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Educação Patrimonial Expandida

Narrativas Arqueológicas e Gênero:


entre Silenciamentos e Estereótipos
Nesse texto apresento algumas reflexões acerca das representações de gênero na
Arqueologia, evidenciando que essa disciplina, ao construir narrativas nacionalistas,
sexistas e racistas, tem contribuído com a opressão e a subordinação das mulheres e de
outras minorias. Um primeiro eixo do meu argumento sintetiza os caminhos percorridos
pelas pesquisas que dialogam com a categoria gênero e com as perspectivas feministas
e, um segundo eixo, analisa as representações de gênero em narrativas textuais, imagens
e museus. Por fim, defende-se que uma prática arqueológica animada por feminismos
decoloniais, pode desestabilizar visões sobre o passado, produzindo contranarrativas
sobre o gênero.

Palavras-chave: Arqueologia – Gênero - Representação

Autoria
Camila Azevedo de Moraes Wichers

Doutora em Arqueologia e em Museologia. Docente do Curso de Museologia e da Pós-


Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás (UFG). Pesquisadora do Laboratório de Arqueologia do Museu
Antropológico da UFG e do Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória
e Expressões Museais.

camora21@yahoo.com.br

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Introdução
A configuração da Arqueologia como disciplina científica se deu no século XIX, no
bojo da construção das identidades nacionais europeias, fortemente imbricada com
colonialismos e imperialismos. Em uma perspectiva histórica, os vestígios materiais,
denominados como arqueológicos pela disciplina, compõem um processo bem mais
longo, estando associados ao colecionismo, aos gabinetes de curiosidades e à própria
gênese dos museus.

A despeito dessa trajetória marcadamente nacionalista, elitista, sexista e racista, a


Arqueologia tem sido, há algumas décadas, interpelada a transformar suas premissas e
práticas, o que vem resultando em uma maior reflexividade do campo.
Nesse sentido, compreendo a Arqueologia como forma de ler o mundo, como prática
orientada para objetos, estruturas e paisagens produzidos, descartados e continuamente
modificados por pessoas em toda a sua diversidade, envolvendo processos econômicos,
socioculturais e simbólicos. Um olhar baseado na materialidade que conforma o registro
arqueológico, sem amarras cronológicas, e como prática que deve considerar a
diversidade epistemológica do mundo.

Cristina Bruno (2005) tem utilizado o conceito de Memórias Exiladas para compreender
a inserção dos vestígios arqueológicos na história social brasileira. Ao examinar o que a
autora denomina como “estratigrafia do abandono”, observei que quando considerados
na construção de uma identidade nacional, os vestígios arqueológicos são associados à
discursos que promovem a ‘antiguidade do Homem nas Américas’ – com a ênfase em
um masculino neutro, à existência de ‘sociedades complexas’ na Amazônia ou à
‘criação artística’ das sociedades ameríndias (MORAES WICHERS, 2010). A busca
por evidências que comprovem a existência de sociedades mais próximas a um ideal
moderno de civilização – masculino, branco e europeu - é marcadamente androcêntrica.
Dessa feita, se as narrativas arqueológicas ocupam um espaço marginal em nossa
história social, as representações das mulheres e das minorias têm sido ainda mais
exiladas e silenciadas.

Para Stuart Hall (2016), as representações são atos criativos que atuam na construção
social da realidade, cujos significados não podem ser fixados. As representações estão
relacionadas ao que as pessoas pensam sobre o mundo e sobre o que ‘são’ nesse mundo,
guardando uma dimensão política. Assim, “não ter voz ou não se ver representado pode
significar nada menos que opressão existencial” (ITUASSU, 2016, p.13). Quando
pesquisas arqueológicas e instituições museológicas constroem narrativas impregnadas
de silenciamentos e de estereótipos das mulheres e outras minorias, acabam sujeitando-
as a uma violência epistêmica.

Como apontam os estudos decoloniais, a invenção do conceito de raça, como


instrumento de dominação, insere uma diferença radical entre os povos, afetando
também as relações sexuais (SEGATO, 2012), onde as mulheres, sobretudo, as não-
brancas (indígenas e negras), são inseridas em espaços marcados por uma violência
física, simbólica e epistêmica.

A relação entre o denominado patrimônio arqueológico e a construção da memória


social coloca-se como caminho a ser desvelado. As representações são produtoras de
memórias e esquecimentos, marcadas de fluidez e de dinamismo. Ou seja, tratam-se de
processos em curso, os quais podem e devem ser interpelados por uma crítica feminista
da ciência (WYLIE, 2014). Para Myrian Sepúlveda dos Santos (2003/2012), as
representações coletivas podem ser responsáveis por processos de inclusão ou exclusão
social, assim, a memória também é responsável pela imposição de coerções, exclusões e
toda a sorte de controle social. Algumas autoras passaram a fazer uma distinção entre a
memória que é transmitida oralmente entre gerações, denominada memória
comunicativa, e a memória que é transmitida ao longo de séculos através de símbolos
ou pontos fixos, a memória cultural. Essa última tem como especificidade o fazer
lembrar a partir de pontos fixos, que representem um gatilho para nossas memórias,
como paisagens, objetos, livros, emblemas e monumentos (SANTOS, 2013). Ora, as
narrativas construídas a partir dos vestígios arqueológicos são compreendidas aqui
como parte da memória cultural e, desse ponto de vista, participam ativamente nos
processos de normatização de corpos e mentes.

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Margarita Díaz-Andreu (2005) denuncia que a produção arqueológica é marcada por


uma postura androcêntrica, presente na linguagem, nas imagens, no ensino da
Arqueologia e nos museus. Coloca-se como especialmente relevante uma análise crítica
da prática arqueológica como parte de um amplo espectro de agenciamentos e
normatizações, tendo como objetivo a coesão social e a uniformidade, no presente e no
passado (VOSS, 2000).

No presente texto apresento, primeiramente, os caminhos percorridos por pesquisas que


dialogam com a categoria gênero e com as perspectivas feministas, passando à análise
de algumas narrativas textuais, imagéticas e museológicas associadas à Arqueologia.

Arqueologia, Feminismos e Gênero


Olhares críticos acerca da invisibilidade ou subalternidade das mulheres no discurso
arqueológico são recentes, contando com pouco mais de três décadas

. O texto de Margareth Conkey e Janet Spector (1984), “Arqueologia e o Estudo do


Gênero”, é considerado como um divisor de águas na produção sobre o tema. Nesse
texto, as autoras traçaram uma crítica feminista da Arqueologia apontando que a
disciplina emite mensagens sobre gênero, ainda que se coloque em uma posição de
neutralidade, perpetuando assimetrias.

Faz-se necessário retroceder um pouco para traçarmos alguns pontos da trajetória dos
feminismos, os quais resultaram em críticas às interpretações sexistas da disciplina
arqueológica.

Ainda que conte com antecedentes que chegam a cinco séculos, a chamada primeira
onda do movimento feminista pode ser situada no século XVIII, caracterizada por
demandas de igualdade, emancipação e luta pelo direito ao voto. Essa onda feminista
não teve repercussão direta na produção arqueológica, mas algumas de suas premissas e,
inclusive, posturas colonialistas fazem eco na produção arqueológica contemporânea.
Segundo Azadeh Kian (2010), obras como a de Mary Wollstonecraft, “Reivindicação
dos direitos da mulher”

revelam olhares colonialistas que não deixam de marcar também as mentalidades no


presente. Devemos lembrar que a Arqueologia esteve estreitamente vinculada ao
colonialismo e que o fato dos museus europeus estarem repletos de objetos
arqueológicos do Egito e das sociedades mesopotâmicas, por exemplo, não é neutro. No
Brasil, o século XIX, foi marcado por pesquisas arqueológicas associadas diretamente
ao controle dos territórios e dos povos indígenas, a esses eram dadas duas alternativas: o
controle do Estado Imperial ou o extermínio.

Em 1935, Margareth Mead publica o livro “Sexo e temperamento em três sociedades


primitivas” (MEAD 1935/ 1979), um estudo comparativo entre sociedades a partir da
seguinte questão: seriam as diferenças entre o homem e a mulher meramente
biológicas? Depois de ter analisado três sociedades culturalmente diferentes, a resposta
foi negativa. Décadas mais tarde, a partir de 1970, os estudos antropológicos devotados
à temática do gênero em diversas sociedades se expandiram ao redor do mundo. No
Brasil, o afastamento da prática arqueológica do campo da Antropologia, apontado por
Cristiana Barreto (1999/2000), pode ser compreendido como uma das causas do tardio
desenvolvimento de pesquisas arqueológicas que envolvem explicitamente as questões
de gênero.

Em 1949, Simone de Beauvoir publica “O segundo sexo” (BEAUVOIR, 1949/ 2016). A


partir de então, a assertiva de que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” passaria a
inspirar diversos estudos e ativismos, afirmando que a mulher é uma construção social e
que a feminilidade é uma pretensão masculina para moldar as mulheres aos seus
anseios.

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Esses trabalhos ainda que não utilizassem o termo gênero, partiam da ideia de um “sexo
social” que influenciaria o feminismo de "segunda onda" — aquela que se inicia no
final da década de 1960. Além das preocupações sociais e políticas, o feminismo irá se
voltar para as construções propriamente teóricas. No âmbito do debate que a partir de
então se trava, entre estudiosas e militantes de um lado e seus críticos de outro, será
engendrado e problematizado o conceito de gênero. Destaca-se o texto de Gayle Rubin
“Tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo” (RUBIN, 1975/ 1993),
texto seminal onde a autora propõe que a divisão entre os sexos e a subordinação das
mulheres são resultantes do sistema de sexo/ gênero.

Destarte, conforme aponta Adriana Piscitelli, o conceito de gênero foi

“elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo


procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens
e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades
entre uns e outros são percebidas como resultado dessas diferenças” (PISCITELLI,
2009, p.119).

O texto de Margareth Conkey e Janet Spector (1984), já mencionado, utiliza o conceito


de gênero, de forma inédita na Arqueologia e a partir de uma abordagem feminista. Essa
observação é aqui colocada pois a Arqueologia Feminista e a Arqueologia de Gênero
divergem entre si, ainda que a segunda tenha se originado da primeira. Para María Cruz
Berrocal, a Arqueologia de Gênero se volta para o estudo dos indivíduos – homens e
mulheres – como sujeitos ativos, enfatizando suas relações, distanciando-se do
feminismo, visto como demasiadamente politizado. Por sua vez, “el feminismo es una
práctica comprometida con la definición y los límites de lo que es la ciencia, su
objetividad, y las implicaciones de adoptar un punto de partida teórico explícito”
(BERROCAL, 2009, pp.25-26).

Críticas a uma visão homogeneizadora do feminino e do masculino marcariam a terceira


onda do feminismo, surgida nas décadas de 1980 e 1990, com o questionamento da
categoria mulher e pela desconstrução do sujeito feminino. Podemos ressaltar o
feminismo negro – nascido na segunda onda, mas expandido e fortalecido nas últimas
décadas
, o feminismo lesbiano, o feminismo pós-colonial e os diálogos com a Teoria Queer,
onde desponta a obra de Judith Butler (1990/ 2003).

Algumas autoras compreendem que os feminismos desconstrutivistas seriam nas


realidade “pós-feminismos”, dando lugar a uma quarta onda. Na Arqueologia Brasileira
essas abordagens ainda são pontuais, sobretudo, porque esbarram no desafio de uma
prática feminista que nega a integridade ontológica do sujeito mulher, ao mesmo tempo
em que percorre um caminho de luta contra a invisibilidade e subordinação das
mulheres nas interpretações e práticas da Arqueologia.

Narrativas textuais, imagéticas e museológicas


As pesquisas arqueológicas constroem narrativas acerca dos sítios e vestígios
arqueológicos estudados, pautando-se em argumentos de autoridade científica. Tenho
denominado esses discursos como narrativas arqueológicas (MORAES WICHERS,
2010). Essas narrativas se expressam de forma textual, mas também englobam imagens
e, por vezes, são socializadas em espaços museológicos. No âmbito do presente artigo,
com o intuito de dialogar com as categorias fornecidas por Margarita Díaz-Andreu
(2005), estou denominando as narrativas arqueológicas como textuais, salientando o
fato de que essas narrativas são predominantemente compostas por textos, ainda que
ancoradas nas materialidades dos sítios e objetos, e lançando mão de imagens como
meio de expressão. Reservarei o termo narrativas imagéticas para imagens construídas
por não especialistas, sobretudo, em mídias impressas e audiovisuais. Por sua vez, as
narrativas museológicas estão associadas aos discursos expositivos presentes em
museus e instituições culturais. Os dois últimos pontos de análise serão apresentados
adiante.

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Para exemplificar a invisibilidade das mulheres nas narrativas textuais produzidas pela
Arqueologia, selecionei a questão da produção dos artefatos cerâmicos nas sociedades
indígenas associadas ao território que chamamos de Brasil

. Ainda que a produção cerâmica seja predominantemente feminina nessas sociedades,


como aponta Tânia Andrade Lima (1987), é recorrente o emprego do masculino neutro
quando se fala das pessoas que produziram essas cerâmicas, promovendo a
invisibilidade feminina. Recentemente, a própria Tânia Andrade Lima em conjunto com
André Prous, publicou três volumes de uma obra intitulada “Os ceramistas
Tupiguarani” (PROUS & LIMA, 2010), reforçando o uso do masculino neutro, ainda
que a mesma autora se destaque por uma produção voltada à temática do gênero
(LIMA, 2003).

No Brasil, posturas críticas com relação à invisibilidade das mulheres na produção


cerâmica foram apresentadas por algumas/uns autoras/es. Beatriz Landa (1995)
tangenciou essa questão em sua dissertação de mestrado “A mulher Guarani: atividades
e cultura material”, buscando compreender as atividades realizadas pelas mulheres
indígenas na sociedade Guarani pré-colonial, abordando o gênero feminino e a mulher
como sujeito de estudo. João Azevedo Fernandes apresentou, em 1997, a dissertação
“De Cunhã a Mameluca: em busca da mulher Tupinambá”, destacando a
impossibilidade de compreender a sociedade Tupinambá (e, consequentemente a
sociedade pós contato) sem uma análise aprofundada das relações de gênero. O autor
traz uma crítica à visão marcadamente androcêntrica da sociedade Tupinambá, em que
esta é vista unicamente como uma função de esferas privilegiadamente masculinas,
como a guerra. Para o autor,

“as técnicas cerâmicas e os diferentes tipos de decoração aplicados a estas devem ser
vistos mais como um discurso ‘técnico’ das mulheres – muitas vezes alijadas dos
discursos sociais dominantes – dirigido ao seu próprio grupo ou como uma negociação
doméstica de poder entre homens e mulheres do que indícios de grupos locais distintos”
(FERNANDES, 1997, p.42)

Denise Schaan abordou, em alguns trabalhos (SCHAAN, 2001, 2003) as relações de


gênero na produção da cerâmica Marajoara, utilizando a categoria de cacicado para a
compressão dessa sociedade, assim como o conceito de “elites emergentes”. Seu
trabalho questiona que a produção cerâmica tenha se tornado masculina na sociedade
Marajoara e busca evidenciar, por meio da análise distribucional de tangas cerâmicas, os
papéis desempenhados por mulheres na produção dos artefatos de barro, considerando
também os acompanhamentos funerários de enterramentos.

Passemos às narrativas imagéticas a partir de alguns exemplos. Na Figura 01, é


apresentada a história em quadrinhos “Uma Pré-História de Amor”, onde a violência de
gênero é destacada. As narrativas imagéticas têm primado por uma representação da
mulher como frágil e romântica, estereótipo que se perpetua em diversas representações
da mulher na 'pré-história':

“As mulheres são mostradas como criaturas frágeis, dóceis, fiéis e românticas, que
passam a maior parte das suas vidas dentro do lar (sejam cavernas, palácios ou casas).
Geralmente, as mulheres são caracterizadas pelas obrigações domésticas, criação dos
filhos e satisfação dos seus maridos. Enquanto isso, os homens - fortes, ativos e
pragmáticos - aparecem ocupados com a subsistência do grupo, desenvolvendo diversas
atividades fora do lar” (ZARANKIN; SALERNO, 2010, p.119)

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O vídeo “In the Rough”

insere-se nesse conjunto imagético. Nele o homem sai para a caçar depois de uma
discussão com a mulher. Aqui é a mulher que aparece como violenta, desequilibrada e
fora de controle. Enquanto a mulher fica na caverna, o homem sai para caçar, sem obter
êxito. Ao voltar para a caverna, encontra um animal pré-histórico ameaçando a mulher,
livrando-se do mesmo ao desferir um golpe em sua cabeça com uma pedra. Essa pedra
ao se romper revela um diamante em seu interior. Ao presentear a mulher com esse
diamante, o homem ganha sua aprovação. Nessa história o estereótipo da mulher
interessada nos bens a ser obtidos do parceiro é reiterado.
Figura 01: HQ
“Uma Pré-História do Amor”.
Fonte: http://www.cartunista.com.br

No cinema, o personagem Indiana Jones, sedimentou a imagem do arqueólogo como


um homem, branco, heterossexual, rico e destemido, figura sempre apta a enfrentar as
mais adversas situações com sua coragem e a conquistar as mulheres pelos lugares onde
passa. A representação feminina associada à arqueologia na personagem Lara Croft,
trouxe à cena a figura de uma mulher completamente inserida nos padrões de beleza da
sociedade ocidental contemporânea, cujo corpo foi objetificado. Não por acaso a
escolha de Harrison Ford e Angelina Jolie para viver esses personagens.

Nos museus, as exposições são veículos onde narrativas sexistas construídas a partir dos
vestígios arqueológicos são destacadas (PINTO, 2012). A inserção dos objetos
arqueológicos nos museus compõe um aparato ideológico que reforça a matriz
heterossexual, onde significados dicotômicos e essencialistas em pares de oposições têm
sido reforçados.
Nas exposições, a reconstrução da vida dos primeiros hominídeos, o “Man-the-Hunter
Model” seria o caso mais óbvio de androcentrismo, onde o homem seria responsável
pelas atividades mais importantes (caça e segurança do grupo) e a mulher estaria fadada
a atividades secundárias (gravidez e ao cuidado com as crianças). Dessa forma, machos
são fortes, ativos, agressivos e dominantes, enquanto fêmeas são apresentadas como
fracas, passivas e dependentes (CONKEY & SPECTOR, 1984, p.04).

Tomemos alguns exemplos. Iniciando pela exposição de longa-duração “Formas da


Humanidade”, que ficou por mais de uma década no Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo.
Figura 02:Representação de atividades cotidianas de caçadores-coletores do interior e
Representação de atividades cotidianas dos agricultores do litoral e planalto - Exposição
Formas da Humanidade. Fonte: MAE/USP, 2008
Figura 03:Representação de atividades cotidianas de caçadores-coletores do interior e
Representação de atividades cotidianas dos agricultores do litoral e planalto - Exposição
Formas da Humanidade. Fonte: MAE/USP, 2008

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Cenas inseridas em módulos da exposição traziam representações que iam desde a


ausência das mulheres, na cena “Representação de atividades cotidianas dos pescadores
do litoral”, que retratava o cotidiano dos povos sambaquieiros; passando pela inserção
das mulheres nas atividades de produção de alimentos ou no cuidado com os filhos na
cena “Representação de atividades cotidianas de caçadores-coletores do interior”
(Figura 02) e chegando na representação das mulheres na produção de artefatos
cerâmicos na cena “Representação de atividades cotidianas dos agricultores do litoral e
planalto” (Figura 03). Interessante notar que, assim como a produção de ferramentas de
pedra é predominantemente masculina nas representações, a produção de objetos
cerâmicos é sempre retratada como feminina, a despeito das narrativas arqueológicas
primarem pelo masculino neutro no momento que se referem a essa produção cerâmica.
Nessa terceira cena, fica explícito que as narrativas museológicas também podem se
colocar como contra discursos das narrativas arqueológicas.

No Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, a exposição de longa-


duração “Lavras e Louvores”, inaugurada em 2006, traz um enterramento humano,
datado em 7.500 +/- 60 anos antes do presente, denominado como “Homem do Rio das
Almas” no texto explicativo (Figura 04). Em uma visita realizada com alunas e alunos
do curso de Museologia da UFG, em 2015, Beth Fernandes, uma mulher transexual e
importante liderança do movimento feminista e LGBTT de Goiás, nos lançou algumas
provocações acerca dessa representação: como uma mulher transexual seria classificada
pela Arqueologia? Não estaríamos falando apenas de uma categorização do sexo
biológico – também contestável? Por fim, o que significava “ser homem” há 7 mil anos?
Nesse sentido, cabe à Arqueologia reconhecer que o sexo não está em um domínio pré-
discursivo e que o corpo não é um recipiente passivo de uma lei inexorável (BUTLER,
1990/ 2003), seja no passado ou no presente.

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Figura 04:Aspecto da vitrine onde está exposto o esqueleto humano denominado de
“Homem do Rio das Almas” na exposição de longa-duração Lavras e Louvores no
Museu Antropológico e detalhe do painel da exposição temporária "Costela -
Notiomastodon platensis: um proboscídeo no Museu Antropológico/UFG”. Fonte:
imagens da autora

Figura 05:Aspecto da vitrine onde está exposto o esqueleto humano denominado de


“Homem do Rio das Almas” na exposição de longa-duração Lavras e Louvores no
Museu Antropológico e detalhe do painel da exposição temporária "Costela -
Notiomastodon platensis: um proboscídeo no Museu Antropológico/UFG”. Fonte:
imagens da autora

Em setembro de 2016, uma mostra temporária, elaborada por uma equipe de geólogos e
paleontólogos, intitulada "Costela - Notiomastodon platensis: um proboscídeo no
Museu Antropológico/UFG”, foi inaugurada no mesmo museu. A mostra em questão
reitera um discurso de inviabilização das mulheres ao inserir apenas homens em uma
cena que ilustra a retirada da costela de um proboscídeo, há 12 mil anos (Figura 05).
Cabe destacar as barreiras ainda existentes para as discussões aqui propostas, tendo em
vista a inserção dessa representação em um museu que tem incorporado recentemente à
crítica aos estereótipos de gênero, sobretudo, a partir do diálogo com pesquisas do
campo da Antropologia e da Museologia.

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Considerações Finais
As representações de gênero presentes nos trabalhos acadêmicos da Arqueologia, na
mídia em geral e nos museus são pautadas por invisibilidades ou por discursos que
reforçam estereótipos de gênero, estabelecendo características masculinas e femininas.
Nesse sentido, a construção do passado a partir dos vestígios arqueológicos está
marcada por um presentismo, onde ideais da sociedade moderna e ocidental são
postulados para as sociedades do passado, revelando o caráter colonizador das
interpretações arqueológicas.

É importante destacar que a disciplina arqueológica emite mensagens sobre gênero,


ainda que se coloque em uma pretensa posição de neutralidade e objetividade científica.
Essas representações reforçam a ideia de que homens e mulheres apresentam
características inatas, as quais explicariam não apenas as diferenças entre os gêneros,
mas, sobretudo, as desigualdades entre homens e mulheres, perpetuando assimetrias.
Como nos alerta Joan Scott (1988/ 1995), quando falamos sobre gênero, estamos
falando sobre relações de poder. Dessa forma, representações que em um primeiro olhar
aparecem como secundárias ou ingênuas, são situadas no que concerne à marcação de
diferenças e à construção de desigualdades.

Defendo a construção de Arqueologias Generificadas, adotando o conceito proposto por


Sandra Montón-Subías, ou seja, pesquisas que problematizem explicitamente o sexo, o
gênero e/ou as sexualidades em interpretações do passado e/ou no exercício da profissão
(MONTÓN-SUBÍAS, 2014, p.) Coloca-se como desafio uma prática feminista que
negue a integridade ontológica do sujeito mulher, ao mesmo tempo em que percorra um
caminho de luta contra a invisibilidade e subordinação das mulheres nas interpretações e
práticas da Arqueologia, para que outras representações e outros patrimônios sejam
possíveis.

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