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Wanju Duli
2017
Imagem de Capa: “A Visão de São Bruno” por Pier Francesco Mola
PARTE I
PARTE II
Capítulo 1: O Retiro______________________________________73
Capítulo 2: A vida depois de tudo____________________________97
Sobre a Autora__________________________________________100
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Introdução
"Informem-se pelo menos sobre o que é a religião que combatem antes de combatê-
la"
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desejava encerrar aquele capítulo da minha vida. Então esse retiro foi
quase como um adeus.
Meditar é como andar de bicicleta: você nunca esquece. Pode estar
um pouco enferrujado depois de alguns anos sem meditar, mas bastam
umas poucas meditações e você se lembra de tudo. Quando eu era
adolescente eu aguentava meditar praticamente o dia inteiro sem
interrupções nos fins de semana, mas no mosteiro eu ainda conseguia
meditar por longas horas ininterruptas.
Mas eu já não tinha a fantasia de passar minha vida toda dentro de
uma caverna ou algo parecido, como fazem alguns monges tibetanos.
Algumas coisas que soam como uma aventura poética na adolescência já
não têm o mesmo peso ao longo da juventude.
Lendo livros de literatura clássica ou fantasia sobre heróis que partem
numa fantástica jornada, me fazia ter o desejo de também sair desse
mundo e partir numa jornada, mesmo que temporariamente. Considero
fazer um longo retiro num mosteiro algo bem próximo disso. Afinal, lá
se está realmente em outro mundo. Não é apenas um universo de
brincadeira, mas um local no qual as pessoas possuem outras crenças e
valores e os levam mortalmente a sério.
Viajar para outro país, por exemplo, não chega nem perto do
sentimento de mudança que sentimos ao adentrar um mosteiro. A não
ser que você viage para visitar uma tribo muito afastada da civilização
ocidental ou um lugar realmente exótico sem nenhum McDonalds num
raio de muitos quilômetros.
Para começar, a maior parte dos mosteiros são construídos em
cidades pequenas e afastadas das capitais. Costuma reinar um ambiente
de silêncio. E mesmo com algumas facilidades da civilização ocidental
contemporânea que acaba adentrando esses lugares, como banheiros,
você quase poderia jurar que voltou no tempo para uma espécie de Idade
Média eterna, ou no caso do budismo para algum período antes de
Cristo.
Não precisamos necessariamente de uma máquina do tempo para
voltar ao passado. Ler livros de autores antigos já é uma primeira
experiência, mas viver como se vivia antigamente é algo que realmente
abre nossos olhos e faz com que nos perguntemos: o quão pouco
precisamos para sermos felizes?
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PARTE I
"Eu costumava desejar que os Contos Árabes fossem verdade: minha imaginação
voou por influências desconhecidas, em poderes mágicos, e talismãs... Eu pensei que a
vida pudesse ser um sonho, ou eu um Anjo, e todo esse mundo uma decepção, meus
companheiros anjos por um dispositivo brincalhão estariam se escondendo de mim, e
me enganando com a aparência de um mundo material"
“Não julgues ter feito progresso algum, enquanto não te reconheceres como inferior
a todos”
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entusiasmado que organiza tudo e faz esforços extras para que as coisas
funcionem. Outro está lá só por curiosidade e costuma dormir às vezes.
Ou seja, alguns levam mais a sério e outros nem sabem bem o que estão
fazendo lá e nem se importam.
Uma das participantes só está lá porque gosta de cantar. Outra
compareceu porque acha um lugar mais fácil para ajudar os outros com
trabalhos de caridade. E tem até um sujeito que leu todo o livro de regras
do clube e todos ficam bem impressionados com isso, pois alguns sequer
sabiam que o tal livro existia. Só estavam lá para socializar e comer.
Eu já conheci um cristão que frequenta a igreja há muitos anos, desde
criança, e nem sabia que a Bíblia era dividida em Velho e Novo
Testamento. Também conheci budistas japonesas idosas, que
frequentam o templo budista há décadas, e não tinham certeza se o
budismo tinha surgido na Índia.
Isso é surpreendente? Nem tanto. Conhecer a teoria de uma religião
ajuda muito, principalmente para domar nossa parte intelectual rebelde,
que está repleta de ideias seculares que toma como verdade absoluta,
mesmo que de forma inconsciente.
Mas por mais importante que seja ter uma boa base teórica, a prática
ainda é o cerne de uma religião. Quando a escolástica começou a
dominar as universidades medievais e os sacerdotes se tornaram
extremamente intelectualizados, praticamente reduzindo a religião ao
estudo da teologia, houve um movimento místico no final da Idade
Média, com personagens famosos como São João da Cruz e Santa Teresa
de Ávila.
O filósofo Peter Kreeft tem uma boa piada sobre isso: o que você
prefere: assistir a uma palestra sobre o céu ou ir para o céu? Lembro que
quando li a pergunta eu me senti ligeiramente tentada a escolher a
palestra, principalmente se fosse dada por anjos e santos. Nesse
momento eu me dei conta de que a piada contava uma verdade. Ela nos
mostra o quanto vivemos no mundo da imaginação e abstração, e
perdemos a percepção da realidade.
O foco do budismo são as meditações e o foco do cristianismo são as
rezas. É verdade que o catolicismo dá muita importância aos
sacramentos, principalmente a eucaristia, de forma que às rezas
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Se o Deus cristão fosse um tio ou um avô, não iria nos punir, mas
somente nos perdoar sempre, mesmo que nos tornássemos muito
mimados. Muitos não cristãos (ou até cristãos em alguns casos) possuem
uma concepção de Deus como se ele fosse um ser bonzinho que perdoa
tudo, um cara que não se preocupa com nada. Digamos: um hippie!
Tudo está na paz, tudo está bom sempre. Não há problemas. Paz e
amor.
Será que é assim que um pai e uma mãe devem agir em relação a seus
filhos? É assim que devem educá-los? Sempre dê a eles tudo o que
querem. Não os corrija quando fizerem coisas erradas. Disso iria resultar
não um ser humano consciente, mas um pequeno monstrinho egoísta
que futuramente causaria sua própria destruição e a destruição dos
outros.
Deus poderia ter deixado passar o erro de Adão e Eva: “Comeu do
fruto proibido? Sem problemas! Eu sou Deus, posso tudo e tenho o
poder de perdoar e de fazer um novo teste. Podem falhar nesse teste
quantas vezes quiserem. Nem precisam se esforçar. Vamos morar no
Éden a vida inteira vivendo eternamente no paraíso da infantilidade, sem
aprender nada”.
Muitos criticam esse trecho do Gênesis do “teste”, questionando
porque Deus proibiu o consumo dos frutos de certa árvore do jardim. A
resposta para isso é muito simples: se não houvesse algum tipo de
proibição no Éden, não haveria liberdade de escolher entre o bem e o
mal.
Quem faz o bem quando a única escolha disponível é o bem, não está
fazendo realmente uma escolha. Podemos até argumentar que Adão e
Eva estariam sendo bons porque eram fantoches de Deus.
Porém, a liberdade é considerado algo tão precioso para o
cristianismo que ela está até mesmo acima do bem. Deus deu a liberdade
de os humanos escolherem entre o bem e o mal. Também a deu a seus
anjos. Como resultado, um terço dos anjos caíram e se tornaram
demônios. O teste dos seres humanos ainda está sendo realizado e só
será concluído na segunda vinda de Cristo, mas o teste dos anjos já
terminou.
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árvore e seus olhos se abriram. Por outro lado, ele distorceu a verdade.
Afinal, a partir de então, Adão e Eva teriam corpos mortais e poderiam
morrer espiritualmente ao fazer o mal. Cair no inferno significa morte
espiritual.
Por que Deus tornou Adão e Eva mortais? Por que criou o inferno?
Queria apenas castigá-los?
É necessário ter muito cuidado aqui. Não podemos dizer que Deus
criou o inferno. Seria mais correto dizer que Deus criou a liberdade.
Através dela, os anjos caídos e os humanos criaram o inferno para si
mesmos.
Céu e inferno não são lugares, mas estados mentais. Isso é afirmado
com clareza pela metafísica cristã. Existe vida após a morte, certamente,
mas não é a mesma vida a qual chamamos vida. Pois o que conhecemos
como vida possui um corpo material e uma mente.
Mas não conseguimos sentir nossa alma diretamente. Isso faria parte
do teste de Deus, que se esconde de propósito. Afinal, se Deus se
mostrasse claramente a todos, a fé não seria necessária e seríamos bons
com os outros por medo. Deus quer que façamos o bem de forma
natural e por amor.
Através das experiências místicas podemos sentir Deus e nosso
espírito. Isso é feito quando domamos o corpo e a mente, em vez de
sermos escravos deles. O budismo consegue isso por técnicas
meditativas. O cristianismo o faz por técnicas similares de rezas e
contemplações, mas isso é explicado por autores místicos específicos,
como São João da Cruz no ocidente e por diversos místicos cristãos
ortodoxos no oriente.
Adão e Eva causaram a si mesmos a própria mortalidade porque
pecaram por orgulho. Deus sabia que se eles ainda fossem imortais e
continuassem a habitar o jardim do Éden jamais seriam capazes de
corrigir seu orgulho.
Somente a morte e o sofrimento podem corrigir o nosso orgulho.
Isso não é um castigo. É um mal que penetrou no mundo através da
desobediência.
Nós, mesmo sabendo que um dia morreremos, ainda assim teimamos
em ser egoístas. Imagine então se fôssemos imortais! Passaríamos a vida
apenas a acumular dinheiro e teríamos tanto cuidado com nosso corpo
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extraordinário ver como cada autor cria o Jesus que inventou na própria
cabeça.
É muito curioso como o Jesus apresentado possui uma forma de
pensar tão semelhante ao século no qual o autor do livro viveu, e como
Jesus se preocupava exatamente com os problemas da época do autor.
Assim surgiram o Jesus pacifista, o Jesus feminista, o Jesus
revolucionário, o Jesus comunista! Eu recomendo que leiam o livro “A
pesquisa do Jesus histórico” de Giuseppe Segallla, que mostra um
resumo das principais pesquisas já feitas sobre o Jesus histórico até hoje.
Trata-se de um autor cristão, mas fique à vontade para ler livros de
autores com outros pontos de vista e comparar.
O mais intrigante é quando um autor do século XX ou XXI clama
saber mais do que autores que viveram na época de Jesus ou poucas
décadas após.
O trecho em que Jesus diz que dá as chaves do céu a Pedro só
aparece uma vez nos quatro Evangelhos, então segundo alguns
pesquisadores um texto que só aparece uma vez tem pouca
probabilidade de ser verdadeiro. Mas o trecho da multiplicação do pão e
dos peixes aparece em todos os quatro Evangelhos. Evidentemente esse
seria falso porque... milagres não existem!! Eis o raciocínio deles: o que
não condiz com suas visões de mundo é imediatamente eliminado.
Com isso não pretendo afirmar que Jesus é Deus e que a Bíblia seja
integralmente verdadeira. Eu meramente sugiro que os biblistas ateístas
talvez estivessem se divertindo mais estudando as obras de Machado de
Assis para descobrir se Capitu traiu ou não Bentinho.
Brincadeiras à parte, é claro que é bastante positivo que existam
estudiosos da Bíblia não somente cristãos, mas também judeus,
muçulmanos, ateus ou, vá saber, até budistas. Assim temos uma exegese
ainda mais rica.
Voltarei a comentar uma passagem logo do início do capítulo. Já
cansei de ouvir pessoas falando que no Velho Testamento Deus é
“malvado” e que no Novo Testamento ele fica bonzinho de repente.
Eu já argumentei os motivos de Deus parecer “malvado” no Velho
Testamento. Ele disciplina os filhos como um pai, tendo como meta que
eles adquiram independência e maturidade, aprendendo com os próprios
erros.
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Capítulo 3: Penitências e
Experiências Místicas
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Capítulos como esse são clássicos. Afinal, queremos saber quais são
as técnicas para obter estados alterados de consciência ou mesmo
poderes especiais.
Porém, para sermos dignos dessas coisas, devemos realizar alguns
sacrifícios. A não ser que tenhamos sorte ou certa virtude que nos faça
receber experiências aparentemente por acaso. No fundo, não é acaso.
Tanto o cristianismo quanto o budismo defendem que o mundo é
minuciosamente regulado por certas leis. Nem mesmo um fio de cabelo
cai sem o conhecimento de Deus. Ou, segundo o budismo, a lei do
karma tudo rege.
No Velho Testamento existem incontáveis exemplos de profetas que
sofreram algo parecido com a lei do karma. Quando realizaram algo
errado em suas vidas, eram inevitavelmente punidos por isso, mesmo
que o efeito só surgisse muitos anos ou décadas depois. Nada passava
em branco. Por outro lado, as bênçãos pelos bons atos também sempre
chegavam.
As religiões indianas explicam que podemos ser punidos por algo que
fizemos nessa vida apenas no próximo renascimento. A não ser, é claro,
que nos iluminemos ainda nessa vida. Então se você realizou algo
realmente ruim, já sabe: corra para se iluminar! Assim o fluxo do karma é
destruído e não há mais consequências kármicas para os atos realizados,
uma vez que vemos as coisas como são e jamais seríamos capazes de
realizar nada contra aquilo que deve ser feito.
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fazer e conhecemos mais pessoas. Por outro lado, as limpezas não têm
fim! Gasta-se um tempo inacreditável limpando o chão, cozinhando e
lavando pratos.
Sabendo disso, optei por dessa vez escolher um mosteiro católico
bem pequeno. É verdade que era um lugar mais simples, com menos
coisas para fazer e nem mesmo fui autorizada a olhar a pequena
biblioteca, enquanto no mosteiro budista eu me deleitava na enorme
biblioteca deles. Em compensação, fui chamada para cozinhar e limpar
pouquíssimas vezes. Era um lugar tão pequeno que ocupações desse tipo
eram reduzidas ao mínimo necessário. E era um local bem mais
silencioso e que permitia mais solidão do que o mosteiro budista, que em
várias ocasiões ficava bem agitado, recebendo uma grande quantidade de
visitantes.
Quando realizo muitos trabalhos braçais, eu me dou conta de como
tenho frescuras em relação ao meu corpo. Nas mãos de várias monjas
havia marcas de queimadura ou diversas pequenas feridas temporárias ou
definitivas. Eu de vez em quando me cortava e machucava os dedos
realizando trabalhos que não estou acostumada a fazer, e sentia pena de
mim mesma.
Eu estou bastante acostumada a cozinhar e lavar pratos na minha
casa, mas em mosteiros é diferente. Você recebe muitas atividades que
nunca realizou na vida e não sabe nem por onde começar. Leva certo
tempo para pegar a prática e é meio frustrante a lentidão inicial e os
inúmeros erros.
Normalmente vamos para um mosteiro desejando estudar, meditar e
rezar. Queremos as atividades intelectuais, mas quem deseja apenas isso
fará uma melhor escolha frequentando uma universidade. Em mosteiros
se estuda e se medita, mas em muitas ocasiões se passa ainda mais tempo
realizando trabalhos braçais e não intelectuais. Isso é fundamental para
reconhecer que todo trabalho possui a mesma importância e todos
devem contribuir com tudo.
Tanto nos mosteiros católicos quanto nos budistas, especialmente
nesses últimos, sempre houve mais oportunidades para homens do que
para mulheres. Mesmo assim, isso nunca me impediu antes.
Nas duas ocasiões, para conseguir acesso a esses dois mosteiros, eu
certamente gastei mais tempo, dinheiro e esforço. Afinal, há uma
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à dor, você sente um imenso êxtase por ter realizado aquele ato tão
grandioso.
Parece masoquismo, mas é algo muito mais complexo. O seu
objetivo não é apenas a sensação de prazer que vem com o esforço. Esse
é apenas um mero brinde que acompanha o pacote. E que independente
de vir ou não, nem faz tanta diferença. Pode ser apenas uma motivação
adicional para prosseguir.
As maiores experiências místicas geralmente possuem duas origens:
ou são fruto de longas horas de penitência, ou de algum estado
emocional profundo, relacionado a espiritualidade, que te leva às
lágrimas.
Os santos adoravam chorar de emoção com Deus. Santo Inácio de
Loyola relata em seus diários que chorava quase todo dia na missa. No
livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga temos a seguinte
passagem:
"Vicente Ferrer, sempre que consagrava a hóstia, vertia tantas lágrimas que
quase todos os presentes choravam com ele, e às vezes chegavam a produzir algo como
uma lamentação fúnebre. As lágrimas eram-lhe tão doces que só as detinha a
contragosto"
Meus caros, sejam bem-vindos à Idade Média dos choros e dramas,
período em que era extremamente comum verter lágrimas em igrejas ou
mesmo em outras situações públicas.
Nos tempos em que vivemos somos educados a conter nossas
emoções em público. E falando em Vicente Ferrer, ele é outro dos
santos que admiro. No livro “St Vincent Ferrer: the Angel of the
Judgement” de Fr. Andrew Pradel, O.P., há uma passagem muito
engraçada:
"A fala comum entre seus biógrafos era: 'Era um milagre quando ele não fazia
milagres, e o maior milagre era quando ele não fazia nenhum'"
Esse santo sabia toda a Bíblia de cor. Ele passou três anos apenas
dedicando-se a decorar a Bíblia. E não parava de fazer milagres por onde
ia. Nunca vi um santo que fizesse tantos milagres quanto esse. Acho que
ele superou Jesus.
Você não precisa ir necessariamente para um mosteiro católico para
ver milagres. Vá para a Índia! Provavelmente é até mais fácil. Afinal, a
Igreja católica possui algumas restrições em relação a visões e a
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Capítulo 1: O Retiro
"'O inferno sou eu' se não nos amamos; 'o inferno são os outros' se eu não os
amo; o inferno sou eu, é você, é o mundo, é Deus ou o diabo, é tudo aquilo que não
amo. O inferno é não amar"
Jean-Yves Leloup
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Nesse dia ela me disse para ler todo o João. Naquele ponto, eu já
tinha lido todo o Novo Testamento na íntegra pelo menos umas quatro
ou cinco vezes e estou acostumada a ler livros longos, mas mesmo assim
fiquei surpresa que ela me pedisse para ler esse Evangelho inteiro do
início ao fim, mesmo sendo o mais breve dos quatro.
Outra tarefa que recebi foi escutar as quatro primeiras faixas de um
CD, num rádio com fone de ouvido. Era uma gravação de uma palestra
sobre a Santíssima Trindade. Geralmente cada faixa tinha em torno de
meia hora ou uma hora.
Eu não esperava que tivesse rádios no mosteiro, embora só
pudéssemos usá-los para ouvir as palestras. Fui lá sabendo que não havia
internet e pensando que talvez nem tivesse água quente na torneira.
Quando cheguei na minha cela no primeiro dia, me deparei com um
lugar bastante confortável, até com ar condicionado e calefação. No
mosteiro budista também havia calefação em vários cômodos, mas o
quarto que eu fiquei era o único que não havia aquecimento, pois ficava
muito perto da porta. Mas não tive maiores problemas.
Na cela há quatro pequenas divisões: o espaço para rezas, com um
lugar para sentar e uma Bíblia, além de quadros com Jesus, Maria e a
Santíssima Trindade. No espaço central havia a cama, além de uma mesa,
uma cadeira e uma prateleira para estudos. Havia o banheiro e, por
último, perto da janela o lugar para comermos em solidão, com mesa e
cadeira. Éramos orientados a ler um livro espiritual enquanto comíamos,
o que é uma prática comum em mosteiros.
Nesse dia tive peixe no almoço e uma salada semelhante ao dia
anterior. Escrevi no meu diário nesse dia que “o peixe estava
maravilhoso”, então devia estar mesmo.
Eram irmãs diferentes que cozinhavam a cada dia. Então em alguns
dias o almoço estava com gosto melhor e em outros nem tanto,
dependendo das habilidades culinárias de cada uma.
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Escutei mais gravações no rádio. Li, fiz caligrafia e debati com a irmã
Ana sobre o trecho da Anunciação em Lucas, após escrevê-lo.
É bom escrever trechos da Bíblia, pois assim podemos aprendê-los
com muito mais atenção do que somente lendo.
É impressionante o quanto é possível debater apenas sobre poucas
frases.
Há uma passagem na qual é dito: “O Espírito Santo descerá sobre ti,
e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra” (Lucas 1:35). Essa
é uma referência à “nuvem” de Deus.
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Numa outra piada da irmã Ana, ela conta que os demônios estavam
numa praça jogando cartas. E por que os demônios estavam lá sem fazer
nada? Porque o próprio mundo já tinha tentações suficientes para distrair
as pessoas da busca de Deus. No mundo, os demônios ficavam sempre
relaxados e sem muito serviço.
Num mosteiro, os demônios não tinham descanso. Ficavam para lá e
para cá, de cela em cela. Eram lá que as grandes batalhas eram travadas,
pois não havia outras distrações. O tédio e o vazio podiam penetrar no
coração dos monges, para que caísse sobre eles a noite escura e eles
fossem fortemente tentados. Após vencida a batalha, Deus saía de seu
esconderijo e mostrava a si mesmo novamente para o vencedor.
Nesse dia terminei de escutar as vinte faixas da palestra sobre os
mistérios do rosário. Enquanto escutei, anotei algumas passagens bíblicas
mencionadas para conferir depois.
Terminei de ler o livro “Ese Amor que el mundo olvida” de Inès de
Warren, que era um livro relativamente longo que eu havia pegado
emprestado da lojinha. Estava em espanhol.
A irmã me emprestou o Youcat, que é o catecismo bíblico para
jovens. Informei a ela que eu já tinha lido o Catecismo (um livro de
quase mil páginas) e o Compêndio do Catecismo, mas nunca o Youcat.
Havia mais de 500 perguntas lá. Minha tarefa era responder todas elas
num caderno antes de ler as respostas no livro. No começo eu escrevia
longas respostas, mas ao perceber que naquele ritmo eu jamais iria para
frente, logo passei a resumir minhas respostas.
Era quase como um “teste” para eu descobrir o quanto eu sabia
sobre cristianismo. Eu devia ter contado os meus acertos.
Nesse dia, aprendi como rezar a Liturgia das Horas. Desde os
primórdios do cristianismo os monges rezam seguindo os quatro
volumes desse livro. É uma reunião de salmos para serem recitados em
diferentes horas do dia, além de outras recitações que acompanham.
O objetivo é que toda semana cada monge tenha recitado todos os
150 salmos. No caso das freiras e frades, de vida ativa, eles recitam os
150 salmos a cada mês, já que seus trabalhos consomem mais horas por
dia.
Funciona da seguinte forma: eu acordava todo dia às seis da manhã e,
após tomar banho e tomar café da manhã (não tinha café lá, mas apenas
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ser muito difícil, pois além de tomar conta de todas as missas e eventos
de uma paróquia, ouvir confissões, batizar, etc, ainda é preciso ficar
dirigindo para várias cidades diferentes para celebrar missas em outros
locais que precisam de sacerdotes.
Havia um padre que aparecia de vez em quando e celebrava uma
missa meio diferente. Ele ficava em silêncio em vários momentos. Era
realmente uma missa bem silenciosa. A irmã Ana me contou que esse
padre já tinha sido monge cartuxo e por isso quando vinha para esse
mosteiro celebrava a missa nesse estilo.
As irmãs cantam muito bem. Mas há uma irmã em especial que canta
maravilhosamente. É a irmã Raquel (vou chamá-la assim), que tem
formação em canto. Desde o primeiro dia fiquei encantada com a forma
que ela cantava. Mas não sabia se eu teria alguma oportunidade de
conversar com ela.
E a chance se apresentou nesse dia. Ela me levou até outro recinto do
mosteiro para fazer um trabalho manual de pintar caixinhas de velas de
batismo.
Eu tinha que misturar dois tons de amarelo e acrescentar um pouco
de água na tinta. Pintava cada caixa por fora, e depois por dentro.
Quando já estava seca, eu a lixava e secava com um pano as partes
metálicas.
Esses eram os primeiros passos da caixinha. Em breve eu aprenderia
os próximos.
Eu e a irmã Ana fizemos juntas uma adoração ao Santíssimo, com
recitações espontâneas. Ela me ensinou que podemos ler um livro e rezar
ao mesmo tempo, parando em frases que achamos inspiradoras.
Comecei a ler um livro escrito por um monge da Cartuxa do Rio
Grande do Sul, que a irmã me emprestou. É um livro de homilias. São
aqueles discursos exegéticos que os padres dão sobre as Escrituras.
Fiz biscoitos na cozinha junto com a irmã Ana. Pegamos uma receita.
Fiz uma adoração ao Santíssimo usando o Magnificat (Canção de
Maria) como base.
Acabei de ler o livro “Palavras do Deserto: Homilias de um Cartuxo”.
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Caminhei umas três horas junto com as irmãs. Apesar de ser uma
quarta-feira, era um dia diferente. Não haveria caminhadas no domingo,
com a proximidade do início da Quaresma. Conversamos sobre os
mistérios do rosário associados a Fátima.
Terminei de reler o livro “Relatos de um Peregrino Russo”. Esse é
outro que a irmã Ana me emprestou e eu avisei a ela que já tinha lido.
Mesmo assim, em obediência, eu o reli. O cara desse livro, esse sim
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orava sem cessar! Ele fazia coisas realmente malucas e não parecia ter
medo de nada. É inspirador.
Acabei de ler “Caminho de Perfeição”, de Santa Teresa, um dos que
eu havia trazido comigo.
Grande névoa!
Eu já estava aprendendo as próximas etapas da caixinha. Até então,
eu havia aprendido a cortar cortiça e a posicioná-la no interior das caixas,
colando com cola de madeira. Nessa ocasião aprendi a posicionar e colar
estrelinhas em cada caixa, que era o toque final.
A vantagem de fazer a mesma coisa em vários dias era que eu
adquiria prática e fazia cada etapa com rapidez. Essa caixa de velas era
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Contei a ela sobre as ovelhas que vi e ela disse que elas são muito
tontas. Quando entram num lugar, depois não sabem mais sair. Elas
encheram a estrada de cocô e se uma caga, cagam todas juntas. Também
fiquei sabendo que elas andavam comendo a horta do mosteiro. O
pastor as deixa soltas.
Aliás, no meio da caminhada da quarta-feira, achei um aviso escrito
pelas irmãs embaixo dos fios elétricos, dizendo: “Bons ladrões, não
roubem a luz das irmãs que rezam por vós” ou algo parecido. Elas já
tiveram problemas quando houve um roubo e elas ficaram sem luz.
Embaixo da mensagem havia o desenho de uma monjita ajoelhada
rezando.
De vez em quando havia quedas de luz no mosteiro, mas eram
breves.
Comecei a ler o livro “San Silouan El Athonita” de Achimandrita
Sophrony. Também é um livro enorme, e em espanhol. Seria uma das
primeiras biografias que eu leria de um monge ortodoxo.
Ela também me emprestou a “Sinopse dos 4 Evangelhos”. São os
Evangelhos posicionados juntos na ordem cronológica. E quando há um
mesmo trecho do Evangelho repetido, eles são colocados juntos para
comparação. Fica bem mais fácil estudar dessa forma. Através desse livro
eu aprenderia como fazer uma ficha bíblica. O tema que ela escolheu
para mim foi “Jesus reza”. Eu devia procurar todos os trechos nos
Evangelhos em que aparece Jesus em oração e escrevê-los.
Posteriormente eu iria recortar cada versículo, organizá-los por tema
com clipses e depois montar um caderninho.
Quarta-feira de cinzas!
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Nesse dia teria início mais uma etapa das minhas dificuldades
alimentares. Com o início da Quaresma, o frango e o peixe foram
completamente cortados. A partir daí, só em alguns dias eu receberia
uma latinha de atum de vez em quando. Fora isso, num dia eu receberia
arroz e noutro batata, alguma saladinha, pão, frutas e poucos
complementos.
Se eu tivesse participado da comida da Quaresma na época em que eu
era vegetariana, não teria sentido muita diferença. Mas hoje em dia foi
difícil. As bactérias do meu intestino já se acostumaram com outras
coisas.
Também não mencionei que toda sexta-feira no mosteiro,
independende de ser Quaresma ou não, é dia de jejum de pão e água.
Mas quem não está acostumado com isso, pode pedir complementos.
Por isso, às sextas-feiras eu recebia, além do pão, complementos de
frutas e no almoço um purê de batata desidratado, no qual eu colocava
água quente.
Nunca comi tantas maçãs, pêras e laranjas na minha vida. E também
alguns kiwis.
Nesse dia, o padre passou cinzas na nossa testa durante a missa. E
cada uma das irmãs se abaixou e beijou os pés da outra.
Pela primeira vez desde que cheguei, fiquei ligeiramente entediada.
Terminei a releitura de “Imitação de Cristo” e passei a ler trechos da
Bíblia nas refeições.
Anotei uma passagem do livro do Hesse: “Desejo, ao contrário, o
risco, a responsabilidade e o perigo, estou faminto de realidade, tarefas e
ação, também de privações e sofrimentos”
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Wanju Duli
Entrou uma abelha na minha cela quando a irmã Raquel veio nos
visitar. Há muitas abelhas por lá, pois eles têm criações de abelhas.
Cortei uns tecidos com a imagem de Jesus e João Batista e colei.
Tentei cortar uma cruz com um bisturi, mas não deu certo. Eu não tive
força o suficiente.
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Visitando Bruno
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Wanju Duli
Saí para caminhar de manhã, pois tinha sol. Até deitei num tronco
caído, meu lugar favorito.
A irmã Ana foi me visitar na cela e eu não estava, então deixou na
minha ministra o livro com a continuação das memórias da irmã Lúcia,
com uma florzinha. Várias vezes também já recebi refeições com
pequenos enfeites de flores.
Cortei e pintei mais números e letras. Nesse dia fiquei um pouco
frustrada, pois não achei que eu tinha feito um bom trabalho. Eu poderia
ter cortado melhor, mas não consegui. Eu me esforcei, mas não deu
certo.
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Visitando Bruno
O padre disse que acordou tarde, por isso a missa foi ao meio-dia e
não às oito da manhã. Ele disse que colocou o despertador para tocar,
mas não conseguiu acordar.
Vale a pena lembrar que ele tinha que vir de outra cidade dirigindo
até o mosteiro. Para estar lá às oito, talvez tivesse que acordar ainda mais
cedo do que nós.
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Visitando Bruno
"Por alguma razão estranha, o homem sempre deve plantar suas árvores frutíferas
num cemitério. O homem só pode encontrar vida entre os mortos. O homem é um
monstro disforme, com seus pés direcionados para frente e sua cabeça virada para trás.
Ele pode tornar o futuro exuberante e gigantesco, contanto que ele esteja pensando
sobre o passado"
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Visitando Bruno
Ó obediência suave, que nunca tem pena! Tu fazes os homens viverem e correrem,
mortos, e por isso matas a própria vontade; e quanto mais está morto, mais
velozmente corre, porque a mente e a alma estão mortas para o amor próprio de uma
vontade sensitiva perversa, com mais agilidade faz o seu caminho e se une ao seu
esposo eterno com afeto de amor"
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Wanju Duli
Sobre a Autora
Wanju Duli tem 29 anos e mora em Porto Alegre. Tem mais de 30
livros publicados pelo Clube de Autores e mais de 500 resenhas de livros
em seus blogs.
Você encontrará algumas fotos tiradas nesse período de retiro em:
http://wanjuduli.blogspot.com.br/2017/03/retorno.html
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