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Palácio dos Alfinetes

Juliana Duarte

2013
Para Rafael
Palácio dos Alfinetes

Primeira Compilação

Prólogo: Leitoso

Tubulação Semiótica A

Digo, sem medo e com ternura


Que és decerto meu brinquedo favorito
Em teu peito vou bordar uma canção
E teus olhos para os meus serão botões
Frágeis como vidro
Costurados com fios de aço
Olhos calados
Algemados
Transmutados em correntes abstratas
Meu doce anfitrião
Prova do chá de ambrosia
Da minha casa de bonecas
Eu não queria que tirasses os sapatos
Para dançar
Estou apaixonada por tua doença
Eu não sou a cura
Sou a tesoura que recorta
Teus braços de pano

Copas: Seção # 0.0

Quatro paredes brancas. Porta trancada.


Pessoa de terno elegante. Sapatos perfeitamente engraxados.
O menino estava sentado no chão e encostado à parede. Usava
roupas estranhas, elaboradas, perigosas, de cores fortes.
– Como chegou aqui?
Silêncio.
Levantou levemente a cabeça.

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Juliana Duarte

– Eu não queria ter chegado.


De fato. O pequeno falava a verdade.
– Então volte para o lugar de onde veio. Vou chamar o segurança.
O menino ergueu a mão lentamente.
– Não tão rápido. Primeiro eu queria que você respondesse algumas
perguntas.
O homem de terno começava a discar um número no celular.
– Não seja mau comigo. Estou um pouco chateado. Não tenho
ninguém para brincar.
– Eu não tenho tempo para brincar com crianças.
– Prometo que você vai gostar.
O menino sorriu. Virou-se para a parede e começou a passar as mãos
nela. Escorregava as suas palmas devagar e com cuidado.
– Que está fazendo?
– Brincando. Conheço muitos jogos. Quer que eu ensine algum?
– Já chega.
– Nem começamos. Primeira pergunta: você gosta desta parede?
– Que raio de pergunta é essa?
– Resposta errada. Regra número um: não se responde a uma
pergunta com outra pergunta.
– Escute aqui...
– Tempo esgotado. Regra número dois: você só tem duas chances de
resposta.
– Como entrou aqui?
– Regra número três: só eu faço as perguntas agora. Pergunta número
dois: se eu te desse um presente, você me amaria para sempre?
– Só se sumir agora da minha frente.
– Regra número quatro: é proibido mentir. É sua última chance.
– O segurança já está a caminho para tirar você daí.
– Você é o segurança – falou o menino, com um sorriso maldoso –
Pinguim.
Ele sentiu um espasmo de raiva pela referência grosseira aos seus
belos trajes.
– Pergunta número três: por que você aperta meu pescoço?
– Do que está falando? Estou a dois metros de você!
O menino começou a cantarolar baixinho e a alisar as paredes.

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Palácio dos Alfinetes

– Já avisei que esta é sua última chance. Se errar, o jogo acaba e você
me dará o meu prêmio.
O segurança aproximou-se e segurou o garoto. Ele não apresentou a
menor resistência. O homem sacudiu-o, mas ele apenas fechou os olhos
e amoleceu o corpo. Ele sacudiu-o com mais força e agarrou-o pelos
ombros.
– Resposta errada – falou o menino de repente, abrindo os olhos
completamente – Não quero mais brincar com você.
– Maldito! Diga-me como descobriu este lugar!
O homem permaneceu sacudindo-o pelo pescoço e o menino
gargalhou; uma risada ao mesmo tempo hilária e sofrida.
– Eu adoro esta parede – falou o menino – Se você me desse um
presente, eu te amaria para sempre. Eu aperto o seu pescoço porque
tenho medo de te perder.
O homem gritou e largou o garoto imediatamente.
O garoto, estirado no chão, sorriu.
– Eu quero o meu prêmio...
Naquele instante, fez-se ouvir o som de uma campainha.
– Ah, temos visitas. Senhor, vá abrir a porta. Parece que a encomenda
chegou.
Confuso, e sem saber por que o obedecia, o homem se dirigiu à
porta. Abriu-a.
– Sim! – ouviu-se uma voz vinda da porta – Ele é fresco e está em
promoção! A garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
E a porta se fechou. O homem de terno viu a si mesmo com uma
caixa de papelão na mão, embrulhada com fitas adesivas e carimbada
sobre ela a etiqueta: “Saudável”.
– Puxa, você está com sorte. O meu prêmio chegou por Sedex.
Ele sentou-se e estendeu as mãos para receber a caixa. Porém, o
homem não parecia muito disposto a entregá-la. Estava tão aturdido que
ainda procurava entender o que aconteceu ali.
– Estou com sede – queixou-se o menino.
Agilmente ele ergueu-se do chão e tomou a caixa das mãos do
homem. Abriu-a imediatamente, rasgando as fitas adesivas.

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Juliana Duarte

Dentro da caixa havia seis garrafas de leite. O menino alcançou uma,


abriu-a e colocou-a na boca. Deu um grande gole; limpou o bigode
branco com a manga.
– Quer? – ofereceu o menino, estendendo a garrafa.
Antes que o homem respondesse, o garoto percebeu um envelope
branco lacrado colado à caixa. Ele analisou-o.
– Telegrama para você.
O homem alcançou o envelope branco, em silêncio. Abriu-o.
Desdobrou uma folha alva, muito pequena. Nela continha uma única
frase.
– Leia – falou o menino, em tom divertido.
O homem obedeceu:
– É proibido beber leite.

Início: Sorvete

Espadas: Seção # 0.2

Quarto escuro. Cortinas cerradas.


A porta fechada entreabriu-se, jogando a luz artificial do corredor
para dentro. Projetaram-se as sombras: uma cadeira, uma geladeira baixa,
uma cama, um homem de branco que adentrava.
Em passos lentos, ele depositou uma bandeja em cima da mesa de
cabeceira e abriu a primeira gaveta. Recolheu de dentro dela uma vela
branca e acendeu-a com o isqueiro do próprio bolso. Recolocou-o nas
vestes enquanto aproximava a singela fonte de luz da cama.
– Acorde – sussurrou.
Nada aconteceu.
– É hora – ele repousou a vela na mesa e mexeu em alguma coisa
sobre a bandeja.
Alguém se moveu por baixo dos lençóis. Virou-se para o lado. Talvez
tenha esfregado um dos olhos.
– Faltou luz? – perguntou, com voz rouca.
– Em breve tudo voltará ao normal.

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Palácio dos Alfinetes

O homem de branco entregou a ele um copo cheio de alguma


solução incolor. O menino segurou o copo e bebeu alguns goles, mas
não parecia o suficiente.
– Você sempre quer da maneira mais difícil.
– Parece água – falou o menino, observando o copo cheio – mas não
é água.
– Não é – confirmou o médico – Eu dou um minuto.
Silêncio.
– Não posso.
O menino, levemente abalado, depositou o copo na mesinha.
O médico sentou-se na ponta da cama.
– Você aguentou tudo ontem. Tenho certeza de que pode fazer de
novo.
– Quero dormir.
O menino deitou-se novamente na cama. Aparentava muita fraqueza.
– Você vai.
O homem segurou o braço esquerdo do menino. Passou um algodão
sobre ele e colocou uma agulha. Um suspiro interrompido.
– Você prometeu... – a voz saiu fina e apagada.
– Boa noite.
O médico recolheu a bandeja e levantou-se.
– Espere.
Ele virou-se.
– Não tem ninguém – começou o menino, com voz quase inaudível;
os olhos semicerrados – aí fora?
Espera de resposta.
– Eles virão.
– Quero apenas sim ou não.
– Espere amanhecer.
Talvez o menino não fosse responder. Não ficou tão desapontado.
Estava sério e aceitava, mesmo com sono.
– Não tenha pena de mim.
Novamente, sem palavras.
– Estou com sono.
O homem pensou em dizer alguma coisa, mas apenas soprou a vela.
Apagou a luz do corredor e fechou a porta suavemente.

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Juliana Duarte

Copas: Seção # 0.2

Salas sem fim, trancadas e proibidas. O armário era um lugar


apropriado.
Teria algumas brincadeiras divertidas. Era uma boa ideia sair
correndo por lá somente para irritá-lo. O menino de vestes coloridas
cantarolava e saltitava pelos corredores, lambendo um pirulito.
– Você ainda está por aqui?
Com muita vontade que o segurança o perseguisse, ele correu até o
fim do longo corredor, provocando-o e rindo.
– Patético! Duvido que tenha coragem!
– Surpreende-me tu e essa tua ousadia. Irei trancá-lo.
O menino subiu em cima do armário e desatou a rir.
– Ah, você não sabe! Como é tolo! Acha mesmo que é o segurança?
Realmente pensa que possui a chave para aprisionar-me? Quanta
ingenuidade! Ainda vou te mostrar o teu erro explicitamente de modo
que nem tu irás negar. Eu prometo.

Diário das Agulhas: 19 de março de 2000

Hoje ganhei um caderno cheio de linhas, com um cadeado.


Chamam isso de diário. Dizem que é coisa de menina, mas as pessoas
fazem muitas observações dispensáveis; ou pelo menos as que eu
conheço.
Não tenho nada de interessante para escrever.
Não precisava ter tantas páginas.

Copas: Seção # 2.1

Ela sentia uma linha fina percorrendo seus braços, moldando-os;


formando-os.
Fechou os olhos suavemente.

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Palácio dos Alfinetes

– Estou com medo.


Mas não sabia por quê.
– Esta sensação... eu não conhecia.
A sua calma guardava apreensão, mesclada de um doce
deslumbramento.
– Isso é nascer...?
O presente de uma lembrança muito especial.
– Isso é bom?
O tempo lhe mostraria.
– Que é o tempo?
Silêncio. A fechadura.
Ergueu-se lentamente e abriu um de seus olhos para espiar.
Por trás da porta repousavam mil maravilhas: jogos, brinquedos,
ursos de pelúcia e todas as diversões jamais sonhadas. Seu desejo mais
ardente era possuir todas aquelas belezas. Porém, obedientemente
manteve silêncio.
E percebeu: tudo aquilo era seu. Ela mal podia acreditar.
Era um presente. E havia mais.
Ela quase se virou para ver. Sabia que não podia olhar, embora
desejasse. Sentiu alguma coisa tocar seus dedos e escorregar para sua
mão.
Deveria guardar. Cuidaria das preciosidades que lhe foram ofertadas.
Em breve entenderia. E quando compreendesse, estaria preparada para
fazer sua escolha.
Uma chave girou na fechadura e a porta se abriu.
– São tão lindos! – falou ela maravilhada, embora ainda conservasse
timidez em seu olhar perdido por dentre os graciosos brinquedos –
Quero aprender. Desejo conhecer todos os segredos de tão belas
criações. Como devo jogá-los? O que espera de mim?
E enxergou, pregado na parede, o preço de sua liberdade: o número
um.
– É proibido deixar o Palácio.
O número dois.
– É proibido desejar presentes ao toque dos dedos.
O número três.
– É proibido sorrir.

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Juliana Duarte

A porta foi trancada com um giro da chave na fechadura.

Espadas: Seção # 2.1/2.2

Os minutos se arrastavam.
A máquina fazia barulho. A parede estava um pouco suja. A conta
dos quadrados do cobertor estava em vinte e oito. Um inseto prendeu-se
na pequena teia ao alto.
A porta permanecia fechada. Percebeu vozes no corredor. Ainda não
era a hora.
– Os pais dela já sabem?
A resposta veio.
– Entendo.
A porta do seu quarto se abriu.
– Boa noite.
O médico espiou a noite pela janela.
– Que aconteceu? – perguntou o menino.
– Como assim? – perguntou o médico.
– No corredor.
– Nada.
Um novo silêncio. E foi só.
Ouviu-se uma voz vinda da janela aberta na rua lá embaixo.

Diário das Agulhas: 19 de junho de 2002

Acho que entendi.


É sobre a menina que vem aqui quando vou para a sala de cirurgia.
Ninguém precisa me dizer. Talvez ela seja a última a saber. Eu não estou
muito abalado com essa notícia.
Meu único medo é que ela deixe de bagunçar o quarto.

Copas: Seção # 2.2

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Palácio dos Alfinetes

Eram apenas quatro paredes brancas, sem janelas; uma pequena pia.
Muitos brinquedos e uma menina sentada no chão.
O rosto dela era doce e infantil. Seus cabelos eram castanhos
encaracolados, nos quais repousavam laços de fita.
Seu vestido era extremamente branco, adornado com babados.
Possivelmente tratava–se de uma camisola. Porém, sua graciosidade não
estava nos cachos perfeitamente penteados ou nas vestes alvas e sim em
sua face.
A expressão da menina era difícil de ser descrita. Seus olhos eram
inocentes e meigos. Seu rosto era de uma curiosa ingenuidade, no qual
podiam ser lidos: uma indefinida saudade de nada, melancolia, tristeza e
esperanças desbotadas.
Ela guardava algumas peças de Lego dentro da caixa; ao lado de fora,
um grandioso e elaborado castelo que acabou de construir. Enrolou
novamente um pião, com cuidado. Guardou-o. Recolheu-se num canto,
abraçando uma ovelhinha de pelúcia.
Por vários minutos ela manteve-se imóvel. Alguém bateu na porta.
Há muito tempo aquilo não acontecia. Deveria responder ou permanecer
em silêncio?
A voz clamou do outro lado da porta:
– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente deixa
o produto ainda mais branco!
– Senhor?
– Sim!
Ela ajoelhou-se e engatinhou até o buraco da fechadura da sala baixa.
– O Alfaiate enviou o senhor? – perguntou ela, com cautela.
– Sim!
– O Alfaiate deseja comprar algum artigo do senhor?
– Sim! – prosseguiu ele, cada vez com maior animação.
– Eu... não sei se o Alfaiate permite que...
– O Alfaiate, O Alfaiate... – repetiu uma voz zombeteira por trás dela
– De quem fala? Do senhor das linhas e agulhas? São suas linhas de
feltro e suas agulhas de aço?
A menina virou-se, assustada. Havia mais alguém dentro de sua sala
trancada.
– Quem é você...? Como entrou aqui?

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Juliana Duarte

– Linhas, nada mais que vícios! Por isso, não tenha medo. Não há
nada a temer.
– Você é... O Alfaiate? – perguntou ela incerta e definitivamente
impressionada.
Ele desatou a rir. Nesse momento, a menina entrou realmente em
pânico.
– Bem, Leiteiro, devo pedir para que se vá agora. Não podemos
assustar a novata. Temos muito que conversar.
– Sim! – concordou O Leiteiro – Tenha um bom início de dia e um
fim extraordinário!
E O Leiteiro se retirou da frente do buraco da fechadura.
O recém-chegado posicionou-se gentilmente diante da garota.
– Eu não sou O Alfaiate.
Ela observou-o com atenção. Era apenas um garoto. Usava roupas de
cores fortes, um chapéu espalhafatoso, uma gola de proporções
exageradas e outros detalhes peculiares que poderiam ser facilmente
notados.
– Você riu...! – observou ela.
– Eu ri – concordou ele.
– Mas...
– Eu sorri, ri, dei risadas e gargalhadas. Faço isso e sempre fiz antes
de existirem as regras. Vamos falar de você agora. Só vim para saber
como está. Quer jogar alguma coisa? Ou me mostrar os jogos que criou?
Ela não respondeu.
– Gostei desse castelo! – falou o garoto, enquanto caminhava pela
sala atravessando displicentemente por dentre as bolinhas de gude
espalhadas. Começou a pular e a girar – Conheço muitas danças e jogos.
Posso lhe mostrar alguns.
Ela ainda não se sentia muito segura. Tornou a sentar-se no canto,
abraçando sua ovelhinha e fitando–o com olhos curiosos.
– Posso voltar em outra ocasião, se preferir – ele fitou-a
amigavelmente – não vou tentar incitá-la a ir contra as regras d’O
Alfaiate.
– Não é isso... – começou ela, mas logo se calou. Ela olhou para os
próprios pés. Quando voltou a erguer os olhos, ele havia sumido.

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Palácio dos Alfinetes

Diário das Agulhas: 14 de setembro de 2003

Eu odeio o hospital. Odeio o cheiro. Odeio a dor. É isso que as


pessoas querem que eu diga? Mas isso não precisa ser dito.
Eu posso ser feliz mesmo sozinho e doente, se eu quiser.
Eu vou descobrir uma maneira de não me decepcionar.
Odeio esse sol que entra pela janela.

Teatro de Marionetes: Primeiro Ato – Fantasmas

(entra um fantasma)
PRIMEIRO FANTASMA: Saudações! Bem-vindos ao show de
horrores da humanidade, da criação e da miséria! Acaso devo continuar?
(entra outro fantasma)
SEGUNDO FANTASMA: Penso que não é necessário. O recado
está dado. Entenda ou não o pobre Arlequim, ainda assim permanecerá a
arrancar gargalhadas em sua performance infame e lugar-comum!
(entra o último fantasma)
TERCEIRO FANTASMA: Cegos! Ignorância; eis a maior bênção do
patife malfadado. Jamais remover a lança cravada ao peito. Abençoado.
Abençoado! Três vezes abençoado!
PRIMEIRO FANTASMA: Ah, pois a lança ainda não o derrubou.
Derruba apenas o infeliz que a percebe?
SEGUNDO FANTASMA: Imortalidade? Jamais! Miséria! Miséria!
TERCEIRO FANTASMA: A chance é única e não pode ser
desperdiçada. O que dizer então do falastrão que tagarela em
pensamentos? Cinco lanças enfiadas sem misericórdia! Ah, fado infeliz!
PRIMEIRO FANTASMA: Sem diferença. Sem retorno! Cortados
estão todos os fios. Fios tecidos e velados na maçante bonança da Roda
da Fortuna!
SEGUNDO FANTASMA: Fortuna, fado, falácias do malgrado
títere! Quem dera eu poder enforcar o parvo!
TERCEIRO FANTASMA: Deixar-se por um cego conduzir? Onde
repousam as regras?

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Juliana Duarte

PRIMEIRO FANTASMA: Na boca do tempo.


SEGUNDO FANTASMA: Nos lábios do ódio.
TERCEIRO FANTASMA: Na língua do medo.
PRIMEIRO FANTASMA: Apenas uma respiração oxigenada.
SEGUNDO FANTASMA: Ar.
TERCEIRO FANTASMA: Nada mais.
PRIMEIRO FANTASMA: Eis o convite à ferrugem, sapiente
anfitrião!
SEGUNDO FANTASMA: O coma.
TERCEIRO FANTASMA: A peça.
PRIMEIRO FANTASMA: A noiva.
(os fantasmas saem de cena.)

Copas: Seção # 2.3

– Falou com ela?


Ele deu de ombros:
– Ainda está assustada com aquele papel pregado na parede.
– Isso já era esperado.
– Observo que você ainda mantém o seu intacto – ele disse,
astutamente.
– Não quero confusão. Mas também não sou escrava de regras.
O garoto de vestes coloridas e espalhafatosas estava em uma pequena
sala branca, pendurado de cabeça para baixo.
A garota que lhe dirigia a palavra movia peças em um tabuleiro de
damas. A sua aparência era admirável.
Ela trajava um longo vestido de cor vinho adornado de rendas. Seus
cabelos eram longos, negros e brilhantes. Os olhos eram castanhos e a
face graciosamente maquiada.
Seu rosto era sério e compenetrado, com ares de evidente nobreza e
elegância.
– O Alfaiate não tem controle sobre você? – perguntou o menino.
– Ele certamente merece muito de meu respeito e gratidão – falou a
garota.
– O que pensa sobre Ele?

16
Palácio dos Alfinetes

– Se está tentando me incitar a rebelar-me...


– A favorita, agraciada de beleza, caprichos e preciosos presentes,
desafiar O Artífice? – perguntou ele, em tom provocativo – Não, eu
jamais sonharia!
Ela não respondeu.
– Você sente todos os seus desejos realizados?
– Que mais eu poderia desejar? – perguntou ela, movendo mais uma
peça do tabuleiro – Possuo os mais belos vestidos. Tenho dezenas de
brinquedos e jogos, os quais dominei ao longo dos anos a ponto de
tornar-me mestra. Sou a mais bela, Ele me disse, e Sua favorita. Possuo a
beleza eterna e posso obter todas as diversões e presentes quando e
como bem entender. Preciso continuar?
– Você tornou-se cega por seus orgulhos e paixões. A favorita pensa
que conhece o mundo e todas as maravilhas que este tem a oferecer...
– Não preciso ver o mundo para conhecer sua miséria. Que mais eu
poderia encontrar que aqui não possuo?
– Liberdade – respondeu ele – ou O Alfaiate não lhe contou a
respeito dela em sua ardilosa lábia?
– Não me provoque, Papiloma! – falou a garota, de repente –
Ardilosa é a tua língua e não a boca de meu criador!
– Puxa, eu só queria ajudar. Acredito que se estivesse realmente feliz,
ao menos teria sorrido uma única vez...
– Minha gratidão é silenciosa. Minha libertação repousa leve como as
plumas de minhas imaginações.
Havia desenhos coloridos e elaborados pelas paredes; folhas de papel,
escritas com centenas de palavras. Ela segurou uma canetinha vermelha e
passou a desenhar uma joaninha pela parede.
– O que pretende fazer com tudo isso? Guardar suas criações
trancadas a chave para sempre? Isso seria triste.
– Triste é o anseio desesperado de mostrar a outros suas ideias – ela
continuava a desenhar sem pressa – e apoiar a própria felicidade na
aprovação e limitação alheia.
– As Tecelãs fizeram muito sucesso na Casa dos Fantoches, ouvi
dizer...
– Isso é uma lenda.
– Uma lenda viva.

17
Juliana Duarte

– Menarca arrumou confusão. Eu sabia que isso ia acabar mal.


– Não tão mal.
– Não? – perguntou a garota, ironicamente – A número 7 e a número
10 foram destruídas!
– Os boatos correm... – observou o menino, fingindo indiferença.
– É você quem traz os boatos. Francamente, Papiloma, você não
descansa enquanto não armar o caos no Palácio?
– Caos? Estou desanuviando a visão dos cegos! Cegados
impiedosamente pelos alfinetes d’O Alfaiate!
Naquele instante, alguém bateu na porta.
– Ora, seja bem-vindo! – clamou Papiloma, sorridente – Já não era
sem tempo!
– Sim! – foi o clamor – Ele é fresco e está em promoção! A garrafa
transparente deixa o produto ainda mais branco!
– Arremesse um! Arremesse um!
Uma garrafa de leite voou. O menino não segurou a tempo e ela
quebrou-se contra a parede.
– Nossa, que azar – falou Papiloma, um pouco decepcionado – Mas
tudo bem. Da próxima vez eu consigo.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
– Obrigado, obrigado.
O Leiteiro retirou-se.
– Bem, onde estávamos? Ah, sim, a Casa dos Fantoches!
– Menarca não dá valor à própria pele.
– O que dizer das Charadas das Ferragens? Ninguém esperava aquilo
acontecer.
– Alguma coisa precisava acontecer – respondeu a garota – afinal,
como Menarca conseguiu chegar até a Casa dos Fantoches?
– Um presente roubado – respondeu Papiloma.
– Inacreditável.
– Mas possível.
Ela ficou levemente aborrecida com a observação.
– Quantos presentes você roubou para pular livremente por todas as
salas trancadas?
Já era tão natural o menino aparecer por ali que nem lhe ocorria a
pergunta.

18
Palácio dos Alfinetes

– Esse é meu segredo. Eu sou especial.


– Eu quem sou! – retrucou ela – A favorita, Ele me disse. Ninguém
nunca ganhou tantos presentes quanto eu.
Papiloma ficou interessado.
– Quantos, Sangria?
Ela manteve silêncio.
– Pelo jeito não foi o suficiente, se ainda nem consegue destrancar a
sua porta...
– Aposto que Tala ganhou apenas um presente de mão!
– Tala está deprimida – falou Papiloma – Está triste, melancólica e
sem esperanças, como você. Mas ela não disfarça.
– Suma daqui, Papiloma!
– Eu volto.
– Não é necessário.
– É preciso – falou ele – porque você quer. É orgulhosa demais para
admitir que a solidão é insuportável.
Ela não respondeu. Ficou desapontada.
– Me desculpe – acrescentou Papiloma, meio arrependido.
E foi embora.

Diário das Agulhas: 17 de março de 2002

Eu não gosto desse médico. Ele não sabe de nada.


Alguns aceitam a falsa tranquilidade que ele oferece. Para quem já
está destruído, até uma mentira é bem-vinda.
Ele me diz que tudo vai ficar bem. Distrai-me com trivialidades para
que eu esqueça; e sorri. Um sorriso bobo, fraco, inseguro, infantil,
estúpido.
Isso me incomoda. Esse lugar não é um circo. É um hospital.
Ouço algo estranho lá fora. Gostaria que parassem.

Teatro de Marionetes: Segundo Ato – Palhaços

(um palhaço entra)

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Juliana Duarte

PRIMEIRO PALHAÇO: Doce anacoreta! Como adoro chorar!


Afogar-me em soro abafado em gasolina. Minha ácida blindagem faz-me
provar a corrosão e ardentemente proclamar o aforismo maior!
(dá um giro em torno de si mesmo, de braços abertos)
PRIMEIRO PALHAÇO: Fanáticos! A beleza do vício. A risada é
nada mais que o extremo choro despedaçado, desfiguradamente levado
às últimas possibilidades!
(entra outro palhaço, dançando)
SEGUNDO PALHAÇO: Erro é o compasso da coreografia. Anota
em teu cartapácio: o fantástico, eis o depósito secreto da feiúra!
PRIMEIRO PALHAÇO: Anseio a veneração aos ratos.
(entra o terceiro palhaço, apontando-os acusadoramente)
TERCEIRO PALHAÇO: Doma tua raça! O riso é o degrau para o
arrependimento.
SEGUNDO PALHAÇO: Não há nada engraçado em tua glória
esfarrapada! Revolto-me solenemente e me nego a chorar.
PRIMEIRO PALHAÇO: Riso e choro! Comédia e tragédia! Revela-
me o segredo que torna ambos inimigos de teu reinado.
TERCEIRO PALHAÇO: O tumor da hipocrisia belamente
desmistificado.
SEGUNDO PALHAÇO: A dança.
TERCEIRO PALHAÇO: Onde pisa o bravo herói?
PRIMEIRO PALHAÇO: Irregular imprestável! Salvar-nos das
lágrimas? O degrau da dança? Do medo? Da música? Jacente
intromissão.
SEGUNDO PALHAÇO: Matemos o herói, portanto.
TERCEIRO PALHAÇO: Eia! Matemos!
(os palhaços matam o herói)
PRIMEIRO PALHAÇO: Que a comemoração se inicie. A lama será
nosso vinho!
SEGUNDO PALHAÇO: A máscara nossa dança.
TERCEIRO PALHAÇO: O mendigo o sagrado mecenas!
PRIMEIRO PALHAÇO: Joga a moeda, portanto.
(o terceiro joga a moeda ao alto)
TERCEIRO PALHAÇO: Paga a tua multa, fanfarrão!
PRIMEIRO PALHAÇO: Pois nego!

20
Palácio dos Alfinetes

SEGUNDO PALHAÇO: A venda! A venda!


(os dois palhaços vendam o primeiro e o fazem ajoelhar-se)
TERCEIRO PALHAÇO: Confessa!
PRIMEIRO PALHAÇO: Nasci! Chorei! Sorri! À fama! À glória!
Venerei o mofo, o manifesto, o pão do padeiro!
SEGUNDO PALHAÇO: Mais, perpétuo! Fala, traste!
PRIMEIRO PALHAÇO: O ferreiro! A prudência! O pulsar! Beijei a
rocha, o soluço, o aborto!
TERCEIRO PALHAÇO: Basta!
SEGUNDO PALHAÇO: A condenação é a areia e a cera de vela.
TERCEIRO PALHAÇO: Apaguem o fogo!
SEGUNDO PALHAÇO: Não agora, pois não há.
(os palhaços saem de cena)

Copas: Seção # 2.4

A garota ainda desenhava.


Derrubou no chão a canetinha preta que utilizava para enrolar as
antenas da joaninha. Tocou as mãos nas paredes, em seus desenhos.
Quase podia senti-los respirar.
Abriu a caixa de jogos de dominó e espalhou algumas peças pelo
chão. Logo as deixou. Segurou um ioiô nos dedos. Ela o rolava no chão
e o puxava suavemente de volta.
Papiloma era um sujeito estranho. Contava muitas histórias, mas ela
não acreditava em todas.
Será que as outras tinham inventado brinquedos mais divertidos? Mas
mesmo se tivessem, ela sempre seria a favorita. Ela era a mais bela, Ele
dissera, sussurrando-lhe em segredo. Dera-lhe os mais admiráveis dons e
presentes. Era a primeira.
Retirou com cuidado um pedaço de papel em seu vestido; fitou-o.
Havia corações.
Aquilo significava muito. Não sabia por que, mas significava. Parecia
ser o mais importante dentre tantos jogos e brinquedos; porque lhe fora
dado das mãos Dele.
Uma batida na porta.

21
Juliana Duarte

– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente deixa


o produto ainda mais branco!
– Eu não quero.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
Na verdade, ela precisava admitir que possuía uma verdadeira
obsessão pelos presentes. Não, mais que isso. Era algo ainda mais
perigoso e proibido.
Tala temia O Alfaiate. Menarca o desafiava.
– Eu já venci de todas.
Porém, o vazio que sentia se parecia muito pouco com uma vitória.

Espadas: Seção # 2.3/2.4

Os dias eram iguais.


Ele apenas virou-se na cama. Sentiu uma pressão no braço esquerdo.
Metade da agulha saíra de seu braço e o soro caiu no chão, derramando-
se.
Uma enfermeira passava pelo corredor e entrou no quarto. Ela
abaixou-se, recolheu o soro e trocou-o. Ajeitou a agulha no braço dele
com cuidado.
– Preciso de um exame de sangue. Isso vai doer um pouco.
Ela injetou uma agulha no pulso do menino. Ele suspirou forte, mas
nada falou.
– Olha o sorvete! – o vendedor gritava lá embaixo. O som era bem
audível da janela aberta – Olha, olha, o sorveteeeee!!
O silêncio só era quebrado vez ou outra por um novo grito da rua.
– Está com fome? Vou trazer alguma coisa para você.
E ela saiu do quarto. Alguns minutos depois, retornou com uma
bandeja na qual trazia uma colher e uma tigelinha com uma espécie de
papa.
O garoto sentou-se com alguma dificuldade. O líquido não era
exatamente ruim, mas não tinha gosto de nada. Porém, ele logo sentiu a
comida voltar de sua boca e, de uma vez só, virou para o lado e vomitou.
– Desculpe – falou o garoto.
– Tudo bem. A faxineira já vai vir.

22
Palácio dos Alfinetes

E ela saiu do quarto.

Copas: Seção # 2.5

– O que está fazendo?


– Não interessa, Papiloma – respondeu ela, secamente – se veio aqui
para me aborrecer, é melhor levar os seus sorrisinhos sarcásticos ao
cemitério de Paus.
Ela fitou-o com uma expressão extremamente séria que fez com que
Papiloma corresse até o outro canto da sala.
A garota trajava um longo vestido negro. Por cima dele utilizava um
avental branco sobre o qual caíam pedaços de tecido. Parte de seus
cabelos negros estavam caprichosamente trançados. Seus olhos escuros
concentravam-se na tarefa a cumprir.
Já de olhos baixos, ela respondeu a pergunta.
– Estou costurando. Você é cego?
– Queria saber o quê.
– Um fantoche – respondeu ela, com agulha e linha nas mãos.
– Para...?
– Adivinha. É minha penitência e parte do Terceiro Ato. Mais alguma
pergunta?
Ela prosseguiu a costura, passando cuidadosamente linha e agulha
por cima e por baixo do pano. Vez ou outra alcançava uma tesoura. O
corte produzia um som seco.
– Curioso. As paredes da sala da Sangria estão preenchidas com
desenhos de joaninhas. Mas as suas também estão muito simpáticas com
estes jogos da velha.
– Mesmo? – ela indagou, levemente interessada – E o que você fazia
lá?
– Discutíamos assuntos particulares – respondeu Papiloma, com um
leve sorriso – Mais alguma pergunta?
– Se você ousar me desafiar de novo...
– Calma! – apressou-se em dizer, achando graça – Agora vem a
pergunta mais importante. O assunto mais discutido ao longo dos anos
aqui no Palácio: como conseguiu roubar...

23
Juliana Duarte

– Cale-se.
– ... e sair ilesa?
Ela largou por um momento o fantoche e a tesoura no chão.
– Sei que você é muito habilidosa e tudo o mais, mas convencer mais
duas a participar de seu joguinho foi...
Ela deu alguns passos a frente e segurou Papiloma pelas vestes
multicores.
– Saia daqui agora ou vou fazer você sair.
– Sim, sim – concordou Papiloma, com efusivos acenos de cabeça –
Já entendi.
Ela largou-o.
– Quando O Alfaiate souber dessas suas brincadeiras de mau gosto...
– Que saiba. Ele não poderia fazer nada contra mim. Afinal, eu nunca
joguei conforme as regras. E eu sei que você também não, Menarca...
E ele desapareceu dali.
Sem pressa, ela novamente sentou-se e retomou suas costuras. Uma
batida na porta.
– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente...
– Eu não proibi você de gritar na minha porta, infeliz? – e bateu com
força na fechadura.
O Leiteiro saiu de lá no mesmo instante.

Espadas: Seção # 2.5

Estava deitado por muito tempo. Tudo o que poderia fazer era
dormir; mas às vezes os tubos, agulhas e aparelhos impediam que ficasse
tranquilo.
Alguém o acordou.
– Mãe...?
– Como se sente? Está dando muito trabalho para os médicos?
Ele não respondeu.
O rosto dela mantinha-se sério, apesar de fitá-lo ternamente.
– Você precisa disso. Sabe que precisa.
Por um momento, os dois permaneceram em silêncio.
– Obrigado por vir – falou o garoto, sem encará-la diretamente.

24
Palácio dos Alfinetes

Ela não disse nada.


– E o pai?
– Você sabe que ele é muito ocupado. Ele virá na semana que vem.
Eu mesma só posso vir às vezes. Precisamos trabalhar para pagar o
hospital.
Essa informação fez o garoto se sentir um pouco culpado.
– Eu acabei com a vida de vocês – falou ele.
– Não diga isso.
E não falou mais nada, o que sugeria ao garoto que talvez fosse
verdade.
– Precisa de alguma coisa? – perguntou ela.
– Não.
Ela levantou-se.
– Preciso ir agora.
– Mas eu pensei...
Ela virou-se.
– Pensei que fosse passar o dia.
– Na quarta-feira eu venho para uma visita mais longa – e entregou-
lhe uma sacola.
O garoto sentiu alguma coisa diferente que há muito tempo não
sentia. Um presente? Ao abrir a sacola, encontrou três grossos livros.
Curioso, olhou os títulos.
– Matemática, gramática e ciências – explicou ela – em duas semanas
você vai ter provas, esqueceu? É melhor estudar. Espero que tenha
revisado os exercícios anteriores.
Ele não disse nada.
– Estude e comporte-se.
E saiu pela porta.

Diário das Agulhas: 4 de outubro de 2002

Minha mãe veio me visitar. Foi bom. Estava com saudades.


Ninguém nunca vem me visitar. Eu olho para a porta e imagino
como seria bom se alguém entrasse por lá. Até mesmo o médico entra só
às vezes; e a enfermeira mais raramente ainda.

25
Juliana Duarte

Mas minha mãe só ficou alguns minutos. Ela não parece muito à
vontade comigo. Acho que ela só vem por obrigação.
Meu pai nunca vem. Há quase um ano não o vejo. Ele está sempre
trabalhando ou viajando, ou é isso o que minha mãe diz. Espero que isso
não seja uma desculpa. Sei que ao menos uma ou duas vezes por mês ele
poderia arranjar um tempo.
A faxineira veio aqui semana passada limpar meu vômito. Acho que
vou vomitar mais vezes.
Eu não sabia que eu tinha senso de humor.

Copas: Seção # 2.6

Alguns passos. A tampa ainda estava firmemente lacrada.


O barulho da corda sempre permanecia, de um lado para outro, a
arranhar e a farfalhar, como folhas secas em vento encanado. Ele parou
diante dele e apenas o fitou.
– Alguma reclamação? Você pode sussurrar, se quiser.
Diante do menino pairava uma cena doentia.
Pendurado firmemente por uma corda grossa estava algo que
lembrava uma figura humana com um uniforme amarrotado: um boné e
um macacão cinzentos. Seus tornozelos estavam envolvidos pela corda
grossa e seus braços amarrados fortemente ao tronco, por onde estava
pendurado. Estava amordaçado com ataduras brancas e sua cabeça
pendia sem apoio.
Seu corpo inteiro estava envolvido por pregos enfiados em sua pele;
ou ao menos parecia uma pele, tecida rusticamente. Ele estava fechado
em uma caixa de madeira feita às pressas. Na frente, grades de ferro
enferrujadas. No chão, um serrote sem uso.
– Este Porão está um pouco sujo. Você deveria limpá-lo às vezes.
Quer que eu limpe para você?
– Não, estou bem assim.
– Bem, eu não ia limpar mesmo.
– Você vem frequentemente zombar da minha desgraça – prosseguiu
ele, com a mesma voz abafada – Para isso não se atrasa. Deixe estar,
Papiloma. Ainda vai ter o troco.

26
Palácio dos Alfinetes

– Ei! Eu venho aqui para tentar diverti-lo e é assim que retribui?


– Divertir-me? – perguntou o rapaz, visivelmente contrariado – Pois
percebo que fracassou em todas as vezes.
– Não estou muito desapontado com isso.
Papiloma sentou-se, observando o apertado ambiente de madeira
preenchido por pó e teias de aranha.
– Qual seu jogo preferido? – perguntou Papiloma, distraído – Você
sabe, todos aqui estão se esforçando. O que tem criado? Jogos de
tabuleiro, de estratégia, de baralho...?
– Nem pense em falar em baralho, seu degenerado.
– Eu, degenerado? Mas que absurdo! – reclamou Papiloma, fingindo-
se ofendido – Tenho certeza de que está se divertindo com alguma
brincadeira.
– Masoquismo – respondeu o rapaz – tolerância à dor e paciência,
sendo que este último é meu maior desafio.
– Você tem muita habilidade em construir caixas, senhor Carpinteiro.
É você quem faz as simpáticas embalagens d’O Leiteiro?
– Não me fale nessa criatura abominável. Eu enfiaria pregos nos
olhos para não vê-lo nunca mais.
– Eu gosto dele – falou Papiloma – O leite dele é sempre fresco.
– Devido a certas indisposições físicas, nunca tive a rara
oportunidade de prová-lo.
Papiloma deitou-se no chão, espreguiçando-se.
– Se precisar de mais pregos, madeira ou alguma ferramenta divertida,
como um novo serrote ou um martelo, posso conseguir na Dispensa.
– Eu achei que o local estivesse proibido.
– Você sabe que é outro o lugar proibido. Mas nada é proibido para
mim. O Palácio é a minha casa.
– Não me diga que vai até a Frente de Loja.
Papiloma riu.
– Se alguém deve temer aquele lugar, esse alguém não seria eu.
– Então, traga-me o que conseguir da Dispensa. Estou começando a
ficar entediado.
– Se eu tivesse passado os últimos anos pendurado, amordaçado,
amarrado e perfurado por pregos, eu com certeza já teria ficado
entediado há muito tempo. Você é um sujeito engraçado, Lúpus.

27
Juliana Duarte

– Mais engraçado que a fraude de um palhaço disfarçado de bobo-da-


corte? Vai fazer malabarismos diante do rei?
– Eu não sou uma fraude – queixou-se Papiloma – mas pode ter
certeza de que eu jamais perderia a oportunidade de realizar divertidas
façanhas diante de nosso monarca.

Paus: Seção # 2.6

Uma pessoa de terno branco caminhava pelas ruas cinzentas.


Ninguém o havia notado antes em qualquer parte. Não parecia
existir. Porém, sua aparência era exótica o bastante para que olhares
desconfiados o acompanhassem.
Tratava-se de um rapaz de cabelos brancos. A sua roupa era
completamente alva, com exceção da gravata vermelha. Seu olhar era frio
e sem vida. Sua pele desbotada e sua face vazia lembravam apenas
vagamente expressões humanas.
Caminhava pelas ruas estreitas e silenciosas de construções cinzentas.
O céu era nublado. Parou diante da porta de uma construção velha e
entrou.
Algumas pessoas bebiam nos balcões e mesas, mas não havia nada
parecido com conversas animadas. O máximo que se ouvia para quebrar
o silêncio era um sussurro.
O sujeito quieto de terno branco apenas escolheu uma mesa num
canto e lá permaneceu. Observava os presentes com atenção e nada
falava.
Os sussurros recomeçaram nos arredores no momento em que o
sujeito adentrou. Ele conseguiu entreouvir uma ou outra palavra do que
diziam na mesa ao lado.
– Estão andando por aí de novo – falou um homem barbudo
segurando uma caneca.
– Isso me incomoda – confessou o outro, passando os olhos por um
cardápio – espero que parem.
– Pois isso me tenta.
– Se eu fosse você, resistiria – sugeriu o homem do cardápio – eles
andam por aí depois do anoitecer. É proibido.

28
Palácio dos Alfinetes

– Muitas organizações proibidas fazem coisas estranhas – falou o


homem barbudo – mas o sigilo de Brócolis é lendário. Impera...
– Sshhh!! – exclamou o homem, fechando subitamente o cardápio,
num susto – Não repita esse nome! Maldito seja...
– Você teme demais.
– Com licença, senhores – alguém interrompeu a conversa – Estou
em busca da Torre da Fumaça Cinzenta. Acredito que poderiam me dar
essa informação.
Os dois fitaram o sujeito de branco.
– Quem é você? – perguntou rispidamente o homem que segurava o
cardápio.
– Calma – tranquilizou o rapaz de branco – Não queremos criar
nenhuma confusão por aqui, não é mesmo?
– Ele é...! – exclamou o homem barbudo, largando a caneca com um
baque – Um membro...?
O rapaz de branco ignorou-o. Ergueu a caneca do homem e
examinou-a.
– Que droga é essa? – perguntou ele, virando a caneca e derramando
o conteúdo na mesa – Água fervida com ervas?
– Isso se chama chá – corrigiu o homem barbudo, levemente
perturbado.
– Bom saber. Então, cavalheiros, a torre. Leste? Oeste?
– O que pretende fazer lá?
– Salvar a Princesa – respondeu o rapaz de branco – porque eu sou o
Herói.
– Não se parece muito com um herói.
O rapaz de branco segurou o homem do cardápio pelas vestes.
– Eu sou o Herói e eu posso!
– Oeste.
– Obrigado.
E o rapaz de branco sumiu do bar.

Tubulação Semiótica B

Sinto a tua anestesia

29
Juliana Duarte

Abro os lábios de coração


E provo manjar branco
Eu amo loucamente
Minha luxuosa escravidão
Vomito carícias de ardor
Ao venerar a suprema feiura
O sorriso da minha senhora
É o mel da cola quente
Obrigada por teus risos espelhados
Obrigada por teus abraços girados
Se pudesse chorar
Derramaria o algodão do meu cérebro falsificado
Meu presente será um aceno de adeus
Em teu leito infantil
Minha libertação
Meu esquecimento
O meu nada e minha não existência.

Espadas: Seção # 1.0

A transferência para a sala de cirurgia.


Máquinas, tubos, agulhas, a cama branca sem lençóis; sem quadrados
para contar.
Talvez devesse ficar assustado. Mas antes de tudo, era algo diferente
que acontecia. A cirurgia começaria dentro de alguns minutos.
A espera era insuportável. Porém, no fundo, era algo para aguardar.
Algo diferente que acontecia em um cotidiano monótono; era o bastante.
Naquele momento, ele era importante. Seria alguém digno de pena,
passando pela dor. Mas os médicos apáticos já estavam tão acostumados
a causar a dor que não iriam realmente se importar. Ele não precisava da
pena deles e da pena de ninguém.
Com os pés descalços, caminhou em direção à cama. Ele mesmo
ligou-se ao soro. Uma máquina pequena produzia um ruído esquisito,
mas já familiar. Logo estaria entubado e ligado a fios. Seria um com a
máquina.

30
Palácio dos Alfinetes

Deitou-se. Observou o teto vazio. Por um breve momento, seu


coração palpitou. Repreendeu-se por isso. Não temia a dor. Não ia
reclamar ou mesmo admitir um eventual sofrimento. Estaria acima disso.
Dois médicos com máscaras brancas adentraram na sala de cirurgia.
A porta se fechou. Sem uma palavra de consolo ou aviso, iniciou-se o
ritual a que já deveria ter se acostumado: a pressão nos pulsos; a ânsia de
vômito.
Sentiu-se extremamente fraco e impotente. Não podia controlar. Por
mais que fingisse, tudo aquilo era uma mentira. Ele era apenas uma
mosca fraca e débil presa pelas teias da aranha, esperando para ser
devorada.
Estava aumentando; era mais forte. O ruído da máquina estava
próximo. Era bonito.
Respirou mais forte. Não ia reclamar. A duração daqueles segundos
era arrasadora. Ele era banquete do tempo. Ele se deliciava em dilacerá-
lo.
Apenas fechou os olhos com seriedade. Tudo o que precisava era
desaparecer. Abriu os olhos devagar. Dois rostos desconhecidos se
concentravam em alguma tarefa violenta. Não havia ninguém mais.
Fitou o próprio pulso em que uma agulha fora brutalmente enfiada.
Tentou mover a mão, mas ela estava fraca. O pulso possuía muitas
marcas, como se alguém o tivesse apertado até que o sangue não mais
pudesse correr por dentro de suas veias e atingisse uma tonalidade
arroxeada.
Onde estava sua força? A fraqueza lhe era repugnante. Porém, sua
conformação inevitável lhe era ainda mais abominável.
Só mais uma hora e o tédio retornaria. Deveria desfrutar daquele
momento ao máximo, como um grande prêmio que recebeu por sua
vergonhosa existência e fracasso como ser humano.

Teatro de Marionetes: Terceiro Ato – Fantoches

(entra um fantoche)
PRIMEIRO FANTOCHE: Penso cuidadosamente. Mais cuidado e
eu cairia do abismo. O abismo de minhas fantasias; o precipício de

31
Juliana Duarte

minhas farsas. Seja como for, estou satisfeito. Nem mesmo preciso
provar um segundo passo.
(entra um segundo fantoche, sorrateiramente. Coloca-se por trás do
primeiro e o empurra).
SEGUNDO FANTOCHE: A verdade crua sem condimentos de
lábia? Conseguiste provar do tormento. Apenas uma gota basta para
adormecer a língua. Embora tentes em desespero fermentar em pólvora,
asseguro-te que as cinzas serão teu fim inevitável.
(entra outro fantoche)
TERCEIRO FANTOCHE: Tal cena comum não surpreende os
hospedeiros da carne. Intoxica-se a larva com o lanho da própria
mandíbula. Consome então da própria pele e aceita vergonhosamente a
lógica da liquefação.
(levanta-se o primeiro fantoche)
PRIMEIRO FANTOCHE: Serei, pois, o micróbio meteórico que
com sua minúcia microscópica reinará sobre a moléstia e sobre o
massacre da maturidade!
TERCEIRO FANTOCHE: A tua nutrição é pacífica. Raptará do
pântano a nutriz e com ela a prudência da reverência. Pois pensa
enquanto canta.
SEGUNDO FANTOCHE: E quando de teu pitoresco sopor
despertar...
TERCEIRO FANTOCHE: ... o posfácio poderá ser escrito.
PRIMEIRO FANTOCHE: A epifania ainda pulsa.
(os fantoches saem de cena.)

Paus: Seção # 3.0

Um rastro de poeira. E isso era o suficiente.


Alguma coisa se arrastava no chão; uma criatura estranha, cor de
terra.
Apenas escorregava como uma minhoca, tentando parecer vivo.
Toda a sua força se concentrava no desejo de superar a forma
repugnante a que era submetido pela areia.

32
Palácio dos Alfinetes

Uma figura se colocou diante do ser. Tratava-se de um vulto dourado


brilhante, de pé. Mesmo sendo cor de ouro, era de um tom variante da
areia.
– Acabou.
A figura marrom levantou os olhos.
– Já acabou há muito tempo – falou, como se não lembrasse mais de
como usar a voz. Era rouca, acabada, sonolenta, sedenta de palavras –
Eu não merecia tanto.
– E você acha que Ele merecia? Eu sou A Ampulheta.
A Ampulheta trajava um majestoso manto dourado que brilhava com
imponência.
– Sou O Verme no Chão.
– Então aqui, no fim de tudo, podemos ter uma conversa. Pode falar.
– Isso é um confessionário? – queixou-se O Verme no Chão.
– É o meu Posfácio.
– E o que uma ampulheta vai fazer com um posfácio?
– Vou ajudá-lo.
– Ajudar um verme no chão? Muito caridoso de sua parte.
– Posso frustrá-lo também. Acho que isso me agradaria. Conte-me
sobre a sua vida.
– Lembro quando o pó começou. Tudo estava abandonado e
esquecido. Então veio o vento e espalhou o pó. Espontaneamente brotei
da terra. Rastejei, comi poeira. E assim tenho existido.
– Eu estava passando por aqui e vi um verme no chão. Pensei em
esmagá-lo, porque estava me incomodando.

Copas: Seção # 3.0

Um ambiente de madeira que se localizava no alto.


A garota brincava com alguns dados nas mãos. Seus cabelos eram
curtos e negros, com franja de mechas roxas. Seu vestido púrpura era
curto e rodado com alguns laços e babados. Usava meias três quartos
brancas e nos pés sapatos negros de boneca.
Parecia bem à vontade, como se só estivesse passando umas férias
por ali.

33
Juliana Duarte

– Então Sangria está mostrando sinais. Mas estou um pouco


preocupada com Tala. Parece que não está aceitando bem.
– Você acha que alguém aqui está aceitando bem?
– A adaptação de alguns é mais rápida. Menarca está frustrada, é
claro, mas não fica com olhar de peixe morto apesar do mau humor.
– Sinceramente, não sei o que é pior – admitiu Papiloma – bem que
você poderia estar lá para me defender. Usar esse seu martelo, quem
sabe?
Ele apontou para um grande objeto de madeira encostado à parede.
– Isso é um taco. Você sempre tenta convencê-los a questionar as
regras.
– Sim! – gritaram do outro lado da porta – Ele é fresco e está em
promoção! A garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
– Oba! – falou Papiloma – Um aqui para mim. Para mim!
Papiloma alcançou uma garrafa e abriu-a, bebendo-a.
– E um para minha amiga.
Papiloma entregou uma garrafa para a garota.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
E se foi.
– Por que me ofereceu? Achei que tivesse criado uma regra que
dizia...
– “É proibido beber leite” – falou Papiloma, bebendo grandes goles –
Essa regra existe, mas...
– ...você mesmo a desobedece – completou ela.
– Não era isso que eu ia dizer. Ninguém desobedece a minha regra. É
a única aqui que é cumprida por todos, sem exceção. Eu criei a regra, eu
não conto, oras.
– Eu sei por que você a desobedece. Não gosto muito de leite. Pode
pegar para você.
– Já que insiste...
E ele aceitou a garrafa, abrindo-a imediatamente.
– Há muitas portas trancadas no Palácio. Eu não posso sair.
Papiloma quase cuspiu o leite e caiu no chão, dando grandes
gargalhadas.
– Não me diga! Aliás, por que esse papel feioso ainda está pregado
em sua parede?

34
Palácio dos Alfinetes

Porém, ela não gostou da brincadeira. Manteve-se subitamente séria.


– Ih – falou Papiloma – Falei algo errado?
– Aposto que sua risada foi ouvida até na Frente de Loja. Já falou
com Lúpus?
– Já. Preciso ir até a Dispensa pegar alguns pregos para ele.
– E o Cofre e a Biblioteca continuam proibidos, certo?
– Sim, como esperado – respondeu Papiloma – e a Sala de Visitas
também. Nunca vi ninguém lá.
– Muito bem, vá até a Dispensa. Quem precisa de alguns pregos na
cabeça é a Carcinoma.
Papiloma colocou a segunda garrafa vazia no chão. Levantou-se.
– Boa sorte, Chaga.
Ela baixou os olhos novamente e voltou a atenção aos dados.
– Você é quem vai precisar, Papiloma. Lidar com aquela garota pode
ser bastante traumático.

Diário das Agulhas: 20 de maio de 2004

Alguém veio me visitar de novo. Como da última vez, eu estava na


sala de cirurgia e não pude vê-la. Não era minha mãe nem meu pai.
Disseram que era uma criança de uns 6 ou 7 anos. De onde será que a
conheço?
Isso é bem estranho, mas gosto de estar intrigado com isso. É bom
ter alguma coisa em que pensar. Será que alguém quer saber como estou
de verdade?
Acho que não sou uma pessoa tão ruim.
Meu pai não veio mais. Deve ter esquecido que existo. Ou talvez ele
tenha morrido e minha mãe queira esconder de mim para que eu não
fique ainda mais arrasado. Ela quer que eu espere por alguma coisa. Mas
eu ficaria mais feliz se ela me dissesse que ele morreu. Ao menos saberia
que ele não veio me visitar por um bom motivo.
Estou cansado de ser uma pessoa bondosa, de ficar parado e existir
apenas como um vegetal. Estou começando a ficar um pouco revoltado
com tudo isso.
O sorveteiro está gritando na janela de novo.

35
Juliana Duarte

Mas claro que essa história do meu pai é apenas especulação minha.
Não acho que ele realmente tenha morrido.
Minha mãe vinha me trazer livros algumas vezes por mês, mas nem
isso ela faz mais, porque uma vez eu reclamei disso. Não devia ter
reclamado. Preciso aprender a ficar quieto, como sempre fiz. Apenas
concordar; e mais nada.
Eu nunca pedi por atenção.
Não gosto mais de escrever nesse caderno de folhas listradas. Essa
foi a última vez.
Estou com medo de continuar e falar demais.
Depois do que aconteceu com a enfermeira, perdi tudo o que eu
achava que ainda tinha, mas não quero falar. Ninguém vai ouvir da
minha boca uma palavra a esse respeito.
Pronto. Adeus.

Espadas: Seção # 4.0

Era noite.
O menino estava deitado na cama. Observava o quarto. Já estava
cansado de contar o número de quadrados de seu cobertor.
Fitou a mesa de cabeceira: era de madeira e tinha duas gavetas. Na
segunda guardava seu diário. A chave sempre levava consigo para poupar
eventuais constrangimentos.
Embaixo da cama estavam os livros que sua mãe trazia para que ele
estudasse. A maioria deles eram extremamente chatos, mas vez ou outra
ele olhava as figuras coloridas do livro de ciências. Lá também estavam
os pertences da menina que ocupava seu quarto quando ele ia para a sala
de cirurgia. Em sua opinião, ela era bastante bagunceira para uma
menina. Nunca a havia visto. Ouvira que ela mal podia se levantar da
cama.
Estava um pouco ansioso naquele momento. Esperava alguém.
Raramente falava com ela, pois costumava falar pouco com as pessoas.
Quem sabe pudesse ao menos agradecer quando ela enfiasse a agulha em
seu braço para tirar sangue...

36
Palácio dos Alfinetes

A porta se abriu. Ele sentiu alguma coisa diferente; um nervosismo


parecido com o que sentia antes das cirurgias. Mas não foi a enfermeira
que entrou. Foi o médico.
Sem falar nada, ele apenas colocou a bandeja na mesa de cabeceira.
Em silêncio, preparou a agulha.
– Ela... – começou o menino.
O médico se virou.
– Sim? – perguntou ele, com um sorriso forçado demais. Talvez
quisesse tranquilizá-lo, mas o efeito foi o contrário.
Ele não soube o que dizer.
– A enfermeira? – perguntou o médico, ainda sorrindo.
O menino sentiu um desejo súbito de socar o rosto sorridente do
médico que o humilhava, com toda aquela malícia na voz. Como odiava
aquele sorriso! Estava começando a odiar várias coisas, mas a sua timidez
o impedia de dizer o que deveria ser dito.
O médico voltou sua atenção para a agulha. Será que a expressão do
médico foi só impressão sua?
– Ela foi transferida. Está trabalhando na Unidade de Tratamento
Intensivo.
O médico aproximou-se e tirou uma amostra de sangue. Se deveria
ter sentido alguma dor, ele se esqueceu. Sua cabeça estava longe.
– Ela não vem mais?
– Não.
O médico guardou seus utensílios, recolocou-os na bandeja e já ia sair
quando se lembrou de voltar para fazer a mesma pergunta de sempre.
– Precisa de alguma coisa?
– Não – falou o menino, sem pensar duas vezes. Sempre dava a
mesma resposta, embora sempre fosse uma mentira.
O médico fechou a porta. O quarto ficou subitamente escuro, já que
ninguém nunca se deu ao trabalho de trocar a lâmpada.
Ainda sentado na cama, o menino tentou entender o que estava
acontecendo. Parou um segundo para refletir.
Ele praticamente morava em um hospital desde pequeno.
Seu pai já não o visitava há pelo menos três anos.
Sua mãe deixou de visitá-lo nos últimos meses, com exceção de uma
passada de cinco minutos há duas semanas.

37
Juliana Duarte

Odiava todas as pessoas no hospital com exceção da pobre coitada da


faxineira e de uma simpática enfermeira. A velha faxineira não aparecia
muito nos últimos tempos. A enfermeira foi transferida e nunca mais ia
vê-la.
O que estava fazendo ali? Ficava deitado numa cama entubado dia
após dia e submetia-se constantemente a sessões de cirurgias dolorosas
toda a semana.
Não via como poderia convencer a mãe a visitá-lo mais vezes e nem
tinha coragem de constrangê-la a isso se ela não queria.
Naquele instante, escutou alguma coisa vinda da janela:
– Sorvete! Olha, olha o sorveteeee!!
Achou um absurdo aquela gritaria àquela hora da noite.
Porém, naquele momento, seu coração deu um salto. Não poderia
falar com sua mãe, mas em relação à enfermeira talvez tivesse uma
última saída. Um recurso desesperado. Se não fizesse isso, não valeria a
pena continuar.
Até ali, sempre se manteve obediente e quieto, talvez até demais.
Estava na hora de causar alguns problemas. Seu primeiro ato de rebeldia.
Novamente, sentiu seu coração acelerar.
Ia fazer algo perigoso; extremamente perigoso. Ia arriscar tudo, de
uma vez só.
Levantou-se da cama. Tocou os pés no chão e desligou-se do soro.
Deu alguns passos vacilantes. Até caminhar estava se tornando difícil.
Foi em direção à pequena geladeira. Abriu-a.
Lá havia pouca coisa: comidas e bebidas inocentes, que mais
pareciam água, com as quais ele era alimentado de vez em quando.
Porém, não era aquilo que buscava.
Tinha certeza de que o médico havia deixado alguma coisa na noite
anterior. Ele ficou de plantão durante a noite e guardou a janta lá.
Torceu para que ainda tivesse o resto dela.
Finalmente encontrou.
Era uma pizza. Não estava congelada, mas bastante resfriada. E quase
inteira! Pelo jeito, ele só teve tempo de comer uns dois pedaços e
guardou o resto num pote.
O menino não estava realmente com fome, mas precisava fazer
aquilo.

38
Palácio dos Alfinetes

Ele ergueu uma das fatias na mão. Seu coração disparou.


Comeu um pedaço da primeira fatia. Sentiu como se colocasse na
boca o mais divino manjar dos deuses. Rapidamente, comeu o resto da
fatia em grandes mordidas. Ergueu a segunda nas mãos. Bastou alguns
segundos para que a engolisse.
Pegou o terceiro pedaço. Comia-o com avidez, embora estivesse um
pouco enjoado.
Segurou o quarto. Enfiou-o na boca com as duas mãos, derrubando
pedaços pelos cantos da boca, que caíram no chão.
Ele mastigava com grande sofrimento. Cada pedaço era sufocante de
ser engolido, embora ele tivesse apreciado o gosto forte, mesmo estando
enjoado.
Não poderia vomitar. Quase sentiu a comida voltando, mas respirou
fundo e pegou um quinto. Mas não foi rápido o suficiente. Antes que
conseguisse se conter, vomitou no chão do quarto. Vomitou mais uma
vez. E tossiu.
Continuou tossindo sem parar. Seu coração batia tão forte que ele
estava com medo de ter uma parada cardíaca ali mesmo.
Por alguns segundos, ele parou. Parecia quase normal. Não podia ter
vomitado tudo o que comeu. Alguma coisa ainda devia estar ali, em
algum lugar.
Ele deitou-se no chão e encolheu-se. Sentia sua barriga revirando-se.
E começou.
Mais vômitos vieram e cada vez com mais violência, até que sentiu a
própria garganta começar a se fechar. Não estava conseguindo respirar!
Tentou mais uma vez. Queria chamar alguém, mas não adiantava.
Ia morrer.
Aquele pensamento lhe desesperou completamente. Seu coração
palpitou mais forte do que nunca em sua vida.
Ele começou a emitir ruídos estranhos. Sua respiração voltou por um
momento e ele tentou gritar, mas nem mesmo para isso tinha forças.
Novamente, a respiração falhou. Ele jogou-se com força no chão,
derrubando a cadeira e partes de alguns aparelhos. Os próprios músculos
de seu corpo pareciam lhe desobedecer.
Foi então que alguém entrou. A luz do corredor atingiu seu quarto
escuro. Ouviu vozes confusas e altas. Escutou os passos.

39
Juliana Duarte

– Ele está com convulsões!


Era violento; era assustador; doentio.
O garoto emitia sons estranhos e baba escorria pelo canto de sua
boca suja de vômito e molho de pizza. A respiração falhava e as
tentativas frenéticas de seu corpo para manter-se vivo eram
desesperadas.
Talvez fosse desmaiar. Porém, antes que isso acontecesse, ouviu
nitidamente a palavra “UTI” ser pronunciada.
Finalmente conseguiu.

Copas: Seção # 4.0

Ela estava sentada num canto. Sua expressão mesclava a apatia e o


mau humor, com os cabelos despenteados a cobrir-lhe o rosto.
– Eu nunca te vi desse jeito antes. Olhe para você mesma. Está
acabada.
– Eu não estou! E nunca vou estar. Sou a favorita, Ele me disse. A
mais bonita, a melhor das melhores!
– Está enrolando você. Ele é bom nisso.
– Você é quem não gosta Dele! Você O odeia. Quer sempre um
motivo para criticá-Lo. E não admite que nada pode contra Ele!
O menino não respondeu. Ainda de pé, fitou o chão de brinquedos.
– A sua situação é miserável. E você sabe disso.
– E a sua? O que faz aqui? Por que está sempre perambulando de
sala em sala? E por que sorri...?
– Eu não estou sorrindo.
– Você sempre está! – falou ela, com a mesma irritação – Não negue,
Papiloma!
Ela encarou-o com a mesma expressão irritada. Porém, era raro ver
Papiloma com outra expressão que não fosse a de diversão e zombaria.
Alguma coisa estava errada.
Sangria mudou o olhar. Olhou-o com um misto de admiração e
medo.
– Está falando sério – constatou ela, olhando-o surpresa.

40
Palácio dos Alfinetes

Com certeza a seriedade do menino não combinava com as roupas


espalhafatosas e multicores.
– Pare com isso – falou Sangria.
– Olhe o que Ele fez com você. Consegue captar agora um pouco
dos sentimentos de Tala?
– Eu odeio você.
– Você sabe quem realmente odeia – falou Papiloma – e esse alguém
não sou eu.
– Isso é loucura – ela baixou a voz – Não faz sentido algum. O que é
tudo isso? Por todos esses anos você vem fomentando minha decepção.
– Sua decepção nasceu com você – falou Papiloma.
Ele deu meia volta.
– Por favor! – ela chamou-o.
Ele virou-se.
– Não vá embora! Era isso que você queria me ouvir dizer? E não se
atreva a rir!
– Vejo que se apegou bastante às regras – observou ele – Que quer
de mim?
– Por mais de quatro anos você vem aqui todos os dias sem nunca
me esclarecer nada e ainda me pergunta o que quero de você? Eu sei que
você sabe; é o único que pode me dizer.
Ele manteve silêncio.
– Diga agora! – mandou ela – Diga aquilo que você sempre quis me
dizer, mas eu nunca quis saber!
– Não sei do que está falando.
– Vá para o inferno, Papiloma! – gritou ela, cada vez estragando mais
sua aparência deslumbrante.
– Essa sua raiva é a única forma de me fazer dizer aquilo que sempre
temeu ouvir. O seu maior terror.
Ela mais uma vez fitou as próprias pernas. Agora era evidente o
medo em seu olhar.
– Você suportou tudo para não saber e estava pronta a ir até as
últimas possibilidades. Mas agora não dá mais. Existem limites para a
sanidade...
– Por que estou aqui trancada nesta sala com um monte de
brinquedos? – perguntou ela – Por que outros que jamais vi também

41
Juliana Duarte

estão nessa situação? Tala, Menarca, Chaga e tantos outros dos quais
apenas ouvi falar por você? O que é esse lugar? O que sou eu?
– Você não faz a mínima ideia? O que O Alfaiate te falou?
– Que sou a favorita e que eu ganharia os mais belos presentes. Que
haveria outras, mas que eu era a primeira e a melhor. Que eu teria tudo o
que desejasse: vestidos, enfeites, brinquedos e diversões.
– No dia do seu nascimento ele te contou isso e essa sala é tudo o
que você conhece. Você o reconhece como seu criador. Sabe o que
existe lá fora?
– E o que é “lá fora”? – perguntou ela.
– Você sabe que deveria estar feliz – falou Papiloma – porque é a
favorita, é a melhor de todas e tem tudo o que quer. Mas não está. Essa é
a sua contradição.
Mais uma vez, ela permaneceu quieta.
– Pois eu vou dizer por que você não está feliz. Para você o “lá fora”
sempre foi a miséria e aqui dentro o reino da felicidade. Por isso você
nunca se interessou em sair.
– E como as coisas são?
– Lá fora é uma droga, mas não totalmente. Existem coisas boas e
ruins lá. Eu diria que é interessante. No mínimo, digno de ser conhecido.
Ela levantou os olhos.
– Mesmo...? – porém, ela logo mudou a sua expressão de leve
esperança – Mentira! Você sempre quis me jogar contra O Alfaiate! Não
sei o que vai ganhar com isso, mas...
– Sangria – interrompeu Papiloma – ouça o que tenho a dizer para
ver se faz sentido.
– Não faz – concluiu ela.
– E a sua vida faz?
– Não.
– Ei, espere aí – Papiloma teve que rir desta vez – Eu vou ter que
dizer para você o que é a sua vida. Acho que quatro anos trancada aqui
sem fazer nada não foi tempo suficiente para que parasse um minuto
para pensar. Aliás, você nem deve saber o que é tempo. Ele controla isso
também.
– Do que está falando?

42
Palácio dos Alfinetes

– Ele te trancou em uma sala, mentiu que este é o melhor lugar do


mundo e te deu tarefas sem objetivo para te manter distraída. Você é
escrava d’O Alfaiate. Ele te trancou aqui porque te queria só para Ele.
Está vendo essa boneca no chão?
Ele apontou para uma boneca de cabelos negros e longo vestido cor
de vinho.
– Ele me deu. Brinco com ela às vezes, mas tenho outros jogos mais
interessantes.
– É isso o que você é Dele – explicou Papiloma – Uma boneca. E
Ele vai brincar enquanto não enjoar de você. Ele te costurou para fazê-la
sua escrava. Por isso Ele é O Alfaiate.
– Mentira! – retrucou ela – Eu não sou uma boneca!
– Você é. E essa é a casa de bonecas Dele. Na verdade, isso é uma
loja de brinquedos. Ele vende brinquedos e bonecas, mas seus preferidos
mantêm só para Ele trancados nos fundos, no depósito. Este é um dos
quartos do depósito.
– Não pode ser.
– Mas para além da loja de brinquedos existe um mundo lá fora:
pessoas que compram os brinquedos, que vivem em um grande mundo,
com a liberdade para ir e vir, descobrir coisas e ter experiências
extraordinárias!
– Como sabe de tudo isso?
– Eu já vi. Digamos que sou um brinquedo um pouco diferente,
devido a algumas circunstâncias especiais. O Alfaiate não queria que eu
existisse, mas eu simplesmente estava lá. Não preciso seguir todas as
regras e também posso obrigá-Lo a seguir algumas.
– Você? – perguntou ela, descrente – Obrigar O Alfaiate a seguir
regras? Mas que mentira!
– Até quando você vai me chamar de mentiroso? Bem, já disse o que
tinha para dizer. Achei que ia ficar chocada em saber que era uma
boneca, mas eu sei por que não está. Você nunca viu o que é não ser
uma boneca. Nunca viu uma pessoa de verdade.
– Uma pessoa de verdade – repetiu ela – Nada disso faz sentido.
– Apesar disso, você consegue sentir uma grande angústia sem saber
por quê. E eu estou lhe contando que existe um remédio para a sua
doença.

43
Juliana Duarte

– Que doença?
– Ainda insiste que está tudo bem? Que as coisas podem continuar
como estão?
– Que escolha eu tenho?
– Quebrar as regras.
Ela fitou-o com seriedade.
– Isso é loucura. Você está pedindo para eu desobedecer à única coisa
que aprendi ser certa na minha vida.
– Você não tem nada a perder.
– Sabe o que aconteceu com Angina e Moebius...
– Sim, existe um risco. A escolha é sua.
– Você não me deu escolha – respondeu ela, finalmente – Seu
trapaceiro.
Papiloma sorriu.
– Sim! – clamaram de fora – Ele é fresco e está em promoção! A
garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
– Venha – falou Papiloma, subitamente sério.
Silêncio.
– Não o leite. Você.
Sangria levou um grande susto. O Leiteiro estava dentro do quarto
fechado.
– Sim!
Porém, naquele instante, ainda de pé, suas costas caíram para frente,
pendendo a própria cabeça e seus braços.
Papiloma apenas moveu a cabeça em sinal de reprovação. Dirigiu-se
até o rapaz de roupas brancas e gravata borboleta, girando alguma coisa
em suas costas. Era uma corda.
– Um... boneco? – Sangria ficou aterrorizada.
Papiloma não respondeu. Apenas terminou de dar corda. O Leiteiro
ergueu-se novamente, com energia.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!
– Vá até a Cozinha – falou Papiloma – Sangria... você vai provar uma
coisa muito especial.

Ouros: Seção # 5.5

44
Palácio dos Alfinetes

Uma imponente fortificação se avistava ao longe. Construída


majestosamente em cristal brilhante, parecia feita sob encomenda pelas
mãos de gigantes. Perdia-se no céu sem fim. Brilhava a ponto de cegar os
olhos em um céu de cores mágicas.
Criaturas voavam pelos céus. Vozes melodiosas se estendiam pelo ar,
abafadas apenas pelo ruído frio de máquinas.
Talvez apenas um sonho. Ainda não se concentrava com nitidez.
Murmúrios silenciosos perdiam-se por dentre as ferragens.
Árvores gigantes e imponentes erguiam–se ao redor. A multidão
gritava. Gritos cortantes, ásperos, desesperadores, inconscientes,
automáticos. Uma imensa fila estendia-se indefinidamente. Os passos
eram lentos; os olhos, baixos e perdidos.
Os pés arrastavam-se. Alguém atravessou a máquina principal.
Retirou alguma coisa do pulso e jogou dentro de um incinerador. Dele
saía fumaça, freneticamente. Quando se alimentava, agradecia com um
apito pulsante e cheiro de gasolina.
No salão principal, cadáveres dormiam. O despertador soou com
alarde ensurdecedor. Todos os corpos acordaram no mesmo instante.
Levantaram-se simultaneamente. Em fila, cada qual se dirigiu a uma pia.
Cada cadáver escovava os dentes. Escovavam.
Agora, jaziam em grandes banheiras. Jaziam.
Sentados, olhar vago, esquecidos. E existiam, no lugar sem forma.

Tubulação Semiótica H

A máquina ainda tritura os relógios.


Queres tomar chá comigo?
Aspiro o bafo de aspirina de tua arcada dentária
Levanta e desentope teu riso careteiro monotonamente
Escova o eco de tuas dívidas
Mas não te esquece de me levar para dançar
Eu vou rodar com etiqueta
Meu vestido escovado em babados deslocados
A máquina ainda tritura os relógios

45
Juliana Duarte

Queres jogar raquete com tua lupa míope?


Não há parteira para o tumor de tua valsa
Não há pedágio em teu rebanho
A máquina ainda tritura os relógios
As baboseiras radiográficas do legado dos cálculos
São mastigados em pólvora
No mundo da ciência fleumática
O raciocínio é maculado em gasolina
Tudo o que resta
É a beleza vocálica dos loucos
Dissolve a consciência em vinagre
Enquanto canta
A máquina ainda tritura os relógios
Apenas dança entre as ferragens
E acaricia tuas cicatrizes de nicotina
A falência dos bonecos de corda
É o cérebro de borracha
Não precisa sorrir
Apenas cavalga a escada de teu reino
E cospe na máquina da guarda

Copas: Seção # 4.1

Ela deu alguns passos.


Com cuidado; com curiosidade; com assombro.
A nova vida nascia dentro dela. Por enquanto não queria dizer nada,
fazer nada. Apenas observar. Estava maravilhada. Seus olhos fitavam um
horizonte sem fim de uma bela manhã. Respirou o ar refrescante.
Fechou os olhos apenas para sentir.
Estendeu as duas mãos para frente, devagar, como se procurasse
beber cada segundo daquela experiência única e especial. De uma vez só,
compreendeu tudo.
Ela ajoelhou-se por um momento e colocou as mãos sobre a terra.
Fazia tudo com cuidado, com um misto de medo e admiração. Sentia-se
acolhida, segura.

46
Palácio dos Alfinetes

Deitou-se na grama. Fechou os olhos enquanto o sol lhe aquecia.


Estava em cima de um morro. A paisagem era deslumbrante. Sentiu o
próprio coração aquecido, apenas pulsando em um ritmo especial.
Logo, arrastava as mãos sobre o caule de uma árvore próxima. A
textura era curiosa; estranhamente viva. Tudo parecia vivo ao seu redor.
Colocou-se de pé para olhar mais longe. Não havia apenas árvores e
grama. Avistou também prédios altos. Gostaria de conhecê-los. Não
demoraria muito para chegar.
Correu. Por alguma razão queria correr. Talvez porque nunca pudera
fazê-lo trancada no pequeno quarto. Mas parou.
Ao mesmo tempo em que se via livre para experimentar qualquer
coisa, também guardava o medo e a dúvida. Não tinha coragem de sorrir.
O que sentia era uma satisfação silenciosa. Não se atrevia a desfrutá-la
plenamente.
Caminhava olhando cada novidade que encontrava. E quantas coisas
novas! Algumas que apenas conheceu em inocentes figuras de jogos
infantis. Eram reais.
Até que chegou. Olhou para cima e seus olhos se perderam por
dentre os prédios altos. Era fantástico. Sentiu uma tontura repentina, que
não era de todo ruim. Ela tocava os objetos, cada um revelando-lhe
surpresas.
Até que as viu: as pessoas. Pessoas de verdade, como Papiloma lhe
disse.
Percebeu algumas semelhanças e diferenças entre ela e aquelas
pessoas.
Mas elas lhe olhavam estranho: com curiosidade, com surpresa ou até
talvez com reprovação. Observou a si mesma tentando adivinhar o que
estaria causando estranheza naqueles olhares. Aquilo a incomodava.
Talvez a textura de sua pele fosse levemente diferente; talvez
estivesse maquiada demais. Quem sabe seu belo vestido rodado de cor
vinho fosse muito arrumado ou sua figura fosse deslumbrante demais.
Papiloma lhe recomendou um lugar onde ninguém iria fitá-la de
forma estranha. O baile de máscaras iniciaria ao final da tarde. Ele lhe
conseguiu um ingresso. Ela retirou de dentro das vestes um pequeno
papel recortado. Havia nele um horário e um local. Não sabia bem como
funcionava o tempo e muito menos saberia se localizar. Estava

47
Juliana Duarte

completamente perdida. O tal baile dificilmente seria mais interessante


do que as experiências mágicas que estava desfrutando.
Deleitava-se suavemente, bebendo cada nova sensação.
Em meio às pessoas agitadas, que por alguma razão caminhavam com
pressa de um lado a outro, encontrou uma singela praça. Algumas
poucas árvores em meio ao ambiente turbulento, um banco, algumas
pessoas descansando perto de uma fonte. Resolveu ir até lá.
Foi quando viu a coisa mais linda que já havia encontrado até então:
uma pequena criatura de quatro patas, olhar maroto e língua de fora. O
cachorrinho branco abanava o rabo alegremente.
– De onde você veio? – ela perguntou a si mesma, maravilhada.
Abaixou-se, ajoelhando-se diante dele. O cachorrinho cheirou a mão
dela e continuou abanando o rabo. Ela experimentou tocá-lo. Com um
pouco de receio a princípio, acariciou sua cabeça.
O cachorrinho apoiou-se nela e cheirou-a freneticamente. Não lhe
importava que ele sujasse suas vestes. Nem mesmo tinha consciência
disso. Apenas maravilhava-se, divertia-se. Via naqueles olhos negros e
pequenos uma inocente alegria, tão bela como jamais sonhara. Ele o
olhava, ela o olhava. Entendiam-se e isso era o bastante.
– Branquinho! – alguém chamou – Branquinho!
Um menino pequeno vinha naquela direção. Usava roupas largas,
tênis e um boné.
– Te achei! Ainda bem que não foi longe.
Então ele já tinha dono.
– Olá – falou o garotinho – Vejo que vocês já se conhecem.
– Acabamos de nos conhecer – confirmou a garota.
– Esse é o Branquinho – falou o menino. Ela percebeu que o
cachorrinho tinha uma coleira azul amarrada ao pescoço – É meu
bichinho de estimação. E meu nome é Pedro. E o seu?
– Sangria.
– Que bonito. Nunca tinha ouvido antes.
Assustou-se ao perceber que o menino sorria. Era como Papiloma
lhe contou: as regras eram diferentes naquele mundo. Geralmente as
pessoas sorriam por simpatia, mas também poderiam sorrir por malícia,
por ironia e por muitas outras coisas que pareceu um pouco complicado
para que ela entendesse. Aquele mundo não era tão simples quanto o

48
Palácio dos Alfinetes

Palácio, mas ela sentiu que o sorriso era de simpatia. Ainda não se sentia
preparada para retribuí-lo, mas sentiu-se à vontade com o menino.
– Você sabe por que aquelas pessoas estão com tanta pressa? –
perguntou ela, apontando para homens e mulheres que andavam de um
lado para outro por dentre os prédios, como se soubessem exatamente
para onde ir.
– Aonde? – ele perguntou.
– Lá – ela apontou – Todos eles.
– Cada um quer chegar a algum lugar.
– E onde é esse lugar?
– Não, não – ele riu. Outra surpresa. Ele lembrava vagamente
Papiloma – Cada um deles vai a um lugar diferente. Cada um tem seu
caminho.
– E que caminho poderia ser esse?
Ele deu de ombros.
– Estão indo trabalhar, eu acho. Ou almoçar. Sempre têm coisas para
fazer.
– E por que eles estão com tanta pressa?
– Você acha?
– Eles poderiam parar um pouco nesse parque – falou ela – aqui é
bonito. Mais do que para onde estão indo, eu acho.
– É, tem razão. Deveriam parar.
O menino parecia estar se divertindo com a conversa. Será que a
estava levando a sério? Mas mesmo assim estava sendo simpático.
– Bem, tenho que ir – falou ele, segurando a coleira do cachorrinho.
– Você também? – perguntou ela, desapontada. Por um momento
pensou que eles poderiam ter se tornado amigos. Que ele poderia lhe
mostrar o local e conversar mais.
– Minha mãe está me esperando. Vamos almoçar também.
– O que é almoçar?
– Você faz umas perguntas estranhas – ele riu de novo – É quando se
come ao meio-dia.
– Meio-dia?
– Quando o sol está lá no alto.
Isso ela entendia.

49
Juliana Duarte

– Bem, estou com fome, você não está? Acho melhor você ir almoçar
também. Foi bom te conhecer. O Branquinho também gostou de você.
Tchau.
Ele nem lhe deu tempo de responder e foi embora, levando o
cachorrinho pela coleira. Ela parou para pensar. Será que estava com
fome? Nunca sentiu fome antes, mas talvez estivesse começando a
sentir.
O que estava acontecendo? Por que se sentia tão diferente? E não era
apenas a surpresa do mundo novo. Uma grande transformação tinha
acontecido dentro dela.
Ela resolveu sentar-se no banco e observar as pessoas que passavam.
Ainda não entendia a pressa delas, mas era muito interessante olhá-las:
ao mesmo tempo tão parecidas e tão diferentes.
Novamente voltou sua atenção ao pequeno pedaço de papel. Não
sabia como poderia encontrar o local do baile. Resolveu iniciar sua
busca, como Papiloma lhe indicou: procurando os nomes das ruas.
Caminhando pelas calçadas, ela percebia elaboradas vitrines de lojas.
Era curioso imaginar que até ali tinha vivido apenas nos fundos de uma
delas.
Parou diante de uma. Ela possuía diversos aparelhos eletrônicos:
computadores, televisores, DVDs, dentre muitas outras coisas das quais
nem ouviu falar.
Uma menina acompanhada de um homem apontava para a vitrine.
– Pai, eu quero aquele videogame! Eu quero!
– Depois, depois – falou o pai – Agora temos que ir.
– Mas eu preciso! Então eu quero aquele laptop. Por favor!
– Não, nem pensar.
Os dois saíram da frente da vitrine, mas a menina continuou
insistindo.
– Você nunca me dá o que eu quero!
Sangria tentou imaginar o porquê da negação daquele homem, mas
não conseguiu. Eram coisas demais para pensar. Continuou a caminhar
pelas ruas. Foi então que um forte som de buzina assustou-a tanto que
seu coração pulou.
Ela correu de volta para a calçada. Grandes máquinas barulhentas
atravessavam as ruas. Sangria imaginou que aquelas pessoas fossem as

50
Palácio dos Alfinetes

mais apressadas. Não simpatizou muito com os que andavam no interior


dos carros.
No início gostou muito daquele lugar grande e mágico, mas aos
poucos começava a desconfiar dele. Queria poder encontrar logo o
endereço do papel.
Andou muito. Mas tudo o que recebia era o olhar de reprovação das
pessoas ao redor. Por que elas a olhavam daquele jeito? Apenas por
causa de seu vestido? Ainda não tinha visto ninguém com roupas
parecidas com as suas. Gostava tanto delas. Ainda mais porque lhes
tinham sido dadas por Ele, como tudo o que teve até então.
Ao pensar naquilo, sentiu um pouco de culpa. Fez realmente o certo
ao fugir do Palácio daquela maneira? Por outro lado, por que O Alfaiate
nunca lhe contou sobre o mundo? Ele temia perdê-la?
Aquele pensamento a satisfez um pouco. O Alfaiate, com medo? Por
ela? Por um breve instante, sentiu como se ela O tivesse em suas mãos,
mas logo esse pensamento sumiu. Era exatamente o contrário. Ela era
prisioneira do Palácio e não possuía liberdade.
Porém, ia esquecer tudo aquilo, ao menos por um momento.
Resolveu que ia perguntar. Haveria algum problema em pedir
informações?
Uma mulher caminhava pelas ruas com pressa, como todos. Sentiu-se
culpada em pará-la. Afinal, ela tinha seu caminho.
– Com licença. Você sabe me dizer onde fica esse endereço?
Ela lhe estendeu o papel. E, para a sua surpresa, a moça parou. Leu o
papel com atenção e apontou.
– Está vendo aquela placa lá no final da rua? Vire à esquerda. Você
vai encontrar um restaurante. Fica na sobreloja.
– Muito obrigada!
– De nada – sorriu a moça.
E prosseguiu em seu caminho. Sangria, ainda parada, olhou a moça ir
embora. As pessoas sorriam bastante. Por alguma razão, aquilo lhe
pareceu bom.
Logo voltou a atenção para o local que a moça lhe indicou.
Caminhou até a placa no final da rua e virou à esquerda; andou mais.
Teve alguma dificuldade para encontrar o tal restaurante. Só encontrou
porque viu escrito em letras bem grandes.

51
Juliana Duarte

Bastava subir as escadas. Um bom tempo já havia se passado desde o


início de sua procura. O tal baile já devia estar começando. No instante
em que ela ia atravessar a porta, um homem de terno posicionou-se
diante dela.
– Boa noite, madame – falou ele, embora mal tivesse anoitecido
ainda.
– Obrigada – agradeceu ela, imaginando o que viria a seguir.
– Poderia apresentar o seu ingresso?
Ela mostrou o papelzinho.
– Seja bem-vinda – ele deu-lhe passagem – Sugiro que adquira uma
máscara no balcão, caso ainda não tenha a sua.
Sangria apenas concordou com a cabeça, com o olhar um pouco
curioso.
Atravessou um corredor. Antes da entrada, encontrou facilmente um
local em que estavam expostas dezenas de máscaras, as mais diversas
possíveis.
– Por favor, escolha sua máscara – falou uma mulher de vestes
coloridas por trás do balcão, com um sorriso.
Mas aquele sorriso não lhe sugeria muita coisa. Aceitou a sugestão e
começou a procurar. Todas eram belas. Por fim, escolheu uma máscara
dourada que experimentou colocar sobre os olhos.
– Linda! – falou a mulher – Veja, que beleza!
E colocou um grande espelho em sua frente.
Sangria levou um enorme susto. Ela aproximou-se mais do espelho,
devagar. Fitou a imagem que lhe era mostrada. Piscou os olhos. A figura
no espelho piscou também.
Era ela. Estava vendo o próprio rosto pela primeira vez.
– Deslumbrante, não é mesmo? – perguntou a mulher com animação,
interpretando errado a expressão de assombro no rosto da garota.
Ela logo foi atender outra pessoa que chegava. Mas Sangria
permanecia com o espelho diante do rosto. Olhava a própria face oculta
por trás da máscara.
Seu rosto. Como era possível? Estava fitando a própria face!
Devagar e com um pouco de medo, ela afastou a máscara. Fez isso
com muito cuidado, como se temesse fitar o próprio rosto.
E tirou a máscara.

52
Palácio dos Alfinetes

Sua face estava graciosamente maquiada. Seus olhos castanhos eram


vivos, embora se assemelhassem um pouco a vidro ou a plástico. Seus
lábios eram cuidadosamente delineados. Foi então que percebeu por que
as pessoas lhe olhavam estranho.
Sua beleza era tão perfeita que chegava a ser artificial. Apenas a
maquiagem disfarçava que seu rosto era de fato o de uma boneca. Era
algo entre um brinquedo e um ser humano. Ao mesmo tempo assustador
e gracioso.
– Não gostou da máscara, querida? – perguntou a moça.
– Gostei. Vou ficar com esta.
– Ótimo. Com licença.
E a mulher retirou o espelho de sua frente, colocando-o diante de
outra mulher que provava uma das máscaras do balcão.
Sangria suspirou. Recolocou a máscara nos olhos. Atravessou a
cortina para o interior do salão.

Espadas: Seção # 4.1

Por um breve momento foi bom.


Queria imaginar que tudo ia melhorar. Apenas naquele breve espaço
de tempo entre a consciência e a inconsciência, acreditar que ainda
encontraria uma saída.
Por mais que desejasse fingir, sabia que tudo era uma mentira. Aquela
odiosa esperança ia acabar. Talvez realmente quisesse livrar-se dela.
Aquele paraíso perfeito era falso. Não haveria como ser real. Alguma
coisa ia dar errado.

Ouros: Seção # 0.0

Um pássaro solitário voava.


O solo estava tomado por algodão branco. Flocos de algodão caíam.
Alguns deles eram minúsculos e davam ao céu uma graciosa tonalidade
rosada embranquecida.

53
Juliana Duarte

Uma árvore nua de galhos retorcidos era tudo o que se via por trás da
neblina de flocos brilhantes. No topo do galho mais alto, um ninho.
O pássaro solitário ainda voava. Ele dava voltas graciosas, em voos
cuidadosos e belos. Sua beleza era simples, embora profunda.
No topo do ninho, um ovo branco. Um raio de sol iluminava o ovo,
que mais parecia uma pérola brilhante, um tesouro de mares em cores
pastéis. Apenas uma brisa fria.
As voltas do pássaro eram repetidas, mas ele não se importava. O
pássaro pousou em um dos galhos. Piou baixinho. Silêncio.
Um lagarto se arrastava pelo chão.
– Saudações – cumprimentou o pássaro.
– Que fazes aqui, pássaro? – perguntou o réptil – Por que não estás a
voar longe para além dos limites dos olhos que fitam a paisagem,
juntamente com teu bando?
– Não posso fazer isso, lagarto – respondeu o pássaro, prontamente
– Preciso manter-me vigilante junto de meu ninho.
– E sacrificar os mais magníficos voos e aventuras jamais sonhadas?
– É preciso ou meu ovo ficará desprotegido.
– Há apenas um ovo em teu ninho. Que mal faria perdê-lo?
– E se fosses tu a cria deste ovo, lagarto?
– Se assim fosse, eu não teria nascido para sentir a dor de minha
própria perda.
– A tua resposta é estranha, lagarto. Não partirei. Teu interesse é
apenas fazer-me partir para o meu filhote devorares.
– Isso não é um filhote. Não mais que uma casca embebida em
molho decomposto. Um veneno para meu paladar. Não nascerá a tua
cria. Estará deformada e como uma abominação despertará. E tu
desperdiçarás a tua curta existência para morreres sem jamais sentires o
sonho do último vôo.
– Maldita é a tua língua. Que tristeza que sinto! Que deplorável!
– Tu o perderás e também a ti mesmo. Acaba com isso enquanto é
tempo.
– Que faço, que faço? – perguntou o pássaro, em desespero.
– Apenas canta tua última melodia. Desejo desfrutar de tua lacrimosa
mediocridade perante a destruição.

54
Palácio dos Alfinetes

O pássaro cantou; um som infinito, que até os confins dos céus de


algodão derretido atingia. Tal qual voo rasante e suicida, ele desceu da
árvore em desespero, embora fosse firme e harmoniosa sua melodia.
O lagarto abocanhou-o e devorou-o.

Espadas: Seção # 4.2

“Por que você foi embora...?


Eu queria que você estivesse aqui. Eu queria...”

A maca era arrastada às pressas. Ele entreabriu os olhos.


Não havia morrido. Aquela era provavelmente uma boa notícia. Não
conhecia aquele corredor de hospital.
Uma porta se fechou por trás dele. Teriam trancado-o em outro
quarto vazio? Seria uma decepção. Porém, tratava-se de uma grande sala,
com algumas camas separadas por cortinas de plástico. Ele foi colocado
em uma delas e ligado a um aparelho.
Sentia-se fraco. Muito mais doente que o normal. Talvez tivesse
exagerado um pouco. Havia apenas mais duas pessoas deitadas nas
camas da UTI. Em uma delas havia uma menina e na outra um garoto,
talvez da sua idade.
Estava demorando para ser atendido. Quando ela viria? Queria que
viesse. Por alguma razão, tudo parecia fazer sentido. Qualquer loucura,
apenas para estar ali. Sentiu orgulho de si mesmo. Porém, talvez estivesse
fraco demais para sentir qualquer coisa; ou para pensar.
Finalmente, depois de longos minutos, ela chegou. Viu-a por dentre
as cortinas de plástico, carregando apressadamente uma bandeja.
Sentiu-se feliz. Estava feliz! Jamais sentiu aquilo antes. Era a primeira
vez. Ou, se já sentiu, não se lembrava. Mas ela apenas atravessou o
corredor. Pouco depois já estava de volta, com mais pressa ainda.
Ela dirigiu-se até a cama do outro garoto.
– Como se sente?
– Acho que estou melhor, mas ainda sinto dor.
– Não se preocupe – ela sorriu – você ficará melhor. Vou cuidar de
você durante esta noite.

55
Juliana Duarte

– Promete que não vai sair daqui?


Ela fitou aquele garoto desconhecido com uma expressão de triste
alegria; a expressão mais terna que ele já viu nos olhos de alguém.
– Ficarei aqui ao seu lado. Eu prometo.
Ele observava tudo de onde estava.
Subitamente, virou-se na cama. Abraçou o próprio travesseiro.
Estava doendo; doendo muito. A pior dor que já sentiu. Muito pior
do que o sufocamento que lhe impediu de respirar. Ele tossiu; e
vomitou, sujando o chão.
Uma médica com expressão mal-humorada veio transferi-lo de cama.
Levou-o para ainda mais longe da enfermeira e do menino. Não sabia se
isso era bom ou ruim.
Não sabia mais o que pensar. Desconhecia se era tristeza ou ódio o
que sentia. Somente com uma grande força conseguiria conter todas
aquelas sensações que lhe rasgavam violentamente por dentro.
Quase sentiu pena de si mesmo. Estava sofrendo muito pela perda de
algo que jamais possuíra. E, ao mesmo tempo, queria que tudo
queimasse no inferno. Principalmente a enfermeira maldita.

Tubulação Semiótica G

Teu rosto de porcelana


Docemente moldado
Em graça e rica beleza
Faz-me desejar poder te mostrar a dor
O que me escondes por trás de tua maquiagem congelada?
O medo da deformidade
Ou o pesadelo da solidão?
A tua gentil indiferença perturba minha sanidade
E inspira meu delírio imaginário
Vou te confessar com minha língua
Os fantasmas das minhas farsas
A guilhotina que me asfixia
Inflamada de desgosto
Estática, pelo cheiro de tua tristeza desapaixonada

56
Palácio dos Alfinetes

Copas: Seção # 4.2: Valsa das Máquinas – Melodia Primeira

Era fenomenal.
O salão era enorme, com um grande teto decorado por luminárias.
Muitas mesas estavam espalhadas pelos cantos nas quais alguns
desfrutavam refinadas refeições. Um grande espaço no centro estava
aberto, no qual acontecia a dança.
Todos usavam belos trajes, vestidos lindos, roupas coloridas, as mais
diferentes e elaboradas máscaras. Como um sonho.
Finalmente a garota conseguiu sentir-se à vontade em meio a todas
aquelas fantasias. Entendia por que Papiloma escolheu tal lugar: era
simplesmente perfeito.
A música era tranquila, envolvente. Por vezes forte e inspiradora. No
mesmo instante, ela desejou experimentar a dança.
Sozinha, girou seu vestido rodado. Enquanto girava, fechava os olhos
e apenas sentia. Não pensava em mais nada.
Aquilo era mais do que o gosto da liberdade. Possuía um sabor muito
diferente e especial que ela não sabia explicar; e nem precisava.
A música, o som, a dança. Experimentou um novo passo. Ousou
mais uma vez, sem medo de fazer o que seu coração mandava. Era para
sempre espetacular.
– Aceita dançar? – alguém lhe perguntou.
Não poderia recusar nada naquela noite. Aceitou a mão que lhe era
estendida e os dois seguiram os passos da dança no grande salão.
O seu par usava uma máscara, como todos. Mas não precisou muito
para adivinhar quem era o sujeito baixo.
– Papiloma...! – falou ela surpresa, enquanto dançavam.
– Obrigado por vir – falou ele, em seus trajes multicores tradicionais,
embora adornados por uma máscara brilhante.
E sorriu. Logo os pares começaram a trocar. Vez ou outra
recuperavam os pares originais.
– Como se sente? – perguntou ele, ansioso em saber.
– Me sinto bem.

57
Juliana Duarte

Ele ficou contente com a resposta. E os pares trocaram. Pouco


tempo depois, voltaram.
– Aproveite o máximo que puder – falou Papiloma.
– Sim.
– E não saia atrás de nenhum príncipe encantado – riu-se Papiloma –
precisamos voltar ainda essa noite.
Ela não entendeu a que ele se referia, mas concordou. Depois de
encontrar Papiloma não poderia se perder dele ou jamais conseguiria
retornar sozinha ao Palácio.
Sim, ainda deveriam retornar. Aquela foi apenas a primeira prova.
Uma vez satisfeita, Papiloma lhe mostraria o caminho a ser seguido.
Mas não era hora de pensar naquilo. Apenas sentiria a música.
– Continue aí – falou Papiloma – Vou buscar algo para beber.
– Para beber?
– Sim, depois eu explico.
Ela continuou dançando enquanto Papiloma saiu. Ainda se divertia.
A música lhe satisfazia completamente. E os pares trocavam.
– Essa noite é especial – murmurou para si mesma.
– Ainda não é noite – alguém lhe informou – mas logo será. Já viu a
lua nascer no alto do morro?
– Não – respondeu Sangria – Onde é? É bonito?
– É lindo.
Um morro e uma lua. Ela ainda não conhecia o que era noite. Já se
divertira muito na dança. Estava na hora de assistir a um novo
espetáculo.
Mas não viu mais o sujeito que lhe dirigiu a palavra.
A dança continuava, mas ela estava intrigada. E Papiloma não
chegava. Resolveu sair do centro do grande salão. Tentaria espiar pela
janela para ver se enxergava a famosa noite. Porém, dali não veria muita
coisa.
Desceu as escadas do restaurante. Esqueceu-se até mesmo de
devolver a máscara no balcão de entrada. Quando deu por si, já estava
do lado de fora.
Algumas pessoas fantasiadas conversavam alegremente lá fora.

58
Palácio dos Alfinetes

Ela olhou para o céu, como uma mascarada princesa solitária.


Surpreendeu-se ao perceber que o firmamento mudou sua tonalidade.
Começava a amarelar-se no horizonte.
Ela deu alguns passos a frente, com os olhos para o céu. Desejava
seguir aquela luz. Embrenhou-se por dentre as árvores. Andou mais. O
céu ia escurecendo mais um pouco.
Subitamente, parou. Não sabia mais onde estava, de onde tinha saído
e para onde ia.
Porém, antes que se preocupasse, alguém passou por ela.
– Quer ver o pôr-do-sol?
Ele seguiu adiante por dentre as árvores. Ela apenas o seguiu. Depois
de alguns minutos de caminhada, ela percebeu que se dirigiam para o
morro que ela havia se deslumbrado em apreciar pela manhã. Naquele
final de tarde, ele estava quase assustador.
Chegaram ao topo. O sol já estava se pondo, colorindo o horizonte
de vermelho. O céu estava azul escuro com algumas nuvens enegrecidas.
Por algum tempo permaneceu perdida. Tudo aquilo era novo,
inacreditável.
Ela olhou para trás. Prendeu a respiração.
Uma lua enorme e amarelada surgia como se emergisse do interior da
terra. Ela não conseguiu pronunciar uma palavra. Apenas fitava o grande
globo brilhante com os olhos arregalados de susto. Sentiu-se pequena
diante da fúria do céu que parecia devorá-la; dos galhos das árvores que
agarravam-na como sombras de feras bestiais; da brisa de gelo que
penetrava em seu rosto como beijos impiedosos e apaixonados.
Ela sentou-se na terra debaixo de uma grande árvore, ainda a fitar o
espetáculo com admiração.
– Assombroso.
Ele encostou-se ao tronco da árvore, ainda de pé, e disse:
– Nem tanto. Depois você se acostuma e a magia desaparece.
– Não pode desaparecer.
– Mas vai. E tudo estará perdido.
Ela ficou um pouco desapontada.
– Ainda assim, foi bom – confessou ela – Eu vi ao menos uma vez o
que jamais poderia ter visto.
– E isso valeu a pena?

59
Juliana Duarte

– Sim – falou ela, com os olhos ainda a brilhar – Eu desejaria ficar


aqui para sempre, mas não sei se vou poder voltar mais. Isso me deixa
triste.
– Então talvez fosse melhor não ter visto.
– Talvez – ela baixou a cabeça – estou confusa. Fugi do cativeiro e
agora que provei o gosto da liberdade, não quero mais voltar.
– O que você fez para ser aprisionada?
– Acho que ninguém deseja que eu seja feliz. Ninguém se importa de
verdade. Por isso, estou aprisionada apenas por existir.
– Então somos iguais – falou ele.
Ela nada falou em um primeiro momento, mas sentiu alguma coisa
diferente ao ouvir essas palavras.
– Que quer dizer...?
– Eu não tenho ninguém – falou ele – sempre tentei me distrair para
esquecer a solidão, mas nem mesmo as maiores festas, as mais loucas
aventuras de meus sonhos e imaginações despertaram em mim a vontade
de continuar.
– Eu também não sei para onde devo ir – falou ela – Hoje eu vi
algumas pessoas na cidade. Alguém me disse que cada uma delas tem um
caminho, mas não entendo qual possa ser o meu; qual seria a coisa mais
importante, a que devo entregar a minha vida.
– Por que você precisa de uma coisa assim?
– Você me faz perguntas difíceis que não sei responder. Mas acho
que eu queria me sentir importante. Sentir-me alguém que faz diferença.
Está vendo aquele brilho?
Ela apontou para longe, em direção à cidade, em que as luzes dos
incontáveis prédios piscavam.
– Eu queria brilhar – falou ela – brilhar forte, porque mesmo se eu
desaparecesse, teria um momento especial para deixar aqui. E só por isso
já teria valido a pena.
– E eu queria brilhar como aquela estrela – ele apontou para o alto –
Lá do alto todos me veriam e eu seria venerado.
– Você é ambicioso demais. Quer que todos o venerem como um
Deus?
Ele deu de ombros.

60
Palácio dos Alfinetes

– Seria interessante. Mas para quem não tem ninguém, ao menos uma
pessoa bastaria.
– Uma pessoa para venerá-lo e torná-lo um Deus? – perguntou ela.
– Sim.
Ela suspirou.
– Você não sabe nada sobre solidão – falou ela – Você fala como se
realmente a conhecesse, mas não faz ideia do peso da minha vida.
– Isso é normal. Todos se consideram o ser mais miserável sobre a
Terra. É perfeitamente compreensível que você também se considere.
Ela não tinha certeza se gostava daquele sujeito. Porém, de alguma
forma, a sua ousadia sincera era interessante.
– O que achou do baile de máscaras? – perguntou ele, de repente.
– Foi bom. E você, o que achou?
– Uma chatice. Só pessoas ridículas vão lá.
Ela se sentiu um pouco ofendida, mas, obviamente, esta era a
intenção dele. Ela não se deixaria enganar.
– Está xingando a si mesmo – lembrou ela.
– É divertido fazer coisas tolas de vez em quando, não acha?
– Pode ser – respondeu ela, sem pensar.
– Mas a ideia das máscaras é boa. Você pode dançar com uma pessoa
conhecida e jamais descobrir sua verdadeira identidade. E, naquele
momento especial, realizar seu sonho de amá-la em segredo.
– Achei que estivesse procurando seguidores para adorá-lo e não uma
amante – lembrou ela.
– Sim, procuro escravos. Porque sou uma pessoa extremamente má.
A maneira com que ele falou, fez com que ela sorrisse. Ela riu
baixinho. Ela mesma se surpreendeu e sentiu uma sensação especial.
Aquilo era bom.
– Por que está rindo? – ele perguntou, seriamente.
– Você é engraçado. Não acho que seja uma pessoa má.
– Eu não vejo nada engraçado. Aliás, nunca vi.
– Você estava de máscara no baile – lembrou ela – E vejo que ainda
está até agora.
– E você com a sua.
– Deixe-me vê-lo sem a máscara.
Ainda de pé, encostado no tronco da árvore, ele respondeu:

61
Juliana Duarte

– Você vai acabar com todo o mistério. É muito cedo para isso.
– Não precisa mostrar seu rosto, se não quiser – falou ela.
Mas, para a sua surpresa, ele desencostou-se da árvore e sentou-se ao
lado dela.
– Ao mesmo tempo – falou ele, colocando as mãos sobre a própria
máscara.
Ela concordou. Não sabia por que, mas estava nervosa.
Os dois tiraram as máscaras. Ambos fitaram-se por um longo tempo,
em silêncio.
Estava muito escuro, mas era perfeitamente possível que ambos
distinguissem as faces um do outro pela luz da lua.
Ela observou com atenção o rosto dele. Nunca o havia visto na vida,
isso ela tinha certeza. Surpreendeu-se ao constatar que ele devia ser
apenas um adolescente, ou um jovem poucos anos mais velho que ela,
embora sua voz fosse relativamente grave. Talvez eles fossem um pouco
parecidos: os mesmos olhos castanhos; os mesmos cabelos negros,
embora os dele fossem um pouco mais cacheados e bem curtos.
– Você é real?
– Que quer dizer?
– Você tem rosto de boneca – falou ele – É assustador. Já se olhou
no espelho?
– Sim, uma vez – respondeu ela – Isso é um elogio ou...
Ele não respondeu. Apenas fitava-a com curiosidade, como se ela
fosse um ser esquisito, de outro mundo. Aquilo a incomodou um pouco.
– Pare com isso.
– Seus lábios são de carne ou de porcelana? – perguntou ele.
– Eu não sei – respondeu ela, inocentemente.
– Eu posso te dizer, se você quiser.
Ele se aproximou um pouco mais, mas ela recuou.
– Que está fazendo?
– É um beijo.
– Eu não sei o que é isso – disse ela.
– É quando os seus lábios tocam os lábios de outra pessoa.
Ela ficou em silêncio por um momento.
– Por que você faria isso?

62
Palácio dos Alfinetes

– As pessoas fazem isso quando gostam uma da outra – explicou ele


– ou quando querem fingir que gostam para enganá-las. Ou talvez
apenas por um desejo da carne. Se você é feita de pano ou de porcelana,
não entenderia.
Ela não notou que ele respondia naturalmente às perguntas dela, sem
qualquer estranheza. Ela permanecia um pouco receosa.
– Eu não sei como se faz. E isso seria uma coisa um pouco boba de
ser feita.
– Eu posso te mostrar – falou ele.
A voz dele era séria. Não aparentava ter nenhuma malícia ou
sentimentos por trás das palavras, como se falasse de algum assunto
exato e objetivo.
Ele aproximou-se mais. Ela recuou mais um pouco, mas não parecia
evitá-lo realmente.
– Meu beijo não vai te machucar. Eu prometo – falou ele – Do que
você tem medo?
Ela não respondeu. E permitiu que ele se aproximasse.
Foi algo muito leve. Os lábios apenas se tocaram. O beijo prosseguiu,
com a mesma leveza. Porém, eles ainda estavam distantes.
Ele se aproximou um pouco mais. Colocou as mãos sobre as vestes
dela e se distanciou quase imediatamente, com o mesmo cuidado, como
se soubesse exatamente o que fazia.
– Ah... não... – a respiração dela falhou por um momento. Alguma
coisa estava errada. Não deveria ser assim – Você prometeu...
– Eu prometi que meu beijo não iria te machucar. Mas nunca falei
que não iria fazer isso por outros meios.
Ela curvou-se para frente, sem ar. Colocou as mãos sobre a própria
barriga. Ela estava aberta. E, para a sua surpresa, misturado ao algodão
branco havia mais coisas estranhas lá dentro. Ela fitou a própria mão.
– Sangue...? – falou ela, baixinho, mas evidentemente aterrorizada.
Ela levantou os olhos. O rapaz a fitava com a mesma expressão séria.
Na mão direita segurava uma grande tesoura. Dela pingava um líquido
vermelho.
– Como eu suspeitei. Você estava começando a se tornar humana.
Isso é lamentável. Se não tivesse escolhido esse caminho, jamais estaria
sentindo dor agora. Você nunca havia conhecido a dor. Ainda és metade

63
Juliana Duarte

humana e metade boneca. Não está sentindo nem metade do que deveria
sentir ao ter a barriga dilacerada.
– Por quê...? – perguntou ela, tomada de terror.
– Como eu disse, as pessoas podem beijar as outras quando querem
fingir que gostam delas para enganá-las. Geralmente elas têm algum
interesse nisso. E eu já consegui o meu prêmio.
Ele levantou-se. Trajado com seu elegante terno negro, retirou a
cartola.
– Respeitável público. Nesse momento, hei de anunciar o meu mais
novo número. A mais extraordinária e desejada mágica de todos os
tempos: a arte de torturar e matar pessoas e bonecos de segunda linha.
Nem mesmo é necessário tocá-los. Mas, caso seja de seu agrado, você
pode começar a retalhação com a tesoura que acompanha nosso kit.
Com um breve aceno de sua mão encoberta por uma luva branca
parcialmente ensanguentada, ele pronunciou uma palavra:
– Copas.
E retirou de dentro da cartola um leque de três cartas de baralho,
mostrando-os imediatamente para a garota ajoelhada no chão.
Ela fitou-o com uma expressão de extremo terror.
– Não...!
Ela gritou, rasgando sua pouca voz em meio ao desespero repentino.
Seus olhos estavam esbugalhados e tomados pelo horror. Sua face
graciosa mudou completamente.
Ele permanecia a mostrar a ela o leque das três cartas. Apesar de não
sorrir, a satisfação em sua voz era evidente.
– Do que você tem medo, Sangria? Medo de desaparecer? Antes de
ter brilhado? Mas eu prometo que você vai brilhar.
De dentro do bolso da calça ele retirou um isqueiro. Posicionou-o
logo abaixo das cartas, acendendo-o.
– Ainda quer brilhar?
Ela estava assustada demais para responder. Ainda no chão, ela
abaixou-se, colocando a cabeça por cima dos joelhos.
Ele logo apagou o isqueiro e guardou-o. Recolocou a cartola na
cabeça.
– Não se preocupe. Ainda não estou tão dramático. Não com você,
pelo menos. Podemos fazer um trato.

64
Palácio dos Alfinetes

Ela levantou os olhos. Sua expressão ainda era de susto, mas não
havia uma só lágrima em seu rosto.
– Não adianta tentar chorar – falou ele – você jamais seria capaz
disso; não é humana o suficiente. E não queira humilhar-se a esse ponto.
Ele abaixo-se um pouco mais, aproximando as três cartas do rosto
dela.
– Escolha uma.
Silêncio.
– Não, espere. Tenho uma ideia melhor. Vou tornar o jogo mais
interessante.
Ele virou as cartas ao contrário, de modo que só ele visse as figuras.
Estendeu o leque para Sangria.
– Agora sim. Retire uma – falou ele, como se estivessem apenas
tendo uma conversa tranquila em meio a um jogo de cartas.
Ela não o fez imediatamente. Estava nervosa demais.
– Mas se quiser que eu fique com as três, não há problemas.
Devagar, ela estendeu a mão. Parecia ter esquecido completamente a
grande dor na barriga. E puxou uma carta.
– Muito bem. Olhe-a.
Em suas mãos estava a Dama de copas.
– Você teve sorte. Muita sorte.
Ele levantou-se e deu um passo para trás. Fitou as duas cartas em
suas mãos.
– Eu poderia cortá-las ao meio, mas você já está estragada o
suficiente nessa parte do corpo. Além disso, não sou tão bonzinho assim.
Como você deve recordar, eu sou uma pessoa extremamente má.
Ela apenas permanecia a fitá-lo.
– Por que não ri agora, Sangria?
Sem aviso, no segundo seguinte, ele partiu as duas cartas com um
corte de tesoura.
Sangria não tinha voz para expressar a dor extrema. Ela jamais
poderia ter imaginado que pudesse existir sensação tão horrível. Mal
tinha forças para sustentar-se nas pernas ajoelhadas. Sua cabeça tombou
contra o chão.
– Agora posso dizer que você realmente conhece a dor – falou ele –
mas não se preocupe. Não precisa levantar agora. Permito que você

65
Juliana Duarte

agonize por um momento, mas quero vê-la pela manhã no Palácio. E


não ouse pedir a ajuda de Papiloma. Se fizer isso, eu vou providenciar
para que o precioso presente que ainda lhe resta seja roubado. E,
finalmente, lhe concederei o brilho das estrelas.
Ele jogou o resto das cartas despedaçadas no chão. Recolocou a
cartola negra de sua fantasia de mágico e retirou-se.

Paus: Seção # 4.4

– Verme no Chão – chamou A Ampulheta – Fale-me um pouco


sobre a desgraça.
– Eu não podia fazer nada.
– E agora, o que você pode?
– Sou apenas um verme no chão.
– Isso é muito confortável. Gabar-se de sua condição dessa maneira e
usá-la como desculpa de seu fracasso.
– Tive as minhas vitórias.
– Mas se elas tivessem sido completas, você não seria aquilo que é. E
nem se lamentaria.
– Deixe-me! – clamou O Verme no Chão, de repente – Oh, por
favor, deixe-me! Essa tortura é longa. É interminável. Ele que foi feliz.
Sim, Ele foi feliz!
E chorou.

Tubulação Semiótica D

Por que estás tão quieta?


Sei que tua pele está descosturada
Mas muitos mimos ainda posso bordar
Em teu tecido amarrotado
Pincéis, alfinetes e rendas
Porém tua boca
É friamente lacrada por presilhas de ferro
Como eu gostaria de namorar em coma

66
Palácio dos Alfinetes

Ardentemente desejo
Beijar meu câncer
Coçar a minha lepra
Sorrir para minha cólera
Prisioneira da cela de meus repúdios apaixonados
Tudo o que eu queria
Era aprender a amar

Copas: Seção # 4.3

Chovia.
As gotas caíam fortes e decididas. A cidade estava encoberta pela
água naquela madrugada. Esquecida no alto do morro, por dentre as
densas folhagens e galhos retorcidos, jazia uma figura no chão.
Estava calada; chocada. O olhar vago e sem vida.
As gotas caíam.
Ela não se mexia. Era apenas uma figura caída com o olhar perdido.
Os olhos arregalados fitavam com atenção lugar nenhum.
Os seus belos trajes estavam ensopados e enlameados. Seus longos
cabelos negros embaraçados pelo chão.
A sua barriga estava aberta. Porém, o sangue não era imediatamente
notado. Algodão vermelho e branco saltava para fora. Aquela parte das
vestes estava cortada.
O seu rosto encostava-se ao chão. Ela repousava uma mão próxima a
ele e a outra mantinha estendida. Um dos joelhos estava dobrado e o
outro esticado, como se ela simplesmente tivesse se jogado no chão e
não se mexido desde então.
O barulho da chuva nunca se interrompia. Pedaços de cartas de
baralho espalhavam-se, imersos nas poças d’água ou ocultos pela lama.
A purpurina barata da máscara dourada se esvaía com a chuva.
Um morcego sobrevoou o local e escondeu-se no interior do tronco
oco da árvore diante dela.
– Por que uma princesa jaz no chão?
Sem mover os lábios, ela respondeu.
– Não sou princesa, criatura. Sou retalhos.

67
Juliana Duarte

– Sim, vejo em tua face. Já fitou teu rosto?


– Apenas antes de minha deformação – ela respondeu – não ousaria
fazê-lo agora.
– Vi um mágico partir há algumas horas – falou o morcego – Não
possuirá ele a cura?
– De fato ele tudo possui, mas não a vontade de ofertar-me.
– É triste ver-te nesse estado, bela princesa. Mas sinto que eu
realmente queria isso.
– Você gosta?
– Meu gosto é refinado. Mas é curioso que de tua chaga saia algodão
para absorver teu soro. Com tal ferida devia estar morta.
– Eu sou zumbi, criatura. Apenas uma besta jazendo na lama.
– Compreendo. O mágico é traiçoeiro. Realizou um bom trabalho.
– Mas agora saia. Deixa-me jazer em paz.
– Com a licença da princesa – falou o morcego, antes de desaparecer
como uma sombra por dentre as folhagens.
Nada havia no tronco.
Começava a sonhar. Aquilo não era exatamente ruim. Dois fantasmas
apareceram; um fantasma branco e um fantasma negro. Eles
sussurravam.
– Do que tens medo, linda dama?
– Por que a indiferença, majestosa rainha?
– Esse é apenas o eco de minhas farsas. Que querem?
– Assombrá-la – falou um deles – Afinal, é isso que os fantasmas
fazem.
– Assim como os mágicos fazem magias divertidas – acrescentou o
outro.
E surgiu um palhaço.
– Assim como os palhaços riem!
Surge um fantoche:
– E os fantoches são manipulados.
– Deixem-me jazer!
E tudo sumiu de sua mente.
O abandono. As aparições eram o vazio.
Quatro morcegos escapam de dentro do tronco oco. Cada um segura
em uma ponta do vestido e erguem-na pelo ar.

68
Palácio dos Alfinetes

– Contempla a cidade, princesa.


Ela contempla, levantando cada vez mais alto. As luzes ao longe
piscam. O show das luzes.
– Cobiço com malícia o show das luzes – sussurrou ela – Desejo ser
luz.
Ela sente um grande brilho. Um quinto morcego chega ao alto,
carregando sua máscara.
– Voa, princesa! Voa alto!
E repousou a máscara em frente aos olhos dela.
– Reina. Reina!
Ela juntou as mãos no peito, estendendo a carta da Dama de Copas.
– A coroa...!
O voo era mágico. Ela voava cada vez mais alto.
– Que a terra se levante!
Brotou uma elevação da terra, que crescia cada vez mais. No topo
dela, estava a árvore de sua desgraça. Seus galhos se ergueram e
retorceram-se, até formarem um trono macabro.
Sob a chuva, levada pelos morcegos, ela sentou-se no trono. Com o
rosto de lado, sentia a chuva derramar-se. Uma coroa de folhas secas
surgiu em sua cabeça. Então percebeu que se tratava de um ninho. Por
cima dele, havia um ovo.
Ela segurou o ovo entre as mãos. Observou-o atentamente.
– Criaturas, que monstro nascerá deste ovo?
– Você sabe o que nascerá – respondeu o morcego – você entende.
As árvores cresciam cada vez mais, envolvendo-a com os galhos,
como se avidamente desejassem o objeto em suas mãos.
A lua avermelhava-se no céu.
– A lua está chorando – falou um morcego.
– Ela foi ferida, princesa. Ela foi ferida!
Ela apenas baixou os olhos.
– Mas isso é... triste demais.
A chuva ainda caía. Seus longos cabelos molhados cobriam sua face
por completo. Ela retirou a máscara do rosto. Decidida, ergueu os olhos.
Manteve-se de pé no trono e ergueu o ovo ao alto.
– É a lua...! – descobriu ela, maravilhada.
– A lua está morta – lamentou-se um dos morcegos.

69
Juliana Duarte

Todos os morcegos lamentaram a morte da lua, apavorados.


– Criaturas, eis o rebento do globo luminoso em minhas mãos! –
clamou ela – Aqui está seu filho. Ele nascerá.
– Ele nascerá! – clamaram todos – Bravo, princesa!
Lobos negros escalaram os galhos e cobiçavam o trono.
– Eles desejam avidamente uivar para a lua! Mas onde está a dama
branca?
– Onde está a dama branca? – repetiram todos os morcegos.
Todos os lobos uivaram e se ajoelharam diante do ovo das mãos dela.
– Ela nascerá muito em breve.
Ela estendeu os braços. Os cinco morcegos penetraram na abertura
de sua barriga. Enormes e fenomenais asas negras de morcego rasgaram
as suas costas. Ela ergueu-se no ar, voando com as grandes asas. Deixou
escorregar de suas mãos a máscara.
Ela abraçou o ovo branco. Ao voltar seus olhos para baixo, nada
mais havia. As árvores do morro se recolheram.
Ela experimentou uma gloriosa queda. Começou a cair.
E caiu. Piscou os olhos. Colocou as mãos ao redor, tateando.
Onde esteve sua mente? O que fazia no chão?
Percebeu que seus lábios jamais tinham se movido. Ela fitou o tronco
oco da árvore. Vazio.
Sentia uma sensação estranha. Por um momento ela reinou e foi
especial.
Com fraqueza, retirou de dentro das vestes a carta.
Contemplou a figura majestosa da Dama de Copas. Era sua. Ela
ainda a tinha. Estava viva. Deveria manter seu pensamento concentrado
nesse último lapso de solidão. Antes que se atrevesse a fitar o próprio
rosto.

Teatro de Marionetes: Quarto Ato – Deuses

(entra um Deus)
PRIMEIRO DEUS: Não serei eu digno de ser adorado? Por que não
me dá um gole de tua taça? Ou é em copos que bebes teu alimento
liquefeito?

70
Palácio dos Alfinetes

(entra outro Deus)


SEGUNDO DEUS: Adorar-te? Jamais! Pois sou eu aquele digno de
tal honra. Como poderá haver dois Deuses? Sou eu o real, único e
verdadeiro. A reputação não há de tirar-me. Antes me enforca. Libera
teu impedimento com astúcia caso desafiar-me seja tua ambição.
PRIMEIRO DEUS: Não vês a minha majestosa presença? Teus
olhos não se ofuscam ante minha figura? Nada mais tenho a dizer!
SEGUNDO DEUS: Ah, fanfarrão! Malfadado asno! Quão pobre é o
discurso de tua língua. Assim já ganho sem nem mesmo ter a batalha
começado.
PRIMEIRO DEUS: Assim vejo o compasso de tua avaliação. Mas
erras. Eu sou O Sapateiro! Conquista O Sapateiro, se te atreves a tanto!
SEGUNDO DEUS: Fita então meu espanador de ouro! Sou eu O
Espanador! Ousas levantar a voz diante d’O Supremo Espanador?
PRIMEIRO DEUS: Ferve meu sangue ao sentir da batalha seu início.
Entroniza a fumaça hospitaleira e atira a flecha.
SEGUNDO DEUS: Louvado seja meu jantar! Ajoelha-te diante de
mim! Multa meu cérebro avantajado, Mofado Sapateiro!
PRIMEIRO DEUS: Espana o pó de meu microscópico massacre!
Inda hei de assassinar os micróbios de meu carpete!
(os dois começam a luta. Entra outro Deus)
TERCEIRO DEUS: Este é meu reinado! Pois eu sou O Manequim!
SEGUNDO DEUS: Quem obterá a coroa?
PRIMEIRO DEUS: Pois eu sou A Coroa!
(os dois Deuses se ajoelham diante do primeiro)
PRIMEIRO DEUS: Era mentira!
(a briga recomeça entre os três)

Espadas: Seção # 4.3

Estava de volta ao hospital.


Provavelmente não deteriorou o próprio corpo o suficiente. Deitou-
se novamente na cama. Pôs-se a contar os quadrados de seu cobertor.
Aquilo não era muito emocionante, sendo que ele já saberia o resultado.

71
Juliana Duarte

Automaticamente voltou seus olhos para o alto para observar a teia


de aranha. Teria ela capturado um mosquito?
– Sorvete!! – gritaram da janela – Olha, olha o sorveteee!!
Ele virou-se na cama. Olhou embaixo dela e alcançou seus utensílios
habituais. Porém, as figuras do livro de ciências já não lhe interessavam
tanto.
Curioso, como sempre fazia, tentou descobrir as novas bagunças da
menina que ficava em seu quarto enquanto estava fora.
Tudo estava normal como sempre: a parede estava suja, a lâmpada
continuava queimada e ele continuava entediado. Mas não ia lamentar
por causa disso.
Se ameaçasse pular da janela, alguém se importaria em lhe salvar?
Ele levantou-se da cama. Aproximou-se da janela. Nem mesmo
atreveu-se a olhar para baixo. Talvez porque, se chegasse mais perto,
pudesse se descontrolar e realmente pular. Ele afastou-se.
Tinha medo de janelas.

Copas: Seção # 4.4

– O que me contou é...


– Abominável – completou ele.
– Você sabia que isso não poderia acabar bem.
– Que escolha eu tinha? Você acha que teria sido melhor ela jamais
ter saído? Permanecer trancada no Palácio para sempre?
– Não sei se esse foi o melhor caminho.
– Ela estava feliz.
Chaga estava sentada num canto, distraindo-se em jogar para cima
uma moeda. Porém, desde que a conversa começou, ela a deixou de lado.
Outro jogo de tabuleiro também estava espalhado pelo chão. A garota
trajava seu curto vestido rodado roxo, como de costume. Havia
acrescentado presilhas nos cabelos curtos e negros mesclados de roxo.
Papiloma usava suas espalhafatosas vestes multicores tradicionais,
que também utilizou no baile de máscaras. Mas apenas lembrar-se disso
já lhe doía.
– Ainda não falei com ela – confessou Papiloma, baixinho.

72
Palácio dos Alfinetes

– Imagino qual será sua reação.


– Eu não – falou Papiloma – e nem quero.
– Ela já conversou com O Alfaiate?
Apenas a menção desse nome fez com que Papiloma se sentisse
incomodado. Se ele não o atingia diretamente, dessa vez o fez através de
Sangria.
– O Quarto e o Quarto de Hóspedes agora estão proibidos – falou
Papiloma.
– Onde está Sangria agora?
– No Quarto de Casal – respondeu Papiloma.
Chaga balançou a cabeça em desaprovação.
– O Alfaiate é um desgraçado.
– Bem, você é a única que tem coragem de dizer isso por aqui – falou
Papiloma, com um leve sorriso.
– E você – acrescentou Chaga.
– Sim, e eu. Agora devo retornar ao Armário do Corredor Sem Fim.
– Vamos jogar alguma coisa. Ainda é cedo para ir embora.
– Os seus jogos são de sorte – falou Papiloma – Dados, moedas,
caça-níqueis... eu gosto de jogos de estratégia, de desafios, talvez de jogos
cômicos...
– De charadas? – perguntou ela, astutamente.

Espadas: Seção # 4.4/4.5

“Há alguma visita?


Tem alguém aí?
Por que ninguém vem?
Faxineira, você está aí?
Aranha da teia, você vem?
Não tem ninguém aqui.
Já estou acostumado.
Eu não deveria sentir falta das pessoas. Eu só preciso de mim
mesmo.
Só de mim mesmo...”

73
Juliana Duarte

Tubulação Semiótica C

Teu sorriso moldado


Nos laços de fita de teus cachos de prata
Vou apagar
Quando de ti arrancar teus segredos
Eu não sou uma boa garota
Vou sorrir ao te ver chorar
Tua face é de leite
Mas teu coração é infeccionado
A agulha estava enferrujada
Queres provar do meu doce predileto?
Por favor, dá-me a chave de cobre
Do Palácio do Silêncio
Não tenhas medo da tentação
Cede só um pouco mais
Prometo cauterizar a tua chaga, minha guardiã
Depois de despedaçar teus ossos

Paus: Seção # 2.0: Valsa das Máquinas – Melodia Segunda

A casa estava abandonada.


Poucos se atreviam a pisar nos arredores: uma velha casa de títeres,
de madeira caindo aos pedaços, construída próxima a um antigo jardim.
Logo após um lago de águas cristalinas, viam-se os escombros de um
cemitério. Ninguém sabia ao certo se havia gente enterrada ali já que,
segundo se dizia, ele foi fechado algumas semanas após aberto.
Duas figuras esgueiravam-se por detrás das árvores.
– Isso não vai dar certo... – reclamou o menino – é melhor
voltarmos.
– Ah, qual é, você está com medo – falou a menina de chiquinhas.
– Não estou.
– Da próxima vez vou vir até aqui com um amigo mais corajoso.

74
Palácio dos Alfinetes

– Pare com isso. É porque já é noite. Dizem que a essa hora os


fantasmas do cemitério acordam para assombrar os vivos. Eles arrancam
cabeças e...
– Fique quieto! – murmurou ela, em um grito sussurrado – Vão
escutar você!
– À noite as almas penadas jogam pôquer com...
– Onde você ouviu tantas bobagens? Fantasmas não arrancam
cabeças. Porque fantasmas não existem. Entendeu?
– Entendi, mas...
– Só mais alguns passos até a porta.
Ela o segurou pelo braço. Os dois correram encobertos pela noite
escura.
– Aqui estamos – sussurrou ela, maravilhada diante da porta de
madeira caindo aos pedaços.
– Está maluca? – reclamou ele, tremendo – Vamos ser esquartejados!
– O que é ser esquartejado?
– É... alguma coisa bem ruim. E é isso que vão fazer com a gente.
– Quem? Os fantasmas? Você é medroso mesmo.
O garoto fitava fixamente o topo da porta, decididamente em pânico.
– O que foi? – perguntou ela – Não me diga que quer voltar agora!
Ele apenas apontou o dedo para cima. A menina percebeu uma placa
de madeira com algumas letras apagadas.
– “Casa dos Fan...” “Fanto...”
– Fantasmas! – exclamou o menino, pronto a sair correndo dali.
– Não é “fantasmas”. É “fantoches”! Não está vendo?
– Ah, é... é mesmo. Fantoches é melhor do que fantasmas... eu acho.
– Aposto que ninguém nunca chegou tão longe! – falou ela, com um
grande sorriso.
– Que bom. Agora vamos voltar.
– Vamos entrar.
– Quê? Nem pensar! Não está satisfeita em vir até aqui?
– Não – respondeu ela, empurrando a porta e o arrastando para
dentro.
A porta rangeu por trás deles.
– Não estou enxergando – murmurou ele – Por favor, vamos
embora...

75
Juliana Duarte

– Só mais alguns passos. Quero levar algum objeto da casa para


provar que vim aqui.
E tateou os arredores em busca de algo. Sentiu seu pé tocar alguma
coisa. Ela abaixou-se para segurar. Seus dedos tocaram alguma coisa de
pano.
– Que sorte! Uma boneca! Quero ver.
Ela voltou alguns passos e aproximou a boneca da luz vinda da fresta
da porta.
Tratava-se realmente de uma boneca de pano. Ela trajava um longo
vestido negro e os cabelos da mesma cor estavam trançados.
– Já chega – falou o menino – Isso já foi longe de...
– É tão linda...! – falou ela, encantada, acariciando os cabelos negros
da boneca.
A porta bateu por detrás deles. A pouca fonte de luz sumiu
completamente.
– Isso é meu – sussurrou uma voz rouca muito próxima.
A menina quase caiu para trás, de susto. Uma vela acendeu-se.
A luz iluminou outro rosto em sua frente: enrugado, assustador e
deformado. Ela gritou. O menino gritou logo em seguida, ainda mais
alto.
– Bruxa! – exclamou ele, aterrorizado, tentando sair pela porta; mas
ela estava trancada.
Ela não lhe deu atenção. Fitava a garota com a boneca na mão.
– Você já conhece a Menarca, garotinha? – perguntou a velha
senhora com voz rasgada, apontando a boneca.
Ela apenas a fitava com uma expressão de horror.
– Não, acho que não – concluiu a anciã – você é muito jovem. Ainda
gosta de brincar de bonecas...
E deu uma sonora gargalhada, acompanhada por mais duas risadas
vindas dos fundos da casa.
– Eu sou ela – explicou a anciã apontando a boneca – e ela sou eu.
Ela me pertence.
Mais duas anciãs encapuzadas aproximaram-se.
– Você conhece a Angina, menina? – perguntou a segunda anciã com
uma voz desanimada, estendendo outra boneca.

76
Palácio dos Alfinetes

– Ou Moebius...? – perguntou a terceira, estendendo uma terceira


boneca.
– Você realmente deseja essa boneca, docinho? – perguntou a
primeira anciã – Então vamos fazer um trato: façamos um joguinho. Se
você ganhar, fica com a boneca. Mas se perder, ficará trancada nesta casa
para sempre.
O menino caído no chão parecia que não conseguiria mais falar.
– Promete que me deixa sair? – perguntou a menina.
– Se ganhar o jogo.
A menina estava hipnotizada demais pela beleza da boneca para
recusar. Levantou os olhos decidida, pronta a vencer o medo.
– Eu aceito.
As três gritaram sonoras e insanas risadas de satisfação. Ergueram os
braços e passaram a girar e a dançar por dentro de suas capas negras,
rindo cada vez mais alto.
Um buraco abriu-se no chão. Uma nuvem de névoa levantou-se.
Alguma coisa começou a subir lentamente.
As duas crianças apenas fitavam o espaço, ao mesmo tempo curiosas
e temerosas.
Por fim, o grande objeto subiu e mostrou-se completamente: uma
imponente roca.
– Eis a Roda da Fortuna! – exclamou Angina.
Cada uma das anciãs sentou-se numa cadeira de madeira próxima à
roca enquanto a névoa se dissipava pela janela aberta. A luz da lua
minguante iluminava um pouco mais a sala escura, outrora clareada
apenas pela luz de uma vela.
– Sabem o que é a Roda da Fortuna? – perguntou Moebius.
Os dois balançaram a cabeça em sinal de negação.
– É a vida – respondeu Menarca, misteriosamente.
– Um dia o seu fio foi fabricado – explicou Moebius, com um fio por
entre os dedos – por uma habilidosa tecelã.
– Uma vez fabricado, na roda irá girar – prosseguiu Angina – às vezes
se posicionará no topo, sua parte mais desejável – ela girou a roda –
outras vezes no fundo, a parte menos desejável. Eis a boa e má sorte do
ser humano.

77
Juliana Duarte

– Mas por mais que o fio gire na roda e se estenda, não poderá
permanecer para sempre – falou Menarca – Vocês sabem o que acontece
com seu fio nesse momento?
Ela retirou uma tesoura de dentro da capa e, erguendo o fio,
imediatamente cortou-o, com dramaticidade.
– É belo, não é mesmo? – perguntou Menarca, parecendo de fato
maravilhada.
O garoto estava definitivamente horrorizado, mas a garota não se
conteve:
– E quem corta o fio das tecelãs que giram a Roda da Fortuna?
Menarca não gostou da pergunta. O teatrinho não estava criando o
efeito que desejava.
– Isso, é claro, é apenas uma lenda antiga. Mas é a partir dela que
nosso jogo se inicia. Você gosta de adivinhações?
– Acho que sim – respondeu a garota.
– Então vai gostar de nosso jogo de charadas.
– A linha iniciará na roca – explicou Moebius – e passará três vezes
pela roda.
– Quando a linha for cortada, o jogo estará terminado – acrescentou
Menarca.
– Só isso? – perguntou a garota, que esperava alguma coisa mais
emocionante.
Mais uma vez, Menarca incomodou-se com a pergunta
inconveniente.
– Não – respondeu Menarca – há mais.
Ela arrastou uma quarta cadeira.
– Aproxime-se – convidou ela – sente-se.
– Não acho uma boa ideia... – murmurou o garoto.
A menina, abraçada à boneca, deu alguns passos à frente. Sentou-se.
– Agora, para garantir que não vai fugir correndo com meu tesouro...
Ela ergueu uma longa e grossa corrente e lentamente enrolou-a na
garota, prendendo-a firmemente à cadeira. Trancoua com um cadeado de
ferro.
– Vamos começar – anunciou Menarca.
– Você terá três chances – explicou Moebius.
– Basta acertar uma delas – acrescentou Angina.

78
Palácio dos Alfinetes

As falas pareciam cuidadosamente ensaiadas. A menina apenas


confirmou com a cabeça. Moebius posicionou o fio na roca.
– Número um – começou Moebius – Quando o feto já formado
rebenta do ventre, um desejo satisfazer anseia sem demora. Revela-me,
pois, seu objeto de desejo!
A menina ficou um pouco confusa:
– O que o bebê quer quando nasce? É essa a pergunta?
– Não ouse estragar a poética das charadas! – exclamou Menarca,
interrompendo.
– O bebê quer sua mãe – respondeu a menina, simplesmente – Essa
foi fácil. Posso ficar com a boneca, então?
– Resposta errada – falou Moebius.
– Como assim? – perguntou a menina – O que ele quer? Respirar?
Qual a resposta, afinal?
– Leite.
– Isso está errado! – protestou ela – Não é a primeira coisa que o
bebê deseja. Vocês roubaram. Não quero mais brincar.
– Ao que parece, na primeira resposta a linha tocou o fundo... –
observou Angina girando a roda, fingindo indiferença – Uma pena...
A roda rangeu ao girar o fio.
– Preparada para a segunda pergunta? – perguntou Menarca.
A menina deu de ombros.
– Não tenho escolha mesmo...
– Número dois – começou Angina – O medo, o terror, o susto. A
aparição esbranquiçada dos pesadelos infantis, a mais mórbida liquefação
existente, covardemente embalada em transitório material sintético.
A menina ficou sem fala em um primeiro momento.
– Hein?
– Em outras palavras – esclareceu Angina – a coisa mais assustadora
do mundo.
– Fantasmas – sussurrou o menino, tremendo de onde estava.
– Ei, sou eu quem responde! – reclamou a menina.
– Ora, deixe o menino tentar – falou Menarca – vamos lá.
– Rodas giratórias – falou ele, com voz fraca – neblinas, tesouras,
bruxas de capa...
– Uma resposta! – interrompeu Menarca, aborrecida.

79
Juliana Duarte

– Fantasmas.
– Não, está errado! – interrompeu a menina – A minha resposta que
vale!
– Responda então. Qual a coisa mais assustadora do mundo?
– O medo – respondeu ela.
Por um momento fez-se silêncio.
– Errado – falou Angina.
– Mas... como...? – ela mal podia acreditar – Eu tinha certeza de que
iria acertar essa! Diga-me então a solução!
– Leite – respondeu Angina, girando a roda.
– Leite?! – ela estava definitivamente indignada. Perdeu todo o seu
medo diante do absurdo da resposta – A mesma solução duas vezes!
Leite não é a coisa mais assustadora do mundo! Eu gosto de leite. Leite
com achocolatado!
– Mais uma rodada ao fundo – falou Angina.
A menina praguejou.
– As crianças de hoje já não são tão educadas como antigamente –
observou Menarca – Terceira e última chance. A minha charada...
embora todas sejam minhas, é claro.
– Não precisa nem dizer – falou a menina, monotonamente – já sei a
resposta.
– Escute com atenção – alertou Menarca – Número três. Branco,
pouca nata, insuportável, indesejável...
– Leite – interrompeu a menina.
– Errado – falou Menarca.
– Não, espere! – falou ela – Pouca nata? Leite desnatado!
– Você é uma menina esperta – reconheceu Menarca – mas não o
suficiente. Deveria ter esperado eu terminar. A resposta está errada.
– Qual a resposta, então?
– O Leiteiro – falou Menarca.
– O Leiteiro...? – perguntou a menina – Como assim? Pouca nata?
Leiteiros não têm nata. Só leite que tem!
– Mas O Leiteiro tem poucas qualidades – explicou Menarca – Você
deveria ter procurado outras definições para “nata” no dicionário.
– Pena que eu estou com as mãos amarradas, não é?
– Mais uma ao fundo! – anunciou Angina, empolgada.

80
Palácio dos Alfinetes

– Fim de jogo – concluiu Menarca, erguendo a tesoura e cortando o


fio teatralmente.
A menina irritou-se.
– Era para ser engraçado? – perguntou ela – Não gostei. Bem, foi
uma pena. Não ganhei a boneca. Poderia me soltar? Se eu demorar mais,
minha mãe vai perceber que estou fora da cama, sabe?
– Quem disse que vamos te soltar?
– Mas...
– O trato não foi esse – prosseguiu Angina.
– Você prometeu que ficaria aqui para sempre – completou Moebius.
– Bom, eu posso vir nos finais de semana, se quiserem. Posso ensinar
para vocês umas charadas mais divertidas. Tenho outras coisas para
fazer, não posso ficar sempre aqui. Preciso ir para casa, para a escola,
brincar com meus amigos...
– Você pode brincar com suas novas amigas – sorriu Moebius – Pode
ter certeza de que vamos brincar bastante com você...
– Então foi assim que vocês ficaram prisioneiras deste lugar? –
perguntou a menina – Errando uma charada injusta por causa de uma
boneca?
– Já chega, criança – falou Menarca, aborrecida – Estou cansada de
suas perguntas insolentes. Agora sou eu quem estabelece as regras por
aqui. E você terá que obedecê-las.
– Me parece que vocês esqueceram quem dita as regras por aqui –
falou uma voz.
Todos se viraram para trás no mesmo instante. Em frente à porta
trancada havia um velhinho sentado em uma cadeira de rodas.
– Quem é você? – perguntou Menarca, ainda mais irritada – Como
entrou aqui?
– Pela porta – respondeu ele.
– Você não foi chamado – falou Angina.
– Isso é irrelevante – observou o ancião – Estou muito entediado
essa noite. Ouvi dizer que havia uma casa de jogos aqui perto. Posso me
juntar a vocês?
– Claro, claro – falou a garotinha – Você sabe alguma charada
interessante? As charadas delas são muito chatas.

81
Juliana Duarte

– Sim, acho que me lembro de duas ou três – respondeu o ancião,


arrastando a cadeira de rodas até o local – Será que as três gentis
senhoras não gostariam de tentar adivinhar?
As três estavam curiosas em conhecer o tipo de desafio que aquele
senhor trazia.
– Conheço uma trinca de desafios chamados as Charadas das
Ferragens. Uma para cada. Aceitam?
– O que ganhamos com a vitória?
– Um objeto precioso dentro do meu bolso. Mas suponho que a
questão seria o que ganharei com a derrota de vocês.
– Que quer de nós? – perguntou Menarca, desconfiada.
– Vejo que vocês têm alguns brinquedos por aqui – ele fitou a sala
escura ao seu redor, na qual estavam espalhados jogos, fantoches e
bonecas pelo chão – gostaria de poder escolher duas peças por cada erro.
– O que tem no seu bolso?
– Logo você vai saber.
Ela pensou por um momento.
– Está bem. Em caso de erro, você pode levar qualquer coisa com
exceção da roca e das bonecas. De acordo?
– Escolherei peças pequenas.
– É bom que seu prêmio seja de nosso agrado.
– Estou certo de que será.
As crianças observavam a cena com atenção. A menina ainda estava
amarrada à cadeira.
– Gostaria de ser a primeira – falou Moebius – Mas já vou avisar que
você escolheu as pessoas erradas para desafiar. Somos as melhores no
que fazemos. Décadas de experiência. Você não tem a menor chance.
– Veremos.
Todos ficaram em silêncio a partir dali, aguardando que ele
começasse.
– Os camponeses roubam sete trevos. Os padres recebem sete taças –
falou o ancião.
Ainda assim, todos permaneceram em silêncio.
– Me dê um momento para pensar.
Os segundos se arrastavam. Um minuto... dois minutos... três
minutos.

82
Palácio dos Alfinetes

– Tempo esgotado – falou o ancião – Dê-me a solução. Você só tem


uma chance.
– Os camponeses, por terem fome, precisavam roubar. Os padres,
pelos seus votos, recebem taças para satisfazer a sede. E o número sete...
possui relação com a história das sete vacas gordas e das sete vacas
magras. Estou no caminho certo?
– Não – respondeu o ancião – mas não me leve a mal. Foi uma bela
reflexão.
– Então eu falhei? – perguntou Moebius, decepcionada – Qual a
resposta?
– O meu prêmio é a resposta.
– Revele de uma vez a solução da charada!
– Sete de paus – falou o ancião – e sete de copas.
Moebius levantou os olhos. Fitou o ancião, decididamente
aterrorizada. Subitamente, ajoelhou-se no chão com um horrível grito de
agonia. As outras duas anciãs levantaram-se no mesmo instante, também
a fitá-lo num grande susto.
O garoto e a garota não faziam a menor ideia do que estava
acontecendo ali.
– Senhor, eu não entendi – falou a menina – Poderia me explicar?
– Claro – falou o homem, bondosamente – Os naipes representam as
classes sociais da França da época em que o baralho foi criado. Portanto,
“Os camponeses roubam sete trevos” representa a carta sete de paus, já
que tanto trevos quanto camponeses são símbolos desse naipe. “Os
padres recebem sete taças” é a carta sete de copas, já que o clero e as
taças no baralho espanhol são símbolos da carta de corações.
– Ei, isso é difícil – falou a menina – Não sei se entendi tudo, mas
achei legal.
– Obrigado. Agora... – prosseguiu o ancião, dirigindo-se às três
senhoras encapuzadas – Será que preciso explicar o significado de
“roubar” e “receber”?
Moebius ainda permanecia no chão.
– Número Sete – falou o ancião à senhora no chão – Dê-me meu
prêmio. Agora. Ou serei obrigado a tomá-lo de você.
– Por favor, senhor... – começou ela – Eu não queria...

83
Juliana Duarte

– Pois parecia muito feliz para quem não queria. Dê-me isso de uma
vez. Não me faça apelar à burguesia e aos militares. Você sabe que não
quero isso...
Com as mãos tremendo, Moebius retirou de dentro das vestes dois
pequenos pedaços de papel e entregou-lhe.
– Muito bem – falou o ancião, satisfeito, aceitando os papéis.
Imediatamente ele segurou a carta vermelha com as duas mãos e, sem
cerimônia, rasgou-a ao meio.
Moebius deu um grito fino e cortante e caiu para trás, contorcendo-se
no chão.
– Por favor, não faça drama – pediu o ancião – Você sabe que não
sentiu nenhuma dor por eu rasgar este pedaço de papel velho. Eu só não
gostaria de ver o estado de seu cadáver na Biblioteca. Se quiser gritar, é
melhor fazer agora. Prometo que farei de uma maneira gentil. Afinal, não
queremos assustar as crianças...
Ele segurou a carta negra nas mãos. Retirou um alfinete das vestes.
Enfiou-o na carta. A anciã imediatamente parou de se mexer.
– Gostei desse senhor – falou a menina.
– É, ele acabou com a bruxa – falou o menino, impressionado.
As duas anciãs de pé fitavam o velhinho, aterrorizadas.
– Bem – falou ele, tranquilamente, jogando no chão os pedaços das
cartas destruídas – vamos continuar?
Ninguém se pronunciou.
– Que tal ser a próxima, Número Dez? – sugeriu o ancião, dirigindo-
se à Angina – estou certo de que apreciará esta charada.
Mais uma vez, silêncio.
– O lagarto devora a própria cauda, dilacerando o morcego e a
borboleta. Antes voaram; agora caem. Restará apenas a memória do
mestiço bastardo.
– Não consigo acertar isso! – reclamou Angina.
– E quem disse que quero que você acerte?
– É um casamento ilegítimo.
– Sinto muito, mas você foi infeliz. A resposta não é essa. Embora
tenha sido o vermelho e o negro uma medonha união proibida. A
resposta é: o tempo.
– Suas charadas são impossíveis!

84
Palácio dos Alfinetes

– O tempo se alimenta do próprio tempo, arrastando bons e maus


momentos, no passado, presente e futuro – falou o ancião – Mas não há
mais futuro para você. Não ouse brincar com A Ampulheta.
Ele estendeu a mão.
– Dez de copas – falou ele – e dez de paus.
Angina deu um passo para trás.
– Seja obediente. Ou o lagarto deverá dilacerá-la até os ossos
falsificados.
Ela estendeu as duas cartas. O ancião rasgou a carta vermelha e
perfurou a negra. A mulher caiu no chão.
– Agora, Número Oito – falou o ancião – deixei o melhor para você.
Sinta-se orgulhosa.
Menarca fitou-o com ódio, mas nada disse.
– Barato Rasgo em Osso Calcinado. Órfão Louvado da Infância
Santa.
– Como é? – perguntou Menarca – Isso é absurdo!
– Certamente. Essa é a intenção.
– Nego-me a responder! Dê-me a resposta!
– Leite – respondeu o ancião
– Leite?! – perguntou Menarca, indignada – Isso é uma piada?
– Se quiser interpretar dessa forma, fique à vontade – respondeu ele,
tranquilamente – mas devo confessar que você foi muito corajosa em
negar-me a resposta.
– Eu não vou clamar por piedade.
– Muito bem. Então escolha apenas uma. E dê-me.
Ela estendeu-lhe uma carta vermelha.
– Confie em mim – falou ele – você não quer isso.
Ela hesitou. Por fim, estendeu a carta negra. O ancião perfurou-a
com um alfinete e Menarca caiu no chão. Ele permanecia sério. Parecia
perdido em pensamentos.
– Por que elas estão desmaiadas, senhor? – perguntou a menina.
– Você é um bruxo? – perguntou o menino, de olhos arregalados –
Um mago?
O homem arrastou a cadeira de rodas até o local em que a menina
estava presa na cadeira. Tirou uma chave do bolso e soltou-a.
– Ia dar essa chave para aquela senhora? – perguntou ela.

85
Juliana Duarte

– Minha derrota seria minha ruína – respondeu ele, recolocando a


chave no bolso. Recolheu também a tesoura que esteve nas mãos da
anciã caída no chão.
– Por quê?
– Porque essa chave também abre a porta da mais extraordinária loja
de brinquedos. Gostaria de conhecê-la?
– Claro!
– Eu posso te dar um presente muito especial. Mas você não pode
voltar atrás.
– Combinado – falou a menina – Eu adoro presentes! E adoro
brincar. Eu vou poder jogar dados?
– Qualquer coisa que desejar. E quanto a você...
O garoto se encolheu.
– Agradeço pelo seu presente.
– Presente? – perguntou o menino, sem entender.
– Mas você precisa aprender a ser mais corajoso – falou o ancião –
você jamais teria entrado por essa porta se não fosse por sua amiga.
Deseja coragem?
– Sim – respondeu o menino.
– Eu vou te mostrar como consegui-la.
– Queria não ter mais medo de fantasmas...
– Você vai superar esse medo – falou o ancião – eu vou te mostrar
como.

Espadas: Seção # 2.0

– E então? – perguntou a mulher.


– Eu... – começou ele, timidamente – eu não sei.
– Uma criança da quinta série saberia isso. Como é que você não
sabe?
Ele sentiu a própria face se aquecer. Estava nervoso demais. Baixou
os olhos.
– Desculpe. Eu estudei. Tentei resolver.

86
Palácio dos Alfinetes

– Não é o que parece – falou a mulher de óculos – Veja a sua prova:


metade dela está em branco. Isso é matemática básica. Não me diga que
também não sabe raiz quadrada.
– Eu sei sim – falou ele, levantando os olhos, sentindo-se um pouco
ofendido – mas eu precisava de mais tempo.
– Você teve a manhã inteira para resolver uma prova de matemática e
uma de gramática. Onde está a sua professora de gramática? Ah, aí está
ela. Como ele se saiu na prova?
Ela entrava pela porta naquele momento. Fechou-a e dirigiu-se até a
cama.
– É melhor você prestar mais atenção. Aqui eu pedi uma classificação
sintática e não morfológica – ela apontou para uma questão.
– Mas eu acertei a morfológica, não acertei? – perguntou ele.
– Eu prepararia uma questão mais difícil e bem elaborada para um
estudante preparando-se para ingressar na sétima série.
– Você está me ofendendo? – perguntou a professora de gramática –
Acha que não sei fazer questões bem elaboradas? Eu não posso exigir
tanto dele!
– Ora, claro que não – concordou a professora de óculos – É
evidente que esse garoto é mentalmente atrasado. Acho melhor eu
ensiná-lo novamente a somar e a subtrair.
– Eu acho que o problema desse menino é falta de atenção – falou a
professora de gramática – Ele dormiu em cima da minha prova. Veja, ele
até babou em cima dela!
O que o garoto gostava nas professoras particulares era a sinceridade.
Elas não se incomodavam nem um pouco em xingá-lo na sua frente. Até
teria achado graça se a situação não fosse tão delicada. Estava abalado e
decepcionado consigo mesmo, sem contar a humilhação que tinha que
suportar.
– Espere aí – falou a professora de matemática, levantando-se e
ajeitando os óculos no rosto – Eu vou conversar com a sua mãe.
– Não precisa...
Mas as duas professoras já tinham saído do quarto. O garoto
suspirou.
Alguns minutos depois, sua mãe entrou no quarto. Ela fechou a
porta.

87
Juliana Duarte

– O que aconteceu?
O garoto não disse nada. A mãe sentou-se numa cadeira perto da
cama, em que a professora de matemática esteve sentada.
– As suas professoras disseram que você está com dificuldades. Você
não estudou?
– Estudei, mas não tanto.
– Por quê? Você tem todo o tempo do mundo para estudar aqui.
– É que... eu não gosto de estudar.
– Mas você precisa – falou a mãe – assim como você também precisa
ficar aqui no hospital. Você entende?
– Sim.
Ela ficou em silêncio por um momento. Logo continuou a falar.
– Você já tem problemas de saúde, então precisa tentar se destacar
nos estudos. Você seria mais feliz assim. Seria encorajador saber que
você é bom em alguma coisa. E você é muito tímido ainda por cima.
Precisa resolver isso.
O menino sentiu algo estranho. Uma coisa era as professoras chatas o
xingarem. Outra coisa completamente diferente era a sua mãe fazer
aquilo.
Mas ele precisava dizer.
– Mãe...
– Sim?
– É... só que... – começou ele – eu odeio estudar.
– Claro que não odeia. Tem coisas muito interessantes que você
aprende nos estudos, sabia?
– Eu sei. Mas são poucas comparadas às coisas chatas.
– Um dia, quando você estiver na faculdade, vai poder escolher o
curso que realmente quiser. Então não precisará mais se preocupar com
isso.
– Era sobre isso que eu queria conversar.
– O que foi?
Mais uma vez, ele não sabia como começar.
– Mãe – cada vez que dizia aquela palavra sentia-se muito fraco –
você sabe que eu não vou poder ir à faculdade.
– Nós vamos dar um jeito.

88
Palácio dos Alfinetes

– Não é isso – prosseguiu ele – acho que eu... não vou conseguir
chegar até lá. Mesmo que eu me esforce muito, entende?
– Não está tão longe assim. Só mais alguns anos...
– Você sabe do que eu estou falando.
Os dois permaneceram num silêncio incômodo. Ele precisava
quebrá-lo de qualquer maneira.
– Por isso... eu não queria desperdiçar o meu tempo com uma coisa
que eu odeio.
A mãe não respondeu.
– Por favor. Eu não quero mais estudar.
Ela não olhou para ele diretamente. Apenas fitava com atenção o
chão do quarto.
– O que pretende fazer aqui dentro, então?
– Não sei. Mas eu não queria mais. Talvez por um tempo. Um ou
dois anos...
– Você já está atrasado. Se quiser parar definitivamente de estudar e
não voltar mais, apenas me diga.
– Eu quero.
Doeu muito dizer aquilo; mais do que qualquer coisa que poderia ter
dito. Arrependeu-se, apenas ao constatar a expressão de extrema
decepção no rosto da mãe. Se ela já o considerava um inútil, agora o
olharia apenas como um peso morto que ela trabalhava para sustentar
enquanto não morria. Talvez ela pudesse desejar que ele morresse de
uma vez. Talvez seu pai também desejasse isso. Tudo o que ele dava era
despesas.
– Você não vai mais precisar gastar com professores particulares –
lembrou ele – Eu sei que é caro...
Mas arrependeu-se de ter dito aquilo também. A expressão da mãe
estava se tornando cada vez pior; como se a decepção não tivesse limites
de se aprofundar cada vez mais a ponto de se tornar insuportável.
– Entendi – falou a mãe de repente, sem olhá-lo – então não precisa
mais estudar.
– Desculpe – falou ele, tentando consertar – Eu posso continuar, se
você insistir. Se achar que é tão importante, eu...
– Eu não quero fazê-lo infeliz. Você deve escolher o que achar certo.

89
Juliana Duarte

Ele sentiu o peso desagradável da responsabilidade. Era horrível ser


responsável por suas próprias escolhas; e pelas próprias desgraças que
poderiam vir a partir delas.
– Eu queria... um bichinho de estimação.
Não conseguiu se conter. Quando deu por si, já havia dito.
– Você não pode ter bichos no hospital – respondeu a mãe – Bem,
vou falar com as suas professoras. Ex-professoras – corrigiu-se ela.
E saiu do quarto.
O menino sentiu-se um desgraçado. Havia deixado a mãe arrasada e
ainda tinha feito um pedido idiota para coroar a sua derrota.
Deveria esquecer aquilo de uma vez. Não queria que restassem
arrependimentos. Deitaria na cama, enfiaria a cabeça debaixo do
travesseiro e apagaria da memória aquela cena vergonhosa.

Copas: Seção # 4.5

– O que você tem aqui na Dispensa?


A garota apenas cantarolava baixinho. Ocupava-se em sujar as
paredes de tinta com as duas mãos.
– Ei, estou falando com você. Preciso de uma cura.
– Isso não ser hospital – falou ela – ser Dispensa.
– Eu sei. Mas preciso de sua ajuda. Sangria está ferida. Ela precisa
melhorar.
– Não ter remédios aqui – falou ela, com os seus olhos vidrados
costurados com botões, ainda concentrada no que fazia – Ter tinta.
Servir tinta?
– Não. Ei, olhe para mim!
Ela olhou. Cada parte de seu rosto era costurada. Seu olho esquerdo
era um botão e o direito um remendo mal feito. A boca era um lacre de
linhas. Seus cabelos eram espetados; era difícil dizer a cor. Suas roupas
remendadas estavam cobertas de cadarços e linhas. Apenas a boina era
relativamente nova, embora um pouco suja de tinta.
– Não, esquece. Não olhe – falou Papiloma, pensando melhor –
Bonita a sua boina – tentou ele, para chamar a atenção dela.
– Achar mesmo? Eu saber deixar mais bonita.

90
Palácio dos Alfinetes

E ela segurou um balde de água suja misturada com tinta de pincel


velho e jogou na cabeça.
– Eu sei que você tem ao menos linha e agulha por aqui. Acho que
por enquanto bastaria.
– Papilomo só vir aqui quando precisar de coisas. Nunca vir para ver
obras-primas de Carcinoma.
– É “Papiloma” – corrigiu ele – Com “a” no final.
– Por quê? Você ser menina?
– Não.
– Quem dar este nome para você?
Era uma boa pergunta.
– Por que você nunca aprendeu português direito?
– Porque ser chato – falou ela – Preferir desenhar.
– Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Viu? Você me distraiu
de novo! Onde estão as linhas e agulhas? Será que eu mesmo vou ter que
procurar?
Ele foi até um canto da Dispensa e começou a mexer numa caixa.
Porém, Carcinoma arrastou a caixa dali logo em seguida.
– Ser meu.
– Eu sei – falou Papiloma – mas eu preciso disso.
– Você sair.
– Mas a Sangria...!
– Sangria morrer.
– Como pode dizer isso? – perguntou Papiloma.
– Alfaiate estar furioso com Sangria. Carcinoma não conhecer
Sangria, mas saber que ela ser má elemento.
Papiloma suspirou. Assim ficava difícil.
– Tudo bem, então. Dê-me alguns alfinetes e agulhas para eu perfurar
o corpo de Sangria. Assim ela aprende a não desobedecer O Alfaiate.
– Ah, assim estar bom – falou ela – poder pegar, então. Mas
Carcinoma querer recompensa.
– Que recompensa?
– Querer mais jogos. Mais e mais e mais.
Papiloma olhou ao redor. Mal tinha espaço para andar na Dispensa
de tantos jogos, ursos de pelúcia e as mais diversas tralhas que havia ali.

91
Juliana Duarte

Ela não fazia outra coisa durante o dia todo. Era compreensível o
porquê de Carcinoma venerar tanto O Alfaiate.
Mas depois de tanta gratidão, bem que Ele poderia ter sido mais
generoso e, além de poder tê-la colocado com uma aparência mais
apresentável, poderia ter dado a ela algum jogo que não fosse restos. Ali
só havia ursos de pelúcia sem cabeça ou em farrapos e jogos quebrados
ou pela metade. Porém, ela nem parecia notar esse detalhe. Talvez nem
tivesse percebido que seus ursos estavam sem cabeça e um pouco mais
coloridos devido aos constantes respingos de tinta que voavam para
todos os lados.
Ela também não devia saber que era apenas um molde malfeito de
boneca. O Alfaiate a jogou na Dispensa junto com os outros restos. O
porquê de ela existir era um mistério.
– Tudo bem. Vou arranjar mais jogos para você. E brinquedos bem
bonitos.
– Oba! – falou ela, entortando a cara. Talvez ela nem soubesse que
era proibido sorrir. Mas mesmo que tentasse não conseguiria, de tão
torta e costurada que estava sua boca – Carcinoma gostar de brincar!
Querer urso fofo!
– Sim, vou trazer um urso bem fofo para você – falou Papiloma, com
pressa – Agora me dê as agulhas.
Ela remexeu por dentro das caixas e arranjou uma agulha e um
carretel de linha branca pela metade.
– Estar aqui – ela entregou-lhe – Não esquecer de furar fundo. Fazer
sofrer a Sangrada. Deformar cara.
– Sim, sim, vou fazer.
– Sim! – gritaram do outro lado da porta – Ele é fresco e está em
promoção! A garrafa transparente deixa o produto ainda mais branco!
– É, acho que vou precisar de alguns – falou Papiloma – mas daqui a
pouco vou à Cozinha buscar, tá bom, Leiteiro?
– Sim! – clamou ele, com a mesma animação de sempre – Tenha um
bom início de dia e um fim extraordinário.
E se foi.
– Não gostar dele – falou Carcinoma.
– Por que será? – perguntou Papiloma, com ironia.
– Porque Alfaiate não gostar.

92
Palácio dos Alfinetes

– Eu sei que é por isso. Então você me odeia, certo?


– Certo.
Papiloma achou que já tinha se alongado demais. Precisava falar com
Sangria urgentemente.
– Vou indo, então. Tchau, Carcinoma.
– Tchau, Papilomo.
Papiloma ficava imaginando se ela fazia isso só para irritá-lo, mas se
era essa a intenção, não conseguiria. Nada no mundo lhe irritava
realmente.
Ou, talvez, dependendo da história que Sangria fosse lhe contar,
pudesse ter sua primeira experiência...

Ouros: Seção # 1.0

O ovo ainda estava no ninho.


Os flocos de algodão continuavam a cair. Enchiam o chão de um
harmonioso tom rosa embranquecido e sangrento.
E reinava o silêncio. Os pássaros já tinham partido e não mais
cantavam.
O lagarto adormecia tranquilamente na base da árvore. Ansiava
avidamente pela sobremesa. Pregou as patas no tronco. Iria escalar até o
topo.
Porém, quando ele já chegava, quatro borboletas surgiram.
– Saudações – cumprimentaram as borboletas, educadamente.
– Que desejais? – perguntou o lagarto.
– Gostaríamos de saber o que fazes aqui em cima da árvore.
– Vim olhar o ovo.
– Por que tu olharias o ovo? – perguntou uma das borboletas.
– Preciso saber se ainda vive.
– O ovo ainda não se quebrou. Se quiseres ver a criatura que dele
nascerá, precisarás respeitar seu tempo.
Derrotado e sem argumentos, o lagarto desceu da árvore.
– Por que ainda descansas na base da árvore? Confessa que não estás
o ovo a vigiar, mas pensas em devorá-lo.
– Que posso fazer? Essa é minha natureza.

93
Juliana Duarte

– Por que não experimentas conter teus instintos? – perguntou uma


das borboletas – Conheces tu aquilo que nascerá do ovo?
– Pássaros, luas ou estrelas, pouco me importa – respondeu o lagarto
– para mim trata-se de um ovo enquanto ovo e nada mais.
As borboletas rodearam o ninho com graciosidade.
– O ovo é a Grande Ideia.
– O que é isso?
– Pergunta primeiro a ti mesmo quem és – falou uma das borboletas.
– Isso é muito fácil – falou ele – sou um lagarto.
– És o Impedimento das Ideias. Por favor, contém-te!
– E quem sois vós? – perguntou o lagarto, confuso.
– Somos A Esperança que cruzou com o morcego Inspiração e gerou
a cria.
– Então, devo devorar-vos.
Porém, por mais que tentasse, ainda era difícil. Sua longa língua
nunca as alcançava.
– Por que desejais tanto protegê-lo? Por que entregais vossa vida por
ele?
– Ele é imortal. É impossível destruir o ovo, mas não permitiremos
que seja danificado.
– Observarei o espetáculo tal qual o juiz supremo. Verei de longe se
será mesmo digno de ser lembrado. Caso contrário, mesmo que tarde,
anunciarei a destruição.
E o lagarto enfiou-se sob a terra de flocos brancos.

Paus: Seção # 4.6

– Princesa! Princesa! Eu vim salvá-la! Mas diga-me onde está.


Sem resposta. Aquela com certeza era a Torre da Fumaça Cinzenta.
– Então eu vou embora. Adeus.
– Aqui! Aqui!
Alguém estava acenando lá de cima.
– Muito bem – concordou o rapaz de branco – Agora, como subo?
– Não sei. O que você acha?
– Eu acho que cansei – admitiu o Herói.

94
Palácio dos Alfinetes

Ele sentou-se na base da torre e acendeu um cigarro.


– E eu fico aqui?
Ele deu de ombros.
– Fique, como quiser.
– Ao menos me dê um cigarro – pediu ela.
– Nem pensar. Desça e venha pegar.
– Certo, já estou indo.
Um pouco depois, a Princesa apareceu ali na frente.
– A marca é boa?
– Não sei.
Ela aceitou mesmo assim.
– Por que você estava lá em cima?
– Porque eu precisava ser salva.
– Ser salva de quê?
Ela pensou por um momento.
– Da poluição. Você viu como é poluído por lá?
– E também vi que você desceu sem ajuda. Não vai se poluir
fumando também?
– Eu vou morrer do mesmo jeito.
– Apaguem isso – ordenou uma voz vinda de dentro da torre.
Um rapaz de cadeira de rodas saiu pela porta. Ambos obedeceram.
– Você está atrasado – falou a pessoa na cadeira de rodas.
– Estou – respondeu o Herói – mas você não precisa de mim. A sua
Princesa sabe se virar muito bem sem a minha ajuda.
– Percebam que já está anoitecendo. Você percebe, Nata?
– Sim – respondeu a menina de branco que arrastava a cadeira de
rodas.
– Chame a Forca – prosseguiu o rapaz na cadeira – está na hora de
brincar um pouco.
A menina de branco voltou para dentro da torre. Pouco tempo
depois, já estava de volta acompanhada de uma garota de preto
carregando uma maleta.
– O que será para esta noite, Vício? – perguntou Forca, conferindo o
interior da maleta.
– Alguma coisa... aleatória.
Nata segurou a cadeira de rodas e os cinco dirigiram-se para fora.

95
Juliana Duarte

Andaram e andaram. Até que alcançaram um canto.


– Eis o canto – anunciou Vício – Agora a arte vai começar.
Forca abriu a maleta. Ela retirou algumas máscaras, fantoches e
marionetes. Ela mesma colocou uma das máscaras no rosto. Cada um
escondeu o rosto completamente por máscaras sorridentes.
– Eu sorrio! – exclamou Forca – E por que sorrio?
– Porque conhece o peso da sua culpa e o passo da sua valsa –
respondeu Vício.
– Isso me parece triste, mas ainda assim sorrio – admitiu Forca –
porque a minha felicidade é pintada em cores pastéis.
Ela correu pela noite, abrindo os braços, no local deserto e vazio. O
chão era cinzas brancas.
– Que tolice... – murmurou o Herói – Princesa, acabe com ela.
A Princesa não deu atenção. Cantarolava baixinho, fitando o alto.
Vez ou outra batia os sapatos no chão, num ritmo esquisito.
– Basta – pronunciou Vício, o único não mascarado – amarrem-na.
Nata deu um passo a frente e estendeu a corda. Porém, Máscara
continuava dançando sem dar atenção a ela.
– Isso não está certo – avisou Nata – não deve se portar assim.
Sua voz era doce, mas o sorriso da máscara que cobria seu rosto era
irônico.
Máscara ajoelhou-se. Com paciência, Nata amarrou-lhe os braços. As
pontas da corda prendeu a uma árvore baixa, antiga, retorcida e
completamente desfolhada.
Máscara baixou a cabeça. O único som que se ouvia era o das rodas
da cadeira de Vício arrastando-se até o local em que a garota estava atada
à árvore.
Com a bengala, Vício ergueu a cabeça da menina pelo queixo, para
que o fitasse; seu rosto estava escondido.
– Você tinha tudo. Deveria portar a coroa. Mas agora é retalhos.
Nata levantou um boneco de marionete diante da garota atada à
árvore.
– Zin, zing, zimi – pronunciou a menina de branco lentamente.
Todos mantinham silêncio.
– “Você quer ser meu amigo?”
– Eu quero – respondeu Máscara – mas não tanto.

96
Palácio dos Alfinetes

–“Por que não tanto?”


– Porque eu não preciso de amigos.
– Zin, zing, zimi – falou ela – “Você é orgulhosa”
– E você é uma marionete.
A menina de branco ergueu-se em silêncio.
– Meu amor... – ela disse para Vício – eu não quero mais brincar.
Essa garota está sendo arrogante comigo.
– Sim – concordou Vício – faça como preferir.
– Onde está o show? – perguntou Herói, que já havia acendido outro
cigarro e parecia levemente entediado.
– As cortinas estão abertas, pai – respondeu Vício – e vocês são os
astros do nosso espetáculo. Eu sou apenas um espectador silencioso.
Aguardo ansiosamente o momento em que os atores façam-me sorrir ou
chorar. Afinal, o que poderia ser mais extraordinário do que encontrar-
me aqui?
– Menina... venha até aqui – pronunciou Máscara, em voz lenta.
Princesa abaixou-se diante dela.
– Tire a minha máscara.
Princesa obedeceu. O rosto por trás dela esboçava um largo sorriso
de crueldade.
Princesa finalmente gritou. E lançou terra nos olhos dela. Porém, a
própria Forca baixou a cabeça, colocou terra na boca e cuspiu na direção
de Princesa.
– Maldita, sujou meu vestido de princesa!
Herói resolveu se aproximar. Cortou as duas amarras de Forca.
– Malvado! – falou Princesa, indignada.
E as duas começaram uma briga violenta com urros, cuspes e tecidos
rasgando.
– Acabou – falou Vício – foi um fracasso.
Todos pararam o que estavam fazendo e fitaram Vício.
– Enforquem – pronunciou Vício.
A própria Forca recolheu a corda do chão e colocou no pescoço.
Segurou a máscara e tornou a cobrir a face. Cada um colocou sobre si
mesmo um lençol branco e começaram a espancá-la.
– Certo, chega – falou Vício – muito bem. Mas essa fumaça já está
me enjoando.

97
Juliana Duarte

– Perdão.
– Eu não perdoo.
– Eu já sabia.
– Não, não sabia – retrucou Vício – Eu odeio ser previsível.
Portanto, dispenso as observações infelizes. Se quiser me agradar, ao
menos apague esse lixo.
– Eu não quero agradar você – falou Herói – mas observo que seu
vocabulário tornou-se mais violento.
– Fico satisfeito que você observe tantas coisas – falou Vício.
– Estou com sono – reclamou Princesa.
Vício observou o cenário cinzento e bagunçado ao redor.
– Nata, por favor, recolha os restos de Forca. Vamos indo.
– Quando chegar, quero andar de bambolê! – falou Princesa, com
animação.
– Claro, criança – concordou Vício, seriamente – acho que ainda
tenho retalhos de madeira podre para você fingir de brinquedo.
– Oba!

Copas: Seção # 4.6

– Não olhe para mim.


Papiloma estava parado de pé diante da garota sentada no chão que
escondia o próprio rosto.
– Eu trouxe linha e agulha para você – falou Papiloma.
– Deixe aí. Agora vá embora.
Mas ele não foi. Permaneceu parado diante dela.
– Me desculpe. Eu jamais imaginaria uma loucura como essa. Nunca
pensei que O Alfaiate fosse capaz de permitir que a favorita fosse
danificada.
– Não fale no nome Dele – falou Sangria – e a culpa foi minha em ter
saído do baile daquela maneira. Você me disse para não sair. E para não
procurar...
– ... o príncipe encantado – completou Papiloma.
– Eu fui tão cega. Queria poder confiar em alguém. E eu tentei.
– Você ainda confia em mim?

98
Palácio dos Alfinetes

– Confio. É estranho, mas mesmo depois de ter acontecido tudo isso,


acho que estou confiando mais ainda.
– Então me mostre seu rosto – falou ele – Você mesma ainda não
pode vê-lo.
Ela resistiu por um momento, mas não podia continuar. Finalmente,
retirou as mãos e os cabelos da frente. Fitou Papiloma.
Pela expressão dele, Sangria não precisava ouvir mais nada.
– Estou completamente deformada – falou Sangria – não estou?
– Na verdade há um único corte – falou Papiloma – ele atravessa seu
rosto acima de sua sobrancelha direita até abaixo da parte esquerda de
seus lábios. Acho que você pode sentir. Não se preocupe. Está ruim, mas
não tanto.
Ela não respondeu. O maior estrago que aconteceu ao rosto dela não
foi o corte e sim sua expressão de tristeza.
Sangria estava profundamente abalada. O seu rosto era de profunda
decepção. Papiloma sabia onde tinha visto uma expressão parecida: no
rosto de Menarca, depois de sua expulsão da Casa dos Fantoches.
Diferente de Menarca, a face de Sangria não possuía raiva; apenas
tristeza. Uma melancolia inocente tão profunda e tão linda que poderia
arrancar lágrimas. Naquele momento, Papiloma podia enxergar
profundamente a crueldade d’O Alfaiate.
Ele não viu os olhos dela antes de fazer o que fez? Não olhou ao
menos uma vez para aquela garota ingênua?
– Eu não sou mais a favorita – começou Sangria, cada vez com maior
tristeza na voz – Não é mesmo...?
Ela fez essa pergunta como se no fundo ainda tivesse esperança.
Papiloma sabia que não podia responder aquilo. Não podia destruir a
última esperança que ela ainda guardava e na qual se agarrava com todas
as forças.
Papiloma sentou-se e cobriu o rosto com as mãos. Não suportava
mais olhar para ela. Estava amargamente arrependido por tê-la
convencido a sair da loja de brinquedos.
– Não fique assim – falou Sangria – a culpa não foi sua. Eu sei o que
você não está conseguindo me dizer. Ele nunca gostou de mim de
verdade, não é? Ele me enganou esse tempo todo.
Mas ainda havia mais a ser dito.

99
Juliana Duarte

– O que eu posso fazer? – perguntou ela, perdida.


– Nada – reconheceu Papiloma – você não pode fazer nada, Sangria.

Tubulação Semiótica F

Canta o Coro:
Eu não sabia! Eu nada sabia!
Jamais notei teu braço decepado
Tão escondido e remendado
Pontos em algodão cru
Que vejo graciosidade em tua dissimulação
Verdade convertida em retalhos
Pingos esfarelados da tua boca de tinta
És a mais bela
Dentre todas as dormentes e não nascidas

Tais palavras são mentiras desveladas


Não há simpatia alguma por minha deformação
Apenas o nojo da pena
De minha decrepitude fatalmente antecipada

Tens a elegância das princesas de gesso


A nobreza das rainhas de crochê
E a meiguice das macias pelúcias
Cabelos trançados em véus e grinaldas de alumínio
Sê forte! Sorri em cristal!

Dor! Mágoa! Apenas pranto em lágrimas de graxa!


Basta de asneiras tecidas em cetim
Onde está O Alfaiate?

O Alfaiate? O Alfaiate?
De quem falas?

O senhor das linhas e agulhas

100
Palácio dos Alfinetes

São suas linhas de feltro e suas agulhas de aço?

Linhas, nada mais que vícios!


Maldita agulha de seus dedos
Que em mim fez nascer tamanha anomalia!

Não há! Nunca houve!


Nunca foste escrita para que possas ser apagada!

Revelação de dor é o alfinete da anunciação!


Espeta meu peito como o risonho voodoo
Em verdade não há
Palavras, fraturas, deturpações
Apenas um espelho de vidro falsificado
Da pior espécie

101
Juliana Duarte

Segunda Compilação

Tubulação Semiótica E

Não tenhas medo de abrir a caixa de brinquedos


Porque tu não tens escolha
Isso pode ser divertido
Vem, vamos brincar
Eu vou te mostrar como construir
Um castelo de cartas de baralho
Mas tu não podes respirar
Eu vou te ensinar a montar
Os mais elaborados quebra-cabeças
Mas tu deves seguir as regras do jogo
É proibido perder
Apenas as crianças estúpidas sofrem a derrota
E eu sei que tu és a melhor
Não me decepciona
E eu te darei o prêmio mais desejável
Muito mais que apenas balas e chocolates

Eu sempre soube que serias a vencedora


Mas não te esquece de ter misericórdia pelos pobres fracassados
Por que espalhas as cartas e dados pelo chão?
Por que estás matando?
Eu disse para tu seguires as regras do jogo
Agora tu estás sozinha
Não tenhas medo da derrota
Não tenhas medo da solidão
Não tenhas medo da caixa de brinquedos
Não tenhas medo da boneca sem cabeça
Não tenhas medo dos cadáveres que riem de ti pelas costas
Apenas aceita o prêmio que covardemente roubaste
E guarda esta miséria até o julgamento d’O Manequim.

102
Palácio dos Alfinetes

Copas: Seção # 5.0

Papiloma estava paralisado. Ele olhou para o chão. Tala estava caída,
completamente destruída.
– O que você tem? – Papiloma foi até ela – Quem fez isso com você?
Ela abriu os olhos:
– Onde está a Felpuda? Ela está bem?
– Quem?
– Minha ovelhinha.
Ele olhou ao redor. Muitos brinquedos do Banheiro estavam
destruídos. Porém, ele logo avistou aquilo que deveria ser a ovelhinha
branca que Tala sempre estava abraçada. Também estava rasgada. O
algodão se espalhou por todos os lados.
– Cuidamos dela depois – falou Papiloma, com urgência – Me diga o
que aconteceu com você. Por acaso O Alfaiate danificou a sua carta?
– Não foi na carta.
Então Papiloma entendeu tudo, ainda mais chocado. O Alfaiate nem
mesmo usou a carta. Fez aquilo com as próprias mãos. Se fosse possível,
diria que estava até pior do que o estado de Sangria alguns meses atrás.
Tala não tinha por que ser punida. Não conseguia imaginar alguém
que seguisse mais fielmente as regras pregadas na parede, mesmo que o
fizesse por medo. Não tinha coragem de tentar imaginar o terror de Tala
no instante em que descobriu que O Alfaiate estava vindo para puni-la.
– Você tentou sair do Palácio?
– Nunca.
– Tentou roubar uma carta?
– Não.
– Você sorriu...? – insistiu ele.
– Eu não teria coragem.
Tala não estava mentindo. Ela não rompeu uma só regra d’O
Alfaiate.
– Por que Ele fez isso com você?
– Porque tiraram meus brinquedos do quarto Dele.
– Que brinquedos? Que quarto? Do que está falando?
– É porque eu morri.

103
Juliana Duarte

Papiloma tentou entender do que ela estava falando; mas não


conseguiu.
– Você não morreu – falou Papiloma – você está aqui na minha
frente. Onde está a sua carta?
Com cuidado, Tala retirou de dentro das vestes brancas a carta 5 de
Copas. Estava perfeita, sem um arranhão.
– O Alfaiate nunca vai conseguir te matar se ele não tocar em sua
carta – falou Papiloma, tranquilizando-a – Não se preocupe.
– Você não entendeu – falou Tala, com sua voz doce e triste, embora
seus olhos estivessem arregalados e perdidos – Eu não morri em Copas.
Morri em Espadas.
– Ele destruiu a carta 5 de Espadas? Mas você não está com ela...
– Não foi Ele. Desapareci porque era a minha hora. Mas graças a Ele,
eu não desapareci completamente. Ele me deu vida. Eu ainda existo,
apesar de não existir.
Papiloma desconfiava que estivesse começando a entender.
– O Alfaiate não tem controle sobre Espadas – concluiu ele – apesar
de reinar em Copas. Ouros ainda é um mistério completo para mim. Em
Paus O Alfaiate já provou, com a Charada das Ferragens, que algum
controle Ele tem. Mas...
– Estou com medo – confessou Tala – os brinquedos eram tudo que
O Alfaiate tinha.
Papiloma não se controlou. Teve que rir. Mas logo se repreendeu por
ter feito isso. A situação era séria demais.
– Os brinquedos eram tudo que Ele tinha? – perguntou Papiloma –
Tala, O Alfaiate só não possui o céu porque tem preguiça de carregá-lo
com as próprias mãos! Como pode dizer uma coisa dessas?
– Não, você não sabe – falou Tala, com tristeza – ninguém sabe nada.
Sinto que O Alfaiate é como eu. Eu posso entendê-lo agora. E sofrer por
Ele.
– Tala! – exclamou Papiloma, assustado – O Alfaiate fez com que
você passasse por tanta dor e você ainda sofre por Ele? Como pode ser
tão... boa?
Ela fechou os olhos.
– Ele a deixou comigo – ela mostrou uma segunda carta – no último
momento. Mas agora ela está destruída.

104
Palácio dos Alfinetes

Ela estendeu a carta 5 de Espadas. Estava completamente amassada e


perfurada. Porém, Papiloma entendeu errado o gesto de Tala.
– Mas você não disse que ele não havia danificado a carta?
– Ele não danificou. Fez isso comigo com suas próprias mãos.
Papiloma já tinha ouvido o bastante. Não poderia mais ficar parado.
Alguém bradou por trás da porta:
– Sim! Ele é fresco e está em promoção!
– Não, agora não é hora – falou Papiloma.
– Sim! Sim! Promoção! Promoção! Fresco! Fresco!
Papiloma estranhou a insistência.
– Já pode ir.
– Fresco! Fresco! Extraordinário! Sim!
Alguma coisa estava errada. Papiloma espiou pelo buraco da
fechadura.
O Leiteiro ergueu uma garrafa de leite e quebrou-a em cima da
própria cabeça. Caiu no chão no mesmo instante.
– Mas o que está acontecendo aqui? – perguntou Papiloma – Estão
todos loucos?
– Eu não fui a única – falou Tala – O Alfaiate também rasgou outras
bonecas do Palácio, mas nenhuma corre risco de desaparecer desse
naipe.
– Por que ele fez isso? – perguntou Papiloma.
– Porque os meus brinquedos foram tirados do quarto dele – repetiu
Tala.
– Como sabe?
– Eu vi – falou ela, segurando a carta de Espadas – antes de morrer.
Papiloma manteve-se subitamente sério.
– Ele não vai mais destruir nenhuma boneca no Palácio. Vou falar
com ele. Agora.

Espadas: Seção # 5.0: Valsa das Máquinas – Melodia Terceira

Teia de aranha. Cobertor quadriculado. Parede suja. Lâmpada


queimada.

105
Juliana Duarte

A única coisa de diferente que havia ocorrido naquele último ano foi
iniciar um supletivo escolar para recuperar o tempo perdido. Em
algumas semanas começaria o primeiro ano do segundo grau como as
outras pessoas de sua idade, embora os outros não estudassem trancados
num quarto. Mesmo assim, ele tinha certeza de que não seria capaz de
acompanhar nem mesmo uma oitava série.
Estudou muito pouco. Não podia acreditar que desperdiçava seu
tempo naquilo. Na verdade, talvez só o fizesse para ver sua mãe um
pouco menos triste. Porque feliz ele sabia que ela nunca ficaria de
verdade.
No último mês ela vinha lhe visitar toda a semana para trazer algumas
apostilas e provas antigas de um colégio. Ele ainda nem havia olhado
para elas, mas sempre mentia para que sua mãe não se decepcionasse.
Sim, aprendeu a mentir; estava relativamente satisfeito com o resultado.
Mas ele não passava seus dias apenas olhando para o teto. Usava seu
tempo para uma coisa muito especial: a razão de ter suportado o hospital
até aquele momento.
Embaixo da cama.
A bagunça da garota. A menina que ficava em seu quarto enquanto
ele estava na sala de cirurgia e que ele jamais conheceu.
Ele estendeu a mão por baixo da cama. Estava na hora de mais uma
historinha.
Porém, ele tateou. E tateou um pouco mais. E nada. Seu coração
disparou. O que estava acontecendo? A menina resolveu arrumar o
quarto?
Ao espiar embaixo da cama, viu apenas algumas folhas e livros
velhos. Não havia nem mesmo rastros de que alguma vez havia existido
algo além disso.
Ele levantou-se da cama. Com dificuldade, levantou uma parte do
colchão. Olhou dentro da geladeira; procurou nas gavetas da mesa de
cabeceira. Caminhou por todos os lados; revirou cada canto do pequeno
quarto.
Ele sentou-se no chão. Colocou a cabeça entre as mãos.
Ia ficar louco. Precisava daquilo. Se não encontrasse, era melhor se
atirar da janela de uma vez por todas. Seu coração disparou ainda mais.

106
Palácio dos Alfinetes

Ele procurou novamente nos mesmos lugares. Cada vez que nada via,
ficava mais nervoso.
Não era um nervosismo normal. Era algo muito forte e desesperador.
Ele começou a andar muito rápido pelo quarto. Deu algumas voltas,
segurou a cabeça, que estava começando a doer. Sentia-se tonto. As
batidas de seu coração também não pareciam normais. Não fazia
nenhum esforço para conter as reações de seu corpo.
Ele abriu a porta de seu quarto. Alguém precisava lhe dar
esclarecimentos: contar-lhe para onde a menina foi transferida. Se aquilo
tivesse de fato acontecido, seria seu fim. Queria acreditar que os objetos
apenas tinham sido removidos temporariamente e que iriam trazê-los de
volta. Nunca, nos últimos cinco anos, alguém arrumou o maldito quarto.
Por que, de repente...?
O médico apareceu no corredor.
– Você mexeu no meu quarto – ele foi logo acusando. O nervosismo
e urgência daquele momento tinham eliminado momentaneamente sua
extrema timidez.
– Eu? – perguntou o médico, confuso – Eu nem entrei no seu quarto
hoje.
Sim, deveria ser mesmo verdade. Se ele morresse de repente, o
médico nem notaria sua falta. Talvez só percebesse na semana seguinte.
– Onde estão as coisas da menina que fica no meu quarto?
– Elas foram levadas para a sala de cirurgia – respondeu o médico,
com uma voz um pouco mais formal que o normal – Porque foi lá que
ela estava ontem à noite, quando...
No entanto, ele nem esperou que ele terminasse. Correu até lá.
– Espere! – chamou o médico, com urgência.
Mas o menino corria como se estivesse disputando uma maratona.
Não se lembrava de ter corrido tão rápido assim alguma vez na vida. Já
nem se recordava da última vez que correu. Na verdade, ele não podia
correr. Às vezes mal conseguia se equilibrar direito sobre os dois pés.
Ele seguiu derrapando pelos corredores. Sabia exatamente aonde ia.
Entrou na sala de cirurgia. Não havia ninguém lá.
Foi então que viu uma caixa de papelão no chão. Ela estava aberta. E
dentro dela estavam os preciosos objetos tão procurados. Começou a
desarrumar tudo, jogando longe cada coisa que havia lá dentro.

107
Juliana Duarte

Finalmente encontrou os brinquedos. Recolheu algumas bonecas e


bonecos e continuou procurando. O médico chegou naquele instante.
– Mas o que está fazendo?
– Eu preciso disso agora.
– Você não pode – falou o médico – Isso não é seu. Não aja como se
fosse uma criança. Coloque de volta na caixa.
A observação o incomodou. Nem se lembrava mais disso: não era
mais uma criança. Mas aquilo não tinha a menor importância. Por
alguma razão, naquele breve momento, recordou-se sobre o que tinham
lhe falado a respeito de seu diário alguns anos antes: que era coisa de
menina. Estava na hora de começar a fazer as coisas sem esperar o
julgamento de ninguém, mesmo que isso lhe custasse muito caro.
Ele apenas recolheu as bonecas e pretendia sair correndo de lá.
Porém, o médico fechou a porta, colocando-se na frente dele e
impedindo sua saída.
– Sei que ela vai me emprestar – falou ele, cada vez mais nervoso.
Naquele momento estava percebendo o quanto aqueles brinquedos
velhos eram importantes para ele – Preciso falar com ela agora! Onde ela
está?
O olhar do médico desviou-se para o fundo da sala de cirurgia.
Foi então que percebeu: havia alguém deitado na cama. E adivinhou
quem era.
Ele largou os brinquedos no chão e correu até lá.
– Não! – falou o médico
– Por favor! – falou ele, aproximando-se da cama – Empreste-me
suas bonecas! Eu preciso delas agora!
Ele estava tremendo. Sentia seu corpo inteiro tremer de nervosismo.
Mas a menina não parecia querer responder. Ele agitou-a pelos ombros.
– Você não pode tirar suas coisas de lá. Eu preciso delas! Preciso
muito...!
De tanto o menino agitá-la, o pano que cobria sua face soltou-se. O
menino quase caiu para trás de horror e susto.
O rosto dela estava contorcido, em uma expressão de sofrimento;
como se uma cirurgia incompleta e malfeita tivesse distorcido
completamente sua face. A sua pele estava endurecida e fria; os músculos
da face adquiriam uma posição bestial.

108
Palácio dos Alfinetes

– Pare com isso! – falou o médico, assustado – Deixe-a! Como


pode...?
– Eu... não sabia...! – falou ele, chocado – Juro que não sabia...!
– Pois agora já sabe – falou o médico, seriamente – volte para o seu
quarto.
– O que vocês fizeram com...?
– Nós não fizemos. Era a hora dela.
Apesar de ainda estar horrorizado em fitar o rosto morto da menina
que nunca viu antes, não esqueceu daquilo que buscava.
– Então posso ficar com os brinquedos? – perguntou ele
esperançoso, sem se preocupar se a pergunta era inconveniente naquele
momento.
– Não – respondeu o médico, numa seriedade severa – volte para seu
quarto agora.
– Você não é meu pai! – o menino viu-se gritando de repente. Estava
surpreso com o próprio atrevimento – O que vai fazer com isso?
– A família dela vem buscar essa tarde.
O menino viu todas as suas esperanças desaparecerem por completo.
– Não! Quero para mim! Preciso deles. Tenho certeza de que ela ia
deixar. Se tivesse me dado a chance de perguntar! Se tivesse me deixado
conversar com ela ao menos uma vez...!
Ele ajoelhou-se no chão, agarrando os brinquedos. Baixou a cabeça.
Por tantos anos aquela que poderia ter sido a sua melhor e única amiga
esteve ao seu lado o tempo todo. Não era a enfermeira; não era ninguém
mais que precisava. Era apenas ela; alguém que passou exatamente pelo
que estava passando. Que foi abandonada num hospital. A única pessoa
no mundo que o entenderia. Mas jamais fez questão de conhecê-la antes.
E, no segundo seguinte, aquilo tudo sumiu de sua cabeça. Talvez
tivesse sido especial saber o que ela sentia em relação às suas bonecas.
No entanto, por mais especial que fosse, tinha certeza de que não se
comparava ao que ele sentia. Sabia que o máximo que os pais da menina
fariam seria guardá-las numa caixa e nunca mais tocá-las de novo.
– É meu – falou ele, recolhendo várias bonecas, abrindo a porta e
correndo pelo corredor.
– Volte aqui! – falou o médico, seguindo-o – Você não pode correr!

109
Juliana Duarte

Porém, ele nem escutava. Apenas queria chegar ao seu quarto


novamente.
Estava quase chegando. Mas na última curva do corredor, ele
derrapou no chão molhado e caiu.
Ele gemeu. Caiu em cima do braço e bateu o joelho com força no
chão.
O médico logo o alcançou.
– O que está fazendo? Isso não é seu. Você não entende? Pare de agir
como um menino mimado e devolva. O que você está fazendo é um
desrespeito muito grande. Não está vendo?
E então, ele sentiu o gosto amargo da derrota. Quantas vezes ia
perder o pouco que nunca realmente possuíra?
– Se eu não posso ter... – murmurou ele para si mesmo, tremendo –
Se eu não posso ter, ninguém mais vai ter!
Ele segurou uma boneca e arremessou-a na parede. Pegou uma
segunda e arrancou um braço e uma perna. Retirou uma tesoura do
bolso, que roubou da sala de cirurgia, e começou a cortá-las. Jamais
permitiria que o médico o parasse enquanto não terminasse.
Quando se deu por satisfeito, tendo descontado sua raiva o
suficiente, mesmo com o braço e o joelho doendo, ele gritou de ódio e
saiu correndo em direção ao quarto. Bateu a porta. Manteve-se de pé por
trás dela, respirando fundo, ainda com a tesoura nas mãos.
Quando começou a achar que já estava mais calmo, ouviu uma voz
vinda da janela.
– Sorvete! Sorveteee!! Olha, olha, o sorveteeee!!!
Sem pensar, no mesmo instante, ele correu em direção à janela. E
finalmente viu o maldito sorveteiro. Estava vestindo um uniforme
branco e arrastava alegremente um carrinho de sorvete coberto com um
guarda-sol. Estava bem embaixo da janela.
Subitamente, o garoto sentiu um espasmo de raiva incontrolável.
Sentiu o seu corpo inteiro se aquecer pelo ódio. Ele abriu a geladeira.
Alcançou uma jarra de vidro com água; ergueu-a. Foi em direção à janela
e largou-a lá de cima.
Ela espatifou-se no chão exatamente ao lado do sorveteiro. Ele levou
um grande susto, ficando quieto na mesma hora. Ao que parecia, havia
se molhado um pouco.

110
Palácio dos Alfinetes

– Cala a boca, desgraçado! – gritou o garoto, na janela – Ainda vou te


matar, miserável!
Foi o grito mais alto que se lembrava de já ter dado. E fechou a janela
com estrondo.
Seu coração estava batendo forte. Ele sentou-se na ponta da cama. Se
não havia se acalmado depois daquilo, não sabia o que mais o faria.
Por alguns segundos, ele apenas recuperava a respiração e sentia o
coração bater. E tudo havia acontecido por causa da maldita faxineira,
que nunca limpava o chão e de repente resolveu começar a limpar bem
quando ele estava correndo sobre ele.
Mas no fundo o motivo foi outro: os brinquedos.
O mundo real era sem graça demais.
Para que conseguisse sobreviver trancado e esquecido por tantos
anos, restara-lhe apenas uma alternativa: viver num mundo tão elaborado
e especial que se tornaria vivo. E, dentro dele, as coisas seriam de acordo
com a sua vontade. Ele seria o senhor e nele reinaria.
Não deveria ficar tão abalado com a perda das bonecas. Mesmo
desprovida da substância, a essência das ideias sempre ficaria viva. Ele
foi tolo em depositar todas as suas esperanças em brinquedos. Bonecos
reais eram estragados, perdidos, esquecidos.
A porta de seu quarto se abriu. Com uma expressão mortalmente
séria, o médico entrou.
O garoto gelou. Não haveria como escapar agora.

Copas: Seção # 5.1

Papiloma não hesitou um só segundo. Atravessou o Corredor Sem


Fim, decidido. De lá, seguiu imediatamente para a Frente de Loja; onde
ninguém com sanidade suficiente se atreveria a entrar. Sem cerimônia,
Papiloma empurrou a porta.
– Seja bem-vindo.
Em diversas prateleiras repousavam os mais variados brinquedos,
desde graciosos ursinhos de pelúcia e bonecas de porcelana até os mais
elaborados jogos.

111
Juliana Duarte

– Vejo que incrementou bastante a sua lojinha desde a última vez que
nos vimos – falou Papiloma – E está sempre pronto a receber seus
fregueses com classe.
– É claro – falou Ele, ajeitando a cartola na cabeça – eles merecem o
melhor. E aproveito para mostrar-lhe alguns truques de mágica para uma
maior diversão.
– Você foi muito esperto em afugentar O Leiteiro daquela maneira –
prosseguiu Papiloma – e aproveitou para espancar alguns moldes de seus
brinquedos velhos para atender aos seus caprichos. Você acha mesmo
que vai conseguir reinar para sempre, Pinguim?
– Achei que bobos-da-corte deveriam ser engraçados, mas nem
mesmo são capazes de arrancar um sorriso do rei.
– Onde está a coroa do rei? – perguntou Papiloma, astutamente.
– Cuidado, Papiloma. Você sabe aquilo que posso fazer contra seu
atrevimento.
Papiloma riu com vontade.
– Eu não tenho medo de você. Nunca tive. A única razão de eu
jamais tê-lo desafiado foi por sempre ter se mostrado comportado e
silencioso nesses últimos anos. Mas parece que ultimamente você anda
um pouco entediado como atendente de uma loja de segunda categoria.
Estava na hora de se divertir um pouco, não é mesmo? Rasgar algumas
cartas, retalhar alguns trapos velhos...
– Você apenas existe porque simplesmente estava aí. Como uma
mobília velha e indesejável pregada no chão. Eu já teria me livrado de
você há muito tempo.
– Mas a verdade é que você não pode – falou Papiloma – e não tem
coragem de admitir isso. Também não consegue confessar que sem mim
estaria perdido.
O Sapateiro pareceu incomodado.
– Você esqueceu que fui eu quem criou as cartas e até mesmo sua
existência. Deseja mesmo saber por que existe? Porque eu desejava
humilhá-lo. Fazê-lo rastejar e experimentar o mais terrível sofrimento.
Ensiná-lo a não colocar mais pizzas em minha geladeira e a guardar o
isqueiro de seu maldito cigarro longe da minha vista.
– Pizzas? Cigarros? Do que está falando? Você está maluco!

112
Palácio dos Alfinetes

– Veremos quem é o mais insano, infeliz bobo-da-corte – falou o


Sapateiro, com tranquilidade – Vai desejar nunca mais sorrir na vida.
Ele tirou a cartola da cabeça. Puxou de dentro dela um fino fio. Na
ponta dele descansava uma pequena aranha.
– Bravo! – Papiloma bateu palmas e riu – Gostei! O que mais você
tem aí?
Contudo, antes que pudesse perceber, Papiloma não conseguiu
levantar-se mais. Estava sentado em alguma coisa pegajosa. Quando
olhou novamente para O Sapateiro, a aranha não estava mais em sua
mão.
O Sapateiro puxou uma cadeira. Sentou-se nela e, provido de uma
agulha, juntamente com a pequena aranha, passou a tecer uma longa teia.
– Antes que eu finalize, para coroar a sua desgraça, sugiro que me
entregue o papel que guarda em seu bolso.
– Mas que embaraçoso! – falou Papiloma – Se você continuar me
enrolando com essa coisa branca e pegajosa, vou acabar ficando com
sede! Você deveria ter inventado um truque mais criativo.
– Na verdade tenho vários – falou O Sapateiro – Você acha que
estou satisfeito com uma mera loja de brinquedos?
– Você quer mais uma? – provocou Papiloma, com um largo sorriso
– Puxa, que bom! Posso escolher o nome? Ela vai se chamar “Papi
Palace”, o palácio dos sonhos, onde todos os desejos tornam-se
realidade. Mas acho que quero beber alguma coisa antes de começar.
Onde está O Leiteiro? Leiteiro!!
Um segundo depois, uma criatura vestida de branco chegou correndo
com afobação, derrubando brinquedos das prateleiras.
– Sim!!! – ele estava mais animado do que nunca. Bradava com alegria
– Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente deixa o
produto ainda mais branco!
– Não! – gritou O Sapateiro, largando a agulha e tapando os ouvidos
– De onde surgiu essa criatura abominável? Eu já havia me livrado dela!
O Leiteiro começou a atirar garrafas de leite por todos os lados.
Algumas se quebraram no chão. Papiloma, desenrolando-se rapidamente
da teia, num pulo calculado, conseguiu agarrar uma. Abriu-a
imediatamente e bebeu-a.

113
Juliana Duarte

– Acredite, ele nunca irá deixá-lo. Não importa o quanto tente fugir
dele. E fico feliz que esteja seguindo minha regra tão fielmente nos
últimos tempos.
O Sapateiro fitou-o com uma expressão séria e um olhar de profundo
ódio.
– Quando você tiver coragem de me enfrentar sem o seu amiguinho
maldito, vai desejar jamais ter entrado pela minha porta...
Porém, Papiloma nem estava ouvindo mais. Apenas bebia o leite da
garrafa com concentração e descaso, fazendo questão de derrubar
grandes gotas pelo chão, retornando ao interior do Palácio com O
Leiteiro.
– Tenha um bom início de dia e um fim extraordinário!

Espadas: Seção # 5.1

– O que foi aquilo? – perguntou o médico, imediatamente.


O garoto logo desconfiou do tom de voz. Ele não estava fazendo
nenhum esforço para parecer amigável. Mas ele não esperava nenhuma
conversa gentil.
– Perdão – se já havia começado, estava na hora de continuar a ser
atrevido – aquilo o quê?
O médico apenas fitou-o com seriedade. Pelo jeito, ele havia acabado
completamente com sua imagem de bom garoto: o coitadinho
abandonado pelos pais, ou qualquer outra impressão que alguém pudesse
ter formado a seu respeito.
– Em primeiro lugar, o que vou dizer aos pais da menina quando
vierem buscar os pertences dela?
– Isso é problema seu – respondeu o menino, sem se conter – eu não
tenho nada a ver.
Mais uma vez, um profundo olhar de reprovação. Talvez ele estivesse
mesmo indo longe demais com a brincadeira.
– E suponho que você também não tenha nada a ver com o grito que
ouvi e com a jarra que se espatifou no chão lá embaixo?
– Posso ter – respondeu o garoto, fingindo pensar – Por quê?
– O sorveteiro veio aqui em cima reclamar.

114
Palácio dos Alfinetes

O garoto sentiu-se ofendido.


– Reclamar? Pois diga a ele para não gritar na minha janela! Eu já teria
reclamado há muito tempo se eu não fosse uma pessoa extremamente
paciente!
– Ele já foi embora – prosseguiu o médico, em mesmo tom – disse
para mandarmos os nossos pacientes loucos para o hospício.
– E o que você respondeu?
– Eu disse a ele para se acalmar e ofereci uma aspirina.
– E ele...?
– Aceitou a aspirina, agradeceu e foi embora.
– Que bom – falou o garoto – então acho que tudo está resolvido,
não?
– Não. Vim conversar sobre o seu comportamento.
– Você não é psicólogo.
– Você não era assim antes. Sempre foi uma pessoa muito calma e
gentil.
– Um pouco morta, você quer dizer?
– Estou começando a achar que é a sua idade – falou o médico –
você está crescendo. Já é um adolescente.
O garoto estava começando a ficar um pouco aborrecido com a
conversa. Achava que o médico tinha vindo lhe xingar. Já tinha
preparado bons argumentos para retrucar, mas ele começou a falar de
baboseiras psicológicas. Era uma decepção. Acabou com sua diversão.
– Eu já sou um adolescente há muito tempo – falou o garoto – caso
você nunca tenha percebido.
– Cada um tem seu tempo – reconheceu o médico – e acho que você
tem todo o direito de se manifestar.
– É, eu também acho – concordou o garoto. Talvez fosse aquela a
estratégia do médico: fazê-lo concordar com tudo até chegar ao ponto
que queria. De qualquer forma, aguardaria para ver o que viria a seguir –
Esse lugar é muito chato.
– É verdade.
– Cheio de zumbis caminhando pelos corredores – prosseguiu o
garoto, esperando para ver se ele concordava – Cadáveres vivos
vegetando pelos quartos e dormindo pelos cantos, apenas suportando e
sobrevivendo, aguardando ansiosamente o salário do mês seguinte. Deve

115
Juliana Duarte

ser muito monótono para você também. Eu preciso arrumar algumas


confusões para que você ao menos mereça o salário que ganha.
O garoto se calou por um momento para fitar o médico. Talvez
tivesse ficado um pouco dramático. Mas estava com vontade de dizer
aquilo.
– Eu entendo sua frustração – falou o médico – e até desculpo você.
– Eu não pedi desculpas – o garoto estava tentando encurralar o
médico, mas ele se mostrava muito esperto.
– Ainda assim, estou satisfeito. Estava preocupado porque você
sempre foi um garoto tímido e introvertido. É bom que você esteja se
soltando mais.
– Sim, é ótimo. A próxima a voar pela janela será a geladeira.
– Certo, fique à vontade. Só não mate ninguém, sim? Ainda bem que
o sorveteiro não pediu uma indenização. O hospital não tem muitos
recursos para pagar os estragos provocados pelos devaneios de nossos
pacientes.
– Ah, isso se percebe com facilidade. Pois se tivesse recursos eu
tenho certeza de que alguém teria trocado a lâmpada do meu quarto nos
últimos cinco anos, as paredes seriam um pouco menos sujas e não teria
uma teia de aranha pendurada no teto.
– Possivelmente não – concordou o médico – bem, tenho que ir
agora. Qualquer coisa que precisar, é só me chamar.
– Entendi. Basta se manter a menos de cinco quilômetros daqui que
certamente vou chamá-lo.
– Combinado.
E o médico fechou a porta.
Para sua completa surpresa, havia falado tudo o que lhe viera à
cabeça: as ofensas mais sinceras e irritantes que conseguiu se lembrar; e
se sentia muito bem. Mas, para a sua decepção, o médico não se sentiu
nem mesmo minimamente ofendido!
Deveria praticar um pouco mais da próxima vez. Aquele sujeito era
esperto demais.

Diário das Agulhas: 24 de março de 2000

116
Palácio dos Alfinetes

Hoje ganhei um presente.


Eu nunca ganho presentes, mas hoje meu pai tinha uma surpresa. Ele
falou que já que eu precisaria passar um tempo longo no hospital era
indispensável que eu tivesse um baralho. E foi o que ele me deu.
Nunca aprendi nenhum jogo de baralho. Eu não entendo direito as
regras dos jogos; tudo parece muito difícil. Prefiro simplesmente olhar as
cartas. Elas são bem bonitas.
Mas acho que vou enjoar delas bem depressa.

Copas: Seção # 0.1

– Não posso olhar?


– Não quero que veja meu rosto. Está vendo aquele quarto ali?
– Estou.
– Ele será seu lar. Estou dando a você. Dentro dele encontrará os
mais belos brinquedos e todas as diversões jamais sonhadas.
– Incrível! – falou ela, maravilhada – Posso ir até lá? Posso brincar?
– Claro. Mas você observará que na parede estará pregado um papel
com três regras. Você deve segui-las. Se assim for, poderá se divertir
sossegada, sem preocupações.
– Certo – concordou ela – Qual o seu nome?
– Você pode me chamar de O Alfaiate.
– E qual o meu nome?
– Sangria. Você é a primeira a nascer no Palácio dos Alfinetes.
– Sou a primeira? – perguntou ela, orgulhosa – Então outros virão
depois de mim.
– Mas você deve se lembrar que é especial. Não se esqueça de que foi
a primeira a nascer por uma razão muito importante e que você é e
sempre será a minha favorita. És a mais bela e a mais graciosa. Honre a
sua condição.
Ela sentiu-se aquecida e confortada por dentro.
– Posso ir brincar agora?
– Antes de ir, eu gostaria de lhe dar alguns presentes.
– Os presentes não estão dentro do quarto?
– Mas esses são especiais. Esses presentes são o seu coração.

117
Juliana Duarte

– O meu coração...?
– Diga um número. O número que mais lhe agrada.
– Quatro.
– Estenda a mão.
Ela estendeu. Quando a trouxe de volta, observou a carta 4 de Copas.
– Adorei!
– Por favor, pegue seu segundo presente.
Ela estendeu a mão novamente. Nela estava a carta Ás de Copas.
– Porque você é a primeira. E agora, o último presente.
Em suas mãos ela contemplou a última carta: a Dama de Copas.
– Eu gostei muito deste. É o meu presente favorito!
– Dei-lhe esse porque você é minha rainha.
– Se eu sou a sua rainha, você deve ser o rei – observou ela.
– Sim; mas esse é nosso segredo. Jamais o revele para ninguém.
Entendeu?
– Entendi. Posso ir brincar agora? Posso? Posso?
– Sim, vá brincar. E cuide bem dos presentes.
– Eu vou cuidar.

Espadas: Seção # 0.0/0.1

Não estava surpreso em saber que não tinha apenas uma doença. A
cada ano que passava, percebia que era um ninho de doenças. Já não se
espantava mais quando descobriam alguma coisa nova.
A notícia de que teria que ficar no hospital não era realmente
desconcertante. Poderia ser pior. Talvez tivesse que morar no hospital
por um tempo, mas ainda assim era melhor do que ficar em casa. Não
aguentava mais os pais discutindo. Era doentio.
O médico aparentava ser simpático, ou ao menos assim ele pensou à
primeira vista.
– Olá. Tudo bem?
Ele apenas concordou com a cabeça.
– Qual o seu nome?
Ele não respondeu. Ainda estava um pouco desconfiado.
– Qual a sua idade?

118
Palácio dos Alfinetes

Não queria falar com aquele homem desconhecido. Resolveu fazer


que nem criança e mostrar as duas mãos diante dele.
– Dez anos?
Ele concordou silenciosamente.
– Bem, vamos passar um bom tempo juntos por aqui – ele sorriu.
Por alguma razão, aquele sorriso lhe incomodou. Percebeu
imediatamente que o sorriso era dispensável.
– Você vai ter que seguir algumas regras a partir de agora –
prosseguiu o médico – mas não se preocupe. Eu estarei sempre lhe
instruindo para que não se esqueça delas.
Aquilo estava começando a ficar estranho.
– Você vai poder comer coisas bem gostosas – falou o médico,
sorrindo de novo – prometo que vou escolher bem.
Ele gostou menos ainda desse segundo sorriso.
– Você não pode comer doces, não se esqueça. Mas há outras
comidas muito boas.
– Eu não posso comer chocolate? – perguntou o menino, falando
pela primeira vez.
– Não, sinto muito – falou o médico – na verdade você não pode
comer queijo também. E nem iogurte.
– Eu gosto de iogurte. Por que não posso comer?
– Bem, a sua mãe me contou que você comeu chocolate uma vez –
falou o médico – e você lembra o que aconteceu?
Ele pensou.
– Ficou coçando. E acho que me engasguei.
– Há alguns sintomas que você pode ter experimentado ao comer
uma dessas coisas – falou o médico – coceiras, feridas na pele, vômitos,
convulsões, dificuldade de respirar...
– Meus colegas de escola comem essas coisas. Por que não posso
comer?
– Porque você possui intolerância à lactose.
– Intolerância a quê?
– Alergia ao leite – explicou o médico – é um pouco raro, mas nem
tanto. Acontece.
“É um pouco raro, mas nem tanto”. Aquele médico estava se
contradizendo; e mentindo, e sorrindo. Não gostava disso. Ele lhe

119
Juliana Duarte

confortava para depois lhe revelar o pior. E quando ele sorria, ele logo
desconfiava que alguma coisa não estava bem. Aquilo lhe deixava
nervoso.
– Então... não posso beber leite – concluiu ele, antes que ele
enrolasse mais para lhe dizer – nada que tenha leite.
– Sim – concordou o médico – pizzas, lasanhas, chocolates,
brigadeiros, bolos, bolachas recheadas, tudo isso está fora de questão.
– O que vou falar então quando um colega meu me oferecer uma
bolacha?
– Não se preocupe. Você não vai poder mais ir à escola. Vai precisar
fazer muitos exames, o tempo todo. Então seus pais decidiram que seria
melhor você morar aqui conosco.
– Não preciso mais estudar? – perguntou ele, esperançoso.
– Você terá aulas particulares.
Não achou aquilo realmente ruim. Não gostava de ir à escola e os
seus colegas eram chatos.
– Só porque não posso beber leite vou ter que ficar aqui?
– Claro que não – falou o médico, rindo – se fosse só isso não
haveria maiores problemas. Na verdade, há um ou outro detalhe que
também precisam ser observados...
Sentiu um ligeiro espasmo de raiva ao escutar aquele riso.
Se pudesse tapar os ouvidos, teria feito. Ele não queria ouvir nomes
científicos, explicações difíceis e o relato de todas as doenças que já teve,
que tinha ou que “teria grande probabilidade de desenvolver” se isso ou
aquilo. Quanto mais problemas tinha, parecia ficar propenso a ter mais.
Quando terminou o papo, que ele mal prestou atenção, o médico lhe
entregou um livro.
– Você pode dar uma olhada se quiser, para aprender mais – falou
ele, colocando um grosso volume de capa dura em sua mão – Ah, sim, e
algumas vezes você será transferido para outra sala. Uma garotinha virá
para cá nesses momentos. Então, pode-se dizer que você dividirá o
quarto com ela. Ela já mora aqui há algum tempo.
– O que vou fazer na outra sala?
– Eu explico depois. Fique à vontade. Eu volto depois para fazer um
check-up.
E saiu do quarto, com o mesmo sorriso detestável estampado na cara.

120
Palácio dos Alfinetes

“Eu explico depois”. Aquilo era praticamente sua condenação. Se ele


nem disse o que ele faria na outra sala, era mais provável que fossem
submetê-lo a uma sessão de tortura.
Não gostava de tanta explicação. Preferia que ele simplesmente lhe
dissesse o que ele podia e o que não podia fazer e acabou. Apenas o
mandasse não beber leite e ficar comportado ou qualquer coisa assim. E
se calasse de uma vez.
Baixou os olhos para o livro em suas mãos. Abriu-o. Folheou-o.
Não podia ter encontrado um livro mais desinteressante do que
aquele, mesmo que procurasse muito: apenas um monte de palavras
difíceis e descrições em letras pequenas. Será que aquele médico
realmente achava que ele leria aquilo?
Ele passou os olhos pelas palavras: “Câncer, cancerígeno, canceroso,
cancro...”
Aquilo lhe parecia um dicionário de desgraças, ou, mais
especificamente, um dicionário de doenças. E deveria ser mesmo, mas
um pouco mais completo. Além da descrição, havia algo como os
sintomas e precauções. Uma boa leitura de cabeceira, com certeza. Sairia
dali especialista em descrições mórbidas para ficar no clima de sua
simpática estadia no hospital. Era tudo o que precisava.
Ele largou o livro no chão e chutou para baixo da cama. Porém, havia
tanta coisa amontoada lá embaixo que não cabia mais nada. Ele
simplesmente deu um grande chute e se deitou de volta na cama.
Ele fitou o teto. Nada lá atraía sua atenção e aquele quarto era vazio e
pequeno. Deveria admitir que era aconchegante, embora um pouco
abafado.
Procurou alguma coisa na mesa de cabeceira. Na primeira gaveta
havia um isqueiro. Provavelmente seu médico fumava, como seu pai.
Saber daquilo o incomodou. O médico fazia todas as coisas proibidas
que ele mesmo jamais poderia fazer. Era como se zombasse dele pelas
costas e, com o seu sorriso, completasse seu triunfo. Odiou-o por isso.
Ele abriu a segunda gaveta. Recolheu o diário que ganhou alguns dias
atrás. Tinha escrito nele duas vezes. Não achava que ia escrever mais.
Segurou o baralho que seu pai lhe deu. As cartas eram bonitas. Ele
não se cansava de olhá-las, mas no fundo sabia que, mesmo que tudo
naquela sua nova vida fosse diferente, ele logo iria enjoar.

121
Juliana Duarte

Mas enquanto ainda estava interessado ia aproveitar. Fitou as cartas,


observando com detalhes todas as figuras. Queria escolher a sua
preferida.
Finalmente, uma carta lhe chamou a atenção em especial: o rei.
O rei estava sério e olhava para lugar nenhum. Possuía uma coroa e
um manto real. Apenas reinava. Não precisava sorrir, mentir, ou nem
mesmo dizer uma palavra. Apenas sua figura já mostrava tudo; e calava a
todos.
Ele recolheu os quatro reis do baralho e separou-os. Prosseguiu
embaralhando as cartas. Tinha tão pouca habilidade nisso que acabou
derrubando todas no chão.
Abaixou-se para pegá-las. Recolheu a maior parte delas do lado da
cama, mas desconfiava que alguma houvesse caído embaixo.
Começou a retirar tudo o que tinha por baixo da cama: panos velhos,
casacos, caixas, o dicionário de doenças... e parecia não acabar mais. Ia
fazer uma bela bagunça.
Uma caixa aberta lhe chamou a atenção. Havia alguns brinquedos
coloridos nela. Não fazia ideia do que aquilo fazia ali. Curioso, começou
a retirar os brinquedos um a um e a observá-los. Havia de tudo: bonecos,
bonecas, palhaços...
Segurou uma das bonecas. Algo nela lhe chamou a atenção. Talvez
fosse seu magnífico vestido cor de vinho, os seus longos cabelos negros
ou seu doce e gracioso rosto de boneca.
No momento em que a observava, alguém entrou no quarto: uma
mulher vestida de branco, com longos cabelos negros presos num rabo-
de-cavalo.
Ele começou a guardar as coisas rapidamente, achando que ela ia
xingá-lo pela bagunça. Mas ela apenas falou:
– Que lindos brinquedos. São seus?
Ele fez que não com a cabeça.
– Aqui está o seu lanche – falou ela, colocando uma bandeja em cima
da mesa de cabeceira – E não se esqueça de tomar bastante água.
Ele concordou de novo, em silêncio. Ela saiu e fechou a porta.
Ainda assim, ele permaneceu a fitar o local pelo qual a mulher saíra.
Quem era ela? Nunca a havia visto. Era médica também? Talvez,
pelas roupas.

122
Palácio dos Alfinetes

Ele voltou seus olhos para a boneca. A beleza daqueles brinquedos


jamais teria um correspondente real entre as pessoas. Mas se alguma se
aproximasse da graça daquela boneca de longos cabelos negros, ele
decidiu que seria ela.
Era estranho como poderia simpatizar com uma pessoa em poucos
segundos.
Encontrou no chão ao seu lado uma das cartas que escapou de suas
mãos enquanto embaralhava. E recolheu-a com a mão esquerda.
Era a Dama de Copas. Com a mão direita ele ainda segurava a
boneca.
Ele sentiu alguma coisa especial ao fitar a boneca de vestido cor de
vinho e vê-la ao lado da bela carta. Quase podia sentir que ambas se
pertenciam: a carta e a boneca.
A boneca era a rainha. E ele era o rei.
Ele recolheu os quatro reis que separara anteriormente e retirou o Rei
de Copas. Colocou-o ao lado da Dama.
Retirou os outros brinquedos da caixa. Ainda segurava a boneca de
vestido cor de vinho. Levantou-a e sentiu como se ela o fitasse. Aquela
expressão melancólica do rosto da boneca era linda demais.
“Brincar de bonecas é coisa de menina” esse pensamento veio à sua
mente.
Mas não se importava. Não sabia quem disse aquilo, mas deveria ter
sido uma pessoa muito idiota. Além do mais, ninguém precisava vê-lo
com elas. Aquela médica o flagrou, era verdade. Mas graças a ela, a
boneca de vestido cor de vinho nasceu.
Nascer. Como poderia dar vida a ela? Aquilo tudo estava começando
a ficar interessante. Um pouco bobo, era verdade, mas estava gostando.
Ele vasculhou dentro da caixa, vendo se encontrava mais alguma coisa;
mas só havia brinquedos lá.
Ele procurou em outras caixas. Encontrou uma cesta com agulhas,
linhas, carretéis, novelos de lã, alfinetes e toda a parafernália de uma
costureira. As pessoas inventavam passatempos estranhos no hospital
para esquecer o tédio.
Ele segurou uma agulha e um carretel. Descobriu que não sabia nem
mesmo colocar uma linha numa agulha. Levou algum tempo para
conseguir, mas costurar nem ia tentar. Nunca tentou fazer aquilo na vida

123
Juliana Duarte

e nem pretendia. Só viu algumas vezes sua mãe costurando e aquilo não
foi o suficiente nem para aprender a dar um nó numa linha.
O menino desenrolou o carretel. Girou a agulha em volta da boneca
para enrolá-la. Fingia que costurava, como se de fato pudesse dar vida a
ela através disso.
E sentiu que naquele momento ela nascia. Colocou a Dama de Copas
diante dela.
Porém, a sua princesa merecia muito mais. Escolheu mais duas cartas
para ela. Ainda havia tantas bonecas! Precisava dar prosseguimento às
suas criações.
A segunda boneca que recolheu trajava um longo vestido negro e
tinha parte dos cabelos trançados. Era melhor nem mexer nos cabelos
dela ou não conseguiria fazer as tranças novamente. Ele sentia-se um
completo inútil: não sabia costurar, jogar cartas, fazer tranças... enfim,
não era bom em nada. Talvez sua mãe tivesse razão: ele era um completo
fracasso. Jamais se destacaria. Claro que ela não lhe falava nesses termos,
mas ele já captara a mensagem.
Então ele fitou o rosto severo da boneca de negro e viu nela sua mãe;
por alguma razão lhe lembrava. O silêncio, a decepção, a depressão; e a
roupa negra encaixava-se com perfeição na postura soturna e distante
dela. Escolheu para ela a carta número 8.
Naquele momento, o médico entrou no quarto.
– Olá – cumprimentou ele, sorrindo – Já trouxeram sua refeição?
O menino se esqueceu completamente disso.
– Ah, você encontrou as bonecas dela?
– De quem?
– Da menina que divide o quarto com você.
Não fazia muita diferença de quem era. O importante era que ela não
as tirasse dali.
– Está gostando do livro que te emprestei?
a) mais ou menos
b) não
c) livro?
– Sim, estou.
– Que bom – falou o médico, achando graça – então, divirta-se.
E fechou a porta.

124
Palácio dos Alfinetes

Aquele médico era muito inconveniente. Poderia pelo menos bater


antes de entrar. Desejou que ele estivesse bem longe dali, mas não tinha
escolha. Ele precisava do médico, mesmo que detestasse admitir isso.
Mesmo que não quisesse, ele sempre estaria ali.
Foi então que teve uma ideia repentina: procurou um boneco bem
feio na caixa, mas todos eles pareciam ser novos e belos. Não tinha
nenhum que atendesse aos requisitos.
Foi então que encontrou. Era um boneco com vestes coloridas.
Usava um chapéu com muitas pontas e golas largas; era um bobo-da-
corte. Qualquer criança que já tivesse lido os tolos livros infantis de
contos de fadas reconheceria a figura risonha que tentava arrancar risos
do rei a qualquer custo.
E o boneco realmente sorria; um sorriso louco, forçado,
desesperador, como se o único objetivo de sua vida fosse refiná-lo o
máximo possível. Afinal, se não servisse mais para fazer o rei sorrir, ele
era dispensável e poderia ser mandado para a forca.
Se não podia mandar o médico parar de dar sorrisos idiotas ou calar a
boca, ao menos poderia fazer isso com o boneco dele.
Mas ao fitar o sorriso daquele boneco, o menino sentiu que não
poderia derrotá-lo de verdade. Precisava seguir as suas regras: não podia
beber leite; não podia fazer bagunça; não podia deixar aquele quarto do
hospital.
Foi então que percebeu qual a carta que pertenceria a ele: a única
carta do baralho que não poderia ser domada.
Podia estar em vários lugares, em todos os naipes. Era a carta vale-
tudo dos jogos; sempre estaria lá. Mesmo sem saber nada sobre jogos, ao
menos disso ele sabia.
Não se lembrou de nenhuma outra pessoa especial de sua vida que
poderia retratar. Mesmo morando pouco tempo no hospital, desde
pequeno ele já passara boa parte de sua vida lá. Não conhecia muitas
pessoas; não tinha amigos.
Lembrou de seu pai; via-o tão pouco que até se esqueceu dele. Ainda
mais ausente que sua mãe. Sentia que seu pai não tinha coragem de
visitá-lo. Talvez porque simplesmente não quisesse. Seria ocupado
demais? Desejava que ele se livrasse desse medo; dessa barreira que os
separava.

125
Juliana Duarte

Escolheu um boneco da caixa. Ele vestia um uniforme azul e prata


com uma longa capa. Se não fosse o tamanho, diria que era um daqueles
super-heróis de caixinha de sucrilhos. Uma espécie de herói das estrelas
que detonava monstros.
Pegou o novelo de lã da cesta. Desenrolou-o e envolveu o
bonequinho nele. Amarrou suas pernas e braços.
Abriu a primeira gaveta da mesa de cabeceira e segurou um
esparadrapo. Cobriu a boca do boneco com ele. Experimentou pendurá-
lo para ver o efeito que causava.
De alguma forma era assombroso. Experimentou pegar um alfinete
da cesta.
– Este, pai, é por nunca ter vindo me visitar – ele espetou o primeiro
alfinete.
Recolheu um segundo.
– Este é pela sua covardia. Afinal, do que você tem medo...?
Segurou um terceiro.
– Este é por ter me esquecido para sempre.
E espetou no boneco. Prosseguiu com o ritual macabro, embora não
estivesse assim tão assustador, já que infelizmente o único novelo que
encontrou foi na cor rosa.
– Você vai dormir. Vou trancá-lo. Mais tarde vou pensar no que faço
com você.
E sentiu o poder; o poder de fazer tudo o que quisesse. Possuía a
coroa e o reino.
Experimentaria o poder apenas uma vez, somente porque no fundo
não podia nada; e porque não tinha ninguém.
Tinha muitas bonecas para brincar. Naquele momento, as ideias mais
fantásticas vieram à sua mente, fazendo-o deleitar-se em êxtase.
Mas era melhor se acalmar um pouco, ou sua comida viraria uma
papa. Ele já tivera desagradáveis experiências com as comidas de
hospital. Então guardou as bonecas de volta na caixa e tentou organizar
um pouco a bagunça.
E novamente deparou-se com o livro chato do médico, que havia
chutado para baixo da cama. Iria deixá-lo na mesa de cabeceira só para
enganá-lo.

126
Palácio dos Alfinetes

Recolheu a bandeja e sentou-se na cama. Descobriu um líquido


branco e melequento dentro de um pote, em que uma colher estava
enfiada. Era gosmento; e nojento. Mas ele até entendia. Uma coisa que
não tivesse queijo ou chocolate não poderia ser boa.
Ele experimentou. Para a sua surpresa, não era tão ruim. Talvez com
um pouco mais de tempero...
Acabou em pouco tempo seu lanche. Recolocou a bandeja na mesa
de cabeceira, por cima do livro. Aquela coisa estava atrapalhando.
Abriu em uma página qualquer. Apontou uma palavra.
“Sangria: perda de sangue natural ou provocada. Incisão na veia para
fazer correr sangue”
Bom saber. Embora tivesse certeza de que poderia morrer muito feliz
sem nunca ter ouvido falar naquilo.
Mas ele identificava-se com aquelas expressões. Querendo ou não, ele
vivia em um hospital. Por isso aquelas palavras feias sempre lhe traziam
uma lembrança muito próxima.
Aquelas palavras lhe pertenciam.
Sangue não era uma coisa exatamente desagradável. Aquela cor
vermelha, ou vermelha escura, recordou-lhe o tom vinho do vestido de
uma das bonecas.
Ele voltou a mexer embaixo da cama e abriu a caixa imediatamente.
Segurou a boneca.
– Sangria.
Então descobriu que poderia se divertir muito com o livrinho. O
próximo a ser batizado seria o médico. Ia escolher um nome bem feio
para ele. Abriu o livro e começou a procurar. Demorou um pouco mais
para encontrar exatamente o que queria.
– HPV... Papiloma Vírus Humano. Legal, bem nojenta. Essa mesma.
Era perfeito.
– Papiloma – falou em tom zombeteiro, fitando o sorriso insano do
bobo-da-corte.
Empolgado, continuou sua procura.
– Lúpus, a doença da borboleta. Feridas em forma de borboleta... que
esquisito.
E quanto mais lia, mais se animava.

127
Juliana Duarte

O médico certamente ficaria muito satisfeito com as novas palavras


que estava aprendendo. E jamais imaginaria aquilo que se escondia por
trás delas.

Copas: Seção # 5.2

Ela estava sentada costurando, como costumava fazer.


Dessa vez não era um novo fantoche ou molde de boneca que
costurava, e sim seu próprio braço esquerdo despedaçado.
Estava concentrada na tarefa, extremamente séria.
Uma figura surgiu diante da garota de vestes negras.
– Saia daqui, Papiloma – falou ela, sem nem mesmo dar-se ao
trabalho de erguer os olhos – não tenho nada para conversar com você.
– Mas comigo você tem.
Ela ergueu os olhos. De tão chocada, derrubou no chão os objetos
que tinha nas mãos.
– Você...! – era um misto de susto e indignação – O que faz aqui? Por
que me puniu? Eu não fiz nada! Não roubei nenhum de seus malditos
presentes, não escapei da minha gaiola miserável e jamais...
– Calma – falou ele, de pé diante dela – ouça o que tenho a dizer.
Ela se calou, embora ainda o fitasse com uma expressão de ódio
cauteloso.
– Hoje é o grande dia e preciso de você comigo.
– Hoje? – perguntou ela, admirada – Você me retalha sem eu ter feito
nada e depois vem pedir meu apoio?
– Ou você está comigo ou está contra mim. Avisei a todas vocês no
momento da criação que esse dia chegaria. E, mesmo com suas falhas,
ainda estou disposto a entregar-lhe o presente mais precioso.
– Ouros...? – seu orgulho não era grande o bastante para superar sua
cobiça.
– E especialmente para você, Menarca, dois presentes ainda mais
especiais – revelou ele – o reencontro com duas pessoas muito queridas.
De dentro do bolso de seu paletó ele retirou duas cartas vermelhas. E
mostrou-as.
– Dez de Ouros... Sete de Ouros...! – ela mal podia acreditar.

128
Palácio dos Alfinetes

– Você entendeu. Então, queira me acompanhar. Temos muito que


fazer.

Espadas: Seção # 5.2

– Eu conversei com o seu médico. Ele me contou o que aconteceu.


Ele manteve silêncio.
– Eu entendo o que você está sentindo.
Não, com certeza ela não entendia. Não sabia de nada.
– Aquela menina era especial para você.
– Não – admitiu ele – eu só estava interessado nos brinquedos dela.
– Então por que fez aquilo?
– Você não sabe – ele pronunciou essas palavras baixinho, mais para
si mesmo.
– Eu sei sim. Você não aguenta mais este hospital. Se sente preso e
sozinho e gostaria de sair de qualquer maneira.
Ele levantou os olhos. Nunca a ouviu falar daquele jeito antes; falar o
que era óbvio e evidente. Ela não costumava tocar no assunto.
Simplesmente porque não teria nenhuma solução.
– Você precisa ver o mundo – prosseguiu ela – mesmo quando você
ainda não morava aqui, nunca se divertiu de verdade. Nunca saiu; nunca
teve amigos. Antes você era pequeno e tímido. Agora já é um
adolescente.
Será que todos aqueles papos dos últimos tempos tinham sido
resultado de sua rebeldia e má educação em destruir brinquedos que não
eram seus e gritar com o infeliz sorveteiro da esquina e quase matá-lo?
Em vez de o estarem xingando, era como se começassem a lembrar dele
pela primeira vez na vida: lembrar que ainda estava vivo. Porque até
aquele momento, ele mesmo havia se sentido morto.
Ele não se pronunciou. Sentia-se bem por sua mãe ter vindo visitá-lo
e isso era o bastante. Se ela continuasse a vir uma vez por semana seria
capaz de aguentar tudo. Pensou em dizer isso a ela. Teria coragem?
Percebeu que não tinha mais nada a perder.
Mas antes que ele começasse a falar, ela foi mais rápida.

129
Juliana Duarte

– Eu vim buscá-lo. Já conversei com o seu médico. Hoje você voltará


para casa.
Ele não falou. Não acreditou. Ela estava blefando. Nem se deu ao
trabalho de se surpreender.
– Você sabe que eu não posso, mãe. Eu preciso estar aqui para fazer
a cirurgia toda a semana.
– Você virá só uma vez por semana. Apenas aos domingos.
– Mas não é só isso – falou ele – preciso ficar ligado a essas máquinas
todos os dias. A tubos e não sei mais o quê. Não posso sobreviver sem
isso.
– Você terá os medicamentos em casa. Ao menos a parte principal
deles.
Ainda assim, ele não se convenceu. Era óbvio que não podia. Se fosse
tão simples assim, já teria sido feito há muito tempo.
Então, de repente ele entendeu. Olhou para a mãe. Ela evitou o
olhar.
Ele baixou os olhos de novo. Escondeu o rosto.
– Eu sempre soube que isso ia acontecer – falou o garoto, em tom
sério – eu sempre soube. Ninguém precisa mais esconder isso de mim.
– Não adianta mais você ficar aqui – falou a mãe – não adianta mais.

Teatro de Marionetes: Primeiro Ato – Fantasmas: Cena 2

(entra um fantasma)
PRIMEIRO FANTASMA: Eu sempre volto! Retorno quando a
esperança dos loucos se esvai! Não há mais amor, não há mais ódio!
Nada resta, nem mesmo o ruído seco e fino do grito dos ratos!
(entra outro fantasma)
SEGUNDO FANTASMA: Mas que desgraça! Anseio loucamente
fazer da miséria minha amante. Somente ela pode e reina. Sem cessar,
mascara e esconde. Contudo, inda reserva o títere os ingressos do último
espetáculo!
(os dois fantasmas giram um em volta do outro)
PRIMEIRO FANTASMA: Assombro!
SEGUNDO FANTASMA: Grande festa!

130
Palácio dos Alfinetes

PRIMEIRO FANTASMA: Toca o gongo, sem demora, toca o


gongo!
(entra o terceiro fantasma)
TERCEIRO FANTASMA: Luz, lá no alto. Pequenos são meus
braços que não a alcançam. Fumaça.
PRIMEIRO FANTASMA: Teus braços de vidro agradecem da falta a
carne.
TERCEIRO FANTASMA: Antes fosse! Antes fosse!
PRIMEIRO FANTASMA: Pavor de olhos sem expressão! Olhos
encovados e vazios. O Senhor-não-olhos!
SEGUNDO FANTASMA: Fisga teu salmão, pois na linha de tua
vara ainda se esfrega e contorce a insolente minhoca fétida!
TERCEIRO FANTASMA: Da vitrine astutamente pula O
Manequim. No beco se esconde. Covardemente cobre os olhos, incapaz
de espremê-los pelos encovados buracos de tinta branca da face pré-
fabricada.
PRIMEIRO FANTASMA: Um ser vil e mesquinho ele é, que paz
aqui ou lá não encontra. Pregado bruscamente contra o poste, assim
encontrará a luz de seu globo ocular.
SEGUNDO FANTASMA: Mas não satisfeito, derruba ele o poste na
cabeça do vizinho zombeteiro. E espetacularmente seu fim encontra
eletrocutado.
PRIMEIRO FANTASMA: Bravo! Bravo!
(o fantasma bate palmas)
TERCEIRO FANTASMA: Será realmente o fim da dança?
PRIMEIRO FANTASMA: Assim torceria a platéia, lançando
ferozmente de apodrecidas sementes a gordura no malfadado bufão.
SEGUNDO FANTASMA: Pois guarda a tua esperança. Parteira de
rasgados rascunhos criacionistas, vesgo o olho, da carne salta o rebento,
embora manco sobreviverá O Manequim.
(os fantasmas saem de cena).

Copas: Seção # 5.3

131
Juliana Duarte

Ela estava deitada. Ainda sentia os rasgos em sua pele, mas prometeu
a si mesma que suportaria tudo.
Sabia que Ele estava sofrendo muito mais; e aquilo doía.
Os brinquedos estavam espalhados pelo chão. A sua ovelhinha
branca permanecia dilacerada. As peças de Lego estavam jogadas; seu ex-
castelo, agora destruído. Bolinhas de gude jaziam esquecidas.
E foi naquele momento que escutou o som: um giro de chave na
porta que jamais foi aberta. Ela ergueu os olhos. Levou um grande susto;
o maior susto que já levou na vida. Era verdade: a chave girava na porta.
Subitamente, ela se abriu.
Uma figura de cartola e capa negra adentrou.
– Tala – falou Ele – É hora.
Ainda no chão, ela o fitava com admiração. Ele havia se mostrado.
Ela podia vê-Lo. Não sabia explicar o que sentia.
– Eu posso me oferecer como sacrifício – falou ela – posso suportar
a dor por você. Posso rasgar-me até os ossos.
– Você já teve seu tempo – falou O Sapateiro – e suportou tudo
bravamente. Você honrou sua promessa.
Os olhos dela brilharam.
– Devemos reunir todos no Grande Salão da Frente de Loja. Devo
abrir as portas agora. Siga pelo Corredor Sem Fim. Você encontrará
Menarca.
Tala levantou-se com dificuldade. Sua camisola era alva. Ela apoiou-
se nas pernas fracas, segurando nas paredes. Recolheu também a sua
ovelhinha destruída.
– Menarca deverá curá-la.
Ao passar por Ele, ela ainda olhou-O, com sua inocente ingenuidade.
Os olhos curiosos buscavam aquele que sempre desejou fitar. Para a sua
surpresa, o rosto d’O Sapateiro possuía compreensão por trás de sua
seriedade e imponência.
– Agora vá – falou Ele.
Tala seguiu sem olhar para trás novamente.
Ele dirigiu-se para o Quarto de Casal, uma vez que deixou o Quarto
vazio. Rompeu o lacre da fechadura.
A garota de vestes cor de vinho fitou-o com surpresa. Escondeu o
rosto.

132
Palácio dos Alfinetes

– Não tenha medo – falou O Sapateiro – venha.


Porém, ela não se mexeu.
– Tenho um presente para você.
Finalmente, a garota olhou-o.
– Você vai me enganar de novo.
– Você me enganou primeiro – falou O Sapateiro – saiu do Palácio e
já foi punida por isso. Não guardo mais rancores contra você.
Ainda assim, ela não se levantou.
– Levante-se, Sangria – ordenou O Sapateiro – vamos partir agora. Se
a sua escolha for permanecer, ficará trancada para sempre e ninguém
mais guardará a chave de sua liberdade.
Sem escolha, Sangria levantou-se. No chão permanecia o tabuleiro de
damas com as peças espalhadas, peças de dominó, um ioiô esquecido. As
paredes preenchidas por joaninhas vermelhas e negras seriam
abandonadas.
O Sapateiro atravessou o corredor e dirigiu-se à Dispensa. Abriu a
porta. Um monstro deformado de vestido o aguardava.
– Carcinoma – falou O Sapateiro – Você foi um experimento que
não deu certo. Trapos velhos remendados como um Frankenstein. Mas
tive pena de você. Não a joguei fora. Surpreendentemente, mostrou-se
como uma das mais fiéis.
– Carcinoma ser fiel. Ser verdadeira; se esforçar; tentar. Carcinoma
também ter sonhos.
– Os seus sonhos irão se concretizar.
Ele dirigiu-se ao Alçapão. Abriu-o.
– Chaga.
A garota de vestes roxas levantou-se.
– Você deixará Lúpus? – ela perguntou.
– Será seu último teste de coragem. Ele mesmo deverá aprender a
voar.
Chaga concordou com um aceno de cabeça. Ambos seguiram pelo
longo corredor branco em silêncio, até que alcançaram a porta da Frente
de Loja. Atravessaram-na.
As bonecas aguardavam. Chaga juntou-se a elas.
Cinco bonecas sentavam-se sobre o tapete do Grande Salão da
Frente de Loja, rodeadas pelos mais belos brinquedos. Apenas

133
Juliana Duarte

Carcinoma destoava a perfeição dos rostos das graciosas bonecas.


Porém, apenas por estar entre elas, até mesmo ela revelava alguma graça.
O Sapateiro deu alguns passos, saindo por detrás do balcão da loja.
As cinco bonecas logo ficaram de pé.
O rosto de Menarca era severo, como de costume. Tala revelava no
olhar graça e inocência, quase como se ela e Menarca representassem
personalidades exatamente opostas, assim como as cores de suas vestes:
preto e branco.
Carcinoma, com seu rosto sem expressão, estava com a cabeça bem
longe dali, apesar de estar orgulhosa e ciente de que algo grande estava
por acontecer. Sempre soube que era apenas um pedaço de lixo
esperando para ser descartado. Era reconfortante encontrar-se entre as
mais belas e perfeitas criações do Grande Artífice.
Sangria estava séria, embora bastante surpresa com tudo aquilo.
Sentia uma grande culpa pesando em seus ombros, perguntando-se se de
fato era digna do presente especial. Chaga apenas permanecia de pé, com
o rosto tranquilo.
– Bonecas do Palácio – anunciou O Sapateiro – Hoje é o dia do
Grande Sonho. O sol brilhará e nascerá do Ovo de Ouros.
Carcinoma e Tala estavam maravilhadas; não escondiam sua
admiração. Sangria apenas fitava-o com espanto. Menarca transformou
um pouco sua expressão séria. Chaga observava tudo com curiosidade.
– A vivência aqui no Palácio foi essencial para prepará-las e devo
admitir que estou muito satisfeito; mas não com todas.
Um momento de silêncio. Todas ali já tinham entendido a que ele se
referia.
– Infelizmente, dois membros do nosso simpático grupo não estão
aqui conosco. Menarca já cumpriu sua pena como minha costureira
particular e Sangria guardará a sua punição para sempre. Portanto, Tala;
Chaga; Carcinoma – pronunciou O Sapateiro – vocês serão as primeiras.
Aproximem-se.
As três adiantaram-se alguns passos. Elas se ajoelharam diante dele.
Sangria percebeu que algumas pessoas na rua espiavam com
curiosidade pela vitrine da loja fechada.
O Sapateiro retirou sua cartola.

134
Palácio dos Alfinetes

– Respeitável público! – anunciou Ele – Eis a Bela Mágica: O


Despertar de Ouros!
E de dentro da cartola Ele retirou um leque de três cartas vermelhas.
– Chaga, por favor. Você será a primeira.
Chaga adiantou-se. Receberia das mãos d’O Sapateiro a carta 9 de
Ouros.
Porém, no momento em que ia tocá-la, alguém se interpôs entre eles.
Era Papiloma.
– Que está fazendo aqui? – perguntou o Sapateiro – Você não foi
convidado.
– Chaga! – exclamou Papiloma, sem nem olhar para o sujeito de
cartola – O que você está...?
– Não posso? Acho que mereço meu presente.
– Saia – ordenou O Sapateiro, com seriedade – Você está
atrapalhando.
– Que bom – falou Papiloma – é essa mesma a intenção.
– Você acha mesmo que pode se mover por todos os lugares? –
desafiou O Sapateiro – Mas por quanto tempo?
– Você sabe que nada pode sem mim – falou Papiloma – Se partir e
me deixar aqui, sabe que não haverá esperanças. É por isso que você vai
embora. Por trás de todo o seu teatro e poder, você tem medo.
O Sapateiro encarou-o.
– Eu sei o que você esconde por trás de tanta confiança. Por que
você não as presenteia com Espadas e revela quem realmente é?
Pela primeira vez, o rapaz de cartola ficou levemente surpreso.
– Você sabe – falou O Sapateiro – Maldito...!
– A-há! – exclamou Papiloma, satisfeito – Toquei em seu ponto
fraco!
Porém, Papiloma mal terminou de falar e caiu no chão. O Sapateiro o
derrubou contra uma prateleira. Apertava o pescoço de Papiloma com
suas luvas brancas.
– Eu não posso te enforcar em Espadas, então farei-o em Copas! –
falou O Sapateiro – Os seus sonhos jamais serão realizados.
– Me larga, Pinguim! Não precisa ter medo de me perder! – exclamou
Papiloma, fingindo irritar-se – Ei, você é forte, sabia? Se eu fosse você,
largava o seu uniforme de grande mágico e me dava um soco na cara.

135
Juliana Duarte

– Não me provoque – alertou O Sapateiro.


As bonecas ficaram confusas. Apenas observavam a cena. Já havia
um número considerável de pessoas na vitrine da loja observando a briga
também.
– Acabou – falou O Sapateiro, de repente.
E, no mesmo instante, empurrou Papiloma para dentro de um grande
armário. Jogou-o dentro e, com a sua chave que abria todas as portas,
trancou-o.
Tranquilamente, como se aquilo fosse apenas uma pequena
interrupção, ele recolocou a cartola na cabeça e levantou-se, guardando
as cartas de volta no bolso.
– Está um pouco conturbado por aqui – falou ele, percebendo então
a grande quantidade de curiosos que sussurravam na vitrine e se
empurravam para olhar as pessoas fantasiadas lá dentro – melhor
prosseguirmos em um lugar mais calmo. E, acreditem, assim será muito
mais divertido. Vou levá–las a um local muito especial.
E O Sapateiro saiu pela porta da loja, acompanhado das cinco
bonecas. Um armário furioso se mexia dentro da loja com estrondo. As
pessoas murmuravam curiosas na calçada, observando o grupo esquisito
que passava.

Espadas: Seção # 5.3

Olhou seu rosto no espelho.


Não parecia exatamente saudável. Ao menos estava vivo.
Por baixo de seus olhos castanhos via profundas olheiras, como se
nunca tivesse deitado numa cama na vida, embora na verdade nunca
tivesse saído de uma.
Estava indo embora. Aquilo era estranho. Havia se acostumado ao
quarto branco quase sem móveis e ao banheiro branco com cheiro de
doença. Tudo lá era branco. Apenas branco por todos os lados. Ia
conhecer mais cores a partir dali.
Mesmo não tendo passado toda a sua vida no hospital, sentia como
se fosse. Não se lembrava dos anos anteriores à sua chegada. Guardava

136
Palácio dos Alfinetes

apenas vagas lembranças de sua casa e da rua em que antigamente


morava.
Ele lavou o rosto. Fitou novamente os próprios olhos. Esquisito.
Parecia a única parte de seu corpo que ainda possuía vida.
Finalmente havia retirado o pijama. Estava usando roupas diferentes
e novas que sua mãe lhe trouxe. E tênis! Há anos não se lembrava de ter
colocado um calçado no pé diferente de pantufas ou chinelos.
Daria adeus ao hospital, embora não fosse uma despedida definitiva,
pois talvez ainda voltasse algumas vezes.
Resolveu sair do banheiro. Mesmo depois de morar tanto tempo lá,
ele descobriu que não tinha quase nada. Tudo o que possuía eram os
pijamas, os livros de estudo, o seu diário, o seu baralho e mais uma ou
outra coisa que não se lembrava. Mas caso tivesse esquecido algo lá, não
estaria muito animado para voltar e buscar.
O quarto ficaria vazio.
Ele se encontrou com a mãe no corredor. Ela estava sentada em uma
das cadeiras. Ele parou diante dela com uma mochila na mão onde
levava suas coisas.
Ela não falou nada. Levantou-se. Ele nem mesmo despediu-se do
médico. Não estava com vontade de fazer aquilo. Queria apenas ir
embora de uma vez.
Ele seguiu-a. Os dois saíram pela porta passando pela recepção,
naquele momento vazia. Não era surpresa. Aquele hospital estava
sempre vazio.
Finalmente saíram e desceram pelo elevador.
Os dois permaneciam em completo silêncio. Estavam sérios.
O elevador parou. Eles deixaram o prédio.
Ele sentiu a calçada debaixo de seus pés. Olhou ao redor. Pessoas
passavam na rua; caminhavam por lá. Aquele local não era muito
movimentado.
Ele apenas observou. Não conseguia se lembrar de nenhum
sentimento importante que estivesse experimentando naquele momento.
Apenas caminhava pelas ruas. Não deveria ter nada de especial nisso.
Talvez fosse estranheza. Porém, uma estranheza disfarçada. Ele
apenas a seguia carregando a mochila e vez ou outra olhava ao redor.

137
Juliana Duarte

Não estava exatamente impressionado, mas percebia que tudo estava


diferente: o cheiro, a iluminação, o barulho.
O cheiro do hospital era abafado, igual, como se todas as doenças
cheirassem da mesma forma. O cheiro da rua por onde passava era um
pouco mais limpo, mais aberto, mais fresco, embora não fosse
exatamente despoluído.
As luzes do hospital eram claras demais e o branco tornava tudo
muito simétrico, exato. As luzes de lá eram diferentes. Luz natural,
embora estivesse nublado.
No hospital não se fazia barulho. Apenas as máquinas resmungavam,
uma maca arrastada, passos nos corredores. Só havia o barulho contínuo
da lâmpada vinda do corredor, distinta com todo aquele silêncio, embora
quando abrisse a janela pudesse escutar coisas diferentes e às vezes
desagradáveis. Mas o som da rua era o som do vento, dos carros ao
longe, das pessoas. Era um som vivo.
No hospital as coisas eram ordenadas, apáticas, vazias. Nas ruas
reinava uma harmoniosa e flutuante desordem.
Mas não foi capaz de sentir mais que isso; ou não quis sentir. Eles
logo chegaram ao local em que o carro de sua mãe estava estacionado.
Sentou-se ao lado dela no banco da frente. Nunca havia sentado no
banco da frente antes. Puxou o cinto de segurança. O cinto estava mais
baixo do que se lembrava.
O carro andou devagar. Sua mãe não pegou nenhum caminho de
grandes avenidas. Passava apenas por calmas ruas residenciais. E por
alguma razão tudo estava deserto.
Ele observava tudo pelo vidro fechado.
Não demorou muito para que chegassem em casa. Sua mãe
estacionou na garagem.
Não tinham falado uma só palavra desde então. De alguma forma, ele
se sentia agradecido por isso, embora desconsolado. Não precisava que
lhe dissessem nada naquele momento.
A sua mãe saiu do carro. Ele fez o mesmo. Os dois caminharam para
dentro da casa. Ela girou a chave na fechadura e a porta se abriu.
Ele entrou. Observou a sala. Parecia maior e estava diferente.

138
Palácio dos Alfinetes

Ao chegar em seu quarto também notou que este aparentava ser


maior, talvez porque o seu no hospital fosse pequeno. Porém, tirando
isso, estava quase igual.
Sentiu como se tivesse voltado no tempo. Nas prateleiras havia seus
livros da terceira série e até mesmo alguns desenhos infantis pregados no
mural. Não sabia que desenhava tão mal naquela época, ou nunca teria
pregado coisas como aquelas para que outros vissem, embora
desconfiasse que não desenhasse muito melhor que aquilo no presente.
A única coisa que adquiriu através dos anos foi a vergonha.
Gostaria muito de ter encontrado seu quarto em uma perfeita
desordem com brinquedos e roupas espalhados e jogados no chão. Mas,
para a sua decepção, tudo estava absolutamente limpo e arrumado: sua
cama, sua escrivaninha e seu guarda-roupa.
Não se sentia à vontade lá. Sentia como se aquele quarto fosse de
outra pessoa: de uma criança de oito ou nove anos. Uma criança que
alguma vez conheceu. Talvez o quarto de um amigo que tivesse ido
embora há muito tempo e que jamais voltaria a ver.
Ele colocou a mochila em cima da cama. Observou mais um pouco
ao redor. As cortinas transparentes e embranquecidas de sua janela
balançavam levemente com a brisa. E era tudo o que se movia.
Foi até a sua escrivaninha e encontrou a sua antiga luminária. Puxou a
gaveta e viu um bloco de desenho em branco e uma caixa de lápis de cor
antiga, embora sem uso. Tudo perfeitamente organizado.
Abriu o seu guarda-roupa. Dentro dele havia apenas roupas e sapatos
de criança. Puxou a gaveta inferior e dentro dela encontrou seus velhos
brinquedos.
Mas, para a sua decepção, até eles estavam arrumados e enfileirados
perfeitamente. Nada mais que alguns carrinhos e bonequinhos de
plástico. Também encontrou duas caixas de jogos de tabuleiro. Não se
lembrava de ter brincado com eles algum dia. De qualquer forma, não
tinha a mínima vontade de fazer aquilo agora.
Por fim, desistiu de procurar algum objeto que lhe remetesse a
alguma lembrança especial. Talvez preferisse não encontrar.
Ali dentro, com a porta fechada, sentou-se no chão. E sentiu-se
vazio.

139
Juliana Duarte

Por que os vizinhos eram tão silenciosos? Por que aquela rua era tão
calma?
E ele continuou ali por muito tempo. Não soube dizer quanto.
Foi para isso que tinha voltado para casa...?
Alguns minutos depois, sua mãe bateu na porta de seu quarto. Abriu-
a.
– Fiz um lanche para você. Vá lavar as mãos.
Ele levantou-se e foi até o banheiro. Não pensou em nada. Fez tudo
muito mecanicamente. Foi até a cozinha.
Sentou-se na mesa com a mãe, que tomava café. Encontrou um prato
com um sanduíche e um copo de suco de laranja.
– O que tem aqui dentro? Você sabe que eu não posso comer queijo.
– Pão de sanduíche integral e patê de soja.
– Patê de quê?
– De soja – repetiu ela – e o suco é natural. Aqui em casa só tenho
alimentos naturais.
Desconfiado, ele segurou o sanduíche. Com um pouco mais de
esforço, talvez a mãe conseguisse tornar a sua comida pior do que as
papas sem gosto do hospital.
Mas para a sua surpresa, comparando com o que comia lá, aquele
lanche estava maravilhoso. Nem precisou fingir que não havia realmente
soja dentro do pão. E quanto ao suco, ele não tinha nenhuma crítica a
fazer.
Sentiu-se um pouco melhor com aquele lanche. Talvez um pouco
menos desanimado.
– Onde está o pai? Trabalhando ou viajando?
– Nós nos separamos – falou ela, de olhos baixos, bebendo
lentamente seu café.
– Quando?
– Há um ano.
– É mesmo? – perguntou ele, ironicamente – acho que você se
esqueceu de me contar.
– Mas ele paga pensão para você.
– Ah, então tudo bem – retrucou ele, sem esforço para conter o
sarcasmo. Aquela informação era dispensável – Onde ele mora agora?
– Em São Paulo.

140
Palácio dos Alfinetes

– Que bom. Assim ele não precisa mais inventar desculpas por nunca
vir me visitar.
– Ele está casado – prosseguiu a mãe – e tem um filho.
– Mas que ótimo! – falou ele, levantando-se subitamente, incapaz de
conter a indignação na voz – Acho que vou enviar uma carta mandando
os parabéns. Espero que chegue antes de eu ter morrido!
Recolheu o prato e o copo, colocando-os na pia. Saiu da cozinha em
passos apressados e voltou ao seu quarto.
Fechou a porta e jogou-se na cama. Era decepcionante, mas depois
de passar todos aqueles anos deitado numa cama, não conseguia pensar
numa coisa diferente para fazer que não fosse a mesma coisa que fez
durante toda a sua vida.
E continuou ali. Em cerca de um quarto de hora o céu começou a
ficar escuro. Ele permaneceu a olhar o céu escurecer de sua janela
quando sua mãe bateu na porta de novo.
Ela entrou com um copo d’água e um comprimido na mão.
– O seu remédio.
Ele aceitou o comprimido sem falar nada e tomou a água,
devolvendo o copo a ela.
– Por que está cuidando de mim agora? Você nunca se preocupou
com isso antes.
– Agora você está em casa e alguém tem que cuidar de você.
E saiu, deixando a porta aberta. Será que adiantava chamá-la para que
ela voltasse e fechasse? Talvez fosse mais fácil ele mesmo se levantar.
Porém, no momento em que ele se levantou, ela passava novamente
pelo corredor.
– Vai ficar o resto do dia trancado no quarto?
– Onde eu poderia ficar?
– Você podia tentar se divertir um pouco. Foi para isso que você
voltou para casa.
– Me divertir como?
– Você é livre para escolher. Faça o que achar melhor. Não vou
proibi-lo.
Mas aquilo ainda lhe parecia muito vago. Resolveu não insistir.

141
Juliana Duarte

– Eu matriculei você na escola. Você já perdeu as primeiras semanas,


mas não tem problema. Você pode revisar alguma coisa para a aula
amanhã já que está com os livros. Mas se não quiser, não precisa.
Ele não estava acreditando.
– Por que você fez isso?
– Não precisa ir se não quiser – acrescentou ela – você pode esperar
um pouco mais. Eu só queria que você tivesse mais contato com as
pessoas. Lá você vai ter colegas da sua idade e poderá fazer amizades.
Ele achou que talvez ela pudesse ter pensado em alguma ideia melhor
para o contato com as pessoas. Havia mil maneiras de fazer isso. Passear
na rua era uma delas.
– Certo – falou ele, empurrando a porta – eu vou pensar.
– Não precisa fechar a porta.
– Eu prefiro.
E fechou.

Ouros: Seção # 5.4: Valsa das Máquinas – Melodia Final

– Onde estamos? – perguntou Chaga.


– Sejam bem-vindas a Ouros – Ele falava com formalidade – esse
mundo lhes pertence.
– Não há nada aqui – falou Menarca.
Não havia nem mesmo chão. Era apenas um espaço em branco.
Cada uma delas carregava uma carta de Ouros nas mãos. Guardavam-
na como o mais precioso tesouro. Pela presença em outro naipe, as sua
aparências estavam levemente mudadas. Cada uma das bonecas
aparentava ter envelhecido pelo menos um ano. Seus trajes também
eram diferentes.
Sangria possuía a aparência de uma garota de quinze anos e o seu
longo vestido era agora vermelho-sangue, muito mais belo e elaborado,
com laços e fitas. Parecia um pouco menos com uma boneca e um
pouco mais com uma verdadeira rainha.
O vestido de Menarca ainda era negro, embora muito diferente do
anterior. Não possuía mais o avental de costureira. Era muito mais
elegante. A aparência de todas elas estava menos infantil. Ela possuía

142
Palácio dos Alfinetes

longas luvas negras nas mãos; nos pés não mais os sapatos de boneca e
sim botas altas. A sua idade era a mesma de Sangria, uma vez que a sua
criação dera-se em tempo semelhante.
Carcinoma estava irreconhecível. Não trajava mais trapos velhos
sujos de tinta e não usava mais sua antiga boina, embora seus cabelos
continuassem espetados. Era a única que possuía uma aparência um
pouco mais informal. Porém, estava muito bem maquiada e no lugar dos
botões e costuras tinha um olho de vidro branco e um roxo. Suas roupas
ainda possuíam muitos cadarços embora agora estivessem graciosamente
arrumados.
Assim como Carcinoma, Chaga possuía a aparência de uma garota de
quatorze anos. Sua indumentária mudou completamente da cor roxa
para preto e branco. Usava meias listradas e uma mini-saia rodada de cor
negra. Sua blusa branca possuía muitas rendas nas mangas e era
sobreposta por um colete e uma gravata negra. Sobre os cabelos curtos e
negros, agora com mechas brancas, usava um chapéu coco. Carregava
uma espécie de taco de madeira.
Tala, aparentemente uma menina de treze anos, não vestia mais a sua
camisola branca e sim uma roupa elaborada de mesma cor, com muitas
rendas. Usava mini-saia branca e meia-calça. O seu chapéu era de boneca
e ela carregava uma sombrinha de babados.
O Sapateiro era o mais mudado. Na verdade, não mais poderia ser
chamado pelo codinome de Copas. O Manequim trajava roupas
espetaculares em tons de vermelho e dourado, com uma longa capa e
uma coroa. Carregava também um cajado, cuja extremidade moldava-se
no formato de um majestoso relógio.
– Vejo alguma coisa – Tala apontou ao longe – no alto.
Todos olharam e seguiram a direção apontada. Flocos de algodão
caíam do céu. Todos convergiam para um único ponto de luz em que
havia uma árvore desfolhada e retorcida coberta por pequeninos flocos
rosa esbranquiçados.
Tala adiantou-se e observou a cena graciosa, maravilhada.
– É tão... – começou ela, com seus olhos ingênuos a fitar a árvore –
triste.
Foi então que percebeu.
– Um ninho!

143
Juliana Duarte

– Estenda as mãos, Tala – falou O Manequim.


No momento em que as estendeu, o ninho começou a desprender-se
lentamente do galho mais alto. Tala assustou–se. Porém, no instante em
que ele caiu, não precisou fazer nenhum esforço para segurá-lo: caiu em
suas mãos.
Ela observou-o atentamente com seus olhos curiosos. Um ovo
repousava descansadamente no ninho. Parecia dormir.
– Que doce – falou Tala – ele está dormindo...!
– Já é hora de despertá-lo – falou O Manequim.
– Hora de acordar – Tala sussurrou para o ovo – Por favor, desperte.
O ovo começou a rachar. As reentrâncias aprofundavam-se cada vez
mais.
Até que o ovo se partiu. De dentro dele surgiram grandiosos raios
dourados que se espalharam para todas as direções. Tala fechou os
olhos. Mal conseguia suportar tanta luz.
Algo deu um grande grito, surpreendentemente leve e harmonioso:
uma majestosa ave com plumas alvas e longa cauda. Ela subia cada vez
mais alto. Converteu-se em luz. Chispou por todos os lados lançando
faíscas douradas enquanto sons metálicos quebravam pelos céus,
interrompidos por notas de instrumentos celestiais.
A ave moldou o filho do sol e da lua; o rebento não era nem sol nem
lua, mas sim uma mistura graciosa de ambos: uma estrela de prata que
brilhava como o sol, mas possuía toda a graça e beleza da lua. Carregou
os céus; moldou-os.
Ela disparou de volta para a terra, como um meteoro em queda-livre.
Jogou-se contra o chão. Ele também nasceu.
O céu era extremamente claro e o chão era feito de plumas brancas e
algodões rosados e brancos assim como as nuvens. Do céu caía uma
chuva de pétalas cor-de-rosa e algodões claros, estendendo-se ao infinito.
Uma imensa cratera surgiu no local em que o pássaro caía e de lá
voaram centenas de pássaros, dos mais graciosos tons, formas e
tamanhos.
Eles se espalharam por cada canto do Novo Mundo.
Pássaros subiam aos céus como foguetes faiscantes e caíam ao chão
como estrelas cadentes. Onde caíam abria-se uma grande vala onde
nascia um monte. Alguns montes cresciam e tornavam-se montanhas

144
Palácio dos Alfinetes

que atingiam as altas nuvens de algodão; eram de cor branca, marfim,


cristal ou quartzo rosa.
Estrelas piscantes surgiram no céu em pleno dia. Elas derramavam
pequenos flocos de luzinhas brilhantes que eram arrastados pelas brisas
que se formavam em movimentos espirais, criando rodas de pó
luminoso nos céus.
Os pássaros cantavam melodias melancólicas. Os diferentes sons
misteriosamente transformavam-se na mais bela harmonia.
Centenas de pássaros pairavam pelos céus. Alguns escapavam para o
infinito. Outros ligavam com linhas de prata o limite entre o infinito e o
finito que os olhos alcançavam.
Finalmente, o primeiro pássaro finalizou a melodia com uma nota
alta e desceu novamente na direção de Tala, pousando graciosamente na
árvore retorcida, que agora era muito pequena para suportar o seu
tamanho. Outras árvores desabrochavam do chão como flores.
Todos olhavam a cena majestosa com admiração e deleite. Tala não
conseguia tirar os olhos da imponente ave. Era tão branca que se tornou
quase transparente e, apesar de suas proporções gigantescas, era leve
como uma pluma. Plumas brancas voaram pelos céus no momento em
que ela bateu as asas.
Tala, ainda com o ninho nas mãos em que repousava o pequeno ovo
quebrado, fitou a ave com carinho. Ela olhava em sua direção também.
– Eis o seu presente, Tala – falou O Manequim – Gostaria que
cuidasse dessa ave para sempre; e que ela cuidasse de você.
A ave baixou seu longo pescoço. Impressionada, Tala acariciou a
cabeça da ave com cuidado. Ela era extremamente dócil e bela.
– Esse ovo...! – falou Sangria – Ele apareceu em meus sonhos!
– Sim – concordou O Manequim – Imagino que foram sonhos
sombrios. Eu havia guardado o ovo para você e aquilo que vê agora
diante de seus olhos deveria ter sido o seu sonho. No entanto, devido à
sua traição, ele não é mais seu. Restaram apenas pesadelos. Não anseie o
despertar de uma ave negra. Ela não mais te pertence.
Sangria fitou O Manequim, assustada; caiu de joelhos. Perdeu tudo,
fruto de sua curiosidade e de sua confiança em Papiloma. Arrependeu-se
amargamente e sentiu-se derrotada.

145
Juliana Duarte

– Não lamente, Sangria – falou O Manequim – Hoje deve ser um dia


belo, embora inevitavelmente a tristeza sempre permaneça, mesmo na
mais perfeita das criações.
Um raio surgiu do céu no momento em que duas nuvens de algodão
se chocaram. Do chão, o raio retornou às nuvens. Uma grande placa
cristalina brotou da terra, como um terremoto: um imponente palácio de
cristal cresceu até os céus.
Mais raios surgiram por todos os cantos. Gigantes recipientes
transparentes de vidro preenchidos com fina areia branca e água
cristalina brotavam. As ampulhetas e clepsidras se multiplicavam por
todas as partes. Em algumas elevações e montanhas nasciam cachoeiras
de águas cristalinas que desciam com graça em lagos límpidos que se
formavam.
– Eis o Jardim das Clepsidras. Será como um Palácio dos Alfinetes de
Ouros. No alto do verdadeiro palácio de cristal repousa o Trono. Essa é
apenas a base sobre a qual cada uma de vocês construirá um mundo.
– Um mundo...? – perguntou Tala, sem acreditar.
– No longo tempo no interior do Palácio de Copas cada uma de
vocês aprendeu o ofício da criação através do nascimento das ideias.
Cada uma inventou ou refinou os mais diversos jogos e brinquedos.
Nenhuma influência de fora seria capaz de penetrar na matriz de suas
ideias. E essa é a hora de concretizá-las.
Elas escutavam com atenção cada palavra. Bebiam cada uma delas
como a mais bela fantasia que jamais sonharam.
– Estejam preparadas para começar – prosseguiu O Manequim – pois
nós iniciaremos com algo muito especial, especialmente para Chaga e
Menarca: reencontrarão amigas queridas.
Cada uma delas posicionou-se ao redor da árvore de galhos
retorcidos, formando um círculo. O majestoso pássaro permanecia no
topo.
As cinco, de pé, ergueram cada qual a carta de Ouros de seu número.
As cartas brilhavam. Para a surpresa de todas, o próprio Manequim
adiantou-se para o centro do círculo e ergueu duas cartas: Dez de Ouros
e Sete de Ouros.
Ambas brilharam também. De cada uma das cartas nasceu um
pássaro: um branco e um negro. Eles sobrevoaram a árvore até

146
Palácio dos Alfinetes

pousarem na terra macia de flocos brancos, sendo envolvidos


completamente por eles.
Tudo o que se formou foram dois montes de flocos no chão que
crescia. Alguma coisa maior brotava da terra. Duas figuras encapuzadas
emergiram: uma vestia uma capa branca e a outra uma capa negra.
– Moebius. Angina – falou O Manequim – Bem-vindas ao Jardim das
Clepsidras.
– O Ancião...! – exclamou Moebius, impressionada.
– Sim. Fui em Paus O Ancião. Assim como em Copas fui O
Sapateiro e agora em Ouros sou O Manequim. Mas não se perturbem
com isso. Afinal, acima de todos os naipes e de todas as denominações,
eu sempre serei O Alfaiate.
Aquele nome pronunciado por Ele provocou alguma reação. Talvez
um misto de terror e reverência que cada uma das bonecas carregaria
para sempre e do qual jamais escapariam.
O pássaro branco entregou o Dez de Ouros para Angina e o pássaro
negro o Sete de Ouros para Moebius; e ambos voaram. As duas figuras
encapuzadas juntaram-se ao círculo com as cinco, próximas a Menarca.
Ainda no centro, O Manequim levantou outra carta.
– Agora, antes de darmos início ao grande show, finalizarei a prévia
do espetáculo com o nascimento primeiro de um novo molde.
Todas ficaram curiosas. Uma nova boneca nasceria sem nem mesmo
passar por Copas. Deveria ser muito especial.
Era a carta número 3 de Ouros. No momento em que Ele a levantou,
a carta brilhou ainda mais que as outras duas; e dela surgiu um
imponente pavão branco.
– Fantástico...! – murmurou Chaga.
A grande ave do topo da árvore voou para encontrar-se com o pavão
branco. Sobrevoou em torno dele e, no mesmo ninho que Tala segurou,
surgiu um novo ovo, quase tão nobre quanto o primeiro.
O ovo penetrou na terra. No momento em que rachou, nasceu uma
menina envolta em plumas e flocos brancos.
Ela espanou os flocos e penas de cima dela. Os cabelos da menina
eram brancos, presos por fitas rosa. A maquiagem de seu rosto era
embranquecida, lembrando a figura de uma graciosa palhacinha. Suas
vestes possuíam diferentes tons de rosa.

147
Juliana Duarte

– Seja bem-vinda ao Jardim das Clepsidras, Distimia – falou O


Manequim – as criações de suas experiências jamais nascidas brotarão
em Ouros com a pureza da semente que se esqueceu de germinar.
Distimia, uma garotinha com a aparência de dez anos, idade em que
nasciam todos os moldes do Manequim, deu seus primeiros passos. No
momento em que ia cair, Tala adiantou-se e segurou-a.
– Você pode andar – falou Tala – pode realizar qualquer desejo.
Agora, levante-se.
Distimia levantou-se. Virou-se para trás e fitou O Manequim. E
entendeu quem Ele era. Ele entregou a ela o Três de Ouros.
As oito bonecas assistiam ao espetáculo que recomeçava. A árvore
preencheu-se com um facho de luz e a ave branca voou alto, num grito
que foi ouvido e repetido por todas as aves do Jardim. Num voo rasante,
a ave resgatou Tala, que subiu sobre ela. Cada uma das bonecas voou
sobre uma ave do Jardim e seguiu o seu caminho.
Tala recolheu grandes flocos das nuvens do céu. Moldou-os. Com
uma raquete na mão, ela arremessou os flocos brilhantes como se jogasse
ping-pong. Construía uma grande quadra de esportes flutuante,
sustentada por fumaça branca.
Chaga, provida de seu taco de madeira, quebrou o vidro de uma das
gigantescas ampulhetas. Espalhou a areia branca brilhante e com ela
iniciou a construção de máquinas de caça-níqueis e dados gigantescos.
Sangria recolheu água das cachoeiras com um cálice de cristal que
poderia armazenar a quantidade que fosse necessária. Construía uma
imponente pista de danças, delimitada pelas águas. Máscaras brilhantes
preenchiam os céus como aves das mais diversas cores.
Carcinoma encantava-se com os relógios de água e areia e os
sobrevoava. Coloria os céus com pincéis e pintava ponteiros e números
em seu mundo.
Menarca carregava nas mãos um grande cobertor quadriculado de
preto e branco. O tamanho do cobertor aumentou infinitamente. Peças
gigantes de xadrez surgiram em suas respectivas posições. Jogos da velha
desenhavam-se.
Distimia seguia pelo chão coberto de flocos em cima de seu pavão
branco. Por onde ele corria, nasciam borboletas. Indiferente a quaisquer

148
Palácio dos Alfinetes

regras, ela ria, em uma diversão sem limites. Em grandes acrobacias, ela
jogava para cima cones e argolas, como a estrela de um grande show.
Angina e Moebius montavam um ambiente macabro, insistindo em
chamar Menarca para participar, que estava ocupada demais em seu jogo
de xadrez. Galhos de árvore brotavam da terra e morcegos famintos
devoravam as borboletas de Distimia.
– Não toquem no meu mundo! – falou Distimia, protegendo as
preciosas borboletas – Suas bruxas!
As duas, mesmo cientes das regras, deram grandes risadas,
relembrando os velhos tempos na Casa dos Fantoches.
O Alfaiate dirigira-se silenciosamente até o topo do palácio de cristal
e em seu trono de ouro observava todas as criações. A partir dali não iria
segurá-las. Precisava sentir o que era pular de um mundo governado
pelas regras para um lugar em que tudo era permitido.
Assim como não poderia trancá-las para sempre no Palácio dos
Alfinetes, não poderia proibi-las de sonhar. E, principalmente, deveria
permitir que elas tornassem todos os seus sonhos realidade antes do fim
de tudo.

Espadas: Seção # 5.4

Precisava fazer aquilo de qualquer maneira e decidiu que seria naquele


momento.
Abriu a mochila e recolheu de dentro dela o seu baralho. Passou a
observá-lo. Foi quando se lembrou que estava na hora de seu outro
remédio. Era muito complicado lembrar-se de tudo aquilo sozinho. Pelo
jeito, dessa vez a sua mãe esqueceu.
Ele abriu a porta e dirigiu-se até a cozinha. Preparou uma seringa e
ele mesmo injetou no próprio braço. Talvez sua mãe tivesse saído de
casa, pois havia algumas sacolas em cima da mesa. Ela já tinha voltado,
pois a ouvia falar ao telefone.
Ela lhe chamou. Sem saber o que dizer, ele foi até lá. Sentiu-se um
pouco nervoso. Seria o seu pai? O que diria a ele? Mas, pensando bem, o
pai que deveria estar nervoso e não ele. Seu pai que o abandonou.
Tentaria se lembrar de dar-lhe os parabéns pelo filho novo e, o mais

149
Juliana Duarte

importante, fazê-lo perceber a ironia, ou seu plano de ser bem chato iria
por água abaixo. Quem sabe pudesse usar um pouco de humor negro
também. Era bom nisso.
Ele segurou o aparelho de telefone.
– Alô?
Ele ficou um pouco decepcionado: era uma voz feminina.
Definitivamente não era seu pai. Seria a amante ou a nova esposa? Não.
Parecia jovem demais.
– Podemos nos encontrar amanhã para a aula?
Não, não podiam. Ele nem fazia ideia de quem estava falando e tinha
certeza de que não a conhecia de lugar nenhum.
– Claro – falou ele, sem pensar.
– Lá no portão às sete e meia – falou ela – está combinado. Tchau.
E desligou.
Ele ainda permaneceu por alguns momentos com o telefone na mão,
sem entender.
– Mãe – falou ele, entregando o telefone a ela – me explique o que foi
isso.
– Lembra da sua tia?
– Não. Que tia?
– A sua tia, minha irmã.
– Eu sei que minha tia é sua irmã – falou ele, sem paciência – O que
tem?
– Ela se mudou para cá. E a filha dela, isto é, a sua prima, estuda no
mesmo colégio que você.
– Mas que coincidência! – zombou ele – E daí?
– Na verdade, eu matriculei você nesse colégio por causa disso. Acho
que vocês podiam ser amigos.
– Eu não acho.
– Amanhã vocês vão se conhecer. É bom dormir cedo.
Ele não respondeu. Apenas deu meia volta e já se dirigia de volta ao
quarto quando ela lhe chamou de novo.
– Tenho um presente para você. Venha ver. Está na cozinha, mas
você pode levar para o seu quarto.
Sem entender, ele apenas seguiu-a. Ninguém lhe dava presente. Ela
só poderia estar blefando. O último presente que se lembrava de ter

150
Palácio dos Alfinetes

recebido foi um baralho que seu pai lhe enviou há cinco anos pela sua
mãe. Nos anos seguintes, ela apenas fingia que lhe dava presentes
disfarçados de livros escolares.
– Lembra que você queria um bichinho de estimação?
Seu coração pulou. Seria mesmo verdade? Aquilo era uma coisa
antiga. Ele sempre quis aquilo, sempre foi seu grande sonho, muito antes
de ir morar no hospital, mas seus pais nunca tinham deixado. Sua mãe
era uma maníaca por limpezas e seu pai dizia-se alérgico a animais. Ou
seja, não tinha nenhuma chance.
Eles chegaram até a cozinha. Foi então que, com um aperto no
coração, descobriu de que bichinho se tratava. Era um pequeno
passarinho dentro de uma gaiola.
– É lindo, não é? – perguntou ela, esperançosa.
Ele não conseguia tirar os olhos do passarinho. Estava chocado
demais para dizer qualquer coisa.
– Você não gostou? – perguntou ela, parecendo desapontada ao
constatar a expressão dos olhos dele.
Porém, ele jamais se atreveria a decepcioná-la. Ela tinha saído àquela
noite para lhe comprar um presente, pois viu que estava triste. Ligou
para a irmã para convencer a sobrinha a ser amiga de um sujeito que nem
conhecia. Estava fazendo muitas coisas por ele nos últimos tempos,
mesmo que ele não gostasse de nenhuma delas.
– Sim – falou ele, de repente – é lindo.
Ela sorriu. Ainda assim, era um sorriso triste, como se sentisse pena
do filho. O garoto se espantou um pouco. Poucas vezes a via sorrir.
– Leve para seu quarto – falou ela, entregando-lhe a gaiola – brinque
com ele. Ele será seu amigo e estará sempre com você.
Não se lembrava de sua mãe tão dramática daquele jeito. Era um
pouco estranho.
Com a gaiola nas mãos, ele entrou no quarto e fechou a porta.
Deitou-se na cama, observando o passarinho na gaiola. Era um
bichinho pequeno de papo branco. Estava longe de ser realmente
bonito, mas era engraçadinho.
Na verdade, o que o tornava belo era a sua tristeza. No fundo, sabia
que ele estava triste. Claro que o rosto do passarinho não poderia ser
mais inexpressivo. A criatura jamais poderia expressar quaisquer

151
Juliana Duarte

sentimentos facilmente perceptíveis para ele, mas nem precisava. Bastava


ver a gaiola.
E viu a si mesmo no passarinho. Não teria coragem de admitir que
era mais fraco que aquela pequena criatura que tudo suportava em
silêncio absoluto.
Tudo o que ele sabia era que havia um passarinho preso dentro de
uma gaiola e que aquela era a coisa mais triste do mundo.
Pela primeira vez, sentiu de verdade a tristeza de tudo o que suportou
até aquele momento. De tudo que ainda estava suportando. Sabia que o
pior ainda viria, ou talvez não fosse o pior.
Queria apenas esquecer aquilo tudo. Não suportava começar a ficar
triste. Aquilo era ridículo. Se ficasse o tempo todo se lamentando, não
viveria. E se tivesse saído do hospital para lamentar, teria sido melhor
não ter saído.
Estava em sua casa por alguma razão e iria descobrir qual era. Não
podia perder mais tempo, pois jamais o recuperaria outra vez. Aquilo era
muito sério.
Ele sentou-se no chão. Colocou a gaiola do passarinho diante de si e
suspirou.
Não ia mais pensar nas coisas que queria mudar e não podia. As
coisas se mostravam da seguinte forma: ele estava sentado em seu quarto
e havia uma gaiola com um passarinho em sua frente. Só isso. E mais
nada.
Não podia mudar as coisas no mundo real, mas sabia que poderia
transformá-las como desejasse em seu próprio mundo.
Ninguém mais lhe diria o que fazer. O médico não estava lá para
proibi-lo de nada. Mesmo que realmente precisasse, ele já se libertara das
proibições; porque não adiantava mais. Tentou sentir um pouco do que
era a liberdade. Sim, ele era livre. Podia fingir; era bom.
Era noite, mas mesmo assim resolveu abrir as janelas.
Ele recolheu o baralho de cima da cama. Escolheu as cartas do naipe
de Ouros. Repousou algumas delas em volta da gaiola. Concentrou-se na
única tarefa que havia se tornado bom com baralhos: construir um
castelo.
Mas não era um simples castelo. Era um palácio: um palácio de
cristal.

152
Palácio dos Alfinetes

Como era bom nisso, não demorou muito para empilhar algumas
cartas.
Era real. Como podia ser tão cego a ponto de sofrer na dor? Ele
possuía seu próprio mundo: um reino maravilhoso em que reinava e que
seria para sempre seu eterno refúgio.
As pessoas poderiam roubar-lhe muitas coisas: poderiam decepcioná-
lo, feri-lo, arrancar-lhe sem piedade sua felicidade, sua saúde, sua
sanidade ou até mesmo sua vida.
Mas aquelas imaginações ninguém poderia tirar dele.
Num momento de esperança, uma grande inspiração nascia e ele era
capaz de construir o mais belo mundo de cores e melodias maravilhosas.
Num momento de decepção, uma grande inspiração nascia e ele era
capaz de construir um mundo de apatia e indiferença em que reinava o
vazio absoluto.
Num momento de ódio, uma grande inspiração nascia e ele era capaz
de derrubar o mundo com raios, trovões, nuvens negras, tempestades e
feras bestiais.
Ele jamais seria lembrado. Jamais seria importante para ninguém. E
nada daquilo importava. Se o decepcionavam na vida real, ele poderia
destruir e retalhar o arquétipo do infeliz como tantas vezes fez. Se o
satisfaziam, poderia dar-lhe os presentes mais desejáveis.
A garota que falou com ele ao telefone. Nem fazia ideia de quem ela
era, mas não achava que ainda fosse conhecer muitas pessoas além dela a
partir dali. E, já que ainda restava uma carta, era melhor fazer com que
nascesse ali mesmo. Não tinha mais tempo.
Deleitou-se com suas criações. Sentiu o êxtase tão particular de seu
mundo, que dificilmente encontraria correspondentes na vida real em
sua rotina medíocre.
Mas não era hora de sentir autocomiseração ou de pensar no tempo
que não teria. Que tudo fosse para o inferno.
Agora era hora de sonhar: em um mundo sem limites, sem regras,
sem tempo, sem fronteiras, em que poderia fazer de todos os seus
sonhos realidade.

Espadas: Seção # 5.5

153
Juliana Duarte

Ele acordou bem cedo, trocou de roupa e arrumou a mochila. A mãe


lhe comprou um uniforme da escola. Talvez, mesmo sendo seu primeiro
dia, ela não quisesse que ele se sentisse tão diferente dos outros.
Havia combinado de se encontrar com a tal garota sete e meia na
frente do portão do colégio. Ele tomou o seu remédio. Sua mãe lhe
preparou aveia com leite de soja.
Pensou em dizer que não gostava de aveia e muito menos de soja,
mas não queria que a sua mãe ficasse chateada logo cedo. Comeu o café
da manhã em silêncio.
Após terminar, a mãe lhe entregou um pote de comprimidos, uma
garrafa d’água e uma maçã enrolada em um guardanapo.
– Não se esqueça de tomar o seu remédio e de lanchar no intervalo.
Ele não respondeu. Apenas guardou as coisas na mochila.
Os dois seguiram até o carro em silêncio. Ele via as ruas pelo vidro
fechado do carro, mas cada vez que olhava tudo estava mais deserto.
Não demoraram muito para chegar até o colégio. Ainda não havia quase
ninguém àquela hora.
– Busco você à uma hora – falou ela – não saia daqui.
E foi embora.
E ele se viu ali, parado em frente ao portão do colégio. Sozinho, pela
primeira vez.
Na verdade, mesmo tendo passado sua vida sozinho, sempre havia
alguém por perto para lhe proibir de sair de um quarto. Ali ele
experimentava uma liberdade solitária.
E não gostou do que sentiu.
Ele encostou-se na grade do portão, sentando-se no chão. Combinou
com a garota lá, mas nem a conhecia. Esperava que ela o reconhecesse
ali.
Ainda eram sete e quinze. Estava adiantado demais. Os minutos
passaram. Alguns alunos chegavam. Nenhum deles olhou para o garoto
encostado ao portão duas vezes.
Já devia ser mais de sete e meia e nem sinal dela. Deveria continuar
esperando?
O sinal soou. Eram oito horas e a aula iria começar naquele instante.

154
Palácio dos Alfinetes

Ele tinha certeza de que ela deveria estar chegando. Não via
problemas em se atrasar cinco minutos para a aula para esperá-la um
pouco mais.
Porém, os cinco minutos se passaram; dez minutos, quinze minutos,
meia hora.
Será que ela passou direto sem vê-lo?
Quando ouviu o sinal novamente, depois de quarenta e cinco
minutos, ele resolveu levantar-se. Tinha perdido o primeiro período.
Tentaria encontrar a sala.
E atravessou o portão, entrando no colégio.
Andou pelos corredores. A maioria dos alunos estava em aula.
Subiu as escadas. Não demorou muito para encontrar a sala 11. Ele
não gostava do número 11. Lembrava-lhe o Valete. E ele não gostava do
Valete.
Entrou. Talvez ninguém o percebesse se fosse diretamente para o
fundo da sala. O professor do segundo período ainda não tinha chegado.
Alguns alunos estavam fora dos lugares e conversavam na troca de
períodos.
Um garoto de cabelos negros parou em sua frente.
– Quem é você?
– Essa é a sala do primeiro ano?
– Esse é o 1°B – respondeu o garoto de cabelos negros – e eu não te
conheço.
Ele não gostou do tom. Estava muito claro que ele o estava
provocando, mas o menino não sentia a mínima vontade de discutir. Ia
se dirigir para o fundo da sala, mas ele não o deixou passar.
– Ei, calma, colega – respondeu o garoto encrenqueiro, com um
sorriso de patife no rosto – Eu não gostei de você, sabia?
Ele não estava acreditando que tinha que ouvir aquilo. No mesmo
tom sério e cansado, ele apenas respondeu:
– Que pena.
E a discussão foi encerrada por ali porque o professor do período
seguinte chegou. Tiveram dois períodos seguidos de matemática com
aquele professor antes do intervalo.
Não muito surpreso, ele descobriu que nunca tinha ouvido falar em
nenhum daqueles cálculos que o professor revisou em aula. Se ainda era

155
Juliana Duarte

apenas a revisão, nem queria pensar no que não seria. Sentia sono. Sua
cabeça estava longe.
E, lá no fundo da sala, ele dormiu.
Acordou com um susto. Alguém puxou a sua cadeira e ele quase caiu
no chão.
– Opa – falou o mesmo garoto com sorriso de idiota – foi mal,
colega.
Ele fitou-o com seriedade.
– Ei, não me olha assim que fico com medo – caçoou ele.
Foi então que percebeu que não tinha mais nada a fazer ali.
Levantou-se. Guardou seu livro na mochila, colocou-a nas costas e
caminhou até a porta.
– Oh, ele está irritado! – zombou o garoto bem alto para que ele
ouvisse enquanto saía.
Mas ele não se virou. Teria sido melhor que ninguém tivesse falado
com ele; que o ignorassem completamente. Não queria conversar.
Descobriu que não queria fazer amigos. Enquanto caminhava pelo
corredor e preparava-se para descer as escadas, alguém o chamou. Ele se
virou.
– Você que é meu primo?
Era a garota. Chegando atrasada, pelo visto.
– Você perdeu três períodos.
– Eu sei – falou ela, sem nem mesmo se desculpar por não tê-lo
encontrado na entrada – Vem, vamos conversar lá fora.
– Não vai assistir à aula?
– Não. Deixa pra lá.
E os dois desceram as escadas. Saíram pelo portão da frente. Não
encontraram ninguém cuidando para que não saíssem.
Os dois andaram um pouco e, ali perto, se sentaram num banco.
– Quer uma bala? – perguntou ela, lhe estendendo uma.
– Não – respondeu ele.
Ela deu de ombros e colocou a bala na boca.
– É verdade que você morava em um hospital? – ela perguntou
despreocupadamente.

156
Palácio dos Alfinetes

– Não estou a fim de falar sobre isso – falou ele seriamente e um


pouco entediado. Não havia nenhum assunto um pouco mais
interessante?
– Bem, não deve ser tão ruim – prosseguiu ela – eu gosto de
hospitais. Eles têm uma aura meio mística.
Ele começou a imaginar se a garota era uma completa idiota ou
estava se fazendo. Ela apenas mastigava a bala, olhando para longe.
– Por aqui também é bem ruim. Odeio ir à escola, odeio os chatos
dos meus colegas, odeio meus pais, odeio meu apartamento apertado.
– O que você não odeia? – perguntou ele, achando cada vez mais
desagradável aquela conversa.
Ela pensou.
– Festas. Às vezes é legal. Gosto de sorvete e de bolo de chocolate,
mas espero que não esteja me achando superficial. Eu me interesso por
muitas coisas de intelectuais também. Eu gosto de assistir Discovery
Channel, por exemplo.
– Foi a minha mãe que mandou você conversar comigo? – perguntou
ele, interrompendo-a – Não precisa se sentir obrigada a fazer isso.
– Podemos ser amigos, se você quiser.
Ele ficou quieto. Não tinha certeza se era exatamente assim que
deveria começar uma amizade. Parecia um pouco artificial, como tudo
em sua vida. Não via como poderiam ser amigos. No máximo, poderiam
apenas fingir. Sentia cada vez mais que ela realmente estava fazendo
aquilo apenas porque sua mãe pediu.
– Eu não quero – falou ele, por fim.
Ela ficou um pouco ofendida. Riu para disfarçar.
– E por que você não quer? Você me acha chata?
– Eu acho que não temos nada a ver.
A cada coisa que ele falava, ela se ofendia mais. E estava começando
a ficar levemente irritada.
– Mesmo? Agora entendo por que você não tem nenhum amigo.
Deve se achar superior a todo mundo, não é? E acha que ninguém serve
para você.
Agora foi a vez dela de ofendê-lo. Em primeiro lugar, jogou em sua
cara que ele não tinha nenhum amigo. O que será que sua mãe tinha
contado a seu respeito que não devia?

157
Juliana Duarte

Mas o pior não foi isso. Foi dizer que ele se achava superior. Pelo
contrário, sempre pensou em si como um pobre coitado abandonado e
solitário.
– Eu não me acho superior. Você que é esnobe demais. Odeia todo
mundo, até seus pais. Poderia mostrar o mínimo de gratidão. Se você
tivesse a minha vida, teria motivos para reclamar. Se eu fosse você,
ficaria quieta.
Agora ela não se preocupou em disfarçar a raiva.
– Eu só falei aquilo para você não pensar que é o único que acha que
a vida é uma droga!
– Não precisava mentir só por causa disso – falou ele – Eu odeio
pessoas mentirosas e falsas. Se não foi com a minha cara, não precisa
ficar me aturando só porque minha mãe mandou que fizesse isso.
– Ótimo! – ela levantou-se – Eu tenho pena da sua mãe, sabia? Ela é
super preocupada com você. E você não está nem aí. Fica desprezando
todo mundo e acha que nada está bom o suficiente.
– Não ouse falar mal da minha mãe.
– Eu não falei mal da sua mãe. Falei mal de você! Você é mimado,
egoísta e mesquinho!
– Mais alguma coisa? – perguntou ele, seriamente.
Ela apenas balançou a cabeça em desaprovação, lançando-lhe um
olhar irritado. E foi embora.
Ele continuou sentado no banco. Não podia acreditar que aquilo
tudo estava acontecendo. Era tão ridículo que quase sentia vontade de
rir. Rir das pessoas desgraçadas. Rir da sua própria desgraça.
Rir.
Porém, sempre se mantinha sério. E com essa mesma seriedade,
levantou-se e foi embora dali.
Não ia esperar até a uma hora para que a sua mãe viesse lhe buscar.
Voltaria de ônibus. Isso se soubesse pegar um ônibus.

Ouros: Seção # 5.6

– Invasão! Invasão!!
Carcinoma gritava como louca.

158
Palácio dos Alfinetes

– Chamar O Alfaiate! Avisar Alfaiate!


– Pare, Carcinoma. Sou eu!
– Por isso mesmo! – exclamou ela, apontando-o acusadoramente –
Você não ser bem-vindo! Alfaiate banir você!
Mas ele não tinha mais tempo a perder. Precisava chegar ao trono o
mais rápido possível. Porém, no momento em que se dirigia ao palácio
de cristal, o próprio Manequim apareceu em suas vestes reais no centro
do Novo Mundo.
– Como chegou até aqui? – perguntou O Manequim.
– Minha carta é especial – respondeu Papiloma – com ela eu posso
atravessar todos os mundos.
– Você é apenas o mesmo. Sempre será uma criança de 10 anos
vestido com uma fantasia ridícula de bobo-da-corte.
– Estranho que esse menino lhe esteja causando tantos problemas.
– Eu não vou mais me incomodar com você. Bonecas, destruam-no.
Agora vocês possuem o poder.
Todas as bonecas interromperam por um momento suas criações
para fitar o pequeno boneco de vestes multicores.
– Aquela que for capaz de destruí-lo receberá a Coroa e o Reino –
anunciou O Manequim.
Nenhuma delas podia acreditar no que havia sido dito.
Carcinoma foi a primeira a se adiantar. Ergueu uma das grandes
clepsidras e lançou-a na direção de Papiloma. No entanto, ela apenas
quebrou-se no chão, espalhando água para todos os lados. Com um
gesto de mão de Papiloma, todos os cadarços das vestes de Carcinoma
enrolaram-se em volta dela, fazendo com que ela caísse no chão.
– Precisamos conversar – prosseguiu Papiloma dirigindo-a ao
Manequim, sem dar atenção à garota caída no chão – Você está
cometendo um grande erro. Não faz ideia do mal que fez aprisionando-
me no Palácio.
– Eu venci – falou O Manequim – você nada pode contra mim sem
O Leiteiro.
Papiloma apenas fitava O Manequim. Sua expressão não era
exatamente séria. Era quase como se sentisse pena.
– Você não entende – falou Papiloma – Não importa para onde vá
ou o que faça. O Leiteiro nunca deixa você. E nunca vai deixá-lo.

159
Juliana Duarte

Um som bastante peculiar fez-se ouvir.


– Sim! Ele é fresco e está em promoção! A garrafa transparente deixa
o produto ainda mais branco!
– Não pode ser...! – O Manequim ficou surpreso – Eu vou dar um
fim nisso agora!
Do interior de sua capa real, retirou quatro cartas formando um leque
nas mãos: O Valete dos quatro naipes.
Tala tapou os olhos. O Manequim levantou as quatro cartas ao alto.
O seu cajado atravessou-as ao meio, perfurando-as. A ponta de seu
cajado dourado tocou o chão.
– Sim! – ouviu-se ainda – Ele é fresco e está em promoção!
Ninguém podia acreditar. O Leiteiro não sofreu nenhum arranhão e
continuava animado como sempre.
– Você entende agora? – perguntou Papiloma, no mesmo tom
estranho – Você apenas fingiu que podia. Mas contra ele você nunca
teve forças, mesmo que fosse capaz de governar os céus e a terra. E
quanto a mim...
Papiloma baixou os olhos. Resoluto, retirou uma única carta do
interior das vestes. Estendeu O Coringa diante do Manequim.
– Você pode me destruir, se quiser. Na verdade, você pode fazer
qualquer coisa: matar-me, aprisionar-me ou torturar-me. Mas o preço
será muito caro.
– Eu jamais aceitaria possuir o Novo Mundo com a sua presença a
perturbar-me e a zombar de minha sanidade.
– Acabe comigo, mas não esqueça que O Leiteiro jamais deixará de
habitar seus pesadelos. Entregue-se ao Palácio dos Alfinetes e submeta–
se à forte supervisão da Guarda.
Nenhuma delas atreveu-se a intervir. Apenas observavam a cena,
impressionadas: Papiloma erguendo seriamente O Coringa diante do
Alfaiate, que apenas fitava-o aterrorizado sem pronunciar uma palavra.
O Alfaiate possuía O Coringa praticamente em suas mãos. Poderia
destruí-lo em apenas um segundo e Papiloma desapareceria para sempre.
Mas, para a surpresa de todos, O Manequim ajoelhou-se no chão.
– Você sabia que no fundo não tinha escolha – reconheceu Papiloma.
Papiloma reuniu os cacos de vidro da clepsidra quebrada e aprisionou
em seu interior O Alfaiate.

160
Palácio dos Alfinetes

– Distimia – chamou Papiloma – leve-o de volta a Copas.


Distimia ficou surpresa. Porém, apenas baixou a cabeça e cumpriu a
ordem.
Papiloma permanecia fitando o chão de algodões.
– A Coroa do Reino está quebrada. Como pode O Alfaiate ter
pensamentos tão doces? – perguntou ele para si mesmo, segurando um
dos flocos de algodão rosado que caía dos céus do Jardim das Clepsidras
– Como foi capaz?
A majestosa ave branca de Tala sobrevoou os céus.
Era difícil fitar aquele belo mundo. Sentia que seus olhos eram
feridos.
E apenas fechou os olhos.

Espadas: Seção # 5.6

Ele não foi muito longe após levantar-se do banco. Sentia-se cansado
com o sol forte. Parou de caminhar para descansar.
Apoiou-se no muro baixo. Não, não era apenas cansaço. Era muito
mais que isso.
“Você não pode correr”
“Você não pode andar”
“Você não pode sair da cama”
“Você não pode viver”
Ele ajoelhou-se. Sentia sua respiração muito rápida e o coração
acelerado. Não era mais capaz de ficar em pé.
O sol forte de meio-dia batia em sua cabeça e o fazia suar. Mas não
era apenas isso. Era algo muito mais profundo. E sentiu medo.
De que adiantou sair do hospital? O que fez com apenas um dia?
Como pode ser tão cego...? No fundo, ele não podia fazer nada. Estava
apenas encostado ao muro baixo com a respiração e o coração
acelerados.
E não resistiu mais. Deixou seu corpo escorregar no chão, embora
ainda tivesse medo de desmaiar. Abraçou-se ao muro. Respirava rápido.
Sentia o terror. Não queria desmaiar. Lutava contra a vontade de seu
corpo. Foi tão de repente que o pegou desprevenido.

161
Juliana Duarte

“Não se esqueça de tomar o remédio no intervalo”. E, com


desespero, tentou alcançar a mochila. Sentiu que naquele momento era
tudo o que precisava: uma garrafa d’água, uma maçã enrolada em um
guardanapo e uma cartela de comprimidos.
Ele abriu a mochila com dificuldade, jogando tudo para fora. Livros e
cadernos se espalharam pelo chão. A maçã rolou para longe. E desistiu.
Não ia adiantar mais. Não tinha forças nem mesmo para se manter
acordado. Tentou fitar alguma coisa: uma última coisa que pudesse
enxergar antes de acabar; um último pensamento. Mas não encontrou
nada. Não viu nada. Sentia o corpo dormente e fraco.
Até que começou a dor.
Não podia gritar, não podia suplicar que aquilo parasse. A dor
simplesmente corroía seu corpo e um segundo o torturava mais que
todos os anos de apatia de sua vida. Aquilo o rasgava e ele não tinha
escolha. Seu mundo era apenas ele e a dor. Não valeria a pena viver nele.
Enxergou um pedaço de muro. Sentiu um pouco de consolo ao
pensar que não era um teto branco que seus olhos encontravam.
Mas já não conseguia pensar. Seus pensamentos eram apenas o
sofrimento.
Fechou os olhos. E caiu.

Copas: Seção # 5.7

O Alfaiate abriu os olhos.


Trajando o seu uniforme de mágico, com seu terno negro e sua
cartola, viu-se preso entre quatro paredes brancas. Ele mal conseguia se
mexer, de tão pequeno que era o cubo branco que formava o quarto em
que estava aprisionado.
Estava trancado no Palácio.
Ele apalpou as paredes com suas luvas brancas. Não havia portas ou
janelas. Não havia um só objeto. Não havia entradas. Não havia saídas.
Não havia possibilidades.
Nem mesmo um só truque restou no interior de sua cartola. Tudo o
que podia fazer era apalpar as paredes. Arrastava as mãos por elas
desesperadamente.

162
Palácio dos Alfinetes

E foi então que entendeu tudo. Ajoelhado, colocou a cabeça entre as


mãos.
– A liberdade... – pronunciou ele, baixinho.
E caiu. Sua cartola rolou pelo chão.
O último número do espetáculo terminou.

Espadas: Seção # 5.7

O menino abriu os olhos.


Enxergou diante de si um quarto branco.
E sofreu. Por alguma razão terrível, estava de volta ao hospital.
O mesmo quarto, o mesmo cheiro, a mesma prisão. E desejou se
livrar dele para sempre.
Mas estava sozinho.
Não tinha forças para se levantar. Era prisioneiro das limitações de
seu próprio corpo amaldiçoado. Sentia dor. Não era uma dor normal:
quase o impedia de respirar; quase o impedia de viver. Mas, acima de
tudo, acima de qualquer dor, sentia-se cansado. Mais cansado do que
jamais imaginou.
Não queria dormir. Já tinha permanecido deitado tempo demais
durante toda a sua vida.
Para a sua decepção, nem mesmo seu último desejo seria atendido:
jamais poderia deixar o hospital; estava preso a ele, como a pele à sua
carne. Sentiu saudade do cheiro da terra e da textura do muro. Desejou
até mesmo que o sol maldito o tivesse queimado até a morte. Gostaria de
não ter acordado mais de seu desmaio.
Sem nenhum motivo especial, lembrou-se do passarinho na gaiola.
Precisava avisar alguém. Precisava pedir para alguém soltá-lo.
Desejava que ao menos ele conhecesse a liberdade, voasse alto e
realizasse aquilo que ele nunca pode.
Tentou chamar alguém, mas sua voz saía fraca. Ele avistou uma
menininha muito pequena no corredor. Ela se virou para olhá-lo, com
curiosidade; mas não entrou.
– Passarinho... voe...! – murmurou o garoto.

163
Juliana Duarte

Ele repetiu algumas vezes essas palavras, já que não lhe ocorriam
outras. Depois disso, sua voz não saiu mais.
E dormiu.

Ouros: Seção # 5.8

Um garoto de pijamas se arrastava pelo chão. Estava muito fraco para


ficar de pé.
O garoto continuou a rastejar. Queria chegar a algum lugar, mas já
não se lembrava que lugar era esse. Tomou coragem e tentou ficar de pé.
Por alguma razão, conseguiu fazê-lo sem dificuldades.
Olhou para o alto. Enxergou um céu completamente negro, com uma
grande espiral brilhante. A espiral girava lentamente, quase viva: como se
fitasse o universo e, dentro dele, uma galáxia.
Fitou a terra. Ela estava derretida em carvão. Tudo lá estava
convertido em cinzas. Tudo era negro.
Deparou-se com uma cena terrível: uma grande fila. Pessoas de pé se
amontoavam numa fila infinita. Elas apenas andavam, como robôs. Seus
rostos não possuíam expressão: apenas a apatia absoluta.
Ninguém parecia estar realmente vivo. Pouco restou de humano
dentro deles.
Curioso, o menino acompanhou a fila para ver até onde daria. Andou
muito e avistou um palácio ao longe, cravejado de pedras de ônix negro.
Cada uma das pessoas atravessava um gigantesco portão de ferro. No
momento em que cada uma delas passava, retirava o relógio do pulso e o
derrubava no interior de uma grande máquina que soltava fumaça e
apitava.
Tudo o que se ouvia era o som das engrenagens das incontáveis
máquinas. Era aquele um mundo de maquinaria, fumaça e cinzas: a
Grande Fábrica.
No alto da torre de ônix, um relógio gigantesco apontava as horas. O
tique-taque do ponteiro vermelho era interminável.
O garoto aproximou-se para tentar descobrir o que havia por trás do
portão.

164
Palácio dos Alfinetes

A grade de ferro rangia. E entrou em um gigantesco salão.


Contemplou infinitas camas. De repente, ouviu um som ensurdecedor.
O relógio da torre de ônix proferiu seis badaladas.
Todos os cadáveres deitados nas camas levantaram-se exatamente no
mesmo segundo, erguendo as costas do encosto macio.
Todos seguiram em fila. O rosto de cada um deles era uma máscara
de indiferença. Na verdade, os olhos deles eram assustadoramente sérios
e vidrados, como se as suas expressões fossem costuradas brutalmente
para parecer um pouco mais humanas.
Como robôs, cada um deles seguiu em direção a uma pia. No mesmo
segundo, cada um deles lavou o rosto. Freneticamente, escovaram os
dentes.
E então cada corpo deitou-se suavemente numa banheira, no mesmo
segundo.
A água de um chuveiro caía sobre eles.
O menino não suportou mais olhar aquilo. Não era apenas tédio.
Não era indiferença. Era o mais profundo vazio que já imaginou.
Saiu pelo portão, um pouco decepcionado. Mesmo assim, gostaria de
saber o que era tudo aquilo: o que acontecia ali. Viu novamente os
recém-chegados jogarem seus relógios de pulso na grande máquina que
avidamente os devorava.
Todos eles eram escravos do tempo. No momento em que atiravam
seus relógios para serem devorados pela máquina, não podiam voltar
atrás. Percebeu que em apenas um gesto eles tornavam-se prisioneiros.
E, a partir dali, o relógio da torre de ônix os dominaria.
Precisava fazer alguma coisa. Tinha que alertá-los de qualquer
maneira.
– Ei! – falou o menino – Não entrem aí!
Porém, ninguém estava ouvindo.
– Acordem! – gritou ele, mesmo desconfiando que seria inútil –
Estão controlando vocês!
Mas nenhum deles nem mesmo se moveu. Estavam completamente
inconscientes de sua presença ali ou mesmo da presença dos outros
cadáveres que andavam em fila. No momento em que atravessassem o
portão, iriam transformar-se em robôs escravos da cidade das máquinas.

165
Juliana Duarte

Tentava desesperadamente encontrar alguém que o escutasse. Não ia


desistir. Tinha certeza de que aquilo não deveria ser tudo o que existia
naquele lugar.
Entrou em uma segunda sala. Dentro dela, havia um campo de
futebol de salão, vazio. Logo avistou outras salas de jogos em que
centenas de pessoas-robôs jogavam mecanicamente e interminavelmente.
Cada uma daquelas pessoas desempenhava uma atividade específica no
mundo das máquinas; e tornavam-se dominados por elas.
Encontrou um grande salão de barulhos eletrônicos. Centenas de
pessoas concentravam-se vidradas em jogar videogames. Os gestos eram
breves e repetidos.
Tudo que havia era apenas uma repetição sem fim.
– Parem! – gritou o menino, que quase se sentia enlouquecer apenas
ao fitar aquela cena – Vocês precisam parar!
Outra sala lhe chamou a atenção, por trás das salas de jogos de
sinuca: uma mesa de ping-pong encostada na parede.
Uma menina solitária de cabelos castanhos cacheados jogava uma
bolinha contra a parede com uma raquete. Por alguma razão, achou que
ela estivesse levemente consciente, embora mortalmente entediada.
– Olá – tentou o menino.
E, para a sua surpresa, a menina respondeu, embora não o fitasse.
– Olá – foi a resposta; ela nunca deixava de concentrar-se na bolinha
que atirava inúmeras vezes contra a parede.
– O que está fazendo?
– Estou jogando ping-pong.
Isso ele já tinha percebido.
– Por que você está jogando?
– Porque eu gosto de jogar.
– Você não enjoa?
– Não.
– Há quanto tempo está aqui?
O tempo todo, ela continuava se concentrando em bater a bolinha na
parede.
– Oitenta anos.
– Oitenta?! – perguntou ele, chocado – Mas isso não pode ser!
– Por que não pode?

166
Palácio dos Alfinetes

– Porque você é apenas uma garotinha.


– Eu prometi que jamais pararia de jogar até que meu mestre
retornasse.
– E se ele não retornar? Você vai jogar para sempre?
– Sim.
Ele não podia acreditar. As poucas pessoas que ainda eram
conscientes naquele lugar eram loucas. Resolveu mudar de assunto.
– Não consegui falar com os outros. Eu gritei, mas eles não me
escutaram.
– Claro que eles não vão te escutar. Eles estão mortos.
– São zumbis?
– Tem uma grande fenda lá fora. Quando as pessoas morrem, elas
caem ali. Ainda estão conscientes, mas elas precisam esperar. Todos os
corpos são empilhados um por cima dos outros. Só a espera, ela sim que
é insuportável; é aí que todos enlouquecem. E quando são chamados
para escalar o abismo, entram na fila. Não possuem mais noção do
tempo pela longa espera. E assim são controlados.
– Mas isso é terrível demais...! – e assustou-se ao imaginar que
pudesse acontecer com ele também – Quem controla tudo isso?
E a menina continuava a acertar a bolinha com a raquete. Ela voltava
da parede, quicava na mesa, ela a rebatia.
– Na verdade isso é só uma brincadeira. A minha amiga pediu para eu
não contar, mas ela estava a fim de escravizar algumas pessoas. Então
inventou esse joguinho.
O garoto ficou ainda mais indignado.
– Você já os viu? Estão presos. Escravos de uma rotina monótona e
insuportável! E você não vai fazer nada para ajudá-los?
– Você acha que esse lugar é tão diferente assim do mundo dos
vivos? De qualquer forma, eu não posso fazer nada. Aquele é o mundo
dela e este é o meu: o mundo dos jogos.
– Você também está escravizando as pessoas, fazendo-as jogar
interminavelmente. Se acha que isso é importante, apenas escravize a si
mesma. Eles não sabem o que fazem!
– Isso é um prêmio – falou a menina – Cada um escolheu a atividade
que mais lhe agradava em vida. E aqui no meu mundo, cada pessoa pode
divertir-se com seu brinquedo para sempre.

167
Juliana Duarte

– Afinal, o que estou fazendo aqui?


– Você deve ter morrido.
– Eu não estou morto! Tenho certeza de que não estou.
– É, tem razão – ela teve que concordar – se você estivesse, não
saberia de mais nada e estaria lá fora na fila com os outros.
– E quem é você? Por que é diferente deles?
Ela permanecia a jogar a bolinha contra a parede.
– Porque eu fui uma das escolhidas. Fui feita pelo mestre. Cada uma
de nós criou um mundo, onde seríamos rainhas. Através dele,
tornaríamos reais todos os nossos sonhos e experimentaríamos
finalmente a felicidade.
– Você não parece muito feliz.
Ela era apenas levemente mais viva do que as pessoas-robôs. Sua
expressão era desanimada e vazia. Assim como todos, realizava a sua
atividade mecanicamente.
– É porque Ele foi embora. Ele criou um mundo fantástico e
perfeito, mas com sua partida, a chuva de algodões dos céus converteu-
se em cinzas. As árvores tornaram-se máquinas. As águas dos rios,
cachoeiras de graxa.
– Quem é Ele?
– Eu já falei. O nosso mestre. Ele é nosso criador. Deu a cada uma de
nós uma carta e foi através dela que nos deu vida.
– Uma carta de baralho? – perguntou ele.
– Isso – respondeu ela no mesmo tom desanimado de sempre,
batendo mecanicamente a bolinha na raquete.
– Como essa aqui?
Ele tirou de dentro das vestes uma carta de baralho. Nela havia a
figura do Rei de Ouros. Ela não respondeu; fitou-o pela primeira vez,
chocada.
Um, dois, três.
A bolinha quicou três vezes na mesa e caiu no chão, rolando para
longe.
Ela baixou a raquete. Apenas fitava-o com os olhos arregalados,
paralisada.
Ele também ficou assustado. E se colocasse a culpa nele por ter
interrompido seu jogo infinito? Porém, ela imediatamente ajoelhou-se.

168
Palácio dos Alfinetes

– Estávamos aguardando ansiosamente pelo senhor, mestre.


Ele ficou ainda mais confuso.
– Mestre...?
Ela levantou-se e fitou-o mais uma vez. Parecia um pouco
emocionada, embora jamais sorrisse. Sua expressão adquiriu vida pela
primeira vez.
– Você voltou...! – falou ela – Eu sabia que voltaria!
– Isso deve ser algum engano – tentou o garoto – Eu não sei do que
está falando.
– Você tem o Rei de Ouros. É prova mais do que suficiente de quem
você é.
Mas a informação deixou-o preocupado.
– Que quer de mim? Que espera que eu faça?
– Venha – falou ela – eu vou te mostrar o nosso mundo. Sei que vai
se lembrar.
E assobiou. Uma imensa e assustadora ave com asas de morcego
atendeu ao chamado. Ela subiu nela.
– Suba também – convidou a garota, gentilmente.
Com um pouco de medo a princípio, ele acompanhou-a. Os dois
sobrevoaram o mundo das máquinas. Por todos os lados havia fumaça.
No céu negro reinava a deslumbrante galáxia.
– Qual é o seu nome? – perguntou o garoto.
– Tala. E lá está a minha amiga de quem lhe falei: a Carcinoma. Ela se
diverte bastante chicoteando seus escravos.
E apontou. Lá embaixo, em algum lugar da longa fila, uma garota de
vestes cobertas por cadarços negros e cabelos espetados ria sem parar
enquanto batia com um chicote em todos aqueles que saíam da grande
fenda no chão, jogando-os de volta.
Antes que ele pudesse ficar chocado com a cena e falar alguma coisa,
Tala continuou a apontar-lhe coisas novas.
– Veja – ela mostrou um tabuleiro de xadrez gigante, que mais
parecia um cobertor – lá está Menarca. E lá adiante é o circo.
Era um dos únicos lugares coloridos daquele mundo negro. Um
grande circo cor-de-rosa e luminoso chamava a atenção de qualquer um
que passasse por ali. Uma grande platéia vibrava nas arquibancadas. Uma
menina de cabelos brancos e vestes rosa estava vestida de palhacinha e

169
Juliana Duarte

fazia divertidas acrobacias ao centro. Também lançava argolas e cones


para cima, equilibrando-se cuidadosamente numa corda-bamba.
– Fantástico...! – ele deixou escapar.
– Sim – concordou Tala – A Distimia é realmente talentosa. Está
vendo a floresta das bruxas?
Árvores negras contorciam-se umas sobre as outras. Panos rasgados e
uma grande casa abandonada rodeada de morcegos eram vistos ao longe.
Algumas criancinhas estavam perdidas por dentre os espinhos. Duas
figuras de capas corriam, carregando abóboras e cestas nas mãos,
cobertas das mais deliciosas guloseimas. Elas riam alto.
– Doces ou travessuras? Angina e Moebius fazem isso o tempo todo.
É a diversão delas por aqui. E logo vem a Casa dos Fantasmas.
Em certa parte da floresta, diversas criaturas transparentes e
assombrações voavam pelos ares. Em meio a elas voava uma figura de
uniforme azul e prata.
– Lúpus é um herói. Finalmente conseguiu triunfar sobre seus
próprios medos, rompendo as cordas e pregos por si mesmo para chegar
até aqui. E lá está Sangria.
Numa enorme pista de dança piscavam as mais diversas luzes
coloridas. Lá dançavam pessoas mascaradas. No centro do palco
destacava-se a figura de uma garota trajada de vermelho erguendo uma
máscara dourada.
– E veja quem está mudado – falou ela, apontando.
Um sujeito de branco corria para lá e para cá tentando convencer os
transeuntes a comprar leite em pó.
– Espere – ele interrompeu, de repente – sei que você tem muito a
me mostrar, mas preciso saber o que todas essas pessoas esperam de
mim e quem eu realmente sou.
– Se você ainda não se lembra, não sei se estará preparado para
escutar isso. Gostaria que vivesse algum tempo aqui conosco e apenas
sentisse. Um dia você entenderá. E quando chegar a hora, saberá o que
deve ser feito.
E os dois sobrevoaram os céus sobre o pássaro negro.

Espadas: Seção # 5.8

170
Palácio dos Alfinetes

No pequeno quarto de quatro paredes brancas, três pessoas


rodeavam a cama onde estava deitado um garoto.
– Ele está...? – começou a enfermeira.
– Está em coma – falou o médico, interrompendo-a.
– Nem quero pensar no que poderia ter acontecido se a prima dele
não estivesse por lá... – falou a mãe.
Uma garotinha atravessou correndo o corredor. Entrou no quarto.
– Mana! Mana! – ela pendurou-se nas vestes brancas da enfermeira.
– O que foi, irmãzinha? Você não pode ficar correndo por aqui e
muito menos entrar nos quartos. Mandei que me esperasse na recepção.
– Eu quero ir embora. Não gosto daqui e nem daquele outro lugar
que você trabalha.
– Eu sei. Nós já estamos indo.
Ela olhou para o menino na cama.
– Ele está dormindo? Ou está morto? – perguntou ela,
displicentemente.
– Volte para a entrada – mandou a enfermeira, aborrecida – e me
espere lá.
Outra coisa no quarto lhe chamou a atenção: algo que repousava na
mesa de cabeceira.
– Passarinho! – exclamou ela, apontando – Passarinho!
– Escute...
– Vocês trouxeram o passarinho do menino! – falou a garotinha – Eu
ouvi ele falar no passarinho. Ele queria que ele voasse!
A enfermeira fitou a irmã seriamente.
– Você o ouviu dizendo isso?
– Não agora. Há muuuuito tempo.
– Eu dei a ele o passarinho – falou a mãe – hoje eu trouxe para que
fizesse companhia.
A garotinha balançou a cabeça.
– Acho que ele nem está vendo o passarinho. É melhor soltar. Ele
disse que queria ver o passarinho voar.
A mãe ficou um pouco triste ao ouvir aquilo.

171
Juliana Duarte

– Não acho que ela esteja mentindo – disse a enfermeira – Você


concorda em libertar o passarinho para talvez atender ao último desejo
do seu filho?
A mãe não respondeu. Parecia ter entendido os sentimentos do filho
pela primeira vez, apenas ao escutar seu último desejo revelado pela boca
da garotinha. Mesmo que fosse mentira, era um desejo triste.
E a mãe saiu do quarto, chocada demais para falar qualquer coisa.
– Solta o passarinho! – insistiu a menina, como se falasse pelo garoto
– Solta o passarinho!
A enfermeira adiantou-se decidida em direção à mesa de cabeceira:
ergueu a gaiola e entregou-a ao médico. O médico segurou a gaiola com
as duas mãos e dirigiu-se à janela. Repousou a gaiola no parapeito e abriu
a portinhola.
Porém, o passarinho nem mesmo se moveu do interior da gaiola.
– O que ele tem? – perguntou a menininha, inocentemente curiosa –
Ele está doente? Por que ele não voa? Por quê?
O médico cutucou o passarinho de leve, empurrando-o até a ponta
da gaiola para que voasse. Mas ele permanecia parado.
– Solta ele! – pediu a menina, sentindo uma grande pena do bichinho
– Deixa ele voar sozinho!
Com cuidado, o médico colocou a mão no interior da gaiola. Segurou
o passarinho, que aceitou ser carregado sem muita resistência. O médico
colocou o passarinho diretamente sobre o parapeito. Mas ele apenas deu
pequenos pulos sobre ele.
– Não deixa ele cair! – falou a menina, preocupada.
Foi então que o médico descobriu o que havia de errado.
As asas do passarinho estavam cortadas.
O médico passou os dedos sobre as asas dele. Voltou-se para a
enfermeira. Ela também tinha entendido.
No momento em que a garotinha percebeu, deu um grande grito.
– Não! – ela ficou chocada – Cortaram as asinhas do passarinho! Por
que fizeram isso?
A garotinha começou a chorar. Agarrou-se no jaleco branco do
médico.
– Cura o passarinho! – insistiu ela, enchendo o jaleco de lágrimas –
Ele está doente! Você tem que curá-lo.

172
Palácio dos Alfinetes

– Desculpe – falou o médico, repousando a mão sobre a cabeça da


menina – eu não posso curá-lo.
– Então ele não vai voar?
– Não – respondeu o médico, com seriedade.
– Nunca mais? – insistiu ela.
– Nunca mais.
A menina deu alguns passos para trás. Apenas fitava o passarinho no
parapeito da janela, de olhos arregalados.
– Mataram o passarinho! – ela chorou desesperada – Mataram o
passarinho!
E saiu correndo do quarto, chorando. O médico segurou o
passarinho nas mãos. Voltou-se para a enfermeira. Os dois permaneciam
em silêncio.
– E agora? – perguntou o médico, completamente perdido – O que
eu faço?
– Não há nada a fazer. Você não pode soltá-lo. Se fizer isso, ele vai
morrer. Coloque o passarinho de volta na gaiola.
E ele assim o fez. Em silêncio e em passos lentos, ele recolocou a
gaiola em cima da mesa de cabeceira. Ao fazer isso, seus olhos
encontraram o menino deitado na cama.
E entendeu. No fundo, as palavras da enfermeira não se referiam ao
passarinho.
O médico desviou o olhar. Voltou novamente até a janela. Encostou-
se ao parapeito. Cobriu o rosto com as mãos.
– Eu fracassei como médico – confessou ele, amargamente – Eu
fracassei.

Ouros: Seção # 8.0

O paraíso se converteu em inferno.


Apenas uma longa espera. Uma espera interminável.
Quase se sentia como os cadáveres-máquina daquele mundo de
cinzas. Decidiu que deveria procurar alguém: uma pessoa que evitou por
muito tempo. Ouviu boatos de que ela se encontrava no alto da torre do
relógio do palácio de ônix, onde ficava o cassino.

173
Juliana Duarte

Andou alguns passos. Sentia-se cansado. Não entendia como o


mundo dos sonhos e desejos escureceu tanto seus pensamentos.
Não havia escolha. Apenas andou; e andou.
Sentia frio. Não suportava mais contemplar o lado de fora. Entrou no
palácio.
Admirou a beleza opaca das paredes negras. Os corredores se
transformaram em quadrados pretos e brancos. Por todos os lados tudo
estava preenchido de xadrez.
E entrou no cassino.
Não queria falar com ninguém. Não ousaria quebrar a falsa felicidade
dos cadáveres que vibravam com a vitória. Apenas o som mecânico das
máquinas de caça-níqueis e das moedas que caíam. Caminhou pelo longo
corredor; chegou aos fundos. E subiu uma escada sem fim. Da escada
em espiral, via o mundo lá embaixo. Era apenas vento e solidão.
Finalmente, chegou ao alto da torre do relógio. Contemplou de perto
os fantásticos ponteiros.
– Você veio.
Ele virou-se. Uma figura de chapéu coco, cabelos negros e brancos,
meias listradas e rosto de boneca dirigia-se a ele.
– Você demorou – observou ela – mas sente que já é hora de
terminar. Está cansado. Sabe que não pode suportar mais.
– Apenas sobrevivi dentro de minha própria mente: uma existência
vazia e sem sentido.
– Por favor, venha até aqui.
Ele obedeceu. Entrou no extenso salão em que ela se encontrava.
Pisou no chão branco coberto por uma grande espiral negra.
Uma enorme ampulheta de areia branca encontrava-se ao centro. A
garota girou-a.
– Este é o tempo. Você, o grão de areia.
– Se vou contra a ampulheta é porque ela me empurrou para baixo
cedo demais.
– Você não pode segurar por mais tempo – falou ela – e não quer.
– Uma vez achei que pudesse; que poderia aguentar tudo. E que
podia tudo.
– Como se sente agora?
– Eu não sinto nada – confessou ele – e não quero sentir nunca mais.

174
Palácio dos Alfinetes

– Onde está a tua coroa?


O garoto estendeu quatro cartas de baralho: o Rei dos quatro naipes.
Três delas estavam completamente rasgadas. Apenas o Rei de Ouros
sobrevivia.
– Por que queria me visitar? Sabe que esperei muito tempo por isso.
– Me desculpe – falou ela – eu não queria visitar você. Batia na porta
porque buscava minha irmã. Você nunca teve uma visita.
Do alto do abismo da torre, uma figura de vestes multicores segurava
um pequeno ser nas mãos: um híbrido macabro de morcego e borboleta.
O próprio ser guinchou horrivelmente e jogou-se do alto buscando
desesperadamente a própria destruição.
O garoto de vestes multicores abaixou-se; ajoelhou-se no chão.
– E no fim de todas as coisas... o riso se perdeu – murmurou
lentamente.
E chorou.
Em cima da torre do relógio rasgou-se o Ouros.
E o Novo Mundo foi quebrado em mil pedaços.
Apenas o urro seco do lagarto. Mais nada.

Espadas: Seção # 8.0

Não foi preciso nem mesmo um suspiro.


Apenas se acabou, assim como deveria ter sido.
Uma figura numa cama parou de respirar.

Paus: Seção # 5.8

O pó ainda se arrastava pelo chão. O vento formava uma nuvem de


areia no deserto.
O Verme no Chão ainda se arrastava.
A Ampulheta fitava o horizonte inexistente.
– Agora entendo – murmurou O Verme no Chão, desapontado – de
nada servi.
– É tarde para se lamentar.

175
Juliana Duarte

– Mas por que ainda me arrasto? Por que fui condenado a tão terrível
destino?
– Meus caprichos enfim terminaram – anunciou A Ampulheta –
estou satisfeita. Você está livre.
E ela esmagou O Verme no Chão.
O Coringa carcomeu a si, convertendo-se do papel ao pó. A
Ampulheta fitou novamente o horizonte. Finalmente baixou o seu capuz
dourado. Seus cabelos negros e brancos de boneca voaram na direção do
vento.
– Enfim, minha majestosa capa dourada possui a cor da terra.

Teatro de Marionetes: Ato Último – Comédia Branca

(as cortinas se fecham)


FANTASMA: Abominável! Que desagrado! Como posso eu exercer
o manso ofício de meu entretenimento se o mesquinho susto já nasce da
boca do rebento?
FANTOCHE: Quisera eu possuir uma corda. Com ela alcançaria os
confins do mundo, amaciando a garganta desatenta do ventríloquo.
FANTASMA: Onde está o fanfarrão? Diz-me de uma vez!
FANTOCHE: Veste ele a capa dourada de mofo e da terra. Sutil
como deseja, brinca de revelação e lança os dados. Como é ardilosa sua
brincadeira recortada! Esconde-se entre as linhas, rebenta-se em palavras,
arranca do tolo o grito.
FANTASMA: Cortá-lo, sim, eis seu merecimento. Esmigalhar dos
fios o algodão sem anunciação, em seus ardilosos dedos que em silêncio
o riso brada da farsa já velada em costas de ferro!
PALHAÇO: Sim, o riso, somente ele revela! Como pode ocultar tão
belamente da mentira a veracidade? Eis seu segredo. Como o monstro
que sou e hei de ser nesse fingimento, sobriamente derramado em
nanquim.
DEUS: Basta de palavras travestidas em beleza! Apenas expõe-te ao
ridículo, sem mistificações! Fala tão somente sem véus e grinaldas.
Encontrar-se-ia o encanto das palavras em expressões bélicas de

176
Palácio dos Alfinetes

eufemismo desprovidas de mensagem? Que a santa mula as carregue!


Venera, portanto, o feto mascarado e não a mim!
FANTASMA: Não mais importa a discussão perdida que já se foi. A
brincadeira continua e concretizou-se, lavada em decepções.
DEUS: Não será feita mesmo tarde a dissecação. A caixa do tabuleiro
foi lacrada. Embora entediante e lastimável a despedida, não gostaria que
assim terminasse o mais novo logro da Regência Manequim. Saudemos,
pois, os recém-chegados e aqueles que ainda virão.
FANTASMA: Vale então a sombra!
PALHAÇO: A atadura!
FANTOCHE: A corda!
DEUS: A inocência...!
(e se foram)

Farmácia Láctea

Lar do exausto segredo


Trancada a porta, correntes enjauladas
Eu ainda roubarei o roteiro do espetáculo
As leituras infinitas medidas com a régua exata
Não caberiam na palma sagrada

FIM...?

Epílogo: Brócolis

Paus: Seção # 5.5

177
Juliana Duarte

Os passos eram sempre lentos. Não queria perder nenhum detalhe.


Não havia muito a ser visto. Tudo ao redor era deserto, sem graça,
paisagem cortada por uma ou outra bagunça. Será que simpatizava com
aquelas bagunças? Decidiu tentar sentir um pouco que tipo de impressão
aquele ambiente peculiar lhe trazia. Aquilo não era realmente
desconhecido para ela.
Fitou os próprios pés: uma fina poeira mal notada os cobria. Apenas
ela perceberia o estrago mínimo causado pela areia aos seus calçados
revestidos de perfeição. Sabia que era uma estrela apagada num céu
aberto, cinzento e sem nome.
Areia no chão. Concreto cinzento não muito longe e algumas altas
construções desabitadas. Não queria saber o que estava escondido por
trás delas. Apenas estava presente num ambiente sem presenças.
Nublado, cinza, marrom; vento que não ventava.
Passo ou outro dado sem escolha, ou por intermédio de uma escolha
aleatória; e viu o chão amontoado de sucata antiga.
Fitou o lixo. Aquilo lhe trazia um alívio imediato. Um prazer tão sutil
que lhe passou despercebido. Apenas sabia que não era uma sensação
ruim.
Rodeou o local. Talvez pudesse analisar do que se tratava a sucata.
Percebeu com atraso que nada haveria de interessante, mas alguma
sensação sentia ao contemplar o lixo. Não cheirava exatamente mal.
Muito daquilo era papel, papelão e metal, decididamente estragados.
Não precisava vasculhar a sucata. Não ia tocar o lixo. Que ideia!
Bastava atravessá-lo. Tomaria o cuidado de não pensar muito. E andou.
Um caminho. Caminhava passando pela sucata e avançava. O
amontoado de papel e metal era sem fim. Andou até avistar a fumaça
negra da chaminé de uma fábrica.
De uma coisa ela estava certa: ela era uma figura que produzia um
impacto violento no ambiente. Suas roupas eram rosa-choque e
espalhafatosas. Seus cabelos eram de cor lilás e consideravelmente
longos.
Sem perguntas, sem respostas. Tornou-se quase séria.
– Que gostaria de fazer com essa sucata?
– Não pretendo sujar as minhas mãos no lixo – respondeu ela.

178
Palácio dos Alfinetes

– Suponho que eu esteja certo em imaginar que você joga seu lixo
fora.
– Suponho que você mesmo tenha se jogado fora para estar aqui –
retrucou ela – Eu preciso de uma informação.
– Pois não?
– Estou procurando uma organização chamada Brócolis. Se puder me
dizer...
– Por que você acha que existiria uma organização chamada Brócolis?
– Apenas dê-me a informação.
– Sinto muito. Você não sabe no que está se metendo. Gosta de
brócolis? Não fica bem com leite.
– Brócolis com leite? – perguntou ela – Está louco?
– Por que não?
– É, por que não... Diga-me onde posso encontrar Vício.
– Opa! – falou ele, um pouco surpreso – Agora você está indo rápido
demais!
– Você que é devagar.
– Que posso fazer? Sou apenas um verme no chão catando restos no
lixo.
– Você parece alguém que perdeu todas as esperanças.
– Se restou alguma a você, não vá adiante ou irá perdê-la também.
– Eu não tenho nada – confessou ela – tudo o que sei é que devo
encontrar Brócolis.
– Sinto muito se é esse seu único objetivo na vida. Sorte minha que
não tenho nenhum.
– Então continue no chão.
– Você faz alguma ideia do que seja Brócolis?
– Uma organização.
– E o que é organizado lá?
– Não é assim! – retrucou ela – Ora, eu quem deveria fazer as
perguntas! Você só dá as informações!
– Por que se chama Brócolis?
– Porque... – começou ela – isso é um segredo da organização.
– Deve ser um segredo muito secreto mesmo. O que pretende fazer
lá?
– Quero falar com Vício.

179
Juliana Duarte

Ele balançou a cabeça, decepcionado.


– Má ideia.
– Por quê?
– Ele é teimoso, arrogante, cabeça-dura... quer que eu continue?
– Sim, por favor.
– Convencido, mal educado, leva as coisas a sério demais, enfim, não
acredito que seja alguém digno de ser buscado. Mas as pessoas insistem
em querer conhecê-lo. Por quê?
Ela baixou a cabeça.
– Porque é isso que ele quer – confessou ela – E ele conseguiu.
– Mas sinto informar para você que o clubinho dele só é aberto para
convidados especiais. Será que você teria o "ingresso" para a entrada da
festa?
Ela retirou alguma coisa do interior das vestes e lhe mostrou. Ele
ficou um pouco surpreso. E estendeu o braço em direção à chaminé de
fumaças negras da fábrica.
– Não quer participar da festa também?
– Não, obrigado – falou ele – Ele infestou aquela porta com
vermífugo. Não posso nem chegar perto.

Paus: Seção # 5.6

A chaminé era alta. O seu fim perdia-se no céu e tudo o que restava
era a fumaça.
Decidida, ela deu mais alguns passos. Colocou-se em frente à porta
que dava acesso à chaminé. Havia grades de ferro diante dela. Olhou
para cima mais uma vez. Nada daquilo se parecia com o mundo
maravilhoso do qual viera.
Uma enorme tristeza apoderou-se dela. No começo foi tudo muito
sutil e silencioso, mas depois passou a envenená-la com pesadelos
maléficos. Não era apenas um teste.
De sua consciência parecia derramar-se vinagre fervente. Ela
compreendia cada vez mais a crueldade de Vício. Manteria a brincadeira
até as últimas consequências.
Aquilo não era apenas uma chaminé. Não era uma fábrica. Era um

180
Palácio dos Alfinetes

resquício doentio da Cidade das Máquinas, quase como se ele


cuidadosamente recolhesse o pior do que restou naquele mundo e
levasse até as últimas possibilidades. No momento em que se sentiu
dilacerar por dentro, gritou: um grito alto, desesperado, cortante e
horrível.
Ela ajoelhou-se no chão; fitou as próprias mãos. E chorou.
Ouviu um som seco cortando a quietude daquele deserto de areia e
poeira: o som de rodas arrastando-se no chão. Ela virou-se. Cinco
figuras se aproximavam.
Havia uma garota de longos cabelos castanhos encaracolados
trajando branco e carregando uma ovelhinha pela coleira.
Outra figura tratava-se de uma moça de cabelos negros erguendo
uma mala e uma chave gigantesca.
O seguinte era um homem com a boca coberta por faixas brancas,
vestindo um terno branco.
Uma delas, com cabelos longos e negros completamente envolvidos
por pequenas tranças, vestia um longo vestido negro e recortado. Ela
arrastava uma cadeira de rodas em que repousava uma pessoa de
bengala. Alguma coisa na expressão cadavérica e séria desta última figura
chamou-lhe a atenção imediatamente.
– Vício...! – pronunciou a garota no chão, impressionada.
A garota negra de tranças arrastou a cadeira para perto da menina no
chão.
– Levante-se – falou o que estava na cadeira de rodas – e mostre–me
aquilo que tem em mãos.
Ela estendeu–lhe o ingresso.
– Você é a Face III do Dado: o elo que faltava para completarmos os
seis. Diga-me seu nome.
– Fada.
– Você amadureceu muito desde a última vez que nos encontramos.
Infelizmente, você não foi trancada como o resto de nós. Portanto,
posso compreender as lágrimas.
– Me desculpe – falou ela.
– Acompanhe-nos.
Ela seguiu os cinco em silêncio. Eles iam a uma direção diferente da
Torre de Fumaça Negra.

181
Juliana Duarte

Por muito tempo andaram até não haver mais areia. Penetraram por
dentro de uma cidade de concreto e completa poluição. Tudo era
acinzentado e sem vida. Poucas pessoas saíam às ruas e as poucas que o
faziam, fitavam o grupo com receio, medo ou fascínio.
– Alguns nos amam e outros nos odeiam – explicou Vício – sempre
foi assim. Os que nos odeiam nos temem ou possuem um enojo doentio.
Porém, há aqueles que, em seu delírio apaixonado, aceitariam qualquer
provação para satisfazer suas fantasias.
Fada apenas ouvia com atenção, fascinada.
– Não sei se as coisas deveriam ser assim – prosseguiu ele – Elas
apenas são; e tudo já está destruído. Não há mais nada a perder.
– Essas pessoas desejam saber mais – falou a garota que empurrava a
cadeira de rodas – mas Vício entregará a nós o valioso presente. Apenas
nós cinco teremos a bênção de provar um gole...
– Por favor, Princesa – falou Vício – minha generosidade é
misericordiosa, mas não possuo todos os segredos do mundo.
– Veja como nos olham – prosseguiu Princesa – desejam conhecer a
verdade mais que tudo no mundo e sabem que jamais poderão.
– Não posso imaginar aquilo que guarda, senhor Vício – falou Fada,
timidamente – mas para ser ainda mais especial que Ouros, minha vista é
pequena demais para alcançar.
– Eu sabia que Ouros fracassaria – confessou Vício – Ele tinha uma
falha. Eu não havia percebido, mas logo me dei conta de meu erro.
Vocês poderiam realizar todos os sonhos e desejos de suas imaginações,
fortemente inspirados por Copas. Você pode imaginar onde estaria o
erro em um mundo em que tudo é permitido?
– Eu... não sei – admitiu Fada – Eu podia realizar todos os meus
sonhos. Foi bom por um tempo, mas depois acho que me pareceu um
pouco artificial...
– Você não sabe, Fada – interrompeu a garota que carregava a chave
e a mala – não sabe nada. Não sofreu trancada como nós no Palácio.
Para nós a felicidade foi muito mais duradoura depois de uma tristeza
infinita.
– Mas uma parte ainda não estava preenchida em nosso mundo
perfeito – admitiu a menina de branco – a solidão.
– Irônico, não é? – falou Vício – Reinar em um mundo ou até mesmo

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Palácio dos Alfinetes

escravizar as pessoas como você fez, Princesa, não foi o suficiente para
preencher o vazio da solidão.
– Quer dizer que você também sente isso, Vício? – perguntou
Princesa, talvez uma das únicas que tivesse coragem suficiente para fazer
uma pergunta como aquela.
Mas ele não respondeu.
– Você tem a resposta para a solidão? – perguntou a menina de
branco.
– Eu tenho a chave para um caminho – respondeu Vício – a decisão
que será tomada caberá a vocês.
Atravessavam as ruas em passos lentos. Algumas delas eram vazias,
tomadas apenas pelo cinza dos prédios e pela fumaça. Em outras ruas
recebiam olhares de temor ou desejo.
– Eles sabem quem você é – percebeu Fada.
– E sabem que hoje é o dia da revelação – prosseguiu a moça que
carregava a chave.
– Sugiro que procurem evitar certos rótulos por enquanto até fitarem
com seus próprios olhos – falou Vício.
Atingiram um campo aberto. A cidade cinzenta acabou. O céu
nublado ainda estava no céu e uma grama rala era possível de ser vista
nas proximidades. Tudo o que se via era um moinho e um rio. Seguiram
adiante até se encontrarem diante de uma casinha ao lado do moinho,
que possuía uma porta com uma grande fechadura.
– Por favor, Forca – falou Vício – faça a gentileza.
A garota de cabelos negros colocou a maleta no chão e introduziu a
chave na fechadura; girou-a. A porta se abriu.
No topo da casinha havia uma tábua com uma inscrição quase
apagada:

“Barato Rasgo em Osso Calcinado


Órfão Louvado da Infância Santa”

– Sim – falou Vício, notando o olhar de Fada – Pouco reage a uma


nova dor aquele que muitas dores já experimentou em vida. Ainda mais,
o possuidor do mundo mágico das imaginações.
Todos entraram. Havia uma roca encostada na parede, coberta pelo

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Juliana Duarte

pó e abandonada pelo desuso.


– Não pensem que esse convite foi generosidade de minha parte. Isso
pode ser um momento de felicidade ou de decepção. E todos foram
previamente alertados.
Todos mantinham silêncio para escutar o que Vício tinha a dizer.
– Confesso que já cobicei por muito tempo a felicidade.
– Você a obteve – falou a Princesa.
– Todos esses mundos deveriam ser perfeitos, mas eu não consegui
que fosse assim.
Ninguém pronunciou uma palavra.
– Alguns personagens foram esquecidos com o tempo... outros foram
transformados como eu queria. Meu tempo acabou; e isso significa que o
de vocês também. Ninguém jamais conhecerá as histórias de vocês, já
que a maior parte delas apenas jazem em minha memória e uns poucos
rascunhos restaram em um velho diário que tampouco alguém se dará ao
trabalho de ler. Porém, em alguns momentos experimentei algum alívio
por viver boa parte de minha vida nesse mundo. Por isso, gostaria de
dar-lhes um presente final de agradecimento. O restante de vocês
desaparecerá sem recebê-lo.
Ninguém estava disposto a responder alguma coisa. Apenas
escutavam.
– Deixarei que A Ampulheta lhes mostre o caminho.
Uma figura encapuzada vestida de dourado surgiu dos fundos da
casa. Ela sentou-se em uma mesa e retirou um papel dobrado do interior
das vestes. Ela alcançou um dado e jogou-o no ar. Caiu a face número 2.
– Princesa – chamou a figura encapuzada.
A garota que outrora arrastava a cadeira de rodas deu um passo.
Sentou-se num banco diante da mesa.
– Mostre suas cartas.
A garota colocou três cartas em cima da mesa. Ampulheta analisou
cada uma delas.
– 2 de Copas – falou A Ampulheta – Você nunca foi nem mesmo
minimamente especial. Esquecida na Dispensa e feita de retalhos e
restos, era nada mais que lixo. Sua existência veio da pena. Um dia você
limpou o vômito de um menino; e nasceu.
Ela pegou uma segunda carta.

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Palácio dos Alfinetes

– 2 de Ouros. Você passou de escravizada para a senhora dos


escravos. Impiedosa e cruel. E, finalmente – ela pegou a última – 2 de
Paus. Você mostrou que não é apenas retalhos de pano e adquiriu vida.
Acredito que Vício guarde Espadas. Não há meios de você segurá-la. O
seu presente...
E subitamente rasgou as três cartas de uma vez.
Princesa caiu no chão antes que pudesse pensar ou dizer qualquer
coisa.
– Adeus – falou A Ampulheta – sinta-se honrada por ter a sua carta
rasgada. Aqueles esquecidos por Vício nem mesmo receberão uma
despedida.
Os outros quatro ficaram impressionados pela cena que tinham
acabado de presenciar. Nenhum deles atreveu-se a se pronunciar.
A Ampulheta jogou novamente o dado. O número 5 apareceu.
– Nata.
A menina de branco seguiu adiante. Não aparentava medo.
A garota colocou quatro cartas na mesa.
– Quatro cartas! – falou A Ampulheta, um pouco impressionada –
Isso significa que você sentiu os últimos momentos de você mesma em
Espadas.
Ela recolheu as cartas, observando-as.
– 5 de Copas. Você era medrosa e assustada. Apenas uma criança
curiosa sentindo um mundo estranho. Com o tempo, foi superando a si
mesma – ela segurou a outra carta – Em Ouros você foi... extraordinária!
Digna de abraçar o pássaro branco que nasceu do ovo daquilo que daria
origem a todas as demais criações de Vício. Você tomou contato com A
Fonte, nada mais que o ovo, a inspiração para o nascimento das ideias.
Ela recolheu a próxima carta.
– 5 de Paus. Você superou as suas fraquezas e mostrou-se como uma
das mais fortes. Admito que estou orgulhosa.
– Eu estou preparada – falou Nata.
A Ampulheta rasgou as cartas e a menina de vestes brancas caiu no
chão.
Ela jogou novamente o dado.
– Número 4. Forca.
A moça de cabelos negros que outrora portou a chave aproximou-se

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Juliana Duarte

e sentou-se na cadeira. A sua expressão permanecia séria e controlada.


Ela estendeu três cartas.
– Suas cartas contam a sua história. Você possuía três cartas de
Copas, mas duas delas foram destruídas. Em Copas você era a favorita e
bastante vaidosa. Em Ouros experimentou a derrota. Sei que você
também guarda a frieza de Menarca agora. Por isso, Sangria, essa força
me poupará quaisquer palavras. Será apenas adeus; e mais nada.
Ela rasgou as cartas. Forca caiu. A Ampulheta jogou o dado mais
uma vez; e mais outra. Finalmente, um número novo.
– Número 6. Herói.
O rapaz seguiu até o banco.
– Olá – cumprimentou ela – fico feliz ao vê-lo de novo. Entramos
juntos aqui uma vez e encontramos as três velhinhas inventando
charadas. Assustador, não foi?
– Foi – admitiu Herói.
Ela observou as cartas dele.
– Como você era medroso naquela época... encontrei-o aqui mesmo
em Paus. Mas em Copas você passou por uma terrível provação. Lembro
de suas incríveis jornadas em Ouros. Finalmente você realizou seus
sonhos. Você abandonou seu filho Vício. Mesmo odiando-o ele não
pode esquecê-lo. E aqui está você, até mesmo no momento final.
– Graças a isso superei meu medo de fantasmas.
– Mas os fantasmas do passado não vão mais incomodá-lo, criança.
Porque, mesmo tendo abandonado seu filho no passado, agora você que
foi abandonado por ele.
E rasgou as cartas. Na próxima jogada, foi a vez de Fada. Diante da
mesa, ela tinha pouco a ouvir: apenas duas cartas.
– Ainda assim, senti que sua presença foi especial – falou A
Ampulheta – obrigada por levar Vício até o hospital.
– Nada sei sobre Espadas, mas agora que está próximo do fim, vejo
que nunca fui preparada. Nunca passei por Copas, pouco vivi. A pouca
força que tenho é a minha fraqueza. Posso chorar?
– É claro – respondeu A Ampulheta.
– Mas não consigo mais.
Ela rasgou as duas cartas. E acabou. Nem precisou lançar o último
dado. Restou apenas uma pessoa na sala. A Ampulheta levantou-se.

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Palácio dos Alfinetes

– Você rasgou suas cartas em Ouros, mas para você isso não é
importante. A sua história nunca foi escrita e você se arrependeria se não
se despedisse. Afinal, você sempre foi o senhor do tempo.
– Não sou mais – respondeu Vício – estou aqui apenas para ajudá-la a
enterrar os mortos. O cemitério ainda está vazio?
– Como sempre esteve.
Vício levantou-se da cadeira de rodas com o auxílio da bengala.
– Minha doença não pode mais ser escondida nem mesmo no mundo
dos meus sonhos.
A Ampulheta segurou Forca do chão. Abraçou-a.
– Irmãzinha... – sussurrou ela.
E levou-a nos braços até o cemitério. Vício seguiu-a segurando
Princesa nos braços. Depois de tanto tempo ignorando-a e arrastando
sua existência por pena, terminou dando a ela o lugar de honra.
O cemitério era próximo. Eles depositaram os dois corpos em duas
valas abertas.
– Ah, meu tempo acabou! – falou Vício – Dessa vez definitivamente.
Nem mesmo poderei enterrar os demais corpos no cemitério das
bonecas.
– Esqueça isso por esse momento – falou A Ampulheta – você não
saberia encontrar um último pensamento especial antes do fim?
– O que você me pede é insuportável.
– Apenas leve-me para dançar. Não pense agora. Faça esse momento
só seu.
– Sim. É isso...!
Ele estendeu o braço, largando a bengala. A Ampulheta jogou o
capuz para trás e segurou a mão dele.
Os dois seguiram dançando em direção ao lago de leite, em meio à
paisagem bucólica da casa, da grama e do lago. Os dois adentraram o
lago cada vez mais. E finalmente desapareceram dentro dele.
Uma ovelha pastava feliz no campo verdejante.

Tubulação Semiótica I

O rosto da minha boneca de porcelana está triste

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Juliana Duarte

Porque ela descobriu que não tem nome


Eu colori o rosto dela para que ficasse rosado
Mas nem mesmo o corado em suas bochechas
Apagou a tristeza dos seus lábios
Mas os lábios também são de porcelana
Estará então nos olhos cor-de-terra a tristeza?
Mas os olhos são os mesmos das outras bonecas
Vejo também a dor
Na menina das tranças cor-de-palha
A casa de bonecas está tomada pela dor
Uma dor apática, desanimada, fria
Não suportei mais aquele sorriso bobo
Tentei imitar e vi minha boca deformada
Foi então que resolvi
Parar de brincar de bonecas

ENCERRAMENTO

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