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Auxilio Homilético

27/02/1994
Prédica: Marcos 8.31-38
Leituras: Gênesis 28.10-17 (18-22) e Romanos 5.1-11
Autor: Júlio Zabatiero
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 27/02/1994
Proclamar Libertação - Volume: XIX

1. Introdução
A perícope selecionada para este segundo Domingo da Quaresma é, de fato, composta de duas
perícopes (8.31-33 e 8.34-9.1). Isso permite uma certa dose de liberdade ao pregador(a), que
pode concentrar a prédica em uma das duas perícopes ou, como sugerido pelo lecionário,
meditar sobre as duas em conjunto. Qualquer que seja a escolha, porém, o assunto será
relevante, pois a primeira perícope tematiza a paixão de Jesus (e não é necessário lembrar que
o centro do Evangelho é a teologia da Cruz), enquanto a segunda tematiza o discipulado (o
seguimento de Jesus, que é a essência da espiritualidade cristã).
2. Subsídios exegéticos
O texto do lecionário está no início da segunda parte do Evangelho de Marcos (8.27-16.20). Na
estrutura global do livro, a primeira parte tematiza os atos podero¬sos de Jesus, como
demonstração da realidade de Seu anúncio da proximidade do Reino de Deus (Mc 1.14-15). A
segunda parte, por sua vez, tematiza a entrega de Jesus à morte, como o caminho divino para a
instauração escatológica do Reino.
A seção do Evangelho (8.27-9.1) à qual pertence nossa perícope ocupa lugar central no
argumento do evangelista. Ao mesmo tempo, enfeixa três grandes temas: (1) a messianidade de
Jesus — conforme entendida pelo povo judeu em geral; (2) a messianidade de Jesus —
conforme entendida por Ele mesmo; (3) o caráter crucial do seguimento de Jesus — ampliando o
convite inicial do seguir puro e simples ao pregador galileu.
Em 8.27-30, há uma conversa entre Jesus e os discípulos a respeito da identidade de Jesus. Às
respostas inadequadas da multidão segue a resposta formalmente correta de
Pedro. Formalmente apenas, porque a perspectiva messiânica dos discípulos não estava em
sintonia com a de Jesus — o que é demonstrado na perícope inicial do nosso texto (8.31-33), a
qual dedicaremos nossa atenção.
2.1. Um Messias inusitado
Em sequência à afirmação da messianidade de Jesus, por Pedro, o Mestre passa a instruir os
discípulos a respeito do verdadeiro caráter de Seu messiado. A fala de Jesus, neste texto, é
reconhecida como a primeira de três 'predições da Paixão existentes no Evangelho de Marcos.
Abstraindo-nos da discussão histórico-crítica da origem dessas predições, enfoquemos o sentido
do texto no conjunto do Evangelho de Marcos.
O verso 31 possui grande concentração teológica:
(1) Em linguagem apocalíptica, Jesus ensina a inevitabilidade de seu sofrimento — era
necessário... Com isso, Jesus desarma a mentalidade messiânica triunfalista de seus discípulos
e os deixa perplexos. Este Messias Jesus escolhe um caminho diferente para seu triunfo: o
caminho da cruz. Não devemos entender essa necessidade como uma simples expressão
metafísica ou predestinacional dos desígnios de Deus. Ao contrário, devemos entendê-la como a
inevitabilidade sócio-histórica da opção de Jesus pelos marginalizados. O messias triunfante só
viria em benefício da elite judaica, e mais uma vez o povo ficaria em condição subalterna. A fim
de realizar a vontade do Pai, Jesus tinha de sofrer, pois esse é o destino inevitável dos que se
solidarizam com os sem-poder, sem-voz e sem-vez no mundo dos homens!
(2) Jesus rejeita o título de Messias, embora formalmente correto. Prefere o ambíguo título Filho
do Homem. Na teologia cristã, este já é um título de dignidade. Aos ouvidos judeus, porém, era
uma expressão dúbia. Normalmente significava apenas o humano; ou era uma circunlocução
para o pronome pessoal da primeira pessoa do singular. Assim, aos ouvidos dos perplexos
discípulos, a expressão soaria mais ou menos assim: Era necessário que o homem sofresse...
ou era necessário que eu sofresse...! Para a expressão, porém, uma outra possibilidade
semântica estava em aberto: o título apocalíptico de Daniel 7.13ss. Em Daniel, por sua vez, o
título já é ambíguo, pois a figura celestial por ele designada é, na explicação da visão,
identificada como o povo dos santos do Altíssimo (Dn 7.28). À luz da tradição cristã pós-pascal
podemos entender o título em dupla chave: (a) a função apocalíptica de Jesus, como o portador
escatológico do Reino de Deus; (b) a identificação solidária de Jesus com a humanidade em
geral, a partir de sua solida¬riedade messiânica com os marginalizados.
(3) Os agentes responsáveis pelos sofrimentos e morte de Jesus seriam as autoridades judaicas,
anciãos, principais sacerdotes e escribas. Ao invés de entender essa afirmação de modo anti-
sionista, preconceituosa, devemos entendê-la em chave sócio-histórica: ao identificar-se com os
marginalizados, Jesus entra em choque direto contra os marginalizadores — naquele contexto, a
elite governante judaica. Era necessário que o caráter mortal do sistema teológico-político
dominante ficasse às claras. Por isso, a inevitabilidade da morte do verdadeiro Messias dos
pobres. Entretanto, a morte não seria a última palavra. Contra a vontade dos marginaliza-dores
Deus ressuscitaria Jesus, dando início à nova manifestação escatológica do Reino.
Os w. 32s enunciam o debate entre Jesus e Pedro a respeito desse ensinamento do Mestre.
Segundo a compreensão de Pedro, 'Messias' necessariamente significa triunfo régio e o
restabelecimento da honra coletiva de Israel (Myers, 1992:297). A essa compreensão estreita
dos discípulos Jesus ofereceu uma dura repreensão: Arreda, Satanás. A cegueira dos discípulos
se agudiza aqui, e eles são designados de inimigos de Deus, pois seus critérios de valor e ação
são meramente humanos, ou seja, autocentrados, egoístas, não-libertadores. Satanás é,
portanto, todo aquele que se levanta contra a ação libertadora de Deus, e Seu compromisso
solidário com os marginalizados e marginalizadas da humanidade. Em chave existencial,
Satanás é aquele que opta pela ortodoxia fria e dogmática e não tem amizade com o Deus que
opta pelos pecadores.
2.2. Seguir Jesus: o preço da graça
Deixemos de lado os elementos especificamente apocalípticos da segunda parte de nosso texto
(8.38-9.1). Enfoquemos o convite de Jesus à multidão e aos discípulos. (8.34-37).
Jesus enuncia o convite em termos contrastantes: segui-Lo implica abandonar projetos pessoais
autocentrados de vida, bem como projetos de classe, raça ou nação. Seguir Jesus é exigência
radical de discipulado e não pode ser entendido como convite emotivo ou espiritual. Seguir Jesus
não se concretiza em resposta meia mente religiosa, muito menos em atitude hipócrita: uma fé
legitimadora do auto interesse (pessoal, político, econômico, etc.). Seguir Jesus significa
identificar-se com o caminho de Jesus, fazer a mesma opção de vida feita por Jesus, ou seja,
trilhar o caminho da solidariedade com marginalizados — caminho que pode levar à própria
morte.
Nos tempos de Jesus e da comunidade de Marcos, a ameaça da morte era bastante visível e
presente aos que, como Jesus, assumiam o caminho do Reino de Deus. Se, nos tempos da vida
confortável de religião dominante, esse caráter de risco do discipulado não se apresenta tão
visivelmente, isso não pode ser desculpa paia a tergiversação do texto marcano. Jesus fez um
convite que implicava disposição para o martírio — não por masoquismo ou fanatismo, mas por
causa da identificação consciente com sua pessoa e o Seu evangelho: boa nova para pobres e
pecadores, li desnecessário lembrar que, também hoje, não são poucos os que têm
experimentado sofrimento e mesmo martírio por causa de sua fé em Jesus, o libertador dos
pobres.
3. Subsídios homiléticos
Penso em uma prédica baseada em 8.31-37 como um todo, o que não impede outras
abordagens. Em primeiro plano, cabe expor o significado da paixão de Jesus. A ênfase deve
recair no aspecto missiológico da opção de Jesus pelos marginalizados, que o levou à morte, e
não sobre formulações doutrinárias (ainda que válidas e bem produzidas). A fidelidade ao texto
nos obriga a tomar esse caminho: a necessidade da morte de Jesus não pode ser apresentada
como um drama religioso a-histórico. Deve, sim, ser anunciada em seu caráter chocante,
escandaloso, de opção amorosa por marginalizados: pobres e pecadores. O aspecto conflitivo
do caminho de Jesus também deve ser ressaltado, pois Sua opção a favor de toda a
humanidade teve, inevitavelmente, de ser opção contextualmente contra os inimigos de Deus e
da humanidade.
A opção de Jesus deve ser atualizada: Quais são os marginalizados e margina lizadas de hoje?
Quem são os inimigos da cruz de Cristo, os marginalizadores contemporâneos? O escândalo da
mensagem não pode ser eludido. O risco certamente existe: risco de parcialidade, risco de
incompreensão, risco de engano. Todavia, c um risco necessário — a não ser que queiramos
anunciar um evangelho diluído, legitimador de opções de classe e/ou ideológicas.
A segunda parte da prédica deverá enfocar o convite de Jesus. Como uma relação de causa-
efeito, o caráter messiânico de Jesus determina o caráter da resposta dos pretendentes ao
discipulado. A prédica, então, deverá centrar-se no anúncio incondicional da renúncia como
condição para seguir Jesus. Renúncia ao controle pessoal da existência, renúncia às opções
confortáveis de vida social e econômica, renúncia à religião alienante, meramente intimista e
trans-histórica. Não basta confessar que 'Jesus é o Messias'; o importante é 'que tipo de Messias
dizemos que é Jesus' e até onde se está disposto a acompanhá-lo (Gallardo, 1986:1640).
Em nossos tempos de aparente vitória do capitalismo neoliberal, mais uma vez a marginalização
social assume perspectivas globais e aterradoras. Não só a maioria da humanidade é colocada à
margem da vida, como também é excluída dos meios de acesso à sobrevivência digna. Para os
excluídos da lógica do mercado, já que não são vistos como agentes ativos da economia, o
mercado não prevê garantia do mínimo vital, ou seja, a sua dignidade e seus direitos humanos
básicos não estão contemplados na lógica do mercado (Assmann, 1991:39).
A prédica terá, portanto, de dar nome aos marginalizados atuais e dar nome aos obstáculos que
nos impedem de seguir fielmente Jesus. Cabe, pois, uma séria análise de até que ponto nós,
evangélicos, estamos sendo mais sensíveis aos apelos ideológicos do mercado do que aos
apelos salvíficos de Deus. Qual é, enfim, a nossa opção de vida? Esse deverá ser o eixo dessa
parte da prédica.
4. Conclusão
Há muito mais a ser escrito. Entretanto, nada substitui a nossa relação direta com o texto bíblico.
A pregação tem de passar por dentro da gente, ou será meramente um exercício discursivo
irrelevante. A melhor preparação para a medita¬ção sobre esse texto, portanto, será uma auto-
reflexão: Até que ponto eu tenho seguido fielmente Jesus? Tenho feito as mesmas opções do
Mestre, ou não abri mão ainda de meus próprios projetos de vida e ministério?
5. Bibliografia
ASSMANN, H. Desafios e Falácias, Paulinas, São Paulo, 1991.
GALLARDO, C. B. Jesus, hombre en conflicto, Sal Terrae, Santander (Espanha), 1986.
GNILKA, J. El Evangelio segun san Marcos, Sígueme, Salamanca (Espanha), 1986.
MYERS, C. O Evangelho de São Marcos, Paulinas, São Paulo, 1992 (Grande Comentário
Bíblico).
PALLARES, J. C. Um Pobre Chamado Jesus, Paulinas, São Paulo, 1988.
Auxílio Homilético
17/02/1985
Prédica: Marcos 8.31-38
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: Domingo Estomihi
Data da Pregação: 17/02/1985
Proclamar Libertação - Volume X

l — Contexto e paralelos
O atual texto (Mc 8.31-38) destinado para o domingo Estomihi, está sob a moldura da confissão
de Pedro (Mc 8.27-30) e da transfiguração (Mc 9.2-8): A confissão de Pedro encerra a primeira
parte da proposta teológica de Marcos referente ao messianismo de Jesus Cristo. Até este
instante apenas alguns demônios e Pedro haviam publicado quem era Jesus. Daí podemos
compreender que a proposta de Jesus, em Marcos, ocorre de uma forma oculta e gradativa; uma
revelação aceitável dentro das expectativas que a apocalíptica gerava. Alguém com sintomas
extraterrenos, vitorioso. Toda a ação de Jesus requer silêncio e anonimato. Este silêncio, pode
refletir um respeito de Jesus para com o progresso da fé dos discípulos, como também ajudava a
evitar a consumação da ideia de qualquer visionário libertador oriundo do pensamento
apocalíptico oficial.
O nosso texto caracteriza e dá o teor do messianismo de Jesus. Um messianismo fundamentado
na humildade e no sofrimento, que visava a transformação do mundo. Por outro lado, o texto
também apresenta o compromisso dos seguidores. Este compromisso desnuda a ideia da
libertação gloriosa e extraterrena por somente uma figura. Marcos tenta envolver toda a
comunidade no processo da libertação. Assim, tudo é visto e entendido como ensinamentos que
facilitam o seguir nas pisadas do messias. Já a transfiguração confirma o caráter divino da
messianidade do Filho do homem. Por outro lado, realiza o entrelaçamento do compromisso dos
seguidores com o teor da messianidade de Jesus. Ainda, a transfiguração ressalta o caráter
escatológico da predição e da instrução, sem esquecer as necessidades presentes da
comunidade. A função dos discípulos não é construir casas para os Elias e Moisés que já
partiram, mas sim negar a si mesmos e carregar a cruz.
O texto de Mc 8.31-38, recebeu em Mt 16.13 -17.13 e Lc 9. 18-36 os respectivos paralelos,
paralelos estes, quase que com a mesma moldura. Nos paralelos encontramos algumas
alterações, omissões e até inclusões, segundo o trabalho teológico de cada evangelista. Este
trabalho teológico visa atender as particularidades de cada comunidade. Por último, o texto em
Marcos, aproxima-se bastante daquilo que Paulo expõe em 1 Cor 1.18-29, no tocante à teologia
da Cruz.
II — Pistas exegéticas
A primeira predição da Paixão relatada por Mc 8.31-38, inicia a segunda parte do evangelho
segundo Marcos. Na primeira parte, Mc 1.8-30, ocorre uma postura silenciosa da parte dos
envolvidos no tocante à missão de Jesus. Na segunda parte, Mc 8.31 -16.20, acontece a
revelação aberta e desconcertante. A princípio isto denota uma sequência ilógica e com ruptura
brusca (v. 31-32a). Poder-se-ia suspeitar de que a mudança ocorreu para evitar a formação
mental, visual e prática de um messias triunfalista. Aí não seria nada diferente daquilo que se
ensinava, esperava e acreditava em termos oficiais, no tocante à proposta apocalíptica.
Olhando o v. 32b, podemos afirmar que tal visão já estava impregnada na vida dos discípulos e
comunidade. Com esta reviravolta tática e de conteúdo, o evangelista lembra que a salvação não
depende só das curas, milagres e feitos similares de Jesus. Na perspectiva de Marcos, a
salvação depende principal e tão somente da morte e ressureição do Filho do homem. Nesta
compreensão, Marcos esboçou o conteúdo central da messianidade de Jesus. Igualmente
ofertou a nova visão que Jesus trouxe e deu ao viver e à esperança apocalíptica.
O texto da nossa perícope não forma uma unidade literária homogénea, mas se compõe de
partes nitidamente distintas que podem ser usadas separadamente. Marcos trabalhou
teologicamente os elementos que compõem a nossa perícope no sentido de ressaltar o caráter
cristológico da messianidade de Jesus dentro da comunidade. Isto faz com que toda a
comunidade participe do processo da libertação, coisa que não acontecia na apocalíptica oficial.
Nesta o libertador iria realizar tudo por todos. Olhando o texto nesta perspectiva, podemos dizer
que o relato da Paixão veio atender certos fatos e problemas que estavam tumultuando a vida da
comunidade. Daí a perícope pode ser entendida como uma unidade que está assim esboçada:
Predição — Mal-entendido - Correção — Instrução.
a) Momento da predição (v. 31-32a).
O evangelista Marcos inicia esta segunda parte de sua mensagem, usando uma expressão com
acentuada conotação apocalíptica... é necessário.... Com isto pretende evidenciar que a
salvação depende da morte e ressurreição do Filho do homem. Isto não é fatalismo, mas ação
de Deus para vencer e romper a distância entre Deus e os homens. Este é o único caminho que
leva à salvação e transformação do mundo. Sem isto o mundo segue perdido. Observando
adiante este versículo podemos notar que para Marcos o messias não é caracterizado pelos
sinais, curas e milagres como vinha ocorrendo. Aqui, é espelhada a novidade que transforma o
mundo. Esta novidade está expressa no sofrer, ser rejeitado, morrer e ressuscitar do messias. O
anunciar destas características do messias pôs em questão toda uma segurança dos discípulos,
da comunidade e da sociedade de então. Jesus morre para transformar o mundo. Estas
características do messias também afastaram a tentação satânica dos títulos messiânicos da
apocalíptica (aparição gloriosa para derrotar o inimigo, domínio universal), que estavam
invadindo a vida de fé da comunidade. Esta mudança paradoxal no conceito messiânico é
escândalo e feriu a sensibilidade dos poderosos. Titular o messias com Filho do homem,
desmitificou radicalmente a figura do libertador glorioso anunciado pelos representantes oficiais.
Ao ser incluído o sofrimento na vida do messias, igualmente aconteceu uma ruptura em relação
ao que era ensinado referente ao sofrer. Sofrimento era considerado castigo de Deus e requeria
forte poder de expiação para ser eliminado. Por isto, o messias nunca poderia ser alguém que
caísse em desgraça. O sofrimento leva e torna a pessoa dependente dos outros e sujeita aos
mais variados julgamentos.
b) Momento do mal-entendido e da correção (v. 32b-33).
O fim da ocultação messiânica choca e traumatiza a figura de Pedro, de uma forma violenta. A
revelação (31) da qualidade do messianismo de Jesus como sofredor, desestabiliza Pedro.
Podemos aceitar que Pedro está atrelado aos conceitos messiânicos contrários à transformação
do mundo. Nesta perspectiva Pedro compreendeu mal a messianidade de Jesus confessada no
v. 30. Por isto tenta repreender a Jesus, desautorizando-o a seguir o caminho do sofrimento e da
humilhação. Esta reação de Pedro significa igualmente que algo estava se passando na
comunidade e ameaçando o círculo dos seguidores de Jesus. Ou seja, na comunidade estava
ocorrendo a não aceitação do Salvador como alguém que fracassou ante a morte. Aceitar tal
proposição, significava que a comunidade também precisava doar sua vida e negar o mundo,
para que a salvação fosse possível. A reação de Pedro, que é a expressão pública do grupo,
oportuniza a correção por parte de Jesus, no tocante à compreensão do Filho do homem por
todos. O conselho de Pedro é entendido por Jesus como uma afronta ou intromissão demoníaca
nos planos de Deus. Pedro contesta o plano de salvação que Deus apresenta em Jesus. Jesus
quer trazer vida, enquanto Pedro tenta eternizar os meios de morte existentes na sociedade.
Conseqüentemente, aquele que instantes antes havia dito: tu és o messias, recebe um
tratamento que Jesus só concedeu aos demônios e espíritos imundos (Mt 4.10; Mc 1.15 e 5.8).
Ao reprender Pedro e encarar os discípulos de tal modo, Jesus deixa claro que o reino de Deus
nos leva a encarar o homem, o mundo, a vida até suas últimas possibilidades de salvação.
Mesmo que as aparências e a realidade não o permitem. Pelo fato de Deus se ocupar e trocar
nos problemas humanos é que o Filho do homem vai até à cruz e ressurge. Só aí, na aparente
derrota, é que se manifestam novas e surpreendentes possibilidades de vida. Tal fato não é
aceito, pois contraria toda uma postura de vida que apoia o poder de morte. Mostra igualmente
quão poucas vezes discípulos e mundo se deixam separar. Marcos ao relatar o momento da
repreensão, diferencia a comunidade dos grupos apocalípticos da época e do grupo de Qumram,
que se consideravam os eleitos de Deus. Para Marcos, os discípulos sofrem diariamente os
ataques e efeitos que o diabo empreende mediante os mais variados meios e possibilidades.
Esta etapa da vida de fé dos discípulos e da comunidade nos leva a crer que os seguidores de
Jesus constantemente precisam da orientação e correção do próprio messias, como o podemos
perceber igualmente em Hb 12.10.
c) Momento da instrução (v. 34-38).
Discípulos e multidão são pertencentes ao mundo dos homens, mesmo assim, Jesus os convida
e chama para a instrução. De início Jesus coloca a todos em pé de igualdade, para realizar a
transformação do mundo. Para esta tarefa Marcos coloca uma série de sentenças isoladas, que
dizem respeito ao compromisso dos seguidores. As duas palavras dos vv. 34-35, encontramos
um pouco diferente em Mt ,10.38, que deve ser a fórmula original, e em Lc 14.27 e 17.33, com
pequenas variantes. Estes ensinamentos refletem uma elaboração preocupativa da comunidade
primitiva ante os anúncios dos apóstolos e do mundo. Jesus não só convidou os discípulos para
a missão, mas a todos. Só que isto tem um preço. O preço é a cruz. De acordo com Marcos,
nesta missão só compreende a Jesus aquele que se deixa chamar e aceita aprender no seguir a
Jesus o doar sua vida pelos outros. Duas condições caracterizam o seguir a Jesus aqui na terra:
Renunciar a si mesmo e tomar a sua cruz. Esta característica não tem paralelo no mundo do
judaísmo oficial, pois sugere uma inversão total dos valores existentes. Esta inversão de valores
é motivo de sofrimento, luta e humilhação. Como sinal de esperança e fé a comunidade cristã
relacionou o seu sofrimento com o do Filho do homem. Assim evitou ou purificou a fé da
contaminação oriundo dos ensinamentos oficiais que colocavam o sofrimento como castigo de
Deus. Na comunidade o sofrimento passou a ser visto como algo que nos é imposto e difícil de
ser decifrado, mas que conduz à libertação. O sofrimento neste sentido é instrução.
A instrução como elemento pós-pascal, traz à tona os princípios humanos e os princípios de
Deus. Estes princípios diferenciam-se da proposta de vida e de mundo que a apocalíptica
oferecia. Os princípios humanos que espelham o mundo, que cerca a comunidade, assim
ensinam:
Salvar a si mesmo — é matar a vida do outro.
Ganhar o mundo — é tirar a possibilidade de vida.
Envergonhar-se de Jesus — é morte para o mundo.
Contrapondo isto, a palavra de Deus ensina; para que haja vida e o mundo seja transformado:
Negar a si mesmo — não sou mais propagador deste mundo.
Tomar sua cruz — conhecer as cruzes que o mundo nos coloca e usá-las para a transformação.
Toda transformação gera mais cruz.
Perder a vida pelo Evangelho— é loucura que assusta o mundo e a morte, pois gera vida.
Os princípios divinos acima esquematizados fazem parte, ou são a METÂNOIA que se da' e
ocorre na vida dos discípulos e da comunidade. São genuínas possibilidades de vida oferecidas
em fé e amor para que a transformação do mundo seja real. Em Jesus a comunidade viu o
modelo crítico e a voz estimulante para partir rumo ao que gera vida. Nestas instruções fica
evidente que a vontade de Deus não é a mesma do que a do mundo sem Deus.
Os princípios humanos acima arrolados estão intimamente ligados à nossa postura no mundo.
Diante das pressões da situação vigente cedemos, por interesse ou dureza de coração, por
medo ou por resignação. E tal postura é o oposto da fé, da esperança e do amor. Através da
proposta de Jesus: sofrimento — desprezo — morte — ressurreição — renunciar a si — tornar a
sua cruz — seguir, fica evidente quem nós somos. Somos aqueles que conseguem aplaudir a
vitória do Cristo sobre a morte e seu poder. Mas, quando descobrimos que esta vitória veio
mediante o caminho da humilhação, aí não conseguimos descobrir sentido algum. Como
resultado buscamos um Cristo glorioso. Não aceitamos que a proposta de Jesus é loucura para
o sistema capitalista e contraria nossa maneira de conduzir a vida. Contudo, nesta proposta de
Jesus fica mais evidente ainda quem nós podemos ser dentro deste atua! mundo. Filhos e
herdeiros do mesmo pai. Para tanto, basta aceitar e viver a transformação que ocorre mediante a
nossa morte diária para o capitalismo. Esta morte diária acontece, só e tão somente na prática
do negar a si mesmo, ensinada por Cristo.
III — Indicações para a prédica
Na atual situação brasileira que também é espelhada na vida das comunidades, a pregação
poderá seguir os seguintes momentos:
a) Em algumas linhas, ou pensamentos, esboçar qual a imagem e conceito de Cristo reinante na
comunidade e sociedade (Jesus loiro-meigo-cheio de amor e consolo individual, longe da vida e
dos problemas, celestial e outros). Tentar mostrar e clarear que os conceitos e imagens de Cristo
existentes em nosso meio, estão a serviço da morte e não admitem mudança nenhuma na vida,
na igreja e no sistema capitalista. Que como Pedro, afirmamos: Tu és o Cristo, o salvador. Mas
na hora da luta pela vida, defendemos a morte e os meios que a geram. Tememos a mudança,
ela nos traz a cruz.
b) Como segundo momento, podemos contrapor estas imagens e nossa postura, com a proposta
de Mc 8.31-38. Marcos nos coloca um Cristo que é rejeitado, que sofre, que é humilhado, que
morre e que é ressuscitado. E que este Cristo espera algo dos seus seguidores. Espera que
saibam negar a si mesmos, dando lugar ávida. Este é o Cristo que traz a vida e não aquele outro
conhecido e ensinado pelo capitalismo.
Uma outra proposta de pregação pode ser desenvolvida a partir dos princípios humanos e
divinos e quais suas consequências. Consequências estas, tanto para o indivíduo, como para a
coletividade.
a) Salvar a si, no atual sistema brasileiro. No campo material — ganhador de alguma loteria ou
rifa; galgar postos sem ter qualificação ou por via indireta e suor alheio, usufruir bens públicos.
No campo espiritual — buscar a salvação, o amor, a paz, a tranquilidade, a saúde só para si.
Ganhar o mundo — no sistema capitalista se promove o ganhar a vida, o mundo, das mais
variadas formas e jeitos; Produzir para exportar; poupanças e outras letras; produção de
supérfluos; biscates e semi-profissões; analfabetos, doutores e outros. O sistema capitalista
ensina o salvar a si e ganhar tudo para si, consequentemente exige o negar e o envergonhar-se
de Cristo. O resultado disto é morte e ausência de vida.
b) Como segundo passo falar dos princípios de Deus e quais sfio suas consequências para o
indivíduo e o mundo.
Negar a si mesmo — não fazer o que o sistema pede e exige. Isto acusa o mundo capitalista e
seus defensores (não produzir para exportar — não acumular bens — desmitificar a propriedade
privada — não aceitar favores em detrimento de outros).
Tomar sua cruz — não fugir da cruz. Fugindo da cruz estamos colocando mais cargas nos
outros. Ela nos é imposta porque gera vida aos demais (denúncia de fatos e injustiças — propor
mudanças).
Perdoar a vida pelo Evangelho — morte de líderes que defenderam e buscaram sinais de vida
para seus semelhantes — Aceitar lutar por uma transformação deste mundo que é governado
pelo poder do capitalismo.
c) Encaminhar a conclusão no sentido de que Cristo venceu os princípios humanos, mas isto lhe
custou a própria vida. A comunidade recebeu a missão de exercitar os princípios divinos
expressos em Mc 8.31-38, igualmente isto vai lhe custar a vida ou ao menos encher de cruz. E,
quem aceita ou tenta viver os princípios dos homens é parceiro de Satanás, da morte e
adversário de Deus.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor e Deus, tu és o Pai que se preocupa com aquilo que acontece
aos teus filhos nesta terra. Chegaste ao extremo de sacrificar o teu filho, demostrando que o ser
humano e o mundo são assuntos decisivos em tua agenda. Contudo, preparamo-nos para
festejar a Páscoa sem levar em conta de que a cruz, o sofrimento de teu Filho é que abre a porta
do Reino. Senhor, perdoa-nos quando ante pressões da situação vigente em nosso país,
calamos e negamos a tua oferta de salvação. Senhor, perdoa a dureza de coração que nos faz
permanecer inertes ante o sofrimento alheio. Senhor, perdoa o nosso medo e a resignação ante
o caos e o desespero que invadiu a vida da maioria dos brasileiros. Perdoa-nos por não
aceitarmos e por não anunciarmos as tuas instruções. Perdoa-nos por termos trocado a oferta e
o pedido de Jesus, pelas ordens de salvar a si mesmo e pelas leis deste sistema que está
tomando conta inclusive desta comunidade crista. Ouve-nos Deus e Pai, transforma a nossa
vida, diante da dureza de nosso coração te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor Jesus! Tu que trilhaste o caminho da cruz e venceste o poder do
mal, assiste-nos neste instante. Faze com que o Espírito Santo nos ilumine e purifique. Pois sem
ti, não aceitamos carregar a cruz do próximo. Abre os nossos olhos, ouvidos e coração para que
tua palavra possa fazer morada em nosso viver diário. Conforta mediante tua palavra aqueles
fracos de fé e que o mundo não quer largar. Anima-nos nesta época para sermos tua
comunidade. Comunidade que aceita as orientações de tua palavra. Amém.
3. Oração final: Agradecimento por este culto; pela tua preocupação para com aquilo que
acontece aos homens, oferecendo-lhes a possibilidade de salvação e nova vida. Intercedemos
pelos fracos, marginalizados, sem-terra, desempregados, subempregados, índios, velhos, jovens
e crianças; intercedemos por todos aqueles que estafo com a vida e a sobrevivência ameaçada
pelo poder do sistema capitalista; intercedemos pela comunidade para que ela aceite a oferta da
salvação, assim como Jesus a oferece; intercedemos por todos os cristãos para que não se
envergonhem e não desistam de confessar a fé em Jesus, no mundo de hoje; intercedemos
pelos políticos e governantes para que legislem e governem segundo a vontade e necessidade
dos brasileiros.
V – Bibliografia
- BLANK, J. — Jesus de Nazaret. História y mensaje. Madrid, 1973.
- BOMBO, C. Na Igreja quem é povo. In: Revista Eclesiástica Brasileira. - Rio 39 (154), 1979.
- FLESCH-THEBESIUS, M. Meditação sobre Marcos 8.31-38. In: Assoziationen. Gedanken zu
biblischen Texten. v. 1. Stuttgart, 1978.
- HASS de, P. Meditação sobre Marcos 8.31-38. In: Predigtstudien für Kirchenjahr 1978/79. v. 1
tomo 1. Stuttgart/Berlin.
- SCHWEIZER, E. - Das Evangelium nach Markus. In:Neues Testament Deutsch. v. 1. Göttingen,
1975.
Auxílio Homilético
04/03/2012
Prédica: Marcos 8.31-38
Leituras: Gênesis 17.1-7, 15-16 e Romanos 4.13-25
Autora: Scheila dos Santos Dreher
Data Litúrgica: 2º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 04/03/2012
Proclamar Libertação - Volume: XXXVI
O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito.
O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.
(Martim Lutero, Obras Selecionadas v. 2, p. 437)
1. Introdução
Neste segundo domingo da Quaresma, o texto indicado para a pregação dá testemunho da
primeira vez que Jesus anunciou sua paixão e da reação que isso causou. Por trás do
testemunho bíblico estão Pedro e os outros discípulos com suas expectativas em relação ao
Messias e os sentimentos diante do anúncio dos acontecimentos que virão; está também Jesus,
dizendo “claramente” a seus seguidores mais próximos e à multidão que, sempre sedenta, se
reúne em torno dele que segui-lo implica uma decisão e um comprometimento total e definitivo.
Segui-lo implica assumir um “novo eu”; implica uma nova vida por causa do impacto do
evangelho, a saber: “vos nasceu um Salvador” (Lc 2.11), “porque Deus amou ao mundo de tal
maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas
para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.16,17).
Os textos indicados como leitura dos livros de Gênesis e Romanos tratam dos benefícios
concedidos por Deus aos que creem; pela fé, não por mérito do cumprimento da Lei. “É da fé
que a promessa de Deus depende” (Rm 4.16). Pela fé cremos que “Jesus foi entregue para
morrer por causa dos nossos pecados e foi ressuscitado para que [nós] sejamos aceitos por
Deus”. A fé me faz confessar: Foi por mim! Foi por nós! Pela fé temos comunhão com Deus e
com o próximo. A fé nos faz herdeiros das promessas e da obra de Cristo, e o Espírito Santo nos
conduz ao discipulado (At 1.8).
Lembro também da possibilidade de fazer a leitura de outros auxílios homiléticos sobre o texto
em questão em edições anteriores (PL X, XIX, XXV e XXXI).
2. Exegese
Jesus estava a caminho de Jerusalém. Curas, ensinamentos, [des]encontro com fariseus
antecedem o testemunho de Marcos 8.31-38. A confissão de Pedro (tu és o Messias/o Cristo) e
a transfiguração de Jesus emolduram o nosso texto.
De maneira franca, pela primeira vez Jesus fala ao grupo mais próximo de discípulos a respeito
dos acontecimentos que estão pela frente: seu sofrimento, rejeição (por parte da liderança
judaica), morte e ressurreição. Pedro repreende Jesus em particular. Entre os seus motivos
(cada qual sempre os tem) poderiam estar: 1) a insegurança por seu futuro e o de outros/as que
seguiam Jesus frente aos acontecimentos anunciados; 2) a compreensão de sofrimento como
castigo de Deus (“Mestre, por que este homem nasceu cego? Foi porque ele pecou ou porque os
pais dele pecaram?” Jo 9.2); um Messias não estaria sujeito ao castigo de Deus; 3) a
compreensão de Messias reinante na época: vitorioso, triunfalista e glorioso. Afinal, quem quer
seguir um perdedor, um rejeitado, um fracassado? A rejeição pela liderança judaica e a morte
(de cruz) seriam a evidência do fracasso. Diante da reação de Pedro, Jesus repreende-o na
frente dos demais discípulos. Para transformar a realidade de morte, é preciso que ele tome
sobre si toda a maldade humana. Por isso Jesus anuncia que, se alguém quer segui-lo, precisa
aderir totalmente à sua proposta. Ele vê o momento atual (incredulidade e maldade); ele viu a
tentação de Pedro de negar um tal Messias. Ele pode oferecer vida porque ele é o próprio
evangelho. Não é um líder populista ou autoritário. O preço da oferta de vida será a sua vida na
cruz. Jesus assume a “conta” sozinho. A salvação é dada, é presente, não é adquirida por
mérito. Mas é preciso abraçá-la com fé. Confessar com a boca e com toda a vida que Jesus é o
Senhor: eu sou o que sou por sua graça, minha vida só tem sentido nos passos de meu
Salvador.
A respeito de Marcos 8.31-38, Julius Strathmann escreve o seguinte:
É importante considerar que o anúncio do sofrimento sempre esteve presente na história do povo de Israel, desde Isaías 53 [...]. O
período dos macabeus promoveu essas ideias. Sofrer e morrer fazem parte da vida dos profetas (Lc 13.13; Mt 23.34s; Lc 6.23 [...]). João
Batista seguiu esse caminho. A certeza de que o messias haveria de sofrer está presente nos apocalipses judaicos, pois eles identificam
o messias com o servo sofredor de Isaías 53. [;...] Pode-se imaginar martírio glorioso, ressurreição do rei, mas não dá para pensar em
um messias rejeitado pelo povo de Israel, julgado por sua suprema corte. É disso que falam as palavras de Jesus. [...].

Pedro, que antes confessava, agora nega. [...] Será que Pedro aguarda um Messias glorioso, o juiz que vem dos céus? Ou será que ele
espera por sofrimento, diferente do anunciado por Jesus? O texto nada diz. A resposta de Jesus se afasta de todos esses ideais
messiânicos. Jesus se afasta de Pedro, volta-lhe as costas, põe os olhos nos discípulos: quem quiser impedir a caminhada de Jesus em
direção ao sofrimento é um Satã; é tentador, o próprio adversário de Deus. Isso é assim, porque pensa conforme pensam seres
humanos. Quer o que todos os seres humanos pensam e querem. [...] As palavras que falam do sofrimento tem o AT como pressuposto.
A palavra grega para “rejeitar” é utilizada em 12.10, citando o Salmo 118.22: Cristo é a pedra rejeitada pelos construtores; em Isaías 53.3
é descrito como o servo de Deus que é rejeitado por todos. [...]

A confissão a Jesus como o Messias e o anúncio do sofrimento são um primeiro ponto alto do evangelho. Não é por acaso que a parte
do evangelho que segue ao primeiro ponto alto é mais extensa do que tudo o que precedeu. Aqui o evangelho é mencionado pela
primeira vez no evangelho. Jesus, o crucificado e o ressurreto, é o Messias.  Foi essa a confissão das comunidades palestinenses e
helenistas. Paulo e Pedro têm a mesma confissão. Tudo o que o evangelista narrar a seguir é desdobramento desse evangelho. Tudo o
que descreveu anteriormente quer ser entendido a partir de nosso texto.

O texto, a partir de 8.34, tem dois destinatários: os discípulos e o povo. [...] A maioria das palavras também aparece em Q. Temos, pois,
ditos independentes que, originalmente, foram transmitidos isoladamente como ditos. “Seguimento/discipulado” já tinha sido tematizado
em 3.13s. Seguimento não tem o significado de “imitação de Cristo”. À época, “seguir” significava “estar com ele”, “andar atrás dele como
aluno”. Da mesma maneira, ao longo da história da igreja, expressões como “negar-se a si mesmo” e “levar a cruz” foram esvaziadas de
seu sentido. O significado de “negar” podemos ler em v. 14.71: “não conheço o homem”. Por semelhança, aqui: não se conhecer,
desconhecer seu próprio Eu. Palavras como Mc 9.43ss; Mc 6.3 e Mt 18.3, também Mt 11.11; Lc 9.60; 15.24,32 e os paralelos ao v. 35 e
36 significam: novo nascimento, um Eu totalmente novo; o mesmo, portanto, que encontramos em João 3.3. O mesmo é afirmado pelo
dito do carregar a cruz. Seu sentido não diz de um carregar a cruz apenas após a crucificação de Jesus, mas no sentido usado pelo
judaísmo: “Abraão tomou a lenha do sacrifício e depositou-a sobre seu filho Isaque; como alguém que carrega a cruz sobre seu ombro”.
Nosso dito significa, pois: saber-se condenado à morte, à morte de um criminoso. [...] O v. 35 refere-se, indiscutivelmente, ao martírio.
Os discípulos de Jesus perdem sua vida por ser perseguidos por causa dele e por causa do evangelho que anunciam. Nossa palavra foi
transmitida 6 vezes. “Por causa do evangelho” só encontramos em Marcos; quem nega no martírio, para salvar sua “vida”, na
verdade PERDE sua vida. [...]

É verdade que no original grego encontramos a palavra alma. Mas ela significa o mesmo que “vida”; é esse o sentido de “alma” em todo
o NT. [...] Nesse caso, nosso dito significa: que adianta conseguir todo o mundo se acabares morrendo? Com todas as tuas posses
podes reiniciar tua vida? É possível que o dito tenha sido, originalmente, dito popular profano: de que vale toda a tua posse se vieres a
morrer? Na boca de Jesus transforma-se em uma espécie de parábola: de que adianta possuir o mundo inteiro se aquele que o
possuísse viesse a morrer? É nesse sentido que vão as palavras do Senhor a respeito de viver e morrer mencionadas no v. 34 [...]. Se
for esse o sentido de nossa palavra, então está dirigida a todos os seguidores de Jesus, sem exceção. Eles perderam sua vida – sua
vida própria –; o que permanece como recompensa para que se reconquiste vida? Aqui entram as palavras do Salmo 49.8s e Mc 10.45.
[...]

“Envergonhar-se” de Jesus e de suas palavras é expressão muito forte; não encontramos equivalente em nenhum dos livros proféticos.
Nenhum profeta as dirige a seus ouvintes: não te envergonhes de minhas palavras. O dito, portanto, pressupõe que a expressão
pressupõe valor especial; no entanto, vergonha e deboche aguardam o mensageiro dessas palavras. É o pensamento do “Evangelho” do
v. 38 e de Rm 1.16. Ainda mais forte é o “envergonhar-se de mim”; ele se encontra além de qualquer palavra dos profetas. Os profetas
desaparecem por trás de sua mensagem; Jesus, contudo, é sua própria mensagem porque ele é a presença da mensagem do reino de
Deus que há de vir e isso se expressa em sua palavra. Por isso, negar suas palavras e negar a ele é o mesmo. Negá-lo ou envergonhar-
se dele no discipulado é escandaloso. As palavras de nosso versículo confirmam e esclarecem esse aspecto na ameaça do juízo
constante no v. 36s e destinada ao discípulo que quer “salvar sua vida” ao invés de perdê-la por causa de Jesus e do evangelho. A
distinção que é feita em nosso dito entre Jesus e o filho do homem que vem vindo perfaz o mistério messiânico. Quem observar o
significado que é conferido às palavras de Jesus e a ele próprio há de compreender o mistério messiânico: em Jesus e em sua palavra
se decide a eterna sorte de seus ouvintes, ele é o juiz do universo. Observe-se que em nossa perícope é mencionado pela primeira vez
no Evangelho de Marcos a segunda vinda de Cristo (tradução de Martin N. Dreher).

3. Meditação
1 – Jesus é o próprio evangelho. Aos que o seguem (sedentos, críticos ou curiosos) ele ensina,
esclarece e orienta; ele se revela como evangelho. Ele mesmo prepara o terreno para a fé. Não
temos mais Jesus conosco caminhando, ensinando, tendo comunhão de mesa, curando. O
apóstolo Paulo, no entanto, diz que “a fé vem pela pregação e pregação pela palavra de Cristo”
(Rm 10.17). Martim Lutero entendeu que cada pessoa deveria poder ler a Bíblia e não somente
ouvi-la (seguida de interpretação) da boca dos religiosos. Nesse sentido, há preciosa
contribuição luterana a ser lembrada: “Junto aos mosteiros surgem as primeiras universidades e
a partir da vontade de colocar a Bíblia nas mãos das pessoas simples se prefiguram a
alfabetização e a escolarização universal, tarefa mais tarde assumida pelos estados nacionais”
(Danilo Streck, “Uma pedagogia da vida plena” in: Jesus de Nazaré. Profeta da liberdade e da
esperança. São Leopoldo: Editora UNISINOS, p. 238). Para poder seguir a Jesus – “Se alguém
quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8.34b) – é preciso
ouvir falar desse Jesus. Esse evangelho – que Jesus morreu e ressuscitou por nós, que ele é o
Messias/Cristo – precisa ser anunciado claramente no culto. Para além do momento do culto,
reafirma-se a necessidade de educação cristã contínua. Não se pode deixar de falar o que
parece óbvio nos cultos e encontros em nossas comunidades, pressupondo que, no encontro
das pessoas batizadas, o evangelho de Jesus, a vida a partir do evangelho e mesmo os
princípios da confessionalidade luterana (somente por graça, somente por fé, somente pela
Escritura, somente por Cristo) estejam assimilados por todos. Às vezes, o que nos parece óbvio
pode ser a chave para entender muitas questões e pode levar pessoas à fé. “A Escritura é como
uma ervinha; quanto mais a trituras, mais perfume ela solta” – disse Martim Lutero. Nenhum
texto envelhece! Cada pessoa cristã precisa ouvir, sempre de novo, o que Deus lhe oferece para
que o impacto dessa graça a transforme em um “novo eu”.
2 – “Siga-me”, disse Jesus (Mc 8.34). Seguir a Jesus não se restringia à imitação; antes era, de
fato, seguir seus passos, estar com ele, andar com ele, aprender com ele. Consigo isso?
Consigo confessar esse Cristo que foi rejeitado até por gente de seu povo? Consigo colocar em
primeiro lugar o Cristo com sua radicalidade pela vida, o Cristo que andou com pecadores/as,
com doentes, com gente desprezada pela sociedade, cuja lembrança mais visível hoje, em todo
lugar, é a cruz, pena capital no Império Romano, em seu tempo? Consigo estar com Cristo junto
aos doentes, aos excluídos, na prática da justiça e da misericórdia? Só por Deus mesmo! Foi o
meu pecado que ele tomou sobre si. É a minha salvação e de todo o que crê, a minha vida (Mc
8.35) que ele me oferece, gratuitamente, por fé.
Martim Lutero diz que as obras de Cristo contidas nos evangelhos não são exemplos ou “onde
aprenderíamos o que devemos fazer” (Martim Lutero, Obras Selecionadas v. 8, p. 171).
O ponto principal do evangelho, seu fundamento, é que antes de tomares Cristo como exemplo o acolhas e o reconheças como dádiva e
presente que foi dado a ti, pessoalmente, por Deus, ou seja, que ao vê-lo ou ouvi-lo fazer ou sofrer alguma coisa, que não duvides que
ele, Cristo, com esse fazer e sofrer, seja teu, e nisto não te fies menos do que se tu o tivesses feito, sim, como se tu fosses o próprio
Cristo. Isto sim significa reconhecer corretamente o evangelho, ou seja, a bondade exuberante de Deus, a qual nenhum profeta, nenhum
apóstolo, nenhum anjo jamais pôde esgotar em palavras, nenhum coração jamais pôde assombrar-se e compreender o suficiente. Este é
o grande ardor do amor de Deus para conosco. Disso o coração e a consciência se alegram, ficam seguros e tranquilos. Isso é pregar a
fé cristã. Por isso tal pregação se chama de evangelho, ou seja, [...] uma mensagem alegre, benfazeja e confortadora, mensagem pela
qual os apóstolos são chamados de os doze mensageiros. [...] quando tens a Cristo como fundamento e bem maior da tua felicidade,
segue um outro ponto: que o tomes como exemplo e também te ofereças para servir ao teu próximo, assim como vês que ele se
ofereceu a ti (p.173). Cristo é teu e te foi dado como presente. [...] Importa que tomes isso como exemplo e também ajudes o teu próximo
e procedas do mesmo modo com ele, isto é, que sejas também para ele um presente e um exemplo (p. 174).

Caso no culto aconteça o sacramento do Batismo, é importante lembrar do valor da vivência


cristã diária das pessoas adultas da família como passos a serem seguidos pelas crianças. Já no
Antigo Testamento, encontramos exemplos de como os pais educavam na fé seus filhos por
meio do resgate, da memória da ação de Deus (Dt 6.4-9). Criança aprende pelo exemplo. Faz
mais o que vê do que o que ouve. Nós podemos ser um meio de o evangelho tornar-se
conhecido e ser sentido por nossas crianças e, por intermédio de nossa ação, podemos ajudá-
las a seguir a Jesus (ou não).
3 – As ofertas são muitas. Não só hoje. A pergunta é: vale a pena a vida sem Jesus? Se
tivermos tudo o mais e o nosso limite for apenas esta vida, valeu a pena? Sem Jesus não há
vida em comunhão com Deus e com o próximo. Do que nos vale então o viver? Aqui Jesus nos
conduz ao que dá sentido à nossa vida: “Negar a si mesmo”, desconhecer o nosso próprio eu e,
vivendo com ele, experimentar uma nova vida, não sem sofrimento. Nosso melhor “investimento”
é viver COM Jesus. Tudo o mais decorre disso. Nessa vida com Cristo, os benefícios não são
individuais como possa parecer, talvez, num primeiro momento, pela linguagem econômica
utilizada por Jesus: ganhar x perder. Porque a vida com Cristo é vida com o próximo sempre!
“Quando fizeste isso [...] a um dos meus pequeninos, a mim o fizeste” (Mt 25).
Numa vida com Cristo, o próximo passa a ser mais importante do que o acúmulo de bens.
Entendo toda a minha vida como um presente de Deus e uma oportunidade para servir. Trabalho
para viver; trabalho porque com meu trabalho tenho a oportunidade de fazer o bem. Disponho do
que tenho e do que sei para o bem de quem está comigo, porque importa o bem-estar coletivo e
não o acúmulo de capital, visto que minha vida é finita e não vou levar nada comigo. Assim como
a vida me foi concedida por Deus, ficarei sob os seus cuidados também na morte. Se minha vida
foi movida por meus interesses, no final dessa vida ficarei sem nada porque nada posso levar
comigo. Se a fé me alcançou, seguirei tranquilo porque quem me concedeu a vida também
cuidará de mim até o dia da ressurreição. Ao encontrar Cristo, eu encontro o irmão, a irmã, em
sua angústia, dor ou alegria. Eu me solidarizo, multiplicam-se as relações de cuidado, de afeto e
de cooperação. Aceito o Cristo que morreu e ressuscitou por mim e, em seu seguimento,
experimento uma vida de doação.
4. Imagens para a prédica
Assim que li o texto, cenas de minha infância vieram à minha mente. Lembrei-me de como o pai
e a mãe nos tomavam pelas mãos, firmavam nossos pés sobre seus pés e caminhavam
conosco. Brincávamos sustentadas por seus pés e seguras por suas mãos. Lembrei-me também
de nossas “aventuras” nos morros no interior de Teófilo Otoni/MG. O pai tomava um facão velho,
enferrujado, convidava suas “meninas” para uma caminhada pelos morros e ia à frente, abrindo
o caminho com seu facão. Ele ia anunciando: cuidado com isso, segurem aqui ou ali, dá a mão
para não cair! Nós seguíamos seus passos e experimentávamos seu cuidado. E todos nos
divertíamos muito!
Pés/passos poderiam ser afixados no corredor da igreja, não da porta até o altar, mas, ao
contrário: para fora, para “o mundo”.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos de Quaresma: HPD 54 (Cristo quero meditar em teu sofrimento); HPD 46 (Agradecemos-
te, Jesus). Outros hinos: HPD 463 (Caminhamos pela luz de Deus); OPC 211 (Vem, ó tu, que
fazes novos os sistemas de pensar); HPD 413 (Senhor, se tu me chamas, eu quero te seguir).
Bibliografia
STRATHMANN, Julius. Das Evangelium nach Markus. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1940. (Das Neue Testament Deutsch 1).
 
Auxílio Homilético
12/03/2006

Prédica: Marcos 8.31-38


Leituras: Gênesis 28.10-17 e Romanos 5.1-11
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 2º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 12/03/2006
Proclamar Libertação - Volume: XXXI
1. Introdução
O texto previsto para pregação nesse domingo da Quaresma apresenta o primeiro anúncio do
sofrimento, da morte e da ressurreição de Jesus e, após um difícil diálogo entre Pedro e Jesus,
reúne quatro ditos sobre o seguimento ao Filho do Homem. O desentendimento entre Jesus e o
discípulo (vv. 32b e 33) ancora o texto em dúvidas e necessidades reais da vida humana. Afinal,
ninguém gosta de sofrer e nem vê no sofrimento algum sentido. Os ditos de Jesus questionam
opções e valores, considerados vitais para proteger e salvar a vida.
Antes de aprofundarmos essas primeiras impressões sobre o texto, convido para acompanhar
algumas considerações importantes sobre Mc 8.31-38.
2.Considerações sobre o texto
2.1 – A pregação de Jesus sobre o seu sofrimento, morte e ressurreição: vv. 31-32a
No v. 29 desse mesmo capítulo do evangelho de Marcos, Pedro afirma que Jesus é o Messias, o
escolhido e ungido que veio trazer o reino de Deus ao mundo. A visão messiânica comum na
época não incluía o sofrimento e a morte do Salvador. A maioria esperava um messias vencedor,
cercado de guerreiros, capaz de derrotar os poderes e os príncipes injustos do mundo. Jesus
surpreendeu ao pregar o sofrimento do Filho do Homem, sua rejeição por parte daqueles que
exerciam o poder (anciãos, sacerdotes e escribas), sua morte e ressurreição. Jesus sabia que
sua mensagem e ações entrariam em choque direto com a religião oficial, com a organização
social e com os valores de sua época. Ele previa a sua morte de cruz.
Palavras de esperança fizeram parte desse trágico anúncio de Jesus: “... e que, depois de três
dias, ressuscitasse”. Jesus contava com a sua ressurreição. Outras passagens dos evangelhos
atestam isso, tais como Mc 9.9s, Mc 14.25,28. Lc 14.13s. e Mt 27.63. A ressurreição, por outro
meio e cami- nho, apontava para uma vitória de Deus sobre os poderes do mundo e da morte.
Jesus falava abertamente (“E isto ele expunha claramente”, v. 32) desse caminho salvífico. Ele
preparava os seus seguidores para absorverem a nova proposta messiânica, o novo caminho, a
verdade e a vida, que necessariamente passariam pela sua morte e ressurreição.
2.2 – O diálogo de Pedro com Jesus: vv. 32b e 33
Pedro, um ser humano comum de seu tempo, reprova o anúncio do sofrimento e morte de Jesus.
Conforme a sabedoria de seu tempo, o messias e os propósitos de Deus não poderiam ser
derrotados pelos poderes do mundo. Sofrimento e morte (ressurreição não conheciam) faziam
parte do cotidiano do povo, desprovido de justiça e paz, excluído da vida digna. O messias
estaria acima dessa realidade, isento dessa sina desastrosa. A visão messiânica da época
projetava uma salvação espetacular, baseada em imagens e atos possíveis nos limites do
mundo.
Jesus denuncia com palavras contundentes, em tom de acusação, que Pedro defende a
proposta do mundo, a lógica da morte, que propõe a felicidade sem doação, sem perda dos
benefícios próprios, sem sofrimento e ressurreição. Jesus surpreende seus seguidores
ensinando uma vitória que inclui a perseguição, a morte e uma nova vida. Jesus prega uma
salvação vitoriosa que passa pela realidade humana, injusta e destruidora, deixando nela as
marcas do reino de Deus, do amor, da vida plena e eterna.
2.3 – Os ditos de Jesus, como salvar a vida: vv. 34-38
As afirmações de Jesus, após o diálogo com Pedro, ensinam que seus seguidores e suas
seguidoras são inseridos em sua missão salvadora, que inclui o sofrimento, a morte e a
ressurreição. “O servo não é maior do que o seu senhor...” (Jo 13.16), os servos andam pelo
mesmo caminho do seu Senhor. “Se alguém quer me seguir, esqueça os seus próprios
interesses, carregue a sua cruz e me acompanhe” (v. 34); a verdadeira salvação está enraizada
na realidade a ser transformada. “...quem perder a sua vida por minha causa e por causa do
Evangelho vai salvá-la” (v. 35); a fidelidade a esse caminho de salvação faz a diferença. “Que
vantagem terá alguém se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida?” (v. 36); a vida transcende
os limites e valores do mundo. “...quem tiver vergonha de mim, o Filho do Homem terá vergonha
dele...” (v. 38); quem nega essa proposta salvífica em seu cotidiano afasta-se da dimensão
eterna de vida.
Jesus convida os seus discípulos e a multidão (v. 34) a fazerem uma nova opção de vida,
baseando-se nos valores do evangelho e na sua missão
redentora; aquela missão que inclui o amor, a doação, a partilha, a justiça, a paz e, por isso, a
perseguição e a cruz.
No tempo de Jesus, o sofrimento e a morte faziam parte do dia-a-dia do povo. Os caminhos
possíveis para salvar a própria vida passavam, via de regra, pelos cuidados com os próprios
interesses. Esse era o exemplo dos que se beneficiavam e conviviam com os poderes
constituídos. O sofrimento e a morte configuravam a maior derrota. Os poucos e fracos
movimentos de resistência, que reivindicavam justiça e direitos, envergonhavam a multidão.
Todos tinham motivos suficientes para não se apoiar nesses projetos de libertação. E a
experiência religiosa ensinava que o melhor era aguardar um salvador apocalíptico, que sozinho
libertaria o mundo.
Os ditos de Jesus, reunidos em Marcos, pressupõem um outro projeto salvífico. Apresentam
uma outra opção: caminhar para a vida, assumindo a realidade de cruz e de morte. O prêmio
para essa opção é a inclusão no processo de salvação e a vitória sobre a morte, a ressurreição.
Apesar do sofrimento, das ameaças e da cruz, todos os que optam por esse caminho participam
da transformação do mundo, da vitória sobre a morte e dos sinais do reino de Deus. A proposta
de Jesus é nova. Agora os beneficiários da salvação não são meros espectadores da obra
salvífica de Deus; eles já a experimentam no processo de transformação do mundo. Por isso
mesmo, o projeto de Jesus reclama uma nova opção pela vida, compatível com os valo- res do
evangelho do amor sem fim.
3. Motivações para a elaboração da mensagem
Em nossos dias, a pluralidade e a fragmentação das relações humanas, dos interesses e dos
poderes constituídos endossam inúmeros projetos de salvação para a vida pessoal; também
para a economia, para as sociedades ricas e pobres, para o mundo. No centro e à margem
desse movimento humano, a pluralidade religiosa instala-se, nem sempre a serviço da vida. A
mensagem evangélica de Jesus, por exemplo, é usada para legitimar diferentes e contrastantes
projetos de salvação. Ao apresentarmos a comunidade de Marcos 8.31-38, teremos esse
contexto como pano de fundo.
A cruz, a ressurreição e os ditos de Jesus fomentarão várias perguntas e dúvidas. Os ouvintes
indagarão sobre o que é salvação, se viver em paz e com Deus inclui o sofrimento e a derrota,
se esse é o melhor futuro, se a sua esperança está realmente fundamentada no evangelho, se
os seus valores de vida e a sua opção espiritual são compatíveis com o anúncio e com o convite
de Jesus. A atualização do texto confrontar-se-á com a necessidade de indicar respostas para
essas e outras perguntas, acompanhadas pelo convite de Jesus, que exige opção e
posicionamento.
Proponho apresentar à comunidade que se reúne aos domingos no culto a mensagem do texto
de forma propositiva, apontando para a experiência diaconal e evangélica que cria caminhos de
transformação da morte em vida, a partir da realidade, sem fugir dela. Essa é a mensagem de
Jesus, a mensagem da cruz: não é possível vencer e superar o sofrimento sem assumi-lo. Assim
como essa mensagem assustou o discípulo Pedro, assusta todos os que hoje apostam em
saídas libertadoras individualistas, que instrumentalizam valores e poderes humanos e religiosos
hierarquizantes e escravizadores.
Simultaneamente, não esquecer de anunciar a esperança, que se avoluma pela fé na
ressurreição e que rompe com os muros dos limites da vida neste mundo. A mesma mensagem
fortalece a participação de todos nas atividades comunitárias, diaconais e sociais, de grupos e
lideranças que constroem sinais concretos de solidariedade, doação e partilha, a partir da
realidade de sofrimento e cruz de todos os envolvidos. A comunidade, reunida para o culto,
ficará alegre ao ouvir novamente que o amor e a ação salvífica de Jesus a incluem como agente
vivo de transformação em sua realidade. Essa mensagem ajuda a comunidade a interpretar e a
associar com a sua vida vários conceitos bíblicos, tais como corpo de cristo, sacrifício vivo
(Roma- nos), pedras vivas, sacerdócio de todos (1 Pedro).
Creio que este texto é mensagem de amor, de vocação e de esperança também em outros
contextos. Por exemplo, para os adolescentes e jovens da Casa Mateus em Mauá (SP),
integrados aos programas de arte, dança, cultura, informática e primeiro emprego. A proposta de
Jesus, a princípio, não convence. Suspeitariam dessa proposta de salvação que os inclui, pois
conhecem seus limites e fraquezas; não acreditam mais em grandes transformações da sua
realidade. Nessa situação, o ensino e os ditos de Jesus são evangelho. Chamam os
adolescentes e jovens para não fugirem de sua triste realidade e para buscarem nela caminhos
de transformação, negando os valores da morte, aprendendo os segredos da vida, que é de
Deus e eterna.
O texto convida a anunciar a nova proposta salvadora de Jesus de forma propositiva e corajosa,
uma proposta que nos inclui, que parte de nossa realidade e que transcende os limites dessa
história e mundo.
4. Auxílios litúrgicos
Saudação e acolhida: Sugiro saudar a comunidade com um dos ditos de Jesus, por exemplo:
“Que vantagem terá alguém se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? (v. 36).
Confissão de pecados: Incluir na oração as tentações relacionadas às nossas tentativas de
salvar a própria vida e de negar ou fugir da nossa realidade de sofrimento e cruz.
Kyrie: Motivar a comunidade a rogar pelas pessoas, comunidades e povos escravizados e
anulados por propostas e visões libertadoras baseadas nos valores e riquezas deste mundo.
Anúncio da graça: “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir; mas eu vim para que tenham
vida e vida completa. Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (Jo 10.10-11).
Oração do dia: Clamar ao Espírito Santo para que crie, entre os presentes, paciência e confiança
na proposta salvífica revelada por Jesus, que as inclui como pessoas vivas e atuantes na
transformação de vidas e realidades mortas do mundo.
Leituras bíblicas: Apresentar o texto de Gn 28.10-17 como palavra de Deus, que revelou, para os
antepassados, um Deus presente no mundo e na história. Apresentar o texto de Rm 5.1-11 como
anúncio de salvação e da aceitação de Deus, que pode ser experimentada pela fé e seguimento
a Jesus Cristo.

Bibliografia
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento: 1ª parte: A pregação de Jesus. São Paulo:
Paulinas, 1977.
STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História Social do
Protocristianismo. São Leopoldo, RS: Sinodal; São Paulo, SP: Paulus, 2004.
19/03/2000
Prédica: Marcos 8.31-38
Leituras: Gênesis 28.10-17 e Romanos 5.1-11
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 19/03/2000
Proclamar Libertação - Volume: XXV
Tema: Quaresma
1. Introdução
O texto de Marcos 8.31-38, respectivamente dos seus paralelos sinóticos em Mt 16.21-28 e Lc
9.22-27, já foi objeto de várias reflexões em Proclamar Libertação (cf. PL XXI, p. 223ss.: Mt
16.21-26; XVI, p. 247ss.: Mc 8.27-35; X, p. 234ss. e XIX, p. 83ss.: Mc 8.31-38; X, p. 190ss.: Lc
9.18-26). O/a leitor/a tem, pois, suficiente material comparativo para aprofundar suas reflexões.
2. Considerações de conteúdo
O texto pode ser subdividido em duas partes principais:
a) Primeira predição de sofrimento, morte e ressurreição  (vv. 31-33), subdividida em:
1. Ensino de Jesus sobre o sofrimento do Filho do homem: vv. 31-32a;
2. A reprovação de Jesus por Pedro: v. 32b;
3. A reprovação de Pedro por Jesus: v. 33.
b) Ditos sobre o seguimento de Jesus (vv. 34-38), subdividida em:
1. Dito sobre o negar-se e tomar a sua cruz: v. 34;
2. Dito sobre o salvar/ganhar ou perder a vida: v. 35;
3. Ditos sobre o valor da alma: vv. 36-37;
4. Dito sobre o envergonhar-se do Filho do homem e suas consequências: v. 38.
2.1. A predição de sofrimento, rejeição, morte e ressurreição: vv. 31-33
1)O ensino de Jesus sobre o sofrimento do Filho do homem: vv. 31-32a
Com Mc 9.31 inicia no evangelho o ensino de Jesus sobre a necessidade de seu sofrimento. Era
preciso ensinar essa necessidade, pois o fato de que o Messias haveria de sofrer não fazia parte
da dogmática messiânica daquela época. Esta esperava por um Messias cingido com força, para
vencer os príncipes injustos (Salmos de Salomão 17.23ss.) e que mata reis e potentados,
tingindo as montanhas com o sangue dos seus mortos e branqueando as colinas com a gordura
dos seus guerreiros (Targum palestino de Gênesis 49.10ss.). Jesus não foi oficial de exército,
seus discípulos não foram guerreiros, mas pescadores, e o reinado de Deus não pretendia ser
construído com tropas, mas com o testemunho da verdade: Jo 18.36s.
Para Jesus, era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas e fosse rejeitado pelos
anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas. Certos autores são de opinião que Jesus
extrai a convicção dessa necessidade imperiosa de sofrimento e rejeição a partir de uma
releitura do destino do ' 'justo sofredor'' apresentado por salmos e outros textos do AT, como SI
34.4-6,17ss.; 118.21; Sb 2.12ss.; 5.1-7, etc., ou então diretamente de Is 53.4,11, onde se
encontra por duas vezes a expressão muito sofrer, atestada também em Mc 8.31. Não há dúvida
de que Jesus pode ter sido influenciado diretamente por textos deste tipo, entendendo-se à
semelhança dos justos sofredores do AT. Mas existe também a possibilidade de outras vertentes
para tal convicção, como, por exemplo, a tradição deuteronomística sobre a perseguição e o
assassinato dos profetas, atestada em vários ditos jesuânicos (Mt 5.lis.; Mt 23.29-37; Mc 6.4; Lc
13.33).
É preciso, no entanto, que se tenha sempre presente o embasamento histórico
dessa necessidade. Historicamente, as referências em Mc 8.31 atestam uma consciência muito
clara das consequências funestas a que podiam levar os posicionamentos assumidos e as
críticas feitas por Jesus à religião e organização social do seu tempo. Disto dão prova textos
como Lc 4.25-27; 11.50; 13.34; Mc 10.38s.,45; Mt 23.29-36,37-39 e parábolas, como, p. ex., a
dos vinhateiros homicidas (Mc 12.1 ss.: v. 8). Jesus sabia que o esperava necessariamente  um
destino trágico porque a sua opção pelo direito e justiça dos enfraquecidos o levava a uma
colisão inevitável com aqueles que os exploravam e oprimiam. Myers (p. 297) atesta com razão
que não se trata aqui de uma necessidade tio destino ou da fatalidade, e sim
da inevitabilidade política. Além disso, participar como vítima e rejeitado da condição dos
oprimidos tornava o seu amor como expressão do amor divino mais crível para os próprios
oprimidos, li o que atesta Comblin:
O único lugar digno de Deus neste mundo é a cruz. Todo o resto seria vergonha. E o mesmo
vale para todos os que crêem em Deus. Em um mundo como o nosso, o único lugar de honra e
dignidade é a cruz. O resto é cumplicidade com a mentira, o homicídio e a destruição. (Comblin,
p. 182.)
Este fato explica, aliás, também a opção de Jesus pelo título Filho do homem/Filho do humano,
em detrimento de Messias: “ ‘Messias’ necessariamente significa triunfo régio e o
restabelecimento da honra coletividade de Israel. Contra isso, Jesus argumenta que 'Humano'
necessariamente significa sofrimento. (Myers, p. 297.) A mesma opção retorna em Mc 14.61s.!
Isto não pode ser casual. Jesus não escolhe arbitrariamente Filho do humano para autodesignar-
se. Neste título, enquanto expressão de rejeição e sofrimento, ele sinaliza o quanto encarna a
própria condição humana como condição atropelada por interesses alheios à vida e
solidariedade.
E a tais interesses e interesseiros que se refere a menção aos anciãos, principais sacerdotes e
escribas que o rejeitam, levando-o à morte. Na predição de 9.31 não há referência direta a esses
grupos, mas unicamente a homens; em 10.33 reaparecem os principais sacerdotes e escribas,
mas sem a menção dos anciãos. É exatamente estes dois últimos grupos que também são
mencionados como interessados na morte de Jesus após o conflito no átrio do templo (Mc 11.15-
19: v. 18). Em Mc 8.31 a menção dos três grupos é, provavelmente, uma referência à
composição do sinédrio, no qual cada um deles tinha a sua corres¬pondente representatividade.
Mencionadas estão a aristocracia sacerdotal (sumos sacerdotes), a aristocracia leiga (os
anciãos) e a aristocracia intelectual (escribas). Característico dos três é que, ao contrário do
povo não diretamente referido nas três predições clássicas (Mc 8.31; 9.31 e 10.33), detinham
todos um certo tipo de poder, seja o religioso, o econômico, o ideológico, o da segurança policial,
ou outros. São exatamente os grupos poderosos que convergem na oposição a Jesus! Jon
Sobrino conclui: As causas aduzidas para a perseguição são variadas (...) no fundo, não são
outras causas senão as denúncias de Jesus contra o poder opressor, diretamente o poder
religioso, em cujo nome se justificavam outros poderes (Sobrino, p. 294). Além disso, se a
referência a esses três grupos traduz uma menção indireta ao sinédrio como suprema corte da
justiça judaica, nossa atenção recai também sobre sumos sacerdotes, escribas e anciãos como
integrantes e representantes do poder judiciário. O judiciário não conseguiu, na época, julgar
com justiça e imparcialidade. Ele era composto por grupos por demais atrelados aos poderes
constituídos, de maneira a possibilitar uma eventual isenção de responsabilidades.
Sintomática para os quatro evangelhos permanece a convergência das res¬ponsabilidades
sobre os grupos dominantes e poderosos. Há, na prática, uma falta notória de menção de uma
eventual co-responsabilidade da parte do povo, com uma só exceção, a saber, a menção em Mc
15.11 par. da multidão que se deixou incitar pelos principais sacerdotes em favor da soltura de
Barrabás. Estudos recentes têm tornado plausível que também neste único caso não convém
generalizar: a multidão a que se refere este texto mui provavelmente se restringiu ao povo
residente em Jerusalém, para o qual as críticas de Jesus ao templo representavam um iminente
perigo de desemprego e falta de sustento, haja vista representar o templo o centro irradiador de
todo o turismo da cidade santa.
Essa notória omissão do povo na responsabilidade direta pelo interesse em eliminar Jesus é de
suma importância para o cuidado com generalizações nas atribuições dos pecados sociais e
políticos dentro da história. O povo tem seguramente um bom quinhão de pecados para
confessar, e, graças a Deus, Jesus morreu em favor destes também. Mas em relação aos
grandes pecados sociais e políticos da humanidade, ele costuma ser mais vítima — como Jesus
— do que agente. E, se os evangelistas apresentam de forma tão destacada sumos sacerdotes,
anciãos e escribas como os agentes da rejeição de Jesus, então cabe-nos também hoje
identificar com cuidado os verdadeiros agentes dos morticínios em nossos países e sociedades,
evitando generalizar certas culpas que, historicamente, devem ser particularizadas (Sobrino, p.
293). O povo já tem gente de sobra que o acuse de incompetente, malandro, marginal, perigoso
e assassino. Não precisamos nós também ainda nos unir a esse coro com a piedosa justificativa
de que, afinal, Paulo identificou a todos como pecadores e destituídos da graça de Deus (Rm
3.9,23). De qualquer forma, nem Jesus nem os evangelistas atribuíram ao povo as razões
últimas da sua paixão e morte. Seus verdugos têm nomes que não merecem ser simplesmente
misturados e embaralhados com quaisquer outros. É muito fácil baixar a lenha publicamente nos
ladrões e assassinos que superlotam nossas cadeias. Embaraçoso é fazê-lo em relação aos
poderosos, cujos advogados não hesitariam em mover um processo de calúnia contra quem se
atrevesse a tal. Os evangelhos são diferentes. Ali ainda se dá nome aos assassinos poderosos...
sem medo e sem embaraço.
A predição da paixão de Jesus também inclui uma predição de ressurreição: ...e que, depois de
três dias, ressuscitasse. Há vários testemunhos que atestam a crença de Jesus numa
ressurreição dos mortos, como, p. ex., Lc 14.13s.; 23.39-43; Mc 12.18-27 e 14.25,28.
Referências à própria ressurreição de Jesus são feitas em passagens como Mc 9.9s., 14.25,28 e
Mt 27.63. Historicamente não há, pois, por que duvidar que Jesus tenha contado com sua
ressurreição, uma vez consumada sua rejeição, condenação e morte. Sua esperança era,
segundo Mc 8.31, de que essa ressurreição ocorresse depois de três dias. Como os semitas não
possuem termos que designem vários ou alguns, é possível que essa expressão tenha sido um
recurso para expressar um intervalo curto, mas indeterminado de tempo (Jeremias, p. 431 s.).
Mateus e Lucas substituíram depois de três dias por no terceiro dia, procurando corresponder
melhor aos falos da ressurreição, ocorrida no primeiro dia da semana judaica.
De qualquer forma, com as palavras ...e que, depois de três dias, ressuscitasse Jesus articula
uma esperança contra todas as evidências. Esperar por ressurreição significa contar com a
vitória do Deus da vida sobre todos os poderes e poderosos que semeiam a morte. Jesus fê-lo
num momento em que todas as evidências apontavam para o contrário. Contou com o Deus da
vida, mesmo quando necessitava prever que haveriam de levantá-lo numa cruz. A história do
comportamento dos discípulos na paixão mostra como é difícil crer nestes momentos, manter-se
fiel a Deus e solidário com os irmãos, quando tudo ao redor parece querer confirmar a futilidade
de tal atitude.
Segundo o início do v. 32, Jesus falava essa palavra abertamente, o que lambem pode significar
com desprendimento. Por que este destaque à fala pública? Talvez devamos contar com a
sensibilidade de Jesus para com o grau de capacidade de absorção dos discípulos. Em Mc
4.33s. há uma alusão à capacidade de entendimento dos ouvintes: no início, Jesus se dirigia aos
discípulos por parábolas, ao que se seguiam suas explicações particulares. Agora, parece ter
chegado o momento de dispensar parábolas. Os discípulos têm que estar maduros para
entender a realidade, nua e crua como é. Existem momentos e situações na vida em que
devemos fazer jogo aberto, por mais que doa ou soe estranho. E esses momentos são aqueles
em que não se discute uma ideia ou uma posição, mas em que está em jogo a vida.
2) A reprovação de Jesus por Pedro (v. 32b)
A proclamação do sofrimento do Filho do homem desencadeia uma censura da parte de Pedro.
Para Pedro o Messias não devia sofrer sob os inimigos, mas vencê-los, derrotá-los. Era assim
que lhe haviam ensinado sobre o Messias e sobre os propósitos de Deus com ele. A censura é
feita à parte, pois é embaraçoso censurar um mestre publicamente.
3) A reprovação de Pedro por Jesus (v. .1.1)
Jesus fala palavras duras a Pedro, encarando Iodos os discípulos. Isto está a sugerir que são
válidas também para os demais. Contrapostos encontram-se um pensar humano e uma lógica
divina. Cogitar as coisas dos seres humanos significa repudiar a necessidade de sofrimento,
perseguição e morte para o Messias de Deus. A lógica humana quer felicidade sem dor, tristeza
e perda. Essa é a lógica do diabo: dentro dela, a felicidade não se constrói com doação a outros,
mas somente aproveitando-se da vida de outros em benefício próprio.
2.2. Ditos sobre o seguimento de Jesus (vv. 34-38)
À predição da paixão, morte e ressurreição de Jesus segue-se a predição da paixão e da
possibilidade de perseguição e morte dos seus seguidores: O servo não é maior do que seu
senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou (Jo 13.16).
1) Dito sobre o negar-se e tomar a sua cruz (v. 34)
Seguimento de Jesus requer a) auto-renúncia e b) assumir a própria cruz.
O que significa negar-se a si mesmo? Myers (p. 300) interpreta a expressão rigorosamente em
sentido político: significaria a autonegação feita por cristãos diante de tribunais em meio a
perseguições (cf. Mc 13.9-13; 2 Tm 2.lis.). Declarando publicamente sua adesão a Jesus como o
Messias, eles automatica¬mente renunciavam a si próprios, estando sujeitos a ser de imediato
presos e condenados. Negar-se a si mesmo significaria, segundo o contexto, estar disposto a
perder a vida (v. 35!). Esta interpretação, embora válida, estreita por demais as nuanças de
significado da expressão renunciar a si mesmo. As razões que podem impedir um verdadeiro
discipulado de Cristo são várias: apego às riquezas e bens (Mc 10.21s.,28; 8.36s.!), apego à
família e seus laços (Mt 10.38s.; Lc 9.60), prática de um domínio e poder opressores (Mc 10.41-
45), defesa de uma sabedoria mundana (Mt 11.25s.; l Co 1.19-24; 2.1 ss.), etc. A renúncia de si
mesmo não implica, pois, para todas as pessoas, abdicar sempre das mesmas coisas nas
mesmas circunstâncias. Em terminologia paulina, significaria ' 'crucificar a carne, com suas
paixões e concupiscências (Gl 5.24) ou, positivamente, deixar Cristo viver em nós (Gl 2.20). Para
Paulo esse processo de renúncia atingiu, sobretudo, os privilégios e a confiança que tinha como
judeu (Fp 3.4-6). A consequência foi que aquilo que anteriormente lhe representava lucro passou
a representar perda e refugo, de modo que, para conseguir Cristo, dispôs-se a perder todas as
coisas (Fp 3.8).
O sentido da expressão tomar a sua cruz é muito controvertido na pesquisa, porque não há
fontes que atestem o seu uso anterior a Jesus. Na época, cruz implicava sempre condenação,
sofrimento e morte cruel. Era, segundo Sêneca, um castigo reservado para escravos, grandes
delinquentes, desertores e pessoas humildes, caso instigassem revoltas ou caíssem no
banditismo. Representava sempre um grande descrédito social e político, já que pressupunha
atentados contra a paz, a ordem, as autoridades constituídas e a organização social como um
todo. Carregar a própria cruz parece ter significado assumir, a um só tempo e por causa da
fidelidade a Jesus, todos os dissabores e as consequências que podia representar a luta contra
uma ordem cogitada por pessoas (v. 33!), mas contrária à vontade de Deus. Essas
consequências podiam implicar injúrias, perseguição, mentira e a própria morte (Mt 5.11 s.).
Myers, p. 300:
A ameaça de punir com a morte é o ponto máximo do poder do Estado; o maio diante dessa
ameaça conserva intacta a ordem dominante. Resistindo a esse maio e buscando a prática do
reino, ainda que a custo da morte, o discípulo contribui para despedaçar o reinado da morte
imposto pelos poderes na história.
2) O dito sobre o salvar ou perder a vida (v. 35; cf. Mt 10.39 e Lc 17.33)
Neste sentido deve também ser interpretado o v. 35, que fala de perder a vida para ganhá-la. Há
momentos em que a verdade não pode ser negociada ou ajeitada. Nessas ocasiões, o seu
testemunho, por ferir interesses poderosos, suscitará reações violentas que podem implicar
assassinatos. Vidas assim perdidas representarão sempre vidas ganhas diante de Deus, vidas
em que tenham prevalecido a fidelidade a Deus e o compromisso com a humanidade.
3) Os ditos sobre o valor da alma (vv. 36s.)
Os vv. 36-37 podem ser compreendidos como um dos possíveis impedi¬mentos do negar-se a si
mesmo, ao qual Jesus conclama no v. 34. Passagens paralelas são textos como Mt 6.19-21, Lc
12.16-21 e Mc 10.17-22. A linguagem preponderantemente econômica destes versículos mostra
que a economia, ou, nas palavras de Jesus, o desejo de acúmulo ilimitado (= ganhar o mundo
inteiro), pode constituir-se em fator decisivo para impedir o discipulado. A riqueza é enganosa.
Ela sugere um poder ilimitado para comprar, corromper e negociar praticamente tudo. No
entanto, é impotente frente à saúde e à morte (SI 49): não há dinheiro que compre a vida; não há
dinheiro que salve a alma, ou seja, que assegure a vida na eternidade.
4) Dito sobre o envergonhar-se do Filho do homem e suas consequências (v. 38; cf. também na
versão da fonte Q, Lc 12.8s.; Mt 10.32s.)
Os discípulos e as discípulas são conclamados a dar o testemunho em meio a uma ' 'geração
adúltera e pecadora''. O adultério neste caso é, provavelmente, de cunho religioso (cf. Os 2.4ss.;
Ez 16.32ss.) e caracteriza uma geração afastada e infiel a Deus; por ser pecadora, pensa e age
de maneira contrária à Sua vontade.
Em meio a esse tipo de geração há o perigo da vergonha em relação a Jesus e suas palavras.
Uma geração adúltera e pecadora não oferece lugar para Jesus e suas palavras, justamente por
tratar-se de uma presença e de palavras que con¬testam a validade e veracidade da ordem
dada e protestam contra a mesma. O sistema vigente tem outras regras que as da solidariedade
e outros valores que os da justiça. Pela ideologia é maquiado de tal forma que se apresenta
como bom, próspero e fomentador do progresso e bem estar social (l Ts 5.3). Por ser
amplamente aceito e introjetado nas consciências, sua contestação costuma ser prontamente
ridicularizada, ou qualificada como idealista e ilusória, ou ainda contestada judicialmente e
abafada pelo aparato policial-militar.
A vergonha que poderiam representar as palavras de Jesus dentro de uma geração adúltera e
pecadora é que elas construíam sobre a solidariedade, o altruísmo, o serviço aos outros e a
defesa de pessoas pobres e, tanto social como religiosamente, fracas. O mundo e o seu sistema,
tanto na época de Jesus quanto na nossa, acham isto um absurdo, escândalo e loucura. No
sistema do mundo a fraqueza é um mal que deve ser erradicado; no reino de Deus, ela é o
fundamento da vida e da salvação. Dentro da ordem estabelecida, qualquer crucificado seria
sempre uma vergonha social, pelo atentado à lei e ordem que representava. No âmbito do
discipulado, contudo, a cruz representava o preço pago por uma vida de fidelidade a Deus e
amor à humanidade (Fp 2.6ss.; Hb 5.7ss.). Essa era a razão pela qual importava não se
envergonhar de Jesus e pela qual também, mais tarde, Paulo não se envergonharia do
evangelho (Rm 1.16), muito menos de suas próprias prisões e algemas (2 Tm 1.8-16; 2.9-15).
No versículo 38 Jesus postula a correspondência entre o testemunho dado pelos discípulos em
seu favor e o testemunho dele em favor dos e das discípulas: no dia do juízo Jesus se
envergonhará daquelas pessoas que também se envergonharam dele e das suas palavras. O
Filho do homem é o próprio Jesus, em estado de glória. Na postura diante dele e de sua
pregação decide-se nossa eternidade. O juízo tem critérios; não é aleatório. Não depende só da
graça de Deus; esta, sem a nossa fidelidade, não salva a alma. Deus não obriga ninguém a
salvar a sua alma. Mas Ele oferece a fidelidade a Jesus como o caminho para tal.
3. Meditação e prédica
Para a prédica, é perfeitamente possível concentrar-se unicamente em Mc 8.31-33 ou Mc 8.34-
38. No primeiro caso, a reflexão seria mais em torno da paixão de Jesus, e no segundo, mais em
torno das implicações do discipulado para os crentes. Se a prédica quiser abordar ambas as
partes, deverá ser seletiva quanto ao conteúdo.
3.1. Reflexões para uma prédica sobre Mc 8.31-33
O texto reproduz (a) uma convicção de Jesus em relação a sua morte, e (b) a reação de um dos
discípulos a essa convicção. A prédica poderia concentrar-se nestes dois aspectos:
1) Consciência de Jesus em relação à sua morte, desdobrada em
a) seu sofrimento como necessidade imperiosa.
O sofrimento de Jesus era previsível, porque o mundo reage sempre com violência àqueles e
àquelas que revelam o seu pecado e denunciam a qualidade maléfica de suas obras (Jo 3.19-
21). Jesus tinha diante de si o exemplo de João Batista, mas também dos profetas do AT (Mt
23.30-32). A história recente e atua! está repleta de mártires semelhantes nas pessoas de
mulheres e homens, às vezes conhecidos, mas na maioria dos casos, anônimos, que não se
intimidam diante de ameaças e perigos.
b) seu sofrimento como resultado da rejeição de sumos sacerdotes, escribas e anciãos.
Jesus foi uma pessoa rejeitada nas altas rodas. Os três grupos compunham a suprema corte em
Israel e, considerados isoladamente, eram as pessoas de maior influencia na religião (sumos
sacerdotes), na economia (anciãos) e na teologia e jurisprudência (escribas). Os grupos de
maior poder em Israel não conseguiam aceitar aquele que, aparentemente, não tinha poder
algum. Jesus feria interesses dos poderosos.
2) Reação dos discípulos
c) Seu sofrimento como contrário à expectativa dos discípulos.
Pedro reprova Jesus. Dentro da lógica que Pedro aprendeu, um salvador que sofre é uma
contradição: não ajuda nada'; só aumenta ainda mais o número daqueles que já têm o suficiente
com que se preocupar. Muitas igrejas também não compreendem ou não querem compreender
esta lógica. Elas não conseguem conceber poder divino senão através de quantificações: muitos
adeptos, muitos milagres, muitos donativos, etc. A Bíblia, Jesus e os apóstolos também
quantificam, às vezes (Mc 1.32-34; 6.44; 8.9; At 2.41). Mas não são escravos dos números e
estatísticas. Isto já se evidencia no fato de pregarem a conversão (Mc 1.14s.; Rm 12. l s.), e não
simplesmente aquilo que o público mais quer e gosta de ouvir. Toda Igreja que se propuser a dar
testemunho da verdade (Jo 18.37) vai expor-se a críticas e perseguições, participando das
condições de um messias sofredor e vulnerável.
3.2. Reflexões para uma prédica sobre Mc 8.34-38
Sugerimos que a prédica reluta sobre duas questões:
1. Ser discípulo/a significa negar-se a si mesmo, e
2. Ser discípulo/a significa perder a vida para ganhá-la.
1) A prédica poderia começar pelo segundo ponto e procurar esclarecer como, na vida, muitas
vezes uma aparente perda representa um ganho. Exemplos poderiam ser extraídos de áreas
como a saúde, o esporte, a ecologia. Boa saúde pressupõe uma alimentação sadia. Decidir-se
neste sentido representa, num primeiro momento, um sentimento de perda muito forte, pois
teremos que afastar-nos de hábitos alimentares muito arraigados e que dão bastante prazer
momentâneo, embora a médio e longo prazo nos prejudiquem (p. ex.: ingestão exagerada de
carne bovina; aplicação de muito sal nos alimentos; ingestão de muitos doces). De forma
semelhante, a prática de esportes pode ser cansativa e estafante nas primeiras vezes, mas,
transformando-se num hábito, tornar-se-á um exercício prazeroso e muito saudável. Finalmente,
na área da ecologia pode ser citado o alto custo de antipoluentes ou alimentos sem aplicação de
agrotóxicos. Também neste caso, o que representa inicialmente uma perda para a vida em
verdade vai assegurá-la e salvá-la a médio prazo.
2) Apontar para o exemplo de Paulo, citado em Fp 3. Sua experiência foi bem semelhante: as
coisas que antes considerou como ganho, depois de conhecer a Cristo, passou a considerar
como perda. Paulo compreendeu que ao aceitar Jesus como o Senhor da vida significa deixar
muitas coisas para trás.
3) Negar-se a si mesmo significa exatamente isso: deixar coisas de lado mi para trás que,
durante muito tempo, tinham um grande significado paia nos Inicialmente poderiam ser citados
exemplos bíblicos conhecidos. Exemplos positivos: Simão e André, Tiago e João conseguiram
deixar para trás a pesca e as redes (Mc 1.16ss.); Paulo conseguiu desfazer-se de todo o seu
orgulho judaico como zeloso pela lei (Fp 3). Exemplos negativos: os fariseus não conseguiam
abandonar sua velha discriminação contra os pecadores (Mc 2.15-17); um rico não conseguiu
doar seu dinheiro aos pobres e seguir Jesus (Mc 10.17-21). A tais exemplos poderiam ser
somados outros bem práticos, da vida atual das comunidades e dos cristãos.
O objetivo seria de encorajar a comunidade à prática da renúncia, do negar-se a si mesmo, para
que, dessa forma, possa tornar-se mais clara e decididamente discípula de Jesus. Negar-se a si
mesmo tem por objetivo arrumai a vida para esta poder ser receptiva ao que Jesus quer e
espera.
Bibliografia
COMBLIN, J. Jesus Cristo e sua missão. São Paulo : Paulinas, 1983. v. I.
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento : 1a parte: A pregação de Jesus. São Paulo :
Paulinas, 1977.
MYERS, C. O Evangelho de São Marcos. São Paulo : Paulinas, 1992.
SCHNIEWIND, J. O Evangelho segundo Marcos. São Bento do Sul : União Cristã, 1989.
SOBRINO, J. Jesus, o libertador: I — A história de Jesus de Nazaré. São Paulo: Vozes, 1994.
Proclamar Libertação 25

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