há a necessidade de se tomar deci-
sões dentro do lar, por exemplo, na educação dos filhos ou nos investi-
mentos a serem feitos com parte da renda familiar, como explicitam os
trechos de depoimentos citados a seguir:

Eu nasci na roça, antes trabalhava com meu pai, ajudando ele na


produção, pois não tínhamos empregados e minha família era grande,
então todos ajudavam o pai na roça. Quem decidia o que teria que ser
feito era o pai e a mãe, mas eu depois que ajudava a mãe em casa ia
ajudar o pai, ele nem precisava pedir porque a gente já sabia o que
tinha que ser feito. Hoje eu e meu marido decidimos em conjunto o
que temos que fazer, mas como eu venho vender aqui na feira e tenho
que chegar cedo pra arrumar a barraca e saio tarde da feira, ele me
ajuda em casa sim, pois quando eu não tô, ele tem que cuidar do
almoço e da janta e limpar a cozinha pra mim. A minha filha que
não gosta que eu trabalhe fora porque ela estuda de manhã e quando
volta também tem que me ajudar porque eu estou ocupada com as
coisas da horta [...].20

[...] meu esposo trabalhava com projetos arquitetônicos e eu comecei


a produzir para ajudar ele dentro de casa, porque eu tinha dois filhos
na faculdade, aí comecei a trabalhar e abri a minha loja e aí meu
marido passou a me ajudar nas tarefas domésticas. Ele passou a fazer
o almoço e arrumar a casa [...] depois tive que fechar a loja e comecei
a vender aqui na feira [...] mas outra coisa que mudou é que como
só ele trabalhava, as decisões dentro de casa eram só dele, eu servia
apenas como esposa e mãe, em poucas coisas eu opinava, mas depois
que comecei a trabalhar, comecei a decidir também e agora não tem
mais eu ou ele decide, nos sentamos, conversamos e decidimos o que é
melhor pra todos [...].21

Outro fator que contribui para o empoderamento das mulheres é


a obtenção de renda para contribuir com o orçamento familiar, como
fica claro no depoimento da feirante Márcia, citado anteriormente, e no
depoimento de Helena citado a seguir. Esta contribuição, de acordo com
Fischer (2000), faz com que a mulher se veja desempenhando obrigações

20 Entrevista realizada no dia 09 de setembro de 2009 com a Sra. Fernanda, 35 anos, feirante rural
e pequena produtora rural que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
21 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2009 com a Sra. Marcia, 56 anos, feirante urbana
que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 259


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

de provedora do lar juntamente com seu marido, trazendo com isso, para
si, obrigações do chefe de família, como a necessidade de tomar decisões
antes efetuadas apenas pelo homem.

[...] eu casei bem nova, só fazia as coisas dentro de casa, mas eu tava
ficando doente com isso, não tinha ninguém pra conversar, dependia
dele pra tudo, tudo tinha que pedir [...] aí comecei a fazer pão e sair
vendendo pras vizinhas, elas gostaram e eu também porque eu comecei
a ganhar meu dinheiro. Aí fiquei sabendo da feira e montei minha bar-
raca, hoje me ocupo um monte, tenho meu dinheiro e sou outra pessoa
mesmo, porque eu agora posso ajudar em casa [...].22

O empoderamento econômico, conforme relato das entrevistadas,


ainda é limitado no sentido de gerar mudanças mais profundas nas rela-
ções familiares, pois a renda obtida por meio da Feira do Produtor é,
para a maioria delas, inferior à obtida por seus companheiros. As mulhe-
res deixam, assim, para a figura masculina a tomada das decisões mais
importantes dentro do lar, como os investimentos que necessitam de
maiores valores monetários.
Deste modo, segundo elas, suas decisões se resumem, na maioria
das vezes, ao que consideram pequenas responsabilidades em relação à
destinação da renda. Estas assumem, na maior parte das vezes, despesas
com alimentação, educação, vestuário e objetos pessoais para os filhos e
para si, nunca se esquecendo do marido. Algumas mulheres ainda fazem
economia para a compra de utensílios domésticos e para aquisição de
alguma máquina de maior valor para a propriedade ou para a produção.
Quando perguntadas sobre a renda obtida através da Feira do Produtor,
as mulheres se acanham para responder, não dando a exatidão dos valo-
res adquiridos, como se observa no depoimento de Paula:

[...] tem que responder esta pergunta mesmo? [...] Olha, eu não sei ao
certo porque depende do dia, mas assim quase tudo que eu trago, eu
vendo. Pra você ter uma ideia, tem mês que chego a tirar mais que
meu marido, mas tem mês que não dá para tirar quase nada, depende
se chove muito no dia da feira, se tá muito frio [...] Então pode colocar
aí que eu ganho de dois a três salários [...] aí com o dinheiro que eu
ganho, eu ajudo em casa, compro roupa pra mim, pras crianças, com-
pro as coisas pra casa e invisto aqui na feira também.23

22 Entrevista realizada no dia 10 de setembro de 2009 com a Sra. Helena, 67 anos, feirante rural e
pequena produtora rural que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
23 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2009 com a Sra. Paula, 42 anos, feirante rural e
pequena produtora rural que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

260 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

Muitas entrevistadas, a partir do momento que começam a tra-


balhar fora do âmbito familiar, passam a ter dinheiro para gastarem em
coisas “consideradas” menos importantes, mas fundamentais, na maioria
das vezes, para o aumento da autoestima feminina; e outras adquirem
liberdade de gastar seu dinheiro sem a expressa autorização do marido.
Estes gastos se reduzem a objetos e ações de pouco valor, como cortar o
cabelo, fazer a unha, comprar um lanche para o filho, comprar algo para
a casa, pois os gastos com bens de maior valor geram a intervenção do
marido, em alguns casos, ou são discutidos por ambos, o que significa,
por si só, um ganho de poder por parte das mulheres, como indica o
depoimento de Eliane:

Depois que comecei a trabalhar, eu posso sair e ir ao salão ou mesmo


tomar um lanche com meu filho sem eu ter que pedir dinheiro para o meu
marido. Mas quando temos que comprar algo para a casa ou para a feira
que envolve mais dinheiro, nós tomamos a decisão juntos, conversamos e
vemos se é importante mesmo para depois comprarmos [...].24

No entanto, a maioria das mulheres entrevistadas na Feira do Pro-


dutor ainda possui alguma dependência financeira em relação aos homens
de sua família, diminuindo, com isso, o seu sentir-se empoderada. Mas essa
situação é incômoda para elas que tentam, de várias formas, reivindicar
direitos iguais, pelos quais qualquer um dos dois (homem ou mulher) que
esteja trabalhando possa prover e/ou ajudar o outro em momentos difíceis.
Dentro do lar, a reivindicação é pela divisão ou contribuição com o traba-
lho doméstico, como se percebe no depoimento de Vanessa:

Depois que comecei a fazer feira mudei muito. Meu marido não gosta
muito que eu venha não, mas é tão bom estar aqui. Aqui eu me sinto
útil, conheço um monte de gente, tô mais sabida, sem contar que toda
quarta-feira eu sei que terei meu dinheiro garantido, aí eu posso com-
prar o que eu quero e até guardo. Agora com o meu dinheiro, a minha
filha pede as coisas, eu não preciso falar antes pro meu esposo, eu
compro e dou dinheiro pra ela levar na escola. Tem dia que ele até
vem falar pra mim se eu tenho dinheiro pra dar pra ele. Isso é tão bom
porque sinto que agora ele me valoriza, e minha filha também, ela até
brincou que tô mais bonita, acho que é porque tô gastando um pouco
comigo (risos). Meu marido não liga que eu gaste comigo, mas ele me
controla porque me chama de mão aberta, mas eu não sou não, só
passei a palpitar mais nas coisas lá em casa e ajudar ele a decidir nas

24 Entrevista realizada no dia 23 de setembro de 2009 com a Sra. Eliane, 28 anos, feirante urbana
que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 261


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

coisas, não que antes eu não ajudava, mas agora é mais. Acho que é
por isso que me sinto mais valorizada, porque não tenho medo de falar
o que sinto e o que acho [...].25

Apesar da necessidade de convencer e justificar para seu marido e


filhos sua ausência do lar e uma rotina de trabalho muito árdua,26 cons-
tata-se que as mulheres valorizam a renda obtida, e, do ponto de vista
da trabalhadora, não deve ser desprezada, porque essa renda, mesmo não
sendo a fonte principal, exerce importância no orçamento familiar, como
relatado por Santina:

Eu trabalho muito, mas com o pouco que recebo eu já estudei duas filhas
em Curitiba e ajudei a comprar a nossa casa. Meu marido e minhas
filhas não gostam do que eu faço, porque me querem mais perto deles,
falam que eu trabalho demais, mas isso é o que eu sei fazer e o que eu
gosto de fazer e ainda ajudo dentro de casa e não dependo só do salário
do meu marido para comprar as coisas para estudar nossas filhas e
para, principalmente, me sentir valorizada, pois como é bom um cliente
chegar aqui na barraca e elogiar meus produtos. Porque desde que come-
cei a vender aqui na feira eu já tenho clientes fixos que quase toda
quarta-feira vêm diretamente aqui na barraca e até fazem encomendas
para outra semana.27

Parte das mulheres entrevistadas, como vimos, começou a comer-


cializar na feira para obter sua própria renda, outras afirmam ter buscado
a feira para dar vazão aos produtos oriundos do seu quintal, que sobra-
vam depois que a família consumia. É o que afirmou Maria:

[...] lá em casa nós temos muita coisa, na horta e no quintal, aí meu


esposo e eu conversamos com um amigo que vendia na feira. Aí veio
na mente de vender também, porque dava dó de ver tanta coisa estra-
gando, e olha que a gente comia e dava pros outros e mesmo assim
sobrava. Agora eu trago e vendo, sempre tem coisa diferente, porque
depende da época da produção, e meu marido cuida das outras coisas,
como o gado de leite que tem lá [...].28

25 Entrevista realizada no dia 09 de setembro de 2009 com a Sra. Vanessa, 32 anos, feirante rural
e pequena produtora rural que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
26 Existem mulheres que trabalham com pães e bolachas, o que exige muitas horas de trabalho,
fazendo com que fiquem até a madrugada trabalhando para conseguirem produzir quantidade
suficiente para a venda na feira.
27 Entrevista realizada no dia 23 de setembro de 2009 com a Sra. Santina, 34 anos, feirante urbana
que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.
28 Entrevista realizada no dia 30 de setembro de 2009 com a Sra. Maria, 45 anos, feirante rural e
pequena produtora rural que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

262 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

As mulheres rurais entrevistadas, antes de comercializarem seus


produtos na Feira do Produtor, eram, na maioria dos casos, donas de
casa. No caso das feirantes urbanas, estas eram vendedoras nas empre-
sas locais, empregadas domésticas, ou, ainda, vendiam seus produtos de
porta em porta, não possuindo, nestes casos, carteira de trabalho assi-
nada, ou seja, suas atividades não eram contabilizadas, em razão do seu
trabalho ocorrer no setor informal da economia.
O trabalho remunerado das mulheres expositoras na Feira do Pro-
dutor permite a sua participação no orçamento doméstico e se constitui
em um avanço na descaracterização do trabalho feminino como ajuda.
A chamada ajuda, neste caso, é um tipo de trabalho geralmente consi-
derado incerto, realizado no convívio de familiares e não reconhecido
formalmente, pois faz parte de uma economia marginal, que não usufrui
de direitos que regulam o sistema de produção.
Considerando as narrativas das trabalhadoras da Feira do Produtor
de Toledo, a sua saída do lar para o trabalho remunerado significou reco-
nhecimento por parte de companheiros e familiares, possibilitando uma
redução nas desigualdades de gênero. Significou, sobretudo, a abertura de
caminhos para a conquista de sua autonomia e para seu empoderamento.
Algumas delas foram, através da visualização das oportunidades de negó-
cio abertas pela feira, as responsáveis por uma mudança de rumo e o incre-
mento dos negócios da família, como mostra o depoimento de Matilde:

Meu marido trabalhava na Sadia, e o pai dele fabricava os embutidos


mas não dava muito lucro, aí falei pro meu marido: por que você não
vai ajudar seu pai na fábrica? Aí como ele já estava insatisfeito com
o trabalho, ele foi ajudar, [...] eu não entendo muito das coisas, mas
aí eu conheci a feira e como ele vendia na região, falei pra ele colocar
uma barraca na feira também, porque eu achava que daria dinheiro e
mostraria mais nosso produto na cidade. Ele e o pai dele, que é dono
da fábrica, não quiseram, mas eu convenci ele e agora a feira é res-
ponsável por 30% da venda do produto e com ela, que foi uma vitrine,
o produto tá saindo muito mais. [...] Não tenho mais tempo pra nada,
porque eu trabalho aqui na feira, em casa e, quando precisa, eu ajudo
na fábrica em tudo e quase todos os dias saio de casa no final da tarde
pra ajudar a lavar a fábrica [...].29

As atividades desenvolvidas pelas mulheres não impedem, porém,


que elas fiquem ligadas a seus familiares. Conforme seus depoimentos,

29 Entrevista realizada no dia 23 de setembro de 2009 com a Sra. Matilde, 31 anos, feirante urbana
que comercializa seus produtos na Feira do Produtor de Toledo.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 263


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

elas buscam sempre estar junto com os filhos e maridos em atividades


cotidianas, como as tarefas escolares ou mesmo junto com o seu esposo
na lavoura. Elas ainda encontram tempo para assistir televisão, conver-
sar com os vizinhos, visitar os parentes e fazer cursos quando oferecidos
pela EMATER, sendo que algumas das mulheres, principalmente as que
vivem no meio rural, encontram tempo para participar do sindicato e de
reuniões que envolvam a Feira do Produtor.
Com o objetivo de conhecer e identificar com mais detalhes as
mulheres que trabalham na Feira do Produtor de Toledo e seu processo de
empoderamento, traçou-se seu perfil através de um questionário com per-
guntas abertas e fechadas. Entrevistaram-se 23 mulheres que trabalham
diretamente na produção e comercialização de seus produtos na feira.
Em relação aos dados sociais, constata-se que 53% delas estão vincu-
ladas à pequena propriedade rural mantida pela agricultura familiar e 47%
destas pertencem ao meio urbano. Destas últimas, 20% vieram do meio rural
e 80% nunca viveram ou trabalharam neste meio. Observou-se que a faixa
etária predominante entre as mulheres rurais é de 30 a 49 anos (85%) e 15%
possuem idade entre 60 e 69 anos. No caso das mulheres urbanas, a idade é
mais heterogênea, variando de 18 a 56 anos, isto é, 20% das mulheres têm
entre 18 e 29 anos; 30% têm entre 30 e 39 anos; 20% têm entre 40 e 49 anos
e 30% têm entre 50 e 56 anos. Outro dado relevante mostra que 100% das
mulheres rurais entrevistadas são casadas, e a maioria (77%) das mulheres
tem entre 1 e 2 filhos. Para as mulheres urbanas, esta porcentagem se dife-
rencia, sendo que 80% são casadas e 80% têm entre 1 e 4 filhos.
Em relação à habitação, 69% das mulheres rurais possuem resi-
dência própria e, para as mulheres urbanas, este número sobe para 90%.
Para 38% das mulheres rurais, sua renda é quase que exclusivamente
oriunda da venda dos seus produtos na Feira do Produtor Rural. No caso
das mulheres urbanas, apenas 10% têm sua renda total obtida através da
venda dos produtos na feira do produtor.
Sobre o nível de escolaridade, registrou-se que, entre as mulheres
rurais, 54% possuem 1º grau completo, seguido de 23% com 2º completo;
15% com 2º grau incompleto; e 8% com 1º grau incompleto. Entre as
mulheres urbanas, 50% possuem 2º completo, seguido de 20% com 3º
grau completo, 20% com 1º grau completo e 10% com 1º grau incompleto.
Constatou-se que 69% das mulheres rurais comercializam seus
produtos há mais de 3 anos na Feira do Produtor Rural, seguida de 31%
que comercializam há mais de 8 anos. Entre as mulheres urbanas, este
número varia mais, sendo que 40% comercializam seus produtos há mais
de 8 anos, 30% entre 5 e 6 anos e 30% entre 1 e 2 anos.

264 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

Dos produtos comercializados, 62% das mulheres rurais comercia-


lizam hortaliças, 23% bolachas e pães e 15% outros tipos de produtos,
como geleias e produtos derivados do peixe e do milho. As mulheres
urbanas possuem maior diversificação entre os produtos vendidos, sendo
que 30% vendem produtos embutidos como salame, linguiça e defuma-
dos; 20% comercializam pães e bolachas; 20% vendem produtos oriundos
do artesanato, como crochê, chinelos, bolsas, e sabonetes; e 20% comer-
cializam produtos para consumo no local, como espetinho e tapioca.
Um dado interessante a se relatar é que apenas 8% das mulheres
rurais possuem a barraca da feira do produtor registrada em seu nome,
majoritariamente (62%) estão registradas em nome do esposo. Já entre as
mulheres urbanas, 60% possuem a barraca em seu nome e 40% no nome
do pai ou esposo. Quando indagadas sobre quem iniciou a comerciali-
zação na feira do produtor, 54% das mulheres rurais responderam que
foi o casal, 38% que foi ela mesma e 8% que foi o esposo. No caso das
mulheres urbanas, 60% responderam que foi ela mesma, 30% que foi o
casal e 10% que foi o pai ou o esposo. A maioria das mulheres rurais,
mesmo estando à frente da comercialização e produção, deixa os trâmi-
tes burocráticos com o seu esposo, afirmando que eles sabem mais sobre
a propriedade e mexem melhor com “as papeladas”. Entre as mulheres
urbanas, esta dependência em relação a pai ou esposo é menor, especial-
mente porque as mulheres urbanas possuem maior nível de escolaridade
e, com isso, uma maior desenvoltura em relação ao meio que as cerca.
Outro fator de relevância, indicado pelo questionário aplicado, foi
a respeito da participação das mulheres em movimentos sociais, organi-
zações como sindicatos, clubes de mães, entre outros. Entre as mulheres
rurais, 46% responderam que quem participa é o esposo, 38% responde-
ram que não participam e 15% responderam que são atuantes em orga-
nizações sociais, como os sindicatos, e que começaram depois de inicia-
rem suas atividades na feira do produtor. As mulheres urbanas possuem
postura diferenciada em relação à participação em sindicatos, sendo que
90% destas não participam: nem elas, nem o esposo ou pai, em nenhuma
instituição. Quando indagadas a respeito, a maioria respondeu que não
participava porque não gostava de política, considerando os sindicatos e
as associações como órgãos políticos.
Sobre a importância e o significado da Feira do Produtor de Toledo
para elas, as mulheres rurais e urbanas foram unânimes em responder
que, a partir do início da comercialização na feira, elas passaram a ter
renda e melhor qualidade de vida. Assim, pode-se interpretar que a feira,
para essas mulheres, significou mais do que um espaço de comercializa-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 265


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

ção de produtos oriundos de seu próprio trabalho, o que, por si só, signi-
fica um reconhecimento. Significou, mesmo que incipientemente, a rup-
tura dos papéis tradicionais de homem e mulher, ou seja, há a abertura
de um caminho de transformação nas relações tradicionais de gênero,
mesmo que isso ocorra ainda em uma esfera restrita, a da obtenção, posse
e utilização – para a família, mas também para seu próprio benefício – de
uma renda própria.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de grande parte do orçamento das famílias das trabalhado-


ras entrevistadas ser coberta pela renda obtida pelas próprias mulheres,
ainda continua sendo controlado pelo homem. Prevalece o padrão social
de o homem determinar o que a família deve adquirir para o consumo
alimentar, para o vestuário e, principalmente, para outras necessidades
que envolvam maior valor monetário. No entanto, está havendo uma
ruptura no controle masculino, pois, à medida que a consciência da
mulher, em relação a aspectos diversos de seu cotidiano, se transforma
com o trabalho na Feira do Produtor, parte significativa do que sustenta
o poder masculino perde força.
A cultura de inferiorização das mulheres, devido à sua dependência
financeira, é atingida em sua raiz com a obtenção de renda por elas. Mas
é preciso ressaltar que esta situação não se sustenta só no nível econô-
mico, isto é, isolada de outros aspectos a independência financeira não
garante a igualdade entre homens e mulheres. Afinal, para as mulheres
atingirem certo patamar de autonomia, elas necessitam de amparos legais
e dispositivos que interfiram nos hábitos, nos costumes, e que contri-
buam para gerar mudanças estruturais na sociedade, não só no setor
público como também, e principalmente, no privado.
As trabalhadoras da Feira do Produtor de Toledo têm contribuído
para a alteração das relações de gênero tradicionais, empoderando-se,
quando saem para trabalhar fora de seus lares e propriedades, onde,
na maioria das vezes, seu trabalho árduo tem pouca visibilidade. No
entanto, o processo de empoderamento das mulheres pesquisadas ainda
é sutil, pois muitas ainda consideram o seu trabalho como uma “ajuda”
para seus companheiros e familiares. Por outro lado, estas mesmas
mulheres se sentem valorizadas e romperam ainda que minimamente,
de uma forma ou de outra, com a cultura de que o poder pertence ao
homem, simplesmente pelo fato de saírem do âmbito familiar e obte-
rem colaboração de seus companheiros e familiares em trabalhos antes

266 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Fabiola Juliana Rubim de Andrade, Yonissa Marmitt Wadi

considerados exclusivamente femininos, como o trabalho doméstico e


o cuidado com os filhos.
O processo de empoderamento da mulher traz à tona uma nova
concepção de poder, assumindo formas democráticas, construindo novos
mecanismos de responsabilidades coletivas, de tomada de decisões e res-
ponsabilidades compartilhadas. Neste sentido, Deere e León (2002) indi-
cam que se trata de um processo que não é linear nem igual para todas
as mulheres.
Considerando o conjunto das mulheres participantes da Feira
do Produtor de Toledo que foram entrevistadas, todas demonstraram
sentirem-se empoderadas com o seu trabalho, mesmo que isso tenha
significado para muitas delas uma maior jornada laboral. Este pro-
cesso de aquisição de poder resultou, como vimos, de lutas contínuas,
às vezes sutis, não linear para todas as mulheres, frente à sociedade
e, principalmente, frente à família. Representou o empoderamento
para grande parte das mulheres participantes da Feira do Produtor
de Toledo, de acordo com dois dos aspectos identificados por Oxaal e
Baden (1997), ou seja: o “poder com”, o qual envolve as pessoas para
conseguir objetivos em comum, e o “poder de dentro”, que se refere à
obtenção de autoconfiança e tomada de decisões dos indivíduos sobre
suas próprias vidas.

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 267


O Empoderamento da Mulher: um Estudo Empírico da Feira do Produtor de Toledo, Paraná

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268 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 11

Potencialidades e limites do
Pronaf-Mulher no processo
de empoderamento das
mulheres agricultoras1

Carmen Osorio Hernández

1 Este artigo faz parte dos resultados da tese de doutorado da autora, defendida em março de 2009
(HERNÁNDEZ, 2009).
Carmen Osorio Hernández

1 INTRODUÇÃO

O objetivo central deste capítulo é mostrar algumas evidências


empíricas sobre os efeitos do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf) no processo de empoderamento2 das
mulheres agricultoras, que tiveram acesso ao Pronaf-Mulher no período
de 2005-2006,3 no município de Rodeio Bonito da região do Alto Uru-
guai, estado do Rio Grande do Sul.
Entre as mudanças significativas registradas nas últimas déca-
das no Brasil, está o êxodo rural, no qual predominam mulheres jovens,
que têm migrado para as grandes cidades em busca de trabalho ou de
formação educacional. Esse processo migratório pode ser explicado por
diversos fatores ligados a dinâmicas intrafamiliares, tais como questões
referentes à sucessão geracional dos estabelecimentos agropecuários, à
divisão sexual do trabalho e à invisibilidade do trabalho feminino, pro-
vocando uma maior masculinização do meio rural brasileiro (BRUMER,
2004; CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999; MELO; CONSIDERA; DI SAB-
BATO, 2005).
Nesse contexto, a partir dos anos 1980, com a nova Constituição
Federal (BRASIL, 1988, art. 201, I a V), o Estado brasileiro passou a reco-
nhecer os direitos das mulheres e a implementar políticas públicas, atra-
vés de programas de transferência de renda, orientadas para a promoção
da igualdade entre homens e mulheres, como é o caso da previdência
social rural (direito da aposentadoria e salário-maternidade), a partir da
qual as mulheres foram reconhecidas como “trabalhadoras rurais” (BRU-
MER, 2002, p. 52).
Para essas iniciativas, é pertinente destacar a luta dos diferentes
agentes sociais –especificamente movimentos de mulheres – na demanda
para inclusão das trabalhadoras rurais na economia, a partir de diver-

2 A palavra empoderamento é equivalente ao verbo empower e ao substantivo empowerment,


que tem sido traduzido como fortalecimento e “aquisição de poder”. Portanto, este termo é
um processo referido a mudanças, decisão e poder, por meio do qual um indivíduo ou grupos
que não têm poder ou pouco poder adquirem a habilidade para a tomada de decisões que
transformam suas próprias vidas. Entre os objetivos do empoderamento das mulheres, estão
o desafio à ideologia patriarcal (dominação masculina e subordinação feminina) e a transfor-
mação das estruturas que reforçam e perpetuam a discriminação de gênero e a desigualdade
social (BATLIWALA, 1997; KABEER, 1998). Assim, as dimensões analíticas do empoderamento
podem ser: econômica, política e social (HOFMANN; MARIUS-GNANOU, 2004; MAHMUD,
2003; MAYOUX, 1998). Nos capítulos 1, 2 e 10 são discutidos outros autores que debatem e
conceituam empoderamento.
3 Nesse período se implementou o programa no município onde foi feita a pesquisa empírica.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 271


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

sas ações.4 Entre essas ações, destaca-se a participação das mulheres


como possíveis beneficiárias do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (Pronaf), especificamente da linha especial Pro-
naf-Mulher. O programa, através do crédito como estratégia de desen-
volvimento rural, pretende propiciar as condições para o aumento da
capacidade produtiva, a melhoria da qualidade de vida e a aplicação
do exercício da cidadania das mulheres, a partir da ampliação de sua
autonomia, participação econômica e política, no seu contexto familiar
e social (BRASIL, 2005, p. 14). Essa ação tem constituído uma forma de
reconhecimento das mulheres, pelo Estado brasileiro, sobre sua situação
desprivilegiada na sociedade.
No entanto, até recentemente, as mulheres tiveram um limitado
acesso a esse programa. Essa problemática se fundamenta pela “invisi-
bilidade do trabalho”, que define a inferioridade do papel da mulher na
sociedade e pela limitada autonomia econômica e da restrita possibili-
dade de gerenciamento dos recursos, seja na gestão ou comercialização.
Assim, para ampliar o acesso das mulheres ao programa de crédito, uma
das principais reivindicações dos movimentos de mulheres na Marcha
das Margaridas5 era um crédito voltado para as mulheres rurais.
O Pronaf teve início em 1996, encontra-se entre os maiores pro-
gramas de microcrédito do mundo. Ele nasceu, por um lado, pela pressão
da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
em favor das transformações estruturais e a democratização das políticas
públicas, e, de outro lado, pelo interesse do reconhecimento da impor-
tância da agricultura familiar (ABRAMOVAY, 2004; SACCO DOS ANJOS
et al., 2004). O programa tem como objetivo manter as pessoas ocupadas
nos estabelecimentos familiares, gerar renda para remunerar os postos de
trabalho, agregar novos empregos em atividades agrícolas e não agrícolas
nos estabelecimentos ao longo da cadeia produtiva e no mercado local
(BIANCHINI, 2005). Desse modo, estimular a expansão da agricultura

4 Estas ações fazem parte do primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, 2004, que
prevê a execução de 198 ações sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres. O documento está estruturado em torno de cinco áreas estratégicas de atuação: auto-
nomia, igualdade do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres,
direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à violência contra as mulheres; gestão e
monitoramento (BRASIL, 2004).
5 No ano de 2000, devido à organização da marcha mundial das mulheres – “2000 razões para
marchar” – é realizada a primeira Marcha das Margaridas, organizada pelas mulheres filiadas
à Contag. A marcha reuniu em Brasília de 10 mil a 20 mil mulheres. Em 2003, em sua segunda
edição, estima-se que participaram entre 40 mil e 50 mil mulheres, quando foi negociada uma
pauta de reivindicações com o governo (HEREDIA; CINTRÃO, 2006, p. 9).

272 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

familiar, através da oferta de crédito e de apoio institucional, de forma


altamente subsidiada (GUANZIROLI, 2007). Contudo, a lógica do Pronaf
revela que políticas voltadas a promover o crescimento econômico, com
base na distribuição de crédito, estão ameaçadas pela distância entre a
racionalidade econômica e as necessidades sociais. Portanto, o papel da
institucionalização é chave, já que nos últimos anos foram criadas orga-
nizações, instâncias de representação e decisão nos diferentes níveis de
governo (municipal, estadual e federal), além de procedimentos técnicos
e administrativos que ampliaram a possibilidade da gestão social das
políticas públicas, o que permitiu à sociedade civil intervir nas diversas
fases (formulação, implementação e avaliação) das políticas destinadas a
promover o fortalecimento da agricultura familiar.
Nesse sentido, partiu-se do pressuposto de que uma política de cré-
dito como o Pronaf tem um impacto diferencial nas relações de gênero,
que depende das condições (normativas) de acesso ao crédito, do perfil
das mulheres agricultoras, do contexto no qual elas estão inseridas e da
relação com os agentes mediadores (técnicos de extensão, gerentes de
banco e lideranças de sindicato) das diversas instituições. Considerou-se
que esses aspectos poderiam ser relevantes para o desenvolvimento da
autonomia econômica6 e social das mulheres, por sua vez, seria uma
das condicionantes para possibilitar o processo de empoderamento, o
que significaria algumas mudanças de habitus7 (BOURDIEU, 1989) na
dinâmica familiar, manifestadas nos aspectos de bem-estar, participação,
conscientização, acesso e controle aos recursos.
Entretanto, o empoderamento das mulheres, como estratégia de
desenvolvimento, é possível desde que estejam presentes as condições
necessárias, tanto na lógica de formulação, execução e operação das polí-
ticas públicas, quanto na intervenção dos diversos agentes de mediação8
envolvidos, os quais, ao mesmo tempo, cumprem a função de media-

6 A autonomia entende-se aqui como a qualidade de autodeterminação e independência de uma


pessoa na capacidade de definir as próprias metas e agir em consequência delas (ANDERSON;
HONNETH, 2004). Logo, a autonomia econômica refere-se à capacidade de gerar renda e de decidir
sobre a forma como essa renda é utilizada para gastos próprios e familiares (KABEER, 1999).
7 O conceito de habitus constitui um sistema de percepções, apreciações e de ação. Ou seja, é o
conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que permitem perceber, agir
e evoluir em um determinado universo social. Desta forma, o habitus é um operador de uma
racionalidade prática, inerente em um sistema histórico de relações sociais (BOURDIEU, 1989).
8 Entende-se por mediação o conjunto de ações sociais nas quais um agente, o mediador, articula
aos agentes mediados a universos sociais que se lhes apresenta inacessíveis, dessa forma os
mediadores tendem atribuir um papel emancipador pela transmissão de outras visões do mundo
(NEVES, 1998).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 273


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

dores. Segundo Velho e Kuschnir (1996) e Neves (1998), os mediadores


podem constituir importantes agentes de mudanças, portanto, eles podem
ser necessários como catalisadores ou facilitadores essenciais que ajudam
a iniciar processos de empoderamento, o que irá depender das oportuni-
dades existentes e da extensão e rapidez com que as pessoas interiorizem
a transformação (SEN, 1997; NUSSBAUM, 20012).

2 PERFIL DAS MULHERES AGRICULTORAS

O desenvolvimento deste trabalho baseou-se na recuperação das


experiências das mulheres em relação a seu acesso ao programa de cré-
dito, bem como os vínculos estabelecidos com os agentes externos quanto
ao processo do acesso ao programa.
Assim, de setembro a novembro de 2007, foram realizadas entre-
vistas semiestruturadas com 25 mulheres que receberam o crédito (na
linha especial Pronaf-Mulher) no município de Rodeio Bonito da região
do Alto Uruguai, no Rio Grande do Sul. Também foram registradas as
opiniões de 16 agentes (externos) de mediação: técnicos e responsáveis
pelo Pronaf, tanto do sindicato quanto da extensão rural, bem como
algumas lideranças de sindicato, alguns dirigentes de cooperativas e fun-
cionários da carteira de crédito rural dos bancos.
Conforme o número total de mulheres entrevistadas, 20 eram casa-
das, duas viúvas, uma solteira, uma separada e uma reportou morar em
união estável. As idades oscilaram entre os 26 anos (a mais nova) e 68
anos (a mais velha). Dessa forma, 52% das mulheres estavam entre os
40 e 55 anos de idade, 16% acima dos 55 anos e 32% tinham menos de
40. De um total de 72 filhos/as, 66% corresponderam ao sexo masculino,
34% ao sexo feminino; 48% das mulheres tinham entre três e quatro
filhos/as. A idade dos filhos variou desde uma mínima de quatro anos
até a máxima de 42 anos, encontrando-se em média entre os 19 anos.
Somente duas das entrevistadas não tinham filhos (uma solteira e outra
casada), ambas se encontravam na faixa etária dos 50 anos.
Em relação à escolaridade das mulheres entrevistadas, em geral
poder-se-ia dizer que não há analfabetismo neste universo feminino, pois
pelo menos 72% das mulheres têm entre três e cinco anos de escolaridade.
As ocupações principais das mulheres naquele ano estavam, de modo
geral, relacionadas com as atividades domésticas e o trabalho na roça, ape-
nas três delas trabalhavam fora da propriedade: duas eram empregadas
domésticas e uma era agente de saúde. Nestes casos, as mulheres dividiam
o emprego diário na cidade com as atividades de casa e com o trabalho na

274 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

roça. Apenas oito mulheres mencionaram limitar as atividades no espaço


da casa por problemas de saúde e pela idade avançada.
As principais atividades econômicas nas quais as mulheres estavam
inseridas eram a atividade agrícola, através da produção de soja, milho,
feijão e fumo, e com a pecuária, a partir da produção leiteira, a qual cons-
titui uma das principais fontes de renda, pelo menos para 80% das famílias
das entrevistadas. Somente foram identificados dois casos em que os mari-
dos tinham como atividade secundária o trabalho nos garimpos, porém
este trabalho era temporário e a remuneração era conforme o peso das
pedras extraídas, já que eles não eram os donos dos garimpos.
Além desses produtos, todas as mulheres possuem uma pequena
área ao redor de casa para a produção de hortaliças (alface, rúcula,
couve, tomate, salsa, pepino, rabanete e outras espécies de plantas aro-
máticas) e outros cultivos, como amendoim, mandioca, batata e outros.
Além disso, as mulheres também desempenham um papel importante
nos cuidados dos animais de pequeno porte (galinha e porco), dos quais
obtêm diversos produtos (carne, ovos, banha, salame, etc.) que, junto
com as culturas da horta, são destinados basicamente para o consumo
familiar e o excedente para a venda. Em todas as propriedades visitadas,
há pelo menos um açude com produção de peixe, que permite comple-
mentar a alimentação familiar.
A maioria das mulheres é responsável pela atividade de ordenha.
A produção do leite varia conforme o número de vacas, a raça (Holan-
desa, Jersey ou mista), a forma de alimentação (quantidade e qualidade
de pastagens) e a época do ano (geralmente, no verão a produção é menor
que no inverno), em decorrência da atividade ser basicamente desenvol-
vida com base em pastagens de campo nativo. Nos casos em que a produ-
ção é destinada para a venda aos laticínios (o leite é entregue duas vezes
por semana), em média a produção mínima é de 400 litros (2 a 3 vacas)
e a máxima de 3.500 litros (7 a 10 vacas) por mês. No total, a média de
produção é de 1.000 litros por mês, e o valor pago varia de acordo com
a quantidade de litros vendidos (menos de 1.000, R$ 0,45 o litro; mais de
1.000, R$ 0,53 o litro).9
Do total de 21 mulheres que direcionaram o valor do financia-
mento para a atividade leiteira, 14 vendem para os laticínios e seis para
a Cooperativa. Apenas quatro mulheres vendem o leite “picado”, ou seja,
diretamente para os consumidores; nesses casos, o preço do leite é maior

9 Os valores aqui considerados correspondem aos meses (setembro a novembro de 2007) em que
foi realizado o trabalho de campo.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 275


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

(R$ 0,75 o litro). Adicionalmente, elas fazem queijo para o autoconsumo.


Somente três mulheres usam o leite para fazer queijo, que é vendido (o
valor gira em torno de R$ 3,00/kg e 4,00/kg) nas próprias localidades
ou nos supermercados da cidade. Nos quatro casos restantes, o crédito
foi destinado principalmente para atividades de lavoura, plantação de
laranja ou compra de equipamentos para a agroindústria caseira.
Outras fontes de renda advêm da aposentadoria rural (seis mulhe-
res), pensão (duas mulheres), auxílio-doença (uma mulher), bolsa-escola
(10 mulheres). Apenas cinco das mulheres entrevistadas não reportaram
ter esses benefícios. Os benefícios previdenciários são importantes, não
só por obter uma renda a mais que é destinada para os gastos de saúde
e alimentação, mas também pelo fato de as mulheres serem reconheci-
das como “trabalhadoras rurais”, embora esse reconhecimento ainda seja
efêmero, tendo em vista que grande parte do trabalho realizado pelas
mulheres ainda é considerado invisível e declarado como “ajuda” às tare-
fas executadas pelos homens.

3 CONDIÇÕES DE ACESSO E APLICAÇÃO DO CRÉDITO


PRONAF-MULHER PARA AS AGRICULTORAS

O Pronaf-Mulher surgiu no Plano Safra 2003/2004, na ocasião


não se tratava de uma linha específica de crédito, mas sim como um
sobreteto. Ou seja, um valor adicional de 50% ao montante de recur-
sos já disponibilizado às famílias nas linhas de crédito para projetos
de investimento em atividades a serem desenvolvidas pelas mulheres.
No Plano Safra 2004/2005, com a Campanha de Crédito para a Igual-
dade das Trabalhadoras Rurais, entrou em vigor a linha específica Pro-
naf-Mulher sob os seguintes pressupostos: a) construir estratégias de
acesso das mulheres e jovens trabalhadoras ao Pronaf-Crédito; b) des-
burocratizar e garantir o acesso das mulheres e jovens ao Pronaf e aos
fundos constitucionais, para atender a atividades agrícolas e não agrí-
colas, assegurando carência e prazos de pagamento diferenciados para
as mulheres trabalhadoras rurais.
Assim, com essa linha de crédito, teria sido possível financiar uma
diversidade de atividades (manejo de hortas e pequenos animais, pro-
dução de queijo, artesanatos, doces, entre outros) e o financiamento de
forma individual ou coletiva (BRASIL, 2005). No entanto, para acessar o
programa de crédito, são consideradas a renda (atual e futura) da família
e do projeto da mulher, bem como as dívidas já contraídas pela família.
Em caso de inadimplência da família junto ao banco, a mulher pode

276 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

pegar o crédito, desde que tenha a regularização do crédito em débito, a


família e seus membros podem recorrer a outras linhas.
Desde a sua origem, o Pronaf-Mulher sofreu distintas reformula-
ções, especialmente na inclusão de novas categorias de beneficiadas e nos
valores monetários a serem retirados pelas mulheres. Entre as mudanças
geradas ao longo do tempo, está a inclusão das mulheres assentadas pela
Reforma Agrária (Grupo A) e das mulheres de baixa renda (Grupo B).
Além disso, o Documento de Aptidão ao Crédito (DAP) passou a ser feito,
obrigatoriamente, em nome do casal. No Plano Safra 2009/2010, o Pro-
naf-Mulher, que antes possibilitava apenas um contrato, começou a per-
mitir a contratação de até três operações de custeio ou investimento para
mulheres agricultoras de unidades familiares de produção que haviam
recebido financiamentos anteriores por meio dos Grupos A ou A/C (cus-
teio ou investimento da reforma agrária), e até duas operações por uni-
dade familiar para os demais casos (BRASIL, 2009).
Entre os resultados positivos da inclusão das mulheres no Pronaf,
está um crescimento real de 31,5% dos rendimentos das mulheres rurais,
ocorrido entre 2004 e 2006 (MELO; DI SABBATO, 2006, p. 60). Quanto à
participação das mulheres como tomadoras de crédito, Hernández (2009)
afirma que, apesar da meta fixada em 2001 pelo Programa de Ações Afir-
mativas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o qual esta-
beleceu que 30% dos créditos do Pronaf seriam destinados às mulheres,
não ter sido atingida, a participação das mulheres entre os tomadores de
crédito rural vem aumentando.
Um dos pressupostos da linha de crédito específica do Pronaf-
-Mulher é desburocratizar e garantir o processo de acesso ao crédito
para as mulheres agricultoras desenvolverem atividades agrícolas e não
agrícolas, iguais ou diferentes daquelas que vêm sendo praticadas pelas
unidades familiares que elas integram (BRUMER; WEISHEIMER, 2006;
BRASIL, 2005). Assim, com o intuito de identificar algumas estratégias e
possíveis empecilhos na operacionalização e aplicação do crédito do Pro-
naf-Mulher, foram indagados alguns aspectos relacionados à informação
e à elaboração do projeto, como condições prévias para a obtenção do
financiamento.
Conforme alguns resultados obtidos, constatou-se que a maioria
das mulheres soube da existência do Pronaf-Mulher por meio do pro-
grama do rádio e do sindicato. Somente quatro mulheres indicaram
ter conhecimento do programa pela Empresa Pública de Assistência e
Extensão do Estado do Rio Grande Sul (EMATER). Para algumas mulheres
entrevistadas que já assinavam junto com os maridos outras modalida-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 277


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

des de crédito, consideraram que o processo de gestão do crédito não


foi difícil, uma vez que conheciam os procedimentos. Para as mulheres
que nunca haviam obtido o crédito, houve uma sensação de incerteza e
medo, pois tudo era novo e desconhecido, embora tivessem referência de
amigas, parentes e vizinhos.
Em geral, as mulheres mencionaram não conhecer detalhadamente
as normativas dessa modalidade de crédito, porém a maioria delas indi-
cou o tipo de documentação necessária: a carteira de identidade, a cer-
tidão de nascimento, o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e o bloco do
produtor. Apenas três das entrevistadas relataram desconhecer o processo
de gestão do crédito, porque foram os maridos ou os filhos que encami-
nharam a documentação e elas apenas compareceram no sindicato ou na
EMATER para assinar.
Uns dos principais problemas que algumas mulheres enfrentaram
foi não ter clareza sobre o procedimento bancário e nem informação
quanto às garantias exigidas, pois cada agência tem suas próprias nor-
mas e regras.

O Sicredi mais nós fez sofrer, no final eles descontaram mais cento e
poucos, por qualquer coisinha eles vão descontando, demorou um ano
para liberar [o recurso], e eles ainda cobram o juro daquele ano. Eles
tinham o dinheiro [no banco] e não queriam liberar, se [o dinheiro]
ficava mais trinta dias, o banco estava ganhando. Claro, seguraram
esse tempo todo e ficaram ganhando em cima da mulher. (Agricultora,
47 anos).

Nesse sentido, não existe um padrão uniforme das garantias solici-


tadas, como também há um descompasso sobre a exigência de um seguro
de vida (cujo valor é de R$ 100,00), que foi feito depois que as mulheres
haviam assumido o crédito, e sobre o qual algumas delas disseram não
ter tido informação.
O maior temor das mulheres ao assumir inicialmente o crédito era
o fato de não conseguir pagar o financiamento. Essa expressão esteve
presente na maioria dos depoimentos das mulheres, pois o que está em
jogo no cotidiano é o risco da inadimplência, que simbolicamente signi-
fica “fracasso” perante a agência bancária e a sociedade, embora a maio-
ria delas sempre tivesse uma perspectiva positiva sobre o pagamento,
porque elas consideravam outras estratégias e fontes de renda para saldar
as dívidas contraídas no Pronaf-Mulher, tais como poupança direta, pre-
vidência social e outras linhas de crédito. De fato, na avaliação feita pelo
Ministério do Desenvolvimento Agrário (BRASIL, 2005), “o medo de se

278 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

endividar” foi um dos principais motivos pelos quais as agricultoras não


haviam buscado acessar o programa de crédito.
No que diz respeito ao processo de aplicação do crédito, um dos
principais entraves tem sido não apenas a falta de capacitação técnica,
pois, geralmente, são os homens que têm acesso a este tipo capacitação,
mas, também, a falta de fiscalização, principalmente por parte da ins-
tituição bancária, e especificamente do Banco do Brasil. O fato de não
haver uma fiscalização mais efetiva levou à ocorrência de alguns “des-
vios” para algumas mulheres, conforme relatado por uma entrevistada:
“muitos pegavam o dinheiro e não compravam as coisas, pagavam 100
reais no comércio e davam uma nota falsa [comprovando] que tu com-
praste o produto”. Nesse sentido, algumas mulheres argumentaram que o
recurso solicitado nem sempre foi aplicado de acordo com as regras e as
normas do crédito, uma vez que existiram desvios de recursos. Portanto,
o problema reside não apenas na falta de fiscalização, mas, também, que
a cobrança é a mesma para quem realmente aplica o recurso naquilo para
o qual ele foi solicitado e para os que desviam os recursos em outro tipo
de despesa.
Conforme o depoimento das mulheres, prevaleceu um direciona-
mento, por parte do banco e dos outros agentes de mediação, sobre a
atividade que seria financiada.

A gente tinha que botar [o crédito] em coisas que eles [os agentes do
banco] queriam. Queriam que a gente investisse em vaca para leite,
que quando chegasse a hora de pagar esse crédito, a gente podia ter um
retorno e fazer esse pagamento. (Agricultora, 54 anos).

Nesse sentido, a maioria das mulheres entrevistadas solicitou recur-


sos (R$ 6.000,00) para financiar matrizes leiteiras e outros equipamentos,
com o objetivo de aumentar a produção de leite e intensificar essa ati-
vidade. Além disso, em alguns casos, o crédito também foi direcionado
para a compra de equipamentos agrícolas. Outras mulheres solicitaram
o financiamento para a compra de outros equipamentos (forno, tacho
inox), infraestrutura (construção de estábulo), manejo de solos e recupe-
ração de pastagens através de insumos agrícolas e pagamento das “horas
máquinas” trabalhadas.
Uma parte do recurso do Pronaf-Mulher foi destinada também para
o pagamento das dívidas de outras modalidades do crédito. Muito embora
o dinheiro não tenha chegado diretamente às mãos das agricultoras, foi
através da venda de alguma matriz leiteira ou de um terneiro que o valor

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 279


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

monetário foi recuperado e destinado para atender às diversas situações.


Apenas uma das mulheres entrevistadas aplicou o crédito para a reforma
de pocilgas e produção de leitões.
Esses aspectos permitem constatar que tanto o processo de gestão
quanto os projetos elaborados respondem a uma exigência de caráter
normativo, com o fim de obter a aprovação do crédito, uma vez que o
conteúdo dos projetos e a forma de sua elaboração, além de não con-
templarem os objetivos reais das mulheres, são desconhecidos por elas.
Por outro lado, não existe uma estratégia de capacitação, nem de acom-
panhamento técnico e avaliação. Desse modo, existe um descompasso
entre os aspectos normativos e os procedimentos das principais institui-
ções bancárias, entre os aspectos técnicos da extensão rural e o contexto,
as condições e as necessidades das mulheres.
No que diz respeito ao retorno financeiro obtido da venda do leite, é
pago mensalmente, o que equivale a uma forma de “salário” e destinado à
compra dos bens necessários à reprodução da família e de insumos agríco-
las e pecuária, neste caso a produção de leite. No entanto, esse recurso por
si só não responde às expectativas da família em termos de uma mudança
no padrão do consumo ou na qualidade de vida no curto prazo.
Em síntese, cabe salientar que os elementos relacionados tanto com
o processo de gestão quanto à aplicação do crédito Pronaf-Mulher (Qua-
dro 1) constituem algumas potencialidades e limites para a efetivação do
programa para as mulheres rurais do município de Rodeio Bonito, região
do Alto Uruguai.
É importante mencionar que o impacto do crédito está condicio-
nado por uma série de aspectos estruturais, próprios da origem e das
características do programa. Esses aspectos possibilitam ou limitam a
construção do processo de empoderamento das mulheres rurais. Em
ambos os casos, o papel dos agentes vinculados com o processo de cré-
dito e sua visão sobre as possibilidades das mulheres obterem crédito
constituem-se aspectos-chave na construção desse processo. Por outro
lado, o significado que o crédito adquire para as mulheres e as possibi-
lidades de participação social são elementos determinantes que influen-
ciam nesse processo.

4 O PAPEL DOS AGENTES DE MEDIAÇÃO E A PARTICIPAÇÃO


DAS MULHERES COMO CONDIÇÕES DE EMPODERAMENTO

A intervenção dos agentes de mediação é diversa, conforme os


objetivos da instituição que representam. Um dos aspectos que pode limi-

280 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

Quadro 1 – Síntese sobre os principais limites e possibilidades para efetivação do


Pronaf-Mulher.
normativos

específicos
Aspectos

Critérios
Potencialidades Limites

-Informação ambígua sobre o


Informação

-Meios eficientes de comunicação programa e os procedimentos


-Comprometimentos de órgãos bancários
voltados à agricultura familiar -Desconhecimento sobre as
(sindicatos e movimentos sociais) normas do programa
-Medo e incertezas
-Apoio da coordenação das
Documentação

mulheres
-Regularização e atualização da - Resistência por parte do sin-
Processo de gestão

documentação dicato e do banco


-Experiências prévias de outras
linhas de crédito
-Meio para demonstrar a capaci-
dade produtiva a ser financiada
Projeto técnico

-Não considera necessariamente


- Apoio da Emater os interesses das mulheres
- Atividade produtiva -Ausência de capacitação e fisca-
lização da aplicação dos projetos
-Desconhecimento sobre a ela-
boração dos projetos
Concessão
do crédito

-Grupal: relação de confiança, -Grupal: imposição com base


pagamento com juros menores em critérios econômicos
-Aval cruzado ou solidário -Fragiliza as relações sociais
-Reafirma relações sociais -Ausência de grupo “solidário”
-Atividade (leiteira) direcionada
comercialização

-Alternativas de mercado
-Diferenciação no produto
Produção e

-Atividade produtiva com gera-


-Poucas possibilidades de
ção de renda, através da produ-
Processo de aplicação

gerenciamento das atividades


ção leiteira
-Não existe relação de grupo
- Atividade produtiva ancorada
para desenvolver as atividades
no geral da propriedade
produtivas
-Complementar a renda da família
-Apoio nas despesas de casa,
financeiro
Retorno

insumos agrícolas, e indireta-


-Ausência de autonomia sobre
mente permite cobrir as dívidas
o controle dos recursos
de outros financiamentos
-Retorno mensal, atividade de
menor risco

Fonte: Elaboração própria.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 281


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

tar ou possibilitar o processo de empoderamento das mulheres são as


ações relacionadas com a divulgação, informação e capacitação relativa
ao processo de crédito. Assim, a falta de clareza de informação relacio-
nada ao crédito e a dificuldade de obtenção de assistência técnica têm
limitado a efetivação do Pronaf-Mulher.
Com base nos resultados da pesquisa de campo, destaca-se o papel
dos agentes vinculados ao Sindicato de Trabalhadores Rurais (represen-
tante dos agricultores familiares), ao Sistema de Extensão Rural, à Agên-
cia Financiadora (instituições do setor público) e à Cooperativa (Coo-
perA1). Os três primeiros medeiam o processo de gestão e liberação dos
recursos econômicos do crédito, enquanto que a Cooperativa apenas cria
as condições para facilitar a comercialização do produto, que é obtido
através da atividade para a qual foi aplicado o crédito.
Algumas das principais dificuldades em relação à atuação dos
agentes financeiros são a falta de clareza de informação sobre os juros e
os procedimentos bancários. Esses problemas são decorrentes da falta de
sensibilidade, de experiência e de disponibilidade de lidar com uma linha
específica para as mulheres, pois, historicamente, o crédito rural tem sido
destinado aos homens.
Resultados semelhantes foram apontados por Alves (2007), Fernan-
des (2008) e Zorzi (2008), quando mostram que existe uma falta de sensi-
bilização e abertura por parte das instituições financeiras nas demandas
específicas das mulheres, uma vez que as práticas de atendimento são
consideradas “neutras”. Ou seja, não levam em conta as especificidades
das relações de gênero, pois, no imaginário destes agentes, as mulheres
não estão dotadas de habilidades e capacidade de lidar com o processo
burocrático. Outros estudos sobre o impacto dos programas de crédito
mostram que uma das principais dificuldades na relação entre os agen-
tes bancários e as beneficiárias é o distanciamento social, que tem a ver
com a pouca experiência, a falta de disponibilidade e de sensibilidade
no atendimento de situações específicas, no que concerne às mulheres
(KABEER; 1998; ROMANO; BUARQUE, 2001).
Portanto, mesmo que as mulheres tenham reconhecido que existe
uma parceria entre as diversas instituições, por exemplo, EMATER, Sin-
dicato, Banco e Cooper A1, e algumas delas considerem a necessidade do
trabalho em conjunto, os agentes de mediação operam e facilitam o pro-
cesso de crédito conforme objetivos e interesses, claramente delimitados,
segundo as regras da instituição da qual eles são representantes.
Por outro lado, foi possível constatar uma série de significados
pelas próprias mulheres, ao colocar que, pela primeira vez, têm sido reco-

282 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

nhecidas pelo Estado, fazendo valer seus direitos como “mulheres agri-
cultoras”, por meio das políticas públicas, especificamente o acesso ao
Pronaf-Mulher. Desse modo, a importância e o significado do crédito
não se reduzem apenas à contribuição econômica como sustento de seu
aporte à economia familiar, mas também incorporam elementos como o
reconhecimento aos direitos conquistados. Além disso, aspectos de cará-
ter simbólico que os agentes de mediação constroem em torno do mascu-
lino e do feminino também permeiam o sentido do crédito.

A mulher é mais de fazer as coisas certas, ela faz questão, porque ela
envolve mais os filhos e a família. Parece que elas são mais espertas.
Eu não tenho notado problema com as mulheres. O que elas têm pegado
[o crédito], elas têm sido mais categóricas. Eu acho que ela leva vanta-
gem em relação ao homem, porque a mulher vai conseguindo, em mui-
tos casos, “cutucar” [insistir], fazer eles acordarem, mudar um pouco.
Nesse sentido, eu acho que é melhor, porque ela naturalmente conversa
mais em casa, está junto com a família. Eu acho que a mulher só tem
a somar nesse tipo de coisa [o crédito]. (Técnico da Emater).

Para algumas mulheres, a existência do crédito representa uma


“baita conquista”, porque, dessa forma, elas se sentem mais valorizadas.
Isso também significa que, pela primeira vez, são levadas em conta pelo
Estado, pois, conforme uma das entrevistadas, “as mulheres da roça tam-
bém devem ter direitos”. Então, com base na identidade de “agricultora”,
a luta por esse direito tem sido fundamental, porque é uma possibilidade
de garantir uma renda a mais que permite adquirir ou investir em alguns
bens ou melhorar a situação familiar, significando para elas uma grande
satisfação poder contribuir economicamente.

Representa que a gente se sinta mais valorizada, parece que a gente é


mais dona. Para mim representou isso, parece que fiquei mais dona,
mais capacitada nas coisas de conseguir um financiamento. Eu acho
muito bom, que depois de entrar essa lei dos direitos a ser igual, a
mulher pode “tomar frente” do homem, hoje ela tem muito direito.
(Agricultora, 52 anos).

Por outra parte, uma das estratégias de empoderamento é a partici-


pação das mulheres em diversos espaços, uma vez que “[...] a participação é
um mecanismo que amplia a capacidade das pessoas para realizarem suas
próprias reflexões, ganharem confiança e tomarem suas próprias decisões
que as leva a assumir seu próprio processo” (ANTUNES 2003, p. 59).
No entanto, alguns resultados da pesquisa mostraram que existem fato-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 283


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

res de ordem estrutural e cultural, além das relações de poder, que estão
presentes nesses diferentes espaços, os quais limitam uma participação
efetiva das mulheres.
Nesse sentido, algumas mulheres disseram que os principais moti-
vos que restringem a participação nesses encontros são a idade avançada
e os problemas de saúde, bem como a falta de segurança de se expressar,
como diz uma das agricultoras: “Não participo porque parece que as
palavras não saem, talvez por medo, não sei se é porque a gente se criou
só trabalhando. Então, prefiro ir à roça, assim não falo com ninguém”.
Para outras mulheres, o fato de ter poucas oportunidades de estudo
limita o seu desenvolvimento na forma de expressão, o que não lhes
permite ter maior segurança na dinâmica da participação. Neste sentido,
alguns estudos mostram que o nível de escolaridade é um dos fatores que
propicia uma maior participação das mulheres em aspectos administrati-
vos. Também possibilita que elas possam ter um espaço para desenvolver
suas capacidades, não apenas nas atividades domésticas e produtivas,
na unidade de produção familiar, mas também em atividades de caráter
financeiro (HIDALGO, 2002; MARTÍNEZ DEJUI, 2006).
No entanto, social e historicamente, as mulheres têm tido não somente
poucas possibilidades de estudos, mas também uma limitada participação
nos espaços públicos. E quando essa participação existe, geralmente é nomi-
nal, instrumental e, às vezes, representativa; mas nem sempre transforma-
dora (PETTERSEN; SOLBAKKEN, 1998). Conforme Pereira (2002), no espaço
do sindicalismo, a representatividade começa a ganhar qualidade na fase
reivindicativa. Portanto, a participação das mulheres agricultoras em relação
ao crédito apenas é instrumental, parte de um processo reivindicativo.
Por outro lado, cabe sublinhar que essa pouca ou nula participação
não se deve apenas à falta de autoestima, habilidades e capacidades das
mulheres, mas também às relações de poder que permeiam esses espaços.
Essas relações são marcantes, sobretudo, quando é uma mulher quem
desenvolve um cargo na diretoria do sindicato.

Eu tenho já dois anos no Sindicato, mas no início foi muito difícil


assumir a presidência porque ainda tem muito preconceito pelo fato de
ser mulher. A gente enfrentou preconceito por ser mulher, inclusive dos
homens da diretoria. Eles diziam “Uma mulher não tem capacidade”, e
a gente falou que não! Claro que tinha, se eles tinham a gente também
podia ter. (Presidente do Sindicato)

Portanto, no cotidiano das mulheres existem múltiplos fatores tanto


de ordem normativa quanto estrutural que limitam a plena participação

284 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

das mesmas nos diferentes espaços sociais. Ainda que o papel das lideran-
ças seja incentivar as mulheres a participarem, elas argumentaram que no
processo desse trabalho é difícil, pois sempre existem mulheres que resis-
tem a participar, justificando a “falta de tempo”, sobretudo quando não se
tem resultados concretos conforme a demanda, mesmo que existam casos
em que os maridos estejam de acordo com a participação.

A dificuldade maior é que você convoca as mulheres para uma reunião


e a maioria não participa, não dão muito valor. Elas dão mais valor
quando é uma coisa que elas já vêm o resultado na hora. Então, a
gente também gostaria de fazer um trabalho melhor, mas as mulheres
colocam também: “Ah, eu não tenho tempo”. (Coordenadora municipal
das mulheres)

Então, considerando a participação social e política como um dos


elementos-chave no processo de empoderamento, os resultados da pes-
quisa indicam que são múltiplos os fatores que condicionam e influen-
ciam na tomada de decisões e as escolhas das mulheres nos diferentes
espaços de participação social e política.
Dessa forma, mesmo que a possibilidade de obter o crédito sig-
nifique um reconhecimento dos direitos das “mulheres agricultoras”,
conquistado basicamente pelas ações do movimento de mulheres rurais
(FARAH, 2004; HEREDIA; CINTRÃO, 2006), as possibilidades de se
questionar a submissão das mulheres em algumas instituições (família,
Estado, mercado, entre outras) e tomar uma “consciência libertadora”
(BOURDIEU, 2005, p. 147) ainda são efêmeras.

5 A INSERÇÃO DAS MULHERES RURAIS


NA AGRICULTURA FAMILIAR

As mulheres sempre têm desempenhado um papel central na pro-


dução voltada para a subsistência familiar (SHAAF, 2001; MELO; DI
SABBATO, 2006); o processo de modernização da agricultura teve um
forte impacto sobre a posição das mulheres no contexto rural, levando
a uma redefinição do trabalho familiar e do papel social das mulhe-
res no interior da unidade doméstica (BRUMER, 1996). Contudo, mesmo
que a mulher tenha uma participação importante na agricultura familiar,
sobretudo na produção de autoconsumo, como foi mostrado por Melo
e Di Sabbato (2006), ainda persiste a invisibilidade das mulheres, uma
vez que seu aporte à economia familiar não é reconhecido ao interior da
unidade doméstica. De fato, no contexto empírico estudado, foi possível

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 285


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

constatar que um aumento na dupla ou tripla jornada de trabalho, espe-


cialmente para as mulheres que trabalham fora da propriedade, embora
algumas delas contratem mão de obra para as tarefas domésticas, ou
tenham apoio familiar (filha, sogra ou mãe) para desenvolver essas ativi-
dades enquanto elas estão ausentes. Por exemplo, das três mulheres que
têm emprego fora de suas localidades (uma viúva e duas casadas), as duas
que trabalham como empregadas domésticas enfatizaram em seus discur-
sos que o emprego constitui uma necessidade para responder à precária
condição econômica.
Assim, para essas mulheres, o fato de ter um emprego fora da pro-
priedade e receber uma renda mensal (salário mínimo) lhes permite certa
autonomia ao considerar como ‘próprio’ esse recurso e decidir ‘livremente’
o destino dele. Para algumas delas, o marido, o filho ou as redes de apoio
familiar são importantes para assumir a atividade (leiteira) financiada
pelo crédito. Neste sentido, as mulheres dificilmente conseguem ter um
espaço próprio de decisão no gerenciamento dessa atividade, de forma
que pudesse significar uma possibilidade de empoderamento econômico.
Sob essas condições, a perspectiva de solicitar um tipo de “crédito
para as mulheres” executarem atividades que permitam gerar renda pró-
pria e, ao mesmo tempo, ter controle sobre o gerenciamento da atividade
é limitada, visto que são os homens os principais responsáveis e os que
poderiam tomar conta de forma parcial ou total da atividade leiteira,
sobretudo se a produção tem grandes chances de se inserir no mercado.
Por outro lado, a pesquisa também possibilitou constatar duas situ-
ações diferenciadas sobre a trajetória das mulheres: 1) mulheres que têm
trajetórias como empregadas domésticas ou outro tipo de emprego na
cidade; 2) mulheres cuja trajetória é o trabalho na roça, sendo a produção
leiteira uma das principais atividades, principalmente direcionado para
o consumo familiar. Com base nessas duas situações, podem-se destacar
alguns elementos que permeiam o significado e a importância de obter o
Pronaf-Mulher.
Para algumas dessas mulheres, a perda de independência eco-
nômica em detrimento de cumprir uma “função social”, por exemplo,
o casamento ou auxiliar uma situação familiar, não significou apenas
romper com um processo que antes lhes permitia estabilidade e autono-
mia econômica, mas também ter que se sujeitar em uma nova dinâmica
familiar, na qual realizam trabalhos sem remuneração. Desse modo,
acabam assumindo outras responsabilidades, mudando a lógica de con-
sumo e priorizando os bens coletivos que respondem às necessidades
básicas da família.

286 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

Na segunda situação, em que as mulheres têm uma trajetória prévia


na atividade leiteira, a escolha da intensificação dessa atividade advém,
certamente, da experiência anterior, pois, como uma das mulheres men-
cionou: “decidimos pegar o crédito para vaca porque já estamos acostu-
mados com isso”. Então, além de uma condição conjuntural, o habitus
presente nas mulheres sobre essa atividade e outras condições represen-
tou um incentivo para fortalecer a produção leiteira, embora isso não
signifique estrito controle pelo gerenciamento da atividade e, sim, uma
transformação na lógica de produção.

Desde que era criança eu tirava o leite, mas também ia para a roça.
Mas isso já foi quando casei, naquela época a gente plantava, colhia
e fazia safras de soja e milho. Mas a gente lutava sempre com essas
secas. Daí começamos a vender o leite, mas, antes disso, eu fazia
queijo para vender e criava porco. Eu ia à cidade, vendia ovos nos
mercados para fazer um dinheirinho. A gente tinha essas atividades,
mas começamos a vender o leite e foi mudando muita coisa. (Agricul-
tora, 54 anos).

Também é importante mencionar que o impacto do Pronaf-


-Mulher é muito recente, sendo difícil identificar mudanças profundas
e expressivas. Porém, a maioria das mulheres entrevistadas indicou ter
havido mudanças principalmente econômicas e na estratégia de pro-
dução, uma vez que, em alguns casos, a produção leiteira com valor
comercial tem redefinido o tempo, a possibilidade e a necessidade de
elaboração de queijo.
Para algumas mulheres, o recurso que advém da venda do leite
significa uma melhora econômica, pois é possível investir nos bens mate-
riais para facilitar o processo de trabalho ou para bens de consumo para
melhorar a alimentação. O fato de ter um recurso a mais para com-
plementar a alimentação, comprar alguns eletrodomésticos, investir na
compra de medicamentos ou para responder a situações de emergência
tem significado uma mudança na vida de algumas mulheres, especial-
mente porque, em alguns casos, os recursos que advêm da lavoura não
são suficientes para a manutenção da família.
Portanto, o significado de mudança social, econômica e produtiva
é muito variável e significativo, conforme os objetivos e os interesses
de cada uma das mulheres entrevistadas e as relações familiares estabe-
lecidas (GASSON; ERRINGTON, 1993). Às vezes, esses objetivos podem
ser perpassados por uma condição inicial que provoque um processo de
empoderamento (ANTUNES, 2003; BATLIWALA, 1997; KABEER, 1998).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 287


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

Embora o crédito para desenvolver uma atividade produtiva seja


um recurso econômico, pré-condição para o empoderamento das mulhe-
res, o financiamento por si só não é suficiente, uma vez que os recursos
sociais e humanos estão ausentes para algumas mulheres ou presentes de
forma incipiente para outras. Isso dificulta as condições reais do processo
de empoderamento, mesmo que este processo seja relativo para cada uma
das mulheres.
De fato, a própria dinâmica da atividade produtiva na qual as
mulheres estão inseridas permite uma reconfiguração na divisão sexual
do trabalho e no processo de produção, porém não necessariamente leva
a uma transformação social das mulheres, de modo que possa repercutir
em uma mudança nas relações de gênero.

[O Pronaf-Mulher] tem que ser mais bem trabalhado, para que esse
crédito possa reconhecer a participação da mulher como um todo.
Também para que ela possa crescer [desenvolver], se organizar e ter
um trabalho específico. Talvez precise um trabalho em conjunto entre
os órgãos do Estado e as mulheres. Isso é o que vai fortalecer o setor
rural. Que o crédito não seja só uma forma de pegar um dinheiro a
mais para acrescentar a receita e renda para aquela família, mas bem
uma forma de transformar socialmente essas mulheres. (Técnico da
Emater).

Assim, para se repensar em uma política de crédito, especialmente


o Pronaf-Mulher, desde uma perspectiva de gênero, sob a dimensão de
empoderamento, é necessário, por um lado, se questionar sobre o papel
das mulheres em determinadas atividades produtivas e identificarem-se
as condições reais de “poder” nos espaços de comercialização com base
nessas atividades. Além disso, é preciso verificar se as mulheres estão dis-
postas a romper com a estrutura de dominação, presente no seu habitus,
que se reproduz no cotidiano familiar.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos resultados aqui mostrados, questionou-se o objetivo


do Pronaf-Mulher, tendo em vista que sua efetivação partia do pressu-
posto de que as mulheres pudessem obter um crédito e aplicá-lo em uma
atividade gerenciada por elas, que se manifestaria em sua independência
econômica. Nesse sentido, o acesso ao programa significou uma oportu-
nidade econômica para complementar a renda familiar. Entretanto, existe
certo desconhecimento sobre as normas do programa e seus procedimen-

288 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Carmen Osorio Hernández

tos bancários. Estes aspectos têm provocado, para algumas delas, medos
e incertezas sobre as condições de pagamento.
Por outro lado, existe uma diferenciação na administração e na uti-
lização dos recursos em função dos objetivos, dos interesses e da dinâ-
mica familiar. Isso possibilitou relativizar o gerenciamento da atividade
produtiva por parte das mulheres, já que esteve condicionada aos aspec-
tos normativos, estruturais e de operacionalização das agências bancárias.
Desse modo, é possível afirmar que existe um distanciamento dos agentes
vinculados com o crédito em termos de transformação social, como parte
das mudanças nas relações de gênero, uma vez que algumas dessas ações
ainda respondem a uma lógica centrada na visão do papel da mulher no
âmbito reprodutivo, por meio de projetos de geração de renda que visam
exclusivamente a uma forma complementar à produção familiar.
Por conta disso, a obtenção do crédito não contribuiu para a
melhoria na posição das mulheres na hierarquia familiar, nem permitiu
visibilizar o trabalho dentro da propriedade familiar. Até porque o fato de
ter financiado uma atividade econômica sustentada em uma lógica fami-
liar dificilmente provocaria uma ruptura na visão tradicional do feminino
e nas relações de gênero.
Contudo, a concessão do crédito para as mulheres teve um signifi-
cado simbólico no sentido de se autorreconhecerem como “cidadãs legí-
timas com direitos”, já que, historicamente, não eram reconhecidas pelo
Estado brasileiro como principais “sujeitos sociais com direito a crédito”.
Nesse sentido, a intervenção das políticas públicas, através de programas
de crédito rural, como é o Pronaf-Mulher, teve um impacto no sentido de
atender às demandas de um público-alvo, as mulheres rurais.
Entretanto, o programa esteve focalizado “na mulher”, conside-
rando seu “papel tradicional” dentro da unidade familiar. De fato, essa
visão é reafirmada pela família, percebida assim por elas e pelos diversos
agentes e instituições que medeiam o processo de crédito. Portanto, a
existência de um “crédito para as mulheres” tem sentido, na medida em
que absorve um número maior de “clientes” do sexo feminino, contudo
apresenta limites por não garantir as condições reais de participação e de
transformação social desse público-alvo.
Nesse contexto, o programa respondeu apenas às “necessidades
práticas” das mulheres, mas não às condições estratégicas de gênero,10
uma vez que a questão de gênero não foi considerada no planejamento,

10 Ver mais sobre estes conceitos no Capítulo 1.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 289


Potencialidades e Limites do Pronaf-Mulher no Processo de Empoderamento das Mulheres Agricultoras

nem nas ações do programa. O programa apenas foi proposto como uma
estratégia transversal nos planos governamentais. Desse modo, é possível
afirmar que o Pronaf-Mulher tem sua efetivação social comprometida,
respondendo a uma política “para as mulheres” e não a uma “política
com perspectiva de gênero” para o desenvolvimento rural.
Dentro desta perspectiva, a noção de empoderamento emerge
como uma estratégia e um campo fértil no discurso hegemônico das
principais instituições de desenvolvimento, que o adotam como um dos
principais objetivos na elaboração de programas e políticas voltadas
para o setor “mais pobre”, “vulnerável” e “menos favorecido” da popu-
lação. Não obstante, os resultados permitem constatar que a noção de
empoderamento é um processo que pode variar para cada uma das
mulheres, conforme o contexto, as condições históricas e familiares,
a posição familiar e a forma de inserção na agricultura familiar e na
comunidade, bem como as estratégias de negociação e mediação esta-
belecidas para se alcançar determinados objetivos. Nesse sentido, é um
processo sujeito a retrocessos e avanços, o qual, por sua vez, depende
de diversos fatores e das ações dos diferentes atores sociais que intera-
tuam nas comunidades rurais.

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292 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


CAPÍTULO 12

Mulheres na agricultura familiar


do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e
desenvolvimento rural no feminino

Ana Alves Neta Barbosa


Marta Júlia Marques Lopes
Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

1 INTRODUÇÃO

Neste capítulo, são considerados aspectos teóricos relativos ao


empoderamento e ao desenvolvimento rural como suporte à análise dos
fatores inclusão/exclusão vinculados ao gênero no Projeto Jaíba.1 Essa
perspectiva constitui-se em um olhar amplo sobre situações de vida e tra-
balho das mulheres nesse contexto, contemplando as questões referentes
ao processo decisório, à unidade familiar e às relações comunitárias no
âmbito do Projeto. Todos os itens abordados estão diretamente relaciona-
dos com as possibilidades de empoderamento das mulheres como estra-
tégia de desenvolvimento.
Cabe salientar que o termo empoderamento das mulheres está
sendo considerado na perspectiva de Sen (2000), que trata da condição
de agente das mulheres na ideia de expansão das oportunidades para o
exercício das liberdades e o aumento das oportunidades para o exercício
das liberdades, implicando o aumento da qualidade de vida do indivíduo.
Para o referido autor, o desenvolvimento é visto como um processo de
expansão das liberdades em que as pessoas possam dele usufruir. Dessa
forma, a expansão da liberdade é considerada “o fim primordial e o prin-
cipal meio” do desenvolvimento, tidos, respectivamente, como o “papel
constitutivo” e o “papel instrumental” da liberdade no desenvolvimento
(SEN, 2000, p. 55). No Capítulo 3, são discutidos outros aspectos com
mais detalhes sobre a perspectiva de desenvolvimento em Amartya Sen
relacionados às relações de gênero e desenvolvimento.
Os principais constituintes da Abordagem das Capacitações, para o
autor, são os funcionamentos e as capacitações, compreendendo “funcio-
namentos” como as várias coisas que a pessoa pode ser e fazer, desde as
coisas elementares, uma boa alimentação, estar saudável, e até as situa-
ções como poder participar da sociedade civil.
Ainda para esse autor, os aspectos relativos à condição de agente
das mulheres estão começando a receber alguma atenção, em contraste
com a exclusiva atenção que se dava anteriormente somente nos aspectos
do bem-estar.

1 O Projeto Jaíba, situado no Norte de Minas Gerais, a aproximadamente 204 km da cidade de


Montes Claros e a uma distância de 622 km de Belo Horizonte e 950 de Brasília – DF, é caracte-
rizado como o maior projeto de irrigação em área contínua da América Latina (SOARES, 1999).
Originou-se da ação conjunta da União e do Governo de Minas Gerais, tendo como meta final
da sua implantação a capacidade de irrigar uma área de 100.000 hectares. Tal empreendimento
foi idealizado na perspectiva de se construir um grande projeto de irrigação que auxiliasse no
desenvolvimento regional pautado pela redução das desigualdades sociais e regionais do Brasil
(SANTOS; SILVA, 2009).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 295


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

A concentração era mais sobre o bem-estar da mulher – um corre-


tivo muitíssimo necessário. Mas os objetivos, partindo desse enfoque
“Welfarista”, aos poucos evoluíram e se ampliaram para incorporar – e
enfatizar – o papel ativo da condição de agente das mulheres. Já não
mais receptoras passivas de auxílio para melhorar seu bem-estar, as
mulheres são vistas cada vez mais, tanto pelos homens como por elas
próprias, como agentes ativos de mudança: promotoras dinâmicas de
transformações sociais que podem alterar a vida das mulheres e dos
homens. (SEN, 2000, p. 220-221).

Em relação à condição de agente e bem-estar, ressalta-se que o


papel da condição de agente tem de concentrar-se significativamente
também no bem-estar feminino. E, por outro lado, aumentar o bem-estar
feminino também não pode deixar de recorrer à condição de agente das
próprias mulheres, para ocasionar mudança (SEN, 2000, p. 221).
É importante enfatizar que todos os aspectos da situação feminina
têm em comum a sua contribuição positiva, capaz de fortalecer a voz
ativa e a condição de agente das mulheres, seguramente pela indepen-
dência e pelo ganho do poder, uma vez que o fato de trabalhar fora de
casa e possuir uma renda independente produz um impacto claro sobre a
melhora da posição social da mulher, tanto na sociedade quanto em casa.
Assim, a contribuição da mulher para a prosperidade da família é mais
visível e, consequentemente, ela ganha mais autonomia. Além disso,
existe o efeito educativo do trabalho fora de casa, fato que aumenta a sua
condição de agente, e a mulher torna-se mais qualificada e informada.
Outro fator a ser considerado é a propriedade de bens, que também pode
tornar a mulher mais poderosa nas suas decisões na família (SEN, 2000).
Esses elementos trazidos por Sen serão balizadores das discussões
que se apresentam na sequência. Portanto, serão analisados os aspectos
responsivos tanto pelo aumento das oportunidades das mulheres quanto
pela dificuldade de adquirirem os papéis constitutivos e instrumentais,
capazes de gerar a sua “condição de agente”.
Analisam-se, nesta perspectiva, alguns elementos que estão pre-
sentes ou “deveriam estar” na vida e no trabalho das mulheres da agri-
cultura familiar e que implicam situação favorável à inclusão social no
Projeto Jaíba, vinculada ao gênero, tais como: participação, condições
materiais (bens de consumo), assistência técnica, associativismo, lazer,
valorização, acesso ao crédito, acesso à escola, acesso à saúde e segu-
rança. Discutem-se, ainda, aspectos referentes à existência de fatores
vinculados ao gênero que podem provocar a exclusão social no Projeto,
como: falta de participação, poucas condições materiais (bens de con-

296 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

sumo), falta de assistência técnica, ausência de associativismo, falta de


lazer, não valorização (do trabalho) da mulher, falta de acesso ao crédito,
analfabetismo, falta de acesso à saúde, ausência de interação e mediação.
Optou-se pelo estudo do campo relativo aos modos de vida e tra-
balho das mulheres do semiárido norte-mineiro como uma questão a
ser construída e sistematizada na perspectiva das relações de gênero.
O Projeto Jaíba fica situado no Norte de Minas Gerais, aproximadamente
a 204 km da cidade de Montes Claros, a uma distância de 622 km de Belo
Horizonte e a 950 de Brasília – DF. De acordo com Soares (1999), é carac-
terizado como o maior projeto de irrigação em área contínua da América
Latina e originou-se da ação conjunta da União e do Governo de Minas
Gerais, tendo como meta final da sua implantação a capacidade de irri-
gar uma área de 100.000 hectares. Tal empreendimento foi idealizado na
perspectiva de se construir um grande projeto de irrigação que auxiliasse
no desenvolvimento regional pautado pela redução das desigualdades
sociais e regionais do Brasil (SANTOS; SILVA, 2009).
Diante dos objetivos propostos, tem-se um estudo analítico, atra-
vés de uma revisão de literatura, que busca estabelecer uma relação entre
a temática proposta e as teorias apresentadas sobre as questões de inclu-
são e exclusão, desenvolvimento rural no feminino.

2 FATORES DE INCLUSÃO SOCIAL E DE GÊNERO NO PROJETO JAÍBA:


É POSSÍVEL PENSAR UMA PEDAGOGIA DO EMPODERAMENTO?

Em se tratando de elementos de inclusão, analisam-se os fatores


que propulsionam inclusão social das mulheres no âmbito do Projeto
Jaíba (PJ). Para tanto, tem-se a concepção de Deere e León (2002) sobre
o empoderamento como ponto referencial para essa análise, tomando-o
como um processo que requer uma transformação no acesso da mulher
no que se refere tanto aos bens quanto ao poder, sendo capaz de transfor-
mar relações de gênero, como uma pré-condição para se obter igualdade
entre homens e mulheres.
Evidencia-se a compreensão que se tem de inclusão como centrada
na liberdade, no bem-estar e na equidade, portanto, “empoderamento”
como estratégia de desenvolvimento. Nesse sentido, desenvolvimento
refere-se a uma expansão de liberdade, e ter mais liberdade é melhorar
o potencial das pessoas. Assim, para o processo de desenvolvimento, são
considerados cinco tipos de liberdades instrumentais, a saber: as liberda-
des políticas, as quais estão relacionadas aos direitos civis, à liberdade de
expressão e às possibilidades de escolhas; as facilidades econômicas, que

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 297


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

remetem aos intitulamentos econômicos, às oportunidades que os indi-


víduos têm para o uso dos recursos para o consumo, produção ou troca;
as oportunidades sociais, que se referem às disposições estabelecidas pela
sociedade nas áreas como educação, saúde, etc.; as garantias de transpa-
rência, as quais são relativas às necessidades de se estabelecer confiança
uns com os outros, e a segurança protetora, que diz respeito à necessi-
dade de propiciar uma rede de segurança social (SEN, 2000, p. 58-60).
Desse modo, constatou-se que o acesso ao crédito no PJ ainda
é incipiente, e quando as mulheres ressaltaram a obtenção deste, foi
caracterizado como de extrema relevância para a família e para si pró-
prias. Nessa perspectiva, têm-se as facilidades econômicas, uma vez que,
de acordo com Sen (2000), a disponibilidade de financiamento e o seu
acesso são considerados como determinantes sobre os intitulamentos, os
quais podem ser assegurados pelos agentes econômicos, conforme pode
ser evidenciado nas entrevistas.

O crédito é concedido aos grupos de interesse, conforme suas ativi-


dades, dentro do planejamento agropecuário e não agropecuário. Em
algumas situações, é concedido também às mulheres, quando estas são
cônjuges de proponentes já em atividade com os agentes financeiros.
A gente percebe que sempre há vantagens em relação à obtenção do
crédito pelas mulheres devido à qualidade do projeto, quanto à pre-
visão de rendas extras familiares e para ajudar o seu companheiro e
demais membros da família. A mulher age sempre pensando no bem-
-estar da família. (Agente, entrevista 24).

Nesse sentido, as facilidades econômicas relativas às liberdades


substantivas ainda estão centradas na representação dominante da atu-
ação da mulher, quando o agente expressa que “em algumas situações,
é concedido também o crédito às mulheres”. Acrescenta-se a presença de
elementos simbólicos e das representações dos agentes e da família ao
enfatizarem que “a mulher age sempre pensando no bem-estar da família,
ajudar o seu companheiro e demais membros da família”.
Ademais, pode-se dizer que ainda é inexpressivo o acesso ao cré-
dito agrícola pelas mulheres no Projeto. As poucas entrevistadas, que
conseguiram sua obtenção, demonstraram a importância para a conso-
lidação de muitos fatores que contribuem com a melhoria da qualidade
de vida e, consequentemente, da família e, sobretudo, pela legitimidade
do papel de agricultora que a mulher consegue potencializar. É, sim, uma
valorização econômica, mas efetiva e substancialmente uma “validação”
social para o trabalho feminino.

298 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

Pra mim foi tudo bom no crédito, não tenho nada que reclamar, não.
Todas as vezes que eu fiz, foi bom. Agora mesmo nós estamos ten-
tando outro aí, com fé em Deus vai dar certo. Mas não é Pronaf-
-Mulher não. (Mulher, entrevista 1, grifo nosso).

Lá em casa já adquiriu financiamento no Banco do Nordeste. Não,


não sei se era Pronaf, era empréstimo lá. Não sei como é que chama,
dona. Acho que é empréstimo que fala, mas não é Pronaf, não. Uma
vez meu esposo fez o Pronaf, mas coisa pequena que foi para feijão,
colheu e pronto. (Mulher, entrevista 10, grifo nosso).

A obtenção de crédito especial para as mulheres representa uma


importante conquista dos movimentos de mulheres, mas ainda é limitada
a participação dessas na efetivação do crédito, uma vez que é no âmbito
da família que o papel feminino é visto pelos diversos agentes responsá-
veis pelo processo no PJ. Nesse sentido, essa condição atual corrobora o
que menciona Osório Hernández (2009b) de que o Pronaf-Mulher ainda
não conseguiu estabelecer e fortalecer mecanismos para desenvolver um
empreendimento centrado nos reais interesses das próprias mulheres,
mesmo que o programa tenha um relevante significado para as mulheres
e também para os vários agentes envolvidos com o crédito.

Tem o Banco do Nordeste que trabalha com os produtores e tem a Ema-


ter que dá um suporte bom pra nós aqui, nós da associação. A Emater
dá o suporte, elabora o projeto e aí cada agricultor entra, dá a sua
documentação individual e faz o seu, mas é pelo vínculo da asso-
ciação. (Mulher, presidente de associação, entrevista 17, grifo nosso).

Para os agentes, as mulheres têm potencial desde que acessem o


crédito.

Então a gente percebe que ela [a mulher] consegue, quando acha um


aporte financeiro. Nesse caso, lá houve uma injeção externa de recurso,
né? Quando a mulher consegue o recurso, ela consegue tecnificar, usar
as tecnologias adequadas, consegue absorver as necessidades tecno-
lógicas e melhorar a condução daquele empreendimento. Esse é um
exemplo assim, que dá pra se medir, concreto. (Agente, EM, entrevista
23).

O impedimento está em “como conseguir” esse acesso, como com-


petir em igualdade com os homens disputando em linhas de crédito
gerais, já que aquelas com especificidade de gênero não se instituem de
forma pedagógica, considerando as limitações dessa ordem.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 299


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

A situação expressa nessas falas permite afirmar que há que se con-


siderar que as políticas públicas no âmbito rural, capazes de promover a
igualdade de gênero, ainda precisam ser consolidadas e fortalecidas. Nesse
contexto, necessitam ser desenvolvidas políticas de crédito rural com pers-
pectiva de gênero como mecanismo pedagógico para o empoderamento.
Paralelamente, mas lentamente, observa-se no âmbito do PJ um
movimento identitário de mulher trabalhadora, sujeito político, com par-
ticipação em espaços públicos. Tal fato vem sendo consolidado principal-
mente pela participação das mulheres nas associações. Assim, emergem
relações de poder condizentes com as oportunidades sociais e, dessa forma,
algumas barreiras vão sendo rompidas, mesmo que ainda muito limitadas.

Eu era uma pessoa muito tímida. Não conversava quase e se chegasse


uma pessoa igual a você chegou aqui e eu visse que era uma pessoa
de fora, eu começava a tremer e não dava conta de falar era nada!
Hoje não... O pessoal falou: ah, você tem que ser a presidente da asso-
ciação... você que vai ser! Aí eu peguei. Peguei. (Mulher-presidente,
entrevista 18, grifo nosso).

Que a mulher está cada dia assumindo um papel mais importante,


né? Na família, na sociedade, às vezes ela se torna até o, ali a cabeça
da família, né? Às vezes, o marido vai embora, ou qualquer coisa que
ela se torna ali “o cabeça” né, o principal gestor mesmo da família né.
(Agente, COD2, entrevista 27, grifo nosso).

Essa última fala do agente reflete que é mais “aceitável” a mulher


tornar-se “cabeça da família” quando o marido “foi embora”. Pode-se
admitir com isso que, na presença do marido, isso é mais difícil. Essa
situação de subalternidade atesta a permanência das hierarquias calca-
das no gênero e na dominação masculina como principal definidora das
oportunidades para uns e outros, homens e mulheres.
Os fatores de inclusão social no PJ, como participação, condições
materiais, assistência técnica, associativismo, lazer, valorização, acesso
ao crédito, acesso à escola, acesso à saúde e segurança, pode-se dizer
que estão inseridos no bojo da ampliação das possibilidades de esco-
lha. De acordo com Veiga (2001), o desenvolvimento não se circunscreve
apenas no modelo de automóvel ou canais de televisão, mas, acima de
tudo, constitui-se nas oportunidades de expansão das potencialidades
humanas dependentes de fatores socioculturais, como saúde, educação,
comunicação, direitos e liberdade. Nesse caso, trata-se de oportunizar a

2 Agente de mediação da CODEVASF (agente, COD).

300 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

expressão criativa das mulheres no campo do trabalho gerador de renda,


capaz de permitir o acesso aos demais bens, necessários ao desenvolvi-
mento de suas plenas capacidades.
Assim, para Veiga (2001), a concepção de Sen a respeito do desen-
volvimento apresenta contraste com visões mais restritas como aquelas
baseadas no aumento do Produto Interno Bruto, crescimento da renda per
capita, industrialização, avanço da modernização e tecnológico. Nesse
sentido, o autor ressalta que todos os elementos especificados anterior-
mente são relevantes como meios de expandir as liberdades, mas o que
essencialmente determina as liberdades são fatores como saúde, educação
e direitos civis. Cumpre enfatizar que essas garantias poderiam ser mais
bem consolidadas no PJ. Elas existem, mas não conseguem atender às
especificidades do meio rural, ainda são precárias em acesso e em acessi-
bilidade. A acessibilidade de serviços, por exemplo, resultado da garantia
da oferta em locais próximos e com facilidade de deslocamentos, não se
configura na prática. O rural, nesse contexto, permanece como espaço de
vazio de serviços.
A assistência técnica foi referida pelas mulheres como um aspecto
significativo para a atuação da família e, em especial, das mulheres na
unidade produtiva. Nesse caso, obter assistência técnica implica segu-
rança protetora e oportunidades sociais, porque influenciam nos melhores
encaminhamentos da vida dos agricultores e das agricultoras, culminando
no favorecimento de possibilidades, por exemplo, na implementação de
projetos e na organização e melhor planejamento da unidade agrícola.
Cumpre destacar como fator favorável à inclusão social no Projeto
a implantação do sistema de irrigação automatizada, o qual foi muito
ressaltado pelas mulheres como um projeto de extremo benefício para os
agricultores familiares. De acordo com a Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural de Minas Gerais – EMATER (2010), o objetivo do sistema
de irrigação automatizada é estimular o uso racional da energia e da água,
em uma iniciativa de parceria entre a EMATER, CEMIG, DIJ e CODEVASF.

As atividades para mulheres [no PJ] estão assim ligadas aí ao bene-


ficiamento de produtos, né? No caso, as pequenas agroindústrias
familiares assim têm o apoio da Emater, também com as atividades
artesanais, mais especificamente para a mulher que está atuando dire-
tamente com a produção. Esse é o apoio normal que se dá para o
agricultor mais ou menos na parte da segurança alimentar que é tra-
balhada. Olha, assim, a área de bem-estar social trabalha muito com
as mulheres, né? É esse trabalho do dia a dia, da área de bem-estar
social, trabalha, né, com a segurança alimentar, saúde e, assim, den-
tro, nas associações as mulheres têm uma participação também impor-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 301


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

tante, né? Mas não sei se seria uma assistência que é específica para
as mulheres, né? Acho que é a família. (Agente, EM, entrevista 25).

Ao analisarmos essa fala na perspectiva de Sen (2000), observa-se


a centralidade da ideologia do bem-estar, partindo de uma perspectiva
“welfarista” em particular sustentada na família, na prole, no entanto,
não considera o papel ativo da condição de agente das mulheres.
Pelo prisma das liberdades substantivas, constata-se que, apesar de
ainda restritas, ocorrem possibilidades de escolhas das mulheres no PJ,
citam-se fatores, como acesso à educação, a participação, a valorização e
conquistas de alguns direitos, que são descritos pelas entrevistadas.

É, é o direito da mulher, e o homem hoje está se conscientizando que


ela trabalha, ela precisa também de administrar o que ela está fazendo,
não é? (Marido, entrevista 20).

Essa fala do marido reflete que as mulheres apenas despontam com


identidade de trabalhadora. A casa, o “não trabalho”, é que predominou
na (in)definição dessa condição. Esse caminho de reconhecimento ainda
está para ser conquistado.
Admite-se que os espaços associativos são aliados no processo de
empoderamento das mulheres, pois permitem gradativamente a sua atu-
ação como ser político, mais atuante no espaço coletivo, fazendo emergir
novas relações de poder. Então, pode-se dizer que, de alguma forma, o
espaço rural no Jaíba passa por um processo de ressignificação, rom-
pendo algumas (poucas) barreiras quando se consideram as potenciali-
dades das mulheres e o seu desempenho relevante na produção agrícola.
Esta análise possibilitou a compreensão da atuação feminina no
âmbito do PJ, como mulheres que buscam inserção no processo produ-
tivo e no espaço público. Pode-se falar em um despertar para a cidadania
com “cara feminina”, que não descarta os clássicos papéis, mas não se
sente em conformidade com a desvalorização de sua presença nos dife-
rentes âmbitos, produtivo e reprodutivo. No entanto, não se pode falar
simplesmente de busca deliberada de poder pelas mulheres. Sua atuação
tem muito de busca de bem-estar e, nesse sentido, a família se coloca
entre as prioridades e não singulariza o papel de trabalhadora, de agri-
cultora. As mulheres têm nos fins coletivos (da família) o centro de suas
buscas por recursos que, assim, podem ser socializadas com seu grupo de
proximidade. Não se pode falar nos limites da busca pessoal e enquanto
sujeito social apenas. A relação de serviço que caracteriza historicamente
a posição das mulheres na família relativiza a busca estrita da identidade

302 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

de trabalhadora como meta existencial em si. E, não raro, o reprodutivo


conforma-se (mistura-se) como espaço produtivo “novo” quando a casa
se transforma em oficina de artesanato e produtos alimentares, mas sem
os recursos e as garantias sociais. A existência do poder de agência das
mulheres em alguns aspectos vem despontando como transformações nas
relações de gênero. Ainda assim, há de se ressaltar a necessidade de mais
investimento pedagógico na perspectiva de gênero nas estratégias de
desenvolvimento rural, materializadas, em particular, nas políticas públi-
cas atuais em implementação.

3 FATORES DE EXCLUSÃO SOCIAL E GÊNERO NO PROJETO JAÍBA

Observa-se que, quando as mulheres entrevistadas são de uma


faixa etária mais jovem, o nível de escolaridade tende a aumentar por
conta da atual expansão do ensino e pelas próprias possibilidades já
conquistadas e que passam, necessariamente, pelo campo da educação
formal. Nesse sentido, cumpre enfatizar que das 22 (vinte e duas) mulhe-
res entrevistadas, 4 (quatro) na faixa etária de 50 a 65 são analfabetas, e
somente 2 (duas) mulheres possuem o ensino médio completo. O que se
evidenciou é que o fato de terem baixa escolaridade ou serem analfabetas
por si só limita o processo de participação e uma melhor interação na
dinâmica da vida produtiva, levando em consideração a inserção com
autonomia nos espaços administrativos e financeiros e em oportunidades
de melhor atuação em associações, sindicatos, na relação com os ban-
cos e outros movimentos sociais. Sendo assim, cabe analisar que, con-
forme Sen (2000), a educação é uma condição de liberdade. Desse modo,
a ausência de escolaridade é um condicionante no sentido de indicar
necessidades para os processos de qualificação e inclusão em projetos de
desenvolvimento e acesso ao crédito, por exemplo.
Nesse aspecto, nos relatos das entrevistadas, a educação aparece
como um fator de extrema importância atualmente para as famílias como
projeto de futuro para os filhos, que nem sempre passa pela expectativa
e perspectiva de permanência desses na atividade agrícola.

Eu não estudei nada. Só meu nome, assim mesmo só depois de mais


velha que eu aprendi a riscar o meu nome. Nunca fui à escola. Naquele
tempo nós sempre moramos na roça, né? (Mulher, entrevista 6).

Igual, eu não estudei e eu quero que eles (os meus filhos) estudem. Eu
vou fazer de tudo para eles estudarem pra não ficarem sem estudo e
depois vir sofrer igual a gente sofre na roça, né. Porque estudo é uma

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 303


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

coisa que ninguém toma de ninguém, né? Então a gente tem de fazer.
Eu não consegui, mas eu quero que eles tenham o estudo. Eu vou fazer
de tudo pra eles estudarem. (mulher, entrevista 4, grifo nosso).

Na opinião do agente de mediação, em se tratando de situações


de mediação e de interação, existem ainda algumas “burocracias” que
são entraves às políticas de acesso ao crédito, voltadas para as mulheres.
Identificam-se algumas limitações relacionadas não somente pelo fato de
serem aplicadas às mulheres, mas pelo próprio ambiente de descrédito
ocorrido com investimentos anteriores no contexto do Jaíba. Devido às
inúmeras dificuldades, a grande maioria dos produtores não consegue
arcar com os pagamentos referentes aos créditos agrícolas.
No que diz respeito ao envolvimento das mulheres nas questões
relativas ao acesso ao crédito, na percepção do agente, as dificuldades
encontradas não diferem dos entraves enfrentados geralmente pelos
homens ou para a família obter o crédito. “Tudo se dá pela questão de o
nome estar limpo para admitir o recurso.” No entanto, esse “nome limpo”
quase sempre deve ser o do marido. E se ele tem nome limpo, ele chega
na frente!

Basicamente é por esse caso aí em relação à incipiência do acesso ao


crédito: a inadimplência do marido. Pelo fato de os negócios, na ver-
dade, em proporção do que está sendo admitido para a família, ainda
é maior para o homem do que para a mulher, porque quando, digamos
assim, o nome da pessoa está ok, para acessar crédito, o primeiro que
chega na frente é o homem, e contempla uma certa faixa de recurso
que já, pelo tamanho da atividade que ele desenvolve, é o limite de
mais adesão de crédito pra aquela atividade. Assim, a capacidade
de pagamento, na percepção do banco, já oferece risco pra o retorno,
então ele não investe mais aporte naquela família enquanto ele não
tiver retorno daquele investimento que foi feito anteriormente, e isso,
como os prazos do Pronaf são bastante longos, pode ter de um a três
anos de carência, e até dez anos pra pagar, demanda um certo tempo
para que aconteça aporte de novos recursos naquela família, naquela
atividade, pela capacidade operacional dela. (Agente, EM, entrevista
23).

Dessa forma, as mulheres estão em desvantagem, sofrem as limita-


ções de “serem mulheres”, portanto, de gênero, e dependem da situação
dos maridos. Não se concedem dois créditos para a mesma família, e a
prioridade, “os que chegam na frente”, são os homens.
Na mesma perspectiva, o agente ressalta que, em geral, considera-se
insignificante a capacidade de recurso disponibilizado nas linhas de crédito

304 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf


– para o Jaíba: “Ou seja, não podemos dizer que o crédito foi o suficiente
para os avanços que o Jaíba teve após o processo de inadimplência”.
Assim, os agentes de mediação ressaltam a importância de se repensar
a operacionalização da política de crédito rural – Pronaf. Na prática, a lógica
da operacionalização inviabiliza o cumprimento dos objetivos e da função
social do Programa, que é o atendimento à agricultura familiar, ou seja, o
fortalecimento, uma vez que se verifica que, normalmente, esse recurso não
chega para a maioria das famílias da agricultura familiar no PJ, ou quando
chega, é de forma insuficiente. E, no caso especialmente do Pronaf-Mulher,3
esse nem foi acessado pelas mulheres do Projeto. Mas não basta ser política,
tem que ser política de gênero. Nesse sentido, não pode assentar-se em bases
lógicas tradicionais (masculinas) e simplesmente no bem-estar da família.

O recurso, nós não podemos considerar que o recurso bancário agre-


gou muito avanço aqui. Ainda não. Houve investimento inicial, muito
aporte de recurso foi colocado, foi investido no Jaíba, mas a inadim-
plência foi muito grande, né? Talvez esse crédito tenha trazido mais
malefícios do que beneficio, porque impediu que, depois que esse
público já tivesse adaptado ao ambiente, conseguisse acessar mais
crédito, ou seja, obter mais crédito externo para tocar a atividade.
(Agente, EM, entrevista 23).

Desse modo, destaca-se que o fator inadimplência inviabiliza novos


acessos ao crédito, tanto para homens quanto para mulheres, ou seja, a
mesma situação vale para o acesso ao Pronaf-Mulher.
Não obstante, e referenciando Wanderley (2009), sabe-se que a his-
tória do campesinato no Brasil é marcada por lutas que perpassam pela
busca de um espaço produtivo, pela constituição do patrimônio familiar
e, ainda, pela estruturação do estabelecimento como um espaço de traba-
lho da família, ou seja, é a procura para que se alcance um espaço próprio
na economia e na sociedade. Por esse aspecto, o campesinato brasileiro
é marcado pela instabilidade das situações vividas que pode ameaçar a
autonomia (WANDERLEY, 2009). Tal concepção de mundo rural como
um espaço de vida com as suas dificuldades fica evidenciada nos relatos
de homens e mulheres moradores no PJ.

Porque a gente não tem logística, não consegue unir o povo para fechar
caminhão, para entregar direto no mercado, por isso tem que ter atra-

3 No Capítulo 11.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 305


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

vessador que faz toda essa logística. Nós ganhamos caixa, a caixa
pronta, o cara vem buscar, traz o dinheiro e a gente fica acomodado,
ganha menos, mas o transtorno é menor. Pela facilidade, porque aqui
é muito difícil unir o povo, apesar de ter a Jaíba, que está começando,
né? Mas tipo assim, a gente não, uma andorinha sozinha né, então
um produtor não adianta porque não fecha uma carga, e daí você vai
chamar quem se as pessoas não têm qualidade nos produtos? E aí não
dá. Faltam qualidade e espírito de cooperativismo, não tem aqui. Nem
associativismo. Nós precisamos de estrada boa para escoar a produ-
ção. Precisamos do lote limpo. Aqui, invadiram lá no final, nossa!
O Distrito não arruma a estrada e eles vão descendo no nosso lote.
A estrada está dentro do nosso lote. Eu queria cercar, não podemos
porque o Distrito não faz estrada. E daí aqui, é, tipo assim, agora o
Incra tem um dinheiro para nós, agricultores. Cada um de nós assen-
tado, cada lote desses, é o dinheiro que está ali no banco. Pra cada lote
desses aqui, vinte mil reais pra cada um, só que não tem dez por cento
que vai conseguir pegar. É tudo difícil. (Mulher, entrevista 19).

A questão abordada na entrevista se relaciona à instabilidade


vivida no espaço de produção que se insere em um cenário mais amplo.
Nesse sentido, Kageyama (1986) salienta que:

[...] a raiz da pobreza rural no Brasil não está apenas na “falta de


trabalho” ou no subemprego, mas para uma grande parcela, há um
tipo mais “perverso” de pobreza: aquele em que se depende um longo
esforço produtivo – muitas vezes acima dos limites considerados nor-
mais – que não é compensado por maior remuneração. (KAGEYAMA,
1986, p. 57).

É justamente pelo prisma da discussão do excesso do trabalho e


da insuficiência de renda, corroborando a autora mencionada, que passa
a reflexão das mulheres entrevistadas quando essas apresentam a sua
labuta frente aos obstáculos para a consolidação de um trabalho na agri-
cultura familiar, que já traz em seu cerne as suas dificuldades, e ainda
pela problemática da sua própria atuação considerando as especificida-
des de gênero.

A maioria dos agricultores também tem acesso ao crédito, apesar dos


entraves, porque o governo lança um programa, mas não fala das
contrapartidas que precisa. Quando você chega ao banco, você esbarra
nessas contrapartidas que nem sempre estão ao nosso alcance, né,
como, por exemplo, as garantias legais, os avalistas, que são necessá-
rios em relação a recursos e às vezes até baixos, e que o banco faz uma
exigência muito grande em relação a isso. Garantias reais. (Marido,
filho, entrevista 28).

306 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

[...]Porque eu quase que perdia a mandioca mesmo. Todo ano perdia,


todo ano. Agora mesmo tem um bocado lá na terra que nós planta-
mos e não vendemos. Não acho comprador e aí perdeu muito. Pra
mim não foi importante o empréstimo, não porque foi o de mil reais
para comprar porco. Eu comprei o porco, comprei o milho e no fim o
porco morreu tudo. Eu comprei os remédios, eu chamei para vir ver
e eles não vieram, não veio o povo da Emater, não veio ninguém e aí
eu perdi. Nós não podemos nem falar que aqui não tem essas coisas
que ajudam os agricultores. Nessa parte aqui não tem. Não tem ajuda,
para nós, não. (Mulher, entrevista 13, grifo nosso).

A partir das falas, pode-se considerar que a falta de informação


e a “burocracia”, ou seja, a “papelada” e o esforço para se colocar em
condição de disputa do crédito, constituem-se entraves para o agricultor
acessar o crédito e, principalmente, para as mulheres. Não ter a garantia
de financiamento para a produção é fator de exclusão porque culmina na
falta de melhores condições de comercialização, na falta de autonomia e,
consequentemente, a produção recai na mão do atravessador que, muitas
vezes, desmerece o produto com preço que não é suficiente para cobrir os
custos das despesas da família com a produção no seu lote.

Pode melhorar isso aí em relação ao crédito, (tem que ter) menos buro-
cracia porque tem muita gente que tem a terra e tem vontade de traba-
lhar, tem coragem de trabalhar, só que é muito difícil ainda para pegar
o dinheiro. Falta de informação. Eles fazem os projetos e tudo, mas os
bancos ainda são muito difíceis, muito difícil por parte do banco. Aí a
associação que nós íamos entregar o leite teve um problema lá. Falta
muita informação pra gente e quando a gente tem informação é assim
pela metade e a gente vai procurar e aí chega lá, é uma burocracia
danada, muita burocracia. Então, tudo que você produz hoje você tem
que vender para os atravessadores. E você sabe, você sabe talvez que
o preço está alto e coisa, mas eles oferecem só aquele ali e aí você
tem que vender porque você tem que pagar água, energia... Muito
mais, muito mesmo porque o Pronaf-Mulher a gente nem conhece. Nós
não... não... eu mesmo nunca tinha ouvido falar desse Pronaf-Mulher.
Se melhorasse os comércios, os atravessadores... melhorava em tudo.
(Mulher, entrevista 5).

[...] Então, não só o Pronaf aqui é complicado o acesso. Bom, para falar
assim que Jaíba foi contado a dedo quem pegou e conseguiu o Pronaf,
porque aqui ninguém tem crédito. É difícil. E daí agora o banco, eu vou
falar de exemplo na Jaíba, tinha dez por cento de inadimplência, então
cortou, e as exigências cresceram demais. Tem que dar garantia real
pra fazer alguma coisa. O terreno não vale. Não serve porque não tem
escritura. Você mora aqui, porém você não tem a escritura do terreno.
Então você vai dar o que de garantia real? (Mulher, entrevista 19).

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 307


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

Outra questão que se mostrou presente nos relatos como fator de


entrave para o acesso ao crédito é a dificuldade na elaboração de um pro-
jeto que esteja em consonância com a perspectiva dos agentes de media-
ção, do agente financeiro do banco e que esteja dentro das possibilidades
do produtor e, ainda, de acordo com a viabilidade da unidade familiar de
produção. Nesse aspecto, o projeto técnico é um mecanismo de avaliação
das condições de pagamento do financiamento, portanto, não significa
somente a demonstração da capacidade produtiva da atividade finan-
ciada, constitui critérios referenciais para as agências bancárias.
No PJ, em se tratando do sentimento das mulheres e das famílias
em relação à obtenção do crédito pelo risco da inadimplência, é respon-
sável pelo temor das famílias em assumir o crédito. Apesar das mulheres
sempre apresentarem em seus relatos estratégias de perspectivas para o
pagamento, tais como a utilização do salário do marido, o recurso adqui-
rido como diarista, bem como a venda de animais como gado, porcos e
aves, o risco está sempre presente.
Às vezes, a falta de perspectiva e de credibilidade em relação
à obtenção do financiamento para a produção é muito grande, o que
impede as famílias até de procurarem os caminhos que poderiam viabili-
zar o acesso ao crédito.

Não, eu tentei tirar o empréstimo uma vez, mas só que nós não
conseguimos o Pronaf, não. O rapaz pegou os papéis aí e enrolaram
[...]. (Mulher, entrevista 9, grifo nosso).

Portanto, um fator que tem ocasionado receio nas famílias da uni-


dade agrícola em relação ao crédito é assumir uma dívida e a própria
instabilidade quanto à geração de renda da produção para arcar com os
pagamentos ao banco.

Não, não foi importante não o financiamento, porque a gente ficou


com a dívida nas costas e o que plantou não deu para cobrir. Aí ficou
com a dívida nas costas e esse ano é que nós pagamos a dívida. Porque
teve um abate, né, e aí a gente conseguiu pagar, aí não foi bom, não.
(Mulher, entrevista 10).

A despeito das evidências de muitos entraves, a melhoria do acesso


ao crédito para as mulheres é percebida como o início de uma importante
estratégia para a consolidação da diversificação das unidades produtivas
e das economias locais. No entanto, a oferta de uma assistência técnica
adequada e a implementação de políticas de acesso ao mercado são fato-

308 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

res determinantes e que faltam para a expansão e alcance da sustentabi-


lidade destas atividades (ABRAMOVAY; MAGALHÃES, 2006).
Em uma análise das dinâmicas sociais de gênero, a partir da conces-
são do crédito pecuário às mulheres rurais no interior da agricultura fami-
liar da comunidade do Posto Administrativo de Changalane em Maputo
– Moçambique, Cândido (2009) evidenciou que a obtenção do crédito des-
pertou a comunidade para novas formas de produção e de novos relacio-
namentos sociofamiliares, com possibilidades de se estabelecer relações
entre os sexos mais igualitárias. Contudo, a autora ressalta que as mulheres
continuam referenciadas sob o signo do universo doméstico e resignadas
às atividades voltadas à reprodução biológica e social da descendência,
mesmo considerando a sua efetiva participação em atividades produtivas,
as quais são fortalecidas pela manifestação do novo papel social que elas
assumem na família e na comunidade. Pode-se, dessa forma, referendar e
referenciar a mesma situação no contexto do PJ.
Frente a essa realidade, uma reivindicação das mulheres entrevis-
tadas é em relação à obtenção de um crédito específico efetivo para as
mulheres. Nesse sentido, cumpre destacar alguns dos aspectos que pos-
sibilitam o entendimento da lógica de efetivação do crédito e também
permitem a identificação de alguns limites e possibilidades de empo-
deramento para as mulheres, tais como: o significado do crédito como
um processo reivindicativo, a percepção construída pelos diversos agen-
tes para a legitimação do direito das mulheres na obtenção do crédito
e, ainda, as possibilidades de participação social das mulheres (OSÓRIO
HERNANDEZ, 2009b).
Dessa forma, fica evidenciado que as mulheres do PJ, uma vez que
não tiveram acesso ao Pronaf-Mulher e nem informações e conhecimento
a respeito da sua operacionalização, não usufruem dos aspectos mencio-
nados pela autora anteriormente.
Assim, a falta de conhecimento acerca do Pronaf-Mulher é um
entrave para acesso ao crédito, conforme se vê nos relatos a seguir.

Não, ainda não. Não a gente não, assim, pretendemos procurar mas
é... ainda não fizemos ainda não. Já ouvi falar do Pronaf-Mulher,
mas não tenho muito conhecimento. Se a gente tivesse o crédito, a
gente utilizaria para colocar irrigação lá para melhorar o plantio, é...
colocar irrigação para melhorar o plantio. Diminui o trabalho, ou seja,
né: não ficar carregando cano, trocando cano, trocando... trocando...
trocando... (risos) vai e vem e volta. (Mulher, entrevista 3).

Não, eu nem sabia que existia esse...Pronaf-Mulher. Eu peguei parece...


foi o Pronaf B. Eles fazem os projetos e tudo, mas os bancos ainda

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 309


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

são muito difíceis, muito difícil por parte do banco. A gente chega
lá, é burocracia demais. Tem o recurso, mas não chega até nós aqui
não. Muito mais, muito mesmo porque o Pronaf-Mulher a gente nem
conhece. Nós não... não... eu mesmo nunca tinha ouvido falar desse
Pronaf-Mulher. (Mulher, entrevista 5).

Destacam-se outros fatores que provocam a exclusão das mulhe-


res no PJ: pouca assistência técnica, reduzidas estratégias de mediação
e interação e baixo associativismo. Apesar da assistência técnica da
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas
Gerais (EMATER-MG) ter sido apontada como um aspecto favorável à
inclusão, ainda assim as estratégias de mediação e de interação não se
efetivam no PJ, conforme a necessidade logística do empreendimento.
Nesse prisma, tais estratégias são limitadas, e esse fato é evidenciado
como ponto desfavorável aos encaminhamentos necessários para a pro-
dução no âmbito da agricultura familiar, uma vez que se considera a
comercialização como um grande desafio para os agricultores. Ou seja,
a criação dos mercados, a falta de confiança e de estabelecimento de
boas relações entre os produtores, as dificuldades referentes ao trans-
porte e a atuação dos atravessadores são fatores que comprometem a
atuação da agricultura familiar no PJ e que poderiam ser revertidos
pelas estratégias de mediação e de interação. O associativismo também
seria uma forma de melhor enfrentamento dessas dificuldades, no sen-
tido de vencer desafios, fortalecer as práticas comerciais e criar melho-
res condições para a geração de renda. A entrevista a seguir demonstra
a falta de preparação do agricultor para lidar com as tecnologias ine-
rentes à irrigação e, mais ainda, o despreparo das famílias irrigantes
para o gerenciamento dos recursos.

Aí deram o dinheiro, a pessoa plantou, mas não sabia como cuidar e


não sabia vender e não tinha comércio. Plantava e tinha que dar conta
da colheita para cobrir o dinheiro, no caso o cheque. Ainda correndo
risco. Correndo risco de perder tudo que plantou. É muito difícil na
agricultura, é difícil. (Mulher, entrevista 16).

Cabe ressaltar que foram apontados como determinantes ao


processo de exclusão social e de gênero no PJ fatores como a incipi-
ência da participação feminina em sindicatos e, ainda, a situação da
posse da terra. De acordo com as entrevistas, a posse dos lotes insere-
-se em um contexto complexo, visto que, para ser titular do lote, o
agricultor (ou a agricultora) obteve um prazo de vinte (20) anos para

310 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

quitar a sua aquisição, ou seja, a posse definitiva do lote ocorre após


o pagamento total do devido ao governo. Nesse caso, evidenciou-se
que muitos ainda não conseguiram efetuar esse pagamento, fato que
gera dificuldades em se tratando de necessidade para alguns encami-
nhamentos como arrendamento, venda e como garantia para possíveis
financiamentos.
Como forma de responder a indagações acerca da falta de auto-
nomia das mulheres e, por consequência, dos fatores que provocam
exclusão social e de gênero no PJ, citam-se as reflexões provenientes do
Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2012 sobre Igualdade de
Gênero e Desenvolvimento (2012), evidenciando que acontecem maiores
investimentos no capital humano de crianças no contexto em que as
mulheres exercem maior controle sobre os recursos dos domicílios. Nessa
dimensão, é notório que quando as mulheres participam da gestão do
lote e da produção como um todo, com relações autônomas e de maior
participação na renda, os benefícios para si e para a família são maiores,
no sentido da qualidade de vida dos filhos, no investimento na educação,
nas melhores condições de moradia, enfim, nas formas de pensar pers-
pectivas de melhores projetos de vida para a família. É nesse teor que
merece destaque a citação a seguir:

Melhorias na própria educação e saúde de mulheres também têm


impactos positivos sobre estes e outros resultados de seus filhos.
Uma melhor condição nutricional das mães foi associada à melhor
saúde e sobrevivência infantil. E a educação das mulheres tem sido
positivamente associada a uma série de benefícios de saúde para
crianças – desde mais altas taxas de imunização a uma melhor
nutrição e a uma redução da mortalidade infantil. A escolarização
de mães (e pais) tem sido positivamente associada ao desempe-
nho educacional das crianças em vários países. (BANCO MUNDIAL,
2011, p. 5).

Portanto, pode-se afirmar que a falta de participação social das


mulheres propicia exclusão social e de gênero, uma vez que ainda são
limitados o reconhecimento do papel das mulheres nos espaços de poder
e a representação política no PJ, fruto de um sentimento de não perten-
cimento diante das ações que são tidas como masculinas.
A participação é um mecanismo capaz de ampliar a capacidade
das pessoas no sentido de conseguir realizar as suas próprias refle-
xões, obter maior confiança e poder ter autonomia para tomar suas
próprias decisões, assumindo seu próprio processo. Tudo isso conduz
a uma transformação das relações de poder (ANTUNES, 2003). Nessa

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 311


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

perspectiva, a falta de reconhecimento do trabalho da mulher tem oca-


sionado pouca transformação social e, pela fala das mulheres do PJ,
é perceptível que o não reconhecimento, ou seja, a desvalorização do
papel desempenhado por elas, pela própria família é proveniente das
relações de poder hegemônicas (masculinas) que permeiam os espaços
já definidos no contexto rural e pela sociedade. Assim, as entrevistas
apontam para as relações assimétricas presentes na família e a desvalo-
rização da atuação das mulheres “porque quem sempre leva o crédito é
o homem”, conforme ressaltado a seguir:

Só que o trabalho não é conhecido não, o trabalho dela. Porque sempre


quem leva o crédito é o homem, né? E a mulher se mata e não leva
nada. (Mulher, entrevista 9).

[...] Eu acho que não, a mulher não tem essa ajuda e não é reconhe-
cida. Acho que noventa por cento não alcançou essa meta ainda não,
né? (risos)... Porque hoje se leva muito aquele machismo em casa pelos
homens porque você trabalha, trabalha. Então eu acho assim, que
deveria ter uma valorização melhor porque hoje nem toda esposa que
trabalha na roça ela é valorizada pelo marido e pelos filhos o quanto
ela merece... nem todas... e também tem aquelas que é privilegiada,
né? (risos)... mas nem todas...mas no geral não é isso que acontece, né?
(Mulher, entrevista 17).

Um aspecto pontuado com frequência pelas mulheres é o modo


como o marido exige a participação e o esforço do trabalho da mulher
na roça e em casa, que é uma consequência da organização da unidade
familiar agrícola e uma necessidade. Assim, se, por um lado, há todo o
empenho e esforço da mulher, por outro, não ocorre a devida retribuição
por parte do homem, é a cultura dominante e as práticas “naturalizadas”
que se sobressaem.

E a mulher tem que trabalhar também, mas é assim, não valoriza o


trabalho da gente lá, né? Quer que a gente trabalhe lá pra roça, mas
também não dá aquele valor necessário e quer a casa limpa, comida
na hora, a água e café pronto. (Mulher, entrevista 20).

Falar de felicidade para as mulheres entrevistadas esteve sempre


relacionado à consolidação dos pagamentos com despesas advindas
da produção, à garantia de sobrevivência da família no lote, à obten-
ção na geração de renda e às possibilidades de uma vida sem tantos
sacrifícios na labuta do meio rural. As dificuldades em relação ao
lazer foram um ponto destacado pelas mulheres. O lazer para elas

312 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

ainda é muito restrito, tanto por se considerar a sobrecarga prove-


niente da acumulação do trabalho produtivo e da casa, quanto pelas
questões próprias do espaço rural. A sobrecarga de atividades das
mulheres é um elemento que lhes priva de obterem tempo e dedica-
ção ao autocuidado. Isso mostra situações de desigualdades na esfera
pública. Assim, pode-se inferir que a falta de lazer e a sobrecarga de
atividades das mulheres constituem-se em fatores de exclusão social
com particularidades de gênero no PJ.

Assim, a gente trabalha porque precisa, né? Então, não é muito fácil
não, mas eu falo em questão de trabalhar, a mulher trabalha muito.
Agora eu acho que feliz assim não é muito, porque é muito sacrifício.
(Mulher, entrevista 22).

Em se tratando do aspecto relativo às condições materiais das


mulheres entrevistadas, deve-se ressaltar que a grande maioria possui
bens de consumo como celular, moto, tanquinho de lavar roupa, bem
como outros que são básicos para uma família. Por outro lado, essas con-
dições materiais estão condicionadas pela falta de possibilidades para dar
continuidade aos estudos dos filhos após o ensino médio, e pela fragili-
dade de atendimento das políticas públicas de acesso ao crédito, acesso
à saúde e à educação.
O entendimento que se tem fruto das entrevistas em relação à
capacidade das mulheres de decidirem e de fazerem escolhas é enfatizado
também no Relatório de Desenvolvimento Mundial de 2012 sobre Igual-
dade de Gênero e Desenvolvimento. Esse relatório mostra que os melho-
res resultados, bem como as melhores escolhas de políticas e instituições
estão de acordo com o aumento da capacidade de decidir de forma indi-
vidual e coletiva das mulheres. A capacidade de decidir das mulheres de
maneira coletiva pode ser transformadora para a sociedade, uma vez que
tal capacidade é capaz de moldar instituições, mercados e até as normas
sociais limitadoras da capacidade de decidir individuais e das oportuni-
dades das mulheres. Desse modo, o empoderamento das mulheres como
atores políticos e sociais é determinante e substancial para possibilitar
mudanças de escolhas políticas e tornar instituições mais representativas
de uma série de vozes. Diz ele:

Capacidade de decidir diz respeito à capacidade de uma pessoa fazer


escolhas – e de transformá-las em ações e resultados desejados.
Em todos os países e culturas, há diferenças entre a capacidade de
homens e mulheres fazerem escolhas, geralmente com desvanta-

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 313


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

gem para as mulheres. Essas diferenças relacionadas ao gênero são


importantes para o bem-estar das mulheres, e também para todo
um conjunto de resultados para suas famílias e para a sociedade em
geral. A capacidade de decidir das mulheres influencia sua capaci-
dade de desenvolver seu capital humano e considerar oportunidades
econômicas. (BANCO MUNDIAL, 2011, p. 5).

Trazendo essas considerações para o cerne da discussão sobre os


fatores de exclusão social, corrobora-se com estudos como o de Tedes-
chi (2012), o qual demonstra a existência de uma relação entre gênero
e poder que precisa ser revelada e reescrita, uma vez que, pela história
universal e antropocêntrica, tem-se o mito do sexo frágil, impotente e
do ser feminino dependente do masculino. Nesse sentido é que foram
constatadas as funções sociais e os papéis instituídos no âmbito do Pro-
jeto como situações favoráveis à exclusão social. Considerando os vários
aspectos analisados, é a partir da reflexão de Bourdieu (2009) que se tem
uma justificativa para a inserção e permanência de fatores como os des-
critos. Assim, para esse autor, somente a partir de uma análise das trans-
formações dos mecanismos e das instituições encarregadas de garantir a
perpetuação da ordem dos gêneros é que se pode esperar uma verdadeira
compreensão das mudanças sobrevindas das relações entre os sexos e na
condição das mulheres.

Enfim, as próprias mudanças da condição feminina obedecem sem-


pre à lógica do modelo tradicional entre o masculino e o feminino.
Os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder
(sobretudo econômico, sobre a produção), ao passo que as mulheres
ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico,
lugar da reprodução) em que se perpetua a lógica da economia de bens
simbólicos, ou a essas espécies de extensões deste espaço [...] (BOUR-
DIEU, 2009, p. 112).

Parece que as estruturas “antigas” da divisão sexual ainda determi-


nam a direção e a forma das mudanças, principalmente por intermédio
da atuação de três princípios práticos colocados em ação pelas esco-
lhas das mulheres e também pelo seu próprio ambiente. Para o primeiro
princípio, as funções que são convenientes às mulheres se situam no
prolongamento das funções domésticas, como ensinar, cuidar e servir; o
segundo princípio é descrito na situação de subordinação das mulheres
em que essas não podem ter autoridade sobre os homens, ou seja, mulher
na função de auxiliar, e, no terceiro, ao homem é dado o monopólio da
manutenção dos objetos técnicos e das máquinas (BOURDIEU, 2009).

314 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

Mediante as análises apresentadas aqui, pode-se afirmar que a


exclusão social no Projeto Jaíba em relação aos fatores vinculados ao
gênero está fortemente referendada pela permanência de valores cul-
turais que definem a situação de vida e de trabalho feminino, os quais
tomam como base a simbiose “mulher-terra-família” (CARNEIRO, 1994,
p. 21) como parte da identidade feminina no campo, capaz de se impor
perante o paradigma das relações de gênero e as mudanças na posição
da mulher no contexto rural. Assim, o desafio que se tem é no sen-
tido de repensar sobre a condição de agente das mulheres como um
dos principais mediadores substanciais da mudança econômica e social,
portanto, sua determinação e suas consequências vinculam-se a muitas
das características centrais do processo de desenvolvimento (SEN, 2000,
p. 263).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se em conta elementos de inclusão e exclusão e desen-


volvimento rural no feminino, apontam-se alguns aspectos que se desta-
caram como relevantes para a ocorrência de exclusão social das mulhe-
res no referido Projeto: a limitada participação social das mulheres em
diversos espaços é fator preponderante para a invisibilidade da atuação
feminina e o reconhecimento do papel dessas com equidade; a falta de
informação e de acesso a ela, bem como as dificuldades referentes aos
mecanismos para a operacionalização do crédito rural e, especificamente,
o Pronaf-Mulher.
Em se tratando dessa questão, constata-se que a superação das
desigualdades no PJ encontra-se ainda em situação de “vulnerabilidade”
quando se toma a situação de falta de implementação de políticas públicas
com perspectiva de gênero. Acredita-se que o acesso ao Pronaf-Mulher
é um dos aspectos preponderantes para a superação das desigualdades
de gênero e, sobretudo, para a valorização da atuação feminina no meio
rural. Portanto, as políticas de crédito rural, que deveriam ser instru-
mento de fundamental relevância para a agricultura familiar, não são
suficientes no PJ para provocar transformação nos modos de vida e situ-
ação de trabalho das agricultoras, tendo em vista que se constatou a
incipiência do Pronaf-Mulher e ainda um reduzido acesso ao Pronaf B
pelas mulheres. A disputa pelo crédito tradicional se dá em desigualdade
de condições entre homens e mulheres.
Pode-se afirmar também que a falta de acesso ao Pronaf-Mulher
contribui para a invisibilidade da capacidade produtiva e participação

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 315


Mulheres na agricultura familiar do Semiárido Norte Mineiro:
exclusão, inclusão e desenvolvimento rural no feminino

mais autônoma das mulheres ao mundo do trabalho na agricultura.


Faltam muitas ações e implementações para que as políticas públicas
destinadas à agricultura familiar sejam promotoras de transformações
sociais e na vida pessoal (trabalho e família) no PJ. Há de se repensar
sobre as condições de informação sobre o crédito, a falta de sensi-
bilização das instituições e dos agentes de mediação para atender
às “necessidades das mulheres” e às demandas das políticas públicas
na perspectiva de gênero e, sobretudo, o que é reflexo da sociedade
mais ampla, o não reconhecimento das próprias mulheres e das famí-
lias acerca das potencialidades femininas no mundo do trabalho e no
processo de gestão da unidade agrícola. Constatou-se que, em relação
à política de crédito, não existem oportunidades de escolhas dessas
mulheres e que as dificuldades ao acesso ao crédito ou o não acesso
ao crédito, principalmente pelas mulheres, passam pela construção de
uma imagem da realidade social feita pela própria mulher, pela famí-
lia e pelos agentes de mediação que resultam na reprodução das assi-
metrias de gênero. Nesse sentido, é possível afirmar que os critérios
de concessão de crédito agrícola ainda são sustentados nessas “assi-
metrias” de gênero dentro desse contexto e, portanto, reconhece-se
que há de se pensar diferente no tocante às políticas públicas de cré-
dito para as mulheres.
Em se tratando do contexto amplo dos fatores de exclusão social
no Projeto, cabe referendar os argumentos de Sen (2000) a respeito da
interdependência entre liberdade e responsabilidade.
Nesse entendimento, o autor declara ser de mão dupla o caminho
entre liberdade e responsabilidade, uma vez que a pessoa não pode ser
responsável pela realização de algo se não tiver liberdade substantiva
e capacidade. As oportunidades de emprego das mulheres, bem como
medidas educacionais e direitos de propriedade representam ganho de
poder das mulheres, capaz de conceder a elas mais liberdade para exer-
cerem influência em muitas questões como nas relacionadas à divisão
intrafamiliar dos cuidados com a saúde, entre outras. E, nesse sentido,
os fatores que provocam exclusão no PJ, em se tratando das relações de
gênero, são analisados aqui como falta de “liberdade substantiva” das
mulheres.
De fato, as liberdades substantivas significam as capacidades das
mulheres de terem melhores condições de vida e trabalho, com auto-
nomia, equidade e, consequentemente, potencializando o seu poder de
agência. Sendo assim, considerando os aspectos de exclusão apresen-
tados, constata-se que as capacidades elementares das mulheres como,

316 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

por exemplo, ter acesso ao crédito e maior participação política, dentre


outras, ainda estão no contexto do PJ, em condições muito desfavoráveis
à expansão de liberdades básicas que encaminham para o processo de
empoderamento e, por consequência, para as transformações nas hierar-
quias de poder calcadas no gênero em nossas sociedades.

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318 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Alves Neta Barbosa, Marta Júlia Marques Lopes

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 319


CAPÍTULO 13

Previdência rural social e gênero1

Ana Cecília Kreter

1 Este capítulo é uma versão revista e ampliada do artigo A previdência rural e a condição da
mulher, publicado na Revista Gênero, v. 5, nº 2, p. 137-156, 2005.
Ana Cecília Kreter

1 INTRODUÇÃO

O conceito de igualdade de gênero costuma ser associado à justiça


e à imparcialidade. Talvez por isso a previdência rural seja um dos exem-
plos mais claros da relação entre políticas públicas e igualdade de gênero
e, consequentemente, de justiça e imparcialidade no sistema previdenciá-
rio brasileiro. Este capítulo tem como objetivo apresentar esta transição,
ocorrida durante a década de 1990, dando ênfase à condição da mulher e
à aposentadoria por idade. No Brasil, existiam duas formas do trabalha-
dor rural participar do sistema previdenciário: como contribuinte regular
do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ou como segurado especial
do mesmo Instituto, desvinculando o benefício da contribuição compul-
sória adotada nas atividades urbanas.
A aprovação da Constituição Federal em 1988 instituiu o princípio
da universalização da seguridade social nas áreas da saúde, da previdên-
cia e da assistência social. Mudanças significativas foram introduzidas no
sistema previdenciário, dentre elas as Leis no 8.212 (Plano de Custeio da
Seguridade Social) e no 8.213 (Plano de Benefícios da Previdência Social),
as quais possibilitaram o requerimento da aposentadoria por idade no
valor de um salário mínimo aos 55 anos (para a mulher) ou aos 60 anos
(para o homem), desde que mediante comprovação do exercício de ativi-
dade rural, de forma contínua ou não.2
Essa mudança foi fundamental para o setor agropecuário. Até então,
pouco tinha sido feito pelo trabalhador rural. A aprovação da Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, por exemplo, sequer mencionava-os e,
mesmo após a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUN-
RURAL) 20 anos depois, os benefícios previdenciários eram concedidos
às mulheres mediante uma série de restrições. Com esta Lei, os segurados
especiais passaram a ter acesso à aposentadoria por invalidez, à aposenta-
doria por idade, à pensão, ao auxílio-doença e ao auxílio-reclusão.
Com o intento de analisar o impacto da nova legislação, foram
selecionados os dados do Modelo Demográfico-Atuarial de Projeções e
Simulações de Reformas Previdenciárias (MAPS), elaborado pelo Insti-
tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) entre os anos de 1990 e
2000. Esse modelo é composto pelos módulos demográfico, previdenci-
ário e econômico, e foi baseado nos microdados da Empresa de Tecno-
logia e Informações de Previdência Social (DATAPREV). Ao contrário da

2 Artigo 39o da Lei no 8.213/91.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 323


Previdência Rural Social e Gênero

Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD),3 o MAPS distingue o


tipo de previdência (rural ou urbana) e o tipo de benefício recebido (apo-
sentadorias, auxílios e pensões).
Além da importância das aposentadorias no meio rural como gera-
dora de renda, o presente capítulo também dá ênfase às mulheres traba-
lhadoras rurais, por serem as que sofreram maior impacto com a nova
legislação. A assimetria das relações de gênero é claramente externali-
zada não somente no convívio entre homens e mulheres no rural, como
também se manifesta na estrutura do Estado brasileiro por meio das Leis
e normativas, sendo uma das mais explícitas as que regem o sistema
previdenciário. Desta forma, havia uma dupla discriminação, por ela ser
trabalhadora do setor agropecuário e simplesmente por ser mulher.

2 A MULHER E O MUNDO RURAL

Ao longo da História, é comum relacionar o papel social da mulher


com reprodução biológica, trabalho doméstico, e outros afazeres presentes
na esfera privada. Maccalóz e Melo (1997) apontam que os movimentos
feministas na segunda metade do século XX contribuíram para a mudança
nessa estrutura familiar através da inserção da mulher no mercado de tra-
balho. Ainda conforme as autoras, essa mudança foi propiciada tanto pelo
acesso à educação como pela sua participação na política. Mas se nas cida-
des trabalho e independência financeira foram encontrados fora do domi-
cílio, nas áreas rurais a situação é, de certa forma, invertida. No campo,
tarefas como cuidado de pequenos animais e criação dos filhos sempre
estiveram presentes no dia a dia da mulher, mas, por serem “rotinas do lar”,
ainda não são sempre reconhecidas como trabalho. Prova disso foi o alto
percentual de mulheres – cerca de 88% – que se declararam “membros não
remunerados da família” no Censo Agropecuário de 1980.
Como será apresentado na próxima seção, a criação da Constituição
Federal de 1988 dá novo impulso à conquista da igualdade de gênero atra-
vés da garantia do princípio da universalização dos direitos. Entretanto, a
distinção entre afazeres domésticos e trabalho, tão recorrente no universo
feminino, permaneceu obscura. Como apresentado por Melo (2000), duas
décadas depois da divulgação deste Censo, ainda é possível identificar ele-
vada proporção de mulheres que se declaram sem trabalho nas áreas rurais
brasileiras, principalmente se compararmos com os demais setores da econo-

3 A PNAD é um importante banco de dados sobre informações dos indivíduos e domicílios. Este
banco é descrito de forma mais detalhada no Capítulo 4.

324 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

mia. Esta constatação sugere que o trabalho não só está quase que exclusi-
vamente associado à execução de tarefas fora da esfera privada, bem como à
remuneração. Se, de fato, essas duas constatações fossem verdadeiras, todas
as atividades de autoconsumo seriam declaradas como não trabalho. Adi-
cionalmente a isso, boa parte das moradias no meio rural sofre com a falta
de acesso a serviços básicos, que normalmente passam despercebidos no
dia a dia das cidades, como água encanada e energia elétrica, além da falta
de acesso aos eletrodomésticos facilitadores do lar, sem os quais tornam-se
mais árduas as tarefas rotineiras de cuidar da casa e dos demais membros da
família. Diante deste quadro, é muito comum que a mulher também assuma
a provisão dessas necessidades que exigem não só mais horas de trabalho,
como também as tornam fundamentais para a manutenção de suas famílias.

3 TIPOS DE CONTRATO DE TRABALHO

Até 1970, boa parte dos trabalhadores e trabalhadoras rurais pas-


sava toda a sua vida em uma única propriedade, normalmente onde nas-
ciam. Esse ciclo de renovação de mão de obra se perpetuava dentro das
famílias e era fomentado por uma espécie de pacto informal com o pro-
prietário da fazenda. O Quadro 1 destaca as principais relações de traba-
lho existentes neste período.4
A primeira categoria apresentada é a de trabalhadores proprietários
rurais. De acordo com o levantamento feito em 1955 pela Secretaria da
Agricultura do estado de São Paulo, 84% desses trabalhadores possu-
íam terras com área de até 99 hectares. Apesar das propriedades maiores
necessitarem, teoricamente, contratar mais mão de obra assalariada, foi
constatado pelo mesmo órgão que as propriedades paulistas com área de
10 a 99 hectares também possuíam um número expressivo de assalaria-
dos em 1955. Ainda segundo essa Secretaria, diversas razões podem ter
contribuído para isso, dentre elas: a) a relativa facilidade de se obter mão
de obra assalariada no estado, bem como parceiros e arrendatários; b) a
baixa remuneração em vigor na região; c) o baixo emprego de tecnolo-
gias intensivas em capital; d) a precária legislação trabalhista e tributá-
ria; e e) a pequena oportunidade de emprego nos centros urbanos.
Os colonos representam a segunda categoria apresentada no Qua-
dro 1, e a única, dentre as analisadas, que aparece com recorrência de

4 A nomenclatura utilizada no Quadro 1 se baseou nas denominações comumente usadas no meio para
caracterizar ou classificar o status do trabalhador rural nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Essas mesmas categorias podem ser encontradas em outros estados, mas com nomes distintos.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 325


Previdência Rural Social e Gênero

contratos por escrito. Embora o termo colono seja comumente referido ao


imigrante europeu do final do século XIX e início do século XX, denomi-
namos colono, ou meeiro, todo trabalhador ou trabalhadora residente na
propriedade rural que executava tarefas no período de safra nas culturas
do café e da cana de açúcar. Apesar dos colonos serem também conheci-
dos em algumas regiões como empreiteiros, a denominação empreiteiro
no Quadro 1 se refere ao prestador de serviço por empreitada.
Os diaristas e os mensalistas eram prestadores de serviços e podiam
ser contratados tanto pelos arrendatários e parceiros, quanto pelos proprie-
tários rurais de grandes produtores agrícolas, ou que operavam no sistema
intensivo em mão de obra. Em algumas regiões, esses trabalhadores tam-
bém eram conhecidos como camaradas. Os mensalistas possuíam denomi-
nações próprias derivadas da função que exerciam dentro da propriedade:
mensalistas categorizados (administradores e fiscais), mensalistas especia-
lizados (tratoristas e motoristas) e mensalistas comuns (carroceiros, reti-
reiros, peões e foiceiros). Contudo, de todas as categorias apresentadas no
Quadro 1, os diaristas representavam o maior grupo de assalariados, e os
que possuíam a maior diversidade nas relações de trabalho.
Além dos tipos de contrato de mão de obra, até a década de 1970
os valores das diárias e dos salários pagos aos trabalhadores eram bas-
tante variáveis, tanto dentro quanto fora das propriedades. Parte do seu
pagamento era feita em espécie, e parte em dinheiro. Havia variação na
quantidade, na qualidade e na composição dessa cesta de bens, mesmo
em regiões próximas, o que é mais um indício de uma ampla flexibilidade
regional, pouco relacionada aos usos e costumes locais. Entretanto, essa
flexibilidade estava longe de ser uma negociação justa entre empregado e
empregador. Pelo contrário, o sistema de contratos era flexível ao compor-
tar e criar diferentes categorias de emprego e modalidades de pagamento,
na maioria das vezes impostas pelo empregador. Mesmo assim, o trabalha-
dor compactuava com o patrão um acordo de dependência mútua, em que
ele o ajudava nos momentos de crise agrícola (quebra de safra, baixa dos
preços, etc.), e era ajudado quando sua família precisava, o que costumava
ocorrer em casos como o de falecimento e o de doença.5 A situação da
trabalhadora rural era ainda pior. Muitas vezes, ela, assim como as crian-
ças eram consideradas como um prolongamento do trabalho do homem.
O salário era apenas um, mas realizado por toda a família. Ainda hoje

5 O termo proprietário está sendo usado somente quando a propriedade do estabelecimento rural
é condição necessária. Nos demais casos, quando estão sendo analisadas apenas as relações de
trabalho, usamos os termos empregador, patrão ou produtor com a mesma finalidade.

326 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

Quadro 1 – Relações de trabalho, atividades agrícolas, Brasil, 1900 a 1970.

Principais
Categoria Tipo de Contrato Pagamento
Características
O que era produ-
Eram os trabalha- zido era apropriado
dores que executa- pelo trabalhador
vam a maior parte proprietário e pela
Proprietários
de suas atividades família - em espécie,
Trabalhado- Não havia contrato.
em estabelecimento quando consumido
res Rurais
próprio, seja sozi- diretamente, ou em
nho, seja com a dinheiro, quando o
ajuda da família. produto fosse ven-
dido no mercado.
Por escrito, com os
seguintes elementos:
Em dinheiro e em
nome da propriedade
espécie. A remu-
e sua localização,
Eram os trabalha- neração era fixa e
nome das partes con-
dores que residiam estipulada por mil
tratantes, valores dos
na propriedade pés tratados ou por
pagamentos, processo
rural e que execu- sacas de café em
a ser adotado na
tavam tarefas no côco colhida, no
exploração do pro-
período de safra caso dos cafeeiros,
duto, preferência na
nas culturas do e por quartel ou
aquisição das safras
Colonos café e da cana de hectare e tonelada
de cereais dos colo-
açúcar, na época de cana, na cana
nos, comportamento,
da colheita ou fora de açúcar. O paga-
penalidades, número
dela. Em algumas mento era estipu-
de pés ou área a
regiões, o emprei- lado no início da
ser tratada sob sua
teiro também era safra para vigorar
responsabilidade e
conhecido como durante uma safra
vigência do contrato.
colono. completa. O colono
Esse contrato era assi-
não podia pleitear
nado pelo proprietá-
reajuste.
rio, pelo colono e por
duas testemunhas.
Eram os trabalha- Normalmente o
dores contratados pagamento era feito
Os contratos por
para a execução por uma quantia
escrito eram pratica-
de um serviço por fixa em dinheiro,
mente inexistentes.
empreitada, ou seja, mas era comum
Eles eram feitos na
Empreiteiros executavam uma em certas lavouras
maior parte das vezes
tarefa mediante o recebimento da
por acordos verbais
o recebimento de colheita total ou
entre as partes (“con-
uma quantidade parcial das primei-
tratos de boca”).
previamente esta- ras safras da cul-
belecida. tura em formação.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 327


Previdência Rural Social e Gênero

Quadro 1 – Continuação.
O valor do aluguel era
Eram todos os agri- O pagamento do
previamente combi-
cultores que paga- parceiro ao proprie-
nado entre agricultor
vam aluguel pelo tário era feito atra-
e proprietário. Entre-
Parceiros uso da terra - onde vés de um percen-
tanto, na maior parte
faziam suas explo- tual da produção
das vezes, eram acor-
rações agrícolas ou em troca do uso da
dos verbais (“contra-
possuíam animais. terra.
tos de boca”).
A forma de paga-
Também como os mento pelo uso da
Assim como os par-
parceiros, o valor do terra era a única
ceiros, eram todos
aluguel era previa- característica que
os agricultores que
mente combinado distinguia um
pagavam aluguel
Arrendatá- entre agricultor e pro- arrendatário de um
pelo uso da terra -
rios prietário. Entretanto, parceiro. No caso do
onde faziam suas
na maior parte das arrendatário, o paga-
explorações agrí-
vezes, eram acordos mento era feito atra-
colas ou possuíam
verbais (“contratos de vés de uma quanti-
animais.
boca”). dade fixa de dinheiro
ou de produto.
Eram os trabalha- Em dinheiro. Rara-
dores que presta- mente era feito
vam serviço com o pagamento em
base em uma remu- espécie, a não ser
Mensalista Não foi especificado.
neração mensal. Os o oferecimento de
mensalistas também moradia dentro da
eram chamados de propriedade e a lenha
“camaradas”.* para o combustível.
Eram os trabalhado-
res que prestavam
serviço com base
Todas as variações de
em uma remune-
contrato referentes
Diarista ração diária. Assim
aos diaristas encon-
como os mensalis-
tram-se no Quadro 2.
tas, também eram
conhecidos como
“camaradas”.*
Fonte: Elaboração própria.

percebemos uma linha muito tênue entre o espaço privado e o local de


trabalho nas zonas rurais do Brasil, onde o patrão, além de empregador,
tem uma função social fundamental de assistência à família do empregado.
No final da década de 1990, Maccalóz e Melo (1997) constata-
ram um aumento da participação das mulheres no trabalho remunerado

328 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

nas áreas rurais. Contudo, segundo as autoras, os homens continuaram


ganhando praticamente o dobro das mulheres e, se comparados com a
população urbana, sua remuneração média foi de cerca de 30% menor.
Isso pode ser um indício de que as relações trabalhistas no campo estão
longe de serem as ideais, principalmente para as mulheres.

4 MUDANÇAS NA PREVIDÊNCIA RURAL A PARTIR DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A primeira legislação previdenciária específica para as atividades


agrícolas ocorreu com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural,6 em
março de 1963. O sistema previdenciário que abrangia esse tipo de ativi-
dade ficou a cargo do recém-criado Fundo de Assistência ao Trabalhador
Rural, ou simplesmente FUNRURAL.7 Os benefícios prestados consistiam
em aposentadoria por invalidez e por velhice, pensão por morte, auxílio-
-maternidade, auxílio-doença, auxílio-funeral e assistência médica, apesar
da maior parte dos benefícios ser concedida ao chefe ou arrimo de família.8
Em 1972, o sistema previdenciário passou a integrar o Ministério
do Trabalho e Previdência Social (MTPS), e o plano básico foi substituído
pelo Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRÓ-RURAL),9 o qual
foi regulamentado em 1972. Além da assistência aos trabalhadores rurais,
pelo mesmo regulamento também foram assistidos, posteriormente, os
pescadores (a partir de 1972) e os garimpeiros (a partir de 1975). Os bene-
fícios conferidos a esses trabalhadores e a seus dependentes passaram
a ser: aposentadoria por idade e por invalidez, pensão, auxílio-funeral,
serviço social, readaptação profissional e serviço de saúde. O benefício
de aposentadoria por idade aos 65 anos, particularmente, era bastante
precário, limitado ao chefe da família e tendo meio salário mínimo como
teto. O FUNRURAL ficou com a responsabilidade da execução e adminis-
tração do programa da clientela rural, enquanto que a clientela urbana
ficou sob responsabilidade do então Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS). A unificação do sistema de seguridade brasileiro ocorreu
em 1977. A responsabilidade pela prestação de benefícios, assistência
médica, assistência social e por toda a estrutura administrativa e finan-
ceira passou para o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

6 Lei n° 4.214/1963.
7 Lei n° 4.214/1963.
8 Ver em Brumer (2004) importante discussão do papel da sociedade civil na previdência rural.
9 Lei Complementar n° 11/1971.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 329


Previdência Rural Social e Gênero

(SINPAS). Assim, o FUNRURAL foi extinto, e o INPS aumentou suas atri-


buições, mantendo e concedendo benefícios aos segurados do próprio
INPS e aos beneficiários do FUNRURAL (BELTRÃO, 2000a).
Nesse novo programa, o trabalhador rural foi equiparado ao
pequeno produtor que exercia a sua atividade sem a contratação de
empregados. Entretanto, dentre os que exerciam atividades rurais, havia
diferenças acentuadas na concessão de direitos entre homens e mulhe-
res. Por exemplo, as trabalhadoras que optassem pelo matrimônio não
se aposentavam por idade. Como o casal não poderia acumular duas
aposentadorias iguais, a lei privilegiava o chefe ou arrimo de família.
Para as trabalhadoras que tinham carteira assinada, ainda havia a opção
de se aposentar por tempo de serviço. Neste caso, a maior barreira era
conseguir alcançar os 30 anos de contribuição, dado que, muitas vezes,
a mulher tinha sua jornada de trabalho reduzida pela responsabilidade
dos afazeres domésticos, ou pelo afastamento temporário do trabalho no
período de nascimento e aleitamento materno.
Em 1988, foi aprovada a última Constituição Federal brasileira, que
teve como princípio a universalização da seguridade social, englobando
as áreas da saúde, da previdência e da assistência social. Mudanças sig-
nificativas foram introduzidas no sistema previdenciário, dentre elas as
Leis no 8.212 (Plano de Custeio da Seguridade Social) e no 8.213 (Plano
de Benefícios da Previdência Social), as quais entraram em vigor em
1991. Para a previdência rural, essas Leis contemplaram os trabalhadores
rurais através de dois tipos de benefício já existentes antes da Constitui-
ção Federal de 1988: o de contribuição compulsória e o de contribuição
facultativa. No primeiro deles, os trabalhadores rurais com carteira assi-
nada contribuem para a previdência social e se aposentam recebendo
até 100% do salário-de-benefício, que pode ser de um salário mínimo ou
acima desse valor. Assim, pela contribuição compulsória, o trabalhador
rural se aposenta como os demais trabalhadores brasileiros, baseando-se
no tempo de contribuição e na idade mínima para requerer o benefício.
A segunda categoria abrange, principalmente, os trabalhadores rurais
classificados como segurados especiais.10 Esses trabalhadores, apesar

10 De acordo com o artigo 195, inciso III, § 8° da Constituição Federal de 1988 “[...] o produtor,
o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos
cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados per-
manentes, contribuirão para a Seguridade Social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o
resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei”, sendo
denominados segurados especiais. Vale lembrar que, após a Emenda Constitucional n° 20/1998,
houve a supressão dos garimpeiros deste parágrafo.

330 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

de não contribuírem compulsoriamente para a previdência social, têm


o direito de receber a aposentadoria por idade no valor de um salá-
rio mínimo, desde que comprovem o exercício de atividade rural e que
tenham, no mínimo, 55 anos (se mulher) ou 60 anos (se homem). O Qua-
dro 2 apresenta as principais mudanças na previdência rural com a Cons-
tituição Federal de 1988.
O Quadro 2 mostra que a primeira alteração significativa se refere
ao valor do benefício. Enquanto as aposentadorias passaram de meio
para um salário mínimo,11 as pensões tiveram um salto ainda maior,
saindo de 30% para também um salário mínimo. Isso significa que os
rendimentos daqueles que já estavam incluídos no sistema previdenci-
ário, no mínimo, dobraram. Outro ponto importante a ser destacado no
Quadro 2 é a mudança na idade mínima para se aposentar por idade. Até
1991, essa aposentadoria era concedida a qualquer trabalhador rural ao
completar 65 anos, desde que comprovasse o exercício de sua atividade.
Após a promulgação das Leis no 8.212 e no 8.213 de 1991, a idade mínima
para requerer esse benefício passou a ser 60 anos para os homens, e 55
anos para as mulheres, ou seja, cinco e dez anos a menos, respectiva-
mente, do requerido até 1991.
Se a aposentadoria por idade viabilizou uma crescente participa-
ção da população rural no sistema previdenciário, é através da análise
por gênero desse benefício que as mudanças na legislação ficaram ainda
mais nítidas. A aposentadoria por idade já existia antes de 1988, porém

Quadro 2 – Principais mudanças na previdência rural após a Constituição Federal


de 1988.

Como era O que mudou


Teto de benefício de, no máximo, meio
Valor de um salário mínimo para
salário mínimo para as aposentadorias, e de
qualquer benefício previdenciário
30% do salário mínimo para as pensões
Aposentadoria por idade concedida
Aposentadoria por idade concedida
aos 55 anos para as mulheres, e
aos 65 anos
aos 60 anos para os homens
Concessão do benefício apenas ao chefe ou Igualdade de direitos entre homens
arrimo de família e mulheres
Fonte: Elaboração própria.

11 Artigo 201 § 2° CRFB.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 331


Previdência Rural Social e Gênero

a trabalhadora rural perdia o direito de se aposentar a partir do momento


em que ela passava a viver maritalmente com um beneficiário. Como foi
apresentado anteriormente, a previdência social no campo concedia o
benefício apenas ao chefe ou arrimo de família. A equiparação das con-
dições de acesso a benefícios previdenciários para homens e mulheres
trabalhadores rurais fez com que a mulher ocupasse uma posição de des-
taque, não só pelo reconhecimento do seu trabalho, como também pela
sua participação na composição da renda familiar.

5 COMPROVAÇÃO DO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE RURAL


PARA A APOSENTADORIA POR IDADE

Para requerer a aposentadoria por idade como segurado especial,


o trabalhador rural deve comprovar o exercício de sua atividade, mesmo
que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao reque-
rimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribui-
ção correspondente à sua carência (Leite, 2010). Esse número de meses
de contribuição foi adotado de modo crescente a partir do ano de 1991,
conforme apresentado no Quadro 3.
Com base no Quadro 3, a trabalhadora rural que se aposentou no
ano de 2001, por exemplo, teve que comprovar 120 meses de contribui-
ção. Se ela se aposentou em 2006, o número de meses subiu para 150, e
assim sucessivamente, até completar 180 meses, em 2011. É importante
destacar que o exercício da atividade rural pode ser individual ou em
regime de economia familiar, ou a combinação dos dois.
Para a comprovação do exercício da atividade, existem as provas
plenas, previstas na Lei no 8.213 (Plano de Benefícios da Previdência
Social). De acordo com o artigo 106 da mesma Lei, são consideradas
provas plenas:
contrato individual de trabalho ou Carteira de Trabalho e Previ-
dência Social;
contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural;
declaração fundamentada de sindicato que represente o traba-
lhador rural ou, quando for o caso, de sindicato ou colônia de
pescadores, desde que homologada pelo Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS);
comprovante de cadastro do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), no caso de produtores em regime de
economia familiar;
bloco de notas do produtor rural;

332 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

Quadro 3 – Transição da contribuição da previdência rural.

Ano de Implementação das Condições Meses de Contribuição Exigidos


1991 60
1992 60
1993 66
1994 72
1995 78
1996 90
1997 96
1998 102
1999 108
2000 114
2001 120
2002 126
2003 132
2004 138
2005 144
2006 150
2007 156
2008 162
2009 168
2010 174
2011 180
Fonte: Brasil (2014).

notas fiscais de entrada de mercadorias, de que trata o § 7o do


art. 30 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, emitidas pela
empresa adquirente da produção, com indicação do nome do
segurado como vendedor;
documentos fiscais relativos à entrega de produção rural à coo-
perativa agrícola, entreposto de pescado ou outros, com indica-
ção do segurado como vendedor ou consignante;
comprovantes de recolhimento de contribuição à Previdência
Social decorrentes da comercialização da produção;
cópia da declaração de imposto de renda, com indicação de
renda proveniente da comercialização de produção rural; ou
licença de ocupação ou permissão outorgada pelo INCRA.
A Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência dos Juiza-
dos Especiais Federais (TNU) entende que os documentos apresentados não
precisam corresponder a todo o período de carência. Contudo, a TNU exige

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 333


Previdência Rural Social e Gênero

que o comprovante do período inicial da prova material seja contempo-


râneo. Em outras palavras, não se pode apresentar um documento recente
com o intuito retroativo, a fim de provar um fato passado (Leite, 2010).
Como parte dos trabalhadores encontra dificuldades para comprovar
sua atividade através das provas plenas, admitem-se também alguns docu-
mentos que podem ser “início de prova material”. Segundo Leite (2010), não
há necessidade de que tais documentos se refiram unicamente ao segurado.
Basta que deles se possa extrair a menção de que o segurado, cônjuge ou
familiar próximo (pais, filhos, irmãos, etc.) seja agricultor, lavrador, tra-
balhador rural ou outros sinônimos, ou de que tenha endereço na zona
rural, por transparecer, pelo menos a princípio, a agricultura no regime de
economia familiar. Seguem alguns exemplos citados pelo autor:
Certidões de casamento, óbito, nascimento ou outro documento
público idôneo
Ficha de Alistamento Militar ou Certificados de Dispensa do Ser-
viço Militar ou de Dispensa de Incorporação (CDI)
Título eleitoral ou Certidão do TRE
Prova de participação no Programa Emergencial Frentes Produ-
tivas de Trabalho
Recebimento de benefício decorrente de programa governamen-
tal relacionado à agricultura
Recebimento de cesta básica decorrente de estiagem
Documentos relacionados ao Programa Nacional de Fortaleci-
mento da Agricultura Familiar (Pronaf)
Fichas de Inscrição, Declarações e Carteiras de Associado do
Sindicato de Trabalhadores Rurais e de Associação Rural
Contrato de Comodato com o proprietário do imóvel, CCIR (Cer-
tificado de Cadastro de Imóvel Rural) e ITR (Imposto Territorial
Rural) em nome deste, de herdeiro ou do próprio segurado ou
familiar; ou
Ficha de atendimento médico-ambulatorial ou ortodôntico.
Os documentos considerados como “início de prova material” podem
ser corroborados por testemunhas. Entretanto, o Superior Tribunal de Jus-
tiça (STJ) entende que apenas o depoimento das testemunhas não é condi-
ção suficiente para provar a atividade rural e, quando há apresentação de
provas plenas, o STJ dispensa a participação de testemunhas.
Esta nova estrutura previdenciária foi uma das principais respon-
sáveis pela ampliação no número de beneficiários no Brasil – cerca de
62% entre os anos de 1990 e 2000 (MAPS/IPEA). A análise detalhada
desses dados será apresentada na próxima seção.

334 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

6 A PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA

De modo geral, os benefícios previdenciários podem ser agrupados


em: aposentadorias, auxílios e pensões. As aposentadorias incluem as
aposentadorias por tempo de serviço, por invalidez e por idade. Já os
auxílios são classificados em auxílio-doença, auxílio-reclusão e auxílio-
-acidente. E as pensões representam apenas as pensões por morte.
Todos esses benefícios – clientela rural e urbana – sofreram um
incremento significativo no número de participantes com a nova legisla-
ção. O Gráfico 1 apresenta o estoque dos principais benefícios concedidos
pela previdência social à população brasileira, e corrobora esse resultado.
Com base nos dados do Gráfico 1, observa-se que o número de
aposentados sofreu um aumento de aproximadamente 79% entre os
anos de 1990 e 2000, seguidas das pensões, com crescimento de cerca
de 47%. Os auxílios, que não aparecem neste gráfico, representam ape-
nas 5% do total de benefícios, sendo que, durante os dez anos anali-
sados, apresentou crescimento de apenas 1%. Esse resultado mostra
claramente que as aposentadorias eram e, com a nova legislação, con-
tinuaram a ser o grupo de benefícios mais importante do sistema pre-
videnciário brasileiro.
Ainda em relação a este benefício, observa-se que os maiores cres-
cimentos ocorreram entre os anos de 1991 e 1993 – 14% e 17%, respec-

12.000.000

11.000.000

10.000.000

9.000.000

8.000.000

7.000.000

6.000.000

5.000.000

4.000.000

3.000.000
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Aposentadorias Pensões

Gráfico 1 – Estoque dos principais benefícios previdenciários, Brasil*.


Fonte: Elaboração própria a partir de MAPS/IPEA.
Nota: * Número de beneficiados.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 335


Previdência Rural Social e Gênero

tivamente. Esse incremento concentrado em apenas dois anos, a partir de


1991, pode ter ocorrido por duas razões: a) porque a nova legislação pre-
videnciária passou a incluir no sistema pessoas que se tornaram aptas ao
requerimento, ou seja, mulheres que tinham entre 55 e 64 anos e homens
que tinham entre 60 e 64 anos, e que poderiam comprovar sua condi-
ção de trabalhador rural, mas que estavam aguardando a idade mínima
em vigor até então para se aposentar (65 anos); e/ou b) porque até essa
data as trabalhadoras rurais que haviam completado a idade mínima e
que tinham como comprovar o exercício de suas atividades rurais eram
excluídas do sistema por estarem casadas com parceiros que já fossem
beneficiários da previdência social. A participação da aposentadoria por
idade concedida aos trabalhadores rurais no montante total encontra-se
no Gráfico 2.
Alguns pontos devem ser destacados no Gráfico 2. Primeiramente,
o aumento das concessões de aposentadoria observado no Gráfico 2 é
explicado quase que exclusivamente pela aposentadoria por idade que, a
partir de 1993, se tornou a aposentadoria com maior número de conces-
sões no Brasil. Nota-se também que a aposentadoria por idade sempre foi
mais relevante para a clientela rural, mesmo antes de 1991. Entretanto, a
partir dessa data, sua participação mais que dobrou. A seção 7 apresenta
uma análise detalhada desse benefício.

6.000.000

5.500.000

5.000.000

4.500.000

4.000.000

3.500.000

3.000.000

2.500.000

2.000.000
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Aposentadorias por idade Outras aposentadorias Aposentadoria por idade rural

Gráfico 2 – Estoque de aposentadorias por idade (total e rural) e demais aposenta-


dorias, Brasil*.
Fonte: Elaboração própria a partir de MAPS/IPEA.
Nota: * Número de beneficiados.

336 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

7 APOSENTADORIA POR IDADE NO MEIO RURAL

Como foi dito na seção 4, até 1991, somente o chefe ou arrimo de


família tinha direito à aposentadoria por idade, não permitindo, assim,
que, em um casal de idosos, os dois pudessem requerer o mesmo tipo
de aposentadoria. Um dos benefícios trazidos pela nova legislação foi a
adoção do princípio da universalização, que, no caso do sistema previ-
denciário rural, possibilitou que as mulheres se tornassem aptas, assim
como os homens, a receber qualquer benefício, sendo elas casadas ou
não. O Gráfico 3 apresenta o estoque de aposentadorias por idade da
previdência rural.
Através do Gráfico 3, observa-se que, em 1990, a aposentadoria
por idade era um benefício tipicamente masculino. Porém, a proporção
entre homens e mulheres foi diminuindo ao longo da década até chegar
a 57% e 43%, respectivamente.12 Pela expectativa de vida da mulher ser
superior, a tendência é que haja uma igualdade de concessão entre os
dois grupos, podendo até ser superada por elas posteriormente.13

2.500.000

2.000.000

1.500.000

1.000.000

500.000

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Homens Mulheres

Gráfico 3 – Estoque de aposentadorias por idade da previdência rural, por sexo, Brasil*.
Fonte: Elaboração própria a partir de MAPS/IPEA.
Nota: * Número de beneficiados.

12 O Capítulo 4 mostra a importância da renda oriunda de aposentadorias e pensões para a renda


das mulheres de famílias rurais.
13 Não houve como comprovar tal tendência na última década pela descontinuidade dos dados do
MAPS.

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 337


Previdência Rural Social e Gênero

Analisando o estoque total de aposentados por idade da previdên-


cia rural, observa-se que, entre os anos de 1990 e 2000, o crescimento
foi em torno de 100%. Apesar dos homens apresentarem um aumento
significativo (30,3%), o maior destaque foi para as mulheres (aproxima-
damente 600%). A tendência de maior participação da mulher no número
de concessões desse benefício também pode ser verificada pela taxa de
crescimento ano a ano (Gráfico 4). Nota-se que, nos três anos subsequen-
tes às Leis no 8.212 e no 8.213, as taxas de crescimento para ambos os
sexos atingiram seus níveis mais altos. E, entre os dois, a taxa de cresci-
mento das mulheres foi ainda maior que a dos homens, o que corrobora
a hipótese de exclusão compulsória da trabalhadora rural do sistema pre-
videnciário até 1991.
Contudo, ainda de acordo com o Gráfico 4, nos anos de 1995 e
1996 a taxa de crescimento atingiu seu nível mais baixo. Esse período
ficou conhecido como “represamento dos benefícios” (SILVA, 2000), e
ocorreu devido às alterações nos procedimentos para deferimento das
aposentadorias solicitadas. Até essa data, o principal documento exigido
era a “declaração do sindicato” homologada pela Promotoria Pública
do Município. Posteriormente, a homologação passou a ser feita pelo
INSS, que exigia os documentos comprobatórios descritos na seção 5.
Como eles eram raramente emitidos em nome das mulheres, pode-se ter
uma ideia de quantos requerimentos foram indeferidos injustamente.

180

150

120

90

60

30

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

-30

Homens Mulheres

Gráfico 4 – Taxa de crescimento das aposentadorias por idade (%), por sexo, clien-
tela rural, Brasil.
Fonte: Elaboração própria a partir de MAPS/IPEA.

338 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

Por pressão dos sindicatos, a partir de meados de 1996 a trabalhadora


rural voltou a ter o direito de requerer a aposentadoria por idade, utili-
zando documentos em nome do companheiro, desde que comprovasse o
vínculo familiar como, por exemplo, através do registro de casamento
(SILVA, 2000). Passado o período de represamento, o número de aposen-
tadas por idade voltou a crescer.
É importante destacar que mudanças burocráticas para o
requerimento de benefícios previdenciários, como essa ocorrida nos
anos de 1994 e 1995, atingiram principalmente as mulheres. De forma
semelhante, a contribuição facultativa é mais relevante para garantir a
inclusão das mulheres na aposentadoria por idade do que dos homens.
Segundo Melo (2000), 14% dos trabalhadores com carteira assinada no
campo são mulheres. Se apenas esses 14% tivessem direito a se aposentar,
estaríamos excluindo do sistema todas as trabalhadoras que vivem em
sistema de economias familiares – atividades classificadas como “por
conta própria” ou “de autoconsumo” – e que, certamente, representam
muito mais que isso. Apesar do aumento expressivo da participação das
mulheres como seguradas especiais, pode-se dizer que elas ainda repre-
sentam o grupo mais vulnerável no campo. Além das dificuldades men-
cionadas, elas também precisam dividir o tempo entre a produção e os
afazeres domésticos. Mas será que as trabalhadoras urbanas vivem reali-
dade semelhante?
A aposentadoria por idade no meio urbano é concedida às trabalha-
doras com 60 anos de idade ou mais e que estejam em condições seme-
lhantes às rurais. O Gráfico 5 apresenta o estoque de aposentadorias por
idade concedidas às mulheres brasileiras entre os anos de 1990 e 2000.
Com base no Gráfico 5, verifica-se que, no início da década de
1990, a clientela mais significativa entre as aposentadas por idade era a
urbana. Em 1992, a clientela urbana ainda predominava entre as benefi-
ciárias, mas as participações de ambos os grupos já estavam muito próxi-
mas – 58% para as aposentadas urbanas, e 42% para as rurais. A partir de
1993, as aposentadas rurais se tornaram maioria (63%), invertendo, desse
modo, o grupo majoritário na concessão desse benefício.
Entretanto, ao se comparar o Gráfico 5 com o Gráfico 2 – que
apresenta os aposentados por idade nos meios rural e urbano –, observa-
-se que, apesar dos rurais sempre terem sido predominantes (Gráfico 2),
poucas idosas podiam usufruir do benefício (Gráfico 5). A universaliza-
ção do sistema previdenciário possibilitou igualdade de direitos entre
homens e mulheres trabalhadores rurais, e também que qualquer família
passasse a ter mais de um beneficiário. Uma das consequências diretas foi

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 339


Previdência Rural Social e Gênero

1.800.000

1.500.000

1.200.000

900.000

600.000

300.000

0
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Urbana Rural

Gráfico 5 – Estoque de aposentadorias por idade, mulheres, Brasil.


Fonte: Elaboração própria a partir de MAPS/IPEA.

o aumento da renda domiciliar e, em razão disso, a mudança do papel do


idoso na estrutura da família. Os idosos deixaram de ser dependentes e
passaram a ser contribuintes dessa renda, representando, muitas vezes, o
único provedor em diversas famílias brasileiras. O aumento da concessão
da aposentadoria por idade no campo para os que já recebiam o benefício
antes de 1991 pode ter contribuído ainda para a redução dos níveis de
pobreza constatados no Censo de 2000.
É razoável se pensar que o crescimento do movimento de mulheres e
suas organizações populares no campo e na cidade tenham elevado o nível
de conscientização da população feminina acerca do seu trabalho. Com
certeza, as condições de todas elas, em especial das idosas, melhoraram
nesses dez anos, porém é importante reconhecer suas atividades, principal-
mente na velhice, após uma vida inteira de dedicação ao trabalho.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste capítulo foi analisar a condição da mulher no


sistema brasileiro de previdência rural de 1990 a 2000, baseando-se no
princípio da universalização. Através desse princípio, instituído pela
Constituição Federal de 1988, todos os cidadãos têm os mesmos direitos
e deveres perante a Lei. Dentre todas as mudanças ocorridas na legislação
previdenciária para as atividades rurais, pode-se citar como principais:
a) a criação de um piso mínimo para os benefícios, garantindo o recebi-

340 Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas


Ana Cecília Kreter

mento de um salário mínimo; b) a fixação de idades diferenciadas para


o requerimento da aposentadoria por idade (55 anos para as mulheres e
60 anos para os homens); e c) a igualdade de direitos entre trabalhado-
res e trabalhadoras rurais, deixando de excluir as mulheres casadas ou
com vida conjugal ao acesso dos benefícios previdenciários. Até então a
legislação brasileira contribuía para a dependência da mulher em relação
à sua família na velhice. O artigo destacou a aposentadoria por idade,
por ser o benefício mais representativo da previdência rural para ambos
os sexos.
Concluiu-se que, após a criação das Leis no 8.212 e no 8.213, em
1991, a previdência rural se tornou uma política pública de grande
amplitude no campo, chegando, no caso da aposentadoria por idade, a
praticamente dobrar o número de beneficiários. Esse resultado sugere
que a concessão da aposentadoria aumentou a renda domiciliar e, conse-
quentemente, contribuiu para o combate à pobreza no meio rural. Assim,
famílias que possuíam pelo menos um aposentado deixaram de ter renda
familiar abaixo de um salário mínimo, e muitas outras passaram a rece-
ber renda monetária regular. O destaque, nesse caso, é para as famílias
das trabalhadoras rurais – grupo que teve maior incremento no número
de participantes durante o período analisado. Vale lembrar que até 1991
as mulheres tinham mais dificuldade de ter acesso à terra, assim como ao
crédito e à comercialização de seu produto agrícola por não aparecerem
individualmente como agricultora, embora muitas delas já fossem chefes
de família.
Através da análise tabular dos dados do MAPS/IPEA, observou-se
que, entre os aposentados por idade rurais, existiu uma tendência de
igualdade no número de concessões entre homens e mulheres, podendo
ser superada pelas mulheres, já que suas expectativas de vida são supe-
riores. Na comparação do número absoluto de beneficiários em 1990 e
2000, constatou-se a inclusão expressiva de mulheres – cerca de 600%.
Apesar de a trabalhadora rural ter maior dificuldade de comprovar sua
atividade, esse aumento corrobora o papel fundamental da nova legisla-
ção no reconhecimento do seu trabalho. Na comparação entre as aposen-
tadas por idade rurais e urbanas, verificou-se que as rurais só se tornaram
maioria a partir de 1993. Assim, apesar desse benefício já ser predo-
minantemente rural mesmo antes de 1991, as mulheres só se tornaram
beneficiárias posteriormente.
Notou-se que quanto maior a burocracia, maior a dificuldade da
trabalhadora rural se inserir no sistema previdenciário. A comprovação
de tal sensibilidade pode ser observada tanto com a promulgação das Leis

Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 341


Previdência Rural Social e Gênero

no 8.212 e no 8.213, de 1991, como com a alteração da documentação


exigida para o requerimento da aposentadoria por idade em 1994/1995,
e a sua consequente suspensão em 1996. Pela dupla jornada de trabalho,
as mulheres em geral tendem a ser mais suscetíveis às mudanças na legis-
lação, e as rurais, mais que as urbanas.
A contribuição compulsória, mesmo que com a alíquota inferior à
exigida aos trabalhadores urbanos, dificulta bastante a inclusão dos tra-
balhadores rurais no sistema previdenciário e, em especial, das mulheres,
pela dificuldade de contribuir regularmente para garantir um benefício
futuro, quando já forem idosas. A alta sazonalidade do emprego agrícola
e o trabalho descontínuo são elementos que contam negativamente na
comprovação da atividade.
É importante destacar ainda que o trabalho feminino é imprescin-
dível para a manutenção e reprodução de todos os membros da família.
Elas não só são responsáveis pelos afazeres domésticos como seus salá-
rios também participam da composição da renda familiar. Exigir a con-
tribuição compulsória é praticamente o mesmo que excluí-las do sistema
previdenciário.

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Desenvolvimento rural e gênero: abordagens analíticas, estratégias e políticas públicas 343


AUTORES
Alessandra Juliana Caumo – Graduada em Ciências Econômicas e Mes-
tre em Desenvolvimento Regional e Agronegócios pela Universidade Esta-
dual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo. Atualmente é doutoranda no
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Contato: alecaumo@gmail.com

Ana Alves Neta Barbosa – Graduada em Letras e Mestre em Estudos


Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em
Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. Contato: aal-
vesneta@yahoo.com.br

Ana Cecília Kreter – Graduada em Ciências Econômicas pela Universi-


dade Federal Fluminense, Mestre em Economia Aplicada pela ESALQ/USP
e doutora em Economia Aplicada pela Universidade Federal Fluminense.
Contato: ana.kreter@gmail.com

Carlos Alves do Nascimento – Graduado em Ciências Econômicas pela


Universidade Federal do Ceará, Mestre em Ciências Econômicas e Doutor
em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Professor
do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Economia da Universidade
Federal de Uberlândia. Contato: can@ie.ufu.br

Carmen Osorio Hernández – Graduada em Biologia – Universidade Nacio-


nal Autônoma de México. Mestre em Recursos Naturales y Desarrollo
Rural pelo El Colegio de La Frontera Sur, México. Doutora em Desenvol-
vimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato:
carmen700704@yahoo.com

Carolina Braz de Castilho e Silva – Graduada em Ciências Sociais, Mestre


em Sociologia e doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: carolinabcs@yahoo.com.br

Chaiane Leal Agne – Graduada em Administração pela Universidade


Estadual do Rio Grande do Sul, mestre e doutora em Desenvolvimento
Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é pro-
fessora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. Contato: chaia-
neagne@gmail.com
Emma Cademartori Siliprandi – Graduada em Agronomia pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Sociologia Rural pela Uni-
versidade Federal da Paraíba e doutora em Desenvolvimento Sustentável
pela Universidade de Brasília. Professora e pesquisadora do Núcleo de Estu-
dos e pesquisas em Alimentação da Universidade Estadual de Campinas.
Consultora da FAO, do PNUD, da ONU-Mulheres e da Delegação da União
Europeia do Brasil. Contato: emma@unicamp.br

Fabíola Juliana Rubim de Andrade – Graduada em Ciências Econômicas pela


Universidade Estadual de Maringá e mestre em Desenvolvimento Regional e
Agronegócio pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Contato: fru-
bim@yahoo.com.br

Fátima Cristina Vieira Perurena – Graduada em Ciências Sociais pela Pon-


tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre em Ciência Polí-
tica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Ciências
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é
professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Santa Maria, RS. Contato: perurena@terra.com.br

Jefferson Andronio Ramundo Staduto – Graduado em Agronomia e


mestre em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa. Dou-
tor em Economia Aplicada pela Universidade de São Paulo. Atualmente é
professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
e Agronegócio da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq. Contato: jstaduto@yahoo.com.br

Marcelino de Souza – Graduado em Agronomia pela Universidade Esta-


dual de Londrina. Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de
Santa Maria. Doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Estadual
de Campinas. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Contato: marcelino.souza@uol.com.br

Maria Adelaida Farah Quijano – Graduada em Ciências Econômicas e


mestre em Desarrollo Rural pela Pontifícia Universidad Javeriana. Dou-
tora em Estudios del Desarrollo pela University of East Anglia, Ingla-
terra. Atualmente é professora e diretora do Departamento de Desarrollo
Rural y Regional da Facultad de Estudios Ambientales y Rurales da
Pontifícia Universidad Javeriana, Bogotá, Colômbia. Contato: mfarah@
javeriana.edu.com
Marta Júlia Marques Lopes – Graduada em Enfermagem pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul e doutora em Sociologia pela Université de
Paris. Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa do CNPq. Contato: marta@enf.ufrgs.br

Paulo Dabdab Waquil – Graduado em Agronomia e mestre em Economia


Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em Econo-
mia Agrícola pela University of Wisconsin, Madison, EUA. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq. Contato: waquil@ufrgs.br

Raquel Lunardi – Graduada em Turismo pelo Centro Universitário Francis-


cano. Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria
e doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Atualmente é professora no Instituto Federal Farroupilha,
Campus de São Borja. Contato: rlunardi@sb.iffarroupilha.edu.br

Rosângela Saldanha Pereira – Graduada em Ciências Econômicas pela


Universidade de Brasília. Mestre e doutora em Educação pela Universidade
Federal do Mato Grosso. Professora do Departamento de Economia da Uni-
versidade Federal do Mato Grosso. Contato: rosal@superig.com.br

Sergio Schneider – Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul. Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Cam-
pinas. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Rural e de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq. Contato: schneide@ufrgs.br

Yonissa Marmitt Wadi – Graduada em Estudos Sociais - Habilitação Plena


em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco. Mes-
tre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora
em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente
é professora dos Programas de Pós-Graduação em História e em Ciências
Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Bolsista de Produti-
vidade em Pesquisa do CNPq. Contato: yonissamw@uol.com.br
Série Estudos Rurais
A Série Estudos Rurais constitui-se de uma coleção de publicações que tem como objetivo divulgar estudos, pesquisas e obras
científicas na forma de livro que focalizem temas adscritos à problemática da ruralidade e do desenvolvimento no campo das Ciên-
cias Sociais. Pretende contribuir para a compreensão dos processos rurais a partir de uma ampla variedade de enfoques analíticos,
recuperando interpretações do passado e oferecendo análises sobre os temas e perspectivas emergentes que caracterizem o
estado da arte das discussões sobre o desenvolvimento rural nas Ciências Sociais. A Série Estudos Rurais resulta de uma parceria
da Editora da UFRGS com o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, ambos da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. As normas para publicação na Série Estudos Rurais estão disponíveis em www.ufrgs.br/pgdr (em “livros”).

Comissão Editorial: Dr. Sergio Schneider (Coordenador e Editor, PGDR/UFRGS), Dr. Marcelo Antonio Conterato (Editor Asso-
ciado, PGDR/UFRGS), Dra. Leonilde Sérvolo de Medeiros (CPDA/UFRRJ), Dr. Jalcione Pereira de Almeida (PGDR/UFRGS), Dr.
Walter Belik (IE/UNICAMP), Dr. Sergio Pereira Leite (CPDA/UFRRJ), Dra. Maria de Nazareth Baudel Wanderley (UFPE), Dr.
Gutemberg Armando Diniz Guerra (NEAF/UFPA), Dra. Marilda Menezes (UFCG), Dr. Paulo Dabdab Waquil (PGDR/UFRGS), Dr.
Alfio Brandenburg (UFPR), Dr. Fábio Dal Sóglio (PGDR/UFRGS), Dr. Eric Sabourin (CIRAD).

1. A questão agrária da década de 90 (4.ed.) 23. Camponeses e impérios alimentares


João Pedro Stédile (org.) Jan Douwe Van der Ploeg
2. Política, protesto e cidadania no campo: 24. Desenvolvimento rural
as lutas sociais dos colonos e dos (conceitos e aplicação ao caso brasileiro)
trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul Angela A. Kageyama
Zander Navarro (org.) 25. Desenvolvimento social e mediadores políticos
3. Reconstruindo a agricultura: Delma Pessanha Neves (org.)
ideias e ideais na perspectiva 26. Mercados redes e valores:
do desenvolvimento rural sustentável (3.ed.) o novo mundo da agricultura familiar
Jalcione Almeida e Zander Navarro (org.) John Wilkilson
4. A formação dos assentamentos rurais no Brasil: 27. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura
processos sociais e políticas públicas (2.ed.) sustentável (5.ed.)
Leonilde Sérvolo Medeiros e Sérgio Leite (org.) Miguel Altieri
5. Agricultura familiar e industrialização: pluriatividade 28. O mundo rural como um espaço de vida: reflexões
e descentralização sobre propriedade da terra,
industrial no Rio Grande do Sul (2.ed.) agricultura familiar e ruralidade
Sergio Schneider Maria de Nazareth Baudel Wanderley
6. Tecnologia e agricultura familiar (2.ed.) 29. Os atores do desenvolvimento rural: perspectivas
José Graziano da SIlva teóricas e práticas sociais
7. A construção social de uma nova agricultura: Sergio Schneider e Márcio Gazolla (org.)
tecnologia agrícola e movimentos 30.Turismo rural: iniciativas e inovações
sociais no sul do Brasil (2.ed.) Marcelino de Souza e Ivo Elesbão (org.)
Jalcione Almeida
31. Sociedades e organizações camponesas:
8. A face rural do desenvolvimento: uma leitura através da reciprocidade
natureza, território e agricultura Eric Sabourin
José Eli da Veiga
32. Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos
9. Agroecologia (4.ed.) latino-americanos
Stephen Gliessman Renata Menasche, Marcelo Alvarez e Janine Collaço (org.)
10. Questão agrária, industrialização 33. Paisagem: leituras, significados e transformações
e crise urbana no Brasil (2.ed.) Roberto Verdum, Lucimar de Fátima dos Santos Vieira,
Ignácio Rangel (org. por José Graziano da Silva) Bruno Fleck Pinto e Luís Alberto Pires da Silva (org.)
11. Políticas públicas e agricultura no Brasil (2.ed.) 34. Do capital financeiro na agricultura à economia
Sérgio Leite (org.) do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século
12. A invenção ecológica: narrativas e trajetórias (1965-2012)
da educação ambiental no Brasil (3.ed.) Guilherme Costa Delgado
Isabel Cristina de Moura Carvalho 35. Sete estudos sobre a agricultura familiar
13. O empoderamento da mulher: direitos à terra do vale do Jequitinhonha
e direitos de propriedade na América Latina Eduardo Magalhães Ribeiro (org.)
Carmen Diana Deere e Magdalena Léon 36. Indicações geográficas:
14. A pluriatividade na agricultura familiar (2.ed.) qualidade e origem nos mercados alimentares
Sérgio Schneider Paulo Andre Neiderle (org.)
15. Travessias: a vivência da reforma agrária nos 37. Sementes e brotos da transição: inovação, poder
assentamentos (2.ed.) e desenvolvimento em áreas rurais do Brasil
José de Souza Martins (org.) Sergio Schneider, Marilda Menezes,
16. Estado, macroeconomia e agricultura no Brasil Aldenor Gomes da Silva e Islândia Bezerra (org.)
Gervásio Castro de Rezende 38. Pesquisa em Desenvolvimento Rural: aportes teóricos
17. O futuro das regiões rurais (2.ed.) e proposições metodológicas (Volume 1)
Ricardo Abramovay Marcelo Antonio Conterato, Guilherme Waterloo Rodomsky
e Sergio Schneider (org.)
18. Políticas públicas e participação social
no Brasil rural (2.ed.) 39. Turismo Rural em tempos de novas ruralidades
Sergio Schneider, Marcelo K. Silva Artur Cristóvão, Xerardo Pereiro,
e Paulo E. Moruzzi Marques (org.) Marcelino de Souza e Ivo Elesbão (org.)
19. Agricultura latino-americana: 40. Desenvolvimento Rural e Gênero: abordagens analíticas,
novos arranjos, velhas questões estratégias e políticas públicas
Anita Brumer e Diego Piñero (org.) Jefferson Andronio Staduto, Marcelino de Souza
e Carlos Alves do Nascimento (org.)
20. O sujeito oculto: ordem e transgressão
na reforma agrária 41. Políticas públicas e desenvolvimento rural no Brasil
José de Souza Martins Catia Grisa e Sergio Schneider (org.)
21. A diversidade da agricultura familiar (2.ed.) 42. O Rural e a Saúde: compartilhando teoria e método
Sergio Schneider (org.) Tatiana Engel Gerhardt e Marta Júlia Marques Lopes (org.)
22. Agricultura familiar:
interação entre políticas públicas e dinâmicas locais
Jean Philippe Tonneau e Eric Sabourin (org.)
Este livro foi composto na tipologia Rotis Serif, em corpo 11
e impresso no papel Off set 75 g/m2 na Gráfica da UFRGS

Editora da UFRGS • Ramiro Barcelos, 2500 – Porto Alegre, RS – 90035-003 – Fone/fax (51)
3308-5645 – editora@ufrgs.br – www.editora.ufrgs.br • Direção: Alex Niche Teixeira • Edito-
ração: Luciane Delani (Coordenadora), Carla M. Luzzatto, Cristiano Tarouco, Fernanda Kautz-
mann, Lucas Ferreira de Andrade, Maria da Glória Almeida dos Santos e Rosangela de Mello;
suporte editorial: Jaqueline Moura (bolsista) • Administração: Aline Vasconcelos da Silveira,
Cláudio Oliveira Rios, Getúlio Ferreira de Almeida, Janer Bittencourt, Jaqueline Trombin,
Laerte Balbinot Dias, Najára Machado e Xaiane Jaensen Orellana • Apoio: Luciane Figueiredo

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