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Juliana Duarte
2013
Para Rafael
Palácio dos Alfinetes
Primeira Compilação
Prólogo: Leitoso
Tubulação Semiótica A
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– Já avisei que esta é sua última chance. Se errar, o jogo acaba e você
me dará o meu prêmio.
O segurança aproximou-se e segurou o garoto. Ele não apresentou a
menor resistência. O homem sacudiu-o, mas ele apenas fechou os olhos
e amoleceu o corpo. Ele sacudiu-o com mais força e agarrou-o pelos
ombros.
– Resposta errada – falou o menino de repente, abrindo os olhos
completamente – Não quero mais brincar com você.
– Maldito! Diga-me como descobriu este lugar!
O homem permaneceu sacudindo-o pelo pescoço e o menino
gargalhou; uma risada ao mesmo tempo hilária e sofrida.
– Eu adoro esta parede – falou o menino – Se você me desse um
presente, eu te amaria para sempre. Eu aperto o seu pescoço porque
tenho medo de te perder.
O homem gritou e largou o garoto imediatamente.
O garoto, estirado no chão, sorriu.
– Eu quero o meu prêmio...
Naquele instante, fez-se ouvir o som de uma campainha.
– Ah, temos visitas. Senhor, vá abrir a porta. Parece que a encomenda
chegou.
Confuso, e sem saber por que o obedecia, o homem se dirigiu à
porta. Abriu-a.
– Sim! – ouviu-se uma voz vinda da porta – Ele é fresco e está em
promoção! A garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
E a porta se fechou. O homem de terno viu a si mesmo com uma
caixa de papelão na mão, embrulhada com fitas adesivas e carimbada
sobre ela a etiqueta: “Saudável”.
– Puxa, você está com sorte. O meu prêmio chegou por Sedex.
Ele sentou-se e estendeu as mãos para receber a caixa. Porém, o
homem não parecia muito disposto a entregá-la. Estava tão aturdido que
ainda procurava entender o que aconteceu ali.
– Estou com sede – queixou-se o menino.
Agilmente ele ergueu-se do chão e tomou a caixa das mãos do
homem. Abriu-a imediatamente, rasgando as fitas adesivas.
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Início: Sorvete
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Os minutos se arrastavam.
A máquina fazia barulho. A parede estava um pouco suja. A conta
dos quadrados do cobertor estava em vinte e oito. Um inseto prendeu-se
na pequena teia ao alto.
A porta permanecia fechada. Percebeu vozes no corredor. Ainda não
era a hora.
– Os pais dela já sabem?
A resposta veio.
– Entendo.
A porta do seu quarto se abriu.
– Boa noite.
O médico espiou a noite pela janela.
– Que aconteceu? – perguntou o menino.
– Como assim? – perguntou o médico.
– No corredor.
– Nada.
Um novo silêncio. E foi só.
Ouviu-se uma voz vinda da janela aberta na rua lá embaixo.
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Eram apenas quatro paredes brancas, sem janelas; uma pequena pia.
Muitos brinquedos e uma menina sentada no chão.
O rosto dela era doce e infantil. Seus cabelos eram castanhos
encaracolados, nos quais repousavam laços de fita.
Seu vestido era extremamente branco, adornado com babados.
Possivelmente tratava–se de uma camisola. Porém, sua graciosidade não
estava nos cachos perfeitamente penteados ou nas vestes alvas e sim em
sua face.
A expressão da menina era difícil de ser descrita. Seus olhos eram
inocentes e meigos. Seu rosto era de uma curiosa ingenuidade, no qual
podiam ser lidos: uma indefinida saudade de nada, melancolia, tristeza e
esperanças desbotadas.
Ela guardava algumas peças de Lego dentro da caixa; ao lado de fora,
um grandioso e elaborado castelo que acabou de construir. Enrolou
novamente um pião, com cuidado. Guardou-o. Recolheu-se num canto,
abraçando uma ovelhinha de pelúcia.
Por vários minutos ela manteve-se imóvel. Alguém bateu na porta.
Há muito tempo aquilo não acontecia. Deveria responder ou permanecer
em silêncio?
A voz clamou do outro lado da porta:
– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente deixa
o produto ainda mais branco!
– Senhor?
– Sim!
Ela ajoelhou-se e engatinhou até o buraco da fechadura da sala baixa.
– O Alfaiate enviou o senhor? – perguntou ela, com cautela.
– Sim!
– O Alfaiate deseja comprar algum artigo do senhor?
– Sim! – prosseguiu ele, cada vez com maior animação.
– Eu... não sei se o Alfaiate permite que...
– O Alfaiate, O Alfaiate... – repetiu uma voz zombeteira por trás dela
– De quem fala? Do senhor das linhas e agulhas? São suas linhas de
feltro e suas agulhas de aço?
A menina virou-se, assustada. Havia mais alguém dentro de sua sala
trancada.
– Quem é você...? Como entrou aqui?
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– Linhas, nada mais que vícios! Por isso, não tenha medo. Não há
nada a temer.
– Você é... O Alfaiate? – perguntou ela incerta e definitivamente
impressionada.
Ele desatou a rir. Nesse momento, a menina entrou realmente em
pânico.
– Bem, Leiteiro, devo pedir para que se vá agora. Não podemos
assustar a novata. Temos muito que conversar.
– Sim! – concordou O Leiteiro – Tenha um bom início de dia e um
fim extraordinário!
E O Leiteiro se retirou da frente do buraco da fechadura.
O recém-chegado posicionou-se gentilmente diante da garota.
– Eu não sou O Alfaiate.
Ela observou-o com atenção. Era apenas um garoto. Usava roupas de
cores fortes, um chapéu espalhafatoso, uma gola de proporções
exageradas e outros detalhes peculiares que poderiam ser facilmente
notados.
– Você riu...! – observou ela.
– Eu ri – concordou ele.
– Mas...
– Eu sorri, ri, dei risadas e gargalhadas. Faço isso e sempre fiz antes
de existirem as regras. Vamos falar de você agora. Só vim para saber
como está. Quer jogar alguma coisa? Ou me mostrar os jogos que criou?
Ela não respondeu.
– Gostei desse castelo! – falou o garoto, enquanto caminhava pela
sala atravessando displicentemente por dentre as bolinhas de gude
espalhadas. Começou a pular e a girar – Conheço muitas danças e jogos.
Posso lhe mostrar alguns.
Ela ainda não se sentia muito segura. Tornou a sentar-se no canto,
abraçando sua ovelhinha e fitando–o com olhos curiosos.
– Posso voltar em outra ocasião, se preferir – ele fitou-a
amigavelmente – não vou tentar incitá-la a ir contra as regras d’O
Alfaiate.
– Não é isso... – começou ela, mas logo se calou. Ela olhou para os
próprios pés. Quando voltou a erguer os olhos, ele havia sumido.
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(entra um fantasma)
PRIMEIRO FANTASMA: Saudações! Bem-vindos ao show de
horrores da humanidade, da criação e da miséria! Acaso devo continuar?
(entra outro fantasma)
SEGUNDO FANTASMA: Penso que não é necessário. O recado
está dado. Entenda ou não o pobre Arlequim, ainda assim permanecerá a
arrancar gargalhadas em sua performance infame e lugar-comum!
(entra o último fantasma)
TERCEIRO FANTASMA: Cegos! Ignorância; eis a maior bênção do
patife malfadado. Jamais remover a lança cravada ao peito. Abençoado.
Abençoado! Três vezes abençoado!
PRIMEIRO FANTASMA: Ah, pois a lança ainda não o derrubou.
Derruba apenas o infeliz que a percebe?
SEGUNDO FANTASMA: Imortalidade? Jamais! Miséria! Miséria!
TERCEIRO FANTASMA: A chance é única e não pode ser
desperdiçada. O que dizer então do falastrão que tagarela em
pensamentos? Cinco lanças enfiadas sem misericórdia! Ah, fado infeliz!
PRIMEIRO FANTASMA: Sem diferença. Sem retorno! Cortados
estão todos os fios. Fios tecidos e velados na maçante bonança da Roda
da Fortuna!
SEGUNDO FANTASMA: Fortuna, fado, falácias do malgrado
títere! Quem dera eu poder enforcar o parvo!
TERCEIRO FANTASMA: Deixar-se por um cego conduzir? Onde
repousam as regras?
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– Cale-se.
– ... e sair ilesa?
Ela largou por um momento o fantoche e a tesoura no chão.
– Sei que você é muito habilidosa e tudo o mais, mas convencer mais
duas a participar de seu joguinho foi...
Ela deu alguns passos a frente e segurou Papiloma pelas vestes
multicores.
– Saia daqui agora ou vou fazer você sair.
– Sim, sim – concordou Papiloma, com efusivos acenos de cabeça –
Já entendi.
Ela largou-o.
– Quando O Alfaiate souber dessas suas brincadeiras de mau gosto...
– Que saiba. Ele não poderia fazer nada contra mim. Afinal, eu nunca
joguei conforme as regras. E eu sei que você também não, Menarca...
E ele desapareceu dali.
Sem pressa, ela novamente sentou-se e retomou suas costuras. Uma
batida na porta.
– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente...
– Eu não proibi você de gritar na minha porta, infeliz? – e bateu com
força na fechadura.
O Leiteiro saiu de lá no mesmo instante.
Estava deitado por muito tempo. Tudo o que poderia fazer era
dormir; mas às vezes os tubos, agulhas e aparelhos impediam que ficasse
tranquilo.
Alguém o acordou.
– Mãe...?
– Como se sente? Está dando muito trabalho para os médicos?
Ele não respondeu.
O rosto dela mantinha-se sério, apesar de fitá-lo ternamente.
– Você precisa disso. Sabe que precisa.
Por um momento, os dois permaneceram em silêncio.
– Obrigado por vir – falou o garoto, sem encará-la diretamente.
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Mas minha mãe só ficou alguns minutos. Ela não parece muito à
vontade comigo. Acho que ela só vem por obrigação.
Meu pai nunca vem. Há quase um ano não o vejo. Ele está sempre
trabalhando ou viajando, ou é isso o que minha mãe diz. Espero que isso
não seja uma desculpa. Sei que ao menos uma ou duas vezes por mês ele
poderia arranjar um tempo.
A faxineira veio aqui semana passada limpar meu vômito. Acho que
vou vomitar mais vezes.
Eu não sabia que eu tinha senso de humor.
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(entra um fantoche)
PRIMEIRO FANTOCHE: Penso cuidadosamente. Mais cuidado e
eu cairia do abismo. O abismo de minhas fantasias; o precipício de
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minhas farsas. Seja como for, estou satisfeito. Nem mesmo preciso
provar um segundo passo.
(entra um segundo fantoche, sorrateiramente. Coloca-se por trás do
primeiro e o empurra).
SEGUNDO FANTOCHE: A verdade crua sem condimentos de
lábia? Conseguiste provar do tormento. Apenas uma gota basta para
adormecer a língua. Embora tentes em desespero fermentar em pólvora,
asseguro-te que as cinzas serão teu fim inevitável.
(entra outro fantoche)
TERCEIRO FANTOCHE: Tal cena comum não surpreende os
hospedeiros da carne. Intoxica-se a larva com o lanho da própria
mandíbula. Consome então da própria pele e aceita vergonhosamente a
lógica da liquefação.
(levanta-se o primeiro fantoche)
PRIMEIRO FANTOCHE: Serei, pois, o micróbio meteórico que
com sua minúcia microscópica reinará sobre a moléstia e sobre o
massacre da maturidade!
TERCEIRO FANTOCHE: A tua nutrição é pacífica. Raptará do
pântano a nutriz e com ela a prudência da reverência. Pois pensa
enquanto canta.
SEGUNDO FANTOCHE: E quando de teu pitoresco sopor
despertar...
TERCEIRO FANTOCHE: ... o posfácio poderá ser escrito.
PRIMEIRO FANTOCHE: A epifania ainda pulsa.
(os fantoches saem de cena.)
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Mas claro que essa história do meu pai é apenas especulação minha.
Não acho que ele realmente tenha morrido.
Minha mãe vinha me trazer livros algumas vezes por mês, mas nem
isso ela faz mais, porque uma vez eu reclamei disso. Não devia ter
reclamado. Preciso aprender a ficar quieto, como sempre fiz. Apenas
concordar; e mais nada.
Eu nunca pedi por atenção.
Não gosto mais de escrever nesse caderno de folhas listradas. Essa
foi a última vez.
Estou com medo de continuar e falar demais.
Depois do que aconteceu com a enfermeira, perdi tudo o que eu
achava que ainda tinha, mas não quero falar. Ninguém vai ouvir da
minha boca uma palavra a esse respeito.
Pronto. Adeus.
Era noite.
O menino estava deitado na cama. Observava o quarto. Já estava
cansado de contar o número de quadrados de seu cobertor.
Fitou a mesa de cabeceira: era de madeira e tinha duas gavetas. Na
segunda guardava seu diário. A chave sempre levava consigo para poupar
eventuais constrangimentos.
Embaixo da cama estavam os livros que sua mãe trazia para que ele
estudasse. A maioria deles eram extremamente chatos, mas vez ou outra
ele olhava as figuras coloridas do livro de ciências. Lá também estavam
os pertences da menina que ocupava seu quarto quando ele ia para a sala
de cirurgia. Em sua opinião, ela era bastante bagunceira para uma
menina. Nunca a havia visto. Ouvira que ela mal podia se levantar da
cama.
Estava um pouco ansioso naquele momento. Esperava alguém.
Raramente falava com ela, pois costumava falar pouco com as pessoas.
Quem sabe pudesse ao menos agradecer quando ela enfiasse a agulha em
seu braço para tirar sangue...
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estão nessa situação? Tala, Menarca, Chaga e tantos outros dos quais
apenas ouvi falar por você? O que é esse lugar? O que sou eu?
– Você não faz a mínima ideia? O que O Alfaiate te falou?
– Que sou a favorita e que eu ganharia os mais belos presentes. Que
haveria outras, mas que eu era a primeira e a melhor. Que eu teria tudo o
que desejasse: vestidos, enfeites, brinquedos e diversões.
– No dia do seu nascimento ele te contou isso e essa sala é tudo o
que você conhece. Você o reconhece como seu criador. Sabe o que
existe lá fora?
– E o que é “lá fora”? – perguntou ela.
– Você sabe que deveria estar feliz – falou Papiloma – porque é a
favorita, é a melhor de todas e tem tudo o que quer. Mas não está. Essa é
a sua contradição.
Mais uma vez, ela permaneceu quieta.
– Pois eu vou dizer por que você não está feliz. Para você o “lá fora”
sempre foi a miséria e aqui dentro o reino da felicidade. Por isso você
nunca se interessou em sair.
– E como as coisas são?
– Lá fora é uma droga, mas não totalmente. Existem coisas boas e
ruins lá. Eu diria que é interessante. No mínimo, digno de ser conhecido.
Ela levantou os olhos.
– Mesmo...? – porém, ela logo mudou a sua expressão de leve
esperança – Mentira! Você sempre quis me jogar contra O Alfaiate! Não
sei o que vai ganhar com isso, mas...
– Sangria – interrompeu Papiloma – ouça o que tenho a dizer para
ver se faz sentido.
– Não faz – concluiu ela.
– E a sua vida faz?
– Não.
– Ei, espere aí – Papiloma teve que rir desta vez – Eu vou ter que
dizer para você o que é a sua vida. Acho que quatro anos trancada aqui
sem fazer nada não foi tempo suficiente para que parasse um minuto
para pensar. Aliás, você nem deve saber o que é tempo. Ele controla isso
também.
– Do que está falando?
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– Que doença?
– Ainda insiste que está tudo bem? Que as coisas podem continuar
como estão?
– Que escolha eu tenho?
– Quebrar as regras.
Ela fitou-o com seriedade.
– Isso é loucura. Você está pedindo para eu desobedecer à única coisa
que aprendi ser certa na minha vida.
– Você não tem nada a perder.
– Sabe o que aconteceu com Angina e Moebius...
– Sim, existe um risco. A escolha é sua.
– Você não me deu escolha – respondeu ela, finalmente – Seu
trapaceiro.
Papiloma sorriu.
– Sim! – clamaram de fora – Ele é fresco e está em promoção! A
garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
– Venha – falou Papiloma, subitamente sério.
Silêncio.
– Não o leite. Você.
Sangria levou um grande susto. O Leiteiro estava dentro do quarto
fechado.
– Sim!
Porém, naquele instante, ainda de pé, suas costas caíram para frente,
pendendo a própria cabeça e seus braços.
Papiloma apenas moveu a cabeça em sinal de reprovação. Dirigiu-se
até o rapaz de roupas brancas e gravata borboleta, girando alguma coisa
em suas costas. Era uma corda.
– Um... boneco? – Sangria ficou aterrorizada.
Papiloma não respondeu. Apenas terminou de dar corda. O Leiteiro
ergueu-se novamente, com energia.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
– Vá até a Cozinha – falou Papiloma – Sangria... você vai provar uma
coisa muito especial.
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Palácio, mas ela sentiu que o sorriso era de simpatia. Ainda não se sentia
preparada para retribuí-lo, mas sentiu-se à vontade com o menino.
– Você sabe por que aquelas pessoas estão com tanta pressa? –
perguntou ela, apontando para homens e mulheres que andavam de um
lado para outro por dentre os prédios, como se soubessem exatamente
para onde ir.
– Aonde? – ele perguntou.
– Lá – ela apontou – Todos eles.
– Cada um quer chegar a algum lugar.
– E onde é esse lugar?
– Não, não – ele riu. Outra surpresa. Ele lembrava vagamente
Papiloma – Cada um deles vai a um lugar diferente. Cada um tem seu
caminho.
– E que caminho poderia ser esse?
Ele deu de ombros.
– Estão indo trabalhar, eu acho. Ou almoçar. Sempre têm coisas para
fazer.
– E por que eles estão com tanta pressa?
– Você acha?
– Eles poderiam parar um pouco nesse parque – falou ela – aqui é
bonito. Mais do que para onde estão indo, eu acho.
– É, tem razão. Deveriam parar.
O menino parecia estar se divertindo com a conversa. Será que a
estava levando a sério? Mas mesmo assim estava sendo simpático.
– Bem, tenho que ir – falou ele, segurando a coleira do cachorrinho.
– Você também? – perguntou ela, desapontada. Por um momento
pensou que eles poderiam ter se tornado amigos. Que ele poderia lhe
mostrar o local e conversar mais.
– Minha mãe está me esperando. Vamos almoçar também.
– O que é almoçar?
– Você faz umas perguntas estranhas – ele riu de novo – É quando se
come ao meio-dia.
– Meio-dia?
– Quando o sol está lá no alto.
Isso ela entendia.
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– Bem, estou com fome, você não está? Acho melhor você ir almoçar
também. Foi bom te conhecer. O Branquinho também gostou de você.
Tchau.
Ele nem lhe deu tempo de responder e foi embora, levando o
cachorrinho pela coleira. Ela parou para pensar. Será que estava com
fome? Nunca sentiu fome antes, mas talvez estivesse começando a
sentir.
O que estava acontecendo? Por que se sentia tão diferente? E não era
apenas a surpresa do mundo novo. Uma grande transformação tinha
acontecido dentro dela.
Ela resolveu sentar-se no banco e observar as pessoas que passavam.
Ainda não entendia a pressa delas, mas era muito interessante olhá-las:
ao mesmo tempo tão parecidas e tão diferentes.
Novamente voltou sua atenção ao pequeno pedaço de papel. Não
sabia como poderia encontrar o local do baile. Resolveu iniciar sua
busca, como Papiloma lhe indicou: procurando os nomes das ruas.
Caminhando pelas calçadas, ela percebia elaboradas vitrines de lojas.
Era curioso imaginar que até ali tinha vivido apenas nos fundos de uma
delas.
Parou diante de uma. Ela possuía diversos aparelhos eletrônicos:
computadores, televisores, DVDs, dentre muitas outras coisas das quais
nem ouviu falar.
Uma menina acompanhada de um homem apontava para a vitrine.
– Pai, eu quero aquele videogame! Eu quero!
– Depois, depois – falou o pai – Agora temos que ir.
– Mas eu preciso! Então eu quero aquele laptop. Por favor!
– Não, nem pensar.
Os dois saíram da frente da vitrine, mas a menina continuou
insistindo.
– Você nunca me dá o que eu quero!
Sangria tentou imaginar o porquê da negação daquele homem, mas
não conseguiu. Eram coisas demais para pensar. Continuou a caminhar
pelas ruas. Foi então que um forte som de buzina assustou-a tanto que
seu coração pulou.
Ela correu de volta para a calçada. Grandes máquinas barulhentas
atravessavam as ruas. Sangria imaginou que aquelas pessoas fossem as
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Uma árvore nua de galhos retorcidos era tudo o que se via por trás da
neblina de flocos brilhantes. No topo do galho mais alto, um ninho.
O pássaro solitário ainda voava. Ele dava voltas graciosas, em voos
cuidadosos e belos. Sua beleza era simples, embora profunda.
No topo do ninho, um ovo branco. Um raio de sol iluminava o ovo,
que mais parecia uma pérola brilhante, um tesouro de mares em cores
pastéis. Apenas uma brisa fria.
As voltas do pássaro eram repetidas, mas ele não se importava. O
pássaro pousou em um dos galhos. Piou baixinho. Silêncio.
Um lagarto se arrastava pelo chão.
– Saudações – cumprimentou o pássaro.
– Que fazes aqui, pássaro? – perguntou o réptil – Por que não estás a
voar longe para além dos limites dos olhos que fitam a paisagem,
juntamente com teu bando?
– Não posso fazer isso, lagarto – respondeu o pássaro, prontamente
– Preciso manter-me vigilante junto de meu ninho.
– E sacrificar os mais magníficos voos e aventuras jamais sonhadas?
– É preciso ou meu ovo ficará desprotegido.
– Há apenas um ovo em teu ninho. Que mal faria perdê-lo?
– E se fosses tu a cria deste ovo, lagarto?
– Se assim fosse, eu não teria nascido para sentir a dor de minha
própria perda.
– A tua resposta é estranha, lagarto. Não partirei. Teu interesse é
apenas fazer-me partir para o meu filhote devorares.
– Isso não é um filhote. Não mais que uma casca embebida em
molho decomposto. Um veneno para meu paladar. Não nascerá a tua
cria. Estará deformada e como uma abominação despertará. E tu
desperdiçarás a tua curta existência para morreres sem jamais sentires o
sonho do último vôo.
– Maldita é a tua língua. Que tristeza que sinto! Que deplorável!
– Tu o perderás e também a ti mesmo. Acaba com isso enquanto é
tempo.
– Que faço, que faço? – perguntou o pássaro, em desespero.
– Apenas canta tua última melodia. Desejo desfrutar de tua lacrimosa
mediocridade perante a destruição.
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Era fenomenal.
O salão era enorme, com um grande teto decorado por luminárias.
Muitas mesas estavam espalhadas pelos cantos nas quais alguns
desfrutavam refinadas refeições. Um grande espaço no centro estava
aberto, no qual acontecia a dança.
Todos usavam belos trajes, vestidos lindos, roupas coloridas, as mais
diferentes e elaboradas máscaras. Como um sonho.
Finalmente a garota conseguiu sentir-se à vontade em meio a todas
aquelas fantasias. Entendia por que Papiloma escolheu tal lugar: era
simplesmente perfeito.
A música era tranquila, envolvente. Por vezes forte e inspiradora. No
mesmo instante, ela desejou experimentar a dança.
Sozinha, girou seu vestido rodado. Enquanto girava, fechava os olhos
e apenas sentia. Não pensava em mais nada.
Aquilo era mais do que o gosto da liberdade. Possuía um sabor muito
diferente e especial que ela não sabia explicar; e nem precisava.
A música, o som, a dança. Experimentou um novo passo. Ousou
mais uma vez, sem medo de fazer o que seu coração mandava. Era para
sempre espetacular.
– Aceita dançar? – alguém lhe perguntou.
Não poderia recusar nada naquela noite. Aceitou a mão que lhe era
estendida e os dois seguiram os passos da dança no grande salão.
O seu par usava uma máscara, como todos. Mas não precisou muito
para adivinhar quem era o sujeito baixo.
– Papiloma...! – falou ela surpresa, enquanto dançavam.
– Obrigado por vir – falou ele, em seus trajes multicores tradicionais,
embora adornados por uma máscara brilhante.
E sorriu. Logo os pares começaram a trocar. Vez ou outra
recuperavam os pares originais.
– Como se sente? – perguntou ele, ansioso em saber.
– Me sinto bem.
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– Seria interessante. Mas para quem não tem ninguém, ao menos uma
pessoa bastaria.
– Uma pessoa para venerá-lo e torná-lo um Deus? – perguntou ela.
– Sim.
Ela suspirou.
– Você não sabe nada sobre solidão – falou ela – Você fala como se
realmente a conhecesse, mas não faz ideia do peso da minha vida.
– Isso é normal. Todos se consideram o ser mais miserável sobre a
Terra. É perfeitamente compreensível que você também se considere.
Ela não tinha certeza se gostava daquele sujeito. Porém, de alguma
forma, a sua ousadia sincera era interessante.
– O que achou do baile de máscaras? – perguntou ele, de repente.
– Foi bom. E você, o que achou?
– Uma chatice. Só pessoas ridículas vão lá.
Ela se sentiu um pouco ofendida, mas, obviamente, esta era a
intenção dele. Ela não se deixaria enganar.
– Está xingando a si mesmo – lembrou ela.
– É divertido fazer coisas tolas de vez em quando, não acha?
– Pode ser – respondeu ela, sem pensar.
– Mas a ideia das máscaras é boa. Você pode dançar com uma pessoa
conhecida e jamais descobrir sua verdadeira identidade. E, naquele
momento especial, realizar seu sonho de amá-la em segredo.
– Achei que estivesse procurando seguidores para adorá-lo e não uma
amante – lembrou ela.
– Sim, procuro escravos. Porque sou uma pessoa extremamente má.
A maneira com que ele falou, fez com que ela sorrisse. Ela riu
baixinho. Ela mesma se surpreendeu e sentiu uma sensação especial.
Aquilo era bom.
– Por que está rindo? – ele perguntou, seriamente.
– Você é engraçado. Não acho que seja uma pessoa má.
– Eu não vejo nada engraçado. Aliás, nunca vi.
– Você estava de máscara no baile – lembrou ela – E vejo que ainda
está até agora.
– E você com a sua.
– Deixe-me vê-lo sem a máscara.
Ainda de pé, encostado no tronco da árvore, ele respondeu:
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– Você vai acabar com todo o mistério. É muito cedo para isso.
– Não precisa mostrar seu rosto, se não quiser – falou ela.
Mas, para a sua surpresa, ele desencostou-se da árvore e sentou-se ao
lado dela.
– Ao mesmo tempo – falou ele, colocando as mãos sobre a própria
máscara.
Ela concordou. Não sabia por que, mas estava nervosa.
Os dois tiraram as máscaras. Ambos fitaram-se por um longo tempo,
em silêncio.
Estava muito escuro, mas era perfeitamente possível que ambos
distinguissem as faces um do outro pela luz da lua.
Ela observou com atenção o rosto dele. Nunca o havia visto na vida,
isso ela tinha certeza. Surpreendeu-se ao constatar que ele devia ser
apenas um adolescente, ou um jovem poucos anos mais velho que ela,
embora sua voz fosse relativamente grave. Talvez eles fossem um pouco
parecidos: os mesmos olhos castanhos; os mesmos cabelos negros,
embora os dele fossem um pouco mais cacheados e bem curtos.
– Você é real?
– Que quer dizer?
– Você tem rosto de boneca – falou ele – É assustador. Já se olhou
no espelho?
– Sim, uma vez – respondeu ela – Isso é um elogio ou...
Ele não respondeu. Apenas fitava-a com curiosidade, como se ela
fosse um ser esquisito, de outro mundo. Aquilo a incomodou um pouco.
– Pare com isso.
– Seus lábios são de carne ou de porcelana? – perguntou ele.
– Eu não sei – respondeu ela, inocentemente.
– Eu posso te dizer, se você quiser.
Ele se aproximou um pouco mais, mas ela recuou.
– Que está fazendo?
– É um beijo.
– Eu não sei o que é isso – disse ela.
– É quando os seus lábios tocam os lábios de outra pessoa.
Ela ficou em silêncio por um momento.
– Por que você faria isso?
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humana e metade boneca. Não está sentindo nem metade do que deveria
sentir ao ter a barriga dilacerada.
– Por quê...? – perguntou ela, tomada de terror.
– Como eu disse, as pessoas podem beijar as outras quando querem
fingir que gostam delas para enganá-las. Geralmente elas têm algum
interesse nisso. E eu já consegui o meu prêmio.
Ele levantou-se. Trajado com seu elegante terno negro, retirou a
cartola.
– Respeitável público. Nesse momento, hei de anunciar o meu mais
novo número. A mais extraordinária e desejada mágica de todos os
tempos: a arte de torturar e matar pessoas e bonecos de segunda linha.
Nem mesmo é necessário tocá-los. Mas, caso seja de seu agrado, você
pode começar a retalhação com a tesoura que acompanha nosso kit.
Com um breve aceno de sua mão encoberta por uma luva branca
parcialmente ensanguentada, ele pronunciou uma palavra:
– Copas.
E retirou de dentro da cartola um leque de três cartas de baralho,
mostrando-os imediatamente para a garota ajoelhada no chão.
Ela fitou-o com uma expressão de extremo terror.
– Não...!
Ela gritou, rasgando sua pouca voz em meio ao desespero repentino.
Seus olhos estavam esbugalhados e tomados pelo horror. Sua face
graciosa mudou completamente.
Ele permanecia a mostrar a ela o leque das três cartas. Apesar de não
sorrir, a satisfação em sua voz era evidente.
– Do que você tem medo, Sangria? Medo de desaparecer? Antes de
ter brilhado? Mas eu prometo que você vai brilhar.
De dentro do bolso da calça ele retirou um isqueiro. Posicionou-o
logo abaixo das cartas, acendendo-o.
– Ainda quer brilhar?
Ela estava assustada demais para responder. Ainda no chão, ela
abaixou-se, colocando a cabeça por cima dos joelhos.
Ele logo apagou o isqueiro e guardou-o. Recolocou a cartola na
cabeça.
– Não se preocupe. Ainda não estou tão dramático. Não com você,
pelo menos. Podemos fazer um trato.
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Palácio dos Alfinetes
Ela levantou os olhos. Sua expressão ainda era de susto, mas não
havia uma só lágrima em seu rosto.
– Não adianta tentar chorar – falou ele – você jamais seria capaz
disso; não é humana o suficiente. E não queira humilhar-se a esse ponto.
Ele abaixo-se um pouco mais, aproximando as três cartas do rosto
dela.
– Escolha uma.
Silêncio.
– Não, espere. Tenho uma ideia melhor. Vou tornar o jogo mais
interessante.
Ele virou as cartas ao contrário, de modo que só ele visse as figuras.
Estendeu o leque para Sangria.
– Agora sim. Retire uma – falou ele, como se estivessem apenas
tendo uma conversa tranquila em meio a um jogo de cartas.
Ela não o fez imediatamente. Estava nervosa demais.
– Mas se quiser que eu fique com as três, não há problemas.
Devagar, ela estendeu a mão. Parecia ter esquecido completamente a
grande dor na barriga. E puxou uma carta.
– Muito bem. Olhe-a.
Em suas mãos estava a Dama de copas.
– Você teve sorte. Muita sorte.
Ele levantou-se e deu um passo para trás. Fitou as duas cartas em
suas mãos.
– Eu poderia cortá-las ao meio, mas você já está estragada o
suficiente nessa parte do corpo. Além disso, não sou tão bonzinho assim.
Como você deve recordar, eu sou uma pessoa extremamente má.
Ela apenas permanecia a fitá-lo.
– Por que não ri agora, Sangria?
Sem aviso, no segundo seguinte, ele partiu as duas cartas com um
corte de tesoura.
Sangria não tinha voz para expressar a dor extrema. Ela jamais
poderia ter imaginado que pudesse existir sensação tão horrível. Mal
tinha forças para sustentar-se nas pernas ajoelhadas. Sua cabeça tombou
contra o chão.
– Agora posso dizer que você realmente conhece a dor – falou ele –
mas não se preocupe. Não precisa levantar agora. Permito que você
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Ardentemente desejo
Beijar meu câncer
Coçar a minha lepra
Sorrir para minha cólera
Prisioneira da cela de meus repúdios apaixonados
Tudo o que eu queria
Era aprender a amar
Chovia.
As gotas caíam fortes e decididas. A cidade estava encoberta pela
água naquela madrugada. Esquecida no alto do morro, por dentre as
densas folhagens e galhos retorcidos, jazia uma figura no chão.
Estava calada; chocada. O olhar vago e sem vida.
As gotas caíam.
Ela não se mexia. Era apenas uma figura caída com o olhar perdido.
Os olhos arregalados fitavam com atenção lugar nenhum.
Os seus belos trajes estavam ensopados e enlameados. Seus longos
cabelos negros embaraçados pelo chão.
A sua barriga estava aberta. Porém, o sangue não era imediatamente
notado. Algodão vermelho e branco saltava para fora. Aquela parte das
vestes estava cortada.
O seu rosto encostava-se ao chão. Ela repousava uma mão próxima a
ele e a outra mantinha estendida. Um dos joelhos estava dobrado e o
outro esticado, como se ela simplesmente tivesse se jogado no chão e
não se mexido desde então.
O barulho da chuva nunca se interrompia. Pedaços de cartas de
baralho espalhavam-se, imersos nas poças d’água ou ocultos pela lama.
A purpurina barata da máscara dourada se esvaía com a chuva.
Um morcego sobrevoou o local e escondeu-se no interior do tronco
oco da árvore diante dela.
– Por que uma princesa jaz no chão?
Sem mover os lábios, ela respondeu.
– Não sou princesa, criatura. Sou retalhos.
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(entra um Deus)
PRIMEIRO DEUS: Não serei eu digno de ser adorado? Por que não
me dá um gole de tua taça? Ou é em copos que bebes teu alimento
liquefeito?
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– Mas por mais que o fio gire na roda e se estenda, não poderá
permanecer para sempre – falou Menarca – Vocês sabem o que acontece
com seu fio nesse momento?
Ela retirou uma tesoura de dentro da capa e, erguendo o fio,
imediatamente cortou-o, com dramaticidade.
– É belo, não é mesmo? – perguntou Menarca, parecendo de fato
maravilhada.
O garoto estava definitivamente horrorizado, mas a garota não se
conteve:
– E quem corta o fio das tecelãs que giram a Roda da Fortuna?
Menarca não gostou da pergunta. O teatrinho não estava criando o
efeito que desejava.
– Isso, é claro, é apenas uma lenda antiga. Mas é a partir dela que
nosso jogo se inicia. Você gosta de adivinhações?
– Acho que sim – respondeu a garota.
– Então vai gostar de nosso jogo de charadas.
– A linha iniciará na roca – explicou Moebius – e passará três vezes
pela roda.
– Quando a linha for cortada, o jogo estará terminado – acrescentou
Menarca.
– Só isso? – perguntou a garota, que esperava alguma coisa mais
emocionante.
Mais uma vez, Menarca incomodou-se com a pergunta
inconveniente.
– Não – respondeu Menarca – há mais.
Ela arrastou uma quarta cadeira.
– Aproxime-se – convidou ela – sente-se.
– Não acho uma boa ideia... – murmurou o garoto.
A menina, abraçada à boneca, deu alguns passos à frente. Sentou-se.
– Agora, para garantir que não vai fugir correndo com meu tesouro...
Ela ergueu uma longa e grossa corrente e lentamente enrolou-a na
garota, prendendo-a firmemente à cadeira. Trancoua com um cadeado de
ferro.
– Vamos começar – anunciou Menarca.
– Você terá três chances – explicou Moebius.
– Basta acertar uma delas – acrescentou Angina.
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– Fantasmas.
– Não, está errado! – interrompeu a menina – A minha resposta que
vale!
– Responda então. Qual a coisa mais assustadora do mundo?
– O medo – respondeu ela.
Por um momento fez-se silêncio.
– Errado – falou Angina.
– Mas... como...? – ela mal podia acreditar – Eu tinha certeza de que
iria acertar essa! Diga-me então a solução!
– Leite – respondeu Angina, girando a roda.
– Leite?! – ela estava definitivamente indignada. Perdeu todo o seu
medo diante do absurdo da resposta – A mesma solução duas vezes!
Leite não é a coisa mais assustadora do mundo! Eu gosto de leite. Leite
com achocolatado!
– Mais uma rodada ao fundo – falou Angina.
A menina praguejou.
– As crianças de hoje já não são tão educadas como antigamente –
observou Menarca – Terceira e última chance. A minha charada...
embora todas sejam minhas, é claro.
– Não precisa nem dizer – falou a menina, monotonamente – já sei a
resposta.
– Escute com atenção – alertou Menarca – Número três. Branco,
pouca nata, insuportável, indesejável...
– Leite – interrompeu a menina.
– Errado – falou Menarca.
– Não, espere! – falou ela – Pouca nata? Leite desnatado!
– Você é uma menina esperta – reconheceu Menarca – mas não o
suficiente. Deveria ter esperado eu terminar. A resposta está errada.
– Qual a resposta, então?
– O Leiteiro – falou Menarca.
– O Leiteiro...? – perguntou a menina – Como assim? Pouca nata?
Leiteiros não têm nata. Só leite que tem!
– Mas O Leiteiro tem poucas qualidades – explicou Menarca – Você
deveria ter procurado outras definições para “nata” no dicionário.
– Pena que eu estou com as mãos amarradas, não é?
– Mais uma ao fundo! – anunciou Angina, empolgada.
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– Pois parecia muito feliz para quem não queria. Dê-me isso de uma
vez. Não me faça apelar à burguesia e aos militares. Você sabe que não
quero isso...
Com as mãos tremendo, Moebius retirou de dentro das vestes dois
pequenos pedaços de papel e entregou-lhe.
– Muito bem – falou o ancião, satisfeito, aceitando os papéis.
Imediatamente ele segurou a carta vermelha com as duas mãos e, sem
cerimônia, rasgou-a ao meio.
Moebius deu um grito fino e cortante e caiu para trás, contorcendo-se
no chão.
– Por favor, não faça drama – pediu o ancião – Você sabe que não
sentiu nenhuma dor por eu rasgar este pedaço de papel velho. Eu só não
gostaria de ver o estado de seu cadáver na Biblioteca. Se quiser gritar, é
melhor fazer agora. Prometo que farei de uma maneira gentil. Afinal, não
queremos assustar as crianças...
Ele segurou a carta negra nas mãos. Retirou um alfinete das vestes.
Enfiou-o na carta. A anciã imediatamente parou de se mexer.
– Gostei desse senhor – falou a menina.
– É, ele acabou com a bruxa – falou o menino, impressionado.
As duas anciãs de pé fitavam o velhinho, aterrorizadas.
– Bem – falou ele, tranquilamente, jogando no chão os pedaços das
cartas destruídas – vamos continuar?
Ninguém se pronunciou.
– Que tal ser a próxima, Número Dez? – sugeriu o ancião, dirigindo-
se à Angina – estou certo de que apreciará esta charada.
Mais uma vez, silêncio.
– O lagarto devora a própria cauda, dilacerando o morcego e a
borboleta. Antes voaram; agora caem. Restará apenas a memória do
mestiço bastardo.
– Não consigo acertar isso! – reclamou Angina.
– E quem disse que quero que você acerte?
– É um casamento ilegítimo.
– Sinto muito, mas você foi infeliz. A resposta não é essa. Embora
tenha sido o vermelho e o negro uma medonha união proibida. A
resposta é: o tempo.
– Suas charadas são impossíveis!
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– O que aconteceu?
O garoto não disse nada. A mãe sentou-se numa cadeira perto da
cama, em que a professora de matemática esteve sentada.
– As suas professoras disseram que você está com dificuldades. Você
não estudou?
– Estudei, mas não tanto.
– Por quê? Você tem todo o tempo do mundo para estudar aqui.
– É que... eu não gosto de estudar.
– Mas você precisa – falou a mãe – assim como você também precisa
ficar aqui no hospital. Você entende?
– Sim.
Ela ficou em silêncio por um momento. Logo continuou a falar.
– Você já tem problemas de saúde, então precisa tentar se destacar
nos estudos. Você seria mais feliz assim. Seria encorajador saber que
você é bom em alguma coisa. E você é muito tímido ainda por cima.
Precisa resolver isso.
O menino sentiu algo estranho. Uma coisa era as professoras chatas o
xingarem. Outra coisa completamente diferente era a sua mãe fazer
aquilo.
Mas ele precisava dizer.
– Mãe...
– Sim?
– É... só que... – começou ele – eu odeio estudar.
– Claro que não odeia. Tem coisas muito interessantes que você
aprende nos estudos, sabia?
– Eu sei. Mas são poucas comparadas às coisas chatas.
– Um dia, quando você estiver na faculdade, vai poder escolher o
curso que realmente quiser. Então não precisará mais se preocupar com
isso.
– Era sobre isso que eu queria conversar.
– O que foi?
Mais uma vez, ele não sabia como começar.
– Mãe – cada vez que dizia aquela palavra sentia-se muito fraco –
você sabe que eu não vou poder ir à faculdade.
– Nós vamos dar um jeito.
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– Não é isso – prosseguiu ele – acho que eu... não vou conseguir
chegar até lá. Mesmo que eu me esforce muito, entende?
– Não está tão longe assim. Só mais alguns anos...
– Você sabe do que eu estou falando.
Os dois permaneceram num silêncio incômodo. Ele precisava
quebrá-lo de qualquer maneira.
– Por isso... eu não queria desperdiçar o meu tempo com uma coisa
que eu odeio.
A mãe não respondeu.
– Por favor. Eu não quero mais estudar.
Ela não olhou para ele diretamente. Apenas fitava com atenção o
chão do quarto.
– O que pretende fazer aqui dentro, então?
– Não sei. Mas eu não queria mais. Talvez por um tempo. Um ou
dois anos...
– Você já está atrasado. Se quiser parar definitivamente de estudar e
não voltar mais, apenas me diga.
– Eu quero.
Doeu muito dizer aquilo; mais do que qualquer coisa que poderia ter
dito. Arrependeu-se, apenas ao constatar a expressão de extrema
decepção no rosto da mãe. Se ela já o considerava um inútil, agora o
olharia apenas como um peso morto que ela trabalhava para sustentar
enquanto não morria. Talvez ela pudesse desejar que ele morresse de
uma vez. Talvez seu pai também desejasse isso. Tudo o que ele dava era
despesas.
– Você não vai mais precisar gastar com professores particulares –
lembrou ele – Eu sei que é caro...
Mas arrependeu-se de ter dito aquilo também. A expressão da mãe
estava se tornando cada vez pior; como se a decepção não tivesse limites
de se aprofundar cada vez mais a ponto de se tornar insuportável.
– Entendi – falou a mãe de repente, sem olhá-lo – então não precisa
mais estudar.
– Desculpe – falou ele, tentando consertar – Eu posso continuar, se
você insistir. Se achar que é tão importante, eu...
– Eu não quero fazê-lo infeliz. Você deve escolher o que achar certo.
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Ela não fazia outra coisa durante o dia todo. Era compreensível o
porquê de Carcinoma venerar tanto O Alfaiate.
Mas depois de tanta gratidão, bem que Ele poderia ter sido mais
generoso e, além de poder tê-la colocado com uma aparência mais
apresentável, poderia ter dado a ela algum jogo que não fosse restos. Ali
só havia ursos de pelúcia sem cabeça ou em farrapos e jogos quebrados
ou pela metade. Porém, ela nem parecia notar esse detalhe. Talvez nem
tivesse percebido que seus ursos estavam sem cabeça e um pouco mais
coloridos devido aos constantes respingos de tinta que voavam para
todos os lados.
Ela também não devia saber que era apenas um molde malfeito de
boneca. O Alfaiate a jogou na Dispensa junto com os outros restos. O
porquê de ela existir era um mistério.
– Tudo bem. Vou arranjar mais jogos para você. E brinquedos bem
bonitos.
– Oba! – falou ela, entortando a cara. Talvez ela nem soubesse que
era proibido sorrir. Mas mesmo que tentasse não conseguiria, de tão
torta e costurada que estava sua boca – Carcinoma gostar de brincar!
Querer urso fofo!
– Sim, vou trazer um urso bem fofo para você – falou Papiloma, com
pressa – Agora me dê as agulhas.
Ela remexeu por dentro das caixas e arranjou uma agulha e um
carretel de linha branca pela metade.
– Estar aqui – ela entregou-lhe – Não esquecer de furar fundo. Fazer
sofrer a Sangrada. Deformar cara.
– Sim, sim, vou fazer.
– Sim! – gritaram do outro lado da porta – Ele é fresco e está em
promoção! A garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
– É, acho que vou precisar de alguns – falou Papiloma – mas daqui a
pouco vou à Cozinha buscar, tá bom, Leiteiro?
– Sim! – clamou ele, com a mesma animação de sempre – Tenha um
bom início de dia e um fim extraordinário.
E se foi.
– Não gostar dele – falou Carcinoma.
– Por que será? – perguntou Papiloma, com ironia.
– Porque Alfaiate não gostar.
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– Perdão.
– Eu não perdoo.
– Eu já sabia.
– Não, não sabia – retrucou Vício – Eu odeio ser previsível.
Portanto, dispenso as observações infelizes. Se quiser me agradar, ao
menos apague esse lixo.
– Eu não quero agradar você – falou Herói – mas observo que seu
vocabulário tornou-se mais violento.
– Fico satisfeito que você observe tantas coisas – falou Vício.
– Estou com sono – reclamou Princesa.
Vício observou o cenário cinzento e bagunçado ao redor.
– Nata, por favor, recolha os restos de Forca. Vamos indo.
– Quando chegar, quero andar de bambolê! – falou Princesa, com
animação.
– Claro, criança – concordou Vício, seriamente – acho que ainda
tenho retalhos de madeira podre para você fingir de brinquedo.
– Oba!
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Canta o Coro:
Eu não sabia! Eu nada sabia!
Jamais notei teu braço decepado
Tão escondido e remendado
Pontos em algodão cru
Que vejo graciosidade em tua dissimulação
Verdade convertida em retalhos
Pingos esfarelados da tua boca de tinta
És a mais bela
Dentre todas as dormentes e não nascidas
O Alfaiate? O Alfaiate?
De quem falas?
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Segunda Compilação
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Papiloma estava paralisado. Ele olhou para o chão. Tala estava caída,
completamente destruída.
– O que você tem? – Papiloma foi até ela – Quem fez isso com você?
Ela abriu os olhos:
– Onde está a Felpuda? Ela está bem?
– Quem?
– Minha ovelhinha.
Ele olhou ao redor. Muitos brinquedos do Banheiro estavam
destruídos. Porém, ele logo avistou aquilo que deveria ser a ovelhinha
branca que Tala sempre estava abraçada. Também estava rasgada. O
algodão se espalhou por todos os lados.
– Cuidamos dela depois – falou Papiloma, com urgência – Me diga o
que aconteceu com você. Por acaso O Alfaiate danificou a sua carta?
– Não foi na carta.
Então Papiloma entendeu tudo, ainda mais chocado. O Alfaiate nem
mesmo usou a carta. Fez aquilo com as próprias mãos. Se fosse possível,
diria que estava até pior do que o estado de Sangria alguns meses atrás.
Tala não tinha por que ser punida. Não conseguia imaginar alguém
que seguisse mais fielmente as regras pregadas na parede, mesmo que o
fizesse por medo. Não tinha coragem de tentar imaginar o terror de Tala
no instante em que descobriu que O Alfaiate estava vindo para puni-la.
– Você tentou sair do Palácio?
– Nunca.
– Tentou roubar uma carta?
– Não.
– Você sorriu...? – insistiu ele.
– Eu não teria coragem.
Tala não estava mentindo. Ela não rompeu uma só regra d’O
Alfaiate.
– Por que Ele fez isso com você?
– Porque tiraram meus brinquedos do quarto Dele.
– Que brinquedos? Que quarto? Do que está falando?
– É porque eu morri.
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A única coisa de diferente que havia ocorrido naquele último ano foi
iniciar um supletivo escolar para recuperar o tempo perdido. Em
algumas semanas começaria o primeiro ano do segundo grau como as
outras pessoas de sua idade, embora os outros não estudassem trancados
num quarto. Mesmo assim, ele tinha certeza de que não seria capaz de
acompanhar nem mesmo uma oitava série.
Estudou muito pouco. Não podia acreditar que desperdiçava seu
tempo naquilo. Na verdade, talvez só o fizesse para ver sua mãe um
pouco menos triste. Porque feliz ele sabia que ela nunca ficaria de
verdade.
No último mês ela vinha lhe visitar toda a semana para trazer algumas
apostilas e provas antigas de um colégio. Ele ainda nem havia olhado
para elas, mas sempre mentia para que sua mãe não se decepcionasse.
Sim, aprendeu a mentir; estava relativamente satisfeito com o resultado.
Mas ele não passava seus dias apenas olhando para o teto. Usava seu
tempo para uma coisa muito especial: a razão de ter suportado o hospital
até aquele momento.
Embaixo da cama.
A bagunça da garota. A menina que ficava em seu quarto enquanto
ele estava na sala de cirurgia e que ele jamais conheceu.
Ele estendeu a mão por baixo da cama. Estava na hora de mais uma
historinha.
Porém, ele tateou. E tateou um pouco mais. E nada. Seu coração
disparou. O que estava acontecendo? A menina resolveu arrumar o
quarto?
Ao espiar embaixo da cama, viu apenas algumas folhas e livros
velhos. Não havia nem mesmo rastros de que alguma vez havia existido
algo além disso.
Ele levantou-se da cama. Com dificuldade, levantou uma parte do
colchão. Olhou dentro da geladeira; procurou nas gavetas da mesa de
cabeceira. Caminhou por todos os lados; revirou cada canto do pequeno
quarto.
Ele sentou-se no chão. Colocou a cabeça entre as mãos.
Ia ficar louco. Precisava daquilo. Se não encontrasse, era melhor se
atirar da janela de uma vez por todas. Seu coração disparou ainda mais.
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Ele procurou novamente nos mesmos lugares. Cada vez que nada via,
ficava mais nervoso.
Não era um nervosismo normal. Era algo muito forte e desesperador.
Ele começou a andar muito rápido pelo quarto. Deu algumas voltas,
segurou a cabeça, que estava começando a doer. Sentia-se tonto. As
batidas de seu coração também não pareciam normais. Não fazia
nenhum esforço para conter as reações de seu corpo.
Ele abriu a porta de seu quarto. Alguém precisava lhe dar
esclarecimentos: contar-lhe para onde a menina foi transferida. Se aquilo
tivesse de fato acontecido, seria seu fim. Queria acreditar que os objetos
apenas tinham sido removidos temporariamente e que iriam trazê-los de
volta. Nunca, nos últimos cinco anos, alguém arrumou o maldito quarto.
Por que, de repente...?
O médico apareceu no corredor.
– Você mexeu no meu quarto – ele foi logo acusando. O nervosismo
e urgência daquele momento tinham eliminado momentaneamente sua
extrema timidez.
– Eu? – perguntou o médico, confuso – Eu nem entrei no seu quarto
hoje.
Sim, deveria ser mesmo verdade. Se ele morresse de repente, o
médico nem notaria sua falta. Talvez só percebesse na semana seguinte.
– Onde estão as coisas da menina que fica no meu quarto?
– Elas foram levadas para a sala de cirurgia – respondeu o médico,
com uma voz um pouco mais formal que o normal – Porque foi lá que
ela estava ontem à noite, quando...
No entanto, ele nem esperou que ele terminasse. Correu até lá.
– Espere! – chamou o médico, com urgência.
Mas o menino corria como se estivesse disputando uma maratona.
Não se lembrava de ter corrido tão rápido assim alguma vez na vida. Já
nem se recordava da última vez que correu. Na verdade, ele não podia
correr. Às vezes mal conseguia se equilibrar direito sobre os dois pés.
Ele seguiu derrapando pelos corredores. Sabia exatamente aonde ia.
Entrou na sala de cirurgia. Não havia ninguém lá.
Foi então que viu uma caixa de papelão no chão. Ela estava aberta. E
dentro dela estavam os preciosos objetos tão procurados. Começou a
desarrumar tudo, jogando longe cada coisa que havia lá dentro.
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– Vejo que incrementou bastante a sua lojinha desde a última vez que
nos vimos – falou Papiloma – E está sempre pronto a receber seus
fregueses com classe.
– É claro – falou Ele, ajeitando a cartola na cabeça – eles merecem o
melhor. E aproveito para mostrar-lhe alguns truques de mágica para uma
maior diversão.
– Você foi muito esperto em afugentar O Leiteiro daquela maneira –
prosseguiu Papiloma – e aproveitou para espancar alguns moldes de seus
brinquedos velhos para atender aos seus caprichos. Você acha mesmo
que vai conseguir reinar para sempre, Pinguim?
– Achei que bobos-da-corte deveriam ser engraçados, mas nem
mesmo são capazes de arrancar um sorriso do rei.
– Onde está a coroa do rei? – perguntou Papiloma, astutamente.
– Cuidado, Papiloma. Você sabe aquilo que posso fazer contra seu
atrevimento.
Papiloma riu com vontade.
– Eu não tenho medo de você. Nunca tive. A única razão de eu
jamais tê-lo desafiado foi por sempre ter se mostrado comportado e
silencioso nesses últimos anos. Mas parece que ultimamente você anda
um pouco entediado como atendente de uma loja de segunda categoria.
Estava na hora de se divertir um pouco, não é mesmo? Rasgar algumas
cartas, retalhar alguns trapos velhos...
– Você apenas existe porque simplesmente estava aí. Como uma
mobília velha e indesejável pregada no chão. Eu já teria me livrado de
você há muito tempo.
– Mas a verdade é que você não pode – falou Papiloma – e não tem
coragem de admitir isso. Também não consegue confessar que sem mim
estaria perdido.
O Sapateiro pareceu incomodado.
– Você esqueceu que fui eu quem criou as cartas e até mesmo sua
existência. Deseja mesmo saber por que existe? Porque eu desejava
humilhá-lo. Fazê-lo rastejar e experimentar o mais terrível sofrimento.
Ensiná-lo a não colocar mais pizzas em minha geladeira e a guardar o
isqueiro de seu maldito cigarro longe da minha vista.
– Pizzas? Cigarros? Do que está falando? Você está maluco!
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– Acredite, ele nunca irá deixá-lo. Não importa o quanto tente fugir
dele. E fico feliz que esteja seguindo minha regra tão fielmente nos
últimos tempos.
O Sapateiro fitou-o com uma expressão séria e um olhar de profundo
ódio.
– Quando você tiver coragem de me enfrentar sem o seu amiguinho
maldito, vai desejar jamais ter entrado pela minha porta...
Porém, Papiloma nem estava ouvindo mais. Apenas bebia o leite da
garrafa com concentração e descaso, fazendo questão de derrubar
grandes gotas pelo chão, retornando ao interior do Palácio com O
Leiteiro.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
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– O meu coração...?
– Diga um número. O número que mais lhe agrada.
– Quatro.
– Estenda a mão.
Ela estendeu. Quando a trouxe de volta, observou a carta 4 de Copas.
– Adorei!
– Por favor, pegue seu segundo presente.
Ela estendeu a mão novamente. Nela estava a carta Ás de Copas.
– Porque você é a primeira. E agora, o último presente.
Em suas mãos ela contemplou a última carta: a Dama de Copas.
– Eu gostei muito deste. É o meu presente favorito!
– Dei-lhe esse porque você é minha rainha.
– Se eu sou a sua rainha, você deve ser o rei – observou ela.
– Sim; mas esse é nosso segredo. Jamais o revele para ninguém.
Entendeu?
– Entendi. Posso ir brincar agora? Posso? Posso?
– Sim, vá brincar. E cuide bem dos presentes.
– Eu vou cuidar.
Não estava surpreso em saber que não tinha apenas uma doença. A
cada ano que passava, percebia que era um ninho de doenças. Já não se
espantava mais quando descobriam alguma coisa nova.
A notícia de que teria que ficar no hospital não era realmente
desconcertante. Poderia ser pior. Talvez tivesse que morar no hospital
por um tempo, mas ainda assim era melhor do que ficar em casa. Não
aguentava mais os pais discutindo. Era doentio.
O médico aparentava ser simpático, ou ao menos assim ele pensou à
primeira vista.
– Olá. Tudo bem?
Ele apenas concordou com a cabeça.
– Qual o seu nome?
Ele não respondeu. Ainda estava um pouco desconfiado.
– Qual a sua idade?
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confortava para depois lhe revelar o pior. E quando ele sorria, ele logo
desconfiava que alguma coisa não estava bem. Aquilo lhe deixava
nervoso.
– Então... não posso beber leite – concluiu ele, antes que ele
enrolasse mais para lhe dizer – nada que tenha leite.
– Sim – concordou o médico – pizzas, lasanhas, chocolates,
brigadeiros, bolos, bolachas recheadas, tudo isso está fora de questão.
– O que vou falar então quando um colega meu me oferecer uma
bolacha?
– Não se preocupe. Você não vai poder mais ir à escola. Vai precisar
fazer muitos exames, o tempo todo. Então seus pais decidiram que seria
melhor você morar aqui conosco.
– Não preciso mais estudar? – perguntou ele, esperançoso.
– Você terá aulas particulares.
Não achou aquilo realmente ruim. Não gostava de ir à escola e os
seus colegas eram chatos.
– Só porque não posso beber leite vou ter que ficar aqui?
– Claro que não – falou o médico, rindo – se fosse só isso não
haveria maiores problemas. Na verdade, há um ou outro detalhe que
também precisam ser observados...
Sentiu um ligeiro espasmo de raiva ao escutar aquele riso.
Se pudesse tapar os ouvidos, teria feito. Ele não queria ouvir nomes
científicos, explicações difíceis e o relato de todas as doenças que já teve,
que tinha ou que “teria grande probabilidade de desenvolver” se isso ou
aquilo. Quanto mais problemas tinha, parecia ficar propenso a ter mais.
Quando terminou o papo, que ele mal prestou atenção, o médico lhe
entregou um livro.
– Você pode dar uma olhada se quiser, para aprender mais – falou
ele, colocando um grosso volume de capa dura em sua mão – Ah, sim, e
algumas vezes você será transferido para outra sala. Uma garotinha virá
para cá nesses momentos. Então, pode-se dizer que você dividirá o
quarto com ela. Ela já mora aqui há algum tempo.
– O que vou fazer na outra sala?
– Eu explico depois. Fique à vontade. Eu volto depois para fazer um
check-up.
E saiu do quarto, com o mesmo sorriso detestável estampado na cara.
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e nem pretendia. Só viu algumas vezes sua mãe costurando e aquilo não
foi o suficiente nem para aprender a dar um nó numa linha.
O menino desenrolou o carretel. Girou a agulha em volta da boneca
para enrolá-la. Fingia que costurava, como se de fato pudesse dar vida a
ela através disso.
E sentiu que naquele momento ela nascia. Colocou a Dama de Copas
diante dela.
Porém, a sua princesa merecia muito mais. Escolheu mais duas cartas
para ela. Ainda havia tantas bonecas! Precisava dar prosseguimento às
suas criações.
A segunda boneca que recolheu trajava um longo vestido negro e
tinha parte dos cabelos trançados. Era melhor nem mexer nos cabelos
dela ou não conseguiria fazer as tranças novamente. Ele sentia-se um
completo inútil: não sabia costurar, jogar cartas, fazer tranças... enfim,
não era bom em nada. Talvez sua mãe tivesse razão: ele era um completo
fracasso. Jamais se destacaria. Claro que ela não lhe falava nesses termos,
mas ele já captara a mensagem.
Então ele fitou o rosto severo da boneca de negro e viu nela sua mãe;
por alguma razão lhe lembrava. O silêncio, a decepção, a depressão; e a
roupa negra encaixava-se com perfeição na postura soturna e distante
dela. Escolheu para ela a carta número 8.
Naquele momento, o médico entrou no quarto.
– Olá – cumprimentou ele, sorrindo – Já trouxeram sua refeição?
O menino se esqueceu completamente disso.
– Ah, você encontrou as bonecas dela?
– De quem?
– Da menina que divide o quarto com você.
Não fazia muita diferença de quem era. O importante era que ela não
as tirasse dali.
– Está gostando do livro que te emprestei?
a) mais ou menos
b) não
c) livro?
– Sim, estou.
– Que bom – falou o médico, achando graça – então, divirta-se.
E fechou a porta.
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(entra um fantasma)
PRIMEIRO FANTASMA: Eu sempre volto! Retorno quando a
esperança dos loucos se esvai! Não há mais amor, não há mais ódio!
Nada resta, nem mesmo o ruído seco e fino do grito dos ratos!
(entra outro fantasma)
SEGUNDO FANTASMA: Mas que desgraça! Anseio loucamente
fazer da miséria minha amante. Somente ela pode e reina. Sem cessar,
mascara e esconde. Contudo, inda reserva o títere os ingressos do último
espetáculo!
(os dois fantasmas giram um em volta do outro)
PRIMEIRO FANTASMA: Assombro!
SEGUNDO FANTASMA: Grande festa!
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Ela estava deitada. Ainda sentia os rasgos em sua pele, mas prometeu
a si mesma que suportaria tudo.
Sabia que Ele estava sofrendo muito mais; e aquilo doía.
Os brinquedos estavam espalhados pelo chão. A sua ovelhinha
branca permanecia dilacerada. As peças de Lego estavam jogadas; seu ex-
castelo, agora destruído. Bolinhas de gude jaziam esquecidas.
E foi naquele momento que escutou o som: um giro de chave na
porta que jamais foi aberta. Ela ergueu os olhos. Levou um grande susto;
o maior susto que já levou na vida. Era verdade: a chave girava na porta.
Subitamente, ela se abriu.
Uma figura de cartola e capa negra adentrou.
– Tala – falou Ele – É hora.
Ainda no chão, ela o fitava com admiração. Ele havia se mostrado.
Ela podia vê-Lo. Não sabia explicar o que sentia.
– Eu posso me oferecer como sacrifício – falou ela – posso suportar
a dor por você. Posso rasgar-me até os ossos.
– Você já teve seu tempo – falou O Sapateiro – e suportou tudo
bravamente. Você honrou sua promessa.
Os olhos dela brilharam.
– Devemos reunir todos no Grande Salão da Frente de Loja. Devo
abrir as portas agora. Siga pelo Corredor Sem Fim. Você encontrará
Menarca.
Tala levantou-se com dificuldade. Sua camisola era alva. Ela apoiou-
se nas pernas fracas, segurando nas paredes. Recolheu também a sua
ovelhinha destruída.
– Menarca deverá curá-la.
Ao passar por Ele, ela ainda olhou-O, com sua inocente ingenuidade.
Os olhos curiosos buscavam aquele que sempre desejou fitar. Para a sua
surpresa, o rosto d’O Sapateiro possuía compreensão por trás de sua
seriedade e imponência.
– Agora vá – falou Ele.
Tala seguiu sem olhar para trás novamente.
Ele dirigiu-se para o Quarto de Casal, uma vez que deixou o Quarto
vazio. Rompeu o lacre da fechadura.
A garota de vestes cor de vinho fitou-o com surpresa. Escondeu o
rosto.
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Por que os vizinhos eram tão silenciosos? Por que aquela rua era tão
calma?
E ele continuou ali por muito tempo. Não soube dizer quanto.
Foi para isso que tinha voltado para casa...?
Alguns minutos depois, sua mãe bateu na porta de seu quarto. Abriu-
a.
– Fiz um lanche para você. Vá lavar as mãos.
Ele levantou-se e foi até o banheiro. Não pensou em nada. Fez tudo
muito mecanicamente. Foi até a cozinha.
Sentou-se na mesa com a mãe, que tomava café. Encontrou um prato
com um sanduíche e um copo de suco de laranja.
– O que tem aqui dentro? Você sabe que eu não posso comer queijo.
– Pão de sanduíche integral e patê de soja.
– Patê de quê?
– De soja – repetiu ela – e o suco é natural. Aqui em casa só tenho
alimentos naturais.
Desconfiado, ele segurou o sanduíche. Com um pouco mais de
esforço, talvez a mãe conseguisse tornar a sua comida pior do que as
papas sem gosto do hospital.
Mas para a sua surpresa, comparando com o que comia lá, aquele
lanche estava maravilhoso. Nem precisou fingir que não havia realmente
soja dentro do pão. E quanto ao suco, ele não tinha nenhuma crítica a
fazer.
Sentiu-se um pouco melhor com aquele lanche. Talvez um pouco
menos desanimado.
– Onde está o pai? Trabalhando ou viajando?
– Nós nos separamos – falou ela, de olhos baixos, bebendo
lentamente seu café.
– Quando?
– Há um ano.
– É mesmo? – perguntou ele, ironicamente – acho que você se
esqueceu de me contar.
– Mas ele paga pensão para você.
– Ah, então tudo bem – retrucou ele, sem esforço para conter o
sarcasmo. Aquela informação era dispensável – Onde ele mora agora?
– Em São Paulo.
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– Que bom. Assim ele não precisa mais inventar desculpas por nunca
vir me visitar.
– Ele está casado – prosseguiu a mãe – e tem um filho.
– Mas que ótimo! – falou ele, levantando-se subitamente, incapaz de
conter a indignação na voz – Acho que vou enviar uma carta mandando
os parabéns. Espero que chegue antes de eu ter morrido!
Recolheu o prato e o copo, colocando-os na pia. Saiu da cozinha em
passos apressados e voltou ao seu quarto.
Fechou a porta e jogou-se na cama. Era decepcionante, mas depois
de passar todos aqueles anos deitado numa cama, não conseguia pensar
numa coisa diferente para fazer que não fosse a mesma coisa que fez
durante toda a sua vida.
E continuou ali. Em cerca de um quarto de hora o céu começou a
ficar escuro. Ele permaneceu a olhar o céu escurecer de sua janela
quando sua mãe bateu na porta de novo.
Ela entrou com um copo d’água e um comprimido na mão.
– O seu remédio.
Ele aceitou o comprimido sem falar nada e tomou a água,
devolvendo o copo a ela.
– Por que está cuidando de mim agora? Você nunca se preocupou
com isso antes.
– Agora você está em casa e alguém tem que cuidar de você.
E saiu, deixando a porta aberta. Será que adiantava chamá-la para que
ela voltasse e fechasse? Talvez fosse mais fácil ele mesmo se levantar.
Porém, no momento em que ele se levantou, ela passava novamente
pelo corredor.
– Vai ficar o resto do dia trancado no quarto?
– Onde eu poderia ficar?
– Você podia tentar se divertir um pouco. Foi para isso que você
voltou para casa.
– Me divertir como?
– Você é livre para escolher. Faça o que achar melhor. Não vou
proibi-lo.
Mas aquilo ainda lhe parecia muito vago. Resolveu não insistir.
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longas luvas negras nas mãos; nos pés não mais os sapatos de boneca e
sim botas altas. A sua idade era a mesma de Sangria, uma vez que a sua
criação dera-se em tempo semelhante.
Carcinoma estava irreconhecível. Não trajava mais trapos velhos
sujos de tinta e não usava mais sua antiga boina, embora seus cabelos
continuassem espetados. Era a única que possuía uma aparência um
pouco mais informal. Porém, estava muito bem maquiada e no lugar dos
botões e costuras tinha um olho de vidro branco e um roxo. Suas roupas
ainda possuíam muitos cadarços embora agora estivessem graciosamente
arrumados.
Assim como Carcinoma, Chaga possuía a aparência de uma garota de
quatorze anos. Sua indumentária mudou completamente da cor roxa
para preto e branco. Usava meias listradas e uma mini-saia rodada de cor
negra. Sua blusa branca possuía muitas rendas nas mangas e era
sobreposta por um colete e uma gravata negra. Sobre os cabelos curtos e
negros, agora com mechas brancas, usava um chapéu coco. Carregava
uma espécie de taco de madeira.
Tala, aparentemente uma menina de treze anos, não vestia mais a sua
camisola branca e sim uma roupa elaborada de mesma cor, com muitas
rendas. Usava mini-saia branca e meia-calça. O seu chapéu era de boneca
e ela carregava uma sombrinha de babados.
O Sapateiro era o mais mudado. Na verdade, não mais poderia ser
chamado pelo codinome de Copas. O Manequim trajava roupas
espetaculares em tons de vermelho e dourado, com uma longa capa e
uma coroa. Carregava também um cajado, cuja extremidade moldava-se
no formato de um majestoso relógio.
– Vejo alguma coisa – Tala apontou ao longe – no alto.
Todos olharam e seguiram a direção apontada. Flocos de algodão
caíam do céu. Todos convergiam para um único ponto de luz em que
havia uma árvore desfolhada e retorcida coberta por pequeninos flocos
rosa esbranquiçados.
Tala adiantou-se e observou a cena graciosa, maravilhada.
– É tão... – começou ela, com seus olhos ingênuos a fitar a árvore –
triste.
Foi então que percebeu.
– Um ninho!
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regras, ela ria, em uma diversão sem limites. Em grandes acrobacias, ela
jogava para cima cones e argolas, como a estrela de um grande show.
Angina e Moebius montavam um ambiente macabro, insistindo em
chamar Menarca para participar, que estava ocupada demais em seu jogo
de xadrez. Galhos de árvore brotavam da terra e morcegos famintos
devoravam as borboletas de Distimia.
– Não toquem no meu mundo! – falou Distimia, protegendo as
preciosas borboletas – Suas bruxas!
As duas, mesmo cientes das regras, deram grandes risadas,
relembrando os velhos tempos na Casa dos Fantoches.
O Alfaiate dirigira-se silenciosamente até o topo do palácio de cristal
e em seu trono de ouro observava todas as criações. A partir dali não iria
segurá-las. Precisava sentir o que era pular de um mundo governado
pelas regras para um lugar em que tudo era permitido.
Assim como não poderia trancá-las para sempre no Palácio dos
Alfinetes, não poderia proibi-las de sonhar. E, principalmente, deveria
permitir que elas tornassem todos os seus sonhos realidade antes do fim
de tudo.
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importante, fazê-lo perceber a ironia, ou seu plano de ser bem chato iria
por água abaixo. Quem sabe pudesse usar um pouco de humor negro
também. Era bom nisso.
Ele segurou o aparelho de telefone.
– Alô?
Ele ficou um pouco decepcionado: era uma voz feminina.
Definitivamente não era seu pai. Seria a amante ou a nova esposa? Não.
Parecia jovem demais.
– Podemos nos encontrar amanhã para a aula?
Não, não podiam. Ele nem fazia ideia de quem estava falando e tinha
certeza de que não a conhecia de lugar nenhum.
– Claro – falou ele, sem pensar.
– Lá no portão às sete e meia – falou ela – está combinado. Tchau.
E desligou.
Ele ainda permaneceu por alguns momentos com o telefone na mão,
sem entender.
– Mãe – falou ele, entregando o telefone a ela – me explique o que foi
isso.
– Lembra da sua tia?
– Não. Que tia?
– A sua tia, minha irmã.
– Eu sei que minha tia é sua irmã – falou ele, sem paciência – O que
tem?
– Ela se mudou para cá. E a filha dela, isto é, a sua prima, estuda no
mesmo colégio que você.
– Mas que coincidência! – zombou ele – E daí?
– Na verdade, eu matriculei você nesse colégio por causa disso. Acho
que vocês podiam ser amigos.
– Eu não acho.
– Amanhã vocês vão se conhecer. É bom dormir cedo.
Ele não respondeu. Apenas deu meia volta e já se dirigia de volta ao
quarto quando ela lhe chamou de novo.
– Tenho um presente para você. Venha ver. Está na cozinha, mas
você pode levar para o seu quarto.
Sem entender, ele apenas seguiu-a. Ninguém lhe dava presente. Ela
só poderia estar blefando. O último presente que se lembrava de ter
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recebido foi um baralho que seu pai lhe enviou há cinco anos pela sua
mãe. Nos anos seguintes, ela apenas fingia que lhe dava presentes
disfarçados de livros escolares.
– Lembra que você queria um bichinho de estimação?
Seu coração pulou. Seria mesmo verdade? Aquilo era uma coisa
antiga. Ele sempre quis aquilo, sempre foi seu grande sonho, muito antes
de ir morar no hospital, mas seus pais nunca tinham deixado. Sua mãe
era uma maníaca por limpezas e seu pai dizia-se alérgico a animais. Ou
seja, não tinha nenhuma chance.
Eles chegaram até a cozinha. Foi então que, com um aperto no
coração, descobriu de que bichinho se tratava. Era um pequeno
passarinho dentro de uma gaiola.
– É lindo, não é? – perguntou ela, esperançosa.
Ele não conseguia tirar os olhos do passarinho. Estava chocado
demais para dizer qualquer coisa.
– Você não gostou? – perguntou ela, parecendo desapontada ao
constatar a expressão dos olhos dele.
Porém, ele jamais se atreveria a decepcioná-la. Ela tinha saído àquela
noite para lhe comprar um presente, pois viu que estava triste. Ligou
para a irmã para convencer a sobrinha a ser amiga de um sujeito que nem
conhecia. Estava fazendo muitas coisas por ele nos últimos tempos,
mesmo que ele não gostasse de nenhuma delas.
– Sim – falou ele, de repente – é lindo.
Ela sorriu. Ainda assim, era um sorriso triste, como se sentisse pena
do filho. O garoto se espantou um pouco. Poucas vezes a via sorrir.
– Leve para seu quarto – falou ela, entregando-lhe a gaiola – brinque
com ele. Ele será seu amigo e estará sempre com você.
Não se lembrava de sua mãe tão dramática daquele jeito. Era um
pouco estranho.
Com a gaiola nas mãos, ele entrou no quarto e fechou a porta.
Deitou-se na cama, observando o passarinho na gaiola. Era um
bichinho pequeno de papo branco. Estava longe de ser realmente
bonito, mas era engraçadinho.
Na verdade, o que o tornava belo era a sua tristeza. No fundo, sabia
que ele estava triste. Claro que o rosto do passarinho não poderia ser
mais inexpressivo. A criatura jamais poderia expressar quaisquer
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Como era bom nisso, não demorou muito para empilhar algumas
cartas.
Era real. Como podia ser tão cego a ponto de sofrer na dor? Ele
possuía seu próprio mundo: um reino maravilhoso em que reinava e que
seria para sempre seu eterno refúgio.
As pessoas poderiam roubar-lhe muitas coisas: poderiam decepcioná-
lo, feri-lo, arrancar-lhe sem piedade sua felicidade, sua saúde, sua
sanidade ou até mesmo sua vida.
Mas aquelas imaginações ninguém poderia tirar dele.
Num momento de esperança, uma grande inspiração nascia e ele era
capaz de construir o mais belo mundo de cores e melodias maravilhosas.
Num momento de decepção, uma grande inspiração nascia e ele era
capaz de construir um mundo de apatia e indiferença em que reinava o
vazio absoluto.
Num momento de ódio, uma grande inspiração nascia e ele era capaz
de derrubar o mundo com raios, trovões, nuvens negras, tempestades e
feras bestiais.
Ele jamais seria lembrado. Jamais seria importante para ninguém. E
nada daquilo importava. Se o decepcionavam na vida real, ele poderia
destruir e retalhar o arquétipo do infeliz como tantas vezes fez. Se o
satisfaziam, poderia dar-lhe os presentes mais desejáveis.
A garota que falou com ele ao telefone. Nem fazia ideia de quem ela
era, mas não achava que ainda fosse conhecer muitas pessoas além dela a
partir dali. E, já que ainda restava uma carta, era melhor fazer com que
nascesse ali mesmo. Não tinha mais tempo.
Deleitou-se com suas criações. Sentiu o êxtase tão particular de seu
mundo, que dificilmente encontraria correspondentes na vida real em
sua rotina medíocre.
Mas não era hora de sentir autocomiseração ou de pensar no tempo
que não teria. Que tudo fosse para o inferno.
Agora era hora de sonhar: em um mundo sem limites, sem regras,
sem tempo, sem fronteiras, em que poderia fazer de todos os seus
sonhos realidade.
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Ele tinha certeza de que ela deveria estar chegando. Não via
problemas em se atrasar cinco minutos para a aula para esperá-la um
pouco mais.
Porém, os cinco minutos se passaram; dez minutos, quinze minutos,
meia hora.
Será que ela passou direto sem vê-lo?
Quando ouviu o sinal novamente, depois de quarenta e cinco
minutos, ele resolveu levantar-se. Tinha perdido o primeiro período.
Tentaria encontrar a sala.
E atravessou o portão, entrando no colégio.
Andou pelos corredores. A maioria dos alunos estava em aula.
Subiu as escadas. Não demorou muito para encontrar a sala 11. Ele
não gostava do número 11. Lembrava-lhe o Valete. E ele não gostava do
Valete.
Entrou. Talvez ninguém o percebesse se fosse diretamente para o
fundo da sala. O professor do segundo período ainda não tinha chegado.
Alguns alunos estavam fora dos lugares e conversavam na troca de
períodos.
Um garoto de cabelos negros parou em sua frente.
– Quem é você?
– Essa é a sala do primeiro ano?
– Esse é o 1°B – respondeu o garoto de cabelos negros – e eu não te
conheço.
Ele não gostou do tom. Estava muito claro que ele o estava
provocando, mas o menino não sentia a mínima vontade de discutir. Ia
se dirigir para o fundo da sala, mas ele não o deixou passar.
– Ei, calma, colega – respondeu o garoto encrenqueiro, com um
sorriso de patife no rosto – Eu não gostei de você, sabia?
Ele não estava acreditando que tinha que ouvir aquilo. No mesmo
tom sério e cansado, ele apenas respondeu:
– Que pena.
E a discussão foi encerrada por ali porque o professor do período
seguinte chegou. Tiveram dois períodos seguidos de matemática com
aquele professor antes do intervalo.
Não muito surpreso, ele descobriu que nunca tinha ouvido falar em
nenhum daqueles cálculos que o professor revisou em aula. Se ainda era
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apenas a revisão, nem queria pensar no que não seria. Sentia sono. Sua
cabeça estava longe.
E, lá no fundo da sala, ele dormiu.
Acordou com um susto. Alguém puxou a sua cadeira e ele quase caiu
no chão.
– Opa – falou o mesmo garoto com sorriso de idiota – foi mal,
colega.
Ele fitou-o com seriedade.
– Ei, não me olha assim que fico com medo – caçoou ele.
Foi então que percebeu que não tinha mais nada a fazer ali.
Levantou-se. Guardou seu livro na mochila, colocou-a nas costas e
caminhou até a porta.
– Oh, ele está irritado! – zombou o garoto bem alto para que ele
ouvisse enquanto saía.
Mas ele não se virou. Teria sido melhor que ninguém tivesse falado
com ele; que o ignorassem completamente. Não queria conversar.
Descobriu que não queria fazer amigos. Enquanto caminhava pelo
corredor e preparava-se para descer as escadas, alguém o chamou. Ele se
virou.
– Você que é meu primo?
Era a garota. Chegando atrasada, pelo visto.
– Você perdeu três períodos.
– Eu sei – falou ela, sem nem mesmo se desculpar por não tê-lo
encontrado na entrada – Vem, vamos conversar lá fora.
– Não vai assistir à aula?
– Não. Deixa pra lá.
E os dois desceram as escadas. Saíram pelo portão da frente. Não
encontraram ninguém cuidando para que não saíssem.
Os dois andaram um pouco e, ali perto, se sentaram num banco.
– Quer uma bala? – perguntou ela, lhe estendendo uma.
– Não – respondeu ele.
Ela deu de ombros e colocou a bala na boca.
– É verdade que você morava em um hospital? – ela perguntou
despreocupadamente.
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Mas o pior não foi isso. Foi dizer que ele se achava superior. Pelo
contrário, sempre pensou em si como um pobre coitado abandonado e
solitário.
– Eu não me acho superior. Você que é esnobe demais. Odeia todo
mundo, até seus pais. Poderia mostrar o mínimo de gratidão. Se você
tivesse a minha vida, teria motivos para reclamar. Se eu fosse você,
ficaria quieta.
Agora ela não se preocupou em disfarçar a raiva.
– Eu só falei aquilo para você não pensar que é o único que acha que
a vida é uma droga!
– Não precisava mentir só por causa disso – falou ele – Eu odeio
pessoas mentirosas e falsas. Se não foi com a minha cara, não precisa
ficar me aturando só porque minha mãe mandou que fizesse isso.
– Ótimo! – ela levantou-se – Eu tenho pena da sua mãe, sabia? Ela é
super preocupada com você. E você não está nem aí. Fica desprezando
todo mundo e acha que nada está bom o suficiente.
– Não ouse falar mal da minha mãe.
– Eu não falei mal da sua mãe. Falei mal de você! Você é mimado,
egoísta e mesquinho!
– Mais alguma coisa? – perguntou ele, seriamente.
Ela apenas balançou a cabeça em desaprovação, lançando-lhe um
olhar irritado. E foi embora.
Ele continuou sentado no banco. Não podia acreditar que aquilo
tudo estava acontecendo. Era tão ridículo que quase sentia vontade de
rir. Rir das pessoas desgraçadas. Rir da sua própria desgraça.
Rir.
Porém, sempre se mantinha sério. E com essa mesma seriedade,
levantou-se e foi embora dali.
Não ia esperar até a uma hora para que a sua mãe viesse lhe buscar.
Voltaria de ônibus. Isso se soubesse pegar um ônibus.
– Invasão! Invasão!!
Carcinoma gritava como louca.
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Ele não foi muito longe após levantar-se do banco. Sentia-se cansado
com o sol forte. Parou de caminhar para descansar.
Apoiou-se no muro baixo. Não, não era apenas cansaço. Era muito
mais que isso.
“Você não pode correr”
“Você não pode andar”
“Você não pode sair da cama”
“Você não pode viver”
Ele ajoelhou-se. Sentia sua respiração muito rápida e o coração
acelerado. Não era mais capaz de ficar em pé.
O sol forte de meio-dia batia em sua cabeça e o fazia suar. Mas não
era apenas isso. Era algo muito mais profundo. E sentiu medo.
De que adiantou sair do hospital? O que fez com apenas um dia?
Como pode ser tão cego...? No fundo, ele não podia fazer nada. Estava
apenas encostado ao muro baixo com a respiração e o coração
acelerados.
E não resistiu mais. Deixou seu corpo escorregar no chão, embora
ainda tivesse medo de desmaiar. Abraçou-se ao muro. Respirava rápido.
Sentia o terror. Não queria desmaiar. Lutava contra a vontade de seu
corpo. Foi tão de repente que o pegou desprevenido.
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Ele repetiu algumas vezes essas palavras, já que não lhe ocorriam
outras. Depois disso, sua voz não saiu mais.
E dormiu.
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– Mas por que ainda me arrasto? Por que fui condenado a tão terrível
destino?
– Meus caprichos enfim terminaram – anunciou A Ampulheta –
estou satisfeita. Você está livre.
E ela esmagou O Verme no Chão.
O Coringa carcomeu a si, convertendo-se do papel ao pó. A
Ampulheta fitou novamente o horizonte. Finalmente baixou o seu capuz
dourado. Seus cabelos negros e brancos de boneca voaram na direção do
vento.
– Enfim, minha majestosa capa dourada possui a cor da terra.
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Farmácia Láctea
FIM...?
Epílogo: Brócolis
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– Suponho que eu esteja certo em imaginar que você joga seu lixo
fora.
– Suponho que você mesmo tenha se jogado fora para estar aqui –
retrucou ela – Eu preciso de uma informação.
– Pois não?
– Estou procurando uma organização chamada Brócolis. Se puder me
dizer...
– Por que você acha que existiria uma organização chamada Brócolis?
– Apenas dê-me a informação.
– Sinto muito. Você não sabe no que está se metendo. Gosta de
brócolis? Não fica bem com leite.
– Brócolis com leite? – perguntou ela – Está louco?
– Por que não?
– É, por que não... Diga-me onde posso encontrar Vício.
– Opa! – falou ele, um pouco surpreso – Agora você está indo rápido
demais!
– Você que é devagar.
– Que posso fazer? Sou apenas um verme no chão catando restos no
lixo.
– Você parece alguém que perdeu todas as esperanças.
– Se restou alguma a você, não vá adiante ou irá perdê-la também.
– Eu não tenho nada – confessou ela – tudo o que sei é que devo
encontrar Brócolis.
– Sinto muito se é esse seu único objetivo na vida. Sorte minha que
não tenho nenhum.
– Então continue no chão.
– Você faz alguma ideia do que seja Brócolis?
– Uma organização.
– E o que é organizado lá?
– Não é assim! – retrucou ela – Ora, eu quem deveria fazer as
perguntas! Você só dá as informações!
– Por que se chama Brócolis?
– Porque... – começou ela – isso é um segredo da organização.
– Deve ser um segredo muito secreto mesmo. O que pretende fazer
lá?
– Quero falar com Vício.
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A chaminé era alta. O seu fim perdia-se no céu e tudo o que restava
era a fumaça.
Decidida, ela deu mais alguns passos. Colocou-se em frente à porta
que dava acesso à chaminé. Havia grades de ferro diante dela. Olhou
para cima mais uma vez. Nada daquilo se parecia com o mundo
maravilhoso do qual viera.
Uma enorme tristeza apoderou-se dela. No começo foi tudo muito
sutil e silencioso, mas depois passou a envenená-la com pesadelos
maléficos. Não era apenas um teste.
De sua consciência parecia derramar-se vinagre fervente. Ela
compreendia cada vez mais a crueldade de Vício. Manteria a brincadeira
até as últimas consequências.
Aquilo não era apenas uma chaminé. Não era uma fábrica. Era um
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Por muito tempo andaram até não haver mais areia. Penetraram por
dentro de uma cidade de concreto e completa poluição. Tudo era
acinzentado e sem vida. Poucas pessoas saíam às ruas e as poucas que o
faziam, fitavam o grupo com receio, medo ou fascínio.
– Alguns nos amam e outros nos odeiam – explicou Vício – sempre
foi assim. Os que nos odeiam nos temem ou possuem um enojo doentio.
Porém, há aqueles que, em seu delírio apaixonado, aceitariam qualquer
provação para satisfazer suas fantasias.
Fada apenas ouvia com atenção, fascinada.
– Não sei se as coisas deveriam ser assim – prosseguiu ele – Elas
apenas são; e tudo já está destruído. Não há mais nada a perder.
– Essas pessoas desejam saber mais – falou a garota que empurrava a
cadeira de rodas – mas Vício entregará a nós o valioso presente. Apenas
nós cinco teremos a bênção de provar um gole...
– Por favor, Princesa – falou Vício – minha generosidade é
misericordiosa, mas não possuo todos os segredos do mundo.
– Veja como nos olham – prosseguiu Princesa – desejam conhecer a
verdade mais que tudo no mundo e sabem que jamais poderão.
– Não posso imaginar aquilo que guarda, senhor Vício – falou Fada,
timidamente – mas para ser ainda mais especial que Ouros, minha vista é
pequena demais para alcançar.
– Eu sabia que Ouros fracassaria – confessou Vício – Ele tinha uma
falha. Eu não havia percebido, mas logo me dei conta de meu erro.
Vocês poderiam realizar todos os sonhos e desejos de suas imaginações,
fortemente inspirados por Copas. Você pode imaginar onde estaria o
erro em um mundo em que tudo é permitido?
– Eu... não sei – admitiu Fada – Eu podia realizar todos os meus
sonhos. Foi bom por um tempo, mas depois acho que me pareceu um
pouco artificial...
– Você não sabe, Fada – interrompeu a garota que carregava a chave
e a mala – não sabe nada. Não sofreu trancada como nós no Palácio.
Para nós a felicidade foi muito mais duradoura depois de uma tristeza
infinita.
– Mas uma parte ainda não estava preenchida em nosso mundo
perfeito – admitiu a menina de branco – a solidão.
– Irônico, não é? – falou Vício – Reinar em um mundo ou até mesmo
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escravizar as pessoas como você fez, Princesa, não foi o suficiente para
preencher o vazio da solidão.
– Quer dizer que você também sente isso, Vício? – perguntou
Princesa, talvez uma das únicas que tivesse coragem suficiente para fazer
uma pergunta como aquela.
Mas ele não respondeu.
– Você tem a resposta para a solidão? – perguntou a menina de
branco.
– Eu tenho a chave para um caminho – respondeu Vício – a decisão
que será tomada caberá a vocês.
Atravessavam as ruas em passos lentos. Algumas delas eram vazias,
tomadas apenas pelo cinza dos prédios e pela fumaça. Em outras ruas
recebiam olhares de temor ou desejo.
– Eles sabem quem você é – percebeu Fada.
– E sabem que hoje é o dia da revelação – prosseguiu a moça que
carregava a chave.
– Sugiro que procurem evitar certos rótulos por enquanto até fitarem
com seus próprios olhos – falou Vício.
Atingiram um campo aberto. A cidade cinzenta acabou. O céu
nublado ainda estava no céu e uma grama rala era possível de ser vista
nas proximidades. Tudo o que se via era um moinho e um rio. Seguiram
adiante até se encontrarem diante de uma casinha ao lado do moinho,
que possuía uma porta com uma grande fechadura.
– Por favor, Forca – falou Vício – faça a gentileza.
A garota de cabelos negros colocou a maleta no chão e introduziu a
chave na fechadura; girou-a. A porta se abriu.
No topo da casinha havia uma tábua com uma inscrição quase
apagada:
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– Você rasgou suas cartas em Ouros, mas para você isso não é
importante. A sua história nunca foi escrita e você se arrependeria se não
se despedisse. Afinal, você sempre foi o senhor do tempo.
– Não sou mais – respondeu Vício – estou aqui apenas para ajudá-la a
enterrar os mortos. O cemitério ainda está vazio?
– Como sempre esteve.
Vício levantou-se da cadeira de rodas com o auxílio da bengala.
– Minha doença não pode mais ser escondida nem mesmo no mundo
dos meus sonhos.
A Ampulheta segurou Forca do chão. Abraçou-a.
– Irmãzinha... – sussurrou ela.
E levou-a nos braços até o cemitério. Vício seguiu-a segurando
Princesa nos braços. Depois de tanto tempo ignorando-a e arrastando
sua existência por pena, terminou dando a ela o lugar de honra.
O cemitério era próximo. Eles depositaram os dois corpos em duas
valas abertas.
– Ah, meu tempo acabou! – falou Vício – Dessa vez definitivamente.
Nem mesmo poderei enterrar os demais corpos no cemitério das
bonecas.
– Esqueça isso por esse momento – falou A Ampulheta – você não
saberia encontrar um último pensamento especial antes do fim?
– O que você me pede é insuportável.
– Apenas leve-me para dançar. Não pense agora. Faça esse momento
só seu.
– Sim. É isso...!
Ele estendeu o braço, largando a bengala. A Ampulheta jogou o
capuz para trás e segurou a mão dele.
Os dois seguiram dançando em direção ao lago de leite, em meio à
paisagem bucólica da casa, da grama e do lago. Os dois adentraram o
lago cada vez mais. E finalmente desapareceram dentro dele.
Uma ovelha pastava feliz no campo verdejante.
Tubulação Semiótica I
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