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Carta aos atores

Escrevo com os ouvidos. Para atores pneumáticos.


Os pontos, nos velhos manuscritos árabes, eram assinala-
dos por sóis respiratórios... Respirem, pulmoneiem! Pulmonear
não é deslocar o ar, gritar, inflar, mas, pelo contrário, conseguir
uma verdadeira economia respiratória, usar todo o ar que se
inspira, gastá-lo todo antes de se inspirar de novo, ir até o fim
do fôlego, até a constrição da asfixia final do ponto, do ponto
da frase, da pontada de lado depois de correr.

Boca, ânus. Esfíncter. Músculos redondos que fecham


nosso tubo. A abertura e o fecho da palavra. Ataque certeiro
(dos dentes, dos lábios, da boca musculosa), final certeiro (ar
cortado). Parada certeira. Mastigar e comer o texto. O espec-
tador cego deve ouvir a mordida e a deglutição, se perguntar
o que está sendo comido ali, no palco. Quê que eles comem?
Eles se comem? Mastigar ou engolir. Mastigação, sucção, de-
glutição. Pedaços de texto devem ser mordidos, maldosamente
atacados pelos comedores (lábios, dentes); outros pedaços
devem ser logo tragados, deglutidos, engolidos, aspirados,
absorvidos. Coma, trague, coma, mastigue, pulmoneie de
um só trago. Vá, mastigue, triture, canibal! A i , ai!... Boa parte
do texto deve jorrar num sopro só, sem retomada de fôlego,

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usando-o até o fim. Gastando tudo. Nada de guardar umas linguajar. Sua arte oratória (arengas, orações, canções, parlen-
reservinhas, nada de ter medo de perder o fôlego. Parece que das, sermões, provérbios). Boucot manipulador: rapidez dos
é assim que se consegue achar o ritmo, as diversas respirações, pés, das pernas, exatidão, número de mágica, prestidigitação
atirando-se em queda livre. Nada de cortar tudo, recortar tudo vocal. Boucot durão-covardão, duro-molenga, cacete mole,
em fatias inteligentes, em fatias inteligíveis - como manda a duro brocha, perde o fôlego e endurece a articulação ao mesmo
boa dicção francesa de hoje em dia, na qual o trabalho do ator tempo, duro brocha ao mesmo tempo, Boucot nunca quieto,
consiste em recortar seu texto qual salame, acentuar certas Boucot no inferno, Boucot-bode-Satanás, sempre apanhado
palavras, carregá-las de intenções, reproduzindo em suma o pela angústia do tempo, dos capitais, do grão que escorre, da
exercício de segmentação da palavra que se aprende na escola: ampulheta. Ir sempre mais depressa, improvisar, encadear
frase recortada em sujeito-verbo-predicado, o jogo consistindo ainda mais rápido, lutar pelo tempo contra o seu próprio saco.
apenas em procurar a palavra chave, em sublinhar um membro furado. Boucot orador, mestre de retórica sem fôlego mas
da frase pra mostrar que se é um ótimo aluno inteligente - retoricando cada vez mais depressa, procurando seu terceiro,
enquanto que, enquanto que, enquanto que, a palavra forma seu quinto, seu nono sopro. Boucot orador acabado, se põe
antes alguma coisa parecida com um tubo de ar, um cano de a disparatar, falar sozinho: mudanças de ritmo, argumentos
esfíncter, uma coluna com descargas irregulares, espasmos, sobressaltados, saltos, desabamentos, sobressaltos, tudo isso
comportas, ondas cortadas, escapamento, pressão. junto, amplificando-se continuamente, medo de perder, de
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Onde fica o coração disso tudo? Será que é o coração emagrecer, de ter escapamentos (Boucot furado tapa seus es-
que bombeia, faz tudo isso circular?... O coração de tudo isso capamentos, Boucot tem escapamentos por toda parte, quer
está no fundo do ventre, nos músculos do ventre. São esses tapar tudo com a boca). Seu medo enorme do ânus ("O que
mesmos músculos do ventre que, comprimindo as tripas ou é isso?"), porque é por ali que tudo escapa. Boucot sem ânus,
os pulmões, servem para defecar ou acentuar a palavra. Não Boucot buraco sem fundo, apertando continuamente seu
adianta bancar o inteligente, tem é que botar os ventres, os esfíncter bucal, consoando duramente, articulando, atacando
dentes, as mandíbulas pra trabalhar. com a boca musculosa; Boucot continuamente furado, cheio
de buracos, querendo tudo reter apenas com a boca endurecida
que ataca maldosamente a palavra. Medo louco da mortetem
No Ateliê voador, Boucot = Bercot = Bocado = Boca.
Boucot, por isso não consegue gozar. Com exceção da pala-
Tudo foi logo contaminado por Boca e virou uma doença:
vra má que ele derrama no vazio, nos poucos momentos de
Boca, Bico, Bode, Bucco (buraco italiano). Boucot-bucal, os
tranquilidade que tem, quando todo mundo está dormindo
lábios, os dentes. Palavras maldosamente consoadas, degluti-
(cena do sonâmbulo, final da cena da língua, canções). Bou-
das. Boucot, grande engolidor de texto, grande comedor de
cot não dorme nunca, Boucot não morre nunca. Crueldade
palavras, grande bicho papão. Mastigar, morder as consoantes
de seus movimentos de língua, lábios, dentes, duro trabalho
maldosas. Virtuosidade da boca, virtuosidade dessas duas
dos músculos da boca-boucot, movimentos dos lábios sobre
bocas: Boucot e Madame. Crueldade articulatória, carnagem

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os dentes, sem mexer a mandíbula, sem agitar o corpo. Em fundo, eles também, mas no outro sentido. Inverso. Ânus sem
alguns momentos, Boucot está única e exclusivamente em sua boca, boca sem ânus. Nenhum dos "personagens" do Ateliê
boca, na articulação maldosa, na mordida, deglutição. Boucot voador consegue gozar com esses dois órgãos essenciais ao
sofre muito. Dentição labial. Boucot nunca pensou na morte, mesmo tempo. A i , ai! Empregados ventres, pregos amestrados,
nunca pensou no próprio ânus. São duas coisas das quais tem eles falam do ventre, músculo de baixo. Músculos bucais de
muito medo. Talvez o fundo da coisa esteja justamente aí... Boucot, músculos de baixo dos empregados. Os empregados
ventríloquos frente a Boucot articulador. Suas palavras sobem
Na frente, os Empregados, suicidas, gozam. Não têm de baixo, levadas pelos músculos de baixo. O que fala neles?
nenhum medo da morte, só desejam isso. Eles sabem muito Reminiscências, pedaços falsos de infância, acessos, revolta, fu-
bem o que é o ânus, só sabem isso. E aprendem a falar com tricas, zigue-zague dos corações, levantes de falsas lembranças
ele, começam a falar com ele... Estão sob o efeito do eletro- (mil vidas), golfadas de falsos raciocínios, e principalmente,
choque, recebendo descargas. Algo que lhes vem de fora, que principalmente, principalmente, desmaios, síncopes, quedas
os faz mudar de ritmo, de pensamento. Algo de pulsivo. Que livres, brancos dentro disso tudo, brancos na palavra. Cicloti-
os empurra. Descargas, palavras zebradas, fulguradas de fora mia, suicídio, eletrochoque. Desmaiam o tempo todo, morrem
pra dentro, a eletricidade que recebem os empurra. Eles não o tempo todo. Boucot sempre acordado não morre nunca. Os
desenvolvem nada, não têm nenhum relato, nenhum discurso, empregados suicidas. Que felicidade intensa é cair no vazio!
nada pra dizer; não contam nada, mas estão sempre sendo Gozo (queda livre) dos empregados frente ao agitado Boucot
empurrados pela língua. A mudança de ritmo, de elocução, tomado pelo poder que deve ser sempre conservado (dispêndio
precede o que vai ser dito (ao passo que para Boucot a mu- inútil para preencher buracos).
dança, a ruptura, vem do desgaste retórico, do fim pressentido
como próximo). Estão sempre na frente. Suas palavras estão Madame Boucot. U m lapso do patrão. Escapamento de
na frente de seus corpos ou seus corpos estão na frente de suas Boucot, Boucot escapando, Boucot enlouquecido. Jato de
palavras, como preferirem. Os empregados não têm corpo vapor, sirene. Seus vapores, seu canto de sirene. Aerofagia,
próprio, sopro próprio, palavra própria (enquanto que Bou- música. Anarquista, precavida, sonâmbula, vidente, espectro,
cot é um corpo que está se desgastando, que vai desaparecer passageira, adormecida, super-lúcida, bêbada, passeando. Verte
falando). Os empregados falam de outro lugar, vêm de outro lágrimas sinceras ao mesmo tempo que incita ao crime. Ma-
lugar, de fora. Quanto a Boucot, não há nada que não lhe dame Boucot vaiando, ninando, assobiando, mãe infanticida,
venha de dentro. Boucot fala. Fala dentro dos empregados. sob hipnose, hipnotizada e hipnotizando, possuída, debruçada,
Sai-lhes pela boca, mas não são suas bocas que falam. Porque em lágrimas sangrando a criança. Ela cuida das contas, canta
não têm boca. Que Boucot sempre pega. Têm suas bocas sim, as cantigas, conta histórias em língua estrangeira. Madame
mas em algum lugar, enquanto que Boucot só tem, como algum Boca. Grande voz que vem e vai, com grandes oscilações do
lugar, a sua boca. Os empregados não têm boca. Buracos sem próximo ao longínquo, num movimento hipnótico; voz que

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não se consegue situar bem no espaço, nunca se sabe onde pela simples razão de que quem estava segurando o lápis não
está, nunca se sabe onde está o seu corpo. Boucot manipula, tinha nunca colocado os pés numa fábrica, e como não existe
Madame Boucot passa. Sem idade. Bruxa. Em toda parte. visita guiada para se ver a opressão, basta se dar ao trabalho
Invisível. Vocal, bucal, armada. O frio dos seus dentes, sua de descer um pouco de seu corpo. Coragem! Muito bem. E
dentadura, sua doçura. Bucal, como Boucot, mas com muito depois, o Ateliê voador desmonta um pouco a mecânica social,
mais loucura articulatoria. E uma maneira singular de acabar mas mostra principalmente as suas doenças. Doenças do ator.
as frases de forma dura, cortando as vogais. Ela vocaliza as Desfilemos, desfilemos, mostremos nossos rabos à burra trupe
consoantes, articula as vogais. Perceber bem que na escrita dos sadios! "Vou mostrar como eu morro." Isso dá medo, é
da peça, no momento em que os empregados falavam muito suicídio representar desse jeito, morro de rir! O meu prazer
pouco, as passagens atribuídas a Madame Boucot permitiam (é preciso tentar sempre dizer um pouco de onde ele vem,
a evacuação de um excesso de língua, permitiam a respiração, ah, os artistas!), não é que o ator me devolva as antigas falas
permitiam que se ouvisse qualquer outra coisa que quisesse fa- impostas, más é ver muitas vezes, cada vez mais, o velho álcool
lar. Partitura de Madame Boucot. Ela nunca foi pensada como por muito tempo tampado ter sobre ele efeitos espetaculares;
"personagem", mas como algo que viesse mascarar, fissurar, ver o velho texto todo queimado, todo destruído pela dança
furar, tal qual um branco, uma síncope, uma expiração, um do ator levando todo seu corpo dentro dele.
excesso. Vacilante, sob hipnose, cúmplice, ela passa distraida-
mente os acessórios ao manipulador Boucot. Escapamento. O teatro é um estrume rico. Todos esses encenadores que
Lapso. Madame Boca. Não se sabe o que é. O único corpo montam, esses vasculhadores que ficam colocando as camadas
quase completo ali dentro? Não? U m pedaço do corpo de de cima por cima das camadas do fundo, toda essa geringonça
Boucot? O u que mais? É a vagina, né? Se desse, a gente teria que fica botando banca de teatrinho, feita com a acumulação
três furos, a gente teria dado a volta toda! "Não posso dizer dos depósitos de restos de antigas representações das posturas
nada, madame, esse buraco eu não tenho." O quê? dos homens de antigamente, chega, glosa da glosa, rápido, viva
Pronto, já enumeramos as três embocaduras (boca, ânus, o fim desse teatro que não para de ficar comentando a si mes-
vagina) com as quais a gente fez isso. Porque a distribuição mo e enchendo nossos ouvidos, orelhas e parótidas com glosas
das vozes, a escolha dos "personagens" nessa escrita dramática de glosas, em vez de estender suas bandeiras sobre a imensa
apresentavam-se também (e sobretudo) como uma ecolha de massa de tudo que é dito, que hoje vai se acentuando, que
embocaduras para serem colocadas num canal de ar soprado puxa e repuxa a velha língua imposta, no barulho espantoso
que não para de escapar. das línguas novas que empurram a velha que acaba cedendo
Esse Ateliê voador voa bem baixo, é preciso admitir... porque não aguenta mais!
Porque não era apenas um atalho perspicaz sobre a usina É o ator que vai revolver tudo isso. Porque é sempre no
do mundo, mas também uma descida e ao mesmo tempo mais lesado que a coisa vem. E o que ele leva, o que o leva, é
dentro da usina... Isso tudo não é realmente visto do exterior a língua que a gente vai ver enfim saindo pelo orifício. O ator

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tem o seu orifício como centro, ele sabe disso. Ele ainda não que caracterizam a natureza animal, material dessa palavra
pode dizer isso, porque a palavra hoje, no teatro, só é dada que sai do corpo do homem; elipse quase geral dos pés na
aos encenadores e aos jornalistas e o público é educadamente televisão, maquiagem das peles dos chefes e dos subchefes dos
convidado a deixar seu corpo pendurado no vestiário, e o ator, Estados, tradução (ou seja, aniquilamento) do falado para o
bem amestrado, é gentilmente solicitado a não foder com a escrito, ordem dada ao ator de perder sua língua de origem e
encenação, a não perturbar o desenrolar chique do jantar, a adquirir a língua nacional. Os dominadores passam boa parte
bela troca de sinais de conivência entre o encenador e os jornais de seu tempo zelando para que o homem seja reproduzido
(sinais de cultura reciprocamente enviados). asseadamente. É para abafar o barulho dos corpos, por onde
O encenador chefe quer que o ator se coce como ele, quer sobe aquilo que vai derrubá-los.
que ele imite seu corpo. É isso que dá a "noção do todo", o
"estilo da companhia"; ou seja, todos devem imitar o único O público é apaixonado por Economia. O u seja, a ma-
corpo que não se mostra. Os jornalistas são loucos por isso: neira como o ator se gasta durante todo o espetáculo. O ator
ver em toda parte o retrato falado do encenador que não duplica, triplica, quadriplica a batida sanguínea regular, o
ousa aparecer. Mas o que eu quero é que cada corpo mostre circuito dos líquidos. Ele morre jovem. Música! Música!...
a doença que vai levá-lo. O espectador vem ver o ator se executar. Esse dispêndio
inútil o faz gozar, ativa a sua circulação sanguínea, penetra e
Todo teatro, qualquer teatro age sempre e com muita for- deixa seus velhos circuitos novinhos em folha. U m espetáculo
ça sobre os cérebros, abala ou perpetua o sistema dominante. não é um livro, um quadro, um discurso, mas uma duração,
Eu quero que minhas percepções mudem com o teatro. O fim uma dura prova para os sentidos: isso quer dizer que dura,
do sistema urge. Tem que urgir! Urge que se coloque um fim, cansa, que todo esse barulho é duro para nossos corpos. Têm
que comece a queda do sistema de reprodução vigente. que sair de lá exaustos, tomados por uma gargalhada inextin-
O que isso quer dizer? Quer dizer que os que dominam, guível e maravilhosa.
minha senhora, têm sempre interesse em fazer a matéria de- O ator não está no centro, ele é o único lugar onde tudo
saparecer, em suprimir o corpo, o suporte, o lugar de onde se aquilo acontece e é só. É nele que tudo acontece e é só. Des-
fala, em fazer crer que as palavras caem diretamente do céu de que parem de fazê-lo achar que seu corpo é um telégrafo
para dentro do cérebro, que são pensamentos que se exprimem inteligente que transmite, de cérebro inteligente para cérebro
e não corpos. É para que tudo seja absorvido por dentro, sem policiado, os sinais chiques da circulação das glosas do dia.
dizer nada, sem a língua, sem os dentes. Eles trabalham nisso Desde que ele trabalhe o seu corpo no centro. Que se encontra
noite e dia, com equipes imensas e meios financeiros enormes: em algum lugar. N o cómico. Nos músculos do ventre. Nos
limpeza do corpo na tomada de som do rádio, higiene das acentuadores-rítmicos. A l i de onde a língua que sai é expulsa,
vozes, filtragem» fitas cortadas e cuidadosamente depuradas de no lugar de ejeção, no lugar da expulsão da palavra, ali onde
risos, peidos, soluços, salivações, respirações, todas as escórias ela sacode o corpo todo.
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O teatro não é uma antena cultural para a difusão oral Alguém que escreveu fala com alguém que atua. Mas
das literaturas mas o lugar pra se fazer sempre, materialmente, não é tanto a diferença dos verbos (escrever, atuar) que faz a
com que a palavra morra dos corpos. O ator é o morto que nossa diferença, é a diferença dos tempos. Esses corpos estão
fala, é seu defunto que aparece pra mim! Ai! nós meus olhos, trabalhando ali onde o meu não está mais. É um paralisado que
que dor nos meus! Ele me dá a doença de minha percepção. fala aos que dançam, é um esganiçado que fala a bons cantores.
Socorro, Doctor, todas as línguas estão morrendo! A i ! o É um ex-bailarino que não teria dançado nunca que fala, não
corrrrrpo, Doctor, tem língua saindo fora! o signatário do negócio, o autor do troço. Porque quem diz
autor, diz autor do troço, herdeiro de cadáver, administrador
9 de dezembro. Continuação dos ensaios. Continuação de excremento, e porque esse espetáculo que está sendo mon-
e fim. Continuação e fome. Porque estou ávido para que o tado, essa aventura, não me dá nem a pequena satisfação de.
ator me diga como é ali dentro. Eu o devoro com os olhos, ver minha moeda circular, de ter enfim seu próprio curso, mas
nunca me sacio de suas palavras. Será que é porque ele me sim a dor de não ter mais as pernas de vinte anos para dançar
come nesse palco? Porque ele devora minhas palavras? Ver essa dança e o prazer de ver os atores valsarem.
o corpo batalhar assim com o velho libreto reativa minhas O que é que eu, na minha cadeira de espectador de en-
memórias, vê-lo irrigar o velho textus, inundar o cadáver com
saio, de impotente com rodinhas, posso dizer aos que dançam
seus espermas masculinos e femininos, encarná-lo, como se
e saltam?... Só posso dizer que. Só quero dizer que. O ator
costuma dizer...
(qualquer um) está pelo menos dez anos mais adiantado que
Não escrevi isso com a mão ou a cabeça ou com o pau, tudo, hoje. Que tudo que se escreve. Pelo saber que recebe
mas com todos os buracos do corpo. Não é uma escrita com de seu corpo. Mas é um saber do qual não pode ainda falar
caneta mas uma escrita com buraco. Nada que aponta e tudo com clareza. Porque não deixam. E um imobilizado pode
que se abre. Com os três esfíncteres nomeados acima. Texto
muito bem dizer algo sobre o corpo àqueles que gozam de
ao buraco de ar, chamada de ar, feminino, vazio, oral, aberto,
todos os seus membros, porque se aprende muito com seu
oco, pedindo socorro ao ator. Jato aspirado, buraco de ar
corpo entrevado, de tanto dançar sem se mexer e cantar de
primeiro.
boca fechada.
Criar palavras para o teatro é preparar a pista onde se vai
dançar, colocar obstáculos e cercas sabendo que só os bailari- No Ateliê voador, não se trata de representar mas de
nos, os saltadores, os atores são belos... Ei! Atores, atorezas, seus se gastar. É preciso atores de intensidade, não de intenção.
corpos clamam, chamam pelo desejo! Só o desejo do corpo do Colocar o corpo pra trabalhar. E, em primeiro lugar, mate-
ator leva alguém a escrever para o teatro. Dá pra entender? O rialisticamente, farejar, mastigar, respirar o texto. É partindo
que eu esperava, o que me movia? Que o ator viesse preencher das letras, tropeçando nas consoantes, soprando nas vogais,
meu texto furado, dançar dentro dele. triturando e titubeando tudo isso, que se encontra a respiração
e o ritmo. Parece até que é se gastando violentamente dentro
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do texto, perdendo seu fôlego, que se encontra seu ritmo e parecido. Mas que, mas que... mas que não era a dança de
sua respiração. Leitura profunda, cada vez mais baixa, mais um corpo particular; que não é o autor, o corpo do autor que
próxima do fundo. Matar, extenuar seu corpo primeiro para é preciso reencontrar (porque no final das contas não era ele
encontrar o outro - outro corpo, outra respiração, outra eco- que fazia isso, da mesma forma que não é realmente o ator que
nomia - que é o que deve atuar. atua), mas que se trata antes, de todos os lados, de manifestar,
O texto torna-se um alimento para o ator, um corpo. de exigir a existência de alguma coisa que quer dançar e que
Buscar a musculatura desse velho cadáver impresso, seus mo- não é o corpo humano que nos faiem pensar que temos.
vimentos possíveis, por onde ele quer se mexer; vê-lo pouco a Será preciso que um dia um ator entregue seu corpo à
pouco se reanimar quando se sopra dentro dele, refazer o ato medicina, que seja aberto, que se saiba enfim o que acontece
de fazer o texto, reescrevê-lo com seu corpo, ver com o que é ali dentro, quando se está atuando. Que se saiba como o outro
que foi escrito, com músculos, diferentes respirações, mudan- corpo é feito. Porque o autor joga com um outro corpo que
ças de elocução; ver que não é um texto mas um corpo que o seu. Com um corpo que funciona no outro sentido. U m
se mexe, respira, tem tesão, sua, sai, gasta-se. De novo! E esta corpo novo entra no jogo, na economia do jogo. U m corpo
a verdadeira leitura, a do corpo, do ator. Ninguém sabe mais novo? O u uma outra economia do mesmo? Não se sabe ainda.
do que ele sobre o texto e ele não tem que receber ordens de Seria preciso abrir. Quando ele está atuando.
ninguém, porque não se dá ordens a um corpo. Ele é o único
O corpo que está no jogo não é um corpo que exagera
a saber realmente que isso é para os dentes, isso para os pés
(seus gestos, suas mímicas), o ator não é um "comediante",
e isso com a barriga; que são diferentes contrações do corpo
não é um agitado. O jogo não é uma agitação a mais dos mús-
de dentro, diferentes posturas internas, nas quais se sopra de
culos sob a pele, uma gesticulação de superfície, uma tríplice
forma diferente, que fizeram isso que se vê no papel. Mais
atividade das partes visíveis e expressivas do corpo (amplificar
do que os passos que ficam, as marcas no chão, achatadas. É
as caretas, revirar os olhos, falar mais alto e com mais ritmo),
preciso reencontrar o que fez isso, esse texto morto, aquilo que
jogar não é emitir mais sinais; jogar é ter, sob o invólucro da
o movia. Por que parte empurrante do corpo foi escrito. Cui-
pele, o pâncreas, o baço, a vagina, o fígado, o rim e as tripas,
dado com a letra morta do texto sobre o papel: não suportar
todos os circuitos, todos os tubos, as carnes pulsantes sob a
isso! Nada de tomar tudo isso por moeda corrente e sentido
pele, todo o corpo anatómico, todo o corpo sem nome, todo o
a ser transmitido! Mas ver como nasceu, de onde saía, como
corpo escondido, todo o corpo sangrando, invisível, irrigado,
morria, como era levado.
exigindo, mexendo ali debaixo, reanimando-se, falando.
Fazer com que a palavra volte a morrer do corpo. Descer Mas querem fazer crer ao ator que seu corpo se constitui
às posturas. Encontrar as posturas musculares e respiratórias de quinze m i l centímetros quadrados de pele oferecendo-se
nas quais se escrevia. Porque os personagens são posturas de
gentilmente como suporte aos sinais do espetáculo, seiscentos
órgãos e as cenas sessões de ritmo. Esporro. E o texto não é
e quatro possíveis posições expressivas na arte da encenação,
nada além de marcas no chão dos pés de um bailarino desa-
um telégrafo para desfiar na ordem gestos e entonações ne-
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cessarias para a inteligência do discurso, um elemento, u m ritmo, encontra um ritmo de tanto, decuplica-se pelo ritmo
lado do todo, um pedaço do conjunto, um instrumento da - o ritmo vem da pressão, da repressão - e sai, acaba saindo,
orquestra em concerto. Enquanto que o ator não é nem um ex-criado, ejetado, jaculado, material.
instrumento nem um intérprete, mas o único lugar onde a Isso é a palavra, a fala, que o ator lança ou retém, e que
coisa acontece e pronto.
vem, chicoteando o rosto do público, atingir e transformar
O ator não é um intérprete porque seu corpo não é um realmente os corpos. É o principal líquido excluído do corpo
instrumento. Porque seu corpo não é o instrumento da sua e é a boca que é o lugar de sua omissão. E o que há de mais
cabeça. Porque não é o seu suporte. Os que dizem ao ator para físico no teatro, é o que há de mais material no corpo. Essa
interpretar com o instrumento de seu corpo, os que o tratam fala é a matéria da matéria e não se pode apreender nada de
como um cérebro obediente e hábil na tradução dos pensa- mais material do que esse líquido invisível e inestocável. É o
mentos dos outros em sinais corporais, os que pensam que
ator que a fabrica, no ritmo respirado, quando ela passa pelo
se pode traduzir alguma coisa de um corpo para outro e que
seu corpo todo, toma todos os circuitos ao contrário, para sair,
uma cabeça pode comandar alguma coisa a um corpo, estão
no final, pelo buraco da cabeça.
do lado da má compreensão do corpo, do lado da repressão
Mas está claro para todo ator que não é daí que ela vem
do corpo, quer dizer, da repressão pura e simples.
e que ela não sai facilmente pela boca, não sai naturalmente
por ali, mas sim depois de ter percorrido todo o labirinto e de
Se o ator não se maquiasse, seria possível ver no seu
tanto ter tentado em vão todos os buracos possíveis.
corpo marcas, listras, manchas percorrendo a epiderme.
Todo mundo vê mas ninguém ousa dizer que, quando o ator O ator não executa mas se executa, não interpreta mas se
representa, sua pele fica totalmente transparente e se vê tudo penetra, não raciocina mas faz todo o seu corpo ressoar. Não
o que tem dentro. O corpo do ator é o seu corpo-de-dentro constrói seu personagem mas decompõe seu corpo civil ordena-
(não seu corpo chique de marionete com etiqueta ou de bo- do, suicida-se. Não se trata de composição de personagem mas
neco de engonço), seu corpo profundo, interior sem nome, de decomposição de pessoa, decomposição do homem ali sobre o
sua máquina de ritmo, ali onde tudo circula torrencialmente, palco. O teatro só é interessante quando se vê o corpo normal de
os líquidos (quimo, linfa, urina, lágrimas, ar, sangue), tudo quem (tenso, estacionado, defendido) se desfazer e o outro corpo
isso que, pelos canais, pelos tubos, as passagens de esfíncteres, sair brincalhão malvado querendo brincar de quê. É a verdadeira
desaba nas encostas, volta a subir apressado, transborda, força carne do ator que deve aparecer. A gente vê o corpo dos atores,
as bocas, tudo isso que circula no corpo fechado, tudo isso das atorezas, e é isso que é bonito; quando a verdadeira carne
que enlouquece, que quer sair, fluxo e refluxo, que, de tanto mortal sexuada e linguada é mostrada a esse público de castigados
se precipitar nos circuitos contrários, de tantas correntes, de que pensam em língua francesa eterna e castrada.
tanto ser levado e expulso, de tanto percorrer o corpo todo, de O ator que representa de verdade, que representa a fundo,
uma porta fechada à boca, de tanto, acaba encontrando u m que se representa do fundo - e só isso vale a pena no teatro - ,
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de seus gestos e para onde vai seu fálus. Enquanto que o que
carrega no seu rosto o seu rosto desfeito (como nos três mo-
está lá em cima justamente não tem mais fálus, perdeu-o,^^
mentos: gozar, defecar, morrer), sua máscara mortuária, branca,
esburacada. Os Boucot ficam o tempo todo lhe pedindo que
desfeita, vazia - parte vazia do corpo e não mais face expressiva
preste contas, perguntando qual o sentido e quais as razões
da cabeça pousada sobre o corpo gordinho - ele mostra seu
de todos os sons que ele faz, e ao lhe pedir sentido, eles lhe
rosto, branco, carregando seu morto, desfigurado. O ator que
estão dando sentido, o sentido da descida que estão indicando.
representa sabe que isso realmente modifica seu corpo, que isso
Ele volta a descer porque pedem que ele estique sua flecha e
o mata a cada vez. E a história do teatro, se quisermos escrevê-la
do ponto de vista do ator, não seria a história de uma arte, de designe alguma coisa.
um espetáculo, mas a história de um longo, surdo, teimoso,
O quê, o quê, o quê? Por que se é ator, hein? Só é ator-
incessante, inacabado protesto contra o corpo humano.
quem não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no
sexo imposto. Cada corpo de ator é uma ameaça, a ser levada
É o corpo não visível, é o corpo não nomeado que re-
a sério, para a ordem ditada ao corpo, para o estado sexuado; e
presenta, é o corpo do interior, é o corpo com órgãos. É o
se um dia a gente está no teatro, é porque tem algo que a gente
corpo feminino. Todos os grandes atores são mulheres. Pela
não suporta. Existe em cada ator algo como um corpo novo
consciência aguda que têm de seu corpo de dentro. Porque
que quer falar. Uma outra economia do corpo que avança,
sabem que seu sexo está dentro. Os atores são corpos for-
que empurra a antiga, imposta.
temente vaginados, vaginam com força, representam com 9

o útero; com a vagina, não com o pau. Representam com


todos os buracos, com todo o interior do corpo esburacado,
não com seu troço teso. Não falam com a ponta dos lábios,
toda sua fala lhes sai pelo buraco do corpo. Todos os atores
sabem disso. E querem impedi-los disso. De serem mulheres
e de vaginarem. Querem que indiquem, mostrem uma coisa
depois da outra, fálus com sentido, membros másculos tesos
que designam, flechas bem adestradas que apontam o sentido,
indicadores e executores. No sentido, no bom sentido, para
que tudo se mantenha dentro da ordem normal. É isso, mais
uma vez, o que acontece na última cena do Ateliê voador (um
pendurado no mastro e os Boucot em baixo apontando pra
ele). Os Boucot pedem contas sobre o sentido ao ator no alto
do mastro, com todos os seus buracos abertos e vaginando, e
pedem que ele indique aquilo que está designando, o sentido
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de seus gestos e para onde vai seu fálus. Enquanto que o que
carrega no seu rosto o seu rosto desfeito (como nos três mo-
está lá em cima justamente não tem mais fálus, p e r d e u - o , / ^
mentos: gozar, defecar, morrer), sua máscara mortuária, branca,
esburacada. Os Boucot ficam o tempo todo lhe pedindo que
desfeita, vazia - parte vazia do corpo e não mais face expressiva
preste contas, perguntando qual o sentido e quais as razões
da cabeça pousada sobre o corpo gordinho - ele mostra seu
de todos os sons que ele faz, e ao lhe pedir sentido, eles lhe
rosto, branco, carregando seu morto, desfigurado. O ator que
estão dando sentido, o sentido da descida que estão indicando.
representa sabe que isso realmente modifica seu corpo, que isso
Ele volta a descer porque pedem que ele estique sua flecha e
o mata a cada vez. E a história do teatro, se quisermos escrevê-la
designe alguma coisa.
do ponto de vista do ator, não seria a história de uma arte, de
um espetáculo, mas a história de um longo, surdo, teimoso,
O quê, o quê, o quê? Por que se é ator, hein? Só é ator-
incessante, inacabado protesto contra o corpo humano.
quem não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no
sexo imposto. Cada corpo de ator é uma ameaça, a ser levada
É o corpo não visível, é o corpo não nomeado que re-
a sério, para a ordem ditada ao corpo, para o estado sexuado; e
presenta, é o corpo do interior, é o corpo com órgãos. E o
se um dia a gente está no teatro, é porque tem algo que a gente
corpo feminino. Todos os grandes atores são mulheres. Pela
não suporta. Existe em cada ator algo como um corpo novo
consciência aguda que têm de seu corpo de dentro. Porque
que quer falar. Uma outra economia do corpo que avança,
sabem que seu sexo está dentro. Os atores são corpos for-
que empurra a antiga, imposta.
temente vaginados, vaginam com força, representam com 9

o útero; com a vagina, não com o pau. Representam com


todos os buracos, com todo o interior do corpo esburacado,
não com seu troço teso. Não falam com a ponta dos lábios,
toda sua fala lhes sai pelo buraco do corpo. Todos os atores
sabem disso. E querem impedi-los disso. De serem mulheres
e de vaginarem. Querem que indiquem, mostrem uma coisa
depois da outra, fálus com sentido, membros másculos tesos
que designam, flechas bem adestradas que apontam o sentido,
indicadores e executores. No sentido, no bom sentido, para
que tudo se mantenha dentro da ordem normal. E isso, mais
uma vez, o que acontece na última cena do Ateliê voador (um
pendurado no mastro e os Boucot em baixo apontando pra
ele). Os Boucot pedem contas sobre o sentido ao ator no alto
do mastro, com todos os seus buracos abertos e vaginando, e
pedem que ele indique aquilo que está designando, o sentido
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