Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
MAR ABSOLUTO
O alento heróico do mar tem seu pólo secreto, E eu, que viera cautelosa,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos. por I?rocurar gente passada,
suspeito que me enganei,
O mar é só mar, desprovido de apegos, que há outras ordens, que não foram bem ouvidas;
matando-se e recuperando-se, que uma outra boca falava: não somente a de antiaos mortos,
correndo como um touro azul por sua própria sombra, e o mar a que me mandam não é apenas este ma;.
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo, Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício. mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos
Não precisa do destino fixo da terra, E entre água e estrela estudo a solidão. ·
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança. E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano. l
Tem um reino de metamorfose, para experiência: E este mar visível levanta para mim
seu corpo é o seu próprio jogo, uma face espantosa.
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita. E ~etrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E e logo uma pequena concha fervilhante
Baralha seus altos contrastes: nódoa líquida e instável. '
cavalo épico, anêmona suave, célula azul sumindo-se ·
entrega-se todo, despreza tudo, no reino de um outro mar:
sustenta no seu prodigioso ritmo ah! do· Mar Absoluto.
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos,
mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.
Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões: NOTURNO
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma. BRUMOSO navio
o que me carrega
E assim como água fala-me. por um mar abstrato.
Atira-me búzios, como lembrança de sua voz, Que insigne alvedrio
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino. prende à idéia cega
teu vago retrato?
Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si: A distante viagem
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom . adormece a espuma
breve da palavra:
Não me quer arrastar como meus tios outrora, - máquina de aragem
nem lentamente conduzida, que percorre a bruma
como meus avós, de serenos olhos certeiros. e o deserto lavra.
222 CECíLIA MEIRELES / OBRA POÉTICA. JJAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS ! MAR ABSOLUTO 223
Ceras de mistério Também não sei com segurança, muitas vezes,
selam cada poro da oferta que vai comigo, e em que resulta,
da vida entregada: , . ois o mundo é mágico!
Em teu mar, no 1mpeno t ocou-se o Lírio, e apareceu um Cavalo Selvagem.
de exílio onde moro, B um anel no dedo pode fazer desabar da lua um temporal.
tudo é igual a nada.
Já vês que me enterneço e me assusto,
Capitão que conte . entre as secretas maravilhas.
quem és, porque existes, B não posso medir todos os ângulos do meu gesto.
deve ter havido.
Eu? _ bebo o horizonte. Noites e noites, estudei devotamente
Estrelas mais tristes. nossos mitos, e sua geometria.
Coração perdido.
por mais que me procure, antes de tudo ser feito,
Sonolentas velas eu era amor. Só isso encontro.
hoje dobraremos: Caminho, navego, vôo,
_ e a nossa cabeça. _ sempre amor,
Talvez dentro delas Rio desviado, seta exilada, onda soprada ao contrário,
ou nos duros remos - mas sempre o mesmo resultado: direção e êxtase.
teü NOME apareça.
A beira dos teus olhos,
por acaso detendo-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?
CONTEMPLAÇÃO
Não há resposta.
NÃo Acuso. Nem perdôo. Sabem-se os nascimentos
Nada sei. De nada. quando já foram sofridos.
Contemplo.
Tão pouco somos, - e tanto causamos,
Quando os homens aparecei am, com tão longos ecos!
eu não estava presente. Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos.
Eu não estava presente, Entre o desejo de itinerário, uma lei que nos leva
quando a terra se desprendeu do sol. age invisível e abriga
Eu não estava presente. mais que o itinerário e o desejo.
quando o sol apareceu, no céu.
E, antes de haver o ceu, Que te direi, se me interrogas?
EU NÃO ESTAVA PRESENTE. As nuvens falam?
Não. As nuvens tocam-se, passam , desmancham-se.
Como hei de acusar ou perdoar? As vezes, pensa-se que demoram, parece que estão paradas . ..
Nada sei. - Confundiram-se.
Contemplo.
E até se julga que dentro delas andam estrelas e planetas.
~h, aparência. . . Pode talvez andar um tonto pássaro perdido.
Parece que às vezes me falam. oz sem pouso, no tempo surdo.
Mas também não tenho certeza.
Quem me deseja ouvir, ne.stas paragens Não acuso nem perdôo.
onde todos somos estrangeiros? Que faremos, errantes entre as invenções dos deuses?
224 CEC1LlA MEIR E L ES / OBRA PO E TI CA. MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 225
E u não estava presente, qu ando form aram Formas, desenho
a voz tão fr ágil dos pássaros. que tive, e esqueço!
-Falas, desejo
Quando as nuven s começaram a existir, e movimento
qual de nós estava presente? - a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!
VIGILÂNCIA COMPROMISSO
A ESTRELA que nasceu trouxe um presságio triste; TRANSPORTAM meus ombros secular compromisso.
inclinou-se o meu rosto e chorou minha fronte: Vigílias do olhar não me pertencem;
que é dos barcos do meu horizonte? trabalho dos meus braços
é sobrenatural obrigação.
Se eu dormir, aonde irão esses errantes barcos,
dentro dos quais o destino carrega Perguntam pelo mundo
almas de angústia demorada e cega? olhos de antepassados;
querem, em mim, suas mãos
o inconseguido.
E como adormecer nesta Ilha em sobressalto, Ritmos de construção
se o ·perigo do mar no meu sangue se agita, enrijeceram minha juventude,
e eu sou, por quem navega, a eternamente aflita? e atrasam-me na morte.
Vive! - clamam os que se foram,
E que deus me dará força tão poderosa ou cedo ou irrealizados.
para assim resistir toda a vida desperta Vive por nós! - murmuram suplicantes.
e com os deuses conter a tempestade certa?
Vivo .por homens e mulheres
A estrela que nasceu tinha tanta beleza de outras idades, de outros lugares, com outras falas.
que voluntariamente a elegeu minha sorte. Por ínfantes e velhinhos trêmulos.
Mas a beleza é o outro perfil do sofrimento, Gente do mar e da terra,
e só merece a vida o que é senhor da morte. suada, salgada, hirsuta.
Gente da névoa, apenas murmurada.
..
230 CECíLIA METRELES / OBRA POÉTICA MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOCOTO 23!
PASTORZINHO mexicano :
entre o duro agave e o cordeiro terno,
sentou-se em descanso. CONVITE MELANCÓLICO
Entre o duro agave e o cordeiro terno,
pastorzinho mexicano, VINDE TODOS, e contemplai-nos:
que somos os da terra fatigados,
tudo é verde campo: de cabelos hirsutos 2
para o agudo espinho, para o frouxo velo
e .para o silêncio do que estás pensando. e de joelhos sem força,
com ·palavras, paisagens, figuras humanas
pregadas para sempre em nossa memória.
Pastorzinho mexicano
de sonho coberto!
Teus olhos têm o mesmo espanto Já nem queremos nada,
dos de teu rebanho. tanto estamos desgostosos:
Anda a serra no céu e no campo nem água nem ouro nem beijo.
Para nunca mais - o horizonte e a sua flor!
Anda a serra no céu e o campo
deslizando seu corpo de ferro. Podeis vir, que já se extinguiram as revelações.
Vai andando e carregando Nada vos custa o espetáculo.
- olha como tão bem carrega! Rasgou-se o traçado em que nos gastamos em sonho
as três crias de seu flanco: e a arquitetura que trazíamos '
duro agave, voa de nôvo, em números celestes.
cordeiro terno,
pastorzinho mexicano: Vinde e contemplai-nos, que entardece.
Nossas sombras caminham para o reino da Sombra.
Nunca mais sabereis como foram nossos olhos:
vinde vê-los .para (se isto ainda se repetir)
!.º MOTIVO D;\ ROSA vossos filhos reconhecerem prontamente
os modos e o destino dos que apenas amaram,
e passaram,
VEJO-TE EM SEDA e nácar, amarrados,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas ~ eles, que tinham vindo
por ser bela e ser frágil. mostrar apenas um divino dinamismo!
..
234 CEC fLIA MEIRELES / OBRA PO ÉTI CA. MAR ABSOLUTO E OUTROS PO EM A S / MAR ABSOLUTO 235
SUSPIRO
LAMENTO DA NOIVA DO SOLDADO
NÃo TENHO NADA com as pessoas,
tenho só contigo, meu Deus. COMO POSSO .FICAR nesta casa perdida,
neste mundo da noite,
- Pássaro que .pelo ar deslizas, sem ti?
que pensamentos são os teus?
Ontem falava a tua boca à minha boca . ..
Minha estrela vai perseguida E agora que farei,
e por entre círculos corre. sem saber mais de ti!
240 CECtLIA MEIRELES / OBRA PO ÉTIC A fV[AR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 241
Pensavam que eu vivesse por meu corpo e minha alma! POR BAIXO DOS LARGOS F1CUS ...
Todos os olhos são de cegos. . . Eu vivia
unicamente de ti! POR BAIXO dos largos fícus
Teus olhos, que me viram, como podem ser fe chados? plantados à beira-mar,
Aonde foste, que não me chamas, não me pe-des, em redor dos bancos frios
como serei agora, sem ti? onde se deita o luar,
vão ·passando os varredores,
Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu calados, a vassourar.
coração ... Longe e solitário ... Neve, neve .
E eu fervo em lágrimas, aqui! Diríeis que andam sonhando,
se assim os vísseis passar,
por seu calmo rosto branco,
sua boca sem falar,
INSTRUMENTO - e por varrerem as flores
murchas, de verem amar.
A CANA AGRESTE ou a harpa de ouro
permitem que alguém as acorde E por varrerem os nomes
com brando pulso ou leve sopro. desenhados par a par,
Têm memória de águas e vento no vão desejo dos homens,
e - além dos mundos desvairados - na areia vã, de pisar ...
do silêncio, o etéreo silêncio! - por varrerem os amores
que houve naquele lugar.
Seus poderes de eternidade
tornam imenso e inesquecível Visto de baixo, o arvoredo
o som mais transitório e suave. é renda verde de luar,
desmanchada ao vento crespo
Chega-te concentrado e cauto, que à noite regressa ao mar.
que o universo inteiro te escuta!
Frase inútil, suspiro falso Vão passando os varredores;
vão ~passando e vão varrendo
vibram tão poderosamente a terra, a lembrança, o tempo.
que a mão pára, o lábio emudece,
com medo do seu próprio engano. E, de momento em momento,
E o eco sem perdões o repete varrem seu próprio passar . ..
para um ouvinte sobre-humano.
Como, porém, não morreram de todo, Aqueles que inutilmente amou, estão longe ou perto?
aproxima-se com branduras de fantasma, Não sabe, não se lembra, não se interessa, já não tem
e a cada instante se detêm, necessidade de querer, de ser querida: no seu mundo
medrosos, por se encontrarem na nossa frente. ela é tudo, ela é todas, multiplicada do ninguém.
e a quem te adora, ó surda e silenciosa, E assim nos separamos, suspirando dias futuros
· e cega e bela e interminável rosa; e nenhum se atrevia a desvelar seus próprios m'undos.
que em tempo e aroma e verso te transmutas!
E ago"ra que separados vivemos o que foi vivido,
Sem terra nem estrelas brilhas, presa com doce amor choramos quem fomos nesse tempo antigo.
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas ...
DIANA
A Manuel Bandeira
SUAVE MORTA
AH, o TEMPO inteiro
À SUAVE MORTA, que dizem os figurinos abertos perseguindo, de bosque em bosque,
rastros desfigurados!
e seu espelho e seu perfume e seus anéis? ~
As flores tocam-lhe
(Olhos fechados . . Narina imóvel.) com bloços de aço a carne rápida.
E a chuva enche-lhe os olhos.
Que :Podem dizer os poetas? E agora os _santos qu~ l~;. importam?
E os amigos? Por onde os rostos verdadeiros, e os mf1e1\1 Manejava o arco
de tal maneira suave e exata
(Olhos fechados. Memória dormida.) que . era belo ser vítima.
244 CEClL!A MEIRELES ! OBRA POE:T/CA MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 245
Voltava à noite, Guardei o vento que tocava
vazia a aljava, e pensativa, a harpa dos teus cabelos verticais,
com sua sombra, apenas. e teus olhos estão aqui, e são conchas brancas,
docemente fechados, como se vê nas estátuas.
Nenhuma caça Guardei teu lábio de coral róseo
valera a seta nem o gesto e teus dedos de coral branco.
da caçadora triste. E estás para sempre, como naquele dia,
comendo, vagarosa, fibras elásticas de crustáceos,
Nenhuma seta, mirando a tarde e o silêncio
nenhum gesto valera o grito e a espuma que te orvalhava os pés.
reproduzido no eco.
Não te acabarás, Evelyn.
Eu te farei aparecer entre as escarpas,
BEIRA-MAR seria serena,
e os que não te viram procurarão por ti
que eras tão bela e nem falaste.
Sou MORADORA das areias,
de altas espumas: os navios Evelyn ! - disseram-me,
passam pelas minhas janelas . apontando-te entre as barcas.
como o sangue nas mmhas veias,
como os peixinhos nos rios ... E eras igual a meu destino:
ROMANTI~MO
Doce era a cantiga das manhãs antigas,
menina Ondina!
Pela névoa sem fim,
SEREMOS AINDA românticos vinha o carpinteiro, com brancas madeiras
- e entraremos na densa mata, talhar barcas novas, iguais a marfim.
em busca de flores de prata,
de aéreos, invisíveis cânticos.
Neblinas tão vastas, areias tão gastas,
Nas .pedras, à sombra, sentados, menina Ondina!
respiraremos a frescura E no meu coracão
dos verdes reinos encantados caminhos tão longos para a água dos sonhos,
das lianas e da fonte pura. longos corno a areia dourada do chão ...
256 CEClLIA MEIRELES / OBRA POETICA. ]11AR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 257
MEIRELES . - 9
258 CECILIA MEIRELES / OBRA POSTJCA. MAR ABSOLUTO E OUTROS PO EMAS / MAR ABSOLUTO 259
Não venhas para ficar, mas para levar-me, como outrora também Fala-me das coisas que estão por aqui,
[te trouxe, das águas, das névoas, dos peixes, de ti.
porque hoje és dono do caminho,
és meu guia, meu guarda, meu pai, meu filho, meu amor! Que mundo tão suave! que barca tão calma!
Meu corpo não viste: sou alma.
Conduze-me aonde quiseres, ao que conheces, - em teu braço Doce é deixar-se, e ternura o fim
recebe-me, e caminhemos, forasteiros de mãos dadas, do que se amava. Quem soube de mim?
arrastando pedaços de nossa vida em nossa morte,
aprendendo a linguagem desses lugares, !procurando os senhores Dize: a voz dos homens fafa-nos, ainda?
e as suas leis, ·
mirando a paisagem que começa do outro lado de nossos cadáveres, Não, que antes do meio ~ua voz é finda.
estudando outra vez nosso princípio, em nosso fim. Rema com doçura; rema devagar:
não estremeças este plácido lugar.
FUTURO INIBIÇÃO
Vou CANTAR uma cantiga,
~ PRECISO que exista, enfim, uma hora clara, vou cantar - e me detenho:
depois que os corpos se resignam sob as pedras porque sempre alguma coisa
como máscaras metidas no chão. minha voz está prendendo.
262 CECfLIA MEIRELES / OBRA POE:TICA JJAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 263
Pergunto à secreta Música Todas em memória
por que falha ·o meu desejo, dessas seis donzelas
por que a voz é proi·bida que por mim perderam
ao gosto do meu intento. seu corpo, na terra ...
Meus crimes, paguei-os
E em perguntar me resigno, com brincos, fivelas,
me submeto e me convenço. coroas de prat41,
Será tardia, a cantiga? e mais que te dera,
Ou ainda não será tempo . .. para me livrares,
Senhora, da lepra!
Senhora da Várzea!
BLASF:f:MIA Senhora da Serra!
pede-me por sonhos:
SENHORA DA VÁRZEA, darei quanto peças
Senhora da Serra! - mais ouro, mais prata,
pelos teus santuários, mais luzes, mais telas.
com cinza na testa, Maior que os meus crimes
irei arrastando é a minha promessa.
os joelhos e a reza:
subindo e descendo Vejo com os meusf olhos
ladeiras de pedra, como degenera
sustentando andores, a carne que tive.
carregando velas, Por que me desprezas,
para me livrares, Senhora da Várzea?
Senhora, da lepra! Do mal que me cerca,
por que não me livras,
Senhora da Serra?
Senhora da Várzea, Mão com que matei,
Senhora da Serra! hoje se me entreva.
terás mais altareg,
terás mais capelas, Sinto desmanchada
sinos de mais bronze, em cinza funesta
mais flores, mais festas, a boca de outrora.
mais círios, mais rendas, E a língua me emperra
e de ouro coberta aquela peçonha
brilharás, Senhora, de que seis donzelas
de fazer inveja receberam morte,
a todas as santas lindas e sinceras.
que há na glória eterna! Senhora da Várzea!
Senhora da Serra!
Matei minha filha: Paguei meus pecados,
mas era tão bela! - e não me libertas?
Roubei cinco noivas: Calcaste dragões,
mas o amor não cega? dominaste feras,
E Deus não perdoa e ao mal que me oprime,
a quem se confessa? Senhora, me entregas?
Ergui seis igrejas: Por que não me salvas?
nenhuma te alegra? Que ordenas? Que esperas?
264 CEClLIA MEIRELES / OBRA POÉTICA MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 265
SUAS CORES são as de outrora, Sua vida não foi boa nem má:
com muito pouca diferença: foi como a dos homens comuns,
o roxo foi-se quase embora, a dos que não fizeram nenhum destino: aceitaram qualquer . . .
o amarelo é vaga presença. Dentro dele se debateram todas as coisas,
E em cada cor que se evapora e de dentro dele todas as coisas saíraht repercutindo sua incerteza.
vê-se a luz do jardim suspensa.
Creio que o morto chorou depois da morte.
Tão fina foi a vida sua, Chorou por não ter sido outro.
tão fina é a morte em que descansa! (É só por isso que se chora.)
Mais transparente do que a lua,
mais do que as borboletas mansa! Mas sobre seus olhos havia uns outros, mais infelizes,
Tanto o seu perfil atenua que estavam vendo, e entendendo, . e continuavam sem nada.
que, em peso, é menos que a lembrança. Sem esperança de lágrima.
Recuados para um mundo sem vibração.
Veludo de divinos teares, Tão incapazes de sentir que se via o 1empo de sua morte.
hoje seda seca e abolida, Antiga morte já entrada em esquecimento.
preserva os vestígios solares Já de lágrimas secas.
de que era feita a sua vida:
frágil coração, capilares E no entanto, ali perto, contemplando o morto recente.
de circulação colorida. Como se ainda fosse vida.
Se o levantar entre meus dedos,
pólen de tardes e sorrisos Maternal, porque o precedeu . • Apenas, sem poder sofrer,
cairá com tímidos segredos - de tanto saber e de tanto ter sido.
de tempos certos e imprecisos.
ó cinco pétalas, ó enredos
de sentimentais paraísos!
PEDIDO
Mas da leve gota pousada
no veludo, - mole diamante ARMEM A REDE entre as estrelas,
que foi a resposta da amada, para um descanso secular!
que foi a pergunta do amante - Os conhecidos - esquecê-los.
dela não se verá mais nada: E os outros, sem imaginar.
perdeu-se no vento inconstante. Armem a rede!
270 CECILIA MEIRELES / OBRA POl:TICA MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 271
Não sou eu, mas sim o perfume Por entre coisas imensas,
que em ti me conserva, e resume torto e ignorado se fica.
o resto, que as horas consomem.
Com pensativos vagares,
Mas não chores, que no meu dia, de fundos poços me abeiro:
há mais sonho e sabedoria chorar é muito mais fácil
que nos vagos séculos do homem. e talvez mais verdadeiro.
Fico tão longe como a estrela. ~o;-m~o QUE OUTROS miram com desprezo,
Pergunto se este mundo existe, silenc10 que aos demais aflige tanto,
e se, depois que se navega, um pensamento na vigília aceso,
a algum lugar, enfim, se chega . . .
- O que será, talvez, mais triste. um coração que não deseja nada
- esse é o mundo a que cheg~s, onde a vida,
Nem barca nem gaivota: só do sonho de ser é sustentada.
sõmente sobre-humanas companhias ...
Em suas mãos me entrego, Debruço-me, e não vejo de que parte
invisíveis e sem resposta. podes ter vindo, nem por que motivo.
Calada vigiarei meus dias. E a coragem perdi de perguntar-te.
CECILTA MEIRELES / OBRA POÉTICA. MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / MAR ABSOLUTO 289
288
Deixo-te isento. Não serás cativo E o pobre ali ficaria
de quem não te quer ver ~º. cat.iveiro como debaixo da terra,
de enigmas em que voluntana vivo. exposto à surdez do dia.
Mas não partes; que, cego e ~em memória, Pastam nuvens no ar cinzento.
por instinto conheces teu caminho, Bois aéreos que trabalham
e vens e ESTÁS, alheio à tua história. no arado do esquecimento.
E és como estrela, em séculos movida,
que num lugar ~o cé_u foi ~olocada
por uma simetna nao sabida. CAMPO
Deixei essas praias ferozes triste despojo, corpo vão, débil tributo .. .
de areias e alucinação. Porque és assim, para te amarmos e possuirmos,
Fui 110 meu barco de perigo, e em ti deixarmos nossa vida, mudamente,
de silêncio e de solidão. dada ao que for vontade e lei no teu mistério.
Solucei nas rochas desertas,
equilibrei-me na onda brava. Deus-Mar, tranqüilo, e inquieto, e preso e livre, antigo
Curvei de espanto a minha fronte: e sempre novo - indiferente e suscetível!
e com as águas do mar chorava. Em cada praia deste mundo te celebram
os que te amaram por naufrágios e vitórias,
Chorei pelas gentes perdidas ,1
de loucura e orgulho. Depois, e religiosos se renderam, convencidos,
por minhas visões, por meus gestos. à lição tácita dos símbolos marítimos.
E, finalmente, por nós dois.
Em que outros países, de que estranhos
mundos, alguém espera pela
minha voz, salva de martírios,
condutora da tua Estrela?
Diante dos horizontes próximos,
aflige-se o meu coração.
Não sei se é o tempo da chegada,
ou sempre o da navegação.
PÉRIPLO
MINHA É A DESERTA solidão, clara e severa,
onde respiro amanheceres seculares.
Meus navegantes, meus remotos pescadores .. .
óleo, sal, redes, altivez de densas brumas .. .
Olho das barcas que. sem pálpebra buscaram
entre sereias e medusas sua Estrela.
Graves cabeças modeladas por vento amplo,
rijos destinos, obedientes a onda e céu.
MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / OS DTAS FELIZES 293
SURDINA
VISITA DA CHUVA
QUEM TOCA PIANO sob a chuva,
EDITE
JORNAL, LONGE
CANTEMOS EDITE, a muito loura, branca e azul,
cujo avental de linho é a alegre vela de um barco QUE FAREMOS destes jornais, com telegramas, notícias,
num domingo de sol, e cuja coifa é uma gaivota anúncios, fotografias, opiniões ... ?
planando baixa, pelo quarto.
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
Cantemos Edite, a anunciadora da madrugada, e o sol empalidece suas letras infinitas.
que passa carregando os lençóis e as bandejas,
deixando pelos longos corredores Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
frescuras de jardim e ar de nuvem caseira. Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
Cantemos Edite, a de mãos rosadas, que caminha De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
com sorriso tão calmo e palavras tão puras: de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
sua testa é um .canteiro de lírios ·
e seus olhos, miosótis cobertos de chuva. Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
Cantemos Edite, a muito loura, branca e azul, "Os jornais servem para fazer embrulhos."
que à luz ultravioleta se converte em ser abstrato,
em anjo roxo e verde, com pestanas incolores, E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
que sorri sem nos ver e nos fala calado.
Cantemos Edite, a qL'e trabalha silenciosa
preparando todas as coisas desta vida,
porque a qualquer momento a porta deste mundo se abre
e chega de repente o esperado Messias.
f!JAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / ELEGIA 303
E olharias o sol subindo ao céu com asas de fogo . E aquela estrela maior, que a noite levava na mão direita.
Tuas mãos e a terra secariam bruscamente. E o sorriso de uma alegria que eu não tive,
Em teu rosto, como no chão, mas te dava.
haveria flores vermelhas abertas.
UM JARDINEIRO desconhecido se ocupará da simetria Range a atafona sobre uma cantiga arcaica:
desse pequeno mundo em que estás. e os fusos ainda vão enrolando o fio
para a camisa, para a toalha, para o lençol.
Suas mãos vivas caminharão acima das tuas, em descanso, , Ne~se fio vai o campo onde o vento saltou.
das tuas que calculavam primaveras e outonos, Vai o campo onde a noite deixou seu sono orvalhado.
fechadas em sementes e escondidos na flor!
, Vai o sol com suas vestimentas de ouro
cavalgando esse imenso gavião do céu.
Tua voz sem corpo estará comandando,
entre terra e água, Tudo cabe aqui dentro:
o aconchego das raízes tenras, teu corpo era um espelho pensante do universo.
a ordenação das pétalas nascentes. E olhavas para essa imagem, clarividente e como vida.
306 CECfLIA MEIRELES / OBRA POÉTICA MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS / ELEGIA 307
Foi do barro das flores, o teu rosto terreno, Sentindo-o, cobria minhas lágrimas com um riso doido.
e uns liquens de noite sem luzes j\gora, tenho medo que não visses
se enrolaram em tua cabeça de deusa rústica. o que havia por detrás dele.
Mas puseram-te numa praia de onde os barcos saíam j\qui está meu rosto verdadeiro,
para perderem-se. defronte do crepúsculo que não alcançaste.
Então, teus braços se abriram, j\bre o túmulo, e olha-me:
querendo levar-te mais longe: diz.e-me qual de nós morreu mais.
porque eras a que salvava.
E ficaste com um pouco de asas.
8
Teus olhos, poré.m, mediram a flutuação do caminho.
Por isso, tua testa se vincou de alto a baixo, HoJE! Hoje de sol e bruma,
e tuas .pálpebras meigas com este silencioso calor sobre as pedras e as ·folhas!
se cobriram de cinza. Hoje! Sem cigarras nem .pássaros.
Gravemente. Altamente.
Com flores .abafadas pelo caminho,
7 entre essas máscaras de bronze e mármor~
no eterno rosto da terra. ·
O CREPÚSCULO é este sossego do céu ,f
•
E hoje era o teu dia ,de festa!
Meu presente é buscar-te.
Não para vires comigo:
para te encontrares com os que, antes de mim,
vieste buscar, outrora.