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O Tarô e a dramaturgia: estratégias para a criação de roteiros cinematográficos.

Tese de doutorado defendida em Artes Cênicas USP


2003 Maria Thereza de O Azevedo Orientadora: Renata Pallottini Linha: Literatura dramática

A DRAMATURGIA E O CINEMA

Maria Thereza Azevedo1

O cinema dramático-narrativo, desde o seu surgimento, teve como referência


para o desenvolvimento da forma ficcional, as teorias do drama advindas do teatro e as
teorias da narrativa advindas da literatura. Ao contar histórias, o cinema desvelou na sua
natureza imagético-sonora, certa tendência para a conjunção e abrangência dos três
gêneros formulados por Aristóteles: a épica, a lírica e a dramática, que assumem
formas mais complexas no processo de construção fílmica. Mas a grande parte dos
argumentos e roteiros para cinema tem como referência para a sua estrutura, a forma
dramática.
A forma dramática pura, advinda de Aristóteles, com "regras absolutas e
universais", que Anatol Rosenfeld se refere como "a que se afigura aos olhos do mundo
como modelo insuperável", certamente não se mantém, mas os princípios do drama
assimilados e adotados pelo cinema dramático-narrativo ainda norteiam a ficção
cinematográfica, como é possível observar em filmes contemporâneos.
No cinema denominado clássico, a maneira de contar histórias tem como matriz
o método desenvolvido pelo cineasta americano David Wark Griffith, cuja decupagem
dos planos2 e a montagem são norteadas pelo enredo da história a ser contada. Noel
Burch chamou este modo criado por Griffith, de MRI 3 - Modo de Representação
Institucional. Isso, porque durante muitos anos o que foi denominado "linguagem
cinematográfica", segundo Burch, era o Modo de Representação Institucional. O
método adotado por este cinema que segundo Ismail Xavier "desenvolveu um estilo
tendente a controlar tudo, de acordo com a concepção do objeto cinematográfico como
produto de fábrica"4, é o mesmo que apresenta o drama como o que deve evoluir por si
mesmo, como se, o apresentado no filme fosse a única possibilidade. Os mecanismos
para a organização deste MRI foram criados para tornar o drama mais eficaz, ou seja,
fechar a história numa única ideia que se desenvolve até a uma única solução final.

1
Doutora em Artes Cênicas pela USP. Pesquisadora Associada do PPG Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT. Atua na
linha Poéticas Contemporâneas. Lider do Grupo de Pesquisa Artes Híbridas e do Coletivo à deriva.
2 Ismail Xavier em Discurso Cinematográfico aborda a decupagem clássica.
3 Ver BURCH, Noel El tragaluz del Infinito Madrid, Espanha, Ediciones Catedra, 1995
4 XAVIER, Ismail O discurso cinematográfico op. cit p. 31

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O Tarô e a dramaturgia: estratégias para a criação de roteiros cinematográficos. Tese de doutorado defendida em Artes Cênicas USP
2003 Maria Thereza de O Azevedo Orientadora: Renata Pallottini Linha: Literatura dramática

O drama e o cinema

No drama, a ação é movida pela vontade, pelos desejos. Na ânsia de realizá-los,


o homem esbarra em obstáculos, entra em confronto com eles e isso provoca colisões e
conflitos. As forças da vontade, dos desejos ou das paixões em conflito com as forças
resistentes – leis, normas, costumes, regras ou tradições – produz uma ação progressiva,
impulsionada pelo conflito. "O drama nasceu da necessidade de ver os atos e as
situações da vida humana representados por personagens" 5, diz Hegel.
Assim, o drama pode ser a imitação do movimento da luta pela vida e a forma
dramática seria a ordenação deste movimento. Peter Szondi ao observar o drama
enquanto conceito histórico, tal como se desenvolveu na Inglaterra Elizabetana e,
sobretudo na França do século XVII, aponta a forma dramática como "um enunciado da
existência humana "6.
Os personagens, no drama, movem-se no mundo com intenções que levam à
tomada de decisões. Decisões, que, por sua vez, estão calcadas em objetivos, metas. Isso
faz com que o drama concentre nossa atenção "sobre um único fim e sua realização."7
É a decisão de agir que aciona o drama. Entretanto, Hebbel afirma que a
essência do drama está no problema.8 Quando o problema emerge, surgem as oposições
que defrontadas com as vontades impulsionam um movimento encadeado por estágios
que promovem uma evolução ascendente. As etapas do desenvolvimento de uma obra
dramática, conforme Hegel, resultam do próprio conceito de movimento. 9
A ação que realiza o movimento é compreendida por Paul Ricouer não apenas
como uma conduta dos protagonistas produzindo mudanças visíveis da situação,
reviravoltas de sorte, o que se poderia chamar de o destino externo das pessoas. Para
Ricouer:

5 HEGEL, G.W.F. O sistema das Artes, Curso de estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 556
6 SZONDI, Peter Teoria do drama moderno, São Paulo, Cosac &Naif , 2001 p. 26
7 HEGEL , op. cit. p. 556
8 HEBBEL apud BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1991

9 HEGEL op cit p. 566

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É ainda ação, num sentido amplo, a transformação moral de um


personagem, seu crescimento e sua educação, sua iniciação à
complexidade da vida moral e afetiva. Pertencem finalmente à
ação, num sentido ainda mais sutil, mudanças puramente
interiores que afetam o próprio curso temporal das sensações,
das emoções, eventualmente no nível menos concertado menos
consciente que a introspecção possa atingir. 10

A ação dramática é um conjunto de acontecimentos de um processo de


transformações. Esses acontecimentos constituem o elemento dinâmico que permite
passar de uma situação à outra, numa ligação lógico temporal de diferentes situações. 11
Para Rosenfeld: "(...) o que prevalece na ação dramática é a necessidade de criar um
mecanismo que, uma vez posto em movimento, dispensa qualquer interferência de um
mediador, explicando-se a partir de si mesmo". 12
A ação se produz cada vez que um personagem toma a iniciativa de uma
mudança e altera o equilíbrio das forças dramáticas. Para identificar a ação, Howard
Lawson sugere:

Que aporte algo novo; que seja produto de uma vontade


consciente; que forme uma conexão, um sistema lógico e
coerente com outras ações; que seja progressiva (que cresça em
intensidade e complexidade); que chegue a um clímax, máxima
expressão de força do conflito13.

O choque das oposições, geratrizes da ação dramática, formam um sistema de


relações de força na qual estão imbricadas as paixões, vontades, designações, decisões,
reações, intenções e tendências. Mas Souriau adverte: "se a tendência não se choca com
algum obstáculo, não há drama". 14 Para Eugene Valle o obstáculo é uma dificuldade de
natureza circunstancial e a complicação é de natureza acidental. 15

10 RICOEUR, Paul A narrativa e o tempo tomo II Campinas, SP, Papirus, p. 19


11 Anotações de Aula de Dramaturgia na Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, com o professor Juan Tovar a partir de Howard
Lawson, em 1987
12 ROSENFELD, Anatol . Teatro Épico São Paulo: Perspectiva; 1997 p. 33
13 Anotações de Aula de Dramaturgia na Escuela de Cine y Tv de San Antonio de Los Baños com o professor Juan Tovar, tendo como

referência e Howard Lawson 1987


14 SOURIAU , Etienne. A duzentas mil situações dramáticas. São Paulo: Atica, 1993. P. 60
15 VALLE, Eugene Tecnicas para guion de cine y TV Barcelona, Espanha: Gedisa ,1986 p. 103

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E Hegel sustenta: “(...) para que este conteúdo essencial dos sentimentos e das
atividades humanas adquira um caráter dramático, é necessário que as ações realizadas
por um indivíduo enfrentem obstáculos provenientes de outros indivíduos que
perseguem fins opostos(...)”16.
O relato dramático é constituído pela maneira com que os personagens
conseguem vencer o obstáculo para levar adiante seu objetivo. Agora, se as forças que
resistem são obstáculos intransponíveis, então o drama é uma tragédia, pois a tragédia
trata das contradições insuperáveis, das situações-limite.
Observando alguns filmes brasileiros contemporâneos percebe-se uma tendência
aos dramas com obstáculos intransponíveis. Filmes como Céu de Estrelas, Lavoura
Arcaica, Abril despedaçado, Cidade de Deus, Ação entre amigos, trabalham com o
drama no tênue limite do trágico.
Em Céu de Estrelas, por exemplo, Vitor, um metalúrgico desempregado,
inconformado com o rompimento de uma relação de dez anos, invade a casa da ex-
noiva, Dalva, a fim de impedi-la de viajar para Miami. Quer seqüestrá-la. A chegada da
mãe, incomodada com o ex-genro que não suporta, aumenta a tensão. No desenrolar dos
fatos, ele entra em desespero e acaba matando a mãe de Dalva. Os vizinhos escutam os
tiros e chamam a polícia que cerca a casa. A televisão, através de uma repórter
sensacionalista e uma câmera voyeurista, faz a cobertura da ação dos policiais tentando
tomar a casa. Encurralado pela polícia e pela televisão que espetaculariza o fato, Vitor
cai numa armadilha, num beco sem saída. As circunstâncias de uma ação dramática,
para Hegel, são tais que "ao fim individual se antepõem obstáculos, postos por outros
indivíduos que perseguem fins diferentes e não menos justificados, pelo que surgem
conflitos e complicações de toda a espécie". 17
Se o trágico é viver uma situação limite, estes filmes, com fortes traços de
tragédia, podem estar refletindo uma situação do país, a falta de perspectiva para as
coisas mais básicas da vida, como por exemplo, emprego. Talvez o trágico
contemporâneo não seja mais a luta contra o destino no sentido de fado, pensada pelos
gregos, mas a luta contra a falta do essencial para a sobrevivência.

16 HEGEL op cit. p. 559


17 idem,idem, p. 564

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Em Ação entre Amigos, Miguel vê desabrochar a memória da dor e da


frustração: a dor pela morte na prisão da namorada grávida e a frustração pela
malsucedida guerrilha urbana nos anos de 1960. Mais de trinta anos depois, essa dor e
frustração vêm à tona com toda a força, quando Miguel percebe que seu torturador e
assassino da mulher amada, julgado morto num acidente de avião, está vivo. A imagem
do algoz desperta em Miguel o desejo de vingança. E é este desejo que vai provocar
todo o desenvolvimento da ação dramática. "A ação dramática é a que provem da
execução de uma vontade humana, com intenção e buscando cumprir essa intenção" 18.
Todo o movimento do filme é impulsionado pela vontade de Miguel de
encontrar o inimigo que estivera impregnado em sua alma durante tantos anos. Ao
observar a subjetividade e a vontade do personagem como elementos dinamizadores do
drama, Hegel assim se manifesta: "(...) o que acontece parece resultar não de
circunstâncias exteriores, mas da vontade e do caráter das personagens e só recebe uma
significação dramática pela sua relação com fins e paixões subjetivas." 19.
No drama, os personagens são prenhes de vontade, pois é a vontade que os faz
agir. Como afirma Brunetière: "São as vontades do personagem que conduzem à
ação".20 Em alguns casos, quando a vontade de um esbarra na vontade do outro, surge
um problema, buscar uma solução através da luta, eis o drama. Mas se duas vontades
opostas são fortes e pertinentes, o embate será mais vigoroso.
Para Santo Agostinho, todas as ações da alma são vontade, pois ela "está em
todos os atos dos homens; aliás todos os atos nada mais são do que vontade." 21 A
vontade muitas vezes se confunde com o desejo. Parece que a diferença apontada pelos
filósofos é que a vontade é consciente e o desejo não. Marilena Chauí, por exemplo,
observa que o desejo pode ser encaminhado pela vontade. Para ela, “é tarefa da vontade
dirigir o desejo para os fins dispostos pela razão." Assim, "o desejo opera segundo fins,
a razão não podendo agir diretamente sobre ele determina-lhe e impõe finalidades
racionais." Fayga Ostrower percebe o desejo de outra forma: "só pelo mero fato da sua
presença em necessidade interior o desejo mobiliza as aspirações das pessoas e os

18 DRYDEN apud PALLOTINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Àtica, 1988 p. 28
19 HEGEL op. cit. p. 557
20 BRUNETIERE apud Pallottini op.cit.
21 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999 p. 1009

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eventuais caminhos da realização das suas potencialidades" 22.

José Américo Motta Pessanha vê em Platão o confronto entre duas formas de


desejo: "de um lado o desejo enquanto aspiração, enquanto anelo, a remeter a alma,
ascencionalmente em direção da sua condição originária; de outro lado o desejo
enquanto apetite, que crava a alma no corpo, prendendo-a horizontalmente à imediatez
do factual, do empírico."23 Tanto o desejo enquanto aspiração quanto o desejo enquanto
apetite podem promover o drama, pois ambos produzem conflitos e embates.

Tendência, impulso, tensão, inclinação, aspiração, ardor,


expansão e agitações, o "rexis" hormê e apettitus, indissociáveis
das imagens de combate, conflitos, privações, carência e posse,
prendem o desejo num laço que jamais será desatado: o do
movimento. 24

Os filmes Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho) e Abril despedaçado


(Walter Salles) abordam o embate entre o desejo de liberdade e os valores morais
impregnados pela tradição como verdades absolutas sustentadas pela figura paterna. Em
ambos os casos, o pai é o pilar dessa verdade e o filho o contraponto, na medida em que
vislumbra outra compreensão da lógica do mundo.
Em Lavoura Arcaica, embora seja um filme lírico-épico, os elementos
dramáticos estão presentes em forma de tragédia. A história é evocada do ponto de vista
de André, o que faz com que a narrativa tenha movimentos sinuosos e dessimétricos, de
acordo com as lembranças do personagem.
André (Selton Melo) vive com sua família de migrantes sírio libaneses numa
fazenda no estado de São Paulo nos anos de 1940. O pai, enérgico e imbatível nas
questões relacionadas à moral, um guardião das regras e costumes da tradição, tem uma
meta que persegue com fervor, manter a família unida. Mas André, além da vontade de
desvelar outros espaços, voar, apaixona-se por uma das irmãs, e isso promove a sua
fuga de casa e conseqüentemente desmonta-se a família. A mãe, sentindo a falta de
André incumbe o irmão mais velho, Pedro, de trazê-lo de volta para casa. Na festa do
retorno, a irmã dança para ele com sensualidade, revelando em público o seu desejo.
Quando o pai percebe a relação entre os dois, entra em estado de ira, e possuído pelo
22 OSTROWER , Fayga A fonte do desejo em Goya IN NOVAES, Adauto (org) O desejo Rio de janeiro: Cia das Letras, 1990 p.
481
23 CHAUI, Marilena Laços do Desejo IN NOVAES, Adauto (org) O desejo Rio de janeiro: Cia das Letras, 1990 p. 19

24 CHAUI , op. cit p... 28

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desespero acaba por cometer um ato irracional.

De um lado, a força do pai com sua moral, de outro, a força de André com sua
vontade de liberdade. André, com sua postura rebelde e seu discurso libertário,
contradiz todo o discurso conservador do pai. A vontade de liberdade do filho contraria
a vontade de manter a ordem do pai. É uma palavra contra a outra palavra. O desenlace
é trágico. E todo o trágico, para Goethe, se baseia numa contradição inconciliável. 25
Se em Lavoura Arcaica e Abril despedaçado o que rege a resistência das forças
contrárias, são os valores da tradição de uma moral arcaica, em Cidade de Deus é
exatamente a ausência de valores desta natureza que permite uma trama de batalha entre
moradores de um mesmo espaço geográfico.

Em Abril despedaçado ferve entre famílias uma guerra pelo domínio de terras,
para cada morte de um lado uma de outro: "É preciso honrar o sangue". Em Cidade de
Deus, uma guerra entre grupos, casos de vingança de sangue entre traficantes que lutam
pelo domínio do tráfico de drogas. Para cada morte de um lado, uma de outro. Em meio
a isso tudo, está a vontade do personagem Buscapé de sair desta tradição de violência e
buscar outro caminho.
Outra questão que estrutura o drama é a relação de causa e efeito. No drama, o
tempo é demarcado pela causalidade, os fatos são frutos de uma ação anterior, que
promoverá um fato posterior, criando assim uma linha evolutiva. Na definição de drama
proposta por Aristóteles, segundo Rosenfeld, o encadeamento causal é rigoroso, "cada
cena sendo a causa da próxima e esta sendo efeito da anterior" 26. Além disso, as ações
no drama sempre ocorrem no presente.

Sendo o drama sempre primário, sua época é sempre o presente. O que não
indica que é estático, senão somente que há um tipo particular de decurso
temporal no drama: o presente passa e se torna passado, mas enquanto tal já não
está mais presente em cena . Ele passa produzindo uma mudança, nascendo um
novo presente de sua antítese. O decurso temporal do drama é uma seqüência de
presentes absolutos 27.

25 GOETHE apud LESKY, Albin A tragédia Grega São Paulo: Perspectiva 1996 p. 31
26 ROSENFELD, Anatol, Teatro Épico op. cit p. 30
27 SZONDI, Peter op. cit p. 32

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Embora a ordem temporal e causal tenha distinção, para Benedito Nunes, elas
dificilmente se dissociam. Ele observa que a ordem objetiva do tempo se apoia no
princípio da causalidade, isto é, "na conexão entre causa e efeito, como forma de
sucessão regular dos eventos naturais" 28. Assim o drama existe dentro da lógica da
causalidade.

Assim, dizer que um evento antecede outro é afirmar que, sem o primeiro
(causa), o segundo (efeito) não existiria a ordem temporal acompanhando a
conexão que os une e que não pode ser invertida (o efeito não pode vir antes da
causa) a menos que a natureza desandasse." 29

No cinema, às vezes a ordem que organiza as imagens não é a mesma que


organiza o drama, a ficção pode negar a ordem temporal sucessiva, como no caso do
filme Lavoura Arcaica, que manteve a mesma estrutura épico-lírica proposta pelo
romance de Raduan Nassar.

(...) um texto de porte lírico como Lavoura Arcaica de Raduan Nassar tão
musical no andamento pulsante do seu discurso, que une em sua história o mito
do filho pródigo aos arquétipos primordiais do incesto e da sanção paterna,
redunde numa suspensão do movimento temporal progressivo em proveito de
uma temporalidade cíclica – mais compatível com a sombria fatalidade do
destino que a invocação exaltada do personagem narrador à força trágica, versátil
e lúdica do tempo justiceiro e reparador, prenuncia." 30

Em Abril despedaçado, Tonho, (Rodrigo Santoro) o filho dos Breves, segundo a


tradição das famílias inimigas, deve vingar a morte do irmão mais velho, morto pelos
Siqueira. A situação inicial é apresentada com a espera do momento em que o sangue
na camisa do irmão morto torne-se amarelo. Esta é a ocasião da vingança em que um do
outro lado deve morrer. A questão é que nem Tonho e nem seu irmão mais novo
concordam com essa guerra. Mas impelido pelo pai, Tonho mata um dos Siqueira e ao
fazer isso assina sua sentença de morte. A ação se desenrola a partir desta morte. O
confronto entre a obrigação da vingança imposta pelo pai e a vontade de interromper
esta sina é que move a ação dramática. Quando se vê diante da morte, Tonho passa
então a indagar sobre o valor desta tradição.
28 NUNES, Benedito op. cit p. 19
29 Idem, Idem, Idem
30 idem, idem p. 69

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Se a natureza do drama é a progressão, a mola propulsora desta progressão é o


conflito, gerado pelas forças antagônicas. O choque destas forças provoca um
desequilíbrio, mas para a compreensão do desequilíbrio num filme dramático, é preciso
antes a apresentação do que é o equilíbrio. Assim, uma situação inicial é sempre
apontada como apresentação do motivo, ou seja, o ponto de partida. "O ponto de
partida será fornecido pela situação que, embora não tendo desencadeado o conflito,
constitua a condição do seu desenvolvimento ulterior"31.
O ponto de partida em Céu de Estrelas é a preparação da viagem que Dalva
conquistara através de um concurso de penteados. Ela quer libertar-se da mãe e do ex
noivo, construir sua vida, ter autonomia. A mera suposição da partida de Dalva provoca
em Vitor, sem emprego e sem a noiva, um desassossego. O seu desejo é que ela não vá
e a sua intenção é impedi-la de viajar. Assim, ele tem um objetivo claro, quer sequestrá-
la em sua própria casa, interromper o curso da viagem e convencê-la a voltar para ele.
As circunstâncias o impedem.
(...) a manifestação exterior, em vez de se realizar como um simples
acontecimento encerra em si intenções e fins individuais; a ação e a vontade
cumprida, e, portanto uma vontade de que já conhecemos tanto a origem, o ponto
de partida e o resultado final" 32

Em Ação entre amigos o ponto de partida é o fato de Miguel ver uma foto do seu
torturador num jornal. Isso aciona sua ira e dor, como se a foto abrisse as comportas das
emoções adormecidas pelo tempo. A este respeito, Hegel observa que no drama
ocorrem: "Intenções e fins, com os quais o indivíduo se confunde como parte integrante
de si mesmo e que, por conseguinte, também devem aderir antecipadamente a todas as
conseqüências exteriores da sua realização. "33
Em Lavoura Arcaica o ponto de partida é a paixão de André pela irmã, isso
provoca a sua fuga de casa. Longe do clã, ele passa a refletir sobre o sistema familiar no
qual ele está inserido e a questionar os valores do pai. O seu afastamento de casa
provoca angústia nas pessoas, a sua ausência traz uma sensação de perda irreparável
que faz a mãe incumbir ao filho mais velho, Pedro, de trazê-lo de volta para casa. O seu
retorno não traz apaziguamento, mas provoca um desfecho irreconciliável.

31 HEGEL, op cit p. 566


32 HEGEL op cit p. 558
33 idem, idem, idem

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Na observação de Hegel: "A ação oferece assim complicações e lutas que, por
sua vez, contra a vontade e previsão do indivíduo, conduzem a um desenlace no qual se
manifesta a natureza intima dos fins dos caracteres e dos conflitos humanos em geral." 34
No desenlace dramático está a resolução do conflito, mas, numa abordagem
dialética, o verdadeiro desenlace, conforme Hegel "consiste na supressão das oposições,
como oposições, na conciliação das forças que dirigiam as ações e procuravam negar-se
mutuamente mediante o conflito". 35
No drama clássico não há cabos soltos, tudo está conectado e a questão abordada
resolve-se de alguma maneira. Já o drama épico se nega a dar à ação, a aparência de um
esquema definitivo e resolvido.
O filme Cidade de Deus é um épico em sua forma, embora seu conteúdo seja de
cunho dramático, um drama épico. No cinema, a figura do narrador é evidenciada pelos
realizadores quando organizam o filme através da montagem. Neste filme, além disso,
há um personagem narrador, o Buscapé, que vai conduzindo a história e às vezes a
interrompe no meio de uma cena para dizer: "Este é o fulano, mas agora não é hora de
falar dele", criando com isso uma autonomia entre as partes. O épico trata do que já
aconteceu, pode ser contado na ordem que o narrador escolher, ou seja, não é necessário
um avanço ininterrupto. Na definição de Rosenfeld: "Como especificamente épico,
destacam-se sempre a variedade e amplitude do mundo narrado; a relativa autonomia
das partes, e a grande mobilidade dos eventos em espaço e tempo." 36

O filme inicia com uma cena que, do ponto de vista dramático, seria a
preparação da solução final: uma perseguição dos traficantes a uma galinha fujona que
será morta para o almoço leva o grupo ao encontro da polícia, que está ali justamente
para capturá-los. Buscapé, morador do lugar, ao subir o morro, é solicitado a pegar a
galinha, mas neste "pega pega " ele acaba se posicionando exatamente entre os
traficantes armados e a polícia, ou seja, no centro da guerra. Neste momento, a cena é
suspensa pelo personagem narrador, para contar o motivo daquele acontecimento e
quem são os personagens desta história que ele vai narrar. Ele vai então aos anos de
1960 para falar do início da povoação de Cidade de Deus e só retorna a esta cena no
final do filme para concluir a história. Goethe destaca que a obra épica retrocede e
avança, sendo épicos todos os motivos retardantes37.

34 idm,idem,idem
35 HEGEL op cit p. 609
36 ROSENFELD, Anatol , Teatro Moderno São Paulo: Editora Perspectiva, 1997 p. 134
37 GOTHE apud ROSENFELD em Teatro Épico p. 32

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A autonomia das partes constitui caráter essencial do poema épico, isto é, não se
exige dele o encadeamento rigoroso do drama puro, o poema épico descreve-nos
apenas a existência e o atuar tranqüilo das coisas segundo as suas naturezas, seu
fim repousa desde logo em cada ponto do seu movimento; por isso não corremos
impacientes para um alvo, mas demoramo-nos em cada passo.38

Para Shiller, o dramaturgo vive sob a categoria da causalidade, o autor épico sob
o da substancialidade; no drama, cada momento deve ser causa da seguinte, na obra
épica cada momento tem seus direitos próprios 39. "A ação dramática move-se diante de
mim, mas sou eu que me movimento em torno da ação épica que parece estar em
repouso. O drama move-se em plena atualidade, na épica tudo já aconteceu e o narrador
escolhe os momentos para narrar."40
Tanto o drama moderno como o cinema moderno enveredaram pela forma épica.
Cineastas de alguns movimentos estéticos do cinema como a nouvelle vague francesa, o
cinema novo brasileiro, inspiraram-se em Brecht, o dramaturgo que trabalhou o épico
enquanto didática, criando o efeito-V, método para uma ação pedagógica, efeito de
alienação, desfamiliarização ou estranhamento partindo do princípio, que o
conhecimento ocorre quando você estranha. E isso só é possível com uma estrutura
épica.

O percurso de herói, drama de jornada.

Além da estrutura dramática como apoio para a construção de roteiros, os


roteiristas utilizam as estruturas míticas de Jornadas de herói, identificadas pelo
mitólogo Joseph Campbell na mitologia universal, pelo folclorista russo Wladimir
Propp em contos populares russos, pela analista junguiana Marie Louise von Franz em
contos de fadas. Esta estrutura de percurso de herói inspirou centenas de filmes. Entre
eles estão Matrix, Cidade das Sombras, Guerra nas estrelas. Ao enfrentar obstáculos,
passar por provações, lidar com conflitos, lutar e chegar a uma solução no final, os
heróis estão percorrendo um caminho dramático. Essa estrutura de aventura está contida
também nos contos de fada estudados por Marie Louise Von Franz, que além de
interpretar os personagens dos contos enquanto arquétipos, ainda identificou neles um

38 SHILLER apud ROSENFELD op. cit


39 ROSENFELD, Anatol Teatro Moderno op. cit p. 135
40 idem, idem, idem

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processo de individuação41.

Já Wladimir Propp, ao observar nos anos 1920 cem contos russos, populares, de
magia, detectou 31 funções com estágios pelos quais o herói necessita trilhar para
chegar à vitória. É possível observar,por exemplo, no filme O feitiço de Áquila todas as
31 funções42 apontadas por Propp. Nos contos que ele analisou há sempre o
deslocamento, que é a retirada do mundo comum para o mundo especial, a travessia e
o retorno, muito semelhantes à jornada mítica formulada por Joseph Campbell
categorizada em três grandes estágios. O primeiro é a separação ou partida, quando o
herói deixa o mundo comum para aventurar-se pelo desconhecido; o segundo é o das
provas, da iniciação que são as provações, os testes pelos quais o herói necessita passar
para alcançar o que procura; o terceiro é o retorno ou reintegração à sociedade, a volta
do herói para o mundo comum, mas com outra qualidade, transformado, o que ele
denomina Senhor de dois Mundos.
O cinema norte-americano explorou de maneira ostensiva e esquemática esta
estrutura na maioria dos seus filmes. Do ponto de vista ideológico, a idéia do herói
americano que luta e vence o inimigo que é sempre o país com o qual ele está em pé de
guerra no momento. Cristopher Vogler chegou a listar 142 filmes americanos com
estrutura de Jornada de herói, e até montou um esquema mais sintético baseado na
jornada mítica de Campbell para facilitar aos roteiristas. 43

A estrutura mítica apresentada por Joseph Campbell é baseada em estudos da


mitologia, lendas e mitos contidos na cultura de vários povos. Entre eles: os hindus, os
chineses, os gregos, os esquimós do Alaska, os índios australianos, os siberianos, os
fenícios, os egípcios, os maias, os galeses, os escandinavos e os africanos de vários
países. Ele foi buscar nas religiões, nas culturas medievais, em fontes pré-hebraicas, as
referências para comparar os mitos das culturas estudadas aos arquétipos de cada
estágio da jornada. Como por exemplo, a história de Jonas na Barriga da baleia que dá
título a uma das etapas do primeiro estágio; o mito de Dafne que foge de Apolo na etapa
41 Ver as obras Interpretação dos contos de Fadas e Individuação nos contos de fadas.
42 1- Situação inicial; 2- Distanciamento; 3- Proibição; 4- Infração (quando alguém infringe a lei); 5- Investigação, 6- Delação (o
traidor ) 7- Armadilha; 8- Conivência 9 Punição ou Culpa 10- Mediação 11- Consenso 12- Partida do herói 13- Submissão do herói
às provas pelo doador 14- Reação do herói 15 Fornecimento dos meios mágicos 16- Transferência do herói 17- Luta entre herói e
antagonista 18- Herói assinalado 19- Vitória sobre o antagonista 20- Remoção do castigo ou da culpa inicial 21- Retorno do herói
22- Sua perseguição 23- O herói se salva 24- O herói chega incógnito em casa 25- A pretensão do falso herói 26- O herói é imposto
a um dever difícil 27- Execução do dever 28- Reconhecimento do herói 29- Transfiguração do herói 30- Punição do antagonista 31-
Núpcias do herói.
43 VOGLER, Cristopher A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Editora Ampersand, 1997.

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recusa ao chamado.

Em Campbell, os heróis míticos lidam com o macrocosmos e os heróis de contos


de fadas com o microcosmos. Tanto na esfera do micro como do macro há um processo
dramático em andamento, quando o herói decide se aventurar num mundo desconhecido
e encontra toda a sorte de obstáculos.
No filme brasileiro Central do Brasil de Walter Salles Jr., por exemplo, a
personagem Dora (Fernanda Montenegro) percorre uma jornada de iniciação em busca
de si mesma. Ela recebe o chamado à aventura, reluta ao chamado, surge um mentor que
a ajuda a prosseguir a aventura, ela atravessa o primeiro limiar, passa por testes,
encontra aliados e inimigos, viaja por uma estrada de provas, encontra com a deusa,
entra em sintonia com o pai, é tomada por compaixão na apoteose, recebe a benção
última, passa pelo limiar do retorno e volta como senhora de dois mundos.

Exemplo de Jornada Mítica em Central do Brasil

A PARTIDA -

Mundo comum
O mundo comum é o universo cotidiano da personagem, contraponto do mundo
especial por onde ela trilhará o seu desenvolvimento.
Em Central do Brasil, Dora (Fernanda Montenegro), escreve cartas para
analfabetos no meio da estação de trem Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A estação
ferroviária é um lugar de passagem, de seres que, ali, são apenas transeuntes "mal se
olham, se falam ou se escutam." 44 Há um grande fluxo de gente, um vai e vem de uma
multidão anônima, o universo da indiferença, muitos rostos desconhecidos, nenhum
encontro.
Galende observa que nestes lugares "se começa com uma diluição dos sistemas
de reconhecimento do outro e se acaba com uma perda de reconhecimento de nosso
próprio eu. "45 Dora está inserida neste ambiente hostil, escreve as cartas para as pessoas
que solicitam, cobra pelo trabalho, mas não as envia, afinal ela não se incomoda nem
um pouco com essa gente, multidão que nem sabe escrever ou dizer o que sente. O que

44 FUKS Mario As vissicitudes da subjetivação In www.percurso.com.br


45 GALENDE, E De un horizonte incierto, Buenos Aires, Paidós, 1997 apud Mario Fuks

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interessa a ela é faturar uns trocados com o "bico", até porque ela não acredita que uma
carta vá mudar muita coisa.

Eis uma apropriação parasitária e destrutiva dos frutos subjetivantes de


revivescências interiores, de processos de simbolização do ausente, de
inauguração ou cancelamento de compromissos vinculares, de formulação de
desejos amorosos ou hostis, de relatos de experiências, de retomada de projetos,
de recuperação e re-ligação de histórias.46

Dora é amargurada, intolerante, descrente e egoísta. No mundo regido pela


indiferença, ela s acha que deve julgar os sentimentos das pessoas que a procuram e
decidir sobre seus destinos.

Chamado à aventura.

Campbell observa que "pequeno ou grande, e pouco importando o estágio ou


grau da vida, o chamado sempre descerra as cortinas de um mistério de
transfiguração"47.

O chamado à aventura é composto por sinais que indicam que o destino


convocou o herói para trilhar um outro caminho. Para Campbell, "Um mero acaso
revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação de forças que não são
plenamente compreendidas "48.
Uma das cartas que Dora escreve é para uma nordestina, Ana, que dita a
mensagem para Jesus, seu marido distante, dizendo que o filho Josué, de nove anos,
quer conhecê-lo.
A maioria das cartas que Dora escreve diariamente vai para o lixo, apenas umas
poucas são escolhidas para o envio. A carta de Ana vai para a gaveta por insistência de
Irene, sua amiga e vizinha, comovida pela história do menino que quer conhecer o pai.
No outro dia, Ana volta com Josué pedindo para trocar a carta, porque acha que foi
muito grossa com Jesus.
Ao sair da ferroviária, Ana é atropelada e levada para o hospital. Morre. Josué
fica vagando pela estação. Campbell afirma que neste estágio: " algum fenômeno
passageiro atrai seu olhar errante e leva o herói para longe...". Ana esquecera um lenço
na mesa de Dora. Noutro dia de manhã, Dora encontra o menino dormindo no chão e
fica sabendo através de Seu Pedrão, um segurança da estação, que a mãe do menino

46 FUKS, Mario op.cit


47 CAMPBELL op. cit p. 61
48 CAMPBELL op. cit p. 60

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morrera. O chamado pode acontecer num detalhe.

Ana esquecera um lenço na mesa de Dora e morre deixando o filho sozinho na


estação. Dora tem um lenço da mãe e uma carta para o pai. Assim, parece estar nas
mãos dela, o destino desta criança.

A recusa ao chamado

Este estágio pode ser entendido também como relutância ao chamado, quando o
herói ainda não se convenceu de que é hora de mudar, partir, dar outro rumo à vida.
Dora reluta em entender que cabe a ela encaminhar a vida daquele menino. Ela não
atende ao chamado e ainda assim comete um erro, vendendo o menino para "adoção".
Segundo Campbell, o erro pode equivaler ao ato inicial de um destino. "A psique
reserva muitos segredos, que só serão revelados quando necessário. E assim, às vezes, o
castigo que se segue a uma recusa obstinada ao chamado mostra ser a ocasião da
providencial revelação de algum princípio insuspeitado de liberação" 49.

O auxílio

Neste momento da jornada "o horizonte familiar da vida foi ultrapassado, os


velhos conceitos, ideais e padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o
50
momento da passagem por um limiar" Surge então um guia, mentor ou protetor. Ele
vai orientar o herói sobre o rumo a tomar.

Com o dinheiro da venda do menino, Dora compra a desejada televisão. Irene


desconfia e quer saber onde ela arrumou dinheiro. Dora acaba contando que vendeu
Josué para adoção. Irene assustada pergunta se ela não lê nos jornais sobre venda de
órgãos de crianças para o exterior. Irene neste momento é um guia, um mentor, ela
adverte Dora sobre o ato cometido. Dora percebe o que fez e quer reparar o erro.

A passagem do primeiro limiar

Nas estruturas míticas este é o momento em que o herói enfrenta os primeiros


obstáculos, que são os guardiões do primeiro limiar. Alguém está guardando a entrada

49 Idem, Idem p. 70
50 Idem Idem p. 61

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de algum lugar, e não vai permitir a passagem.

Dora precisa agir rápido, senão Josué será levado para o exterior e ela não
conseguirá mais vê-lo. Yolanda e seu sócio, compradores de criança, são os guardiões
do lugar onde está Josué. Dora enfrenta a passagem pelo primeiro limiar, corre riscos,
ultrapassa limites. Em meio à relutância de Josué e às ameaças do "sócio" de Yolanda
de matá-la, ela consegue retirar Josué de dentro do apartamento.
Campbell adverte que a "(...) aventura é, sempre e em todos os lugares, uma
passagem pelo véu que separa o conhecido do desconhecido; as forças que vigiam no
limiar são perigosas e lidar com elas envolve riscos; e, no entanto, todos os que tenham
a competência e coragem, verão o perigo desaparecer."51

O ventre da baleia.

Atravessado o primeiro limiar, o herói é jogado ao desconhecido. Este é o


momento de concentração. Dora está dentro de um ônibus numa estrada desconhecida,
não conhece o caminho que leva ao sertão nordestino, onde vive o pai de Josué. Na
estrada, distante do tumulto, a possibilidade da reflexão. "A idéia de que a passagem do
limiar mágico é uma passagem para uma esfera do renascimento é simbolizado na
imagem mundial do útero, ou ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar ou
aplacar a força do limiar é jogado no desconhecido"52.

A INICIAÇÃO - O caminho de provas

(tarefas difíceis, testes, aliados e inimigos)

A provação é um aprofundamento do problema e das questões que ainda estão


em jogo, neste estágio ocorrem tarefas difíceis, o herói passa por testes, encontra aliados
e inimigos.
Para Campbell, a partida original para a terra das provas representou tão
somente o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas de
iniciação e dos momentos de iluminação. "Cumpre agora matar dragões e ultrapassar

51 Idem, Idem p. 85
52 Idem Idem p. 91

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surpreendentes barreiras repetidas vezes"53

Dora precisa vencer a intolerância, o egoísmo, a amargura e a descrença, faces


de uma mesma moeda. Josué não é um garoto fácil, ele fala o que pensa e sente, e ainda
por cima é um "cabeça dura". Ele não perde a chance de, a cada ação, "jogar na cara"
de Dora que ela não vale nada. A princípio, quando Josué pergunta por que ela está ali
"não tinha outra coisa prá fazer não? " ao tentar responder ela percebe que não sabe
direito o porque desta viagem. E, além disso, ainda precisam enfrentar a falta de
dinheiro, de comida e a perda do ônibus. O empreendimento de Dora é a busca de si
mesma, do conhecimento das suas possibilidades enquanto pessoa. "A tarefa do
conhecimento do mundo e a do auto-conhecimento é de total responsabilidade do
homem, do homem que deve buscar em si e por si mesmo, o princípio de suas próprias
certezas." 54

Encontro com a deusa

Partindo da compreensão de que o herói é aquele que aprende, o encontro com a


Deusa é o encontro com o amor. Campbell observa que "à medida em que o herói
progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por
uma série de transfigurações".55
Dora, na medida em que avança no seu processo interno, vai sendo tomada pelo
afeto, pelo amor. E seu lado maternal, mesmo desajeitado e grosseiro começa a se
manifestar. Ela passa a cuidar do menino, preocupa-se com este outro, surge a
generosidade, a gentileza. Josué até se sente à vontade para solicitar: "Dora estou com
frio". A deusa é o guia para o coração gentil, "ela atrai o herói e pede que rompa os
grilhões que o prendem". 56
Assim, Dora vai aos poucos saindo de uma vida destituída de sentido e vai
ressignificando seus conteúdos.

A tentação

53 CAMPBELL op. cit p. 110


54 Idem, Idem
55 Idem, idem,
56 Idem, Idem p. 117

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Na tentação, ocorrem as questões de natureza sensual que podem desviar o herói


do seu trajeto. Na mitologia aparece nas sereias que tentaram Ulisses. No percurso de
Dora, em Central do Brasil, César, o caminhoneiro por quem Dora se sente atraída,
pode por em risco a jornada. Dora, no encontro com César, que os conduz numa parte
do trajeto, passa um batom emprestado de uma moça que estava no banheiro do
restaurante de estrada. Neste gesto, já esquecido, a possibilidade de um encontro
amoroso.

A sintonia com o pai

Campbell escreve que nos rituais de iniciação, em algumas tribos primitivas,


ocorre o pesadelo arquetípico do pai ogro. Na medida em que o trajeto avança o pai em
Dora vai sendo processado, o pai ogro que bebe e abandona, também é um pai que
possibilita que ela dirija por um momento um trem enorme. Assim, Dora começa a se
desvencilhar desta imagem do pai ogro que a endurecia.

Apoteose

Um ritual de entrega ocorre quando Dora tira do bolso o lenço da mãe de Josué
e passa a ele para que coloque num cruzeiro no meio de várias fitas, velas e objetos que
os romeiros depositam ali. A cantoria dos romeiros entra em sintonia com a cerimônia
dos dois. Uma tarefa está sendo cumprida, o lenço que a mãe de Josué esquecera com
Dora, na mesinha da estação, tomou um destino. É como se Dora estivesse
proporcionando a Josué o enterro que ela não tivera. O lenço é um corpo entre os muitos
objetos naquela cruz do sertão. Se Dora é capaz de acreditar neste gesto, isso significa
que ela já está embuída de compaixão, palavra chave deste estágio.

A benção última

No espaço da sala dos Milagres ocorre a benção final. Dora, em meio às rezas e
velas que iluminam a multidão fervorosa, entra numa espécie de torpor. Tudo gira e ela
cai desmaiada. Campbell a referir-se a benção última fala de uma espécie de explosão,
que na realidade parece ocorrer nesta cena em que Dora desmaia: "mas o milagre dos
milagres residiu no fato de que, embora tudo explodisse, tudo foi, não obstante
renovado pela própria explosão, revificado e tornado glorioso com o fulgor do
verdadeiro ser " 57

57 CAMPBELL, op.cit p. 179

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O RETORNO

A fuga

Dora e Josué continuam procurando por Jesus. Na busca, acabam encontrando os


dois filhos dele, Isaías e Moisés. O pai foi ao encontro de Ana. Eles ficam na casa dos
rapazes. Dora dorme no quarto do pai e Josué com os irmãos. De manhã cedo, Dora se
levanta, coloca a carta de Ana junto a carta que Jesus havia escrito para Ana e sai com o
vestido que Josué lhe dera de presente, sem se despedir de Josué. A missão está
cumprida, é preciso voltar. Ela foge para apanhar o ônibus de volta.

O herói é resgatado de sua aventura com auxílio externo.

Irene, que esteve como guia, ajuda a resgatá-la de sua aventura. Irene é a pessoa
que ficou do outro lado acompanhando o trajeto e a aguarda. O depósito de dinheiro
para o retorno, feito por Irene, é o auxílio externo que Dora necessita para retornar.

Senhor de dois mundos

A possibilidade de ser livre e dona do seu destino ocorre quando a intolerância, a


amargura, a descrença e a indiferença abrem espaço para o amor. Dora reconcilia-se
com a sua história.
A jornada mítica desenvolvida por Joseph Campbell tem referências nos
processos de iniciação que ocorrem em tribos "primitivas" e em algumas religiões. Essa
estrutura pode aparecer nas histórias contadas pelos filmes. O filme Matrix, por
exemplo, segue à risca todas as etapas da jornada mítica. Existem muitas formas de
trabalhar com o percurso de herói. A questão é o esquematismo em que alguns filmes se
enredam. Uma coisa é a compreensão do processo e das mudanças ocorridas em várias
dimensões, quando o processo é disparado, outra é o percurso mecânico e estereotipado.

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