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Visitando Bruno

Wanju Duli
2017
Imagem de Capa: “A Visão de São Bruno” por Pier Francesco Mola

Design de Capa: Luiggi Ligocky


Sumário
Introdução_______________________________________________5

PARTE I

Capítulo 1: O que eu aprendi com o cristianismo_________________23


Capítulo 2: Algumas palavras sobre alimentação e religião__________45
Capítulo 3: Penitências e Experiências Místicas__________________55

PARTE II

Capítulo 1: O Retiro______________________________________73
Capítulo 2: A vida depois de tudo____________________________97

Sobre a Autora__________________________________________100
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Introdução

"Informem-se pelo menos sobre o que é a religião que combatem antes de combatê-
la"

Pensamentos, por Blaise Pascal

Desde o início da adolescência sou fascinada por religiões. Comecei


lendo livros sobre isso, mas em pouco tempo desejei partir para a
prática. Eu queria saber o que era verdade ou mentira.
Claro que essa não era uma tarefa fácil. Havia bons argumentos de
todos os lados. Descobri que a leitura seria um caminho importante a
percorrer, mas não o único. Algumas pessoas dão importância demasiada
aos livros, enquanto outras argumentam que a lógica pode nos enganar e
que somente a prática importa. Não acho que nenhuma dessas posturas
seja prudente.
Eu leio, mas também experimento. Não substituo uma pela outra,
mas as duas atividades andam sempre em conjunto na minha vida.
Alguns são mais influenciados pela lógica, outros pelo coração e por
muitas outras vias. Não podemos negligenciar nenhuma delas, mas nos
prepararmos de todos os lados, pois não sabemos de onde virá o
próximo ataque.
E era isso que parecia minha jornada: uma aventura. Nós lemos livros
de literatura, assistimos a filmes e jogamos diversos jogos. Tudo isso é
fascinante, mas muito cedo percebi que minha própria vida era bem mais
divertida do que tudo isso. Não porque a minha vida fosse
particularmente diferente da de outras pessoas, mas porque escolhi
possuir uma percepção especial a respeito dela.
É comum termos uma visão pessimista da vida, achando que ela se
resume a realizar trabalhos monótonos para comprar o pão diário,
enquanto nossos únicos momentos de diversão e alívio seriam consumir
algumas opções de entretenimento aos domingos ou nas férias. Nessa

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visão, a vida se resume à busca de conforto e prazer e termina no


momento da morte.
Então é apenas isso? Estamos no século XXI e esse foi o máximo
que o ser humano foi capaz de chegar?
Quem nasceu nos séculos XX ou XXI talvez possa ter essa
impressão, pois vivemos num momento muito particular: uma das
poucas épocas de toda a história da humanidade na qual a religião já não
possui tanta força como outrora.
Nos últimos séculos nos sentimos orgulhosos de nossa inteligência e
de nossa ciência. Pensamos que sabemos de tudo, mas por que ainda há
perguntas sem resposta? Simplesmente porque a ciência possui suas
limitações. Áreas do conhecimento como a filosofia e a teologia já
encontraram respostas importantes a muitos de nossos questionamentos
antigos e atuais. Algumas delas foram alcançadas mil, dois mil ou até
mesmo três mil anos atrás.
E por que muitos de nós não conhecemos essas respostas? Muitas
vezes não temos o menor interesse de ler livros escritos dois mil anos
atrás, pois nos achamos muito mais espertos e originais. Temos a ilusão e
a arrogância de querer fazer tudo sozinhos, sem se apoiar naqueles que
viveram muito antes de nós.
O resultado é que nos dias de hoje sabemos lidar muito pouco com o
sofrimento e com a morte. Temos cada vez mais depressão, tomamos
cada vez mais medicamentos e frequentamos cada vez mais consultas a
psicólogos e psiquiatras.
É verdade que a ciência e os métodos atuais que encontramos de
seguirmos em frente na vida também possuem seu valor. Não devemos
ignorar nem o passado e nem o presente. Mas penso que uma das
melhores formas de desvendar o presente é descobrir como as pessoas
viviam no passado, para assim nos inspirarmos e encontrarmos
esperança.
Como era uma vida sem telefone, rádio, televisão ou internet? Como
era viver sem filmes ou jogos eletrônicos? Que raios as pessoas faziam,
como imaginavam, como sonhavam?
E as pessoas eram felizes. Temos testemunhos disso. Assim como em
todas as épocas, há pessoas felizes e infelizes. A diferença são as
mudanças de nossos conceitos de felicidade e soluções para alcançá-la.

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Hoje em dia nós definimos felicidade de forma mais palpável e


material, como ter dinheiro e saúde. Quando estamos pobres e doentes
entramos em desespero, pois aprendemos que a perda dessas coisas é
realmente terrível.
A maior parte das religiões ou práticas espirituais nascidas nos
últimos séculos incorporou esses conceitos. Podemos dizer que até
mesmo na política esse ponto de vista foi adotado, levando ao
nascimento de teorias econômicas e sociais baseadas nesse tipo de
conceito de felicidade.
Experimente ler alguns filósofos antigos, medievais ou até mesmo
alguns da Idade Moderna. Descobrimos que em muitos deles o homem
feliz é o homem virtuoso. É aquele que faz o bem para os outros, tenta
agir bem, independente de ele mesmo ter dinheiro ou saúde. O que
realmente importa são suas qualidades morais e espirituais.
Essa é uma ideia filosófica, mas que só atingiu seu ápice na religião.
Foi na religião que a moralidade passou a não ser mais a finalidade da
jornada, mas o meio para se atingir o espírito.
Quando fazemos o bem para os outros, as pessoas ficam felizes. No
entanto, de acordo com a religião, o objetivo de fazer o bem não é
termos uma sociedade mais justa e igualitária. Ter menos desigualdade
social para termos como fim uma população com mais acesso à
educação, saúde, etc, é uma visão mais pragmática e materialista. Essa
visão não está incorreta e é bastante louvável, mas é apenas a ponta do
iceberg. É o subproduto de algo maior.
Diferentes religiões acreditam que o ser humano não é composto
apenas de mente e corpo. Ele também é alma, é espírito. Agir bem não
possui a função prática de que os outros ajam bem conosco em troca.
Na verdade, o bem-estar do corpo e da mente não são nossa jornada
final. Eles também são instrumentos para um objetivo mais elevado.
Falar em Deus e espírito soa como algo meio vago para a mente
ocidental contemporânea. Talvez porque estejamos satisfeitos em viver
apenas na superfície. A ciência se ocupa em descrever o funcionamento
da matéria e a mente foi reduzida a um subproduto do cérebro.
A finalidade da vida passou a ser ter paz e se divertir e não buscar a
verdade. Muitos hoje em dia até mesmo se perguntam se “verdade” não
seria um termo pomposo demais, a ponto de questionar sua existência.

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É mais fácil reduzir “Deus” a “amor”, pois facilita a explicação. No


entanto, Deus sempre teve um significado e uma existência muito mais
abrangente para os antigos do que uma mera metáfora para gentileza,
paixão ou amizade.
Deus e espírito foram o centro da vida de muita gente, em todos os
tempos. Até os dias de hoje, pessoas matam e morrem por Deus. É
muito mais fácil chamá-las de ignorantes e supersticiosas do que tentar
entender alguém que pensa diferente de nós.
A maior parte dos grandes pensadores, filósofos e cientistas de todos
os tempos e lugares acreditavam em Deus ou tinham alguma religião.
Será que somos mais inteligentes que eles? Por que achamos que
sabemos mais do que eles sobre a vida, sobre a morte ou sobre a
felicidade? Sabemos mesmo quais são os limites do conhecimento?
Eu desejei descobrir algumas dessas respostas. Eu não acreditava que
após milhares de anos continuássemos na estaca zero no que diz respeito
ao sentido da vida, da existência de Deus, da alma e da vida após a
morte.
Muitos de nossos professores de história no colégio nos fazem
acreditar que ao longo de toda a Idade Média, por cerca de mil anos, as
pessoas estavam apenas vivendo estagnadas em nome de uma
superstição.
E o que estava acontecendo em países como China e Índia enquanto
isso? Bem, eu queria saber. E para começar minha busca, tive que ler. E
foi preciso ler muito.
Ao longo da minha adolescência li os livros sagrados de algumas das
religiões mais conhecidas, como cristianismo, islamismo, hinduísmo,
budismo, taoísmo e algumas outras menos conhecidas que encontrei
pelo caminho. Também li algumas dezenas de livros de filosofia.
Mesmo assim, eu continuava perdida, pois inevitavelmente eu tinha a
mente da época em que vivia. Eu ingenuamente acreditava que religiões
eram uma espécie de “mentira socialmente aceita” para que as pessoas
lidassem melhor com as realidades da doença e da morte.
Meu raciocínio era o seguinte: vamos necessariamente sofrer e
morrer. Aparentemente, a ciência não pretende descobrir uma forma
definitiva de eliminar todas as formas de doença e a morte nos próximos

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anos ou décadas. Sendo assim, era melhor se conformar e mudar nossa


visão de mundo em vez de alterar a realidade lá fora.
No entanto, nenhuma dessas religiões possuía esse raciocínio. Por
isso era tão difícil para mim entendê-las. Por esse motivo é tão complexo
para que muitos as compreendam até hoje.
A maior parte das religiões acreditam numa existência objetiva de
divindades, de alma e de vida após a morte. Não é metáfora e nem
história da carochinha. Deus é mais real do que uma cadeira ou uma
mesa.
Mas Deus não é real da mesma forma que o amor é real. Deus e alma
são imortais. Um corpo morre. Uma cadeira pode ser destruída ou
transformada em outra coisa. Mas em meio a um mundo que muda,
Deus e espírito permanecem imutáveis.
Esse é um pensamento poderoso. O que não muda nesse mundo?
Poderíamos fazer essa pergunta aos budistas e obter uma resposta
extraordinária.
Um ser humano possui a limitação da sua razão e dos seus cinco
sentidos. Como ele sozinho poderá chegar à verdade se o seu próprio
corpo e mente são imperfeitos? A ciência seria uma tentativa
eternamente imperfeita. Até mesmo toda a matemática e toda a filosofia
que pudéssemos inventar teria a inevitável limitação do fator humano.
Mas e se tivermos uma alma? Algo que não muda, algo que
transcende uma máquina imperfeita? E se houver algo que transcende o
próprio ser humano e que pode chegar à verdade?
Creio que a grande dificuldade de nossos contemporâneos para
entender a religião resida nessa tentativa de traduzir os termos religiosos
em algo que se encaixe em nossa razão e concepção do mundo. Quando
ouvimos o termo “alma” tentamos traduzir para conceitos meramente
psicológicos.
Porém, para entender uma religião precisamos, inicialmente, ter a
coragem de caminhar rumo ao desconhecido. Precisamos nos libertar de
muitas de nossas crenças antigas que nos prendem e nos impedem de ir
mais fundo naquilo que uma religião tem a oferecer.
Senão, tudo será apenas um jogo ou uma enganação. Estaremos
enganando a nós mesmos. Assim transformamos a religião num

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substituto para uma sessão de psicoterapia ou de uma sessão de


massagem.
As religiões possuem respostas grandiosas para as questões do
sofrimento e da felicidade. Elas nos dizem porque nascemos e
morremos. E não é apenas mera especulação ou invenção. São respostas
consistentes as quais chegaram indivíduos que entregaram sua vida por
essa busca. Aceitaram até mesmo morrer por ela.
Cheguei à conclusão de que se eu desejava verdadeiramente entender
aquilo pelo qual tantas pessoas viveram e morreram, eu também
precisaria estar disposta a entregar meu tempo, minha vontade e minha
saúde. Deveria estar pronta a sacrificar muitas coisas importantes, pois
para mim essa era uma busca séria e não uma diversão de fim de semana.
É claro que também podemos nos divertir ao longo da jornada, mas
tomando o cuidado de não transformar nosso objetivo apenas na busca
de prazer. Se essa fosse minha meta exclusiva, a sociedade
contemporânea teria incontáveis opções mais atraentes.
Prossegui em minhas leituras. Por um bom tempo, sempre que eu
saía do colégio ia para bibliotecas ou sebos em busca de novos livros a
respeito desses temas. Chamou-me a atenção a questão das experiências
místicas.
Muita gente dizia que conseguia ver anjos, sentir Deus ou ter
experiências profundas de alteração de consciência. Fiquei curiosa, mas
no fundo eu duvidava. Pensava que eram enganações, alucinações ou
qualquer outra coisa. Até o dia em que isso também aconteceu comigo.
Algumas pessoas passam por essas experiências ao acaso, mas no
meu caso foi algo muito bem planejado e fruto de imenso esforço. Eu
aprendi em livros como realizar vários sacrifícios mentais e corporais
para chegar a uma experiência dessas, mas eu não queria usar qualquer
substância alucinógena. Queria que tudo fosse natural e eu estivesse
totalmente consciente.
Desde os 13 anos eu conseguia realizar ligeiras alterações de
consciência com técnicas que aprendi em livros, mas foi só quatro anos
depois que eu finalmente consegui o que eu queria: sair completamente
desse mundo.
Sendo assim, desde meus 17 anos possuo a firme convicção de que
Deus, alma e vida após a morte são reais. Existem algumas diferenças

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entre as religiões para explicar esses conceitos, mas a base de todas é a


mesma: é real e não imaginário.
Antigamente eu achava que as pessoas que passavam por essas
experiências não podiam afirmar com certeza que aquilo era “Deus”,
pois podia ser apenas um truque do cérebro.
Hoje em dia eu entendo que quem pensa isso ainda não passou por
uma alteração de consciência profunda o suficiente. Ainda não saiu
completamente desse mundo a ponto de perder a noção de tempo e
espaço. Você percorre outra realidade e não é um sonho. É mais real que
esse mundo e é o mundo em que vivemos que parece um sonho.
Existem vivências místicas nas mais diferentes religiões. Quando eu
estava começando a estudar o cristianismo, me encantei com o budismo
e acabei deixando as religiões ocidentais um pouco de lado.
Em meu livro “Meditação, estados alterados, poderes e paz” eu falo
um pouco a respeito da minha jornada pelo budismo e outras religiões
indianas como hinduísmo e jainismo. Não irei me repetir aqui, pois nesse
livro eu conto o que aprendi com a doutrina budista e experiências de
meditação. Também falo sobre meu retiro num mosteiro budista
Theravada durante um mês. Isso ocorreu em novembro de 2012.
Desde 2004 eu já tinha vontade de fazer retiros longos, mas acabei
adiando esse desejo devido a razões diversas. Uma delas foi minha
constante mudança de religião ao longo dos anos. Aos 16 anos eu tinha
vontade de passar um tempo num mosteiro católico, mas no espaço de
tempo que eu comecei esse planejamento, mudei meu foco para o
budismo. E aos 17 anos, enquanto eu fazia meu planejamento para o
mosteiro budista, mudei de religião para o jainismo.
Fiz alguns retiros curtos de fim de semana ao longo desses oito anos,
mas a vontade de fazer um retiro de um mês permanecia. Isso porque
um retiro de muitas semanas realmente nos desliga do mundo exterior e
nos permite manter o foco. Ter uma religião, ou desejar vivenciá-la de
forma intensa, significa mergulhar completamente em seu universo.
Eu tinha 25 anos quando finalmente fiz meu retiro de um mês no
mosteiro budista Theravada. Foi algo nostálgico, pois nessa época eu já
nem andava tão envolvida com o budismo, mas mesmo assim percebi
que eu tinha que fazer aquilo, pois eu sentia que uma parte do meu
passado se manteria incompleta se eu não o fizesse. Eu realmente

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desejava encerrar aquele capítulo da minha vida. Então esse retiro foi
quase como um adeus.
Meditar é como andar de bicicleta: você nunca esquece. Pode estar
um pouco enferrujado depois de alguns anos sem meditar, mas bastam
umas poucas meditações e você se lembra de tudo. Quando eu era
adolescente eu aguentava meditar praticamente o dia inteiro sem
interrupções nos fins de semana, mas no mosteiro eu ainda conseguia
meditar por longas horas ininterruptas.
Mas eu já não tinha a fantasia de passar minha vida toda dentro de
uma caverna ou algo parecido, como fazem alguns monges tibetanos.
Algumas coisas que soam como uma aventura poética na adolescência já
não têm o mesmo peso ao longo da juventude.
Lendo livros de literatura clássica ou fantasia sobre heróis que partem
numa fantástica jornada, me fazia ter o desejo de também sair desse
mundo e partir numa jornada, mesmo que temporariamente. Considero
fazer um longo retiro num mosteiro algo bem próximo disso. Afinal, lá
se está realmente em outro mundo. Não é apenas um universo de
brincadeira, mas um local no qual as pessoas possuem outras crenças e
valores e os levam mortalmente a sério.
Viajar para outro país, por exemplo, não chega nem perto do
sentimento de mudança que sentimos ao adentrar um mosteiro. A não
ser que você viage para visitar uma tribo muito afastada da civilização
ocidental ou um lugar realmente exótico sem nenhum McDonalds num
raio de muitos quilômetros.
Para começar, a maior parte dos mosteiros são construídos em
cidades pequenas e afastadas das capitais. Costuma reinar um ambiente
de silêncio. E mesmo com algumas facilidades da civilização ocidental
contemporânea que acaba adentrando esses lugares, como banheiros,
você quase poderia jurar que voltou no tempo para uma espécie de Idade
Média eterna, ou no caso do budismo para algum período antes de
Cristo.
Não precisamos necessariamente de uma máquina do tempo para
voltar ao passado. Ler livros de autores antigos já é uma primeira
experiência, mas viver como se vivia antigamente é algo que realmente
abre nossos olhos e faz com que nos perguntemos: o quão pouco
precisamos para sermos felizes?

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Quando dei adeus ao budismo mais de quatro anos atrás, eu não


imaginava que eu ainda fosse ter vontade de fazer outro retiro. Afinal,
essa experiência de um mês foi um golpe duro. Senti fome em diversas
ocasiões, sentia muito sono diariamente e tive que realizar alguns
trabalhos braçais intensos. Por que eu iria querer repetir uma experiência
tão sofrida?
É claro que a dor me ensinou algo. Ou, como disse C.S. Lewis em
seu livro: “O Problema do Sofrimento”: “Deus sussurra para nós em
nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossas dores:
elas são seu megafone para despertar um mundo surdo”.
Mas uma coisa é passarmos por sofrimentos inevitáveis. Outra coisa é
buscá-los por vontade própria. Mais adiante irei tratar mais a fundo dessa
questão quando eu falar sobre penitências e seu significado.
Não gosto de deixar coisas inacabadas. Embora eu tivesse concluído
meu capítulo sobre o budismo, eu sentia que meu capítulo sobre
cristianismo ainda estava aberto. Por isso, resolvi reler a Bíblia para ver
como ela me soaria mais de dez anos depois.
Lembro que na minha primeira leitura ela me pareceu pouco mais
que um livro de literatura. Não achei muita graça e eu definitivamente
não conseguia entender o que as pessoas viam nela.
Nessa segunda leitura consegui ver mais coisas, mas eu ainda estava
intrigada. Esse é o livro mais lido do mundo. O primeiro livro impresso
após a invenção da prensa de Gutenberg no século XIV. Inspirou
milhões de pessoas e inspira até hoje. Se eu não conseguia ver nada, era
porque o problema estava em mim e não no livro.
Resolvi insistir. Eu estava determinada a descobrir o que eram todas
aquelas histórias da Bíblia. Mas essa investigação me tomou mais de dois
anos.
Li mais de duzentos livros de cristianismo durante esse período. Fiz
resenhas de todos eles. Quem quiser, pode ler 160 delas no meu blog
“Primavera do Cristianismo” e o restante em outros blogs meus.
Inicialmente eu escrevia minhas resenhas em outros lugares. Quando elas
chegaram às dezenas, concluí que seria mais organizado começar um
blog apenas para escrever sobre cristianismo. Se eu tivesse feito a mesma
coisa na época de meus estudos de budismo, creio que eu teria

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conseguido um número de resenhas similar com meus estudos do


Tripitaka. Por não ter feito isso, esqueci muita coisa.
Mas independente de quantos livros de cristianismo eu lesse, a
resposta estava num só. O problema é que a Bíblia é um livro difícil.
Muito mais do que parece. Ela possui uma série de “segredos”
escondidos que se encaixam com outras partes. Quem gosta de montar
quebra-cabeças iria se maravilhar. Não é à toa que tantos se viciam em
estudar a Bíblia, que é uma verdadeira obra de arte.
Quando eu era criança gostava de ler histórias de detetive,
especialmente as de Conan Doyle, pois no final da história Sherlock
Holmes encaixava tudo. Ao longo da leitura tentávamos descobrir
alguma coisa, mas só no fim nos dávamos conta da beleza, de como cada
detalhe se encaixou magistralmente.
Eu sinto muito em dizer isso, mas a Bíblia humilha qualquer escritor
genial de literatura. Você pode lê-la muitas vezes e só na décima ou
vigésima leitura descobrir mais um dos incontáveis enigmas espalhados
ao longo das páginas.
Aparentemente, os monges católicos não estavam apenas brincando
ao longo dos mil anos da Idade Média. Ou eu deveria dizer: estavam
realizando uma brincadeira muito sagrada de palavras cruzadas. E nós
hoje possuímos milhões de livros com comentários bíblicos que nos
foram legados. Especialmente valiosos são aqueles escritos pelos
primeiros padres da Igreja.
A teologia possui um peso muito grande para o cristianismo porque
ele pode ter nascido em Jerusalém, mas floresceu em Roma através de
Pedro e Paulo. Tem raízes greco-romanas muito fortes e isso significa
que tem influência da filosofia grega, principalmente Platão e Aristóteles.
Em breve irei contar mais um pouco dessa fascinante jornada, que
também faz parte da nossa história. Afinal, o cristianismo moldou toda a
civilização ocidental.
Por enquanto, basta dizer que o “pouco” que li já foi o bastante para
me convencer de que o cristianismo é uma religião extraordinária. Hoje é
comum o desprezarmos como uma religião simples direcionada às
massas. Mas isso vem muito de nossa arrogância de querer fazer parte de
alguma crença elitista e exclusiva para iniciados. Talvez porque não
queremos nos identificar com pessoas iletradas e mais pobres.

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O cristianismo é por excelência e desde suas origens uma religião


para os pobres. Evidentemente, é uma religião para todos, mas com foco
nos socialmente marginalizados, nos excluídos, nos doentes, nas
prostitutas. Jesus almoçava com prostitutas e conversava com elas, algo
impensável para a época. Ele estava à frente de seu tempo.
Hoje temos uma visão deturpada do cristianismo. Esse preconceito é
fruto principalmente de um desconhecimento do que ele era e do que se
tornou.
No ensino médio aprendemos que os cristãos queimavam bruxas,
eram inquisidores e obrigavam os índios a adotar a religião cristã.
Ninguém fala nos inúmeros hospitais, colégios e universidades cristãos
fundados nos países nos quais o descaso do governo em relação à saúde
e educação para os mais pobres era quase completo. Pense em quantos
hospitais e instituições de educação com nomes religiosos você conhece
e terá uma primeira pista.
Na Idade Média os mosteiros católicos possuíam importantes
funções, como acolher os viajantes e estrangeiros, dar comida e educação
aos pobres e preservar os livros de filosofia grega e religiões nórdicas
através do incansável trabalho dos monges copistas. Temos a tendência
de considerar os cristãos como intolerantes a outras religiões, mas se não
fosse o trabalho dos padres e cristãos da Islândia nos séculos XII e XIII
através da grande escola de historiografia vernácula e arqueologia, não
teriam sido preservadas as poesias e sagas do norte da Europa.
E qual é a função dos mosteiros católicos hoje? Em muitos deles
ainda se recebe os pobres, para os quais são dadas oportunidade de
emprego e posterior inserção no mercado de trabalho através de oficinas,
que ensinam ofícios específicos. Embora a função de copista já não seja
necessária, continuam os belíssimos trabalhos de arte, incluindo
caligrafia, pintura e escultura, com a preservação de técnicas milenares.
Diversas comidas e bebidas também são produzidas, com técnicas
passadas de geração em geração. Como no passado, em alguns mosteiros
ainda se trabalha com a agricultura.
E a velha e boa hospitalidade continua, baseando-se no exemplo da
hospitalidade de Abraão, que recebeu os três anjos com a máxima
cortesia. Eu pude testemunhar essa hospitalidade em primeira mão, que
existe tanto em mosteiros cristãos como budistas.

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Em qualquer lugar do mundo você pode visitar um mosteiro e


permanecer lá por tempo indeterminado (meses, anos até), sem pagar
nenhum custo, recebendo lugar para dormir e comida. Caso tenha boa
saúde e deseje contribuir de alguma forma, pode se oferecer para ajudar
em alguns pequenos trabalhos do mosteiro, sejam eles manuais ou
intelectuais. Pode fazê-lo pelo tempo que desejar e sem obrigações.
Isso pode parecer surpreendente do ponto de vista de uma sociedade
capitalista, mas vamos recordar a respeito dos diferentes conceitos de
felicidade. Para nós, ser feliz é ter conforto e prazer. Quanto menos
tempo de trabalho e quanto mais fácil sua execução melhor, e quanto
mais tempo para o lazer, mais nos agrada.
Não é esse o raciocínio religioso. Para um cristão, somos felizes
servindo os demais. Disse São Bento: “ora et labora” ou “reza e
trabalha”. Ou, conforme as palavras de George MacDonald: “O Filho de
Deus sofreu a morte não para que os homens não sofressem, mas para
que seus sofrimentos pudessem ser como os Dele”.
É claro que em cada mosteiro existem algumas regras básicas que
devem ser seguidas. Se você resolver tocar um pandeiro durante as
missas ou rezas, após algumas advertências é provável que seja
convidado a se retirar. Na Idade Média existiam mosteiros para todos os
tipos de pessoas, desde os mais rigorosos até os mais “relaxados”.
Aparentemente, ainda é assim. Então até mesmo um sujeito bem chato e
que não costuma respeitar muito bem a “moral e os bons costumes”
podia acabar encontrando um mosteiro que o acolhesse. Havia até
mosteiros para casais. E digamos que ainda há.
Agora você pode me dizer que os cristãos que você conhece não são
assim. Você me dirá que conhece cristãos moralistas e preconceituosos.
Eles chamam a si mesmos de cristãos, talvez até frequentem missas, mas
parecem não seguir muito bem os ensinamentos de Cristo. Por que isso
acontece?
Também falarei disso mais adiante, pois se trata de um fenômeno
interessante e com uma origem bem peculiar.
Meu objetivo com esse livro não será mostrar que o cristianismo está
certo e as outras religiões estão erradas. Evidentemente, um cristão
tornou-se cristão porque encontrou suas respostas no cristianismo, que

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não alcançou em outras religiões. Podemos dizer a mesma coisa dos


budistas ou de quaisquer outros.
É um erro achar que alguém é intolerante porque considera sua
própria religião como “a verdade”. No meu retiro no mosteiro budista
conversei com uma monja budista sobre isso. Disse a ela como achava
que todas as religiões diziam mais ou menos as mesmas coisas, mas de
formas diferentes. Ela concordou com grande animação (assim como
uma irmã do mosteiro católico que eu fui também). Perguntei a ela
porque seguir o budismo então, em vez de optar por outra religião ou
mesmo não optar por religião nenhuma.
A resposta dela foi que a doutrina do “não eu”, única do budismo,
era a chave para se chegar muito longe. De acordo com o budismo, nós
sofremos porque possuímos desejos. Mas quando nos damos conta de
que não existe um “eu” que deseja, que nosso eu é ilusório, finalmente
vemos as coisas como realmetne são.
Esse ensinamento faz muito sentido e se encaixa de forma
maravilhosa na doutrina budista, fazendo com que essa religião possua
uma consistência interna admirável. Não entrarei em detalhes aqui, mas
eu poderia passar páginas e páginas elogiando esse único ponto.
Em vez disso, devo observar que esse ensinamento é muito parecido
com o que diz o próprio cristianismo. São Paulo diz que devemos
morrer para nós mesmos e renascer em Cristo. Ou seja, não servir mais
aos desejos do nosso eu egoísta, mas nos esvaziarmos desse eu. Há
várias técnicas de oração e contemplação cristãs que nos ensinam a nos
esvaziarmos cada vez mais da noção de um “eu”. Inclusive, há um guia
espiritual do século XIV chamado “A Nuvem do Não-Saber”. Assim
como a meditação budista deixa de lado o pensamento racional e apenas
se concentra em desaparecer pouco a pouco, o místico cristão é
orientado a penetrar cada vez mais nessa nuvem desconhecida, na qual a
alma se junta a Deus, perdendo sua noção de identidade humana e
relembrando sua essência divina.
O símbolo da nuvem aparece diversas vezes na Bíblia. Aparece no
Monte Sinai, quando Moisés fala com Deus. Surge no episódio da
transfiguração de Jesus, quando o Pai fala com o Filho. Também aparece
quando o Anjo Gabriel anuncia a Maria que será a Mãe de Deus. Surge
em passagens do Apocalipse. Há quase vinte trechos em que uma nuvem

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aparece num contexto da presença de Deus. Falarei disso mais adiante


no livro.
Meu ponto é que cada pessoa é livre para acreditar que sua religião é
a verdade, e ainda assim respeitar e admirar as demais. Pessoas que
acreditam que nenhuma religião é a verdade, também considerariam
como “errado” quem defende que uma delas é a verdade. Ou seja, até
mesmo numa postura aparentemente respeitosa existe algum tipo de
julgamento, do tipo: “considero como verdade que nenhuma religião é a
verdade”. São Tomás de Aquino costumava apontar os problemas
lógicos desse tipo de raciocínio. Como “solução”, alguns filósofos
contemporâneos deixam de lado a lógica aristotélica, considerando-a
antiquada. Geralmente é tido como antiquado o que não se adapta à
forma contemporânea de interpretar a vida.
Eu irei, em diversos momentos desse livro, defender a forma de
pensar cristã, mas sem nunca idealizá-la além do necessário. Toda
religião possui elementos divinos e humanos. Dessa forma, seria absurdo
negar os erros que diversos cristãos cometeram ao longo de toda a
história.
Não somente o cristianismo recebeu uma revelação de Deus.
Podemos citar o islamismo, que surgiu através da linhagem de Ismael,
filho de Abraão. Religiões dos mais diversos países receberam uma
influência divina direta. Eu acredito nisso, já que Deus não é somente
Deus dos judeus ou dos cristãos, mas de todos.
O próprio cristianismo reconhece que é possível ser salvo mesmo
sem acreditar em Deus, mas ajudando os outros. Então volta a pergunta:
por que ter uma religião se basta fazer o bem?
Minha resposta é que existe uma diferença fundamental entre ter
como meta portar-se de forma ética ou ter a ética como um meio para
atingir o espírito. Pode parecer uma sutileza, mas faz toda a diferença.
Na sociedade em que vivemos, portar-se de forma ética tem como
fim um resultado material: ter mais saúde, mais prazer, mais paz, sentir-
se bem, etc.
Não sabemos explicar ao certo porque todo ser humano merece ser
tratado de forma digna. Não gostamos muito do que aconteceu na
Segunda Guerra Mundial. Nós nos demos conta de que nem tudo pode

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ser relativo. Não sabemos bem porquê. No máximo, já tivemos alguma


experiência de dor e sofrimento e não desejamos isso para os outros.
É muito mais claro explicar isso em termos religiosos: cada um de
nós é a imagem e semelhança de Deus. Cada um é precioso porque
possui uma alma imortal, concedida a nós diretamente por Deus.
Na maior parte das vezes, há e houve violência associada a religião
quando ela se misturou com política, surgindo o desejo por dinheiro e
poder.
Por outro lado, é muito raro que toda religião defenda um pacifismo
completo, ao estilo daquele que Tolstói defendeu. Voltarei nesse ponto
complexo mais tarde.
Minha meta central com esse livrinho é relatar um pouco da minha
experiência recente de cinco semanas num retiro católico. Contarei um
pouco do que vivi e do que aprendi. Quando eu julgar necessário, farei
algumas comparações desse retiro com o budista. Não com o intuito de
decidir qual foi o melhor, já que os dois foram maravilhosos, cada um de
sua maneira particular. Minha intenção será complementar a experiência
de um com a riqueza da experiência do outro.
Aproveitarei a oportunidade para dividir o livro em duas partes.
Nessa introdução já falei bastante de religiões e de cristianismo, mas
prosseguirei essa nossa conversa ao longo dos capítulos da primeira
parte. A segunda parte será o relato do retiro em si, mas irei interromper
o relato conforme eu julgar necessário fazer comentários relacionados
ainda não mencionados anteriormente.
Faz exatamente uma semana que retornei do meu retiro, então tudo
está fresco na memória e a experiência ainda ressoa fortemente em meu
coração. Meu organismo ainda está se ajustando à volta da minha
alimentação e período de sono convencional. Vez ou outra ainda recordo
de rezas e cânticos repetidos incontáveis vezes. De fato, era outro
mundo. É surpreendente nos darmos conta de que religiões como essa
ainda existem com muita força, mesmo após milênios.
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão”
disse Jesus em Mateus 24:35.

Wanju Duli, Porto Alegre, 23 de março de 2017

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Wanju Duli

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PARTE I
"Eu costumava desejar que os Contos Árabes fossem verdade: minha imaginação
voou por influências desconhecidas, em poderes mágicos, e talismãs... Eu pensei que a
vida pudesse ser um sonho, ou eu um Anjo, e todo esse mundo uma decepção, meus
companheiros anjos por um dispositivo brincalhão estariam se escondendo de mim, e
me enganando com a aparência de um mundo material"

Apologia Pro Vita Sua, por John Henry Newman


Visitando Bruno

Capítulo 1: O que eu aprendi com o


cristianismo

“Não julgues ter feito progresso algum, enquanto não te reconheceres como inferior
a todos”

Imitação de Cristo

– Eu não tenho nada contra Jesus. Eu não gosto dos cristãos.


Quantas vezes você já não escutou essa frase? Ou a pronunciou?
Para nós, Jesus é o profeta bonzinho da Bíblia, que não queria brigar
com ninguém e só queria ajudar os pobres. Por outro lado, muitos dos
cristãos que vemos por aí estão bem longe dessa imagem.
Por que será que esse fenômeno acontece? Porventura os cristãos
não conhecem sua própria religião e não leem a Bíblia?
É verdade que existem cristãos que não frequentam missas, não leem
a Bíblia e não conhecem muito mais de cristianismo do que não cristãos.
Chamam a si mesmos de cristãos ou porque sua família é cristã ou
porque simpatizam com Jesus.
Isso não é muito diferente do que acontece em países budistas ou
muçulmanos. Nós, ocidentais, quando conhecemos budistas nos
deparamos ou com monges que tiveram uma sólida formação ou com
intelectuais de classe média que leram e praticaram muito. Assim ficamos
com a falsa impressão de que só o budismo é uma religião com uma
doutrina bastante lógica e complexa e que seus praticantes são sérios,
enquanto o cristianismo seria uma religião das massas ignorantes.
No entanto, há muitos países asiáticos com a maior parte da
população de budistas e não devemos supor que todos eles conhecem
sua religião a fundo. Toda religião possui uma parte mais complicada e
uma mais simples, para agradar tanto a gregos e troianos.

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Wanju Duli

Isso é natural e aceitável. Ninguém possui tempo e disposição para


conhecer a fundo todas as áreas do conhecimento. Eu, por exemplo, não
conheço a fundo geologia e botânica. Mesmo assim, me vejo no direito
de cuidar de uma planta e de ter um colar com uma pedrinha. É claro
que o geólogo achará que sua área de atuação é uma das mais
importantes (e pelo visto Darwin também achava) e defenderá que o
mundo avançaria bastante se mais pessoas soubessem geologia.
Tendemos a achar isso de nossa área de interesse, seja ela qual for.
Um nutricionista pode achar que minha escolha alimentar é algo
muito sério e que estou cometendo uma falta grave por ter optado por
certa sobremesa. Caso eu vote sem conhecer a fundo o meu candidato,
posso ser criticada por muita gente envolvida ativamente na política.
Então, se alguém simplesmente declara “sou cristão” sem saber quase
nada de cristianismo e sem agir como um, isso pode ser visto por muitos
como devastador.
Eu conheci tailandeses que não gostavam nem um pouco de budismo
e o consideravam uma religião bastante supersticiosa. Já nossa imagem
do islamismo é ainda mais deturpada. Devido ao sensacionalismo da
mídia ocidental, achamos que todo muçulmano é terrorista, mas nada
poderia estar mais longe da verdade.
Existem muitos muçulmanos que vivem como “católicos não
praticantes”, apenas declarando-se como muçulmanos, devido à tradição
da família, mas vivendo uma vida ocidental contemporânea sem seguir
nenhum tipo de dogma.
Claro que em toda parte também há cristãos, muçulmanos, budistas e
hindus que praticam corretamente cada pequeno ponto de sua religião.
Alguns fazem somente o mínimo que a religião prescreve, enquanto
outros se sentem encorajados a realizar práticas e estudos extras.
Embora a comparação não seja perfeita, coloquemos dessa forma: ter
uma religião é como fazer parte de um clube. Digamos, um clube
universitário: vocês têm certas regras e se encontram uma vez por
semana. Algumas vezes há atividades para a próxima semana e eventos
em datas especiais. Enquanto está no clube, você tenta fazer tudo certo,
pois há um acordo.
Os diferentes membros do clube diferem entre si. Alguns chegam
bem antes, enquanto outros sempre chegam atrasados. Há o cara mais

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Visitando Bruno

entusiasmado que organiza tudo e faz esforços extras para que as coisas
funcionem. Outro está lá só por curiosidade e costuma dormir às vezes.
Ou seja, alguns levam mais a sério e outros nem sabem bem o que estão
fazendo lá e nem se importam.
Uma das participantes só está lá porque gosta de cantar. Outra
compareceu porque acha um lugar mais fácil para ajudar os outros com
trabalhos de caridade. E tem até um sujeito que leu todo o livro de regras
do clube e todos ficam bem impressionados com isso, pois alguns sequer
sabiam que o tal livro existia. Só estavam lá para socializar e comer.
Eu já conheci um cristão que frequenta a igreja há muitos anos, desde
criança, e nem sabia que a Bíblia era dividida em Velho e Novo
Testamento. Também conheci budistas japonesas idosas, que
frequentam o templo budista há décadas, e não tinham certeza se o
budismo tinha surgido na Índia.
Isso é surpreendente? Nem tanto. Conhecer a teoria de uma religião
ajuda muito, principalmente para domar nossa parte intelectual rebelde,
que está repleta de ideias seculares que toma como verdade absoluta,
mesmo que de forma inconsciente.
Mas por mais importante que seja ter uma boa base teórica, a prática
ainda é o cerne de uma religião. Quando a escolástica começou a
dominar as universidades medievais e os sacerdotes se tornaram
extremamente intelectualizados, praticamente reduzindo a religião ao
estudo da teologia, houve um movimento místico no final da Idade
Média, com personagens famosos como São João da Cruz e Santa Teresa
de Ávila.
O filósofo Peter Kreeft tem uma boa piada sobre isso: o que você
prefere: assistir a uma palestra sobre o céu ou ir para o céu? Lembro que
quando li a pergunta eu me senti ligeiramente tentada a escolher a
palestra, principalmente se fosse dada por anjos e santos. Nesse
momento eu me dei conta de que a piada contava uma verdade. Ela nos
mostra o quanto vivemos no mundo da imaginação e abstração, e
perdemos a percepção da realidade.
O foco do budismo são as meditações e o foco do cristianismo são as
rezas. É verdade que o catolicismo dá muita importância aos
sacramentos, principalmente a eucaristia, de forma que às rezas

25
Wanju Duli

poderíamos adicionar as missas, que seriam muito mais que um mero


ritual.
Ainda assim, é tudo prática. Algumas mais simbólicas e ritualísticas,
enquanto outras são mais diretas. No budismo também temos as
recitações.
Os livros e a teoria servem para nos ajudar na prática. Pessoas que já
possuem uma prática realmente impressionante podem não precisar
muito de livros.
Na minha época de estudo dos sutras budistas, eu gostava tanto de
meditar que muitas vezes acabava por negligenciar minhas leituras. Isso
me levou a uma ótima experiência de meditação, mas acabei ficando com
algumas grandes lacunas na parte teórica.
De certa forma, sempre acreditei que abandonei o budismo porque
não estudei o bastante. Fiquei com uma interpretação muito relativista e
secularista da religião. Eu meditava como queria, em vez de me apoiar
nos escritos dos grandes mestres e seguir seus sábios conselhos.
É claro que essa minha arrogância me atrasou muito e até me afastou
do budismo, o que até hoje eu considero uma pena. É estranho pensar
nisso, pois sei que tenho toda a liberdade de voltar a estudar e praticar
como antigamente.
De qualquer forma, eu estava determinada a não repetir esse mesmo
erro com o cristianismo. Por isso, decidi que antes mesmo de ir a fundo
na prática, para não realizá-la de forma errada eu queria ter uma sólida
base de teoria.
Então eu li e descobri porque as coisas eram feitas exatamente
daquela forma. Mas levei muito tempo para entender tudo aquilo. Não
era, de forma alguma, aleatório. Meus amigos, Voltaire estava errado.
Eu também sabia que era um erro ficar só nos livros. Então aos
poucos experimentei.
Após ler tantas biografias de santos, é um pouco emocionante saber
que estamos fazendo parte de tudo aquilo. Fazendo o que eles fizeram,
sentir o que eles sentiram.
Existem cristãos de vários tipos, como nossos membros do clube. Há
os que se recolhem em mosteiros ou eremitérios e vivem suas vidas em
grande isolamento e silêncio.

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Visitando Bruno

Os secularistas contemporâneos argumentam que tais pessoas nada


estão contribuindo com a sociedade “apenas rezando”. Em primeiro
lugar, é raríssimo achar uma pessoa que apenas reze, pois a não ser que
se tenha chegado ao nível de certos yogues hindus que não precisam
mais comer ou dormir e permanecem em uma meditação praticamente
eterna (levantando-se uma vez a cada semana ou meses), todos
trabalham para comer.
É uma regra até mesmo dos eremitas do deserto: todos contribuem
com algum tipo de trabalho para ter direito ao pão diário. Por outro
lado, quem busca esse tipo de vida costuma trabalhar com alegria, já que
o objetivo de tanta reza e contemplação é exatamente aprendermos a
servir ao próximo com mais amor, pois é dito que adorar a Deus e servir
ao próximo são mandamentos semelhantes.
Em segundo lugar, a reza e a contemplação por si só já são tidas
como atividades sublimes. Quem não acredita em Deus pode achar que a
reza é apenas uma atividade de autosugestão, um placebo. Porém, um
religioso realmente acredita que Deus existe e que sua reza chega a ele. E
que através das rezas Deus pode realizar grandes mudanças no mundo.
O cristianismo considera que a reza e a intenção são superiores a
qualquer ação. A própria Madre Teresa de Calcutá nos diz que Deus não
nos julgará com base em quantas pessoas ajudamos, mas em quanto
amor colocamos em ajudar.
Esse é um pensamento muitas vezes incompreensível para quem só
se importa com resultados palpáveis. É dito no cristianismo que a fé
conta mais que as obras. É um ensinamento complexo.
Há pessoas que não entendem direito o significado de rezar e
meditar. Hoje em dia tendemos a considerar útil apenas aquilo que nos
mostre um resultado imediato. O máximo de utilidade que as pessoas
hoje enxergam na meditação é “relaxamento”, para descansar do estresse
do trabalho. É verdade que a meditação pode relaxar, mas ela jamais foi
concebida com esse intuito.
O objetivo final das asanas, ou posições corporais da Yoga, é nos
preparar para aguentar por longas horas a meditação em posição de
lótus.
Na verdade, o objetivo de meditar não é “relaxar”, mas torturar o
corpo. Parece cruel, mas é apenas quando nosso corpo passa pelo

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Wanju Duli

inferno, aguentando longo tempo na mesma posição, calor intenso, frio,


coceiras, dores, etc, que ele passa pelo teste e a mente se prepara para
penetrar nos estados profundos de meditação.
Quando o corpo é fraco, a mente pode até desejar voar mais longe,
mas o corpo simplesmente não aguenta e desaba. No cristianismo
também se fala disso: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O
espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mateus 26:41). Nesse
momento poderíamos meditar sobre um dos maiores mistérios dos
Evangelhos: a descida de Cristo ao inferno.
No capítulo sobre penitências tratarei mais de assuntos como esse.
Por enquanto, esse fica como mais um exemplo de como apenas estudar
pode nos limitar. Precisamos viver aquilo que acreditamos.
Na Grécia antiga e na Índia da época de Buda as pessoas realmente
viviam aquilo que acreditavam. As filosofias da Grécia não eram apenas
intelectuais, mas quase como religiões, com preceitos éticos para se
aplicar na vida. E na Índia até mesmo casais abandonavam o mundo
juntos para meditar nas florestas.
A filosofia contemporânea é feita de acadêmicos que apenas debatem
as diferentes filosofias como se fossem brinquedos curiosos, um mero
jogo. Aquilo não parece ter nenhuma relação direta com seu dia a dia ou
com suas felicidades.
Os filósofos de hoje geralmente são secularistas, materialistas e
ateístas, que não possuem em relação à filosofia nenhuma esperança e
ilusão além de considerá-la sua diversão e seu ganha-pão. Resolvem seus
problemas tomando medicamentos. Nem imaginam que a filosofia possa
ser de qualquer valia. As antigas religiões gregas como o orfismo são para
eles apenas mitos bonitos, como livros de literatura. E a tal da filosofia
medieval é considerada uma repetição sem graça daquela praga que
atrasou a ciência chamada cristianismo.
Senhoras e senhores, deixem que Nietzsche tome seu café e filosofe
sobre ele. Em sua autobiografia, provavelmente o capítulo sobre o café é
o mais útil. Chamou seu livro de “Ecce homo”, que foi exatamente o
que disse Pilatos ao mostrar Jesus açoitado para a multidão.
Ao longo das obras de Nietzsche, percebe-se com clareza que sua
obsessão em criticar o budismo e o cristianismo, especialmente esse
último, mostra a forte influência que as religiões tiveram sobre ele. Uma

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Visitando Bruno

influência jamais totalmente superada. Diz ele: “Se houvesse deuses,


como poderia eu não ser deus? Portanto, não há deuses”.
Eu acrescentaria que um pensamento similar pode ter dado origem a
algumas formas de protestantismo. Não me entendam mal, pois eu
muito admiro vários protestantes. A grande questão é a relação deles
com o conceito de hierarquia.
O catolicismo é repleto de hierarquia dos pés à cabeça. Portanto, se
você não gosta de hierarquia e acha que ela é um mal em si mesmo, fique
bem longe do catolicismo. Porém, se você está disposto a abrir sua
mente para uma nova forma de ver o mundo, prepare-se para um
raciocínio interessantíssimo.
Nós, seres humanos, até que ocupamos um grau bem elevado da
hierarquia cristã, pelo simples fato de sermos humanos. Segundo a
Bíblia, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. O Corão nos diz
que os humanos eram em alguma medida até mesmo superiores aos
anjos, já que Deus ordenou que os anjos se ajoelhassem diante de Adão.
Lúcifer se negou a fazer isso e caiu por seu orgulho.
O Gênesis nos diz que poderíamos comandar os animais. Sendo
assim, o cristianismo considera que todos os animais pertencem a uma
categoria inferior à humana. Quando Adão e Eva caíram por
desobedecer, os animais não mais os obedeceram. E a partir daí Adão e
Eva não poderiam mais sobreviver apenas com o consumo dos frutos do
jardim do Éden. Eles também teriam necessidade da carne dos animais
para consumir e para se aquecer no inverno.
Eis aí um dos motivos de os cristãos não serem vegetarianos
(retomarei essa questão num capítulo posterior). Eles acreditam que
originalmente o plano de Deus era que o homem e os animais vivessem
em harmonia. Eles não precisariam matar animais e nem plantas, já que
consumiriam apenas os frutos que não levassem à morte das plantas,
pois certos frutos são próprios para consumo.
No entanto, uma vez que o homem pecou, Deus tinha duas escolhas:
poderia destruí-lo ou poderia dar-lhe uma nova chance. Por misericórdia,
o perdoou. Mas Deus não é apenas misericordioso: ele é justo. Respeita
nossa liberdade, mas também não nos trata como crianças. É como um
pai: quer proteger e nos ama, mas também deve nos educar e nos dar
sermões e castigos quando necessário.

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Wanju Duli

Se o Deus cristão fosse um tio ou um avô, não iria nos punir, mas
somente nos perdoar sempre, mesmo que nos tornássemos muito
mimados. Muitos não cristãos (ou até cristãos em alguns casos) possuem
uma concepção de Deus como se ele fosse um ser bonzinho que perdoa
tudo, um cara que não se preocupa com nada. Digamos: um hippie!
Tudo está na paz, tudo está bom sempre. Não há problemas. Paz e
amor.
Será que é assim que um pai e uma mãe devem agir em relação a seus
filhos? É assim que devem educá-los? Sempre dê a eles tudo o que
querem. Não os corrija quando fizerem coisas erradas. Disso iria resultar
não um ser humano consciente, mas um pequeno monstrinho egoísta
que futuramente causaria sua própria destruição e a destruição dos
outros.
Deus poderia ter deixado passar o erro de Adão e Eva: “Comeu do
fruto proibido? Sem problemas! Eu sou Deus, posso tudo e tenho o
poder de perdoar e de fazer um novo teste. Podem falhar nesse teste
quantas vezes quiserem. Nem precisam se esforçar. Vamos morar no
Éden a vida inteira vivendo eternamente no paraíso da infantilidade, sem
aprender nada”.
Muitos criticam esse trecho do Gênesis do “teste”, questionando
porque Deus proibiu o consumo dos frutos de certa árvore do jardim. A
resposta para isso é muito simples: se não houvesse algum tipo de
proibição no Éden, não haveria liberdade de escolher entre o bem e o
mal.
Quem faz o bem quando a única escolha disponível é o bem, não está
fazendo realmente uma escolha. Podemos até argumentar que Adão e
Eva estariam sendo bons porque eram fantoches de Deus.
Porém, a liberdade é considerado algo tão precioso para o
cristianismo que ela está até mesmo acima do bem. Deus deu a liberdade
de os humanos escolherem entre o bem e o mal. Também a deu a seus
anjos. Como resultado, um terço dos anjos caíram e se tornaram
demônios. O teste dos seres humanos ainda está sendo realizado e só
será concluído na segunda vinda de Cristo, mas o teste dos anjos já
terminou.

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Visitando Bruno

Segundo a metafísica católica, um anjo jamais pode cair agora e um


demônio jamais pode voltar a ser anjo. Eles já fizeram suas escolhas no
início dos tempos e essas escolhas são irreversíveis.
Nós humanos também temos apenas a escolha dessa vida. Claro que
é uma única vida repleta de incontáveis oportunidades, já que a maior
parte de nós vive muitos anos. Crianças vão diretamente para o céu e
adolescentes são julgados com menos rigor, pois tiveram menos tempo e
menos consciência para fazer uma escolha plena. Será que alguém se
baseou no cristianismo para construir nosso sistema penitenciário?
Religiões indianas como o budismo e o hinduísmo, e também o
espiritismo, defendem que não temos apenas essa vida para completar o
nosso processo de evolução espiritual.
Não irei argumentar a favor de uma ou outra posição, mas as duas
possuem sua lógica. Na vida temos exemplos de várias situações
reversíveis e irreversíveis, o que poderia se refletir no pós-vida.
É verdade que na visão indiana podemos sentir menos urgência em
buscar a salvação, e relaxar. Podemos nos iluminar na próxima vida, ou
na outra, certo? Já no cristianismo ou no islamismo existe certa pressa.
Temos apenas uma chance e essa escolha irá refletir em nossa
eternidade.
Não é à toa que os mosteiros medievais eram lotados. Muitos temiam
o inferno e ansiavam pelo céu.
Eu considero os escritos medievais poderosíssimos exatamente pela
ênfase na existência do inferno. Hoje em dia os escritores cristãos são
muito cuidadosos para não ofender o relativismo e o secularismo de seus
leitores, já que muitos deles não acreditam no diabo e alguns apenas
creem em Deus a muito custo.
Confesso que eu nutro certa admiração pelo espírito medieval. Eles
tinham coragem para viver e morrer pelo que acreditavam. Eles
possuíam uma fé inabalável. Hoje até duvidamos do que nossos olhos
veem e no máximo entregaríamos nossa vida por um pedaço de bolo.
Estou exagerando, é claro. Só que hoje em dia nosso espírito se
tornou mais forte para lutar por causas políticas do que pelas religiosas.
Isso porque o mundo se reduziu à matéria e só nos preocupamos com o
que acontece nesse mundo e não no outro.

31
Wanju Duli

É claro que devemos lutar pelas grandes causas desse mundo


também. Nós temos um corpo por uma razão. O cristianismo é uma
religião que teve um grande triunfo de valorizar o corpo, diferente de
muitas outras religiões nas quais Deus é apenas espírito.
No cristianismo, o Deus é um Deus de carne. Jesus tornou-se
humano, como nós. Isso é forte. Existem religiões nas quais os Deuses
vão passear aqui na Terra de vez em quando. Mas nessas religiões a
história geralmente é cíclica e os eventos se repetem.
Para os cristãos, a nossa história é única. Muitos acham o conceito de
história linear limitado. Mas a grande questão do cristianismo é que o
tempo aqui da Terra possui alguma relação com o tempo do outro
mundo.
A metafísica cristã nos ensina que há dois tempos: kronos e kairós.
Kronos é o nosso tempo, o tempo do relógio. Kairós é o tempo dos
anjos e dos seres que vivem no outro mundo. Por isso um anjo pode se
mover tão rápido que nos pareceria instantâneo. Anjos possuem vários
poderes em relação a nosso tempo e espaço, por isso podem realizar
tantos milagres. Já Deus se encontra fora do tempo. Ele é o Senhor do
tempo e o criou, assim como criou tudo o que existe.
Assim veio a célebre piada de Santo Agostinho em seu livro
“Confissões”: o que Deus estava fazendo antes de criar o mundo?
Estava criando o inferno para quem fizesse essa pergunta. Mas depois
corrige sua piada e dá a resposta real: o tempo não existia, portanto não
faz sentido falar no que Deus estava fazendo “antes”. Ele criou o tempo
(o nosso tempo, kronos) junto com o mundo.
Mas voltemos ao jardim do Éden para concluirmos nosso raciocínio.
No cristianismo possuímos o conceito de pecado. E o maior pecado, do
qual nascem todos os outros, é o orgulho.
Foi pelo orgulho que Lúcifer caiu, após descobrir que uma mera
humana, Maria, se elevaria acima de todos os anjos.
Originalmente, os humanos possuíam um status muito alto no Éden.
Lúcifer teve inveja e quis acabar com isso. A propósito, na hierarquia de
pecados a inveja está em segundo lugar no ranking dos mais perigosos.
Eva comeu o fruto da Árvore do Conhecimento por orgulho, porque
queria ser como Deus, conhecedora do bem e do mal. De certa forma,
Satanás não mentiu: Eva não morreu imediatamente após comer da

32
Visitando Bruno

árvore e seus olhos se abriram. Por outro lado, ele distorceu a verdade.
Afinal, a partir de então, Adão e Eva teriam corpos mortais e poderiam
morrer espiritualmente ao fazer o mal. Cair no inferno significa morte
espiritual.
Por que Deus tornou Adão e Eva mortais? Por que criou o inferno?
Queria apenas castigá-los?
É necessário ter muito cuidado aqui. Não podemos dizer que Deus
criou o inferno. Seria mais correto dizer que Deus criou a liberdade.
Através dela, os anjos caídos e os humanos criaram o inferno para si
mesmos.
Céu e inferno não são lugares, mas estados mentais. Isso é afirmado
com clareza pela metafísica cristã. Existe vida após a morte, certamente,
mas não é a mesma vida a qual chamamos vida. Pois o que conhecemos
como vida possui um corpo material e uma mente.
Mas não conseguimos sentir nossa alma diretamente. Isso faria parte
do teste de Deus, que se esconde de propósito. Afinal, se Deus se
mostrasse claramente a todos, a fé não seria necessária e seríamos bons
com os outros por medo. Deus quer que façamos o bem de forma
natural e por amor.
Através das experiências místicas podemos sentir Deus e nosso
espírito. Isso é feito quando domamos o corpo e a mente, em vez de
sermos escravos deles. O budismo consegue isso por técnicas
meditativas. O cristianismo o faz por técnicas similares de rezas e
contemplações, mas isso é explicado por autores místicos específicos,
como São João da Cruz no ocidente e por diversos místicos cristãos
ortodoxos no oriente.
Adão e Eva causaram a si mesmos a própria mortalidade porque
pecaram por orgulho. Deus sabia que se eles ainda fossem imortais e
continuassem a habitar o jardim do Éden jamais seriam capazes de
corrigir seu orgulho.
Somente a morte e o sofrimento podem corrigir o nosso orgulho.
Isso não é um castigo. É um mal que penetrou no mundo através da
desobediência.
Nós, mesmo sabendo que um dia morreremos, ainda assim teimamos
em ser egoístas. Imagine então se fôssemos imortais! Passaríamos a vida
apenas a acumular dinheiro e teríamos tanto cuidado com nosso corpo

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Wanju Duli

de carne imortal que passaríamos por um grande sofrimento se ele fosse


danificado.
Ao sermos mortais, podemos nos focar mais no que realmente
importa. Temos mais vontade de dividir nossas experiências e
conhecimentos com os outros, pois ao morrermos sabemos que um
pedaço de nós ainda ficará. Mesmo ainda sendo uma motivação um
pouco egoísta, já diminui um pouco nosso orgulho.
Existe um texto que fala sobre as feridas de Adão. Após o pecado
original, restaram sequelas. Adão é atingido pela primeira ferida da
ignorância e já não vê as coisas com clareza. Originalmente, no Éden, ele
via tudo pela luz de Deus. Após a ferida, ele já não enxerga as coisas
como são. Ele deseja adquirir conhecimento do mundo ao seu redor por
motivos frívolos: por curiosidade, pelo desejo de dominá-lo. Antes, ele
desejava conhecer o mundo para assim poder honrar a Deus.
A segunda ferida é a ferida da vontade. Em vez de amar a Deus em
primeiro lugar, ele ama as criaturas, ama as coisas passageiras. Não busca
servir seu Criador, mas busca seu conforto físico, emocional e
intelectual.
Isso me fez recordar da seguinte frase de C.S. Lewis, do texto:
“Teologia é poesia?”: “Eu acredito no cristianismo como acredito que o
sol nasceu, não apenas porque o vejo, mas porque por ele vejo todo o
resto”.
O pecado veio ao mundo por causa de um homem e de uma mulher:
Adão e Eva. Portanto, ele também seria retirado do mundo por um
homem e uma mulher: Jesus e Maria.
Ao longo do Velho Testamento lemos as diversas histórias da aliança
de Deus com a humanidade. E no Novo Testamento seria estabelecida a
Nova Aliança, que é a definitiva: Jesus morreu na cruz para que o
imitemos. Através de seu exemplo, podemos morrer para nossos
pecados e renascer em Cristo.
Muitos estudiosos da cabala quebram a cabeça para descobrir como
escalar a Árvore da Vida e chegar a Deus. O cristianismo declara com
simplicidade e elegância: o que é a Árvore da Vida? É Jesus Cristo. É
através de Cristo que se obtém a vida perdida no Éden.
Aqui falamos da restauração de nossa vida espiritual ferida pelo
pecado. Isso é possível porque Jesus morreu na cruz. E nos salvamos

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Visitando Bruno

quando somos crucificados com ele. Nas palavras de Bento XVI, no


livro “A infância de Jesus”:
"Deus é amor. Mas o amor pode também ser odiado, quando exige do homem
que saia de si próprio para ir além de si mesmo. O amor não é um romântico
sentimento de bem-estar. Redenção não é bem-estar, um mergulho na
autocomplacência, mas uma libertação do autofechamento no próprio eu. Essa
libertação tem como preço o sofrimento da Cruz"
Também nos diz o autor no mesmo livro sobre a astrologia:
"Gregório Nazianzeno diz que, no próprio momento em que os magos se
prostram diante de Jesus teria chegado o fim da astrologia, porque a partir de então as
estrelas teriam girado na órbita estabelecida por Cristo”.
E aqui, finalmente, voltamos à questão da hierarquia: no grau mais
baixo estão os seres vivos não humanos da Terra, como as plantas e os
animais. Acima deles estão os humanos. Logo acima dos humanos estão
os anjos e santos. Acima deles está Maria. E acima de Maria somente a
Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, que possuem o mesmo
grau da hierarquia. Antigamente houve aqueles que diziam que o Pai
vinha em primeiro lugar, o Filho em segundo e o Espírito Santo em
terceiro, mas hoje se diz que os três possuem a mesma importância.
Nietzsche não acreditava em Deus ou em deuses porque não
suportava a ideia de ele mesmo não ser Deus. E mesmo que ele tenha
dito isso para escarnecer de seus leitores, como de costume, não deixa de
ter um fundo de verdade.
Os protestantes não se importam que Deus ocupe o grau mais
elevado da hierarquia. Afinal, ele é Deus. É tão elevado que não chega a
gerar inveja, mas sim admiração. Os anjos também não pareciam suscitar
maiores problemas.
Por outro lado, por que deveria haver diferença hierárquica entre
seres humanos? Afinal, não somos todos iguais diante de Deus? Não
somos todos igualmente amados?
Para os protestantes, parecia um problema que Maria estivesse acima
dos próprios anjos e que os santos adquirissem um status similar a um
anjo. Pois não era com as ações que nos salvávamos e sim com a fé.
E, de fato, a Igreja católica afirma isso: seres humanos que se tornam
santos em vida poderão subir diretamente para o céu e adquirem o
mesmo status moral de um anjo, embora eles sejam diferentes em

35
Wanju Duli

natureza. E, segundo a mesma igreja, o caminho mais direto e garantido


de se tornar santo é a Ordem religiosa (os sacerdotes) ou a vida
consagrada (monges, monjas, frades e freiras). Muitos leigos casados já
foram beatificados pela Igreja, mas eles geralmente o foram por serem
pais de santos de vida consagrada. Há poucas exceções a essa regra.
É claro que isso era um golpe duro para os protestantes. Para ir
diretamente para o céu, seria necessário abdicar de quase todos os
prazeres da vida e ter uma vida muito sofrida de entrega total. É dito
pelos católicos que a maior parte dos leigos precisa passar um tempo
pelo fogo do purgatório antes de se purificarem e ir para o céu.
Os protestantes resolveram a questão com a seguinte solução: não
existe purgatório, mas apenas céu e inferno. Esse era um bom jeito de
eliminar a hierarquia entre os humanos.
É bom lembrar que o budismo Theravada apresenta problema
similar. Para viver da forma que Buda ensinou, a única solução é tornar-
se monge. É bem aceito no budismo que para um leigo atingir a
iluminação é quase impossível e ele terá que se contentar em desejar um
bom renascimento na próxima vida, produzindo bom karma.
O objetivo da vida budista é destruir o karma, tanto o bom quanto o
ruim, e escapar da roda do samsara. Mas isso só era possível para
monges com tempo disponível para isso. Os leigos com famílias, que
precisavam trabalhar duro para sustentar esposa e filhos, deviam aceitar
o prêmio um pouco inferior de renascer como deva ou humano.
A mesma coisa nos diz o catolicismo: céu é coisa para padres e
freiras, e principalmente para monges e monjas que se retiraram do
mundo. Os leigos casados e com filhos devem se contentar com o
purgatório.
Será que isso soava atraente? Definitivamente não. Afinal, todos
temos um pouco do orgulho de Lúcifer e desejamos o prêmio maior.
Queremos a iluminação budista e não um bom renascimento. Ansiamos
pelo céu e não apenas pelo purgatório.
Mas queremos ter o grande prêmio com o menor esforço. Digamos
que esse é um raciocínio um pouco “contemporâneo”, mas que sempre
existiu.
A maior virtude do cristianismo é a humildade e o maior pecado é o
orgulho. Por isso, me parece que faz bastante sentido esse raciocínio do

36
Visitando Bruno

catolicismo: devemos ser humildes o bastante para aceitar o prêmio


menor.
O cristianismo é difícil porque nossa meta é desejar ser o menor de
todos. Nós desprezamos hierarquias porque, como Nietzsche, não
queremos ver alguém acima de nós, seja Deus, anjos, santos ou monges.
Pode ser que uma parte mais nobre dentro de nós despreze a
hierarquia porque se importa com os menores que estão abaixo de nós.
Mas outra parte nossa não gosta da hierarquia porque também não quer
estar abaixo de ninguém.
O Shin budismo da Terra Pura surgiu dos esforços de Shinran
Shonin de levar o budismo em uma forma simplificada a pessoas sem
tempo disponível para viver a vida de um monge. Havia muitos
camponeses que não sabiam ler e escrever e que precisavam trabalhar
duro. Como atingir a iluminação desse jeito?
Ele pesquisou a fundo os sutras budistas até que encontrou um
caminho alternativo de iluminação, através do voto do Buda Amida. Até
hoje essa forma de budismo é muito popular no Japão.
Não por acaso, as formas protestantes do cristianismo fizeram muito
sucesso nos países mais ricos. É claro que as famílias mais abastadas
queriam uma forma de salvar a sua alma sem precisar realizar muitos
sacrifícios financeiros e sem abrir mão de seus prazeres.
E até hoje nos países ocidentais mais ricos os cristãos protestantes
geralmente são maioria em relação aos católicos. Da mesma forma, nos
países asiáticos mais ricos geralmente predominam formas de budismo
Mahayana.
Percebe-se que o budismo Theravada e o catolicismo fazem mais
sucesso nos países pobres. Essas são formas mais tradicionais e antigas
da religião, que possuíam estreita relação com a pobreza de seus
fundadores. Buda e Jesus largaram tudo. Eles convidaram seus
seguidores a fazer o mesmo.
No entanto, desde os primórdios dessas duas religiões, Buda e Jesus
convidavam as pessoas que não podiam ou não queriam largar tudo a
formas mais “leves” da religião. Eles nunca disseram que os ricos não
podiam ser salvos. Poderia ser mais difícil, mas não impossível.
É claro que religiões assim são um golpe duro para o mundo
capitalista e consumista no qual vivemos. Hoje nós não estamos

37
Wanju Duli

dispostos a dar nossa vida e morte em nome de coisas espirituais.


Acordar cedo, perder refeições e trabalhar longas horas por dia para que
possamos comprar coisas caras, isso aceitamos fazer. Mas por que
iríamos nos sacrificar em nome de coisas como Deus e alma que sequer
sabemos se existem?
Por isso há, desde o início do Iluminismo até hoje, uma tentativa
consistente de atacar esse tipo de religião, especialmente o cristianismo.
É bastante inconveniente que num mundo capitalista que visa o lucro se
dê valor demais a religiões que exaltem a pobreza ou uma vida simples
no campo.
A história é algo bastante maleável que pode ser manipulada. É
particularmente fácil fazer isso quando as pessoas não leem.
Uma das tentativas mais engraçadas nesse sentido (ou deveríamos
dizer tristes?) são os ditos livros sobre o Jesus histórico. De vez em
quando aparece alguém que nunca leu um livro de cristianismo na vida e
lê um livro que clama possuir a verdade sobre o Jesus histórico escrito, é
claro, por um não cristão.
O resultado é óbvio. O leitor acredita em cada palavra dita pelo tal
estudioso. Afinal, existem diversas referências respeitáveis cheias de
letrinhas na bibliografia, tudo muito bem organizado e referenciado.
Os autores desse tipo de livro merecem algumas palavras e usarei esse
espaço para dizê-las.
Eu não coloco em dúvida a formação do pesquisador, seus longos
anos de estudo e dedicação e até mesmo suas boas intenções. Na maior
parte das vezes, o pesquisador é inocente. Ele, antes mesmo de iniciar
sua pesquisa, já tinha como objetivo provar que Jesus não é Deus e que
muito do que está dito no Novo Testamento é falso. Dessa forma,
mesmo que ele não note, irá inconscientemente eliminar ou disfarçar
toda informação que não contribua para sua conclusão. Infelizmente,
algumas pesquisas científicas também sofrem parte desse mal, que é
completamente humano. Nenhuma pesquisa é totalmente objetiva, pois
somos seres fortemente subjetivos.
Sendo assim, o pesquisador já tinha seu resultado antes mesmo de a
pesquisa ser feita. Eu já li alguns desses livros sobre o Jesus histórico,
embora não os tenha lido à exaustão. Li livros desse tipo escritos por
autores católicos, protestantes, ateístas, muçulmanos, etc. É

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Visitando Bruno

extraordinário ver como cada autor cria o Jesus que inventou na própria
cabeça.
É muito curioso como o Jesus apresentado possui uma forma de
pensar tão semelhante ao século no qual o autor do livro viveu, e como
Jesus se preocupava exatamente com os problemas da época do autor.
Assim surgiram o Jesus pacifista, o Jesus feminista, o Jesus
revolucionário, o Jesus comunista! Eu recomendo que leiam o livro “A
pesquisa do Jesus histórico” de Giuseppe Segallla, que mostra um
resumo das principais pesquisas já feitas sobre o Jesus histórico até hoje.
Trata-se de um autor cristão, mas fique à vontade para ler livros de
autores com outros pontos de vista e comparar.
O mais intrigante é quando um autor do século XX ou XXI clama
saber mais do que autores que viveram na época de Jesus ou poucas
décadas após.
O trecho em que Jesus diz que dá as chaves do céu a Pedro só
aparece uma vez nos quatro Evangelhos, então segundo alguns
pesquisadores um texto que só aparece uma vez tem pouca
probabilidade de ser verdadeiro. Mas o trecho da multiplicação do pão e
dos peixes aparece em todos os quatro Evangelhos. Evidentemente esse
seria falso porque... milagres não existem!! Eis o raciocínio deles: o que
não condiz com suas visões de mundo é imediatamente eliminado.
Com isso não pretendo afirmar que Jesus é Deus e que a Bíblia seja
integralmente verdadeira. Eu meramente sugiro que os biblistas ateístas
talvez estivessem se divertindo mais estudando as obras de Machado de
Assis para descobrir se Capitu traiu ou não Bentinho.
Brincadeiras à parte, é claro que é bastante positivo que existam
estudiosos da Bíblia não somente cristãos, mas também judeus,
muçulmanos, ateus ou, vá saber, até budistas. Assim temos uma exegese
ainda mais rica.
Voltarei a comentar uma passagem logo do início do capítulo. Já
cansei de ouvir pessoas falando que no Velho Testamento Deus é
“malvado” e que no Novo Testamento ele fica bonzinho de repente.
Eu já argumentei os motivos de Deus parecer “malvado” no Velho
Testamento. Ele disciplina os filhos como um pai, tendo como meta que
eles adquiram independência e maturidade, aprendendo com os próprios
erros.

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Wanju Duli

Quando a humanidade adquiriu certo grau de maturidade espiritual, é


dito que Jesus veio para a Terra. Nesse momento julgou que a
humanidade estava preparada para uma nova aliança.
É como se no Velho Testamento a humanidade fosse como crianças.
Já no Novo Testamento nos tornamos como adolescentes. Já podemos
ser introduzidos a um tipo de código espiritual mais difícil e refinado,
embora eu diga isso com respeito ao judaísmo. No próprio Velho
Testamento já é possível encontrar profetas bem preparados, como o
admirável Elias.
A propósito, Elias é meu profeta preferido do Velho Testamento. Ler
a história de Elias realmente dá arrepios. Desde criança eu fiquei
fascinada quando descobri que Enoque subiu ao céu sem passar pela
morte. Somente alguns anos depois eu descobriria que ele não foi o
único. E a forma com que Elias sobe aos céus é digna de um filme.
Eu sou fã de algumas passagens bíblicas e também de algumas
passagens dos sutras budistas. Saber a forma com que Ananda atingiu a
iluminação é de derramar lágrimas. É inspirador.
E eu pergunto: por que você ainda lê histórias de fantasia se você tem
a Bíblia e o Tripitaka?! Estou brincando, é claro. Esperamos que sim.
Voltando ao assunto: por que Deus parece mais “bonzinho” no
Novo Testamento? Já expliquei um dos motivos, mas minha outra
resposta é: bonzinho onde? Em alguns trechos onde ele diz para dar a
outra face, amar os inimigos, no Sermão da Montanha. Por outro lado,
tem certeza de que você leu a mesma Bíblia que a minha? Pois na minha
há muitas passagens em que Jesus fala de forma bem rigorosa, bastante
parecido ao Deus do Velho Testamento.
Não acho que termos como malvado e bonzinho sejam adequados
para Jesus. Ele nasceu como judeu mais de dois mil anos atrás. O Deus
dele é um Deus de misericórdia e justiça. É claro que as noções de justiça
daquele tempo não são as mesmas que as nossas.
E nós tentamos interpretar a Bíblia exigindo que ela apresente valores
do tempo em que nós vivemos. Nem mesmo o próprio Deus, mesmo
tendo o poder para isso, seria rude para desrespeitar os costumes da
época e apresentar uma ética totalmente estranha aos judeus daquele
tempo. As inovações que ele mostrou já foram revolucionárias o
suficiente para que ele fosse morto.

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Visitando Bruno

O nosso raciocínio é o seguinte: se Jesus defender exatamente os


mesmos valores que os meus, da minha época, do meu país e da minha
classe social, eu acredito que ele é Deus. Senão, ele é falso. Que
conveniente, não? Nós falamos tanto de tolerância e respeito, mas nunca
estamos dispostos a realmente largar ou deixar para trás por alguns
momentos as nossas visões de mundo.
Achamos que somos muito esclarecidos e com a cabeça aberta por
termos uma boa educação e bons conhecimentos de ciência. Mas o que
raios nós realmente entendemos de teologia? Muitas vezes nunca
abrimos um livro de cristianismo ou nem mesmo a Bíblia e de repente
achamos que somos os maiores exegetas do nosso tempo!
Certamente esse pessoal da Idade Média só estava brincando de ser
cristão e morriam por suas religiões porque não tinham nada melhor
para fazer. Não tinha videogame naquela época e devia ser muito chato.
Gostaria de falar mais um pouco sobre a ideia do “Deus escondido”,
pois possui relação com o sacramento da eucaristia.
Os sacramentos são interessantes. Poucos querem se confessar para
um padre hoje. O argumento é que podem se confessar diretamente para
Deus durante as rezas. Mas a presença de uma pessoa para a confissão é
exatamente para ajudar a nos libertar do pecado do orgulho.
Está bem, talvez você não acredite em pecado. E nem no diabo.
Alguns, mais “sofisticados”, já nem mesmo acreditam na existência do
mal. Na verdade, é comum questionar se existe sequer o bem e o mal.
Será que não é tudo relativo? Será que pedofilia pode ser relativa? Em
algumas circunstâncias ser bom e em outras não? Não existe nada
mesmo absoluto no mundo?
Deus está escondido, mas por que se esconde? Por que ele estava
escondido durante o holocausto? Você já leu aquele livro, “Em busca de
sentido” de Viktor Frankl? Alguns defendem que o mal é o maior
argumento contra a existência de Deus. Outros acham que é exatamente
o mal que prova que Deus existe.
Em tempos de riqueza e abundância as igrejas ficam vazias. Nas
épocas das Grandes Guerras, eu li que as igrejas lotavam.
Deus se esconde no sofrimento. É em momentos de grandes dores
que muitas vezes descobrimos Deus.

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Wanju Duli

Há um trecho fantástico sobre isso no livro de Hermann Hesse, “O


Jogo das Contas de Vidro”. É na segunda reencarnação.
Que absurdo Deus estar escondido num pedaço de pão sem
fermento, não é mesmo? Quem são o suficiente acreditaria nisso? A
Bíblia chama coisas assim de “loucura da Cruz”.
“Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a
fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Coríntios 1:25)
O cristianismo é uma religião tão louca e tão repleta de loucuras que
somente pessoas com muita fé acreditam verdadeiramente nela. Muita
gente só acha que acredita, mas na hora da provação dão um passo para
trás.
Mas isso é normal. Por que os cristãos não agem como cristãos? É
simples. É porque mesmo alguns dos cristãos mais devotos no fundo
não acreditam totalmente na própria religião.
Para ter uma fé tão sobrenatural a ponto de viver e morrer por Deus,
só se essa fé for dada mesmo pelo próprio Deus. Quer prova maior da
existência de Deus? Ser capaz de acreditar que Deus está
verdadeiramente presente num pedaço de pão e numa taça de vinho.
Cara, você entende o que é isso? Tem pessoas que acreditam nisso.
Você não deveria achar que elas são ignorantes e sim que possuem uma
fé capaz de mover montanhas. Um amor que não possuímos nem pelos
nossos pais e filhos. É algo que vai realmente além da natureza. E elas
não estão brincando. De certa forma, viver assim é mais assustador que a
própria morte.
Não acreditar em Deus ou na Bíblia seria o pensamento mais óbvio e
convencional. Acreditar que é extraordinário. Por isso a Bíblia tem
trechos como esse:
“Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos mutuamente, Deus
permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito”. (1João 4:12).
O budismo também é realmente absurdo. O mundo é ilusão! Você
acredita mesmo nisso? Os budistas acreditam, porque eles viram. Eles
saíram do corpo e viram que tudo é falso, até mesmo sua própria
existência.
O cristianismo diz quase a mesma coisa, pois o budista só vê as coisas
como são através da iluminação e quem ilumina o cristão para ver as
coisas como são é Cristo. Para o cristão, o mal realmente nos atinge, mas

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Visitando Bruno

ele não é a verdade. O mesmo com o desejo budista que causa


sofrimento.
Afinal, o que eu aprendi com o cristianismo?
Eu aprendi, ao ler livros sobre o Jesus histórico, sobre a história da
Idade Média e sobre a Inquisição, que provavelmente deve haver pelo
menos umas cinco realidades paralelas por aí, pois conforme o autor que
escreveu o livro, eles pareciam estar falando sobre mundos diferentes.
Já leu um livro sobre Inquisição escrito por um autor cristão?
Experimente. Um novo mundo se abrirá. Você jamais enxergará o
cristianismo da mesma forma.
Aproveite e leia também “A Grande Aventura dos Jesuítas no Brasil”
por Tiago Cordeiro. Em pouco tempo, os jesuítas serão os seus heróis e
você irá colar um pôster de Matteo Ricci na parede de seu quarto. Está
bem, também não é para tanto.
Mas é claro que eu tenho os meus favoritos. Assim como tenho meus
discípulos favoritos de Buda, tenho meus santos católicos preferidos.
Eles são, até o momento, São Martinho de Lima e Pier Giorgio Frassati.
O primeiro, um santo negro do Peru. O segundo, um beato leigo
italiano.
Há muitos outros santos fascinantes. Já ouviu falar de Santa Maria do
Egito? É uma prostituta que se retirou para o deserto. A igreja ortodoxa
está cheia de “santos loucos”, mas no ocidente um dos únicos santos
meio loucos que temos é o São Francisco de Assis.
E quase me esqueci de um dos meus favoritos, que embora não seja
formalmente santo era admirado pelo Frassati: Girolamo Savonarola.
Recomendo o livro “Scourge and Fire” por Lauro Martines. Estou
surpresa que ainda não fizeram um filme sobre a vida do Savonarola. Ele
era admirado inclusive por várias personalidades importantes, como
Botticelli, Michelangelo e Maquiavel, que assistiam a seus sermões e liam
suas obras. Se você acha que o mundo hoje está ruim, devia conferir a
Florença daquela época.
Falando em livros, nem todos sabem que o autor de “Crônicas de
Nárnia”, C.S. Lewis, escreveu alguns dos livros mais famosos sobre
cristianismo até hoje. E menos gente ainda sabe que Tolkien, que
contribuiu para converter Lewis ao cristianismo, colocou diversas
mensagens cristãs escondidas em “O Senhor dos Anéis”. Para descobrir

43
Wanju Duli

onde estão, recomendo o livro “The Philosophy of Tolkien” de Peter


Kreeft.
Mas deixemos as leituras de lado por um momento. Agora eu gostaria
de entrar num tópico mais prático: alimentação. Tenho tanto a dizer a
respeito que escolhi abrir um capítulo inteiro sobre isso. Parte da
discussão irá se estender para o Capítulo 3.

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Visitando Bruno

Capítulo 2: Algumas palavras sobre


alimentação e religião

“Refreia a gula e facilmente refrearás todo apetite carnal”

Imitação de Cristo

Para muitos, comida costuma ser um tema quase tão polêmico


quanto política e religião. É verdade que outros não estão nem aí e eu
não os culpo: é realmente um terreno espinhoso, no qual se deve pisar
apenas com extrema cautela.
Eu dividiria o tema “alimentação” em três principais polêmicas: a
escolha por razões de saúde, motivos éticos e, finalmente, o menos
compreendido: por questões religiosas.
Eu irei, na maior parte das vezes, tentar não adentrar no debate da
questão alimentar por motivos de saúde, ou iria desviar o foco do livro.
Sem dúvida eu teria uma ou outra coisa a comentar nesse ponto e irei
fazê-lo. Mas deixarei a conversa longa para outra ocasião.
Dos três, digamos que a escolha alimentar por motivos de saúde seria
a mais “egoísta”. É um motivo importante! Devemos dar atenção à
nossa saúde. Só irei colocar as coisas nesses termos para fins de
discussão.
Até mesmo em períodos históricos de grande fé religiosa, a maior
parte das pessoas não ignorava a questão da escolha alimentar por
motivos de saúde. Principalmente quando ficamos mais velhos, é uma
boa preocupação, embora sempre existam pessoas que, até o último
momento da vida, simplesmente não dão a mínima. Para elas, o prazer
de comer e a facilidade são mais importantes.

45
Wanju Duli

No entanto, há aqueles que colocam em segundo ou terceiro lugar a


saúde porque possuem outras motivações além do prazer. Um desses
motivos seriam as tais razões éticas. E o que seria isso?
Nos tempos em que vivemos, é cada vez mais frequente que pessoas
se tornem vegetarianas ou vegans (não consumam nenhum produto de
origem animal, incluindo derivados de leite e ovos) não por causa de
saúde ou religião, mas porque não suportam a forma cruel com que os
animais são tratados nos matadouros, dentre outras razões ambientais.
Eu irei me abster de comentar de forma detalhada a esse respeito. Por
enquanto para nós é apenas importante saber que essas escolhas
alimentares existem.
E agora vamos ao tema de nosso capítulo: quais são as razões
religiosas para se optar por um ou outro alimento?
Mais ou menos dos 18 aos meus 19 anos, eu estudei e pratiquei uma
religião chamada jainismo. Falo mais dela no meu livro sobre meditação.
É curioso o que é dito por eles sobre escolhas alimentares.
O jainismo é uma das religiões que advoga mais fortemente o
princípio da não violência. Tanto que seus monges andam descalços e
com uma vassoura para varrer por onde andam, evitando matar
pequenos seres. Alguns também cobrem a boca com um pano para
evitar engolir algum ser por acidente.
Tudo isso é simbólico, claro. Eles sabem que é impossível viver sem
matar. Apenas ao respirar e existir já estamos matando incontáveis
microorganismos.
Os praticantes leigos (ou seja, que não são monges, muitas vezes
casados, com filhos, etc) devem seguir rigorosamente certa dieta. São
proibidos de comer qualquer tipo de carne e derivados de ovos.
Curiosamente, não são proibidos de consumir derivados de leite. Mas a
eles são restritos certos vegetais que matam a planta quando são
consumidos. Eles também não podem comer após o pôr do sol para
evitar matar pequenos seres por acidente.
Uma vez enviei fotos do evento de lançamento de um livro meu para
um amigo indiano que seguia essa religião. Nessa época ele estava me
treinando. Lembro que em algumas fotos apareceram copos de bebidas
alcoólicas e ele ficou bastante ofendido.

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Visitando Bruno

Claro que ele me explicou a razão de ter se ofendido, pois ele


imaginou que eu não soubesse. Tive o cuidado de não enviar a ele fotos
contendo pratos com nenhum tipo de carne, mas não me passou pela
cabeça que um copo de bebida alcoólica poderia ser ofensivo.
Eu mesma não bebo, mas não por razões de saúde, nem éticas e nem
religiosas. A razão de eu não beber não é devido aos inúmeros acidentes
de trânsito causados pela bebida ou algo do tipo (razões que alguns
apontam). É porque não acho que eu teria muito autocontrole se eu
bebesse. Então talvez minhas razões escondam algum motivo de saúde.
Vou aproveitar para contar um episódio da minha vida que não
lembro de ter mencionado em outro livro. Recordo que foi na época do
jainismo que eu decidi fazer meus primeiros experimentos alimentares
por razões éticas e religiosas. Sobre a saúde, na época eu pouco sabia ou
simplesmente não me importava.
Eu me senti inspirada pelo ideal de não violência do jainismo e me
perguntei se era possível viver com opções alimentares que
minimizassem ao máximo o sofrimento dos seres vivos.
Foi nesse período que me tornei vegetariana e vegan logo a seguir.
Não pesquisei muito sobre os efeitos na saúde e não defendia que outras
pessoas fizessem como eu. Eu estava experimentando, para ver como eu
me sentia.
O argumento de que plantas também são seres vivos e são
inevitavelmente mortas para que possamos viver nunca passou batido
por mim. Por que eu estava minimizando o sofrimento apenas dos
animais? Seria por razões meramente sentimentais, porque os animais
eram mais semelhantes a mim? E por sentirem dor?
Eu não estava satisfeita em ser vegan e em cuidar para não pisar na
grama. Por isso, pesquisei na internet e descobri um estilo de
alimentação chamado frugivorismo. Eu lembrava da história do jardim
do Éden, na qual Adão e Eva viviam apenas de frutos, sem matar
nenhum vegetal e pensei que aquilo poderia ser possível. Afinal, havia
várias pessoas na internet que alegavam viver dessa forma.
Passei um mês comendo apenas frutas específicas que não matassem
a planta ao serem consumidas e quaisquer outros alimentos semelhantes
que não levassem à morte do ser vivo. Mesmo assim, fui acompanhada

47
Wanju Duli

por uma nutricionista nesse período, que não conseguiu me convencer a


voltar atrás.
Ao longo desse mês senti uma imensa felicidade por viver dessa
maneira. Até que no final desse mês, quando eu começava a me
perguntar se eu seria capaz de manter aquela dieta difícil, fui parar no
hospital com uma forte intoxicação alimentar.
Claro que uma das razões foi minha mudança alimentar muito brusca.
Qualquer mudança deve ser gradual, para que as bactérias do nosso
intestino se adaptem.
Foi tão forte que tive que passar a noite no hospital. Pensei em
muitas coisas durante esse período.
Eu estava desapontada. Eu tinha falhado no meu experimento.
Parecia que Deus, ou quem quer que tivesse feito esse mundo, havia
criado um lugar muito cruel no qual era inevitável que nos devorássemos
uns aos outros para nos mantermos vivos.
Foi um golpe forte. Eu não vivia num mundo bonito e a razão disso
não era apenas o fator humano. Parecia que o preço de respirar a cada
segundo precisava ser imensamente cruel. Falo disso no primeiro volume
de Velevi, no capítulo da Costureirinha, chamado “A Carne de Cristo”.
Eu precisava de respostas. Eu não conhecia a resposta do
cristianismo a isso nessa época e Buda parecia sempre evitar falar a
fundo de metafísica. Para ele, o importante é saber que existe o
sofrimento. Não pesava tanto se a origem da existência do sofrimento
foi um Deus ou um demônio. Poderíamos alterar a situação através da
mudança do fluxo do karma. O jainismo ensinava algo parecido.
Às vezes parecia que a escolha mais compassiva de existência seria
simplesmente morrer. Por que viver, se o preço disso a cada segundo, a
cada dia, era retirar incontáveis vidas?
Parei com meus experimentos de frugivorismo e frutarianismo. Por
alguns anos, fui apenas vegan. E por dez anos fui vegetariana.
Não direi as razões das minhas mudanças, pois foge ao objetivo desse
livro. Hoje eu entendo um pouco mais de nutrição e sigo uma
alimentação específica por diversas razões.
Eu contei tudo isso principalmente por um motivo: no relato do meu
retiro, eu irei, vez ou outra, mencionar sobre a dificuldade de abrir mão
de certos tipos de alimentos ou ter que consumir outros. Imaginei que

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Visitando Bruno

alguns leitores iriam julgar as minhas reclamações como mera frescura. E


pode ser que algumas delas sejam mesmo frescura minha.
No entanto, uma vez que agora você conhece essa história, poderá
saber que eu também já experimentei outros estilos de alimentação.
Conforme nossa motivação, pode ser extremamente fácil ou difícil
comer uma coisa ou outra. Tudo muda dependendo do que nos move.
Foi o que aprendi.
O ser humano é realmente incrível. Capaz de grandes sacrifícios em
certos momentos. E em outros acovarda-se pelas menores coisas. Muitas
vezes essas duas condições coexistem dentro da mesma pessoa. Eu
encontrei e não canso de encontrar coragem e covardia dentro de mim.
Aprendi com as duas, mas provavelmente a covardia foi uma professora
ainda mais poderosa, pois me ensinou a importância da humildade.
É claro que começo a ficar mais vaidosa e convencida cada vez que
sou capaz de realizar algo que considero como “grande coisa” em nome
de algum ideal. Mas o cristianismo ensina que o maior de todos no Reino
dos Céus é quem se julga o menor. Também diz que não seríamos
capazes de fazer coisa alguma se não nos fosse concedido por Deus.
Notou como as razões religiosas de escolhas alimentares podem ser
bem próximas das éticas? Mas nem sempre é assim.
Há três grandes religiões para usar como exemplo: judaísmo,
islamismo e hinduísmo. No judaísmo e islamismo não se consome carne
de porco, simplesmente porque Deus ordenou que não consumíssemos.
É um sinal de obediência que pode não ter significado especial, como o
fruto da árvore do Éden.
Não há indicações de que a Árvore do Conhecimento do Bem e do
Mal fosse diferente de qualquer outra árvore. Poderia muito bem não ser.
Ela só se tornava diferente porque Deus a escolheu dentre todas para
que não se consumisse de seu fruto.
É interessante quando recebemos uma proibição sem significado
aparente. Por exemplo, caso recebêssemos de um mestre a proibição de
tocar na cor amarela por um dia inteiro, certamente iríamos querer saber
o motivo daquilo. Nós nos sentimos mais motivados a fazer alguma
coisa quando conhecemos o motivo da proibição.
Porém, o mestre poderia muito bem responder: “apenas obedeça”,
sem revelar o motivo ou a ausência de motivo.

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Wanju Duli

Eu considero poderosos esses testes de obediência sem razão. É


exatamente esse o ponto: não precisa haver uma razão de saúde ou ética
para não se comer carne de porco! Ela apenas não deve ser consumida e
pronto, é simplesmente um sinal. Não precisamos filosofar tão a fundo
sobre ele e sim sobre a importância da obediência.
A obediência é um tema central no cristianismo, tanto quanto a
humildade. Exatamente porque é a obediência que leva à humildade.
Quando obedecemos por fé e amor, mesmo sem entender
completamente, isso nos torna menores, nós largamos de nós mesmos.
E isso pode nos levar a extraordinários avanços espirituais.
Existe princípio semelhante no budismo. Não sabemos se a
iluminação é algo possível. Podemos experimentar os estados alterados
por nós mesmos e a partir deles inferir que a existência da iluminação é
razoável. Chega-se a algo parecido em relação à existência de Deus no
cristianismo: não podemos ver Deus, mas no máximo, a partir das
experiências místicas, chegar à conclusão, através da razão, que sua
existência é razoável.
Quando eu falei, no começo do livro, que as experiências místicas me
mostraram que Deus existe, é disso que falo. Não sou uma pessoa
diferente de todas as outras que “viu” Deus. Existem os sinais, que
podem se tornar cada vez mais fortes conforme nossa prática se
aprofunda.
Deus se esconde e nos presenteia com a célebre noite escura da alma
descrita por São João da Cruz. O fato de Deus esconder-se é exatamente
o que leva aos nossos maiores avanços espirituais, pois esse é o período
da prova de fé. Disse um padre do deserto: “É no combate que a alma
progride”.
“Disse-Lhe Jesus: Creste, porque me viste. Felizes aqueles que creem
sem ter visto!” (João 20:29)
Muitos acham que crer sem ver é fé cega. No entanto, confiar num
amigo ou numa pessoa que você ama, mesmo sem ter visto o que ele
afirma ser verdadeiro, não é sinal de amizade e amor? Não é algo belo?
O amor não nasce da certeza, mas da confiança, mesmo em meio ao
desconhecido.
Por isso Deus não se mostra claramente: para que o nosso amor por
ele seja sincero. É um teste, mas não um teste cruel. Quando fazemos

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Visitando Bruno

provas escritas no colégio ou na universidade, ninguém está nos


chamando de burros ou sendo desumano (bem, depende do
professor...). Precisamos ser testados para nosso próprio benefício e
crescimento pessoal. Devemos aprender a crescer por nós mesmos.
Podemos receber ajuda, mas até certo ponto. Na hora de atravessar a
porta, nós o faremos sozinhos. É o que o cristianismo chama de “porta
estreita” no Evangelho.
“Entrai pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho
que leva à perdição, e muitos são os que entram por esse caminho.
Porque estreita é a porta e difícil o caminho que conduz à vida, apenas
uns poucos encontram esse caminho! Pelo fruto se conhece a árvore”
(Mateus 7:13-14).
Segundo essas palavras de Jesus, fica claro a resposta do cristianismo:
é difícil se salvar. Tornar-se digno do céu não é nada fácil. Quando
pensamos que já somos bons o suficiente com nossas pequenas
gentilezas diárias e já nos julgamos salvos, isso conduz ao orgulho. Mas o
medo excessivo do inferno e a não confiança no perdão e na
misericórdia de Deus também podem ter o efeito oposto, conduzindo ao
desespero.
E isso nos traz de volta à questão da obediência. Para o cristão, basta
seguir os mandamentos e ter fé em Deus. E quando temos forças, fazer
ainda mais que isso, para louvar a Deus e ajudar os outros.
Às vezes achamos que certo mandamento parece sem sentido e não
precisamos segui-lo. Os muçulmanos não comem carne de porco, rezam
cinco vezes ao dia e fazem jejum durante o mês de Ramadan. Por
definição, ninguém poderia chamar a si mesmo de muçulmano se não
fizesse no mínimo essas coisas, além de dar esmolas e, se as condições
financeiras permitirem, visitar Meca ao menos uma vez na vida.
Isso é realmente trabalhoso. É penoso rezar cinco vezes por dia em
horários específicos. Eu sei porque no mosteiro eu tive que rezar a
Liturgia das Horas em horários determinados, que somava bem mais que
cinco vezes. Na segunda parte do livro falarei sobre isso.
E eu também tenho fortes impressões sobre o que significa jejuar por
razões religiosas. Por um mês no mosteiro budista, éramos proibidos de
comer qualquer coisa após as onze da manhã. Essa regra foi estabelecida
pelo próprio Buda e lá era seguida à risca.

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Wanju Duli

Para completar, cheguei no mosteiro católico pouco antes do começo


da Quaresma. É um período de jejum de quarenta dias em que eles não
apenas se abstém de carne, mas não se come doces e outras coisas, e as
porções dos alimentos são reduzidas. Também falarei mais disso.
É curioso que nem Jesus e nem Buda proibiram o consumo de
carne. Buda comia carne e inclusive morreu porque consumiu uma carne
de porco estragada. Jesus, por outro lado, declarou puros todos os
alimentos e há passagens sobre isso na Bíblia. Essa é interessante:
"Acolhei aquele que é fraco na fé, sem discutir opiniões. Um acredita que pode
comer de tudo; outro, sendo fraco na fé, só come legumes. O que come de tudo não
despreze o que não come, e o que não come não condene o que come, pois Deus acolheu
também a este. Quem és tu para condenar o servo de um outro? É para seu próprio
senhor que ele fica de pé ou cai. De fato, ele vai continuar de pé, pois o Senhor tem
poder de sustentá-lo" (Rm 14: 1-4)
No Velho Testamento é mostrado que se realizavam sacrifícios de
animais para Deus, embora na maior parte das vezes a carne fosse
consumida depois. No Novo Testamento, Jesus tornou-se o Cordeiro
Imolado, que oferece a própria carne como sacrifício. Daí veio a
instituição da eucaristia, na qual consumimos o corpo e o sangue de
Cristo, para imitá-lo e nos imolarmos como cordeiros pelo mundo.
É verdade que existem algumas formas de cristianismo e budismo
que proíbem o consumo de carne, por razões éticas e de penitência.
Algumas escolas do budismo Mahayana são vegetarianas. Em alguns
mosteiros carmelitas também não se come carne, assim como no famoso
Monte Athos, lar de diversos monges e eremitas do cristianismo
ortodoxo.
Para nós pode parecer bastante estranho que alguém realize
mudanças alimentares sem ser por motivos de prazer, de saúde ou
moralidade. Isso desafia nossa concepção do mundo.
Sabemos que Buda, em seu período de asceses nas florestas, chegou a
ficar quase só pele e osso, consumindo o equivalente a um grão de arroz
por dia por certo período. Os jejuns eram realmente intensos e até hoje
muitos yogues hindus e monges jainas realizam jejuns rigorosos.
Existe o jejum até a morte realizado no jainismo, mas não falarei dele
pois já comentei a respeito no meu outro livro.

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Visitando Bruno

Diversos famosos santos católicos morreram cedo porque realizaram


jejuns intensos demais. São Francisco de Assis tem a fama de ser um
santo alegre e amante dos animais, mas ele amava Deus acima de tudo. E
por ele realizou jejuns rigorosíssimos, incluindo seu jejum de quarenta
dias, imitando o jejum de Moisés, Elias e Jesus no deserto.
Existe uma combinação bem conhecida entre santos: jejum intenso a
pão e água combinado a cuidar dos doentes. Há altas chances de morrer
através disso, conforme nos atestam inúmeros santos que seguiram essa
célebre fórmula.
Até que São Francisco de Assis viveu bastante fazendo isso, pois
viveu até os 44 anos. Situação diferente aconteceu com Santa Catarina de
Siena e Santa Rosa de Lima, que faziam penitências pesadas e jejuns
desde a adolescência, enquanto cuidavam dos doentes. Uma morreu aos
33 anos e a outra aos 31. Margaret, princesa da Hungria, que na
adolescência abandonou tudo para viver num mosteiro e seguiu esse tipo
de vida, morreu aos 28 anos.
O jejum somente a pão e água é clássico do cristianismo. Porém, o
pão é muito pobre em nutrientes e o sistema imune não é mais capaz de
nos proteger com eficácia. Quando nos aproximamos nessas condições
de pessoas muito doentes, o resultado a história nos mostra.
Eles não eram ignorantes. Esses santos sabiam que iam morrer
fazendo isso. Todos eles liam as vidas dos santos e queriam imitá-los. E,
principalmente, desejam imitar Cristo e morrer pelos outros.
Existe um livro chamado “Imitação de Cristo”, considerado o livro
mais famoso de cristianismo após a Bíblia. No final da Idade Média, esse
livro era um hit. Era o equivalente ao bestseller do New York Times.
Não existe santo desse período ou dos séculos posteriores que não o
tenha lido à exaustão. Santo Inácio de Loyola o idolatrava, assim como
Santa Teresa de Ávila, Santa Teresa de Calcutá e incontáveis outros.
Acho especial ler livros assim. Você sabe que muitos santos famosos
o leram e fica com a impressão de fazer parte de um clubinho exclusivo.
Falando nisso, embora o cristianismo seja aberto a todos, em seus
primórdios ele tinha um caráter ainda mais iniciático. Catecúmeno é o
termo que os cristãos usam para os adultos que ainda não foram
crismados. Antigamente, quando chegava o momento de receber a

53
Wanju Duli

hóstia, os catecúmenos tinham que sair do recinto, pois somente os


confirmados nesse sacramento cristão podiam conhecer esse mistério.
Hoje em dia, que está tudo aberto a todos, muita gente não tem
interesse em descobrir o que se passa. Achamos que é bobagem, pois
não compreendemos. E possuímos uma paixão especial pelo segredo.
Tanto que somente o terceiro segredo de Fátima ficou famoso, enquanto
os dois primeiros, que foram revelados bem cedo, são facilmente
esquecidos, embora sejam igualmente importantes.
Parece que o tema da comida já foi embora. Sendo assim, passemos
ao próximo capítulo para tratarmos das penitências.

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Visitando Bruno

Capítulo 3: Penitências e
Experiências Místicas

“Quem melhor sabe sofrer, maior paz terá”

Imitação de Cristo

Capítulos como esse são clássicos. Afinal, queremos saber quais são
as técnicas para obter estados alterados de consciência ou mesmo
poderes especiais.
Porém, para sermos dignos dessas coisas, devemos realizar alguns
sacrifícios. A não ser que tenhamos sorte ou certa virtude que nos faça
receber experiências aparentemente por acaso. No fundo, não é acaso.
Tanto o cristianismo quanto o budismo defendem que o mundo é
minuciosamente regulado por certas leis. Nem mesmo um fio de cabelo
cai sem o conhecimento de Deus. Ou, segundo o budismo, a lei do
karma tudo rege.
No Velho Testamento existem incontáveis exemplos de profetas que
sofreram algo parecido com a lei do karma. Quando realizaram algo
errado em suas vidas, eram inevitavelmente punidos por isso, mesmo
que o efeito só surgisse muitos anos ou décadas depois. Nada passava
em branco. Por outro lado, as bênçãos pelos bons atos também sempre
chegavam.
As religiões indianas explicam que podemos ser punidos por algo que
fizemos nessa vida apenas no próximo renascimento. A não ser, é claro,
que nos iluminemos ainda nessa vida. Então se você realizou algo
realmente ruim, já sabe: corra para se iluminar! Assim o fluxo do karma é
destruído e não há mais consequências kármicas para os atos realizados,
uma vez que vemos as coisas como são e jamais seríamos capazes de
realizar nada contra aquilo que deve ser feito.

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Wanju Duli

O cristianismo defende que no céu ocorre algo parecido. À luz de


Deus, somos incapazes de pecar. Assim como os anjos já não são
capazes de pecar porque passaram no teste realizado no início dos
tempos.
Para os cristãos, a melhor forma de viver é imitar Cristo, assim como
os muçulmanos imitam Maomé. Alguns muçulmanos vão tão longe que
até mesmo escovam os dentes da mesma forma que Maomé escovava.
Ele usava uma escova natural chamada de siwak, ou miswak, um graveto
de Salavadora Persica, ou árvore arak. Não me pergunte o que é isso,
mas pelas fotos parece divertido.
E o que Jesus fazia? Ele rezava. Muito. Ele fazia jejuns. Curava os
doentes e expulsava demônios. Ele era bastante pobre e morreu numa
cruz.
Por isso os cristãos rezam e fazem jejuns em datas específicas. Mas
como Cristo declarou puros todos os alimentos e na maior parte das
vezes comia normalmente, jejuns não são tão enfatizados no cristianismo
fora de ambientes de mosteiros. E, como Jesus morreu numa cruz, o
martírio seria o caminho mais direto e garantido para o céu. Falo mais
disso na minha história “Mártires Vermelhos”.
Embora curar doentes ainda seja popular entre cristãos, realizar
exorcismos já não é. Isso porque, segundo a interpretação cristã, como
muita gente não acredita na existência do demônio, ele já não precisa
fazer tanto esforço em seu trabalho de nos tentar. Na época em que
sabíamos da sua existência, ele se mostrava de maneira mais clara. Assim
como Deus se esconde para fazer crescer a nossa fé, o diabo se esconde
para que possamos cair mais facilmente em suas ciladas.
Por que hoje muita gente acredita em Deus, mas não acredita em
demônios? Porque preferimos fingir que sofrimento e morte não
existem, e que somente as coisas boas estão ao nosso redor. Por isso,
quando nos acontecem coisas desagradáveis não sabemos como lidar
com elas, pois nós as negamos. Um viciado que nega estar viciado não
tem muita esperança de cura. O primeiro passo é reconhecer o vício.
Somente assim um tratamento eficaz pode ser iniciado.
Nós somos bem seletivos: optamos pelas coisas boas e descartamos
as ruins. Corremos atrás do prazer e fugimos da dor. A técnica budista é
exatamente a oposta. Nós nos sentamos na posição de lótus não para

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Visitando Bruno

experimentar o céu, mas o inferno. Somente ao aprender a lidar com o


sofrimento podemos superá-lo.
Eis um dos enigmas envolvidos na descida de Cristo ao inferno. Para
merecer o céu, nós precisamos aceitar o inferno. Esse é o motivo das
penitências: simular uma situação de inferno, enchendo nosso corpo e
nossa alma de fogo devorador.
A água e o fogo são fortes símbolos cristãos. O batismo é uma
simulação do afogamento: nós morremos para nós mesmos e
renascemos em Cristo. Mas esse é apenas o início da jornada.
No jainismo, as partículas de karma que impregnam nossa alma
devem ser destruídas. E isso somente é feito através de fortes jejuns e
penitências.
É verdade que o jejum também é uma penitência, mas ele é
normalmente colocado numa categoria separada porque é considerado
pelas mais diversas religiões como a penitência mais poderosa.
Segundo a visão cristã, mesmo que você utilize um cilício a ponto de
verter o próprio sangue, o jejum é ainda mais difícil. É raro encontrar
uma penitência tão rigorosa quanto o jejum. Abstinência sexual não é tão
rigoroso pois podemos viver sem sexo, mas não podemos viver sem
comer, sem beber água e sem dormir. Por isso essas são as penitências
mais severas.
Os indianos são particularmente criativos ao inventar penitências,
meditando nus na neve ou debaixo do sol de cinquenta graus. Meditar
no meio das formigas e mosquitos também é bastante popular.
Mas assim como as esmolas, o grau de penitência deve ser
determinado pelo próprio praticante ou por seu diretor espiritual.
São Silvano Atonita, asceta do cristianismo ortodoxo, revela que
Deus lhe deu a seguinte mensagem: “Guarda teu espírito no inferno e
não te desespera”.
Para os cristãos, a purificação é feita pelo fogo. Trata-se de um fogo
espiritual. É dito por alguns que o fogo do céu é o mesmo fogo do
inferno. Deus é mostrado como fogo em vários episódios bíblicos, como
na sarça ardente de Moisés. Mas alguém que está purificado por
penitências e boas obras, já não é queimado por esse fogo.
Deus não manda ninguém para o inferno. Para alguém que odeia, o
amor que emana de Deus é doloroso como um fogo destruidor e não é

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Wanju Duli

possível se aproximar. Por isso, para um pecador o céu seria o próprio


inferno e é insuportável.
Por isso o catolicismo ensina que a maior parte das pessoas que
morrem não chegam totalmente preparados para suportar o céu.
Precisam ainda de mais um período de purificação no fogo do
purgatório, que é muito mais doloroso do que qualquer sofrimento na
Terra. Mas ele termina, diferente do sofrimento do inferno, que seria
infinito.
Religiões não ensinam apenas “paz e amor” como alguns insistem.
Religiões são difíceis e nos ensinam realidades duras. Nós precisamos
aceitar que o sofrimento da vida é algo real e não devemos fugir dele.
Somente assim podemos alcançar uma forma mais duradoura de
felicidade: é exatamente quando aceitamos que felicidade não é sinônimo
de prazer eterno, mas de maturidade para lidar com a dor.
Esse é o verdadeiro sentido das penitências: nos preparar para
enfrentar as dores da vida.
Existem as penitências voluntariamente escolhidas. Nós podemos,
por exemplo, escolher realizar um jejum apenas com água por 24 horas
ou passar uma noite dormindo diretamente no chão duro.
Eu não costumo realizar penitências como essas com frequência, mas
já realizei essas duas para experimentar como me sentiria. Elas possuem
um nível apenas moderado de dificuldade, por uma razão principal: nós
estamos no controle.
É muito mais difícil passar por penitências que não são escolhidas
por nós, mesmo que elas possuam um nível de dificuldade bem mais
fácil.
O cristão, ou o budista, deve ter treinamento nas duas modalidades.
Deve aprender a transformar as adversidades que encontra no dia a dia
em oportunidade para fazer penitência. Além disso, diariamente, ou
semanalmente (ou enfim, como lhe aprouver) escolher pequenas
privações para treinar sua vontade, mesmo que sejam simbólicas.
Quando possuímos um diretor espiritual que seleciona nossas
penitências, existem os dois elementos em conjunto: são penitências
escolhidas, mas não por nós. Pode ser um pouco desafiador.
Eu estou acostumada a ser eu mesma a escolher os livros que vou ler
e o que vou comer. No mosteiro católico, fui desafiada nesses dois

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Visitando Bruno

sentidos: diariamente eu recebia, além de algum trabalho braçal ou


manual não escolhido por mim, uma série de atividades de leituras e
estudos que eu devia concluir, independente de aquilo me agradar ou
não. É verdade que no colégio e na universidade já recebemos
treinamento nesse sentido. Mesmo assim, na prática eu tinha pouco
tempo para intervalos para fazer o que eu queria. Até porque eu estava
num mosteiro, sem internet ou qualquer outra forma de entretenimento
que não fossem livros.
A parte da comida foi uma das penitências que mais me desafiaram.
Após saber de meus experimentos com comida, você poderia pensar que
eu estaria disposta a comer praticamente qualquer coisa, mas não é bem
assim. O tipo de alimento e a quantidade não eram escolhidos por mim e
eu tinha pouquíssima escolha a esse respeito. Tinha que comer mesmo
sem gostar. Mesmo sem ter fome. Foi um pouco doloroso.
Eu sou totalmente grata a meus gentis anfitriões tanto no mosteiro
budista quanto no católico. Mesmo assim, eu optei por esses dois
mosteiros exatamente porque eu sabia que eram ambientes nos quais eu
enfrentaria dificuldades e era exatamente isso que eu buscava. Senão,
teria ido para um hotel.
Enquanto no mosteiro budista o desafio foi sentir fome, já que eu
passava por cerca de 20 horas de intervalo entre o almoço e o café da
manhã do dia seguinte, no mosteiro católico o meu maior desafio foi ter
que comer coisas que eu não queria sem ter fome.
As duas situações são problemáticas e causam sofrimento. No
mosteiro budista, as comidas eram geralmente servidas frias, pois os
monges faziam recitações por longos minutos antes das refeições e ainda
tínhamos que aguardar uma longa fila de dezenas de pessoas para nos
servirmos.
No mosteiro católico, os alimentos eram servidos nas celas, mas eu
não tinha liberdade de escolher o tipo e a quantidade do que me era
dado. Eu não gosto de jogar comida fora e não podia devolver grandes
quantidades com frequência para não ser rude com meus anfitriões.
Então eu tinha que aguentar.
Isso me fez recordar do relato da Karen Armstrong em seu livro
“Through the Narrow Gate”. Ela permaneceu por sete anos num
convento católico e sofria na hora das refeições, pois tinha que comer

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Wanju Duli

tudo. Frequentemente ela vomitava, pois tinha forte intolerância ao


queijo que era servido em cima das massas. Mesmo assim, ela tinha que
comer. Vomitava com tanta frequência que foi parar no hospital.
Nos mosteiros são abertas exceções em relação à alimentação quando
uma pessoa tem problemas de saúde, mas em geral todos são
incentivados a comer o que é servido, sem muitas frescuras.
Normalmente pensamos que monges acima do peso possuem algum
problema para enfrentar a gula, mas não é bem assim. Muitas vezes, são
monges acima do peso os mais desapegados em relação ao pecado da
gula, pois aceitam comer qualquer coisa que é servido e em qualquer
quantidade, em sinal de obediência.
Segundo C.S. Lewis, gula não é necessariamente comer muito. Um
dos maiores pecados em relação à gula é ter frescuras em relação ao tipo
e quantidade de comida servida. Por isso os mosteiros usam esses
métodos: para que nos soltemos de nós mesmos.
Quem vai para um mosteiro não deve ficar o tempo todo se
preocupando com a própria saúde ou com questões estéticas, buscando
não engordar. Pelo contrário, deve largar de si mesmo, da aparência, da
saúde e aceitar dar a vida por Cristo. Quem está lá não busca a própria
alegria, mas ser um servo de Deus, entregando tudo de si por amor a
Deus e aos seus irmãos espirituais.
E quais são os outros tipos de penitência além das questões da
comida? Ainda não vi muito em mosteiros penitências com água, mas sei
que os muçulmanos precisam passar todo o mês de Ramadan sem beber
água ao longo do dia, mesmo que esteja muito quente, pois só podem
beber água durante a noite.
A questão do sono é algo recorrente em mosteiros. Eles fazem de
propósito: temos que dormir tarde (“tarde” considerando a hora que
precisamos levantar) e acordar muito cedo, para que o somatório de
horas dormidas durante a noite não passe muito das 6h ou 7h.
No mosteiro budista no qual fiquei por um mês em 2012, a última
meditação terminava às dez da noite e a primeira meditação do próximo
dia era às cinco da manhã. Um somatório de 7h. Parece o suficiente,
certo?
Nem tanto. No meu primeiro dia lá, resolvi acordar às quatro da
manhã para tomar banho e ler um pouco antes da meditação. O

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Visitando Bruno

resultado é que minhas horas de sono foram reduzidas a menos de 6h. E


ainda havia o tempo de me arrumar para dormir e me arrumar para
levantar.
Ou seja: para realmente ter uma boa noite de sono era preciso correr.
Assim que tocava o sino das dez horas, eu corria para o quarto dormir. E
levantava cinco minutos antes da meditação das cinco e corria até o
local, sem ter tempo de fazer mais nada.
Sei que, para algumas pessoas, ter sete horas de sono é um grande
luxo. Mas lembre-se que todo o dia tínhamos que realizar certos
trabalhos braçais, alguns dos quais me deixavam realmente exausta. E em
mosteiros não há “domingos” para dormir até tarde. Todo dia é dia de
acordar de manhã cedo. No mosteiro budista havia um dia por semana
em que a meditação era estendida até meia-noite e somente nesse dia não
havia a meditação das cinco. Tínhamos a liberdade de acordar apenas as
sete da manhã para o café da manhã, mas em termos de somatório de
horas dava no mesmo.
Felizmente, no mosteiro católico eu conseguia dormir mais. O
horário entre a última atividade da noite e a primeira atividade da manhã
era mais flexível. Em certos dias, eu conseguia dormir 8h ou até 9h! No
começo eu dormia menos porque ia deitar mais tarde, para conseguir
tempo suficiente de finalizar as atividades de estudo e leitura que me
eram propostas.
Algumas pessoas ficam frustradas por passarem fome e sono em
mosteiros, pois quando estamos cansados e indispostos, como iremos
nos concentrar para realizar uma boa meditação ou assistir a uma missa?
É fácil realizar uma meditação longa e frutífera no conforto do nosso
quarto, no horário que mais nos agrada. Não é fácil realizar uma
meditação sonolenta às cinco da manhã. E não era fácil no mosteiro
católico assistir a um ofício de longas recitações de salmos às seis e meia
da manhã, por umas duas ou três horas seguidas!
Nesse momento poderíamos pensar: minha meditação ou minha reza
seriam maravilhosas se apenas... as condições fossem ideais. Mas na vida
as condições nunca são ideais. É por isso mesmo que um mosteiro
precisa nos colocar todas essas dificuldades: para que aprendamos a fazer
o que deve ser feito, independente das adversidades.

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Wanju Duli

É como disse São Silvano Atonita: coloca teu espírito no inferno.


Para avançar, precisamos da purificação do fogo. E não devemos nos
desesperar nos momentos de dor, mas ter confiança, ter fé.
No budismo, devemos ter fé que a iluminação é possível. Como?
Confiando no testemunho dos sábios que vieram antes de nós e nos
garantiram que a iluminação realmente existe.
O mesmo no cristianismo: há o testemunho dos santos. Ao lermos a
vida dos santos, nos perguntamos: como alguém pode ter tido forças
para fazer o que fez? Certamente isso não é fruto do próprio esforço,
mas teve origem divina.
No fundo, mesmo que o caminho do cristão ou do budista deva ser
percorrido sozinho, ele jamais está totalmente só na jornada. Ele tem
amigos. A amizade é considerada pelas duas religiões como uma forma
superior de amor, pois é gratuita e sem apego.
Claro que o amor apaixonado também é celebrado, especialmente no
cristianismo: é como se nosso esposo ou esposa fosse o próprio Cristo, o
Divino Esposo, pelo qual devemos viver e morrer. Uma entrega total um
pelo outro.
É dito que Deus ama com divino amor porque ele é uma Trindade:
são três pessoas, o próprio Deus é uma família.
O Pai é o amante. O Filho é o amado. E o Espírito Santo é o amor
de um pelo outro.
E além dos experimentos com comida e sono, o que mais os
mosteiros inventam? Há sempre algum tipo de trabalho manual para não
nos perdermos demais no mundo da imaginação e da abstração das
atividades espirituais.
É verdade que uma meditação ou uma reza é uma experiência
totalmente real e não imaginação. Mas nós, seres humanos, por nossa
própria natureza, nos rendemos à imaginação. Resta então usá-la a nosso
favor.
Mas somos também corpo e não somente espírito. Por isso, realizar
diversos trabalhos ao longo do dia, principalmente cozinhar e limpar, são
bons para nos recordar disso.
No mosteiro budista eu tive mais dificuldades com os trabalhos
braçais, pois era um mosteiro enorme. A vantagem de lugares assim é
que são belos, com mais opções de lugares para ir, há mais coisas para

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Visitando Bruno

fazer e conhecemos mais pessoas. Por outro lado, as limpezas não têm
fim! Gasta-se um tempo inacreditável limpando o chão, cozinhando e
lavando pratos.
Sabendo disso, optei por dessa vez escolher um mosteiro católico
bem pequeno. É verdade que era um lugar mais simples, com menos
coisas para fazer e nem mesmo fui autorizada a olhar a pequena
biblioteca, enquanto no mosteiro budista eu me deleitava na enorme
biblioteca deles. Em compensação, fui chamada para cozinhar e limpar
pouquíssimas vezes. Era um lugar tão pequeno que ocupações desse tipo
eram reduzidas ao mínimo necessário. E era um local bem mais
silencioso e que permitia mais solidão do que o mosteiro budista, que em
várias ocasiões ficava bem agitado, recebendo uma grande quantidade de
visitantes.
Quando realizo muitos trabalhos braçais, eu me dou conta de como
tenho frescuras em relação ao meu corpo. Nas mãos de várias monjas
havia marcas de queimadura ou diversas pequenas feridas temporárias ou
definitivas. Eu de vez em quando me cortava e machucava os dedos
realizando trabalhos que não estou acostumada a fazer, e sentia pena de
mim mesma.
Eu estou bastante acostumada a cozinhar e lavar pratos na minha
casa, mas em mosteiros é diferente. Você recebe muitas atividades que
nunca realizou na vida e não sabe nem por onde começar. Leva certo
tempo para pegar a prática e é meio frustrante a lentidão inicial e os
inúmeros erros.
Normalmente vamos para um mosteiro desejando estudar, meditar e
rezar. Queremos as atividades intelectuais, mas quem deseja apenas isso
fará uma melhor escolha frequentando uma universidade. Em mosteiros
se estuda e se medita, mas em muitas ocasiões se passa ainda mais tempo
realizando trabalhos braçais e não intelectuais. Isso é fundamental para
reconhecer que todo trabalho possui a mesma importância e todos
devem contribuir com tudo.
Tanto nos mosteiros católicos quanto nos budistas, especialmente
nesses últimos, sempre houve mais oportunidades para homens do que
para mulheres. Mesmo assim, isso nunca me impediu antes.
Nas duas ocasiões, para conseguir acesso a esses dois mosteiros, eu
certamente gastei mais tempo, dinheiro e esforço. Afinal, há uma

63
Wanju Duli

quantidade maior de mosteiros para homens e em locais mais acessíveis,


especialmente eremitérios. Não porque há menos interesse por parte das
mulheres, pelo contrário. Tanto no budismo Theravada quanto no
catolicismo, há impedimentos de várias naturezas quando há mulheres
envolvidas.
É mais difícil no budismo Theravada autorizar mosteiros para
mulheres. Há algumas escolas que proíbem a formação de monjas ou
que elas só são permitidas caso se submetam a uma série de regras muito
rigorosas que os monges não precisam seguir.
Já no caso do catolicismo, há o problema da falta de padres. Num
mosteiro para homens, os próprios monges podem ter formação de
sacerdotes e celebrar as próprias missas. Mas as monjas precisam de
padres para celebrar a missa diária. Cada dia precisam chamar um padre
diferente e eu presenciei essa situação e seus problemas no meu período
no mosteiro católico.
Já nos cartuxos, a formação de monjas sofreu uma série de restrições,
a ponto de ter que ser fundada uma nova ordem para que as mulheres
tivessem a mesma oportunidade de vida eremítica ou semi-eremítica.
Sendo assim, uma mulher normalmente já tem que passar por
penitências extras num mosteiro, pelo simples fato de ser mulher.
Realmente, é preciso ter muita humildade para aceitar certas coisas.
Falando nisso, sabiam que contraceptivos e divórcio são permitidos
no cristianismo ortodoxo? E eles são um cristianismo tão tradicional e
antigo quanto os católicos. A razão é simples: os padres ortodoxos têm
permissão de casar.
Os católicos não deviam lutar por uso de contraceptivos e permissão
de divórcio. Deviam, isso sim, lutar para que seus padres ganhem
permissão de casar. Depois disso, dê aos padres algumas décadas e eles
vão se dar conta de como é muito mais difícil ter uma vida de quase
completa abstinência sexual tendo uma esposa do que sendo solteiro.
Eles também descobrirão que existem situações legítimas para um
divórcio e que o amor eterno entre um casal não é a história de contos
de fadas de todo casamento.
No cristianismo ortodoxo também não existe essa separação entre
pecado venial e pecado mortal. Sinceramente, não sei direito de onde os
católicos tiraram isso e quais são exatamente os critérios para essa

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Visitando Bruno

separação. Não achei a resposta em São Tomás de Aquino ou na


encíclica Veritatis splendor.
É importante entender que os católicos e ortodoxos são muito
próximos. Quando existe diferenças de doutrina entre os dois, é
exatamente a deixa perfeita para perguntar aos católicos: por que vocês
fazem desse jeito? Nos casos em que não há diferenças há menos força
para uma argumentação, já que a visão protestante surgiu bem mais tarde
e geralmente tem menos base na tradição.
Sobre a questão dos homossexuais, o argumento é que a Bíblia é clara
a esse respeito em diversas passagens. Mas é curioso que a Bíblia
também é clara em relação a muitas outras questões que são
discretamente ignoradas.
A Igreja anglicana já ordena mulheres para o sacerdócio, ordena
padres homossexuais e celebra casamentos gays na Igreja. A Inglaterra
não é exatamente um país católico. Sobre a situação inglesa, recomendo
um filme excelente sobre a vida do mártir São Thomas More chamado
“A Man for All Seasons”.
E vale a pena ser católico mesmo sem concordar com tudo que a
Igreja diz? Esses são chamados de católicos liberais. Por definação, para
ser católico é realmente preciso ser conservador ao menos em alguns
pontos. Um católico liberal demais poderá se beneficiar mais como
protestante.
Mas eu entendo que a simbologia católica é muito rica e faz parte da
nossa história. Agora que estou lendo mais sobre o cristianismo
ortodoxo, estou me acostumando com seus santos também. E é curioso
como o budismo às vezes parece ainda mais familiar para mim, já que me
acostumei com sua doutrina desde muito cedo, bem antes de me
aventurar mais a fundo no cristianismo.
E por que alguém escolheria ter alguma religião se é muito mais fácil
e confortável não ter nenhuma e fazer o que se quer? Creio que essa
questão também possua relação com as penitências.
Nós abrimos mão de alguma coisa e recebemos algo em troca. Quem
realiza uma penitência, recebe algo.
Sendo um pouco mais superficial: às vezes quando tudo é permitido
simplesmente perde a graça. Experimente jogar um jogo muito fácil e
logo irá enjoar dele. Mas um jogo que te exige dedicação, grandes

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Wanju Duli

sacrifícios e privações te dá mais adrenalina e uma sensação maior de


vitória.
Acontece algo parecido com as religiões. De certa forma, da nossa
perspectiva, é um tipo de clube ou jogo, embora seja algo muito sério.
Estamos apostando nossas vidas, como Pascal.
Em qualquer tipo de clube, há certas regras, mesmo que sejam coisas
muito simples. Algumas regras são úteis, outras são apenas simbólicas.
É claro que o motivo ideal para optar por uma religião é a busca pela
verdade. Esse seria o motivo mais “nobre”. Outro bom motivo seria
ajudar os outros. Alguns buscam uma religião para socializar, fazer
amizades, ou porque estão sofrendo. Não importa. Muitos motivos
podem ser válidos contanto que no final você descubra que a religião vai
muito mais fundo do que sua motivação inicial.
E mesmo que não descubra, a religião poderá te beneficiar de alguma
forma, ainda que não compreendamos completamente a dimensão desse
benefício.
Mas uma das maiores motivações religiosas vai muito além do tédio e
da tristeza. É algo que os antigos conheciam muito bem: a sensação de
vazio. Ou, em termos cristãos, a “acédia”.
Havia um nome medieval muito bonito para isso: melancolia. Hoje
nós chamamos de depressão e tratamos com psicoterapia ou com
remédios.
E como se lidava com a depressão antigamente? Essa sensação era
sentida, diziam eles, quando sentíamos falta de Deus. Mesmo que a
pessoa em questão não acreditasse em Deus, no fundo ela o buscava.
A chave para vencer o vazio, dizem os cristãos, é a perseverança. A
acédia tem sua origem na preguiça e é combatida através da atividade e
da disciplina.
Ou, em outras palavras, é o grito do anjo na terceira visão de Fátima:
“PENITÊNCIA! PENITÊNCIA! PENITÊNCIA!”
Não há dúvidas: a melhor maneira de lidar com tédio e vazio é a
penitência. A dor da penitência afugenta o tédio. E você dá a essa dor
significado.
No fundo você sabe que após tanto esforço, horas e horas de
penitência, você merece alguma recompensa. Normalmente a
“recompensa” já chega de forma imediata através de sensações: em meio

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Visitando Bruno

à dor, você sente um imenso êxtase por ter realizado aquele ato tão
grandioso.
Parece masoquismo, mas é algo muito mais complexo. O seu
objetivo não é apenas a sensação de prazer que vem com o esforço. Esse
é apenas um mero brinde que acompanha o pacote. E que independente
de vir ou não, nem faz tanta diferença. Pode ser apenas uma motivação
adicional para prosseguir.
As maiores experiências místicas geralmente possuem duas origens:
ou são fruto de longas horas de penitência, ou de algum estado
emocional profundo, relacionado a espiritualidade, que te leva às
lágrimas.
Os santos adoravam chorar de emoção com Deus. Santo Inácio de
Loyola relata em seus diários que chorava quase todo dia na missa. No
livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga temos a seguinte
passagem:
"Vicente Ferrer, sempre que consagrava a hóstia, vertia tantas lágrimas que
quase todos os presentes choravam com ele, e às vezes chegavam a produzir algo como
uma lamentação fúnebre. As lágrimas eram-lhe tão doces que só as detinha a
contragosto"
Meus caros, sejam bem-vindos à Idade Média dos choros e dramas,
período em que era extremamente comum verter lágrimas em igrejas ou
mesmo em outras situações públicas.
Nos tempos em que vivemos somos educados a conter nossas
emoções em público. E falando em Vicente Ferrer, ele é outro dos
santos que admiro. No livro “St Vincent Ferrer: the Angel of the
Judgement” de Fr. Andrew Pradel, O.P., há uma passagem muito
engraçada:
"A fala comum entre seus biógrafos era: 'Era um milagre quando ele não fazia
milagres, e o maior milagre era quando ele não fazia nenhum'"
Esse santo sabia toda a Bíblia de cor. Ele passou três anos apenas
dedicando-se a decorar a Bíblia. E não parava de fazer milagres por onde
ia. Nunca vi um santo que fizesse tantos milagres quanto esse. Acho que
ele superou Jesus.
Você não precisa ir necessariamente para um mosteiro católico para
ver milagres. Vá para a Índia! Provavelmente é até mais fácil. Afinal, a
Igreja católica possui algumas restrições em relação a visões e a

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Wanju Duli

realização de milagres. Eles são cautelosos, para não se criar uma


comoção desnecessária e afluência enorme de peregrinos, como já
ocorreu em incontáveis ocasiões, como em Fátima e com o Padre Pio.
É verdade que a prática constante, seja ela diária ou semanal, faz
crescer um tipo de estabilidade espiritual dentro de nós. Mas eu também
acredito bastante nas práticas intensivas. Por isso eu gosto de retiros: é
uma ocasião para aprender e crescer muito num curto período de tempo.
E as experiências místicas são muito comuns. Tive várias delas nos dois
mosteiros. Eu normalmente não as tenho na minha vida diária porque
obviamente estou ocupada demais com outras coisas, lendo ou assistindo
qualquer coisa na internet. De fato, existem muitas distrações aqui fora,
mas elas não são de todo ruins. É possível usar a arte para fins
espirituais, como já se sabe há muito tempo.
Os budistas possuem um guia passo a passo de como atingir estados
alterados de consciência nas meditações. Mas e os católicos?
Há livros a respeito disso. Talvez os mais famosos sejam as obras de
São João da Cruz, principalmente seu “Noite Escura da Alma”. “As
Moradas do Castelo Interior” de Santa Teresa de Ávila também pode ser
útil.
E há muitos desses volumes no cristianismo ortodoxo. São João
Clímaco, por exemplo. Na verdade há tantos nomes do misticismo
cristão oriental que seria difícil citar todos. Os orientais foram bem mais
místicos, enquanto os católicos se empolgaram com a escolástica e
ficaram debatendo a teoria nas universidades.
Eu sinceramente considero a posição de lótus indiana bem mais
estável para longas meditações. Ficar de joelhos pode ser útil por uma ou
duas horas, mas depois se torna uma penitência não tão útil em termos
objetivos de alteração de consciência.
Simplesmente sentar numa cadeira, mesmo sem ter as pernas
cruzadas, muitas vezes já substitui o lótus, principalmente se você tem
um catalizador emocional e chega às lágrimas. Assim a consciência se
altera bem rápido.
Depois de passar pelas técnicas budistas, é difícil achar uma técnica
cristã de misticismo que corresponda. A grande beleza do cristianismo
em comparação é a ênfase em Deus e no amor. O budismo tem menos
disso, embora o hinduísmo possa cumprir esse quesito.

68
Visitando Bruno

Creio que esses capítulos foram suficientes como introdução do meu


relato. Agora irei contar como tudo aconteceu.

69
Wanju Duli

70
PARTE II

"Meu coração treme no meu peito


e terrores mortais se abateram sobre mim.
Temor e tremor me invadem
e me oprime o horror.
Então digo: 'Ah! Se eu tivesse asas
como a pomba
para voar em busca de descanso!
Fugiria para longe, iria morar no deserto,
buscaria um lugar de refúgio,
protegido da fúria do vento,
longe de qualquer tempestade"
(Sl 55:5-9)
Visitando Bruno

Capítulo 1: O Retiro

"'O inferno sou eu' se não nos amamos; 'o inferno são os outros' se eu não os
amo; o inferno sou eu, é você, é o mundo, é Deus ou o diabo, é tudo aquilo que não
amo. O inferno é não amar"

Jean-Yves Leloup

Eu gosto muito dos dominicanos. Minha jornada no cristianismo


começou através deles. Por isso, li mais biografias de santos dominicanos
do que de qualquer outra Ordem.
Inicialmente minha ideia era fazer um retiro com os dominicanos. No
final, acabei optando por outra Ordem, inspirada nos cartuxos e com
grande influência do cristianismo ortodoxo.
Pensei nos dominicanos porque gosto muito de ler. Mas acabei com
as filhas de São Bruno, o que se provou uma ótima escolha.
Essa é uma Ordem semi-eremítica. Cada uma tem sua cela, como as
carmelitas. Mas os períodos de solidão e silêncio são maiores. Achei
ideal, já que gosto de fazer minhas práticas espirituais no meu quarto, no
meu ritmo.

7 de Fevereiro: Primeiro Dia

Cheguei nesse dia, perto do almoço. O mosteiro fica numa cidade do


interior bem afastada. Até encontrei um bezerrinho perdido no caminho.
Essa Ordem tem origem francesa, então mesmo que todas as irmãs
falem português ou espanhol, uma vez por semana há uma missa em
francês. Cheguei bem nesse dia. Mas metade da missa ocorreu em
português e a outra metade em francês. Uma das irmãs traduziu para
mim.
Almocei frango com salada de alface e tomate, e pão. Jantei sopa e
pizza. Deixei um outro pãozinho para o café.

73
Wanju Duli

Normalmente eu recebia refeição na minha cela duas vezes por dia: o


almoço era às 11:15. O horário da janta variava, pois havia ofício às seis
da tarde. Em geral, era sopa. Às vezes chegava às cinco da tarde, outras
vezes às oito da noite. E frequentemente elas deixavam algo para o café
da manhã na minha ministra, como iogurte ou frutas.
“Ministra” é o nome que elas dão para uma caixinha de metal que fica
bem perto da cela. Assim, cada irmã pode entrar sorrateiramente, deixar
algo na ministra, e eu posso pegar quando me agradar, para que se
mantenha o ambiente de solidão.
Todo dia, perto da hora do almoço, eu aguardava dentro da minha
cela ansiosamente para ouvir o barulho da ministra sendo aberta e
fechada, pois assim eu sabia que o almoço tinha chegado. Depois que a
irmã tinha ido embora, eu saía para pegar. De qualquer forma, uma delas
batia o sino da capela sempre que o almoço de todas já havia sido
colocado nas ministras.
Havia dois ofícios principais com recitações de salmos e cânticos. Um
era sete da manhã e outro às seis da tarde. Quase sempre a missa era de
manhã, logo após o ofício matutino. Quando o padre não podia, a missa
era celebrada antes do ofício da tarde, às cinco, ou em outro horário do
dia.
Essas duas ocasiões costumavam ser os únicos momentos do dia em
que todas se reuniam na capela ao longo da semana. No resto do tempo,
ficávamos cada uma em sua cela, mas também tínhamos a liberdade de
sair para caminhar nas belas áreas verdes dos arredores.

8 de Fevereiro: Segundo Dia

Recebi um serviço: ralar cenouras. Na minha cela havia um pequeno


pátio com uma cadeira e uma mesa. Então eu ralei as cenouras ali fora
no solzinho e foi bem relaxante.
A maior parte das atividades eram realizadas na solidão da cela:
trabalhos, estudos e rezas. Eu diria que é uma boa Ordem para os
antissociais.
Uma das irmãs ficou responsável por me treinar durante o período da
minha estadia. Vou chamá-la de irmã Ana.

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Visitando Bruno

Nesse dia ela me disse para ler todo o João. Naquele ponto, eu já
tinha lido todo o Novo Testamento na íntegra pelo menos umas quatro
ou cinco vezes e estou acostumada a ler livros longos, mas mesmo assim
fiquei surpresa que ela me pedisse para ler esse Evangelho inteiro do
início ao fim, mesmo sendo o mais breve dos quatro.
Outra tarefa que recebi foi escutar as quatro primeiras faixas de um
CD, num rádio com fone de ouvido. Era uma gravação de uma palestra
sobre a Santíssima Trindade. Geralmente cada faixa tinha em torno de
meia hora ou uma hora.
Eu não esperava que tivesse rádios no mosteiro, embora só
pudéssemos usá-los para ouvir as palestras. Fui lá sabendo que não havia
internet e pensando que talvez nem tivesse água quente na torneira.
Quando cheguei na minha cela no primeiro dia, me deparei com um
lugar bastante confortável, até com ar condicionado e calefação. No
mosteiro budista também havia calefação em vários cômodos, mas o
quarto que eu fiquei era o único que não havia aquecimento, pois ficava
muito perto da porta. Mas não tive maiores problemas.
Na cela há quatro pequenas divisões: o espaço para rezas, com um
lugar para sentar e uma Bíblia, além de quadros com Jesus, Maria e a
Santíssima Trindade. No espaço central havia a cama, além de uma mesa,
uma cadeira e uma prateleira para estudos. Havia o banheiro e, por
último, perto da janela o lugar para comermos em solidão, com mesa e
cadeira. Éramos orientados a ler um livro espiritual enquanto comíamos,
o que é uma prática comum em mosteiros.
Nesse dia tive peixe no almoço e uma salada semelhante ao dia
anterior. Escrevi no meu diário nesse dia que “o peixe estava
maravilhoso”, então devia estar mesmo.
Eram irmãs diferentes que cozinhavam a cada dia. Então em alguns
dias o almoço estava com gosto melhor e em outros nem tanto,
dependendo das habilidades culinárias de cada uma.

9 de Fevereiro: Terceiro Dia

A irmã Ana pediu que eu copiasse as primeiras três páginas do Lucas.


Ela me deu um caderninho de capa preta para meus estudos bíblicos.
Aproveitei que estava empolgada e, após copiar, li todo o Lucas.

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Wanju Duli

Ela me trouxe folhas de papel, caneta para caligrafia e tinteiro. Ela


desenhou várias letras belíssimas. Tinha muita habilidade. Ela me
ensinou a forma de desenhar cada letra e eu copiei. Ela me instruiu a
treinar a caligrafia sempre que eu pudesse. Era outro exercício bem
relaxante. Às vezes eu copiava trechos da Bíblia nessas folhas enquanto
escutava as gravações das palestras.
A irmã me mostrou as partes principais do mosteiro. Achei um livro
que me interessou na lojinha e ela me emprestou para que eu o lesse.
Fiz uma hora de adoração do Santíssimo Sacramento na capela. A
partir de então, eu teria que fazer uma hora de adoração diária.
A adoração eucarística é quando se expõe a hóstia numa igreja para
que as pessoas possam rezar ou meditar em silêncio diante dela, que é a
presença real de Cristo.

10 de Fevereiro: Quarto Dia

Escutei mais gravações no rádio. Li, fiz caligrafia e debati com a irmã
Ana sobre o trecho da Anunciação em Lucas, após escrevê-lo.
É bom escrever trechos da Bíblia, pois assim podemos aprendê-los
com muito mais atenção do que somente lendo.
É impressionante o quanto é possível debater apenas sobre poucas
frases.
Há uma passagem na qual é dito: “O Espírito Santo descerá sobre ti,
e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra” (Lucas 1:35). Essa
é uma referência à “nuvem” de Deus.

11 de Fevereiro: Quinto Dia

Ouvi na gravação o início dos Mistérios Luminosos do rosário. Para


quem não sabe, em cada dezena do rosário se medita sobre alguns dos
mistérios da vida de Jesus.
Reli Marcos.
Almocei frango, arroz e salada de alface com cenoura. Nessa primeira
semana eu estava realmente gostando muito da comida.

12 de Fevereiro: Sexto Dia

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Visitando Bruno

O domingo era o único dia da semana no qual almoçávamos todas


juntas. E nesse dia não havia nenhum tipo de trabalho. Afinal, domingo
é o dia que Jesus ressuscitou e todos os cristãos devem reservar para
descansar e adorar Deus e não para trabalho.
Durante o almoço, ouvimos leituras espirituais.
Para a minha surpresa, nem mesmo no domingo eu teria liberdade
para me servir do que eu quisesse e quanto eu quisesse. Para explicar
isso, a irmã Ana me contou uma piada. Elas são cheias de piadas
religiosas no mosteiro.
No inferno, todos tentavam comer usando colheres com cabos
enormes. No entanto, o cabo da colher era tão longo que eles nunca
conseguiam fazer com que a comida chegasse à própria boca. Por isso,
ficavam todos tristes, irritados e com fome.
No céu, as pessoas usavam as mesmas colheres de cabos longos, mas
estavam todos felizes. Por quê? Porque usando essas colheres eles
conseguiam colocar comida na boca uns dos outros. Assim ficavam
todos bem alimentados e contentes por terem ajudado os amigos.
A irmã me contou que nos almoços em conjunto elas seguiam
princípio semelhante. Nenhuma irmã servia o próprio prato, mas era
sempre servida por outra irmã. Ou seja: eu tinha que servir o prato de
uma irmã e uma delas me servia.
Nós tínhamos uma liberdade mínima de fazer movimentos com as
mãos para indicar que a quantidade de comida no prato já estava boa.
Mas tínhamos menos liberdade para escolher os tipos de comida.
No final, meu prato geralmente acabava com mais comida do que eu
aguentaria comer. Mas eu comia tudo. E, obviamente, eu teria preferido
maior quantidade de certa comida e menos de outra. Muitas vezes havia
azeitonas nesses almoços de domingo e eu não tinha outra escolha a não
ser comer, embora não goste.
Depois do almoço, caminhei ao ar livre e li um pouco. Escutei os
mistérios luminosos e os dolorosos.
De vez em quando vinha outra irmã conversar comigo. Ela me
avisou que na missa de domingo viria um jovem padre ortodoxo para
celebrar. Fiquei curiosa, pois eu nunca tinha visto uma missa ortodoxa.
No máximo, já frequentei missas em latim, mas católicas.

77
Wanju Duli

E, adivinhe: o padre resoveu dar a hóstia na mão em vez de dar na


boca. E eu deixei cair a hóstia no chão por acidente.
Isso nunca tinha acontecido antes comigo! Confesso que fiquei em
choque, pois era a última coisa que eu esperava.
O padre agiu de forma bastante “profissional”. Com muita calma, fez
um movimento de mão dizendo que estava tudo bem. Abaixou-se
lentamente e recolheu a hóstia do chão com muito cuidado. E me deu
outra.
Não sei explicar porque, mas lágrimas rolaram dos meus olhos após
esse incidente. Foi muito poderoso! Por que eu deixei a hóstia cair? E
por que caíram lágrimas como água? Eu não planejei nada disso e foi
muito difícil esconder as lágrimas até o fim da missa, que felizmente já
estava quase no fim.
Tive um atelier sobre os mistérios dolorosos na capela pouco depois.
Isso significava que eu ia adorar o Santíssimo enquanto escutava sobre
os mistérios dolorosos nos fones de ouvido.
Foi um momento emocionante. Eu já mencionei antes que reações
emocionais como lágrimas são um gatilho para experiências místicas. Eu
me ajoelhei e depois me sentei para adorar o Santíssimo. As lágrimas
vieram ainda mais fortes e tive uma alteração muito profunda de
consciência, mesmo sem nenhuma preparação prévia.
De janta, senti uma grande felicidade ao achar em minha ministra um
pouco de brócolis com queijo num potinho. Jamais pensei que brócolis
com queijo me faria tão feliz. Mas no mosteiro as menores coisas davam
uma imensa alegria.

13 de Fevereiro: Sétimo Dia

Toda segunda-feira era o “dia do deserto”. Também não havia


trabalhos, porque era um período intensivo de meditação. Não havia
ofícios de recitação de salmos na capela, mas somente a missa nos
reunia. Todo o resto das rezas eram feitas na cela, na solidão.
Os Evangelhos nos contam que o Espírito Santo levou Jesus para
passar quarenta dias no deserto em jejum, para ser tentado pelo diabo.
Então, segunda-feira era um dia clássico de deserto, para que
pudéssemos ter nossa batalha contra os demônios.

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Visitando Bruno

Numa outra piada da irmã Ana, ela conta que os demônios estavam
numa praça jogando cartas. E por que os demônios estavam lá sem fazer
nada? Porque o próprio mundo já tinha tentações suficientes para distrair
as pessoas da busca de Deus. No mundo, os demônios ficavam sempre
relaxados e sem muito serviço.
Num mosteiro, os demônios não tinham descanso. Ficavam para lá e
para cá, de cela em cela. Eram lá que as grandes batalhas eram travadas,
pois não havia outras distrações. O tédio e o vazio podiam penetrar no
coração dos monges, para que caísse sobre eles a noite escura e eles
fossem fortemente tentados. Após vencida a batalha, Deus saía de seu
esconderijo e mostrava a si mesmo novamente para o vencedor.
Nesse dia terminei de escutar as vinte faixas da palestra sobre os
mistérios do rosário. Enquanto escutei, anotei algumas passagens bíblicas
mencionadas para conferir depois.
Terminei de ler o livro “Ese Amor que el mundo olvida” de Inès de
Warren, que era um livro relativamente longo que eu havia pegado
emprestado da lojinha. Estava em espanhol.
A irmã me emprestou o Youcat, que é o catecismo bíblico para
jovens. Informei a ela que eu já tinha lido o Catecismo (um livro de
quase mil páginas) e o Compêndio do Catecismo, mas nunca o Youcat.
Havia mais de 500 perguntas lá. Minha tarefa era responder todas elas
num caderno antes de ler as respostas no livro. No começo eu escrevia
longas respostas, mas ao perceber que naquele ritmo eu jamais iria para
frente, logo passei a resumir minhas respostas.
Era quase como um “teste” para eu descobrir o quanto eu sabia
sobre cristianismo. Eu devia ter contado os meus acertos.
Nesse dia, aprendi como rezar a Liturgia das Horas. Desde os
primórdios do cristianismo os monges rezam seguindo os quatro
volumes desse livro. É uma reunião de salmos para serem recitados em
diferentes horas do dia, além de outras recitações que acompanham.
O objetivo é que toda semana cada monge tenha recitado todos os
150 salmos. No caso das freiras e frades, de vida ativa, eles recitam os
150 salmos a cada mês, já que seus trabalhos consomem mais horas por
dia.
Funciona da seguinte forma: eu acordava todo dia às seis da manhã e,
após tomar banho e tomar café da manhã (não tinha café lá, mas apenas

79
Wanju Duli

chá e leite em pó para beber), eu recitava o Ofício de Espera. Esse era o


mais longo de todos, pois eram muitos salmos. Talvez eu levasse uns
vinte minutos para recitar tudo na minha salinha de rezas.
Perto das sete da manhã eu ia para a capela no segundo toque do
sino. O primeiro toque era quinze para as sete, um alerta. No segundo
toque, cinco para as sete, todas deviam se dirirgir para a capela, para
garantir que ninguém se atrasasse.
Havia uma hora de recitações de salmos e cantorias. Esse ofício da
manhã se chama Matinas.
As oito da manhã era a missa, que costumava durar em torno de meia
hora ou quarenta minutos. Depois da missa, ainda permanecíamos uma
meia hora na capela, rezando, meditando ou até mesmo lendo. Eu
sempre levava um livro comigo para a capela, para emergências, além do
livrinho de recitações. Mas eu não cantava. Apenas acompanhava no
livro.
Depois, umas nove e pouco, cada uma voltava para sua cela. Poucos
minutos depois, havia mais um toque de sino: hora de rezar a Tércia.
As horas na Bíblia se contam a partir das seis da manhã. Por isso às
nove da manhã era chamada “terceira hora” ou “tércia”. Foi o horário
em que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, conforme é dito nos
Atos. Sendo assim, todo dia às nove horas devíamos fazer a recitação da
Tércia, louvando a descida do Espírito Santo e recitando salmos.
Após a Tércia, de umas nove e meia da manhã até às onze e pouco,
quando chegava o almoço, tínhamos tempo livre. Eu geralmente o usava
para ler ou estudar na cela. Quando tinha sol, eu saía para caminhar nos
arredores, com um rosário e um livro.
A recitação do rosário caminhando se parece um pouco com a
“meditação andando” do budismo.
Depois do almoço, eu lavava os pratos e talheres na pia do banheiro.
Devolvia os pratos da cela para a gaveta e as tigelinhas de metal com três
andares na qual vinha meu almoço para a ministra.
Até que era divertido ter um almoço surpresa. No primeiro andar da
tigela havia uma comida quente. No segundo salada e no terceiro algum
pão ou outra coisa que eu guardava para o lanche ou café da manhã.
E para rezar antes das refeições eu tinha um livrinho com quatro
rezas diferentes que a irmã me deu. Então eu usava uma reza para cada.

80
Visitando Bruno

E enquanto comia, eu relia um pouco do meu “Imitação de Cristo”. Era


bom para ler comendo, pois minha edição do livro tem um formato
pequeno.
Meio-dia toca o sino para rezar a Sexta. Na sexta hora foi quando
Jesus foi pregado na cruz.
De terça a sábado, da uma da tarde até às três, eu trabalhava. As
irmãs trabalham da uma às cinco.
Três da tarde toca o sino da Noa, que é a nona hora, quando Jesus
morreu na cruz numa sexta-feira (por isso não se come carne às sextas).
Então eu recitava os salmos da Noa na minha cela.
Das três e quinze da tarde até às seis eu tinha o horário livre. A não
ser quando a missa era às cinco ou eu terminava o trabalho um pouco
mais tarde.
Seis horas tínhamos Vésperas na capela. E eu ainda precisava
encaixar uma hora de adoração ao Santíssimo diariamente. Eu
normalmente fazia isso antes das Vésperas.
As Vésperas iam até em torno de sete ou sete e meia. Quando eu
voltava para a cela, lia ou estudava mais alguma coisa. Jantava e depois
me preparava para dormir. Porém, antes de dormir eu ainda tinha que
rezar as Completas, que é a oração da noite, agradecendo pelo dia e
pedindo proteção para a madrugada. Também é uma reza mais longa,
pois é preciso pronunciar o Credo e outras coisas.
Em alguns momentos do dia se recitava o Angelus. E sempre ao
entrar na própria cela se reza uma Ave Maria.
Esse é um dia normal no mosteiro. É realmente bem agitado! Além
de dois ofícios de uma hora na capela, há a missa, uma hora de adoração
e mais cinco orações da Liturgia das Horas. E, claro, as orações antes de
comer e outras orações pessoais que escolhêssemos fazer na cela.

14 de Fevereiro: Oitavo Dia

Nesse dia completou uma semana desde que cheguei no mosteiro.


Muita coisa já tinha acontecido e eu sentia que estava passando muito
rápido.
Como já disse antes, a cada dia um padre diferente celebrava a missa.
O mosteiro ficava há duas horas da capital. Sinceramente, ser padre deve

81
Wanju Duli

ser muito difícil, pois além de tomar conta de todas as missas e eventos
de uma paróquia, ouvir confissões, batizar, etc, ainda é preciso ficar
dirigindo para várias cidades diferentes para celebrar missas em outros
locais que precisam de sacerdotes.
Havia um padre que aparecia de vez em quando e celebrava uma
missa meio diferente. Ele ficava em silêncio em vários momentos. Era
realmente uma missa bem silenciosa. A irmã Ana me contou que esse
padre já tinha sido monge cartuxo e por isso quando vinha para esse
mosteiro celebrava a missa nesse estilo.
As irmãs cantam muito bem. Mas há uma irmã em especial que canta
maravilhosamente. É a irmã Raquel (vou chamá-la assim), que tem
formação em canto. Desde o primeiro dia fiquei encantada com a forma
que ela cantava. Mas não sabia se eu teria alguma oportunidade de
conversar com ela.
E a chance se apresentou nesse dia. Ela me levou até outro recinto do
mosteiro para fazer um trabalho manual de pintar caixinhas de velas de
batismo.
Eu tinha que misturar dois tons de amarelo e acrescentar um pouco
de água na tinta. Pintava cada caixa por fora, e depois por dentro.
Quando já estava seca, eu a lixava e secava com um pano as partes
metálicas.
Esses eram os primeiros passos da caixinha. Em breve eu aprenderia
os próximos.
Eu e a irmã Ana fizemos juntas uma adoração ao Santíssimo, com
recitações espontâneas. Ela me ensinou que podemos ler um livro e rezar
ao mesmo tempo, parando em frases que achamos inspiradoras.
Comecei a ler um livro escrito por um monge da Cartuxa do Rio
Grande do Sul, que a irmã me emprestou. É um livro de homilias. São
aqueles discursos exegéticos que os padres dão sobre as Escrituras.

15 de Fevereiro: Nono Dia

Fiz biscoitos na cozinha junto com a irmã Ana. Pegamos uma receita.
Fiz uma adoração ao Santíssimo usando o Magnificat (Canção de
Maria) como base.
Acabei de ler o livro “Palavras do Deserto: Homilias de um Cartuxo”.

82
Visitando Bruno

Todo dia também era preciso encaixar a lectio divina no meu


calendário, que é a leitura diária da Bíblia.

16 de Fevereiro: Décimo Dia

Pintei nove caixinhas. Foram duas horas e meia de trabalho.


Esqueci de mencionar que eu trouxe comigo alguns livros de
cristianismo, para o caso de eu não ter o que ler. Porém, eu tinha tanta
coisa para ler que mal tinha tempo. Por isso, eu só lia os livros que eu
trouxe em breves momentos livres.
Nesse dia li um pouco de um livro de Santa Teresa de Ávila que eu
tinha comigo. Também comecei a reler “A infância de Jesus”, de Bento
XVI. Avisei para a irmã que eu já havia lido aquele livro, mas que eu não
me importava de reler. E realmente, eu já não me lembrava de muita
coisa.
Respondi mais perguntas do Youcat e treinei caligrafia.

17 de Fevereiro: Décimo Primeiro Dia

Quebrei nozes na cela. Foram as duas horas usuais de trabalho.


Terminei de ler o livro do Bento XVI. Eu o considero meu papa
preferido e já li outros três livros escritos por ele.
Recebi uma nova tarefa: buscar versículos no Cântico dos Cânticos
que correspondessem a cada um dos mistérios do rosário. Uma vez feito
isso, eu devia montar um caderninho com folhas de papel dobradas
grampeadas. Nele eu escreveria um trecho por folha. Após fazer isso,
comecei a fazer um desenho para cada mistério e colorir. Pedi lápis de
cor para isso. Fiquei tão contente por receber uma caixa de lápis de cor!
Atividades como desenhar, pintar e fazer caligrafia realmente me
relaxavam, além de poder dar uma caminhada ao ar livre quando queria.
Afinal, eu praticamente não tinha outras opções de coisas para fazer
além de ler e rezar.
Mesmo assim, era muito raro que eu me entediasse, pois eu sempre
estava cheia de coisas para ler e estudar. Sempre havia tarefas a serem
feitas.

83
Wanju Duli

Na minha lectio divina li um pouco do Gênesis e dos Atos dos


Apóstolos. O Gênesis porque a irmã Ana me disse para ler inteiro. E o
Atos por minha preferência, já que eu tinha acabado a leitura dos quatro
evangelhos.
Eu estava recém na pergunta 50 do Youcat. Ainda teria muito
trabalho pela frente.

18 de Fevereiro: Décimo Segundo Dia

A manhã foi bem misteriosa, com uma névoa.


Cortei batatas e folhas de chá e fiquei muito cansada. Senti uma
grande exaustão que eu não lembrava de ter sentido nos outros dias.
Certos trabalhos braçais realmente cansam, principalmente após fazê-los
por mais de duas horas seguidas sem estar acostumada.
Tive uma conversa divertida com a irmã Ana sobre a batalha contra o
demônio.

19 de Fevereiro: Décimo Terceiro Dia

Dia do almoço com as irmãs. Ajudei a lavar os pratos. Nesse


mosteiro, assim como faziam no mosteiro budista, elas usam duas
grandes bacias com água: uma para lavar os pratos e outra para enxaguar.
É uma boa forma de economizar água. Para não sujar muito a primeira
bacia, primeiro passávamos um guardanapo nos restos de comida dos
pratos.
Li um pouco de vários livros. Consegui adiantar algumas leituras.

20 de Fevereiro: Décimo Quarto Dia

Adorei o Santíssimo por duas horas na capela. Sempre que a irmã


Ana me perguntava se eu queria fazer alguma coisa, eu respondia que
sim.
Quer adorar o Santíssimo por uma hora a mais hoje? Sim. Quer se
confessar? Sim. Quer trabalhar um pouco mais hoje? Sim. Quer ler esse
livro? Sim, por favor! Pois para livros eu jamais dizia que não,

84
Visitando Bruno

principalmente porque eu não tinha acesso direto à biblioteca e dependia


dos livros que me eram trazidos.
É uma grande forma de treinar a obediência.

21 de Fevereiro: Décimo Quinto Dia

Pintei mais caixinhas. Eu devo ter mencionado que estava gostando


de pintá-las, porque essa tarefa me foi atribuída diversas vezes.
Pode-se dizer que eu tinha a liberdade de expressar opiniões e dizer o
que eu preferia fazer ou não. Eu optei por simplesmente aceitar o que
me era dado, principalmente porque esse é o espírito esperado num
mosteiro.
Nesse dia também ajudei a tirar água de uma caixa, usando baldes.
Tinha chovido (andava chovendo bastante) e a caixa estava cheio d’água
e num local difícil de tirar. Então usamos mangueiras e baldes.
Li o livro “Bem-aventurados” de Madalena Fontoura, sobre os
pastorinhos Jacinta e Francisco Marto. Após ler, me deu vontade de
rezar o rosário.
Essa era outra coisa que esqueci de mencionar que eu devia fazer
todos os dias: rezar o rosário completo. Eu fazia isso nas caminhadas ou
antes de dormir, mas eu frequentemente pegava no sono sem terminar.
Eu terminava, no máximo, um terço.
Éramos orientados a rezar quase o tempo todo. Enquanto
realizávamos trabalhos manuais, devíamos rezar alguns Pai Nosso e Ave
Marias. Até batendo o bolo eu tinha que rezar.

22 de Fevereiro: Décimo Sexto Dia

Caminhei umas três horas junto com as irmãs. Apesar de ser uma
quarta-feira, era um dia diferente. Não haveria caminhadas no domingo,
com a proximidade do início da Quaresma. Conversamos sobre os
mistérios do rosário associados a Fátima.
Terminei de reler o livro “Relatos de um Peregrino Russo”. Esse é
outro que a irmã Ana me emprestou e eu avisei a ela que já tinha lido.
Mesmo assim, em obediência, eu o reli. O cara desse livro, esse sim

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Wanju Duli

orava sem cessar! Ele fazia coisas realmente malucas e não parecia ter
medo de nada. É inspirador.
Acabei de ler “Caminho de Perfeição”, de Santa Teresa, um dos que
eu havia trazido comigo.

23 de Fevereiro: Décimo Sétimo Dia

Finalizei a leitura de “Sobre a potencialidade da alma” de Santo


Agostinho. É interessante ler outros escritos dele além de “Confissões”.
Agostinho é inteligente demais. Ele explica de forma simples, divertida e
profunda.
Na adoração do Santíssimo na capela (às quintas a adoração é em
conjunto, após as Vésperas) fiquei uma hora ajoelhada e ofereci minha
penitência às almas do purgatório e, como dizem os pastorinhos, “à
conversão dos pecadores” .
Comecei a ler o famoso livro “Memórias da irmã Lúcia”.
Na caminhada do dia anterior, a irmã Raquel me disse que conhecia
pessoas que tinham presenciado o milagre do sol.

24 de Fevereiro: Décimo Oitavo Dia

Nos dias anteriores eu havia praticamente apenas pintado caixinhas,


mas nesse dia me deram potinhos de velas para limpar. Usei luvas,
porque o material de limpeza era bastante tóxico. Deu algum trabalho,
pois eu tinha que primeiro retirar a cera com água quente, mas gostei de
fazer. Eu fiz a limpeza na minha cela, do lado de fora.

25 de Fevereiro: Décimo Nono Dia

Grande névoa!
Eu já estava aprendendo as próximas etapas da caixinha. Até então,
eu havia aprendido a cortar cortiça e a posicioná-la no interior das caixas,
colando com cola de madeira. Nessa ocasião aprendi a posicionar e colar
estrelinhas em cada caixa, que era o toque final.
A vantagem de fazer a mesma coisa em vários dias era que eu
adquiria prática e fazia cada etapa com rapidez. Essa caixa de velas era

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Visitando Bruno

vendida nas lojinhas e as duas primeiras caixas que finalizei foram


levadas para a loja. Fiquei feliz.
Perguntei o que mais vendia na loja e a irmã Ana respondeu: os
doces. É claro.
Uma irmã veio me visitar na cela e gostou do desenho que fiz na capa
do caderninho do meu Rosário Bíblico. Fiz Maria com Jesus dentro de
um coração. Pintei de rosa e roxo porque a cor vermelha estava faltando
na caixa de lápis de cor. Por esse motivo também não consegui desenhar
Jesus com sangue na crucificação. Mesmo assim, dei um jeito de escolher
boas cores para as pinturas. O meu lema no mosteiro era me arranjar
com o que eu tinha e me sentir grata.

26 de Fevereiro: Vigésimo Dia

Vi ovelhinhas! Dezenas delas entraram no mosteiro, algumas dizendo


“Bééé!” e balançando os guizos quando andavam. Uma estava
mancando. Estavam sem pastor!
Gente da cidade grande que vai para o campo dá nisso: parece que
uma ovelha é a coisa mais sensacional do mundo. Mas eram tão
lindinhas!
Embora eu só tenha levado livros de cristianismo comigo para ler no
mosteiro, abri uma única exceção: levei também meu livro favorito, “O
Jogo das Contas de Vidro”. Essa talvez tenha sido minha sexta ou sétima
releitura. Já perdi a conta.
No livro há alguns trechos relacionados ao cristianismo. Há um
capítulo no qual o personagem principal passa uns dias num mosteiro
beneditino e há debates fantásticos. Mas também há reflexões sobre o
hinduísmo, sobre crenças chinesas e diversas áreas do conhecimento.
Nesse dia eu já tinha passado da metade do livro. Ele tem mais de
600 páginas, então estava num ritmo bom de leitura.

27 de Fevereiro: Vigésimo Primeiro Dia

Terminei de ler o livro das cartas da irmã Lúcia.


A irmã Ana grampeou meu rosário bíblico. Eu tinha terminado de
desenhar e pintar uns dias atrás.

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Wanju Duli

Contei a ela sobre as ovelhas que vi e ela disse que elas são muito
tontas. Quando entram num lugar, depois não sabem mais sair. Elas
encheram a estrada de cocô e se uma caga, cagam todas juntas. Também
fiquei sabendo que elas andavam comendo a horta do mosteiro. O
pastor as deixa soltas.
Aliás, no meio da caminhada da quarta-feira, achei um aviso escrito
pelas irmãs embaixo dos fios elétricos, dizendo: “Bons ladrões, não
roubem a luz das irmãs que rezam por vós” ou algo parecido. Elas já
tiveram problemas quando houve um roubo e elas ficaram sem luz.
Embaixo da mensagem havia o desenho de uma monjita ajoelhada
rezando.
De vez em quando havia quedas de luz no mosteiro, mas eram
breves.
Comecei a ler o livro “San Silouan El Athonita” de Achimandrita
Sophrony. Também é um livro enorme, e em espanhol. Seria uma das
primeiras biografias que eu leria de um monge ortodoxo.
Ela também me emprestou a “Sinopse dos 4 Evangelhos”. São os
Evangelhos posicionados juntos na ordem cronológica. E quando há um
mesmo trecho do Evangelho repetido, eles são colocados juntos para
comparação. Fica bem mais fácil estudar dessa forma. Através desse livro
eu aprenderia como fazer uma ficha bíblica. O tema que ela escolheu
para mim foi “Jesus reza”. Eu devia procurar todos os trechos nos
Evangelhos em que aparece Jesus em oração e escrevê-los.
Posteriormente eu iria recortar cada versículo, organizá-los por tema
com clipses e depois montar um caderninho.

28 de Fevereiro: Vigésimo Segundo Dia

Três semanas desde que cheguei.


Anotei um trecho do livro do Hesse: “E esquecemos sobretudo que
nós mesmos somos um pedaço da História”.

1º de Março: Vigésimo Terceiro Dia

Quarta-feira de cinzas!

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Visitando Bruno

Nesse dia teria início mais uma etapa das minhas dificuldades
alimentares. Com o início da Quaresma, o frango e o peixe foram
completamente cortados. A partir daí, só em alguns dias eu receberia
uma latinha de atum de vez em quando. Fora isso, num dia eu receberia
arroz e noutro batata, alguma saladinha, pão, frutas e poucos
complementos.
Se eu tivesse participado da comida da Quaresma na época em que eu
era vegetariana, não teria sentido muita diferença. Mas hoje em dia foi
difícil. As bactérias do meu intestino já se acostumaram com outras
coisas.
Também não mencionei que toda sexta-feira no mosteiro,
independende de ser Quaresma ou não, é dia de jejum de pão e água.
Mas quem não está acostumado com isso, pode pedir complementos.
Por isso, às sextas-feiras eu recebia, além do pão, complementos de
frutas e no almoço um purê de batata desidratado, no qual eu colocava
água quente.
Nunca comi tantas maçãs, pêras e laranjas na minha vida. E também
alguns kiwis.
Nesse dia, o padre passou cinzas na nossa testa durante a missa. E
cada uma das irmãs se abaixou e beijou os pés da outra.
Pela primeira vez desde que cheguei, fiquei ligeiramente entediada.
Terminei a releitura de “Imitação de Cristo” e passei a ler trechos da
Bíblia nas refeições.
Anotei uma passagem do livro do Hesse: “Desejo, ao contrário, o
risco, a responsabilidade e o perigo, estou faminto de realidade, tarefas e
ação, também de privações e sofrimentos”

2 de Março: Vigésimo Quarto Dia

Hoje as Matinas foram às 6:30. Tive que acordar 5:30. Foram


cantadas as Odes do Grande Cânone de Santo André de Creta, no
Tempo da Quaresma: Quinta-feira depois das Cinzas.
Nesse dia eu fiquei com fome depois do almoço. Fiquei tão feliz
quando chegou a sopa antes das Vésperas! Eu não sabia se teria sopa
naquele dia. Nunca pensei que uma sopa fosse me trazer tanta alegria.

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Wanju Duli

Lembro que na época do retiro budista, às vezes me dava vontade de


sair correndo porta afora do mosteiro e procurar alguma venda de
qualquer tipo de comida. Mas é claro que eu não acharia, pois era um
local isolado. Só que a fome fazia com que eu fantasiasse essas coisas. Lá
eu não aguentava mais exatamente o mesmo tempero nas comidas e eu
topava comer qualquer outra coisa que não fosse aquilo.
Já no mosteiro católico foi mais tranquilo. Mesmo assim, as semanas
da Quaresma estavam sendo uma provação.
Nesse dia foi um pessoal filmar as Vésperas na capela. E eles
permaneceram até o fim da adoração do Santíssimo! Novamente, fiquei
ajoelhada em todo o período e ofereci a penitência. Nessa ocasião
derramei lágrimas de emoção, pois foi realmente bonita a adoração. Cada
irmã dizia uma frase espontânea. A música que elas cantavam no começo
era belíssima.

3 de Março: Vigésimo Quinto Dia

Ajudei a cozinhar bolos de iogurte e um “salame de chocolate”, que


nada mais era que um bolinho de chocolate comprido. Mas nada daquilo
era para nós, pois estávamos na Quaresma. Era para as pessoas que
visitavam o mosteiro.
Treinei mais caligrafia com uma passagem do Evangelho.

4 de Março: Vigésimo Sexto Dia

Entrou uma abelha na minha cela quando a irmã Raquel veio nos
visitar. Há muitas abelhas por lá, pois eles têm criações de abelhas.
Cortei uns tecidos com a imagem de Jesus e João Batista e colei.
Tentei cortar uma cruz com um bisturi, mas não deu certo. Eu não tive
força o suficiente.

5 de Março: Vigésimo Sétimo Dia

Adoração do Santíssimo ouvindo o atelier sobre o Coração


Profundo.

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Visitando Bruno

Na doutrina cristã, uma etapa é ser capaz de levar o entendimento


racional da religião para o coração. Para isso, quando repetimos o nome
de Jesus, ou o Kyrie Eleison, devemos imaginá-lo do lado esquerdo do
peito.
No dia anterior eu perguntei para a irmã Ana se a oração do nome de
Jesus era mais avançada que o rosário por não conter o elemento da
imaginação. Ela disse que não, pois depende da pessoa: alguns
conseguem ter experiências místicas profundas mesmo com a repetição
das orações do rosário.
Isso porque já tínhamos conversado outras vezes sobre como o
demônio entra em nossos pensamentos exatamente através da
imaginação. A dica dela foi que quando houver termos como “sempre”
ou “nunca” em nossos pensamentos, são altas chances de ser o demônio
tentando nos enganar através da imaginação.
Pois quando sofremos alguma coisa no presente, não é o próprio
sofrimento do presente que nos é insuportável, e sim quando a
imaginação fantasia que aquilo pode permanecer para sempre.
Porém, através da visualização dos mistérios da vida de Jesus no
rosário, podemos usar a imaginação de forma positiva. A imaginação não
é ruim por si mesma.
Nesse domingo, fomos caminhar conversando sobre o Evangelho
das tentações de Jesus no deserto. Foi maravilhoso! Uma das irmãs sabe
grego e comentava de vez em quando como era a passagem no original,
para termos uma interpretação melhor.
Outra coisa que a irmã Ana me ensinou foi sobre a organização do
ano litúrgico em anos A, B e C. Esse ano, 2017, é o ano A, com leituras
de Mateus.
Choveu na caminhada e elas me emprestaram uma capa de chuva
azul escura com capuz. Vimos armadilhas de javalis fora do mosteiro.
Fiquei sabendo que além de javalis, há lebres por aqueles lados, que
também comiam a horta. Até mesmo uma fuinha já roubou alimentos da
cozinha.

6 de Março: Vigésimo Oitavo Dia

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Wanju Duli

Terminei de responder as perguntas do Youcat. Eu praticamente tirei


o dia para isso.
Finalizei a primeira parte do livro de San Silouan (metade).

7 de Março: Vigésimo Nono Dia

Sol, mas também névoa.


Adoração do Santíssimo usando trechos do livro para reflexão.
Chegou uma irmã de outro mosteiro para aprender técnicas de canto
com a irmã Raquel.

8 de Março: Trigésimo Dia

Aprendi a cortar e pintar números numa superfície metálica para


depois serem colados nas velas. Além dos quatro números de 2017,
cortei as letras alfa e ômega.
Terminei de ler o livro enorme sobre San Silouan.
Escutei as catequeses “O Esposo” em CD, gravadas em 2014. A irmã
Ana fala nas gravações sobre passagens bíblicas que comparam Deus a
um esposo.

9 de Março: Trigésimo Primeiro Dia

Saí para caminhar de manhã, pois tinha sol. Até deitei num tronco
caído, meu lugar favorito.
A irmã Ana foi me visitar na cela e eu não estava, então deixou na
minha ministra o livro com a continuação das memórias da irmã Lúcia,
com uma florzinha. Várias vezes também já recebi refeições com
pequenos enfeites de flores.
Cortei e pintei mais números e letras. Nesse dia fiquei um pouco
frustrada, pois não achei que eu tinha feito um bom trabalho. Eu poderia
ter cortado melhor, mas não consegui. Eu me esforcei, mas não deu
certo.

10 de Março: Trigésimo Segundo Dia

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Visitando Bruno

Terminei de ler o segundo volume com as memórias da irmã Lúcia e


a irmã me deu outros dois: “Diálogo sobre a felicidade” de Santo
Agostinho e “Um caminho sob o olhar de Maria”, mais uma biografia da
irmã Lúcia.
O livro do Santo Agostinho era curto e daria tempo para terminar,
mas essa biografia tinha mais de 500 páginas. Eu disse para a irmã que só
terminaria de ler antes de ir embora se eu ficasse sem dormir nas
próximas duas noites. Ela disse que isso não era conveniente. Acho que
ela não percebeu que eu estava brincando.
Além do mais, eu já estava muito cansada de ler tantos livros sobre os
pastorinhos. Eles são realmente bons, mas quando se lê vários seguidos
contando mais ou menos as mesmas coisas, começa a ficar repetitivo.
Trabalhei na cozinha e ajudei a fazer um bolo chamado “Bolo
Podre”. Era esse mesmo o nome na receita e continha ingredientes
como laranjas e nozes, além de uma quantidade absurda de mel. Eles
tinham tantas abelhas que mel não deveria faltar.
Enquanto eu batia as claras em neve, a irmã Raquel apareceu na
cozinha, dizendo que queria me dar um beijo, toda feliz. Ela me beijou e
naqueles breves segundos comecei a me perguntar o que eu tinha feito
de bom nos últimos dias. Eu sinceramente não conseguia lembrar de
nada. Talvez eu recordasse de uma ou outra coisa que havia feito errado,
mas eu não era capaz de me lembrar de algo particularmente certo.
A seguir, ela disse que o motivo foi que eu já havia cortado vários
números ontem. Fiquei surpresa, pois achei que eu os tinha feito mal.
Mas pelo jeito meu esforço gerou alguns frutos, se ela gostou do que fiz.
Fiquei muito feliz depois daquilo e limpei a cozinha o melhor que
pude.

11 de Março: Trigésimo Terceiro Dia

O padre disse que acordou tarde, por isso a missa foi ao meio-dia e
não às oito da manhã. Ele disse que colocou o despertador para tocar,
mas não conseguiu acordar.
Vale a pena lembrar que ele tinha que vir de outra cidade dirigindo
até o mosteiro. Para estar lá às oito, talvez tivesse que acordar ainda mais
cedo do que nós.

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Wanju Duli

Nos dias anteriores, tivemos o mesmo padre vários dias seguidos.


Talvez ele tenha ficado alguns dias hospedado no mosteiro. Lembro de
tê-lo visto assistir o ofício das Vésperas por umas três noites. De vez em
quando ele caminhava nos arredores do mosteiro e ficava contemplando
a paisagem.
Terminei de ler o livro de Santo Agostinho. O interessante desse livro
é que se trata de um diálogo real que ele teve com a mãe e alguns amigos
sobre teologia e filosofia. Alguém estava registrando tudo o que eles
diziam ao longo da conversa. É engraçado que em alguns trechos um
deles clama: “Eu não disse isso!”, para que não fosse registrado, mas
depois ele confessa: “Está bem, eu disse”.
Pintei, desenhei e recortei mais números, dessa vez com muita
empolgação e confiança.
Senti uma alegria indescritível quando descobri que eu teria batata
doce para a janta.
Terminei de ler a Sinopse dos Quatro Evangelhos e fazer as
anotações para a ficha bíblica “Jesus reza”.

12 de Março: Trigésimo Quarto Dia

Ateliê de oração com a irmã Ana, sobre o Esposo. Usei no ateliê


passagens dos Cânticos, Apocalipse, Isaias, Oseias, João, Êxodo,
Gênesis, Deuteronômio. Foi divertidíssimo. A irmã conhecia tão bem a
Bíblia que conforme eu escolhia certas passagens, ela sabia onde
encontrar outras parecidas. Notei que ela também sabia de cor vários
salmos. Acho que depois de mais de dez anos repetindo todos os 150
salmos toda a semana, alguns ficaram na memória.
Eu mesma memorizei várias frases de alguns deles, de tanto ouvir
serem cantados. Principalmente o glorioso salmo 129 cantado pela voz
espetacular da irmã Raquel.
Após a caminhada de três horas daquele dia com as irmãs, voltei para
minha cela cansada e com as meias molhadas.
Na primeira hora sempre caminhávamos em silêncio. Na segunda
hora, quando estávamos divididas em dois grupos, debatíamos uma
passagem de Mateus. E na terceira hora reuníamos todas para
compartilhar o que descobrimos.

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Visitando Bruno

Falamos sobre o Evangelho da Transfiguração e eu comentei sobre a


nuvem. Além da nuvem nessa passagem, havia uma nuvem sobre
Moisés. Mas haveria uma sobre Elias? Eu não me lembrava e elas
também me disseram que havia apenas o episódio da chuva.
Tivemos que atravessar dois riozinhos. Um deles subindo num
tronco e o outro correndo. Mas foi divertido. Atravessar um rio sobre
pontes improvisadas feitas de troncos são as ideias das irmãs para as
diversões de domingo.

13 de Março: Trigésimo Quinto Dia

Varri a cela, limpei um pouco o banheiro.


Um pequeno drama que tive que passar ao longo dos dias foi a
limitação do papel higiênico. Eu recebia apenas dois rolos de papel
higiênico a cada sábado. Mas quando chegava sexta-feira o papel já
começava a faltar. Às vezes eu tinha que deixar recados na minha
ministra avisando que o papel estava acabando ou tinha acabado.
Claro que eu tinha toda liberdade de pedir rolos extras de papel, mas
eu queria tentar me virar com o que me davam. Era para isso que eu
estava lá.
Minha felicidade por lá consistia em coisas simples, como receber
papel higiênico, lápis de cor, brócolis e batata doce.
Às nove horas da manhã foi a missa. Depois seria a confissão. Tive
que esperar quase duas horas dentro da capela para chegar a minha vez
de me confessar, mas valeu a pena.
Depois descobri o motivo. Aquele padre gostava de dar discursos
após a confissão. Mas os dicursos dele eram interessantes.
Essa foi minha terceira confissão no mosteiro. Em todas elas eu
confessava quase as mesmas coisas: pequei porque estou apegada à
comida, porque tenho preguiça, porque sou orgulhosa e atribuo o que eu
faço a mim mesma e não a Deus, etc. Coisas do tipo. E nessa ocasião eu
também falei que me distraía nas missas e ofícios com pensamentos
diversos.
Depois que me confessei, ele leu o Magnificat. E ele disse: “o mundo
é uma tristeza”. Disse que Satanás não queria as orações, que a reza é o
coração da Igreja.

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Wanju Duli

Nesse dia comprei coisas na lojinha, como rosários feitos de nós,


bons para rezar na cama. Fui com a irmã Ana até uma cruz onde será
construído o resto do mosteiro no futuro. Ela me contou que ali foi feita
a primeira missa. Havia uma imagem de São José. Uma vez teve um
pequeno incêndio por lá, mas o fogo só chegou até a imagem de São
José. Ela me mostrou a árvore chamuscada pelo fogo.
Praticamente terminei minha ficha bíblica no caderninho. Fiz várias
partes coloridas com lápis de cor.

14 de Março: Trigésimo Sexto Dia

Dia de peregrinação religiosa. Ainda dormi mais uma noite no


mosteiro.
Conheci as casas dos pastorinhos, fiz a Via Sacra, vi os locais das
aparições do Anjo e de Nossa Senhora e assisti a uma missa na basílica.
É impressionante visitar lugares sagrados. Muitas pessoas rezando,
alguns andando de joelhos, chorando. Todos unidos pela mesma fé.

15 de Março: Trigésimo Sétimo Dia

Assisti à missa pela manhã. Minha última missa.


Fui embora antes do meio-dia e dei um grande abraço na irmã Ana.

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Visitando Bruno

Capítulo 2: A vida depois de tudo

"Por alguma razão estranha, o homem sempre deve plantar suas árvores frutíferas
num cemitério. O homem só pode encontrar vida entre os mortos. O homem é um
monstro disforme, com seus pés direcionados para frente e sua cabeça virada para trás.
Ele pode tornar o futuro exuberante e gigantesco, contanto que ele esteja pensando
sobre o passado"

O que há de errado com o mundo, por G.K. Chesterton

No meu primeiro retiro longo, no mosteiro budista, nada parecia real.


Parecia que eu estava vivendo num sonho, numa história de fantasia. Era
tudo estranho, ligeiramente irreal. Realizei meditações fascinantes, mas
também senti muito tédio. Tinha fome, sono e vontade de sair de lá o
quanto antes. Os trabalhos eram árduos, sofridos, foi tudo difícil.
Dessa vez foi bem diferente. Fiquei até uma semana a mais. Apesar
das dificuldades com a comida, não senti fome do jeito que senti no
mosteiro budista. Raramente senti sono após a adaptação da primeira
semana. Tudo fluiu bem. Eu gostava dos trabalhos, das leituras, das
atividades, das rezas, dos cânticos. Parecia natural. Bastante real.
A irmã Ana me disse algo sobre isso nos últimos dias: o quanto é
importante sentirmos a realidade. Lá no mosteiro, se tinha uma noção
mais intensa do real, principalmente quando se realizava trabalhos
braçais como cozinhar e limpar.
Ela disse que é comum no mundo mergulharmos nos trabalhos
intelectuais e perdermos a noção da vivência prática, da realidade do
mundo.
Afinal, não somos apenas espírito, mas também corpo. É através dele
que nos conectamos com os outros.
A reza não é uma imaginação, mas uma conexão com as origens da
vida. Mas após rezar, devemos retornar.

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Wanju Duli

No mosteiro budista, a monja que me treinou me deu uma pedra,


para que eu pudesse carregar enquanto meditava, para lembrar de voltar
para esse mundo.
Embora faça apenas uma semana que voltei do retiro, parece que
realizei algo natural. Passou muito rápido. É como se eu só tivesse dado
um passeio breve por lá e retornado.
Não parece que saí de casa. Quando voltei, senti como se nunca
tivesse saído.
Deve ser porque já não importa se estou lá ou aqui. As coisas que
carrego comigo, levo para onde eu for.
Estou contente agora de poder comer o que eu quiser e ler o que eu
quiser. Mesmo assim, é verdade que lá nós experimentamos um tipo
diferente de liberdade. É curioso que a liberdade seja a coisa mais
valorizada no cristianismo, mas que num mosteiro existam tantas
restrições.
Segundo o cristão, só temos liberdade em Deus. O budista diz que só
temos liberdade quando nos soltamos dos desejos e de nós mesmos.
Elementos como mandamentos e disciplina servem para nos libertar
e não para nos aprisionar. Ainda assim, Deus se esconde e as
experiências místicas da iluminação permanecem escondidas e só são
atingidas com muito esforço.
Como, no meio da agitação do mundo, podemos encontrar
respostas?
Nós queremos conhecer a nós mesmos. Mas nós só conhecemos a
nós mesmos quando nos soltamos de nós. Quando paramos de nos
focar tanto no “eu”.
Minha experiência no mosteiro não foi fazer o que eu queria. Eu
escutei. Disse “sim”. Recebi o que me foi dado. Entreguei o que me foi
pedido, conforme minhas capacidades.
Não fiquei profundamente entediada e não foi tão doloroso porque
eu fui lá disposta a morrer, ao menos temporariamente, para meu “eu”.
Eu queria experimentar como era viver com a ausência de mim mesma.
Num mundo em que exigimos que tudo ocorra do jeito que desejamos,
essa é uma lição gigantesca.

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Visitando Bruno

As irmãs jamais assinam seus trabalhos de arte, que permanecem


anônimos. E quando morrem são enterradas diretamente na terra, com
cruzes sem nomes.
Há algo profundo nisso, que embora eu possa saber explicar em
palavras, ainda não compreendi com meu coração.
Religiões são um grande mistério. Uma boa parte desse mistério não
precisa ser desvendado, mas apenas vivido.

Ó obediência suave, que nunca tem pena! Tu fazes os homens viverem e correrem,
mortos, e por isso matas a própria vontade; e quanto mais está morto, mais
velozmente corre, porque a mente e a alma estão mortas para o amor próprio de uma
vontade sensitiva perversa, com mais agilidade faz o seu caminho e se une ao seu
esposo eterno com afeto de amor"

Carta 217 de Santa Catarina de Siena

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Wanju Duli

Sobre a Autora
Wanju Duli tem 29 anos e mora em Porto Alegre. Tem mais de 30
livros publicados pelo Clube de Autores e mais de 500 resenhas de livros
em seus blogs.
Você encontrará algumas fotos tiradas nesse período de retiro em:
http://wanjuduli.blogspot.com.br/2017/03/retorno.html

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