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Fábula dos Gênios

Wanju Duli
2013
Para os membros da Fagenar Vibri do 1º semestre de 2012
Sumário

Fábula dos Gênios

Capítulo 1: A Maga da Cadeira de Rodas___________________________7

Capítulo 2: Capricho Enrolado_________________________________39

Capítulo 3: A Sábia dos Lábios Selados___________________________69

Capítulo 4: Fúria do Destino___________________________________96

Capítulo 5: Os Deuses de Tudo________________________________129

Capítulo 6: A Vingança do Descendente_________________________168

Capítulo 7: Guerra__________________________________________203

Fábula dos Gênios: Volume 2

Capítulo 1: O Prazer é Meu___________________________________238

Capítulo 2: Uma Chance Desperdiçada__________________________277

Capítulo 3: Só um pouco de fogo______________________________308

Capítulo 4: Sexo dos Triângulos_______________________________338

Capítulo 5: Os Deuses não estão no céu_________________________367


Fábula dos Deuses

Capítulo 1: Quando meu mundo termina________________________389

Capítulo 2: Quando meu mundo começa_________________________415

Capítulo 3: A Deusa da Libido_________________________________458

Fábula da Pompa

Capítulo 1: A Princesa Despedaçada____________________________489

Capítulo 2: A Sociedade das Máscaras___________________________530

Fábula da Eloquência______________________________________566

Fábula da Farsa

Capítulo 1: Ovos de Poder___________________________________596

Capítulo 2: Morrer por Nada__________________________________616


Fábula dos Gênios

Fábula dos Gênios

Capítulo 1: A Maga da Cadeira de Rodas

Era uma vez a minha bela terra


Repleta de criaturas geniais
Mentes humanas, almas animais
Que assassinavam pelo amor à guerra

O ar estava contaminado. O tremor da terra.


“Eu não acredito que isso realmente está acontecendo”.
Eu já tinha lido sobre isso em livros. Na minha escola estudávamos as
grandes guerras do passado, com destruição, sangue e morte.
Para mim guerra era ficção. Não podia acontecer comigo: uma garota bonita
e esperta. Eu precisava viver. Queria ver mais vezes as cinco estrelas brilhantes.
Tudo estava diferente. Eu queria voltar no tempo. Não conseguiria viver
aquela realidade terrível.
Eu e meus amigos brincando de magia. Nós todos experimentando jogos de
fantasmas. Naquele tempo as assombrações estavam longe e eram motivo de
riso.
– Eu sou um destruidor! Veja como sou aterrador! Buuuuuu...!
E trajávamos mantos marrons e verdes. Cobríamos nossos corpos com
musgos e areia. Porque naquela época não sabíamos tremer.
Ninguém nunca tinha visto um destruidor. Pelo menos não as crianças.
Aquilo era absurdo. Na minha mente eles eram muito engraçados, com mantos
velhos e rasgados. Palhaços sujos e de mau gosto.
Os professores nos ensinaram a detestá–los. Eles eram os monstrinhos
divertidos de nossas brincadeiras. Grunhíamos para imitá–los. Ríamos demais.
Aquele tempo acabou.
Fim de jogo.
Restou somente a mim e meu medo.
– Nhanha, segura a minha mão.
Eu não podia. Não conseguia. Era incapaz de me mexer.
– Que está fazendo...? Corra!

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Voltei a mim. Era a primeira vez que eu via Bilubelei elevar a voz. Então até
ela era capaz disso num momento de desespero.
Bilu era séria e reservada. Sua calma era invejável. Ela e seus livros, suas
cartas e seus animais.
Quando os animais também escaparam, seu coração conheceu o desespero.
– Não podem ser eles. Bilu... simplesmente não pode. Você sabe que não.
– Mova seus pés. Não há mais tempo. Precisamos correr para os abrigos.
– Se forem realmente eles, abrigos serão inúteis. Mas os destruidores não
existem. Então, por que correr?
– Nhanha, você está suando e tremendo de terror. Sabe muito bem quem
está vindo.
Eu nunca tinha sentido um ar pesado como aquele antes. E a terra
chachoalhava junto com minhas entranhas.
Desequilibrei–me e caí de joelhos no chão.
– Ficarei.
– Não seja louca. Não se mate. Não conhecemos a magia. Deixe os adultos
lutarem.
– Não há o que lutar! Vão esticar tanto nossas almas que elas se partirão ao
meio.
Éramos apenas crianças, então para nós tudo era brinquedo. Aquela guerra
não parecia real. No passado mascávamos nossas almas. Colocávamos na boca
ou soprávamos tudo aquilo como bolhas de sabão. Uma gelatina, um joguinho
tolo.
Mas aquilo era mortalmente sério. Tocar nossa alma era a única maneira de
nos destruir. E os destruidores conheciam muito bem esse segredo. Podiam nos
partir ao meio como palitos de dentes.
Eu tapei a boca com a mão e rezei. Era assim que rezávamos, pois era pela
boca que poderia escapar a alma.
– Nhanha, o príncipe! Precisamos protegê–lo...!
Senti um aperto terrível no coração. De repente, todas as formalidades
inúteis de nossa educação estavam desabando sobre minha cabeça.
Sempre prestando honras ao rei e bajulando o príncipe. Na verdade o
príncipe era um mimado metido. Eu o conhecia. Digamos que era um amigo,
embora não pegasse bem que ele brincasse junto com a plebe.
Eu não gostava dele. Mas se os destruidores realmente viessem, iriam
diretamente para o palácio. Matariam a família real em primeiro lugar, para
tomar o poder.
“Só pode ser uma mentira”.
Eu, uma maga fraca, protegendo o príncipe. Nós crianças mal conhecíamos
os princípios da magia. Era bobagem acreditar que poderíamos de fato proteger

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Fábula dos Gênios

alguém. Os destruidores não usariam força bruta para atacar. Bastava tirar a
alma do nosso corpo e se livrar dos cadáveres. Nem precisavam encostar em
nós.
Nossas almas eram chicletes. E nossos corpos papéis descartáveis que as
cobriam.
– Onde está Varra?
– Deve estar na Casa dos Gênios. Venha logo!
Bilubelei puxou–me pela mão e arrastou–me com ela. A Casa dos Gênios
era nosso templo central, no qual realizávamos oferendas aos nossos gênios
guardiões.
Cada habitante de nosso mundo possuía um gênio desde que nascia. Ele
ficava dentro de nosso corpo, enrolado na nossa alma. Alimentava–se dela. Por
isso tantos de nós mascávamos chicletes, para recuperar as energias. Havia
chicletes de muitas cores e sabores, mas não podíamos alimentar os gênios
diretamente com eles. Nós os mascávamos ou dávamos de oferenda nos
templos.
Aquele era um alimento caro, pois era reservatório de força mágica. Além do
mais, a magia com gênios era nossa maior fonte de poder. Não podíamos usá–la
levianamente.
– Achei Nhanha.
– Ainda bem. Você é tola. Quer morrer?
– Eu estava com medo.
Eu não gostava de Varra, pois ela era muito rigorosa e preocupada. Ela
também odiava o príncipe, mas por alguma razão naquele instante estávamos
prontas a morrer por ele. Porque era nosso dever. A razão de nossas vidas. E
ninguém questionava isso.
– A salvação de nosso país é mais importante que o peso de nossas vidas.
Eu defenderei o rei. Não me importa que eu seja criança. Não quero esperar os
adultos perecerem enquanto me escondo covardemente.
– Espero que o príncipe não faça nada estúpido como tentar atacar os
destruidores. Se ele se matar dessa forma, nossos esforços serão inúteis.
– A família real recebe educação mágica de primeira linha. Se alguma criança
nesse país sabe se proteger sozinha, essa criança é o príncipe.
Bilubelei e Varra não me fitaram com bons olhos.
– Está questionando seu dever? Essa é a única coisa que importa para nós.
Tudo que nos resta. O que pode nos unir.
– Não estou questionando. Mas não quero morrer.
– Ninguém quer morrer, Nhanha.
– Os destruidores desejam. Eles têm sede de sangue, morte, gênios e chiclete.
– Eles triunfarão, mas irão pagar.

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Não havia a mínima esperança de vitória. Iríamos apenas morrer com honra.
– Podemos fugir.
Aquelas duas me fitavam com cada vez mais desagrado.
– Devia se envergonhar de suas palavras.
– Vi alguns adultos correndo. O terror os dominou, enlouqueceram.
– Não haverá desertores. Os destruidores os perseguirão até os confins
dessa terra.
Resolvi me calar. As duas garotas me odiavam. Viam o medo em mim e não
gostavam daquilo.
Eu não era forte como elas. Não conseguiria me mexer quando os
destruidores chegassem.
– Essa Casa de Gênios é segura?
– De que está falando? É nossa Casa mais forte.
– Vocês planejam usar seus gênios...?
Ninguém queria responder aquilo. A pergunta mais poderosa.
Ver o gênio de outra pessoa era expressamente proibido. Dentro dele
guardávamos todos os nosso segredos. Nosso gênio conhecia em profundidade
nossa alma e nosso coração.
E, acima de tudo: nele estava a revelação de nossa ligação.
A ligação era a magia mais potente do mundo. Aquilo poderia ser nosso
escudo. Os adultos iriam usar. Nós éramos crianças e não tínhamos permissão.
– Eu não queria usá–lo agora. Não queria...
Bilubelei colocou a mão sobre a boca e fechou os olhos. A mão dela tremeu.
– Vocês querem tentar encontrar suas ligações para salvar suas vidas? Isso é
estupidez. Jamais farei esse absurdo.
– Não me importo. Não tenho ligação.
– O que disse...?
E lá estava eu, vergonhosamente revelando meu mais espetacular defeito.
– Eu sou um dos raríssimos casos que nascem sem uma ligação. Isso
significa que eu morreria jovem de qualquer forma. Então, pensando bem, tanto
faz morrer aqui e agora.
Bilubelei apoiou sua mão sobre a minha.
– Sinto muito.
– Não sinta. Todas estamos condenadas.
– Pelos gênios malignos que estamos! Vou contatar Cromo.
Varra tirou do bolso seu computador portátil e enviou uma mensagem para
outro amigo nosso.
– Ele está ajudando na defesa cibernética. É nossa última chance. A
tecnologia dos destruidores é terrível.

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Finalmente o vício de Cromo em computadores serviria para alguma coisa.


Ele era fascinado pela magia das máquinas. Contava que até o gênio dele
gostava de mastigar os cabos de seus apetrechos eletrônicos. Lembro que no dia
em que ele fez essa revelação levamos um grande susto, pois é uma heresia falar
sobre o próprio gênio. Mas como éramos crianças, de vez em quando
deixávamos escapar, até por brincadeira, para desafiar a autoridade.
Mal sabíamos nós que todas aquelas regras possuíam motivos especiais para
existir. Serviam para proteger nossas próprias existências. Quanto mais segredos
entregávamos, mais poder possuiriam sobre nós.
Mas éramos amigos. Esperávamos que isso nos protegeria.
– A Magia dos Gênios é uma vertente individualista e egoísta. Ajudamos
apenas a nós mesmos. Então como podemos usá–la para defender o reino?
– É aí que você se engana. Fortalecemos nosso interior pelos outros. Se
estivéssemos fracos, outros precisariam nos proteger. A Magia dos Gênios
impede isso.
– Eu simplesmente não entendo. O que são os gênios? De onde vêm? Eles
são bons?
– Claro que são bons! Os destruidores possuem gênios malignos. Eles são
maus.
– Como você sabe? E se tudo isso for uma grande farsa? Alimentamos
nossos gênios, mas quem sabe eles nos devorem.
– Está dizendo isso porque você é fraca! Uma maga poderosa possui plena
amizade e confiança em seu gênio. Se você briga com o seu, será eternamente
medíocre, uma magista inferior!
– Por que estamos brigando nesse momento em que deveríamos nos unir
pelo reino? Não interessa quem é mais forte. Precisaremos de cada tipo de força
agora. Nossa vitória depende da união sem medida.
– Já perdemos, mesmo sem lutar. Por que mente para si mesma? Eu não
aguento mais. Sim, eu sou fraca! Não confio no meu gênio, não possuo ligação.
Sou um desastre com magia, sou covarde. Não tenho nenhuma força no meu
coração e minha alma é aleijada, somente com uma metade sem par. De que
vale essa vida infeliz? Somente um lixo fedorento a ser descartado na primeira
oportunidade.
E com essas palavras, deixei a Casa dos Gênios. Minhas duas amigas me
chamavam para voltar. Mas aquilo não fazia mais diferença.
Se fosse para morrer, eu queria desabar com os pés tocando a terra e os
olhos fitando o céu.
Caminhei sem rumo. Todas as moradias estavam desertas. Estavam todos
nos abrigos ou nas linhas da frente da batalha.
Sentei–me sob uma árvore, pois minhas pernas não paravam de tremer.

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Os destruidores eram quase uma lenda. Habitavam uma terra muito distante,
esquecida. Eram muito pobres, pois onde viviam os solos eram inférteis e nem
os animais conseguiam sobreviver naquelas condições. Então eles tiveram que
sobreviver com a magia.
Como estavam à beira da morte, criaram estratagemas revolucionários.
Deram a sua vida por aquela magia e por isso tornaram–se os maiores magos de
todos os tempos.
Ninguém podia vencer os destruidores. Nenhum povo os ajudava.
Deixaram–nos para morrer. E agora eles não aceitavam barganhar, nem se lhes
fossem dadas terras, comida ou até mesmo metais preciosos.
Segundo a lenda, a magia dos destruidores estava contida num livro muito
poderoso chamado Grimório dos Gênios Malignos. Mas era uma magia tão
maldita que até a alma dos destruidores estava começando a se rasgar sob o
peso daquele sistema.
Por isso, queimaram o livro. Dizem que algumas páginas restaram e estão
entre os tesouros mais valiosos de diferentes povos, ou sob a posse de
colecionadores.
O grimório de nosso povo era o Grimório dos Gênios. Embora não fosse
uma magia tão mortífera, era fabulosa. Um grimório repleto de selos, fórmulas
mágicas, feitiços e uma riqueza filosófica invejável.
Só teríamos acesso àquele grimório quando crescêssemos e fôssemos
admitidos numa das muitas escolas de magia do nosso reinado. Algo que não
seria mais possível de acontecer, porque nosso mundo seria destruído.
– Pelos gênios das estrelas! Que está fazendo aqui, Nhanha? Não devia estar
nos abrigos ou numa Casa de Gênios?
Eu olhei para trás. Espantei–me.
– Wakwa...! Não pode ser. Você está bem?
– Vivo ainda. Pergunto–me por quanto tempo.
– Você precisa se esconder!
– Os destruidores vão me procurar no palácio. Não posso ficar lá e muito
menos nos abrigos, para me matarem junto com todo mundo.
– Então que pretende fazer?
Eu estava cada vez mais confusa com toda aquela situação.
– Ficarei aqui fora aguardando a morte.
– Eles vão morrer por você! Não pode entregar a sua vida assim.
– Não quero que ninguém morra por mim. Isso é ridículo. Esse não é um
espetáculo para satisfazer o desejo de auto sacrifício de todos os construtores.
Eu já ia xingá–lo, mas pensei melhor. Ele era esse tipo de pessoa: orgulhoso.
Aquilo não era coragem. Ele era só um idiota, mas eu não podia chamá–lo assim
porque ele era o príncipe. Aquilo me irritava muito.

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Fábula dos Gênios

– Já que todos nos tornaremos iguais na morte, posso ser franca com você
antes do fim?
– Vá em frente.
– Se você vai fazer algo tão imbecil como entregar a sua vida para salvar os
outros, como o perfeito babaca que você sempre foi, permita–me pelo menos
cumprir meu dever, senhor.
Ajoelhei–me diante dele e retirei uma das presilhas do cabelo. Entreguei a
ele.
– Minha vida é sua agora. Irei defendê–lo.
Ele ficou bastante surpreso diante de minha atitude.
– Isso não significa nada para mim. Sua magia é fraca. Sua presilha tem
menos poder que uma lagartixa. Se formos nos esconder juntos, no final serei eu
quem a defenderei. É isso que deseja?
– Eu quero provar que você está errado. Dê–me essa oportunidade.
Ele fitou–me atentamente. Viu a determinação no meu olhar.
– Muito bem. Acompanhe–me até o cemitério.
E até lá caminhamos. Centenas de lápides coloridas estavam ao nosso redor.
– A morte não é má. Nós, da linhagem dos reis, aprendemos a encarar a
morte somente como uma passagem, como nos contavam os antigos.
– Esse não é somente um conhecimento de reis.
– Sei bem disso. Mas eu tive que encarar essa verdade desde que eu era bem
novo, por causa da minha doença.
– Que doença?
– Eu teria no máximo mais alguns anos de vida. Se eu quisesse buscar um
meio de me salvar, precisava aprender a magia. Desde que adquiri consciência
de minha existência eu me entrego a práticas árduas. Por isso eu nunca tinha
tempo de brincar com vocês.
– Pensei que você só queria ser o mais forte para ser o melhor...
– Eu fiz isso porque precisava. Assim como os destruidores desvendaram
uma magia mortal e desesperadora para vencer a fome. Nesse sentido, eu e eles
somos iguais.
– Não diga isso...! Os destruidores não têm coração. Ou nem mesmo uma
alma...!
Wakwa pegou um punhado de terra com a mão.
– Eu acho que compreendo o coração dos destruidores e sinto simpatia por
eles. Pode parecer estranho sentir–me assim em relação aos assassinos dos
nossos avós. Mas depois de conviver com essa doença, eu te digo, Nhanha: os
destruidores possuem uma alma mais poderosa do que qualquer um de nós
pode sonhar. Através da dor, eles resgataram a essência da vida. Por isso

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obtiveram uma magia desse porte. Algo que se encontra além da nossa
imaginação.
Fitei nossos túmulos coloridos. Nós buscávamos ser otimistas e felizes.
Quando alguém morria, celebrávamos a passagem. Fazíamos uma grande festa e
dávamos oferendas aos gênios.
Mas é fácil ser otimista quando tudo está bem. Quando se tem uma vida
com comida e conforto. Assim fica fácil morrer. Foi uma vida digna.
Mas os destruidores morriam sem ter vivido. O que eles possuíam? Pensar
naquilo me fez sentir mal.
– Pare, por favor. Está dizendo que nós somos os vilões e merecemos
morrer pelas mãos deles?
– Eu digo que os gênios são sábios. Eles se enrolam na nossa alma e se
alimentam dela. Quando já possuímos alegria suficiente nas nossas vidas, eles
não precisam crescer muito. Eles só se manifestam quando passamos por
grandes dificuldades. Quando estamos bem ficam lá, quietinhos, aconchegados
dentro do nosso corpo. Produzem calor suficiente para nos manter aquecidos
no inverno. Um frescor no verão. E isso é tudo.
– Então o seu gênio ficou tão poderoso por causa de sua doença?
– Sim. Ele precisava lutar a cada dia para me manter vivo. Então ele cresceu,
ficou mais forte. Tinha cada vez mais fome. Minha família possuía riqueza
suficiente para que eu realizasse todas as oferendas. Assim, eu e ele
estabelecemos uma conexão fantástica.
Tudo aquilo era fascinante. Eu estava encantada. Mas aquele preço era alto
demais.
– Você entregou a sua alma em troca da força do gênio, numa espécie de
simbiose macabra. Então você por acaso não estaria praticando a magia dos
gênios malignos?
– Sim, mas num nível bastante moderado. Você vê, os gênios malignos não
são maus. Eles são apenas extraordinariamente inteligentes. Enquanto você
comanda seu gênio, o operante da MGM é controlado pelo gênio maligno. Até
o ponto em que esse gênio se alimenta de toda a sua alma e toma o lugar dela.
Nesse momento, chega–se ao poder máximo.
– Não me diga que fez isso...?
– Não. Eu faria se pudesse. Uma vez tentei, mas quase morri de dor e
desespero. Não... existe algum segredo nesse processo. Algo que me falta. Uma
filosofia ou fórmula especial que só pode ser encontrada no Grimório dos
Gênios Malignos.
Ele fitou–me diretamente.
– Nhanha, eu preciso desse grimório. Eu dou minha vida por ele,
literalmente. Pois se eu não obtê–lo, morrerei.

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Fábula dos Gênios

– Por isso você está aqui fora. Para negociar com os destruidores.
– Não sei porque estou aqui fora. Talvez porque eu quero ver um deles.
Enxergar um deses seres lendários que substituíram a alma pela mais poderosa
categoria de gênios.
– Então eu estava certa. Eles não têm alma. E quanto ao coração?
– Depois de tomar a alma, os gênios malignos devoram os magistas por
dentro. O coração deve ir primeiro. Quando os gênios malignos se apossam do
cérebro e dos outros sistemas, os destruidores não precisam mais comer ou
dormir. E possuem um cérebro com a sabedoria dos gênios. Ou seja: eles
possuem os mais altos conhecimentos espirituais.
Aquela informação era sublime. Estávamos lidando com monstros. Ou
deuses.
– Então foi bom que os outros povos tenham deixado os destruidores
morrerem de fome. Foi por causa da dor que eles se tornaram tão fortes.
– Não diga isso. Meu pai foi um tolo em ignorá–los. Ele disse que nosso
povo tinha prioridade. Mas os construtores não sofrem como eles. Não somos
todos seres de carne? Não merecemos todos uma chance?
– Agora você falou como um príncipe. Mas ninguém te escuta, pois você é
só uma criança. Teria dado um ótimo rei. Uma pena.
– Meus pais e os conselheiros dizem que eu não entendo política. E eu
realmente não entendo. Mas eu tenho sentimentos. Isso não conta para nossas
decisões ou elas precisam sempre se apoiar na razão?
– Wawa, diga–me... os destruidores não estão cavando a própria cova com
esse ataque? Pois se houver algum sobrevivente, essa pessoa pode se tornar o
maior mago do mundo. Porque terá visto seu povo ser derrubado e seus entes
queridos morrrerem. Carregará o maior sofrimento possível. Esse ser não seria
o maior magista dos gênios malignos que o mundo já conheceu?
– Somente se ele encontrar o grimório deles. Na escola nos dizem que o
grimório foi destruído, mas que algumas páginas ainda estão por aí. O que não
contam na escola é que nosso reino possui uma das páginas.
– Não acredito...!
– Está com minha família. Na arca de tesouro. E nesse instante eu a tenho
comigo. Foi essa porção de magia que impediu minha doença de me matar. Mas
eu preciso das outras páginas.
Wakwa tocou o próprio peito, indicando o interior do casaco.
Eu queria ver aquela maravilha. Tocar com minhas mãos uma das páginas
do Grimório dos Gênios Malignos.
– Você não pode ver. O conteúdo é de queimar os olhos. Além do mais,
você precisa estudar o Grimório dos Gênios antes. Se passar direto para a magia
avançada, seu estado psicológico pode não suportar a pressão.

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Wanju Duli

– Eu vou morrer, você vai morrer. Que diferença faz? Se eu usar essa magia
agora, posso ter mais chances de me salvar.
– Mas se você se salvar, será que a vida que te restar nesse corpo valerá a
pena ser vivida? Pense bem: essa página ensina o início do processo de
putrefação do corpo. É uma necromancia severa. Você quer que o seu gênio te
devore?
– Eu tenho escolha?
– Se existirem outras vidas, sua alma precisa estar intacta.
– Os destruidores farão algo pior com ela quando nos flagrarem aqui.
– É por isso que vários construtores arrancarão a própria vida hoje. É isso
que farão nos abrigos: matarão todos.
Eu levei um susto enorme.
– Então Bilubelei, Varra, Cromo, Tchei...
– Não sei. Será dada a eles uma escolha: eles podem morrer com dignidade
nos abrigos ou podem aguardar a morte nas Casas dos Gênios e tentar resgatar
um pedaço da alma antes do fim.
– Eles não conhecem magia suficiente para esse feito.
Escondi o rosto nas mãos. Não teríamos uma morte tranquila e feliz, como
aqueles enterrados sob as lápides coloridas. Não haveria flores, fitas e comidas
sobre nós. Com sorte, restaria algum cadáver depois do ataque.
– Escutou isso?
Meu coração quase parou. Eu escutei, bem de longe, um som que nunca
tinha ouvido. Meu corpo tremeu da cabeça aos pés.
– Wawa...!
Eu não completei a frase. Eu tinha jurado protegê–lo, mas tudo o que eu
queria naquele instante era correr dali. Desaparecer para sempre.
Minha voz ficou trêmula.
– Nem adianta nos escondermos. Eles sentem as almas e cheiro da carne. E,
sobretudo: farejam os gênios.
– Diga–me o que sabe sobre os gênios! Qualquer coisa que possa nos
salvar...!
– Existem diferentes categorias de gênios. Elas se encaixam como peças de
um quebra–cabeça. E tem uma imagem nesse quebra–cabeça. Sabe qual é?
– Como vou saber?
– É isso que os destruidores querem descobrir. Eles desejam recuperar a
página do grimório deles que está comigo. E precisam roubar o nosso grimório
também. Existem muitos grimórios para diferentes categorias dos gênios. E o
quebra–cabeça só estará completo com todos.
– Mas o GGM foi destruído!
– Dizem que há sábios que conhecem de cor as páginas destruídas.

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Fábula dos Gênios

– Wakwa, isso não me interessa agora! Eles estão vindo nos matar. Dê–me
alguma informação diretamente útil. Um feitiço, um escudo mágico mental ou
físico.
– Antes, tenho uma pergunta, Nhanha: pretende usar seu gênio para atacar?
– Somente se eu estiver para morrer. Parece que esse é o caso.
Wakwa respirou fundo.
– Eu também vou usar o meu. Mas eu gostaria de te pedir um favor: não o
olhe.
– Eu sei.
– É sério. Se houver a mínima possibilidade de sairmos vivos dessa, se olhar
para meu gênio você pode descobrir minha ligação. E isso é um segredo.
– Bem, eu não tenho ligação. Mesmo assim, não quero que olhe o meu.
– Oh? Então você é daqueles raros magistas que nascem sem par? E que
morrem cedo? Ainda assim, tem sorte. Minha doença me mataria antes.
– Essa é uma competição para ver quem tem uma vida mais desgraçada?
– Sim. Pois quanto maior a desgraça, mais poderoso o gênio.
– Espere. Há um furo nessa teoria. Pessoas reagem de formas diferentes ao
sofrimento. Então um pessimista que sofre pouco teria um gênio mais poderoso
do que um otimista que sofre muito. Em suma: o real sofrimento aconteceria na
mente e não no corpo.
– Errado. Ele acontece na alma. E você sabe que magia atinge somente a
alma. Os efeitos na mente e no corpo são apenas colaterais. São barquinhos para
alcançar a alma. E eu sugiro que hoje reme seu barco bem longe, porque seu
gênio precisa escutar teu chamado.
Ouvi gritos horríveis. Estavam perto.
Eu e Wakwa nos abaixamos. Colocamos as mãos sobre a boca e rezamos.
Meu coração batia forte como uma bomba prestes a explodir. Se ele não
parasse de fazer barulho, eu sentia que poderia ser encontrada pelo som daquele
tambor pulsante em meu peito.
Foram longos minutos de agonia. Até que o barulho parou.
– Pronto, Wawa. Eles foram embora por enquanto. Podemos respirar
agora...
No segundo seguinte, minha respiração parou. Eu tentei inspirar o ar, mas a
expiração não se completou. Meu corpo inteiro gelou.
Abaixado exatamente diante de nós estava um magista com o rosto coberto
por um capuz. O manto dele era completamente remendado com pedaços de
couro marrom e algo que se parecia com grama verde: as lendárias vestes verdes
e marrons dos maiores inimigos do reinado.
Só não gritei porque minha boca estava tapada por minhas próprias mãos.

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Wanju Duli

Eu estava encostada numa árvore. Tentei recuar, mas não consegui. Eu não
estava pensando direito. Suava frio. O suor pingava. Meu coração explodiria a
qualquer momento.
Nunca senti tanto medo em toda a minha vida.
A criatura nos farejou. Eu não sabia o que tinha por baixo daquele capuz,
mas devia ser uma forma de animal. Quando ele colocou a mão para fora da
longa manga, eu quase desmaiei: era carne podre, despedaçada. Havia coisas
crescendo nela; talvez larvas ou musgos.
Eu já estava me preparando para sentir o pior cheiro possível. Mas o cheiro
daquele monstro era algo que nunca senti antes. Eu não podia classificar o odor
em bom ou ruim.
Se o medo tivesse cheiro, se pareceria com aquilo.
Aquele era o medo encarnado.
O monstro tocou meu cabelo com seus dedinhos pegajosos. Eu quase
vomitei.
Mas ele não estava interessado em mim. Provavelmente reconheceu Wakwa.
Colocou as mãos no casaco dele, como se estivesse procurando algo.
Ele sentia o cheiro da página do seu grimório...!
– Tire as mãos de mim!
Wakwa tirou um dos tênis. Pensei que haveria um selo gravado nele e seria
utilizado como receptáculo. Mas ele apenas lançou–o na cabeça do monstro.
Aproveitou o breve instante e retirou uma caneta de dentro da meia. Traçou
formas no chão.
– Mera!
Aquela era uma fórmula muito simples. Aprendíamos isso na escola com
uns sete anos. Combinação do alfabeto com aritmética básica. Reuníamos
quatro letras, duas vogais e duas consoantes. Traçávamos as letras e
embaralhávamos para chamar uma das energias. Brincadeira de criança.
Provavelmente os destruidores não tinham escolas para brincar com aquilo.
Nem deviam saber como se divertir, tamanha desgraça devia ser suas existências,
mergulhados num pântano sujo.
Por isso, somente eles para cair num truque tão simples. Apenas em anos
mais avançados que teríamos contato com alfabetos complexos aplicados à
geomtria; os chamados selos dimensionais, que trabalhavam com as dimensões
do espaço–tempo. Os magos adultos combinavam essa técnica com magia dos
gênios. Se houvesse ligações ali no meio, eles se tornavam quase invencíveis.
Mas isso foi antes da ascensão dos destruidores. Wakwa queria só ganhar
tempo. Ele era um tolo.
– Nhanha, vamos correr! Esse sujeito é MUITO forte...!
Eu não notei isso. Como ele sabia? O que ele fez?

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Fábula dos Gênios

Ele pegou a minha mão e correu comigo. Eu não conseguia. Tropecei no


caminho.
– Nhahia, está LOUCA?! Corre!!
Ele gritou isso tão alto que sua voz soou rouca. Mas eu estava tremendo.
Não era mais capaz de me mexer ou de pensar.
Era muito diferente tentar pensar numa fórmula mágica quando tem um
monstro zumbi no seu encalço. Principalmente quando você sabe que esse
monstro possui conhecimento da magia mais elevada e é capaz de te matar num
milésimo de segundo.
Meu rosto estava cheio de terra. Quando levantei os olhos, não vi mais
Wakwa. Provavelmente havia sido capturado por mais destruidores.
Dei um soco na terra. Eu havia falhado em minha missão de protegê–lo. E
morreria em vão. Não somente morrer: eu teria minha alma completamente
trucidada.
O destruidor me alcançou facilmente. Apoiei–me numa das lápides, pintada
com cores de arco–íris e repleta de flores coloridas.
Ele ia usar sua magia. Bastava somente uma. Eu não teria como me defender.
O monstro parecia zangado, pois bufava. Ele colocou a mão dentro do
capuz e arrancou uma porção de fios dos próprios cabelos num único puxão.
Sua pele já devia estar tão podre que nem teve dificuldade ao fazê–lo.
Enrolou os cabelos numa parte do próprio manto e enfiou alfinetes aí. Em
seguida, o destruidor berrou.
Eu senti uma sensação horrível. Ele estava causando dor a si mesmo para
seu gênio ficar mais forte.
O destruidor golpeou o próprio corpo. Arrancou mais um pedaço de si.
Puxou com os dentes uma porção da pele de seu braço e gritou no processo.
– Pare, pare!
Eu gritava, desesperada. Mas ele não entendia meu idioma.
Derramei lágrimas. Ele ignorou–me, pois estava irado e concentrado no
processo de mutilação mágica.
Enquanto eu chorava em grande aflição, em minha loucura abracei–o.
Ele parou. Deve ter ficado surpreso. Claro que ele não sabia o que era um
abraço. Ninguém nunca devia ter abraçado um destruidor. Ele não sabia o que
era compaixão, tristeza ou amor.
O destruidor apenas intrigou–se com meu abraço e não o compreendeu. Eu
mesma não entendia porque abraçava aquela criatura nojenta e repugnante.
Ele tinha um coração...! Eu senti as batidas do coração dele quando cheguei
tão perto. Ele parecia nervoso, como eu.
Mas aquilo não foi o bastante. Ele não entendeu minha mensagem. Não
devia compreender emoções. Com um empurrão violento, lançou–me no chão.

19
Wanju Duli

Arranhei meu braço, do qual escorreu um filete de sangue.


Talvez aquela fosse minha única esperança; minha arma final: tentar
comunicar–me com a criatura e mostrar–lhe que eu não queria atacá–la.
– Isso é uma flor.
Estendi um dos buquês do caixão diante dele. Mas ele não gostou. Pensou
que eu ia atacá–lo com a flor e despedaçou–a.
Aquele destruidor era pequeno. Parecia uma criança também. Isso me
intrigou. Então eles mandavam os infantes para a batalha. Eles eram poucos,
mas unidos podiam destruir qualquer cidade, país ou mundo. Porque havia algo
que os conectava: o sofrimento.
Ele pronunciou alguma coisa. Eu não entendi.
– Braaaargghhhh.
Ele fazia uns sons guturais incompreensíveis. Tarde demais, notei que era
uma fórmula. Ele recitou novos termos a seguir.
Eu vi o gênio dele. Ele ia abocanhar minha alma, esticá–la e rasgá–la.
– BAPSI!!!
Gritei o nome do meu gênio. Aquilo foi bem estranho, pois era a primeira
vez que eu via o gênio de outra pessoa. Além do mais, era a primeira vez que
alguém via o meu.
O meu gênio era azul claro. O dele era azul escuro. Ao mesmo tempo tão
diferentes e tão semelhantes.
Assim como eu, uma construtora, e ele, um destruidor. Ambos com
corações que pulsavam. Almas nas quais os gênios se enrolavam.
Ele ainda era muito novo para ter perdido completamente sua alma. Talvez
ele ainda pudesse me entender.
– Eu não quero lutar!
Eu sentia uma energia imensa dentro de mim. Aquilo acontecia quando meu
gênio estava comigo. Meu poder estava imenso com meu gênio pronto para
sacrificar–se numa batalha mágica. Era a primeira vez que eu sentia. Meus olhos
doíam e pulsavam. Minha boca formigava.
Embora ele não entendesse minhas palavras, eu esperava que ele lesse os
sentimentos por trás delas.
Mas que um destruidor entendia sobre sentimentos? Eles eram educados
para pilhar e destruir.
O gênio dele atacaria minha alma. Mas... tanto o meu gênio quanto o dele
estavam com medo.
Eu já esperava que meu Bapsi covarde fosse amarelar, mas por que o gênio
do destruidor também estava recuando?
É claro: ele era uma criança. Ainda não sabia controlar bem seu gênio. E eu
pensando que eles eram máquinas de matar. Ele estava com medo como eu.

20
Fábula dos Gênios

Mentira. Eu tremia e suava. Ele estava apenas levemente intrigado. Alcançou


o próprio gênio pela cauda, com uma mão, e enrolou–se nele.
Ia usar outro método. Ele traçou formas no ar com os dedos.
“Selos tridimensionais...?”
Não. Era mais que isso. Não havia somente altura, largura e profundidade.
Eu senti que os movimentos dele se tornavam mais lentos. E depois mais
acelerados.
Vi uma pétala de flor parar no ar.
“Ele está mexendo no tempo! Bastardo maldito...! Selo 4D!”
Somente os maiores mestres do meu mundo sabiam mexer com isso. Se um
destruidor criança tinha um poder como aquele, seria preciso abrir uma grande
vala para empilhar os cadáveres de todos os construtores, pois não restaria
sequer um vivo.
“Espere. Há mais”
Ele não estava acrescentando apenas a dimensão de tempo. Havia novas
dimensões de espaço. Havia cubos dentro de cubos. Eu tentei contar.
– 5D... 6D...
“20 dimensões... ou mais?”
Aquilo não era possível. Só podia ser um blefe. Subitamente, ele desapareceu.
Ou provavelmente minha visão não era mais capaz de enxergar o destruidor
naquele mundo cheio de dimensões. Minha retina não captava. O maldito usou
um truque óbvio, uma ilusão de ótica!
Então era assim que os destruidores brincavam?
Sem nenhuma dificuldade, ele atravessou a mão pelo meu corpo. Porque ele
era capaz de mover–se facilmente na minha realidade tridimensional. Nem
minha retina e nem meu cérebro eram capazes de captar o mundo físico e
psíquico naquele nível.
Mas era uma mentira. Toquei a mim mesma e não houve dano. Ele me
enganou.
Ele não pretendia me machucar fisicamente. Aquele puxão foi para tentar
segurar minha alma. Mas eu não iria permitir.
Ele queria uma morte limpa. Mas eu não iria simplesmente agradecer e
permitir que ele fizesse como desejava.
Se eu não podia vencê–lo com magia, eu dominaria aquela criança fraca e
esquelética pela força bruta. Eu não sabia se era um ser feminino ou masculino
que estava ali embaixo ou se os destruidores sequer tinham sexo. Mas aquele
espécime parecia particularmente frágil. Eles não tinham comida, eram
completamente obcecados por magia. Imaginei que se houvesse ossos ali
embaixo daquela capa eu seria capaz de esmagá–los como gravetos.

21
Wanju Duli

Minhas mãos estavam tremendo demais, então eu o chutei. O destruidor


caiu no chão. Enchi–lhe de chutes e ele parecia estar sofrendo.
“Mate–o! Mate–o!!”
Ele não teria piedade de mim. Ele era só uma criança, mas... eu também era.
E eu queria viver.
Essa minha dúvida me custou muito caro.
Aquela criancinha traçou o seu selo de formas complexas uma vez mais.
Realizou uma investida para segurar–me. Seus braços atravessaram minhas
pernas em mais uma ilusão de ótica.
Eu quase ri. Pensei que era outra brincadeira.
Foi então que começou a dor. Os dedos dele estavam segurando meus ossos,
dentro da minha pele. Aqueles dedos magros e podres.
Ele puxou. E satisfez–se com isso.
No segundo seguinte, só não senti a maior dor da minha vida porque eu
tinha perdido minha capacidade de sentir.
Minha pele desgrudou–se da carne. A carne rasgou–se. O osso partiu–se.
O destruidor segurou minhas duas pernas nas mãos, como troféus. Ele
emitiu um grunhido fino, como se risse.
Fitei o estrago logo abaixo dos meus joelhos. Havia apenas um resto de pele,
carne e um toco de osso. E de lá caía o sangue.
Minhas meias brancas e meus sapatinhos lustrosos estavam naquelas pernas
que não mais faziam parte do meu corpo.
Quando minha consciência voltou e senti a dor, eu gritei. Eu ia desmaiar.
Estava perdendo muito sangue.
O destruidor chutou–me para o interior de um caixão aberto.
Ele era uma criança. Não sabia matar alguém de forma rápida e limpa
roubando a alma, como os adultos. Então ele concluiu que isso bastaria: eu
sangraria até a morte, lá dentro daquele caixão escuro, embaixo da terra.
De lá eu vi as cinco estrelas, que brilhavam durante o dia. Em breve iriam se
por. Isso me recordou das minhas aulas de astrologia. Enquanto as profesoras
se ocupavam com a dança das estrelas nos céus, construtores e destruidores
realizavam a dança da morte aqui na terra.
Nesse dia em que perdi minhas pernas, eu tinha 11 anos. Também foi nesse
dia que perdi meus amigos, meu povo e minha terra.

Pensei que eu fosse morrer. Eu o desejei infinitas vezes enquanto agonizava


por horas a fio naquela vala. Quando minha vida terminasse, seria dado um fim
a esse sofrimento. E se houvesse outras vidas, minha alma ia voar. Meu gênio se
libertaria. Porque aquele pequeno destruidor era tão burro que deixou meu
gênio e minha alma intactos.

22
Fábula dos Gênios

No fundo, ele fortaleceu–os com seu ato. Ao retirar de mim as pernas e


todas as pessoas que eu amava, meu gênio usou toda a sua força para me salvar.
Então ele cresceu. Suas lágrimas eram minhas lágrimas. Sua dor era minha dor.
E houve a chuva.
Quando ela caiu sobre mim e lavou meu sangue, eu me senti revivida. Eu, na
profundidade daquele caixão colorido num leito de flores mortas. A água no
rosto me devolveu a esperança. Algo que eu pensei que já havia sumido há
tempos imemoriais.
Até que apaguei. Pensei que fosse a morte. Mas era somente mais uma
enganação. Eu já estava cansada de brincadeiras. Que fosse a vida ou a morte;
não um meio termo incômodo entre elas. Aquilo me tornava confusa, me
enlouquecia, arrancava de mim a pouca sanidade que eu ainda possuía. Eu me
agarrava desesperadamente a ela, pois era tudo o que me restava.
Eu acordei numa cama miserável, com as pernas remendadas. Mas elas não
funcionavam mais.
– Como você é tola. Tola! Tola!
Essa não é a melhor coisa para ouvir ao despertar. Não depois de tudo que
passei.
– Não pense que teve sorte. Estaria melhor morta.
Uma voz feminina saía por baixo do capuz. Era uma velhinha. Tinha longos
cabelos brancos. Ela repousou uma bandeja sobre a cama com meio pedaço de
pão e um copo com algo que se parecia vagamente com um suco ou água suja.
– Coma. E não pense que essa comida será de graça. Se quiser continuar a
viver mais uns dias em minha residência até se recuperar, terá que fazer a faxina
para mim.
– Como farei? Minhas pernas não funcionam mais!
– Eu já imaginava. Por isso lhe trouxe isso.
Ela apontou para uma cadeira de rodas.
– E isso.
Dessa vez ela apontou para um espanador.
– Permito que comece com tarefas simples, mas não se acostume com
regalias.
– Madame... foi você quem me salvou?
– Eu não chamaria de “salvar” e sim de trazer para minha casa pedaços de
carne semi–mortos dentro de um saco.
– Obrigada mesmo assim. Tenho uma dívida eterna com você. Além da
faxina, como poderei lhe pagar?
– Conseguindo para mim as outras páginas desse grimório aqui.
Ela apontou para duas folhas amareladas e ligeiramente chamuscadas. Fitei–
as com atenção e levei um susto.

23
Wanju Duli

– O Grimório dos Gênios Malignos...! Onde conseguiu essas?


– Uma é propriedade de meu povo. A outra estava no casaco do seu amigo.
– Wakwa...! Onde ele está? Ele está bem?
Perguntei isso com urgência. Ela deu um sorriso divertido antes de
responder.
– Sim, ele está bem... morto!
– Não...!
– Sim! O corpo dele não estava muito longe do seu. Lutaram juntos contra
os destruidores?
– Ele era o príncipe dos construtores!
– Hm... isso não é bom. Esses dois povos estão em guerra há séculos. Há
algumas décadas o acordo de paz tinha sido selado. Então, que aconteceu?
– Eu não sei, sou uma criança. Não entendo dessas coisas. Onde estamos?
– Na terra dos livreiros. Aqui reunimos alguns dos grimórios mais
extraordinários de todas as terras.
– Então é por isso que foi para minha terra? Somente para roubar nossos
grimórios?
– Eu estava lá a negócios. Qual não foi minha surpresa ao ver uma guerra
estourando.
– Não diga isso nesse tom irônico. Como escapou viva? Você sabe voar,
desaparecer ou algo assim? Presumo que essa seja uma terra apenas de teóricos
da magia, correto?
– Errado. Nós somos magistas dos livros. Utilizamos nosso poder mágico
para o processo de leitura e escrita. Eis nosso sistema, que consiste numa magia
de fato. Estudamos diferentes técnicas de ler grimórios de trás para frente, de
ponta cabeça, decoramos livros inteiros e recitações. Há os leitores e os
escritores. Os magistas especializados na leitura fazem todas essas coisas. Os
magistas escritores são mestres em bolar novos sistemas de magia dos livros,
com técnicas de escrita rápida, disputa de poemas mágicos e outras coisas
divertidas do tipo.
– Ei, eu já assisti a uma disputa de poemas mágicos! É muito divertido. Dois
estrangeiros viajantes apresentaram um espetáculo na nossa terra. O primeiro
recitava um verso e o segundo deveria bolar um segundo verso que rimasse com
esse. Ambos deveriam ter o mesmo número de sílabas poéticas ou se encaixar
numa construção de estrofes harmoniosa. E a cada recitação ocorria uma magia
diferente, com base nos números das sílabas na escansão, sendo uma magia que
envolve a matemática e a literatura. Chega a ser empolgante.
– Mais do que empolgante. A magia com poemas é apenas uma dentre
infinitas possibilidades. Temos recitação de peças de teatro ou prosa. E isso é só
o começo. Também utilizamos sistemas mistos. O texto deve possuir harmonia

24
Fábula dos Gênios

em todos os sentidos: na contagem das letras e no ritmo da recitação.


Trabalhamos com a oratória e com a emoção gerada na passagem. Deve ter
significado. Um casamento de forma e conteúdo.
– Fascinante, mas como isso é aplicado na magia?
– Uma alquimia de sentimentos. A voz que recita atinge a dimensão corporal.
A mente que sente a emoção é diretamente afetada. É como uma corda que
vibra e produz um som: deverá ter impacto na alma.
– E quando toca a alma a magia acontece, certo? Também já ouvi falar de
uma terra de magia musical.
– Brigamos bastante com eles, mas não se trata de uma carnificina como a
rixa de vocês com os destruidores. É um ódio saudável que inspira competições
artísticas.
– Sempre quis saber como os estrangeiros viam nosso povo. Espero que não
nos vejam como malvados ricos que não auxiliavam os pobres destruidores,
porque vocês não ajudavam tampouco! Se quer saber, não estou interessada na
magia de vocês. Se seu sistema de livros é tão poderoso, por que não consegue
me fazer caminhar de novo?
– Porque esse ferimento não foi natural. É mutilação mágica. Duvido que
até o cirurgião feiticeiro mais habilidoso seja capaz de reparar a sua ferida. Se
um dia conhecer um magista mais poderoso que um destruidor, talvez ele seja
capaz de te curar. Mas se muito tempo se passar, pode esquecer.
– O destruidor que me atacou era uma criança. Mesmo assim ele tem todo
esse poder?
– Sim. Ele usa o sistema dos gênios malignos.
– Eu imagino que você deseje esse livro apenas para compor sua coleção.
Mas eu tenho real interesse na magia que é realizada lá. Eu aceito o desafio de
viajar para outros mundos e recuperar as páginas restantes. Mesmo eu estando
sobre uma cadeira de rodas. Mas em troca, quero acesso à magia dessas duas
páginas que você tem.
– Tem certeza de que deseja destruir sua vida usando a magia desse grimório?
Você sabe o que os gênios malignos fazem na alma. Você viu de perto um
destruidor.
– Eu não me importo se meu corpo ficar daquele jeito. Só tenho mais dez
anos de vida.
– Dez anos é muito tempo para ser assim desperdiçado. Já ouvi falar que os
construtores possuem um sistema de reprodução estranho. Eles precisam
realizar a ligação até os 21 anos, senão morrem. Com os habitantes de sua terra
mortos, não poderá recuperar a ligação.
– Você está enganada. Eu nunca tive ligação. Sou um dos tipos raros de
construtores que nascem sem isso.

25
Wanju Duli

– Teria sido muito fácil para que os destruidores acabassem com sua terra
somente matando metade de vocês. A outra metade pereceria de qualquer forma
sem a ligação.
– Teríamos tempo de nos vingar antes da morte. Eu quero aprender a magia
deles e vingar meu povo antes que se passem os dez anos.
– E o que você sabe de magia? Vai sair por aí procurando as partes desse
grimório achando que os donos vão te entregar de graça? Há folhas que estão na
posse de alguns dos maiores magos desse planeta. No mínimo eles vão querer te
testar em batalha ou conhecimentos mágicos antes de te deixar espiar o
conteúdo. E no máximo vão te torturar até a morte, rasgar sua alma e trucidar
seu gênio.
– Eu não tinha pensado nesse detalhe. Meu sonho sempre foi me matricular
numa das escolas de magia do meu país e estudar o Grimório dos Gênios. Mas
agora está fora de cogitação eu entrar em qualquer escola de algum mundo. Não
quero perder meu tempo. Preciso do GGM o quanto antes!
– Qual é a pressa? Não é como se você fosse cair morta amanhã ou depois
de amanhã. Isso vai acontecer só se você viajar por aí nessa jornada insana de
mãos vazias.
– Está bem. Mas não sei se estou interessada nas escolas do seu mundo.
Essa magia de vocês me parece bastante fraca.
– É tão fraca que enquanto os construtores morriam como porcos nas mãos
dos destruidores usando a Magia dos Gênios, eu atravessei o seu país intacta e
até te trouxe de volta comigo.
– E não é que você está certa outra vez? Mas você deve ter décadas de
experiência com magia, então saberia utilizar com maestria qualquer sistema que
tivesse estudado por tanto tempo.
– Garota tola... não fale do que não entende. Conheça algo antes de criticar.
Quem sabe você queira descer para conhecer a cidade e nossas escolas antes de
tirar conclusões precipitadas?
– O que quer dizer com “descer?” Onde estamos?
– Em cima de uma montanha.
– Isso significa que terei que subir e descer a montanha todo dia com cadeira
de rodas sempre que eu for à aula? Esse é algum tipo de teste de resistência
maluco? E você é uma velha maga louca e anti–social que mora aqui para se
isolar dessa humanidade desprezível e dessa juventude fedorenta?
– Olha o respeito, fedelha. Segure a língua. Somente suas últimas palavras
procedem. Não simpatizo com crianças, então ter a senhorita morando comigo
está completamente fora de cogitação. Em mais alguns dias você se recuperará.
Assim que isso acontecer, te jogo numa dessas escolas de magia de turno
integral e você poderá se divertir por lá para depois realizar sua doce vingança

26
Fábula dos Gênios

estúpida. Apenas não se esqueça de deixar o Grimório dos Gênios Malignos


comigo antes de bater as botas.
– Que tal se você me treinasse? Fosse minha mestra? É muito mais legal ter
uma mestra velha louca que mora sobre uma montanha do que ir para uma
escolinha com aulinhas entediantes, cheia de crianças aborrecedoras.
– Repita isso de novo e te lanço de cima dessa montanha. Antes disso vou
desencaixar suas pernas de seu corpo novamente e preparar uma sopa com elas.
– Vou morar na escola com uma condição: dê–me essas duas páginas do
GGM.
– Negativo. Elas são a garantia de que você me trará as páginas restantes.
A maga colocou as duas páginas dentro da gaveta do criado–mundo e
trancou–a magicamente.
– Somente alguém de poder maior que eu será capaz de destravar essa
gaveta. Ou seja: não será um feito do qual você será capaz nessa vida.
Eu fiquei muito frustrada. Queria saber qual era o conteúdo da página que
impediu que a doença de Wakwa o matasse. Só podia ser algo muito poderoso.
E eu também tinha curiosidade de saber qual das páginas do GGM tinha sido
guardada pelo povo dos livreiros. Só podia ser uma que possuísse um conteúdo
de alto valor literário.
– Ao menos me revele o número das páginas.
– A página do seu amigo era a 9. A minha era a 1ª.
– A primeira...! Aposto que deve ser um conto introdutório tão poderoso
que resulte num efeito mágico.
– Ou talvez algo que te mate instantaneamente se você não possuir um
gênio forte o suficiente para proteger sua sanidade.
Eu não gostei de ouvir aquilo. Podia ser qualquer coisa: um poema, uma
peça de teatro, uma charada, uma imagem, metade de uma página rasgada.
Desisti de tentar adivinhar qual seria a página “queridinha” pelos livreiros.
Também era possível que fosse somente uma página aleatória caindo nas mãos
deles.
Mas... a primeira. Isso soava nobre.
– Tem certeza de que não quer ser minha mestra? Eu queria te chamar assim.
Todos vão morrer de inveja se eu tiver uma tutora legal como você.
– Não pense que me comove com seu discurso. Isso é somente uma
desculpa sua para tentar arrumar um meio de quebrar meu criado–mudo na
primeira oportunidade. Mas saiba que isso é impossível. Há um lacre mágico na
madeira também. Esqueça.
Resolvi desistir. Por aquele instante. Dali alguns anos, quando eu tivesse
maior poder mágico, poderia reunir as melhores alunas da minha classe para

27
Wanju Duli

tentar remover aquele lacre. Ou quem sabe eu conseguisse subornar alguma


professora?
Mas eu não podia ter um pensamento tão pequeno assim. Era melhor eu me
focar em ficar forte para recuperar as outras páginas. Se eu conseguisse isso, a
maga louca me daria as outras duas, conforme prometeu. Ou ao menos me
permitira espiar antes de guardar o grimório completo em seu arquivo.
– E não se esqueça que para entender o Grimório dos Gênios Malignos
você precisa ter lido antes o Grimório dos Gênios.
– Esse grimório está na arca do palácio de meu reino! Preciso voltar para
recuperá–lo!
– Os destruidores já assumiram a posse daquela terra. Poderão finalmente
plantar e colher em terreno fértil. E como são os magos mais fortes, é claro que
eles removeram facilmente o lacre do baú. Provavelmente queimaram o
exemplar.
– Mas... mesmo que tenham destruído o original, há cópias espalhadas nas
nossas escolas.
– As escolas de vocês já devem ter sido reduzidas a cinzas.
– Preciso procurar algum resquício do nosso grimório na internet. Ou viajar
para alguma cidade que seja uma grande biblioteca e reúna os livros de todos os
mundos...
– Você já está nela.
– Ah... é mesmo. Já que você é entendida do assunto, sabe se vocês possuem
o nosso grimório em suas coleções?
– O Grimório dos Gênios sempre possuiu muitas cópias para facilitar o
acesso aos estudantes. Então ele nunca foi valioso. Ninguém vai atrás desse
grimório. E poucos possuem interesse no sistema de magia de vocês fora vocês
mesmos. Afinal, para utilizá–lo é preciso nascer com um gênio. Isso significa
que ele é somente de uso dos construtores ou dos destruidores.
– Então deixe–me adivinhar: vocês não o acrescentaram no arquivo de
vocês por pensarem que esse livro sempre estaria disponível em nosso país, é
isso? E somente desejam o GGM por ser raro. Baseando–me nisso, os
destruidores devem ter preservado pelo menos o volume original do GG. Vai
tornar mais forte o sistema deles. Então a única maneira de recuperá–lo seria
indo até lá... o que está completamente fora de questão agora.
– Se você fosse lá poderia obter tanto o GGM como o GG na íntegra.
– Pensei que só existisse um exemplar do GGM!
– Sim, mas um destruidor o sabe de cor, mesmo que o original tenha se
perdido. Quero dizer, somente os magistas mais poderosos entre eles conhecem
o conteúdo completo.

28
Fábula dos Gênios

– Ó, que simples! Basta eu ter um destruidor como meu mestre, como não
pensei nisso antes? Tão óbvio...
Eu disse isso em tom de zombaria, mas a maga levou a sério.
– Realmente seria mais rápido ir até lá do que viajar tanto. Mas um
destruidor jamais aceitaria treinar um construtor. A não ser que você se
disfarçasse de destruidora, o que não será difícil depois que você obtiver
algumas das páginas nos outros mundos e começar a praticar o sistema.
– Hã... eu não consigo ficar diante de um destruidor sem tremer. Só vi uma
criança destruidora na minha vida e já foi assustador o suficiente. Nem quero
pensar como são os adultos.
Se eu recuperasse aquelas páginas logo, quem sabe eu até arrumasse um jeito
de burlar minha morte inevitável dali dez anos? Eu achava improvável, mas não
custava ter uma esperança idiota.
Resolvi desistir de ter a maga louca como mestra e também estava
completamente fora de questão contatar um dos malditos destruidores para isso.
Eu queria matá–los e não que me treinassem. O pensamento de ter um deles
como tutor me soava doentio.
– Eu quero estudar na melhor escola de magia do país.
– A melhor custa caro. Não pense que vou te pagar.
– Se me pagar, eu juro que além do GGM te consigo qualquer outro
grimório que queira para sua amável coleção.
Ela reconsiderou o pedido.
– Você está vendendo todos os seus próximos míseros anos de vida. Vamos
descer a montanha e visitar as escolas, enquanto tenho paciência para isso.
Pesquisaremos preços e verificaremos o que cada instituição oferece.
– Eu quero estudar na escola que você frequentava.
– Pensarei no seu caso.
Eu fiquei simplesmente encantada com as escolas. Devo confessar que
como eu não sabia quase nada de magia, me baseei mais no ambiente para
escolher. Enquanto algumas eram pequenas e pareciam escolinhas de fundo de
quintal, outras tinham largos corredores, colunas e decoração sublime.
– Já visitamos dez escolas. Essa será a última, que foi a que eu estudei.
Depois dessa visita, terá que se decidir.
– Eu já decidi. Quero aquela cara, com colunas.
– Ela é o triplo do preço das escolas comuns. Afinal, você quer estudar
magia ou apreciar a droga da decoração?
Eu torcia para que a antiga escola dela me despertasse mais paixão que
aquela que tinha colunas, mas ia ser difícil.
Era uma instituição de tamanho médio. As pessoas daquele país definiam a
qualidade das escolas pela biblioteca e a de lá possuía um acervo considerável.

29
Wanju Duli

Eu sinceramente não me importava tanto com os livros deles. Ou pelo menos


era o que eu pensava antes de lê–los. Eu devia desconfiar que numa magia
baseada na literatura certamente havia algo especial por lá.
Avistei alguns professores e até que fui com a cara de alguns. A maioria
eram velhinhos sábios de óculos. Adorei. E a biblioteca estava cheia de alunos
curvados sobre os livros.
Inicialmente me pareceu que aquele sistema de magia seria bem monótono.
Sabe, eu queria mais ação. Sentir meu coração acelerar, como naquela luta de
vida ou morte que tive com o destruidor. Embora tenha sido terrível, aquela
batalha mágica fez com que eu me sentisse viva. Ironicamente, quase morri. A
vida tem dessas contradições. E não é exatamente isso que a torna fantástica?
Subitamente, vi três garotas correndo pelos corredores, com grimórios nas
mãos e aos risos.
– Que elas estão fazendo?
Uma das professoras explicou–me que haveria uma palestra com um famoso
poeta mago. Fui convidada a assistir.
Aquele homem recitava seus poemas com sua voz poderosa. Enquanto isso,
os estudantes entraram em meditação, visualizando todas as imagens.
Eu não havia meditado muito na minha vida, mas aquela foi com certeza a
meditação mais profunda que já tive. Eu ia imaginando a mim mesma em meio
aos cenários que ele descrevia e os termos poéticos penetravam em mim como
mel.
Aos poucos eu compreendia a força das palavras. Eu soube que eles também
faziam jogos de cartas com recitações e os utilizavam para divinação. Eu vi
alguns alunos lançando as cartas pelos corredores. Parecia que aquele era um
jogo colecionável bastante popular. Os estudantes trocavam cartas ou as
conquistavam em disputas mágicas.
Aquele povo exportava uma quantidade imensa de grimórios e desenvolvia
muitos novos sistemas. Tinham diversos autores de peso e eram exímios
criadores de feitiços.
Mas quando vi os sorrisos nos rostos deles, não tive dúvidas: era lá que eu ia
estudar. Eu preferia estar numa escola do meu país, mas já que aquilo não seria
mais possível, resolvi topar aquele desafio.
Felizmente eles conheciam meu idioma, mas o primeiro idioma deles era
algo desconhecido por mim. Eu soube que tinha certo status por lá saber falar o
idioma dos construtores, então a maioria estava contente por me ter como aluna.
Então a maga da montanha se comprometeu a pagar minha mensalidade.
Comprou meu uniforme e meus livros; e livrou–se de mim. A partir de então eu
moraria na Escola Grimório de Sã.

30
Fábula dos Gênios

As aulas já tinham começado na estação anterior, então eu iniciaria atrasada.


Teria que lá permanecer por 7 anos; até os meus 18. Eu torcia para que aquele
tempo me ensinasse o que eu precisava saber para atingir meu objetivo.
Como eu era estrangeira, virei a atração do local. Não era comum haver
estudantes de fora.
No meu primeiro dia, fui cercada por garotas que me encheram de
perguntas. Em especial, havia um garoto pentelho que não parava de me fazer
questionamentos idiotas.
– É verdade que o seu país foi invadido pelos destruidores?
– Sim. Devo ter sido uma das únicas a escapar viva.
– Uau...! Como você escapou?
Eu respondi algumas perguntas, mas logo comecei a me aborrecer com elas.
E a realidade desabou sobre a minha cabeça. A triste verdade que eu tentei
esconder com a alegria de estar conhecendo um país novo e a curiosidade de
estar numa nova escola praticando um sistema de magia diferenciado.
Aquilo só foi interessante nos primeiros dias. Logo, aquela atmosfera não foi
o suficiente para substituir tudo o que eu tinha perdido.
Naquela noite eu chorei. O uniforme bonito, a comida gostosa, as aulas
interessantes... nada daquilo me prendia mais.
“Eu não quero ficar trancada aqui por 7 anos”.
Descobri que o nome da escola era aquele por causa de uma magista famosa
que preparava poções de cura. Mas diziam que seu verdadeiro poder curativo
estava nas palavras e a poção era somente um placebo.
– O grimório escrito por ela é lendário. Um dos mais valiosos de nosso país.
Sinceramente, eu já estava cansada daquela obsessão deles por grimórios
raros. Eu não queria saber daquilo. Para mim, só havia um único sistema que me
interessava. E se eu o soubesse a fundo, jamais precisaria de nenhum outro.
Eu precisava confessar: os destruidores jamais sairiam da minha mente.
Aquela batalha que tive permaneceria em minha memória para sempre. E
gravada na minha carne: nas minhas pernas perdidas.
Em segredo, eu rabiscava selos na última folha do meu caderno. Enquanto o
professor explicava sobre técnicas de oratória no momento da recitação do
verso para fins mágicos, em busca de alcançar “o equilíbrio ideal”, eu recordava
do poderoso grunhido do destruidor evocando seu gênio. Aquilo foi muito mais
poderoso e emocionante do que qualquer técnica que aquele professor fosse
inventar.
Precisava haver paixão, sinceridade. Sentir o momento mágico.
Aquilo eu não aprenderia numa escola e sim numa luta como aquela,
estando na linha entre a vida e a morte.

31
Wanju Duli

Eu queria sentir meu coração acelerar. Nem que fosse servindo de alimento
para um gênio maligno.
– Que selos criativos! Como você é habilidosa no desenho!
E aquele garoto já estava me enchendo o saco além da conta. Aposto que só
queria se gabar que estava fazendo amizade “com a estrangeira”.
Até que eu resolvi realizar um ato de revolta: fugi da escola. Saí de fininho
pelo portão central e pulei o muro. Digamos que aquilo foi quase impossível de
fazer com uma cadeira de rodas. Então dobrei a cadeira e com o auxílio do meu
gênio realizei meu intento.
Foi terrível. Levei um tombo enorme. E agora, como eu iria subir a
montanha novamente para comunicar–me com a maga louca?
“Quer saber? Vou pegar um barco e remar até o outro continente”.
E lá fui eu, tendo no bolso somente um joguinho de cartas dos livreiros, que
fui jogando com meu gênio durante a viagem. Também roubei algumas frutas
da escola. Eu esperava que aquilo fosse o suficiente para me manter durante um
dia inteiro de viagem.
– Ah, ótimo, minha bússola está estragada. E mesmo se eu ainda tivesse meu
celular comigo, duvido muito que teria sinal aqui no meio do oceano. Aliás, para
quem eu ligaria?
– Por que você não tenta ligar para seus amigos construtores para ver se um
deles responde?
– Não brinque com isso, Bapsi. Estou perdida e desesperada aqui.
– Mas foi a decisão mais acertada sair daquele lugar. Aqueles alunos são tão
certinhos que me deu vontade de aparecer de repente para assustá–los.
– Eles não achariam graça em te ver saindo da minha boca. Se já me
tratavam como alien só porque sou estrangeira e estou numa cadeira de rodas,
imagine se eu passeasse por aí com um fantasminha azul me seguindo.
– Era tabu que alguém me visse no nosso antigo mundo, mas qual o
problema se eu surgir em terras que mal conhecem as leis dos construtores?
– Eu prefiro que você continue aqui dentro, bem enroladinho na minha
alma. Eu sou tão egoísta que mesmo se eu tivesse uma ligação, não ia permitir
que ele visse meu gênio.
– Mas você permitiu que o destruidor visse.
– Era isso ou a morte. Eu precisava me defender. Que achou do gênio dele?
– A pele dela tem um tom azul meio estranho. Eu sou mais bonito.
– Como sabe que o gênio era fêmea?
– Eu simplesmente sei dessas coisas, porque eu sou um gênio!
– Devo buscar um duplo sentido nessa frase?
– Quando se trata de Magia dos Gênios, sempre há um duplo sentido. Por
isso é tão divertido. Eu diria que não é o sistema mais indicado para modestos.

32
Fábula dos Gênios

– Engraçadinho. Os habitantes dos outros países respeitam muito quem


mexe com MG ou MGM. Mas isso porque eles nunca viram um gênio ao vivo!
Não sabem como eles são piadistas ruins.
– Veja, Nhanha. Terra à vista!
– Em boa hora!
Minhas frutas já tinham terminado e eu sentia muita sede. Mas quem iria
recepcionar uma turista pobre?
Resolvi vender meu baralho para comprar comida. Aquilo valia uma boa
grana naquele novo país.
– A questão é... onde estamos?
Eu me maravilhei quado descobri que estávamos na terra dos símbolos.
Afinal, o trabalho com selos é um importante complemento para a Magia dos
Gênios. Mesmo que lá eles focassem mais em idiomas, alfabetos mágicos ou até
mesmo nos selos comuns em 2D, eu sentia que aquilo iria me conferir um
fundamento tremendo para adquirir maior maestria sobre meu gênio.
– Vai nada. A magia com gênios se sustenta por si só.
– Quer calar a boca? Pare de falar no meu ouvido. E não ouse aparecer!
Assim eu parecia louca, como se estivesse falando sozinha. “Falar sozinho”
era bem comum no país dos construtores, já que os habitantes ficavam batendo
boca com seus gênios o tempo todo, embora numa forma não visível. Mas
provavelmente os simbologistas achariam isso meio esquisito.
E havia uma ótima vantagem naquele país: eles entenderiam minha língua, já
que sabiam tantos idiomas.
– Como eu dizia, você viu os selos dimensionais do garoto destruidor.
Aquilo foi lindo. E efetivo, que é o mais importante.
– Como ousa dizer isso, quando tentou escolher sua escola somente porque
gostou das pilastras?
– Colunas! E usarei esse mesmo critério aqui.
– Se você tivesse algum dinheiro para pagar o custo de andar embaixo dessas
pilastras...
– Ca–la–do! Eu vou conseguir uma bolsa de estudos.
– Há, há, há! Essa é muito boa! Pois bem, quero só ver.
Visitei algumas escolas. Aquilo sim era país de luxo!
– Viu só, Bapsi? Nesse país as colunas são mais altas e robustas.
– GRANDE coisa.
Logo descobri que lá as pessoas eram mais arrogantes. Enquanto os
habitantes do mundo dos livros eram mais humildes, nesse mundo de símbolos
e cálculos eles se achavam os sujeitos mais inteligentes do universo.
– Na verdade é elementar. Depois de lerem tantos livros, os livreiros
chegaram a conclusão do quão pouco sabiam. E reconheceram a própria

33
Wanju Duli

ignorância. Já os senhores dos símbolos dão mais valor à beleza. Eles acham que
suas letrinhas são mais bonitas que a caligrafia de mortais comuns e que isso os
torna seres humanos melhores.
– Quem sabe os torne mesmo?
– Claro que não!
– Experimente antes de criticar. Não foi você que ficou fascinada com os
selos bizarros do pirralhinho destruidor?
– Cara... ele parou o tempo!
– E eu sei fazer ovos mexidos.
– Sabe nada. Ainda precisa de muito treino até ter alguma habilidade na
sublime arte da culinária. Se um dia visitarmos algum país de alquimia ou poções
mágicas, vai engolir o que disse.
– Calma, só estou implicando por prazer.
– Como sempre...
– É tão agradável ler pensamentos! Perto disso, parar o tempo é simples.
– Fico imaginando como será o dia em que eu adquirir meu gênio maligno.
Terei dois gênios telepatas chatos zunindo no meu ouvido.
– Isso significa que sou o gênio bonzinho?
– Nada a ver. Acho que nem o gênio maligno mais potente superaria sua
chatice.
– Vai lá namorar suas pilastras em vez de me xingar, que você ganha mais.
CRAQUE!
Acertei uma coluna com um soco.
– Direto de esquerda! Essa foi boa.
– Quem é você, senhor?
– Sou professor nessa escola.
– Hã... perdão. Eu acho que rachei um pouquinho a coluna.
– Não faz mal. Será a escola quem vai pagar e não eu.
E ele sorriu. Por alguma razão, eu simpatizei com ele.
– Eu gostaria de estudar nessa escola, mas não tenho dinheiro. Tem jeito de
eu entrar?
– Claro. Essa é uma escola pública.
– Com essas colunas e tudo o mais? Nossa!
Fui tentar me matricular. Mas eles também já tinham iniciado o ano letivo.
Disseram para eu tentar vaga no próximo ano.
– Na verdade eu sou a princesa dos construtores! Fui a única sobrevivente
da guerra. Eu matei tudo. Sou forte! Olhe só meu anel real! Tem certeza que não
tem uma vaga pra mim?
– Ai, que sujeira. Você roubou o anel do seu amigo.

34
Fábula dos Gênios

– Eu não roubei, ele me emprestou uma vez para eu entrar de graça no


cinema, idiota! Perdão, secretária, não era com você. Então, terei minha vaga?
E eu consegui minha amada vaga! Fácil como tortinha.
O uniforme da Escola Selo de Oles era bem divertido. Tinha um selo
estranho e complicado estampado na blusa. Aquele era um enigma famoso que
nenhum magista matemático tinha conseguido solucionar ainda.
Novamente, fui a atração da escola. Dessa vez não por eu ser uma
construtora, mas por ser uma princesa. Infelizmente o boato se espalhou.
– Você é suja. Sua alma é podre. Eu sei, porque me enrolo nela! É meu
travesseiro!
– Você é muito irritante, sabia? Wakwa morreu, então aposto que ele estaria
feliz por eu estar fazendo bom uso do anel dele.
– A cada frase sua, você parece mais cruel... mais e mais! Agora entendi
porque será a candidata perfeita para a MGM. Seu gênio maligno vai se fartar
com o gosto terrível de sua alma contaminada pela maldade.
– Se eu tivesse que sacrificar um bode todo dia pelo resto da minha vida
para me livrar de você, juro que eu faria!
Amei aquela escola. Finalmente eu tinha encontrado o que queria. E foi isso
o que pensei nas primeiras semanas, até que se iniciaram provas de matemática
avançada. Eu queria cometer suicídio.
– Eu não vou aguentar nem três meses aqui dentro. As primeiras provas me
derrubaram. Vou reprovar no fim do ano, com certeza.
– Então vá logo procurar pela página do GGM e dirija–se ao próximo país.
– Não posso. Essa página deve ser guardada por um dos melhores magos
simbologistas. Não arrancarei a página dele facilmente. A não ser que eu
procure pelo melhor aluno daqui para me ajudar.
Fui procurar por uma aluna do último ano, que era tida como a mais
inteligente do colégio. Perguntei a ela sobre a página. Eu me surpreendi quando
descobri com quem estava.
– Bapsi, a página está com aquele professor risonho que me disse “direto de
esquerda”.
– Eu sei, eu ouvi. Não sou surdo. Lembre–se, tudo o que você sabe eu sei.
Sou onisciente dentro de sua cabeça.
– Por isso mesmo que eu não me livro de você. Fofoqueiro como é, ia
espalhar todos os meus segredos.
– Você não tem segredos. Sua cabeça é um ovo oco.
Dei mais socos no ar.
– Oh, está lutando contra o vento novamente? Eu vejo beleza nisso.

35
Wanju Duli

– Aí está o palhaço. Ei, babaca! Ele tem cara de quem te entregaria a página
do grimório para soprar o nariz. Vá em frente e simplesmente peça. Aposto que
ele te dá na hora.
– Professor, eu ouvi falar que o senhor tem a página 8 do Grimório dos
Gênios Malignos.
– Isso é uma verdade.
– Poderia me dar?
– Não.
– Há, se deu mal! BEM FEITO!
– Cale–se! Ah, desculpe professor, não falei isso para o senhor. Foi para o
meu gênio.
– Que surpresa. Então a senhorita é realmente uma construtora? Pensei que
fosse uma mentira, assim como mentiu sobre ser uma princesa.
– Esse sujeito é ótimo! Estou começando a gostar dele.
Mas ele falava tudo isso sorrindo. Eu estava começando a desconfiar dele
ainda mais.
– Por acaso pretende usar a página um dia?
– Sim. Já testei algumas vezes.
– Mas... o senhor não tem gênio. Então como poderia?
– Mesmo pessoas sem gênios inatos podem utilizar esse sistema. Basta
aguardar que um construtor ou destruidor abandone seu gênio. E posso
aproveitar a oportunidade para me apropriar dele.
– Nem pense nisso, Bapsi! Professor, por favor, não pegue meu gênio, sim?
Não duvido do seu poder e que seja capaz disso. Eu já vi um cara mexer com
selos de maneira assustadora. Então...
– Um destruidor, certo?
– Exato.
– Eu gostaria de ver um ao vivo.
– Não queira. Pode ser a última coisa que verá.
Ele se divertia cada vez mais com nossa conversa.
– Mesmo? Eu tenho alguma confiança na minha habilidade. Por que acha
que um destruidor me mataria?
– Porque uma criança quase me matou com um único selo multidimensional.
E ela teria conseguido me matar se quisesse. Em vez disso, ela só me aleijou.
– A história de sua vida deve ser incrível. Se impotaria de me contar?
– Só se me der essa página.
– Eu dou se você me passar o Grimório dos Gênios.
– Excelente, estamos andando em círculos de novo. Nhanha, desiste desse
cara. Ele é esperto demais. Não está à sua altura.

36
Fábula dos Gênios

– Quieto, Bapsi! Professor, infelizmente eu também estou em busca do GG.


Os destruidores canalhas explodiram meu país antes que eu tivesse a idade
mínima para entrar nas escolas de magia de lá e ter acesso a ele.
– Eu acho que você está um pouco confusa. Deixe–me ver se entendi: você
entrou nessa escola, mas já irá desistir dela sem mal tentar. E está procurando as
partes do GGM sem nem antes ter o GG. Desculpe–me, querida, mas parece–
me que você está colocando as pernas na frente do cérebro, ou as rodas...
– Então o que me sugere fazer?
– Continue nessa escola. Insista na matemática e na simbologia. Eu te dou
aulas particulares de graça se precisar. Apenas supere isso. Aguente sete anos.
Você precisa entender a geometria dos selos multidimensionais se pretende
enfrentar os destruidores um dia.
– Eu sei. Eles usam isso para controlar o tempo, adquirir invisibilidade,
atravessar objetos e outros truques paranormais bizarros. Antes eu pensei que
era ilusão, mas minhas pernas arrancadas foram bem reais.
– Será que ele não te fez acreditar que era real?
– Como assim...?
– O poder da magia está na auto–sugestão. E o poder da própria vida.
– Professor, qual seu interesse em me manter aqui? Pretende roubar meu
gênio?
– Eu queria conversar com um construtor, pois os destruidores são difíceis
de lidar. Eu tenho verdadeiro vício pela magia deles. Apenas essa única página
do GGM já me fascinou. Eu quero as outras. Mas para entender melhor tudo
isso, preciso que você me ensine.
– Eu tenho onze anos, não sei de nada.
– Claro que você sabe. Tem a vivência. Vivenciou uma sociedade inteira
formada pelo trabalho com os gênios. Você mesma tem um gênio! Isso é
fabuloso!
– Nossa, estou ficando famoso.
– Qual será o nosso trato?
– A sua parte do acordo será sobreviver nessa escola por esses sete anos.
Faça amizade somente com os melhores. E conte–me tudo o que eu precisar
saber sobre sua terra. De minha parte, te dou as aulas particulares durante esse
tempo. Ao fim dos sete anos, te passo a página do grimório. E no final de tudo,
faremos algo que irá beneficiar a nós dois: reuniremos todo o GGM e o GG.
– Você sabe porque eu preciso desses grimórios: quero me vingar dos
destruidores. E você, o que busca?
– Poder. Puro e simples.
– Pensei que você era um cara legal.
– Sou um cara legal que busca o poder. Algo errado? Alguma contradição?

37
Wanju Duli

– Na verdade não. Então prove–me que é forte e cure minhas pernas.


– Venha até minha sala.
Ele até tentou. Traçou uns selos super maneiros no chão. Fez uns cálculos e
recitou umas fórmulas. Mas nada de selos 3D. E nada de resultados.
– Você disse que uma criança destruidora fez isso a você? Então, minha
amiga, temos muito trabalho pela frente.
Ele estava suando com o esforço. Foi até a geladeira e pegou um suco verde
estranho. Serviu–me um pouco também.
– Poção mágica?
– Apenas uma boa bebida para uma longa conversa. Inicie a sua história.
Quero ouvir do começo, desde que você era muito pequena. O máximo de
acontecimentos que se lembrar. Tenho a tarde inteira livre pra te ouvir.

38
Fábula dos Gênios

Capítulo 2: Capricho Enrolado

Você sabia que um gênio realiza desejos?


Desde pequena, sempre fui muito vaidosa. Mas eu não era a única. Aqueles
estúpidos também queriam gastar o primeiro desejo deles com detalhes estéticos.
– Mudarei a cor dos meus olhos.
– Como o príncipe? Eu também pretendia fazer isso, mas não quero copiá–
lo.
– Não seja boba. Esse é um primeiro desejo bastante comum. E também
muito profundo.
– Que há de profundo nisso?
– Embora o gênio possa escapar pela boca, a alma vaza pelos olhos. Você
deve consultar os magos para conhecer qual a cor do prisma é mais adequada
para servir como escudo do olhar.
Os habitantes do meu mundo sempre foram muito obcecados em se
defender de uma ameaça iminente. Devido ao peso de nossa história, os
construtores queriam proteger as suas crianças.
Existia uma magia antiga que só era possível de ser feita com infantes, que
ainda não possuíam seu globo ocular completamente desenvolvido. Através de
cirurgia, era inserido nos dois olhos um pequeno cristal cujas bases são
poligonais e os lados paralelogramos.
Magia do Escudo Prismático. A MEP era uma técnica lendária, cujo método
de funcionamento era descrito no Grimório dos Gênios.
– É realizado um cálculo com base na coloração original de sua íris. Assim é
construído um cristal que se adequa perfeitamente, selecionando a luz conforme
sua cor correspondente no espectro. Dependendo da frequência, a refração
ocorre num...
– Eu não estou te escutando mais! Vê? Tapei meus ouvidos e o único som
que restou foi algo como “psssst...!”
– Bilu, mas essa não é uma operação muito cara? O príncipe a realizou
porque a família dele é abastada. Não é o nosso caso.
– Minha família está disposta a realizar esse sacrifício por mim. Pois se um
dia os destruidores nos atacarem, essa pode ser minha única chance de
sobreviver.
Eu ri com gosto.
– Destruidores? Você vive no mundo dos contos de fadas? Está dizendo
que aquelas minhocas pobres que mal têm dinheiro para comer ou se vestir

39
Wanju Duli

decentemente podem formar um exército e atacar as nossas proteções


cibernéticas e mágicas?
– Meu avô morreu defendendo nosso mundo dos destruidores. Mas naquela
época eles não eram tão fortes. Existe esse boato sobre um grimório antigo...
– Não me importo. Você pretende queimar um desejo seu juntamente com
uma grana preta apenas para passar por uma dolorosa cirurgia que pode não
servir para absolutamente nada?
– Exato. Não consigo pensar em nada mais urgente. E você, que fará com
seu primeiro desejo que é tão importante assim para negar um procedimento tão
fundamental?
Eu dei de ombros.
– Não preciso fazer o que todos fazem. Essa não é necessariamente a
melhor alternativa somente por ser tão aclamada. Estou certa de que posso ter
uma ideia mais fashion em vez de seguir a moda.
– Isso não é “moda”, sua grande imbecil. É segurança.
– Não ligo como se chama. Eu não farei. Além do mais, sempre existe o
risco de a MEP se converter em MAP.
– Bobagem. Ainda somos novas. Isso não vai acontecer.
A MEP podia se tornar uma faca de dois gumes. Quem ficava em dúvida e
resolvia realizar a operação tarde demais, perto da pré–adolescência, correria o
risco de ficar cego. Era chamada Magia da Arma Prismática. Tornava a criança
extremamente vulnerável a ferimentos mágicos e uma isca certeira para os
destruidores.
– E digo mais: se você realmente acredita nos fantasmas dos destruidores,
dizem que eles possuem uma magia terrível que transforma a MEP em MAP.
Portanto, o que antes era um escudo torna–se a espada que atravessa sua alma.
– É verdade que eles conhecem algumas de nossas magias de ataque e defesa
e estudam métodos de torná–las magias reversas. E esse segredo reside no
coração dos próprios sistemas mágicos. Ainda assim, eu confio nas decisões de
nosso povo.
– Cromo e Tchei não realizarão o procedimento. Cromo está ocupado
demais com seus computadores e eu sinceramente não sei o que se passa na
cabeça de Tchei.
– Você não deveria nem mesmo falar com eles. Isso não é bem visto.
– Não me venha com lições de moral, Varra. Não sabe com quem está
mexendo.
Agradava–me manter o clima de mistério. Havia alguns boatos fantásticos
sobre minha família que nem mesmo eu conhecia direito. Um antepassado que
foi um poderoso mago ou algo assim. Eu queria acreditar que havia sangue forte
correndo em minhas veias.

40
Fábula dos Gênios

Quando me despedi delas naquele dia, eu estava confusa. E, ao mesmo


tempo, meu coração pulsava poderosamente.
Eu desejava fazer algo especial da minha vida. Fitei as estrelas naquela
manhã clara. Cada uma de uma cor diferente e de um brilho espectral.
– Yym... tu tiveste cinco desejos. Então por que tenho eu apenas três...?
Eu precisava colocar logo o fogo no meu primeiro desejo, antes que ele
mesmo se consumisse sem ter sido voluntariamente abreviado por mim.
Meus sapatos tocavam a grama macia, com felpos dourados, que mais
parecia um travesseiro. Aquele cheiro doce preenchia todo meu ser.
E lá estavam as casas com telhados geométricos. Atravessei minha porta
alaranjada. Eu estava exausta! Entrei no meu quarto, tirei os sapatos, atirei
minha mochila longe e joguei–me na minha cama, que era uma espécie de
ovinho que eu adentrava.
– Já vai dormir? Você tem dever de casa, sabia?
– Não amola, Psi. Só vou descansar um pouquinho.
– Ao menos escove os dentes antes. Você comeu aquele pão enorme cheio
de açúcar e pêssegos!
– Não vou me repetir: calado! Já disse que não vou dormir.
– Você sempre fala isso quando deita para descansar “uns minutinhos” e
acaba cochilando.
Lancei um dicionário na direção dele. Bapsi desviou–se a tempo e o
dicionário bateu na parede e caiu no chão.
– Assim não consigo mesmo relaxar. Você venceu: vou me levantar.
Dei dois passos até a mesa do computador. Sentei–me, coloquei os
headphones e comecei a digitar. Abri um pacote de salgadinhos de abelhas
crocantes e uma latinha de suco de chiclete.
– E seu dever do colégio, mocinha? Não pense que vai me fazer esquecer
alimentando–me com chiclete.
Tirei meu casaco e suspirei.
– Cara... vai se enrolar noutro gênio e me deixa em paz.
– Isso só vai acontecer se você se enrolar com outro de sua espécie. Mas
como não queremos isso, você sabe que sua alma é melhor que qualquer gênio.
– Nah... só Cromo está online, para variar. Se um dia eu conectar e ver
Cromo offline, saberei que ele morreu.

MOMO: Ei, estou procurando este código: XYZ089. É importante, me


ajuda aqui.
NHANHA: Como se eu fosse um gênio da computação, babaca. Se você
não encontrou, muito menos eu.

41
Wanju Duli

MOMO: Eu não estava falando contigo. Tchei, dá um jeito nisso. Eu tô


cansado. Sério, eu vou me desfazer em pedaços juntamente com toda essa tralha
cibernética, esse lixo de dados que você jogou para o meu sistema.
NHANHA: Ele está offline.
MOMO: Ótimo, é justamente o que eu preciso nesse instante: falar sozinho.
Já não bastam meus monólogos intermináveis com meu G.
NHANHA: Relaxa. Então me diz uma coisa: soube que nem tu e nem o T
fizeram a tal cirurgia. Um motivo?
MOMO: Nada em particular. Eu não combinei com ele nem nada assim.
Meu desejo é privado. Eu tenho dados para combater os destruidores. Não
preciso de olhos. Digo, em verdade, eles não são uma ameça. Meu menor medo.
NHANHA: Te entendo e nem te contesto. Que raios é esse código, de
qualquer forma?
MOMO: Da sua conta?
NHANHA: Não realmente. Me consegue o contato do Yym.
MOMO: Compra um código de classe C para mim e trocamos.

Lá fui eu pesquisar os sites de leilão virtual. Comprei um código C bem


barato e passei para ele.

MOMO: Que lixo, Nhanha. Quanto por cento de magia tem nessa porcaria?
NHANHA: Diz na etiqueta de rolagem 0,075%.
MOMO: Não me diga! Eu tenho cara de palhaço? Eu estou tendo uma
doença de risadas aqui e logo vou passar para um estado terminal.
NHANHA: Estava em promoção. Não pensei que fosse tão mau.
MOMO: Não consigo impedir nem uma lesma rastejante de invadir o meu
sistema com menos de 1%. Se duvidar, até você quebrava minha parede de aço,
que agora se reduziu a uma parede de gosma.
NHANHA: Vou te enviar o arquivo.
MOMO: Não ouse! Minha máquina é muito nobre para comportar qualquer
coisa abaixo de 50%.
NHANHA: Já enviei.
MOMO: Maldita! Sabe quando vai conseguir falar com o Yym? Na sua cova,
no outro mundo.
NHANHA: Quer saber? Vá se ferrar.
MOMO: Você me ferrou primeiro, não reclame. Quero um classe B 55%
para compensar.
NHANHA: Beije meu gênio, engraçadinho. Filho de mera.

Fiquei offline. Aumentei a potência do meu headphone.

42
Fábula dos Gênios

– ESTÁ ME ESCUTANDO, NHAHIA?!


– Tentei não escutar. Que tu quer?
– Eu sei que você está se divertindo a valer baixando códigos mágicos para
brincar de magia virtual, mas devo avisar que seu tempo está se esgotando.
Nosso tempo.
– Faço os deveres de casa mais tarde. Ainda tem uma estrela no céu. Assim
que Devçem baixar, começo.
– Eu estava falando do seu primeiro desejo. Eu sei que você não quer a
cirurgia. Mas existem outras categorias de MEP...
– Eu quero a técnica de fios.
– Mas... essa técnica é ruim e ultrapassada. Por que é tão importante para
você?
– Porque Yym utilizou–a como primeiro desejo.
– E o que ele tem a ver com você?
– Ele é um mago que admiro. Ele estuda na Escola de Magia de Gins.
Estudarei lá um dia, assim que eu completar 13 anos. E já tenho a tinta.
Abri minha gaveta trancada a chave. Retirei de lá um tubo cor–de–rosa.
– Não vou contestar, se é isso que você quer. Então, qual é a magia desse
negócio?
– A magia só vai se manifestar quando a tinta começar a sair do meu cabelo.
Quem sabe quando acontecerá? Em cinco anos? Dez anos?
Dirigi–me até o banheiro, com passos decididos. Ajoelhei–me diante da
banheira. Abri o chuveiro na cabeça e comecei a passar a tinta nas mechas.
– Nha... eu estou sentindo um frio terrível na barriga. Se eu tivesse barriga...
– Eu também.
– Então devo estar captando o seu nervosismo. Sabe, vai ser minha primeira
vez realizando um desejo. Eu vou perder uma parte de mim. É assustador.
– Eu sei, seu bobo. Você nasceu junto comigo. Eu posso não saber tudo o
que se passa em seus pensamentos, mas te conheço bem demais.
Quando terminei, vi somente os fios molhados e escuros diante da minha
face. Bolhas de sabão. Foi a última vez.
Bapsi estava mais inseguro do que eu jamais o vi. Eu não me recordava bem
de quando ele era pequenino; porque eu também o era. Mas eu sentia uma
ternura muito forte por ele. Vê–lo assim com medo me fez amá–lo ainda mais.
– Nhanha...
– Que foi?
– Perdi um pedaço, minha cauda...
Eu olhei para ele. Bapsi ficou um pouco menor. Ele era bem mais longo,
mas agora tinha um pedacinho faltando.

43
Wanju Duli

Ele estava tremendo. Assustado. Eu o abracei. Ele se enrolou nos meus


braços.
– Pronto, meu querido. Já acabou. Você foi muito corajoso.
– Era eu que devia estar dizendo isso a você...
– Não me importo. Você é especial...
Uma lágrima rolou na minha face. Eu senti a consistência gelatinosa de
Bapsi. Ele também deve ter chorado um pouquinho.
Eu e ele éramos tão mimados! Sempre vivíamos brigando, mas já tínhamos
compartilhado muitos momentos de dor e alegria. Em suma, toda nossa
existência.
Sempre soubemos que o dia do primeiro desejo chegaria. E aquele abraço
selou o momento pela eternidade.
Os gênios realizam três desejos.
O primeiro deles ocorre na infância. Deve ser feito o quanto antes, assim
que adquirirmos idade suficiente para pensar seriamente a respeito. É claro que
uma criança dificilmente consegue fazer uma escolha bem pensada, a melhor
decisão possível. Mas mesmo que eu me arrependesse disso no futuro ou
julgasse meu desejo superficial um dia, no fundo eu não voltaria atrás. Porque
foi uma época especial na minha vida. Eu era tola, e estava satisfeita em
simplesmente ser exatamente o que fui.
Um dia haveria um segundo abraço. O momento do segundo desejo:
quando Bapsi perderia mais um pedacinho. E ficaria pequenino, como
provavelmente eram os gênios dos mais velhos.
Esse segundo desejo poderia ser usado em qualquer momento da nossa vida.
A maioria o guardava pelo maior tempo possível, para algum acontecimento
importante que pudesse vir a ocorrer.
E, por fim, o terceiro desejo só era possível de ser usado no momento da
morte. Nosso corpo e o gênio sentiam quando iam morrer. E esse instante final
despertava algo. O gênio desaparecia, cedendo por inteiro sua última parte. E o
nosso corpo morria.
– Bapsi... eu estou com medo.
– De que, Nha?
– Eu acabei de me dar conta de uma coisa terrível. Estivemos juntos em
todos os momentos da minha vida. Mas quando eu morrer... você vai
desaparecer antes de mim. E morrerei completamente sozinha. Se você estivesse
comigo, eu não temeria a morte.
– Deve ser assim, não se preocupe. Precisamos ser fortes. São as etapas
naturais da vida, então não as negue.
– Já sei. Não vou fazer meu último desejo. Porque meu verdadeiro desejo
será ter você comigo na morte.

44
Fábula dos Gênios

– Se fizer isso, eu vou continuar vivo por muito tempo ainda. E eu não
suportaria isso, sem você. Isso seria cruel comigo. Então me prometa que fará o
seu desejo final quando estiver para morrer.
– Está bem. Eu prometo.
As lágrimas escorriam dos meus olhos.
– Nhanha, para com isso. Você é novinha ainda. Não pense na morte.
– Eu não tenho ligação! Morrerei aos 21 anos.
– Vou te contar um segredo: não importa que idade você tenha, 10 anos ou
100 anos, não precisa se preocupar com a morte. Viva o seu dia com alegria,
sem temer se terá pesadelos à noite. Não importa quanta dor sentirá nos
pesadelos, sempre há um céu claro após a tempestade. Quem sabe até um arco–
íris?
Dei um beijinho na bochecha de Bapsi.
– Sabe de uma coisa? Você é queridinho demais! Agora me diz, não estou
um arraso com esse meu cabelo todo cor–de–rosa?
– Tá uma rainha!
– Não vejo a hora de mostrar para o Yym. Devo ser uma das únicas
corajosas de nossa geração a usar essa magia além dele! Aposto que ele virá falar
comigo quando olhar.
– Mas não fique triste se ele não te notar. Não dê tanta importância...
– Eu sei que ele é muito ocupado e importante, mas vou tentar.
Eu estava tão emocionada e ansiosa depois daquele acontecimento
importante, esse marco na minha vida, que nem consegui concluir os deveres de
casa naquele dia.
Acordei atrasada para ir à aula no dia seguinte. Coloquei o uniforme tão
rapidamente que até pus meias de cores diferentes. A meia do meu uniforme era
cinza e vesti uma cinza e uma marrom.
Corri. O pessoal do meu colégio me fitava com surpresa enquanto eu
atravessava os corredores com meus novos cabelos.
Quando eu abri a porta da minha sala, todos voltaram os olhos para mim
com espanto. Nem a professora me criticou pelo atraso, tamanho seu choque.
Eu sentia–me orgulhosa. Desfilei lá na frente e sentei–me no meu lugar.
– Não tinha uma forma menos extravagante de chamar a atenção? Você
praticamente estampou na sua cara que já usou um dos desejos! Além disso, a
técnica de fios? Que tinha na cabeça para fazer isso?
– Varra, fique quieta. Eu estou muito feliz. Não estrague.
– Bilubelei está atrasada. Estou com um mal pressentimento. Se ela fez
alguma besteira pior que você, será terrível.
Eu também fiquei preocupada. Ela só chegou no intervalo.
– Bilu...!

45
Wanju Duli

Ela virou–se. Quando a fitei, vi seus olhos vermelhos. Assim que notei isso,
eu abracei–a.
Ela entendeu meu abraço. Porque ambas tínhamos passado por um
processo difícil. Consumir o primeiro de seus desejos também deve tê–la
recordado de que um dia chegaria o instante de realizar o último deles. Então
era um tipo de felicidade triste; ou tristeza feliz.
– Nha... por que usou essa magia?
– Não sei! Sinto que vou precisar dela um dia.
– Essa magia também é chamada “capricho enrolado” ou “enrolação de
caprichos”. Isso porque somente pessoas realmente caprichosas as utilizam.
Como Yym... ele sabe o preço a pagar. E você também.
– Preciso vê–lo. Irei até a Gins no final da aula.
E assim eu fiz. Bilu e Varra me acompanharam. Aguardamos até que Yym
saísse.
Ele se destacava na multidão de estudantes com seus impressionantes
cabelos azuis. E ele percebeu minha presença.
É evidente que meus cabelos cor–de–rosa chamaram sua atenção.
Curiosamente, ele não pareceu surpreso. Simplesmente caminhou até minha
direção.
– Menina esperta. Técnica de fios. Boa escolha.
Eu senti–me orgulhosa com essas palavras. Não queria admitir, mas uma
parte de mim havia escolhido essa magia apenas para impressioná–lo.
Em poucas palavras, sacrifiquei um de meus preciosos três desejos por ele.
– Obrigada!
E ele já ia se afastar. Antes disso, eu perguntei:
– Conhece mais alguém como nós?
Ele fez que não. E isso foi tudo. Mas... por que ele não se impressionava? Se
éramos os únicos a utilizar nosso primeiro desejo dessa forma, por que ele não
tinha mais interesse em falar comigo?
Não pude mais impedi–lo de ir embora. Ele caminhou junto com mais três
colegas e eles se retiraram.
Escola de Magia de Gins; uma das instituições de magia mais difíceis de ser
admitido. Naquela época, Yym era quase um adulto para mim. Um sujeito
respeitável. Eu tinha 9 anos. Ele tinha 14. Vivíamos em universos diferentes.
Pensando bem, por que ele teria conversado por mais tempo comigo? Aos
olhos dele, eu era apenas uma criancinha impertinente. Metida, no mínimo, por
me atrever a usar a mesma técnica que ele. Yym queria ser exclusivo e eu
estraguei tudo ao copiá–lo.
– Um dia entrarei para Gins. Vocês vão ver.
– Você não pode.

46
Fábula dos Gênios

– Por que não?


– Porque é uma escola masculina...
– Ah...! Sei disso. Quis dizer que entrarei para a Ginas, a escola que faz par
com essa.
Em nosso país havia apenas escolas e universidades exclusivamente para
homens ou para mulheres. Não existiam instituições mistas. E havia um bom
motivo para isso.
– Suas meias estão trocadas.
– Oh, não! Yym me viu desse jeito. Não acredito.
– Estava tão cheia de si por causa dos cabelos que se esqueceu de olhar para
os pés, tsc, tsc.
– Meh.
Yym era descendente do Yym da lenda, de nossos livros de história: um
magista poderoso que desvendou uma magia que permitia aumentar os três
desejos para cinco. Ninguém sabia se esse rumor era verdade, mas era a
historinha que existia por trás das nossas cinco estrelas. Os antigos diziam que
cada estrela representava um dos desejos de Yym. Embora o descendente atual
tivesse recebido apenas o nome de batismo, todo mundo o considerava um
magista impressionante para a sua idade. Só podia ser o sangue.
– Sangue...
O que eu mais queria nesse mundo era ter acesso ao Grimório dos Gênios.
Eu desejava ler sobre todas aquelas magias e feitiços dos quais todo mundo
falava!
Não era exatamente um grimório secreto. Éramos proibidos a lê–lo antes
dos 13 anos. Somente após sermos admitidos numa escola de magia, iríamos
estudar os capítulos. Os professores iam liberando mais páginas a cada ano.
Somente aos 20 anos teríamos lido o grimório completo, incluindo acesso a
apócrifos, páginas retiradas, rascunhos e outras complementações.
Não bastava ter acesso ao grimório isoladamente. Precisávamos do auxílio
das aulas com ensinamentos que eram passados entre nosso povo oralmente.
Então somente após nos formarmos no colégio teríamos pleno poder para
utilizar a magia dos gênios sabiamente.
Havia poucos volumes do grimório. O original era guardado na arca da
família real. Havia em torno de dez cópias espalhadas entre as principais escolas.
As demais escolas possuíam xerox das cópias manuscritas, mas que eram
rigorosamente mantidas sob controle do governo. Era proibido copiar uma das
páginas sem autorização.
As dez escolas que possuíam os famosos volumes manuscritos tinham muito
prestígio. Gins estava entre elas. O sonho de toda criança construtora era ser

47
Wanju Duli

admitida numa dessas dez instituições. No fundo, havia somente cinco chances,
pois eram cinco escolas masculinas e cinco femininas.
Quando voltei para casa, minha cabeça estava nas nuvens.
– Uau, quero tanto entrar para Ginas que eu seria capaz de utilizar meu
segundo desejo para isso.
– Você está brincando, certo? Não quero perder outro pedaço daqui a três
anos e meio.
– Está bem, vou guardar esse desejo para a ocasião de meu ingresso na
universidade. Mas, espere... eu já vou ter morrido. Então acho que vale a pena
mesmo eu usar esse desejo para entrar em Ginas.
– Não pense que conhece o futuro. Vivemos num mundo repleto de magia.
Tudo pode acontecer. Então utilize seu segundo desejo sabiamente. Espere mais,
tenha paciência.
– Algumas vezes eu desconfio que você esconde coisas de mim.
– Eu não escondo! Não me acuse.
– Me diz uma coisa, Bapsi. Que acontece se eu morrer antes de ter realizado
meu segundo desejo?
– Você sabe o que acontece. Vou ficar solto por aí, com saudades. Eu quero
que você realize todos os seus desejos, Nhanha. Só quero que pense com
cuidado, para ter seu desejo sobrando quando realmente precisar.
– Ba... o Yym falou de mim na internet.
Debrucei–me no computador. A felicidade que eu sentia instantaneamente
reduziu–se a nada.
– Ele escreveu no site dele: “Hoje encontrei uma menininha de cabelo rosa
na saída da escola. Quase senti pena. Tenho tantos fãs que a de hoje foi tão
longe a ponto de plagiar meu primeiro desejo. Sabe, eu encontrei essa técnica
num grimório muito antigo e foi por minha causa que ela se popularizou, sendo
até incluída na última edição do GG. Mas eu não ligo para essa menina, é só
uma pirralhinha que não sabe o que faz”.
– Que absurdo! Ele tinha sua idade quando utilizou a técnica. É muita
hipocrisia dele dizer isso.
Achei que eu ia chorar ao ler aquilo. Mas eu fiquei subitamente séria.
– Ele morreu para mim. Eu odeio o Yym. Destruí meu primeiro desejo. Não
acredito.
Parei de acompanhar o site dele. Antes eu era uma fã e lia todas as novas
magias ou passagens de grimórios que ele comentava, bem como suas
realizações mágicas. De repente, perdi o interesse. Não me importava mais que
ele fosse um gênio se era assim tão imbecil.

48
Fábula dos Gênios

Na aula do próximo dia, algumas colegas deram risinhos quando me viram


chegar. Antes meus cabelos cor–de–rosa eram símbolo de coragem. Bastou o
comentário de Yym para que eu virasse piada.
– Ignore–as, Nhanha.
– Elas são fãs do Yym. É claro que todas leram o que ele falou de mim no
site. Que desagradável.
Tentei fingir não ligar, mas aquilo era só uma fachada.
No meu aniversário de dez anos não tive muito que comemorar.
– Eu podia ter esperado mais um pouco para decidir. Agi por impulso.
– Espero que isso lhe sirva de lição para pensar bem em seu segundo desejo.
– Está bem, você venceu. Ao menos diga que estou bonita com essa cor de
cabelo, por favor.
– Eu já disse que você está linda. E quando chegar o dia de sua tinta sair,
acontecerá algo especial. Sabe, Yym não é idiota. Ele sabia muito bem o que
estava fazendo quando utilizou seu primeiro desejo dessa forma. Ele não quer
contar porque não deseja que outros tenham poder como ele.
– Tem razão. Então provavelmente fiz a melhor escolha possível, mesmo
sem saber. Um dia irei abençoar essa minha decisão.
Os dias se passavam. As semanas voavam. E, ao mesmo tempo, como se
arrastavam! Eu queria completar 13 anos logo. Eu sabia muito pouco de magia.
No meu colégio víamos somente o básico, pois os adultos tinham medo que as
crianças fizessem bobagem com magia se tivessem muito poder desde crianças.
Os destruidores não pensavam assim. Eles não se importavam que suas
crianças matassem umas às outras. Se conseguissem chegar à idade adulta sem
morrer, provariam que eram fortes.
Eu já estava exausta de estudar a história e a geografia do meu país. Eu
também não queria escrever com caligrafia bonita. Desejava a magia.
Cansei de fazer os deveres trancada em casa. Numa tarde, fui de uniforme e
mochila nas costas para uma praça. Deitei na grama e espalhei os cadernos por
lá. Comecei a fazer os exercícios enquanto ouvia música no meu celular.
Uma lesminha subiu no meu livro de estudos.
“Não consigo impedir nem uma lesma rastejante de invadir o meu sistema
com menos de 1%.”
– Que idiota...
Fiquei com raiva ao me lembrar dessa conversinha com Cromo. Eu o tinha
bloqueado do meu chat e há muito tempo não falava com ele.
Alguém cutucou no meu ombro. Tirei os fones de ouvido.
– Nhanha?
– Tchei! Por onde andou? Fazia, tipo, um século que eu não te via!

49
Wanju Duli

– Tinha ouvido falar que você usou a técnica de fios, mas é muito mais forte
ver isso pessoalmente. Parabéns pela coragem.
– Não é? Mas, como vê, estou fazendo meus deveres. Podemos conversar
pela internet.
– Tenho algo a dizer.
Sentei–me para escutá–lo.
– Fiz meu primeiro desejo.
– Pelo que vejo, não foi nem a técnica de fios e nem a MEP.
– Existem muitas outras possibilidades. Não é algo facilmente perceptível.
Mas eu me arrependi. Estou pensando em utilizar meu segundo desejo para
desfazer.
– Assim terá queimado dois desejos. Você é retardado?
– Hm... talvez.
Eu estava ficando impaciente.
– Eu realmente preciso terminar meus deveres. Não vou poder te ajudar se
você não me contar o que desejou. Então, quando falar com Momo, presenteie–
o com um código de classe B e diga que foi uma compensação.
– Por favor, me ajude. Prometo que não tomarei mais de quinze minutos de
seu tempo. Preciso de um conselho.
Eu passei as mãos pelo rosto.
– Tchei, por favor digo eu. Não percebe que estamos numa situação de
quebra aqui?
– Não estou quebrando a lei. Apenas tendo uma conversa breve com minha
amiga. Que há de errado?
– Porque... é ilegal! Não podemos simplesmente sentar aqui e conversar. Se
alguém pegar a gente, estamos ferrados.
– Se alguém delatar, falamos com o Wawa e ele libera a barra para a gente.
– Não envolva Wakwa nisso. Ele tem os próprios problemas dele. E nem
somos assim tão próximos da família real para ficar exigindo esses privilégios.
– Eu me considero meio próximo dele.
– Bom para você! Então vá lá falar com ele enquanto termino isso.
– Está sendo má comigo. Não faça isso. Fico triste.
Eu levantei–me.
– Vou para casa. Conte–me seu problema pela internet.
– Espere...!
Ele me segurou pelo braço. Eu me assustei.
– Desculpa.
Fiquei braba.
– Você tem o seu gênio para consultar. Não precisa de mim.
E fui embora. Quando cheguei em casa, meu coração estava disparado.

50
Fábula dos Gênios

– Bapsi, meus amigos estão crescendo. E estão ficando confusos.


– Tchei sempre foi estranho assim. Mas vocês ainda são crianças. Não tem
que se preocupar. Não havia problema que conversassem. Não seja paranóica.
Quando eu fiz onze anos, estava obcecada em pesquisas a respeito do autor
do Grimório dos Gênios.
– Então finalmente se interessou por história? Você sabe que esse cara está
bem morto, certo?
– Eu sei. Mesmo assim seria fascinante saber mais. E quando eu finalmente
for admitida numa escola de magia, conseguiremos explorar mais a fundo seus
poderes!
– Parece bom. Se me der bastante chiclete, pode ter certeza de que vou te
mostrar muitas de minhas habilidades ocultas.
– Como se você soubesse de algo... precisa do grimório tanto quanto eu.
Algumas das minhas colegas já faziam cursos alternativos de magia ou se
enfurnavam nas Casas de Gênios para buscar poder. Eu não era assim tão
fanática. Até ali, só sabia fórmulas simples de defesa e ataque que ensinavam na
escola, além de uns joguinhos de divinação. Nada de pomposas evocações e
pactos. Eu mal sabia o básico. E muito menos os fundamentos da magia, a parte
filosófica.
– Odeio filosofia da magia.
Concluí isso depois de checar uns grimórios complicados de magia avançada
na internet. Além disso, eles eram gigantescos. Eu jamais teria coragem de ler
aquilo.
– Um dia vai ter que gostar. Na universidade lerá vários desses de mais de
mil páginas.
Eu já tinha me cansado de dizer a ele que eu estaria “bem morta”, assim
como o autor do GG, quando tivesse a idade para começar uma faculdade.
Nós começávamos a faculdade somente aos 21 ou 22. Havia um intervalo de
um ano entre o término do colégio e começo da faculdade, para resolver a
questão da ligação. No meu caso, eu apenas aguardaria a morte.
– Eu consigo ler seus pensamentos, sabia? Pois eu tenho uma excelente
notícia para você: os destruidores chegarão para acabar com todos antes que
você precise se preocupar com isso.
– Você é outro desses que acredita nessa lorota que andam espalhando
ultimamente?
– Nhanha... nós gênios conseguimos sentir os gênios deles. A tecnologia dos
destruidores é muito atrasada, mas eles vão chegar. Pode demorar alguns meses
ainda, mas vai acontecer.
– Meses? Você não quer dizer anos? Décadas? Ou quem sabe séculos?

51
Wanju Duli

Eu ri. Bapsi ficou sério. Eu não entendi essa atitude naquele momento. Mas
poucas semanas depois eu parei de rir.
Os destruidores chegaram. E eu engoli meus pensamentos e minha língua.
– Eu não acredito que isso realmente está acontecendo.
– Vocês todos foram avisados. E não há como fugir. Eles nos sentem
também.
– Por que está tão calmo...?
– Porque eu já sabia que eles viriam.
– Pare de repetir isso, pois assim eu piro! Me diz o que devo fazer!
– Morrer com dignidade. Eu te peço que use seu segundo desejo. Em
seguida, virá o terceiro. Só assim morreremos juntos.
– Eu não posso usar meu segundo desejo para nos salvar?
– Não posso realizar algo que esteja além das minhas forças. Os gênios
malignos têm mais poder que nós. A não ser que... seja usada a Magia da
Potência. O significado do nome é duplo: a potência dessa magia é gigantesca. E
ela também eleva a probabilidade comum de uma magia ocorrer a uma potência
elevada. Digamos, elevado ao cubo ou ao quadrado. É uma magia com dados.
– E como posso fazer isso?
– Ela existe no GG. Mas há uma versão aperfeiçoada dela no GGM. É a
Magia da Potência Destruidora. Eleva as chances de uma magia ocorrer num
expoente absurdamente alto.
– É completamente inútil utilizarmos magias do GG para nos defendermos
se os destruidores sempre parecem ter desenvolvido versões refinadas de todas
as nossas magias no GGM! Droga!
Dei um soco no chão com minha mão trêmula.
Bilu encontrou–me pouco depois. Levou–me à Casa dos Gênios. Mas
mesmo estando com minhas duas amigas, senti–me solitária.
– Nhanha, acalme–se.
Aquele era um pedido impossível. Eu seria assassinada!
Eu não podia contar com os métodos de defesa de Cromo ou dos outros
cyber hackers do rei. Dessa vez nem a MEP, o escudo mágico queridinho dos
construtores, iria salvá–los. Essa magia foi desenvolvida para se defenderem dos
destruidores do passado e não dos monstros que nos atacavam.
– O MEP deles será convertido em MAP num piscar de olhos, com o
perdão do trocadilho. A cegueira inclusive aumenta o poder de alguns
destruidores. Há os que cegam os olhos propositalmente para aguçar os outros
sentidos. Eles são insanos!
– Para onde está indo?
– Não sei! Cara...

52
Fábula dos Gênios

Meu encontro com Wakwa foi surpreendente para mim. Pelo menos assim
eu daria um sentido maior à minha morte: protegendo o príncipe.
– Isso é muito nobre, mas que magia você sabe para protegê–lo? Ziro, Kassa,
Mera...?
Eu nem respondi. Senão ficaria maluca. A situação já estava ruim o
suficiente sem aquele cara sussurrando no meu ouvido.
Eu sentia como se estivesse numa realidade paralela. Não era mais eu. Eu
podia sentir o odor da minha morte chegando.
Aquele odor que não era bom e nem ruim. O cheiro do manto remendado
de um destruidor.
As dimensões estavam se cruzando. Eu quase podia tocar o futuro; encostar
no meu cadáver apodrecido.
Eu finalmente aceitei essa realidade. E decidi não mais fugir dela.
Por um instante, eu fitei os olhos daquele destruidor. Foi somente um breve
momento, mas eu sabia que iria se manter para sempre na minha memória.
Talvez fosse minha última imagem antes da morte.
Aquele sujeito me aterrorizou. Seu porte, sua voz, seu ser inteiro era o temor
do mundo.
Meu coração agonizava. Eu mal conseguia escutar as súplicas de Bapsi.
– Nhahia, faça esse desejo! Eu te imploro, ELE VAI TE MATAR! Você não
vê? Não SENTE...?
Bapsi podia morrer comigo. Eu podia fazer a ele esse favor; esse último ato
de misericórdia. Mas eu não consegui.
Bapsi chorou por minha covardia. Ele seria arrancado de mim. Ou pior: o
destruidor iria torturá–lo, enquanto despedaçava minha alma.
Eu não tinha poder para salvar meu gênio, meu corpo ou minha alma. Então,
de que eu servia? O que eu poderia ser capaz de realizar?
Aqueles selos, aquele gênio maligno, aquele monstro, aquele poder! Era
forte demais. Ultrapassava qualquer limite do meu entendimento da verdade.
Eles desafiavam as leis da natureza. Para eles, as leis da física ou qualquer
outra ciência que regesse esse mundo eram brincadeiras de criança. Eles riam
para elas e as superavam. Manipulavam a realidade como se brincassem de
matar.
Porque eles não conheciam brincadeiras. Então isso era tudo que tinham. E
a única diversão possível era ganhar aquele jogo de guerra.
Bapsi viu o gênio dele. E agiu de forma estranha, pois era o primeiro gênio
que fitava.
Ele não pronunciou uma palavra enquanto sentia a magnífica presença
daquele gênio maligno.

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Wanju Duli

Ele se emocionou. Nós sabíamos que íamos morrer, mas toda aquela
situação era muito extraordinária. Simplesmente não podíamos evitar esse
sentimento. A fascinação perante o forte. Nossa inevitável vulnerabilidade.
O destruidor não me atacou com seu gênio. Por algum motivo, ele não o fez.
Utilizou sua segunda cartada mais poderosa: selos multidimensionais. E isso foi
indescritível. Era mais que uma combinação da manipulação de geometria
espaço–temporal com poderes psíquicos. Havia códigos e formas lá dentro;
letras, números. Eu estava assustada demais para entender. Eu apenas senti o
peso insuperável.
Eu não sabia se ele tocava minha carne ou minha alma. Minhas pernas
foram separadas do meu corpo como quem desencaixa os membros de uma
boneca.
Enquanto eu estava abandonada no fundo daquela cova, perdi a noção do
tempo. Eu só entreouvia os murmúrios de Bapsi para mim.
– Você está machucado...?
– Não. Nhanha, você deve aceitar que vai sangrar até a morte. Ninguém vai
vir te salvar. Estão todos mortos. Eu chequei nos arredores, não há mais nada.
Peça com seu segundo desejo uma passagem sem dor. E, por fim, te concederei
o mistério do desejo final e partiremos juntos.
Eu dei um leve sorriso.
– Nem parece você, Bapsi. Aquele que sempre me disse para não desistir,
para ser otimista. Que eu poderia não morrer aos 21. Se eu não morrerei daqui a
10 anos, não posso morrer agora, certo?
– Eu não sei o que dizer.
– Então fique quieto e observe. Eu vou desvendar a Magia da Potência nos
próximos minutos. E utilizarei alguma magia aleatória da roleta dimensional
para erguer–me daqui e caminhar sobre duas pernas imaginárias.
Eu não acreditava realmente que eu poderia me salvar. Também não
consegui pensar em nenhum segundo desejo interessante. Bapsi não conseguiria
me curar ou chamar ajuda. Então ele apenas enrolou–se em mim para me dar
conforto. E eu não me senti sozinha.
– Posso pedir uma bala como meu segundo desejo? Então posso ter uma
morte docinha e, de quebra, morremos juntos. Que tal?
–Perfeito! Deseja isso agora?
Provavelmente desmaiei pouco depois disso. Quando acordei, estava na
cama da maga da montanha.
O mundo dos livreiros era nobre e antigo. As construções eram imponentes
e tinham um cheiro de bolor característico. Havia relógios e centenas de livrarias
e bibliotecas. Era uma terra com muitos idosos sábios. Era raro se ver crianças

54
Fábula dos Gênios

por lá e por isso havia pouquíssimos escolas. As poucas existentes eram bem
tradicionais e monótonas.
Isso porque aquela era uma terra de pessoas maduras. Lá ninguém queria
saber de agitação, barulho ou bagunça. As maiores emoções estavam nos livros
e era no interior deles que os habitantes viviam, assim como suas magias.
Os jovens não entendiam isso. Eu achei os colégios deles chatos e a magia
sem graça. Será que eu concluí isso por ser jovem e inexperiente? Quem sabe
um dia quando eu fosse mais velha, eu retornasse ao mundo dos livreiros e
finalmente o compreendesse.
Ora, eu desejava emoções que estimulassem múltiplos sentidos: músicas
poderosas, impressões visuais fantásticas. Por isso para mim a magia cheia de
cerimônias, danças, performances teatrais, acelerava mais meu coração. Ao ler
um livro meu cérebro precisava trabalhar mais para imaginar e fazer a magia
acontecer. Eu era muito preguiçosa, então para mim era muito mais fácil já ter
tudo prontinho lá fora.
Então eu parti daquele país e cheguei à terra dos símbolos. Os simbologistas,
embora ainda fossem meio caretas com seus desenhos elaborados cheios de
letras e riscos esquisitos, já tinham uma arte visual mais rica. Diferente de um
livro sem imagens, em que eu precisava elaborar as figuras mentalmente.
Em compensação, tive que lidar com aquele negócio repleto de abstrações
chamado matemática.
Eu logo notei que estava apenas fugindo das dificuldades. Quando algo
desafiador aparecia, eu saía correndo. Assustei–me com aqueles livros grossos
cheios de palavras difíceis e fugi da terra dos livreiros. E no país da simbologia
eu temi os números.
Mas aos poucos eu começava a perceber o aspecto emocionante nas coisas
difíceis. Gerava uma emoção adicional dominá–las. E aquilo me dava poder, em
todos os sentidos.
Portanto, quando eu me deparasse com algo que meu cérebro precisasse
realizar um esforço adicional para compreender, eu perceberia que era aí que
residia a verdadeira diversão e poder. E mais que isso: possivelmente o próprio
sentido da vida, que não era o torpor e sim o movimento, a vibração, as
engrenagens que giravam na maquinaria do cérebro humano e faziam rodar o
universo.
Isso se dá através do pensamento.

– Muito profundo. Se você realmente pensa assim, te darei exercícios


adicionais de estatística para amanhã.

55
Wanju Duli

– Não, por favor, professor! Foi apenas uma licença poética da minha parte.
Não precisa interpretar literalmente...
– Bem que estranhei que esse discurso estava esquisito e pomposo demais
para sua indolência, sua lerda.
– Maldito boca–suja! Perdão professor, não foi com o senhor...
– Devo dizer que houve um ponto de sua história que me intrigou. Você
não me esclareceu sobre a magia das ligações. Não sei a respeito, já que isso
parece ser algo exclusivo do povo dos construtores. Poderia me explicar?
Eu baixei os olhos por um momento. Levantei–os a seguir.
– Pensei que iria entender. Esse assunto é tabu. Não posso falar.
– Eu entendi que é tabu que os construtores enxerguem os gênios um do
outro por causa das ligações. Mas ainda não entendi perfeitamente do que se
trata, embora eu desconfie vagamente.
– O que você desconfia?
– Para confirmar minha tese, tenho uma pergunta: que seria pior, um
construtor ver o outro nu ou enxergar o gênio do outro?
– Com certeza é pior ver o gênio, pois isso tem relação com morte.
– Para ter relação com morte, deve ter a ver com sexo.
– E agora me diga como o senhor chegou a essa relação maluca entre sexo e
morte.
– Você disse que por não ter ligação morrerá aos 21 anos. Então aqueles que
possuem ligação devem realizar certo ato até essa idade para assim salvarem suas
vidas. Eu imagino que esse ato seja a reprodução.
– Ou esse cara é um gênio ou você deixou isso explícito demais na sua
explicação, Nhanha. Ele encaixou as peças rapidamente.
– Você está certo. Cada construtor já nasce com sua alma ligada a de outro.
O gênio também possui outra metade. Tradicionalmente é aos 20 anos, com o
término da escola, que os magos realizam uma cerimônia para encontrar onde
estão as almas gêmeas e os gênios gêmeos. O par deve ter um filho, que nascerá
nove meses depois. É somente com o nascimento do filho que o casal se salva.
O filho deverá nascer antes que ambos completem 21 anos, pois somente com o
despertar do terceiro gênio o ciclo da vida se completa.
– Que romântico e trágico. E se a moça perder o bebê por algum motivo?
– Para evitar isso, eles incentivam que a ligação já se inicie na adolescência.
Ou melhor, isso não é proibido. Só que é difícil encontrar sua ligação sem o
auxílio dos magos e a maioria tem vergonha de procurar isso muito cedo. Isso
porque os rapazes e as moças vivem meio distantes antes dos 21. Não temos
escolas mistas, exatamente para evitar paixões acidentais que não sejam com a
ligação.

56
Fábula dos Gênios

– Não tenho certeza se entendi essa parte. Caso um construtor se apaixone


por outra pessoa que não seja sua ligação, ele não pode apenas ter o filho com a
ligação para salvar sua vida e viver com a pessoa que ama?
– Isso não é possível, pois se um construtor possui certo grau de
aproximação com outra pessoa que não seja sua ligação, ele morre.
– Mas isso é terrível!
– Por isso existem leis que impedem que menores de 21 permaneçam
sozinhos com alguém do sexo oposto. Quando há contato entre garotos e
garotas deve haver mais gente ao redor.
– Pessoas do mesmo sexo não morrem com esse contato?
– Não, então eles podem se amar mesmo sem existir a ligação. Antigamente
existia o costume de conhecermos quem era nossa ligação desde pequenos. Mas
isso era bastante desconfortável, pois deixava de ser algo natural. Não que essa
revelação súbita seja mais natural, talvez seja até pior. Pode ser que nem se
conheçam e tenham que se amar. Todas as opções parecem ruins, mas é assim
que nossa sociedade funciona. Nós não temos soluções perfeitas.
– E agora, se me permite a ousadia, gostaria de saber exatamente que tipo de
contato gera a morte. Somente o ato sexual em si?
– Há dois tipos de contatos perigosos. O primeiro é o beijo, já que o gênio
sai pela boca. Existem casos de morte somente pelo beijo, mas ele já é suficiente
para colocar a pessoa em risco grave, se não for urgentemente tratada. O
segundo é o sexo, que gera morte imediata caso não seja com a ligação. Você
tinha me questionado anteriormente sobre o que acontece se a mulher perde o
bebê. O contato do casal pode estender um pouco o tempo de vida em alguns
meses ou poucos anos para que tentem ter um filho outra vez. Mas isso não
pode ser estendido demais.
– Essa história que você me contou é bem triste, mas tem um pouco de
beleza. Fale–me mais sobre o seu caso.
– Não há mais o que falar. Morrerei aos 21 porque sou um dos casos raros
que nascem sem ligação. Simples assim. É como se eu tivesse nascido sem uma
perna ou um braço; ou, mais especificamente, com uma doença que me matará
em breve.
– Devo dar alguma advertência para que seus colegas do sexo masculino
evitem se aproximar de você?
– Acho melhor não. Isso vai deixar as pessoas curiosas e intrigadas. Não se
preocupe, professor, ninguém beija outra de repente, isso é coisa de filme. Eu
acho...
– Creio que agora minhas perguntas tenham terminado. Os construtores são
realmente um povo fascinante. É lamentável que essa tragédia tenha ocorrido.
Ficarei mais do que satisfeito em ajudá–la na sua vingança contra os

57
Wanju Duli

destruidores, embora eu não nutra nenhum rancor pessoal contra eles. Apenas
simpatizei com sua causa.
– Obrigada.
Poucos meses depois, completei 12 anos. E nesse dia me recordei que se
não fossem os malditos destruidores, em mais um ano eu seria admitida numa
das maravilhosas escolas do meu país, para estudar o Grimório dos Gênios.
Afinal, seria complicadíssimo de usar essa magia sem nenhuma orientação.
Somente o acesso ao livro poderia não bastar.
Eu ainda não tinha feito amizades consistentes. Somente cumprimentava
meus colegas. Meu professor havia me recomendado fazer amizades com os
melhores da turma para formarmos um time forte no futuro. Então resolvi
começar por aí.
Procurei na lista de notas e observei o 1º e o 2º lugar da minha classe. Com
desagrado, descobri que a garota em 1º era uma das mais insuportáveis da minha
turma: sempre cheia de si e depreciando os outros. Por isso, resolvi falar com a
mocinha número 2: Miide, que era bastante simpática.
Eu não ligava para quem tirava a nota mais alta, já que minhas próprias
notas estavam entre as mais baixas da turma, mesmo com as aulas particulares.
Eu só tinha aquelas aulas para agradar aquele professor e também só faria
amizade com Miide para agradá–lo. Tudo pelos grimórios.
– Miide, estará ocupada hoje à tarde? Será que podia me ajudar com o
trabalho de selos aplicados à divinação?
– Não estarei ocupada. Posso ajudá–la, é claro.
Não foi difícil fazer amizade com ela, já que ela era educada e prestativa com
todos. Logo ela me apresentou a mais duas amigas: Racan e Gelei.
Durante o ano que se seguiu, foi com elas que mais conversei.
– Eu já ouvi falar dos construtores, mas sei pouco a respeito. Os livros
dizem que a magia de seu povo é extraordinária.
– A cor do seu cabelo é linda. Que tipo de magia usou para torná–lo assim?
Racan era muito bonita e graciosa. Notei que minhas sobrancelhas também
se tornaram cor–de–rosa. Aquilo era um sinal de que a cor já estava em mim.
Eu me perguntava por quanto tempo ainda duraria.
– Não vejo a hora de ter seios como as garotas mais velhas. Vocês já ficaram
menstruadas?
Gelei era muito divertida e meio atrevida. Eu gostava da ousadia dela. Não
era tão bonita e ia muito mal nos estudos, mas sua magia tinha um atrativo
especial: era sincera, espontânea, cheia de vida.
Era incrível como era possível captar a personalidade do operante através de
suas práticas mágicas. Miide traçava seus selos com todo o cuidado, com folha
quadriculada, esquadro e compasso. Realizava cálculos precisos e tudo saía

58
Fábula dos Gênios

milimetricamente perfeito. O resultado era uma magia lenta, mas com resultados
exatos, até previsíveis. Ela gostava que fosse assim.
Os selos de Racan também eram caprichados, mas mais cheios de fru–frus.
Ela adicionava mais criatividade e beleza neles. Enquanto Miide preocupava–se
mais com o resultado prático, Racan queria montar um quadro lindo com seu
selo, preocupando–se mais com a questão estética do que com a precisão.
Embora os selos de Gelei não fossem nem bonitos e nem precisos, eles
tinham um elemento surpresa: de acordo com o estado emocional dela, geravam
resultados diferentes e isso era muito divertido. Nem Miide que era tão aplicada
era capaz de fazer com que suas emoções tivessem aquele grau de influência.
Mas na verdade ela não desejava que isso ocorresse, já que lhe agradava manter
as coisas sob seu controle.
Ora, eu adoraria que meus selos fossem precisos, belos ou tivessem
elementos surpresa de acordo com meus sentimentos. Mas não era assim que
acontecia.
Para começar, a cadeira de rodas atrapalhava tudo. Em batalhas mágicas, as
garotas se moviam agilmente, traçando um selo de proteção no chão ao redor de
si e diversos outros selos no ar para ataque. Eu tinha dificuldade em me mover
como elas, principalmente para definir um selo ao meu redor. Dessa forma, eu
me tornava um alvo fácil para ataques e não podia me concentrar nas outras
magias.
Já que eu não era capaz de dominar o selo 2D no chão, concluí que minha
única opção seria me fortalecer nos selos em 3D. Era minha única escolha, já
que aquela escola não ensinava nada sobre selos a partir de 4D. Esse
conhecimento eu só poderia alcançar no GG e principalmente no GGM.
Eu ainda não entendia ao certo como era a minha magia. Eu conseguia
enxergar com clareza a forma com que os selos das garotas se adequavam
perfeitamente às suas personalidades, mas não conseguia notar isso em mim
mesma.
Qual era minha personalidade? Eu possuía algo assim? Desde o começo, por
não ter ligação, eu me sentia diferente dos outros. E confinada a uma cadeira,
até meus selos saíam tortos e imprecisos. Isso afetava meu aspecto emocional e
enchia meu coração de insegurança, o que gerava consequentes erros no meu
trabalho.
– Seus selos são bonitinhos.
– Criativos.
Era mais ou menos isso o que elas diziam quando eu perguntava a respeito.
As respostas me desapontavam um pouco, pois soavam como uma tentativa
educada de me dizer que meus selos não tinham muitos atrativos que os
destacassem.

59
Wanju Duli

Durante o ano letivo, eu tinha distrações o suficiente para me entreter,


principalmente com aquelas provas difíceis, que não eram necessariamente
divertidas. Mas quando completei 13 anos, eu chorei.
Eu devia estar feliz, pois era meu aniversário. Estava estudando e tinha
amigas.
– Nhahia, você está bem?
Elas vieram me ajudar. Não quis ser indelicada. Na verdade fui tão educada
para esclarecer a situação que acabei contando muitas coisas sobre meu passado.
Mencionei sobre os destruidores que assassinaram a todos. Mas eu nada disse
sobre o fato de ter poucos anos de vida pela frente por não possuir uma ligação.
Elas nada sabiam sobre as complicadas ligações de almas e gênios do meu povo.
– Você tem um gênio, isso é incrível! A magia dos gênios é fantástica. Eu
também adoraria ter acesso ao Grimório dos Gênios um dia.
– Todos me amam. E eu nem preciso fazer nada para isso, nem mesmo
aparecer.
– Você pretende um dia voltar para sua terra natal e atacar os destruidores?
– Farei isso ou morrerei tentando. Não tenho intenção de exterminá–los,
pois mesmo se eu reunisse muitos magistas fortes para me acompanhar, eu não
conseguiria, pois eles são muito poderosos. Mas se eu for capaz de matar um ou
dois deles já irei fazê–los pagar. Para mim valerá mais o simbolismo desse ato.
– Por isso você quer os grimórios e irá viajar pelos continentes para reunir as
páginas. Soa como uma aventura e tanto. Pretende se formar antes de ir?
– Não pretendo que seja uma aventura divertida, pois é uma jornada com
objetivos pouco nobres, com cicatrizes profundas. É algo sério. Devo partir aos
meus 17 ou 18 anos quando concluir a escola.
Pensei que elas iam se oferecer para me acompanhar, mas isso não
aconteceu. Provavelmente elas ficaram desapontadas comigo, ao saber que a
amiga delas desejava virar uma assassina.
Decidi que não me importaria com o que elas pensassem a respeito. Eu
tinha meu próprio caminho.
E os anos se passaram. Até que eu completei meus 17 e fitei minha face no
espelho com muito orgulho. Eu estava no meu último ano e ainda teria testes
finais pela frente antes de receber meu diploma. Eu estava decidida a ser
aprovada em todos eles.
Eu não usava mais chiquinhas nos cabelos, pois decidi que desejava uma
aparência mais madura para minha idade. Por isso, passei a deixar os cabelos
soltos ou eventualmente prendê–lo num único rabo de cavalo alto, às vezes
atrás ou de lado.
Meus cabelos estavam bem longos. Eu me perguntava se um dia eu iria
alcançar o comprimento dos belíssimos cabelos ondulados de Bilubelei. Mas

60
Fábula dos Gênios

provavelmente eu iria cortar chanel antes que isso acontecesse. Possivelmente


eu faria isso quando a tintura rosa começasse a sair.
Dos meus 13 aos 17 houve uma enorme mudança. Antigamente eu me
enfeitava pouco. Usava no máximo brincos discretos de pedrinhas, brilho nos
lábios, presilhas coloridas nos cabelos, pulseiras felizes de bichinhos. Em suma,
eu era mais infantil e fofinha.
Aos 17, tudo isso mudou. Eu tratava muito bem dos meus cabelos para que
ficassem sempre brilhosos e perfeitos. Usava brincos extravagantes de argola ou
outro modelo exótico. Mas quando eu os usasse juntamente com um colar, os
brincos precisavam ser mais discretos para haver uma harmonia. Mesma coisa
em relação à maquiagem: quando eu delineasse os olhos de negro ou colocasse
uma sombra de cor escura, o batom precisava ser de cor suave. Quando eu
usasse batom em tom vermelho ou bordô, a maquiagem dos olhos tinha que ser
leve.
Tudo isso eu aprendia nas revistas de moda que eu e as garotas devorávamos
com avidez. Assim eu sempre ficava por dentro das novas tendências. Sabia que
era preciso dar atenção especial às unhas, escolhendo a cor de esmalte adequada
para a estação, além de decorar os pulsos com pulseiras de tecido e os dedos
com um anelzinho.
E não era só isso. Havia as magias! Feitiços de beleza, em especial. Não era
raro nos trancarmos nas salas de química para testar a produção dos melhores
perfumes. Alquimia, no melhor estilo. E era óbvio que utilizávamos a magia
simbólica para acrescentar atrativos adicionais.
Tínhamos um caderninho de desenvolvimento de selos mágicos, no qual
misturávamos alfabetos místicos com a geometria, tendo como fim obtermos
selos ideais para os objetivos que precisávamos. Por fim, realizávamos um ritual
elaborado misturando isso tudo. Era curioso como retirávamos uma montanha
de livros na biblioteca quando era um assunto que nos interessava... subitamente
aquele monte de livros chatos se tornavam tão interessantes!
– Precisamos verificar o alinhamento das estrelas para selecionar o horário
ideal do ritual. Já marquei as constelações correspondentes na carta celeste.
– Também é imprescindível vestirmos as túnicas maravilhosas que
obtivemos, com os detalhes em branco e vinho, perfeitas para a ocasião desse
ritual auspicioso.
A própria Racan havia desenhado os modelos, acrescentando inscrições nas
mangas. Ultimamente ela estava se tornando minha amiga mais próxima. Era
triste pensar que em breve iríamos nos separar, quando eu partisse em minha
jornada.

61
Wanju Duli

– Eu detesto mortalmente esse uniforme ridículo do colégio. Se não fosse


por ele, poderíamos nos enfeitar ainda mais com modelitos arrepiantes. Que
raios significa o “320” no nosso uniforme, afinal?
– Você vai se formar sem saber disso, querida? Permita–me te dar uma
aulinha, então. Você sabe por que nossa instituição é chamada Escola Selo de
Oles?
– Não sei o que “Oles” significa”.
– É “selo” ao contrário, óbvio, amiga! Eu sinceramente esperava algo mais
criativo e profundo de uma instituição tão renomada de simbologia! Os
fundadores provavelmente tiveram senso de humor, principalmente na hora de
bolar o uniforme. 320 é uma abreviatura de ESO. Percebe como o “3” se parece
com um “E” e assim por diante? É, eu sei garotas, ninguém merece!
– Nhanha, você está assustadora ultimamente. Nem te reconheço mais. Vai
mesmo voltar para nossa terra natal e matar os destruidores com seu novo
modelito ou não vai fazer isso para não quebrar as unhas?
– Fica quietinho, meu amor. Não, docinhos, não falei isso para vocês e sim
para o to–li–nho do meu gênio petulante.
– Você vai falar assim para os destruidores também? Que medo, acho que
até eles ficarão apavorados. E isso não é uma ironia.
– Para qual universidade irão quando se formarem, meninas? Pretendo
enviar meu currículo para a UD.
– Que é a UD?
– A melhor de nosso país: Universidade Dimensional.
– Oh, uau! Eles ensinam a magia com selos em 3D?
– Certamente.
– E 4D?
– Creio que não.
Sendo a melhor universidade do país e focada na minha área de interesse, foi
inevitável que meu coração batesse mais forte, desejando entrar lá.
Mas... eu não podia! Não queria pensar em universidades. Eu deixaria para
filosofar sobre o assunto se eu terminasse minha aventura viva. Era uma grande
sorte que naquele país os estudantes entrassem na universidade mais cedo, pois
assim era possível que eu ainda tivesse chance de cursar o começo. Seria
recompensador.
– Eu adoraria cursar alguma universidade no país da magia estética. Lá eles
lidam com a magia dos cosméticos e o poder da beleza como canalizador
mágico. O rímel é sua varinha e o sapato de salto de 30 centímetros é a sua
espada cerimonial!

62
Fábula dos Gênios

– Fascinante! Aposto que teremos que lutar contra um monstro maligno


com 10 quilos de maquiagem na cara quando formos para lá pegar a próxima
página do GGM, Nhanha.
– Mas você não cala essa boca?! Perdão, Gelei, não foi com você. Eu jamais
falaria assim, pois eu sou uma dama.
– Claro que você é uma dama... vou contar a elas que você me espanca
quando não faço seus deveres de casa chatíssimos. E que coloca chicletes
mascados embaixo das cadeiras na sala de aula.
– Eu masco chicletes por sua causa, idiota. Oh, perdão, lá estou eu falando
sozinha de novo...
– Por que não apresenta para a gente seu amigo imaginário, Nhanha?
Sempre fui doidinha para vê–lo!
As outras duas também estavam curiosas, mas tive que recusar
educadamente. Como não estávamos no meu antigo mundo, não havia nenhum
tipo de proibição formal para eu esconder aquilo. Mas depois de tanto tempo, é
claro que eu não me sentia confortável.
Elas ficaram meio desapontadas com minha recusa, mas não insistiram.
– Existe algo especial nas universidades que não costuma ser organizado em
colégios. São as sociedades secretas. Na UD existem algumas famosas, por isso
mesmo quero ir para lá.
– Ei, tínhamos essa tradição no nosso país também! Havia uma universidade
muito famosa. Todos os construtores desejavam receber permissão de admissão
para ser membro.
Na ESO eu mal tinha tempo de fazer parte dos cursos de idiomas,
principalmente devido à minha ocupação com as aulas particulares insuportáveis.
Então eu imaginava que numa universidade eu não teria tempo para aquele
capricho de sociedade secreta. Ainda assim, a ideia não deixava de ser atraente.
– Estou decidida a estudar a magia estética, independente de haver
sociedades secretas por lá ou não.
– Nesse país para o qual você pretende ir, as universidades são só para
mulheres ou só para homens. Isso não é emocionante.
– Estou indo lá para estudar e não para namorar. Eu não me arrumo para os
homens e sim porque me sinto bem em estar feliz e satisfeita com minha
aparência.
– Concordo, mas como também quero buscar um companheiro para quem
sabe um dia compartilhar genes, a filosofia estética aplicada à moda pode ter
múltiplas funções úteis e não mutuamente exclusivas.
– Do que a sua colega está falando? Não estou conseguindo acompanhar
essa linha de raciocínio, estou confuso!

63
Wanju Duli

– Espere um momento, Gelei. No meu país as escolas e universidades


também não eram mistas e eram muito interessantes. Isso não tem nada a ver.
– Os rapazes lá eram bonitos? Porque os daqui são muito rudes. Eu
considero importantíssimo estar num ambiente com cavalheiros.
– Que importa? Estão todos mortos!
– E o que me diz daquele destruidor que arrancou suas pernas? Ele era
gostoso? Existe uma sensualidade especial em sujeitos malvados. Esses
destruidores devem ser deliciosos em sua crueldade, seriedade, sadismo e poder
extremo. Só de pensar, fico louca.
Eu não esperava ouvir aquilo. Fiquei até sem fala. Bapsi percebeu que eu
tinha me ofendido com o que ela disse.
– Controle–se, Nhanha. Não exploda.
– Eles são assassinos. Eliminaram meu povo a sangue frio. Venderam suas
almas e corações que foram devorados pelos gênios malignos, em troca de
poder absoluto. Sua pergunta é estúpida e me aborrece enormemente. Quanta
ignorância!
As três se entreolharam. Elas sentiram minha raiva, exposta com clareza em
minhas palavras odiosas.
– Perdão, Nhanha. Não pretendia ofendê–la. Foi uma brincadeira.
– Uma brincadeira ridícula! O que você disse não faz sentido algum!
Primeiro falou que queria estar num ambiente com cavalheiros. Agora já está
dizendo que gosta de caras sádicos? Que... maldição horrenda é essa que tem na
sua língua?
– Calma, Nhanha! Nossa...!
– E você não se meta!
– Não há nenhuma contradição. Eu quero namorar um cara gentil, mas nem
por isso deixa de ser prazeroso fantasiar um destruidor assassino e gostosão.
– Eu desisto! Vá se ferrar. Suas palavras me dão vontade de arrastá–la
comigo no dia que eu for lá, apenas para entregar o seu corpo aos destruidores,
para que arranquem sua alma e a destrocem! Quero ver se você vai gostar.
E com essas palavras arrastei as rodas com força e sumi de lá. Fui até um
banheiro distante lavar o rosto, pois aquela discussão me tirou completamente
do sério.
– Eu nunca te vi desse jeito antes. Que deu em você?
– Eu não sei. Mas ainda sinto a fúria em mim. Preciso concluir logo os
últimos testes e realizar o ato a que minha vida está destinada.
Fitei no espelho minha maquiagem borrada. Meu rosto se converteu numa
careta.
– Maldição, não...!

64
Fábula dos Gênios

Derramei lágrimas de fúria. Soquei a pia repetidas vezes, até minhas mãos
ficarem vermelhas. Apertei os dedos contra a cabeça. Eu estava pirando.
Aquele maldito...! Ele tinha arrancado minhas pernas. Onde ele estava
naquele momento? Que se ralassem todas as páginas de qualquer grimório. Eu
precisava matá–lo imediatamente. Compraria uma arma potente, qualquer coisa
de alta tecnologia serviria, já que a tecnologia deles era absurdamente atrasada.
Mas... ao pensar naquilo, meu coração gelou, preenchendo–se de medo.
Aquele cara estava morto, certo? Eram poucos destruidores crianças que
sobreviviam, pois a vida deles era um campo de guerra uns contra os outros,
matando–se, devorando–se. É claro que o sujeito que arrancou minhas pernas
tinha morrido. A possibilidade de ele ainda estar vivo era extremamente baixa.
Mas pensando bem, aquele maldito era forte demais para uma criança. Ele
devia ter quase o poder de um adulto. Provavelmente tinha matado outras
crianças até se tornar muito bom nisso. E milagrosamente sobreviveu.
– Bapsi!!
– Sim?!
Ele se assustou com meu chamado súbito.
– Aquele desgraçado miserável ainda tá vivo?!
– Como vou saber?!
– Você sabe, Bapsi. Você é um gênio. Não me desaponte!
– Eu não posso te responder essa pergunta, Nhanha, me desculpe.
Eu o agarrei pelo pescoço.
– Responda agora!
– Eu... não... sei!
Larguei o pescoço dele.
– Mentiroso. Você pode ler meu coração e isso significa que também tenho
acesso a uma parte de você. E, de alguma forma, eu SEI que você sabe. Mas eu
não tenho acesso à resposta se você não me disser!
– Por que ficou com raiva dele de repente? Exclusivamente dele? Você
sempre odiou os destruidores como um todo e não o cara que te ferrou.
– Não me interessa. Eu simplesmente percebi que quero matá–lo de
qualquer jeito. E para eu matá–lo, ele precisa estar vivo...!
– Você não pode voltar para lá! Dessa vez vai morrer imediatamente, assim
que pisar naquela terra. Não vai nem mesmo encontrar o sujeitinho.
– “Sujeitinho”, hã...? Ele devia ter praticamente a minha idade na época.
Agora ele é um adolescente, quase um adulto. Um adulto maldito que está
matando! Não vou permitir.
E no fundo eu sabia que meu ódio era inútil. Passei seis anos naquela escola
para quê...? Aprender a desenhar selos inúteis, comendo doces? Enquanto isso,

65
Wanju Duli

o destruidor estava treinando num campo de batalha. Não estava sentado numa
cadeira assistindo teoria; a teoria interminável sem nenhuma droga de aplicação!
O destruidor provavelmente não sabia porcaria nenhuma de matemática ou
de qualquer outro idioma cheio de firulas que não fosse seus grunhidos. E
mesmo assim, era o melhor de todos.
O povo dele era pobre, feio, acabado, bestial, selvagem, um lixo imundo.
Ainda assim, eram os magos mais famosos e poderosos de todos os tempos. E
escreveram o grimório mais destruidor que existia; se é que sabiam escrever!
Mas havia qualquer coisa naquelas páginas que era possível decifrar, nem que
fossem riscos, manchas, baba, fezes! E eu queria acesso àquela desgraça mais
que tudo no mundo. Porque eu desejava ferrá–los brutalmente.
Não. Eu precisava ser realista. Era IMPOSSÍVEL destruir os destruidores.
Mas eu queria acreditar que eu conseguiria acabar com um. E tinha que ser
aquele. Não podia ser outro. Era questão de honra.
– Então aí está você, sua perua vulgar.
Quem entrou no banheiro foi uma moça poderosa: Djam, a sempre eterna
primeira da turma, que além de continuar a ser o 1º lugar em conhecimento,
permanecia no topo da rudeza e arrogância.
Ela traçou um selo para escudo e outro de ataque. Derrubou–me da cadeira
de rodas e agarrou–me pelos cabelos.
– Jamais grite novamente daquela forma, lindinha. Você não tem o mínimo
de classe?
Ela tinha me surpreendido num mau momento. Ela pensava que era
poderosa? Eu era uma construtora. Tinha a magia dos gênios nas veias. Ela ia se
arrepender amargamente se continuasse a me maltratar.
– Sabe, eu sou muito inteligente e estudiosa. Encontrei um livro sobre
construtores e descobri facilmente seu ponto fraco. Se um homem aleatório te
beijar você morre, certo?
Ela me jogou no chão e saiu do banheiro por um momento. Voltou
segurando um aluno pela camisa e jogou–o no chão ao meu lado.
– Beije–a, seu verme! E faça com vontade.
– Quê...? Quem é você? Que é isso?
Eu quase ri diante do absurdo da situação. E teria rido se não estivesse tão
irritada. Coitado do rapaz, que não tinha nada a ver com o assunto. Ela
provavelmente tinha segurado o primeiro que passou no corredor naquele
instante.
– Ela é louca.
Resolvi dar alguma explicação para ele. Djam desistiu da isca e chutou o
aluno para fora do banheiro outra vez.
– Sabe por que estou com raiva de você?

66
Fábula dos Gênios

– Eu adoraria saber!
– Porque você é uma construtora. Os alunos daqui pensam que você é forte
só porque tem um gênio. Mas eu provarei que essa é sua maior fraqueza quando
te humilhar aqui e agora. E a escola inteira conhecerá o espetáculo. Alguns até
dizem que você é uma princesa! Essa é a maior bobagem que já ouvi.
É claro que eu não estava com medo dela. Nem me importei. Ela agia assim
com todo mundo: era um anjinho diante dos professores e pelas costas
importunava os alunos que se destacavam na menor das coisas, até pegar o
título para si.
Mas o teatrinho não durou muito. O aluno aleatório assustado devia ter
avisado alguém, pois logo o meu professor particular entrou no banheiro e a
Djam voltou a vestir sua máscara de boa aluna.
– Professor, Nhahia caiu da cadeira, tentei ajudá–la, mas ela agiu de forma
violenta!
– Eu sei, essa garota não tem jeito. Senhorita Djam, pode sair, terei uma
conversa com essa daqui.
Ela se retirou com um grande sorriso no rosto, achando que saiu triunfante
daquela. Mas quando ela já estava lá fora, o professor sorriu para mim.
– Hoje ela leva uma advertência. E você vem pra minha sala, menina gritona.
Ele parecia estar se divertindo com a situação. Se eu não o conhecesse bem,
teria ficado intrigada, mas ele provavelmente tinha tudo sob controle.
Eu já sabia qual seria o assunto: eu estava quase me formando, então a busca
pelos grimórios ia começar.
Ou não...?
– Professor, eu não quero mais saber desses grimórios. Eu quero matá–lo.
Eu estava tremendo. Ele aguardou que eu me acalmasse. Segurou no meu
ombro.
– Nhahia... quem você quer matar? Me diga.
– O destruidor que me aleijou.
– Você sabe que não poderá lidar com ele ainda. Precisa de mais poder.
– Mas... eu vou morrer em menos de quatro anos! Meu tempo está se
esgotando. Cansei de brincar de fazer magia nessas instituições burocráticas que
pensam que magia pode ser aprendida dessa maneira lenta e formal.
Ele manteve silêncio por um momento.
– Se é isso o que quer, não vou te impedir. Mas eu não posso te acompanhar
assim de mãos vazias. Eu só iria com você se tivéssemos os grimórios e um time
forte de magos.
Todos estavam me desapontando. O professor em quem confiei me deixou
na mão. Minhas três amigas só falavam besteira.

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Wanju Duli

Ninguém podia compreender a minha dor. Somente eu e Bapsi. E todos os


outros construtores, que já estavam mortos.
– Você tem certeza que todos os seus amigos morreram?
– A MEP não era suficiente para protegê–los. E mesmo se algum deles tiver
sobrevivido, sem a ligação também morrerão aos 21, como eu.
– Não é tempo suficiente para se vingarem dos destruidores?
– Se sobrou alguém vivo, não tenho como encontrá–los. É impossível.
Aquela conversa não levaria a nada. Eu queria acabar com isso, antes mesmo
de iniciar uma jornada inútil em busca das páginas perdidas. Os dois grimórios
completos estavam na minha antiga terra, que agora era morada dos
destruidores. Então seria para lá que eu iria.
Eu não tinha mais medo. Eu não tinha mais nada a perder.
Quando saí da sala, encontrei Miide, Racan e Gelei esperando por mim.
Achei que elas estariam irritadas comigo. Mas elas me fitaram de forma estranha.
– Nhanha, é verdade o que a Djam disse? Você vai morrer se um cara te
beijar?
Até aquela pergunta me irritou.
– Eu não ligo para isso! Essa é minha menor preocupação no momento.
Eu não queria dar a elas esclarecimentos. Também decidi não contar que eu
tinha apenas mais poucos anos de vida. Não queria que elas sentissem pena de
mim. Era a última coisa que eu precisava.
Quando fugi daquele corredor, Bapsi notou algo peculiar em mim.
– Quer saber o que estou vendo daqui de cima?
– Não me incomode.
– A raiz dos seus cabelos está negra.
Eu levei um susto. Peguei um espelho na mochila e confirmei. Minha alegria
não poderia ser maior. Será que minha fúria tinha despertado aquilo?
– Se eu não puder matar aquele destruidor miserável com essa magia, nada
mais o fará. Eu vou entrar lá, roubar os grimórios e matar o maldito. Lerei tudo
e dominarei as magias. Depois voltarei para assassinar os destruidores que
mataram meus amigos. E vou continuar matando mais destruidores até que eu
morra naturalmente ou me matem.
– Você está muito confiante. Essa é uma magia desgastada que nem
sabemos se funcionará.
– Vai sim. Por garantia, eu vou roubar aquelas páginas da bruxa da
montanha e a página do meu professor antes de partir. Agora eu tô possessa e
estou amando o fogo dessa fúria, que será minha arma. Nada vai me parar agora.

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Fábula dos Gênios

Capítulo 3: A Sábia dos Lábios Selados

Para mim as pessoas sempre foram uma lenda. Distantes, interessantes,


inatingíveis. Ao mesmo tempo, eu estava satisfeita em não desvendar esse
segredo.
Eu, meus livros e meus animais. Mais que uma vida; um presente cobiçado.
Passava boa parte de meu tempo nos bosques. Os animais doces e também
os terríveis ouviam meu chamado; e me acalentavam.
Cheguei a dormir entre os arbustos algumas vezes. Eu me sentia em casa,
segura, protegida.
Mas as pessoas não me deixavam dormir. Elas queriam falar. Precisavam de
suas bocas de carne, enquanto a mim bastavam os ouvidos da natureza e minha
pele que sentia a liberdade.
“Ela está perdida de novo; assim tão perdida”.
A verdade é que eu me sentia perdida entre as pessoas. Como se não
soubessem viver e temessem tanto.
Eu lia. Pessoas do passado falavam da experiência de ter vivido e eu via
como os seres de todas as épocas sentiam as mesmas coisas.
“A vida é exatamente isso. Fascinante ao extremo”.
Eu entendi. Não era difícil. Se eu morresse, aceitaria com alegria.
Compreendi desde o começo que a vida era assim simples e completa. Eu era o
mundo inteiro. O abreviar da minha existência nunca seria o final de tudo. E o
fim do universo somente marcaria o compasso da nova respiração, antes do
adormecer. Mais estrelas pela manhã.
Sempre mais estrelas.
Eu sentia isso na natureza do presente. Eu confirmava nos livros escritos
por tantas mentes pensadoras.
Enquanto isso, as pessoas continuavam confusas. Elas estavam perdidas
porque não paravam para cheirar uma flor ou para contemplar o mar de estrelas
brilhantes. E, sobretudo, se você não lê como poderá entender? Se não conhece
sua história, o seu legado. Aquilo que foi cantado no passado, prenúncio das
mentes do futuro.
O presente está repleto de pedaços do passado, recombinados,
reconstruídos, recortados.
Eu montei as peças desse simpático quebra–cabeça. E sorri com o que meus
olhos contemplaram.
“Não se aproxime dessa menina. Ela é estranha”. Todos me consideravam
esquisita; um mistério. Mas eles não sabiam que eles eram os esquisitos. A vida

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Wanju Duli

nunca teve segredos. O vento cantava e contava. Eu apenas contemplava o céu


e devorava a tinta das páginas de papel.
Aos olhos dos outros, eu era uma garota problemática que mal falava.
Apenas permanecia enrolada com bichos e grama, quase uma selvagem. Elevava
um livro para o céu em minhas mãos e lia as páginas preenchidas por folhas de
árvores.
– Você é engraçada. Eu gosto da sua meia–calça colorida.
Levantei os olhos. Eu tinha visto aquela criança uma vez. Ela estendeu a
mão para mim.
– As meninas estão brincando de roda. Vem juntar–se a nós?
Eu fiz que não.
– Então fico com você.
Ela deitou–se na grama logo ao lado e espiou o que eu lia.
– Por que você lê esses livros grossos e difíceis que foram escritos para os
adultos?
– Porque os livros para crianças são muito simples, embora mágicos.
– Você é muito inteligente. Os sábios dizem que você compreende a vida
como poucos e será uma grande maga.
– Eu não quero ser uma maga.
– Por que não?
– Porque eu não tenho nenhuma magia para fazer. Acho que a vida é
perfeita como está. E será perfeita quando terminar também.
Ela sorriu quando eu disse isso.
– Você é realmente incrível!
E permaneceu ao meu lado pelos minutos seguintes, em silêncio, brincando
com uma folhinha entre os dedos. Eu voltei a ler.
– Sabe, existem muitos tipos de magia. Existe aquela para se harmonizar
com o ritmo da natureza ou para cantar sobre o mundo por poemas e histórias.
Magia não é apenas lançar bolas de fogo por cajados.
– Sei disso. Gosto da ideia da vida como a própria magia; eu mesma sendo a
magia e respirando–a. Nesse caso, como eu poderia já não estar satisfeita? Eu
busco o conhecimento, mas não como alguém que deseja agarrá–lo a qualquer
custo para se salvar. Eu o busco como quem atira um novelo de lã para um
gatinho e delicia–se ao observá–lo se enrolar com ele.
– Você me derrotou completamente. Assim fico sem palavras. Você é tão
esperta quanto dizem.
– Eu não leio para ser esperta. Leio porque respiro. Somos todos grãos de
areia do mundo, mas cada grãozinho é importante e precioso. O vento o sopra
para onde convém. Resta maravilhar–me com a viagem.
– Deseja ser uma viajante?

70
Fábula dos Gênios

Eu fechei os olhos por um instante.


– Quem sabe? Se for o que o destino me reserva, irei abraçá–lo com alegria.
A ideia de destino foi o que me levou até a magia pura. No meu mundo a
magia geralmente era dividida em vários ramos, cores, tipos, e cada escola
especializava–se em porções dela.
A magia pura eram os fundamentos da magia. O estudo do esqueleto das
práticas mágicas, que poderia envolver áreas como filosofia e matemática. Mas
eu não tinha a intenção de desnudar a magia, principalmente porque a maior
parte dos magos tinham interesse na magia aplicada, a prática em si.
Ainda assim, aqueles que não compreendiam a magia pura poderiam ser
vistos como marionetes do destino, bonecos que simplesmente faziam magia e
não compreendiam que era aquilo e de onde vinha.
Os adeptos da magia pura criticavam os da magia aplicada com esse tipo de
argumento: alegando que os magos práticos apenas olhavam as horas num
relógio e aceitavam o funcionamento dele pela fé, enquanto os adeptos da magia
pura estudavam o mecanismo das engrenagens do relógio e eram capazes de
construir modelos novos.
O nosso mundo era tão famoso pelo estudo profundo dos fundamentos
mágicos e construção de novos sistemas, que somos conhecidos por
“construtores”.
Eu me divertia com a ideia de destino, porque os tolos dizem que a magia
serve para que possamos construir nossos próprios caminhos de acordo com a
vontade. Mas, em verdade, no momento em que aceitamos que a natureza não
existe para ser manipulada por nós quando e como desejamos, inclusive por nos
faltar a sabedoria e compreensão do todo para fazê–lo, nos tornamos mais
conectados com o universo. Aprendemos nosso papel como engrenagens do
relógio, com o intuito de manter o funcionamento das fronteiras do espaço e do
tempo. Penetramos nas dimensões e somos apresentados a múltiplos destinos.
Aprendemos que o livre–arbítrio é como uma borboleta em eterna
transformação que sempre escorrega de nossos dedos; e que a tentativa de ter o
controle é um mero capricho dos seres humanos, em seu desejo de serem
independentes e heróis.
Somos dependentes do todo e isso é maravilhoso. O ciclo da vida é uma
cadeia complexa e interconectada. Animais e plantas trocam gases um com o
outro. Animais devoram plantas e outros animais; os microorganismos os
devoram. As plantas sugam isso tudo pelas raízes. É assim mágico.
Magia pura.
Os professores se esforçavam para explicar isso nas escolas, mas algumas
vezes nem eles mesmos sabiam o que diziam.

71
Wanju Duli

– Nossos antepassados construíram os sistemas mágicos mais sublimes e os


lacraram nas páginas de poderosos grimórios. Os destruidores acabaram com
isso tudo. Porque só sabem pilhar e destruir, dando fim à criação.
Isso é uma grande mentira. As pessoas precisam entender que para haver a
criação antes é preciso acontecer a destruição: do velho, para dar lugar ao novo.
Descartar velhos dogmas desnecessários, mantendo somente o que ainda
funciona. E, a partir daí, respirar os novos ares, para dar continuidade ao ciclo
de vibração e movimento da existência.
Os destruidores entenderam isso. Por isso a magia deles era mais poderosa
que qualquer outra: porque os outros somente faziam velhos remendos das
magias já existentes e as usavam com base nas fórmulas antigas, já desgastadas.
Até os construtores seguiam os paradigmas enferrujados.
Por isso eu sempre admirei as histórias sobre os destruidores que eu lia nos
livros. As pessoas diziam que eles não passavam de asssassinos selvagens e
bárbaros, mas eu sabia que não. Por trás de tudo aquilo, residia uma disciplina
fabulosa da mente e do corpo que era refletida no espírito.
A alquimia dos gênios malignos, que devoravam partes da alma e do coração.
A maioria julgava isso terrível, mas foi a operação que salvou a vida dos
destruidores. A partir daí, eles não precisavam mais de ar para respirar ou de
comida para manter o corpo a funcionar; não da mesma forma que
compreendemos.
O sistema ético deles era muito complicado. Para nós eles eram os caras
maus, porque nos matavam. Mas as coisas não são assim tão simples. Na época
eu achava que eu também nao entendia por ser apenas uma criança. Mas era
muito mais que isso.
O GGM guardava todos esses mistérios. Eu queria ler esse grimório.
– Você quer um gênio maligno? Pretende me trocar por ele?
– Não, Iopera. Eu queria apenas ler, para ver o que acontece com meus
sentimentos no instante da leitura.
– Essa sua paixão por livros é tão intensa que pode até se sentir tentada a
realizar o processo completo.
– Não tenho certeza. Antes disso, quero arrumar um jeito de ter acesso ao
GG. Eu tenho um plano.
– Não me diga que pretende fazer algo ilegal de novo! Essa sua mania de
roubar livros já passou dos limites.
No meu país, livros não era algo que se encontrava facilmente disponível em
bibliotecas. Eram artigos muito caros, especialmente grimórios. Eu surrupiava
alguns, principalmente porque para comprar certos volumes era necessário ser
maior de idade. Algumas vezes era mais fácil comprar uma bebida alcoólica do
que um grimório de magia avançada. Afinal, uma magia muito poderosa nas

72
Fábula dos Gênios

mãos de magistas inexperientes podia gerar mortes acidentais, além de que


certas operações causavam dependência física, mental e psíquica, já que
causavam uma impressão muito forte nos sentidos físicos e espirituais.
Por outro lado, cinema era de graça. Poucos construtores iam assistir a
filmes com frequência, principalmente porque quando algo é de graça as pessoas
pensam que não precisam ter urgência em fazer, já que estará sempre disponível.
Já quando se paga por algo, existe o desejo de desfrutar completamente daquilo
que se pagou.
Por isso, até quando se tratavam de grimórios simples havia um preço
simbólico por eles. Para que as pessoas compreendessem a seriedade do material
e não o utilizassem levianamente.
O exemplo extremo era o Grimório dos Gênios. O governo possuía muito
controle para saber quem tinha acesso a ele. Até os estudantes de magia maiores
de 13 anos de nossas escolas precisavam assinar um termo de compromisso
antes de começar a utilizar o grimório.
– Mera!
Nhahia sempre pulava contente quando conseguia realizar aqueles feitiços
simples do nosso colégio do ensino fundamental. Era só embaralhar letras e
números para obter certo resultado...
Eu queria ter acesso a magias que exigiam mais que dois neurônios para
realizar. Além de intelectualmente estimulante, um sistema com um fundamento
filosófico muito forte prometia resultados espetaculares.
Então, naquela madrugada eu invadi o palácio real.
– Longe demais?
– Silêncio!
Se eu estava indo longe demais com esse ato, eu não me importava. Minha
vontade era maior.
Eu já sabia feitiços o suficiente para passar pelas primeiras barreiras que
protegiam o palácio. Contudo, nem mesmo consegui atravessar o jardim. Fui
flagrada antes.
Achei que iriam simplesmente me colocar para fora. Mas ao saber que foi
uma criança quem entrou, o príncipe exigiu ver quem era.
Eu nunca tinha visto o príncipe pessoalmente. Mas ele não me fitava de
cima. Estava curioso.
– Bilubelei, a Sábia dos Lábios Selados. Aquela que domina a língua dos
livros e dos animais. Devo dizer que é uma honra recebê–la em minha
residência. Mas teria ficado mais satisfeito se tivesse requisitado minha presença
pela porta da frente.
Ele até sabia o meu nome. O que ele disse me incomodou um pouco.

73
Wanju Duli

– Vossa Alteza Real, perdão pela rudeza, mas não vim até aqui procurando
pelo senhor.
– Bem sei. A senhorita buscava o GG, como muitos outros antes, que
falharam nessa empreitada. Talvez você pense que a magia se encontra nos
livros, mas eu te digo: ela se encontra no coração das pessoas. Acalme um
pouco essa sua sede pelas páginas de papel buscando a sabedoria no contato
com os seres humanos. Não importa o quanto leia, não encontrará o que
procura enquanto mantiver–se vagando pelas florestas.
– V.A.R, nada mais procuro. Mas enquanto essas pernas continuarem a
caminhar e esse coração permanecer em meu peito a bombear meu sangue,
devo fazer algo de valor com essa existência.
– Pois faça um favor a si mesma e não pule etapas de sua vida. Aos 13
receberá permissão especial de acesso a uma de nossas cópias do GG, em uma
de nossas escolas. Por que a pressa?
– E se os destruidores nos matarem antes disso?
– Apenas sinta–se grata por ter sido assassinada pelos magistas mais
poderosos que esse mundo já conheceu.
– Vossa Alteza, isso não é correto de ser dito pelo príncipe.
– Sei bem que tenho como dever proteger nosso povo. Mas, antes de
sermos os construtores, somos seres humanos. E cada ser humano tem tanto
direito a respirar como eu.
E, ao retrucar as palavras do guarda, o príncipe retirou–se. Eu fui conduzida
pelo guarda até a saída.
– Satisfeita?
– Bem pouco.
Mas aquele discurso do príncipe sobre contatos com outros seres humanos
fez–me tomar uma decisão.
No fim da aula do dia seguinte, comuniquei a ela.
– Nhahia. Desejo que torne–se minha contraparte.
Ela fitou–me completamente surpresa quando requisitei isso.
– Essa é uma magia antiga e importante. Significa que estamos destinadas a
sermos a melhor amiga da outra pelo resto de nossas existências! Por que você,
que sempre manteve–se afastada dos seres humanos, escolheu a mim?
– Porque você foi a primeira a ousar se aproximar.
Realizamos a cerimônia no bosque, no local em que nos conhecemos.
Primeiramente, permanecemos uma diante da outra fitando–nos firmemente.
Isso porque era pelo olhar que podíamos enxergar a alma. Não era correto uma
pessoa encarar a outra por tempo demasiado devido a esse motivo.
A seguir, afastamos os lábios e aproximamos as bocas. Não era um beijo.
Isso era feito para que os gênios pudessem contemplar–se ligeiramente. Embora

74
Fábula dos Gênios

um beijo entre pessoas do mesmo sexo não fosse nos matar, nos deixaria
ligeiramente tontas. Então não era recomendado que houvesse o beijo. Até
porque, pela tradição, só era preciso uma troca de olhares rápida entre gênios.
Não era para que se enrolassem ou nada parecido.
Depois que nos separamos e eu estava só novamente, senti–me estranha.
– Fico feliz que tenha escolhido uma contraparte. Assim não permanecerá
tão sozinha.
– Senti apenas uma energia. Para você deve ter sido uma experiência mais
intensa. Viu o gênio dela?
– Não exatamente. Talvez fosse azul, mas não tenho certeza. Mesmo assim,
a contraparte está completa. Não poderá escolher outra melhor amiga pelo resto
da vida.
– Por que podemos escolher uma contraparte e a ligação já é definida ao
nascer?
– Porque a ligação é um processo mais sério, que define com quem
compartilhará os genes. Ao nascer sua alma já possui um potencial que se
encaixa perfeitamente com outra.
– Quem é minha ligação, Iopera?
– Já disse que não sei.
– Bem, eu não ligo. Definitivamente não me importo.
– Então por que perguntou?
– Porque sempre fui curiosa por obter novos conhecimentos.
Aquela resposta não era completamente verdadeira. Incomodava–me um
pouco o fato de eu possuir uma ligação. E perturbava–me ainda mais eu não
saber quem era essa pessoa.
Sempre prezei minha liberdade. Eu amava permanecer sozinha com a
natureza e com meus livros. Ter um estranho privando–me de meu espaço era
desconfortável.
– Você pensa assim porque ainda é uma criança. Quando crescer, terá uma
nova visão da vida. Não é você que sempre fala sobre ser conectada com o resto
do mundo? Então a sua ligação também não conterá uma parte sua, que
proporcionará sua comunhão com o todo?
– Algo assim. Tem razão, a idade me fará amadurecer. Então não preciso me
preocupar com a questão de minha ligação. Quando chegar a hora, estarei
preparada para recebê–la. Também é natural que os jovens tenham inquietação
com a questão da morte. Ora, essa inquietação é inútil. É provável que quando
envelhecermos possamos obter a sabedoria natural para lidarmos com ela. Mas...
por alguma razão eu sinto que isso não me incomoda desde agora. Por que,
Iopera?

75
Wanju Duli

– Porque você sabe que os destruidores chegarão e será inevitável aceitar


com naturalidade a perda desse pedaço de sua existência.
Somente um pedaço, nada mais. Eu só sentiria um arranhão.
Quando a hora chegou, realizei a magia do escudo prismático, uma cirurgia
nos olhos para proteger–me dos destruidores. Iopera perdeu um pedacinho,
mas não sofreu por isso.
– Já sabia que ia acontecer. O mais importante é que você estará segura.
Abracei meu gênio. Ele não entendeu meu gesto.
– Você nunca me abraçou antes.
– Estou aprendendo coisas interessantes como essa em minhas novas
amizades.
Varra também tornou–se uma grande amiga minha e de Nhahia. Mas
quando ela soube que eu e Nhanha havíamos nos tornado a contraparte uma da
outra, eu senti que isso a afastou um pouco de nós. Embora seja muito
orgulhosa, eu sabia que Varra sentiu–se um pouco solitária depois disso.
– Varra, você é uma grande amiga. Se fosse possível selar a contraparte com
três, seria feito...
– Pare, não quero ouvir. Apenas me deixe em paz.
Ela tinha uma personalidade difícil. Era uma pessoa fechada. Eu disse a ela
para buscar sua contraparte, mas ela contou que a maior parte das garotas já
tinha uma.
– Fui destinada a ficar só.
Estranhamente, havia momentos em que Nhahia também me dizia algo
semelhante. Embora as duas tivessem motivos diferentes para dizê–lo, eu sentia
que Nhanha carregava um peso dentro dela.
– Bilubelei, não posso te confirmar com certeza, mas pelo pouco que vi do
gênio de Nhahia ele possui características de um gênio sem ligação.
Senti um aperto estranho no coração quando ouvi isso.
– Se eu pudesse ceder minha ligação para ela eu o faria, pois não me importo
com isso. Será que o caso de Varra é o mesmo?
– Dificilmente, já que nascer sem ligação trata–se de uma condição rara. O
caso dela deve ser outro. Será que a ligação dela morreu?
– Ela não deve saber quem é sua ligação, assim como eu. Eu sinto que ela
apenas queria uma amiga. Tentou se aproximar de mim e de Nhahia e sentiu–se
uma estranha por sermos contraparte. Não queria que ela pensasse dessa forma.
Quanto a mim, eu estava determinada a obter o Grimório dos Gênios antes
de possuir a idade para admissão na minha escola. Pensando nisso, entrei em
contato com Cromo. Ele era o quebra–galho para qualquer tipo de situação.
Lá fui eu ligar meu velho computador.

76
Fábula dos Gênios

MOMO: O que vocês acham que eu sou? Um Deus?


BILU: Você é o ciberpirata pessoal do príncipe, não é? Então deve ter um
meio de me colocar em contato com ele.
MOMO: Oh, espere um minuto! Eu sou o cara que o protege e não aquele
que o entrega nas mãos de gente mal intencionada.
BILU: Minha intenção é das melhores!
MOMO: Roubar um dos maiores tesouros de nosso reino? Parece–me que a
senhorita está ligeiramente confusa a respeito do que é certo e errado aqui.
BILU: Só quero espiar o grimório e não roubar.
MOMO: Você está desperdiçando meu valioso tempo! Esses dias a sua
amiga Nhahia também estava me perturbando com outra questão trivial. Parem
de me importunar!
BILU: Você devia tentar ser mais agradável às vezes.
MOMO: OK, bela dama, vou te colocar em contato com Tchei.
BILU: Não tenho nada a tratar com essa pessoa.
MOMO: Ele é a contraparte do príncipe.
BILU: Você não pode estar falando sério!
MOMO: Se não confia em minha poderosa rede de informações, deve ter se
esquecido que está se dirigindo a um semideus.
BILU: Que seja. Passe–me a informação. E seja rápido.
MOMO: Por acaso pretende me pagar para que eu seja mais veloz que um
raio, como já o sou? Exijo dois códigos 60%, ouviu? Qualquer classe acima de C.
BILU: Terá tua paga. Agora que acertamos os negócios, me dá o que
comprei.

Algumas vezes era estressante ter que lidar com Cromo. Mas ele também
podia ser muito útil.

TCHEI: Alguma questão a ser tratada?


BILU: Preciso do GG. Pegue da arca do príncipe. Pago bem.
TCHEI: Você está brincando, certo?
BILU: 100% séria aqui.
TCHEI: Peça diretamente a ele. Não vou incomodá–lo com isso.
BILU: Por que todos vocês tornam a situação tão difícil?
TCHEI: Porque esse é o grimório mais poderoso para menores de 21.
BILU: Oh? Isso significa que quando entrarmos na universidade teremos
acesso a um grimório superior ao GG?
TCHEI: Eu e minha boca.
BILU: Estou adorando essa conversa. Diga–me mais.

77
Wanju Duli

TCHEI: Você é mesmo a Sábia dos Lábios Selados? Está falando demais
para ser ela!
BILU: Quais são as magias contidas nesse grimório tão secreto do qual nem
eu, que sei tudo de livros, sabia sobre a existência?
TCHEI: Não te direi uma palavra sobre o AVB.
BILU: A sua ingenuidade é tão doce que me encanta, Tchei. Por acaso é
nesse volume que se encontra a famosa magia da Inversão?
TCHEI: Raios! Vou te colocar em contato com o Wakwa, antes que eu fale
o que não devo. Conseguiu o que queria!
BILU: Oba!

Mais fácil que tirar doce de criança. Mais gracioso que usar um par de meias
de cores diferentes.

WAWA: Fui informado em tempo real que você está perturbando Deus e o
mundo atrás do GG, Bilubelei. Diga logo o que pretende.
BILU: Então o cyberdeus Momo já te atualizou com as recentes fofocas, hã?
Só digo isso: vocês são um trio de mexeriqueiros!
WAWA: Isso lá é jeito de se dirigir ao seu príncipe? Informe de uma vez a
sua questão, pois tenho outros negócios a tratar. Tipo, coisas da realeza e tal.
BILU: É claro. Em poucas palavras: eu tenho capacidade suficiente para
utilizar o Grimório dos Gênios com sabedoria antes de possuir a idade mínima
para isso. Se eu puder fazê–lo, irei ajudá–los a salvar nosso país da invasão dos
destruidores.
WAWA: É muita pretensão sua pensar que sozinha terá o poder para tanto.
BILU: Então não pretende ceder–me sequer uma página... Vossa Alteza?
WAWA: Jamais. Não pense que terá tratamento especial por causa de suas
notas ou porque tem certa fama por aí. Eu me nego a fornecer esse tipo de
favoritismo. Se quer mesmo saber, eu mesmo NÃO TENHO ACESSO ao GG.
Creio que isso encerra o assunto.

De fato, aquilo me silenciou. Se o rei não cedia acesso ao GG nem ao


príncipe, era fim de assunto.
E se eu pudesse obter uma das cópias das escolas com algum estudante?
Mas não... eles faziam um voto de não revelar o conteúdo. Aquilo era muito
sério.
Decidi não quebrar a honra do meu país e aguardar a vinda dos destruidores
apenas com o MEP. E quando eles chegaram, meu coração tremeu.
Busquei minha contraparte. Mas ela escapou por dentre meus dedos.

78
Fábula dos Gênios

– Sua melhor amiga te traiu. As palavras de Nhahia estavam repletas de


medo. Correrá em busca de sua ligação? Morrerá nos abrigos? Ou ousará
enfrentar um destruidor, entregando–se a uma dolorosa e gloriosa morte? O
perfeito suicídio, para entrar na história?
Eu não dei uma resposta. Somente senti a mais cortante sensação da minha
vida quando a Casa dos Gênios foi quebrada num estouro e os construtores
gritaram.
E eu vi a morte.
Aqueles que lá se abrigavam correram, mas os destruidores não tiveram
piedade. Figuras de capas verdes e marrons; vestes remendadas e velhas. Eles
tinham poder; mais que o inimaginável; superior ao impossível.
Eu também corria, mas minhas pernas não me sustentavam.
– Não tema, Bilubelei! Você tem os seus olhos!
– Também sinto o medo em ti, Iopera. E você sabe, assim como eu, que
esse escudo tolo só serve para me proteger de tolos. E aqueles agora diante de
mim são os desgraçados mais poderosos da história.
No caminho para qual os meus pés me levaram, encontrei Tchei.
– Que está fazendo aqui...? Onde está Wakwa?
– Ele escapou! Preciso encontrá–lo...!
Isso não foi possível. Um destruidor cruzou nosso caminho. Eu e Tchei
caímos no chão com o susto.
Era um ser pequeno. Será que enviavam os destruidores crianças para se
ocupar de assassinar os construtores infantes?
Ele agarrou imediatamente o pescoço de Tchei.
– Não...!
Eu queria salvá–lo, mas meu corpo estava paralisado.
O destruidor deu um grito fino. Seus olhos brilharam. Conforme apertava o
pescoço de Tchei, retirava de dentro de sua garganta, com a outra mão, um
gênio cor–de–rosa.
O destruidor puxou o gênio de Tchei por inteiro e devorou–o. Tchei
agonizou no chão. A criatura de vestes remendadas furou seus olhos e de lá
retirou sua alma, que puxou até se rasgar. Engoliu–a também.
Partiu o corpo de Tchei em pedaços.
Meu corpo tremia. As lágrimas escapavam de meus olhos, como água.
Aquele destruidor me atacou. Mas quando tentou furar meus olhos
vermelhos, eles pegaram fogo.
As mãos do destruidor queimaram e ele riu enquanto gritava em meio à dor
extrema.
Em meio a esse breve instante, levantei–me e corri o máximo que meus pés
podiam me sustentar. Segui tropeçando desesperadamente em meu caminho.

79
Wanju Duli

Foi então que me dei conta: “Ele está atrás do príncipe”.


Afinal, aquele destruidor não me perseguiu mais. Seguiu outro caminho. Eu
fui atrás dele.
E, de fato, ele dirigiu–se até o cemitério. Outra batalha já parecia ter sido
travada por lá, pois havia túmulos quebrados.
– Wakwa, cuidado!
Eu gritei. Mas foi tarde demais. Aquele destruidor o dominou facilmente,
jogando–se para cima do príncipe.
A MEP de Wakwa não o salvou, pois aquele destruidor já conhecia o truque.
Cegou os olhos dele imediatamente. Wakwa gritou. Contudo, agora o destruidor
não teria o poder de rasgar sua alma.
O destruidor lambeu o pescoço de Wakwa. Foi então que notei: aquele
destruidor era do sexo feminino. Era difícil notar essas coisas. Desconfiei pelos
gritos, mas tive quase certeza disso ao ver um pouco mais de sua face.
Ela seria capaz de matá–lo com um beijo. Mas ela não o fazia. Por quê...?
Em vez disso, ela acariciava o corpo dele. Isso iria drenar a energia de
Wakwa, por receber o toque de alguém do sexo oposto que não era sua ligação.
Agarrei a destruidora pela capa, tentando puxá–la de cima dele. Mas isso a
enfureceu. Ela não estava interessada em mim, somente no príncipe.
Os destruidores tinham o corpo muito fraco, por isso não poderiam nos
vencer na força bruta. Para superar esse problema, ela chamou seu gênio para
me atacar.
– Grrraaaaaahahehiaaaa!
Ela grunhiu qualquer coisa. E eu fitei o gênio mais fabuloso: era uma
criatura completamente branca e gigantesca, com uma coroa.
– Bilubelei, ela é a princesa dos destruidores.
Quando Iopera pronunciou essas palavras, eu entendi que jamais poderia
vencê–la. Bastou fitar o tamanho de seu gênio e seu porte magnífico.
Não tive escolha: convoquei meu gênio para defender–me, ou eu estaria
morta no segundo seguinte.
– Iopera!
É claro que meu gênio verde e pequeno não seria páreo para aquele
imponente monstro.
Antes que meu gênio fosse ferido, Wakwa, mesmo cego, entendeu o que se
passava e pronunciou–se:
– Neva!
Ele chamou um gênio roxo. O que se seguiu foi algo extraordinário.
A princesa dos destruidores mandou o seu gênio branco para cima de Neva.
E um gênio cor–de–rosa para atacar Iopera.

80
Fábula dos Gênios

Ela estava me atacando com o gênio de Tchei. Não haveria forma mais cruel
de me matar.
Mas aquilo que aconteceu... eu não esperava.
A princesa enrolou seu gênio junto com a própria alma. Wakwa fez o
mesmo.
– Aven!
O príncipe sabia usar magia dos destruidores. Meu queixo caiu.
Também fiquei surpresa ao ver que a princesa ainda tinha um pedaço de
alma para ser enrolado. Então seu gênio maligno ainda não tomara todo seu ser.
Os dois estavam apertando o peito quando usaram essa magia. Aquilo
consumia uma parte do coração.
E aquela princesa era tão poderosa que enquanto se concentrava numa
batalha de vida ou morte ainda teve força o suficiente para me atacar com o
gênio de Tchei.
– Dada! Adad!
Iopera foi partido ao meio.
– Nããão! DROGA!
Cobri o rosto com as mãos. Eu não queria ver.
– Eu não morri, Bilubelei! Mas eu estou morrendo... preciso da sua alma.
Iopera retornou para dentro de mim para enrolar–se em minha alma e
restabelecer suas forças. Contudo, aquele foi um golpe certeiro: a cauda de
Iopera foi cortada; através disso, eu havia perdido meu segundo desejo.
Mas eu ainda possuía minha vida. E meu desejo final no momento da morte.
Eu não permitiria que a princesa dos destruidores arrancasse isso de mim.
Ela tinha matado meu amigo, cortado sua alma e roubado seu gênio. Havia
perfurado os olhos do príncipe.
Estava na hora de fazê–la pagar.
Segurei uma enorme tora de madeira e com ela golpeei a cabeça da princesa.
Permanecia a golpear repetidas vezes o seu corpo magro. Se minha magia não
podia vencê–la, eu iria jogar sujo. Tão sujo quanto eu fosse capaz, pois salvar a
vida de Wakwa e vingar Tchei estava acima do valor da minha vida e da minha
honra.
Mas a princesa não era assim tão fraca. Ela desenrolou a alma do seu gênio e
inspirou–a. Soprou a alma para fora e com ela traçou no ar um selo
tridimensional.
Com três quadrados entrelaçados envoltos por uma frase de poder no
idioma dos destruidores, ela decepou o meu braço direito que erguia a tora.
Berrei até arranhar minha garganta.
Aquele seria meu fim. E também o final de Wakwa. Os construtores
estavam condenados.

81
Wanju Duli

Subitamente, Wakwa jogou–se por cima de mim, às cegas. Eu já estava caída


no chão. Ele apalpou a grama, buscando meu rosto.
Com as mãos trêmulas, Wakwa aproximou–se de mim e deu–me um beijo
nos lábios.
“Ele vai nos matar. Para que somente nosso corpo seja destruído e nossa
alma se salve; assim como nossos gênios”.
Contudo, algo ainda mais fabuloso aconteceu: Iopera e Neva se enrolaram.
Juntos partiram o magnífico gênio branco ao meio.
A princesa dos destruidores desmaiou e seu gênio retornou ao seu corpo,
bem como sua alma.
– Wakwa, como foi que...?
Mesmo cego, ele sorriu e segurou minha mão.
– Está feito.
A seguir, um vulto gigante tapou a luz das estrelas: um destruidor adulto.
Aquele ser tomou o corpo da princesa destruidora num braço. Com a outra
mão, agarrou o príncipe.
Eu queria mandar que aquele destruidor o soltasse, mas minha fala morreu
na minha garganta. Um destruidor adulto era algo mais terrível que meu pior
pesadelo. Eu senti que com somente um sopro ele me despedaçaria.
Por isso mantive–me ali, completamente impotente, sangrando, sem um
braço e somente com uma pequena porção de meu gênio moribundo a acalentar
minha alma.
– Salve o gênio de Tchei!
Tentei envolver nos meus braços o pequeno gênio cor–de–rosa que flutuava
perdido, mas o destruidor adulto o sugou pela boca.
– Não respire, Bilubelei. Ele é... o rei dos destruidores...!
Apenas um movimento me mataria. Por isso, não ousei me mexer.
Bastou um selo para que minha percepção de tempo e espaço fosse
destruída. O rei desapareceu antes que eu percebesse. Não consegui explicar o
que foi feito, como ou quando. Meu corpo inteiro doía, minha mente estava
machucada e meu coração em pedaços.
Não somente Tchei havia sido assassinado, mas Wakwa foi capturado. E
provavelmente estaria morto em breve.
– Você sentirá se Wakwa morrer.
– Eu sei, Iopera.
Retirei meus óculos quebrados do rosto e cobri a face com a palma da mão.
Ao fitar minha mão esquerda, vi–a repleta de sangue.
– A princesa dos destruidores vai querer se vingar do que fizemos a ela. Ela
irá torturar Wakwa. E desejará me matar. Mas ela não vai precisar me procurar,
porque eu irei destroçá–la primeiro.

82
Fábula dos Gênios

– Antes de pensar em vingança, você precisa escapar viva desse lugar.


Aquilo seria impossível. Estava além das minhas forças.
Caminhei sem rumo pelo cemitério. Até que meus olhos encontraram uma
cena horrível: Nhahia sem pernas no interior de uma das covas.
– Iopera, abrace–me. Todas as pessoas especiais para mim estão morrendo
diante de meus olhos...!
– Ela não está morta, garota tola. E você também poderá escapar daqui viva
se seguir todas as minhas instruções. Em primeiro lugar, afaste–se dessa cova.
Levei um susto. Afastei–me de lá. A velha maga de cabelos brancos abriu
um livro e pronunciou alguma coisa que estava escrita.
Nhahia flutuou e a maga segurou–a nos braços.
– Acompanhe–me criança. Parece exausta. Depois que recobrar suas forças,
teremos muito que conversar.
Invisíveis. Somente assim para escapar daquele campo de guerra. Ela tapou
meus olhos.
– Você não quer ver isso. Já viu demais.
– Salve meu povo!
– Eu não tenho o poder. Agradeça–me por tirá–la daqui em segurança. É o
máximo que posso fazer.
Fizemos uma longa viagem. Mas eu mal senti.
Recebi curativos, mas meu braço perdido não foi recuperado.
– Essa magia supera a minha. Você ficará sem o braço e sua amiga ficará
sem pernas. Se desejarem recuperar os membros perdidos, terão que pedir aos
destruidores.
– Não pedirei nada a eles. Irei matá–los. Principalmente a princesa. E se ela
é assim tão poderosa, por que eu consegui retirar um pedaço do gênio dela?
– Isso é diferente. Se ela tivesse usado a mesma técnica em você, não teria a
mesma sorte. A magia dos gênios malignos não utiliza a magia dos gênios numa
forma reversa? Então a chave para derrotá–los pode estar no grimório de vocês.
– Mas agora não podemos recuperar o Grimório dos Gênios. A não ser que
um estudante maior de 13 anos tenha escapado vivo e possa nos revelar o
conteúdo de uma das páginas.
– Não conte com isso! Agora você deverá ocupar–se em ficar forte se quiser
resgatar o príncipe de vocês ou outros possíveis prisioneiros. Sugiro que estude
numa escola daqui, até obter a sabedoria necessária.
– Eu irei até lá agora.
– Teimosa! Apenas obedeça–me! Quando a sua amiga acordar, vou dizer a
ela que o príncipe e todos os outros morreram, para que ela não faça a estupidez
de voltar àquela terra de mãos vazias para cometer um suicídio infeliz.

83
Wanju Duli

Eu entendi. Matriculei–me numa das escolas de magia da terra dos livreiros.


Para mim aquela terra seria o paraíso, já que eu era apaixonada por livros. A
maga pretendia matricular Nhahia numa das escolas de lá também e fazer a ela
uma surpresa, quando ela me encontrasse. Mas aparentemente Nhanha fugiu de
sua escola pouco tempo depois.
– Não me importa para onde aquela idiota está indo, contanto que não seja
para a terra dos destruidores. Se ela quer sair atrás das outras páginas do GGM
sem ter qualquer poder, pouco me importa. Cedo ou tarde ela voltará aqui para
pegar essas duas páginas.
– Wakwa sabia que seria morto ou capturado. Ele entregou–me a página que
tinha, mas não entendo porque ele queria que eu a guardasse.
– Melhor que você a carregue consigo. Afinal, se um dia Nhahia retornar
aqui e arrumar um jeito de roubar a minha, saberei que ela foi atrás de você para
buscar a sua. Se vocês duas estiverem juntas, não será tão ruim quanto poderia
ser.
Assim, ficou em meu poder a página 9 do GGM, que eu ainda não tinha
ousado ler. Ela ensinava aquela magia perigosa de alimentar o gênio maligno
com sua alma. Se eu soubesse a fórmula para isso, poderia me sentir tentada a
usar.
Senti–me muito estranha por estar numa escola mista. Fiz amizade com
algumas garotas e afastei–me dos garotos. Eu já tinha dificuldade em me
aproximar das pessoas normalmente, então resolvi falar com as meninas apenas
para não levantar suspeitas. Se eu ganhasse a fama de solitária, poderia ser
incomodada.
Eu já era relativamente conhecida naquele lugar por não ter um braço e por
ser uma construtora. As pessoas tinham ouvido rumores da guerra. Sabiam que
eu tinha perdido um braço na batalha e diziam que meus olhos vermelhos
soltavam fogo. Por eu possuir um gênio e prováveis poderes escondidos,
poucos mexiam comigo.
Eu apenas permanecia a ler no meu canto. Estava encantada com tantas
bibliotecas. Eu podia ler quantos livros quisesse e de graça! Aquilo era mais
delicioso que o sonho mais doce. Imagine, retirar livros para ler sem pagar! Eu
desejava ter acesso a tudo. Só queria que meu dia tivesse mais horas para poder
devorar todas as obras que eu desejava.
E como aquela era uma magia baseada em conhecimento literário, em pouco
tempo obtive um imenso poder.
A chave era recitar os trechos das histórias que lhe despertavam maior
emoção. As palavras geravam uma emoção especial e, a partir do tipo de
sentimento, era desencadeado um poder diferente.

84
Fábula dos Gênios

– E assim ele morreu, mas não como quem morre aos poucos, desejando
manter seus pedaços. Ele perdeu essa vida como aquele que se livrou dela com
gosto, com paixão e, sobretudo, com misericórdia por todos aqueles que ainda
viviam e não sabiam como se falece com o orgulho do fim.
A cada palavra que eu pronunciava, uma parte do selo de proteção era
traçado. O selo de ataque ia se desenhando, até que o efeito era gerado. Assim
que a última sílaba era pronunciada, certo efeito ocorria. Aquela passagem
gerava um aperto no coração da vítima que poderia ser fatal, dependendo da
intensidade.
– Essa passagem é sobre suicídio?
– Não. É sobre um paciente com doença terminal. Ele aprendeu a morrer e
sentiu–se orgulhoso por sua vida. Amava tanto a vida como a morte, portanto,
teve uma existência completa.
A passagem recitada tinha muito mais poder quando se havia lido o livro na
íntegra. Assim, a força do trecho gerava as lembranças de toda a história.
– Eu aprendi uma técnica genial na aula de prosa mágica III. Acrescente no
final da recitação o nome da obra, seguida pelo nome do autor. A força da
eficácia mágica aumenta imensamente. Experimente!
Elina era de uma série mais avançada que a minha, então sempre me dava
ótimas dicas. Resolvi experimentar.
– “A força de um desejo? Não. Antes, o poder de uma vontade já saciada.
As velas de aniversário são sopradas e o bolo consumido. Uma vida foi vivida e
o túmulo não mais tem cheiro de flores e lágrimas, mas do chocolate do último
bolo cujas velas jamais foram apagadas”. Vontade Invertida, Verino Mahapatch.
Eu senti uma sensação muito mais poderosa. O efeito mágico de fato se
estendeu.
– Mas tente usar uma passagem mais emocionante!
– A lembrança dessa passagem gera efeito em mim. Não é isso que importa?
– Sim, mas é bom que também intimide o adversário, como um grito de
guerra. Deve gerar impressão forte em ambos!
Eu simplesmente amava aquele sistema de magia dos livreiros.
Tentei algo mais efetivo.
– “Repudio as nojentas verdades! Eu amo as mentiras, principalmente
aquelas que salvam minha vida por dentro, enquanto morro por fora. Pois de
nada adianta um corpo sem espírito. Que essa carne fraca apodreça, pois busco
somente o espírito invencível!” Carne de Rei, Meli Reah!
Aquela passagem foi tão impactante que rachei o chão com ela. Foi incrível.
Eu estava realizando recitações no corredor do colégio e fiz isso bem alto. Fui
até aplaudida, enquanto alguns ainda riam com o susto.

85
Wanju Duli

– Bilubelei, hã? Vou me lembrar desse nome. Agora só falta escrever o seu
próprio grimório, para que eu rache o chão com um trecho dele!
As pessoas me diziam coisas assim. Eu ainda estava em dúvida se ia me
especializar em leitura ou escrita. Para mim, ler compulsivamente e admirar o
trabalho dos autores famosos sempre foi tão natural que jamais cogitei a
segunda opção.
– Você sabe que se for a autora do grimório e ler um trecho seu isso gera
ainda mais poder, certo?
– Mas isso retira a possibilidade de tornar–me especialista em trechos de
múltiplos autores. Essa alternativa aumenta as emoções geradas e áreas da magia
utilizadas.
– É verdade que se você só recita coisas suas irá explorar somente um estilo
de magia. A vantagem será que o conhecerá a fundo. Em compensação, se não
funcionar estará com a guarda aberta.
– Se bem que... também existe aquela magia maluca de escrever um trecho
para recitação na ocasião de batalha. Isso é semelhante à disputa de poemas,
mas é mais como narrar a batalha no próprio momento em que ela ocorre!
Como um fotógrafo indiscreto retratando a morte em campo de guerra. É
fascinante, e, ao mesmo tempo, que ousadia!
Um bardo cantando com seu alaúde. Aquele pensamento me soava tão
petulante e, ao mesmo tempo, tão mágico: escrever a magia no instante da
batalha!
Eu já tinha assistido a alguns duelos desse tipo. Era engraçado demais. Mas
era perturbador pensar em utilizar aquele tipo de atrevimento contra os
destruidores. Se entendessem minha língua iam pensar que eu estava zombando
deles. Podiam ficar irados!
Mas se eu realmente pretendia me vingar deles, possivelmente não haveria
melhor método.
Por isso, resolvi aprender um pouco de cada. Eu queria carregar comigo
alguns livros para recitações. E, ao mesmo tempo, eu carregaria livros em
branco para escrever algo no instante em que a batalha me inspirasse. De quebra,
ia deixar alguns livros meus prontos para uso.
Conforme os anos se passavam, fui reunindo material dos meus autores
favoritos. Muitos livros da biblioteca estavam repletos de riscos, páginas
marcadas e trechos circulados, já que se tratavam dos trechos mágicos
selecionados por alunos. Meus próprios livros estavam completamente
rabiscados.
Alguns de meus “grimórios literários” estavam inclusive autografados pelos
autores. E eu fazia questão de pedir o autógrafo exatamente ao lado do meu
trecho preferido. Era assim que funcionava no mundo dos livreiros: nada de

86
Fábula dos Gênios

autógrafo na primeira página do livro! Afinal, queríamos fitar a assinatura do


autor no momento da batalha, para gerar ainda mais poder, fruto da emoção que
sentíamos.
– A magia da nossa terra também leva em conta os processos mágicos. Ou
você já se esqueceu do estudo da magia pura? Ela também afeta sua alma, tem
efeitos psíquicos e não é somente mental. Está me escutando, Bilubelei?
– Você também devia decorar passagens de grimórios enquanto estudo os
meus, Iopera. Isso irá me ajudar na batalha.
Mais alguns anos se passaram. Eu lia cada vez mais e participava de muitos
duelos. Estava super confiante para combater os destruidores.
Quando completei 18 anos, recebi a notícia de que Nhahia havia invadido a
casa da maga da montanha para tentar quebrar o criado–mudo. Obviamente, ela
não obteve sucesso.
Então a maga lançou um desafio: se Nhanha fosse capaz de derrotar uma
das estudantes da terra dos livreiros da mesma idade dela, seria dada a Nhahia a
página do GGM que ela tanto queria.
É claro que eu fui a escolhida para batalhar contra Nhanha. Batalhei com
óculos escuros, para que Nhanha não desconfiasse quem eu era pela cor dos
meus olhos, embora eu ainda tivesse meus longos cabelos negros, que poderiam
denunciar–me a qualquer momento.
Emocionei–me ao vê–la de novo. Mas me contive e foquei–me em gerar em
mim a emoção necessária para o fervor da batalha.
Magia livreira contra magia simbólica? Seria interessante, principalmente por
ambas sermos construtoras. Eu faria questão de esconder qualquer traço de
magia genialista em mim, para não levantar suspeitas sobre minha identidade.
Eu não queria estragar a brincadeira antes mesmo de aquela batalha começar.
“Mostre–me o que aprendeu com os mestres simbolistas por todos esses
anos, Nhahia”.
Eu sabia que ela não ia me esperar e ia começar atacando. Aquela garota não
tinha o mínimo de cortesia. Mas eu queria desse jeito: assim, direto, sem
explicações.
Ela traçou um selo no ar, sem nem se preocupar em posicionar um círculo
de proteção. Parecia–se com uma borboleta feita de formas geométricas, que
voou na minha direção.
– “Não desejei a forma que voava. Antes, buscava aquilo que afundava os
pés na terra, com orgulho da carne e do sangue” Nona Boca, Vero Pop.
Ao fitar a borboleta de Nhahia, imediatamente recordei–me dessa passagem
e tive que virar as páginas muito rapidamente para que meus olhos alcançassem
essa anotação do grimório. Clamei com muita paixão. Eu sabia algumas

87
Wanju Duli

passagens de cor para me defender ou atacar, caso eu não virasse as páginas a


tempo. Era preciso ser muito veloz para utilizar aquela técnica.
A borboleta explodiu no ar.
– Há, belo truque!
Ela se divertia. Mas eu me divertia mais.
Ela me confundiu com o próximo movimento: um mar de formas
entrelaçadas. Ela também pronunciou um idioma desconhecido por mim. Pelo
jeito os simbolistas sabiam mais que enrolar círculos e triângulos.
Aquilo significava alguma coisa. Eu precisava descobrir para me defender ou
até contra–atacar.
Se eu precisasse resolver um cálculo para quebrar aquela projeção, eu iria
buscar outra forma de destruir aquele joguinho.
– “Os números se curvaram assombrados diante da fúria perfeita do floco
de neve: o cristal de gelo estrelado que esmagava os gigantes celestiais”
Reflexões Escarlates, Rote Iula.
As formas dela desmancharam no chão. Nhahia abraçou o corpo diante da
neve que foi violentamente jogada sobre ela.
“Eu separei algumas passagens especiais para esse duelo”. Ora, Nhanha era
muito previsível no final das contas.
– O aquecimento acabou.
Ela utilizou um gigantesco selo tridimensional para agarrar o meu pescoço.
Eu teria fugido daquilo facilmente se aquela forma não perfurasse alguma
dimensão espaço–temporal. Aquilo não era magia dos destruidores, mas se
parecia vagamente com uma, o que muito me impressionou.
Meu grimório caiu no chão.
“Está bem, querida, agora vai ter que saber de cabeça”.
– O espaço não machucava. O tempo não me tocava. Eu somente precisava
do sopro da minha imaginação insuperável.
– Não citou livro e autor dessa vez, espertinha.
– De minha autoria. O livro do meu pensamento perante o ardor da batalha.
Mera!
Ela havia feito com que meus óculos escuros escorregassem do meu rosto.
Preferi não esconder mais quem eu era.
Nhahia fitou–me com espanto.
– Viva...? E como eu esperaria menos da fantástica Bilubelei? Magia literária,
hã? A sua cara. Garota, por onde tem andado? Que peça me pregaram?
Nhanha estava ao mesmo tempo estupefata e feliz, completamente confusa.
– Esse duelo ainda não terminou. Não deseja ter aquela página?
– Eu desejo ter você como aliada para matar os destruidores. Não poderia
haver prêmio maior.

88
Fábula dos Gênios

Eu baixei os olhos.
– Nhanha... eles capturaram Wakwa.
– E por que ainda não foi salvá–lo...? Pensei que ele estava morto, como
todos os outros!
– Eu não era forte o suficiente para resgatá–lo. E agora os destruidores estão
ainda mais poderosos. Não sei dizer se foi melhor ou pior esperar.
– Estou cansada de pessoas me dizendo o que devo fazer. Não me importo
de jogar minha vida fora. O pensamento de não fazer nada me faz pirar.
Eu entendia perfeitamente aquele sentimento.
– Vá lá matar–se com sua contraparte. Pelo menos não o fará só. Terei que
encontrar outro magista para me trazer os grimórios.
– Eu não temo os destruidores. Tudo o que você deseja são grimórios com
textos poderosos, escritos a suor e sangue, para que suas recitações literárias
gerem efeitos assombrosos. Eu não quero ser forte. Apenas preciso matá–lo.
– Quem você quer matar, Nhanha?
– O desgraçado que arrancou minhas pernas.
– Eu fui atacada pela princesa dos destruidores. Quero a cabeça dela.
Relatei a ela a história completa. Nhanha ficou chocada.
– Ela tem o gênio de Tchei! Ele era um admirável mago. Sempre pensei que
se alguém fosse escapar vivo dessa seria ele e o príncipe. A situação atual é
inacreditável. E que aconteceu aos outros?
Balancei a cabeça, indicando que eu nada sabia. Nhanha suspirou.
– Não me importo mais com o GG ou GGM. Nós aprendemos técnicas que
eles desconhecem. Possuem outras bases. O imbecil que me atacou se assustou
até com o “Mera”. Eles estão tão acostumados em utilizar magias
poderosíssimas que se confundem perto de algo fraco. Essa será nossa maior
arma.
– Minha magia não é fraca.
Eu concordei em fazer aquela viagem. Não importava mais quem estava
vivo ou morto. Algumas vezes eu preferia estar morta para não recordar daquele
horror.
A maga da montanha não nos impediu. Viajamos de navio. Sabíamos que
haveria outros passageiros esquisitos naquela viagem, mas não fomos lá para
fazer turismo. Na verdade, os poucos que souberam que pretendíamos
desembarcar na terra dos destruidores ficaram bem assustados. Poucos se
aproximavam de nós.
– A raiz do seu cabelo está ficando negra. Então a tinta está realmente
saindo.
– Isso significa que estarei em minha melhor forma para combater os
destruidores.

89
Wanju Duli

Eu ainda tinha meu MEP, mas eu já sabia que não seria de muita valia.
Os passageiros nos olhavam com ainda mais estranheza porque alguns
foram informados que éramos construtoras. Talvez o motivo de irmos para
aquela terra tenha se tornado subitamente óbvio?
Meus trajes eram relativamente normais, da terra dos livreiros. Roupas
discretas, como os senhores respeitáveis de lá gostavam de usar. As roupas de
Nhanha eram ligeiramente mais extravagantes, assim como seus cabelos naquela
cor berrante. Afinal, os habitantes da terra dos símbolos apreciavam ousar de
uma forma mais explícita.
Portanto, éramos uma mistura meio exótica de origens e objetivos. Sabíamos
bem que havia terras lendárias e distantes com outros tipos de concepções.
Contudo, eu nunca tinha ouvido falar de algo mais extremo que o caminho dos
destruidores.
– Tentei roubar a página do GGM do meu professor. Não fui bem sucedida.
– Eu gostaria de solucionar o grande quebra–cabeça dos grimórios. Parece
que eles se encaixam. Isso inclui o GG, GGM e mais alguns volumes.
Era mágico nos lembrarmos de tantos mistérios enquanto fitávamos a
imensidão do azul do mar. Logo, o mar tornou–se negro quando caiu a noite.
O frio preencheu nossas entranhas. Quando o navio se aproximou daquela
terra senti que até o ar havia mudado.
Os passageiros ficaram com muito medo quando chegamos àquele porto.
Queriam que o navio partisse de uma vez. Nós duas desembarcamos.
Somente nós. Deviam pensar que éramos loucas.
– Os destruidores não viajam de navio, certo?
– Nenhum deles teria dinheiro para isso. Além do mais, eles têm suas
próprias embarcações macabras que usaram para chegar até aqui. Eles são muito
unidos como povo e têm muito orgulho do que conquistaram. Não desejam se
misturar. Provavelmente jamais deixarão essa terra.
Não havia luz em nenhum lugar. Se planejávamos encontrar algum hotel
para passar a noite, estávamos enganadas. Eles tinham derrubado quase todas as
nossas habitações. Não gostavam de casas. Dormir ao relento os deixava mais
fortes; às vezes dormiam até sentados ou de pé.
Era desconfortável estar no escuro, sabendo que os destruidores poderiam
sentir nossos gênios a qualquer momento.
Decidimos sentar ali mesmo ao redor do porto e dormir. Precisávamos
enxergar alguma coisa, então restava aguardar o dia.
– Foi uma estupidez vir a esse lugar durante a noite. Nunca imaginei que os
destruidores fossem tão pobres que não possuíssem uma única fonte de luz.
Eles não sabem nem fazer fogo? E de tão burros devem ter destruído todas as

90
Fábula dos Gênios

nossas luzes e fontes de luz, junto com todo o resto. Se duvidar, jogaram fora
até nossa comida.
– Eles não são burros, Nhanha. Eles ganharam a guerra. Aprenderam a viver
com o mínimo necessário e desejam permanecer desse jeito, já que essa seria a
fonte de suas forças.
De certa forma, era como se eles soubessem exatamente o que estavam
fazendo. Aos nossos olhos, tudo aquilo soava como uma péssima escolha. Mas
eles tinham uma forma única de ver o mundo. Funcionava para eles; e muito
bem, já que colocavam tanto valor na busca do poder.
– Algumas vezes eu desejava mostrar a eles que a vida é mais do que ficar
mais forte e ser o melhor. Eles só se reproduzem para que seu povo não
desapareça. Ainda assim, não se importam de matar uns aos outros em duelos,
para que sobrevivam somente os fortes. Eles jogam as crianças em meio aos
animais nas florestas, para que arrumem sozinhas suas fontes de sobrevivência.
Isso é tão insano!
– Mas não viemos aqui para dar sorvetes a eles. Viemos matá–los. Eles não
temem a morte porque a vida deles já é ruim o suficiente. Não vão perder nada
morrendo, pois nunca tiveram nada. Se for esse o raciocínio que usam, eles são
invencíveis.
– Errado. Se você não tiver algo de valor que te dê vontade de viver, como
pessoas especiais e outras coisas importantes, não dará o máximo de si numa
luta. A força deles também é a maior fraqueza que possuem. Eles fazem guerra
porque isso é somente um jogo divertido. Se você não possui uma motivação
mais poderosa, qualquer hora será derrotado. E a hora dos destruidores chegou.
Porque nós, construtores, temos algo de valor a construir em nossas vidas; não
somente destruir pelo prazer do fim.
O mundo sem luzes. Aquilo era aterrador. Fazia meu coração bater mais
forte.
Era ingenuidade nossa pensar que seríamos capazes de matar um destruidor.
Nem mesmo com a magia da ligação, que era nossa mais poderosa arma, seria
possível. Se conseguíssemos resgatar o príncipe e sair de lá em segurança, já
seria um feito extraordinário.
Derramar uma gota de sangue de um destruidor? Mesmo se tivessem sangue
a correr nas veias, as crianças que nos atacaram naquele dia já eram adultas.
Provavelmente substituíram suas almas e corações pelo gênio maligno.
Transformaram–se numa muralha de diamante.
“Que estou fazendo aqui...?”
– Nhanha, quando acordarmos iremos até o palácio real. A princesa deve
estar lá. Wakwa deve estar mantido prisioneiro nas masmorras.

91
Wanju Duli

Ela já dormia. Escutei sua respiração. Apoiei a cabeça em seu ombro e em


algum momento também caí no sono. Talvez fosse nossa última noite antes de
dormirmos para sempre.
Quando acordei, Nhanha já estava desperta há muito tempo. As cinco
estrelas recém surgiam no horizonte. Ela estava mortalmente séria.
– Bilu, terá que seguir até o palácio sem mim. Aquele destruidor me
encontrou.
– Como você sabe?
– Meu gênio revelou–me. Nesse instante sinto tanto ódio que eu seria capaz
de matar a primeira pessoa que se colocar em meu caminho, não importa quem
seja.
– Achei que resgatar Wakwa era mais importante que seu desejo de vingança.
– Perdoe meu egoísmo, mas devo matá–lo antes. Assim que eu completar
essa missão, sigo até o palácio para te ajudar a matar a princesa desgraçada.
Eu não ficaria no caminho de Nhahia. Algumas vezes ela sabia como ser
fanática de uma forma assustadora. Ela sempre foi assim mimada e naquele
instante precisava obter o que queria, a qualquer preço; fosse uma nova boneca
ou a cabeça de um miserável destruidor.
E assim ela partiu, decidida, sabendo exatamente para onde ia.
– Irá até o palácio?
– Imediatamente.
Minha missão era mais difícil que a dela. Nhahia só queria puni–lo. Eu, além
de punir a princesa, que também buscava vingança por termos cortado um
pedaço de seu precioso gênio, precisava resgatar Wakwa e recuperar o gênio de
Tchei.
E eu precisaria fazer tudo isso completamente sozinha.
– Você nunca está sozinha, Bilubelei. Jamais se esqueça disso.
Eu recordava muito bem do caminho até o palácio. Quantas vezes me
esgueirei até lá tentando invadir, em busca do GG?
– É mesmo, Iopera! Além de tudo isso, preciso roubar o GG e o GGM. Oh,
droga! Nhanha deixou todos os pepinos para que eu resolvesse. Isso não é justo.
Eu pensei que fossem aparecer guardas ou um exército para me impedir de
me aproximar. Mas os destruidores eram tão reduzidos em número que deviam
estar espalhados por todos os cantos daquele mundo. Em compensação, os
poucos que existiam tinham um poder suficiente para somar uns cem de nós.
Eles davam mais valor a um poder tremendo de poucos indivíduos do que a um
grande número de magos medianos.
Entrei pela porta de trás do palácio. Fitei um misterioso quadro na parede:
ele formava um estranho quebra–cabeça com poucas peças.

92
Fábula dos Gênios

Numa das peças estava escrito “GG”; na seguinte, “GGM”; havia uma
terceira em que “AVB” eram as iniciais. E depois...
Meu coração pulou. Escutei um movimento e saltei os degraus da escada em
disparada.
Atingi o calabouço. No interior dos cárceres havia alguns esqueletos e um
cheiro bem desagradável.
Até que eu o encontrei: talvez o único ser com um resto de vida naquele
ambiente de morte. Wakwa, com os braços acorrentados, sujo, magro, com
roupas rasgadas. Mais se parecia com um destruidor.
Aqueles olhos amarelos brilhavam, muito vívidos. Então ele não estava mais
cego...? Os destruidores seriam capazes de reverter certos processos mágicos
realizados por eles mesmos.
Mas não importava mais se ele era capaz de ver ou não. Seu corpo tinha
traços evidentes de tortura. Muitos machucados na face, alguns dentes faltando.
Ele mal me reconheceu.
Agarrei as grades e chamei o nome dele.
Wakwa voltou os olhos na minha direção. Ele não sabia quem eu era. Talvez
pensasse que seria torturado novamente e não ousou se mexer.
– Eu duvidaria que esse é mesmo o príncipe se eu não sentisse tão
fortemente a presença de seu gênio.
– Então eles não o forçaram a usar a magia dos gênios malignos?
– Ele ainda tem um resto de alma. O processo não está completo, mas
parece–me que algumas experiências cruéis foram realizadas.
– Eu devia ter vindo resgatá–lo sete anos atrás. Os destruidores não estão
protegendo esse palácio! Eles pensam que ninguém ousará se aproximar dessa
terra, por medo. Mas aqui estou eu! Vim salvá–lo, Wakwa. Vou quebrar essa
grade.
Recitei a magia de um dos meus grimórios. Rompi a tranca facilmente.
Aquilo significava duas coisas: os destruidores não se preocuparam em lançar
uma magia forte para proteger aquela tranca e o meu poder havia aumentado
muito após sete anos.
Fui até Wakwa e tentei comunicar–me com ele. Wakwa apenas fitava meu
rosto com dificuldade. Embora pudesse enxergar, parecia que sua visão estava
seriamente prejudicada.
– Esqueça, ele não vai reconhecê–la. Pegue–o e dê o fora daqui antes que te
encontrem.
– Mas...
– Esqueça os grimórios e sua vingança. O mais importante é tirá–lo daqui
em segurança.
– O gênio de Tchei...

93
Wanju Duli

– Não ouviu o que eu disse? Primeiro leve o príncipe para fora desse país.
Outra hora você retorna para brigar com a princesa e salvar o gênio.
Tentei segurar Wakwa, mas ele tremia e se afastava. Por fim, ele não teve
mais forças para resistir. Segurei–o nas costas e surpreendi–me ao ver como
estava leve. Estava quase pele e osso. Vestia uns farrapos velhos de roupas dos
destruidores.
Era provável que tivesse alguém no palácio, pois eu escutei um movimento.
Será que minha presença era tão insignificante que não exigia atenção? Uma
barata caminhando pelas masmorras, talvez?
“Será que os destruidores são burros mesmos?” Provavelmente aquilo era
excesso de confiança. Se em sete anos não apareceu ninguém para salvar o
príncipe, eles não iam perder o precioso tempo de treinamento mágico louco
deles protegendo um construtor que mal era capaz de se mover, muito menos
de usar magia.
Eles não se preocupavam em comer, em dormir, em acender luzes, em
proteger o país... focavam–se apenas numa única coisa: a busca desesperada por
mais poder.
Por isso, eu consegui retornar ao porto com Wakwa nas costas, embora meu
coração batesse loucamente enquanto eu caminhava em passos apressados. Eu
sabia que a qualquer momento algum destruidor poderia aparecer.
– Maldição, Nhanha! Onde se meteu?
Ela ainda estava lutando com o destruidor? Resolvi fazer uma coisa bem
idiota: liguei para ela pelo celular.
E não é que ela atendeu?
– Já resgatei Wakwa! Venha rápido até o porto. Só tem um barco e
precisamos ir embora logo antes que os destruidores nos encontrem.
– Eu sei que está no porto. Sentimos os gênios de vocês desde que pisaram
aqui. Permitimos que brincassem. Pode levar embora esse príncipe fraco. Não
precisamos mais dele.
Quando escutei aquela voz, meu coração gelou.
Aquelas não eram palavras de um adolescente. Soava como a fala de um
homem com mais de quarenta anos.
Eu já tinha ouvido falar que havia destruidores que conheciam nossa língua.
Ele devia ser uma dessas raras pessoas, pois a maior parte dos destruidores mal
sabia ler e escrever em seu próprio idioma.
Pensei que minha voz não fosse mais voltar. Quando retornou, saiu trêmula.
Eu temia a resposta daquela pergunta.
– Onde está Nhahia?

94
Fábula dos Gênios

– Ela não está morta, pois essa seria uma boa notícia. Fizemos a ela algo pior
que a morte. Sugiro que se retire daqui antes que prove na alma o peso da magia
dos gênios malignos.
A ligação foi subitamente interrompida.
Eu voltaria para tentar salvar Nhahia somente para matar a mim e a Wakwa
ou eu aceitaria a misericórdia dos destruidores?
Tremendo de medo, pulei no barco, trazendo Wakwa comigo.
– Desculpe, Nhanha.
E remei, sem olhar para trás.

95
Wanju Duli

Capítulo 4: Fúria do Destino

– Ninguém liga para mim. Vou destruir tudo.


– Vá em frente e destrua. Você sabe que não me importo.
Qualquer um pensaria que eu era uma destruidora. Talvez eu tenha nascido
no mundo errado. Eu apenas não via graça na existência. Estar com os
destruidores seria muito mais emocionante. Uma vida de aventura, de desespero.
– Ei, babaca! Olha pra tua direita, maldito!
Tchei tropeçou com o susto da explosão e deu de cara no chão. Era um
idiota. Todos sabiam que Tchei era um imbecil, por isso todos zoavam ele.
Minha personalidade era ruim, eu estava ciente disso. Mas era irresistível ser
assim. Eu simplesmente não conseguia ser de outra maneira.
Os outros fracos infelizes queriam completar logo 13 para receber admissão
numa das nossas escolas e ter acesso ao Grimório dos Gênios. Mas eu queria
muito mais.
Eu olhava para as universidades: para os maiores de idade. Os adultos que já
tinham se conectado com suas ligações e realizado o objetivo animal de suas
existências, perpetuando a espécie. Esses sim conheciam a vida como nenhum
outro. E suas magias eram as mais poderosas.
Eles estudavam outros grimórios e tinham metas mais sublimes. Eu não
sabia ao certo o que era, mas achava extraordinário.
Gins e Ginas eram o supra–sumo no que diz respeito a colégios. Sobre as
universidades, o que havia de melhor era Jins e Jinas.
Evidentemente, meu sonho era entrar para a Jinas: a melhor universidade
feminina de nosso país. Os grimórios lá estudados eram tão fantásticos quanto
secretos. Poucos sabiam os títulos.
Também havia algo curioso a respeito das alunas de lá: no uniforme, usava–
se a cor da meia direita diferente da cor da meia esquerda. Aparentemente, as
cores simbolizavam algo. Diziam que os membros de uma lendária sociedade
secreta de Jinas usavam certo padrão nas cores das meias e somente a partir
disso seria possível identificá–los.
Eu achava tudo isso uma deliciosa loucura e não via a hora de fazer parte
dessa piração maravilhosa.
Por isso eu procurei o homem do momento: Cromo, o senhor do
ciberespaço. Ou pelo menos ele era o melhor entre a galera da nossa idade,
então era bastante respeitado.

96
Fábula dos Gênios

MOMO: Eu deveria cobrar pelas minhas preciosas informações,


sinceramente.
ARARA: Eu não busco o GG e sim tudo o que há para se saber a respeito
da sociedade secreta de Jinas.
MOMO: Isso significa que está um passo a frente dos demais. Mas para
mim isso é irrelevante. Sua amiga Nhahia ousou aparecer com meias de cores
diferentes diante de Yym. Se não bastasse a ousadia de seus cabelos cor–de–rosa.
ARARA: Nhanha não estava ciente do que fazia. Ela é só uma idiota.
MOMO: Entendo. Nesse caso, mostre–me que você não é como ela e dê–
me uma razão genuína para desejar informações de Jinas.
ARARA: Eu desejo descobrir algo sobre a vida que supere a criação e a
destruição. Sou uma construtora de nascimento, mas uma destruidora de alma.
Por que meu corpo e minha alma estão fora do lugar?
MOMO: Se teu gênio não tem essa resposta, teu coração não poderá contar.
Estou ocupado demais para elucubrações filosóficas dessa natureza.

Eu me irritava mortalmente com Cromo e fiz questão de perturbá–lo


infinitas vezes, somente para deixá–lo irado também.

MOMO: Pare de testar minha paciência, infeliz! Eu vou te bloquear, ouviu


bem?!
ARARA: Não consigo ouvir sua voz, porque coloquei uma música dance no
volume máximo nos meus fones de ouvido.
MOMO: Então olhe para a porcaria da sua tela, retardada!
ARARA: DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–
ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A
INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO!
DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A
INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO!
DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A
INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO! DÊ–ME A INFORMAÇÃO!
MOMO: SABE ONDE EU VOU ENFIAR A DESGRAÇA DA
INFORMAÇÃO?!
ARARA: 123456789012345678901234567890
JODJLMÇLS,LAÇ,SMC,MCNXKSD!
ASHSJSKHDKFHDFKDLFMCHJDJKSDJHAÇLN,X.CXZPJZSDJS
MOMO bloqueou ARARA.

– Desgraçadoooooo! Filho de Meraaaaa!

97
Wanju Duli

– Você foi longe demais na sua técnica de importunar pessoas. Isso porque
você também é uma idiota.
– Eu vou te vender para um banco de dados, ouviu bem? Não acredito que
nem meu próprio gênio me respeita. Logo eu que sou tão maravilhosa.

ARARA: VOSSA ALTEZA, EU PRECISO DE UMA INFORMAÇÃO.


WAWA: Deixe–me adivinhar: você quer o Grimório dos Gênios.
ARARA: NÃO, EU QUERO BRINCAR DE QUEBRA–CABEÇA.
WAWA: Eu sou o príncipe, respeite–me! Pelo menos tenha a decência de
digitar de uma forma digna.
ARARA: Eu quero saber tudo sobre a sociedade secreta de Jinas.
WAWA: E por que eu saberia algo a respeito? Sendo uma sociedade secreta,
eu não tenho acesso às informações. Se elas deixaram vazar algo na internet,
peça para Momo.
ARARA: Bah. Mas que coisa chata! CHATO! CHATO!

ARARA: Yo, imbecil!


TCHEI: Boa tarde, Varra. Como tem passado?
ARARA: Seu educadinho maldito, seja útil para mim uma vez na vida e faça
Cromo me desbloquear.
TCHEI: Sinto muito, mas eu não tenho esse poder.
ARARA: E quem disse que eu me importo? Arrume um jeito de fazer isso
agora, senão eu irei me negar a perpetuar a espécie contigo, e você vai morrer.
Na verdade, eu prefiro morrer do que contribuir para te deixar vivo, então é
melhor que seja um bom escravo e faça o que eu mando!

Tchei ficou todo assustado e me obedeceu. Era uma situação irregular, mas
sabíamos que éramos a ligação um do outro. Eu fiquei furiosa quando descobri
que meu gênio estava ligado com o daquele panaca. Por isso, desde então
tenho–o maltratado muito, para me aproveitar dele.

TCHEI: Pronto, Varra, consegui convencer Cromo. Será que podemos


conversar um pouquinho?
ARARA: Não tenho nada para falar com você. Não me incomode.
ARARA bloqueou TCHEI.

MOMO: Seja rápida. Vá direto ao assunto.


ARARA: Eu quero um grimório secreto.
MOMO: Acabo de te enviar por e–mail um grimório de Jinas. Divirta–se.
ARARA: ?????

98
Fábula dos Gênios

MOMO: Que foi?


ARARA: VOCÊ ME ENVIOU UM GRIMÓRIO DE JINAS POR E–
MAIL?
MOMO: Não sabe ler? Foi exatamente o que eu escrevi.
ARARA: EU TE AMO, MOMO!
MOMO: Oh, uau, valeu. Para que você não me torre mais a paciência eu
pago qualquer preço. E saiba que foi graças a Tchei que te dei isso, então
desbloqueie–o imediatamente e agradeça a ele, senão tomo de volta esse
grimório. Eu tenho MEIOS para isso e você sabe que falo a verdade.
ARARA: Por via das dúvidas já estou imprimindo, então a não ser que
venha até a minha casa e queime tudo, não terá como tomá–lo de mim.
MOMO: Acabo de interromper sua impressão. Sua impressora e seu
computador irão se autodestruir em dez segundos. Toma isso, INGRATA!
HAHAHEHEHIHIHOHOHUHU! Lembre–se que MOMO é o cara que não
pode ser contrariado. E minha palavra é a verdade, a lei e a ordem!
ARARA: MISERÁVEEEEEEEL!!!!

– O que a gente faz agora?


– A gente CORRE!
E saí em disparada para fora de casa com cinco folhas de papel na mão.
Ouvi a explosão. Quando retornei, meu quarto estava um caos. Felizmente,
salvei as primeiras páginas do grimório.
– Cara... o Cromo é um lixo imundo, meu. Odeio ele.
– Na verdade eu achei isso bem engraçado.
– Oh, apenas cale a boca, Papaza! Senão te faço comer essas páginas.
Poucos minutos depois, um garoto de olhos e cabelos pretos, com um
dispositivo eletrônico enrolado na orelha e outro na cintura, apareceu diante de
mim, com suas roupas amassadas e de cores bregas.
– Estou confiscando as páginas desse grimório, em nome do rei!
– Cromo em pessoa! Eu devo estar sonhando! Sempre pensei que você fosse
alguma espécie de programa de computador com uma personalidade irritante,
mas você é real!
– Senhorita Varra, já foi longe demais com seu joguinho. Aprenda a
respeitar as pessoas. Vivemos numa sociedade, então apenas sirva seu reino e
seja obediente.
Ele tentou tomar as folhas da minha mão, mas não foi bem sucedido.
Enquanto isso, eu declamava os escritos das folhas em alto e bom som, para que
todos os magos da rua ouvissem.
Por fim, ele conseguiu tocar as folhas e rasgou–as. Dei–lhe um soco na cara.
O dispositivo da orelha dele caiu no chão.

99
Wanju Duli

– Você está presa. Acompanhe–me.


Eu gargalhei com vontade.
– Tente me prender! Eu te desafio. Se revelar a outros o motivo, você
também estará em apuros por ter me cedido esse grimório tão poderoso.
Eu era cruel. Eu jogava sujo. E gostava disso.
Eu apenas ria, ria, ria. E aguardava com vontade a vinda dos destruidores.
Afinal, os construtores eram certinhos demais e me aborreciam.
Como primeiro desejo, usei o MEP. Olhos laranjas. Eu estava muito curiosa
para saber qual havia sido o primeiro desejo de Tchei e Cromo, mas não
adiantava perguntar; eles não revelavam.
Eu evitava me envolver diretamente com Nhahia e Bilubelei desde que
descobri que as duas eram contraparte. Eu achava Wakwa muito metido e
Cromo provavelmente era ainda mais. Quanto a Tchei... eu o achava tão
simplório que não o julgava digno de minha companhia.
Mas embora eu fosse tão fascinada em relação aos destruidores, quando eles
chegaram eu senti medo. Escondi–me na Casa dos Gênios e liguei para Cromo.
– Você está nos defendendo, certo? Vai nos salvar.
– Farei o máximo possível, mas não tenho garantias.
Eu sempre critiquei os covardes, mas naquele momento fui a mais medrosa
de todos. Enquanto até Tchei foi lutar, eu corri. Escondi–me na floresta e subi
numa árvore alta. Lá permaneci por mais de um dia. A noite caiu, a guerra
acabou. Mas eu não ousava descer.
Eu senti quando Tchei morreu. Papaza se manifestou, mas isso nem mesmo
teria sido necessário. A sensação foi como se fosse arrancado um pedaço da
minha alma.
– Papaza...
– Isso não pode ser mudado.
Eu morreria também, sem Tchei. Estava ciente de que um dia chegaria
minha hora.
Que eu fiz por ele? Nada. Meu papel de ligação não havia sido o melhor. E
nem como construtora, fugindo do campo de batalha.
Até que eu fui encontrada. Por um lado, achei bom, pois já estava morrendo
de fome. Por outro, o destruidor que me localizou talvez encontrasse uma
forma mais cruel de acabar com minha vida.
Aquele destruidor chamou outro. Ao que parecia, tudo já tinha terminado e
eles não entraram num consenso sobre o que fazer comigo.
– Você tem 300 segundos para chegar ao porto. Se não alcançá–lo antes
disso, iremos rasgar a sua alma.
Você sabe o que é correr? Eu também não sabia, mas descobri naquele dia.

100
Fábula dos Gênios

Naquele instante não me interessava saber porque um destruidor sabia falar


a minha língua. Eu apenas disparei. Cheguei no maldito porto, mas foi por
muito pouco. Peguei um barco e parti.
Eu avistei minha terra de longe: casas tombadas, uma escuridão profunda.
Nem parecia mais o meu país de cores e formas tão vivas, tão apaixonadas.
Abracei meu próprio corpo, com frio.
– Papaza, nosso país nunca foi frio. Por que sinto esse arrepio agora?
– Esse é o medo, Varra. Medo como você nunca sentiu antes.
– Pensei que os destruidores não tinham piedade.
– Isso não é piedade! Eles mataram sua ligação e seu povo. Você acha
mesmo que não teria sido mais piedoso te matarem?
– A magia dos destruidores pode olhar através de você. Talvez o GGM seja
mais forte do que qualquer grimório nosso, mas... de onde vem tanto poder? Do
sofrimento?
– Não. Esse poder vem da força da união. Os destruidores são muito unidos
como povo, enquanto os construtores sempre foram individualistas e solitários.
– E agora, não sei o que farei! Deixarei que as águas me levem. Ou que me
matem. Isso nunca fez diferença, desde o começo.
Muitos dias se passaram. Eu sentia fome, muita fome... quando finalmente
meu barco encostou em terra firme, eu não fui bem recebida.
É claro que eles não iam ajudar uma estrangeira passando fome. Já tinham
seus próprios habitantes com quem se preocupar.
Por isso, caminhei muito mais, até encontrar uma floresta. Bebi a água de
um rio sujo e colhi algumas frutinhas mirradas. Depois disso, saí de lá. Aquilo
me deixou com ainda mais fome.
E foi lá na floresta que encontrei uma mulher bem esquisita. Devia ter uns
quarenta anos, usava um capuz roxo e um monte de anéis nos dedos.
– Deseja que eu leia a sua sorte?
– Eu não tenho dinheiro.
– Eu aceito um de seus brincos como pagamento.
– Não tenho brincos. Estou apenas com essa roupa e preciso das sandálias
para proteger os pés.
– Nesse caso, aceito uma gota de seu sangue.
Ela segurou minha mão esquerda e furou meu dedo com um objeto
pontiagudo. Derramou a gota num vidrinho. Depois disso, manipulou as cartas
com seus dedos ágeis. Ela usava um perfume forte e tinha longos cabelos negros
e crespos. Fitou–me com seus olhos castanhos intensos por baixo do capuz.
– Parece–me que você está com problemas.
– Eu estou muito bem, obrigada. Na verdade essa é uma das épocas mais
favoráveis da minha vida.

101
Wanju Duli

– Mas você tem fome.


– Serei como os destruidores e tentarei extrair poder da minha fome.
Ela pareceu intrigada quando mencionei os destruidores.
– Hmmm... mas dizem que essa técnica não funciona quando se nega os
alimentos por vontade própria. Você precisa ser um miserável genuíno.
– Eu sou! Estou há três dias sem comer e agora sinto que entendo o
desespero dos destruidores.
– Criança... o povo dos destruidores passou fome por anos, por uma vida,
até por séculos. E você acha que depois de passar fome por meros três dias é
capaz de entender um povo?
– Eu...
Fiquei sem palavras. Ela me estendeu o maço, para que eu tirasse uma das
cartas. O arcano que eu retirei possuía uma imagem terrível, que me deu um frio
na espinha.
– Dizem que os destruidores têm um baralho com cartas muito mais
assombrosas. E o peso do significado de cada uma delas possui o poder de
esmagar um gigante.
– Como isso é possível...? Eu sempre pensei que o GGM fosse um grimório
que explicasse a fundo a evocação dos gênios malignos e não um sistema de
divinação.
– O poder deles está muito além de sua imaginação. Já ouviu falar que eles
despertam poderes psíquicos profundos com os gênios e com os selos
multidimensionais?
– Já ouvi que os destruidores alteram o estado de consciência por intermédio
de feitiços. Já o príncipe de minha terra sempre acreditou que o segredo deles
estava na meditação, mas eu acho bobagem.
– Então você realmente é uma construtora.
– Como você...?
– Estamos conversando no seu idioma. Não preciso ser uma adivinha para
saber de onde veio.
– O idioma dos construtores é bem conhecido em outras terras.
– Você o pronuncia com perfeição. Isso é incomum.
– Então conte–me meu futuro, adivinha! E eu te direi se acertará. Quantos
anos viverei?
– Muitos. Terá filhos, se casará com sua alma gêmea e se tornará uma maga
muito poderosa.
– Você se enganou, feiticeira! Um destruidor assassinou minha ligação.
Morrerei aos 21, sozinha e sem filhos!
– Minha bola de carvão me mostra outra coisa... parece–me que você
realizará uma magia lendária chamada Inversão.

102
Fábula dos Gênios

– Eu não posso me salvar com essa magia, pois para fazê–la eu preciso ter
uma ligação. Ora, já cansei de ouvi–la. Vou–me embora. Desperdicei uma gota
de sangue, tão cara para mim agora que estou faminta e fraca. Adeus!
Mas eu não tinha para onde ir. Vaguei pela floresta por muito tempo ainda.
Não encontrei mais frutos. Eu senti que não aguentaria continuar viva,
principalmente porque não tinha mais nenhuma esperança.
– Se desejar, posso te dar uma carta.
– Você de novo?
– Pegue, esta é sua.
E ela me entregou aquela carta assustadora que eu havia retirado outrora.
Uma péssima companhia para a viagem.
Decidi encostar–me sob uma árvore. Quando se passa fome, o ideal é
permanecer sem se mover, para gastar menos energia.
Até que a carta começou a mexer comigo. Eu me senti diferente ao carregá–
la. Havia uma energia estranha nela.
Quando despertei no dia seguinte, havia um naco de pão sobre as minhas
vestes. Olhei para os lados e não vi ninguém. Comi com gosto, mas ainda não
sabia de onde vinha.
No próximo dia, havia a fatia de algo que parecia um bolinho. E assim
seguiu–se nos próximos dias. A comida sempre surgia perto da carta.
– Que acha disso, Papaza?
– Está vindo a partir da carta. Eu vi quando aconteceu.
Mas eu não encontrei mais a adivinha para perguntar a ela sobre isso.
Resolvi caminhar até a cidade, pois pãezinhos e bolinhos não iriam me
sustentar. Descobri que eu estava na terra da divinação. Consegui um emprego
como faxineira. Eu não teria nenhuma chance de frequentar uma escola de
magia, já que eu era estrangeira e não tinha um tostão. O salário que recebi só
daria para comer e mais nada.
– A carta continua trazendo comida. Ontem foi um abacate e hoje um
ovinho.
– Eu me pergunto se os destruidores conhecem uma magia como essa.
Conforme os meses passavam, eu juntava alguns centavos do meu salário.
Até que, após um ano, consegui comprar um livro.
Era um grimório ensinando algumas magias simples dos adivinhos. Aquele
volume explicava um pouco sobre diferentes baralhos e outros métodos
divinatórios, como magia com espelhos.
Eu o estudei com afinco. Não encontrei nada sobre a minha carta. Mesmo
assim, eu testava algumas magias e era estimulante. Sempre que eu via meu
reflexo em algum lugar, tentava aplicar a técnica.

103
Wanju Duli

O país da divinação era repleto de superfícies brilhantes. Os habitantes de lá


estavam sempre buscando métodos de enxergar o passado e o futuro. Já outros
acreditavam que o objetivo da divinação era muito mais profundo. Tinha a ver
com juntar peças de quebra–cabeça e contemplar a beleza da vida.
– Quebra–cabeça...
Muitas dos métodos divinatórios clássicos tinham surgido a partir de jogos.
Portanto, sempre havia um aspecto divertido. Enquanto alguns magistas
defendiam o estudo da probabilidade para determinar certos resultados, havia os
magos mais criativos que preferiam adivinhar as coisas não como num cálculo,
mas como quem masca chiclete e se pergunta de que tamanho vai sair a bola
daquela vez e se ela vai tocar o nariz quando estourar.
Eu preferia esse segundo método, mais intuitivo. Mas eu não tinha muito
tempo para praticar, pois precisava trabalhar.
Conforme os anos passavam, meu salário diminuía e minha jornada de
trabalho aumentava. Eu apenas sonhava com a magia, sem saber que ela sempre
esteve dentro de mim, não importava onde eu estivesse e com quem.
“Os destruidores extraíram a magia mais poderosa a partir da fome e do
sofrimento. Por que eu não consigo fazer o mesmo?”
Talvez eu estivesse esperando por algo: por um mestre, por uma escola de
magia, por um grimório. Mas... eu não precisava de dinheiro ou de companhia
para realizar a magia que sempre esteve dentro de mim.
– Varra, você não quer usar seu segundo desejo para sair desse lugar?
– Eu sei que viverei pouco, mas não quero gastar meu segundo desejo ainda.
De alguma forma, eu quero acreditar no que a adivinha da floresta disse: que
ainda tenho muitos anos pela frente.
Um dia consegui juntar moedas o suficiente para ter acesso à internet local.
Paguei para usar durante uma hora, num computador público.
Como eu não tinha mais meu celular, resolvi fazer algo maluco: conectar–me
ao velho chat que eu usava para falar com meus amigos. E levei um susto com o
que descobri.
Tchei não conectava desde o dia derradeiro, confirmando que estava morto.
A mesma coisa em relação a Wakwa, demonstrando que o destino dele havia
sido semelhante.
Contudo... o chat mostrava que Nhahia tinha conectado dois anos atrás. E
Bilubelei há poucos meses!
– Eu não acredito nos meus olhos...
Cromo estava online!

ARARA: Seu idiota! Não acredito que está vivo!

104
Fábula dos Gênios

Meu coração bateu mais forte quando digitei aquilo. Mas ele demorou
bastante para me responder. Até cheguei a desconfiar que fosse outra pessoa na
conta dele.

MOMO: Varra, é você mesma?


ARARA: É claro. Estou no país da divinação. Onde você está?
MOMO: Samerre, o país da religião.
ARARA: Nunca ouvi falar disso! Essa terra aqui chama–se Crava.
MOMO: Eu sei. Aliás, sei de tudo, lembra–se?
ARARA: Então me diga onde estão Nhahia e Bilubelei.
MOMO: Nhahia está em Sinabil. Bilubelei em Narrara. Você está bem?
ARARA: Mais ou menos. Arranjei um emprego chato que não me dá tempo
de praticar magia. Você já se comunicou com as garotas?
MOMO: Não. E obrigado por perguntar se estou bem. Perdi um olho, uma
orelha e três dedos. Não consigo mais caminhar e só respiro com a ajuda de
aparelhos. Duvido que as outras duas tenham escapado inteiras. E quanto a
você?
ARARA: Eu não lutei. Escondi–me na floresta até o fim da guerra. Os
destruidores permitiram que eu fosse até o porto, mas me ameaçaram.
MOMO: Você é uma vergonha para nosso povo. Ouviu? Uma vergonha!
Nem mesmo tenho vontade de manter essa conversa depois de saber disso.
ARARA: Desculpe.
MOMO: Não é a mim que você deve pedir desculpas, pois eu jamais irei
perdoá–la. Eu me orgulho enormemente de cada pedaço meu que foi arrancado.
E você, que tem para se orgulhar? A sua vida miserável que foi salva, o que lhe
dará somente mais poucos anos de vida, já que Tchei está morto?
ARARA: Então você soube.
MOMO: Pela milésima vez, não menospreze minha rede de informações.
Estive vivendo até agora em Tecraxei, país da magia tecnológica. Coletei
algumas informações que serão úteis em nossa vingança contra os destruidores.
Vim para Crava há pouco tempo, pois havia algo de meu interesse nesse lugar.
ARARA: Sua ligação também morreu?
MOMO: Obviamente. Eu senti quando ela se foi. Nunca saberei quem era
minha ligação, mas isso pouco importa agora. Eu só quero matar um destruidor
antes do meu fim. Você não tem o mesmo sentimento e esteve brincando por aí
durante esses anos porque a invasão dos nossos inimigos não ficou gravada em
sua carne.
ARARA: Droga. Suas palavras são verdadeiras. Ao menos não terei a honra
de lutar ao lado de vocês?

105
Wanju Duli

MOMO: Eu não vou permitir. Parece que alguns construtores mais velhos
também escaparam. Isto é, os que tinham quase 21 e ainda não tinham realizado
sua ligação já morerram. Mas aqueles maiores de 21 ou com um ou dois anos a
mais que nós ainda vivem. E vão nos ajudar nessa batalha.
ARARA: Quantos somos ao todo?
MOMO: Não mais que vinte, ao que parece. Muitos cometeram suicídio nos
abrigos, o que foi uma desgraça. Mas esse suicídio que realizaremos em breve ao
atacá–los ficará na história.
ARARA: Não quero entrar para a história.
MOMO: Você não quer nada, apenas fugir. Agora, com licença, estou
perdendo meu tempo conversando com uma traidora. Continue aí escondida e
tenha uma morte tranquila numa cama, como deseja, enquanto nós nos
lançaremos para a morte, tendo o corpo destroçado e a alma despedaçada. Mas
morreremos com orgulho no coração.

Ele saiu do chat.


– Que acha disso, Papaza?
– Cromo está irado e com razão. Narrara não é longe daqui. Sugiro que
reúna todas as suas economias e viaje para lá.
E foi exatamente o que fiz.
Minha mente ficou muito turbulenta durante a viagem, mas eu preferi não
pensar. Cromo havia feito com que eu me sentisse culpada. Talvez Nhanha e
Bilu fossem me odiar também.
Mesmo assim, procurei por Nhahia em todas as escolas de magia de Narrara.
Até que encontrei uma instituição em que ela havia se matriculado. Mas eu
também soube que ela abandonou a escola pouco depois de se matricular.
– Varra, você está fazendo confusão. É Bilubelei que mora aqui e não
Nhahia. Foi até uma surpresa saber que Nhahia já pisou aqui. É possível que as
duas já tenham se encontrado.
– Cromo disse que ainda não se comunicou com elas. Espero que elas não
estejam planejando voltar para atacar os destruidores sozinhas.
Localizei facilmente a escola na qual Bilubelei se formou. E escutei sobre os
boatos da maga da montanha.
Resolvi subir a montanha. Eu ainda sabia um pouco de magia que me
auxiliasse no processo, mas mesmo assim não foi simples.
Uma casinha bastante discreta. Bati na porta.
– Eu não gosto de visitas. Vá embora!
– Ouvi falar que a senhora e Bilubelei possuem alguma relação...
– E quem disse que isso te interessa, maldita?

106
Fábula dos Gênios

– Espere, mestra. Eu conheço essa voz. Ela está diferente, mas.... não pode
ser.
A porta se abriu. Vi Bilubelei diante de mim, com seus longos cabelos, seus
olhos vermelhos e sem um braço.
– Pelos gênios... Varra!
Fiquei sem saber como agir. Achei que um abraço seria inapropriado, então
apenas aceitei o convite para entrar.
– Há mais alguém comigo.
– Quem? Nhanha?
– Não.
Ela me mostrou quem estava deitado na cama de um dos quartos.
– Não me diga que é Wakwa? Está quase irreconhecível!
– Ele foi mantido como prisioneiro pelos destruidores durante todos esses
anos.
– Isso é insano...! Não me diga que foi até lá para salvá–lo?
– Exato. Fomos há quatro meses. Nhahia foi capturada. Preciso voltar para
buscá–la, mas... Wakwa precisa se recuperar antes, pois ele quer ir comigo.
– Isso é suicídio!
– Não é. Teremos um filho antes de ir, pois se um de nós morrer, o outro
poderá continuar a viver.
Pensei não ter ouvido direito. Mas ela falou com muita clareza para ser um
engano. Eu me surpreendi.
– Wakwa é sua ligação.
– Iremos demorar mais de um ano antes de salvarmos Nhahia. Levarei nove
meses para ter o bebê e Wakwa não tem condições de me engravidar agora, pois
ele ainda está se recuperando do choque físico e psicológico do contato com os
destruidores.
– Você acha mesmo que Nhanha vai sobreviver em meio àquele povo
desgraçado por mais um ano? Capaz de já ter morrido a essa altura. E se
pretendem salvá–la quando ela tiver 19 ou 20 anos, ela só terá mais um ou dois
anos de vida. Assim como eu.
– Mesmo que ela fosse viver por apenas mais um dia, eu voltaria para salvá–
la. Para dar a ela um último dia ao nosso lado, que somos os amigos dela. Para
que possamos nos divertir juntos no final.
– Isso não se parece muito com o discurso da contraparte que a abandonou
num covil de leões para ser devorada.
– Eu não poderia colocar Wakwa em risco. E o que me diz de você, Varra?
Quantos destruidores matou para sair ilesa? Você deve ser muito poderosa.
Eu senti a ironia evidente na voz dela.

107
Wanju Duli

– Eu fugi e não me arrependo! Sabíamos que não venceríamos, mas se vocês


fizeram questão de perder partes do corpo ou correr risco de morrer numa luta
inútil, informo que não possuo o mesmo masoquismo de vocês. Isso que
chamam de heroísmo ou sacrifício eu chamo de piada ruim.
– Como ousa...? Eu e Wakwa arrancamos um pedaço do gênio da princesa
dos destruidores com nossa magia de ligação. Isso só foi obtido porque essa é
nossa magia mais forte. Mas foi feito! Aposto que os construtores adultos
conseguiram matar alguns destruidores com essa técnica sublime!
– Duvido muito. Não dizem que os destruidores possuem uma versão
reversa e muita mais poderosa de todos os nossos feitiços?
– Sim, isso é verdade.
– Wakwa, descanse. Não fale.
– Meus olhos não funcionam bem e não tenho forças para levantar dessa
cama. Mas, de resto, estou bem. Eu posso falar.
– Sua ligação te abandonou nas mãos dos destruidores por sete anos. Você
acha isso razoável? Está satisfeito?
– Bilubelei fez o que devia ser feito. Só por ela ter retornado, sinto–me grato.
– Não percebe que ela está somente usando você? Se ela não soubesse que
precisava de seu corpo para continuar viva, não teria se importado em te salvar.
– Varra, eu escutei o resto da conversa. Você fugiu da batalha, então não
tem o direito de falar nada. Apenas cale a boca e pare de julgar os outros, sua
falsa maga. Nem sei que está fazendo aqui. Uma pessoa como você será inútil
numa luta.
– Ora, eu passei fome e trabalhei duro por todos esses anos, então não
venha me julgar também. Enquanto vocês se divertiam nas escolinhas de magia
para ricos...
– Eu dificilmente posso dizer que me diverti. Fui cobaia de experiências
macabras e vi coisas terríveis. Fico grato por estar quase cego, senão eu teria
enxergado muito mais.
– Eu me comuniquei com Cromo pela internet. Ele está preso numa cama
num estado muito pior que o seu. Está reunindo construtores sobreviventes
pelo mundo todo. Eles vão se vingar.
– Ele não demorou tanto tempo para fazer isso somente para encontrar
sobreviventes. Aposto que estão reunindo as páginas do GGM. Provavelmente
irão atacar quando tiverem todas.
Aquilo soava perfeito. Havia construtores com conhecimento do Grimório
dos Gênios. Se juntassem a essa sabedoria as práticas do Grimório dos Gênios
Malignos, poderiam descobrir como derrotá–los. Se bem que... os destruidores
também tiveram acesso a todos os nossos grimórios. Portanto, será que aquilo
faria mesmo alguma diferença?

108
Fábula dos Gênios

Os construtores não se importavam. A vida deles perdeu o sentido após o


massacre. Eles queriam morrer logo, porque continuar vivo seria tortuoso
depois de tamanha humilhação.
– Por que apenas não tentam viver uma vida normal? Cromo perdeu sua
ligação e quer se matar. Mas vocês dois ainda teriam muitas décadas pela frente.
– Uma situação como essa não se mede em anos, Varra. Você, mesmo tendo
somente mais três anos pela frente, teme enfrentar os destruidores. E nós,
mesmo que fôssemos imortais, não temeríamos. Eu juro que irei arrancar a
cabeça da princesa que fez isso a Wakwa. Não me importo em ser torturada, em
perder meu corpo ou minha alma. Eu somente preciso dessa redenção. Não ligo
se estou fazendo o bem ou o mal, se é certo ou errado matar alguém. Isso não
se mede pela matemática, pela lógica, pela ética. É algo maior. Algo que você
jamais entenderia.
Todos me consideravam um lixo por ter fugido. Eu já estava farta daquilo.
– Wakwa, conte logo o que viu lá. Quem realmente são os destruidores?
– Não é algo que se possa explicar por palavras. Você precisa estar lá para
sentir.
– Que quer dizer com isso? Não entendo.
– Eu quero dizer que eles são tão extraordinários quanto terríveis. A coisa
mais surpreendente que descobri nesse tempo lá é que eles são humanos. Eles
não são monstros, Varra. Saber disso não diminui minha vontade de matá–los,
mas pensar neles como humanos aumenta nossa chance de derrotá–los.
– Como você descobriu isso?
– Porque a princesa deles se apaixonou por mim. Ela tentava esconder isso
me espancando, em meio ao seu ódio. Mas ela sabia que éramos parecidos:
ambos da realeza. Ela, a filha dos reis dos destruidores. Eu, o filho dos reis dos
construtores.
– Você só está se gabando. Os destruidores não são capazes de amar. Os
gênios malignos tomam o lugar da alma e do coração. Então, que é que ama?
– O ódio. Já ouviu falar que existe uma tênue fronteira entre o amor e o
ódio?
– Um destruidor jamais se apaixonaria por um construtor. Não faz sentido.
Somos inimigos. Queremos matar uns aos outros e não amar.
– O ser humano é um animal estranho. E os destruidores seguem seus
instintos animais muito ferozmente. Eles matam, destroçam, devoram uns aos
outros vivos. Não seria lógico supor que se comportam da mesma forma para o
amor? O amor dos animais é muitas vezes desesperado, selvagem. Portanto, eu
sei o que a princesa sentia quando me espancava.

109
Wanju Duli

– Talvez você sentisse o mesmo por ela? Então seu masoquismo está
confirmado. Ouviu isso, Bilu? Ele estava gostando de ser torturado pela
princesa dos destruidores. Você devia ter deixado Wakwa lá.
– Os sentimentos e as fantasias de Wakwa não dizem respeito a mim. Eu
não o amo. Ele é minha ligação porque assim foi determinado no nascimento.
Terei esse bebê para salvar a nós dois. E irei matar os destruidores para vingar
nosso povo. Irei vingar Wakwa pela amizade que temos. Isso é tudo. Se sairmos
vivos dessa, cada um seguirá o seu caminho.
– Esse é o caso, Varra. Eu e Bilubelei somos somente amigos e respeitamos
um ao outro. Eu tenho interesse em magia de meditação e irei partir para uma
terra distante um dia. Bilubelei estudará a magia dos livreiros ou o que ela
desejar. Quanto ao filho, ele também será levado ao país que possua a magia
com a qual se identifique. Não é assim que nós, construtores, costumamos agir?
Aquilo era verdade. A maioria de nós vivíamos sozinhos desde a infância,
pois nossos pais não viviam juntos. Geralmente viajavam, também moravam sós
ou com amigos e companheiros do mesmo sexo. Era raríssimo um caso em que
a ligação se apaixonasse. Eu sinceramente não tinha ouvido falar de nenhum
caso assim, mas nossa história registrou alguns. Uma história tão fantasiosa que
mais parecia um filme.
Eu, por exemplo, sempre odiei Tchei. Wakwa e Bilubelei não sentiam
atração um pelo outro além da amizade e respeito. E aquilo terminava assim,
certo?
Wakwa queria matar os destruidores. Mesmo que sentisse alguma atração
por um deles, seu desejo de vingança e sua honra superavam. Além do mais, era
suicídio apaixonar–se por alguém de sexo oposto que não fosse sua ligação. Por
isso a maior parte escolhia um companheiro do mesmo sexo para viver junto.
Geralmente a contraparte.
– Bem, eu só espero que Nhahia sobreviva, embora isso seja improvável.
– O destruidor me informou que fez a ela algo pior que a morte. Se ele
tomou a alma ou o gênio, não sei se ainda será possível salvá–la. A princesa ou o
rei estão com o gênio de Tchei. Então quando voltarmos lá, espero que
possamos ao menos salvar os gênios...
Uma esperança tola. Ainda assim, era uma esperança. Algo que eu havia
perdido há muito tempo. Somente os tolos acreditavam nisso.
É por isso que algumas vezes vale a pena ser um tolo. Transformar o
impossível em possível sempre foi coisa de contos de fadas... certo?

– Ah, maldição...! Droga!!

110
Fábula dos Gênios

Foi desse jeito que a luta terminou. Não que eu esperasse um resultado
diferente: uma construtora numa cadeira de rodas usando um sistema mágico de
uma terra distante contra um destruidor adulto que dominava completamente a
magia dos gênios malignos.
Mesmo assim, me deu gosto ser parte daquela batalha. Certo, ele não era um
adulto. Era um adolescente, como eu. Mas... ele era um destruidor, cara! Até
como criança ele já tinha me ferrrado. Caramba...
Quando eu o avistei, mesmo de longe, tive certeza de que era ele. Ele usava
um daqueles mantos verdes com remendos marrons, assim como todos os
outros destruidores. Para se camuflar nas florestas, hã? Não importava o motivo.
Aquele manto velho e remendado agora era símbolo de poder e terror. A
pobreza deles era suprema.
“Eu admiro os destruidores ou quero matá–los, afinal?”.
No fundo a resposta para isso era muito simples: os construtores não os
ajudaram quando precisavam, então por esse motivo eu sentia simpatia por eles.
Mas o fato de terem destruído meu povo era imperdoável. Então o desejo de
matá–los era muito mais poderoso.
Por isso, nem esperei que o destruidor se virasse e ataquei. Mas ele já sabia
que eu estava por perto, pois me sentiu.
Tracei os meus selos de ataque, repletos de cálculos. Aquele destruidor
certamente não sabia nada de matemática e seria incapaz de romper os meus
selos. Foi o que pensei...
Eu era tola. Ingênua. Burra! Ele rasgava dimensões como quem brinca de
respirar. Ele seria capaz de parar qualquer feitiço que eu lançasse. Para ele as
barreiras do tempo e espaço eram um joguinho divertido.
Mas digamos que eu o impressionei ligeiramente por utilizar um selo
tridimensional. Da primeira vez que batalhamos, eu mal sabia traçar um selo
direito.
Aquela batalha poderia ter sido muito mais longa e emocionante. Mas eu
estraguei tudo com minha fraqueza.
Pensei que o veria traçar um selo completamente maluco com algumas
dezenas ou centenas de dimensões, mas não... bastou um selo bem simples pra
me derrubar da cadeira de rodas.
Eu não me importei. Mesmo caída no chão, continuei a lançar todos os selos
que sabia, com todas as formas geométricas que estudei e pude combinar.
Realizei os cálculos mais loucos que minha mente conseguiu conceber naquele
momento de nervosismo.
Ele percebeu meu medo. Deve ter sentido pena. Por um momento notei que
ele apenas assistiu o que eu fazia com curiosidade, sem impedir.

111
Wanju Duli

Então eu não era apenas um inseto incômodo a ser esmagado com o pé. Até
um destruidor estava curioso para ver o que eu faria com aquele monte de
desenhos simplórios que eu traçava no ar, hã?
Se eu tivesse usado aquela técnica quando enfrentei o destruidor criança, era
bastante provável que isso tivesse trazido problemas a ele. Eu acho...
Já o destruidor adolescente me fitava como quem acha gracioso uma criança
que desenha rabiscos tortos num pedaço de papel. Com a diferença de que ele
não me fitava com simpatia e sim com uma seriedade severa. E talvez com um
pouco de indiferença. Estava apenas levemente intrigado.
Mas ele permitiu que eu fizesse aquilo apenas por breves segundos.
– Arem.
Quando ele pronunciou aquilo, houve um corte fundo no meu rosto, que
também atingiu uma parte do pescoço e do ombro. O sangue pingou no chão.
O susto que eu levei foi imenso. Ele lembrava daquela magia! Wakwa tinha
usado nele. Ele... usou o nosso “Mera” ao contrário!
“Miserável...!”
Aquilo era o bastante. Com isso ele provou que não importava o sistema que
usasse, o poder estava nele. Era impossível vencê–lo.
Eu sempre esperei por aquele duelo. Sonhei com ele. Na minha mente,
duelávamos ferozmente, eu lançando meu selo, ele quebrando o meu e
devolvendo com outro, eu rebatendo. Mas aquilo era só uma fantasia estúpida
da minha cabeça.
“Ou ele é um dos mais poderosos destruidores, ou os destruidores são
monstros”.
Um prodígio?
Um gênio.
O destruidor chamou seu gênio. Mas dessa vez ele não grunhiu.
– Basza.
Na verdade ele parecia muito calmo. Nem conseguia sentir o fervor da
batalha, que já estava ganha.
O gênio dele havia se tornado gigantesco e imponente. Enquanto o meu
continuava pequenino e comum, como sempre.
– Bapsi!
Quando eu chamava Bapsi, sentia um fervor no coração. Meus batimentos e
minha respiração se alteravam. Aquilo, junto à adrenalina da batalha, era
extraordinário.
Eu também sentia uma pressão forte nos olhos. É claro: Bapsi desenrolava–
se de minha alma e ela ficava vulnerável nesse momento. Por isso eu sentia dor
nos olhos. Mas aquilo somente aumentava meu ardor.

112
Fábula dos Gênios

– Bapsi, você vai morrer agora. Você sabe, certo? Viu o tamanho e
magnificência desse gênio.
– Eu sei!
Bapsi não parecia a fim de papo. Também era emocionante para ele poder
lutar contra um gênio tão forte. E também era meio nostálgico. Tanto para mim
quanto para Bapsi. Pensando bem, talvez o fosse para nós quatro. Eu não sabia
como pensavam os destruidores ou os gênios malignos.
Da primeira vez, o destruidor teve dificuldade para controlar seu gênio.
Achei que aquilo tinha acontecido por ele ser uma criança. Eu não esperava que
fosse ocorrer uma segunda vez.
Embora possuísse maestria sobre os selos multidimensionais, o destruidor
pareceu meio confuso ao não conseguir mandar o seu gênio atacar o meu.
Dessa vez ele grunhiu alguma coisa para seu gênio. Era em seu idioma. Eu
não entendi. Era a primeira vez que eu via aquele destruidor falar frases
completas.
Ele estava meio zangado. Sugou o gênio de volta. Aquilo era bem
impressionante, pois ele parecia uma pessoa bastante séria e contida.
A voz dele estava bem mais grave do que eu me lembrava. Eu estava tão
envolvida observando os detalhes que nem me lembrei de atacá–lo enquanto ele
estivesse distraído.
Mas minhas magias simplesmente não davam certo! Por isso, embora eu não
pudesse caminhar, arrastei–me no chão com os braços.
– Bapsi, ataque–o! Mate o gênio dele!!
– Eu não posso, Nhanha!
– Eu sei que você não pode, mas ao menos tente, covarde!
Resolvi não contar com Bapsi. Aproximei–me do destruidor e segurei–o
pelo tornozelo. Hora de apelar para a força bruta. Mesmo estando mais alto, ele
ainda continuava fraco e magrelo. Azar o dele!
Puxei–o pela perna e derrubei–o no chão. Dei alguns socos nele. Ele tentava
se defender com os braços, mas logo se cansou de brincar. Ia usar magia.
Foi naquele exato instante que me dei conta de uma coisa completamente
maluca.
Os destruidores possuíam versões reversas de nossas magias, certo? Então
era óbvio que possuiriam uma versão refinada da nossa magia mais poderosa.
“Os destruidores também têm ligações”.
Por isso eles só nos atacavam de longe. Mas o sistema deles devia ser
diferente. Eu desejei testar o quanto éramos diferentes.
Aquilo poderia me matar, mas eu morreria de qualquer forma. Então eu iria
levá–lo junto!

113
Wanju Duli

Ele percebeu o que eu pretendia fazer. Quando tentei abraçá–lo, ele se


esquivou no mesmo instante e me lançou uma magia... bem, em poucas palavras,
o susto dele foi tão grande que me meteu um feitiço dos mais violentos.
Aconteceu em alguns milésimos de segundo. No instante seguinte, eu sentia
tanta dor no corpo que logo notei que não teria mais muito tempo de vida.
Eu não ia mais conseguir me levantar. Fim de jogo. Ele enjoou de batalhar e
acabou logo com aquilo.
E lá se foi a grande luta dos meus sonhos. Eu fui uma decepção. Mas aquilo
me fascinou. Como eu queria tê–lo como mestre...! Eu seria a maga mais forte
do mundo. Com exceção dos próprios destruidores, é claro.
Eu não queria matá–los de verdade, pois eu sabia que não conseguiria.
Voltei para lá por mero capricho, apenas pela chance de batalhar com um deles
novamente. Pois eu queria ver o poder.
“Eu vou morrer em três anos e nada disso fará mais diferença”.
Mas, pensando bem... três anos era muito tempo. Por que eu escolhi jogá–
los fora? Aquela batalha valia três anos da minha vida?
Talvez. Certas coisas não podem ser medidas num cálculo. Seria esse o
segredo que os destruidores usavam para perfurar a dimensão do tempo?
Ele devia estar pensando no que fazer comigo, pois levou tempo demais
para me matar.
– Ei Nhanha... você ainda tem seu segundo desejo.
– Você não tem poder para matá–lo com ele, então de que adianta? E você
vai me salvar somente para que eu retorne aqui outra vez?
Era um caminho sem volta. Foi nesse instante que me recordei do meu
primeiro desejo.
A tinta do meu cabelo já estava saindo. Era a ocasião perfeita para... para
quê?
– Como ativo o poder do meu primeiro desejo?
Tarde demais para pensar nisso. O destruidor estava tentando puxar minha
alma. Colocou os dedos sobre os meus olhos, mas eu os evitei.
– Bapsi, proteja minha alma!
– Estou agarrada a ela o máximo que posso!
Mas o destruidor não completou o processo. Colocou as mãos na cabeça e
contorceu–se. Parecia estar sentindo dor.
– O corpo dele reage só por ter encostado os dedos em mim? Pensei que os
destruidores tinham mais controle que nós sobre isso.
– Não é isso, Nhanha. Sua blusa...
Quando o destruidor me fez aquele corte fundo no pescoço e no ombro,
uma parte da minha blusa rasgou.

114
Fábula dos Gênios

O destruidor saiu de lá. Mas logo estava de volta, acompanhado de outro


destruidor, do sexo feminino. Ela me capturou. Fui colocada numa prisão.
– E o que acontece agora?
– Eles não parecem muito a fim de te matar. Será que vão negociar sua alma
por riquezas?
– Talvez negociem você!
– É possível. Você viu como está cheio de magos por aí ansiosos por ter um
gênio. Aquele seu professor de personalidade duvidosa é um ótimo exemplo
disso.
– Pensando bem, destruidores não ligam para riquezas. Então o que você
disse antes não faz sentido.
– Qualquer pessoa ou povo, por mais fanático por simplicidade que seja,
precisa ter o mínimo necessário para sobreviver. Então é claro que os
destruidores precisam ligar para riquezas, pelo menos um pouco. E como os
destruidores são fissurados por poder, eles devem ter visto algo de valor em
você nesse sentido. Quem sabe sou eu?
– Balela. Você viu o seu tamanho comparado ao gênio do rapazinho. Sinto
muito, Bapsi, mas você não é de nada! E nem eu.
Não demorou muito para que surgisse um terceiro destruidor. Ele
comunicou–se comigo através da cela.
– Prisioneira, eu falar sua língua. Revelar agora o segredo do seu gênio.
Senão alma da prisioneira rasgada.
Esse terceiro destruidor era um adolescente do sexo masculino. A forma
com que ele pronunciava meu idioma era muito engraçada. O sotaque dele
também era hilário. Obviamente, eu não era louca para rir.
– Eu não tenho segredos. Pode me matar. Eu não tenho medo.
Eu só falei aquilo porque percebi que eles tinham interesse em mim e não
me matariam facilmente. Se quisessem realmente fazê–lo, já teriam completado
o processo.
Ele me lançou um daqueles mantos remendados por dentre as grades.
– Cobrir corpo.
A intenção dele ficou bem clara quando ele lançou o manto. Ainda assim,
aquelas vestes eram ligeiramente diferentes das deles. Fiz como ele ordenou,
embora aquela coisa fedesse.
– Construtora miserável.
Ele falou isso com ódio. Esse destruidor parecia mais esquentado do que
aquele com o qual lutei. Provavelmente o outro não sabia nada sobre meu
idioma. Então esse seria o tradutor.
Ele saiu. Fui deixada em paz por mais tempo. Eu já estava ficando com
fome, pois as horas se arrastavam.

115
Wanju Duli

Até que, em algum momento, o destruidor que eu conhecia surgiu diante de


mim novamente. O dono do imponente gênio azul escuro, o qual
provavelmente chamava–se Basza. O gênio era do sexo feminino e aquilo era
bem óbvio, sendo que o gênio sempre possui sexo oposto ao seu dono.
Ele abriu a grade e adentrou. Resmungou alguma coisa para mim em seu
próprio idioma, fazendo um movimento com as próprias vestes. Eu não entendi.
Ele ficou impaciente e, com um segundo movimento rápido, colocou mais
uma parte do meu manto sobre mim. Ele queria que eu cobrisse meu corpo
completamente e só deixasse uma porção do rosto visível.
Ao meu lado, ele abriu um grosso grimório.
– Grimório dos Gênios Malignos...!
Eu não pude deixar de pronunciar, com fascínio. Ele olhou para mim
quando eu disse isso. Acho que até ele provavelmente conhecia o nome do
grimório deles no idioma dos construtores.
Ele não confirmou e nem negou. Mas o simples fato de ele ter reconhecido
aquele nome me chamou a atenção.
– Basza.
Resolvi pronunciar o nome do gênio. Eu queria falar palavras que ele
pudesse reconhecer, para observar as reações.
Ele também me lançou um olhar desconfiado quando eu disse isso. Mas
dessa vez o termo o incomodou. Ele não devia desejar que eu soubesse muito a
seu respeito. Afinal, quanto mais informações se tem sobre o mago, mais poder
se possui sobre ele. Caso o mago seja esperto o suficiente para fazer bom uso
das informações, o que não era meu caso.
– Graanwanhiarwangrrr.
Pronunciei algo parecido com o que o escutei falando outra hora. Dessa vez
ele se ofendeu. Devia pensar que eu estava zombando do respeitável idioma de
seu povo.
Ele traçou um selo no ar, que voou para tocar meus lábios. Aquilo adentrou
na minha boca e provocou um corte em mim. Senti gosto de sangue, que
pingou pelos meus lábios e escorreu pelo pescoço.
“Nhanha... você quer morrer...?”
Embora eu dissesse que não tinha medo, aquilo não era verdade. Um
destruidor carregava o GGM na minha frente e eu ainda fazia gracinhas? Eu
devia ser mesmo uma completa idiota.
Ele pronunciou um dos feitiços do livro. Eu senti muita dor.
Ele não estava ali para brincar. Ia realizar experimentos bizarros em mim.
Os dias se seguiram dessa maneira: a cada dia um novo experimento horrível
era realizado. Eu já estava até identificando os nomes das magias naquela língua
estranha. As que eu mais odiava eram aquelas que atingiam minha alma.

116
Fábula dos Gênios

Era terrível quando ele torturava meu corpo com magia, mas a dor na alma
era muito mais intensa. Simplesmente inexplicável: não era bem dor, era uma
agonia psicológica sufocante.
Mas ele nunca tocava em Bapsi. No começo eu pensei que era porque
gênios eram valiosos e ele pretendia roubar o meu.
Nunca me passou pela cabeça que ele não machucava Bapsi simplesmente
porque não conseguia.
Ele tentou. Chamou seu gênio algumas vezes, mas cada vez que ele o usava,
falhava. Notei que ele não ficava tranquilo em expor suas falhas na minha frente.
Por isso, ele nunca me torturava diretamente com seu gênio. Isso significava que
ele não seria capaz de usar em mim as magias mais poderosas do GGM. Afinal,
havia algumas que combinavam evocação de gênios com selos
multidimensionais. Isso seria muito efetivo.
Bastaram alguns dias para que eu apagasse da minha mente o desejo de ter
um destruidor como mestre. Eles eram animais sádicos. Ele não se cansava de
usar aquelas magias malditas. Esticava minha alma, feria meu corpo. Tudo isso
sem encostar um dedo em mim. Tudo com a mente.
Por um lado, era fascinante. Eu finalmente estava conhecendo algumas
possibilidades fantásticas do grimório secreto. Por outro lado, aquilo me fez
odiar o GGM. Ele significava dor extrema. E de que adiantava se eu não sabia
como aquilo era feito?
Quando o tradutor aparecia eu ficava contente, pois significava que a
comida estava chegando. A comida deles era ruim demais: uma papa com um
monte de coisas de gosto horrível misturadas. Devia haver carne, alho, manteiga,
leite, eu nem sabia identificar que gosto maldito era aquele. Os destruidores
eram péssimos cozinheiros.
Mesmo assim, sempre que a carne mergulhada no leite chegava, era o único
momento feliz do meu dia. Embora aquele destruidor fosse mais ranzinza, ele
trazia nas mãos alegria. Enquanto o destruidor mais calmo e sério trazia apenas
sofrimento.
Eu gostava de aproveitar a presença do tradutor para tentar puxar papo,
embora ele desse pouca atenção ao que eu dizia.
– Essa carne é de quê?
– Carne de destruidores mortos em batalha. Leite de morcego.
Fiquei sem fala diante dessa resposta. Tive vontade de vomitar a comida,
mas eu não tinha escolha.
– Eu queria uns vegetais.
No dia seguinte, ele me trouxe vegetais estranhos e amarelos com gosto
ainda pior que o da carne. Eu sabia que não conseguiria me manter somente
com vegetais crus. Eu precisava, sobretudo, de algo cozido.

117
Wanju Duli

– Você não pode matar algum coelho para me alimentar?


– Que ser coelho?
– Eu queria qualquer carne de animal, que não seja humana.
– Isso não ser possível. Que animal fazer com construtora? Animais ser
livres e felizes. Não ter relação com destruidores. Destruidores comer carne de
seus mortos, porque humanos ser negócios de humanos. Negócios de animais
ser com animais.
Aquilo me soou profundo. Então eles respeitavam os animais?
Provavelmente respeitavam as plantas também, já que ele só me trouxe vegetais
velhos e sujos, certamente mortos.
Então eles só recolhiam coisas já mortas para comer, em vez de matar com
as próprias mãos. Com exceção de seres humanos. Eles matavam uns aos outros.
Esse era o único tipo de carne que aceitavam comer. E não se importavam em
passar fome. Transformavam a fome em poder.
Tentei conversar com esse destruidor em outras ocasiões, mas ele costumava
me evitar. Eu queria aprender mais sobre os destruidores, pois se eu escapasse
viva dali teria uma história para contar.
Ao mesmo tempo, eu nutria um ódio cada vez mais profundo por eles, por
causa do infeliz que não se cansava de testar suas magias em mim.
E não adiantava eu balbuciar nada. O destruidor simplesmente não entendia
meu idioma. Era inútil.
– Bapsi... quando o destruidor viu um pouco do meu corpo no nosso duelo,
ele ficou perturbado. Você acha que se eu tirar esse manto pesado de cima de
mim e ficar apenas com minhas roupas antigas ele vai ficar zangado?
– Ele não vai gostar se você desobedecê–lo, não importa no que seja.
Testei isso. Assim que ele entrou na cela, tirei o manto. Ele mandou que eu
o recolocasse imediatamente.
– Eu estou de blusa e saia e ele ainda assim se incomoda? Que sujeito mais
esquisito.
Experimentei algo diferente. Tirei uma das meias. Nesse instante ele levou
um susto e saiu da cela imediatamente, tomado por um ódio sem tamanho.
– OK, então os destruidores também têm algum segredinho em relação a
meias?
Ele retornou com o tradutor e com a moça destruidora da vez anterior.
– Colocar meia e manto agora!
Aquilo não era mais engraçado. Tive que obedecer. Os três estavam com
raiva.
– Por quê?
– Ser ordem. Não questionar.

118
Fábula dos Gênios

Eu estava cansada daquilo tudo. Eu queria descobrir uma maneira de matar


o destruidor que eu mais odiava.
– Desde o começo, eu o repudio. A maga da montanha colocou umas
pernas falsas no lugar das pernas que ele arrancou de mim, mas que são inúteis
para caminhar. E agora ele me tortura diariamente. Se houver uma forma de eu
utilizar meu segundo desejo para puni–lo cruelmente...
Mas o dia seguinte iria me apresentar uma surpresa. Quando acordei,
observei um líquido de cor escura nos meus braços. A princípio assustei–me,
pensando que era sangue. Prestei mais atenção e percebi que a cor era rosa.
– A tinta dos seus cabelos está se derramando!
Quando o destruidor sério abriu minha cela para testar mais uma magia do
GGM em mim, também espantou–se com a tinta que caía.
Era minha última chance. Agarrei a barra da capa dele e me concentrei.
Havia algo crescendo em mim e eu senti que explodiria a qualquer momento.
– Mate–o. Mate–o. Mate–o.
Eu repetia isso, reunindo todo meu ódio. Eu ia fazê–lo pagar. O maldito que
me mutilou. O desgraçado que estava brincando de me torturar por prazer. Ele
não merecia viver.
“E eu mereço?”
Aquilo não importava. Porque quando você não se importa é capaz de fazer
qualquer coisa que sua fúria comande. Não era aquilo que um maldito
destruidor fazia? Então para vencê–los eu precisava ser como eles.
Uma explosão. Eu mesma pensei que não escaparia viva.
As grades da cela se partiram como palitos de dentes. Eu não fui tocada.
Pedaços das paredes se quebraram.
E o destruidor ao meu lado... que havia acontecido?
Ele conseguiu se proteger. Até numa situação como aquela, em que ataquei
completamente de surpresa!
O manto dele estava repleto de poeira, das paredes quebradas que caíram.
Ele cobriu o rosto com os braços. Quando retirou–os, notei um filete de sangue
em sua testa. O capuz dele estava caído para trás. Ele me fitava com uma
expressão de quem não gostou muito do que aconteceu.
O sangue dele era vermelho. Devo dizer que fiquei muito orgulhosa por ter
arrancado aquele sangue. Fazia valer a pena toda minha jornada.
Ele tinha cabelos pretos. Como se parecia com um construtor! Éramos tão
parecidos e ao mesmo tempo tão diferentes. O que exatamente nos separava?
Eu poderia fugir, mas não conseguia caminhar. Não daria tempo de me
arrastar até a saída.

119
Wanju Duli

Mesmo assim eu tentei. O destruidor segurou–me pelos cabelos. Ele grunhiu


alguma coisa, irado. Eu nunca o tinha visto assim tão irritado. Eu duvidei que
iria escapar da morte dessa vez.
– Essa é a última vez que você machuca Nhahia! Agora eu vou te mostrar
uma verdade que ficará gravada em seu coração para sempre.
– Não se mate, Bapsi!!
Ele não me escutou. Partiu para cima do destruidor e enrolou–se em seu
braço direito. Aquilo era uma ousadia extrema! Ele queria morrer?
O destruidor teve que soprar seu gênio. E Bapsi foi maluco o suficiente para
encostar nele.
Bapsi voltou para mim. O gênio do destruidor voltou para ele. Mas agora o
destruidor me fitava com uma expressão de choque. Ele não parava de olhar
para mim, como se não acreditasse no que seus olhos viam.
– Pelos gênios, Bapsi... o que você fez...?
– Em breve você entenderá.
O destruidor ficou tão furioso que quebrou o resto das paredes ao seu redor.
E ele saiu quebrando coisas por onde passava.
– E eu pensando que ele era um cara calmo e controlado... todos os
destruidores têm um parafuso a menos na cabeça, com certeza.
Minha comida não veio naquele dia. Ele pretendia me matar de fome? Em
compensação, a tortura também não chegou.
Nos dias que se seguiram, apenas o tradutor me visitava para trazer um
prato de comida. O outro destruidor não apareceu mais.
– Eu tenho uma teoria. Acho que ele enjoou de testar magias em mim,
porque eu não mostro as reações que ele espera.
– Eu tenho outra teoria. Ele está irritado com você porque descobriu o
quanto sou poderoso. Ele precisa de mim para um propósito maior.
– Está dizendo que ele pretende tirá–lo de mim e depois me soltar? Como
vou viver sem você, Bapsi?
– Eu estava brincando... não sou tão poderoso assim que até um destruidor
vá me querer, sua boba. Ainda assim, você sabe que o gênio é o reflexo do
poder do mago. Então, se sou fraco é porque você também é.
– Eu nunca fui rica para comprar muitos chicletes. E já estou cansada de
ficar presa aqui comendo essas refeições estragadas e usando esse manto
fedorento. Nunca pensei que terminaria minha vida assim. Por que ele não me
mata de uma vez?! Ou me liberta. Esse joguinho é inútil.
Ele queria me fazer sofrer, então me libertar ou me matar seriam gentilezas.
Ao que parecia, ele havia cansado mesmo de testar magias em mim. Eu sentia
que a próxima etapa da minha punição estava prestes a ser iniciada.

120
Fábula dos Gênios

– Bapsi, eu juro que não vou ficar em paz enquanto não matar aquele cara.
Nem que eu me mate junto com ele.
Eu não me importava mais com o GGM. Até a ideia de usar técnicas de
destruidores me parecia nojenta, detestável. Eu não queria mais ter nada a ver
com eles. Queria escapar para sempre daque mundo odioso.
Mas não sem o cadáver do infeliz.
– Sua mente está cheia de ódio.
– Minha mente está cheia de coisas terríveis.
Eu fui estúpida em retornar àquele mundo somente para morrer. Desde o
começo eu já sabia que não seria capaz de fazer nada para punir os destruidores.
Eu apenas dava a eles satisfação, entregando minha alma para ser despedaçada.
Aquele destruidor estava me punindo devagar, como quem saboreia um doce
com gosto.
Eu não queria mais dar a ele esse prazer.
Recebi uma visita incomum. Era um destruidor adulto. A presença dele me
fez estremecer.
Ele não entrou na cela. Observava–me atentamente do lado de fora.
– Qual é o seu nome?
Ele parecia falar meu idioma com bastante exatidão. O sotaque dele era
mínimo.
Resolvi responder, porque aquele destruidor tinha um porte respeitável e
assustador. Ele não seria descuidado como os adolescentes.
– Nhahia.
– Você é uma construtora ou uma destruidora?
Achei essa pergunta muito estranha.
– Sou uma construtora.
– Qual é a sua idade?
– Dezoito.
– A mesma idade do meu filho. Eu soube que vocês batalharam na guerra.
Por que retornou?
Ele era o pai do destruidor que eu queria matar.
– Para matá–lo.
– Parece aceitável.
“Oh, é claro, qualquer coisa a ver com assassinato deve parecer muito
razoável para os destruidores”.
– Meu nome é Vlebre Cazka.
– Você é...!
– Sou o autor do Grimório dos Gênios Malignos.

121
Wanju Duli

Pensei que o autor do GGM já estava morto há muito tempo! Eu não podia
acreditar que estava conversando com o autor em pessoa. Se eu não odiasse
mortalmente os destruidores, iria pedir um autógrafo.
– Nhanha, eu me impressiono cada vez mais ao ver o quanto seus
pensamentos são contraditórios...
Então era por isso que aquele destruidor era tão poderoso. Se o pai dele era
o autor do GGM, tinha lhe ensinado como realizar as magias com perfeição.
Por esse motivo ele era invencível.
Subitamente, todas as minhas esperanças de matar aquele destruidor
sumiram. Eu não teria a menor chance.
– Onde está sua ligação?
– Eu nasci sem uma ligação. Daqui a três anos morrerei.
– É o mesmo caso do meu filho. Ele não tem ligação.
– Eu nem mesmo sabia que os destruidores eram ligados entre si.
– Mantemos isso em segredo para que os nossos inimigos não explorem essa
nossa fraqueza, que também é nossa maior força. Você sabia que, muito tempo
atrás, os construtores e os destruidores eram um mesmo povo, chamado
mantenedores?
– Nunca ouvi falar disso!
– Os construtores retiraram deliberadamente essa informação de seus livros,
para que não se ensine isso nas escolas, tendo em vista reforçar o ódio entre
povos. Antigamente os mantenedores dividiam igualmente as posses entre seus
habitantes. Eles eram nômades e somente obtinham aquilo que era necessário
para a sobrevivência. Quando eles começaram a plantar e se estabelecer em
aldeias, surgiram os excedentes. Pequenos grupos se apropriaram de mais
vegetais e carne do que seus semelhantes. Você sabe como eles se
autodenominaram?
– Não.
– Construtores. Nosso povo então estava dividido: os ricos eram os
construtores e os pobres eram os destruidores. Vocês nos escravizaram.
Dominaram a magia da terra e do céu. Queriam que o firmamento e as estrelas
fossem posses suas. E assim se fez. Para que a magia dos construtores fosse
aperfeiçoada e o Grimório dos Gênios fosse escrito, vocês realizaram testes
desumanos nos destruidores. Fomos reduzidos a nada, nossos gênios se
tornaram espectros, estávamos sujos, feios, pobres. Vocês se envergonharam
tanto de nossa existência que nos jogaram num pântano para morrer: nosso
antigo mundo. E teríamos morrido. Eu era um dos únicos que conhecia o
idioma do seu povo e tive acesso ao Grimório dos Gênios. Conhecimento se
torna poder quando se domina a alquimia da mente e da alma.

122
Fábula dos Gênios

– Se o que o senhor diz é verdade, então por que estão fazendo conosco a
mesma coisa que fizemos em vocês?
– A guerra terminou. Não nutro mais ódio contra os construtores, pois já
fomos vingados. E você era apenas uma criança na época. Mas uma criança que
se tornaria um novo monstro, com base na lavagem cerebral que os adultos
realizavam em vocês nas suas escolas. Portanto, tínhamos que matá–los também.
– Se não nutre mais ódio contra mim, você vai me soltar? Já entendi que não
posso matar seu filho, que é muito poderoso. E agora que você me contou tudo
isso, irei respeitar os destruidores.
– Eu não quero seu respeito. Prefiro seu ódio. Dizimamos o seu povo.
– Tem razão. Não importam seus motivos, o que fizeram foi imperdoável.
Então apenas matem–me. Tive uma vida feliz e vocês não tiveram. Não sou
digna da morte?
– Suas palavras são confusas. Você parece confusa. Eu não vim até aqui para
te contar essa história. Eu apenas queria explicar que por sermos unidos no
passado, os construtores e os destruidores também possuíam ligações. Isso foi
cortado pelos construtores, através de manipulação mágica. Afinal, os ricos não
desejavam ter ligação com pobres. O resultado foi que hoje em dia construtores
são ligados apenas com construtores. E destruidores com destruidores. Correto?
– Correto.
– Errado. Eles não foram perfeitos em cortar as ligações. Até hoje ainda
existem casos raros de construtores e destruidores sem ligação. Mas essa é
apenas uma explicação falsa que os construtores usam para esconder a verdade
inevitável: significa que uma criança construtora que nasce sem ligação está
ligada com um destruidor.
Eu senti um frio na espinha.
– Meu filho não foi atraído até você naquela batalha por acaso. O gênio dele
sentiu a presença do seu. É por isso que ele não consegue atacá–la com a magia
dos gênios malignos. A sua magia de gênios também seria ineficaz contra ele.
Meu coração estava saltando em meu peito. As palavras travaram na minha
boca.
– Recentemente ele descobriu a verdade e enfureceu–se. Ele odeia os
construtores e odeia você. Ele é meu único filho e não permitirei que morra.
Também quero que ele gere um descendente. Ele negou–se e disse que preferia
morrer a se unir a uma construtora. Portanto, eu o espanquei e deixei–o de
castigo.
Inacreditável...
– Felizmente, ainda temos dois anos para forçá–lo a isso. Mas se deixarmos
para a última hora e você perder o bebê por algum acidente infeliz, tudo terá
sido em vão. Nós não temos alimentos suficientes para dar às nossas grávidas,

123
Wanju Duli

portanto abortos espontâneos são comuns. Sendo assim, irei trazê–lo aqui agora
para que vocês já comecem a tentar fazer filhos até que um deles nasça.
– Espere! Você não perguntou o que acho disso. Eu também não quero ter
filhos com ele. Eu entendo completamente o quanto ele me odeia e é contra
essa absurdo. Eu o odeio tanto quanto e não há a menor possibilidade de...
– Você é nossa prisioneira. Não tem direito de opinar. Assim que gerar o
bebê, iremos expulsá–la de nosso país, já que não terá mais utilidade alguma.
Ainda temos nosso orgulho. Não desejamos nenhum construtor aqui dentro.
Ao dizer isso, ele saiu.
– Bapsi, você sabia de tudo desde o começo, não é mesmo, seu maldito?!
– Sim. Eu sabia que ele era a sua ligação desde a primeira vez que enxerguei
aquele gênio. Mas eu não podia contar, senão você iria odiá–lo ainda mais.
Pensei que o mais adequado seria que morresse sem saber disso.
– Pois eu preferia mesmo ter morrido sem saber dessa desgraça!!
Dei socos no chão. Mas logo o pai já estava de volta, arrastando o filho pelo
braço. Ele me pegou pelo outro braço e me levou até outra cela que não
estivesse destruída.
Jogou–me lá dentro. Em seguida, jogou o filho também e nos trancou.
– Eu selei o poder dele. Construtora, não tema que ele lance magias, pois
isso não acontecerá. Quando eu retornar amanhã, é bom que já tenham se unido,
ou serão severamente punidos.
“É isso mesmo, não precisa selar meus poderes, já que sou um verme”.
O destruidor adulto retirou–se. O filho dele encostou–se num dos cantos da
cela e ficou lá, sem olhar para mim. Estava bastante irritado e com razão.
– Mas que droga... Bapsi, essa é a ocasião perfeita para matá–lo. Ele não
pode lançar magias!
– Você acha que há alguma honra em matá–lo quando os poderes dele estão
selados?
– Eu não me importo com honra! Ele também não teve honra nenhuma
quando me torturou com o GGM.
Notei que o rosto dele estava bem machucado. O pai dele devia tê–lo
espancado mesmo, como disse.
– Eu não tenho pena dele, porque ele também não teve pena de mim.
E nas horas seguintes eu fiquei me perguntando se devia lançar uma de
minhas magias para matá–lo com muita dor. No final, tive que concordar com
Bapsi: seria covardia lançar um feitiço enquanto ele não podia se defender.
Logo, a manhã chegou. Quando o pai do destruidor retornou, viu que
estávamos exatamente na mesma posição que ele havia nos colocado.

124
Fábula dos Gênios

Ele destrancou a cela, segurou o filho pelo manto e deu murros nele.
Continuou a esmurrá–lo nos minutos seguintes. O sangue pingava no chão e o
pai dele berrava algumas coisas naquele idioma estranho.
– Vocês dois são crianças, por acaso?!
Dessa vez ele gritou para mim. Ele chamou a adolescente destruidora da
outra vez e falou alguma coisa a ela.
A destruidora arrancou as minhas roupas. Todas. Não consegui evitar. Até
tentei, mas ela me deu um tapa na cara quando fiz isso.
Ela me largou no chão. Depois disso, o pai do destruidor arrancou o manto
do filho. Ele reagiu muito mais que eu. O destruidor adolescente estava falando
algo, como se suplicasse.
Quando retirou todas as roupas do filho, o pai trancou a cela novamente e
saiu.
O destruidor adolescente começou a chorar muito forte, abraçando o corpo.
Ele estava completamente desesperado.
– Bapsi... acho que agora eu estou com pena dele.
Ele não parava de chorar. Até que começou a soluçar. Ele estava se
engasgando com o próprio choro e mal conseguia respirar direito. Aquilo era
surreal demais para ser verdade.
Não precisávamos entender a língua um do outro para compreender a
situação. Ele demorou para conseguir parar de chorar. Ele se encolheu num
canto e não olhou na minha direção em nenhum momento.
– O pai dele é insano. Ele acha que vocês vão sentir atração um pelo outro
nessa cela gelada e fedorenta, com vocês dois repletos de hematomas, lágrimas e
sangue?
– Em breve ele vai entender que não pode forçar uma situação como essa.
Eu não estava chorando e não sentia medo. Provavelmente o que o
destruidor mais sentia era ódio, em ser humilhado pelo pai daquela forma na
minha frente. Se ele já parecia se sentir humilhado em não conseguir utilizar seu
gênio contra mim, eu não podia nem imaginar o que ele estava sentindo naquele
momento, orgulhoso como parecia ser.
Quando o pai retornou no dia seguinte e nos viu novamente na mesma
posição, ele não fez nenhum comentário. Abriu a cela e retirou o filho de lá.
– Se é isso o que desejam, então morram.
Ele devolveu–me meu manto, mas não minhas roupas. O manto era o
suficiente para cobrir meu corpo inteiro, mas ele era bem desconfortável de usar.
Como se aquilo importasse...
No lugar em que o destruidor tinha se encostado, havia uma poça de urina.
– Bapsi... eu quero sair desse lugar. Não aguento mais. Meu segundo desejo...

125
Wanju Duli

Por que eu não tinha coragem de usar meu segundo desejo? Porque eu tinha
medo de gastá–lo! Sempre temi que pudesse surgir uma situação na minha vida
em que eu precisasse daquele desejo mais que tudo. E se eu não o possuísse,
tudo estaria perdido.
– Ele parece odiar–me mais do que eu o odeio. Por quê? Foi ele que me
mutilou, que me torturou. O povo dele dizimou o meu!
– Os construtores fizeram algo muito pior aos destruidores antes disso. Os
destruidores devem crescer ouvindo essa história e para eles vocês são inimigos
mortais. No caso dos construtores, vocês nunca possuíram razões realmente
consistentes para odiá–los antes dessa guerra, com exceção de rumores de
batalhas do passado.
Mais tarde, aquele destruidor e o tradutor apareceram. Dessa vez o
destruidor adolescente já estava vestido e parecia de muito mau humor, embora
estivesse sério. Ele evitava meu olhar.
– Construtora, o jovem Cazka ser seriamente ameaçado por senhor Cazka.
Construtora dever cooperar.
– Eu não vou cooperar. Eu não me importo se o pai dele está furioso e quer
puni–lo. Eu quero sair desse país. Nunca mais voltarei aqui! Vocês são malucos!
E invencíveis. Desisto de me vingar. Apenas libertem–me e não irei mais
perturbá–los.
– Se construtora cooperar, nós destruidores libertar construtora. Contudo,
não poder sair do país até ter filho.
– Eu não aceito essas condições.
– Se aceitar, destruidores ensinar magia dos gênios malignos.
Tentador ao extremo.
– Eu não vou... transar com esse infeliz só para ter acesso ao GGM! Eu me
ofendo com essa proposta!
– Hã... Nhanha, ele está traduzindo para sua ligação tudo o que você disse.
Quando ele terminou de traduzir, o destruidor também falou alguma coisa.
– O jovem Cazka diz que você não dever entender errado a situação. Ele
não concordar em união e devolver os xingamentos da senhorita com bastante
cortesia.
– Sabe onde ele deve enfiar essa cortesia?
– Nhanha, cuidado, controle essa língua... não se esqueça que está falando
com destruidores.
E lá foi ele traduzir. A resposta do destruidor foi bastante enérgica.
– Eu não conseguir traduzir o que ser dito. Série de xingamentos sem
tradução para sua língua.
– Há! Agora essa conversa está ficando interessante. Eu quero saber qual é
teu primeiro nome, cara!

126
Fábula dos Gênios

Como era cansativo aquela série de traduções... eu estava ficando impaciente


em precisar de um intermediário para conversar com o sujeitinho.
– Ele dizer que não te interessar.
– Filho da mãe... olha, eu concordo em aprender a magia dos gênios
malignos, contanto que me soltem. Posso ficar aqui no país de vocês e daqui
dois anos eu e ele decidimos o que faremos a respeito do assunto.
– Isso não ser aceitável. Se construtora aprender nossa magia e depois fugir
sem gerar filho, ser perseguida até fim do mundo.
– Combinado.
Eu só teria mais um ano de vida depois disso, então nada melhor que um
pouco de emoção. É claro que eu não tinha nenhuma intenção de me unir
àquele destruidor. Eu ia fugir com o GGM após aqueles dois anos para deixar
os destruidores irados! Seria divertidíssimo!
O tradutor abriu minha cela e me devolveu a cadeira de rodas. Eu fiquei
aliviada de poder sentar–me nela novamente. Quando passei pelo destruidor, ele
apenas me fitou seriamente.
– Chorou como um bebê e se mijou de medo. Coitadinho...
Eu soltei essa. Quando o tradutor informou ao destruidor o que foi dito, o
destruidor usou um selo multidimensional que desvirtua o espaço e atravessou o
braço na minha barriga.
– Nhahia, essa você pediu.
Eu poderia falar o que eu quisesse. Se eles me matassem sem querer, eu
escaparia de me unir ao maldito e sairia ganhando. E, no fundo, eu sabia que
eles não se atreveriam a me matar exatamente por isso: eles precisavam não
somente do meu gênio, mas do meu corpo.
Eu desmaiei. Acordei numa cama, com a barriga enfaixada. Eu soube que o
Cazka adolescente se assustou um pouco depois que atravessou o braço em
mim. Então ele teve medo que eu morresse? É claro, pois sem a minha ajuda ele
também morreria.
De repente aquele destruidor havia se tornado límpido como um lago
cristalino. Ele não ia ceder facilmente e nem eu cederia. Mas será que no fundo
ambos já não sabíamos como aquilo tudo ia terminar?
– Conhecendo você, Nhanha, eu diria que é mais provável que você fuja
com o GGM, só para sacaneá–los.
– E quem me conhece melhor do que você, que tem acesso a todos os meus
pensamentos e sentimentos? Mas isso não basta, Bapsi. Eu tenho um plano
muito mais cruel. Vou fingir que me apaixonei por ele. Farei com que ele me
deseje. E, no último instante, irei humilhá–lo e escapar. Eu não sou mesmo um
gênio?

127
Wanju Duli

– E eu pensando que o gênio era eu. Algo me diz que você é a candidata
ideal para utilizar a magia dos gênios malignos com perfeição. Especialmente
essa magia de ligação reversa.

128
Fábula dos Gênios

Capítulo 5: Os Deuses de Tudo

MOMO: Não, meu! Eu disse dois códigos classe A! Não esse lixo que você
me trouxe.
YYM: Tudo que vem de mim é bom. Até o lixo que ofereço.
MOMO: Isso nós ainda veremos. Não tente bancar o espertinho para cima
de mim, Yym. Você pode ser bom no seu trampo, mas eu ainda sou o melhor
no que faço.
YYM: Se você não fosse o melhor, essa conversa nem mesmo teria sido
iniciada. Peço que considere meus termos. Meu tempo é precioso. E pago bem.

Conversar com aquele sujeito me estressava enormemente. Quando aquele


papo acabou, tirei os óculos e limpei–os na barra da camisa. Esfreguei os olhos
e suspirei.
– Por que ainda insiste em falar com ele? Só pelo dinheiro?
– É a honra, Owmaq. Eu não dou a mínima se ele é famoso e respeitado. Só
por ser cinco anos mais velho e ter renome, ele pensa que pode bancar o
maioral. Se eu desistir da proposta dele, eu perco. Não desejo manchar minha
reputação.
– Por que não sai da frente desse computador por um minuto e relaxa um
pouco?
– Nem pensar. Minha vida está aqui, não posso sair.
Meu primeiro desejo havia se refletido naquilo que eu era. Eu curtia muito
magia eletrônica. Comprei uns dispositivos ilegais na internet e usei esse desejo
para torná–los parte do meu cérebro, do meu corpo, a fim de adquirir alguns
poderes especiais. Aquilo me dava muito mais acesso à rede.
– Eu estarei nas linhas da frente na guerra, Owmaq. Fortalecendo nossos
escudos cibernéticos. Serei uma das únicas crianças com permissão para
defender o nosso povo. Pois os adultos sabem que consigo me mover na rede
como um pássaro cortando os céus.
– Eu também sou muito rápida nesse seu brinquedo. Sou o peixe do mar.
– E juntos guardaremos o céu e a terra.
Eu não estava interessado nos construtores e nos destruidores; em nossas
escolas, universidades e grimórios. Para mim, o Grimório dos Gênios Malignos
também era irrelevante.
Eu queria ir ao país da tecnologia. Contudo, eu precisava confessar: eu
desejava unir a magia dos gênios com o universo virtual. Então não era como se
eu ignorasse minhas origens. Eu tinha acesso a todos os nossos grimórios, mas

129
Wanju Duli

estava mais preocupado em hackear os e–books de Tecraxei. Como eu


trabalhava para o governo do meu país, não podia ficar brincando muito com
isso. Mas quem disse que eu me importava?

WAWA: Momo, existe esse boato estranho que meu pai me contou. Há
grimórios poderosos de magia eletrônica protegidos por fortes barreiras mágicas
e virtuais em Tecraxei. Eles captaram uma invasão vinda de nossa terra, mas não
souberam precisar de onde vem. Eu me pergunto que habitante de nosso país
teria habilidade suficiente para uma ação tão grandiosa e estúpida, conseguindo,
além disso, apagar sua presença.
MOMO: Uma ação estúpida, de fato. Vossa Alteza, pode estar certo de que
utilizarei de todos os meus conhecimentos para rastrear esse infeliz.
WAWA: Assim que esse maldito for capturado, irá para a forca. Ele está
atravessando a tênue linha que determina a paz entre os povos. Esse ato fere
nossa lei e ordem. Pode ocasionar uma guerra. E não queremos os magistas
eletrônicos como inimigos, certo?
MOMO: De forma alguma, Vossa Alteza. Até onde sei, somente os
destruidores e os deuses os superam em poder.
WAWA: Saber disso não te dá vontade de colocar os olhos num desses
grimórios, Cromo?
MOMO: Eu perderia os olhos em seguida se ousasse ir tão longe.
WAWA: Excelente saber que você conhece nossa lei. Existe outro boato
curioso de que um hacker construtor incitou os destruidores a atacar nosso país,
por ter arrumado um jeito de roubar o GGM. Só consigo pensar que isso foi
feito por uma criança atrevida, já que os operadores adultos de nossas máquinas
não são tão idiotas para um feito tão descuidado, mesmo que fossem capazes
dele.
MOMO: Não acredito que isso realmente tenha sido feito.
WAWA: Por que o diz?
MOMO: A tecnologia dos destruidores é tão pobre que o GGM não
poderia ser roubado por meios eletrônicos. Os destruidores memorizaram seus
livros e só existem versões escritas do GGM no idioma deles, que é
desconhecido por nós.
WAWA: É mesmo? Pois eu ouvi falar numa magia eletrônica que alcança a
frequência das ondas cerebrais humanas.
MOMO: Parece extraordinário. Um desafio digno.
WAWA: Conheço uma pessoa apaixonada por desafios. Certo, senhor
Cromo?
MOMO: Meu dever é servi–lo, Vossa Alteza. E ao meu reino. Essa sempre
foi minha prioridade.

130
Fábula dos Gênios

WAWA: Eu realmente aprecio sua lealdade e confio plenamente nos seus


serviços. Falta somente uma coisa: que você creia em suas próprias palavras.

Quando aquela conversa terminou, o suor escorria pelo meu rosto.


– Não se preocupe, Cromo. Você não é um mentiroso. Você é
simplesmente o mestre absoluto da mentira. E faz isso tão bem que é capaz de
transformar todas as suas mentiras em verdade, como diria certo alguém...
– Isso porque sou o senhor da verdade. Basta eu alterar alguns dados na
rede e construo um novo mundo. Eu realmente pensei que já havia apagado
todos os dados a respeito desse falso boato sobre os destruidores. Agora diga–
me, Owmaq: como o príncipe teve acesso a ele?
– Isso significa que deve haver um pirata cibernético ainda mais
extraordinário que você. – Isso não seria possível. Nem mesmo os adultos
construtores superam minhas habilidades. No máximo, têm mais experiência de
vida. Mas eu, em um segundo de mergulho na rede, consigo tornar esse único
instante mais produtivo que um ano de treino intenso.
– Você não conseguiu rastrear o sujeitinho ainda, não é?
– Não, eu não consegui!
Eu estava furioso quando respondi isso. Eu não queria admitir que existisse
alguém melhor que eu. Aquele cara era tão bom que eu nem mesmo tinha
certeza que era real. Só podia ser um Deus.
– Eu sempre acreditei que se existisse mesmo um Deus, ele estaria no
interior dos computadores.
– Ele é certamente um habitante do país da magia eletrônica.
– É óbvio. Sempre achei que minha vantagem absoluta sobre eles era ter um
gênio. Mas parece que um deles, mesmo sem possuir um gênio, conseguiu ir
mais longe. Como ele fez, Owmaq? Que tipo de magia usou? Não consigo
encontrar nada sobre isso na rede.
Aquilo estava me deixando meio pirado. Eu sempre fui o Deus invisível que
observava tudo o que se passava no mundo. De repente, descubro que havia um
segundo Deus, ainda mais forte, a espreita, me observando...
– Ele sabe que eu existo. E quer me ferrar, isso está claro. Com que objetivo,
eu me pergunto?
– Provar que é mais poderoso.
– Isso parece coisa de criança.
No começo, fiz força para ignorá–lo. Nos últimos meses eu queria me
concentrar em desenvolver escudos eletrônicos para barrar os destruidores.
Assim, com aquela tecnologia fraca deles, nem mesmo conseguiriam pisar em
nosso país. Na verdade, essa era nossa única esperança de vencê–los: impedi–los
de chegar a nós.

131
Wanju Duli

No entanto, um dia antes da chegada dos destruidores, alguém invadiu o


meu chat privado.
– Owmaq.... tem um cara no meu sistema.
Eu falei isso com voz trêmula. Eu estava nervoso como poucas vezes em
minha vida. Pois no fundo eu sabia que só havia uma única pessoa capaz
daquele feito fabuloso. Somente um capaz de converter o impossível em
possível, quebrando todas as barreiras que nos separava.

XYZ089: Saudações, senhor Cromo. E finalmente nos encontramos.


MOMO: Poderia ter me contatado antes se assim o desejasse.
XYZ089: De fato, eu não o quis. Também fazia parte do jogo.
MOMO: Por que está aqui? Por que hoje?
XYZ089: Você certamente conhece a resposta para todas as suas perguntas,
senhor.
MOMO: Foi bem pago para se aliar aos destruidores, mago eletrônico?
XYZ089: Não tenho interesse nesse precioso dinheiro de vocês. Ninguém é
capaz de me comprar.
MOMO: Você veio aqui para me mostrar que passará por meus escudos
como quem estoura uma bola de chiclete. Isso te satisfaz?
XYZ089: Muitíssimo. Agrada–me conversar com pessoas inteligentes. Elas
são raras hoje em dia. Mas fico imensamente mais feliz de matá–las, numa
fabulosa disputa de intelectos.
MOMO: O que tem contra nós, construtores? Por que um habitante de
Tecraxei aliou–se aos destruidores?
XYZ089: Suas perguntas muito me desapontam. Eu esperava mais do
famoso Cromo D’aship, o mais proeminente ciberpirata do reinado. Não é nem
mesmo capaz de me rastrear, mesmo com todas as minhas dicas? Esforcei–me
muito para que você me enxergasse, mas parece que seus olhos continuam ruins.
MOMO: Você é um destruidor...! Por que fala minha língua? Como conhece
magia eletrônica, se seu povo é tão ruim com a tecnologia?
XYZ089: O intelecto humano não é capaz de compreender um Deus. E eu
estou acima de você, Deus eletrônico dos construtores. Você não tem amigos,
pois os demais construtores são muito inferiores a você. Da mesma forma, o
seu intelecto não capta minhas razões, minha grandeza e minha existência.
MOMO: Existe algum segredo espetacular no Grimório dos Gênios
Malignos que te deu essa força.
XYZ089: Não existe grimório nesse mundo que se compare à minha mente
e ao meu espírito. Você não pode tocar–me ou ver–me, a não ser que eu assim
o deseje.
MOMO: Maldito seja...!

132
Fábula dos Gênios

XYZ089: Amanhã, 14:44.


MOMO: Quê...?
XYZ089: Você sabe bem o que ocorrerá. Não ofenda minha inteligência.
Pensei que você era diferente, mas é apenas mais um verme imundo. Meu
respeito pela lenda de Cromo, o senhor do ciberespaço, reduziu–se a nada.
MOMO: Pois você nunca foi uma lenda. Ninguém nem ao menos te
conhece ou sabe que existe.
XYZ089: E não é esse o maior orgulho de um ciberpirata? Ser eternamente
invisível. É muito, muito fácil, brincar de bagunçar a rede, como quem
desencaixa pecinhas de quebra–cabeça. O verdadeiro desafio, meu caro, é
apagar nossas pegadas de gigantes. Afinal, como gigantes que somos,
esmagamos as formigas sobre nossos pés. E, como deuses, somos temidos, por
conhecermos o segredo da morte.
MOMO: Os seres humanos são tolos. Temem fantasmas e ao mesmo tempo
não acreditam neles.
XYZ089: Você é uma existência curiosa. Sinta–se honrado por ser o
escolhido por mim. Será através dessas mãos que será apagado. Aquilo que
nunca obteve em vida, te darei na morte.
XYZ089 desconectou–se.

Retirei os fios da minha pele e desconectei–me, tremendo, suando e


respirando rápido. Apoiei–me na mesa do computador, para não cair.
Eu estava aterrorizado! Meu corpo inteiro tremia em emoção e êxtase. Eu
gargalhei!
– Você está feliz. Parabéns. Saiu–se muito bem nessa conversa com Deus.
– Owmaq, eu o encontrei! Finalmente...!
– Errado. Foi ele quem te encontrou. E somente se mostrou porque te
considerou digno disso.
– Sim..! Ninguém nunca soube da existência dele. Mas, desde pequeno, eu
sempre o senti: uma presença invisível na internet. Eu sempre o segui, sem
sucesso. Desde que me lembro de estar vivo, eu o busquei. Foi por causa dele
que decidi dedicar–me tanto às caças de códigos virtuais. E hoje... minha
existência teve sentido.
Eu chorei. As lágrimas não paravam.
– Eu sempre fui o único que soube. O único... ele sempre esteve lá! Aquele
que nunca esteve...
– Você aceitaria morrer apenas por uma chance de espiá–lo, não é mesmo?
– Você não entende, Owmaq. Não me importa que ele seja real ou não. Um
corpo? Que importa? O que eu busco é sua mente. O contato com sua

133
Wanju Duli

habilidade sobre–humana. Ele não é humano, Owmaq. Ele diz que é um


destruidor, mas ele está acima dos destruidores ou de qualquer definição.
– Amanhã, às 14:44, ele vai...
– ... quebrar o meu escudo e abrir caminho para os destruidores aniquilarem
todos os construtores.
– Você parece muito feliz em saber que vai morrer e que seu povo será
assassinado.
– Isso porque eu cumpri o objetivo da minha existência. Você não entende?
O que acontecer daqui pra frente não importa mais. Simplesmente não importa
mais!
Eu estava sorrindo, emocionado. As lágrimas eram como mel tocando
minha boca. Subitamente, eu perdi a fome e o sono. Não iria mais comer ou
dormir até o dia derradeiro. Eu ainda teria cerca de 24 horas para fortificar
aquele escudo.
Eu imprimi minha conversa com aquele magista excepcional. Imprimi com
todas as folhas que eu tinha. Espalhei–as pelo meu quarto, pelas paredes. Enviei
a cópia daquilo para todos os cantos. Eu queria que todos soubessem que eu fui
o escolhido para ser o mensageiro da morte. E que aquele que sempre busquei
de fato existia...!
Eu estava alterado. É claro que eu não podia vencê–lo. Tudo o que eu queria
era reunir defesas o suficiente para que aquele Deus visse que eu era forte em
comparação aos outros estúpidos construtores.
Eu era uma lenda. Eu era o construtor mais fantástico no que concerne ao
conhecimento da magia eletrônica. Os outros humanos eram tão burros que não
eram nem mesmo capazes de entender o quanto eu era extraordinário!
Quando um dos idiotas me pedia um código ou informação secreta, eu
costumava cobrar caro, de acordo com a dificuldade. Eles apenas pagavam e
agradeciam, sem nem entender o quanto eu passava noites em claro quebrando
senhas e sistemas para pegá–los!
Aquilo me enfurecia. Nenhum construtor conseguia ver meu poder. Mas lá
estava um cara que conseguia me ver. O único!
Eu precisava admitir: ele estava certo. Assim como os demais construtores,
ou mesmo os outros ciberpiratas do rei, não conseguiam captar o nível da
minha inteligência, eu não era capaz de compreender aquele Deus.
Os construtores apenas viam em mim uma aura grandiosa e se admiravam
com ela, mas não eram capazes de desvendá–la. O mesmo se dava em relação a
mim e a ele: um mundo nos separava.
Era um universo difícil, repleto de desafios. Exatamente por isso eu
conseguia sentir a adrenalina.

134
Fábula dos Gênios

Eu queria que ele olhasse para mim. Então fortaleci o máximo que pude
meu escudo, para que ao menos ele levasse dois segundos para quebrá–lo em
vez de apenas um.
Amanheceu. Eu respirava rápido, com o corpo suado e cansado. Estava
exausto e ao mesmo tempo o fogo queimava em meu peito.
Eu e os outros cientistas das máquinas estávamos no laboratório principal,
que se localizava num esconderijo subterrâneo da cidade. Aquilo era inútil, pois
os destruidores poderiam sentir nossos gênios.
O abrigo estava logo na entrada da cidade, mas embaixo. Quando os
destruidores chegaram, não conseguiram passar. E os construtores idiotas já
comemoravam, enquanto meu coração pulsava e eu via minha vida por um fio.

XYZ089 está conectado.

Quando li aquilo na minha tela, meu coração parou e o terror apoderou–se


de mim.

XYZ089: Meus cumprimentos, meu caríssimo Cromo. Preparou algo digno


para receber–me. Mesmo assim, até você sabe que será inútil.
MOMO: Eu jamais me renderei sem lutar, nem que eu morra tentando.
XYZ089: Os construtores são teimosos, mas corajosos. Tão tolos e ao
mesmo tempo admiráveis. Ainda assim, esses olhos sabem demais. Meus olhos
estão cansados de contemplar os ratos. Os leões podem se divertir com sua
presa, mas inevitavelmente chegará a hora da refeição. Rendam–se, tolos! Sejam
escravizados e humilhados, assim como fizeram a nós!
MOMO: Jamais!
XYZ089: Tão orgulhosos, com tão pouca força. Essa pretensiosa sabedoria
reduziu–se a nada. Porque no fundo sabem que, caso se rendessem, não
teríamos piedade.
MOMO: Então você não é um Deus, destruidor. Dizem que os deuses
possuem piedade para com a humanidade tola.
XYZ089: Isso porque eu estou acima do Deus que você conhece! Pois eu
superei minha necessidade de compaixão. Não tenho sede de amor ou de morte.
Eu apenas vim até aqui para cumprir o objetivo de minha existência.
MOMO: Matar–nos?
XYZ089: Eu rio de sua ingenuidade. Vocês se acham tão importantes,
construtores? Apenas sabem acender luzes e desconhecem como podem apagá–
las! Acham que desvendaram o segredo da vida, quando mal conhecem a morte!
Não estou te punindo, Cromo, e sim salvando sua vida miserável. Você ainda é

135
Wanju Duli

um dos poucos com pouca poeira nos olhos nesse mundo de cegos. Por que
precisa de olhos se pode ver com seu espírito?
MOMO: Você pode destruir meu corpo, rasgar minha alma e assasinar meu
gênio. Use a magia eletrônica, a magia dos gênios malignos e sua amada
sabedoria; no meu espírito jamais encostará.
XYZ089: A vontade, a vontade! Na fronteira da verdade se esconde essa
verdade que você criou. Achou–se tão esperto...! Você não buscou a verdade
porque pensou que podia criá–la. Esse foi o seu maior erro. Porque você
esqueceu de destruir o monstro que sempre espreita todas as suas criações.
MOMO: Que é esse monstro?
XYZ089: Sua ignorância, Cromo. Seu espírito apaixonado está repleto de
ardor, mas é abraçado por essa quimera. Beije–a, ame–a, transe com ela! Eu juro,
por esse coração, que irei tomar de ti teu espírito invencível...!

As janelas se quebraram com um estrondo. Dezenas de destruidores


atacaram nossas máquinas com seus gênios e selos, para destroçá–las. Os
construtores que operavam as máquinas desabaram, correrram, gritaram,
morreram. Contudo, eu me defendia com minha magia cibernética.
Eu tinha poder. Eu poderia desafiar os destruidores...!
Mas eu senti quando ele chegou. Atirou–se diretamente a mim, pois ele sabia
que mesmo os outros destruidores só seriam capazes de me ferir e teriam
problemas em me matar.
E eu vi Deus.
Vestia o manto verde e marrom dos destruidores. Estava encapuzado. Com
apenas um sopro, destruiu minha poderosa máquina: um dos mais potentes
computadores que esse mundo já conheceu. Modificado por mim, quase um
organismo vivo.
O computador explodiu na minha face. Uma parte do meu rosto queimou,
borbulhou, e eu gritei em agonia.
Tentei proteger–me com a mão. Perdi o olho direito, a orelha direita e três
dos meus dedos da mão.
Ainda derretendo, eu gemia.
Eu ainda tinha um olho para vê–lo. Ele chegou muito perto quando fitou a
mim. Sentou–se na minha mesa, em cima do cadáver da minha máquina.
Analisou–me atentamente.
– Boa tarde, meu caro Cromo. Sua mesa de trabalho parece um pouco
bagunçada. E que é esse estrago no seu rosto? Espero que não seja muito
vaidoso, pobre infeliz.

136
Fábula dos Gênios

Eu estava paralisado. Ainda possuía implantes de tecnologia no meu corpo,


mas... o maldito havia explodido o computador bem nas áreas que realizei os
implantes que poderiam atacá–lo. Maldito gênio bastardo...!
Ele soprou outra vez, diretamente no meu rosto. Era uma espécie da gás
tóxico, que preencheu minhas narinas e fez–me cair no chão. Eu não conseguia
respirar!
Eu ia morrer.
– Chame Owmaq. Você não tem escolha.
Ele sabia o nome do meu gênio. Onisciente filho da mãe!
Pronunciei o nome dele com dificuldade. Minha voz mal saiu. Meu gênio
vermelho revelou–se, repleto de dispositivos eletrônicos.
– Que está esperando, construtor? Use seu segundo desejo para se salvar. Sei
que ainda o possui. Ou prefere que eu use seu segundo desejo por você?
“Isso é possível?” Aquele destruidor estava me deixando confuso. Mas eu
não estava mais raciocinando normalmente. Eu ia morrer por asfixia.
O destruidor apoiou o corpo nas minhas pernas e soprou um segundo gás,
que me devolveu momentaneamente a respiração, embora eu ainda tivesse
dificuldade para inspirar o ar a minha volta.
– Você conhece a verdadeira magia eletrônica, pequeno tolo? A carga
positiva que beija a carga negativa. O bem e o mal que se aproximam e se
destroem. A partícula e a antipartícula que desejam se apagar. O início do
mundo e o fim do mundo. A onipotência e a nulidade?!
Na mão direita ele carregava uma partícula de energia em forma de cubo. Na
mão esquerda segurava uma segunda partícula, que era como uma pirâmide.
– Isso não é o equilíbrio da geração e destruição. É o domínio do terror.
Prestei atenção na respiração dele e finalmente vi: pequenas faíscas. A magia
eletrônica era a filosofia da transformação das energias sutis. O corpúsculo
pequeno que se refletia no grande. Manipular o minúsculo para moldar o
universo...!
E as formas geométricas dançavam no compasso da respiração. Mas não
pude me maravilhar, pois a melodia acabou.
Ele segurou as minhas pernas e enterrou nelas as formas geométricas, que
percorreram meu corpo. Aquele veneno penetrou na minha corrente sanguínea.
– Eu não sou a cura que vai arrancar a tua vida. Eu sou a doença que te
presenteará com a imortalidade.
– Maldito...! O que você fez?
– Deseja viver para sempre como um robô escravo ou morrer como um
orgulhoso construtor?
– Apenas mate–me! Ou você não é homem suficiente para ter essa
coragem?!

137
Wanju Duli

– Eu não sou homem o bastante para te conceder uma morte limpa pela
espada. Irei te matar lentamente e com muito sofrimento, com o vinho
envenenado das minhas veias.
Ele cortou o pulso e derramou as gotas nos meus lábios. Depois disso,
colocou a minha mão em seu peito e sussurrou no meu ouvido esquerdo:
– ... porque eu sou uma mulher. Você perdeu. Seu gênio é meu. E também a
sua vida.
Ela retirou o capuz, para que eu pudesse ver seu rosto.
XYZ089 não tinha cabelos. Era completamente careca e seus olhos escuros
brilhavam.
Ela não roubou meu gênio, mas colocou alguma coisa eletrônica dentro dele.
Ela aproximou o rosto novamente. Eu antevi a minha morte e tremi. Mas
ela apenas deu–me um leve beijo no rosto.
– Tenha doces sonhos, Cromo.
Pensei que eu fosse desmaiar quando ela saiu, mas eu estava
desconfortavelmente consciente.
Eu senti como se estivesse no interior de uma bolha de sabão. Não sabia
bem o que se passava.
Quando voltei a mim, estava numa cama ligado a diversos aparelhos. Uma
máscara respiratória cobria minha boca e meu nariz.
– Owmaq, eu estou sonhando...? A destruidora...
– Eu sou propriedade dela agora. Mas ela não tem interesse em mim.
Apenas me usará para observar tudo o que se passa.
Uma mulher sem cabelos que vestia o manto dos destruidores e conhecia
magia eletrônica. Não vi o gênio dela. Eu não conhecia sua verdadeira
identidade.
– Ela não está satisfeita em apenas controlar meus passos enquanto estou
conectado na rede. Deseja saber o que se passa comigo em todos os momentos.
Por quê?
– Porque ela quer te mostrar que pode. E é capaz de fazer tudo o que deseja.
Eu sentia uma forte dor de cabeça e enjoo. Mal conseguia pensar direito.
Fui informado que estava no país da magia eletrônica. Aparentemente, a
destruidora havia me enviado propositalmente para lá.
– Ela desejou que eu vivesse para que ficasse mais forte. Ela percebeu que
eu era diferente dos outros construtores. Que eu era superior a todos eles.
– Ela é uma mulher adulta. Deve ter ficado impressionada com o seu poder
como criança. Acredita que será capaz de enfrentá–la um dia e aguarda
ansiosamente por isso.

138
Fábula dos Gênios

– Ela tirou tudo de mim. Como posso aprender magia eletrônica sem meus
dispositivos? Perdi um olho, mal posso respirar. Eu me pergunto se consiguirei
me mover dessa cama um dia ou usar um computador outra vez.
– Enquanto você tiver vida e estiver consciente disso, será capaz de fazer
qualquer coisa que deseja. Nem que seja na imaginação. Arranjará um jeito de
tornar sua existência tão real quanto um sonho.
Descobri que a partir dali minha existência estaria confinada a uma cama. Eu
precisaria da ajuda dos aparelhos para respirar e não poderia levantar.
Era como se eu estivesse tetraplégico. Meus membros eram inúteis. Mas
como eu estava no país da computação, meu cérebro foi ligado a computadores.
Eu também tinha dificuldade de falar desde que o sangue dela tocou meus
lábios. Portanto, eu seria capaz de comunicar–me apenas com meu gênio ou
através das máquinas.
– Owmaq, eu estou feliz. Eu conheci a mulher mais poderosa do mundo. Eu
não duvido que ela seja a maga mais extraordinária de todos os seres viventes.
Certamente é a número um entre os destruidores.
– Como pode ter certeza?
– Eu sei de tudo, lembra? Mas não mais que ela. Apenas no que diz respeito
a ela, minha sabedoria se cala. Nunca ouvi ninguém falar sobre essa maga.
Sequer um boato. Certamente é a arma secreta dos destruidores, a qual não
querem revelar provavelmente nem mesmo entre eles mesmos.
– Ainda assim, ela mostrou–se a você.
– Quero acreditar que ela fez isso porque considerou–me especial. Mas só
irei aparecer diante dela novamente quando eu for um adulto. E um mago muito
forte. Reunirei todos os sobreviventes para vingar o nosso povo. Pela internet
serei capaz disso. Não importa onde estejam, haverá algum vestígio de dados
que minha máquina será capaz de rastrear.
Era exatamente por isso que os destruidores eram tão difíceis de serem lidos
por mim: devido à tecnologia atrasada deles. Ironicamente, tinham a magista
eletrônica mais poderosa como aliada.
Perguntei sobre ela aos outros magos eletrônicos, mas nenhum deles a
conhecia. Aquilo era o mais estranho. Bem, eles não eram muito envolvidos
com os destruidores. Afinal, que interesse teriam naqueles selvagens com baixa
tecnologia? Apesar de saber que eles eram poderosos, era assim que os
habitantes de Tecraxei os viam.
Busquei muitos grimórios naquela terra para estudá–los. Eu li muito, mas
nunca encontrava o que buscava.
– Ela disse que o conhecimento da magia eltrônica não estava nos livros. Eu
sei, ele está na própria rede. Mas... sinto que ela quis dizer muito mais.

139
Wanju Duli

Ela mencionou Deus. Falava muito sobre deuses. Então, só haveria um


lugar onde aquele conhecimento poderia ser alcançado.
– Samerre.
E eu realizei uma longa viagem para essa terra.
Aquele era o país das religiões. Enquanto na terra da tecnologia os prédios
eram repletos de cabos de aço e silício, no país das religiões havia muitos
templos.
Eles tinham muitos deuses: milhares, milhões. Mas eu não entendia direito o
que eles eram e o que faziam.
– Eles são energia, Owmaq?
– Eu já ouvi falar que todos os deuses um dia foram humanos. Então deuses
são humanos que realizaram algum ato sublime em vida.
– Que tipo de ato seria esse?
– Não é um ato com o corpo e sim com a mente. Digamos que o corpo e a
mente são as engrenagens que a alma usa para funcionar. Eles não estão
exatamente separados. Há humanos que se tornam deuses inflando a alma ou
apagando–a. Enfim, são infinitos métodos. Por isso há tantos tipos de deuses.
Mas nenhum é superior a outro.
– Será que nosso objetivo como humanos é nos tornarmos deuses?
– Talvez seja apagar a ideia de um objetivo. Pois alguém só se torna um
Deus quando não quer se tornar.
– Então essas pessoas não adoram os deuses?
– Não, eles apenas se inspiram neles para também virarem deuses. As
oferendas são simbólicas. Dizem que essa é uma das magias mais difíceis. Por
outro lado, os habitantes desse mundo não se envolvem nas guerras e políticas
lá fora. Não estão interessados nessa luta de poder e sim na guerra que ocorre
dentro de suas mentes.
– Então eles são indiferentes? Pensei que alguém virasse Deus se fosse
bondoso.
– Ora, não. Bondade não tem nada a ver com isso. Alguém se torna Deus
quando supera esse conceito de bondade e maldade.
– Os destruidores são mais poderosos que os deuses?
– Agora você fez uma pergunta difícil. Os deuses não querem ser fortes ou
lutar. Mas, sim, os destruidores são semelhantes aos deuses em várias coisas...
– Os humanos só se tornam deuses quando morrem?
– Eles viram deuses ainda em vida. Você quer virar um Deus?
– Não, eu quero matar os destruidores. Mas aquela moça disse uma coisa
estranha: que queria me tornar imortal para que eu sofresse.
– Existe uma velha lenda de amigos imortais que partiram em uma jornada.
Saíram em busca do maior tesouro desse mundo: a mortalidade.

140
Fábula dos Gênios

Quem disse isso foi um velhinho que caminhava pela cidade, enquanto eu
passeava por lá em minha cadeira de rodas e envolto em fios e máquinas.
Eu não conseguia falar. Ainda assim, ele foi capaz de captar a vibração
daquela conversa.
– Para eles, seus corpos de carne eram como uma prisão. A alma estava
lutando para sair de dentro deles, que não conseguiam morrer. Eles ouviram
falar de uma terra de mortais, em que as pessoas viviam apenas em torno de 80
ou 100 anos e depois faleciam. Ficaram encantados e no começo pensaram que
era mentira. Mas, em busca desse sonho, aceitaram partir numa aventura em
busca dessa terra secreta.
Essa história agradou–me bastante. Aguardei para que o velho mago
revelasse o resto dela. Mas ele não fez isso.
– Eles cumpriram seus objetivos?
Eu digitei isso no meu computador. O velhinho escutou minha voz através
da máquina.
– Oh, sim. Se eu te disser que essa é uma história real, você acredita?
– Eu duvido de pouca coisa nesse mundo.
– Nós somos descendentes dos imortais. Hoje em dia as pessoas desejam a
imortalidade. Parece que os seres humanos nunca estão satisfeito. Quando
conseguem o que querem, logo não querem mais.
– Eu não me importo em morrer. Somente quero cumprir meu objetivo antes disso.
– Ah, o objetivo... mas você sabe que não há uma coisa assim, certo?
– Eu não posso criar meu objetivo?
– Você também pode criar uma pipa com papel para brincar. Deseja viver
eternamente num universo de brincadeiras ou encarar a vida real?
– Não há algo assim como vida real e brincadeiras. Crianças levam muito a sério seus
brinquedos. Como adultos, apenas escolhemos brinquedos diferentes.
– Você está certo, mas também está errado. Tudo isso é somente ilusão,
então você está certo. Contudo, existe algo real o suficiente nessa vida.
– O amor? A amizade?
– Não: o caminho que nos leva ao fim das ilusões.
– É errado viver de ilusões?
– Não. E também não é errado morrer por elas. A não ser que você queira
tornar–se um Deus.
– E quando alguém se torna um Deus?
– Quando se abandona a ideia de que existe algo certo e algo errado.
– Isso não torna seu discurso extremamente contraditório?
– Sim, mas somente porque a lógica humana e as palavras humanas geram
contradições. Meu discurso deveria ser perfeito, mas não é possível pronunciá–
lo através de seu idioma. Somente pelo alfabeto dos deuses.

141
Wanju Duli

– Existe algum grimório que o ensine?


– Existe. Mas é um alfabeto tão difícil que somente os deuses conseguem
pronunciá–lo. Então é inútil aprendê–lo enquanto não for um Deus.
– Eu não quero ser Deus. Sou um construtor e desejo matar os destruidores.
– Enquanto quiser alguma coisa, continuará a viver de ilusões. Dizem que as
ilusões são como lamber uma faca repleta de mel. É delicioso, mas machuca sua
língua e faz escorrer sangue. Esse gosto de mel com sangue é o favorito dos
mortais.
– Qual o alimento dos deuses, que são imortais?
– Vácuo. Com cogumelos.
– Por que cogumelos?
Eu fiz a pergunta errada. Deveria ter perguntado: “Por que vácuo?” Talvez
por isso o velhinho tenha perdido o interesse em mim e se afastou.
– Essa conversa me perturbou, Owmaq. É melhor que eu saia logo desse
país e retorne o quanto antes para Tecraxei antes que eu fique louco.
Conforme o tempo passava, eu localizava mais construtores. Era excelente
que cada um estudasse um tipo de magia num país diferente. Ao menos uma
delas poderia ser a chave para alcançar a fraqueza dos destruidores.
Logo depois de comunicar–me com Varra, falei com Bilubelei pela internet.
Espantei–me com o que me foi dito.

MOMO: Vocês foram tolas. Como ousaram voltar à nossa terra sozinhas?
Nhahia jamais enganará os destruidores. Se ela sair viva de lá, já será um milagre.
BILU: Que é um milagre, Momo? Se Nhanha for capaz de sair daquela terra
com vida, será por seu próprio mérito e não por algo incerto como um milagre.

– Qual a diferença desse lugar para uma prisão, Bapsi?


– A cama, talvez?
– Essa cama dos destruidores é dura e descofortável!
A partir das semanas seguintes, morei numa das casas. Pelo menos eu teria o
mínimo de privacidade, mas eu não poderia considerar que estava livre. Eu era
atentamente vigiada pelos destruidores. Eu estava proibida de deixar o país e
não poderia ir muito longe. No máximo eu tinha permissão para caminhar pelo
pátio da casa ou até a praça.
Duas vezes por semana eu me encontrava com o tradutor do filho do autor
do GGM. Ele recebeu instruções para me ensinar o básico sobre a magia dos
gênios malignos. Pelo jeito eles não iam me ensinar muito mais que isso.

142
Fábula dos Gênios

Nós dois nos sentávamos sobre o chão da praça nessas ocasiões e ele abria o
grimório. Eu odiava a simplicidade dos destruidores, pois eu queria pelo menos
um banco ou cadeira para sentar, uma cama macia para dormir ou um alimento
que tivesse pelo menos um gosto ligeiramente bom.
Eu não via a hora de sair daquele lugar horrível, pois eu estaria vivendo
melhor como mendigo em qualquer país.
– Você reclamar demais, construtora. Isso despertar meu ódio. Estar
destruidores a fazer favor em poupar sua vida.
– Vocês são os maiores mentirosos que já conheci! É claro que nunca
tiveram intenção de me ajudar ao me deixar viva. Primeiro aquele sujeitinho me
usou para testar magias bizarras em mim. Agora mantém–me viva apenas para
que eu dê um descendente ao autor do GGM. E mais: disseram que eu poderia
circular à vontade pelo país, mas me vigiam o tempo todo.
– Respeitar a família Cazka. Ela ser influente.
– Por que não posso ser treinada pelo próprio Vlebre Cazka?
– Ele ser pessoa ocupada. Ter mais o que fazer do que treinar uma iniciante.
– Ele só treina destruidores avançados, então? Não me diga que o “Cazka
junior” também é avançado demais para me treinar?
– Ao comparar destruidores a você, todos nós ser avançados.
– Mas vocês certamente possuem diferença de poder entre si.
– Isso não ser perceptível a alguém como você. Além de não conhecer seu
idioma, o jovem Cazka detesta construtora mortalmente e não desejar se
aproximar.
– Eu também o detesto, mas se a intenção do pai dele é que tenhamos um
filho daqui a dois anos, não seria melhor colocá–lo logo como meu mestre para
que eu e ele conheçamos o mínimo um do outro antes de partirmos para um ato
tão pessoal?
– Isso não fazer menor diferença. Você se unir, não casar. Portanto, ser
irrelevante se conhecer ou não.
– Os construtores eram proibidos de permanecer sozinhos com alguém do
sexo oposto, mas parece que os destruidores não possuem essa proibição.
– Nós usar mantos longos e pesados que cobrir quase todo corpo e rosto,
então não despertar desejo pelo outro.
Eu mesma só podia sair na rua com um daqueles mantos, embora o meu
não fosse como os deles. Os mantos dos magos eram aqueles com verde e
marrom. O meu era apenas verde sem as costuras em marrom. Parecia que o
número ou padrão das costuras tinham relação com o poder do mago ou algo
assim.
– Qual é o seu nome?

143
Wanju Duli

– Eu estar aqui para te ensinar magia dos gênios malignos e não para falar de
mim.
– Eu me chamo Nhahia e tenho 18 anos. E você?
– Eu ser Nhede e ter 18 também.
– Oh, nossos nomes são até parecidos! Poderia tirar o capuz para que eu
veja melhor seu rosto? Nem consigo ver seus olhos direito, você está sempre de
cabeça baixa.
– Senhorita Nhahia, parar com esse jogo agora. Você desejar fazer amizade
comigo para descobrir fraqueza dos destruidores e derrotar a nós. Sinto
informar que destruidores não ter fraquezas. Além do mais, eu não baixar capuz
para sexo oposto.
– Você já se uniu com sua ligação?
– Essa ser pergunta muito pessoal. Eu recusar responder.
– Você já a beijou pelo menos? Sabe quem ela é?
– Nós destruidores conhecer ligação desde pequenos.
– Pode me apresentar a ela algum dia?
– Você já a conhecer. Ser senhorita presente na sua captura.
– Ah, aquela que arrancou minhas roupas...
– Eu não saber disso.
Contei a ele o que Vlebre Cazka havia feito a mim e ao filho.
– Senhor Cazka ser sábio e saber o que ser melhor para filho. Para os
destruidores, filhos ser propriedade dos pais, que poder fazer o que quiser com
eles. Senhor Cazka ser rigoroso.
– Você é algo como um empregado dele?
– Minha família ser ligada a dele. Eu e jovem Cazka primos. Ser também
contraparte.
– Então você é a contraparte da minha ligação! Você e ele se amam?
Eu já estava achando tudo aquilo muito romântico, mas Nhede acabou com
minha imaginação.
– Eu e ele amigos, isso ser tudo. Mas jovem Cazka sempre ser solitário,
então eu não me aproximar muito para não perturbar. Ele não ter outros amigos,
ser pessoa difícil de lidar. Eu o respeitar como pessoa e como mago.
Saber de tudo aquilo era extraordinário. Provavelmente por ser o filho do
autor do Grimório dos Gênios Malignos, ele devia se achar melhor que os
outros e era convencido. Então não desejava se envolver nem mesmo com os
outros destruidores.
– Eu também queria saber mais sobre a princesa dos destruidores. Qual é o
nome dela?
– Construtora Nhahia, focar–se em seu treinamento! Não desejar conhecer
nossa magia?

144
Fábula dos Gênios

– Claro! Posso dar uma olhada no grimório?


– Isso eu não permitir. Além do mais, você não conhecer nossa língua.
– Pode me ensinar?
– Ser língua difícil.
– Não me importo. Se me ensinar, vou fazer com que se aperfeiçoe em meu
idioma. Você não sabe conjugar os verbos e comete outros erros banais de
estrutura frasal.
Ele pareceu meio ofendido com o que eu disse. Acho que era difícil para um
destruidor ser criticado em alguma coisa. Por fim, ele concordou em me ensinar.
Nas semanas seguintes, passamos a nos encontrar mais vezes por semana ou
estender os encontros. O idioma deles era difícil pra caramba, mas ele estava
aprendendo muito rapidamente a conjugar verbos e construir frases no meu.
De repente, me dei conta do quanto nossa língua era simples. Ou os
destruidores aprendiam rápido. Parecia que eles davam a vida em qualquer coisa
que fizessem.
– Você está falando tudo errado, Nhahia! Sua pronúncia é terrível! É
“graaahr” e não “graaahhr”.
– Qual a diferença?
– Você está estendendo demais o “h”. As pausas são muito importantes no
nosso idioma. Veja só: “gruhhr” é força e “gruhr” é fraqueza. Isso tem um
sentido, já que a primeira palavra é mais longa e exige maior força para ser
pronunciada.
No idioma deles cada palavra parecia ter uma história por trás e isso
facilitava um monte para que eu me lembrasse delas.
Apliquei–me tanto nos estudos que em pouco tempo eu já era capaz de
pronunciar e entender frases simples, embora com um sotaque terrível e
diversos erros.
– O idioma de vocês é lindo! Tão rico, tão vasto e inteligente! Parece o
rugido de um animal ou um uivo de coruja, não sei bem.
Eu sempre ouvi falar que era uma língua de selvagens, mas perto daquilo era
o idioma dos construtores que parecia pobre.
Nos meses seguintes, ele mal me ensinou a magia dos gênios malignos.
Estávamos nos divertindo com os idiomas. Ou melhor: Nhede irritava–se
comigo frequentemente, quando eu cometia muitos erros. Ele não tinha o
menor talento ou paciência para ser professor.
Por outro lado, eu achava engraçado a irritação dele e algumas vezes eu tinha
que segurar o riso.
– Tente pronunciar isso: “garahfshwhihuwytrbushgalefep”.
– Grahshhvusshhbgafff.
E, pela primeira vez, eu vi Nhede rir. Eu ri com ele.

145
Wanju Duli

– Essa é a palavra mais difícil de ser pronunciada em nosso idioma. Há


certos sons que só os nativos conseguem pronunciar bem. Há mais de cem
diferentes tons de “h” em nosso idioma, para marcar os intervalos. Estrangeiros
nunca o dizem tão bem quanto nós. É sempre engraçado ver alguém de fora
tentar falar nossa língua, pois é impossível que o façam com perfeição.
– Nunca ouvi falar de estrangeiros usando idioma dos destruidores. E é
surpreendente para mim saber que você ache graça em alguma coisa que não
seja matar!
– Houve poucos casos de contatos nossos com outros povos, mas existiu. E
você certamente não nos conhece bem para pensar isso de nós.
Por meio ano tive Nhede como meu mestre, se é que posso chamá–lo assim.
Afinal, em nossos encontros ele apenas me ensinava seu idioma e eu corrigia a
pronúncia dele do meu. Além disso, ele me informava sobre a história dos
destruidores e eu soube de muitas curiosidades interessantes.
Se não fosse aquela diferença gritante que nos separava, eu poderia
considerá–lo um amigo. Mais de uma vez rimos juntos com meus erros na
tentativa de pronunciar palavras em dezkazil, o idioma deles. Já Nhede tornou–
se praticamente perfeito ao falar o creemah, idioma dos construtores.
– Pode me chamar de Nhanha, é como meus amigos me chamam.
– Se é assim, talvez eu possa ser Nhenhe, embora soe estranho.
– Nhanha... o que está fazendo? Enlouqueceu?
Quando cheguei em casa no fim daquele dia, Bapsi parecia meio alterado.
– O destruidor é seu amiguinho agora? Onde está com a cabeça? Poderia ter
arrancado todas as informações que precisasse sobre o GGM e em vez disso
fica conversando besteira com ele! Era sua oportunidade de ouro e você está
desperdiçando!
– Mas esse lugar é muito chato, estou entediada! Então pelo menos quero
poder rir um pouco nesses encontros. Aprender magia é dureza, exige
concentração e treinos intensos. Eu mal sou alimentada direito nesse lugar,
então não sinto a menor disposição para estudar magia.
– Você estava preparada para morrer quando veio para cá. Que é essa
mudança, de repente?
– Morrer é uma coisa. Viver de vegetais velhos é outra! Os destruidores já
estão acostumados a se sustentar com meia migalha de pão, mas para mim isso é
sofrido demais.
– Desistiu da sua ideia de matá–los?
– Claro que não.
– Então roube logo o grimório daquele idiota e saia daqui! Você teve sorte
de ter arranjado um destruidor ingênuo como mestre. Se fosse o outro, você
tava ferrada.

146
Fábula dos Gênios

Bapsi tinha razão. Após aqueles seis meses, eu sentia que Nhede já tinha
certa confiança em mim. Portanto, já estava na hora de traí–lo.
Em nosso próximo encontro, ele nem mesmo levou o GGM. Carregava
apenas uma espécie de caderno e um material para escrever, para me explicar
um pouco mais sobre a gramática do dezkazil.
Depois de alguns minutos de aula, eu o interrompi.
– Você me prometeu que me ensinaria a magia dos gênios malignos, certo?
– Sim. Quando desejar, começamos.
– Por que aceitaram ceder a mim o maior segredo de vocês assim tão
facilmente?
– O GGM não é nosso grimório mais forte. Assim como os construtores
ensinam o GG apenas aos adolescentes, ocorre o mesmo conosco. Então não é
como se vocês fossem dominar completamente a nossa magia se tivessem
acesso a ele.
– Mesmo assim, aposto que há coisas de valor aí dentro. Os destruidores
crianças nos atacaram pra valer, mesmo só conhecendo o GG.
– Por isso fui proibido de te deixar tocar no grimório. Eu apenas devo lhe
ensinar alguns conceitos básicos.
– Podemos começar nossas aulas amanhã? De repente fiquei interessada.
Ele concordou. No dia seguinte trouxe–me o GGM.
– Eu não posso tocar, mas posso dar uma espiada?
– Não, Nhanha, me desculpe. Eu sequer tinha permissão para te ensinar
nosso idioma, então é melhor não irmos longe demais.
– Então o GGM é uma versão reversa do GG, certo?
– Algo assim, mas a filosofia que embasa o GGM é fundamentalmente
diferente. São outros conceitos, outra mentalidade. O ideal seria que esquecesse
tudo que aprendeu no GG.
– Eu nunca tive acesso ao GG.
– OK, agora estou surpreso. De onde vem sua magia, então?
– Eles só liberam o nosso acesso ao GG nas escolas quando completamos
13 anos. Como vocês destruíram nosso país quando eu tinha 11, tudo o que sei
sobre selos estudei em Sinabil.
– A terra dos símbolos, hã? Já ouvi falar de lá.
– Eles são fãs dos selos multidimensionais de vocês. E como amam idiomas,
adorariam conhecer mais sobre o dezkazil, mas ninguém conhece um livro que
ensine, já que vocês passam o conhecimento desse idioma apenas oralmente.
Quando vocês me libertarem, quero voltar para lá e deixar todos os
simbologistas com inveja, por ter um destruidor como mestre. Ei, não quer
viajar comigo para lá depois?

147
Wanju Duli

– Você só pode estar brincando. Agora que a conquistamos, jamais


deixaremos essa terra. Nós destruidores somos muito patriotas e unidos. Não
nos separamos. Não nos misturamos com outros povos. O caso dos
construtores foi exceção, pois nos envolvemos com vocês apenas para matá–los.
– Não acha divertido essa troca de culturas?
– Há coisas muito mais divertidas que isso, como se matar de treinar magia e
ficar forte.
– Vocês já recebem acesso ao GGM desde crianças, certo? Eu sempre ouvi
falar que precisávamos conhecer bem o GG para entender o GGM.
– Os construtores dizem isso porque nosso grimório é altamente persuasivo.
É claro que é possível estudar o GGM sem estudar o grimório de vocês.
– Me diz uma coisa: por que quer ficar forte? Pretendem matar outro povo?
– Não temos intenção de atacar quem não fez nada a nós. É útil ter esse
conhecimento como defesa, mas não é por isso que estudamos. Praticamos
magia porque assim temos um excelente controle mental que nos permite
encontrar diversão mesmo sem tanto luxo lá fora. Assim, mesmo sem comida
ou conforto, sentimos sensações extraordinárias.
– Não é perigoso permitir que crianças tenham acesso a tanto poder? Ouvi
dizer que muitos de vocês se matam.
– Sim, nós adoramos batalhas até a morte. Se estou vivo ainda, significa que
sou um bom mago. Ontem mesmo cheguei de uma ótima batalha. Sablerie
também estava lá e participou. Ele era um dos favoritos e foi o campeão. Fiquei
em quinto lugar, mas já foi admirável.
– Quem é Sablerie? Não me diga que é esse o nome do filho de Vlebre
Cazka?
– Ah, droga. Falei sem querer. Ele tinha me proibido de te contar. Por
nenhuma razão especial. Ele não gosta nem mesmo que os outros destruidores
conheçam detalhes de sua vida pessoal, muito menos você.
– Sablerie Cazka... é um nome muito bonito. Soa bem. Então ele é um mago
tão poderoso quanto imaginei. Ele já matou muitos destruidores?
– Nós costumamos apostar em números. Minha marca é 88, mas eu já morri
duas vezes. A marca de Sablerie é 690. Invicto. Ninguém nunca venceu dele.
– Opa, peraí! Você disse que já morreu duas vezes?
– Eu me expressei mal. Já perdi meu corpo duas vezes. Existem três tipos de
morte: aquela em que se perde somente o corpo; a que se perde o corpo e a
alma; e a que se perde o corpo, a alma e o gênio. Tudo isso é explicado no
GGM.
– Você quer dizer que quando se perde somente o corpo e se salva a alma e
o gênio, é possível ressuscitar?!

148
Fábula dos Gênios

– Sim, mas isso somente em caso de duelos mágicos ou acidentes. Quando


perdemos o corpo pela velhice, então só com um novo corpo para viver. Nesse
caso, não é ressurreição e sim renascimento. Nos tornamos outra pessoa,
frequentemente com outra mente e sem memórias. Nem todos têm interesse em
conhecer as vidas passadas.
– Ah... ah... quê? Vidas passadas?
– Você certamente não sabe nada de magia. É impressionante que tenha
escapado viva em dois confrontos contra Sablerie. Ele nunca tem piedade com
os adversários. Como eu dizia, essa técnica de ressurreição só funciona quando
se perde o corpo. É disso que brincam as crianças. Combates em que se mata só
o corpo é visto como luta de criança. Os adolescentes ainda brincam disso e só
os mais corajosos ousam ferir a alma do outro.
– Quando se destrói corpo e alma fica impossível reviver?
– A magia dos gênios malignos se trata de um processo em que o gênio
devora a alma gradualmente, dentre outras partes do corpo. Ele só se completa
aos 21, na maioridade. Nesse instante, o gênio toma completamente o lugar da
alma. Se um adolescente destrói a alma do outro, para salvar esse destruidor é
preciso fazer com que o gênio tome completamente o lugar de sua alma, sem
que o corpo dele esteja preparado para isso. É um procedimento bem perigoso.
Nenhum adulto destruidor possui alma, então para matá–los completamente é
preciso destruidor o gênio.
– Isso não se torna uma fraqueza?
– Frequentemente a maestria de uma técnica mágica sublime exige um
grande sacrifício. O preço de utilizar a magia dos gênios malignos é perder a
alma e muitas partes do corpo. Em compensação, o poder obtido através disso é
sem igual.
– Não é possível combinar a magia de vocês com outras técnicas?
– Tudo é possível, mas nem sempre desejável. O ideal é focar–se somente
num tipo de treino, senão pode ocorrer dispersão. Por outro lado, aprender
outras magias pode abrir a mente. Depende da pessoa, alguns se dão bem com
isso. Mas geralmente apenas a maestria dessa técnica torna o mago completo.
Somos praticamente os mais poderosos magos do mundo.
– “Praticamente”? Essa é a primeira vez que ouço isso! Quem é mais forte
que vocês?
– Em Samerre há uns sujeitos bem fortes. Vários destruidores têm vontade
de desafiá–los, só pelo prazer da batalha, mas eles não gostam de lutas. Em
Tecraxei também há bons grimórios, mas o pessoal lá têm objetivos meio
dispersos, então não funciona.
– Samerre... você quer dizer, os deuses? Eles venceram a morte e atingiram a
imortalidade?

149
Wanju Duli

– Um mago digno não se preocupa com a morte do corpo. Isso é


completamente irrelevante. Ser mortal ou imortal não faz a menor diferença.
Não somos o corpo. Na verdade, nem a mente ou a alma.
– Somos o gênio?!
– Me perdoe, Nhahia, mas você é burra, hein?
Eu dei um empurrão nele, pois fiquei braba. Ele se desequilibrou e quase
caiu. Eu ri.
Poucas vezes eu vi os olhos de Nhede, que estava sempre de cabeça baixa.
Mas naquele instante ele me lançou um olhar perigoso.
– Você não somente encostou no meu corpo, mas também me empurrou.
Está ciente da gravidade da situação? Você quer morrer, construtora?!
Ele elevou a voz ao dizer isso. Levei um susto! Eu pensava que éramos
como amigos, mas naquele instante eu percebi que ele não baixaria a guarda
facilmente. Se ele era o mais ingênuo dos destruidores, como Bapsi disse, eu
nem queria imaginar como eram os destruidores mais sérios e violentos.
– Viu só, Nhahia? Ele não é seu amigo. Acho melhor roubar logo esse
grimório antes que eles te matem “por acidente”. Você sabe como os
destruidores são esquentados.
Eles não se importavam em mutilar ou matar. Afinal, bastava usar a magia
da ressurreição, mas... eu não estava muito a fim de ter uma experiência de
morte com aquela brincadeirinha.
Ríamos juntos e falávamos de assuntos triviais. Apesar disso, Nhede estava
sempre alerta. Deixou escapar uma ou duas coisas, mas não ia admitir que eu
realizasse nenhum ato ofensivo. Como destruidor, ele tinha seu orgulho
absoluto. Ser empurrado por uma construtora? Era no mínimo um insulto.
– Eu te empurrei de brincadeira. Nós construtores damos leves empurrões
ou tapinhas uns nos outros como gestos de amizade.
– Eu desconheço esse costume. Nós destruidores só tocamos uns nos
outros na guerra ou no sexo. Portanto, eu me sentiria ofendido nos dois casos.
O seu toque me sugeriu que você queria me atacar, pois como somos de sexo
oposto e não somos ligação, é isso que o contato implica.
– Me desculpe, eu jamais imaginei que fosse encarar meu ato dessa maneira.
Isso não vai se repetir.
Ele ainda me lançou um olhar desconfiado antes de baixar os olhos para o
GGM, que passou a folhear. Eu engoli em seco.
– O seu “amiguinho” é um destruidor. Um cara que pode mascar sua alma
como chiclete e depois cuspir fora. Agora você sabe que existe possibilidade de
ressurreição, então eles não vão se conter em te matar. Se quiserem, te deixam
morta até chegar a época de você ganhar o maldito bebê. Te matam de novo na

150
Fábula dos Gênios

despedida e depois te chutam do país. Muito amável, não acha? Espero que no
meio desse horror você não perca uma parte do corpo, da alma ou de mim!
Fiquei quieta por um bom tempo depois disso. Claro que eu tinha medo do
Nhede. Droga... o que eu estava fazendo?
Eu ainda me atrevi a aproximar–me um pouco mais dele para tentar espiar o
GGM. Mas fiz isso com muito cuidado para não encostar nele por acidente.
De longe, vi umas imagens estranhas de selos multidimensionais. Não dava
tempo de ver mais, pois ele passava as páginas muito rápido.
– Então, em Samerre eles se tornam deuses não por conquistarem o corpo e
sim a mente?
– Exato. Eles não têm gênios e não brincam tanto com a alma quanto nós.
Quanto aos magistas da tecnologia, a intenção deles é boa. A filosofia deles é
bem forte e as possibilidades da magia bem impressionantes. Eles apenas não
sabem explorar a própria potencialidade.
– Eu tive um amigo construtor muito bom em magia tecnológica. Se ele
percebeu a potencialidade dessa magia, significa que é muito inteligente, hã? Ele
uniu magia dos gênios com essa técnica.
– Não me diga! Então foi esse o mago que nos trouxe problemas com
aquele maldito escudo. Felizmente já está bem morto.
Eu não gostei de ouvir isso. Subitamente, senti raiva de Nhede. Afinal, por
que eu estava tentando fazer amizade com o cara que havia matado gente do
meu povo? E trouxe a eles a morte final, rasgando a alma e destruindo os gênios.
– Então o que acontece com quem une magia dos gênios malignos com
magia dos deuses?
– Talvez se torne o mago mais poderoso do mundo. Ou mais
provavelmente fique tão sábio e poderoso que perca completamente o interesse
na magia.
– Uia! Como assim?
– Você utiliza umas interjeições bem esquisitas. Os próprios deuses são
exemplo vivo disso. Quando se fica muito sábio, o mago perde interesse em
brincar de dominar o mundo. Ele passa a desejar dominar a si mesmo.
– Mas não é dominando a si mesmo que se pode dominar o mundo?
– A maior parte dos magos tenta dominar a si com o objetivo de dominar o
mundo. Quando se deseja o domínio de si por si mesmo, o poder gerado é
muito mais intenso. Ou seja: o mago que possuiria o maior potencial para
dominar o mundo seria exatamente aquele que não o deseja. E isso não tem
nada a ver com bondade. É sabedoria; capacidade de enxegar as coisas tais
como são.
– E como as coisas são?

151
Wanju Duli

De repente eu estava achando filosofia da magia a coisa mais empolgante do


mundo!
– Não sei. Eu ainda me empolgo com batalhas, talvez porque ainda sou
adolescente. Os adultos destruidores meditam nas montanhas.
– Meditação! O nosso príncipe dizia que era esse o segredo dos destruidores!
– Wakwa.
– Você sabe o nome dele!
– Sim, ele era nosso prisioneiro. Para ser mais exato, era o brinquedo da
princesa. Sua amiga construtora veio buscá–lo. A princesa aceitou entregá–lo,
pois enjoou dele. Construtores têm pouco potencial mágico, portanto não são
exatamente empolgantes. Sua amiga te abandonou aqui para a morte. Isso não é
fantástico?
Ele estava me provocando. Era um alívio saber que Wakwa e Bilubelei
tinham escapado a salvo, mas por que ainda não tinham voltado para me
resgatar? Se bem que havíamos levado sete anos para salvar Wakwa, então eu
não podia reclamar.
– Mudando de assunto, será que não posso assistir a uma dessas batalhas
entre destruidores? Deve ser fabuloso presenciar uma luta entre dois magos
fortes!
– Não posso. Mesmo que eu te levasse disfarçada, Sablerie me mataria se te
descobrisse lá. Possivelmente te mataria também.
– Quando ocorrem essas lutas?
– Teremos outro campeonato na quinta que vem. Dessa vez será um do tipo
extremo, de arrancar almas. Esse é o que tem mais platéia, pois só os mais
corajosos participam.
– Se terá muita platéia, posso me esconder na multidão!
– Os destruidores mais fortes iam te notar. Iam sentir seu gênio e saberiam
que é construtora. Faz ideia do que ia acontecer com você se te pegassem?
Mas eu não desisti. Quinta era um dos dias em que eu e Nhede nos
encontrávamos. Depois que nos despedimos, eu o segui. Imaginei que ele iria de
lá diretamente para o evento.
Eu o segui a uma distância segura, para que ele não me notasse. Ele nem viu.
“A–há, então você não é um destruidor tão forte assim, se só os fortes sentem
os gênios!”
Ele parou no meio do caminho e se sentou. Parecia estar esperando alguém.
– Será que ele combinou de se encontrar com sua ligação, Nhahia?
– Espero que não, senão eu tô ferrada. Aquele cara iria me sentir.
Principalmente por ser minha ligação. Eu também sinto o gênio dele, Bapsi. Eu
saberia se ele estivesse perto.
Quem chegou foi a destruidora daquele dia.

152
Fábula dos Gênios

– É a ligação de Nhede.
Eu espiava de longe. Quando se encontraram, os dois tiraram o capuz e se
beijaram.
– Que lindo, Bapsi! Você viu aquilo? Você viu?
– Vi si. Tão bonitinho.
Eu fiquei simplesmente encantada! Os destruidores também amavam!
Os dois recolocaram o capuz e seguiram juntos até o local do evento. No
caminho, conversavam no idioma dos destruidores. Eles falavam tão rápido que
entendi pouca coisa.
Eu nunca vi tantos destruidores reunidos. Nem na ocasião da guerra, já que
eu havia me afastado.
Eles faziam muito barulho! Gritavam animados coisas que não entendi.
Aquilo estava a maior bagunça.
– Bapsi, minha ligação está aí.
– Eu sei, também o sinto. Mas não o vejo nessa multidão.
O primeiro duelo iniciou–se muito depressa: assim, do nada! E foi tão veloz
que meus olhos mal acompanhavam.
Eles não tinham problemas em ver o gênio um do outro, já que conheciam
suas ligações desde pequenos. E foi com gênios e selos que se enfrentaram.
Gênios gigantescos! E formas geométricas que cortavam o ar e voavam. A
platéia urrava!
Meu coração estava acelerado. O cara que morresse não teria apenas seu
corpo destroçado, mas a alma rasgada.
– Bapsi, e se minha ligação morrer...?
– Até parece que aquele cara vai morrer. Mas se isso acontecesse, você
roubava um GGM e se mandava daqui com a máxima velocidade das rodas de
sua cadeira!
Finalmente um dos destruidores foi derrubado. O outro arrancou a alma
dele pela boca. O gênio ainda enrolado a ela, tentando salvá–la.
– Bapsi...!
Eu comecei a chorar. Aquilo era horrível demais: ver o gênio dele
desesperado.
Eu não consegui olhar o resto. Só ouvia os gritos da multidão. E quando
terminou, todos comemoraram.
Quando olhei de novo, havia poças de sangue e alguns membros do corpo
do destruidor, que ainda não tinham sido recolhidos.
– Então é assim que os destruidores se divertem, hã? Quando conversei com
Nhede por todos esses meses, ele me pareceu um cara tão normal...

153
Wanju Duli

Quando o desafiante seguinte foi para o centro da “arena” improvisada dos


destruidores, eu levei um grande susto: era o próprio Sablerie. Pelo jeito, ele
tinha muitos fãs.
Agora sim eu o veria lutar de verdade. Na minha luta contra ele, aquele
destruidor tinha realizado um esforço mínimo. Eu finalmente poderia
testemunhar o quanto ele havia evoluído desde a nossa batalha na infância.
O gênio dele era maior que o gênio do adversário. Bem maior.
– Basza está magnífica, não acha, Bapsi?
– Tá uma gatinha.
– Você vai mudar de ideia quando ela retalhar o corpo e a alma daquele cara!
Mas não foi um duelo tão fácil quanto imaginei. Pensei que Sablerie mataria
o cara em poucos segundos, com um ou dois selos multidimensionais
especialmente fabulosos. Mas no começo ele estava na defensiva. Construiu um
monte de selos de defesa ao redor de si, de variados formatos.
Eu mesma não conseguia mexer muito bem com selos de defesa por causa
da minha cadeira de rodas. Era bem impressionante que ele fosse tão cuidadoso.
Eu devia ter sido muito arrogante em simplesmente tê–lo atacado naquela
minha luta. Eu não sabia nada sobre duelos mágicos...
Os ataques foram lindos! Não somente da parte de Sablerie, mas também de
seu adversário.
Em algum momento, o destruidor atacou–o com um selo cortante que
passou de raspão. Atingiu Sablerie no rosto e formou um grande corte, do qual
escorreu sangue.
A platéia gritou. Provavelmente se surpreenderam que ele tivesse sido
atingido. A expressão de Sablerie tornou–se ainda mais séria. Ele fez surgir um
selo gigantesco do chão: uma esfera circundada por cubos e pirâmides, que
envolveu o corpo do outro destruidor e o explodiu em mil pedaços, numa
chuva de carne, ossos e sangue.
Sablerie agarrou a alma do destruidor no ar e partiu–a habilmente com os
dedos. Todos comemoravam e berravam.
– Cazka! CAZKA!!
Foi quando eu senti muito intensamente a potência do gênio dele e levei um
susto.
– Ele me sentiu. Droga!!
Então foi por isso que ele se distraiu no meio da batalha e foi cortado:
porque percebeu minha presença.
Depois da batalha, Sablerie retirou–se da arena e, calmamente, caminhou até
a minha direção.
Eu resolvi colocar bastante força nas rodas para tentar escapar de lá. Mas
Sablerie começou a correr e me alcançou.

154
Fábula dos Gênios

Eu estava num lugar mais afastado e ninguém mais viu o que se passou.
Aquele cara me segurou pelo manto e me ergueu da cadeira de rodas. Colocou–
me contra um muro.
– Desculpe!
Eu falei isso no idioma dele. Ele me fitou com estranheza.
– Você sabe falar meu idioma? Onde aprendeu?
– Num livro, na universidade.
– Mentirosa! Nhede lhe ensinou, não foi? Aquele maldito!
Ele me jogou no chão.
– Não saia daí!
Em pouco tempo, ele retornou acompanhado de Nhede.
– Você não tinha autorização para ensinar a ela o nosso idioma, seu
retardado!
– Mas...
– “Mas”, nada, seu filho da puta. Vai te foder!
– Eu não entendi. Que significa “puta” e “foder”?
Nhede abafou o riso, embora a situação fosse crítica. Sablerie apenas me
fitava com desconfiança.
– Vejo que você não ensinou a ela as nossas palavras mais importantes.
Construtora, esses são xingamentos. Puta é uma mulher que faz sexo por
dinheiro. No caso dos destruidores, mulheres só vendem o corpo a outras
mulheres e homens para homens, por causa das ligações. E “foder” significa
realizar o ato sexual. Vocês construtores não xingam?
– Nós usamos palavras difusas...
– Hã?
– “Difrentis”, “diferentes”.
Ele resolveu acabar com aquela conversa.
– Nhede, seu trabalho termina aqui. A partir de agora, eu me encarregarei de
treinar a construtora.
Aquilo provavelmente seria ruim. Bem ruim.
No dia seguinte, encontrei–me com Sablerie na mesma praça na qual antes
eu me encontrava com Nhede.
– O que ele já te ensinou de nossa magia? Em qual página do GGM vocês
pararam?
– Ele quer ir direto ao assunto, Nhahia. Esse cara não parece muito a fim de
bater papo furado. Provavelmente será um mestre muito chato e rigoroso.
Prepare–se.
– Eu ainda não sei nada. Nem abrimos o grimório. Ele apenas me ensinou
dezkazil e me contou um pouco sobre a história dos destruidores e outras
curiosidades.

155
Wanju Duli

– Deixe–me ver se entendi: vocês passaram seis meses somente


conversando bobagem? É por isso que aquele cara é fraco. Ele não possui a
disciplina suficiente para treinamentos severos e muito menos para ser mestre.
Ele venceu apenas 44 batalhas em toda sua vida, enquanto eu já matei 711
destruidores.
– Ele me disse que venceu 88 e você 690.
– Que mentiroso do caralho! Ele dobrou a quantidade de vitórias dele, o
patife. E ainda teve a ousadia de diminuir 21 vitórias minhas. Ele não contou os
campeonatos que não assistiu. Além da vitória de ontem, é claro. Eu poderia ter
obtido mais vitórias se você não tivesse me atrapalhado.
– O que é “caralho”?
– A sua pergunta é séria ou você está tirando com a minha cara?
– É sério, eu não sei.
– É o que eu tenho no meio das pernas.
– Por que vocês usam tantos termos com relação a sexo nos xingamentos?
– Não fui eu que inventei nossa língua ou estabeleci nossos costumes.
Provavelmente porque sexo pode nos matar, quando não é feito com a ligação.
Também temos xingamentos relacionados a beijos, possivelmente pelo mesmo
motivo. Deixando isso de lado, você quer aprender a nossa magia ou não?
– Eu queria, para te matar.
– Sinto desapontá–la, mas estou entre os melhores magos destruidores,
então mesmo que eu te entregue o GGM em mãos para você brincar com ele,
não conseguirá me produzir nem um arranhão.
– Eu produzi naquele dia que usei a magia da tinta do meu cabelo. Quando
explodi a cela, lembra? Foi minha magia mais poderosa.
– Se aquilo é sua magia mais poderosa, ainda tem um longo caminho para
tentar chegar ao meu nível. E se um dia for capaz desse feito, ainda nessa vida,
nesse instante eu já estarei tão elevado que você não poderia me alcançar nem se
voasse.
Ele lançou o Grimório dos Gênios Malignos na minha direção.
– Tome, pode brincar com ele. Você pretendia roubá–lo, certo? Acha
mesmo que conseguiria praticar uma magia tão difícil sem um mestre? Mesmo
que saiba nosso idioma agora, a teoria será inútil se não tiver alguém forte para
te mostrar como faz.
– Você me aceita como sua discípula?
– Dê–me um excelente motivo para eu perder meu precioso tempo com
você. Muitos antes já me requisitaram como mestre e eu neguei. Eu sou famoso.
Você provavelmente viu com seus próprios olhos ontem.
Ele não estava se gabando falsamente. O maldito dizia a verdade: ele era
bom; era ótimo.

156
Fábula dos Gênios

– Você é melhor que a princesa?


– Não.
– Já a enfrentou alguma vez?
– Sim, quando criança. Naquela época eu era superior a ela. Depois ela me
superou. Mas isso não importa! Até o mais fraco dos destruidores seria um
mestre digno para ensinar uma maga fraca como você. Ou você só aceita o
destruidor mais forte como mestre?
– Quem é o destruidor mais forte? Seu pai?
– Eu não vou responder.
– Está bem, eu te aceito como meu maestro.
– Como é?
– Quero dizer, “mestre”.
– Ainda escorregando em nosso idioma, hã? Não é você que tem que me
aceitar. Você ainda não me deu um motivo para eu te treinar.
– Eu te dou um bebê para que você continue a viver após seus 21.
– Já disse que não desejo me unir a você. Não me importo de morrer aos 21.
Já estou entre os magos mais fortes. Se eu ficar ainda mais poderoso, chegará
um ponto que não terei mais adversários à minha altura. Então a emoção de
viver terminará.
– A emoção da vida não está só em lutar. Só sentimos êxtase nisso como
estratégia evolutiva, para caçar animais para nos alimentarmos e proteger nossa
espécie dos predadores. Para isso precisávamos de uma motivação, senão
morreríamos. Por isso ainda nos divertimos fazendo isso. Mas as pessoas
também se divertem comendo e fazendo sexo, por exemplo.
– O desejo da luta atendeu a todas as nossas necessidades e não precisamos
tanto das outras coisas.
– Você ainda pode buscar adversários diferentes, como destruidores adultos,
deuses, os magos da tecnologia...
– Os habitantes de Tecraxei são uns vendidos sem honra. Os nossos adultos
e os deuses não têm interesse em batalhas. Qual é a graça de meditar nas
montanhas?
– Experimente tornar–se um adulto, para ficar sábio e descobrir qual é a
grande emoção de ir para as montanhas.
Ele não respondeu imediatamente. Claro que no fundo ele desejava
descobrir qual era o mistério dos adultos. E ele só iria saber disso se virasse um.
– Depois que você ganhar esse maldito bebê, você sumirá daqui e dará fim a
essa besteira de “se vingar”?
– É claro.

157
Wanju Duli

– Então, que seja. Te ensino nossa magia, embora você esteja fadada a ser
somente uma maga medíocre. Não sei porque perde seu tempo estudando algo
em que claramente não possui o mínimo talento.
– Não existe “talento”. Existe paixão e dedicação.
– Então mostre pra mim que possui interesse genuíno em nossa magia. Se
não quer mais me matar, qual será a sua motivação?
– Será te mostrar que até uma construtora é capaz de dominar o
brinquedinho de vocês.
– Você é atrevida. O lado bom disso tudo será que meu pai ficará feliz por
eu ter aceitado me unir a você e não encherá mais meu saco.
– Posso te perguntar uma coisa?
– Cuidado com a pergunta. E não prometo que responderei.
– Por que você chorou naquele dia?
Ele ficou quieto por alguns segundos. Não olhou na minha direção.
– Você sabe o motivo. Meu pai me humilhou na sua frente. Você é uma
construtora, então é inadmissível que testemunhe nossas fraquezas. Desejamos
que nos vejam como um povo forte e nos temam.
– A te humilhar você se refere a ele ter batido em você na minha frente e
arrancado suas roupas, mas... não foi isso o que eu perguntei.
– Eu sei que piorei a situação com minha reação. Eu estava com raiva e não
pude me conter. Mas você quer que eu confesse que eu estava constrangido e
com medo de você, certo?
– Exato. Confesse.
Ele deu um leve sorriso.
– Você é uma criatura vil e nojenta. Eu não queria me aproximar. O
pensamento me repudiou. Então, por nojo, eu me afastei. Satisfeita?
– Que mentira. Você se sentiu tentado por mim. Por isso não me olhou.
– Essa conversa termina aqui. Somos animais, criança. Como você mesma
sabe, o prazer pelo sexo está em nossa natureza para nos induzir a reproduzir a
espécie. Sendo assim, parece–me que é você, de nós dois, que mais se assombra
com isso.
– Nhanha, desista. Ele é bom na magia e bom em argumentação. Você
perdeu.
– Eu estou farto dessa conversa e da sua presença. Amanhã continuamos.
Prepare–se para um treinamento pesado.
E ele foi embora, dando–me as costas.
– Que cara complicado.
– Pretende mesmo se unir a ele?
– Acha mesmo que não tenho chance de matá–lo?

158
Fábula dos Gênios

– Na verdade você tem. No meio do sexo. Digamos que ele estará bastante
distraído.
– Preciso de garantias. Não irei tão longe por uma suposição.
– Você ouviu o que Nhede disse. Em breve ele atingirá a maioridade e o
gênio dele tomará completamente o lugar de sua alma. Então, para destruí–lo,
bastará matar o gênio. Posso fazer isso. No momento da união, eu e o gênio do
destruidor estaremos gerando um terceiro gênio. Nesse instante derradeiro, em
que estarei dentro dela, poderei parti–la ao meio.
– É uma morte bem cruel. Será perfeito. Mas ele não vai desconfiar?
– Para que ele confie totalmente em você nessa hora, precisa fazer com que
o destruidor se apaixone. Não era isso que pretendia? Se conseguir, ele
certamente baixará a guarda.
– Sim, mas... terei que disfaçar muito bem. Não posso simplesmente dizer
que o amo. Posso me fazer de difícil e... cara, eu não sei nada sobre romances de
destruidores. Eu acho que ele só vai se excitar comigo se eu for uma boa
matadora de destruidores. Para isso, preciso ser uma maga forte e violenta.
Aquilo estava cada vez mais complexo.
No dia seguinte, o destruidor apareceu com uns hematomas no rosto.
– Construtora, precisaremos deixar o estudo do GGM para outro dia.
Contei pro meu pai que ia começar a te treinar. Também disse que ambos
aceitamos o lance do bebê. Então ele disse que como já estamos quase com 19
anos, precisamos nos apressar.
Eu levei um susto! Sexo, já? Naquele dia?
Era muito súbito. Eu me perguntava se Bapsi já tinha poder suficiente para
atacar o gênio dele e enganá–lo. Assim eu não ia ter chance de fazê–lo se
apaixonar por mim, caramba! Estava dando tudo errado.
– Eu tenho nome. Me chame por ele.
– Nhahia.
– Sablerie.
Ele me fitou completamente surpreso.
– Foi o desgraçado do Nhede que te contou, não foi?
– Ele me contou tudo. Até os seus segredos.
– Se ele soubesse algum segredo meu, estou certo de que teria te contado.
Felizmente, ele não sabe.
“Droga, não funcionou”. Pensei que ele fosse cair nessa.
Ele lançou um livro para mim.
– Os detalhes estão aí. Leia. Tem figuras.
Folheei o livro. Quando descobri, pelas imagens, tudo o que teríamos que
fazer, eu devolvi a ele o livro com um sorriso.
– Pode esquecer. Isso está completamente fora de questão.

159
Wanju Duli

– Eu achei mesmo que fosse dizer isso. Na verdade, teria estranhado se não
dissesse.
– Nhahia, o que deu em você? Vai estragar todo nosso planejamento!
Eu suspirei fundo, sentando–me novamente. Fitei o céu.
– Bem, Sablerie, você sabe que isso é complicado “pra caralho”, usando essa
expressão que você me ensinou. Nós não temos a menor intimidade um com o
outro. Então não seria mais fácil se nos tornássemos amigos primeiro ou algo
assim?
– Eu não tenho intenção de fazer amizade com uma construtora. Não sou
imbecil como Nhede. Para ser completamente sincero, prefiro fazer tudo o que
esse livro diz do que nutrir qualquer amizade pela senhorita.
– Woa! Ele tá zangado mesmo. E isso não é tudo: além disso, ele é esperto.
Ele sabe o que você planeja, Nhanha. Cuidado!
– Na verdade não precisamos ter amizade, só desejo. É isso o que o livro diz,
pelo menos.
– Eu fui criado para reprimir completamente meu desejo sexual. Isso porque,
como eu pensava não ter uma ligação, precisava me concentrar somente nas
lutas. Sendo assim, precisarei seguir as instruções desse livro a risca para as
coisas funcionarem.
– Aqui diz que somente beijos já estendem um pouco o tempo de vida.
– Eu não quero mendigar uns poucos meses a mais. Mas meu pai disse que
eu estou sendo estúpido e ridículo ao recusar algo tão banal. Por enquanto
podemos adiar o ato por pelo menos mais seis meses, então não se preocupe. Se
for necessário, adiamos por mais um ano, não importa. Mas meu pai sugere que
aconteça um beijo por semana. Então podemos marcar isso.
– Isso não é meio artificial, Nhanha? Vocês são robôs?
– Não me importo. Seu pai vai te espancar se você chegar em casa sem ter
me beijado, certo?
– Ele diz que mereço muita sova para deixar de ser fresco.
– Pois eu também te acho muito fresco, cara! Fazendo todo esse drama por
causa de beijo! E você ainda se diz um destruidor, idiota?
– Eu não ligo pra merda do beijo. Foda–se isso. Para ser sincero, já me irritei
com esse assunto. Vamos fazer o seguinte: manter a rotina de um beijo por
semana, todas as quintas às 14 horas. Estudo do GGM toda quarta às 14h.
– Espere, por que não podemos marcar os dois para o mesmo dia? O beijo
não é tão longo assim que dure um dia inteiro! Alguns segundos não é o
bastante?
– Eu sei, imbecil. Eu apenas não desejo conversar com você no mesmo dia.

160
Fábula dos Gênios

– Nhanha, esse destruidor está morrendo de vergonha de você. Ele só tem


coragem de falar com você de novo uma semana depois de te beijar. Ele não é
hilário?
Eu ri quando ele disse isso e principalmente com o que Bapsi falou. Mas
Sablerie se ofendeu com o meu riso.
– Algum problema com isso? Se tiver alguma sugestão melhor, apenas diga!
– Não tenho nenhuma sugestão melhor. A sua é perfeita.
Ele ainda me olhou com desconfiança quando percebeu que eu ainda estava
sorrindo quando disse isso. Mas ele não comentou mais a respeito.
– Nas quintas, não haverá qualquer tipo de conversa. E nas quartas só será
permitido tratar sobre magia. Conforme os meses passem, haverá uma
progressão a respeito de nossos dois encontros. Consultaremos os dois livros
para maiores detalhes. No caso do GGM, já o sei praticamente de cor. E no
caso dessa outra quimera, não será necessário nos informarmos dos detalhes
agora.
– Tá, tá...
Quando voltei para minha casinha, falei com Bapsi:
– Será que quando Nhede e a ligação dele se beijaram naquele dia, estavam
apenas seguindo o método do livro? E eu pensando que eles estavam
apaixonados de verdade!
– Se eu fosse você, me preocuparia mais com seu treinamento das quartas. A
possibilidade de você morrer nesse dia é maior.
Na quarta–feira, já fui esperando algum treinamento severo. O “mestre”
estava lá com o GGM na mão, me aguardando.
– Não me faça esperar, discípula. Onde estão os seus modos? Ajoelhe–se
diante de mim. – Mestre, com todo o respeito, eu prefiro comer o senhor do
que ficar de joelhos.
– Nhanha, você está doidinha pra morrer, né?
Sablerie levantou–se, segurou no meu pescoço e encostou meu rosto no
chão. Ele adorava me derrubar daquela cadeira.
– Perdão, esqueci–me que você é aleijada.
– Culpa de quem?
– Da sua própria fraqueza.
– Eu exijo minhas pernas de volta!
– E você as terá. Mas somente quando entregar meu filho nos meus braços.
– Há, há, se ferrou, Nhahia!
– Agora vamos aos fundamentos da magia dos gênios malignos.
Primeiramente, esqueça tudo o que sabe sobre magia.
– Eu não sei nada.

161
Wanju Duli

– Eu sei que você não sabe nada. Mas eu também me refiro às besteiras
sobre selos que você acha que aprendeu com os estúpidos simbologistas.
– Você não pode xingar a magia dos outros sem nem ao menos conhecê–la.
– Eu posso. Você usou essa técnica inútil contra mim. Quanto tempo
estudou na universidade deles? Um ano? Ou menos?
Preferi não contar que eu havia me formado lá. Ora, é claro que ele sabia. Só
estava me desafiando.
– Você não deve saber nada sobre matemática.
– Eu também certamente não sei nada sobre caçar borboletas. E daí?
Coloque todos os seus matemáticos diante de mim e mando todos para o caixão.
– Esse cara não é convencido, imagina! Ele apenas pensa que é o rei do
universo. Otário!
– Bapsi, apenas feche essa matraca por um segundo. Você sempre
interrompe minha linha de pensamento quando está no auge, com essas suas
besteiras. Não sei como você o suporta, Nhahia.
– Hã... quê? Você consegue me ouvir falando com Nhahia?!
– É óbvio. Pois ela é minha ligação.
– Mas como é que não escuto o seu gênio?
– Porque eu sou forte e você é fraca. Essa pergunta era mesmo necessária?
Também já sei tudo sobre o plano de vocês para tentar me assassinar. Acharam
mesmo que eu ia cair nessa? Imbecis.
Senti uma sensação horrível. Pensei que ele fosse me matar. Mas Sablerie
somente riu com meu medo.
– Apenas parem com esse teatro. É desagradável. Suas ações são óbvias. E
principalmente seus pensamentos. Vocês provavelmente desconhecem muitos
de meus poderes psíquicos. Um alto nível de telepatia está entre eles. Você não
pode esconder nada de mim, construtora. Quando me beijar, saberei se sentiu
nojo ou desejo.
– Pare. Por favor.
– O que foi?
– Isso é invasão de privacidade.
– E quem disse que eu ligo para a sua privacidade? Apenas dê–me esse filho
e suma. Você também devia ter interesse em ficar viva. Eu não precisava nem
estar te fazendo esse favor, seja de te ensinar o GGM ou ter o filho com você. A
senhorita devia ter me implorado para se unir a mim quando chegou aqui; para
dar prosseguimento à sua vida miserável.
– Eu tenho meu orgulho como construtora.
– E eu tenho meu orgulho como destruidor. É essa a origem de todos os
nossos problemas. É o que está dificultando algo que, de outra forma, seria
completamente natural. Eu não teria problema algum em me unir a alguma

162
Fábula dos Gênios

destruidora que fosse minha ligação. Mas você, além de ser construtora, é uma
mentirosa, falsa, manipuladora.
– Sablerie, apenas passe minha lição de hoje sobre magia. Essa discussão não
levará a lugar algum.
– Algumas vezes você diz coisas inteligentes, Nhahia.
Ele acabou concordando que era perda de tempo estender o assunto.
– Somente uma última pergunta: como dominou tão rápido nosso idioma?
O seu sotaque é esquisitíssimo, mas você comete pouquíssimos erros. E o
dezkazil é difícil.
– Que inesperado um elogio vindo de você. Eu estudei na terra dos
simbologistas, lembra? Eles são os melhores com idiomas. Como aprendi
muitas línguas e técnicas para dominá–las, tornei–me boa nisso. Viu como há
coisas úteis lá fora?
Ele apenas resmungou alguma coisa sem muito interesse e voltou a falar
sobre o GGM.
– É uma obra difícil de entender. Sinceramente, eu não tenho muita
esperança que você entenda. A maioria dos outros idiotas apenas utiliza as
magias ao pé da letra sem se importar com a filosofia. Mas eu afirmo que os
fundamentos são a chave para plena compreensão dos sistemas. Sem uma base
segura, o castelo desaba.
– Falou o filho do autor. Então eu acredito. É isso que teu pai te diz?
– Ele me diz muito mais. Não pense que vou te revelar as melhores partes.
Existem algumas chaves e fechaduras ao redor da obra. É como um quebra–
cabeça. Você só descobre como as coisas se encaixam depois de utilizar as
técnicas. Algumas vezes o segredo para compreender uma magia está em outra.
Elas estão inter–relacionadas. Hoje vamos testar o princípio. Chame Bapsi.
– Aqui estou.
– A quem você é leal? Ele te chama e você simplesmente aparece?
– Se você não o obedecer, morre, então estou escolhendo a vida por você.
– Espero que também preze pela própria vida antes de pensar em explodir
meu gênio enquanto eu transo, engraçadinho. Agora, Nhahia, concentre–se em
aumentar o tamanho de seu gênio.
– Como faço isso?
– Com a respiração. Você realizará exercícios respiratórios simples
diariamente. Ele provavelmente não vai aumentar muito, mas já será útil para
realizar as primeiras técnicas. Antes disso, vai ser difícil começar.
– Eu pensei que para realizar a magia dos gênios malignos eu precisasse
arranjar um gênio maligno...
– Não. Você deve transformar seu gênio em um. Alterar seu gênio será o
primeiro passo.

163
Wanju Duli

– Então será o Bapsi quem irá devorar minha alma e meu coração?!
– Você parece assustada. Se teme a dor e a morte, esqueça nosso sistema.
Escolha agora. O que você está disposta a sacrificar?
– Eu não preciso realizar sacrifícios para fazer magia. Também é possível
estudar de forma divertida.
– De fato. Mas eu aprecio um pouco de medo, para fazer acelerar o coração.
– Você ainda tem um coração, Sablerie?
– Suas perguntas são incômodas. E vocês, estrangeiros, são hilários. Passam
a vida toda desejando o GGM. Quando o leem, se assustam. Não estão
dispostos a ir tão longe. E voltam atrás. De repente, toda a coragem desaparece.
Você será como eles, Nhahia?
Eu não fui capaz de responder.
Quando eu voltei para casa, Bapsi conversou comigo:
– Ele é forte demais para que você o mate. Nosso plano de enganá–lo
falhou. A princesa é ainda mais forte que ele. Então o que está fazendo aqui
ainda, Nhahia? Apenas fuja!
– Se eu concordasse em permanecer apenas para estender a minha vida, isso
seria trair o meu povo. Afinal, já não estou tão animada para aprender a magia
dos gênios malignos. Há essa tal de magia dos deuses e a magia tecnológica.
Essas não parecem tão terríveis. Então...
– Decida–se logo: vai beijá–lo amanhã?
– Vou ter que ir, senão ele me mata. Ou o pai dele o mata... de qualquer
forma, estou um pouquinho curiosa para saber como vou me sentir. E não
tenho nada a perder. Vou até ganhar mais uns meses de vida nessa brincadeira.
Mas não seria tão fácil como imaginamos. Sentamos na terra, perto da grama,
e ficamos ali, um na frente do outro, sem dizer nada.
Resolvi não pensar em nada, para ele não ler minha mente. Bapsi também
recebeu instruções para ficar calado.
De repente, ele segurou no meu braço, puxando–me para perto de si. Meu
coração acelerou. Ele segurou nos meus ombros.
Ele fez um movimento para me beijar, aproximando o rosto, mas depois se
afastou. Ele tentou fazer isso mais duas vezes. E não deu certo.
“Esse cara não é um destruidor? Ele despedaça pessoas, arrancou minhas
pernas quando tinha 11 anos. Então por que ele está hesitando em fazer algo tão
simples?”
Ele provavelmente leu esse meu pensamento. Em vez de me beijar logo, ele
ficou ainda mais nervoso.
Por isso, eu tomei a iniciativa. Abracei–o e dei–lhe um beijo na boca. Um do
tipo longo, que durou o máximo que consegui.

164
Fábula dos Gênios

“O coração dele tá disparado. Então ele ainda tem coração”. Eu senti isso
no momento do abraço.
A sensação daquele beijo foi muito estranha. Eu não soube explicar. Eu
senti um pouco do gênio dele. Ele provavelmente sentiu Bapsi também. Afinal,
o gênio saía pela boca. Era essa a magia do beijo que estendia a vida dos
construtores e destruidores.
Sablerie ainda me fitou por mais alguns instantes, respirando rápido. Achei
que ele iria simplesmente levantar e ir embora...
– Ele vai levantar e ir embora, como se não tivesse acontecido nada.
E foi exatamente isso que aconteceu.
– Que merda, Bapsi! Cala a boca enquanto a gente tá junto, cacete! Senão ele
vai te escutar, seu jumento!
– Oh, então você queria que ele tivesse ficado? Quando sair desse lugar, vai
contar tudo o que aprendeu na terra dos destruidores: só novos palavrões.
Na próxima quarta, ele apenas me ensinou mais sobre o GGM, como se o
beijo nem tivesse acontecido. Mostrei a ele o resultado do meu treinamento.
– Seu gênio não aumentou sequer um milímetro! Mostre–me como está
respirando.
Eu fiz o que ele pediu.
– Sua postura está completamente errada! Endireite as costas.
E lá fui eu.
– Está fazendo tudo errado, menina! Seus ombros estão completamente
tortos!
Ele ajeitou os meus ombros. Ele acabou tocando no meu peito também,
para que eu colocasse as costas para trás. Eu não sei se ele fez de propósito ou
sem querer, mas eu dei um tapa na cara dele.
– NHAHIA!
Eu dei um tapa forte. Num primeiro momento, Sablerie ficou totalmente
sem reação. No segundo seguinte, ele segurou o GGM e lançou–o no chão,
diante de mim.
– Eu já devia ter te matado há muito tempo. Eu não confio em você. Eu
odeio você! Construtora miserável! Não vou mais te treinar. Vai te foder.
E ele foi embora.
– Bapsi, eu exagerei?
– Nhahia, cedo ou tarde vocês vão transar! Então por que você se ofendeu
só porque ele encostou em você?
– Eu ainda não decidi se me unirei a ele, Bapsi. Você viu como ele é
estúpido.
– Ele? Não foi você quem deu o tapa?
– Antes disso ele já tinha me torturado com o GGM.

165
Wanju Duli

– Só com magia.
– “Só”? E você acha pouco? Ele destruiu meu povo. Eu não devo
absolutamente nada a ele!
Mas eu fui até a praça no dia seguinte. Sablerie já me aguardava sentado lá e
não disse nada quando cheguei.
Desci da cadeira de rodas e fiquei ao lado dele, na grama. Pensei que ele
estaria furioso comigo por causa da nossa briga no dia anterior. Mas ele
aproximou–se de mim e me beijou.
Dessa vez foi ele quem fez isso e não hesitou. Foi um beijo de língua, muito
mais longo do que o primeiro. Ele me abraçou e me levou para perto dele.
Parecia que não ia terminar.
Até que acabou.
– Ele vai levantar e ir embora. Quer ver?
Mas Sablerie puxou–me para perto de novo e me beijou mais.
– Nhanha, o que ele tá fazendo? Não era só um beijo que vocês
combinaram?
Eu também não entendi. Não o afastei para que ele não ficasse brabo, como
no dia anterior. Será que ele estava me testando?
Ele passou a mão nos meus seios. E continuou a me beijar com muita
intensidade.
“Ele quer ver se sinto desejo de verdade ou só estou fingindo...!”
– Não é isso. É ele quem está sentindo tanto desejo que não consegue
parar...
“Cala a boca Bapsi, cala a boca...!”
Sablerie deitou–se sobre o meu corpo, ali mesmo, na grama. Ele estava
respirando rápido. Eu senti o nervosismo dele. Sablerie nem tentou disfarçar.
– Não.
Ele não me escutou. Continuou avançando.
“Droga, não consigo mexer as pernas”.
– Sablerie!
Tirei a mão dele do meu peito e afastei–o. Ele saiu de cima.
– A gente já se beijou. Semana que vem nos beijamos de novo.
Ele não disse nada.
– Nhanha, isso foi meio rude...
“Por que está do lado dele, Bapsi? Não foi ele que inventou esse ritual
maluco?”
Eu não sabia se ele estava prestando atenção na minha conversa com o
Bapsi. Provavelmente não. Ele parecia distante.
– Por que você não sai logo daqui?
Eu subi novamente na minha cadeira de rodas.

166
Fábula dos Gênios

– Saia logo desse país. Eu não aguento mais... essa situação. Que eu morra,
que meu pai me bata. Foda–se, não ligo. Apenas desapareça.
– Está bem. Eu entendi. Se tenho sua permissão, vou me dirigir agora
mesmo para o porto. Adeus, Sablerie. Nunca mais nos veremos.
E eu segui decidida até lá, pois eu sabia o caminho. Não era longe.
– Tem certeza disso?
– Eu também não aguento mais, Bapsi. Eu sou uma construtora. Ele é um
destruidor. Quem nós estamos enganando com esse teatro? Nós nos odiamos e
sempre vamos nos odiar. Nós não precisamos sentir amor para transar. Apenas
desejo. E isso nós sentimos, porque somos humanos. E daí? Esse desejo é uma
estratégia da natureza em favor da vida. Mas eu posso escolher não ceder a esse
desejo. E eu escolho a morte.
– Por quê? Por seu orgulho? Ou não quer trair seu povo? Até o destruidor
estava deixando o orgulho pra trás!
– Eu também não confio nele. E por que só ele pode ser cruel? Eu não
posso ser?
– Você pode, Nhahia. E foi o que fez. Conseguiu exatamente o que queria:
fez com que ele se apaixonasse por você e depois saiu correndo. Está satisfeita?
– Sim. Minha vingança está completa. Eu não o matei, mas fiz algo pior. Ou,
eu deveria dizer: eu o matei; e a mim também.
Mostrei a Bapsi o GGM embaixo do meu manto.
– Missão concluída. E eu pensando que seria difícil... ralem–se minhas
pernas e minha vida. Aquele destruidor pode até ser um dos maiores magos do
mundo. De que isso adianta se eu tenho a felicidade e ele não?
E eu sorri. Mas não foi um sorriso gentil.
Aqueles eram os lábios de uma vencedora: uma construtora que derrotou
um destruidor.

167
Wanju Duli

Capítulo 6: A Vingança do Descendente

Eu nunca gostei de ser príncipe. Em primeiro lugar, eu gostava de usar


roupas informais, como camiseta, bermuda, boné, óculos escuros ou qualquer
coisa que um garoto da minha idade usava. Eu era criticado por meus pais, mas
não me importava.
Quando eu estava na rua, não queria que me reconhecessem. Por isso
mesmo eu me enchia de acessórios, cobrindo a cabeça, os olhos e uma parte do
rosto. Era melhor assim.
Eu frequentava a melhor escola do país. Não tinha interesse em envolver–
me com meus colegas. Eles tinham outros interesses. Éramos diferentes.
Fui informado de que Bilubelei era minha ligação. Eu já sabia disso há muito
tempo. Eu ouvia falar sobre a garota que ficava isolada em meio à natureza,
lendo e sentindo o vento. Eu achava isso mágico, mas não ousava me aproximar.
Preferi que ela desconhecesse nossa relação. Eu sabia que um dia teria que
me unir a ela, mas eu ainda não queria que ela soubesse. Ser príncipe não seria
suficiente. Bilubelei seria uma grande maga. Eu também decidi que precisava me
destacar na magia.
Quando pequeno, um dia sentei–me sob uma singela árvore do meu jardim.
E, como se fosse a coisa mais natural do mundo, alterei meu estado de
consciência. Desde então, eu soube que havia algo especial na meditação. Não
desejei explorar a fundo naquele momento, por medo. Mas eu sabia que, um dia,
eu continuaria de onde parei e o mundo se mostraria para mim.
Eu apenas continuava a viver. Não via nada de especial por ser um príncipe.
Eu queria esconder esse fato. Eu não me envergonhava por minha condição,
mas eu também sabia que não queria ser reconhecido pela linhagem do meu
sangue e sim pelo meu próprio esforço. Eu não queria que um mero nascimento
fosse determinante para decidir minha existência. Sorte, azar, eu não me
importava com o que o mundo ofertasse para mim do lado de fora. Eu iria
ignorar todos esses fatores e olhar somente para o que desejava dentro de mim.
Eu estava satisfeito em saber que eu estava ligado a uma pessoa tão dedicada
à magia. Mas eu tampouco queria que aquilo fosse meu destino. Ter nascido rico,
ter meu gênio ligado a um gênio forte. Que aquilo importava? Eu preferia
pensar que era livre. Um dia eu poderia decidir não ser o rei e partir numa
jornada. Eu não precisava me casar com minha ligação. Poderia seguir por
outros caminhos.
Esses pensamentos me confortavam. Era maravilhoso pensar que eu tinha o
poder de escolher o que eu era e o que poderia me tornar.

168
Fábula dos Gênios

O Grimório dos Gênios estava na arca, mas eu não estava interessado nele.
Minha família possuía uma página do Grimório dos Gênios Malignos. Em
segredo consegui que um sábio traduzisse aquela página para mim. Eram
poucos os construtores com algum conhecimento do idioma dos destruidores.
E eu consegui o que queria.
A página nove ensinava o início do processo de fazer com que o gênio,
pouco a pouco, começasse a devorar a sua alma. Essa era a fonte primordial do
grande poder dos destruidores: não precisar do intermediário da mente para
atingir a alma, mas ter acesso aos poderes da alma diretamente.
– Você precisa pensar bem antes de realizar um ato tão grandioso e perigoso.
– Eu sei, Neva. Mas não existe a cura para minha doença no GG. No fundo
eu sei que é exatamente essa página do GGM que me ofertará uma segunda
chance.
Os médicos sempre diziam que eu morreria cedo. Eu não viveria o
suficiente para unir–me à minha ligação. Por alguma razão, eu nunca acreditei
nisso. Assim como eu não queria enxergar uma vantagem em ser príncipe, a
doença também não poderia ser uma desvantagem.
– Eu não me importo em morrer cedo.
– Esse mundo é belo e vasto. Não desejaria conhecê–lo mais?
– Em verdade, acredito que meu coração é mais vasto que o mundo.
Com aquele pensamento, decidi que eu queria viver para explorar em
profundidade a minha mente.
– Eu quero tentar, Neva. Você aceita esse desafio?
– Como Vossa Alteza desejar.
– Que são essas palavras? E essa reverência? Como você é boba.
Tchei não gostou muito da ideia.
– O GGM é tão perigoso que é como um suicídio. Eu jamais utilizaria uma
magia tão arriscada como essa. Não tenho nenhum interesse em técnicas de
destruidores!
– Eles não são maus. Desenvolveram uma magia para ressuscitar após a
morte do corpo. Então eu entendo que posso permitir que meu corpo morra.
Basta salvar minha alma e meu gênio através dessa técnica.
– O preço a pagar será muito alto. Por favor, permita que eu sofra os efeitos!
Quero lhe ser útil.
– Nem pense nisso. Eu sei que você tem um bom coração e morreria por
seus amigos, mas não vou permitir.
– Você é minha contraparte e meu príncipe!
– Tchei... finalize esse discurso agora mesmo. Aceito que diga que deseja me
ajudar por sermos contraparte, mas não gosto que os outros queiram dar a vida

169
Wanju Duli

por mim por eu ser príncipe. Minha vida não vale mais do que a de ninguém.
São todas vidas e de igual valor.
– Até mesmo a vida dos destruidores tem valor igual à nossa?
– Sim. Eu não concordo com essa guerra. A culpa é dos construtores. Os
destruidores apenas desejam fazer justiça. Ainda assim, eu não entendo de
política. Eu posso imaginar o que é a honra, mas não desejo viver por nenhuma
dessas coisas. Quero apenas viver para realizar o que deve ser feito dentro de
mim. E... por meus amigos.
– Então você compreende meus sentimentos. Aceite minha ajuda, Wakwa.
Isso é importante.
Eu não permiti. Precisava carregar aquele fardo sozinho.
Eu sofri. Dia após dia a doença me consumia. Mas Neva era mais forte e
devorava meu desespero.
Eu queria fazer tudo o que a página dizia, mas eu não tinha coragem,
sabedoria e nem força. Neva cresceu. Estendi meu tempo de vida o máximo que
pude, mas no fundo eu sabia que meu corpo não ia aguentar mais tanta pressão.
– Neva, eu preciso do GGM. Devo contatar os destruidores ou será tarde
demais.
E, sem que eu pedisse por isso, eles vieram a mim.
A princesa dos destruidores apoderou–se da minha vida. Fui capturado e
trancado nas masmorras daquele que outrora foi o meu palácio.
Ela ia me visitar frequentemente, como uma criança curiosa. Sentava–se em
frente à cela e apenas me observava, com interesse. Por vezes entrava lá e me
analisava, como se desejasse machucar cada parte do meu corpo. E, de fato, ela
levava diferentes grimórios para brincar de testar os meus limites.
Apenas uma criança cruel. Ela sorria e ria bastante. Não... havia algo de
especial naquela criatura.
– Construtor, nossa princesa desejar dizer algo a você. Ela dizer que gostar
muito de construtor e que você ser seu brinquedo para sempre.
Um dos destruidores, também uma criança, costumava servir de tradutor
quando a princesa tinha alguma mensagem. Eu raramente tinha algo a dizer a ela.
Afinal, o que eu desejava já me havia sido fornecido.
Eu não sabia se tinha sido proposital, mas de tanto que a princesa me bateu
e me privou de comida e conforto, meu gênio cresceu. Afinal, era aquele o
princípio da magia dos gênios: aumentar o poder mágico através de privações.
Contudo, havia uma lei de ouro: o sofrimento não poderia ser causado
propositalmente, artificialmente.
O gênio somente crescia se havia uma urgência genuína de salvação. O
poder não poderia ser obtido através de um jogo, de uma brincadeira. Somente

170
Fábula dos Gênios

se a pessoa enfrentasse dificuldades reais na vida e não fingisse enfrentar.


Portanto, mortificação era um truque inútil na magia dos gênios malignos.
Era uma espécie de compensação: se a pessoa não estava com dificuldades,
não precisava da salvação do gênio. Se sofria um infortúnio inevitável que a vida
lhe trouxesse, como fome e doença, para que a pessoa tivesse alguma alegria em
meio à dor, era presenteada com aumento de poder mágico.
A vida sempre teve um pouco disso: na dor nos ensinar lições valiosas sobre
a alegria.
Mas eu não sabia de nada. Os destruidores aprofundaram aquela filosofia ao
extremo. Viviam aquela realidade dia após dia. Eu os respeitava por isso, mas a
princesa apenas me mostrava seus lábios sorridentes.
Ela dizia que gostava de mim, mas só queria me fazer sentir dor. Aquilo não
parecia um favor para que eu ficasse mais forte. Ela sim era poderosa. Não fazia
diferença se eu fosse fraco ou forte; eu jamais poderia chegar a seus pés.
E havia aquele cara.
Além do tradutor, tinha um destruidor baixinho que de vez em quando me
visitava na masmorra. A princesa parecia sempre muito contente com a
presença dele.
Eu me lembrava muito bem daquele rosto: era o sujeito que atacou a mim e
a Nhahia. Provavelmente ele era a pessoa que tinha tirado a vida dela.
– Ele ser filho do autor do GGM. Então respeitar ele quando vier aqui.
– Antigamente vocês, destruidores, eram muito mais magros e sujos. Depois
de invadir as nossas terras conseguiram mais alimento. Por isso agora se
parecem mais conosco.
– Você ser atrevido. Que quer dizer com “roubar” quando essas terras
sempre foram nosso direito? Por outro lado, agora construtor estar magro e sujo.
Provar que é príncipe!
Eu não podia. Meu anel estava com Nhahia. Um dia ela desejou ir a uma
sessão especial de cinema, que foi paga, para espiar Yym. Perturbou tanto a mim
e a Cromo na internet, tentando arranjar um jeito de burlar a entrada, que acabei
por emprestar aquele anel.
Eu não ligava para roupas reais e acessórios. No fundo eu admirava a
simplicidade dos destruidores. Mas não a miséria. Aquilo sim era errado.
– Meu conhecimento prova quem eu sou. Pergunte–me qualquer coisa e te
responderei.
– A SS exigir informações sobre o construtor dos escudos das máquinas.
Eles queriam saber sobre Cromo.
– Que é a SS?
– A sociedade secreta dos destruidores. Ser um grupo seleto que somente
reunir os destruidores adultos mais poderosos.

171
Wanju Duli

Eu e a princesa crescemos juntos. Meu gênio ficava mais forte, sem que eu
percebesse, enquanto meu corpo ficava mais fraco. Eu odiava minha existência
miserável. Os olhos brilhantes da princesa acompanhavam–me em meus
pesadelos.
Até que minha salvadora chegou. Eu não a reconheci. Nem me recordava
como viver.
Aquele tempo foi como um sonho. Não senti que foi desperdiçado. Ao
olhar para trás, recordei–me da minha vida de privação e tortura com saudade e
emoção.
– Você sente falta de estar como prisioneiro dos destruidores?
– Eu sinto, mas apenas porque é inevitável. Em qualquer lugar que te
coloquem, sempre resta um pedaço de você.
– A princesa era importante pra você.
– Eu nunca conversei com ela diretamente, mas eu sentia quem ela era: uma
garota muito caprichosa.
– Você quer retornar.
– Apenas para matá–la. Eis a sina dos construtores.
– Nós voltaremos, Wakwa. Cromo está reunindo os construtores. Muito em
breve, atacaremos.
– Pensei ter ouvido batidas na porta.
Bilubelei foi atender. Para minha completa surpresa, a visita era Nhahia.
Cerca de um ano já havia se passado. Orgulhosa, ela colocou o Grimório dos
Gênios Malignos diante de nós.
– Peço desculpas pelo atraso. Eis–me aqui! Agora temos a arma para vencê–
los.
– Você está bem, Nhanha?
– Estou. Por quê?
– Como assim, “por quê”? Você estava naquele lugar.
– É mesmo. Aparentemente eles se cansaram de mim.
– Não posso aceitar essa resposta. Que aconteceu durante esse tempo?
– Por que pergunta isso a mim? Conte–me sobre você, Wakwa! Eu e Bilu
fomos lá para te salvar. Você passou muito mais tempo que eu na companhia
dos destruidores. Certamente os conhece bem mais.
– Eu fui fraco. Como conseguiu sair sozinha de lá?
– Isso não importa mais. Precisamos salvar o gênio de Tchei. Os
destruidores são quase invencíveis, mas sei que se dominarmos a magia dos
gênios malignos teremos uma chance.
Nhahia devolveu o meu anel.
– Acredita mesmo nisso?
– Do fundo do meu coração.

172
Fábula dos Gênios

– Cromo está reunindo os construtores sobreviventes para atacar os


destruidores.
Nhahia fitou–nos com surpresa.
– Cromo está vivo...?
– Ele ainda conservou alguns pedaços do corpo, mas felizmente o cérebro
dele ficou intacto. É tudo que precisamos nesse momento. Eu tenho minha
magia dos livros, você a sua técnica com símbolos, Cromo conhece algo da
magia tecnológica e Wakwa ficou mais forte nesse tempo com os destruidores.
Aliaremos essa diversidade em busca da unidade da vitória.
– Belas palavras, mas eu ainda não sou forte o bastante. Preciso levar o
GGM imeditamente à minha antiga escola em Sinabil. Preciso que eles
expliquem para mim alguns trechos sobre os selos multidimensionais.
– A senhorita deverá entregar a mim esse grimório. Decore–o e parta.
– Que grande injustiça! Está certo, a senhora salvou a minha vida...
Nhahia alcançou um caderno e copiou os principais selos ali. Logo após,
partiu.
– Ela está planejando alguma coisa.
– Eu sei. E é algo ruim.

– Nhanha, eu sei o que você está pensando quando dá esse sorriso. Tem
algum truque na manga.
– Pode apostar que tenho.
Eu havia lido o GGM durante a viagem. E aquilo que meus olhos viram me
assombrou e me fascinou.
– Bapsi, Sablerie é extraordinário. Como ele foi capaz de realizar tudo isso?
E estar entre os melhores. Deve ter se sacrificado tanto! Ele é um gênio.
– Então me parece que subitamente ficou interessada em conversar com ele.
Antes só estava fofocando com o outro destruidor e com preguiça de aprender
logo o sistema deles.
– Eu não estava fofocando!
Quando cheguei a Sinabil, dirigi–me imediatamente à minha velha escola.
Fui perguntar minhas dúvidas ao meu professor de matemática.
– Essa magia é sublime! Permita–me ficar com suas anotações por um
período, sim? Tenho muitas contemplações a fazer em cima desse material antes
de te dar uma resposta consistente.
– Contemplações, hã? OK, Nhanha, vamos sair daqui. Esse cara vai se
debruçar nesses selos pelos próximos meses ou no mínimo mandar fazer um
quadro com esse negócio. Enquanto isso, pretende fazer o quê?

173
Wanju Duli

Quando saí da sala, falei com Bapsi. Novamente, os outros estudantes


deviam pensar que eu falava sozinha.
– Vou reencontrar minhas ex–colegas, Miide, Racan e Gelei.
– Como?
– Se eu tiver sorte, ainda irei encontrá–las em Sinabil, a não ser que tenham
ido estudar fora.
Pedi informações na secretaria, se sabiam do paradeiro das garotas. Descobri
que Miide estava na UD. Fui imediatamente visitá–la.
– Por que não pergunta sobre o GGM aqui na Universidade Dimensional?
– Isso fica pra depois. Primeiro preciso falar com minha amiga!
Miide continuava bonita e inteligente. Dei um abraço nela quando a
reencontrei.
– Seu cabelo...! Agora somente as pontas estão rosadas. Está tão linda,
querida!
– E você está maravilhosa! Senti tantas saudades! Sabe onde estão as outras
garotas?
– Racan foi estudar numa universidade de Bruznia, a terra da magia estética.
Gelei ainda está por aqui, estudando para tentar admissão na UD.
– Fantástico! Vamos combinar de sair juntas!
– Será perfeito. É época de férias na universidade de Racan. Eu soube que
ela veio passar um mês aqui em Sinabil para visitar os pais.
– Vamos ao shopping fazer comprinhas, Mii!
– Ai, é claro, Nhaaah!
– Nhahia... você não ia desvendar as magias do GGM pra matar o
destruidor? Você só tem dois anos de vida, sabe.
“E qual a melhor maneira de passar meus anos finais que no shopping? Não
me incomode, Bapsi, posso me divertir um pouco enquanto meu professor
brinca de descobrir o funcionamento daqueles selos chatos”.
– Você que sabe, a vida é sua. Sou apenas seu gênio...
“Que é isso de repente? Relaxa! E não me aborreça”.
Foi simplesmente maravilhoso reencontrar minhas amigas!
– Amigaaaa!
– Ai, amigaaaa!
– Waaaa!
– Nhazinha, seu cabelo tá um arrasooo! Super fashion!
– E tá tão magrinha! Preciso do segredo dessa dieta!
“Passar fome e comer vegetais sujos e pisoteados do chão”
– Racan, que vestido PERFEITO! Eu TENHO que ir para Bruznia!
– Lá eles sabem tudo de moda. Tudinho! Agora a moda é usar batom verde,
cinto azul e tênis laranja!

174
Fábula dos Gênios

– Como eles tiveram essa ideia tão boa? Você tem um batom verde aí?
– Siiiimm! Sabor mentaaahh!
Nós fomos juntas ao banheiro do shopping passar o batom e demos
gritinhos enquanto fazíamos isso. Ficamos mais de uma hora lá dentro
experimentando os estojos de maquiagem chiquérrimos que Racan trouxe de
Bruznia.
– Amigas, os magos de Bruznia são uns deuses saborosos de mel, leite e
talco! Os homens de lá são tudoooo!
– NÃO ME DIGA, EU ESTOU SOLTEIRA, ME APRESENTAAHH!!
– Nhanha, a sua amiga está gritando muito alto e a voz dela é muito aguda,
minha audição está captando um zunido estranho, diz pra ela BAIXAR A VOZ,
POR FAVOR!
– Eu terminei com meu namoradinho recentemente. Vamos todas juntas pra
Bruznia? Eu também queria um gatinho.
Eu me senti meio de fora da conversa. Elas perceberam e olharam pra mim
com um pouco de pena.
– Você não pode beijar, não é, Nhahia? Passou esse último ano sozinha? Eu
tive dois namorados.
– Eu tive três!
– Eu perdi a conta. Eram tantos homens maravilhosos de todas as cores,
formas e sabores, que não sabia qual escolher! Eu amo todos!
– Na verdade eu...
Subitamente, as três garotas gritaram. Lá dentro do banheiro feminino
surgiu uma pessoa com um manto verde de costuras marrons. Em qualquer
parte do mundo os habitantes reconheceriam a cor daquele manto e saberiam o
que significava.
Outras duas moças que estavam no banheiro naquele instante saíram
correndo ao ver a pessoa de manto.
Quem estava por baixo do manto não disse nada. Apenas me segurou pelo
braço e fez menção de sair do banheiro. Eu não permiti.
– Sablerie, me larga! É você, não é?
Claro que era ele. Eu disse isso no idioma dos destruidores. Minhas amigas
ficaram confusas.
– Você a conhece, Nhanha?
– Sim. É o destruidor que arrancou minhas pernas.
Elas gelaram quando eu disse isso. Naquele momento não fazia diferença
que tivesse um cara dentro do banheiro feminino. A fama dos destruidores era
tão ruim que provavelmente as pessoas pensavam que eles matariam qualquer
um que estivesse diante deles, tamanho o poder e a fúria que possuíam.

175
Wanju Duli

– O que você está fazendo aqui? Pensei que os destruidores jamais


deixassem sua terra!
– Ordens do meu pai. Essa situação é completamente irregular, portanto,
uma exceção. Você sabe porque vim e será mais sábio de sua parte se cooperar.
– Você me mandou sair do seu país!
– E não faço questão que volte para lá! Eu apenas preciso colocar um filho
em você. Isso levará apenas alguns minutos. Voltarei a vê–la em nove meses
para pegar o bebê e depois nunca mais nos veremos.
– Como teve a coragem de caminhar normalmente num shopping de Sinabil
com esse manto?! Poderia ter pelo menos se disfarçado. Está chamando atenção
desnecessariamente!
– Um destruidor jamais tira seu manto, nem mesmo para se banhar. Eu o
tenho desde que nasci. Foram acrescentados remendos a ele conforme eu
crescia. E também o couro marrom, símbolos de minhas vitórias.
– Eu não quero saber disso! Se quer conversar, vamos sair logo daqui. Você
está assustando todo mundo!
Eu nem mesmo sabia que os destruidores tomavam banho, pois eles fediam
pra caramba! Eu nao dizia isso para Sablerie, é claro, pois eu não queria morrer.
Beijá–lo naquelas duas ocasiões não tinha sido nada fácil para mim. E aí estava
mais um motivo para Sablerie ter chorado no dia que seu pai arrancou o manto
dele: era como se lhe tivesse tirado sua honra.
Minhas amigas não entendiam nada do que dizíamos. E estavam muito
surpresas que eu estivesse conversando com um destruidor – ou melhor,
batendo boca com ele.
– Onde aprendeu dezkazil, Nhahia? Jamais encontramos um grimório em
que...
– Eu estive em Consmam. É uma longa história. Não poderei explicar agora.
Tenho negócios a tratar com esse cara aqui. Então peço a licença de vocês. Mais
tarde te ligo, Mii.
– Tá bom...
Elas ainda estavam temerosas e confusas. Consmam era o nome da antiga
terra dos construtores, agora posse dos destruidores. O antigo pântano em que
eles viviam era Desmei, atualmente desabitado, até onde eu sabia.
Eu e Sablerie saímos do banheiro e caminhamos em direção ao portão
principal para sair do shopping. As pessoas soltavam exclamações e corriam
assustadas quando passávamos. Nem o policial teve coragem de chegar perto,
embora estivesse se comunicando com outro pelo seu rádio.
Um adolescente aproximou–se e bateu uma foto de Sablerie pelo celular. Ele
notou o rapaz se aproximando. Quando Sablerie se virou, o cara saiu correndo
na mesma hora.

176
Fábula dos Gênios

– O que ele fez? Tentou atacar–me? Lançou alguma magia através daquele
aparelho?
– Ele só tirou uma foto, não se preocupe. É só um babaca.
– O que é uma foto?
– Eu não sei explicar isso! Os destruidores não fazem retratos uns dos
outros com tintas, como numa pintura?
– Raramente alguém se foca a sério nessa atividade. Estamos mais
preocupados com o presente e não com o passado.
– Aquele é um dispositivo que reproduz um retrato seu, com bastante
fidelidade. Ele provavelmente vai mostrar aquilo aos amigos para se gabar que
encontrou um destruidor no shopping.
– Você está me contando isso porque deseja que eu o mate por tal
atrevimento?
– Não!
– Bom, porque eu não estou interessado em nada disso. Vamos ao que
interessa. Nós destruidores fazemos sexo nas matas. Existe algum bosque
reservado para isso?
– Primeiro nós vamos conversar. Vamos até o hotel em que estou
hospedada. Se ficarmos num local público, daqui a pouco seremos interrogados
pela polícia.
– Por quê? Até onde sei, não infringi a Lei.
– Vocês, destruidores, são muito mais famosos do que pensam. Vocês são
uma lenda. Ninguém tem coragem de se aproximar de Consmam nos últimos
oito anos. E Desmei é um país aterrorizante há décadas. Poucos que viram um
destriudor pessoalmente sobreviveram para contar. Tem ideia do impacto que
sua presença está causando?
– Como eu disse, não estou interessado nas paranóias e preconceitos de
vocês. Apenas desejo ter o direito de caminhar tranquilamente nas ruas sem ser
olhado como se fosse um monstro. E usar outras vestimentas fere nossos
costumes e princípios, o que também está fora de questão.
Ele era teimoso, mas também tinha um pouco de razão. Fomos logo para o
hotel, a fim de evitar outras situações. Contudo, até a entrada dele no hotel foi
complicada. O sujeito da recepção não queria deixá–lo subir, pois ficou com
muito medo.
– Eu me responsabilizo por qualquer coisa que ocorrer.
Ele não acreditava que eu teria o poder para impedir algum acontecimento
grave. E nem eu acreditava, para ser sincera. Mas quando eu disse a ele que o
destruidor ficaria zangado se ele dificultasse as coisas, ele finalmente cedeu.
Subimos até o meu quarto e tranquei a porta.
– Pode se sentar, fique à vontade.

177
Wanju Duli

Mas Sablerie sentou–se no chão. Eu apenas suspirei e sentei–me na minha


cama.
– Eu não vim até aqui para papear. Então seja rápida.
– Vai aceitar isso somente porque seu pai mandou? Você não tem livre–
arbítrio?
– Ninguém tem livre–arbítrio. Apenas gostamos de pensar que o possuímos
porque esse pensamento é mais confortável e nos dá a ilusão de liberdade. A
verdade é que somos prisioneiros de nossas próprias mentes e não desejamos
ser verdadeiramente livres. É mais divertido brincar que o somos. É por isso
que as pessoas preferem brincar de jogos e mentiras, enquanto nós, destruidores,
rompemos as barreiras dimensionais que nos conduzem ao poder. E o poder,
inevitavelmente, é a sabedoria em si.
– Eu aprecio seu discurso com tão sábios ensinamentos, mas não estamos
aqui para discutir filosofia da magia. Apenas quero saber se você deseja mesmo
fazer isso.
– Eu repudio essa perspectiva tanto quanto você. Unir–me a uma
construtora não era exatamente o que eu tinha em mente.
– Você já tinha se preparado para a morte e eu também. Então vamos deixar
as coisas como estavam.
– Vocês, construtores, são egoístas e não conhecem o valor da família. Meu
pai deseja que eu permaneça vivo. Ele foi a pessoa que me deu a vida. Sendo os
pais as pessoas que dão a vida, também são o objetivo primordial de nossa
existência. Além disso, como animais, a perpetuação da espécie é o sentido
máximo.
– Além de minha parte animal, eu possuo a mente para ter a capacidade de
escolher. Não me unirei a você apenas para agradar seu pai.
– Não me entenda mal, construtora. Não vim até aqui para lhe dar uma
escolha e sim para te informar como as coisas vão acontecer. Você não entende
que se cooperar tornará as coisas muito mais fáceis? Eu estou sendo mais gentil
do que eu deveria em te conceder esses esclarecimentos.
Aquele jogo tinha terminado. Ele era um destruidor e tinha o poder de
moldar a situação conforme fosse sua vontade. Pelo menos no que dizia
respeito à nossa situação, isso era verdadeiro.
– Não pode pelo menos me chamar pelo nome?
– Nós não somos amigos. Essa conversa já se estendeu por mais tempo que
o necessário.
– Muito bem, “senhor”. Agora estamos com 19. Temos ainda um ano para
refletir sobre...

178
Fábula dos Gênios

– Não me faça rir. Não vim até aqui para perder meu precioso tempo.
Desejo retomar meu treinamento o quanto antes. Faremos isso essa noite e
retornarei ao meu país pela manhã.
– O que faremos durante a tarde?
– Estudar o livro para não haver erros.
Ele retirou do interior do manto aquele livro dos destruidores sobre sexo.
Ele abriu numa das páginas e indicou a imagem.
– Eu me deitarei sobre você. O livro recomenda que façamos isso sem
vestimentas, para nos excitarmos mais com o corpo um do outro. Eu não sou a
favor dessa prática, pois meu manto é como uma segunda pele. Contudo, não
quero correr o risco de falhar, então vamos seguir as instruções.
– O que acontece depois que você se deita?
– Eu passo meus genes para você. Há algumas sugestões de práticas para
facilitar o processo, mas como são apenas sugestões podemos pulá–las. Acredito
que isso é tudo. Os gênios devem se enrolar nesse instante e completar o
processo.
– Parece muito simples.
– Vamos marcar para realizar o processo em exatamente cinco horas. Se for
tão simples quanto parece, deve durar apenas uns cinco minutos. Enquanto isso,
quero visitar uma biblioteca de Sinabil.
– Por quê?
– Não te interessa o que quero ver lá. Apenas conduza–me ao local.
– Não é legal que você fique caminhando por aí. Ao menos coloque outro
manto por cima do seu.
Abri meu guarda–roupa e retirei de lá um manto amarelo com capuz.
Sablerie só concordou em vesti–lo porque não precisaria retirar o seu para isso.
Por fim, conseguimos caminhar em paz pela cidade. Estava muito quente e
Sablerie estava suando por baixo da roupa. Vi um pouco de suor pingando pelo
rosto dele.
– Você está bem?
– Esse país é muito mais quente que Desmei e até mais que Consman.
Contudo, eu fui treinado para me adaptar a diferentes situações. Esse calor é
força que dá mais poder ao meu gênio.
Ele ficou bem interessado naquela biblioteca. Retirou alguns livros e não
permitiu que eu os visse. Sentou–se numa mesa afastada e passou a folheá–los.
Dei de ombros, peguei um livro qualquer sobre selos e passei a analisá–lo.
Depois de alguns minutos, fui até a mesa de Sablerie.
– Tenho uma dúvida sobre esse selo aqui...
Contudo, ele reagiu com um susto quando cheguei perto e cobriu os títulos
de seus livros.

179
Wanju Duli

– Qual deles?
– Esse, que tem somente formas geométricas. Significa que ele é mais
complexo que aqueles com letras e números?
– Algumas vezes a simplicidade traz maior força.
Alcancei compasso, esquadro e folha quadriculada para medir os ângulos.
Sablerie observava o que eu fazia sem comentar.
– Que tal? Achou interessante?
– E para que raios você vai usar essas medidas?
– Para conhecer mais as características do selo utilizado e, assim, adquirir
mais controle sobre a potencialidade desse poder.
– Mesmo? Mostre–me como.
– Tem relação com as correspondências! As cores, formas e ângulos
possuem certas equivalências e a influência dessas relações em nosso cérebro é
grandiosa.
– Apenas aplique isso, construtora. Pare com esse papo furado.
– As pessoas estabeleceram significados para os símbolos através dos
tempos. No momento do lançamento da magia existe uma influência
psicológica intensa. Portanto...
– Foda–se isso. Eu quero a coisa real. Essa merda quebra dimensões?
Dificilmente. Eu mexo com selos que destroem dimensões espaço–temporais.
Perto disso, seu brinquedo imaginário é uma grande piada.
– Os simbologistas usam esses selos há séculos e isso é ensinado nos livros.
Muitas experiências já foram feitas. Tem funcionado até hoje, então...
– ... então a força desse sistema ridículo reside apenas na fé da tradição? Não
me faça rir. Os simbologistas são eruditos monótonos e magos medíocres.
– Então por que você está lendo livros de outros sistemas? Magia dos deuses,
magia tecnológica, divinação, meditação...
Ele fechou os livros imediatamente.
– Você fez essa pergunta ridícula sobre esse selo somente para espiar os
títulos, hã? Os destruidores não carregam livros de outros sistemas por aí. No
máximo, debatem as diferentes linhas nas sociedades secretas, mas isso é só
entre magistas mais avançados.
– Os construtores também tinham sociedades secretas nas universidades!
– Nós não temos universidades de magia. Essa ideia me soa estúpida. O
aspecto empírico da magia é muito mais poderoso que o teórico. A teoria
somente serve para sustentar uma prática forte. As sociedades são conexões
poderosas entre indivíduos, não entre instituições de ensino. Grupos seletos de
sábios magos.
– Então é por isso que os destruidores não têm escolas e universidades?

180
Fábula dos Gênios

– Exato. Nós temos mestres. O ensinamento é passado de indivíduo para


indivíduo, sobretudo de forma oral e com provas práticas. Não acreditamos na
massificação do ensino.
– Vocês sempre existiram em menor número, então é mais fácil fortalecer o
grupo e dar atenção a cada indivíduo. Mas agora fiquei interessada. Quem é seu
mestre?
– Não vou te contar. Vocês consideram como mestres os professores de
suas instituições?
– Não exatamente. Bem, essa conversa está muito interessante, mas eu estou
com muita fome. Vamos comer?
– Eu provavelmente passarei mal se consumir os alimentos daqui. Além do
mais, não se incomode comigo. Consigo me adaptar a alguns dias de jejum.
– Corta essa! Vem comigo. Você vai precisar de energia para o sexo.
Provavelmente esse argumento o convenceu e Sablerie aceitou ir comigo até
uma lanchonete. Levei–o pela mão e ele não reclamou, já que ele mesmo havia
me puxado pelo braço com maus modos lá no shopping.
Mesmo que estivesse com um manto amarelo, Sablerie ainda assim estava
encapuzado e parecia suspeito. Não era incomum que magos com chapéus e
mantos bizarros andassem pela rua. Mas como nem todos os habitantes eram
magos, havia momentos em que aquilo causava estranheza. Principalmente
quando o mago tentava esconder demais o rosto.
Nós dois nos sentamos numa mesa da lanchonete, que ficava do lado de
fora. Estava um ventinho bom.
– Baixe seu capuz, seu bobo. Ninguém vai te notar. Com esse manto
amarelo, ninguém vai saber que você é um destruidor.
Ele concordou e fez como eu pedi. Os cabelos dele estavam tão oleosos que
imaginei que ele não os lavasse há pelo menos algumas semanas. E eu preferia
não saber há quanto tempo ele não tomava banho, para não ficar muito chocada.
Pedi dois cachorros–quentes. Sablerie espantou–se com o tamanho.
– Vocês comem tudo isso? Não conseguirei comer nem metade.
– Não tem problema. Se você deixar, eu como o resto.
– Gulosa.
Pedi também refrigerantes. Sablerie tomou um gole e cuspiu no chão.
– Esse gosto é horrível.
– Você não pode cuspir na rua! É falta de educação.
– Também é falta de educação deixar os pobres passarem fome?
Aparentemente não, pois eu nunca vi os simbologistas moverem uma palha para
ajudar meu povo enquanto morríamos como gado por inanição.
– Se sabe que tem gente passando fome, não desperdice comida! Tome seu
refrigerante.

181
Wanju Duli

– Vocês provavelmente estão mais preocupados em inventar gostos


estranhos para os alimentos do que com o aspecto nutritivo. Nós, destruidores,
comemos pouco, mas os alimentos suprem todas as nossas necessidades. Quais
são as vitaminas desse refrigerante?
– Não sei, não estudamos isso na escola.
– Os alimentos são o que nos mantém vivos, sendo também o elemento
mais fundamental para garantir a longevidade. Portanto, conhecer o valor
nutricional dos alimentos é tão importante quanto estudar a filosofia da vida.
Não me diga que também não estudam filosofia nas escolas?
– Não. Não sabemos porque vivemos e não estamos interessados em ter
uma existência saudável. É isso que você quer que eu diga?
– E, para completar, dão pouco valor à família. O que há de bom em vocês,
construtores? Ficaram ricos e se tornaram mais estúpidos? Esbanjaram o
dinheiro em coisas inúteis?
– Por outro lado, você não vai lavar as mãos antes de comer? De que adianta
comer alimentos saudáveis se você irá contaminá–los com suas mãos sujas?
– Não temos o costume de cuidar da higiene com frequência, para não
tomar o tempo que usaríamos para ficarmos mais fortes. Os animais não
costumam se lavar muito e consomem alimentos do chão. Nós, destruidores,
desejamos ter alguma harmonia com a natureza, mas cientes do equilíbrio da
construção e destruição. A morte é natural e matamos uns aos outros, assim
como os animais se devoram e lutam pela sobrevivência na selva.
– Vá lavar as mãos, Sablerie... tem um banheiro logo ali.
Eu apontei. Ele não gostou que eu não tivesse prestado atenção no que ele
disse.
– O que é um banheiro?
– Como assim? Vocês mijam na rua?
– Sim, ou em baldes.
– E não lavam as mãos depois?
– Não.
– Pensando bem, acho que vou lavar as mãos também...
Eu me levantei e fui até o banheiro. Eu não podia acreditar que eu havia
segurado na mão daquele cara.
Quando eu voltei, Sablerie não estava mais lá. Ele retornou do banheiro com
as mãos molhadas. Ele provavelmente não sabia que existiam toalhas ou papéis
para enxugar as mãos.
– Vocês são frescos, hein? Por isso são fracos na magia: se preocupam
demais com trivialidades.
Mas quando Sablerie deu a primeira mordida no cachorro–quente, cuspiu de
volta no prato.

182
Fábula dos Gênios

– Pare com isso! Não me diga que não gostou?


– Há um molho esquisito aqui dentro. Vou tirar isso.
Ele resolveu abrir o cachorro–quente e comer somente a salsicha e as
verduras. Não comeu o pão e nem o molho. Ele se sujou completamente
fazendo isso. Parecia uma criança. Ele comia quase como um cachorro,
enfiando a cabeça no prato. Quando eu o critiquei, ele usou as mãos, mas
bagunçou ainda mais a comida fazendo isso.
No final, ele lambeu as mãos e os dedos. Ele devia estar se considerando
poderoso como um animal selvagem com esse ato, mas para mim ele estava
agindo como uma criancinha e eu ri. Ele se ofendeu.
– Pelo menos conseguiu comer a maior parte disso.
– Pode ficar com o resto.
Ele empurrou aquele prato nojento e babado para perto de mim.
– Hã... não, obrigada, estou sem fome.
Só aceitei tomar o refrigerante dele. Depois disso, voltamos para o hotel.
– Isso foi como um encontro, não acha?
“Que parte disso você achou parecido com um encontro?”
– Convide–o para ir ao cinema!
“Ele provavelmente ia agir de modo estranho no meio da sessão, então não
é uma boa ideia” .
Por isso, retornamos logo para o hotel. Ainda faltava um tempo até a hora
que marcamos para o sexo.
– Sablerie, espero que não se ofenda se eu perguntar, mas...
– Pergunte de uma vez.
– Há quanto tempo você não toma banho?
– Uns dois meses.
– Nhahia, você vai ter que fazer sexo com esse cara. Meus pêsames.
Eu preferi disfarçar meu espanto.
– Seria possível que você tomasse um banho antes de nos unirmos?
– Não estou a fim.
– Há, há, você tá ferrada.
– Estou certa de que eu iria me sentir mais atraída por você depois do banho.
– Por que você acha isso? Os animais...
– Não me interessa o que os animais fazem! Você vai comer suas fezes só
por que os animais fazem isso, cara?
– Suor é sensual. Não se enfeite demais e não coloque perfume para
transarmos.
– Se eu terei que seguir seus termos, então siga os meus. Eu farei o que te
excita, mas em troca você fará o que me traz prazer. Combinado?
– Não vejo nenhum rio por perto para que eu possa me banhar.

183
Wanju Duli

– Há um chuveiro no banheiro. Vou abrir pra você.


Entrei no banheiro e abri o chuveiro.
– Pronto, agora vá lá.
Ele ainda me lançou um olhar de reprovação antes de ir. Fechou a porta e
tomou o banho. Retornou vestido e pingando.
– Você tem que tirar o manto para tomar banho!
– Eu não tirarei meu manto. Ele é meu legado e minha honra.
– Puta que pariu. Sablerie, para de ser teimoso e tira a porra desse manto!
– Veja lá como fala comigo, caralho!
– Você que me ensinou a falar palavrões!
Ele retornou ao banheiro e trancou a porta. Mas eu não ia permitir que ele
recolocasse aquele manto nojento depois disso. Por isso, requisitei que ele
vestisse somente o manto amarelo. Ele voltou para o quarto vestido de amarelo,
mas reclamando.
– Me espere aí que agora eu vou tomar banho.
– Nada disso. Eu não permito.
Ainda batemos boca sobre isso por um tempo, até que eu mandei que ele se
ferrasse e tomei meu banho. Contudo, tomei o cuidado para não usar nada
muito perfumado.
Quando saí do banheiro, eu vestia somente uma camisola branca. Fui até a
penteadeira arrumar os cabelos.
– Você depilou as pernas e as axilas. Que repugnante! Você é muito artificial,
construtora.
– Oh? Então as destruidoras não se depilam?
– Claro que não. Elas são mulheres fortes, sensuais e selvagens, diferente de
você, sua bonequinha fresca.
Eu passei a tesoura nos cabelos.
– E agora, que está fazendo?
– Cortando minhas mechas rosas. Você quer que eu seja natural, não é?
Então aí está: me deitarei com você com a cor original de meus cabelos.
– Tente raspar a cabeça e as sobrancelhas.
– Por quê?
– Há uma destruidora muito poderosa que não tem cabelos. Na verdade, ela
perdeu originalmente os cabelos por fazer muitos jejuns ou por não ter comida
disponível. Mas isso se tornou símbolo de poder e força de vontade. Ela é o que
há de mais próximo de um símbolo sexual entre nós, destruidores. Portanto,
uma mulher com cabeça raspada é perdidamente sensual.
– Eu simplesmente não entendo esses costumes estranhos de vocês. Fale–
me mais sobre essa garota. Por que ela é assim tão forte?

184
Fábula dos Gênios

– Não é uma garota. É uma destruidora adulta. Ela já era adulta desde a
guerra. Atualmente deve ter em torno de quarenta anos. Você e suas amigas
simbologistas pensam que podem fazer jogos de sedução somente inventando
essas bizarrices estúpidas com a aparência. Mas vocês somente sabem seduzir
imbecis. Nós, destruidores, somos seduzidos pela força, pelo poder e ousadia.
Amamos mulheres selvagens.
– Eu já imaginava isso. Qual é o nome dessa mulher?
– Sassa Soma. Sugiro que grave esse nome a ferro e fogo em seu cérebro e
não o esqueça jamais.
– Você a ama.
– É claro que eu a amo. Assim como a maior parte dos destruidores. E
mesmo aqueles que não a amam, a admiram e respeitam enormemente. Ela é a
fundadora de nossa sociedade secreta mais forte.
– Quem é a ligação dela?
– O rei.
– Então a princesa é filha dessa maga poderosa?
– Sim. Esse é o mundo dos fortes, Nhahia. Um mundo que você jamais
penetrará.
Aquelas palavras mexeram comigo. De verdade. Por um momento, eu
desejei ser uma destruidora.
– Se eu estudar o Grimório dos Gênios Malignos, quem sabe um dia eu seja
admitida nessa sociedade secreta.
Sablerie gargalhou com vontade. Eu nunca tinha visto isso antes.
– Você precisaria de pelo menos mais algumas encarnações antes de ousar
colocar–se diante da venerável Soma.
– O seu sonho é entrar para a sociedade secreta dela. Por isso você vai
aceitar se unir a mim: para viver mais e ficar mais forte.
– Eles somente aceitam membros adultos que já se uniram a suas ligações. E
além disso, só os mais poderosos. Não tenho nem idade e nem poder suficiente
para ser parte disso.
– Peraí, você disse que não tem poder? Mesmo estando entre os mais fortes?
Quantos membros tem nessa sociedade?
– O número exato de membros é um segredo da sociedade. Mas não me
importa se sejam três ou quinze. Estimo que não passe disso, mas estou
meramente especulando. Eles são altamente seletivos.
– Ela é a rainha, então?
– Claro que não. Ela não estava interessada em poder político. Apenas se
uniu ao rei para viver. E eu sei que no fundo a princesa ficou mais forte que eu
por ter sido treinada por ela...
– Como ela pode ser mais forte que seu pai, que é o autor do GGM?

185
Wanju Duli

– Já te contei que temos um grimório ainda mais forte que o GGM. Mas
agora chega de conversa. Não sonhe em fazer parte da SS. Eles jamais
aceitariam uma construtora como membro. Principalmente uma fraca que nem
você.
– Eu sei que sou fraca, mas... também sei que sou capaz de me dedicar a algo
que eu realmente ame.
– Você é ainda mais fraca do que pensei. Inicialmente tive esperanças de me
divertir um pouco na luta de nosso reencontro, mas você me desapontou
enormemente.
Eu ia dizer algo para me defender, mas ele me interrompeu.
– Por outro lado, estou certo de que você é mais forte do que pensa. Você
sempre disse que ia me matar, mas nunca acreditou que realmente fosse capaz
disso. Por quê? Já experimentou acreditar que pudesse me matar de verdade
para ver o que aconteceria?
Aquelas palavras me calaram.
Então, no fundo, o problema estava em mim. Sablerie acreditava de verdade
que eu podia ser forte. Aquilo só não aconteceu porque eu mesma não acreditei.
Mas aquilo poderia mudar. Eu tinha o poder de me tornar qualquer coisa
que eu desejasse. E isso não ocorreria somente na imaginação.
Ora, a imaginação em si já é poderosa. Algo que exista na imaginação e
também em outras dimensões poderia alcançar as estrelas.
As cinco estrelas: aquelas que tocavam nossos sentidos físicos e também o
nosso espírito invencível.
– Está na hora. Vamos acabar logo com isso.
Meu coração deu um pulo. Até já tinha esquecido. Eu não estava preparada!
O sangue tinha subido todo para o cérebro no momento daquelas conversas
espetaculares. Seria difícil fazê–lo descer outra vez.
– Prometa que não lerá meus pensamentos ou os pensamentos do meu
gênio durante nossa união. Eu vou me desconcentrar se isso acontecer.
– Não lerei. Concentre–se em pensar no que quiser, contanto que isso
facilite as coisas para nós.
Ambos começamos a tirar a roupa.
“E você também, Bapsi, fique quieto. Não incomode!”
– Não se preocupe, Nhanha, estarei ocupado o suficiente me enrolando no
gênio dele para prestar atenção no que vocês estão fazendo.
Quando ficamos completamente nus, nos deitamos e nos abraçamos.
Aparentemente, nenhum de nós sabia o que viria a seguir.
– Vamos tentar olhar o corpo um do outro.
Eu não tinha prestado atenção suficiente no corpo dele naquele dia que o
pai dele nos prendeu na cela. E quando o vi, eu entendi porque olhar excitava.

186
Fábula dos Gênios

Na verdade eu não conseguia explicar o que exatamente ativava aquela sensação


e o que estava acontecendo, mas ver o que havia entre as pernas dele fez meu
coração acelerar. O corpo dele era tão diferente do meu e aquilo era tão mágico.
Ele afastou as minhas pernas para me ver.
– Nhahia, você se depilou e estragou tudo.
– Você não gostou do meu corpo?
– Eu adorei o seu corpo, mas poderia ser melhor com os pelos pubianos.
– Por que não se cala e fazemos isso de uma vez?
No fundo eu sabia que ele tinha razão, pois eu me excitava muito com os
pelos dele. Instintivamente, eu sabia o que eu queria fazer a seguir. Eu queria
tocar nele. Eu desejei. E, sem pedir permissão, foi exatamente isso que fiz.
Eu peguei no pau dele de surpresa e Sablerie respirava rápido enquanto eu o
massageava.
– Nhahia... chega...
Ele falou isso com dificuldade. Eu não conseguia imaginar o que ele estava
sentindo. Mas quando ele passou os dedos em mim, eu imaginei.
Depois daquilo, tivemos que olhar o livro, pois as ideias terminaram.
Sablerie abriu numa página e explicou o que faríamos.
– Fique em cima de mim, mas com o rosto virado para meus pés.
– Hã? Vou fazer massagem nos seus pés?
– Não, idiota. Apenas faça o que eu disse, você vai entender!
Ele estava brabo e isso era um pouco engraçado. Fiz como ele falou, embora
com alguma dificuldade, já que eu não conseguia mexer as pernas. Ele colocou a
língua na minha vagina enquanto eu chupei o pênis dele. Ao mesmo tempo que
eu entendia para que aquilo servia, meu cérebro não computava a relação direta
daquilo com a geração de um bebê.
– Isso é para lubrificar. Agora, eu quero que você faça o seguinte...
Ele fez com que eu encostasse os seios no pênis dele. Ele explicou que eu
deveria masturbá–lo dessa forma.
– Por quê?
– Porque eu quero! Apenas faça!
– Ele está embaraçado para pronunciar os termos técnicos da explicação. E
no fundo nem ele mesmo sabe direito o que está fazendo.
“Eu–te–disse–pra–ficar–calado–Bapsi–vou–te–matar–seu–maldito–vouyer!!”
– Vouyer? Que absurdo! Só estou tentando ajudar.
“Então cala a boca! Fazer sexo é muito mais difícil do que pensei. Exige
concentração”.
Eu fiz o que Sablerie mandou. Mas depois fiquei perdida de novo.
– Vem.

187
Wanju Duli

Quando eu aproximei o rosto do dele, Sablerie me beijou. Abraçou–me e


passou as mãos nos meus seios, respirando rápido. Depois ele lambeu meus
mamilos. Eu notei que ele gostava muito de mexer nos meus peitos, embora
aquilo doesse um pouco em mim.
Ele estava mexendo em mim com muito mais intensidade. Doía quando ele
colocava os dedos na minha vagina e doía quando ele apertava meus seios. Até
que eu não aguentei e reclamei.
– Você tá sendo muito bruto! Eu sou uma garota, meu corpo é delicado!
– Você não é delicada por ser uma garota e sim por ser uma construtora. Os
construtores são todos frescos. As mulheres destruidoras sim são poderosas.
Fazer sexo com uma delas deve ser a experiência mais fantástica do mundo.
– Desculpe–me se minha dor lhe desagrada. Eu também adoraria ter um
cavalheiro para me tratar gentilmente na cama, beijando–me como se eu fosse
manteiga e massageando–me como se meu corpo fosse feito do cristal mais fino.
– Eu sou uma pedra bruta e não desejo ser lapidado. Eu sou o sonho de
toda destruidora. Você não sabe o quanto as mulheres me desejam. Elas amam
o meu poder e a minha violência em despedaçar meus adversários sem piedade.
– Eu não gosto dessa situação e você também não gosta. Então eu vou me
esforçar para segurar a minha dor e você vai tentar ser menos selvagem nos
movimentos? Combinado?
Ele não respondeu. Apenas voltou a me beijar.
Ele me beijava de um jeito que me babava toda, como se quisesse lamber
todo o meu rosto. Ele me desejava intensamente. E, aos poucos, eu também o
estava desejando com cada vez mais vontade.
Eu agarrei o saco dele e o massageei com um pouco de violência também.
Queria ver qual era o limite do destruidor. Ele gemeu quando fiz isso e fez ainda
mais forte em mim. Em pouco tempo, estávamos os dois gemendo e bufando
como animais.
Ele me penetrou. Aquilo doeu e eu gritava de dor em meio a gemidos de
prazer. Eu estava gritando tanto que os os outros hóspedes do hotel deviam
pensar que eu estava morrendo.
Estávamos batendo a cama contra a parede repetidas vezes com nossos
movimentos. Até que a parede rachou e a cama quebrou. Eu continuava a gritar
alto e a gemer. Sablerie bufava como um animal e quando rachamos a parede ele
começou a rir a valer. Ele gostou, queria quebrar mais!
OK, ele usou magia, mas a foda gostosa ajudou! Sablerie fez um movimento
tão foda que a cama atravessou a parede e saiu pelo outro quarto.
Naquele quarto havia uma velhinha sozinha, tomando uma xícara de chá.
– Boa noite, senhora.
– Boa noite, madame. Eu já vou consertar sua parede. Aguarde um minuto.

188
Fábula dos Gênios

– Vocês são magos?!


– Os mais poderosos.
– Você devia ensinar isso para meu marido!
O atendente do hotel ficou uma fera conosco! Aquele barulho foi ouvido no
hotel inteiro e ele bateu na nossa porta para reclamar. Felizmente, Sablerie já
havia consertado a parede com magia.
– É isso que dá alugar quarto para um destruidor. Onde já se viu? Esses
jovens de hoje em dia...
E o sujeito saiu murmurando outras coisas do tipo enquanto se afastava.
Quando fechamos a porta, eu e Sablerie desatamos a rir. Simplesmente não
conseguíamos mais parar!
– Por isso os destruidores não transam no interior de construções. Essas
paredes são muito frágeis.
– Você sabe falar creemah?
– Estou aprendendo. Culpa sua.
– Está certo, eu confesso: essa foi genial. Que magia do GGM você usou
para fazer isso? Quero aprender!
– Sei lá! Eu só... porra, segui a inspiração do momento.
– Pelo visto você estava bem inspirado. Hã... Bapsi?
– Fala, Nhahia. Eu e Basza ainda estamos tentando nos recuperar do susto
dessa piada com a parede, mas continue.
– Vocês geraram o terceiro gênio?
– Não, o mocinho não completou o processo. Tentem de novo.
– “Mocinho”? Respeite–me, inseto. Eu sou Sablerie Cazka, filho de Vlebre
Cazka que é autor do Grimório dos Gênios Malignos. Sou invicto em combate,
com 789 vitórias.
– Opa! Você deve ter ficado furioso mesmo quando fui embora para ter
matado tanto em tão pouco tempo.
– Nhahia, acho que descobrimos como foder. Mas erramos em alguma parte.
– Você errou! Nhanha fez tudo certinho.
– Cale–se. Eu não pedi sua opinião.
Ele descobriu que deveria ejacular para me engravidar. De minha parte, eu
havia tido orgasmo e topava mais uma!
– Tá, já coloco minha porra em você. Deixa eu só descansar um pouquinho
antes...
O corpo de Sablerie estava trêmulo. Bastou deitar na cama que ele apagou.
Pelo jeito, tinha ficado completamente exausto com o esforço.
– Ele não é fofinho, Bapsi?
– Não muito. Não gostei de ele ter quebrado a parede. Eu estava
concentrado com Basza e isso me assustou!

189
Wanju Duli

Eu me deitei ao lado dele e nós dois dormimos. Só acordamos na manhã


seguinte. Acordamos quase ao mesmo tempo, mas eu acordei um pouquinho
antes. Quando eu despertei, vi que ele havia dormido abraçado em mim.
Quando ele acordou e percebeu o que havia feito, afastou–se de mim. Afinal,
uma coisa era fazer um sexo frio e selvagem. Outra bem diferente era
demonstrar um gesto carinhoso. Isso ele não desejava fazer, para que eu não
entendesse de forma errada.
Logo, ele retomou sua pose.
– Estou faminto, construtora. Traga–me comida.
– Pensei que você havia dito que aguentava alguns dias de jejum.
– Essa foi uma das atividades mais intensas que já fiz na minha vida. Drenou
completamente minha energia. Estou esperando minha comida! Onde ela está?
– Ah, vai te foder, meu filho. Você não é um destruidor? Vá lá na floresta
caçar um bode e coma. Você não aprecia uma vida de dificuldades e desafios?
– Você é tão ruim para mim. Está certo, irei vestir–me agora. Você tem uma
lança por aí?
– Eu estava brincando, seu completo imbecil. Vou tocar o sininho e o
serviço do hotel irá nos trazer alguma coisa.
Pedi que nos trouxessem o café da manhã. A camareira entrou no quarto
com dois pratos nos quais havia ovos de peixe, carne de búfalo mal passada,
plantas carnívoras com sal e sorvete de árvore.
– Isso parece bem saudável, não acha?
Quando olhei para o lado, Sablerie já havia acabado de comer. Ele devia
estar com fome mesmo! Ele nem ligava mais em comer alimentos de origem
animal que não fosse carne humana.
– Tô me fodendo pra isso. Assim que eu colocar o filho em você retomo
meus hábitos alimentares. Nunca pensei que eu precisaria de tanta energia para
propagar a espécie.
– É bom propagar a espécie, não acha?
– É muito bom. Estou bastante satisfeito em cumprir meu papel como
animal.
– Você é realmente uma besta selvagem!
– Obrigado pela parte que me toca.
Estava um lindo dia. Decidi propor algo diferente.
– Quero te apresentar apropriadamente para minhas amigas.
– Aquelas dondocas? Você está de sacanagem comigo.
– Aceita batalhar com elas?
– Depois não reclame se eu matar uma por acidente.
– Posso te apresentar como meu namorado, para que elas morram de inveja?
– Por que isso as faria ter inveja?

190
Fábula dos Gênios

– Porque os destruidores são poderosos! Elas são magas também, então é


óbvio que me invejarão ao saber que meu namorado é forte.
– Eu não tenho tempo para essa brincadeira. Irei dispor apenas de alguns
minutos para essa conversa inútil. Logo depois, voltaremos para cá e
realizaremos o segundo round do ato sexual.
Telefonei para Miide, avisando que eu queria apresentar a elas meu amigo
destruidor. Ela pensou que ele havia me raptado e estava me forçando a dizer
aquelas coisas. Pensou que fosse uma armadilha. Eu apenas ri.
As três compareceram na praça. Claro que elas repararam no meu novo
corte de cabelo curtinho e comentaram. Sablerie estava encapuzado e com o
manto amarelo, para que os outros não o reconhecessem.
– Eu li que os destruidores nunca retiram seu manto. Então ele não pode ser
um destruidor!
Traduzi para Sablerie.
– Diga para a sua amiga teórica da magia para que ela confie menos nos
livros e viva mais a vida real.
E lá fui eu traduzir.
– Ele pode ter costurado aquele manto verde e marrom. Há muitos magos
por aí querendo se passar por destruidores, para meter medo.
– Eu quero batalhar com ela para fechar a matraca dessa vaca.
Eu traduzi, mas omiti a última parte.
– Eu conheço o mínimo da sua língua para saber que você não traduziu tudo.
Traduza. Quero que ela se irrite e dê o máximo de si nessa luta.
E Sablerie obteve o que queria. Miide era muito mais forte que eu e eu
jamais a havia visto batalhar furiosa. Ela usou selos tridimensionais. Traçou uma
esfera ao redor de si, preenchendo todo seu corpo, para proteção. E atacou com
diferentes categorias de selos.
– Oh! Ela é melhor que você, Nhahia. Muito melhor...
Ele apreciou o desafio, mas bloqueou o selo de Miide facilmente. Ele lançou
um selo tão veloz que ele saiu voando e produziu um corte no braço dela.
Poucos conheciam adversário à altura de Miide. No colégio, somente Djam
a superava. Então, as minhas amigas não duvidaram mais da identidade dele.
Algumas pessoas na rua pararam para assistir ao duelo e bateram palmas
com o espetáculo. Eles terminaram a luta por ali. Era o bastante. Se Sablerie se
empolgasse, poderia matá–la de verdade.
– Seu amigo poderia tirar o capuz?
Sablerie recusou–se enfaticamente. Eu era uma das únicas pessoas que já o
vira sem capuz. Mas Gelei, que era muito atrevida – e corajosa! – foi até onde
ele estava e baixou o rosto, para tentar fitá–lo ligeiramente. Ela viu uma boa
parte do rosto dele.

191
Wanju Duli

– Garotas, ele é bonitinho! Tem espantosos olhos castanhos!


Sablerie não entendeu. Ele se irritou com Gelei e eu imaginei que ele iria
atacá–la no próximo atrevimento.
Eu avisei a elas para que não o provocassem. Que embora ele parecesse
inofensivo, ele era um destruidor e poderia perder o controle e matá–las. Gelei
achou isso perdidamente sensual, embora tivesse se assustado um pouco
também.
– Você disse que eu pareço inofensivo? Eu entendi bem?
– É porque você é baixinho, pequenininho e fofinho.
Com certeza aquilo era uma ofensa muito grande para Sablerie, que queria
ser visto como grande, forte e selvagem.
– Como se atreve a dizer essas coisas? Você quer morrer?
– Você pensa que eu ainda me assusto com suas ameaças? Eu sei que você
precisa de mim viva pelos próximos nove meses, querido.
Eu menti a elas, dizendo que Sablerie era meu namorado. Eu quis provar,
dando um beijo nele. Mas quando eu tentei fazer isso, Sablerie afastou–se,
recusando a fazer em público.
– Ele é tímido. Bem, garotas, agora preciso ir. Eu e ele temos um
compromisso quente lá no hotel.
E saí com Sablerie de mãos dadas. As três ficaram completamente confusas.
Acho que elas ainda não acreditavam de verdade que ele fosse um destruidor.
– Aquela sua amiga que enfrentei tem uma força boa. Mas ainda é fraca o
suficiente para não notar a dimensão do meu poder. Um mago realmente forte
perceberia que sou um destruidor no instante em que pusesse os olhos em mim.
Eu não preciso provar nada a ninguém. Suas amigas são superficiais e analisam
somente o lado de fora. Elas não sabem onde reside a verdadeira força.
Portanto, serão eternamente magas medíocres.
– Você sabe que menti somente para me gabar, certo? Nós não somos
namorados.
– Tá dizendo isso pra mim? Você não vai me apresentar a nenhum outro
amigo seu, ouviu bem? Eu não desejo conversar com pessoas que precisam me
ver com um manto verde e marrom para acreditar se sou forte ou fraco. Vocês
não sabem de nada. Se deseja receber mais um resquício de sabedoria, eu te
revelo: os destruidores usam mantos de cores diferentes de acordo com a força.
– Eu sei disso. As tiras marrons costuradas são de acordo com o número de
destruidores que mataram.
– Não é somente assim que se mede nosso poder. Esses números têm mais
status entre os jovens. Os adultos não se envolvem tanto em batalhas e mesmo
assim são muito mais poderosos. Tiras marrons podem representar outras coisas.
Normalmente os destruidores vestem somente esses mantos que vocês

192
Fábula dos Gênios

conhecem. Mas membros de nossas sociedades secretas possuem mantos de


cores diferentes. Na SS todos usam mantos completamente marrons,
representando a supremacia absoluta. É como se houvesse tantas tiras que
cobrissem o corpo inteiro.
– Uau...! Esse é um simbolismo forte.
Por que aquilo mexia tanto comigo? Todas aquelas histórias e lendas...
Retornamos ao hotel. Sablerie já parecia estar de saco cheio. Estava de má
vontade para fazer sexo naquele dia, pois de tanto falar da SS, ficou ansioso para
retornar ao seu país e treinar muito.
Eu também queria ser parte daquele mundo de pessoas fortes. Não queria
somente gerar um bebê para Sablerie, embora esse ato fosse tão grandioso que
pudesse salvar as nossas vidas.
No meio do sexo, um veneno foi crescendo em mim.
“Estou certo de que você é mais forte do que pensa. Já experimentou
acreditar que pudesse me matar de verdade para ver o que aconteceria?”
Tais palavras não saíam da minha mente. Então um dos segredos da magia
residia na força de vontade? Sim, apenas como motor propulsor. Num estágio
inicial, antes de partir para o grande voo.
Eu precisava confiar no meu poder. E, principalmente, no meu ódio contra
os destruidores.
Eu não ousaria apresentar Sablerie aos meus amigos construtores, com
aquele tipo de brincadeira tola que fiz com as simbologistas. Eles me matariam.
Não importava que ele fosse minha ligação. Essa desculpa não ia colar. Eles
eram os inimigos. Não era uma escolha e sim um destino. Não havia o que
pensar: construtores e destruidores deviam se matar.
Eles já tinham assassinado nosso povo. E precisavam pagar.
“Faça–o pagar...!”
Eu só precisava alimentar mais e mais aquele ódio.
Eu sentia o corpo suado de Sablerie sobre mim e ao mesmo tempo que eu
sentia prazer, eu sentia nojo. Não era eu quem seria usada para que Sablerie
obtivesse o que queria. Eu poderia manipulá–lo para satisfazer a minha vontade
e a minha força.
Ele me concedeu o prazer do sexo. Daria a mim um bebê e a continuidade
da minha existência. Em mais alguns minutos, assim que eu obtivesse o sêmen,
a existência dele não teria mais razão de ser e ele poderia ser eliminado.
“Destruidor miserável. Filho da puta...!”
Conforme a raiva e o nojo cresciam dentro de mim, senti algo nascendo a
partir da raiz dos meus cabelos. Aquilo estava me dominando...!
Sablerie fitou meu rosto e levou um susto.

193
Wanju Duli

– A metade esquerda dos seus cabelos está completamente cor–de–rosa.


Como você fez isso?
Eu não respondi. Apenas continuei a beijá–lo. Eu fazia tudo o que ele
queria, o que ele gostava. Queria agradá–lo imensamente no sexo para que ele
soubesse como eu era poderosa.
O mistério da magia dos fios era lendário. No fundo, a magia se manifestava
duas vezes e a primeira era somente um teste. Era algo como 1% do potencial
da magia.
Na segunda vez, ela estourava em 100%.
“Bapsi... está me ouvindo?”
– Estou.
“Quero realizar meu segundo desejo. Você sabe qual é, certo?”
– Eu sei.
“Sablerie disse que não posso utilizar as magias do GGM sem um mestre.
Ele é um grande mentiroso. Embora as técnicas mais poderosas exijam que o
gênio devore sua alma, há magias que eu posso conseguir fazer. Eu aprendi o
idioma deles, então eu pude conhecer detalhes de magias famosas. O que eu
tenho em mente é...”
– MPD.
“Sim. A Magia da Potência Destruidora. Ela aumenta enormemente a
eficácia mágica. A magia de fios já possui uma potência assombrosa. E a MPD é
uma versão melhorada da MP do GG. Meu segundo desejo será...”
– Eu sei que você deseja utilizar a MPD nessa segunda explosão da magia de
fios. Entendi isso com clareza. Isso multiplicaria a força do funcionamento
original do seu primeiro desejo. Mas você não precisa utilizar o seu desejo para
unir as magias. Pode fazer isso sozinha.
“Você não entendeu. Meu segundo desejo será que você sele os poderes de
Sablerie para que ele não tenha tempo de se defender. Esse cara é tão bom que
conseguiria ler a chegada da minha magia num milésimo de segundo”.
– Eu não posso atender um desejo que esteja além das minhas forças. Não
sou capaz de selar os poderes desse cara, Nhahia!
“Eu só preciso de um segundo. Você pode segurá–lo por esse período?”
– Somente torça para que ele não tenha lido essa nossa conversa. Ele
prometeu que não leria seus pensamentos durante o sexo, mas nunca se sabe.
“Sablerie honra suas promessas. Essa é sua maior fraqueza”.
Ele me abraçava e me beijava, me segurando com força. Eu sentia que
estava quase na hora. Estava ficando nervosa.
Até que ele gozou. Senti o líquido quente. Eu tinha os genes dele em mim.
“É agora, Bapsi. Prepare–se!”

194
Fábula dos Gênios

Depois daquele orgasmo, Sablerie me abraçou mais forte. Quando voltou a


olhar para mim, deu um leve sorriso.
Por quê? Por que justo naquele momento? Era a vingança dele? Queria fazer
com que eu me arrependesse? Ele sentiu o que iria acontecer?
Ou, no fundo, a culpa foi completamente minha por cometer aquele erro?
A tinta do meu cabelo derramou–se sobre o corpo de Sablerie. O selo de
Bapsi. A potência. Tudo milimetricamente cronometrado. A perfeição mágica.
Subitamente, a explosão. Eu me assustei. Senti medo. Tremi.
Eu não ousava abrir meus olhos.
Diante de mim, estava o corpo de Sablerie, esquartejado. Havia um buraco
no peito e os órgãos saltados. Um braço foi parar na direita da cama. Uma perna
ainda pendurada por um pedaço de pele. O caralho decepado perto da janela. O
cérebro saltando do crânio.
Aquelas vísceras... havia pouco. Mal distingui o coração, que o gênio dele já
havia devorado e deformado. Quase um corpo sem órgãos. E a alma... em lugar
algum. O gênio já havia dominado seu corpo por inteiro. Nem se via sinal de
Basza.
Enquanto as lágrimas escorriam do meu rosto com o choque, eu gargalhei.
Eu gargalhava feito uma maluca, elevando os braços ao alto, numa alegria sem
tamanho.
– EU MATEI SABLERIE CAZKA! EU O MATEI COM MINHAS
PRÓPRIAS FORÇAS!
Eu não usei nenhum golpe baixo. Foi genuíno. Eu fui capaz de selar seus
poderes e distraí–lo.
– ESSE IMBECIL CONFIOU EM MIM! QUE PANACAAAAA!
Um destruidor que foi ingênuo o bastante para confiar numa construtora.
Somente um infeliz.
Eu forçava minha risada cada vez mais, talvez porque no fundo eu não
sentisse vontade de rir. E, ao mesmo tempo, as lágrimas corriam. De alegria e de
tristeza. De vida e de morte. De desespero e de prazer intenso.
– Sua vida é minha. Ela coube aqui, nessas mãos...! Eu não sou fraca. Eu não
te dei somente a morte, mas a morte final!
A magia de ressurreição não funcionaria, pois eu havia destruído não
somente o corpo, mas o gênio. Eles me entregaram todas as armas nas minhas
mãos: o GGM, o conhecimento do idioma, a história do povo...
– Você planejou tudo isso. Desde o começo.
– Sim, eu não sou tola. Sablerie está morto. Eu o matei!
Bapsi era somente uma bolinha agora, tendo perdido a outra parte da cauda
devido ao meu segundo desejo.
– Agora você é como eles. Como os destruidores. Está satisfeita?

195
Wanju Duli

– Eu tenho orgulho de ser uma assassina. Com todas as minhas forças. Eu


não possuía uma razão para fazer o que fiz, mas uma emoção muito forte. Meu
coração...
Eu coloquei a mão no peito. Meu coração pulsava forte, como uma bomba!
Aquela adrenalina de matar era a melhor possível. Porque era ao mesmo tempo
horrível. Isso que dava à adrenalina do assassino uma potência inimaginável.
E era isso que também gerava a emoção da vida: o equilíbrio dinâmico da
dor e do prazer. A alquimia do sexo e da morte.
– Eu tenho um coração no meu peito. Eu o matei como uma construtora,
usando a magia dos gênios! A magia dos gênios malignos é somente uma
distorção mal feita das nossas técnicas originais. A cópia jamais supera o original,
OTÁRIO!
– Nhanha, é você mesma? Não te reconheço mais.
– Esse foi o cara que destruiu meu povo! Eu finalmente me vinguei e você
vem com essa conversa para cima de mim?
– Pare com isso. Você não pode esconder nada de mim. Tenho acesso aos
seus pensamentos e emoções. Admita: você gostava dele. Pelo menos uma parte
de você se sentia atraída. Você até foi exibi–lo para suas amiguinhas
simbologistas...
– Eu quis apenas fazer essa brincadeira antes de matá–lo. Para meu prazer.
Somente assim eu teria a satisfação completa.
– Você queria transar com o destruidor desde o começo.
– Sim, eu queria. Mas se eu entregasse o jogo logo no início, ele venceria. Eu
nunca quis ser amiga dele, Bapsi. Isso jamais. Eu queria usá–lo e matá–lo. Eu
tive curiosidade de experimentar o prazer do sexo. Com um destruidor foi ainda
mais delicioso. Mas agora já cansei de brincar.
– Você está tão feliz. E ao mesmo tempo está chorando por dentro.
– Se construtores e destruidores não fossem inimigos, nada disso teria
acontecido. Eu e Sablerie teríamos nos unido naturalmente, sem resistência.
Quem sabe até nos apaixonássemos, como nas histórias. Eu juro que ninguém
desejava mais isso do que eu. Mas eu e ele só tínhamos um único caminho: o
ódio.
– Eu não posso aceitar essa explicação. Vocês dois eram somente crianças.
Sablerie foi para a guerra porque o pai dele mandou. E, antes disso, os
construtores escravizaram os destruidores. Você foi ensinada a odiar
destruidores e ele a odiar construtores. E daí, Nhanha? Nem você e nem ele
tinham nada a ver com essa briga das gerações anteriores.
– Você quer que eu me sinta culpada? Sablerie nunca teve a intenção de
diminuir nossas diferenças, tampouco. Eu apenas me defendi. Ele arrancou
minhas pernas...

196
Fábula dos Gênios

– Se ele realmente quisesse te matar daquela primeira vez, tenho certeza de


que ele teria feito isso. E na época ele nem sabia que você era ligação dele. Você
não percebe quantas vezes ele poupou a sua vida?
– Nada disso me interessa. Não terei minhas pernas de volta, é verdade. Mas
assim que eu ganhar esse bebê, vou para a guerra com os outros construtores.
Provavelmente não voltarei viva e ter esse filho terá sido inútil. Mas não ligo.
– Tudo isso somente aconteceu porque vocês dois foram orgulhosos. E
porque você foi ainda mais que ele.
– O mais orgulhoso de nós dois ficaria vivo. Eis a verdade.
– As coisas poderiam ter sido diferentes. Sablerie estava cedendo. Não me
diga que não percebeu. Ele gostava de você, você gostava dele, caramba! Eu sei
que você não era exatamente a selvagem beldade destruidora que ele esperava e
ele tampouco era o seu cavalheiro construtor, mas vocês tinham algo a ver.
Formariam um belo casal.
– Bapsi, você não percebe? Ele queria uma mulher selvagem. Eu dei a ele
exatamente o que ele queria. Ele reclamou que minhas amigas somente
prestavam atenção no manto dele. Pois ele prestou atenção demais no fato de eu
ser uma construtora e não se deu conta que eu poderia ser tão selvagem quanto
um destruidor. Ou mesmo tão poderosa quanto um.
– Vocês dois foram superficiais. E tolos.
– Essa briga sempre foi o que me deu razão de viver. Isso é como um jogo,
Bapsi. Eu e meus amigos construtores precisamos de uma razão suprema para
viver e para morrer. Acabe com essa diversão e minha vida perde o sentido. Eu
preciso desse ódio.
– Pensei que fossem os destruidores que só ligassem para a força. Você
também precisa dessa paixão, desse vício.
Ergui a cabeça do destruidor e a segurei como um troféu. Vesti o manto
fedorento de Sablerie. Eu o tinha derrotado, então todas as suas 789 vitórias
passaram a ser minhas.
– 790 agora... preciso de um novo remendo.
Eu já havia usado a MPD, uma magia exclusiva do GGM. Portanto, eu já
me sentia um pouco digna daquelas vestes.
– Você se vestiu como uma destruidora. Onde está o seu orgulho, Nhanha?
– Esses trajes facilitarão minha entrada em Consmam. Eu irei levar a cabeça
de Sablerie para o papai dele. Ele não terá coragem de me matar, pois sabe que
terei o neto dele dentro de mim.
– Você não é louca de fazer isso.
Eu era.
Saí do hotel usando o manto dos destruidores. Deixei o quarto cheio de
sangue e vísceras. Para ser justa, ia pagar o período de minha estadia. Mas o

197
Wanju Duli

sujeito do hotel ficou tão assustado ao me ver carregando uma cabeça nos
braços que não teve coragem que eu me aproximasse. Ele queria que eu saísse
do hotel o quanto antes. Foi o que fiz.
Eu fiquei deliciada em ser assim tão temida. Eu andando pelas ruas com o
manto dos destruidores e com uma cabeça na mão, que eu segurava pelos
cabelos.
Eles fugiam, gritavam. Ah, o poder...! Como aquilo era bom.
E eu não estava apenas encenando. Eu não era uma destruidora.
Provavelmente não era digna daquele manto. Mas aquela cabeça que eu
carregava, eu tinha orgulho de dizer que fui eu que arranquei.
Peguei um navio para Consmam. Que prazer! Nem precisei pagar a
passagem. Os passageiros fugiam de mim.
Eu me orgulhei de permanecer no convés a fitar o horizonte naqueles trajes.
Alguns me espiavam assustados e apontavam.
– Você gostou de matar. Sentiu essa adrenalina por ser o peso de uma vida.
Agora você entende como os destruidores se sentem.
– Completamente. Mas eu não brincarei como eles. Tenho negócios mais
sérios a tratar.
Quando pisei em Consmam, exigi a presença do autor do GGM. Eu
informava isso em todos os cantos. Meu capuz estava sobre os olhos e ninguém
sabia quem eu era. Mas a maioria conhecia Sablerie.
Ver–me carregando a cabeça dele aterrorizou a muitos.
“Eu estou assustando os próprios destruidores. Eles são humanos. Apenas
humanos...”
E Vlebre Cazka chegou a mim. Derrubei a cabeça de Sablerie no chão diante
dele.
– Roubei o sêmen de teu filho e guardo teu neto em meu ventre. Se deseja
conhecer teu descendente um dia, devolve–me o gênio de Tchei.
– Isso não será possível, construtora. Esse gênio já foi destruído há muito
tempo.
– Então dá–me a vida da princesa em troca.
– Precisará de mais que essa ameaça para tirar a vida da filha de Soma. O
poder dela supera o de Sablerie. Você venceu meu filho em combate, então não
tenho do que me vingar. Sablerie sempre soube que poderia perder a cabeça
numa luta eventualmente. Ele só não imaginava que aconteceria pelas mãos de
uma construtora. E isso somente ocorreu porque ele foi tolo o bastante para se
entregar às doces artimanhas do amor. Ele era tão vidrado em batalhas que
cometeu esse erro fatal.

198
Fábula dos Gênios

– Isso tudo é verdadeiro. O senhor é sábio. Deve ser inteligente o suficiente


para prever que nós, construtores sobreviventes, voltaremos aqui em breve para
matá–los.
– Aguardo ansiosamente por esse dia. Ficaríamos desapontados se não o
fizessem. Já demoraram até demais para atacar. E, embora você estivesse
desejando, não vou te prender, construtora. Você é livre para brincar de
vingança.
Aquelas palavras me irritaram.
– Reconhece esse manto que cobre meu corpo?
– Cada pedaço dele.
– Quando eu retornar, retirarei o manto do seu cadáver e cobrirei meu
corpo com ele, senhor Cazka...
E com essas palavras eu parti. Pensei que ele fosse rir. Aquele homem
poderia ler a extensão de meu poder. Devia saber que eu era fraca, mas... por
que ele não duvidou do que eu disse?
Ele era o autor do GGM. Talvez ele soubesse, mais do que ninguém, que
todo fraco possui potencial para ser forte. E não há diferença de potencial entre
fracos e fortes, pois todos nascem com essa força de potência na alma.
De lá, peguei um barco diretamente para Samerre. Dessa vez eu desejei
viajar sozinha.
– Samerre... por que, de todos os lugares, essa terra?
– A magia dos deuses é a única que pode se equiparar à magia dos gênios
malignos. Eu preciso sentir isso. Quero entender.
– Você foi fantástica lá atrás. Está me surpreendendo a cada palavra. Como
você se transformou assim, de repente?
– Desde que descobri que posso me tornar exatamente quem eu desejo.
Sempre admirei os destruidores, em segredo. Eu não tinha me dado conta que,
independente de minhas origens, poderia me tornar tão forte quanto eles. Mais
forte que os deuses, que o trovão ou que os confins da terra. Pois o mental é o
elemento mestre da força. Se eu puder gerar essa vontade no meu coração,
poderei penetrar nas dimensões e tocar potências.
– Não basta ter força de vontade. E nem imaginação. É preciso transformar
em ação suas palavras.
– Eu desejo que os deuses me mostrem como.
– Nhanha...
– Sim?
– Você nunca mais me deu chiclete.
– Você não precisa disso, Bapsi. Você viu o que os destruidores inventaram.
Eu desejo escrever meu próprio grimório. Criar o meu sistema. Ele será superior

199
Wanju Duli

à magia dos gênios malignos e a qualquer sistema jamais criado. Simplesmente


porque será meu.
Desembarquei em Samerre. As pessoas lá eram bem estranhas. O mais
curioso era que eu não sabia dizer exatamente em que elas eram estranhas. Eu
apenas sabia que havia algo de diferente e especial naquele lugar.
Lá fui eu para um daqueles templos. Eu queria falar com um mago,
sacerdote ou seja lá quais fossem os títulos dos caras fodas de Samerre.
– Senhora, eu quero ser forte.
Eu me ajoelhei diante de uma mulher que estava sozinha naquele templo.
Ela se virou e me fitou. Devia ter uns trinta e poucos anos. Também usava um
tipo de manto, com um emblema prateado.
– Por quê?
– Para sentir sensações extraordinárias.
– Normalmente as pessoas diriam: “para proteger aqueles que amo”. É isso
o que as pessoas comuns dizem. Você é diferente. É sincera. Quem é você?
– Sou Nhahia Nham, de Consmam. Construtora de nascimento, expulsa da
minha terra pelos destruidores. Eu me vinguei. Senhora, as pessoas comuns
dizem “para proteger aqueles que amo”. Se realmente quisessem usar a magia
com esse objetivo, não se sentiriam ofendidas por serem chamadas de pessoas
comuns. Estou certa?
– Um bom caminho para ver as coisas. É o máximo que podemos tecer:
bons caminhos. Raramente temos ótimos e excelentes caminhos. Não há tal
coisa como perfeição, pois ela somente existe como percepção e não como
existência absoluta. Não há o absoluto, apenas fenômenos. Contudo, até mesmo
aqueles que dizem: “para sentir sensações extraordinárias” também vibram com
outros desejos.
– As pessoas querem o poder pelo próprio poder. Segue–se a isso a fama,
quem sabe até dinheiro e beleza. Ora, o poder é belíssimo! Mesmo um feio que
tem poder, mesmo que nada mais tenha, é mais invejado e mais desejado que a
mais bela das criaturas. Que poderia ser mais brilhante que o poder?
– O poder puro. É aquele que diz: “Busco o poder para realizar minha
missão e meu destino”. Fama, status, riqueza e o que vier com ele é apenas a
embalargem bonita do pacote de presente. As pessoas guardam embalagens na
tentativa vã de segurar o passado. Memórias, paisagens, barquinhos de papel.
Brinquedos da mente, da natureza e das mãos humanas.
– Senhora, eu somente quero o que quero. É somente isso que posso querer.
– Esse é o limite de teu poder?
– Eu matei um destruidor.
– Eu matei minha mente, para parar de perturbar–me com perguntas que
não me importam. Tornei–me apenas sensação. Quando a sensação terminou,

200
Fábula dos Gênios

eu não desejei mais o poder e, subitamente, ele tomou meu corpo inteiro e meu
espírito.
– Nhahia, as pessoas desse país não dizem nada que faça sentido. Eles
querem destruir a lógica também ou construir uma nova lógica por intermédio
da alma, que a mente não alcança?
– Eu não quero poder para ser famosa. Eu quero ser especial sim, mas será
o suficiente que eu o seja somente para mim mesma. Desejo ter a força para
alcançar paz de espírito. O segredo da magia é a manipulação mental. Mas o
psicológico é como um turbilhão. Algumas vezes desejo colocar mais fogo nesse
mar ou deixá–lo com águas pacíficas.
Ela me deu uma chave.
– Abra um dos baús, mas somente um.
– Por que somente um? Que baús são esses? Que há neles?
Mas ela apenas sorriu. Saí de lá mais confusa do que quando entrei.
– Tem razão, Bapsi, eles são loucos. Acho melhor eu estudar magia em
outro lugar. Quem sabe em Crava para tentar adivinhar o que me aguarda no
futuro?
– Você sabe o que te aguarda: vingança. Você mesma plantou essa semente.
Não irá se livrar dela num golpe de vento. Não era isso o que queria? Mais
emoção na sua vida?
– O momento em que a emoção acontece é desagradável; um misto de
êxtase e terror. Gosto de aventuras somente para me lembrar delas depois e
contar a outros, com orgulho da minha força.
– Contar a outros é inútil. Isso porque os outros vivem suas próprias vidas e
não a sua. Então no fundo não fará diferença. Viva para construir suas emoções
e não para despertar inveja. Siga o exemplo dos destruidores que são unidos
como povo. Eles não se agarram na glória de um único indivíduo, mas vivem
uns pelos outros.
– Eles vivem uns pelos outros se matando? Bem, a natureza também é assim.
Os animais devoram uns aos outros e o ciclo da vida continua. Mas isso é tudo?
Não há mais que isso?
– A continuidade é desconfortável; o fim é desconfortável. Onde está o
conforto, Nhanha?
– Em ter o poder de manipular os nossos estados psicológicos em vez de
bagunçar o mundo lá fora. Não é ser o rei do mundo e sim o senhor da própria
mente.
Nove meses passaram voando. O ataque dos construtores estava prestes a
acontecer. Eles apenas aguardavam por mim.
Permaneci em Samerre naquele período, somente para ficar um tempo longe
de tudo. Eu precisava de um pouco de paz, de descanso, de férias do universo.

201
Wanju Duli

Minha vida estava tão emocionante ultimamente que meu coração não estava
aguentando.
– Se for menino, essa criança se chamará Tchei, em homenagem ao nosso
amigo. Se for menina, será Sassa, o nome da musa de Sablerie.
– Espere, não foi essa mulher que ferrou o Cromo? Vai mesmo colocar o
nome dela se for menina?
– Acho que Sablerie iria gostar disso. Estou fazendo isso por ele e não por
mim. Afinal, mesmo que eu o odiasse, não tive o filho sozinha.
No entanto, algo deu errado.
O filho não saía. E quanto mais tentavam tirar, mais eu me machucava. Eu
sangrava.
– Isso é magia negra.
– Nhanha..! Mesmo com o poder selado, Sablerie teve direito ao seu desejo
final no instante da morte. E o desejo dele foi...
Uma lágrima cobriu a minha face.
– A semente que deu seu fruto. Sablerie, seu desgraçado. Eu te odeio. Mas
eu teria te amado, seu bastardo, se você não tivesse me matado. E você me
amaria se eu não tivesse feito isso primeiro.
– Pare de lamentar e faça logo seu desejo final. Seu tempo está se esgotando.
– Inversão.
– Quê...? Você não pode. Não tem o poder!
– Inversão! Porque, além do desejo final, ele tinha o segundo desejo. Agora
compreendo. E, por fim, a derrota.
Os seres humanos só podem viver da única forma que conseguem. Vivem
da maneira que aprenderam. Essa gaiola não é uma prisão?
Há os que usam as pernas para andar em círculos. E aqueles que as usam
para dançar.
Minhas pernas não andam e não dançam. Mas eu ensinei minha alma a
correr e depois a voar.

202
Fábula dos Gênios

Capítulo 7: Guerra

Desde pequeno eu sabia que não teria uma ligação. Isso me fez sentir
diferente. Quis me convencer de que era algo bom, pois eu era especial.
O que havia de bom em morrer? Bem, já que meu tempo seria curto, decidi
que iria vivê–lo intensamente. No fundo, não importava quanto tempo eu fosse
viver, contanto que eu cumprisse meu destino.
– Eu sou mais forte que você, filho de Cazka.
– Isso só poderá ser provado em batalha.
Eu derrotei a princesa Miabina facilmente. Ela tinha fama de ser boa, por ser
filha de Sassa, mas aparentemente ela não era tão habilidosa assim.
Ela ficou irada por ter perdido para mim. Claro, eu não era qualquer um: era
filho do autor do GGM. Mesmo assim, ela não aceitou. Passou a me perseguir.
Nos momentos mais improváveis ela me desafiava para uma disputa de
magia. Eu a derrotava todas as vezes. Ela não se cansava e continuava a me
atormentar. Parecia que quanto mais perdia mais ela se viciava em mim.
– Vamos batalhar novamente!
– Estou ocupado agora.
– Está com medo?
– Para com isso, Mia. Lutar é coisa de criança.
Todos nós estávamos cientes disso: batalhar era uma brincadeira somente
para crianças e adolescentes. Os destruidores mais velhos estavam mais
ocupados com a sabedoria do que com o poder.
Sabíamos que com o poder poderia vir a sabedoria. Mas em algum momento
da juventude e início da idade adulta, depois de batalharmos muito,
compreendíamos certas coisas. Então nos focávamos somente na obtenção do
conhecimento.
Era verdade que com a sabedoria também vinha o poder. E era evidente que
os adultos tinham mais poder que nós. Mas ficavam tão sábios que não
desejavam mais exibir esse poder. E se recolhiam aos seus estudos e práticas
fortes. Porque eles não estavam mais interessados em se divertir com nossos
brinquedos.
– Você sabia que Lekham foi para as montanhas?
– Quem? Aquela garota de 15 anos?
– Sim.
Era sempre surpreendente quando uma criança ou adolescente perdia
interesse pelo sangue das batalhas e êxtase das lutas. Diziam que era precoce.

203
Wanju Duli

Assim como crianças interessadas em política. Era raro uma pessoa que tivesse
uma noção maior da vida e da sociedade assim tão cedo.
Eu só poderia concluir que, apesar de eu possuir um poder mágico tão
esmagador, eu ainda não era assim tão sábio. Eu gostava de acumular mais tiras
marrons no meu manto: o couro do cadáver dos meus adversários.
Eu queria reconhecimento do meu poder. Era fantástico ser louvado. Eu
tinha muitos admiradores. Bastava eu pisar na arena que a multidão vinha
abaixo com gritos. Eles tremiam em êxtase perante minha força.
– Sablerie, por que você se importa com a multidão? Eles são só a multidão.
– Muita arrogância de sua parte dizer isso, Mia, principalmente sendo uma
princesa. Todos eles são magos. Alguns deles realmente poderosos. Lembre–se
que quando você assiste a uma luta minha, você faz parte da multidão.
– E daí? Ignore–os. Siga seu próprio caminho. Você quer ajudá–los ou
produzir um espetáculo para seus fãs?
– Eu só quero sentir meu coração acelerar.
Aprender magia era difícil. Aí estava a graça da batalha: ser bom em algo
difícil. Isso gerava reconhecimento.
Eu não me importava de verdade com a platéia. Queria apenas mostrar a
eles que eu era forte. Mas eu também buscava adversários poderosos para
enfrentar. Se somente eu fosse bom, a brincadeira finalmente terminaria.
Eu me perguntava se era nesse instante que os adultos iam para as
montanhas: quando ficavam bons demais e não tinha mais ninguém à altura
deles.
– Por que pensa tanto nas montanhas? Será que não quer ir para lá somente
para que te venerem por estar lá?
– Isso é uma mentira. Só queria saber o que fazem...
E, no meio de tudo isso, estava Sassa.
Normalmente ela vestia seu manto verde com tiras marrons. Mas quando
estava nos encontros de sua sociedade secreta, ela trajava o manto marrom puro.
Uma vez eu a vi: em toda sua imponência, caminhando pela terra de pés
descalços, junto com outros três destruidores encapuzados.
Isso fez meu coração pular. Ela raramente aparecia em público. Quando ela
passou, eu ajoelhei–me diante dela.
– Venerável Soma.
Ela sorriu bondosamente.
– Sablerie Cazka, deseja algo de mim?
– Se não for muita ousadia de minha parte, gostaria de ser membro da SS.
Ela não respondeu imediatamente.
– Chegará o seu momento, se você assim fortemente desejar.

204
Fábula dos Gênios

“O rei conheceu o seu corpo. Mas nem ele e nem ninguém mais é capaz de
sondar a sua mente inescrutável”.
Eu pensei isso. Ela sorriu de novo para mim depois desse pensamento. Eu
corei. Por um momento temi que ela tivesse lido o que se passava em mim.
– Eu conheci dois corpos. O corpo do rei, porque era meu dever como
ligação. E o corpo de uma mulher, para conhecer o amor.
Então era assim. A existência de Sassa era extremamente simbólica e
poderosa. Ela não amava o rei. Mas cumpriu seu destino. Finalmente, escolheu
abraçar o amor com alguém do mesmo sexo, para conhecer aquele sentimento
pelo menos uma vez.
Dizem que sua ligação é sua metade de carne. Mas a contraparte é sua
metade de espírito.
Portanto, unir–se a alguém de sexo diferente para procriar é meramente um
ritual. Raramente o amor nasce dessa união artificial, determinada pelo
nascimento.
O verdadeiro amor somente existiria quando se escolhe um amigo especial
do mesmo sexo para realizar o rito de contraparte.
Mas naquele tempo eu não estava interessado no amor. Para mim, Nhede,
minha contraparte, era apenas um amigo.
– O corpo é apenas um corpo. Um cadáver. Você consegue sentir seus
membros mortos? Mas, ah, o espírito! Esse sim sabe voar.
Sassa era capaz de usar a magia tecnológica apenas com a mente. Alterava o
estado de consciência para mexer nos computadores dos ricos. Enquanto isso,
os outros magos que mexiam com isso precisavam de máquinas, implantes de
metal...
– A alma é devorada pelo gênio. Ele devora também nossos órgãos. Então,
onde fica o espírito?
– Quando tiver essa resposta, jovem Sablerie, me procure. Nesse instante,
poderemos conversar outra vez.
E ela retirou–se. Depois disso, eu que fui perturbar Miabina, para que ela me
contasse.
– Sablerie, eu sei que seu pai é o senhor da sua vida e decide tudo o que você
deve fazer. Isso é necessário até nos tornarmos adultos, para fazermos nossas
escolhas. Mas, no caso da minha mãe, ela deixou–me aos cuidados do meu pai
desde o começo. Ela é ocupada demais com a sociedade secreta, com a magia
dela. E aceitará me treinar novamente só quando eu receber admissão na SS.
A princesa recebeu admissão na sociedade ainda adolescente. Isso não podia
ser favorecimento por ela ser filha de Sassa. Soma não era disso. Então, o que a
princesa tinha que me faltava?

205
Wanju Duli

Eu havia adquirido má fama desde minha batalha com a construtora. A


história de que não consegui usar meu gênio contra ela se espalhou. Levou certo
tempo até eu recuperar o respeito dos demais.
– Não deixe que isso o perturbe.
– Mas Basza, é minha reputação!
– E desde quando você se importa com o que os outros dizem? Você não
costuma dizer que os outros destruidores são somente vermes insolentes?
– Eu nunca disse isso!
– Mas você pensa. Eu tenho acesso aos seus pensamentos.
– Eu concordo que muitos destruidores são fracos, mas nem o construtor
mais forte chega aos pés deles. Eu tenho orgulho do meu povo.
– Disso eu sei. Você está entre os mais fortes de sua idade. Mas não
consegue alcançar o nível dos adultos.
– Basza, eu vou morrer antes de virar adulto. E dificilmente terei a sorte de
Mia e entrar para a SS cedo.
– Isso não foi sorte. Peça para que ela seja sua mestra de magia. Assim, ela
poderá te mostrar o que falta em você para ser membro.
– Eu não quero minha rival como mestre! Irei superá–la por meus próprios
meios.
Naquele dia eu estava com um pouco de febre. Eu me sentia mal quando
Basza devorava mais uma parte do meu corpo. Era uma simbiose extremamente
desejável, mas que gerava efeitos colaterais.
Tracei um selo na areia com um galho. Depois, fiz com que o selo flutuasse
no ar e enrolei–o no braço.
– O que são os deuses, Basza? Os magos tecnológicos não me metem medo,
mas esses outros bastardos me incomodam. Qual é a deles?
– Parece que os destruidores adultos se comunicam com os deuses nas
montanhas, acessando os outros planos.
– Os deuses vivem em Samerre, correto?
– Sim, mas lá vivem mais sacerdotes e poucos deuses. Um número muito
seleto de indivíduos completa o processo para se tornar deus.
– Diga a verdade: eles são mais fortes que nós.
– Sassa, ela é... uma deusa.
Eu levei um susto ao ouvir isso.
– Ela não é de nosso povo?
– Destruidora de corpo, mas deusa de espírito.
– Ela descobriu alguma coisa. O que ela descobriu?
Naquele dia eu escalei a montanha. Sem parar. Caiu a noite e eu não
descansei. Continuei subindo, ferindo minhas mãos. E, quando me senti fraco e
completamente sem energias, uma nova força nasceu em mim.

206
Fábula dos Gênios

O sangue que escorria tinha gosto de mel. A dor que eu sentia era como o
manjar dos deuses.
Até que, finalmente, cheguei ao topo. E desabei no chão.
– Madame Soma...
Eu disse isso e desmaiei. Acordei alguns segundos depois.
– Tolo! Que faz aqui? O acesso a esse local é proibido!
Quem disse isso foi uma das discípulas de Soma. Ele trajava o manto
marrom da SS, tinha profundos olhos castanhos e mechas amarelas. Mas Soma
foi até lá para me ver.
– Sablerie, seu pai não vai gostar quando souber disso.
– Não me importo. Eu... queria saber sobre os deuses. Eles são mais
poderosos que nós?
– O que vai fazer se souber que eles são mais poderosos? Pretende viajar até
Samerre?
Eu não sabia o que eu faria com aquela informação. Mas eu precisava saber.
– Esqueça minha pergunta. Quem são os mais sábios? Nós ou eles?
– São diferentes caminhos para o mesmo objetivo. Não há melhor ou pior.
Aqui nós realizamos atividades mais fortes com o corpo para atingir a mente. Lá,
eles apenas deixam o corpo para trás.
– Eu não entendo. Que isso significa? Eu quero entender!
Senti lágrimas nos olhos. Eu ia morrer sem saber. Soma não ia liberar meu
acesso à sociedade. E se os deuses e os destruidores possuíam poder equivalente,
eu queria estar com meu povo.
Mas Soma era rigorosa apesar do seu sorriso. Ela não ia ceder. E, no fundo,
eu desejava que fosse assim. Senão, não seria um desafio.
Ela tinha um grimório na mão. Não era o GGM.
O grimório. Eu não consegui ver o nome.
Tive que partir. Eu não poderia participar de um encontro da sociedade.
Se houvesse outro caminho. Uma última alternativa.
E, como magia, ela chegou a mim: a construtora.
Desajeitada, fraca, mal educada. Era totalmente o oposto de Sassa.
Mas eu precisava dela. Do corpo dela. Eu iria usá–la e depois nunca mais
nos veríamos.
Eu descobri que os construtores eram criaturas escandalosas e superficiais.
Preocupavam–se demais em enfeitar o corpo e o cérebro permanecia vazio.
Além do mais, eu não via nenhum atrativo em todas aquelas roupas coloridas e
enfeites artificiais. Eu achava muito mais belo a lama cobrindo o manto, as
mãos e o rosto, prova de que o destruidor havia se entregado a práticas fortes.
Claro, também havia os destruidores idiotas que maltratavam o corpo
demais sem nenhum resultado e esses também eram grandes imbecis. Eles não

207
Wanju Duli

sabiam que o poder estava na mente e não no corpo. No fundo, não importa
tanto o que ocorre com o corpo lá fora, contanto que seja encontrado um meio
de tornar a emoção a ponte que conecta a mente e o espírito.
Adiantava explicar isso para a construtora? Ela parecia estúpida demais.
Sinceramente, eu tinha pena do gênio dela, que por causa da burrice da dona
tinha se tornado outra mula.
– Eu ainda não entendo pra que você precisa de tanto poder.
– Eu já te contei o motivo.
– Você é tão bobo...
Eu podia ser bobo por desejar lutas de crianças, mas ela era ainda pior que
eu por perder tempo numa universidade idiota fingindo que aprendia magia. Ela
só estava se enchendo de teoria inútil com pouquíssima possibilidade de
aplicação. Em suma, uma perda enorme de tempo. Aquilo não fazia pulsar o
coração. Não era o suficiente para se sentir vivo.
Os jovens destruidores apreciavam fazer o coração acelerar. Os destruidores
adultos desejavam diminuir o ritmo das batidas. Enquanto os tolos deixavam o
coração à deriva.
– Que papo é esse de coração? É seu gênio maligno que pulsa no seu peito?
– Eu mesmo pulso com meu corpo inteiro. Esse é o motor propulsor que
faz o espírito quebrar as dimensões.
Eu até tentei selar minha ligação com a construtora, mas ela era muito fresca
e não colaborou. Por isso, eu me irritei e desisti dessa palhaçada.
Quem não gostou muito foi meu pai.
– Vocês, jovens, adoram brincar com a vida. Amam fingir que não se
importam. Gostam das guerras, ou querem matar a si mesmos. Vocês se sentem
fortes fazendo isso. Porque são idiotas! Por isso é tão fácil manipulá–los. São
previsíveis, rasos como um pires. Não ligam para a vida ou para o mundo.
Como se estivessem sozinhos nele! Você tem família, infeliz! Eu sou seu pai, seu
grande imbecil. Eu te dei essa vida e não permito que se desfaça dela.
O que eu mais gosto no meu pai é que ele é bem direto. Sincero, diz as
coisas que deseja sem medir palavras. E ele tem um bom direto de direita. Ele
raramente usa magia para bater em mim. Segundo ele, usa o murro em quem
deseja punir e magia em quem quer matar. Poucos que viram meu pai usar
magia já escaparam vivos. Eu mesmo só vi uma vez. Ele inclusive matou minha
mãe com magia. Depois ele vem fazer esse discurso sobre família...
Como minha mãe já tinha morrido, ele não poderia ter outro filho. Então, se
ele me perdesse ficaria sem ninguém. Ele não tinha muitos amigos também. Era
uma pessoa complicada. Provavelmente puxei isso dele. Até deixei minha
ligação à beira da morte em nosso primeiro confronto.
E lá estava eu indo atrás de Nhahia outra vez.

208
Fábula dos Gênios

Quando ela me beijou pela primeira vez, senti algo diferente. Resolvi ignorar.
Mas em nossa primeira transa, se tornou muito claro para mim: eu gostava dela.
Ao mesmo tempo, eu sentia a necessidade de odiá–la somente porque ela
era uma construtora. Eu só precisava dela viva por mais nove meses. Depois
disso, daria a ela uma bela morte. Era somente questão de quem trairia o outro
primeiro.
Mas, pensando bem... os construtores eram tão ingênuos. Ela já parecia
apaixonada por mim. Ia confiar em mim. Não era inevitável?
Então, pensando assim, será que eu poderia confiar nela? Quem cederia
primeiro?
No segundo dia, resolvi começar a ceder.
– Sablerie, você quer ficar com ela?
– Eu não sei, Basza, estou confuso. Sinto que ela só iria atrapalhar meu
treinamento e me fazer perder tempo. Assim, eu não seria o mais forte.
Mas será que eu ainda precisava ser o mais forte? Eu não precisava apenas
ser feliz?
De repente, eu entendi o que o meu pai quis dizer. Ele provavelmente tinha
se arrependido de ter matado minha mãe. E não queria me perder.
Eu estava prestes a cometer o mesmo erro.
– Vou deixá–la viver. Talvez eu precise dela no futuro. Quando eu descobrir
que a felicidade não está no poder...
Mas ela errou antes. Matou–me antes.
Selou meu poder por um segundo. Mas eu era o senhor do tempo. Eu
comandava as dimensões.
O problema foi que ela usou uma técnica do GGM. Ela misturou tudo. Eu
estava pronto a me defender contra técnicas determinadas, não contra quimeras
de magias mal feitas. Foi isso que estragou tudo e não o poder dela. A magia de
Nhahia foi tão bizarra e combinada porcamente, que meu escudo não se
encaixou no ataque dela.
Mas eu ainda tinha poder sobre meu próprio gênio. Eu ERA meu gênio e
não meu corpo. Ela poderia destruir o meu corpo, mas no meu espírito ela não
tocaria.
Eu era somente um escudo de mim mesmo. Aquele corpo não era meu. Eu
era muito mais que isso.
“Meu desejo final será a maldição do GGM. Eu quero que essa vadia morra
no parto e o bebê vá junto com ela! Não quero nenhum vestígio do corpo da
construtora nesse universo”.
– Você ainda tem o seu segundo desejo.
– Inversão.

209
Wanju Duli

Não consegui mais segurar a dimensão do tempo. Que ela destruísse meu
corpo, se isso lhe dava prazer.
Ela era apenas uma estúpida, como imaginei. Uma maga medíocre. Que
desfrutasse de sua falsa vitória.
“Logo chegará a sua hora, construtora miserável...”

– Já me decidi. Esse será o meu desejo.


– Você tem certeza?
– Claro que não.
– Puxa, Tchei, tente pensar um pouco antes de uma decisão séria como essa.
Você é tão descuidado...
– Até meu gênio zomba de mim. Por quê?
– Concentre–se no seu desejo agora. Depois você filosofa sobre essa
questão.
– Então você confirmou o que eu disse. Eu sou um idiota?
– Ai, ai... apenas escolha isso, OK? Se deixar muito em cima da hora vai
acabar perdendo seu primeiro desejo.
– Então tá. Eu quero ter o poder de ficar surdo quando estão falando mal de
mim.
– Por que desperdiçar seu desejo nisso? Não basta tapar os ouvidos? Além
do mais, você vai ficar surdo pelo resto da sua vida desse jeito.
– Você é tão má, Dada... nesse caso, vou escrever um monte de desejos
aleatórios em papéis. Vou tirar um e só você lerá para realizar.
– Nossa, que coisa mais tosca...
Escrevi uns vinte desejos e tirei um dos papéis. Dada perdeu sua cauda.
– E então...?
– Parabéns, você ganhou o poder de ligar a televisão sem controle remoto.
– Nossa, que bom, isso é muito útil. Como eu tenho sorte!
– Você tá falando sério?
– Sim, por quê?
– Nada.
No começo foi bom. Eu podia até zapear a televisão com a mente. Na
verdade eu nem assistia TV, mas eu achava muito divertido conseguir ligá–la
sem controle, porque isso é tão radical.
O problema foi que minha mente ficou meio descontrolada e eu comecei a
ligar e a desligar aparelhos das pessoas sem querer, como celulares. Então eu
desejei me livrar desse poder.

210
Fábula dos Gênios

– Dada, está chato, não quero mais. Vou usar meu segundo desejo para que
eu volte a ser como era.
– Por que você está brincando com algo tão sério?
– Mas eu não estou brincando. Eu só estou confuso.
Eu usei meu segundo desejo para voltar ao normal. Dada virou uma bolinha.
– Agora quero usar meu terceiro desejo para amarrar os cadarços dos tênis
sem usar as mãos. Eu nunca consigo amarrar meus cadarços direito.
– Tchei, você só pode usar seu último desejo no momento da morte. Você
não tem mais desejos.
– Então será que eu devo cometer suicídio agora para poder amarrar meus
tênis?
– NÃO!
Eu achava a vida muito confusa e difícil. Como a Varra era minha ligação e
eu confiava nela, contei para ela o que fiz com meus dois primeiros desejos.
– AHAHAHA, QUE MANÉ! Você queimou seus dois primeiros desejos
sendo um completo imbecil! Nossa, como você é retardado! Tchei, eu nunca
conheci alguém tão idiota como você. Que burro! Jumento, mulaaaa! I–DI–O–
TAAAA!
E ela continuou me xingando e rindo.
Eu... eu fiquei triste...
Quando ela finalmente se cansou de rir de mim e foi embora, eu conversei
com Dada.
– Eu gosto de Varra, ela é minha ligação e minha companheira. Mas ela riu
de mim...
– Ela não presta, Tchei, você não tá vendo? Você não precisa gostar dela só
porque vai ter que fazer um bebê com ela.
– Mas, mas...
– Essa sua autocomiseração é tão... entediante.
– Agora você falou exatamente como Varra. Ninguém gosta de mim. OK,
OK, já parei... A partir de agora serei um cara super confiante. Vou me
encontrar com Varra agora com um skate e um cigarro na mão.
– Você é uma criança, não pode fumar.
– Eu só vou fingir, Dada. Eu nem sei andar de skate também, que diferença
faz? Já sei! Vou enrolar um cigarro com capim dentro.
Fui me encontrar com Varra. Mas assim que a avistei, meu coração bateu
mais forte e levei um tombo do skate.
– O que você tá fazendo, seu ridículo? Está tentando parecer um palhaço
outra vez?
– Bom dia, Varra. Ou melhor, boa tarde. Ou... hmm... eu só vim te contar
que agora sou um novo homem.

211
Wanju Duli

– Você já foi um homem alguma vez, Tchei? Duvido muito.


– Eu queria te dizer que eu sou um homem e você é uma mulher. E nós dois
somos ligação, então... eu queria te pedir em casamento!
Eu fiquei muito nervoso com esse pedido, mas disfarcei. Nós dois tínhamos
onze anos, mas eu falei sério. Até coloquei um dos joelhos no chão, como um
cavalheiro.
Mas Varra apenas desatou a rir.
– Esse foi o pedido de casamento mais... escroto que eu já vi. Você acha
mesmo que eu me casaria com alguém tão insignificante? Pelo menos tire esse
cigarro de... orégano da boca, ou seja lá o que tiver aí dentro. Isso só faz com
que seu patético eu se torne mais digno de pena.
– Ah... desculpe...
Tirei o cigarro da boca e baixei os olhos. Eu sentia que as lágrimas viriam a
qualquer momento.
– Que está fazendo na minha frente ainda? Saia daqui! Tenho mais o que
fazer.
– Varra, se eu me tornar um grande mago, você vai gostar de mim?
– É impossível que eu goste de você. Você devia ter usado seu primeiro
desejo para dar um jeito nesse seu cabelo que parece uma espiga de milho.
– Se eu arrumar o meu cabelo você vai me amar?
– Só se, além disso, você tivesse usado seu segundo desejo pra ficar mudo. E
seu último desejo para se matar outra vez antes de morrer!
– Tchei, chega! Saia daqui. Pare de se humilhar. Você está apenas
satisfazendo a vontade dela.
– Mas eu quero satisfazê–la, Dada. Porque eu gosto dela...
– Se gosta de mim, então me traga uma limonada, pois estou com calor. E
também algo para me abanar.
– Certo. Volto já.
Eu fui para casa preparar uma limonada.
– Pare com isso! Apenas pare!
– Eu quero ser bondoso e prestativo com todos, Dada. Especialmente com
quem amo. Eu entendo que a busca da bondade é uma forma de tornar minha
magia forte. Mas não faço isso pelo poder, e sim porque acho certo ser bom...
mas eu acho que sou desajeitado até para ser bondoso.
– Eu não sei o que dizer. Seja gentil se quiser, mas não se humilhe, por favor.
Aquela garota é uma idiota!
– Ela é minha ligação, não seja rude com Varra.
– E você ainda a defende? Me desculpe, Tchei, mas isso não é bondade. É
burrice. Se você tiver um bom coração, mas o cérebro de um jumento, você

212
Fábula dos Gênios

nunca vai passar de um tolo ingênuo. Será usado, pisado. Isso não é amor, cara!
Você está apenas tentando se proteger, por medo.
– Hmm... é mesmo? Mas agora a limonada ficou pronta e seria um
desperdício jogá–la fora. Vou levar para ela.
– Não faça isso. Dê para um mendigo na rua, não para Varra! Será um ato
muito mais bondoso.
Eu não a escutei. Levei a limonada para Varra. Mas, chegando lá, ela
derramou–a na minha cabeça.
– Isso vai dar um jeito no seu cabelo horroroso. Você não ia me abanar?
– Me desculpe, Varra, mas não irei mais obedecê–la.
– É isso aí!
– Por que não? Resolveu virar um grosso, um mal educado?
– Você está me maltratando e isso é errado. Então não vou incentivar isso.
– Certo e errado são pontos de vista, assim como o bem e o mal. Depende
da situação.
– Não posso concordar com o que você disse. Ou melhor, eu sei que há algo
de errado na sua afirmação, mas não consigo encontrar o erro...
– Se não pode me refutar, eu ganhei. Agora me abane.
– Eu descobri o erro. Não sei explicar racionalmente, mas eu sinto que isso
é errado. Meu coração me diz que nós devemos nos separar.
– Tchei, seu estúpido... nós nunca estivemos juntos. Quem está me
perturbando é você. Saia logo, assim ficarei feliz.
– Varra...
– Sim? Diga logo e suma.
– Eu não quero mais ser sua ligação.
– Ah, que alívio! Não vou precisar mais me unir a você. Mas, seu tolo, se um
dia eu mudar de ideia quem vai decidir sou eu.
– Varra, seus cadarços estão amarrados.
– Eu sei disso. Diferente de você, sei amarrar meus tênis.
– Olhe de novo.
Ela olhou para baixo. Os cadarços dos tênis dela estavam completamente
embaraçados um no outro e também enrolados no banco em que ela estava
sentada.
– Quem diria que você conseguiria fazer alguma magia, hein? Eu sei que
você treinou muito para conseguir fazer isso.
Mas Varra ficou irada. Ela me fitava como se quisesse me matar! Ainda bem
que não fiz nada nas preciosas trancinhas dela, senão no segundo seguinte eu
estaria morto.
Mesmo assim, ela me segurou pelo braço e tacou fogo nele.
– Não!!

213
Wanju Duli

Eu estava gritando enquanto pegava fogo, atirando–me na terra, tentando


me livrar da chama. Até que eu consegui apagá–la. Eu não tinha me dado conta
que bastava tirar o casaco... mas até Dada me avisar isso, meu braço direito
tinha sofrido uma queimadura severa.
– Você é um verme, Tchei. Só um verme.
– Por que faz isso comigo?
– Porque me satisfaz.
– Queime os cabelos dela!
– Eu fico feliz quando você também fica. Mas se sua felicidade está em me
machucar, então... você quer que eu morra?
– Eu quero.
Tirei do bolso uma faca e coloquei nas mãos dela.
– Mate–me, acabe com meu sofrimento e fique feliz. Eu iria tirar minha vida
de qualquer jeito se você recusasse meu pedido de casamento, então...
Mas nesse instante Varra ficou confusa.
– Cara... eu me pergunto até que ponto você pode ser um lixo de pessoa.
Hoje superou seus limites. Parabéns.
Ela guardou a faca no interior das vestes e me abraçou. Meu coração parecia
que ia sair pela boca.
– Não vou deixar contigo essa coisa perigosa. Meu, não te mata. Eu preciso
de ti vivo pra gente se unir.
– Então você quer se unir comigo?
– Não, eu só quero ficar viva. Mas pra isso eu preciso de você vivo também,
então é bom sobreviver.
Ela foi embora. Eu não entendi nada.
– Isso foi uma declaração de amor esquisita, mas não se engane. Ela vai
gostar de você somente enquanto for conveniente para ela.
– Então ela me ama mesmo? Que fantástico! Dada, acho que estou
apaixonado!
– Você só ouviu a primeira parte do que eu disse, não é?
Decidi que na guerra eu iria mostrar para Varra que eu era um cara muito
forte. Assim ela ia me amar ainda mais e derreter de paixão!
Só que eu morri... e doeu.
Meu corpo se foi. E Dada foi roubada, antes mesmo que eu fizesse meu
desejo final. Estranhamente, eu conseguia ouvir tudo através dela, embora eu
não fosse capaz de dizer nada. Eu não sabia exatamente onde estava e o que
ocorria.
Quando eu acordei, estava acorrentado numa cela. Meu corpo estava no
lugar de novo, mas todo deformado e costurado. Afinal, tinham arrancado meus
pedaços.

214
Fábula dos Gênios

– Onde estou?
Eu não entendia aquele idioma. Era tudo muito estranho.
– Esta ser princesa dos destruidores. Você ser prisioneiro.
– Eu quero meu gênio de volta. Preciso dele para viver...
– Seu gênio ser impressionante. Estar carregado de amor. Substância
estranha. Destruidores fazer testes. Mestra suprema estar interessada.
– Então meu gênio é poderoso?
– Você ser pessoa com mais potencial para usar seu gênio estranho. Nem
mestra suprema saber como usar. Ela dizer que você ser tão ingênuo que gênio
do construtor tornar–se inutilizável.
– Então meu gênio se tornou ao mesmo tempo forte e fraco por causa da
minha bondade?
– Algo assim. Gênio ter potencial de poder, mas enfraquecer muito por
causa de seu coração que ser grande, mas frágil como vidro. Você, com
treinamento, poder obter sabedoria para direcionar esse poder e fortalecer
coragem em seu coração.
– Ah, então vocês são os destruidores!
A princesa e o outro se entreolharam. Falaram alguma coisa e riram.
– Eu dizer isso em minha primeira frase, idiota! Não ver meu manto ou ser
cego?
– Não posso aceitar propostas de destruidores! Vocês são maus!
– Você não ser bom? Então nós ser mau?
– Oh, tem razão. Devo ser educado com todos. Perdão, senhor destruidor.
Eu sei que você matou toda minha família e meus amigos, mas eu amo vocês.
– Esse cara não girar bem de cabeça. Como pessoa como essa ter gênio
forte? Eu não entender. Mestra suprema estar interessada em construtor tolo.
Mas mestra suprema sábia, então ela certa.
Os dois saíram e logo retornaram com uma terceira pessoa mais alta. Essa
terceira não tinha capuz, era careca e usava um manto completamente marrom.
Eu fiquei a sós com ela. Conversaria comigo por trás das grades.
– Boa noite, construtor. Tenho a posse do seu gênio nesse instante e devo
dizer que ele chamou minha atenção. Gostaria de tê–lo de volta?
Aquela pessoa me meteu um pouco de medo. Senti que ela era diferente dos
outros dois.
– Você é uma destruidora também?
– Eu sou e não sou. Isso será complicado de entender agora. Por enquanto,
confirmo sua pergunta e aguardo a resposta da minha.
– Quero meu gênio mais que tudo. Dada é minha razão de viver. Está
sempre comigo e com ela nunca fico sozinho. Está sendo insuportável encarar a
solidão sem minha melhor amiga.

215
Wanju Duli

– Eu tenho uma proposta para te fazer. Devolverei teu gênio e permitirei


que viva, contanto que suba comigo para as montanhas.
Naquele momento, eu não sabia a quem eu me dirigia. E eu cometi o erro de
recusar a proposta.
– Estou com medo. Dizem que quando os destruidores sobem para as
montanhas, matam uns aos outros e se devoram.
Eram apenas lendas, mas...
– Repense. Te darei algum tempo.
E ela se retirou. Mas aquele tempo foi muito mais longo do que imaginei.
Muitos anos se passaram. Ela não retornava. Eu estava preparado a aceitar
qualquer proposta, contanto que me tirassem daquele lugar.
Naquele período, a única coisa em que eu conseguia pensar era em fortalecer
meu coração. Eu decidi que se algum gênio maligno decidisse devorá–lo, meu
coração estaria forte e protegido.
Aquilo era uma bobagem. Eu nem sabia como os destruidores usavam suas
magias. E, para ser sincero, eu mal conhecia a magia do meu próprio povo. Eu
apenas me apoiava em superstições e lendas.
Mas, apesar de nada saber, eu quis me agarrar ao meu único resquício de
esperança: o amor. Decidi pensar em Varra e nos meus amigos. Pensava em
Dada. Fantasiava um mundo com construtores e destruidores vivendo juntos
em harmonia e conseguia achar paz.
Pensei que era aquilo que poderia me dar forças para me manter vivo. Sem
saber, com isso fortaleci minha alma.
Até que um dia eu vi... Varra.
Eu devia estar sonhando. Mas só podia ser ela! Eu a reconheceria em
qualquer parte do mundo, não importava quantos anos se passassem.
– E aí, babaca? Eu vim, tipo, te salvar, saca?
– É você mesma, Varra...!
– Não, eu sou sua mãe, retardado. É claro que sou eu. Quem mais seria tão
incrível?
Varra estava incrível mesmo. Ela não usava mais duas trancinhas. Os cabelos
dela estavam bem longos, amarrados numa única trança alta. Usava uma calça
jeans, tênis e uma blusinha.
Ela retirou do bolso da calça algumas cartas. Com uma delas rompeu
facilmente a tranca da cela e abriu.
– Esses destruidores não dão a mínima para seus prisioneiros. Parece que
desejam que fujam. Já devem ter percebido que entrei no país deles também e
nem ligaram. Somos mosquinhas aos olhos deles. Então vamos aproveitar para
escapar, antes que eu me canse, mude de ideia e vá embora sem você.
– Quantos anos se passaram? Estou perdido!

216
Fábula dos Gênios

– Sete anos. Estamos com 18 anos, você e eu. Bilubelei já veio aqui resgatar
Wakwa. Nhahia também veio se vingar do cara que arrancou as pernas dela. Eu
já estava cansada de fugir como uma covarde, então como eu não estava
fazendo nada, resolvi dar uma passada por aqui. Estou surpresa de ver seu
corpo inteiro, embora meio recortado...
– Os destruidores fizeram a gentileza de reunir as partes do meu corpo de
novo.
– Depois de terem arrancado elas. Eles são muito gentis, Tchei. Vejo que
continua imbecil como sempre.
Ela se aproximou para retirar minhas correntes.
– Sete anos se passaram, então? Você mudou, Varra. E, ao mesmo tempo, é
a mesma. Está ainda mais bonita, se me permite dizer. Seu corpo está tão
diferente e... diferente.
Não deixei de reparar no peito dela. É claro que ela captou meu olhar, pois
eu fui indiscreto.
Ela me deu um tapa na cara.
– Nossa, me desculpe! Dessa vez eu mereci, fiz uma coisa muito errada. Eu
não sei nem como pedir perdão. Não vou mais olhar, eu prometo.
Mas dessa vez ela deu um sorriso malicioso.
– Então o Tchei não está mais tão bobinho como antes. Hmmm...!
– Eu fiz algo ruim. Sinto muito...
– Você não fez algo ruim. Eu adorei. E você também. Eu sei que você quer
pegar neles.
Varra segurou minha mão e passou–a nos seios dela. Meu coração quase
parou.
“Primeiro ela me deu um tapa na cara e agora isso... eu não entendo as
mulheres! E a Dada não está aqui para me ajudar numa hora dessas!”
– Nós somos ligação. Eu só vim aqui pegar seus genes. Não vou te salvar.
Vamos fazer isso rápido antes que os destruidores cheguem.
Ela colocou a mão por baixo do meu manto, tateando nas minhas pernas em
busca de alguma coisa. Eu logo entendi o que ela queria e fiz um movimento
involuntário me afastando dela.
– Não, espera, calma...! Eu não tô preparado.
Ela ficou furiosa.
– Eu vou te dar dois segundos! Respire fundo e faça tudo o que eu mandar,
OUVIU?!
– Masmasmas Varra! Vamos sair daqui primeiro!
Não deu tempo. A princesa chegou para arrancar Varra de lá. Ela parecia
muito zangada. Segurou Varra pelos cabelos e deu um tapa nela. Depois, usou
uma magia que a fez desmaiar.

217
Wanju Duli

– Varra! Não! Você a matou...?


Mas a destruidora apenas se retirou, levando Varra. Eu não soube de nada
até o fim do dia.
Finalmente, aquela destruidora careca retornou. Depois de tantos anos. Ela
já não parecia tão alta como eu me lembrava.
– Não se preocupe com sua amiga. Ela será expulsa do país, mas não será
tocada.
– A princesa já bateu nela...
– Ela acordará num barco no meio do oceano. Não precisamos dela. Mas
você tem valor. Fortaleci muito seu gênio durante todos esses anos. Se seu
coração estiver preparado, o treinamento será iniciado.
– Eu aceito.
Afinal, eu não tinha escolha.
Um processo extraordinário seria feito. Eu ainda não estava ciente dele.
Logo, um dos destruidores veio reclamar da minha admissão na sociedade
secreta deles. Foi só nesse instante que descobri que eu era um privilegiado. Eu
seria parte de algo maior. Por que eu?
– Eu decidi isso. Sei o que estou fazendo. Eu vou transformar seu amor em
poder.

– Wakwa... você está acordado?


– Estou. Eu ia dizer que você me acordou com sua pergunta, mas seria
muito rude de minha parte.
– Tem razão. Ainda bem que você não disse.
Eu abri as cortinas. Wakwa apertou os olhos com a luz que entrou pela
janela.
– Vamos conversar?
– Posso tomar café da manhã primeiro?
– Claro.
Ele levantou–se e trouxe da cozinha uma tigela de cereais com leite. Sentou–
se na cama novamente para comer.
– De que animal é esse leite?
– Não sei. Há bichos realmente bizarros nesse país. E nem te conto do que
são feitos os cereais.
– Parecem deliciosos. Imagino que tenha flores com casca de jabuti aí dentro.
– Eu realmente aprecio a conversa sobre culinária, mas podemos conversar
o outro assunto enquanto como. Sobre o que você queria falar?

218
Fábula dos Gênios

– Não é nada importante. Só acho que deveríamos transar hoje, para dar
tempo de eu ganhar o bebê antes de participarmos da guerra do Cromo.
Wakwa se engasgou com o cereal.
– Mas assim, de repente?
– Como você queria que fosse?
– Tem razão, de repente é melhor.
Comecei a desabotoar a blusa.
– Ah... Bilubelei, posso terminar de comer antes?
– Claro, fique à vontade.
– De repente, eu perdi a fome. Vamos fazer isso, então.
Ele colocou a tigela na mesa de cabeceira. Segurou–me pela cintura e
sentou–me na cama. Sem que eu tirasse completamente a blusa, ele colocou a
mão dentro dela.
– Hm... isso está certo?
Ele tirou a mão.
– Me desculpe. Você quer fazer de outro jeito?
– Queria mexer em você também, se não se importar...
– Por favor, vá em frente. Podemos fazer os dois ao mesmo tempo.
Aquilo estava tão formal e artificial que eu não via meios de dar certo.
– Ou talvez devêssemos fazer apenas o estritamente necessário. Nem
precisamos olhar o corpo um do outro.
– Eu gostaria de ver o seu corpo.
– Não me entenda errado. Eu também tenho curiosidade para ver o seu. Eu
estava sugerindo isso em respeito a você...
– Wakwa, se não está a fim apenas diga.
– Eu não estou com vontade. Perdão.
– Não precisa se desculpar.
Eu me retirei do quarto. Não me senti ofendida. Talvez ele apenas precisasse
de um tempo.
Mas quando eu saí, percebi que eu estava com o cheiro dele em mim. Aquilo
me fez ter um desejo estranho, de uma forma que eu não pude compreender.
Eu fui até o jardim e deitei–me no meio das flores. Havia até borboletas.
Senti o cheiro da terra. Aquilo me cativava, me preenchia.
– Como se sente?
– Desaprendeu a ler meus pensamentos, Iopera?
– Eu consigo ler, mas queria ouvir de você. Continua misteriosa como
sempre, até mesmo para mim.
– Eu me sinto tranquila. Em paz. Só estou levemente preocupada com essa
minha missão com Wakwa. Mas quero acreditar que ele irá ceder.

219
Wanju Duli

Alguns dias se passaram. Wakwa não falou mais comigo sobre o assunto.
Decidi dar um tempo para ele.
Toda manhã eu me deitava no jardim das flores azuis e das borboletas
prateadas. E eu lia um livro. Para mim aquilo era o paraíso: poder desvendar
mundos fantásticos nas histórias lendo em meio à natureza! Era como estar num
belo mundo dentro de outro.
– É um livro de magia?
Wakwa sentou–se na grama ao meu lado.
– Sim, magia dos livreiros. É extraordinário. Recomendo que leia um dia.
Esse é o meu preferido. Já li umas vinte vezes.
– É mesmo? Leia–me uma passagem.
– “E o dia sorria, com seus dentes de nuvens e leite. Ainda era uma criança.
Não conhecia a vida, mas conhecia o céu. Não temia perder a manhã, pois sabia
que a mãe noite viria para pentear os seus cabelos, desembaraçando o vento dos
seus fios de desejo pela alvorada”.
– Bem poético e leve. Como você usa isso para a magia?
Uma flor azul como o firmamento brotou diante de nós.
– Assim. A força da passagem atinge uma emoção minha. Dessa vez foi a
ternura.
– Você é capaz de criar a vida com o poder das palavras. Você é uma mãe
nata, Bilubelei. E os seus cabelos são feitos de quê? De nuvens e estrelas?
Ele passou a mão nos meus cabelos, retirando algumas folhas que se
prenderam. E continuou a mexer nas minhas mechas negras.
Eu não senti vergonha quando ele passou as mãos nos meus seios naquele
dia. Mas confesso que, por uma razão desconhecida, senti embaraço quando ele
tocou nos meus cabelos, tão docemente.
– Assim, escuros, os seus cabelos se parecem com o céu da noite. Ou com o
universo. E as folhinhas presas a eles são os planetas. As flores são supernovas.
Ele colocou na minha mão a flor que encontrou nos meus cabelos
embaraçados. Eu aceitei e dei um leve sorriso.
– Eu raramente te vejo sorrir, Sábia dos Lábios Selados.
– Parece–me que você quebrou o selo dos meus lábios.
E trocamos um beijo. Foi algo muito delicado no começo. Depois, um
pouco mais intenso e apaixonado.
Sentei–me na grama. Ele desabotoou a minha blusa com cuidado. Abriu o
fecho do meu sutiã. Tirei a blusa dele também. Ele beijou–me no pescoço,
enquanto retirava minha saia.
E assim fomos tirando as peças de roupa um do outro, até não restar nada.
Foi algo tão natural como deveria ser. Até parecia que éramos namorados.

220
Fábula dos Gênios

Quando ele me penetrou, enquanto me beijava, eu senti um tipo de


comunhão especial com a natureza. Eu realizava o propósito animal da minha
existência.
Foi muito melhor do que nos livros. Muito mais mágico. Repleto de suor,
calor e odores delirantes. E, em meio a tudo isso, eu me sentia protegida pela
terra sob meu corpo e pelo vento que soprava.
Quando terminamos, ficamos os dois deitados na terra, abraçados.
Maravilhoso como um sonho. Perfeito como o mundo.
Afinal, havia um pouco de conto de fadas na realidade. Mesmo se esses
momentos fossem breves, valeria a pena toda uma vida de dor apenas para fazer
parte daquele instante.
– Eu sou um príncipe. Você ainda se lembra, certo? Mesmo que não haja
mais um reino para mim, essa é minha condição de nascimento. Como se sente
ao ter a honra de deitar–se comigo?
– Você quer mesmo se gabar estando todo sujo de terra? Isso não pega bem
para alguém da realeza!
Ele retirou a terra dos cabelos e eu ri. Ele encantou–se com meu riso.
– Bilubelei, você é incrível, sabia? Não somente sua exótica e atrente pele
negra e seus longos cabelos ondulados. Além da sua inteligência e da sua magia,
eu descobri o que mais gosto em você: seu sorriso. Esses dentes brancos em
contraste com a pele negra é o tesouro mais precioso do mundo.
– Parece que, além de arrogante, esse príncipe está apaixonado. Vossa Alteza
se esqueceu que íamos somente fazer sexo e depois nos separarmos, para que
cada um seguisse seu destino?
– Tem razão. Eu me deixei levar por meu papel nesse teatro. Que agora cada
um tenha a sua vida e realize seus sonhos.
Ele levantou–se. E assim concluiu–se a nossa missão: apenas o sexo, com
amor por um breve instante. Ora, eu interrompi a quase declaração dele. Se ele
tivesse me pedido em namoro, eu pensaria no assunto. O inverso
provavelmente também era verdadeiro.
Mas simplesmente não aconteceu, porque não era para acontecer.
Quando ele levantou–se, vi uma última vez o corpo dele. Ele também olhou
para o meu corpo deitado em meio às flores, com cabelos esparramados.
Eu senti–me feliz, pois mesmo não tendo contato corporal com Wakwa nos
meses seguintes, ele era um grande amigo. Estava por perto para auxiliar–me no
que eu precisasse.
Quando eu já estava perto de ganhar o bebê, começamos a nos movimentar
para reunir o pessoal. Nos comunicamos com Cromo pela internet.

MOMO: Vá até Samerre pegar Nhahia e deixe a covarde da Varra para trás.

221
Wanju Duli

BILU: Pensei que Nhanha estivesse em Sinabil.


MOMO: Minhas fontes dizem que não.
BILU: Está bem, não vou questionar as suas fontes. Se o mundo inteiro me
afirmasse uma coisa e você me dissesse outra, eu ainda acreditaria em você.
Onde está agora?
MOMO: Tecraxei. Já reuni a galera daqui.
BILU: Beleza. Eu e Wakwa vamos buscar Nhanha. Ela só terá mais um ano
de vida, então temos que fazer isso logo. E, pensando bem, você também...
MOMO: Não se importem comigo e façam o que deve ser feito.

Eu e Wakwa viajamos para o país das religiões. Não seria muito difícil
encontrar Nhahia, pois era um país pequeno.
O primeiro sacerdote para quem pedimos informações já sabia de seu
paradeiro. Nós a encontramos dentro de um templo. Porém, o que vi me
surpreendeu.
– Nhanha, você está grávida...?
Ela levantou–se, muito feliz em me ver, e abraçou–me.
– E você também está! Parabéns para os dois. Fez um bom trabalho, Wakwa.
– Nhahia, sem querer ser indelicado, mas o que significa isso? Sua ligação
não tinha morrido na guerra? Você descobriu que um dos construtores vivos era
sua ligação?
– A situação é ainda mais complicada do que você pensa, Wakwa. Ela
nasceu sem ligação.
– Ah, agora me lembro. Você me revelou isso no dia da guerra. Então...
você descobriu uma magia para quebrar essa condição? No GGM? Ou em
outro grimório?
– Isso não pode ser quebrado. Não com esse corpo.
Estávamos perplexos e somente Nhahia poderia esclarecer aquela grande
confusão.
– Eu desvendei o mistério dos construtores sem ligação.
– E qual é a solução desse mistério? Vocês podem colocar um filho em si
mesmos, como uma autofecundação?
Ela riu.
– Que ideia maluca é essa? Você acha que eu sou uma planta? A resposta é
mais simples do que você imagina. Os chamados “construtores sem ligação” na
verdade têm ligação com os destruidores.
Eu quase caí para trás com essa informação. Wakwa também abriu a boca e
não fechou mais.
– Não. Você não fez isso.

222
Fábula dos Gênios

– Qual é o problema? Eu apenas roubei o sêmen dele e depois o matei. Eu


não fui a namoradinha dele nem nada parecido. Não entenda mal!
– Isso não interessa! Você não entende o quão grave é essa... abominação
que você realizou?
– Sablerie está certo, os construtores são muito conservadores e frescos. Eu
fodi com ele, e daí? Eu gostei. E serviu para meus propósitos.
– Cala a boca, Nhahia! Você sabe até o nome do infeliz? Do cara que
arrancou suas pernas e destruiu nosso povo!
– Eu já disse que o matei, está bem? Então pare com esse drama. Eu queria
salvar minha vida.
– Você fala como se tivesse muito orgulho do que fez. Diz em tom de
brincadeira. Todos nós estávamos prontos para morrer naquele dia. Ganhamos
somente alguns anos a mais e vamos voltar lá para acabar com isso de uma vez
por todas. Pela nossa honra! Você desgraçou a nossa honra, da pior forma
possível.
– Blablabla, corta essa, Wawa! Você sempre foi tão largado com sua
condição de príncipe e agora quer bancar o moralista?
– Não me julgue pelas minhas vestes. Eu não estou defendendo meu povo
porque sou príncipe e sim porque sou um construtor. Você tem o nosso sangue
nas veias!
– E também temos sangue de destruidores! Eu conversei com o autor do
GGM, que é o pai da minha ligação. Ele me contou que um dia construtores e
destruidores foram o mesmo povo. Que os construtores trataram os
destruidores como lixo. E...
– Eu SEI de tudo isso, Nhahia. Eu sou o maldito príncipe, estudei essas
coisas que vocês não sabem. Mas isso não justifica. Não estou dizendo que os
destruidores são maus. Não estou afirmando que eles não tiveram suas razões
para fazer o que fizeram. Mas isso foi uma desgraça para nós e queremos nos
vingar. Se você retornar para a história da criação de nosso planeta e geração da
vida, descobrirá que inicialmente éramos todos descendentes da mesma
substância. E daí? Estou preocupado com o presente e não com o passado.
– Ah, então você sempre soube e não fez nada a respeito! O rei queria nos
alienar? E você está preocupado com o passado sim. A diferença é que estou
olhando para um passado de centenas de anos e você para o passado de nove
anos atrás.
– Eu estou olhando para a época em que vivo.
– Você devia se envergonhar. Eu não tenho palavras para expressar o
quanto estou chocada. Pelo que lutamos? Pelo que morreremos? De repente,
você destruiu tudo isso. Você não é diferente dos destruidores. Merecia morrer
com eles.

223
Wanju Duli

– Você é minha contraparte! Vai me matar? Você poderia se surpreender em


ver como fiquei forte. Veja só a belezinha que tenho comigo.
Ela mostrou a nós o GGM, com muito orgulho. Eu peguei o livro das mãos
dela e lancei–o no chão.
– Conseguiu o autógrafo do papai da sua ligação? Os construtores não ligam
mais para o GGM. Nós iremos derrotá–los com a magia de nosso povo
misturada com a de outros povos.
– Eu topo morrer com vocês nessa guerra. Parece divertido. Apenas não
condenem meus atos. Eu fiz o que devia fazer. Não tive escolha.
– Com licença, mas vá se ferrar, Nhahia! Todo mundo tem uma escolha.
Nem que seja entre a vida e a morte. Parece–me que dessa vez você fez a
escolha errada. Será odiada tanto pelos destruidores como pelos construtores.
Está feliz? Era isso o que queria? E com esse bastardo no ventre a situação será
espinhosa pra seu lado. A não ser que o mate depois que nascer.
– Se você o matar, iremos aceitá–la na guerra do nosso lado. Se mantiver o
bebê, vá chorar para os destruidores te aceitarem. Ou fuja para longe da nossa
vista e torça para não ser encontrada.
– Vocês viraram loucos fanáticos? Querem assassinar um bebê?
– Não seja ingênua. Ele terá sangue de destruidor. E não de gerações atrás.
Terá o sangue do pai dele. Você sabe bem no que ele irá se tornar.
– Os destruidores não são monstros. Eu só estou viva até agora porque
Sablerie poupou minha vida.
– Obviamente ele tinha interesse nisso, porque também queria viver! Estou
cansada dessa conversa. Eu e Wakwa vamos sair daqui e espalhar a história da
sua traição entre todos os construtores. Sorte sua que os deuses te acolheram.
Os outros povos detestam os destruidores e não vão te deixar passear
livremente pelas ruas com seu filhinho depois que a fofoca rolar.
– Eu não me importo com esses preconceituosos. Eles não detestam os
destruidores e sim os temem. Poderei caminhar por onde quiser, sem ser
incomodada. Eu não temerei meia dúzia de vocês ou a ira dos destruidores.
Afinal, eu tenho comigo o neto do autor do GGM!
– É bom sentir o poder mesmo quando ele vem às custas de trair seus
amigos? Deixo essa questão para reflexão. Adeus, Nhahia. Espero não te ver
nunca mais se eu sair viva dessa.
– Meu filho poderia unir os povos novamente.
– Boa piada! HAHAHA! Os destruidores não falaram em união quando nos
massacraram. Nós responderemos na mesma moeda.
Eu estava furiosa com Nhahia. Talvez eu tivesse sido muito dura nas minhas
palavras, mas ela precisava ouvir aquilo. Ela sempre foi assim, impulsiva, desde a
primeira vez que usou o seu desejo para pintar os cabelos de rosa somente para

224
Fábula dos Gênios

copiar o Yym. Daquela vez nós a defendemos, mas ela não esperava que
fôssemos lhe passar a mão na cabeça a cada besteira absurda que fizesse.
– Ah, o Yym estará conosco na guerra. Ele está vivo. Pena que você trocou
seu cavalheiro de cabelos azuis por um destruidor sujo e maltrapilho.
– Eu não escolhi isso! Você também não escolheu foder com Wakwa, mas
teve que comer o pau dele porque isso foi determinado por nascimento. Era seu
destino!
– Olha o respeito, Nhahia. Não me diga que aprendeu a xingar com os
destruidores?
– Sim, sou fluente em dezkazil agora.
– Vamos embora, Bilubelei. Essa daí trocou a criação pela destruição e não
tem mais volta.
Saímos de lá, antes de ouvirmos mais profanações. Eu não me importava de
ser preconceituosa em relação aos destruidores, porque eu não somente perdi
um braço por causa deles. Wakwa foi aprisionado por muitos anos; minha
ligação. E muitos morreram. Nhahia não queria enxergar isso. Ela queria brincar
com a seriedade do mundo.
“Isso não é um jogo, Nhanha. Jogue o quanto aguentar. No final, você vai
olhar para trás e contemplar a verdade que perdeu. E será tarde demais para
alcançá–la”.
Estava na hora de reunir os sobreviventes e deixar Nhahia para trás. No
meio disso tudo, até Varra já não parecia uma traidora assim tão grande. Por
isso, decidimos chamá–la.

BILU: Momo, gostaria de saber o paradeiro de uma pessoa.


MOMO: Varra está em Crava. Pode colocá–la no time. Estou tão chocado
com a história de Nhahia que mal consigo encontrar palavras para expressar a
minha fúria.
BILU: É um prazer ter um eficiente telepata digital como você. Estamos nos
dirigindo imediatamente para lá. Já somos poucos, então precisamos reunir o
máximo de construtores possível, para aguentarmos vivos pelo menos alguns
segundos assim que pisarmos em Consmam.
MOMO: Minhas fontes informam que a sociedade secreta dos destruidores
moveu–se para Desmei.
BILU: Quê?!
MOMO: Eles sabem que vamos atacá–los, mas não estão preocupados em
enviar os caras mais fortes para batalhar. Estão zombando de nós. Não ligue.
Isso até facilitará as coisas. Mostraremos a eles que somos uma ameaça muito
mais terrível. E vão ter que chamar a sociedade secreta, que atuará contra a
nossa.

225
Wanju Duli

BILU: Nós temos uma sociedade secreta?


MOMO: Resquício dos alunos de Jins e Jinas. Sobreviveu uma moça de lá.
Depois te passo os detalhes. Já te adianto que será fascinante.

Nós nos movemos para o país da divinação para buscar Varra. Ela pareceu
bem contente com nossa confiança.
– Vocês são irritantes, sabiam? Primeiro me acusam de covarde e traidora.
Agora pensam que irei acompanhá–los assim que precisam de ajuda? Ora,
podem ter certeza que vou!
– É esse o espírito, Varra. Vamos recuperar o gênio de Tchei.
– Eu fiz a viagem para Consmam há dois anos e vi Tchei. Ele está
aprisionado.
– Ele está vivo...?! Minha contraparte está viva?
– Calma, não se exalte ainda, Vossa Alteza. O corpo dele estava em pedaços.
Os destruidores o costuraram de qualquer jeito para suas experiências macabras.
Duvido que ele ainda esteja vivo. Suponho que tenham arrancado a alma do
corpo dele e colocado em outro lugar.
– Droga! Não podemos mais nos demorar. A partir de agora essa será uma
missão não somente para nos vingarmos, mas para resgatarmos Tchei e o gênio
dele.
A próxima parada seria em Tecraxei, para nos encontrarmos com Cromo,
Yym, a garota de Jinas e todos os outros construtores sobreviventes. O ponto
de encontro era esse. E, de lá, embarcaríamos direto para Consmam, com um
navio só nosso.
Cromo estava todo misterioso, com uma espécie de máscara. Não
conseguíamos ver bem o rosto dele.
– Pensei que você estava numa cadeira de rodas e só conseguia se comunicar
por aparelhos.
– Não mais. Aprendi algumas magias muito interessantes. Na batalha vocês
saberão.
A voz também estava estranha. Grave, mas num tom arrastado e esquisito.
Seria por falta de uso?
Yym tinha somente metade dos cabelos com tinta azul. A outra metade era
negra. Isso significava que ele já havia utilizado a primeira parte da magia na
nossa guerra. Dessa vez, iria finalmente utilizar a explosão. Aquilo certamente
mataria pelo menos um destruidor, se fosse usado no momento correto.
“Nhahia usou isso”. Era a conclusão mais óbvia. Mas ela não teria tanto
controle como Yym. Se ela matou um destruidor poderoso, certamente havia
algo mais por trás disso.

226
Fábula dos Gênios

Ao todo éramos trinta e nove. Mais gente do que o esperado. Eu não sabia
se Cromo havia localizado todos, mas eu confiava nele.
Viajamos somente dois meses depois, quando arrumamos todos os
preparativos e eu ganhei o bebê. Eu deixei meu filho com conhecidos de Cromo
em Tecraxei. Não importava onde fôssemos, Cromo tinha contatos e
informantes em todas as partes.
Foi muito emocionante nossa viagem de navio. Levaríamos um longo tempo
para chegar. Em vez de estarmos tensos, comemorávamos. Fazíamos festa!
Afinal, éramos sobreviventes! Estávamos indo para a morte, mas que importava?
Esse era só um detalhe, que adicionava mais emoção à aventura.
Cromo era o líder e coordenava a todos, realizando os planejamentos. Ele
tinha um mapa na mão e dizia muitas coisas complicadas sobre planos de
batalha. No fundo nem tínhamos um planejamento consistente, mas fazer
aquilo tornava a coisa toda muito mais importante.
– Garanto que ainda sou mais poderoso que você, Cromo. Treinei muito
por todos esses anos.
– Isso nós ainda veremos, senhor Yym...
E, finalmente, lá estava a moça de Jinas, ostentando seu uniforme e vestindo
as duas meias coloridas nos pés. No pé direito havia uma meia amarela e no pé
esquerdo uma verde.
– Senhoras e senhores, na universidade de Jinas e Jins temos uma sociedade
secreta muito famosa. Provavelmente a mais poderosa entre o nosso povo. E
digo isso no presente! Sim, meus amigos, pois enquanto um construtor membro
estiver vivo, essa sociedade sobreviverá! E agora eu passarei a vocês alguns
segredos, mas não todos. Afinal, ainda haverá vida depois da guerra!
– Vida depois da guerra!!!
Exclamávamos em uníssono em meio ao fervoroso discurso da moça que
permanecia em cima de uma plataforma clamando com ardor e paixão.
– Digo isso porque não tenho mais medo. A época de temer terminou! Na
primeira guerra, alguns de nós éramos crianças, adolescentes. Agora somos
adultos e aguentamos certas verdades sem mijar nas calças! Então, por que
meias de cores diferentes, vocês me perguntam? Não importa se caia a
tempestade ou o frio gele nossos dedos. Faremos nossa própria estrela de fogo
para aquecer nossos pés cansados. Pois é esse o peso de um andarilho da
verdade e da magia: temos nosso próprio caminho. Ele não é igual ao de
ninguém. Ele é somente nosso, costurado por nós. Mesmo com remendos mal
feitos, eu não temo! O caminho é meu e eu o amo!
Muitas palmas. A moça tirou um dos sapatos, mostrando, orgulhosa, como
havia costurado sua meia com poucas habilidades. Ainda assim, fez o melhor
possível.

227
Wanju Duli

– Somos construtores! Criadores dos nossos caminhos e objetivos. Nossa


sociedade secreta se chama: Fábula dos Gênios: Arcano Vida Brilhante! Essa é
nossa fábula, a nossa história. Será escrita somente por nós, do início ao fim.
Com orgulho, com alegria, com vontade! Desvendando a verdade do nosso
coração em chamas, cheio de desejos, pois esse pulso ainda pulsa! Os
destruidores, aqueles que mataram sua imaginação, vivem como zumbis, com
fantasmas devorando seus corações, suas almas, suas existências. Mas eu sou um
construtor e grito: “EU ESTOU VIVO”!
– EU ESTOU VIVO!!
– O nosso grimório “Arcano Vida Brilhante”, AVB, é o grimório mais
poderoso de nosso povo! Alguns de vocês tiveram contato somente com o GG
nas escolas. Os nossos universitários conhecem o AVB. Mas mesmo que não
tenham tido a honra de ler suas linhas, eu peço que a força dos nossos livros
permaneça em seus espíritos. A Fagenar Vinri é nosso segredo. Os tolos não
enxergam essa força, porque olham somente para formas e poder e se esquecem
da sabedoria. Só possuem olhos para o conhecido e mensurável. Eles nos
temem, porque somos NOVOS, OUSADOS e de POTENCIAL
IMENSURÁVEL!! FV para a vitória! FV PARA A VIDA E PARA A MORTE!
Porque não importa o resultado lá fora ou o que eles digam; seremos sempre
vencedores em nossos corações!
Aplausos, gritos, enlouquecimento geral! Todos vestiram suas meias
coloridas e cantaram, beberam, dançaram.
E assim viajamos, repletos de confiança e muito fogo!
Eu bebi tanto que até dei um beijo na boca de Wakwa, num momento de
descontrole. Os construtores adoraram isso, pois essa era uma celebração da
força de nosso povo, o que incluía nossas ligações. Houve muitos berros e vivas
com aquele beijo.
Demorou para nos acalmarmos. No fundo, não queríamos nos acalmar.
Como a viagem demorava mais de um dia, ainda dormimos. Mas acordamos
com ainda mais poder. A bebida que provamos tinha álcool, mas também era
uma poção mágica. Por isso, teríamos ainda mais vigor para a batalha.
Finalmente, desembarcamos. Alguns destruidores já nos aguardavam no
porto e pareciam muito despreocupados.
– Ainda podem recuar, pobres tolos. A vingança é um fruto podre e infinito.
Provamos desse fruto e gostamos. Para vocês, que apreciam somente a vida,
não terá o mesmo sabor.
– Jamais voltaremos. Se assim for, nessa terra repousará o meu cadáver. Mas
não moverei os pés sem levar a cabeça de um destruidor nos braços. Uma
cabeça para cada construtor aqui presente!
– Tente.

228
Fábula dos Gênios

– Papaza!
– Neva!
– Iopera!
– Kamul!
– Lerolil!
Foi fabuloso ter a oportunidade incrível de enxergar os gênios dos meus
amigos. Kamul, o gênio de Yym, era um impressionante espetáculo. E Lerolil, o
gênio da moça de Jinas, também era de deixar qualquer um boquiaberto.
Em pouco tempo, havia dezenas de gênios de construtores pelos ares. Mas
os gênios malignos dos poucos destruidores que ali nos aguardavam derrubaram
nossa confiança.
Eles eram imensos! Imponentes, simplesmente brilhantes...!
– Não se deixem enganar pela forma, construtores! Vocês podem derrubá–
los!
Eles queriam nos intimidar. E conseguiram, pois cinco construtores
morreram na hora, somente no momento em que um dos gênios malignos
cortou o céu, tocando nos gênios deles.
Então eu entendi com clareza: “vamos todos morrer”.
Havia somente cinco destruidores. Eles iriam nos trucidar antes que
realizássemos o primeiro movimento.
– “Eis que ri e gritei ao mesmo tempo: eu vivo, eu morro e ressuscito.
Somente eu. Tu ficarás no chão!”
Minha magia de livros era lenta demais. O destruidor desviou–se facilmente
da rachadura que fiz no chão. Nem mesmo amassou a capa dele.
As cartas de Varra também não tinham muito efeito e serviam mais para
defesa. Por isso, em vez de atacar, ela espalhou as cartas no chão e criou um
escudo para nos proteger.
Só que um dos destruidores simplesmente pisou nas cartas dela, destruindo
o escudo.
Wakwa, de pé, concentrou–se. Enquanto isso, Cromo digitava algo
rapidamente em seu computador. Fortificou a barreira criada por Varra e eles
não conseguiram mais passar pelos segundos seguintes.
Cromo era forte. Mas essa segunda barreira também foi quebrada. Ora, não
havíamos ido lá somente para brincar de esconde–esconde. Precisávamos...
morrer logo, pois seria complicadíssimo atacar.
Quando chegou um destruidor trajando marrom, a maioria dos construtores
gritou. Eles provavelmente sabiam o que aquilo significava.
Aquele destruidor fez as cartas de Varra virarem papel.
– SS...! Afastem–se todos! Deixem esse cara para mim e para Yym!

229
Wanju Duli

Era como se Cromo desejasse que certa pessoa estivesse por baixo daquele
manto. Atacou–o com vontade. Ele digitava rapidamente nos computadores
acoplados em seus braços.
Mas não era quem ele esperava. A pessoa por baixo daquela capa não era tão
habilidosa assim e demorou para quebrar a magia de Cromo. Ainda assim, era
impressionante.
Quando chegou um segundo destruidor de marrom, eu entendi com clareza
que não era mais questão de alguém conseguir escapar vivo de lá. Apenas
podíamos esperar a morte, mais ligeira ou mais lenta.
Esse segundo membro da SS que chegou depois, matou mais dez de nós.
Assim, de repente. E sem usar o gênio! Ele fez aquilo somente com selos
multidimensionais, que saíram rolando pelo ar. Os construtores gritavam.
Esse segundo destruidor baixou o capuz marrom. Era uma moça de cabelos
negros. Ela deu um empurrão no outro membro da SS. O capuz dela caiu. Era
uma moça loira de olhos castanhos. A moça morena parecia estar xingando a
outra por não estar pegando pesado na batalha. Embora eu não entendesse o
que elas diziam, ficou claro pela situação.
– Essas senhoritas estão escondendo algo tão sublime quanto eu. Mostrem–
se!
Ele também disse isso em dezkazil. E, logo depois, chamou seu gênio. Ele
clamou algo que me impressionou:
– Cromo!
Um gênio roxo repleto de aparatos tecnológicos foi evocado sob um
símbolo especial.
Cromo tirou a máscara. Não era mais ele ali embaixo: era uma garota! Muito
parecida com Cromo, com olhos e cabelos pretos, além dos óculos retangulares.
Decidiu não difarçar mais a voz:
– Meu nome é Owmaq, antigo gênio de Cromo. A líder da SS, madame
Sassa Soma, deixou o corpo do meu antigo mestre num estado à beira da morte.
Por isso, Cromo decidiu realizar a espetacular magia da Inversão, que possui sua
versão no GG e no GGM. Busco Sassa para matá–la. E também exigimos que
libertem nosso companheiro Tchei!
Quando ouviu isso, a moça de cabelos negros da SS desatou a rir. Ela falou
em nosso idioma:
– Você é muito engraçado, seu pseudo mago tecnológico! Ou maga, que seja!
Sassa é uma deusa, literalmente falando. E o amigo de vocês, chamado Tchei,
está mais perto de vocês do que imaginam...
Aquela destruidora evocou seu gênio, pronunciando um nome que não soou
estranho aos meus ouvidos:
– Sablerie!

230
Fábula dos Gênios

E um gigantesco gênio negro surgiu. Depois foi a vez da moça loira chamar
o seu:
– Tchei!
Um imponente gênio mostarda apareceu. Eu estava impressionada. Todos
estávamos.
– E os traidores estão por todos os lados! Primeiro Varra fugiu da batalha.
Depois Nhahia fez um filho com um destruidor. E agora chegamos à traição
máxima: Tchei nos atacando. O próximo construtor que surgir matará um de
nós, eu me pergunto?
Yym estava visivelmente irado, certamente perguntando–se em qual dos
desgraçados destruidores ele usaria a magia de fios. Naquele instante, Tchei
parecia um excelente candidato.
– Espere, Yym! Ainda não sabemos se Tchei foi forçado a isso.
– Sinto informar, senhorita Bilubelei, mas meu mestre Tchei aceitou ser
treinado pelos destruidores por sua livre vontade. Eu sou Dada, antigo gênio de
Tchei. Ele foi aprisionado durante todos esses anos e sofreu muito. Ninguém
veio salvá–lo, então ele achou um meio de viver. Aquele que pretende julgá–lo
ou condendá–lo, será meu adversário. Não ataquei a sério nenhum de vocês
ainda, mas eu posso fazê–lo se assim o desejarem.
Eu não sabia como responder a isso. Wakwa também demorou para ser
salvo, mas não passou para o lado dos destruidores. O que ele teria a dizer para
a moça de cabelos amarelos?
– Tchei... ou Dada. Essa explicação não é justificável. Mas, ao mesmo tempo,
perdi a vontade de te atacar. Decida logo se deseja ficar do lado deles ou do
nosso.
Antes que Dada dissesse qualquer coisa, a moça morena adiantou–se:
– Antes de mais nada, sinto que devo apresentar–me. Sou Basza, gênio de
Sablerie. Foi meu mestre quem teve um filho com a construtora Nhahia. Ele era
também o filho de Vlebre Cazka, autor do GGM. Senhor Yym, devo dizer que é
um desprazer conhecê–lo. Nhahia falou muito bem de você, o que despertou
minha antipatia imediata.
– Eu não tenho nenhuma relação com essa traidora.
– Oh? Excelente. Então tente usar seu gênio contra o meu. Veremos se
sobrevive pelo próximo segundo.
Quando os dois estavam prestes a se atacar, chegou um destruidor de
cabelos negros, trajando as vestes tradicionais verdes com tiras marrons,
interrompendo a briga.
Os destruidores presentes reconheceram imediatamente aquele manto.
Basza ficou irada:
– Você! Maldito seja...!

231
Wanju Duli

– É um enorme prazer conhecê–la finalmente, senhorita Basza! Quero dizer,


em forma humana. Meu nome é Bapsi, um cara muito bacana. Meu gênio é
particularmente famoso: Nhahia!
E o gênio cor–de–rosa foi evocado. Nesse instante, eu fiquei tão perdida
que minha respiração falhou.
– Que é isso, caras, não briguem... somos todos amigos aqui, não é mesmo?
Essa guerra não tem fim?
Basza avançou até Bapsi e segurou–o pelas vestes, irada:
– Devolva meu manto, MALDITO BASTARDO!!
– Calma, querida. Esse manto nem é seu, é de seu mestre. E foi conquistado
por Nhahia por direito.
– Direito? DIREITO?! O direito de usar uma magia mal feita e ter sorte?
Não me faça gargalhar a ponto de passar mal, me engasgar e dar murros no
chão! Tire essas roupas agora, ou estraçalho sua alma!
– Bem, essa parece uma ameaça real. Mas eu não vou ficar nu assim, sem
mais nem menos. Seria muito rude com as moças aqui presentes, incluindo a
senhorita.
– E que tal se eu arrancar sua pele junto com o manto? Será ainda mais
embaraçoso e, arrisco dizer, ligeiramente doloroso, estar em carne viva.
Bapsi apontou para uma das tiras de couro no próprio manto:
– Está vendo essa tira aqui? É nova. É um pedaço da pele de Sablerie, que
Nhahia arrancou para aumentar a coleção...
Basza deu um chute no estômago de Bapsi, que caiu no chão.
– Estamos levando tão a sério esse confronto com vocês que os adultos
nem vieram hoje... Nhede, mande esse lixo para fora do nosso país. Chute–os
de volta para o porto num navio, para que não tenhamos que matá–los todos
pela milésima vez. Não nos incomodem mais, insetos! Afinal, o que vocês
querem? Ainda brincar de vingança? Exigem sua terra de volta? Ou é o seu
amigo que vieram buscar? Se for o caso, levem–no embora e se mandem!
– Essa é uma pergunta bastante relevante. Digamos, a questão mais razoável
que você nos colocou hoje. Tchei poderá escolher se ficará conosco ou com
vocês. Voltarei em outra ocasião para conversar a sós com Sassa; não
exatamente em termos amigáveis. Não pretendo matar aqueles que restam de
nosso povo somente por um capricho meu. Entendemos a diferença de poderes.
Mas já aviso que esse não será o fim. Dada, pronuncie–se, por gentileza.
– Voltarei com vocês.
Aquilo me surpreendeu um pouco, mas fiquei feliz. Abracei Dada quando
ela veio para nosso lado. Agora que Tchei estava como menina eu podia abraçá–
la. Já Wakwa, cumprimentou–a com um aceno de cabeça, mesmo ela sendo sua

232
Fábula dos Gênios

contraparte. E Varra... ela ficou bem perdida, pensando no que fazer. Dada
tentou abraçá–la, mas Varra não gostou e afastou–a para longe.
Isso tudo me fez pensar que talvez eu tivessse sido dura demais com Nhahia.
– Nhahia, eu...
– Eu fico.
– Sinto muito pelo que eu disse antes. Eu te julguei, mas não entendo como
você sofreu. Por favor, retorne com a gente.
– Bilubelei, minha decisão já está feita. E a de Nhahia também.
Estávamos tão distraídos conversando, que eu não reparei quando Yym
partiu para cima de Basza. Segurou nas vestes dela e ativou a magia dos fios em
modo máximo.
Todos levamos um susto! Ele provavelmente entendeu que Basza era a
destruidora mais perigosa ali presente. Ele não aceitaria que partíssemos em paz
depois de termos perdido quinze dos nossos. Ele queria pelo menos matar um
destruidor.
Mas ele falhou na tentativa. Basza protegeu–se. E jogou Yym no chão
depois disso.
– Você acha mesmo que sou tola o suficiente para cair no mesmo truque
duas vezes? Depois da minha primeira morte do corpo, eu aprendi a me
defender desse brinquedinho dos construtores.
– E mesmo se eu te matasse, bastaria você usar a Inversão de novo, hã?
– Essa magia só pode ser usada uma única vez. Que tipo de imbecil você é
que não sabe disso?
– Basza, eu...
O destruidor chamado Nhede havia sido atingido pela explosão de Yym e
perdeu um braço.
– Parabéns, construtores, a viagem de vocês valeu a pena: arrancaram um
braço dos nossos. Podem levar o braço para fritar e comer. Esse será o troféu
de vocês. Enquanto isso, faremos um novo braço para Nhede mais facilmente
do que costuraríamos uma boneca de pano. Agora, saiam daqui! Não aguento
mais fitar os corpos nojentos de vocês, com essas meias... que raios é isso, afinal?
Basza lançou o braço na nossa direção.
– Estou certa de que uma pessoa inteligente como você já ouviu falar na
mais famosa sociedade secreta dos construtores.
– Ah, sim, a Fagenar Vibri. Vocês acham que eu levo isso a sério? Pois eu
declaro que nesse instante, sob testemunha de todos aqui presentes nessa
ocasião auspiciosa, fundo a nova sociedade secreta dos destruidores tendo a
mim como líder: Fagemal Armor. Fábula dos Gênios Malignos: Arcano da
Morte. Encarem isso como uma paródia. Não esqueçam de pegar o braço. E
bom churrasco!

233
Wanju Duli

– Eu te conheço muito bem, Basza, pois você é igualzinha ao Sablerie. Você


vai levar isso a sério.
– Pretende mesmo continuar aqui na nossa terra, maldito intruso?
– Sobre isso, eu gostaria de conversar... em particular.

..Quando acordei, era como se eu despertasse de um sonho. Ou pesadelo.


– Onde estou...?
– Eu usei a Inversão, lembra–se, Bapsi? Agora você virou humano e eu sou
o seu gênio. No fundo, não fará tanta diferença, já que sempre compartilhamos
pensamentos. Somos praticamente a mesma pessoa. Alguma diferença de
personalidade, somente. E agora terei o privilégio de perscrutar todos os seus
pensamentos, da mesma forma que você fazia comigo!
Eu ainda me sentia um pouco tonto. Provavelmente ainda me encontrava no
país dos deuses, mas num local mais afastado. Estávamos somente eu e Nhahia
naquele lugar. Nhahia havia perdido seu corpo, então talvez fosse mais
apropriado eu me apresentar para as pessoas como um viajante.
Sentei–me no chão e observei ao redor. Eu estava num pequeno bosque,
onde havia singelos túmulos.
– Parabéns, Nhanha, fizeram uma lápide muito bonita para você, mesmo
depois de tudo o que fez.
– Não é? Eu acho que mereço.
– Então, aparentemente eu despertei com a mesma idade que você tinha
quando morreu: 20. Mesmo assim, será que tenho direito a três desejos? Você
tem cauda longa. Essa magia está certa?
– Sei lá, meu. Eu só li no livrinho como fazer. Descubra o resto. Agora o
mago é você.
Observei meu corpo e notei que eu estava completamente nu.
– Ah, droga. Não posso entrar na cidade desse jeito.
– Você está com vergonha de mim! Não acredito.
Eu ri.
– Claro que não. Por que pensou isso?
– Porque posso ler seus pensamentos, querido.
– Bem, você tem a escolha de não saber o que estou pensando se eu te pedir
para não ler.
– Você acha mesmo que perderei essa oportunidade incrível? Eu não tinha
vergonha de você porque nascemos juntos e sempre vivemos juntos. Mas não se
preocupe, você vai se acostumar rápido.

234
Fábula dos Gênios

– Não estou preocupado com isso. Estou tentando lembrar de uma boa
magia para materializar vestimentas. É melhor lembrar de uma se não quiser que
eu abra seu caixão para roubar suas roupas!
– Nem pensar! Eu te proíbo de encostar no meu antigo eu.
– E aquelas magias estranhas do GGM para ressurreição? O seu corpo está
quase intacto, fora o fato de estar morta...
– É só um pequeno detalhe!
– Talvez eu possa te dar um beijo e te fazer acordar!
– Não estou achando graça nessas brincadeiras. Como eu ia existir sem um
gênio? Não consigo imaginar isso. Se eu acordasse, você não morreria?
– Seria divertido estarmos os dois juntos como humanos. Eu ia poder te
desafiar para um duelo mágico, veja só que fantástico!
– Pare de sonhar, arrume uma roupa e vá logo para a cidade, meu filho!
Consegui materializar roupas tão feias que eu mais parecia um mendigo. Lá
na cidade, retornamos ao templo que Nhahia frequentava. Ela havia deixado o
manto de Sablerie lá e eu o vesti.
– Eu me sinto muito estranho vestindo o manto daquele cara. Não posso
dizer que estou feliz.
– Você acha que ele também usou a Inversão, Bapsi?
– Bastante provável. Que tal viajarmos para Consmam para conferir? E, de
quebra, quem sabe até topemos com a guerra dos seus amigos.
Nhahia gostou da ideia. Então viajamos. Durante a viagem, Nhahia ficou
como gênio no barco. Ela também estava se divertindo com o novo corpo.
– Sinto–me tão livre e leve! É realmente maravilhoso!
– Também estou curtindo esse corpo pesado. É meio esquisito, mas sei que
vou me acostumar.
Quando desembarcamos em Consmam, até que a galera estava calma.
Construtores e destruidores conversando: aí estava algo novo.
– Aquele ali todo metido e discursando é o Sablerie, né? Ou melhor, o gênio
dele, Basza, que pelo visto é idêntico a ele. Vamos lá aumentar o barraco?
– Pode apostar.
Brincamos um pouco por lá. Eu me perguntava como Nhahia se sentia em
ver Yym de novo. Se Sassa era a musa de Sablerie, Yym era o sonho de Nhahia,
mesmo ele sendo um idiota.
– O Yym está atraente como sempre, mas não gostei do que ele falou de
mim. Se bem que o Sablerie já me disse coisas bem piores, então quem disse que
me importo?
Quando os construtores foram embora, fui conversar com Basza.
– Deixe–me adivinhar: você foi estúpido o suficiente para deixar o bebê
morrer.

235
Wanju Duli

– Isso fez parte de sua maldição. Quem é o estúpido agora?


– Nós estamos no limite de tempo. 20 anos! Por que tinha que deixar a
merda do bebê morrer, desgraça? Ele precisava ficar vivo ao menos enquanto
passávamos da fase dos 20 e poucos anos, seu jumento. Essa é a fase crítica.
Depois disso, pode matar o bastardo.
– Posso ver que você daria uma excelente mãe.
Basza me segurou pela gola do manto de novo. Ela adorava fazer isso.
– Escute aqui, senhor palhaço: eu levo minha vida muito a sério. Não estou
a fim de morrer agora.
– Posso observar como você é cuidadosa, depois de suas quase mil batalhas
de vida ou morte junto com Sablerie.
– Você não consegue pronunciar uma única frase que não seja sarcasmo?
– Não.
– Isso foi sarcasmo?
– Sim.
– Isso foi... ah, vai tomar no cu.
– Já que tocou no assunto, se leva a vida tão a sério, isso significa que
preciso colocar um bebê em você. Pode ser agora?
Eu dei alguns passos na direção dela. Ela se afastou.
– Não se atreva! Minha magia é muito mais poderosa que a sua. Eu te
explodiria em pedaços imediatamente.
– Eu já vi esse filme antes. Suas ameaças não me metem medo. Você precisa
de mim, não pode me matar.
– Mas agora serei eu quem carregarei o bebê. Posso te explodir no final da
transa, como Nhahia fez com Sablerie.
– Nhahia se arrependeu do que fez, porque no fundo ela gostava de Sablerie,
embora não admitisse. Ela o fez puramente por orgulho. Você também faria por
esse motivo. E se arrependeria.
– Não vejo nenhum fundamento na sua afirmação.
– Nem eu.
Eu cruzei os braços.
– OK, Basza, escolha onde quer fazer. Estou à sua disposição.
– Na lama, com os porcos.
– Parece ótimo. Vamos lá.
Fomos até uma mata fechada em que havia uma poça de lama. Os porcos
estavam comendo qualquer coisa nas proximidades.
– Então, me conte, Basza: quais são os seus planos para a Fagemal Armor?
Eu posso ser membro?
– Você está realmente com vontade de falar sobre isso agora?

236
Fábula dos Gênios

Ela me deu um longo beijo na boca. Arrancamos as roupas um do outro e


pulamos na lama, numa trepada violenta bufando com os porcos.

FIM

Epílogo

E lá estávamos nós outra vez, no velho cemitério das lápides coloridas.


– Isso é bem nostálgico. Não destruíram esse lugar. A chave que a
sacerdotisa me deu deve abrir o segredo de alguma lápide por aqui...
Cada um dos túmulos continha uma fechadura. Caminhei muito, até
encontrar quem eu queria.
– Brisgrar Valonde.
– Autora do GG.
Encaixei a chave. Foi com o coração aos pulos que vi o título do grimório
empoeirado lá ocultado.
– “Arcano da Morte” .
– Espere. Isso não faz sentido. Eu não veria problemas se a autora do
Grimório dos Gênios fosse a mesma do Arcano Vida Brilhante. O que isso
significa?
– Significa que Vlebre Cazka é o autor do AVB e Brisgrar Valonde é a
autora do AM. O que me leva a concluir que modificaram os nomes dos autores
por alguma razão.
– Não... significa mais que isso.
– Você acha que o pai de Sablerie é um farsante? Não foi ele quem escreveu
o GGM?
– Bapsi, eu estou com um mal pressentimento. Abra esse caixão.
Eu cavei. Aquilo foi dureza! Precisei de uma pá, mas deu mais trabalho do
que eu imaginava. Por fim, quebrei o caixão com magia.
– Está vazio.

237
Wanju Duli

Fábula dos Gênios: Volume 2

Capítulo 1: O Prazer é Meu

Eu estou com problemas.


Fui admitida numa universidade na qual estudam as moças mais ricas e
metidas do país. E por que eu vim para cá, você me pergunta? Porque eu quero
ficar forte.
Nunca mais quero que digam que sou fraca. Mas aqui dentro eu me sinto
como uma formiga. E insegura como nunca. Temo caminhar por esses
corredores.
– Pensei que você era otimista, Rupa.
– Eu sou, Loro. Mas estou aqui com bolsa de estudos. Isso não é bem visto.
– Pelo contrário. Significa que você tirou notas boas o suficiente para ser
contemplada com uma bolsa.
– Não é bem isso que significa. Eu vim de um dos piores colégios de
Consman: Paunim. E estou dois anos atrasada.
– Pare de se preocupar. Logo você irá fazer amigas.
Eu suspirei. Aquele era recém o primeiro dia de aula. Talvez eu estivesse me
preocupando demais. Mas eu só recebia olhares frios pelos corredores.
– Será que elas conseguem ver através de minha alma e perceber que sou
burra e pobre?
– Você está paranóica. Afinal, por que algo assim estaria inscrito na sua
alma?
– Cara... eu vou me ferrar muito.
Elas eram tão elegantes. Tão poderosas. Os sapatos brilhavam. As meias
alvas e perfeitas. Os vestidos impecáveis em tom branco e azul claro.
Olhei para mim mesma. Meu vestido estava meio amarrotado. Minhas meias
não estavam assim tão brancas. E quando olhei para meus pés, escondi o rosto
com as mãos.
– Droga!
Tive que correr até os armários. Guardei meus sapatos pretos lá e calcei os
brancos. Aquilo era norma. Dentro das dependências do prédio da universidade
eu só podia usar os brancos. No pátio, os pretos.
– Senhorita.

238
Fábula dos Gênios

Eu me virei. Deparei–me com uma das visões mais estonteantes da minha


vida.
Os cabelos dela tinham cachos perfeitos. Tocavam seus ombros, mas a parte
da franja era mais longa, repleto de graciosos caracóis. Algumas mechas do
cabelo dela eram azuis e outras cor–de–rosa.
Eram somente essas as cores do cabelo: azul e rosa. Como, pelos céus, ela
havia obtido um feito como aquele? Aquilo somente mostrava seu grande poder.
A TF era bem clara: somente uma cor poderia ser escolhida. Caso houvesse
duas cores no cabelo, uma delas era a original. Não havia como o rosa ou o azul
ser uma das cores naturais dos cabelos dela!
Eu precisava começar a me acostumar com aquela grande loucura: na
universidade de Jinas eu me depararia com bizarrices que superavam e muito o
meu conhecimento do Grimório dos Gênios e das demais magias que aprendi
no tempo de colégio. Aquilo tudo não era mais magia básica. Era melhor que eu
esquecesse tudo o que eu sabia.
Ela tinha bochechas rosadas. Rosto redondo. Era belíssima! Seu olhar era
frio e assustador.
– Não corra nos corredores. Isso não é correto.
E, após proferir essas palavras, a moça linda retirou–se. Eu simplesmente
não conseguia tirar os olhos dela.
– Apaixonou–se?
– Eu me apaixonei por aquele cabelo. Quero os cabelos dela para mim.
– Eu sabia que você ia dizer isso...
Mas não era só isso. Aquela garota era perfeita! Será que aquele lugar estava
cheio de meninas como ela? Que sonho!
– Meninas mal educadas como ela?
– Pare de ler meus pensamentos! Eu me referia à beleza.
– Não posso evitar. De que adianta ela ser bonita se é tão arrogante?
– A pasta que ela carregava era um mimo!
– As pastas são padronizadas. Qual a diferença da dela para a sua?
– A dela tinha um chaveiro maravilhoso. Era o chaveiro de um gênio!
– Fascinante. Então você se apaixonou pelo chaveiro. Tem certeza de que
veio até aqui para estudar?
– Absoluta. Quero ser poderosa como ela para fazer aquela magia no cabelo.
– Então é essa a sua motivação?
– Sim, Lorobol. Se não gosta, fica quieto. Imagem é tudo nesse lugar. Eu
preciso ser aceita. E para isso, preciso estar bonita. Esse é o mundo das
mulheres.

239
Wanju Duli

– Esse não é o mundo das mulheres. É o mundo das estudantes de Jinas.


Mas não tire conclusões precipitadas com base em apenas uma aluna que
conheceu. Estou certo de que nem todas estão aqui pelas aparências.
– Sejam os estudantes de Jins ou de Jinas, todos estudam aqui pelas
aparências: pelo status; pelo poder. E, no final das contas, talvez até o poder seja
mais uma aparência idiota.
Eu estava desapontada com tudo aquilo. Comigo mesma. Com meus
pensamentos confusos.
– É Naridana...!
Quando ouvi alguém dizer aquilo, meu coração quase parou. Eu sabia que
não podia correr, mas não vi outra escolha.
Aglomerei–me em meio ao tumulto de garotas que pararam ao pé da escada.
E, com o coração aos pulos, eu a vi.
Sua pele absolutamente negra. Sua imponência. Os longos cabelos negros
em duas tranças. Aquilo não era mágico. Era surreal.
Mas eu só a vi de costas. Não pude contemplar os olhos dela.
– Eu não acredito que você fez isso.
– Todas estão aqui reunidas somente para vê–la. Por que eu não poderia?
– Você tentou espiar a calcinha dela.
Eu corei.
– Estava tentando ver as meias... mas ambas eram brancas! Isso não é
estranho?
Tudo o que eu queria era encontrar uma estudante de meias de cores
diferentes naquele lugar. Mas aparentemente ainda levaria muito tempo até que
aquilo acontecesse. Ora, a presença de Naridana estava me deixando mais
deslumbrada do que uma suposta visão de meias coloridas.
– A famosa Naridana, do GG! Aquela que derrotou Solovro, o destruidor...!
– Todo mundo sabe disso.
– Não ficou impressionado ao vê–la ao vivo?
– Está bem, eu confesso que fiquei. Por que não tenta falar com ela?
– Nem morta! Ela é importante demais. Provavelmente me ignoraria se eu
tentasse. Ah, como um dia eu queria vê–la batalhar! Contra outra estudante bem
forte. Já sei, contra a musa de cabelos azuis e cor–de–rosa!
Eu estava sonhando demais em minhas fantasias.
Mas aquela universidade era realmente extraordinária. Tentei a prova de
admissão por três anos e finalmente fui aprovada na terceira tentativa. Eu me
esforcei tanto porque queria muito pisar lá. Ser parte de tudo aquilo. De um
universo singular.
Aquele era o meu prêmio: contemplar o desfile de beldades; a visão de
Naridana...

240
Fábula dos Gênios

– O seu prêmio será aprender magia avançada.


– Mas todas elas me inspiram para que o meu desejo de ficar mais sábia e
poderosa somente aumente. Elas são meu objetivo. Pois almejo ser como elas.
– Está certo. Agora você me deu um motivo filosófico que justifica seu
fascínio: estar rodeada por elas para que sejam sua motivação para dedicar–se
aos estudos.
– Exato. Você entende rápido. Meu raciocínio é muito mais complexo do
que você pensa. A presença delas é fundamental para meu sucesso.
Mas apesar de eu me vestir como elas, sempre quando eu olhava para mim
mesma eu não via brilho ou magia lá. Até minhas roupas estavam amassadas. Eu
queria ser mais confiante e poder admirar a mim também. Assim um dia eu
poderia ter orgulho de quem eu era. Fitar–me no espelho e ver uma daquelas
alunas fantásticas que eu tanto admirava.
E foi exatamente isso o que fiz: fui até um daqueles banheiros limpos e
cheirosos.
Ajeitei as duas fitas azuis no meu cabelo, no espelho. Mas quando percebi
que a garota azul e rosa também estava lá, se maquiando, eu deixei minha pasta
cair no chão com o susto.
Ela me olhou de novo. Fez isso com certo desprezo. Eu apressei–me em
recolher minha pasta e sair correndo dali.
– Você não pode correr aqui. Já se esqueceu? Não leu o anuário com as
normas?
– Eu li e reli tudo. Até sublinhei com caneta marca–texto as partes mais
importantes.
Tirei da pasta o anuário e mostrei para Lorobol.
– “Não comer no interior do prédio” é a parte mais importante?
– Há um refeitório incrível aqui! Não vejo a hora de conhecê–lo. Desejo que
o intervalo chegue logo.
– São recém seis da manhã e você já está pensando em almoçar? Pensei que
você havia tomado desjejum.
– Eu só tomei leite com mel. E comi um bolinho de pêssego com calda de
caramelo.
Verifiquei as horas novamente. Seis horas e três minutos. Minha primeira
aula só iniciaria às seis e meia. Eu tinha chegado cedo demais, pois estava
ansiosa. Mas aparentemente eu não era a única. Parecia que ninguém queria
correr o risco de se atrasar para a primeira aula.
Resolvi visitar a biblioteca no terceiro andar. Como era gigantesca! As
prateleiras eram muito altas. Eu nem seria capaz de verificar os livros que havia
lá em cima.

241
Wanju Duli

Felizmente, era tudo digitalizado. Eu poderia conferir pelo computador,


buscando por títulos e autores.
Mas eu não sabia o que procurar. Eu não entendia nada sobre grimórios de
magia intermediária e avançada. Por isso, eu somente contemplei as lombadas
de alguns livros, sem saber por onde começar a me encantar.
Nas mesas, as belas estudantes de trajes azuis liam silenciosamente aqueles
grossos volumes. Lindas e inteligentes.
O silêncio mortal da biblioteca incomodou–me enormemente. Resolvi
retirar–me de lá, pois até meus passos eram ouvidos. Quem sabe também o
ritmo de minha respiração.
– Vejo que gostou dos livros, mas somente da parte de fora. Assim como
você só consegue olhar para as meias e cabelos coloridos das mocinhas. Quando
começar o estudo pesado, você não vai suportar sequer uma semana.
– Loro, por que ainda não vi ninguém de meias coloridas?
– Sei lá. Você escutou alguma coisa que eu disse?
– Eu acho que preciso de uma pulseira. Uma daquelas que as garotas usam,
em que cada pedrinha é uma letra do Alfabeto de Além Terra. Já viu uma
dessas?
– Sim, no pulso de sua musa mal educada.
Eu bocejei. Era melhor eu ir logo para a minha sala. Olhei no mapa para
tentar encontrar, mas eu me perdi.
– Eu não acredito que você acordou às cinco da manhã hoje e ainda vai
conseguir chegar atrasada para a sua aula que é às seis e meia. Sendo que o seu
dormitório fica no campus, há poucos metros daqui.
– Seja útil e use alguma magia para localizar minha sala em vez de reclamar.
Tente atravessar as paredes.
– Me desculpe, Tirupa, mas não posso sair de perto de você. Não sou como
um gênio maligno que possui poderes sobrenaturais de romper as dimensões e
estar em vários lugares ao mesmo tempo.
Localizei minha sala faltando dois minutos para a aula começar. Minha mesa
também já estava marcada com meu nome e sobrenome. Eu esperava conseguir
fazer amizade com as calouras, já que as veteranas eram tão assustadoras.
Mas, pensando bem, as calouras me metiam um pouco de medo também.
Pareciam bem respeitáveis.
E quando a professora entrou, eu quase me escondi embaixo da mesa,
tamanho poder mágico que emanava dela. Eu até fiquei surpresa por conseguir
sentir. Eu não costumava ser tão receptiva assim a energias.
– Bom dia. Sejam bem–vindas à melhor universidade do país: Jinas. Espero
que se orgulhem por serem alunas dessa instituição superior. Vocês foram
selecionadas numa prova difícil envolvendo um elevado número de candidatas.

242
Fábula dos Gênios

É melhor que se apliquem muito aos estudos, porque esta é uma oportunidade
de ouro. A menor falha resultará em expulsão imediata.
Aquele discurso era assustador. Em vez de ser pressionada por ameaças, eu
preferia encontrar motivação para estudar contemplando as estudantes
poderosas pelos corredores.
– Quantas de vocês vieram de Ginas?
Praticamente a turma toda levantou a mão. Era natural que as estudantes da
melhor universidade do país tivessem vindo do melhor colégio do país: um dos
cinco contemplados com uma cópia oficial do GG.
A seguir, ela perguntou por estudantes de cada uma dessas outras quatro
escolas e houve mais mãos levantadas.
– De que colégio você veio, querida?
– Rupa, ela tá falando com você.
Fiquei com vergonha de dizer na frente de toda a turma, mas eu precisava
responder à pergunta da professora.
– Paunim.
– Nunca ouvi falar. Em que bairro fica?
– Eu não sei, senhora.
– A senhorita leu o anuário?
– Sim, senhora.
– Então devia saber que só pode dirigir–se a mim por professora ou mestra.
– Sim, mestra.
– Paunim é aquele colégio com o uniforme vinho e cinza?
– Uniforme laranja.
– Aquele com calças?
– Isso.
– Onde já se viu uniformes femininos com calças? Calças são vestes para
homens. Seu colégio não respeita a tradição. Então não deve respeitar a magia
também. É melhor que você aprenda boas maneiras em nossa universidade.
Eu fiquei quieta. Estava começando a me sentir mal por estar naquele lugar.
Eu nunca fui discriminada em meu antigo colégio. As pessoas de lá eram gentis.
De repente, eu desejei estar na Universidade Paunim, e não em Jinas. De que
adiantava a instituição oferecer um conhecimento tão avançado em magia se
falhava nos valores mais fundamentais, de respeitar o outro?
Eu temi pelas minhas colegas. Se elas agissem como aquela professora, eu
provavelmente não teria nenhuma amiga. Principalmente agora que elas sabiam
de onde eu vinha.
– Falando em boas maneiras, fui informada de que temos uma famosa
estudante modelo presente em nossa turma esse ano: Piayo Samz. Acredito que
todas vocês sabem muito bem quem ela é.

243
Wanju Duli

Houve muitos murmúrios empolgados. Naquela universidade certamente só


entravam estrelas. Até mesmo eu sabia quem ela era. Quando Piayo foi
mencionada no Capítulo 3 do GG, a idade apontada foi 14 anos. Oito anos se
passaram. Agora ela estava com 22 e ingressava na Universidade. Ela foi quem
levantou a mão quando a professora perguntou por alunas vindas de EAR.
Olhos e cabelos vermelhos. Pele morena. Como não fui capaz de
reconhecê–la? Ela era como uma princesa, com aquele contraste entre o
vermelho dos cabelos e o azul do uniforme.
Aquele pensamento me fez levantar a mão e perguntar:
– Há algum membro da realeza em Jinas?
– Toda a família real tem estudado em Jinas e Jins por gerações imemoriais.
Essa foi uma pergunta extremamente tola. Você deveria saber disso. Não faça
perguntas inapropriadas para não descer o nível dessa classe. E não deve
somente levantar a mão para fazer uma pergunta, mas aguardar que eu lhe dê
autorização para falar.
No meu antigo colégio não tinha todas aquelas frescuras. Por que tudo
aquilo?
Mas... o rei tinha um filho e uma filha, e ambos certamente se encontravam
na faixa de 20 ou 30 anos. Então eles só poderiam estar na nossa universidade!
A princesa estava em Jinas! Não eram somente Naridana e Piayo!
Eu estava empolgada. Ia começar a procurar por outros nomes no GG e
depois tentar localizá–las em Jinas. Que divertido!
De repente, eu senti um frio na espinha.
– Professora... Brisgrar Valonde está em Jinas?
As outras meninas riram quando perguntei isso. Eu não entendi.
– Eu não vou responder a sua pergunta, pois você não esperou pela minha
autorização. E está proibida de fazer outras perguntas no dia de hoje.
– Rupa, Valonde deve ser colega de Naridana. Só pode ser. As duas já
devem estar perto de se formar. Você deu sorte de pegá–las por aqui. Acho
melhor pedir um autógrafo antes que elas se tornem completamente inacessíveis.
– Também vou querer um autógrafo da princesa.
Eu falei isso baixinho para Lorobol. Mas a professora devia ter ouvido
biônico ou o poder psíquico do ouvido divino, pois escutou o que eu disse e me
colocou para fora da sala.
– Eu disse que você não conseguiria ficar por aqui sequer uma semana, mas
pelo jeito não vai aguentar nem mesmo um dia. Será expulsa antes.
Eu não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Como castigo, eu tive
que ler um grimório inteiro ao longo dos dois períodos de duração da aula
daquela professora.

244
Fábula dos Gênios

Aquilo foi inútil. Eu não entendi nada. Os conceitos do grimório eram


muito difíceis. No final dos dois períodos, eu tinha que entregar um resumo do
conteúdo do grimório.
Meu texto ficou horrível. Mas como eu li todo o grimório e demonstrei isso
na minha breve redação, a professora me autorizou a assistir a aula da
professora seguinte, em vez de dar queixa.
– Essa universidade é um pesadelo. Está mesmo disposta a continuar por
aqui? Só para pedir autógrafos para suas coleguinhas?
– Eu vou insistir, Loro. É questão de honra. Eu vou mostrar para essa
professora como serei uma das melhores alunas da classe, mesmo que eu tenha
vindo de um colégio ruim.
– Belas palavras, mas, sinto desapontá–la: você não vai conseguir. Esse
grimório complicadíssimo que você leu está classificado na prateleira de magia
básica.
– Eu pensava que era avançado! Putz!
Eu esperava que a segunda professora não fosse pior do que a primeira. Pelo
menos ela não era tão chata como a primeira, mas a disciplina dela estava entre
as mais difíceis: geometria mágica.
Aquela aula me deixou completamente quebrada. Meu cérebro estava quase
saindo pelas orelhas. Quando bateu o sinal do intervalo, minha cabeça doía e
minha barriga roncava.
– Você tem razão: esse lugar é um pesadelo. Vou conferir na grade horária
para ver o que teve nos períodos daquela professora megera.
– Aqui diz: “Geometria 1”. E adivinhe: depois do intervalo você tem aula de
“Geometria 3”.
– Quê?! Como assim?
Foi então que eu entendi: primeiro era aula de geometria analítica, depois
geometria descritiva e, por último, geometria fractal. Eu queria me matar.
– Eu só sei o básico de analítica. Que raios é geometria descritiva?
– Você é burra ou o quê? Nós acabamos de ter essa aula.
Piayo, em pessoa, estava se dirigindo a mim. Mas eu subitamente perdi a
vontade de pedir a ela um autógrafo.
– Eu não entendi nada. Nós só desenhamos um monte de formas
geométricas esquisitas...
– Aqueles eram selos tridimensionais. Essa aula é uma revisão.
– Não há explicação clara sobre montagem de selos tridimensionais no GG.
– Imagino que no seu colégio não ensinem isso. Em EAR e Ginas
utilizamos largamente selos em três dimensões de espaço. Sugiro que aprenda
logo a usá–los, ou você já será reprovada na primeira prova. Aqui temos testes
escritos e práticos.

245
Wanju Duli

No meu colégio antigo mal havia testes práticos e as provas eram uma piada.
Meu conhecimento de magia era terrível. Nos últimos três anos só estudei
especificamente os conteúdos que eram cobrados na prova de admissão de Jinas.
Optei por não perguntar o que eram fractais, ou minhas colegas certamente
ririam da minha cara. Resolvi ir sozinha até o refeitório.
Até mesmo lá tudo era bastante organizado. As moças de Jinas eram
realmente donzelas refinadas. Mas se alguém encostasse numa delas na fila, elas
já te lançavam um olhar mortal. Por isso, eu tomava o maior cuidado para não
tocar nelas sem querer.
Comprei o meu lanche: sanduíche de beterraba e suco de camélias. E eu
comi sozinha numa mesa, afastada de todas.
De longe eu contemplava aquele mundo fantástico do qual eu
provavelmente jamais seria parte. As moças sorridentes conversando, com suas
vozes leves. Aquela delicadeza linda.
Eu não era delicada. Era boba e desajeitada. Provavelmente por causa da
educação que eu tive. Mas... e daí? O mais importante era ter um bom coração,
certo?
– Vai dar trabalho moldar sua personalidade até que elas te aceitem. Não
basta comprar uma pulseira. Além de cuidar mais da aparência e do linguajar,
você vai ter que estudar feito uma condenada, fazer gestos delicados e tratar os
outros como lixo. Acha que consegue?
– Eu quero que elas me aceitem como eu sou. Irei me esforçar nos estudos,
pois isso é importante. Mas por que preciso ser como elas? Eu gosto da forma
com que se vestem e se ajeitam, mas detesto como agem.
Deu o sinal para o final do intervalo. Eu nem tinha comido metade do meu
lanche.
– Mas já? Que absurdo!
Tive que voltar correndo para a sala. O mais triste foi ter que jogar no lixo a
metade do lanche que não tive tempo de comer. Não ia caber na minha pasta e
eu não tinha nenhum plástico para guardar. Sequer dava tempo de ir atrás disso.
A terceira professora não era tão terrível quanto a primeira, mas também
não era flor que se cheirasse. Felizmente ela dava poucos discursos, mas
conseguia manter a sala quieta rapidamente. E ela passou o resto da manhã
apenas enchendo o quadro de exercícios, mandando para que copiássemos e
resolvêssemos.
Para completar, ela escrevia tudo em outro alfabeto, inclusive os números.
Eu nem sabia aquele alfabeto direito. Ele não era ensinado no GG e, pelo jeito,
também não estava no AVB. Era uma notação mágica usada especificamente
para geometria.
Geometria mágica na manhã inteira. Eu queria arrancar meus cabelos.

246
Fábula dos Gênios

Logo eu soube que nas aulas da manhã sempre havia apenas disciplinas de
exatas, enquanto as tardes eram sempre reservadas para as humanas. Melhor
assim, pois nos livraríamos do pior primeiro e as tardes seriam mais tranquilas.
Ou foi assim que pensei a princípio.
Mas na hora do almoço eu não queria pensar. Finalmente eu teria tempo de
desfrutar de uma refeição calmamente. Comida quente. Bastante. E sobremesa.
Mesmo assim, no final da aula, antes de ir para o refeitório, retirei três
grimórios de geometria da biblioteca, para revisar o que aprendi nas aulas. Ou,
mais especificamente, aprender do início tudo o que não aprendi naquele dia.
Principalmente na primeira aula, que eu sequer assisti.
Assim que eu terminei de comer, abri um dos grimórios na mesa do
refeitório e comecei a ler.
– Estudante.
Eu levantei a cabeça para ver quem se dirigia a mim.
– Não pode ler os grimórios da biblioteca no refeitório. Leia–os na própria
biblioteca ou em seu dormitório, pois é mais apropriado. Aqui não é lugar para
isso.
– Me desculpe.
Aquela moça tinha cabelos pretos e curtos. Sua voz era melodiosa. Sua
postura rígida e respeitável. Ela era bem alta.
Ela segurava duas pastas na mão. Não entendi o significado da segunda.
Continha um símbolo misterioso. Mas em vez de prestar atenção no símbolo, eu
reparei no esmalte dela, que era cor de melancia. Como aquelas garotas
conseguiam ser tão estilosas? Parecia que tudo nelas caía bem! Ela também
usava uma presilha no cabelo, tão meiguinha!
Quando ela se afastou, comentei com Lorobol:
– Você viu aquelas unhas? Uma verde escura alternada por um tom
vermelho claro e fosco!
– Se eu fosse você, reparava nas meias de cores diferentes que ela está
usando.
– NÃO!
Eu me levantei. Olhei para a moça que já se afastava ao longe. E, de fato: a
cor da meia direita dela era diferente da esquerda. Eu senti um frio na espinha.
Não reparei o quanto falei alto com a minha surpresa. As outras estudantes
se afastavam com respeito para que a moça com unhas cor de melancia passasse.
Especialmente as calouras a fitavam boquiabertas. Eu era uma delas.
Quando eu me sentei de novo, caíram algumas lágrimas dos meus olhos.
– Loro, ela é...
– Sim, ela é.

247
Wanju Duli

– ...membro da lendária sociedade secreta de Jinas: Fagenar Vibri. E ela


falou comigo...!
Eu não seria expulsa de Jinas. De jeito nenhum. Eu não podia permitir.
Havia me esforçado três longos anos para entrar lá. E já no primeiro dia de aula
havia topado com pessoas tão incríveis. Waaaa!
Só faltava topar com a princesa. Talvez assim eu tivesse um ataque do
coração. Mas, lá no fundo, eu queria tê–lo. O nervosismo estava palpitando no
peito.
Fazer amizade com alguma das famosas figuras mencionadas no GG parecia
utópico. Mas talvez ser aceita como membro da Fagenar Vibri fosse ainda mais
impossível. Principalmente para uma caloura.
Imaginei que Piayo seria aceita rapidamente no grupo. Bastava que ela
revelasse seu nome, certo? E também bastava que elas soubessem de que
colégio eu vim para me negarem possibilidade de admissão.
Mas, se um dia houvesse a mínima chance para mim, eu precisava aproveitá–
la. Então eu precisava estudar muito.
Fiquei estudando na biblioteca até o início da primeira aula da tarde. Era
aula de idiomas. Eu me dei conta da quantidade absurda de idiomas e
principalmente de alfabetos que eu teria que saber. Naquela tarde estudamos
somente isso.
Ou seja, manhã inteira de geometria e tarde inteira de simbologia. Pelo jeito,
o primeiro dia da semana era o pior possível. Mas eu só achava isso porque
ainda não sabia o que vinha pela frente.
Naquela tarde, símbolos esquizofrênicos pululavam na minha cabeça, alguns
enrolando–se a números de cálculos que aprendi pela manhã.
Provavelmente naquele único dia de aula eu aprendi mais do que durante os
meus sete anos em Paunim. Agora eu via porque lá as coisas funcionavam. As
professoras eram insuportáveis, mas tinham boa didática e nos enchiam de
matérias. Já no primeiro dia nos entregaram calendários com as datas das
primeiras provas.
No fim da tarde eu estava completamente exausta, mas desfrutando uma
sensação maravilhosa de dever realizado. Eu estava com orgulho de mim mesma.
Mesmo sabendo que eu estava cheia de tarefas para fazer à noite.
Eu precisava tomar meu café da tarde. Eu nunca tinha sentido tanta fome na
minha vida como ao longo daquele dia. Cada uma daquelas aulas difíceis
esvaziava totalmente minha reserva de energias.
Mas eu ia me acostumar. Ia pegar o ritmo. Eu queria acreditar nisso. Minha
ambição já não era tirar notas que estivessem entre as melhores da turma. Eu
queria tirar notas suficientes para ser aprovada. Porque só iriam me tirar daquele
lugar me arrastando de lá. Para mim, Jinas era um sonho se tornando realidade.

248
Fábula dos Gênios

Eu não estava acostumada com tanta rigidez e aquilo estava acabando


comigo. Ainda assim, tinha uma parte de mim, talvez meio masoquista, que
gostava. Quem sabe pela sensação boa que eu sentia no fim do dia, com o dever
cumprido.
Sinceramente, a única coisa que ainda me incomodava eram as garotas me
olhando torto. Principalmente minhas colegas, que sabiam de que colégio eu
vinha, graças àquela professora imbecil.
Depois que lanchei, pensei em ir até a biblioteca e ficar lá estudando até cair
no sono. Eu desconfiei que eu fosse ficar com sono muito cedo naquele dia,
pois eu tinha acordado cinco da manhã e provavelmente faria o mesmo no dia
seguinte.
Mas, antes que eu fosse até a biblioteca, uma aluna muito feliz, com duas
chiquinhas nos cabelos, me abordou.
– Olá, amiga! Estamos organizando uma palestra para hoje à noite. Gostaria
de participar?
– Não posso, tenho que estudar.
Ela foi uma das primeiras pessoas a se dirigir a mim educadamente. Fiquei
meio triste de ter que recusar o pedido dela, mas tinha que ser feito. Minhas
outras colegas já sabiam a matéria que estavam nos passando na revisão, mas eu
precisava estudar muito para aprender tudo e alcançá–las.
– Você vai estudar assistindo à nossa palestra. É sobre ontologia mágica, no
auditório 14.
– O que é ontologia mágica?
– É uma metafísica aplicada à magia. Mais especificamente falaremos sobre
as noções de filosofia do AVB.
– Estou ansiosa para aprender as magias do AVB! As professoras sequer
mencionaram esse grimório hoje. Calouras são mesmo permitidas nessa
palestra?
– Calma, hoje é recém o primeiro dia. Acredite em mim, quando as
professoras começarem a esmiuçar os conceitos do AVB para vocês, vai desejar
que não tenham começado. É claro que calouras podem vir na palestra, não é
tabu nem nada. Aproveite!
– Afinal, isso é maçante ou interessante?
– Não sei ao certo!
Nós duas rimos. Aquela era uma garota estranha. Ao mesmo tempo em que
ela criticava o AVB, me convidada para uma palestra sobre ele. Parecia um tipo
de relação de amor e ódio. Mas não era essa relação que eu tinha também com
os estudos? Ao mesmo tempo eu amava a rigidez de Jinas, mas a odiava. E, no
fundo, a desejava, devido a esse jogo apaixonante de desprezo e paixão.
– Vocês já tiveram aula de ética?

249
Wanju Duli

– Ainda não.
– É a mesma professora de lógica. É a melhor professora da universidade!
Ela se chama Barrla. Em compensação, a pior é a professora de ontologia e
epistemologia, a Trezqa. Em breve você vai descobrir porquê. E por isso
mesmo estamos dando uma ajuda pro pessoal que está se ferrando em ontologia,
com nossa palestra.
Cara, aquela menina falava demais. Eu estava ficando agoniada. A conversa
estava interessante, mas eu precisava ir estudar logo. Acho que ela notou que eu
estava com pressa. Ela me entregou um folheto.
– Bem, se tiver interesse, estaremos no auditório daqui uma hora.
– Hmm... está certo. Obrigada.
Devia ser ótimo, mas eu não ia poder ir. E eu já ia me despedindo dela
quando vi as meias de arco–íris que ela usava.
Eu dei um grito de susto! Ela deu um grito também, se assustando com o
meu.
– Suas meias são de cores diferentes!
– Sim, elas são!
Ela riu muito com meu espanto. Para as veteranas não devia ser tão
incomum assim topar com um membro da Fagenar Vibri. Claro que elas eram
olhadas de forma diferente, mas para mim elas eram quase como Deusas
inacessíveis. Eu não podia acreditar que aquela garota espalhafatosa era membro.
Ela agia como uma caloura. Nem parecia uma veterana.
– Uau!
Eu não consegui dizer outra coisa. Não tinha coragem de perguntar se ela
era membro. Até pronunciar o nome da sociedade secreta parecia demais para
mim. E era óbvio que eu não ia perguntar se eu podia entrar. Eu era só uma
caloura.
Ela continuava achando graça na minha surpresa.
– Então, a gente se vê. Seja bem–vinda a Jinas. Vê se aparece lá.
– Pode apostar que estarei lá.
Eu iria assistir a uma palestra dada por membros da Fagenar Vibri. Eu não
perderia aquilo por nada. Se eu fosse expulsa da universidade já na primeira
semana, eu teria essa lembrança memorável para contar vantagem depois.
– Ah, meu nome é Tirupa.
– Sou Krazie.
– A Krazie do GG?! Não pode ser! Mas... caramba, você se parece mesmo
com ela!
Acho que ela estava começando a ficar sem graça com o jeito que eu a fitava,
como se ela fosse um alienígena. Ela acabou dizendo que precisava ir embora e
se afastou.

250
Fábula dos Gênios

Por que não paravam de aparecer pessoas incríveis por todos os lados? Mas
bem no momento em que pensei nisso, surgiu uma menina de cabelos castanhos
com pontas vermelhas quase desmaiando ao meu lado. Eu fui ajudá–la.
– Você está bem?
– Não.
– Precisa de ajuda?
– Não.
E ela se afastou cambaleando e resmungando num idioma que eu nunca
tinha ouvido na vida. A expressão dela era a de alguém que não dormia há dias.
Então era assim que ficavam os estudantes depois de tanto tempo em Jinas?
Tornavam–se zumbis? E ainda era o primeiro dia!
Eu realmente queria perguntar para alguém onde andava a princesa. Ela
devia ser quase tão famosa por lá quanto Naridana. Mas como era início de
semestre, naquela noite havia várias alunas espalhando panfletos sobre clubes da
universidade, especialmente relacionados a esportes, música, literatura e
tecnologia. Tudo diretamente relacionado à Magia dos Gênios.
Eu ainda não sabia de quais atividades eu queria participar. Eu não me via
com tempo para fazer parte de nada. Eu só tinha a noite para fazer os deveres
de casa. No próximo fim de semana haveria um evento cultural e seria uma
correria.
E, para completar o quadro, eu soube que naquela noite haveria uma
cerimônia de abertura, da qual participariam tanto seniores quanto juniores, e
devíamos trajar as vestes de gala.
– Rupa!!
– Hã? Hein?
– Tô tentando falar com você há um tempão e você só me ignora!
– Desculpe, eu estava distraída.
– Eu disse que há uma aura estranha emanando daquelas duas garotas.
– Eu acho que há uma aura estranha emanando de cada uma das alunas
dessa universidade. Eu tenho até medo de ver os selos que elas fazem. E no dia
que eu enxergar o gênio de uma delas, acho que vou cair para trás.
– Certo, mas não foi isso o que eu quis dizer. Você não sentiu como aquelas
duas são fortes?
– A moça de cabelos curtos parece ser mais forte ainda. E Naridana... dá até
medo de chegar perto.
– Vou tentar colocar isso em outras palavras. A moça de chiquinhas pretas e
amarelas possui outra categoria de energia.
– Grata por ser tão observadora. Ela é da Vibri, seu tonto.
– Eu acho que uma delas usou magia do GGM.
Eu desatei a rir.

251
Wanju Duli

– Ninguém é louco de fazer um gênio maligno debaixo do nariz das


professoras. Nós mostramos nossos gênios em algumas provas práticas. Então
isso está fora de questão. Afinal, como um construtor teria acesso ao GGM?
– Sei lá. Você também não sabe como aquela menina de cabelos azuis e cor–
de–rosa fez aquilo com o cabelo. Se essa técnica não está no GG e nem no
AVB...
– Destruidores não pintam os cabelos! Você viu a penca de grimórios de
magia avançada que tem naquela biblioteca. Olha, eu não tô com cabeça pra
pensar nisso agora. Preciso voltar para o dormitório e separar minhas vestes de
gala para a cerimônia de abertura.
– Então você não vai na palestra?
E, ainda por cima, eu tinha que fazer os deveres, ler os três grimórios que
retirei da biblioteca e revisar as matérias. E eu estava cheia de panfletos nas
mãos, lendo sobre as atividades dos clubes enquanto caminhava até meu
dormitório.
– Pintura... o que você acha? Vai ter uma exposição de pintura
representando gênios e selos tridimensionais na Sala 6. Eu sou péssima em
desenho geométrico. Talvez entrar nesse clube me ajude.
– Entre no clube de matemática, então. Ou naquele de informática, para
você aprender umas técnicas dos grimórios de Tecraxei. Técnicas mistas estão
em alta, principalmente misturas com magia estrangeira.
– Prefiro aprender magia nacional primeiro. Ai, que patético. Se eu tivesse
uma amiga não precisava ficar debatendo com meu próprio gênio sobre esse
assunto. Assim parece que estou falando sozinha, ou com meu amigo imaginário.
– Eu não sou imaginário! O que mais tem aí? Robótica, divinação, jogos...
Eu amassei todos os panfletos e joguei na lixeira.
– Ei, isso foi rude. Eu ainda estava lendo.
– Não farei parte de nenhum desses clubes e ponto final. Estou mais
interessada nas fraternidades e sociedades secretas.
– Se eu fosse você, entraria nos clubes de esportes e jogos. Afinal, você
precisa se exercitar. E os jogos vão ajudar a manter seu cérebro ativo. Aqui eles
trabalham muito com jogos de cartas, dados e tabuleiro.
– Eu sei, meu filho. Eu li o último capítulo do GG. E você se esqueceu de
mencionar os quebra–cabeças tridimensionais. Jogos são muito populares em
Jins. Lá eles vivem “trocando figurinhas”, são umas crianças. E uns selvagens
também, batalhando nos corredores.
– Jins parece ser muito mais interessante. Há mais ação. Por aqui as moças
só estão interessadas em manter a disciplina e a elegância.
– Eu entraria no clube de chá e de dança, só para aborrecê–lo. Para a sua
sorte, a Vibri é minha prioridade. Mesmo se me convidarem para outra

252
Fábula dos Gênios

sociedade secreta, não vou aceitar. Vou aguardar os membros da Fagenar Vibri
me chamarem. Não é bem visto fazer parte de duas ao mesmo tempo.
Quando cheguei ao meu dormitório, separei as minhas vestes de gala
amarelas. O azul e o amarelo eram as cores símbolo dos construtores, assim
como o verde e o marrom eram as cores dos destruidores. Então Jinas pegar
para si o azul e o amarelo era uma grande honra.
– Droga, amanhã tem aula de astronomia e literatura. Quando é que vão
começar as partes quentes, como meditação e evocação? A gente já sabe
trabalhar com o esquema do eletrocardiograma, caramba!
Realmente, era um tédio ter apenas o meu gênio para conversar.
Vesti–me nos trajes de gala amarelos. Também mudei minhas fitas de cabelo
de azul para amarelo, para combinar.
E foi nesses trajes que me dirigi para o auditório. Outras estudantes também
assistiam à palestra já com as vestes de gala, pois de lá provavelmente já iríamos
diretamente para a cerimônia de abertura.
Sinceramente, eu não entendi nada naquela palestra. Primeiro, a palestrante
desenhou um esquema repleto de formas geométricas e planetas que
representava o universo. Realizou uns cálculos relacionando os planetas e
estrelas. E, a partir daí, chegou à análise do nosso mundo, da terra, dos oceanos,
das florestas. Foi falado sobre a fonte da magia. O objetivo de utilizar essas
energias e como trabalhar com elas. De que forma aquilo afetava o indivíduo e o
mundo.
Eu conseguia sentir o quanto aquilo era fantástico e grandioso. Mas eu não
era capaz de compreender os detalhes do que era dito. Eu apenas me sentia
muito importante por estar ali, naquele instante, escutando aquela pessoa sábia.
– Rupa, a palestrante não é aquela moça de cabelos curtos que disse para
você não ler no refeitório?
Era ela. Fazendo uma mistura maluca de geometria, astronomia, geografia e
ética. E chamando isso de ontologia...
Eu já estava apavorada para a aula de astronomia no dia seguinte. E pelo
jeito a aula de literatura seria mais parecida com uma aula de hermenêutica em
vez da leitura de histórias de fantasia sobre Magia dos Gênios.
No final da palestra, elas nos entregaram uma lista de exercícios. Depois
disso, conforme saíamos, recebíamos um carimbo no nosso boletim
suplementar. Aparentemente, se realizássemos certas atividades extracurriculares
aquilo iria servir de crédito adicional e podia até aumentar a nota final em certas
disciplinas. Ao saber disso, cheguei à conclusão de que talvez não fosse tão ruim
fazer parte de um clube. Quanto mais carimbinhos melhor. Mas eu também não
ia prejudicar minhas notas pelos carimbos, ou aquilo destruiria o objetivo da
coisa toda.

253
Wanju Duli

Deixei a folha de exercícios e o boletim suplementar no meu armário, para


não precisar retornar todo o caminho até o dormitório. E fui até o salão
principal para a cerimônia.
Houve a apresentação formal das novas alunas e discursos chatos da reitora
e das professoras. A melhor parte foi o jantar que teve depois. Foi como uma
festa, mas sem música agitada. Esse tipo de festa com música de qualidade era
organizado pelas estudantes. As festas oficiais das universidades só tinham
comida boa e a música não tinha a menor graça e me dava sono.
Eu provavelmente ficaria sozinha durante todo o resto do evento. A
qualquer momento eu poderia me entediar e sair, já que eu precisava dormir
cedo. Resolvi que pegaria mais alguns docinhos nas mesas e depois iria embora.
– Lá estão as mocinhas de meias coloridas. A universidade deve dar muito
crédito a Fagenar Vibri se permite que elas usem essas meias até com os trajes
de gala.
Havia um grupinho com umas dez garotas de meias coloridas, de pé, perto
de uma das mesas. Resolvi que iria me aproximar e pegar alguns petiscos da
mesa, para tentar entreouvir o que elas diziam.
– Krazie, você falou com Naridana?
– Conversei com ela hoje novamente. E a posição dela continua a mesma:
ela não tem interesse em voltar a ser membro.
– Por que essa teimosia? Eu daria a ela a liderança uma vez mais, se ela
reconsiderasse. Eu reconheço o poder dela. Não tê–la conosco é uma grande
perda. Eu não me importo tanto com meu prestígio como líder. Para mim é
mais importante o nosso poder conjunto. Se ela resolver se juntar a outra
sociedade secreta, será um golpe forte para nós. A Fagenar Vibri não teve
nenhum rival à altura por décadas. Naridana vai estragar tudo.
– Ela tem a liberdade de não desejar estar no grupo, Werda.
– Sua opinião é extremamente tendenciosa, Derida. Se alguém aqui tem o
direito de expressar alguma posição, é Krashkah. Você deseja ter Naridana de
volta?
– Eu a repudio. Mas se você desejar chamá–la, não irei me retirar do grupo.
– Então é assim que as coisas são.
– Se a vice também for a favor, eu definitivamente me calo.
– Está claro que sou a favor.
– E Valonde também a deseja conosco.
Através daquela breve conversa, eu havia obtido informações preciosas.
A moça de cabelos curtos e unhas de melancia se chamava Werda e era a
líder da Fagenar Vibri em Jinas. A vice era Krazie. E Valonde definitivamente
também era uma estudante. Naridana era ex–membro da Vibri, informação que

254
Fábula dos Gênios

muito me espantou. Eu jurava que era ela a líder. Pelo jeito, ela era também a
antiga líder...
Por um instante, elas silenciaram, enquanto bebiam suco de maçã dos cálices.
– Mudando de assunto, o que acharam das calouras? Alguma que valha?
– Piayo sem dúvida seria o primeiro nome que eu apontaria. Mas antes disso,
ela precisa mostrar seu valor. Não adianta ter renome e um histórico respeitável.
É aqui dentro que começamos a escrever nossa história.
– Rupa, a sua musa rosa e azul é membro da Vibri.
Aquilo era tão estranho. Eu não havia reparado nas meias dela mais cedo.
Pelo que eu me lembrava, ela usava meias branquinhas pela manhã.
Será que nem sempre elas estavam de meias coloridas? Se fosse assim, eu já
podia ter topado com outros membros de sociedades secretas de Jinas sem
saber. Afinal, eu não conhecia os símbolos que identificavam as outras: apertos
de mão, anéis, pingentes...
Talvez algumas preferissem não ser identificadas como membros em
algumas ocasiões. E, ao mesmo tempo, elas faziam questão de mostrar isso ao
vivo. Um paradoxo? Não. Eu preferia pensar que elas eram apenas
completamente esquisitas.
– Caloura, você não é membro. Saia daqui.
Lá estava a menina zumbi, que também não estava usando as meias mais
cedo.
Elas olharam para mim. Eu queria sumir de lá. Todos aqueles rostos eram
terríveis. Elas eram tão sérias, tão imponentes. Tão diferentes de mim...
– Olá, você. Eu te vi na palestra. Obrigada por comparecer.
– Eu que agradeço pelo convite. Foi um admirável discurso.
– Ela certamente não entendeu nada.
– Ora, não seja rude, Derida.
– Por que você tem um olho roxo e o outro preto?
– Porque houve um erro na minha MEP.
– Ela é tão estúpida. Errar na MEP? Eu nunca tinha ouvido isso antes.
– O que vocês realizam nessa sociedade secreta?
– Não é óbvio que é segredo? Se deseja brincar, procure um clube. Ou
mesmo uma fraternidade. Não podemos divulgar as nossas atividades.
– Eu gostaria de ser membro.
Derida riu com gosto.
– De que colégio você veio, coração?
– Paunim...
Eu estava começando a me sentir humilhada cada vez que pronunciava
aquela palavra. Eu até tinha vergonha de dizê–la.

255
Wanju Duli

– Esse colégio não existe. Você não é ninguém. Como fraudou a prova de
admissão?
Quando escutou isso, Krashkah abafou o riso. Outras garotas de meias
coloridas também riram. Werda não disse nada. Apenas me observava
seriamente, aguardando uma resposta.
– Eu estudei muito. Rodei na prova nos dois anos anteriores, mas não desisti.
– Vocês ouviram isso? Ela rodou duas vezes e ainda tem orgulho de sua
“perseverança”. Ou, eu deveria dizer, burrice?
– Derida, já basta.
– Você não me manda ficar quieta, vice. Eu só obedeço às ordens de Werda.
– Continuem. É uma conversa interessante. Você não é capaz de se
defender, caloura? Ou espera que outros o façam por você? Também é essa a
sua atitude em relação à magia?
Elas estavam me desafiando. Queriam ver até que ponto eu suportaria.
– Fui aprovada, é isso o que importa. Tenho o direito de estar aqui tanto
quanto vocês. Se riqueza fosse fator central, os destruidores não seriam tão
poderosos.
– Como ousa mencionar os destruidores debaixo desse teto? Você não tem
o mínimo de orgulho construtor, caloura?
– Meu nome é Tirupa. Apenas passe–me um teste e confira se sou capaz de
realizá–lo. Assim poderei provar que sou digna de ser membro. Se essa Ordem
for digna o suficiente, pois estou desapontada com a postura de vocês.
– Tirupa, não critique aquilo que não conhece com base nas aparências. E
não generalize suas críticas. Se mantiver essa posição, não poderei mais
defendê–la.
A única alma gentil que eu havia encontrado naquela universidade
subitamente dava um passo para trás. Talvez a culpa tenha sido minha.
Ou eu me submetia aos termos delas ou me retirava. Aquela era a verdade.
Era melhor eu tomar cuidado com a língua. Eu precisava refletir sobre o que
realmente importava. Se eu não gostava delas, bastava não entrar na Fagenar
Vibri. Se eu não simpatizava com nenhuma aluna de Jinas ou com as
professoras, também bastava eu solicitar o meu desligamento e tentar uma vaga
na universidade Paunim.
Eu seguiria o caminho fácil? Ou o difícil? E, no meio daquele jogo de
poderes, o que eu realmente desejava? Permanecer lá só pelo status? Ou
procurar verdadeiras amizades num ambiente de menos competição?
– Esse lugar não é para você, Rupa. Apenas jogue suco de maçã na cara
delas, empacote suas coisas e saia dessa prisão. É início de semestre. Ainda dá
tempo conseguir transferência para Paunim.

256
Fábula dos Gênios

– Peço perdão pelas minhas palavras. Senhorita Krazie, você pode me


autorizar a realizar o teste de admissão?
– Não, me desculpe. Somente Werda tem esse poder.
Werda aproximou–se de mim e segurou–me pelo queixo, observando meu
rosto atentamente.
– MEP errada, colégio fraco, incauta e desajeitada. Baixinha, rosto infantil e
expressão ingênua. Roupas amassadas. Preciso continuar?
– Não. Está claro que não possuo o menor talento para ser membro.
– Meu histórico de notas está entre os mais admiráveis da universidade. Fiz
um intercâmbio por um ano em Narrara na época de Gins, especializando–me
em magia dos livreiros e hermenêutica. Também sou a líder do clube de
literatura e fui contemplada com três prêmios nos eventos culturais do ano
passado.
– Dá um tapa na cara dela, Rupa! Seria um bom momento. E diga que você
é faixa preta em artes marciais. Mesmo que você mal saiba fechar sua mão para
socar alguém direito. Que nem naquela vez em Paunim, quando você socou a
parede em vez de acertar sua colega.
“Você é mais tagarela que ela, Lorobol...”
– Derida também é intercambista, mas de Bruznia. Ela possui entendimento
profundo de química, poções mágicas, magia de perfumes e arranjos florais. Ela
já realizou diversas palestras e conferências sobre a alquimia.
– Aí está a resposta para o mistério da cor dos cabelos dela. Ela estudou no
país da beleza e dos cosméticos.
– Krazie é a melhor esportista da universidade. Ela é extremamente veloz e
já venceu diversas maratonas, batendo muitos recordes. Tem uma coleção de
medalhas. Os reflexos dela para a magia são excelentes. Em duelos mágicos
rápidos, ela é imbatível. Risca seus selos no ar como se respirasse.
– Ela parece mesmo alguém que não para quieta. Mas eu jurava que ela
estivesse no clube de dança ou algo assim. Ou no clube das bonecas e ursinhos
de pelúcia...
“Quer calar a boca? Isso sequer existe!”
– Krashkah é um gênio da matemática. Os gráficos e selos dela são perfeitos.
Ela lança maldições terríveis naquela que ousa profanar a sagrada folha
quadriculada. Ela também está organizando uma religião que busca obter o
algoritmo para o cálculo do mundo. Em suma, é uma fórmula que poderia ser
aplicada a qualquer tipo de magia já inventada ou que poderá ser inventada no
futuro.
– A menina zumbi? Está explicado porque ela vive com olheiras e
desmaiando pelos cantos. Todos os membros dessa sociedade secreta são

257
Wanju Duli

insanos. Uma é fanática por gramática, outra por beleza, uma por velocidade e a
outra por números.
– Ela é a líder do clube de matemática?
– Eu não me dou bem com aqueles jumentos. A líder desse clube é minha
arquiinimiga.
– Espero que role um duelo mortal um dia. Se as donzelas aceitarem o risco
de quebrar as unhas.
– E agora eu pergunto: quais são as suas qualidades, Tirupa? O que tem a
oferecer para a nossa sociedade secreta? Eu lhe asseguro que a Vibri tem muito
a oferecer. Ensinamentos além de sua imaginação. Mas o ensinamento só se
completa com o esforço e a sabedoria de todo o grupo. Se há um fruto podre na
cesta, vai apodrecer todos os outros. Nós evitaremos a todo custo colocar algo
podre aqui dentro.
– Eu sou boa em... costurar. Faço bolos gostosos, com limão e cereja.
– E você é capaz de conectar essas suas habilidades com magia? Envolver
selos e gênios com suas costuras e culinária?
– Nunca pensei nisso.
– Então é inútil. Minha pergunta se referia às suas habilidades que você é
capaz de utilizar para magia, através de uma fusão dimensional. Mesmo que seja
uma porcentagem ínfima, a Magia da Potência poderá multiplicar essa quimera.
– Me desculpe, mas não sei do que está falando.
– Espero que seu colégio ruim tenha ensinado pelo menos as técnicas do
Grimório dos Gênios.
– Um pouco.
– “Um pouco”? Me desculpe, mas saia da minha frente. Sua estupidez me
enoja.
– Nós precisamos de um membro que possa preparar o chá.
– Os chás que bebemos em nossas reuniões precisam possuir potencialidade
mágica. Ela não é capaz disso. Nesse quesito, Derida é insuperável.
– Por favor, dê–me mais uma chance!
Segurei na manga de Werda, pois ela parecia que iria retirar–se do salão.
Contudo, quando eu encostei nela, ela me deu um tapa na cara.
– Não ouse encostar em mim, sua caloura suja.
No segundo seguinte, alguém surgiu por trás de Werda e tocou em seu
ombro. Ela virou–se. Era Naridana.
Eu levei um susto! Não esperava que ela fosse aparecer de repente. E, pelo
jeito, os membros da Vibri também foram pegos de surpresa.
– Você continua maltratando as calouras. Permanece a abusar do poder. Eu
lhe confiei a liderança, mas vejo que foi uma atitude tola. Werda, eu retiro a

258
Fábula dos Gênios

posição de líder de você. E a de membro. Você está oficialmente expulsa da


Fagenar Vibri.
– Que grande insanidade é essa? Você sequer é membro e acha que pode
expulsar a líder?
– E não somente posso como acabei de fazer isso. E você, Derida, pode
retirar–se com ela. Também está expulsa.
– Eu não tenho nenhuma relação com essa situação!
– Eu ouvi suas palavras. E você, Krashkah, está por um fio.
– Eu nunca gostei de você, Naridana. Se quiser me expulsar, vá em frente.
Não me importo.
– Eu não irei atender ao seu pedido, para a sua satisfação. Você fica.
E assim, Werda e Derida foram expulsas. Mas houve mais acontecimentos
depois disso.
– Você vai ter o troco, Naridana. Se desejasse a liderança bastava me pedir
que ela seria sua. Não precisava me expulsar.
– Não preciso pedir nada para você. Brisgrar é a fundadora. A palavra dela é
final. E você sabe muito bem qual é. Se desejar, me enfrente em batalha aqui e
agora. Que sejam as duas contra mim, se assim o desejarem.
– Desafio aceito.
– Por que tão fácil?
Werda e Derida retiraram de dentro das vestes de gala um punhal repleto de
símbolos arcanos e formas geométricas. O punhal de Derida era um azul–gelo,
demonstrando que ela operaria na frequência aproximada da batida neutra. O
punhal de Werda era verde–musgo, no limite entre a batida satisfatória e
excelente.
Naridana utilizou uma adaga roxa, demonstrando que ela pegaria pesado:
batida neutra extrema.
Naridana parecia uma estátua, como se tivesse interrompido até o ritmo da
respiração para obter um caimento quase completo das batidas do coração.
Werda traçou dois quadrados no chão como selo de proteção, riscando algo
no alfabeto creemah. Ao redor de si respiravam dois icosaedros. Derida utilizou
três círculos para o chão e um octaedro para proteção. Recitou uma fórmula
num idioma que eu não conhecia.
Naridana foi direta: um dodecaedro para proteção, sem formas
bidimensionais. Ela ia operar selos de ataque em batida neutra extrema. Aquilo
era suicídio para um iniciante, mas uma arma mortal nas mãos de um veterano.
Por causa da possibilidade da inversão de consciência.
Werda e Derida atacaram em sequência. O carregamento de Werda chegou
mais depressa, por causa das batidas elevadas. Conforme o ritmo do coração
dela e o eletrocardiograma psíquico mental que ela imaginava, Werda traçava

259
Wanju Duli

uma forma geométrica tridimensional interligada a outra, numa trilha de selos,


em velocidade impressionante.
Derida utilizou outra trilha de selos, com outras cores e formas, para a
frequência de sua batida. Atacar em dupla, uma na batida neutra e outra em
excelente, era como deixar o oponente encurralado, pois ele teria que se colocar
em dois níveis opostos de frequência numa velocidade muito rápida, para poder
se defender.
– W–84%, 83, 82, 81, círculo! D–55%, 51,48,49, espelho!
Krashkah era mais pirada do que parecia. Estava murmurando as
porcentagens com um mini eletrocardiógrafo na mão esquerda, como se fosse
uma locutora. Com a outra mão rabiscava os selos em suas folhas quadriculadas,
tentando montar o esquema das três ao mesmo tempo.
Ela simplesmente utilizava a letra inicial do nome de cada uma e registrava
as formas correspondentes ao que acontecia, como o círculo para anunciar
mudanças entre batidas ou o espelho registrando alterações para diminuição ou
elevação.
Mas Naridana surpreendeu a todos. Ela havia colocado a si mesma em quase
7%. E mesmo com o selo de Derida tendo sido lançado depois, ela defendeu–se
dele primeiro. E lançou um dado. Seria o Cubo da Vaidade? Não. Era um dado
em forma de... tetraedro...!
– N–7%, 6,6... 6,1, Naridana maldita, use números inteiros para não entortar
meu cérebro, sua desgraçada...! Triângulo isósceles... SIMPLEXO! 49%, 89%,
95%, ELA ESTÁ NA BATIDA MAGNÍFICA, 96%!!! ELA ULTRAPASSOU
A BATIDA EXCELENTE!
– Puta merda...! Ela passou do 6,1% para o 96% em dois segundos...?!
– Selo quadrimensional...!
Ela conseguiu se defender das duas. Com aquele dado, ela causou a inversão
de consciência, propositalmente. O roxo se tornou vermelho. A abelha se
tornou cobra. E o espectro de luz inverteu–se completamente. Bastou esse
único ato para obter uma inversão máxima. Ora, era óbvio! Invertendo, ela
podia transformar um 6% instantaneamente em 94%! Cara, que genial!
Quando aquele simplexo cortou o ar, quebrando os selos de proteção das
duas garotas, ao mesmo tempo, houve um corte fundo no braço de Werda e um
corte maior ainda no rosto de Derida. As duas caíram no chão. Somente com o
impacto dos selos cortando o ar, a mesa de comida que estava perto de nós foi
lançada na parede. Algumas alunas também tiveram que se proteger para não
sofrer com o impacto do resíduo astral das dimensões que foram abertas para a
batalha.
Krashkah levantou a folha quadriculada no ar, como se erguesse uma espada.
Alunas se tumultuaram ao redor dela, desejando ver de qualquer jeito o registro

260
Fábula dos Gênios

daquele duelo. Algumas pegaram novas folhas quadriculadas para obter uma
cópia. No dia seguinte provavelmente iam espalhar para toda a universidade o
resultado daquele embate para definir a nova líder da Fagenar Vibri.
– Essa vaca maculou meu rosto perfeito! Fiiiiilha da putaaaaaa!!!
De repente, o rosto delicado da donzela rosa e azul converteu–se em fúria.
Já Werda parecia bastante paciente. Parecia ter se divertido com a batalha e deu
um risinho malicioso.
– Naridana, seu ódio por mim atinge apenas 96%? Pois meu ódio por você
chega aos 100. Ultrapassa o limite dos números, destrói gráficos e
eletrocardiógrafos. Somente o infinito da Magia dos Deuses. Essa sim é minha
régua exata.
– Werda, seja uma boa perdedora e apenas cale a boca.
Werda deixou a poética e a filosofia de lado e deu o dedo. E mais um sorriso
de graça.
Derida saiu de lá chutando tudo e xingando Naridana de todos os nomes. Já
Werda retirou–se com classe e rebolados, empinando o nariz.
– Sabe, estou começando a gostar desse lugar.
– Eu também. É da hora. Ei, Krazie, esse tipo de coisa é normal? O pessoal
agiu como se fosse.
– Quem frequenta somente as aulas, de vez em quando tem a oportunidade
de presenciar algo do tipo. Mas quem faz parte das fraternidades e sociedades
secretas está acostumado a ver mais fogo. A começar pelos testes iniciáticos... a
Fagenar Vibri é famosa nisso também.
– Eu quero ser membro. Estou decidida. Ainda mais agora que as duas
foram expulsas.
Meu coração acelerava de excitação. Se duvidasse, já estava na batida
excelente.
– Você disse que sabe costurar, certo?
– Eu sei.
– Eu adoro bonecas. E ursinhos. Por que não fundamos um clube de magia
com bonecas?
– Viu, só? NÃO TE FALEI?
AhAhAhaHAhAHahAhahahahahHhaHAHAHHH!!!
“Oh, você é um gênio. Agora fica quieto”.
!– AHAAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAEHAEHAEH!!!
OHOHOHOHO IKIKIKIKIKIKI!!
– CALABOCACACETE! Desculpa, Krazie, não foi com você...
– Eu sei, foi com seu gênio. Eles são sempre tão estúpidos, não é mesmo?
“Toma, Loro! Uhuhuhu!”
– Pff...

261
Wanju Duli

– Podemos pensar nisso, amiga. Mas antes, eu adoraria ser admitida na


Vibri!
– Eu não facilitarei as coisas para você. Mas também não impedirei sua
admissão. Você terá que conquistá–la. Esses cortes no rosto e no braço foram
como arranhões. Está disposta a suportar mais? Até que ponto vai sua vontade?
– Muito mais do que eu ou você imaginamos. Que esteja além do
conhecimento de Deuses, humanos ou heróis.
– Amanhã será o seu primeiro teste. Prepare–se.

***

– O melhor legado que os destruidores nos deixaram foram os palavrões.


São especialistas neles. Inventaram termos tão refinados que não sei como eu
conseguiria viver hoje sem essa valiosa contribuição.
– Besteira. Não há nada de bom sobre os destruidores. Eles são assassinos.
Na última guerra que teve, por pouco não dizimaram toda a região oeste de
Consman. Teus pais participaram dessa guerra?
– Sei lá, meu. Nem sei quem são meus pais. Tu sabe quem são os teus?
– Eu não os conheci, mas sei que os destruidores ferraram eles. Tão bem
mortos agora. Eu não iria conhecê–los de qualquer forma, então eu poderia até
dizer que tanto faz essa merda. Mas não é verdade. Agrada–me a ideia de ter um
motivo consistente pra odiar os destruidores ainda mais. Eu particularmente me
considero um completo antidestruidores. Se eles tivessem bandeira, eu já teria
queimado, gravado um vídeo e colocado na internet.
– Que vida de bosta essa. Bem melhor meter um soco nas fuças deles sem
essa frescura de queimar bandeira, pô.
– Certamente.
– Antigamente o Sremino ficava puto só de mencionarem os destruidores.
– Dependendo do meu humor, eu ainda fico. Eu sinceramente acho um
excremento essa maldita rixa entre construtores e destruidores. Palhaçada isso.
Me deixa mais do que puto. Isso não precisava existir. E o Hparral ainda fica me
enchendo com isso.
– Estou apenas comentando.
– Mesma coisa, trouxa. Algumas vezes tenho vontade de te matar também,
sabia? Por mim eu aniquilava toda a galera dessa porra de universidade.
– Onde está a sua honra de construtor? Não vai defender a melhor
universidade do país?

262
Fábula dos Gênios

– Ah, eu vou. Bater uma no banheiro e depois espalhar a minha porra em


todos os excelentíssimos grimórios daquela biblioteca do caralho. Tornaria tudo
mais nobre.
– Colmon, me consegue aí um desses chicletes. É de menta?
– Claro. Na minha boca superior não entra chiclete rosa de pobre.
– Eu não masco chiclete, só puxo fumo. É disso que meu gênio gosta.
Esses são alguns membros da Fagenar Vibri de Jins. Agora dá para entender
porque nunca fiz questão de ser membro.
Sremino é o sujeito mandão e mal humorado. Ele pensa que arrepia. E faz
os outros acreditarem nisso.
Hparral é puxa–saco do Sremino. E Colmon vive de boné, mesmo sabendo
que é proibido. E masca chicletes como um viciado. Cabelo verde e olhos
vermelhos. Há uns sujeitos por aí que curtem gastar os dois primeiros desejos
simultaneamente em MEP e TF, como se dissessem: “Já gastei meu desejo de
salvação, e daí? Deixa de ser bundão! Vou me salvar com meu próprio poder”.
Eu não sei no que Sremino e Hparral gastaram o desejo de infância. Sremino
tem olhos e cabelos pretos. Hparral tem cabelos castanhos e olhos escuros. É
inevitável se perguntar: “O que será que eles inventaram?” Desejos não
convencionais podem expressar burrice ou ousadia extrema. A dúvida só
alimenta a curiosidade.
No meu caso, usei TF vermelha nos meus cabelos originalmente negros.
Mas, para ser sincero, quando você está na universidade ninguém mais liga para
o que você escolheu na infância. Estar em Jins significa apagar o seu passado e
recomeçar do zero. É a partir desse instante que você mostrará quem é.
Eu sempre fui gordo e quando criança zombavam de mim por isso, dizendo
que eu era preguiçoso e não tinha força de vontade para emagrecer. Mas eu
provei a eles que isso era uma mentira.
Eu gosto de comer e isso não possui interferência nenhuma no meu poder
mágico. Eu tenho saúde. Não faço questão de emagrecer, estou bem comigo
mesmo. Sou muito estudioso. Minha magia é forte e sou bastante respeitado em
Jins por causa disso.
Há dois anos sou aluno de Jins. Meu melhor amigo é Qah, um cara meio
tenebroso. Meio fechado, mas uma boa pessoa.
– Se você não gosta deles, por que está escutando as conversas?
Eu dei de ombros.
– Acabei de sair da aula de meditação e não tenho nada melhor pra fazer.
– E você espera que eu acredite nisso?
– Não. Sempre há algo para fazer aqui dentro. Além do mais, eu estou no
clube de história de Consman. É sempre fascinante desvendar como os
construtores faziam magias no passado e como inventaram novas técnicas para

263
Wanju Duli

aprimorá–las, tornando–as mais rápidas e efetivas. Isso me enche de ideias. Eu


aprecio muitíssimo testar as técnicas do passado e descobrir quais tesouros
valiosos foram deixadas para trás. Serei aquele que reviverá as magias mortas.
– Ótimo. Mas você tem algum interesse em saber o que eles fazem na
Fagenar Vibri, ou não estaria sorrateiramente ouvindo aqueles três idiotas.
– Eu não espero que eles mencionem as coisas da Vibri em público. Não
sou tão ingênuo. Mas confesso que tenho um pouco de curiosidade em
conhecer as magias que eles fazem lá dentro.
Uma quarta pessoa aproximou–se dos três que estavam esparramados na
grama, embaixo duma árvore. Era um bacana de pele negra, black power e
óculos escuros. Aquele penteado e aqueles óculos eram um belo contraste com
o uniforme impecável.
Camisa branca de mangas longas, calças azuis, sapatos negros lustrosos e
gravata azul clara. Ele carregava algumas cartas na mão. Passou o pacotinho
para Sremino.
– Esse é o cara. Conseguiu alguma carta rara?
– Consegui algo de valor. Confira com seus próprios olhos.
– Rai, esse novo aluno que chegou é forte como um pesadelo.
– Eu sei. Não me meto com ele. Mas Sremino deve ser mais forte. O
Somoyol paga pau pra ele.
– Sério?
– Algum, creio eu.
Aquele era o Jogo de Cartas de Gênios. O JCG era colecionável e rodava
secretamente pela universidade quase num esquema de tráfico de drogas. Não
era exatamente permitido andar com isso por lá. Então a galera dava umas
escapadas do campus para comprar um deck em lojas especializadas.
No Capítulo 3 do GG era incentivada a combinação de Magia de Gênios
com cartas e quebra–cabeças. Mas isso era exercício de colégio. As crianças
mexiam com quebra–cabeças até antes do colegial. No ginásio, antes dos 13 e da
educação formal de magia, havia esquema de quebra–cabeça até com Mera e
para decorar alfabetos simples.
Eu vim de Gins e por lá os estudantes formam grupos para desenhar seu
próprio gênio nas cartas e, a partir disso, evocá–lo e realizar batalhas.
Essa tradição era mantida nas universidades. Alguns ainda mantinham o
mesmo grupo do colégio, criando laços fortes. Membros do mesmo grupo
possuiriam certo poder para controlar o gênio do outro. Aquilo não era
brincadeira. Precisava haver muita confiança.
Essa era uma das tradições das fraternidades: criar um poderoso laço entre
gênios através das cartas e, quando aquele grupo batalhasse unido contra um
inimigo ou contra outro grupo, o poder gerado estaria muito acima do normal,

264
Fábula dos Gênios

pois um teria vasto conhecimento do gênio do outro, para que a combinação de


gênios fosse quase perfeita.
Ver a galera da FV com aquelas cartas nas mãos somente atiçava minha
imaginação. Se eles combinassem o JCG com as cartas energizadas e criadas por
eles, seria possível ir muito longe.
– Carta com o Selo de Prisma...! Essa é ideal para alterar a posição de cores
no espectro de luz visível. E, consequentemente, as batidas.
– Eu quero a Espada de Dados. Com ela não é preciso lançar o Cubo da
Vaidade em batalha. Você altera o gênio de aromático para venenoso na
vibração de traços do selo.
– Eu sei o que a carta faz. A descrição está contida nela, em Alfabeto de
Além Terra. Não diga coisas desnecessárias, Hparral. Você precisa mesmo
melhorar seu deck. Só sabe atacar com fogo e gelo, como se ainda estivesse no
colegial brincando de EBGF.
– Veio alguma carta de chiclete?
– Não.
– Cacete. Meu poder mágico está completamente centrado neles. Há vinte
tipos diferentes de chicletes no JCG, e até agora só tenho três.
– Eu tenho a carta com o chiclete azul.
– EU COMPRO!
– Alto lá, camarada. Eu só troco. E terá que ser por equipamentos fodas.
– Aceita poção?
– No meu rabo! Eu quero espada.
– Estou verificando aqui. Eu tenho cartas de equipamentos com cálice, vela,
defumador, cristal, espelho... serve?
– Defumador é útil, para traçar selos com a fumaça. Ou a vela para traçar
com fogo, mas esse método já é mais complicado e perigoso.
– Hmm... não.
– Eu troco pela carta do Grimório da Distorção.
– Fechado.
– Você trocou uma carta rara por um chiclete?! Você é retardado?
– Já estou ficando entediada de escutá–los falar sobre esse joguinho ridículo.
– Eu também. Não sou muito fã de JCG. Sei que esse jogo é útil como fonte
de poder mágico, mas simpatizo mais com a ideia de um grupo de amigos
criando secretamente as próprias cartas de gênios para criar fortes laços de
poder.
Aparentemente eles só estavam trocando cartas, para depois usá–las em
batalha. Mas a verdade estava óbvia: aqueles quatro mantinham laços de cartas.
Se minha suposição estivesse correta, aquilo era foda pra caralho. Possuir uma
conexão do tipo era tão forte como selecionar uma contraparte.

265
Wanju Duli

Há algum tempo eu vinha cogitando escolher Qah como contaparte, apenas


para oficializar a amizade e nada mais. Mas provavelmente ele já tinha uma. Eu
ainda não tinha perguntado. Era comum escolher na infância ou na adolescência.
– Vocês ouviram falar que o Yym montou um quebra–cabeça tridimensional
de nível médio lá na sala 19? Ele foi erguido com energia pura. Ele deixou duas
dimensões abertas para sustentá–lo e ele continuará de pé por mais dois dias.
Ele desafiou todos os alunos a tentar derrubá–lo.
– Se o “famoso Yym” fosse assim tão bom teria montado um quebra–
cabeça com quatro dimensões. Ele não espera que alguém o derrube. Quer que
o encaixem em algum lugar.
– Exato. É isso que o termo “derrubar” implica nessa situação.
– Aposto que o príncipe vai tentar solucionar o enigma. Aqueles dois são os
mais poderosos da universidade e se odeiam.
– O meu poder combinado com a força de Yol pode ultrapassar os dois.
– Eles são amigos. São contraparte. E, dizem os boatos, são amantes...
– Eu não dou a mínima se o príncipe e o “Yym–becil” curtem se comer ou
só trocam figurinhas. Mas até que faz sentido. Essa rixa entre os dois é só para
haver platéia e botar fogo. Os calouros curtem assistir uma boa briga entre
veteranos fodas. Eles fingem comer o couro do outro só pra impressionar. O
que comem mesmo é o rabo.
– Como eu disse, são apenas boatos. Ninguém realmente se importa.
– Em vez de brincar com quebra–cabeças, os cabeças da universidade
deviam estar treinando o JTG. Vencemos Jinas no campeonato por cinco anos
seguidos. Mas nesse ano o Legrizo e o Prevou se formaram. Eles eram feras e
pegavam todos os primeiros lugares. Se a gente bobear agora, estamos ferrados.
Não quero perder para as garotas. A Naridana já se formou também, certo?
– Não. Só no ano que vem.
– Merda. Nós vencemos por um fio no ano passado. Ela atrapalhou bastante.
É melhor nos prepararmos, senão tamos fodidos.
O Jogo de Tabuleiro dos Gênios era permitido e incentivado em Jins, tendo
seu aval no AVB. Eu curtia jogar e participava dos campeonatos. Considerava–
me um bom jogador. No ano passado quase cheguei à semifinal.
Mas os alunos de Jins curtiam mais fazer as coisas proibidas. Por isso eram
tão fanáticos pelo JCG. Deviam achar divertido trocar cartas na surdina.
Batalhas com selos e gênios também eram expressamente proibidas fora dos
testes em aula, onde era tudo seguro e controlado. Por isso mesmo a galera
curtia marcar duelos e se quebrar geral.
Quanto a mim, eu não estava muito a fim de ser expulso. Por isso, eu era um
aluno comportado. E um dos melhores da minha classe. Eu fazia questão de
manter minhas notas no topo, pois se um dia eu resolvesse fazer algo proibido,

266
Fábula dos Gênios

não seria tão grave. Embora a Fagenar Vibri fosse uma sociedade secreta oficial
e um orgulho para a universidade, no fundo eu sabia que ela estava repleta de
atividades ilegais. Era só fitar aqueles babacas e isso era claro como a luz do dia.
Lembro que quando eu era calouro estava em busca de membros da Vibri,
mas era muito difícil identificá–los. Em Jinas as alunas usam vestidos curtos e
meias longas, mas em Jins os estudantes usam as meias por baixo das calças. Era
tarefa quase impossível localizá–los facilmente.
Foi só no verão e em ocasiões de eventos de esportes que alguns estudantes
de meias coloridas ficaram visíveis. Tive que prestar bastante atenção até
descobrir quem eram todos. Mas se alguém havia sido expulso ou se entraram
novos membros, eu não estava sabendo.
– Falando nisso, minha irmã me enviou por e–mail algo bem
impressionante: os gráficos dos selos que Naridana usou para uma batalha. Ela
obteve um Selo Bomba, abriu uma dimensão e gerou um poder hiperpsíquico.
– Como é? Mostre–me!
Hparral retirou uma folha de dentro da pasta e entregou para Sremino.
– Isso é admirável. Contra quem ela batalhou?
– Ela venceu Werda e Derida ao mesmo tempo. Eis a explicação para a
disposição estranha no padrão dos selos. Fez na cerimônia de abertura, diante
de todos. E, com isso, agora ela é a líder da Fagenar Vibri novamente.
– Por que essa notícia não chegou a mim antes?
– Desculpe. Eu me esqueci.
– Você “se esqueceu”? Na segunda semana de aula teremos uma cerimônia
de confraternização, para um encontro entre estudantes de Jins e Jinas. Será o
primeiro encontro do ano desse tipo. E eu terei que lidar com Naridana. Isso
será terrível.
– Você tem medo dela? Relaxa. Ela não é tão assustadora como parece.
– Você nem mesmo fala com ela. Naridana somente fez uso de você. E por
que raios Krashkah não deu a notícia diretamente a mim?
– Você sabe que ela não gosta de você.
– Sou poderoso e influente. Como ela não pode gostar? Sou o homem dos
sonhos de qualquer mulher.
– Eu sei exatamente porque ela não gosta.
– As estudantes de Jinas são fãs do Yol. Só porque ele é o presidente do
clube de poesia.
– Escrevo poesia ao estilo da magia dos livreiros. Para liberar poder mágico
quando recitada em batalha. Fórmulas mágicas literárias.
– Deixa de falar merda, Hparral. É óbvio que as veteranas de Jinas têm bom
gosto e respeitam os caras inteligentes. Mas você lembra bem por quem as

267
Wanju Duli

calouras retardadas estavam babando no ano passado. E nesse ano não será
diferente.
– Eu sei. Elas curtiram o Qah, do terceiro ano. Aquele bostinha de cabelo
lambido.
– Ah, eu me lembro desse infeliz. Aquele que gosta de posar de solitário e
incompreendido e fica rastejando por aí com olhar de peixe morto.
– Pior que ele namora uma gostosa de Jinas. E olha que a mina dele é
inteligente. O “Qah–nalha” não consegue montar sequer uma frase que faça
sentido. “Eu sou o Q–q–q–qah, desculpe, eu sou g–g–g–gago”.
Hparral e Colmon desataram a rir com a imitação de Sremino. Dessa vez eu
não consegui ficar calado. Resolvi sair de onde estava e dirigir–me diretamente a
eles.
– Com licença, cavalheiros. Eu ouvi o que disseram. Qah é meu amigo. É
melhor que o respeitem. Ele certamente não fez nada a vocês para que mereça
esse tratamento.
– Entre amigos, falo o que quero. Não preciso dar satisfações.
– Eu não sabia que os membros da Fagenar Vibri apreciavam umas boas
fofocas.
– E você parece gostar de ouvi–las. Isso não te faz pior que eu? Falando
nisso, quem é você? O amante do Qah?
– Borrai, do terceiro ano.
– Ele é forte, Sremino. Venceu Nerrisso num duelo no ano passado.
Sremino fitou–me atentamente.
– Então, senhor Borrai. O que mais o incomoda? Deseja fazer uma lista com
suas reclamações ou será o suficiente enfrentar–me num duelo para resolver
nossas diferenças?
– Rai, esse cara é bem direto. E extremamente confiante.
– Não me importo em brigar.
Sremino largou a pasta na grama, levantou–se e retirou algumas cartas do
bolso.
– Putz, vão fazer isso a céu aberto? Ele não será punido, pois é da Vibri.
Mas você tá fodido, garanhão.
Eu não me importava. Estávamos no pátio e não havia professores ao redor.
Surpreendi–me que ele tivesse topado a batalha sem pestanejar. Então eu não
iria me acovardar depois de ter comprado a briga.
Retirei um velho grimório da pasta. Como eu era um apreciador da história
de Consman, eu iria utilizar técnicas antigas naquela batalha. Começando por
velhas fórmulas mágicas. Se ele pensava que poderia prever meus movimentos,
estava errado.
– Um para quatro, metade em uníssono da anunciação de dó!

268
Fábula dos Gênios

Fiz um selo de proteção utilizando um quadrado dividido em quatro partes,


uma delas piscando mais forte. Era um quadrado vivo que girava ao redor de
meus pés e projetou um cubo para circundar–me. Metade do cubo iria me
defender e a outra tinha a probabilidade de 50% de refletir o ataque. Essas
magias com certa probabilidade de falha estavam fora de moda e não era mais
tão interessante usá–las. Mas eu era um apaixonado e desejava confundir o
cálculo do inimigo com essa variável imprevista.
– Que porra é essa que esse cara tá fazendo, maluco?
Mas Sremino apenas deu um sorriso divertido, como se sugerisse que estava
no controle da situação. Ele pegou o deck do bolso da camisa de Colmon e de lá
retirou a carta do defumador. Com ela, materializou um tipo de vareta de
incenso, através da qual traçou variados selos tridimensionais no ar, que
atuariam como uma muralha de proteção, dispensando o selo circundante no
mago.
– Eu bem que avisei que essa carta era útil...
Tanta fumaça atrapalhou meu campo de visão. E as formas traçadas com
fumaça inutilizaram parcialmente o meu selo, pois uma linha descontínua era
boa técnica para ferrar a minha probabilidade. Isso aumentaria muito minha
possibilidade de falhas.
Mesmo assim, ousei atacar. Recitei uma segunda fórmula para criar uma
trilha de selos que seguiam enrolando–se um no outro em direção a ele.
O que ele fez a seguir me surpreendeu. Ele utilizou a carta da vela para
transformar a fumaça do incenso em fogo! Meus selos foram quebrados
imediatamente.
Mas eu tive muita sorte. Minha probabilidade de reflexão sorriu para mim e
o fogo voltou para ele. E lá foi o maldito utilizar a cartinha do espelho. Mas eu
já esperava que isso fosse acontecer. Ele estava zombando de mim.
– Sremino, você me desaponta! Vai apenas brincar com cartas? Onde está a
sua magia geométrica e simbólica? Aquela que representa os selos matemáticos.
Nem mesmo sinto batidas em você.
– Sequer preciso alterar meu ritmo de batidas para derrotá–lo.
Se era assim que ele iria jogar, a vitória já estava comigo. Decidi pegar
pesado para forçá–lo pelo menos a utilizar o próprio deck de JCG em vez de
pegar um que nem mesmo foi energizado por ele, para tirar com a minha cara.
Joguei o grimório no chão e peguei o punhal vermelho no cinto.
– Oh? Batida excelente?
Realizei minha meditação de pé, piscando os olhos rapidamente e acelerando
o ritmo das minhas batidas. Mas Sremino me ferrou em seguida com sua
cartinha com o Selo de Prisma, alterando as cores do espectro. As cores da carta

269
Wanju Duli

quase me cegaram e minhas batidas aceleraram tanto que fiquei de joelhos no


chão.
– Esse mago tem carta para lidar com qualquer situação.
A ideia das cartas era boa, pois funcionava como pacotes embutidos de
magia. Um mago geralmente carregava pelo menos um punhal consigo, mas
ninguém ia sair por aí com uma mochila cheia de incensos, cálices, espelhos,
espadas e toda a parafernália de um velho feiticeiro para usar em duelos. Coisas
assim eram utilizadas para rituais longos. Batalhas exigiam velocidade e
praticidade. Nesse quesito, cartas funcionavam bem.
Eu precisava utilizar alguma técnica surpreendente que não pudesse ser
rebatida com magia das cartas. Elas também possuíam seu ponto fraco.
Eu tive uma ideia brilhante. Eu aceitava perder uma parte do meu desejo de
infância somente para tirar o sorrisinho da cara dele.
Quando ele me viu tocar nos cabelos, ele entendeu. Mas era tarde demais.
Houve uma explosão gigantesca! Os três membros da Vibri que assistiam
sentados na grama precisaram se levantar para erguer escudos mágicos, tamanho
foi o impacto. A árvore ao lado desabou imediatamente.
– PUTA QUE PARIU!
– O desgraçado usou Técnica de Fios...! Ficou LOUCO? Ei, Sremino! Ele
tentou te matar!
– Não tentou. Essa é somente a primeira leva. Ele sabia que eu sou forte o
suficiente para me defender. Ele só queria me assustar. Parabéns, pobre tolo.
Você conseguiu.
Eu realmente consegui apagar o sorriso do rosto dele. Mas eu não imaginava
que a defesa dele fosse ser assim tão perfeita.
Agora o vermelho dos meus cabelos estava apenas nas pontas. Sremino
tocou os próprios lábios e viu sangue nos dedos. Ele me fitou com ódio.
– Você machucou meu gênio. Sabia que ele está enrolado em minha alma?
Sabe o que acontece se ferir minha alma, filho da puta? Você irá alterar o meu
fluxo de karma. Isso é pior que a morte.
– Eu sei. Já li o AVB e já assisti as aulas de ontologia. Eu falei para você
duelar a sério e você não me escutou. Quem sabe assim você me respeita. Não
são apenas os destruidores que lutam visando destruir o gênio.
Sremino cuspiu o cigarro no chão. Pegou no bolso um chiclete caríssimo, de
cor roxa, e começou a mascá–lo de boca aberta, fitando–me mortalmente com
uma careta de quem queria arrancar o meu couro.
– Nunca mais mencione os destruidores diante de meu senhorio. Você não
sabe com quem tá comprando briga, menininho...
Ele reduziu as próprias batidas ao extremo. E, junto com a gigantesca bola
de chiclete, saiu de sua boca um gênio metade vermelho e metade laranja. Mas o

270
Fábula dos Gênios

que me impressionou mais era que o gênio dele não tinha apenas a forma de um
fantasminha.
Ele tinha chifres! Patas. Era como um animal fantasmagórico. Como ele fez
isso...? Como foi capaz de alterar a aparência do gênio a esse ponto?
Utilizou uma carta com o Cubo da Vaidade e deixou o gênio gigantesco,
pesado e fedido. E o que ele fez a seguir, eu não sou capaz de descrever.
Retirou a própria alma da boca, como chiclete! Enrolou o gênio na alma e
com eles quebrou uma dimensão. Dela rolaram dois tetraedros repletos de
sangue, que explodiram como bombas, derramando números e aromas.
Sremino bufava como um animal. Ele retirou um punhal negro das vestes e
colocou suas batidas em...
– 97%...! Você superou Naridana!!
Espere. Aquilo não era possível.
Eu estava lutando contra um monstro. Tive que chamar meu gênio para me
defender. Não seria possível ficar só na magia de selos.
Batalha com gênios era algo sério. Nem Naridana e as moças de Jinas, na
disputa pelo título, chegaram a esse ponto.
– Ijea!
Meu gênio vermelho e verde colocou–se diante de mim para defender–me
daquele gênio–fera que trotava na minha direção como um dragão.
Quando o sangue daqueles tetraedros tocou em mim, eu senti uma sensação
psicológica horrível. Como se sentisse a morte. E do bafo do gênio dele vieram
ácidos. Aquilo queimou a pele da minha mão, que borbulhou.
Da boca do gênio dele saiu um osso. Eu já estava no chão. Não ia aguentar
mais. Como eu fazia para demonstrar que desisti da batalha?
Sremino percebeu. Ele aproximou–se de mim com um sorriso e passos
lentos. Cuspiu o chiclete em cima de mim, que caiu na minha mão, misturando
meus pedaços de pele soltos com aquela substância pegajosa.
Tranquilamente, ele acendeu outro cigarro. Soprou a fumaça no meu rosto.
A partir dela, surgiu um selo complexo com dois trapézios e um idioma
desconhecido por mim.
Com o isqueiro, ele transformou o selo em fogo, que quase atingiu meu
rosto, não fosse eu defender–me com minha mão de peles e chicletes, que já
estava toda ferrada.
– Acabou. Agora você e seu namorado Qah podem tomar no cu.
Chamei meu gênio de volta e desfiz os selos. Minha mão direita ainda estava
com um grande corte aberto, repleta de pedaços de carne, sangue e chiclete.
– Filho da puta...! Você usou magia dos destruidores! Você tem um maligno.
– Oh, você descobriu meu segredo! E agora, o que farei?

271
Wanju Duli

Ele disse isso em tom de zombaria. Era óbvio que os três membros da Vibri
já sabiam disso, pois não expressaram nenhuma surpresa. Mas uma galera que
assistia à nossa batalha no pátio parecia não saber. Sremino não dava a mínima.
Ele apreciava ser temido por todos.
– É muito simples atingir batidas magníficas e intoleráveis usando magia de
destruidores. Naridana chegou a 96% sem um maligno. Isso sim é admirável.
– Nenhum franguinho dessa universidade possui colhões para oferecer o
corpo e a alma como alimento ao maligno. Nem mesmo a musa de Jinas.
– Você é incompreensível! Diz odiar os destruidores, mas usa a magia deles!
– Eu te garanto que a fúria que sinto pelos destruidores é incomparável. Mas
há momentos em que odeio ainda mais os estudantes covardes de Jins e Jinas.
Um bando de pau no cu que somente aprecia calcular o ritmo de decaimento da
própria merda.
– Você abriu uma dimensão de Desmei no campus. Aqueles tetraedros de
sangue vieram de lá. Se isso chega ao conhecimento do reitor, você será jogado
para fora de Jins de imediato.
– Eu respeito os professores de Jins. Eles são inteligentes. Nossos grimórios
são excelentes e temos muitas aulas admiráveis. Ainda não desejo deixar esse
lugar. Acima de tudo, aprecio a Fagenar Vibri. Aqui há magos muito mais
poderosos do que você pensa. O conhecimento que trocamos é incomparável.
– Vocês têm acesso ao GGM.
– E também ao AM. Mas possuímos somente algumas páginas. Tentarei
intimar o príncipe a entregar–me os volumes completos. Ouvi dizer que ele tem
uma cópia.
– Por que não viaja logo para Desmei e entra numa das sociedades secretas
deles?
– Porque eu desejo tudo: eu tenho um maligno. Mas eu também tenho um
gênio. Possuo meu orgulho de construtor e desejo dominar as duas versões da
magia.
Eu jamais pensei que algo assim fosse possível. Era verdade que os
construtores possuíam técnicas próprias que os destruidores não tinham.
Sremino também as desejava.
Eu sabia que os estudantes de Jins curtiam mexer com coisas proibidas. Mas
buscar magia de destruidores já era ir longe demais.
– Meu... eu não fui com tua cara. Você queimou minha mão e jogou um
chiclete nela. Meteu um selo de fogo e fumaça de cigarro na minha cara. Você é
um bostinha metido e mal comido que só sabe fofocar com suas amiguinhas
lavadeiras e brincar de bonecas com elas. Ou trocar suas cartinhas, que é
praticamente a mesma coisa. Chegou tão longe a ponto de me revelar seu gênio

272
Fábula dos Gênios

e sua magia só porque ficou com invejinha do Qah? Você é uma menininha, seu
baitola?
– Você pensa que suas palavras me ofendem, mas está muito enganado.
Naridana, uma das maiores magas de todos os tempos, é uma mulher. E os dois
filhos da puta mais fodões dessa universidade, Yym e o príncipe, são viados.
Então, meu filho, tente usar termos mais fortes. Ainda não fiquei ofendido. No
mínimo, orgulhei–me com o que disse.
– Que o Sremino é mal comido é verdade. A ligação dele não quer foder
com ele de novo, por mais que ele implore...
– Colmon, sua ligação sequer lhe dirige a palavra, quanto mais a buceta.
Enfim! Isso é irrelevante nesse momento. O que mais você quer de mim,
Borrai? Já foi derrotado, então agora suma! Se quiser me delatar para o reitor, eu
vou arrancar a alma de sua boca e te enforcar com ela. Hei de foder seu fluxo de
karma pelas próximas mil gerações!
– Hã... relaxa, velho. Sabe, a sua magia me impressionou de verdade. Eu tô
puto contigo, mas minha vontade de entrar para a Fagenar Vibri agora é imensa.
Não ligo que você esteja nela. Eu irei simplesmente ignorá–lo. Apenas coloque–
me em contato com o mestre da Vibri em Jins. Quanto a você, não irei
obedecê–lo na menor palavra, seu cretino maldito. Eu somente darei satisfações
para o líder.
– Quer saber, putão? Eu vou te colocar em contato com o líder. Para a sua
informação, ele está entre nós.
– Qual de vocês? Saia da frente para eu poder vê–lo.
Somoyol, o bacana de black power, ergueu a mão.
– Eu sou o vice.
Dentre os quatro, Somoyol era o único que prestava. Estava muito claro que
era essa a razão de ser tão confiável para obter uma posição como essa.
– E quem é o líder? Yym?
– Yym sequer está na Ordem. Não venha falar merda, otário.
Eu dei o dedo pra ele.
– Talvez essa notícia seja meio chocante para você. Eu sou o líder da
Fagenar Vibri.
Eu baixei o dedo. Eu sorri, sem saber como reagir. Os outros riram da
minha cara.
– Hahahahahahahahhh! Se ferrou legal.
– Porra. Hã... foi mal, cara.
– Relaxa. Fui eu que fodi sua mão.
– Já era, perdeu a compostura. HAHAHAHAHAHA ESSA FOI ÓTIMA!
– Se quiser me punir, fique à vontade para ferrar meu gênio. Ela aguenta.
– NÃO, NÃO! OK, OK, parei.

273
Wanju Duli

– Eu não vou te ferrar, meu. Você mesmo fez isso. Se quiser entrar para a
Vibri, vai ter que dar um pedaço do seu corpo para Ijea.
– Essa é a prova de entrada?
– A primeira. Ela vai ter que vomitar o seu pedaço na minha frente.
Eu coloquei Ijea para fora e estendi a mão.
– Coma um pedaço da carne da minha mão e retire esse chiclete. Já está toda
ferrada mesmo...
– Eu mereço...
Ijea mordeu a parte da minha mão que estava machucada. Senti uma dor
aguda, mas me livrei das peles soltas e do chiclete. Como Ijea mascou a carne
junto com o chiclete, não se sentiu assim tão tentada pelo meu gosto.
Os quatro me fitavam impressionados.
– A maioria recua diante dessa primeira prova. Ou pede pelo menos alguns
dias para pensar. Você fez de imediato. E ainda ofertou uma parte externa do
seu corpo. Bem impressionante.
– Qual é a segunda prova?
– Uma batalha séria com selos e gênios, com um de nós, para testar a sua
força. Isso nós já tivemos. E o nosso foi um duelo particularmente extremo.
Fico satisfeito que aceite lutas assim. E você aceita batalhas de imediato. Isso é
excelente. Você não recua. Mesmo caído no chão ensanguentado, você não
pediu para parar.
– Eu sou admirável, não é mesmo? O que devo fazer a seguir?
– O terceiro teste é desenhar uma carta do seu gênio, depositando nela uma
porção de sua alma. Com isso teremos poder sobre você.
Então era verdade. Eles tinham mesmo realizado o pacto de cartas e almas.
Com a junção das cartas de todos, seria gerada uma gigantesca egrégora, que
formaria o corpo de uma quimera a ser utilizada em batalha, que teria como
fonte de energia as partes das almas de todos. Magia do AVB.
Alcancei minha pasta. Rasguei uma folha de caderno e desenhei traços
toscos do meu gênio com canetinha. Abri a boca e, com um exercício
respiratório, transferi energia para lá. Uma parte muito pequenina de minha
alma impregnou no papel e uma gota de sangue escapou dos meus lábios para a
folha. Já era o suficiente.
Entreguei o pedaço de papel para Sremino. Ele me fitava com uma
expressão de surpresa.
– Cara... você é porreta. Está fazendo tudo o que digo de imediato. Que belo
cachorrinho você é.
– Tenho permissão de retrucar mesmo para o líder, certo?
– Sob sua conta e risco.

274
Fábula dos Gênios

– Eu não temo seus testes tolos e simples. Eu estava preparado para morrer
naquela luta. Você acha que um pedaço de carne ou uma gota de sangue iriam
me parar?
– Eu não quero idiotas fanáticos como membros. Isso é coisa de
destruidores. Você também necessita da razão e do equilíbrio. Precisa saber
quando parar, seu louco suicida.
– Então a minha determinação e coragem geraram minha reprovação no seu
teste?
– A sua última chance será na quarta prova: a final. Hoje à noite iremos nos
reunir na sala 28. O local de maior energia mágica do campus. Há muitas coisas
interessantes por lá. Você será vendado e deverá responder a uma série de
perguntas filosóficas, de caráter mágico. Prepare–se. Nos encontraremos lá à
meia–noite.
– Eu aceito.
Os quatro pegaram as suas coisas e se retiraram.
Tudo estava acontecendo muito depressa. Por que, depois de dois anos, eu
aceitei me envolver com a Vibri? Logo naquele dia? Ora, havia um motivo
maior para que eu tivesse feito isso.
Tive que passar no hospital para dar um jeito no machucado da minha mão.
Aquilo doeu pra caralho. Dei uma de durão durante a briga, mas aquela ferida
tinha sido o suficiente pra chorar.
Durante a aula de evocação, eu conversei com Qah. Contei a ele tudo que
aconteceu.
– Isso foi algo bem idiota.
– Para a sua informação, fiz isso para defendê–lo.
– Obrigado.
– Isso é tudo que tem a dizer?
– Sim.
Algumas vezes, Qah era bem evasivo. Ou talvez fosse verdade o que
Sremino falou: nem tudo o que Qah falava fazia realmente sentido. Ele era um
cara estranho. Ficava murmurando palavras incompreensíveis para si mesmo.
Tinha olhos e cabelos pretos. Os cabelos escorridos quase tocavam seus ombros.
Seu rosto parecia o de alguém muito doente. Tinha traços delicados. Sua voz era
meio fina e falhava em alguns momentos.
A aula de evocação passou voando. Eu estava tão distraído que tracei alguns
selos incorretamente.
Quando fomos para a aula de ética, o professor demorou muito a chegar.
– Aquele panaca do professor Borgie. Aposto que foi esmagado sob o peso
de todos os grimórios que carrega. E ficou esparramado em algum corredor.
Outra vez.

275
Wanju Duli

Borgie era bem velhinho. Caminhava devagar. Eu já estava de saco cheio de


aguardá–lo. Pensei em desenhar alguns selos em cima da mesa enquanto
esperava. Quem sabe até evocar algo, pra sacanear alguém.
Mas quando vi quem entrou pela porta, eu quase caí da cadeira. Todo
mundo se espantou.
Quem adentrou foi um homem de trinta e poucos anos, com barba e longo
manto azul. Seu olhar era penetrante.
– A aula de hoje será inesquecível. Espero que possam guardar uma porção
do coração consigo até o final.
Eu pensei que ele era um estudante no último ano da universidade. Todos
pensavam. Mas a verdade era que ele tinha se formado no ano anterior. E
iniciava sua primeira aula como professor universitário naquele dia.
Era Yym.

276
Fábula dos Gênios

Capítulo 2: Uma Chance Desperdiçada

Cara... o mestre fica um porre quando bebe.


Nem era festa da Vibri. Era evento oficial da universidade. E ele fica lá
enchendo a cara e falando merda.
Nosso trabalho? Arrastar a carcaça dele de volta para o dormitório pela
manhã. Se eu soubesse que me tornaria membro da famosa Fagenar Vibri para
ter essa função, eu teria pensado duas vezes.
Mas, analisando com calma, Werda era uma mestra ainda mais maldita. Até
que eu tinha sorte por estar em Jins. Em vez de uma líder carrasco, tínhamos
um líder com a língua solta. Não era a melhor imagem para uma Ordem de
respeito como aquela, mas quem se importava? Eu e os outros caras que
estavam lá dentro éramos fodas.
Para ser membro da FV você só precisava ser foda. Se você fosse altamente
poderoso, ninguém se importava se fosse um pé no saco. Ou melhor,
oficialmente nós éramos ordenados a aturá–lo.
E lá estávamos nós na cerimônia do primeiro dia de aula, trajando as
pomposas vestes de gala. Observando os calouros discretamente, para ver se
alguém se destacava.
– Você consegue notar se um aluno tem poder apenas olhando para ele?
– Nenhum calouro tem poder forte. Mas é possível enxergar potencial para
poder. E se isso for notado, é bom trazê–lo para cá, antes que outra sociedade
secreta o clame para si.
– Brigar por um calouro? Que vergonhoso. São eles que devem implorar
para estar conosco.
– A Fagenar Vibri perdeu muito do prestígio que tinha nos velhos tempos...
– O tempo que Yym era líder? Tão certinho, tão comportado. Naquela
época a Vibri não tinha emoção. Eles eram apenas um bando de menininhos
inteligentes se reunindo para debater teorias da magia. Yym selecionava os
membros de acordo com aqueles que tiravam as maiores notas. Eles se achavam
tão espertos, desfilando pela universidade em suas vestes impecáveis e clamando
em seu vocabulário hermético!
Se aqueles critérios ainda permanecessem em voga nos dias de hoje, Sremino
não seria sequer aceito como membro, muito menos como líder. As notas dele
deixavam muito a desejar. Em vez de estudar para as provas, ele permanecia a
buscar grimórios proibidos, para dominar magias que poucos conheciam ou
tinham coragem de tentar.

277
Wanju Duli

O mestre era como aquele aluno indomável que comanda outros alunos a se
rebelar contra o sistema. O cara que desafia todos a entrar na casa mal
assombrada e é o primeiro a provar que nada tem a temer nesse mundo ou no
outro. Quase como se precisasse provar algo para si. Exibir–se para ser
admirado.
Ele era um líder nato. Disso eu não tinha dúvidas. Fazia seus discursos com
muita segurança e convicção; e suas palavras fortes inflamavam corações.
Contudo, muitas vezes ele defendia ardentemente ideias absurdas e gostava
de dar uma de louco. Nesses momentos, eu costumava ficar na minha. Hparral
geralmente era o que dava corda para as teorias piradas de Sremino, como se
não tivesse opinião própria. Eu não me metia. Abria um livro e aguardava até
que os ânimos se acalmassem. Afinal, se eu inventasse de contradizê–lo,
Sremino iniciaria um novo discurso ainda mais chato. Bateria na mesma tecla até
ganhar. Os argumentos dele não eram ruins. Eram apenas insanos.
– Yym defendia que a fonte do poder mágico era mana. Um pensamento
heterodoxo que sequer encontra respaldo no Arcano Vida Brilhante. De fato,
temos muitas teorias metafísicas empolgantes acerca das energias formadoras e
transformadoras do espírito e da alma. Mas fica bastante claro que a Teoria do
Mana é antagônica à Teoria do Karma. Não podemos ter TM e TK
simultaneamente! As partículas de karma devem ser destruídas. Isso implica
também na destruição da energia vital, e não funciona.
– Mas se karma é matéria e mana também, para onde se dissolve após a
aniquilação?
– Energia também é matéria, mas num nível mais sutil. Tempo é matéria.
Mas não é fácil enxergar as partículas do tempo.
– Os destruidores são capazes de visualizar as partículas do tempo com os
olhos do maligno. Assim podem manipulá–lo.
– Não deu certo para mim. Eu me pergunto se é algo que está no sangue. A
constituição do corpo dos destruidores deve ser diferenciada. Destruidores
usando o GGM é diferente de construtores utilizando–o. Seria porque eles
despertam o maligno desde a infância?
– Enquanto isso, nós nos debruçamos em livros, inventando mil nomes para
definir algo que não sabemos fazer.
“É isso mesmo, Hparral, incentive–o”. Quando isso acontecia, Sremino se
empolgava ainda mais, e em pouco tempo estaria clamando tão alto que o salão
inteiro escutaria.
– Mas se Yym estiver certo e a chave da magia estiver em mana... isso
solucionaria uma série de enigmas. É como acrescentar uma variável coringa,
que se encaixa perfeitamente na equação.

278
Fábula dos Gênios

– O mundo não é perfeito. Então é evidente que uma teoria que encaixa
todas as peças, como um quebra–cabeça, só pode estar incorreta. Os
construtores buscam os círculos. Os destruidores preferem os triângulos. Eis
nossa diferença.
– Então você defende que Valonde está incorreta com a Teoria do Quebra–
cabeça? E Cazka está correto, com a Teoria da Teia?
– Eu prefiro TT a TQC. Um universo caótico. Uma teia pode se esticar e se
distorcer. Gera uma equação mais maleável.
– Mas pode haver mana e karma ao mesmo tempo. Resta saber qual dos
dois é indestrutível. Partículas de karma ficariam impregnadas na alma, para
ocorrer a transmigração. E as partículas de mana estariam grudadas no gênio...
Sremino deu um soco forte na mesa de comes e bebes. Uma das taças virou.
– Não existe a porra do mana! Se duvidar, sequer existe alma! Ela pode ser
um resíduo de miasma enrolado no gênio! Agora você vai me dizer que a fonte
de mana está em Samerre, cacete?!
– Colmon, cala a boca. Você está deixando o mestre alterado. Depois vocês
discutem isso.
– Nem tente apartar essa briga, Yol! Ela já começou. E agora só terminará
com o cadáver de um de nós estendido no chão.
Para Sremino, qualquer coisa já era motivo para uma batalha de vida ou
morte. Até o mais trivial dos comentários. Eu não temia comprar briga com ele,
mas era muito estressante ver situações como aquela ocorrerem com frequência.
Provavelmente Cazka havia despertado o instinto de guerra no líder.
– Não precisamos ser tão dramáticos. Basta nos recordarmos do primeiro
trecho do Capítulo 2 do GG.
– “Dos conceitos que podem ser negociados”. Isso significa que considerar
a existência do mana ou desconsiderá–la, isso é irrelevante e os dois pontos de
vista podem ser conciliados. É a teoria, as palavras que podem ser moldadas
como possíveis interpretações imperfeitas da realidade.
– Dizem que cor não é propriedade da matéria, mas para mim cor e luz são
matérias, em si, enquanto existência perceptível aos sentidos. De forma análoga,
também o são as palavras. Elas são verdade enquanto mantivermos essa ilusão
da verdade, assim como a própria vida e o mundo. Então, eu tenho o direito de
tornar verdadeiras todas as minhas mentiras, à força!
– O GGM está fazendo sua cabeça, Mino. Vlebre Cazka fez uma bela
lavagem cerebral em você.
– Não queremos brigas. Preferimos a paz e a reconciliação dos variados
pontos de vista. Em nome disso, todo o resto pode ser negociado.
– Quem quer a paz? Você? Eu prefiro uma vida de emoção e adrenalina,
tendo minha vida por um fio, ao tédio da paz. Não desejo ser um covarde que

279
Wanju Duli

anseia estender sua vida ao máximo somente para brincar, e por medo da morte.
Desejo desafiar minha vida constantemente, para que a morte tome meu corpo
prematuramente, pelas mãos de um inimigo forte e digno que me derrote. Eis a
única forma suprema de morrer.
– Eis a explicação para a sua relação de amor e ódio pelos destruidores.
Você ama a forma violenta com que eles veem o mundo. Ao mesmo tempo,
você deseja ter um inimigo para odiar. Você queria ter nascido destruidor?
– Eu não queria ser pobre. Preciso do meu fumo. Eu só queria ter aquele
sangue para fazer bom uso de um maligno. Mas, pode ter certeza: se eu visse
alguém com sangue de destruidor na minha frente, eu iria matar o bastardo. E
anunciaria ao mundo que derrotei um destruidor.
A linha de pensamento dele não era tão difícil de entender. Ele queria ser
forte e derrotar caras fortes. Morrer pelas mãos de um deles. E acabou. Ele
distorceria todo o resto para que as coisas fossem dessa maneira.
– Eu tenho meu orgulho como construtor. O que você diz é ofensivo. Não
concorda, Yol?
– Também tenho meu orgulho e não vou com a cara dos destruidores. Mas
não sou fanático. Eu não mataria um destruidor de graça, assim, por nada.
– Eu mataria, só de ver um na minha frente.
– Meu sangue ferveria e eu precisaria destruir o desgraçado a qualquer custo.
– Se conseguirem, certo?
Os dois olharam feio para o Hparral. Sremino virou mais uma taça de álcool
na garganta. Em vez de iniciar um novo discurso mostrando o quanto era forte
e inteligente, ele alterou a temática.
– A fonte da magia não é mana. A fonte é só uma: peitos!
– Agora exponha argumentos relevantes para sustentar a sua teoria.
– Não é uma teoria e sim uma lei. Os peitos guardam o leite que alimentam
o infante. Não somente um alimento da carne, mas da alma e do gênio.
– Como pode ser isso?
– O leite materno é mais agradável do que o chiclete para o gênio. Eu e meu
gênio estamos com saudades de reaver as memórias da infância: a suprema fonte
de magia que sustenta a ontologia dos universos da mente e das diretrizes
absolutas.
– Com base no que você falou, a fonte seria a buceta e não os peitos. Pois é
através dela que passa a porra e que desce o bebê.
– Excelente argumentação, mas existe uma interdependência entre a geração
do indivíduo e a manutenção dele. Sendo assim, os líquidos vaginais e o leite
seriam como o plasma do sangue e os elementos figurados.
– Hã?

280
Fábula dos Gênios

Puta que pariu. O Mino já tinha se passado na bebedeira. Eu só esperava


que ele não puxasse a espada e evocasse um ou dois gênios no meio do salão de
confraternização.
– A Magia da Ligação é uma das mais poderosas de que se tem notícia. Eu
particularmente me sinto mais conectado quando há elevados dotes de energia
sutil.
– E com isso, retornamos aos elementos da argumentação prévia...
– Peitos! Nesse quesito, Derida é insuperável. Hparral, você é o filho da mãe
mais miserável desse mundo e dos próximos. Eu quebraria meu karma para
tocar neles. São macios?
– Ela não me deixa pegar.
– As senhoritas de Jinas amam posar de intocáveis. Fanáticas por “magia
pura”, sem ter olhos para enxergar que a fonte da magia para elas reside no
caralho de suas ligações. Tenho uma proposta a fazer para Kah no encontro
entre Jins e Jinas. Eu a desafiarei em batalha. Se eu for o vencedor, ganho uma
foda com ela.
– Você está tão desesperado assim?
– Na verdade eu preferia matar alguém. Arrancar um pouco de sangue. Eles
não me deixam fazer isso aqui dentro.
– Nem imagino o motivo da proibição...
– Então eu quero saciar um pouco da minha sede de sangue com sexo. OK,
eu confesso que também tenho um pouco de desejo por Werda e Naridana. Isso
somente porque elas são muito poderosas. Mas Werda é como uma tábua.
Certamente não há nada lá.
Sremino estava assim falante na nossa frente. Diante de Werda ou Naridana
ele se portava como o bastardo mais certinho e respeitável do mundo.
– Mas não posso cortejá–las por causa das ligações. Merda. Você acha que
eu morro se enfiar o pau numa delas?
– Eu acho que elas te matam antes de você conseguir fazer isso...
– Na verdade eu montei um cálculo que demonstra a probabilidade de
morte entre dois construtores que trepem, não sendo a ligação um do outro. Li
dez livros sobre isso nas últimas semanas.
Ele tirou uma caneta do bolso e alcançou um guardanapo. Começou a
montar as equações lá. Ele meteu até trigonometria no meio. Desenhou dois
esquemas de eletrocardiograma dos dois supostos construtores, e como operaria
a batida no instante da transa.
Quando ele virou mais um copo, já não estava falando coisa com coisa.
– Então, como podem ver por este cálculo, a fonte de mana está nos peitos.
Por isso preciso enterrar a minha cara no meio de dois fartos seios, para

281
Wanju Duli

fortalecer o gênio, que sai pela boca. E colocarei meu pau no meio deles
também pra... consertar a variável ontológica.
Depois disso, acho que ele dormiu. Mandei Hparral levar Sremino de volta
ao dormitório dele, porque era uma sorte do caralho ele não ter comprado briga
com ninguém na cerimônia de início do ano. Precisávamos tirá–lo de lá antes
que aquilo acontecesse.
No final, ele havia rabiscado em vinte guardanapos. Num deles desenhou até
um mapa, que ninguém entendeu o que era ou qual a relevância daquilo para o
discurso que ele defendia.
– Eu acho que, no final das contas, o mestre está realmente certo.
– É claro. Tente sustentar essa teoria amanhã, com dez taças a menos de
álcool no cérebro.
Sremino acordou atrasado para a aula no dia seguinte e estava com uma
ressaca da porra. Passou o resto da segunda aula reclamando porque eles faziam
aquelas festas logo numa segunda–feira. Eu apenas concordava com a cabeça,
mesmo sem ouvir metade do que ele dizia.
– Você ouviu o rumor de que o príncipe montou uma sociedade secreta
religiosa? Ela foi denominada Armana. O “Arcano do Mana”, só para enaltecer
a teoria nojenta do Yym–becil.
– Ouvi. Mas você não vai comprar briga com o príncipe. É questão de
orgulho nacional. Nós temos o dever de defender e proteger o príncipe.
– Eu sou o único que não faço reverência quando o príncipe passa.
– Cara, se liga. Se você cometer desacato, será expulso.
– “Vossa Alteza” já recebe muito beijo na bunda. E agora deve estar ainda
mais cheio de si, por ser um líder religioso.
Eu achava o príncipe gente fina. Parecia interessante a proposta da Armana,
mas é claro que eu não disse isso na frente do Mino, ou ele provavelmente ia dar
outro de seus discursos intermináveis e irritantes, defendendo a supremacia e a
excelência da Vibri.
Sinceramente, eu me achava foda por estar na Vibri. Havia membros fortes
lá dentro e a maioria deles era suportável. Mas se o príncipe estivesse
organizando algo grande, com figuras poderosas, e com mais cérebro e gentileza
do que petulância, por que não? Resolvi que iria investigar mais.
Contudo, naquela madrugada haveria o teste final de Borrai. E, caso ele se
mostrasse digno, logo ocorreria sua iniciação formal. Estaríamos bem ocupados.
Nós o vendamos e o conduzimos a uma sala de alto potencial energético.
Ele permanecia sentado numa cadeira, enquanto Mino o circundava. Eu já havia
passado por isso no meu tempo de calouro e lembro que foi bem assustador ser
cercado por veteranos fortes, sem enxergar nada, sabendo que aqueles caras
dominavam um pedaço da minha alma numa carta.

282
Fábula dos Gênios

Mas Borrai era forte e confiante. Eu desconfiava que ele fosse se sair bem.
– Primeira pergunta: o que é a magia?
– Nosso dever, honra e vontade.
– Qual é a fonte da magia?
– A mente.
– Onde reside a mente do mundo?
– Na potência do desejo.
Borrai estava se saindo bem. Dava respostas imediatas e sucintas. Mas Mino
estava sendo caridoso nas perguntas. Por enquanto.
Sremino segurou na cadeira e aproximou o rosto.
– Nós somos acadêmicos, ouviu, seu bostinha arrogante? Elabore as
respostas. Seja mais categórico.
– Se possuo o direito de réplica, devo salientar que ser claro e lacônico
constituem virtudes na empreitada dialética.
– Sob o risco de ser obtuso! E fugidio. Ou o senhor toma minhas nobres
perguntas por uma mera disputa de retórica, parvo? Retomemos, do princípio.
Que é a magia?
– Uma vontade natural. Uma honra ser a parte da energia do todo. O dever
de defender meu povo e minha condição de ser humano.
– Por quê? Isso não me parece forte. Mostre–me a força!
– Um sentido. A conexão que restabelece o princípio deferente da
desconexão.
– Pois ousa falar a mim de sentidos e conexões, condição esta que sugere a
defesa dos quebra–cabeças valondeanos!
– Meu... eu não posso adivinhar qual é a resposta que você quer ouvir. Para
mim, a magia confere sentido. Se é diferente para você, fica frio. A magia pode
ser aquilo que encaixa e também o que desencaixa. Necessitamos dos dois
princípios.
– Esse sujeito é espertinho, não acha, Somoyol?
– Peço o candidato emprestado por alguns instantes. Tentarei encaixar a sua
entrevista.
Apenas dar continuidade ao processo inventado por Mino, mas poupando o
novato dos gritos descontentes.
– Candidato. Pode realizar seus encaixes, se assim o satisfaz. Mas onde
procura a fonte de poder, quando a mente cansa, está esvaziada e sem vida?
– No outro.
– Quem é esse outro? Conta–me. Poderá ser qualquer um? O disponível?
– Não. É ela. A fonte do gênio.
– Como eu dizia. A TP está correta.
– E o que raios seria a TP?

283
Wanju Duli

– Teoria dos Peitos.


– Isso é ótimo, mestre. Mas vamos retomar a entrevista.
Babaca.
– E qual seria o princípio gerador da Magia da Ligação?
– A ML é ativada pelo amor.
– Errado. Pelo sexo.
– Pelo desejo do dois.
– Pelo incômodo com a solidão, tu dizes? Patife! Se assim for, será pelo
desejo do três: o triângulo dos destruidores. E a que te remete o quadrado?
– Você quer que eu diga que é o desejo de dois triângulos.
– E o cubo?
– Cubo da Vaidade.
– Que resposta previsível, Borrai. Você me desaponta. Surpreenda–me!
– Dimensão de Dó.
Opa. Essa me pegou de surpresa. Mino também estava meio surpreendido.
– Onde leu isso?
– Eu não li. Topei com uma dimensão de gás, na ocasião em que
experimentei o Cubo da Vaidade para formar um gênio venenoso.
– Você precisa do Balão de Dó para subir nela. Aforismo clássico que
compõe o Labirinto de Pregos dos destruidores, no Arcano da Morte.
– Há um atalho pela Dimensão de Sono.
– Isso é uma mentira. Abre ela agora e me mostra. E o farás de olhos
vendados.
Ele fez. O maldito tentou. Mas era preciso muita força para rasgar aquela
passagem. Borrai estava respirando rápido. De olhos vendados, sem o punhal,
selos ou gênios, o que Sremino exigia era um teste de gigantes.
– Foi mal. Não rola.
– Vou ignorá–lo por enquanto. Qual tua cor e forma geométrica de poder?
– Vermelho. Cores secundárias: verde e marrom. As formas são os dois
quadrados circunscritos.
– Marrom e verde, seu filho da mãe? Eis a sua resposta do conhecimento
dimensional. E sua porcentagem eficaz relevante?
– 88%. Com variações para 86,6% e 89,1%.
– O 89,1% é meu intervalo. Não creio que tu o clamaste. Em nossa próxima
briga irei tomá–lo de ti.
Agora ele queria patentear as porcentagens. Eu preferia trabalhar com o
ritmo neutro da abelha. Aqueles caras adoravam brigar pela cobra.
– Iniciaremos agora a série de perguntas invejosas. Prepare–se. Exijo
respostas refinadas. Se a dimensão é dotada de espaço–tempo, como a alma a
atravessa?

284
Fábula dos Gênios

– Sendo a alma atemporal e onipresente.


– Eu cuspo na sua resposta, novato!
– Então, que tal isso: a alma não atravessa porra nenhuma. Somente o
espírito a alcança, pois é provido de mente psíquica, que altera as propriedades
da matéria.
– Sujo, vergonhoso e canalha!
– Por intermédio da mente. Pelo controle das batidas do coração, a mente
opera em outras frequência. No fundo, não atingimos outras dimensões pelo
nosso desejo ou livre–arbítrio de fazê–lo, mas criando o ambiente propício para
que se complete a condição de ímã. A alma é atraída pelo karma e há pedaços de
karma na dimensão.
– Prossiga. Tal raciocínio está quase a me trazer contentamento.
– Uma segunda interpretação seria o ímã do gênio pelo mana dimensional...
Sremino derrubou Borrai da cadeira.
– Mana NÃO existe! Não acabaste de dizer que a fonte de magia é a mente,
ó, batráquio? E agora clamas por uma fonte de energia palpável e verdadeira
exterior à mente, infeliz, torpe e vil?
– Segundo a Armana, a magia não é apenas imaginária. Ela não é somente
matéria, como resquícios de imaginações caem dentro de uma fonte em Samerre,
o país das religiões.
– Se apóia a teoria de Armana e o grimório deles, sugiro que se dirija para lá.
Nós possuímos nosso próprio jeito de fazer as coisas. Segundo a teoria da
Fagenar Vibri, você não se prenderá a nenhuma teoria.
– Mas negará uma delas?
– A supremacia dela. É isso o que nego. Caia fora, Borrai. Vá lamber os pés
de Assavil!
Borrai sorriu.
– Velho, foda–se Armana. Eu quero entrar para a Fagenar Vibri.
– Você será aceito se me agradar com a resposta de minha última pergunta.
Entendeu bem? Eu não quero a resposta correta ou a que expresse maior
imparcialidade. Eu desejo que você me satisfaça intelectualmente!
– Beleza. Manda ver.
– Eu sou este ser ou um ser diferente?
– Não consigo ver quem você é, pois estou vendado. Tampouco tenho
olhos de maligno para ver a dimensão em você. Pois tu não és nem tua alma,
nem teu espírito ou teu gênio. Tu és a dimensão, mas não esta e nem uma
diferente. A dimensão que sou está vendada.
– Que porra de resposta enrolada do caralho que me agradou, bicho! Seja
bem–vindo a Fagenar Vibri, Borrai. Eu te saúdo e cá demonstro esta alegria que

285
Wanju Duli

toma meu coração repleto de eletromagnetismo em frequência excelente


extrema por tê–lo conosco.
– Quando será a cerimônia de iniciação?
– Festa da Vibri amanhã, rapaziada! Com direito a uma rodada de JCG e
JTG!
– Prêmios?
– Um beijo no meu pau. E eu vou saber, Somoyol? Compra mais um pacote
de cartas. Um de luxo.
– Do meu bolso?
– Hparral, você é o tesoureiro, então trate de arranjar a grana para o prêmio.
O convite para o jogo de cartas demonstrava que Sremino já queria revelar
os pedaços de nossas almas para ele. Isso era justo, sendo que ele nos ofertou a
sua. Era provável que naquela celebração já fosse ocorrer o chamamento da
egrégora de cartas. E se também houvesse o jogo de tabuleiro, eu nem podia
imaginar que outras entidades seriam chamadas junto da Ampulheta de
Revelação.
No dia seguinte, Sremino estava puto ao descobrir que teríamos uma
disciplina chamada “Teoria do Mana”.
– Quem será o desgraçado do professor que vai passar isso?
Quando vi Yym entrar pela sala com seu manto esvoaçante, sua boina e sua
generosa barba, eu quase não acreditei. Sremino parecia que ia cometer suicídio
a qualquer instante. Ele não conseguia mais fechar a boca. Depois disso, ele deu
um tapa na própria cabeça e afundou o rosto no caderno.
– Calma, você vai sobreviver.
– Professor, com todo o respeito, eu tenho uma importante observação a
fazer antes de iniciarmos essa aula.
Yym deu–lhe a palavra.
– Não existe o mana, de forma que essa disciplina torna–se completamente
inútil. A não ser que o senhor possa materializar o mana diante de mim, não
permitirei que a aula inicie.
Resultado? Sremino e Yym permaneceram a bater boca sobre isso pelos
quinze minutos seguintes. Até que Yym se cansou e colocou–o para fora de sala.
Havia alguns colegas nossos membros da Armana que acharam simplesmente
brilhante o debate, e principalmente o fato de Sremino ter sido mandado para
fora. Claro que a galera sabia que ele era o mestre da Fagenar Vibri.
Quando a aula chegou ao fim, ele me arrastou com ele.
– Agora já chega. Nós vamos tirar satisfações com o príncipe.
– Espere. “Nós”?
– Você é o vice. Assuma sua responsabilidade.

286
Fábula dos Gênios

Encontramos Assavil conversando com um grupinho no andar de cima. Eu


nunca tinha conversado com o príncipe diretamente. Sremino provavelmente
também não. Mas ele foi direto ao assunto.
– Com licença. A criação da disciplina chamada “Teoria do Mana” é obra
sua?
Mino não podia dirigir–se a ele daquela forma. Mas o príncipe foi educado.
– Yym considerou relevante tê–la no currículo a partir desse ano.
– Isso é bastante conveniente para você, sendo que sua sociedade secreta
trata exatamente desse tema, não acha?
– Sim, é bastante conveniente para mim. Mas deixo claro que a Armana não
tem intenção de competir com a Fagenar Vibri. Somos um grupo discreto com
uma quantidade pequena de membros. Eu respeito a FV. Por favor, prossigam
com suas atividades e não se incomodem conosco.
Sremino não ouviu. Colocou uma das mãos na parede, encurralando o
príncipe lá, para tentar intimidá–lo. Eu levei um susto quando ele fez isso.
– Não se meta em nossos assuntos. Não tente subornar meus membros. Se
eu souber de algum membro da Vibri que foi para a Armana, irei tomar
providências. Fui claro?
– Cuidado com suas palavras, mestre da FV! Não ouse ameaçar Vossa
Alteza, ou o ameaçado será você!
Um dos membros da Armana que estava com Assavil o defendeu. Em
pouco tempo, todos ao redor defendiam o príncipe, inclusive uma platéia que
parou para assistir os dois líderes de sociedades secretas a ponto de se atracar.
Mas o príncipe fez um gesto com a mão, pedindo para que todos se acalmassem.
– Senhor Sremino. Isso não vai acontecer. Contudo, é evidente que cada ser
humano possui sua liberdade para ir e vir. Cedo ou tarde poderão existir
ocorrências de membros da Armana passando para a Vibri e vice–versa. Mas
minha influência nisso será nula.
– Fico contente que pense dessa maneira. Mas a inclusão dessa nova
disciplina por Yym foi extremamente tendenciosa. Sugiro que repensem. Não
desejo ser obrigado a me submeter a isso. Vejo como um atentado à minha
liberdade filosófica. Não desejo que ninguém imponha a mim algum tipo de
crença ontológica aleatória.
– A disciplina está sendo implementada esse ano como teste. Se obtivermos
sucesso, ela prosseguirá nos anos seguintes. Mas eu irei pessoalmente verificar
com Yym a possibilidade de seu nome ser retirado da lista dessa disciplina.
– Agradecido. Desejo–lhe sucesso em seu... culto.
– O maior dos sucessos para a Fagenar Vibri, senhor Sremino. Como
sempre tem sido.

287
Wanju Duli

E Sremino finalmente retirou–se. Meu coração estava quase saindo pela


boca. Se Mino tivesse socado o príncipe ou até dito algum palavrão na frente
dele, ele estaria expulso. Na hora.
– Obrigado por me defender, Yol. Sua presença foi de excelente ajuda.
– O que você fez foi extremamente descuidado. Sugiro que não volte a
ameaçar o príncipe, ou vai se dar mal.
– Pensando bem, sua presença ajudou–me a intimidá–los. Seu respeitável
porte espanta qualquer um.
– Você se refere ao meu penteado?
– Precisamente. E você tem expressão de poucos amigos. Enquanto o
príncipe se parece com um garotinho que mal sabe limpar a bunda.
Graças aos dados do acaso que ele não disse aquilo na frente de Assavil.
Senti um arrepio só de pensar nisso.
Minha ideia de talvez conhecer mais a respeito da Armana foi por água
abaixo. Se o próprio vice da FV se tornasse um vira–casaca, Sremino não ia
somente querer meu couro, mas provavelmente faria algo ao príncipe, grave o
suficiente para gerar a sua expulsão. Depois disso, ele ia foder meu karma pelas
próximas mil gerações.
Eu tinha medo do Mino? Não. Mas eu apreciava a paz. Não ia comprar
briga de graça tão cedo.
Naquela noite seria a cerimônia de iniciação do Borrai. Só que ele queria
trazer o amiguinho como convidado.
– Negativo. Aqui Qah não entra.
Sremino parecia mais alterado do que o normal naquela quarta–feira. No
intervalo da tarde, em vez de irmos tomar um café como de costume, ele
desejou dirigir–se até o laboratório de informática.
Pensei que ele fosse jogar algum videogame violento para acalmar os nervos.
Mas ele estava realizando pesquisas em alguns sites.
– Vão fazer parte de qual clube nesse ano?
– Então é isso que você está procurando?
– Eu estou puxando assunto sobre qualquer coisa inútil para que não
perguntem o que estou fazendo.
– Eu vou continuar no de geometria.
– Já que sou presidente de um clube e vice da Vibri, não terei tempo para
me envolver em outras atividades.
– Entrei no de magia com ioiô e estou pensando em fundar um clube de
magia com chiclete. E você, Mino?
– Talvez eu funde um clube antidestruidores. Sou a pessoa mais indicada
para isso, já que conheço a magia e os grimórios deles. Terei maiores armas para
criticá–los.

288
Fábula dos Gênios

Mas Sremino parou de falar. Fitava vidrado alguma coisa na tela do


computador. Nós nos debruçamos para espiar.
– A Missão dos Deuses. Ela é real.
– Puta merda...!
Eu jurava que fosse apenas mais um boato ridículo. Como todos os outros.
– O que é a Missão dos Deuses?
– O governo do nosso país irá selecionar, dentre todas as universidades de
Consman, os alunos que mais se destaquem. E com eles irá montar um grupo
para realizar uma missão secreta.
– Não é exatamente secreto se essa notícia vazou na internet.
– Eu encontrei num site de Tecraxei. Em breve a notícia se tornará pública.
Mas não a missão.
– Você quer dizer, o príncipe irá nos selecionar, certo?
– Não me lembre disso, Colmon. Eu comprei briga com o príncipe hoje de
manhã. Jamais serei escolhido. Eu tô fodido. Se duvidar, metade dos escolhidos
serão os membros da sociedade secreta dele. Que merda, cara. Agora tudo faz
sentido.
– Creio que Assavil seja uma pessoa justa. Ele selecionará os mais capazes e
não só os puxa–saco dele. Se pensarmos assim, quem sabe você tenha chance,
mestre. Se eu fosse ele, não somente equilibraria o grupo com membros de Jins
e Jinas, mas também estudantes de outras universidades. A princesa
provavelmente selecionará 50%.
– Por que é tão importante assim ser escolhido? É pelo prestígio de ser um
dos fortes? Essa missão não será uma daquelas ao estilo suicida e trabalho sujo?
– Parece diversão na certa. Estou cansado de apodrecer aqui nessa
universidade de elite e ter somente os bacanas das outras fraternidades e
sociedades secretas pra puxar briga. Essa missão soa como uma aventura. Um
pouco de ação, morte e medo na minha espetacular existência. Mas se eu
depender do príncipe, me ferrei.
– Um grupo altamente selecionado para defender o príncipe de uma ameaça
iminente. Acha que tem relação com os destruidores?
– Na verdade os destruidores vão nos ajudar.
– Quê?!

***

Odeio Naridana, de todo o meu coração. E agora ela é líder da Vibri


novamente. Não permitiu que eu me retirasse.

289
Wanju Duli

Ela conhece meu segredo. É a única que tem a arma para colocar–se contra
mim de maneira insuperável. É odioso estar nas mãos dela.
– Krashkah, preciso conversar com você. Em particular.
Ela queria falar sobre aquilo de novo. Eu gemi. Por que, de todas as pessoas,
tinha que ser logo ela a saber disso?
Sem escolha, eu a segui. Fomos para um canto afastado e nos sentamos em
bancos. Não poderíamos ser ouvidas.
– Você está com medo que eu vá revelar isso para outra pessoa?
– É óbvio.
– Eu não irei. Confie em mim. Mas você não acha que ao menos Sremino
devia saber disso?
– Ele deve saber. Apenas não falamos a respeito. Eu nunca converso com
ele sobre nada.
– Você parece estar sempre com medo que alguém descubra de repente.
Não tema. Sua existência terá um grande propósito.
– Eu não desejo ser um objeto para grandes propósitos. Só quero que me
deixem em paz. Por favor.
Naridana tocou no meu ombro e retirou–se.
Todas as moças daquela universidade eram frias. Eu não tinha nenhuma
amiga de verdade, e talvez não desejasse. Porque eu mesma era como gelo.
Incluindo meu coração.
– Sempre tão severa. Seu coração é como um universo impenetrável. Até
mesmo para mim.
– Eu não sou desse jeito. Sou apenas Kah, uma estudante modelo de Jinas e
membro da Fagenar Vibri. Pena que emoções não possam ser desvendadas com
cálculos. E quando chego perto, o cálculo nunca é exato. Coisas assim me
incomodam.
– Aquilo que não pode ser medido?
– Sim. Você pode ser medido, Ikri. Você não me incomoda. Para mim, você
é uma certeza num mundo de incertezas. E eu jamais o trocaria por um gênio
maligno. Tenho meu orgulho como construtora.
– O que é esse orgulho?
– Algo que não conheço, mas sinto.
Abracei meu corpo.
– Algumas vezes, tudo o que eu queria era um abraço.
Ikri enrolou–se em torno de mim e aqueceu meu coração. Quase deixei
lágrimas escaparem por meus olhos.
– Quando ninguém está por perto, você está comigo. E sempre me
completa. Estará comigo por toda a vida?
– Eu estarei.

290
Fábula dos Gênios

– E na morte?
– Enxugando suas lágrimas e tentando abrir um sorriso em seu rosto. Você
sabe que a morte não é o fim.
– Eu vi que não é. Eu senti. Os outros mundos... eles não são fantásticos?
– Eles são.
– Estou ansiosa para conhecê–los. Ao mesmo tempo é assustador
desprender–me de meu corpo de carne. Nesse instante, eu serei a minha alma?
– A alma é apenas um pequeno pedacinho do espírito. Esse sim já
atravessou muitos mundos, em variadas formas. Mas na morte você entenderá
que você sou eu. E eu sou você.
– Dimensão. Então somos todos imortais?
– Tudo é matéria. E infinito. É como o tempo. Na verdade, a chave se
encontra na dimensão do tempo. Se o tempo é eterno, como o resto poderá
morrer? Tudo que está enrolado nele é impregnado de partículas de tempo e
eternidade.
– Meu querido Ikri... algumas vezes eu apenas temo pela minha consciência.
As memórias que construí. Destruir a existência da forma que eu a conheço
agora.
– A existência continua, isso é certo. Mas não da maneira que você a
conhece agora. Basta não temer a mudança. Será apenas um mundo novo.
– Os construtores falam muito na dimensão do cubo. Aquela em que
nascemos e morremos. E quando chega o fim, é como uma caixinha cheia de
surpresas. É por isso que faremos Tirupa experimentar esse começo–fim na
cerimônia de iniciação.
Fui designada a enfrentar Tirupa em batalha. Esse era o primeiro teste.
Eu a busquei pessoalmente no fim da aula dela. Tomei–lhe pela mão,
seriamente.
– Venha.
– Onde está me levando?
– Logo verá.
Entramos numa sala vazia de um depósito. Eu a tranquei a chave. Somente
nós duas estávamos lá.
Era melhor assim. Se ela desconfiasse de algo ao batalhar comigo, aquele
segredo não iria à tona.
– Ikri!
Chamei meu gênio vermelho e laranja. Tirupa levou um susto ao notar que
iríamos duelar diretamente com os gênios. Evocou o seu, chamado Lorobol.
Mas dessa vez quem se espantou fui eu.
– Amarelo e verde. O seu gênio possui a mesma coloração do gênio de
Naridana.

291
Wanju Duli

– Eu sei. Vi no GG. Sinto–me honrada.


– Não se sinta. Construa sua lenda com seu próprio poder, e não por se
parecer com outra pessoa.
Bastou que meu gênio se aproximasse do dela, que Tirupa não mais
conseguiu lutar. Ela estava tremendo de medo.
– O que foi? Ataque!
– Loro teme seu gênio. Me desculpe... ele não vai conseguir.
Aquela menina estava completamente trêmula. Eu era forte. Ela tinha
motivos para me temer. Mas ela desistiu cedo demais.
– Eu tentaria te atacar com selos, mas sei que é uma grande mestra da
geometria e magia simbólica. Então...
– Então nem sequer tentará? Fraca!
Não adiantava insistir ou desafiá–la. Ela havia perdido completamente a
vontade de duelar.
– Fracassou já no primeiro teste. A sua última chance será agora. Se for
reprovada no segundo, estará fora.
Eu lacrei a caloura numa caixa mágica. Ela só seria capaz de quebrar o lacre
e libertar–se com uma magia forte. Algo que só poderia ser extraído de outra
dimensão. Ou seja: ela precisaria de toda a sua força de vontade para passar
naquele teste.
Tranquei a porta da sala e saí.
A maioria das candidatas demorava pelo menos algumas horas para se
libertar. Houve o caso excepcional de uma que se libertou após cinco minutos.
Era melhor que ela mostrasse uma marca que me surpreendesse.
E, de fato, ela mostrou.
Quando caiu a noite, eu me recordei dela. Eu me perguntava porque ela
ainda não tinha me procurado para exigir o terceiro teste, que seria uma série de
perguntas. O quarto teste era o mais difícil e fabuloso de todos, mas... ela me
desapontou completamente.
– A sala ainda está trancada. Não acredito...!
Eu entrei. Ela ainda estava presa na caixa! Já fazia umas dez horas...
Quando eu a libertei, Tirupa estava chorando.
– Por que fez isso? Por quê...?
– A maioria leva umas duas horas para sair daí. Eu demorei a voltar porque
jamais imaginei uma situação como essa.
Ela nem mesmo estava me suplicando para que eu desse a ela outra chance.
Ela queria sair daquela sala a qualquer custo. Talvez não desejasse olhar para
minha cara nunca mais.
– Você falhou no teste para ser membro da Vibri.

292
Fábula dos Gênios

E ela apenas retirou–se da sala, sem dizer uma palavra. Ainda enxugando as
lágrimas.
– Por que fez aquilo com a garota? Não se sente mal?
– Preciso manter o rigor dos testes. E ela sequer me pediu mais uma chance.
Foi ela mesma quem desistiu.
– Por isso mesmo você não faz amigas. Peça desculpas a ela.
Eu não tinha nada que pedir desculpas. Foi a própria fraqueza dela que a
derrotou.
Mas... eu também já não havia sido assim um dia? Eu já havia passado por
épocas de insegurança. Não era assim com todos nós?
Eu encontrei Tirupa no dia seguinte. Ela estava no refeitório comendo numa
mesa, completamente sozinha. Ela se assustou quando me viu.
– Posso me sentar?
Ela fez que sim.
– Você está triste?
Ela apenas indicou com a cabeça novamente.
– Há outras coisas na vida que você pode conquistar. Coisas que não
precisam da aprovação de um bando de idiotas. Mas para que você as conquiste,
deve adquirir a capacidade de aprovar a si mesma. Você pode temer a outros,
mas jamais tenha medo de si mesma. Se for capaz de seguir esse conselho,
poderá realizar tudo o que deseja.
Aquelas palavras seriam o bastante. Levantei–me e saí, sem nem me
despedir.
– Brilhante. Agora, que tal você seguir seu próprio conselho?
– Eu tento. A cada dia.
– Comece enfrentando Sremino. Você não precisa ser o fantoche dele.
O encontro entre Jins e Jinas seria naquele fim de semana. Havia sido
marcado para a semana seguinte, mas tiveram que adiantar, devido a
circunstâncias misteriosas.
Eu não gostava da ocasião daqueles encontros, pois era quando muitas
ligações se encontravam. Era comum que se sua ligação estudasse em Jins você
desejasse entrar para Jinas, e vice–versa. Havia um motivo muito importante
para que as coisas ocorressem dessa maneira.
Você só poderia manter relações sexuais com sua ligação. E estudando em
Jins ou Jinas você não teria qualquer contato com o mundo lá fora. Ou seja, se
sua ligação não estivesse lá também, para que vocês se encontrassem na ocasião
desses eventos, você passaria praticamente treze anos sem transar.
Claro que quem não tinha parceiro no campus dava um jeito de burlar
aquela regra. Mas eu não aceitaria fazer isso.

293
Wanju Duli

Eu entrei para Jinas com a intenção de tornar as coisas mais difíceis. Sempre
fui muito aplicada aos estudos e ser membro da Fagenar Vibri era um sonho
antigo. Se eu fosse aprovada, não precisaria rever Sremino tão cedo.
Mas ele me surpreendeu. Também estudou muito para entrar em Jins. E
conseguiu. Além disso, tornou–se líder da Vibri. Somente para me impressionar,
aposto. Ele diz que não. Eu finjo que acredito.
Ele sempre afirmou não ter nenhum tipo de sentimento por mim. Ele só
entrou em Jins pelo sexo.
Eu raramente aceitava fazer sexo com ele. Desde o sexo que fizemos para
gerar o terceiro gênio e nos mantermos vivos, eu só aceitei o pedido dele umas
três ou quatro vezes.
Eu não tinha vontade de transar? Eu tinha. E sentia desejo por ele. Mas... eu
queria ser teimosa. Não queria que as coisas ocorressem como ele queria. Eu o
achava um chato.
E lá estavam os elegantes meninos de Jins, em suas jaquetas azuis.
Se eu pudesse escolher, eu transaria com o vice, Somoyol. Ele era quente.
Sremino adorava posar de polido na frente das moças. Que belo teatro. Na
minha frente ele não disfarçava tanto.
– Naridana. É um imenso prazer vê–la novamente como mestra da Vibri em
Jinas.
Que mentiroso. Ele nem gostava de Naridana. Por outro lado, ele não tirava
os olhos de Derida. Ele olhava para a bunda e para os peitos dela
descaradamente. Já no caso de Werda, ele preferia olhar o rosto.
– Você é o cristal mais brilhante dentre as jazidas de Jinas, senhorita Werda.
É uma vergonha que tenham lhe tirado a posição de líder.
Lá, lá, lá. Sinceramente, eu quase ria assistindo Sremino cumprimentar as
garotas. Parecia que nunca tinha visto uma mulher na vida. E, como não éramos
namorados nem nada, eu não ligava muito ao vê–lo dar em cima de várias. Ele
não ia conseguir beijar nenhuma mesmo. Se tentasse, correria risco de morrer,
pelo poder da ligação. Que magia desgraçada... principalmente para um cara
como ele, que certamente queria pegar todas.
Até que ele se recordou da minha existência e resolveu me cumprimentar
também.
– Eis a atração principal da festa! Como tem passado, senhorita Krashkah?
– Guarde sua atuação para as outras. Pode ser honesto comigo. Só veio aqui
para foder, né?
– Isso não é óbvio?
– É claro, senhor óbvio. Você é praticamente a única pessoa capaz de me
fazer rir com suas cantadas bregas para Werda.

294
Fábula dos Gênios

– Eu gostaria de ser capaz de montar uma quimera. Eu pegaria os peitos e as


coxas de Derida. O rosto de Werda. O poder mágico de Naridana. E seu
cérebro. Costuraria tudo e teria minha namorada ideal. E a ela eu seria
absolutamente fiel.
– Fiquei com a parte mais importante? Sinto–me honrada.
– Considere isso como um elogio. Afinal, você sabe que eu aprecio mais o
cérebro do que a bunda numa namorada.
– Hã... é... quer saber como seria minha quimera?
– Diga lá.
– De uma coisa eu tenho certeza: não teria nenhuma parte sua.
– Sério? Nem meu cacete?
– OK, talvez só essa.
Ele ficou todo contente quando eu disse isso. Meu, que cara mais risível. E
eu acabei rindo mesmo, com a expressão de felicidade dele. Ele gostou tanto
por ter me feito rir que tentou me abraçar. Mas eu afastei os braços dele.
– Calma, vamos conversar primeiro.
– Por quê? Nós não somos namorados. Nem mesmo amigos. Então não há
nada a ser dito. É só trepar. Por que você complica algo tão simples?
– Não é sobre isso. Já que você é o maior fofoqueiro de Jins, deve estar por
dentro de todos os babados. Quero saber se a Missão dos Deuses foi
confirmada.
– Sim. Não era mais fácil perguntar diretamente para a princesa?
– Eu tenho medo dela.
– E de mim você não tem?
– Eu não tenho medo de homens. Mulheres são muito mais assustadoras.
– Depende da moça. E depende do cara. Mas eu entendo o que você quer
dizer. Werda e Naridana me apavoram.
– Você é o líder da Vibri em Jins. Devia se impor mais.
– Você me mete um pouquinho de medo também.
– Eu sei. Mas só porque a minha resposta vai definir se você vai ficar mais
uns meses sem sexo.
– Não é só por isso. Você é meio fria.
– Deixando isso de lado, Assavil está coordenando a Armana em Jins, certo?
E, pela lógica, Aibara cuida da Armana de Jinas.
– Ao que parece. Infelizmente bati boca com o príncipe num dia desses,
então minha chance de ser selecionado é quase nula.
– Que merda, hein, meu. Você não para quieto.
– E agora que já conversamos, vamos trepar?
Ele se aproximava cada vez mais. Já estava passando a mão na minha coxa e
tentando colocá–la debaixo da minha saia.

295
Wanju Duli

– Não aqui...
– Vamos para o seu dormitório?
– É, vamos lá.
Fiquei com pena dele daquela vez. Desconfiei que ele fosse ter um treco se
eu dissesse a ele que não tava a fim naquele dia.
Assim que chegamos no meu quarto, ele já foi me agarrando. Eu confesso
que sentia desejo ao sentir tanto desejo nele. Eu só me fazia de difícil para
aborrecê–lo. É claro que eu também estava com vontade.
E, por outro lado, eu me sentia meio vazia com aquela união artificial. Ele só
estava me usando, por prazer. Mas, no fundo, não estávamos usando um ao
outro?
– Você vai deixar ele fazer isso de novo, só para agradá–lo? Você nem está
tão a fim...
Eu não sabia se era amor ou amizade que faltava na minha vida. Mas ainda
havia uma parte incompleta.
– Certo, Sremino. Você já me abraçou e me beijou. Da próxima vez
avançamos mais um passo.
– Eu já desconfiava que você fosse dizer isso. Te conheço. Por isso, tenho
um truque na manga.
– O que será? Um desodorante?
– Eu te desafio para um duelo! O vencedor transa com o outro!
– Isso não faz o menor sentido. O resultado será o mesmo.
– Eu estava brincando. Se você ganhar, eu me retiro quietamente. Contudo,
se eu vencer, quero seu corpo.
– Interessante. Eu topo. Vamos lá.
Evoquei Ikri. Ele evocou Cikuta. Eu e ele montamos selos para escudo e
espada. E, a seguir, as trilhas de selos, construídas de acordo com as batidas do
coração.
Eu já estava em 92%. E ele em 8%. Eram batidas opostas. A coisa mais
divertida a fazer naquele momento era inverter as cores do espectro.
E a abelha tornou–se cobra. Tive que alterar completamente as formas dos
selos para seguir aquele ritmo.
Ele fez isso de novo. Estava alterando as cores do espectro muito
rapidamente. Aquilo era demais para meu coração aguentar.
Mas eu estava mantendo aquela batalha. Até que ele chamou um segundo
gênio.
– Filho da puta...! Você tem dois!!
– Eu vou te comer hoje, Krashkah. Darei a minha vida por essa batalha.
Então era assim que ele ia jogar. Muito bem.

296
Fábula dos Gênios

Cheguei a 94%. Eu não ia elevar mais. Caprichei na combinação de selos.


Provavelmente abusei de tetraedros e trapézios, mas não me importei. Eu
precisava forçar uma abertura dimensional, ou aquele cara ia me derrotar.
Eu não podia perder. Era questão de honra.
Ele sentiu a minha determinação para ganhar. E pegou ainda mais pesado.
– Então você repudia tanto assim o meu corpo, mulher? Assim você me
ofende! Parte meu coração...
– Seu coração... você o partiu em dois para fazer dois gênios. Você tem um
maligno...!
Eu notei isso. Eu senti. Uma sensação horrível apoderou–se do meu corpo.
– Está louco! Vamos parar esse duelo!
– Nem pensar. Eu quero ganhar!
Ele tinha olhar de louco. Puta merda!
Ele exagerou. Lançou o gênio maligno para cima do meu. E feriu Ikri. Eu
gritei. O meu corpo foi ferido também, e caí no chão.
Ikri estava sangrando. Eu o chamei de volta.
Toquei no meu corpo. Havia um corte enorme no meu pescoço e outro na
coxa. Dos dois escorria uma quantidade grande de sangue.
– A vitória é minha! E agora quero meu prêmio.
Ele deitou–se em cima de mim. Lá mesmo, no chão. Eu fiquei uma fera!
– Eu estou sangrando, desgraçado! Por culpa sua, cacete!
– Não seja uma má perdedora e abra as pernas.
– Má perdedora o meu rabo! Saia daqui!
Eu dei um empurrão nele, tirando–o de cima de mim. E enquanto ele não
saía, eu lançava nele tudo o que havia no meu quarto.
– Mas...
– SUMAAAA!!!
Meu rosto converteu–se numa expressão de fúria. Ele correu de lá rapidinho,
assustado.
– Credo, Krashka. Coitado do cavalheiro...
– Você tá brincando, né?
– Você também me mete medo. Pra caramba.
– Sabe o que é o pior? Depois de ele me tocar tanto, o cheiro dele ficou em
mim. E agora tô com desejo! Ah, não, agora vou arrastar aquele miserável de
volta pra cá!
Eu me levantei, e, sem nem estancar o sangue, dirigi–me novamente até o
local da festa.
Lá estava Sremino com os amigos dele, provavelmente lamentando–se que
havia sido desprezado por mim. Ou mais provavelmente estava me xingando.
Eu o puxei pela gravata, toda ensanguentada.

297
Wanju Duli

– Pode voltar! Você ainda não me fez sangrar o suficiente! É bom terminar
o que começou, OUVIU, meu homem?!
– Hmmm... que fantástica reviravolta. O que te deu tanto prazer? Foi a
ferida de baixo ou a de cima?
– Foi o seu cheiro, gostosão.
– Meu perfume? Pensei que não tinha notado. Eu caprichei, especialmente
para hoje.
– Que bom. Agora cale a boca e me coma bem forte.
Voltamos para o meu dormitório e tivemos aquela que talvez tenha sido
nossa melhor transa.
– Quer saber? Talvez um dia eu me apaixone por você. E você por mim.
– Pelos Deuses, que isso não aconteça jamais...
– Mas do meu pau você gosta, né?
– Ah, por ele eu já me apaixonei há muito tempo.
– Só quero ver se vocês dois vão continuar brincando no dia em que ele
descobrir o seu segredo. Krashkah, você está brincando com fogo.

***

– Loro, hoje é o pior dia da minha vida.


Eu não conseguia parar de chorar.
– Só porque a menina zumbi te reprovou no teste para a Vibri? Existem
outras sociedades secretas em Jinas, Rupa. Sei que você conseguirá entrar numa
delas.
– Mas eu queria a Fagenar Vibri, que é a mais famosa... sempre foi meu
sonho estar nela. Eu teria a própria Naridana como mestra...! Mas tudo isso
terminou num piscar de olhos.
Krashkah tentou me consolar, dizendo palavras bonitas. Mas aquilo não
apagou minha tristeza.
E, para completar, eu também tive aula de Geometria 1 naquele dia. Logo
com a professora carrasca, que havia me envergonhado na frente da turma
inteira no primeiro dia.
– Garota de Paunim, venha aqui na frente resolver o problema número 9.
Ela fez de propósito. Era o problema mais difícil. Ela sabia que eu não
conseguiria resolver. E estava certa.
– Eu não consegui fazer esse, professora. Mas resolvi todos os outros.
– Eu não perguntei se você respondeu os outros. Pedi que solucionasse o
número 9. Mas, pelo que vejo, essa questão se encontra muito acima da sua
inteligência.

298
Fábula dos Gênios

As outras meninas riram da minha cara. Piayo levantou a mão.


– Eu consegui resolver este, mestra. Posso solucioná–lo no quadro?
– É claro. Como esperado de nossa aluna modelo.
E ela respondeu, certinho. Que irritante. Por que ela conseguia resolver e eu
não? O que era esse universo que nos separava? Depois que a solução foi
mostrada, parecia tão óbvio...
O meu dia estava péssimo. Eu não era digna da Vibri. E, o pior de tudo: eu
não era nem mesmo digna de Jinas. Se as coisas continuassem daquele jeito, eu
seria reprovada logo nas minhas primeiras provas.
O que mais me aterrorizava era a perspectiva das provas práticas: eu teria
que traçar selos e mostrar a magia com meu gênio diante das professoras. Se eu
já tinha me assustado ao ficar diante de um membro da Vibri, eu provavelmente
começaria a suar forte e não teria coragem de mostrar nada. Simplesmente não
sairia.
– Não pense nisso agora. Apenas se esforce e o resto acontecerá
naturalmente.
Mas eu fiquei tão nervosa que nem consegui estudar como de costume após
as aulas da tarde. Eu estava completamente exausta: fisicamente,
psicologicamente, psiquicamente. Pensei que eu acharia divertidas as aulas de
evocação quando começassem, mas elas foram um completo desastre. Era difícil
demais!
Eu queria a geometria bem longe de mim. Então tentei treinar decorar um
alfabeto, escrevendo as letrinhas no meu caderno. Eu logo me cansei e peguei
um livro de literatura de gênios. Mas eu estava quase dormindo em cima do
livro.
– Com licença.
Eu estava lendo na mesa de uma sala de estudos. Era permitido conversar lá,
contanto que fosse baixinho.
Uma bela menina sentou–se na cadeira ao lado da minha.
– Você parece triste. Ou está apenas com sono? Se for só isso, peço
desculpas pela minha indelicadeza.
– Oh, não se preocupe. É verdade que estou com sono, mas confesso que
também estou um pouquinho chateada. Muitas coisas ruins aconteceram
recentemente.
– Você é nova aqui, certo? Está com dificuldades em se adaptar?
– Os estudos aqui são muito puxados. E recentemente realizei um teste para
tentar ingressar na Fagenar Vibri e fui reprovada...
– As garotas da Vibri são realmente rigorosas. Eu faço parte de um grupo
também. Se quiser, posso te chamar.
– Eu adoraria! Também é uma sociedade secreta?

299
Wanju Duli

– Digamos que sim, embora nossas atividades não sejam exatamente um


segredo. Nós trabalhamos com criações de mundo.
– O que é isso? Não me soa familiar.
– Alguns dizem que ser mago, ou mesmo fazer arte, é criar um mundo para
o qual se foge. Mas nós não pensamos assim. Para nós, trabalhar com a arte e a
magia é construir um novo mundo em nossa própria realidade. Não é tentar
escapar dela por estar ruim. E sim buscar as alegrias ao nosso redor e celebrá–
las, enaltecendo–as.
– Essa é uma visão muito bonita. Se bem que com todos esses
acontecimentos recentes eu ando com dificuldade para enxergar os lados bons
disso tudo.
– Você está aqui nesse ambiente lindo, com a oportunidade de aprender
coisas novas. E agora fará uma nova amiga! Isso não é fantástico?
Que sorriso lindo ela tinha! Eu fiquei fascinada.
– Tem razão. De repente tudo fica perfeito. Basta olhar as coisas de outra
perspectiva.
– Sei que nem sempre é fácil, mas essa magia facilita para que possamos ver
as coisas dessa maneira. Essa técnica é oficialmente chamada de “Lar dos
Gênios”. Não é exatamente uma criação. Você simplesmente realiza mergulhos
dimensionais para buscar as casinhas mais formosas para seu gênio. Existem
diversas casas diferentes, coloridas e charmosas! E lá você e ele descansam ou
vivem juntos maravilhosas aventuras!
– Eu adoraria construir ou encontrar um Lar de Gênio.
– Então você deve ter acesso ao nosso “Grimório para Lar de Gênio”.
Todos os novos membros de nossa sociedade secreta recebem um.
– Qual é o nome do grupo de vocês?
– Armana. A propósito, eu sou a autora do GLG e mestra da Armana em
Jinas. Temos uma Ordem em Jins também, que é liderada pelo meu irmão. Meu
nome é Aibara. E o seu?
– Meu nome é Tirupa. Prazer em conhecê–la! Aceito fazer o teste para ser
parte de sua Ordem.
– Aibara, esse nome não me é estranho... Rupa, pergunta o nome do irmão
dela.
– Fico feliz. Bem, seu primeiro teste será me enviar uma cartinha explicando
seus desejos de ser membro da Armana.
– Que divertido! Farei isso. Qual é o nome do seu irmão?
– Assavil.
– Príncipe Assavil! Ei, Tirupa, você tá falando com a princesa!
– Princesa Aibara!
Eu fiz uma reverência no mesmo instante. Ela sorriu bondosamente.

300
Fábula dos Gênios

– Não precisa me fazer reverência, Tirupa. Aqui todas somos amigas. E


iguais.
Conversar com ela era uma experiência completamente nova. Mudou minha
visão de Jinas.
Se dentro da Ordem dela havia um doce mundo que eu não conhecia, eu
desejava fazer parte dele!
Naquele fim de tarde esforcei–me para fazer uma carta super caprichada.
Quando a entreguei para a princesa no dia seguinte, ela leu com alegria.
– Uma carta adorável e sincera! Eu gostaria de convidá–la hoje para o chá da
Armana. Todas nós usaremos vestidos bonitos, mas você pode ficar à vontade
para trazer uma roupa mimosa, contanto que seja uma saia ou um vestido.
– Puxa, que Ordem mimosa e aconchegante.
“Ora, cale–se, Loro. Eu estou adorando!”
E lá fui eu para o chá da princesa! Estava repleto de meninas lindas com
vestidos cheios de babados. Comemos bolo de morango com chá de morango.
Foi um sonho! E só falamos de magias fofas!
– O que é mana, garotas?
– Diz a lenda que há uma fonte em Samerre que espalha todo o mana para o
mundo. Existe uma magia muito forte naquele lugar.
– Os Deuses protegem a fonte do mana?
– Alguns dizem que são os mortos. O mana de Samerre é fortemente
protegido e se localiza num cemitério que fica no interior de uma floresta. Há
seres mágicos nascendo lá.
– Eles também pintam seus túmulos com muitas cores?
– Dizem que lá eles pintam suas almas. Assim, mesmo após a morte, as
cores continuam brilhando, na terra e no céu.
– Uau...!
– Você veio de Paunim, certo, Tirupa? Por que decidiu fazer o teste para
Jinas?
– Porque meu namorado estuda em Jins.
– Sua ligação? Que lindo! A minha também.
E, após dois longos anos, eu finalmente pude vê–lo outra vez.
Isso ocorreu naquele mesmo fim de semana, na ocasião do encontro entre
Jins e Jinas. Os rapazes de Jins eram tão elegantes! Pareciam também
extremamente educados. Verdadeiros cavalheiros. Ah, um dia eu adoraria
conhecer os membros da Armana de Jins!
Assim que eu avistei Borrai, corri para abraçá–lo.
– Senti sua falta!
– Eu também, Rupa.
– Que bonitinho! É agora que vocês se beijam?

301
Wanju Duli

– Você sabe que só me matei estudando por sua causa! Perdi dois longos
anos estudando pra essa prova, só pra poder te ver de novo.
– Eu sei. Estou muito feliz que tenha conseguido. Parabéns. E, adivinhe só:
já que me enviou aquele e–mail avisando que havia sido convidada para a
Fagenar Vibri em Jinas, eu entrei para a FV de Jins. Agora poderemos nos ver
mais vezes ainda.
– Hã... eu não fui aprovada no teste de admissão.
– Sério? Bom, o teste costuma ser difícil mesmo. Mas eu passei no meu. Tá
vendo aquele sujeito lá de cabelos pretos? Ele é o mestre da Vibri em Jins.
– Nossa! Ele tem cara de ser bem respeitável e forte.
– Nem tão respeitável, mas, sim, ele é forte. O cara de black power é o vice.
– Incrível!
– O de boné é a ligação de Naridana.
– NÃO ACREDITO!
– Ei, ei, também não precisa se exaltar. A maior parte das garotas que você
conhece em Jinas deve ter ligação em Jins.
– É mesmo. A princesa me disse que a ligação dela também é estudante da
nossa universidade.
– Espera, você falou com a princesa Aibara?
– Eu sou membro da Ordem dela: Armana.
– Agora sou eu que estou surpreso! Essa sociedade secreta é nova, mas em
uma semana de aula já se tornou muito influente. Também, pudera: é a Ordem
da realeza. E parece que Yym também está diretamente envolvido nisso.
– Quê? Você conhece Yym?
– Ele é meu professor.
– Mas que extraordinário! Borrai, já vi que temos muito que conversar.
Vamos sentar ali, perto das flores. É mais romântico.
Nós dois nos afastamos um pouco das mesas do banquete ao ar livre.
Sentamos num canto mais distante, na grama. O dia estava tão pacífico e feliz!
– Recentemente ocorreu a cerimônia da minha iniciação. Foi muito massa.
Você já jogou JTG?
– Ainda não, mas estou ansiosa para tentar! Vou querer assistir ao
campeonato.
– Ah, deixa eu te apresentar o meu amigo.
Ele passou ali por perto e Borrai o chamou. Era um garoto de expressão
meio abatida, mas bonitinho.
– Esse é o Qah.
Ele estava de mãos dadas com uma garota que eu conhecia. Eu nem
acreditei quando vi quem era.

302
Fábula dos Gênios

O encontro entre Jins e Jinas era praticamente uma cerimônia para os casais.
Não tanto para conversar, já que nos falávamos por cartas e e–mail. Era um
encontro para sexo. E eu não via a hora de aquela parte do encontro começar!
– Por que o vice da Vibri está sozinho?
– A situação dele é meio complicada. Ele e a ligação dele, que você também
deve conhecer, não estão se dando muito bem ultimamente. Isso tem ocorrido
desde uma situação delicada com Vrekan, o gênio de Somoyol.
– O que aconteceu?
– Somoyol matou o próprio gênio.
Foi chocante escutar aquilo. Eu já tinha ouvido histórias de gênios sendo
destruídos, mas o mestre matar seu próprio gênio?
– Por quê...?
– Porque o pessoal da Vibri de Jins é meio pirado. Eles mexem com magia
de destruidores. Somoyol tentou fazer um maligno e o gênio dele se rebelou. E
os dois tiveram que duelar. Agora você sabe o verdadeiro motivo de os
construtores e destruidores focarem tanto em dominar magia de selos.
– Eu sempre achei que era para possuir uma técnica mista para utilizar
juntamente com o gênio, potencializando o podre dele.
– Não, Rupa. A razão de estudarmos tão profundamente os selos
tridimensionais é possuirmos uma arma forte somente nossa para utilizar contra
o gênio, para matá–lo, caso um dia ele se rebele.
– Putz! Não vou mais te mandar estudar geometria, ouviu, Rupa?
Eu senti um frio na espinha. Aquela nova informação era terrível.
– Temos por tradição, por tempos imemoriais, o costume de utilizarmos
MG e selos conjuntamente. Ora, a Magia dos Gênios deveria bastar, não? Mas
até mesmo os destruidores, que detestam técnicas mistas, são mestres de selos.
E sabemos que os malignos se rebelam bem mais que os gênios comuns. Por
isso mesmo os destruidores se tornaram tão fodas na construção de selos. No
caso deles, como o maligno se alimenta do corpo do mago, pode chegar a hora
em que o maligno tenha muita fome e deseje devorá–lo por inteiro, destruindo
seu hospedeiro.
– Parece que você já aprendeu muitas informações surpreendentes em
apenas poucos dias como membro da FV. Mas você não está pensando em usar
magia de destruidores, está?
– Eu ainda não sou louco a esse ponto. Se os caras de lá começarem a forçar
a barra pra isso, será uma bela desculpa para me transferir para a Armana e
passar mais tempo com você.
Eu já estava muito excitada, só de ficar perto dele. Podíamos contar o resto
das novidades por e–mail, certo? Eu queria aproveitar aquele tempo junto de
Borrai para fazermos amor!

303
Wanju Duli

Eu tirei minha gravata e abri os primeiros botões da minha camisa,


mostrando o decote. Fiz uma carinha meiga de quem está morrendo de desejo.
Bem, pelo menos eu esperava que ele se sentisse tentado por isso...
– Tirupa, não quer esperar até a noite? Hoje é sábado e as ligações de Jins
terão permissão para passar a noite nos dormitórios de vocês em Jinas.
– Não sabia disso! Que sonho!
“Droga, minha estratégia de sedução não funcionou”.
– Mas quero pelo menos uns amassos agora.
Mas quando estávamos recém começando a nos beijar, houve um anúncio
oficial de professores de Jins e Jinas no microfone, solicitando que todos os
estudantes se reunissem na parte central do pátio.
– Merda!
– Acho que sei do que se trata: a Missão dos Deuses.
Eu não sabia que raios era aquilo, mas aparentemente eu iria descobrir em
breve.
Parecia ser coisa séria. Havia gente pra caramba por lá. Praticamente todos
os estudantes e professores de Jins e Jinas reunidos.
A reitora de Jins subiu no palanque para discursar.
– Alguns de vocês devem ter ouvido os boatos de que existe o risco
iminente de ocorrer uma guerra entre Consman e Samerre. Estou aqui para
confirmar que tais rumores são verdadeiros.
– Como é? Eu não tinha ouvido nada sobre guerra!
E muito menos eu!
– Desmei e Samerre possuem um longo histórico de amizade, através da
comunicação dos mestres das montanhas. Mas esse quadro vem se alterando
recentemente. Os Deuses colocaram–se contra construtores e destruidores. Que
fique claro que a ameaça dessa guerra seria tão forte que talvez viesse a ocorrer a
aniquilação das duas raças. É pensando nisso que concluímos que deveríamos
unir nossas forças, numa aliança.
– Eu não acredito...
– Uma aliança entre construtores e destruidores? Para batalhar contra os
Deuses?
Era surreal demais para ser verdade. Mas quando vi quatro pessoas de
mantos verdes com costuras em marrom subindo no palanque, meu queixo caiu.
Dois homens e duas mulheres. Eram destruidores. Ali, no meio de centenas
de construtores extremamente fortes. Aqueles quatro só podiam estar entre os
mais poderosos para ousar uma aparição como aquela.
O pessoal se alterou. Alguns gritaram, de medo e de ódio. Houve até quem
evocou gênios e traçou selos. A reitora teve que colocar ordem.

304
Fábula dos Gênios

– Peço a calma de todos. Não ataquem, em hipótese alguma! Esses quatro


estão aqui conosco hoje com fins pacíficos. Qualquer manifestação forte da
parte de vocês pode acarretar numa guerra entre construtores e destruidores.
A maioria se acalmou, mas os murmúrios prosseguiam.
– Cada um deles irá se apresentar. A seguir, os nossos propósitos serão
explicados e se tornarão claros.
Ela passou o microfone para um dos encapuzados. A moça destruidora não
sabia o que fazer com aquele microfone e a reitora a orientou, explicando como
deveria falar através dele.
– Mufita Jrass.
– Tirupa... o nome dessa destruidora é mencionado no último capítulo do
GGM.
Borrai falou isso com voz trêmula. Eu também notei que houve alguma
agitação entre o grupinho dos membros da Vibri em Jins.
Borrai parecia muito nervoso.
– Na história do GGM ela quebra imediatamente todas as barreiras mágicas
dos portões de Jins como se fossem papel.
Escutar aquilo fez meu coração disparar. Não eram os quatro que deviam
nos temer. Éramos nós que corríamos perigo com aquela visita.
Um dos rapazes destruidores alcançou o microfone para anunciar seu nome.
– Solovro Hror.
Dessa vez, houve gritos altos. Era difícil dizer se era medo, ódio ou
admiração. Para mim, soava como se os construtores o estivessem enxergando
como uma grande estrela. O famoso Solovro do GG! A galera procurava
Naridana, na multidão. Eu também olhei imediatamente na direção dela. Afinal,
ela não havia destruído Solovro, segundo a lenda? Será que ele havia revivido?
Ou a batalha teve outro final? Somente os dois conheceriam essa resposta.
Naridana fitava o palanque com espanto. E com um pouco de raiva. Solovro
provavelmente não a identificou naquele mar de gente, mas mesmo assim não
alterou sua expressão após a apresentação, mesmo com a manifestação do
pessoal.
Eu sequer sabia porque os dois tinham batalhado ou em que ocasião se
encontraram. O GG não mostrava detalhes a esse respeito. Só sei que nos
segundos seguintes o pessoal berrava o nome de Solovro e Naridana, exigindo
uma batalha entre eles no mesmo instante.
E lá foi a reitora pegar o microfone novamente, exigindo que o pessoal se
acalmasse.
– Não haverá batalha alguma hoje. Por favor, contenham–se! E respeitem
nossos convidados.
Ela passou o microfone para a outra moça.

305
Wanju Duli

– Sassa Soma.
– Puta que pariu! A autora do Arcano da Morte!
A galera identificou o nome novamente. Uma parcela ínfima dos estudantes
havia tido acesso ao AM. Talvez apenas alguns professores e membros de
sociedades secretas. Mas pelo menos o nome da autora quase todos conheciam.
Até eu.
Por isso, houve muitas exaltações, mas não tantas quanto na ocasião em que
o nome de Solovro foi anunciado.
Ela passou o microfone para o último destruidor. Quando ele revelou seu
nome, aquilo quase veio abaixo.
– Vlebre Cazka.
Agora sim, o pessoal berrou mais que nunca. Uma parcela um pouco maior
de estudantes teve acesso ao GGM do que ao AM. Mas até mesmo eu, que não
havia lido o GGM, conhecia a velha história de que Cazka havia xingado a
autora do GG até não poder mais. E que havia escrito o grimório inteiro como
uma paródia ao dela, parodiando até mesmo os respeitáveis aforismos de Yym.
– Olha só a cara do Yym!
Borrai, morrendo de rir, indicou o professor barbudo. Ele estava com
expressão de poucos amigos.
Para a minha surpresa, minha professora de Geometria 1 levantou–se e
subiu no palanque. A reitora entregou a ela um segundo microfone.
– É um grande prazer finalmente conhecê–lo pessoalmente, senhor Cazka.
Meu nome é Brisgrar Valonde.
– Caralho...!
– Porra!!
Eu não sabia disso, cacete!! E muita gente lá também não sabia. Quando ela
disse essas palavras, houve muitos gritos de empolgação. E uma salva de palmas.
Eu também bati palmas. No instante seguinte, todos gritavam o nome de
Cazka e Valonde, também exigindo um duelo entre os dois.
Quando Cazka pegou o microfone para falar novamente, todos
permaneceram num silêncio mortal para escutá–lo.
– O prazer é meu, madame Valonde. Se desejar um duelo, como seus alunos
propõem, eu aceito.
Ele disse isso em creemah, com um sotaque da porra. Houve mais uma salva
de palmas.
Mas antes que Valonde pudesse dar uma resposta, a reitora retirou o
microfone dela. E acabou retirando o microfone de Cazka também.
– Não haverá nenhum duelo no dia de hoje! A ameaça de guerra é real.
Estamos aqui para unir forças. E para selecionar um grupo especial de
construtores para acompanhar nossos quatro convidados para uma viagem até

306
Fábula dos Gênios

Samerre. Deixo claro que esse grupo não será escolhido imediatamente. Alguns
candidatos serão entrevistados nas próximas semanas por nossos professores,
convidados e membros da realeza de Consman e Desmei. E que os melhores
alcancem honra e glória.
Mais gritos. Então havia algum membro da realeza entre aqueles quatro
destruidores? Quem seria?
– Tirupa, é melhor você estudar bastante para conseguir se manter em Jinas
pelo menos pelas próximas semanas. Eu não vou querer perder esse espetáculo
por nada desse mundo.
E com quatro destruidores passeando pelo campus, algo me dizia que os
avisos constantes da reitora não seriam suficientes para evitar algumas brigas
entre construtores e destruidores.

307
Wanju Duli

Capítulo 3: Só um pouco de fogo

– O tópico da reunião de hoje será tortuosidade de sistemas regulares.


– Querida, nós prezamos pela harmonia. O discurso será regrado nesta
variável?
– Senhorita Derida.
– Mestra Werda.
– Cale–se.
“Isto é metodologia de Desmei”, clamam os ortodoxos. Eu não suportava
aquele tipo de questionamento.
Você pensa que pessoas regulam e abafam apenas palavras e pensamentos.
Mas até o traço sinuoso de uma linha pode ser condenado.
Na nossa universidade, se você ousa traçar uma forma geométrica em um
dos ângulos proibidos, você é visto como arruaceiro. Um mau elemento para a
sociedade. Dependendo da discrepância do ângulo, pode até ser expulso.
Derida é uma vadia. Eu a repudio. Ela é bela demais. Isso é imperdoável.
Tenho vontade de cravar uma faca naqueles peitos, para arrancar metade deles.
Ela está ciente de meu ódio. Derida também me inveja. Algumas vezes
agimos como duas putas falsas na frente da outra. Mas há os momentos em que
sou tão sincera que minha alma se torna leve como pluma.
– Werda, acho que tudo bem se você resolver enfatizar na busca de
resultados simétricos pela assimetria. Não há problema que você use um
triângulo, contanto que vise os círculos e quadrados.
Eu me aproximei de Krazie. Peguei numa das mechas de suas chiquinhas.
– Seu cabelo é tão macio e bem tratado. Tem odor de pétalas de rosas.
– Obrigada. Seus fios negros e perfeitos a fazem parecer uma rainha, mestra.
– Está zombando de mim?
– Foi um elogio.
– Posso ver isso. Há brilho nos seus olhos. E rubor nas maçãs de seu rosto.
Você me acha realmente atraente?
– Sua elegância é única.
– Descreva–me. Detalhe meu rosto. E meu corpo.
Krazie olhou ao redor parecendo meio preocupada. Devia estar se sentindo
encurralada. Resolvi tranquilizá–la.
– Não se preocupe. Não é uma armadilha. Eu apenas quero ser elogiada. É o
mínimo que espero de vocês, madames da Vibri, depois de todo o meu trabalho
duro de coordenar este distinto grupo.

308
Fábula dos Gênios

– Teus olhos de gato a tornam misteriosa como um arisco felino. Como


uma pantera, eu diria, devido ao negro de teus cabelos. Os lábios são delicados
como uma flor que desabrocha.
– Eu não pedi um poema insignificante, sua estúpida. Descreva logo o resto
do meu corpo, pois não temos o dia inteiro.
Derida soltou um risinho, escondendo a boca no dorso da mão. Ai, como eu
tinha raiva daquela putinha infeliz. Tudo o que eu queria era aparar aqueles
cachos perfeitos de Deridinha com um cortador de grama, e deixá–la careca.
– Teu corpo é muito bem proporcionado. Proporção áurea.
– Certo, agora fique quieta. Para mim está muito claro que a senhorita não
pensa nenhuma dessas coisas e apenas deseja me bajular para que eu suba seu
grau na Ordem.
– Werda, você está sendo ilógica. Foi você mesma quem pediu por elogios.
Se críticas surgissem, você faria um escândalo.
– Que absurdo. Não há meios de críticas surgirem, pois eu sou perfeita. E eu
sugiro que a senhorita penteie os cabelos e use maquiagem para esconder essas
suas horríveis olheiras quando vem a um encontro importante como esse.
Krashkah deu um sorriso. Eu me aproximei dela.
– O que foi, garota? Você se acha bonita, desleixada assim?
– Eu não me importo. Sou inteligente. Sou um gênio. Ou será que me
enganei, e a Fagenar Vibri virou um desfile de moda?
– Eu estou falando de higiene e do mínimo de cuidado com aparência.
Roupas bem passadas, cabelos penteados e uma leve base no rosto. Isso é pedir
demais? Vivemos num mundo de aparências. Então tente ao menos sobreviver
nele. Ou se mude para outro mundo.
– Então agora estamos debatendo filosofia? Se você deseja manipular os
padrões estéticos, o primeiro passo é não ser um escravo dele. Basta ter um
cérebro e ser venerado por ele. Tudo o que estiver ao redor desse cérebro, em
pele, pelo, algodão e plástico, será necessariamente o melhor possível. Nesse
instante, você cria as regras. É esse o direito que a inteligência te dá.
– Excelente. Temos aqui uma otimista utópica. Que grande decepção! Tente
aplicar essa filosofia na sua magia e verá o desastre resultante. Uma magia forte,
mas que opera em cores e formas visualmente detestáveis. Não será o bastante
para intimidar o adversário. A magia lida com o psicológico e com as batidas do
coração. Então é evidente que as cores e formas escolhidas são relevantes e
geram efeitos diferentes.
– Os destruidores conhecem o peso da arte na magia, empiricamente. O
aspecto estético da magia com selos multidimensionais e malignos enche os
olhos. Por outro lado, eles são feios e sujos, naqueles mantos apodrecidos.

309
Wanju Duli

– Esse é exatamente o meu ponto. Não queiram se parecer com destruidores.


Então, estejam sempre coloridas e brilhantes. Limpas e perfumadas. Porque
temos orgulho construtor.
– Oh, diga isso para minha ligação. Ele é um porco. E ainda tem a ilusão de
que vou permitir que ele se aproxime de novo.
– Minha ligação é um verdadeiro cavalheiro. Infelizmente, isso não se
verifica em todos os membros da Vibri em Jins. Até meu doce apodreceu,
testando magia de destruidores. Não me aproximei mais dele depois disso. Não
desejo meu gênio enrolando–se a um maligno.
– Mino é detestável, mas é quente na cama. Por isso, eu o perdoo por todo o
resto.
– Eu e minha ligação somos como almas gêmeas, além de termos gênios
gêmeos. Nos damos bem em tudo!
Eu odiei a felicidade com que Krazie disse isso. Todas nós da Vibri de Jinas
tínhamos problemas com nossas ligações. Derida se afastava de Hparral porque
não o considerava atraente. Eu andava ignorando Somoyol desde que ele
começou a mexer com MGM. Krashkah se irritava com a personalidade
impossível de Sremino. Eu já tinha ouvido reclamações por parte de outros
membros. Então por que só Krazie ficava com aquele sorrisinho no rosto?
Algumas vezes eu tinha vontade de matar a ligação dela. Só para fazê–la
sofrer e chorar.
– Também, né, meu amor. A sua ligação é o Qah. Ele é gentil e lindo. Eu
trocaria minha ligação pela sua numa boa, se isso fosse possível.
– É possível, mas é um tabu. Após ter gerado o terceiro gênio, enquanto este
se mantiver vivo você pode matar seu próprio gênio e o gênio da pessoa com
quem quiser transar. Ou basta simplesmente roubar o gênio da outra pessoa,
trocando–o pelo seu.
– Isso significa que se eu quiser transar com Qah, basta roubar o gênio de
Krazie. Seu gênio se chama Dima, certo? Que tal trocar meu Wmuti por ele?
– Eu amo meu gênio. Não o trocaria por nenhum outro. Você não tem
coração?
– Meu coração está perdidamente apaixonado por Qah. Eu até toparia matar
o gênio dele e o meu, mas Qah é forte. Prefiro batalhar com você e tentar tomar
seu gênio à força.
– Mesmo que eu não seja tão poderosa quanto você, tenho mais velocidade.
E lembre–se: sou a vice da Vibri. Não conquistei essa posição à toa.
– Vocês duas vão brigar por um homem? Que vergonhoso. Nós, senhoritas
da Fagenar Vibri de Jinas, temos classe. Não somos como aqueles cavalos
selvagens de Jins.

310
Fábula dos Gênios

– Que briguem, não me importo. Qah é só um rostinho bonito. Não deve


ser capaz de fazer metade das acrobacias na cama que Mino faz.
– Ora, linda, você fala isso porque não teve aquela máquina potente de
Somoyol dentro de você.
É, acho que apesar de tudo, eu e Krashkah estávamos muito satisfeitas por
ter o vice e o líder como ligações. Mas...
– Por que os desgraçados ficam brincando com magia de destruidores?
– Porque eles querem ser maus. Eles são apenas garotinhos. Pois eu preciso
admitir: os destruidores são quentes. Eles matam. Sabe, de verdade. Costuram
no manto as peles dos caras que mataram. Isso é sexy.
– Como assim? Você acabou de dizer que não gostava do Hparral porque o
achava sujo. Os destruidores são mil vezes mais imundos!
– Mas é divertido fantasiar de longe.
– Derida, da próxima vez que você exaltar os destruidores diante de mim,
irei expulsá–la da Vibri. Sremino diz que odeia os destruidores, mas usa a magia
deles. Pois saiba que meu ódio é 100% genuíno: se um dia eu visse alguém com
sangue de destruidor na minha frente, eu o mataria instantaneamente. Eu tenho
nojo deles. Eu deixei de ter relações sexuais com minha ligação só porque ele
fez um maligno. Você entende a extensão do meu ódio, Der?
– Sim, mestra. Isso não vai se repetir.
– A reunião está cancelada, pois hoje vocês me estressaram demasiadamente
com assuntos inapropriados. Ainda tenho que me preparar antes da palestra de
ontologia. Krazie, você vem comigo. Tenho um servicinho para você.
– Entregar os folhetos?
– Sim. Mas antes iremos conversar.
Eu a levei até o banheiro. Antes, verifiquei se estávamos somente nós duas
lá.
– Estamos seguras. Não há mais ninguém.
– Por que o banheiro? De quem você vai falar mal?
– Eu odeio todas aqui. E Derida hoje está particularmente insuportável. Mas
agora irei expressar todo o meu ódio em relação à sua existência, meu
amorzinho...
– Hã... por quê? Eu disse alguma coisa que não devia?
– É exatamente por causa desse seu comportamento! Todas as moças de
Jinas invejam umas às outras. Até mesmo a feia da Krashkah inveja as outras
meninas habilidosas em matemática. Mas você... parece gostar de todas! Você e
a princesa parecem as garotinhas mais boazinhas do mundo! Eu tenho nojo de
garotas assim. Parecem mais falsas que todas.
– Estou sendo sincera. Tento ser gentil para fazer novas amizades.

311
Wanju Duli

– Sim, eu sei que você é honesta... por isso te odeio ainda mais, sua maldita!
E ainda por cima é bonita.
– Você é mais bonita, Werda.
– Eu sei, mas... eu sou solitária. Apesar de eu ser líder e viver cercada de
garotas, não consigo fazer amizade com nenhuma delas. Acho que, no fundo, eu
queria.
– Se você não consegue se abrir com as outras meninas, posso ser sua amiga,
mestra.
Sem me conter, derramei algumas lágrimas.
– Que humilhante. Eu queria ser forte, mas sou tão fraca...
– Derramar lágrimas não é uma fraqueza, Werda. É sinal de força. Significa
que você está escutando seus desejos mais sinceros. Você não é tão má quanto
faz parecer. No fundo, você só quer fazer amigas, mas é muito orgulhosa para
isso. Não seja. Não tenha medo.
– Também estou com medo de me encontrar com Somoyol da próxima vez.
Eu fui muito rude com ele da última vez que nos encontramos. Eu sou
naturalmente rude com garotas, mas diante dos garotos sou mil vezes mais rude.
Porque faço questão de impor minha autoridade. Quero mostrar quem manda.
Eu jamais quero fraquejar diante de um homem.
– Que bobagem. Você não precisa erguer esse escudo tão grande, não
importa se esteja com homens ou mulheres. Confie em sua ligação. Ele é a
pessoa de quem você mais poderá se aproximar.
– Talvez o gênio maligno dele seja só uma desculpa. Estou insegura para
transarmos de novo porque acho meu corpo muito infantil. Meus seios são
pequenos e não tenho tantas curvas como as outras garotas.
– Werda, você é tão linda que só um grande imbecil não se sentiria atraído
por você.
Eu sorri.
– Obrigada. Vamos voltar. Tenho que me preparar para a palestra. Entregue
os folhetos, sim?
Foi um dia estranho. A palestra foi fantástica. E na festa de inauguração
daquela noite, Naridana expulsou a mim e a Derida da Fagenar Vibri.
Eu não mudei. Continuei maltratando as outras estudantes com minha má
educação. Eu estava ciente do que eu fazia. Era de propósito. Isso fazia com
que eu me sentisse poderosa.
– Você fala pouco comigo. Você se acha grandiosa demais para falar com
seu próprio gênio também?
– Você sabe que não é isso, Vrerto. Só evito falar com você quando estou
em público. Senão corro o risco de parecer uma idiota, como essas outras
garotas que parecem que falam sozinhas.

312
Fábula dos Gênios

– Você se preocupa demais com o que os outros pensam. Algumas vezes


você devia tentar simplesmente viver tranquila, sem buscar constantemente
atender às expectativas de todos. Sendo que muitas dessas expectativas foi você
quem inventou, da sua cabeça.
– Estou ciente das minhas falhas. Só estou tentando transformá–las em
força, da melhor forma que consigo.
– Bem, você tem se saído terrivelmente nisso, até agora. Se eu fosse você,
alterava minha metodologia.
– Você é só outro idiota certinho e comportado, querendo me dar lição de
moral. Me deixa em paz!
– Você não pode esconder nada de mim, Werda. Eu sei que você está infeliz.
E suas lágrimas também mostraram isso. Eu sou o único que vejo as lágrimas
que você derrama sozinha, à noite, no seu dormitório. Quando todas as outras
já foram dormir, você continua acordada. Como se desejasse arrancar uma parte
de você.
– Eu te odeio.
– Mas também me ama. Assim como ama todos os outros. Só falta você
aceitar isso. O maior de todos os ódios que você sente é o ódio de si mesma.
Comece a fazer amizades verdadeiras, e assim finalmente conseguirá se
reconciliar com seu próprio coração.
– Isso é só mais um bando de palavras bonitas e idiotas. Sabe, Vrerto, o
mundo não é bonito. E nem eu. Se eu me tornar a pessoa que você deseja, não
vou sobreviver. E vou sofrer muito por todos que irão me machucar.
– Você já está sofrendo agora. O seu medo é assim tão grande, de trocar o
sofrimento que você conhece por outro que você ainda nem sabe se será tão
forte?
– Pelo menos agora eu aparento ser forte. A outra escolha me tornará fraca
por dentro e por fora.
Estava na hora de encarar Somoyol. Depois da forma estúpida com que
conversei com ele no encontro anterior entre Jins e Jinas, antes do início das
aulas.
Sremino estava como sempre: falando tudo o que vinha na cabeça. Era
inacreditável que uma pessoa como ele pudesse existir. Ele era tão sincero e
cara–de–pau que incomodava. Mas forte pra caramba, era o líder. Pelo menos
ele ainda me tratou com o mesmo respeito. Mesmo depois de eu ter perdido a
liderança.
Eu não conhecia muito Hparral, mas ele não parecia nojento. Derida que era
fresca demais. E quanta a Colmon, ele me irritava um pouco, por ser a ligação
de Naridana. Afinal, ela era a moça misteriosa da universidade e poucos

313
Wanju Duli

ousavam se aproximar. Ele provavelmente saberia mais sobre ela do que a


maioria. Até eu tinha vontade de conhecer mais Naridana, apesar de odiá–la.
Outra coisa que vinha me irritando ultimamente era a fama da Armana. Eu
não gostava nem do príncipe e nem da princesa, pois ambos eram muito
educadinhos e polidos. Isso me dava nos nervos, todos gostavam deles, pois
diziam que eram gentis e humildes.
Entre voltar para a Fagenar Vibri e entrar para a Armana, eu preferia ficar
sem Ordem. Havia outros grupos menores em Jinas. Ou eu poderia
simplesmente fundar uma nova sociedade secreta, junto com Derida.
– Olha só que meigo, já quer levar sua amiga com você para o grupo que vai
montar.
– Cale–se. Você sabe que minha “amizade” com Derida é só fachada.
– Vocês duas são esnobes. São iguaizinhas. Amigas perfeitas. Que tal fundar
a OFA, “Ordem da Fofoca Absoluta”? Basta reunirem mais meia dúzia de
meninas metidas para falar mal de toda a universidade.
– E de que forma isso seria um exercício mágico relevante?
– Eu estava brincando... se isso gerasse poder mágico, você seria a maga
mais poderosa do mundo.
Resolvi ignorar o meu gênio imbecil.
Quando avistei Somoyol, levei um susto. Meu coração disparou.
– O amor está no ar! Seu coração já está em batida excelente, garota!
– Somoyol, pare de circular por aí e fingir que não me vê. Por acaso está
com medo de mim?
– Como você finge bem. Que assustador...
– Me desculpe. É que eu realmente não vi você.
– Vou fingir que acreditei. Vamos conversar em particular.
Fomos até uma árvore afastada e nos sentamos na grama, próximos a ela.
– Agora que você está sem gênio não precisa mais de mim. Basta transar
com qualquer outra garota que também não tenha um gênio.
– É mesmo? Mostre–me uma. Você sabe tão bem quanto eu que todos
dessa universidade possuem gênios. E eu vou precisar arranjar outro logo, antes
que meu poder mágico decresça ao extremo ou eu morra por acidente. Não vou
conseguir me virar só com selos contra um inimigo forte com gênio.
– Vocês de Jins compram briga por nada. Você pretende roubar o gênio de
alguém ou pegá–lo de alguma dimensão?
– Dimensão. Mas não se preocupe, pois meu novo gênio e o seu
continuarão em comunhão, por causa da minha alma.
Dei de ombros.

314
Fábula dos Gênios

– Não finja que não se importa, Werda. Você gosta de sexo tanto quanto eu.
Seria um desperdício jogarmos fora essa chance por mero orgulho. Eu não me
considero um cara orgulhoso. Só falta você ceder.
– Somente se você me possuir de olhos vendados.
– Se você tem esse fetiche, não sou contra. Quer me amarrar também? Você
parece o tipo de garota que curte S&M.
– Você tá me tirando, né?
– Você é uma menina má, que eu sei.
– Só por causa desse seu sorrisinho malicioso e ofensivo, eu vou querer a
coisa completa. Mas eu bato. Você só apanha.
– Ah, merda. Me ferrei.
Foi naquele instante que houve o anúncio pelo microfone, para reunir todos
os alunos. Quando os destruidores apareceram, eu senti ódio extremo. Eu fui
uma das que chamou o gênio, pronta para lutar.
– Calma, Werda. Vamos esperar.
– Esperar até que destruam tudo?!
– Ainda não é hora de atacar.
Quando eles disseram seus nomes, eu pirei. Não de empolgação, como os
outros cretinos. Eu queria arrancar aquelas cabeças imediatamente. Todas elas.
Principalmente a de Cazka.
Valonde era uma pessoa que eu admirava. Ela e Naridana eram amigas de
longa data. Mas Valonde eu respeitava. Era uma das poucas pessoas por quem
eu não nutria inveja e sim admiração genuína.
Eu queria ver Valonde partindo o corpo de Cazka ao meio. Arrancando cada
membro. Eu ansiava ver a cor do sangue dos destruidores. Aquele corpo de
órgãos carcomidos.
Meu coração estava palpitando. Muito mais do que quando vi Somoyol. Era
um sentimento completamente diferente.
É claro que eu estava nervosa pra caralho ao estar na presença de
destruidores. Apenas ao fitar aqueles quatro seres de capas eu já sentia um frio
na espinha. Todas as lendas sobre eles, o terror. E, ao mesmo tempo, eu me
sentia paralisada. Mesmo havendo a ordem para não atacá–los, eu
provavelmente estaria assustada demais para fazê–lo.
Quando desceram do palanque, os destruidores se reuniram aos professores
novamente. Nenhum aluno ia poder se aproximar por enquanto, com exceção
do príncipe e da princesa.
Não vi Valonde conversando com Cazka. Os dois estavam bem afastados.
Eu queria ver quando eles se dirigissem um ao outro de novo. Merda! Eu ia
perder o espetáculo.

315
Wanju Duli

Como poderíamos foder tranquilos agora? A presença dos quatro infelizes


tinha arruinado a nossa festa.
Jrass e Soma permaneceriam em Jinas pelas próximas semanas, até definirem
o grupo para a missão. Hror e Cazka ficariam em Jins. Pelo visto, Valonde e
Cazka não iriam se reencontrar tão cedo. E nem Hror e Naridana.

***

Eu não entendo Naridana. Ela é uma pessoa difícil de lidar.


Estava silenciosa como um túmulo no encontro de sábado. E com a
presença de Solovro, seu silêncio aprofundou–se ainda mais.
Eu não sabia o que havia acontecido entre os dois. Eu não tinha coragem de
perguntar. Mas parecia algo bem ruim.
– Eu matei Solovro uma vez. Senti as vísceras dele em minhas mãos. Ele
apenas deu um jeito de reviver.
Ela não se importava. Bastava matá–lo outra vez, certo?
Algumas pessoas gostam de fama. Amam ser uma estrela. E outras optam
por existir como gênios silenciosos. Eu sou esse segundo tipo.
Naridana, Yym e Valonde eram como lendas vivas entre os construtores. Eu
era um ilustre desconhecido. Mas, em força e inteligência, eu não perdia em
nada para Naridana. Eu apenas não mostrava isso em público.
Para mim, o mais complicado foi ver Soma. Felizmente, ela não
permaneceria em Jins durante aquele período.
Meu... seria dureza andar ao lado de Sremino sabendo que havia dois
destruidores no campus. Ele queria o couro deles.
– Solovro está de igual para igual com Naridana. Se eu derrotá–lo, será como
vencê–la. E se Cazka estiver à altura de Valonde... velho, onde estão esses
malditos? Quero a carcaça deles agora.
– Você tá brincando, né? Eles são destruidores. Se liga. Eles têm muito mais
experiência em lutas do que nós.
– O Mon tá certo. Não dá uma de louco que nem fez com o Assavil. Senão,
além de morrer, tu vai gerar uma guerra.
– E você, Hparral? Também acha que devo colocar o rabo entre as pernas,
como esses dois covardes?
– Apenas... fica frio, beleza?
– Até tu, pô? Ninguém confia na minha força. Eu tenho dois gênios! Um
deles é um maligno. É evidente que tenho altas chances de vitória.
– Espera. Pra onde você vai?

316
Fábula dos Gênios

– Até o departamento central. Alguns professores estão lá. E os destruidores.


Eu sinto o maligno deles. São fortes pra caralho.
– Você tá suando. E tremendo.
– É apenas um nervosismo saudável antes da batalha.
– Que nada. Tu tá é cagado. Nunca te vi tremer assim.
– Eu já. Naquela vez que ele ficou oito horas seguidas trepando com a Kah.
Ele não conseguia nem ficar em pé.
– Quietos! Tem alguém vindo...
Eu também percebi. Senti um arrepio.
Era Yym. Ele saiu pela porta. E ao lado dele estava um dos encapuzados.
Qual deles?
Era Vlebre Cazka. Só podia ser ele. Aquela energia era inconfundível. Um
poder esmagador.
A mera presença dele, tão próxima, deixou a todos congelados. Nenhum de
nós ousou mover um milímetro.
Puta que pariu. Nunca pensei que me sentiria desse jeito diante de um
destruidor. Era muito simples zombar enquanto a existência deles era pouco
mais que uma lenda.
Aquele cara tinha muitas tiras marrons no manto. Muito mais do que
Solovro. Ele era um mestre da morte.
– Ei.
Meu coração subiu até a garganta e depois desceu. Sremino não poderia ser
burro a esse ponto. Ele simplesmente não podia fazer aquilo. Seria mais sábio
matá–lo do que deixá–lo abrir a boca.
Sremino colocou–se diante dos dois. Eles pararam.
– Professor Yym. O senhor foi informado de que o príncipe Assavil deu–me
autorização para não assistir mais as suas aulas?
– Eu fui informado.
– Que disciplina o senhor ministra?
– Teoria do Mana.
– Qual é a relevância? Nós não lutaremos contra mana e sim contra os
Deuses. Porque mana sequer existe.
– Concordo plenamente, senhor Cazka. Somente idiotas acreditam nessa
mentira insolente de mana.
Cazka fitou Sremino atentamente, intrigado. Merda, merda, merda.
– Estudantes de Jins, poderiam fazer a gentileza de mostrar as meias?
Aquele destruidor era astuto. Nós levantamos um pouco a barra da calça,
para que uma parte das meias coloridas ficassem visíveis.
– Qual de vocês é o líder da Fagenar Vibri atualmente?
– Eu sou.

317
Wanju Duli

– Nome?
– Sremino Eopala.
– Por que ostenta um maligno, senhor Eopala?
Ele obviamente sentiu. O autor do GGM notaria qualquer coisa. Éramos
como livros abertos diante dele. Naquele instante, ele provavelmente já conhecia
a quantidade exata do poder de cada um de nós.
Ele notaria meu incrível poder?
– Porque eu desejava mais poder. E tenho coragem para tanto.
– Uma resposta bastante ingênua, e não diferente do que eu esperava. E por
que esse outro aqui não tem gênio?
– Eu matei o meu, senhor.
– Para fazer um maligno? Ou por sexo?
– Maligno.
– Cada um de vocês guarda um segredo. Esse construtor aqui possui um
poder fora do normal, mesmo sem usar MGM. Há uma razão para isso.
Ele sabia. Não perguntou. E nem revelou.
– E, finalmente, por que há um destruidor entre vocês? O que um
destruidor faz em Consman?
Aquela pergunta me pegou de surpresa. O que ele queria dizer com isso?
– Eu tenho um maligno, mas possuo sangue de construtor.
– Enquanto esta pessoa não tem um maligno, mas possui sangue de
destruidor.
Ele apontou para Hparral, que ficou pálido quando ele fez isso.
– Merda...
– Senhor, Yym, melhor seguirmos nosso caminho. Já causei demasiada
polêmica nesse instante, como se minha presença já não fosse distúrbio
suficiente.
– Posteriormente terei uma conversa séria com os quatro.
E os dois se retiraram. Depois disso, eu, Sremino e Somoyol fitamos
Hparral seriamente.
– Que grande absurdo é esse? Outra mentira?
Hparral ficou quieto.
– Cara... você é um destruidor?
– Não. Eu sou um construtor. Fui criado em Consman. Jamais usei MGM.
Nem mesmo recentemente, enquanto você e o Mino faziam testes com isso.
Minha magia é 100% MG.
– Onde você nasceu?
– Desmei... mas poucos meses depois me mudei para Consman e nunca
mais retornei para aquela terra. Portanto, como veem, minha conexão com
Desmei é quase nula.

318
Fábula dos Gênios

– Que teus pais estavam fazendo lá?


– Meu pai é construtor e minha mãe é destruidora. É um caso raro de
ligação cruzada. Minha mãe me teve lá, mas logo meu pai retornou para me
buscar. A meu ver, isso faz de mim um construtor.
– Pois a meu ver isso te faz um destruidor, e com sangue de destruidor
correndo nas veias. Por que escondeu isso de nós, seu desgraçado?
– Porque sempre me considerei um construtor. Esse detalhe era irrelevante.
Eu sou como vocês.
– Detalhe? A gente odeia os filhos da puta dos destruidores, ainda mais
ultimamente, com quatro deles aqui. E você ainda chama de detalhe, seu
merdinha? Eu vou te matar! E anunciar ao mundo que derrotei um destruidor!
Sremino segurou Hparral pela gola da camisa. Eu e Somoyol seguramos o
Mino, para que se acalmasse.
– Larga ele, meu! Você tá pirado! Vai descontar o seu ódio pelo Cazka no
nosso amigo, só porque você não tem colhões pra brigar com o autor do GGM?
– Não fala isso, maluco! Senão o Mino vai até o Cazka agora mesmo e vai
dar merda!
Ele soltou Hparral.
– Eu tô puto contigo, Hparral. Sério, esconder isso foi sujeira. Seu pau no cu.
– Hpa, onde tua irmã nasceu?
– Em Desmei também. Mas meu pai só foi buscar ela quando ela já tinha
cinco anos.
– Eu trepei com uma destruidora? PORRA!
Sremino deu um chute na lixeira. Colocou a cabeça entre as mãos.
– Então a minha ligação é uma destruidora. E meu filho tem sangue de
destruidor. Ah, não. Agora a Krashkah vai ter que se explicar. Por que não senti
o poder de destruidor nela quando geramos o terceiro gênio?
– Porque, assim como eu, ela nunca usou MGM, até onde sei.
– Eu preciso me acalmar... vou lá fora quebrar uma parede ou derrubar uma
árvore. Depois a gente conversa. Senão posso acabar matando alguém de
repente.
E ele saiu. Para mim, ele estava apenas com inveja que os dois tinham
sangue de destruidor e, com isso, poderiam utilizar a MGM mais facilmente, se
desejassem.
– Um destruidor, hã? Quem diria. Bem do nosso lado, o tempo todo...
– Pare com isso. Que bobagem. Fui criado aqui.
– Nós sabemos. Mesmo assim, é uma revelação impactante. Mas fica frio. A
gente não vai te matar.
– Agradeço a consideração. Espero que o Mino pense o mesmo.

319
Wanju Duli

– Aquele sujeito tem um parafuso a menos na cabeça. Ninguém pode prever


como funciona o raciocínio dele.
– Essa vai ser difícil de engolir. O tesoureiro da Vibri e a mina dele são
destruidores. E ele é um construtor brincando de ser malvado, enquanto mais
dois destruidores desfilam pela universidade em seus mantos de peles, falando o
que desejam; e ele não pode fazer nada.
Ouvimos gritos no corredor logo adiante. Fomos para lá imediatamente.
Tarde demais. Sremino havia dado um soco na cara de Qah, que caiu no
chão. Borrai, que estava com ele, tentou ajudá–lo, mas Qah apenas fez um gesto
com a mão, levantando sozinho e limpando o sangue do rosto.
– Ei, Sremino! Isso ainda não terminou!
Mas Mino nem ouviu as palavras de Borrai. Ou, se ouviu, ignorou–o.
– Ele socou o Qah de graça! Nem mesmo dignou–se a usar magia.
Mino não tinha coragem de socar Cazka, Yym ou o príncipe. Então ele
descontava a raiva no primeiro que aparecia. Típico.
Pelo menos assim ele se acalmou. Pelos próximos minutos.

***

– Você precisa ser mais cuidadosa, Krazie!


– Eu quero me divertir. Jinas é cheia de emoções. Não perderei nenhuma
delas.
Estar em Jinas era um sonho lindo. Eu era vice da Fagenar Vibri. Estava
sempre cercada de meninas lindas, graciosas e inteligentes. Mas quando eu
soube da inauguração da Armana, meu coração se aqueceu.
– Quero estar lá. As meninas fazem encontros com chás e vestidos. E falam
sobre magias fantásticas. Magia de mana, magia de Samerre. Até mesmo testam
diversas técnicas nos encontros, como a divinação.
– Você quer abandonar sua posição de vice na Vibri apenas para estar na
companhia da princesa?
– Tirupa também está lá. Ela é minha amiga.
Eu sabia que não era bem visto fazer parte de duas sociedades secretas ao
mesmo tempo. Ainda assim, procurei Aibara, com um desejo sincero.
– Você é uma excelente maga. Será uma honra tê–la conosco. No entanto...
– Preciso deixar a Vibri, certo?
– Pelo menos mantenha segredo. Não revele para Naridana que é membro
de Armana.
Eu concordei. Naridana era mais justa que Werda, mas não tolerava traições
como aquela.

320
Fábula dos Gênios

Tirupa ficou surpresa ao me ver no próximo chá. Nós apenas sorrimos e


elogiamos o vestido uma da outra. Mas no final do encontro ela veio conversar
comigo.
– Você não faz mais parte da Vibri, Zie?
– Nari não pode saber que estou aqui. Meu tempo está curtíssimo! Além de
assistir as aulas e fazer parte dos clubes de esportes, tenho que comparecer aos
encontros de duas Ordens!
– Vamos almoçar juntas hoje?
– Claro!
Estávamos todas tensas naquela semana. A qualquer momento, uma de nós
poderia ser chamada para entrevista. As moças que tinham mais chance de
participar eram aquelas com melhores notas ou membros de fraternidades.
A princesa participaria da seleção, mas não foi por isso que entrei na
Armana.
Percebi que Werda estava rondando o departamento central. Ela queria ver
as destruidoras.
– Por favor, não ataque.
Que situação delicada.
Uma das destruidoras saiu da sala. Quando Werda deu uns passos adiante,
eu a detive.
– Sua miserável...! De que lado você está?
Quando a destruidora já tinha ido embora, Werda ficou tão puta que
chamou o gênio para me atacar.
Eu fugi. Entrei no banheiro. Ela me perseguiu. E me forçou a mostrar meu
gênio, ou eu acabaria estirada no chão.
Dima, meu gênio preto e amarelo, partiu para cima de Vrerto. Werda
encaixou duas peças de um quebra–cabeça tridimensional e abriu uma dimensão
sutil.
– Agora você não quer apenas atacar a destruidora. Vai me machucar
também?
– Krazie...! Que merda é essa? Seu gênio é do sexo feminino?
Eu fiquei quieta. Ela chamou seu gênio de volta, tamanha foi sua surpresa.
– Isso é muito raro, sabia? Que extraordinário! É a exceção do GG.
– Eu sou especial, não é?
Eu me fingi de vaidosa, para ver se Werda sentiria inveja. Ela era muito fácil
de ser lida. Mas, em vez disso, ela aproximou–se de mim e me abraçou.
– Você é minha melhor amiga, Krazie. Eu aprecio me aliar a magas
poderosas. Ou será que...

321
Wanju Duli

Ela colocou a mão no meu coração. Ele estava disparado. Em seguida, ela
abriu os primeiros botões da minha camisa, arrancando outros enquanto puxava
minha gola.
– Não!
Ela me fitou com uma expressão de fúria e nojo. A expressão mais
repugnante e assustadora que já vi nos olhos dela.
– Você é um homem. Eu te contei meus segredos. Chorei na sua frente. Seu
filho da puta...!
– Calma! Vamos conversar...
Ela me puxou pelos cabelos. E me arrastou para fora do banheiro. Tirupa,
Aibara e as outras garotas da Armana que estavam no chá, passaram pelo
corredor. Ficaram surpresas quando viram Werda me arrastando.
– Aqui está a delicada garota que tem tomado chá com a princesa. Acho que
ela se esqueceu de dizer que é um menino e está proibido em reuniões como
essa.
Ela me jogou no chão. Eu fechei a minha jaqueta, para tapar os botões
arrancados.
– Isso é verdade, Krazie?
Elas me fitavam com espanto. Era duro desapontá–las. Mas eu sabia que um
dia a verdade seria revelada. Eu baixei os olhos.
– Sinto muito.
Eu tinha medo de olhar para elas novamente.
– Você me enganou. Enganou a todas!
Agora Werda estava com um sorriso no rosto. Estava amando ver a minha
humilhação e desejou reunir uma platéia maior para assistir ao espetáculo.
Mandou chamar imediatamente Krashkah, Derida e até a própria Naridana.
Eu fiquei de pé novamente, mas não ousei encarar nenhuma delas.
– O quê...? Krazie, você é um...? Eu te pedi para me ajudar a fechar meu
sutiã uma vez. Que porra é essa, cacete?!
Derida estava completamente alterada, gritando. Parecia que ia me bater a
qualquer momento.
– Krazie, você está tão, mas tão ferrada agora...
Resolvi levantar os olhos e encará–las.
– Peço desculpas a todas. Minha intenção não era enganá–las. Eu apenas
desejava me formar em Jinas. Nunca vi graça em Jins. Gosto mais dos
uniformes daqui, das atividades, dos clubes, do ambiente. Eu não fiz nada de
errado. Eu apenas desejei ser parte disso tudo.
– Mentiroso!
Naridana fez um sinal para Derida, pedindo que ela se acalmasse. Voltou–se
na minha direção.

322
Fábula dos Gênios

– Krazie, você não somente está fazendo parte de duas sociedades secretas
ao mesmo tempo e escondeu isso de mim, como também quebrou uma regra
fundamental e feriu a honra da universidade. Você sabe que isso irá gerar sua
expulsão imediata, não é mesmo?
– Se vocês me delatarem.
– Que está acontecendo aqui? Que confusão é essa?
Era a professora Valonde. Werda parecia muito ansiosa em revelar para a
professora, pessoalmente, o motivo do barulho.
– Professora Valonde, essa pessoa aqui é a responsável pelo caos.
– Qual é o seu nome?
– Krazie Razeta.
– Senhorita Razeta, era exatamente quem eu procurava. A madame Soma
requisita sua presença imediata no departamento, para entrevista.
Ainda surpresa, acompanhei a professora. O espanto foi tanto que ninguém
deu um pio.
Mas eu vi Krashkah mexendo em seu celular. Eu já sabia para quem ela
estava enviando mensagem: Mino.

***

Nossa, como eu sou foda. Eu sou a pessoa mais maravilhosa do universo.


Meu, eu sou o cara. Aquele que vai te matar, por puro prazer. Porque eu sou
mau.
– Há, há, há!
– Hã... por que você tá rindo, mestre?
– Porque eu mostrei para o Qah quem manda aqui nessa porra de
universidade.
– Ele é só um fracote. Basta encostar que ele desmonta. Não precisava ter
exagerado. O desgraçado cuspiu sangue pela boca e pelo nariz com seu gesto de
cumprimento.
– Você precisa ter honra. Deve atacar com magia. Somos magos e não
guerreiros.
– Espera, recebi uma mensagem pelo celular. Oh, é da minha Kah! Ela deve
estar morrendo de saudades de mim. E do meu poderoso pau, é claro!
Mas quando eu li a mensagem, fiquei subitamente sério.
– Preciso voltar. Esqueci uma coisa no corredor.
Voltei para onde Qah e Borrai estavam. Segurei Qah pelo braço.
– Mas o que é que você quer agora, hein?
– Preciso verificar uma coisa.

323
Wanju Duli

Dei um beijo na boca de Qah. Borrai, Somoyol, Hparral e Colmon ficaram


tão espantados que abriram a boca e não fecharam mais.
– Mas que porra...?
Senti uma tontura imediata. Dessa vez fui eu que cuspi sangue pela boca.
Eles levaram um susto ainda maior.
Eu apontei o dedo para Qah, acusadoramente.
– É uma mulher! Disfarçada! Esse beijo foi a prova. Krazie também está
disfarçada em Jinas, e é um homem!
Borrai parecia o mais surpreso de todos. Afinal, ele considerava Qah um
grande amigo. Chegou a ponto de comprar briga com meu senhorio para
defendê–lo.
– O que você tá fazendo em Jins?
Qah deu de ombros, como se não se importasse.
– Krazie queria passar uns tempos em Jinas. Então trocamos de lugar. Até
que eu gosto daqui.
– Pois eu não gosto de você, Qah. Não importa que seja homem ou mulher.
Dos dois jeitos você é detestável. É calado, certinho e tira boas notas. E todas as
garotas babam por você. Agora que a verdade foi revelada, isso acabou.
– Do jeito que as moças de Jinas nos desprezam, capaz de gostarem ainda
mais dela agora que Qah é uma menina.
– Cale–se, infeliz! Fodam–se as estudantes de Jinas. Eu vou delatar o Qah
para que ele não tenha a mínima chance de ser entrevistado para a Missão dos
Deuses!
– Se não gosta de mim, por que me beijou, seu esquisito?
– Eu fiz um favor para você, idiota. Não reclame. Somente assim eles iriam
acreditar. De outra forma, você seria obrigado a mostrar o que há por baixo
dessa sua camisa engomada. Não seria apropriado para uma dama. Agradeça–
me!
– Ele é sempre alterado assim?
– Na maior parte do tempo.
Qah levantou–se.
– Tenho conhecidos em Sinabil. Vou empacotar minhas coisas e me mudar
para lá. Adeus, cavalheiros da Vibri. Façam bonito na Missão dos Deuses,
porque eu não vou dar a mínima.
E ele saiu. Borrai não foi atrás. Cruzou os braços.
– Acho que no fundo eu desconfiava que ele fosse uma garota. Ele é bom
demais em divinação. E péssimo em jogos.
– Eu preciso passar no hospital. Vejo vocês depois. Palhaços...

324
Fábula dos Gênios

Eu ainda sentia gosto de sangue na boca. As pessoas eram sempre mal


agradecidas quando eu arriscava minha vida para ajudá–las. Por isso eu só queria
que todos se fodessem mesmo.
– E se ele fosse um homem?
– Cikuta, é melhor não me perturbar. Eu estou, tipo, morrendo. Não gosto
quando você me incomoda quando estou prestes a falecer.
– E quando você está saudável?
– Também não.
– Eu acho que o Mino anda muito estressado. Não acha, Cikuta?
– Com certeza, Durru. Devemos cantar uma canção para relaxá–lo? Os dois
juntos, a capela.
– Não, NÃO! Me deixem em paz! É isso que dá ter dois gênios. Até o
maligno me torra a paciência.
Quando passei perto do hospital, surpreendi–me ao ver que havia um
grupinho na porta. Não estavam deixando ninguém passar.
– Ei, ei, eu tô morrendo! Exijo atendimento imediato! Vocês recusam
receber pacientes à beira da morte? Que droga é essa? Além disso, eu sou o líder
da Vibri!
Mostrei o sangue na mão. Me deixaram passar. Ainda xingando, recebi
atendimento. Me examinaram e me mandaram tomar um remédio.
– Eu sei o que causou esse ferimento. Você não é o primeiro a surgir com
algo assim. Não vou perguntar como você conseguiu trazer uma moça para o
campus hoje, mas sugiro que não repita a experiência. Você teve sorte. O
próximo beijo pode te matar.
– Firmeza. Já saquei.
Médico filho da mãe. Pelo menos ele me curou e ficou quieto.
Quando saí de lá, senti um frio na espinha. Havia um destruidor na sala de
espera. Era o outro: Solovro.
Numa ação involuntária, retornei para a sala do médico. Percebi que eu
estava tremendo. Merda!
– O que aquele cara tá fazendo aqui?
– Um veterano o atacou. Para a nossa sorte, o destruidor foi paciente com
isso. Mas o aluno construtor está em coma. O destruidor só recebeu um
ferimento no ombro.
– Quem o atacou?
– Sekemel.
Aquele aluno era forte. Estava no último ano da universidade. Aquilo só
podia significar uma coisa: se eu tentasse atacar um daqueles destruidores, eu ia
morrer. Era melhor eu me mandar logo dali e nem olhar na direção do
destruidor quando passasse.

325
Wanju Duli

– A propósito, senhor Eopala. Aguarde na sala de espera. Em 15 minutos te


chamo para tomar a segunda dose do remédio.
Ele chamou outro paciente e fechou a porta.
Agora estávamos somente eu e o destruidor na sala de espera. Putz. Nos
velhos tempos, eu daria a minha vida por uma oportunidade como essa e o
atacaria assim que o visse. Naquele dia, eu quase prendia minha respiração, por
medo de perturbá–lo.
Sentei numa cadeira bem longe dele. Eu o observei discretamente, mas não
ousei fazer nenhum ruído. Meu corpo inteiro estava tremendo e eu suava.
Porra... o que tava acontecendo comigo? Eu não era assim. Jamais tremia
diante de um inimigo. Mesmo que fosse um cara forte. Mesmo numa batalha de
vida ou morte.
Era aquela capa maldita. Era o cheiro. Os destruidores possuíam uma aura
de morte em torno de si. Aquela atmosfera nefasta podia ser facilmente captada
até pelo mago mais fraco. Qualquer um seria capaz de sentir a força imensa de
Solovro.
Aquela capa fedia. Ele fedia. Eu conseguia notar isso claramente, mesmo
estando longe. Naquela sala abafada, o odor que penetrava as minhas narinas me
fazia tremer.
Mas não era um cheiro totalmente ruim. Era um cheiro diferente. Odor de
Desmei. Um cheiro de terra e de ar de Desmei. Eu nunca pisei lá, mas eu sentia
que aquele cheiro não podia ser daqui. As terras e o ar de Consman não
cheiravam daquela forma.
Silêncio. Havia uma quietude mortal naquela sala. Meu coração acelerava.
Será que, no fundo, eu também não estava sentindo certa emoção por estar na
presença de um destruidor?
Eu queria odiá–lo. E, de fato, eu o odiava. Eu amava sentir aquela raiva
intensa de caras como ele. Mas, ao mesmo tempo, eu estava quase segurando
um sorriso ou mesmo lágrimas de emoção. Eu pensava: “Puta merda...! Esse
cara é foda. Como eu desejo olhar para o gênio dele. Ver os selos de múltiplas
dimensões que ele será capaz de traçar. E sentir a emoção de colocar a trilha de
selos dele contra a minha”.
Eu queria lutar. Sentia sede de luta. Eu desejava arrancar sangue dele. Ter
meu sangue arrancado por ele. E sentir uma suprema taquicardia na batalha
mais extraordinária da minha existência. Sim: por aquele prêmio valia a pena
morrer.
Eu desejei ter estudado mais. Se eu fosse mais aplicado aos estudos, quem
sabe eu tivesse a mínima chance de derrotá–lo?
Quando ele se moveu, meu coração pulou.

326
Fábula dos Gênios

Eu não via o rosto dele. O capuz cobria a maior parte da face. Mas eu vi a
mão que ele estendeu para pegar uma das revistas que havia na sala de espera.
Ele abriu a revista, com curiosidade.
Que cena excêntrica. Um destruidor lendo uma revista de moda na sala de
espera do hospital. Só havia revistas ridículas lá.
Na verdade, eu não tinha certeza se era uma revista de moda, de decoração,
de motos ou de informática. Quem sabe até tivesse uma revista de magia ali no
meio. Mas se tivesse, seria revista de magias completamente idiotas.
Tentei espiar a capa. Não consegui. Mas ele notou que eu estava olhando.
Ele levantou o rosto e me lançou um olhar de esguelha.
Ele tinha assustadores olhos cor de vinho. Então ele havia feito MAP.
Em meio ao meu nervosismo, tentei disfarçar. Como ele percebeu que eu
olhei, falei com ele.
– Você consegue entender o conteúdo da revista?
Ele apenas me fitava, intrigado.
Cacete. Ele sequer entendeu o que eu perguntei. Então ele não devia saber o
creemah.
O pior era que eu conhecia o mínimo de dezkazil. Ou eu ao menos achava
que conhecia. No GGM só havia o alfabeto. Mas eu já tinha pescado alguns
termos em livros antigos. Afinal, eu já havia lido praticamente todos os livros
que mencionavam os destruidores na biblioteca da universidade, em minha
busca infindável para aprender a magia deles.
Eu fiz a mesma pergunta, mas em dezkazil. Mas eu acho que acabei
misturando com outras línguas arcaicas, porque o destruidor me fitou com ainda
mais estranheza dessa vez.
– Eu não entender.
Ele disse isso em creemah, mas com uma pronúncia bem enrolada. Não sei
se ele entendeu minha pergunta, mas ele certamente só estava espiando as
imagens da revista.
– Você odeia Naridana?
Ele reconheceu o nome dela na minha pergunta, pela expressão que fez.
– Eu não entender.
Ainda assim, ele apenas repetiu essa frase. Será que ele só sabia dizer isso?
Mostrei as minhas meias coloridas.
– Fagenar Vibri.
– Eu sou o mestre da Vibri em Jins.
Era inútil tentar conversar com aquele cara. Ele colocou a revista de volta no
lugar.
Eu prestava atenção a cada movimento dele. Até que ele se aborreceu com
isso.

327
Wanju Duli

– O que você quer, construtor?


Dessa vez a pronúncia dele foi quase correta, e a construção frasal perfeita.
Pelo jeito, ele conseguia falar em creemah quando queria.
– Você odeia os construtores? Não gosta de nós, habitantes de Consman?
Tentei formular aquela frase de vários jeitos, gesticulando para ajudar. Ele
entendeu.
– Não importa. Agora, missão.
Peguei a mesma revista que ele segurou. Desenhei na contracapa algumas
formas geométricas interligadas, simbolizando uma trilha de selos. Entreguei
para ele.
Agora sim, ele compreendeu. Estendeu a mão na minha direção. Eu entendi
que ele queria a caneta. Com ela, ele rabiscou outra trilha de selos do lado da
minha.
Eu fiquei boquiaberto com o que ele desenhou. Não ensinavam aquilo na
minha universidade. Em poucos segundos, ele desenhou uma segunda sequência
de formas que quebraria a minha imediatamente, se usássemos selos reais. Com
os cálculos elaborados pelos construtores, eu levaria pelo menos uns quinze
minutos para chegar a um resultado aproximado à solução excelente que ele
apontou.
Ele percebeu que eu fiquei surpreso. E ele pareceu gostar da brincadeira!
Pediu a revista de volta e desenhou uma segunda sequência de selos, para que eu
solucionasse. Eu demorei uns cinco minutos fazendo cálculos e devolvi a revista.
Ele riu com o que eu fiz! Corrigiu e me passou. Eu notei que cometi erros
óbvios. Tarde demais.
Brincamos assim em silêncio pelos próximos minutos. Até que Solovro foi
chamado. Ele levantou–se. Um pouco depois, também me chamaram para que
eu tomasse a segunda dose. Mas depois que eu tomei, resolvi continuar na sala
de espera para aguardar Solovro.
Quando ele voltou, estava com o capuz abaixado. Também estava visível
uma pequena parte do ombro, no qual havia ataduras e um pouco de sangue.
Devia ter sido um ferimento desgraçado.
O construtor provavelmente atacou de surpresa para pegar Solovro
desprevenido. E se o destruidor o havia deixado em coma, ele deve ter reagido
muito rapidamente com o susto, em legítima defesa.
Pelo jeito, ainda havia certa agitação sobre esse assunto, como ficava claro
pela presença da galera lá fora. Mas provavelmente não ia dar em nada. Aquilo
não ia gerar uma guerra entre construtores e destruidores. Só foi um aluno
exaltado e idiota fazendo merda. Sorte que o destruidor não se ofendeu.
Normalmente ele teria arrancado o couro do outro e costurado no manto. Eu
engoli em seco só de pensar nisso.

328
Fábula dos Gênios

Agora eu podia fitá–lo melhor. Tinha cabelos negros. E parecia bem jovem.
Até fiquei surpreso.
– Qual a tua idade, cara?
Eu não sabia se ele entendia gírias. Mas ele pareceu entender a pergunta.
– 26. Qual a tua idade, cara?
Ele apenas repetiu o que eu disse, provavelmente sem entender direito. Eu
achei engraçado.
– 31. Você é mais novo que eu. Jamais imaginei isso. Ow, meu, não quer vir
com a gente lá pra participar de uma reunião da Vibri?
Ele fez uma expressão de quem não entendeu. Eu apenas me levantei e fiz
um gesto para que ele me acompanhasse. Ele levantou–se também.
Mas quando eu meio que coloquei a mão nas costas dele, ele reagiu com
violência. Fez um movimento forte, saindo de perto, e me fitou com ódio.
– Calma! Foi mal. Não vou encostar em ti não, beleza?
Eu tinha me esquecido desse detalhe crucial. Os destruidores não gostavam
de toques de qualquer tipo. Nada de tapinhas nas costas ou apertos de mão. Era
melhor manter distância ou ele interpretaria qualquer gesto meu como uma
tentativa de atacá–lo.
Nós saímos de lá. Ainda havia alguns alunos na porta, que fizeram ainda
mais barulho ao ver o destruidor de novo. Felizmente, eles não fizeram mais
que isso.
O destruidor ainda continuava a me seguir. Ótimo. Eu só precisava levá–lo
até a sala da Fagenar Vibri antes que algum professor nos flagrasse.
Consegui fazer isso. Poucos alunos viram que eu estava com ele. A sala da
Vibri era grande. Tinha alguns sofás e mesas de jogos. Quadro negro e uma
estante de livros.
Havia uns seis membros da Vibri relaxando lá, estirados nos sofás. Alguns
lendo ou rabiscando algo em cadernos. Quando viram o destruidor, todos se
levantaram, num susto.
– Calma, pessoal. O Solovro só veio fazer uma visita. Podem ficar à vontade.
Indiquei um sofá para que Solovro se sentasse. É claro que ninguém ia ficar
à vontade com um destruidor lá dentro. O que eu disse quase soou como piada.
Somoyol veio me sussurrar alguma coisa.
– Não faz isso não. Tá malucão?
– Relaxa. Ele é gente boa.
– Sei.
Mostrei pro pessoal a revista em que eu e Solovro havíamos brincado de
guerra de selos no papel. Eles se impressionaram bastante com o que ele
desenhou.
– Ele fez isso em poucos segundos? Caralho...!

329
Wanju Duli

Todo mundo se debruçou na revista para admirar a obra de arte que era
aquela batalha silenciosa. Já que não tínhamos autorização para brigar, brincar
de registrar selos funcionava.
– Solovro, você sabe jogar JTG?
Mais uma vez, ele não entendeu. Mostramos a ele o tabuleiro do jogo. Sendo
o JTG um jogo baseado no esquema de labirintos e teias dos destruidores,
bastava ensinar algumas regras simples e ele provavelmente já seria capaz de
jogar.
– Acho que consigo.
O pessoal comemorou quando Solovro concordou em jogar com a gente.
Nós nos apressamos em montar o tabuleiro. Estavam todos empolgados.
Aquilo seria fantástico!
– O Jogo de Tabuleiro dos Gênios deve ter entre dois e quatro jogadores.
Além de mim e do Solovro, eu convido Somoyol e Colmon. Os demais assistam
em silêncio. Só poderão gritar após os ataques.
Eu embaralhei as cartas e distribui–as. Coloquei o quebra–cabeça no centro.
Joguei os dados e girei a ampulheta.
– Vejo que serei eu a iniciar. Prometo demonstrar com capricho.
Colmon retirou a primeira carta. Alcançou a lousa e desenhou uma
sequência de selos enquanto a areia caía. Recitou uma fórmula mágica e
energizou–os. Ele concentrou–se. Acelerou as batidas e colocou o gênio na
ampulheta.
A areia da Ampulheta de Revelação mudou de cor. A ampulheta inteira
avermelhou–se e esquentou como fogo. Ela flutuava no centro do tabuleiro.
– Duas viradas. Três viradas. Quatro... porra!
– Uau.
A ampulheta caiu de volta no tabuleiro. Ele moveu sua peça. Houve uma
salva de palmas.
– Ei, isso foi bom, moleque. Que porra é essa de porra? Estréia com classe.
– Você é o próximo. Aposto que faz melhor, Yol.
Ele concentrou–se. Chegou a cinco viradas. A galera urrou.
– Canalha.
– Me come.
– Minha vez.
Também fiz quatro viradas. Que merda. Eu geralmente fazia cinco. Não
queria fazer feio na frente da visita.
Solovro ainda tentava compreender a lógica do jogo.
– Eu desenho os selos. E...

330
Fábula dos Gênios

– É simples. Veja só: você tira uma carta. Desenha o gráfico selado da magia
daquela carta na lousa. Depois transfere a energia para a ampulheta, com o
gênio.
– É quase a mesma lógica da brincadeira que você e o Mino estavam
fazendo na revista. A diferença é que você transfere a energia de verdade, como
se estivesse em batalha. A vantagem é que ninguém corre risco de morrer,
porque a ampulheta absorve o impacto. E você converte a vitória em pontos.
Sua peça avança nas casas do labirinto e um pedaço do quebra–cabeça é
montado.
– Quando somamos cinquenta viradas, trocamos os dados. A contagem final
dos pontos é um pouco mais complicada, mas nós anotamos pra você.
Ele retirou uma carta. Desenhou os selos na lousa numa velocidade
impressionante. Sinceramente, não sei como ele fez isso. O destruidor tirou uma
carta complicadíssima. E ele simplesmente fez os desenhos, como se estivesse
desenhando um sol e uma casinha; sem nem pensar. Apenas saiu, como se fosse
a coisa mais natural do mundo.
A areia mal tinha começado a cair e ele já estava energizando a ampulheta.
Ela ficou negra.
– Puta que pariu...!
Eu nunca tinha visto aquela merda ficar negra. Nem mesmo usando o meu
maligno. O que aquele cara tava fazendo?
A energia dele era muito forte. A ampulheta começou a derreter. Até que se
quebrou, num estouro. Os membros da Vibri gritaram, de espanto e euforia.
– Eu tenho outra AR! Já vou buscar.
Hparral procurou nas gavetas. Alcançou uma nova ampulheta.
– Desculpe por quebrar.
Eu ouvi bem? O destruidor estava pedindo desculpas?
– Não esquenta com isso. Tá tranquilo.
Retomamos o jogo, como se fosse um fabuloso campeonato. Logo, mais
cinco membros da Vibri chegaram para assistir.
E não parava de chegar gente. A sala era grande, mas logo já havia pelo
menos vinte membros da Fagenar Vibri lá dentro. O pessoal vibrava com as
jogadas. Cada vez que era a vez de Solovro, comemoravam.
Em poucas palavras, ele nos humilhou no JTG. Aprendeu as regras muito
rápido. Logo, ele já estava embaralhando as cartas, lançando dados, movendo as
peças. Como se já fosse um jogador calejado.
Eu vi que ele estava se divertindo. Em alguns momentos ele riu. Rimos
juntos. Aquilo foi o máximo. Muito foda. Quando o jogo acabou, ninguém
precisava questionar o vencedor. Mesmo assim, somamos os pontos, só para
conhecermos nossas diferenças.

331
Wanju Duli

Solovro dominou algo como 80% do jogo. Eu e os outros caras nem


conseguimos reagir. Se fôssemos nós três juntos contra ele também teríamos
perdido.
A galera abriu latas de cerveja para comemorar. Alcancei uma para Solovro.
Ele não sabia o que era, mas viu que estávamos todos bebendo e nos imitou.
Notei que ele se sentiu um pouco tonto. Será que ele nunca tinha bebido
álcool na vida?
Logo, já tinha um membro oferecendo cigarro para o destruidor. Ele deu
uma tragada e tossiu.
Nós rimos dele. Ele não pareceu gostar muito da zombaria. Avisei pro
pessoal tomar cuidado com o que fazia. Afinal, ele parecia o tipo de cara que
nos atacaria por uma piadinha de mau gosto.
Somoyol me sussurrou alguma coisa.
– Melhor não oferecer mais nada pra ele. Um destruidor sóbrio já causa
problemas. Nem quero imaginar o que faria um cara desses drogado.
– Solovro!
Alguém adentrou pela porta, sem receber permissão. Mas quando vimos
quem era, ficou muito claro que ele não precisava pedir permissão para fazer
qualquer coisa.
Cazka caminhou na direção de Solovro. O pessoal abriu passagem para que
ele passasse. Parecia que Cazka estava dando algum sermão para Solovro, no
idioma dos destruidores.
Solovro parecia um cara mais tranquilo. Cazka, por outro lado, me soava
como um sujeito sério, rígido e de pouca paciência. Ele não se intimidava na
presença de construtores.
Eu notei que Solovro estava sentindo algum desconforto por estar entre nós,
mas Cazka devia nos ver como insetos. Nem olhou para nossa cara, como se
não existíssemos. Ele nem devia saber que aquela era a sede da Vibri. Ou se
sabia, fazia pouco caso disso. Pelo jeito, ele só queria arrastar Solovro de lá.
– Senhor Cazka, estávamos apenas nos divertindo.
– Eu vejo isso. Bebendo e jogando JTG. Nós destruidores nos divertimos de
outra forma. Arrancando pernas e braços. Mastigando tripas. Não me admira
que Solovro esteja entediado aqui.
– Ele parecia estar se divertindo.
– Você está equivocado, senhor Eopala. Solovro estava meramente sendo
simpático, para agradá–los. Uma atitude desnecessária, já que não viemos até
aqui para socializar e sim para tolerar a presença uns dos outros até o fim da
Missão dos Deuses.
Conversar com Cazka era bem mais fácil, já que ele falava fluentemente o
creemah, embora tivesse bastante sotaque.

332
Fábula dos Gênios

Resolvi oferecer uma lata de cerveja para Cazka. Era uma atitude meio
arriscada, depois do que ele disse. Mas eu não queria perder a oportunidade de
bater um papo com o autor do GGM.
– Eu não experimento essas bebidas estranhas de construtores.
– O que vocês têm comido enquanto estão em Consman?
– Eu aceito vegetais e carne, com o mínimo de modificações. Não aprecio
esses alimentos industrializados. Solovro já se aventura mais no paladar. Eu não
respondo por ele.
– Seria uma honra se você se reunisse a nós no jogo.
– Reitero que possuo pouco interesse nessas simulações da realidade. Sem
carne, sangue e ossos sobra pouca coisa para acelerar o coração. Minha
potencialidade mágica não atingiria o ponto máximo em jogos como esse. Eu
preciso da coisa real para abrir as melhores dimensões.
– Eu apreciaria uma batalha, senhor Cazka.
– Eu nego. De modo análogo, o que você chama de batalha mal passaria de
uma simulação. Não faz sentido algum brincar de lutar se precisarei segurar
minha força para não matar um de vocês sem querer.
Aquele cara era complicado. Eu queria pelo menos convencê–lo a sentar–se.
Ali de pé, ele me incomodava. Devia ter vindo só para levar Solovro embora.
Mas eu não iria permitir.
– Por favor, sente–se. Fique mais.
– O que eu ganho com isso?
Porra. Que cara chato. Mas eu não esperaria menos do autor do GGM. Uma
das únicas pessoas corajosas o suficiente para chamar Valonde de vadia. Só por
isso, ele já tinha meu respeito. Todo mundo odiava aquela mulher, que mais
parecia um general numa guerra de magos.
– Eu li o Grimório dos Gênios Malignos. Todo mundo que está nessa sala
leu seu livro. Você leu, Borrai?
– No mesmo dia que entrei para a Vibri.
– Todos aqui são seus fãs e odeiam Valonde. Então, se aceitar sentar–se
conosco, iremos agradá–lo bastante com refinados elogios.
– Eu não preciso do elogio de construtores. Eu escrevi aquela merda para
que ficassem ofendidos. Portanto, ofendam–se!
– Esse cara é engraçado. Gostei dele.
– O que você quer, seu falso destruidor? Eu não pedi para que gostasse de
mim. A alegria que sentem em minha presença me ofende.
Ah, merda. Aquele ali parecia curtir comprar uma boa briga. Mas ele não
queria lutar, para não nos matar por acidente. Também não queria jogar ou
beber conosco. Qual seria a alternativa?

333
Wanju Duli

– Você sabe artes marciais? Poderíamos simplesmente trocar uns socos e


chutes, por diversão.
– Nós somos bons em arrancar a pele com mordidas. Nenhum dos seus
estilos de magia ou lutas me divertiria o bastante. Além do mais, não me agrada
a ideia das mãos de vocês, tão cheias de sabonetes, perfumes e produtos
artificiais, tocando o meu manto putrefato e enchendo–o de odores indesejáveis.
Não quero minha roupa fedendo a perfume. Só de estar em Consman já sinto
nojo.
– É melhor não falar nesse tom aqui dentro. Alguém pode ficar ofendido.
– Quem vai ficar ofendido? Você, que sequer tem gênio? Pretende me atacar
se eu ofender o cheiro do ar desse país? Nós vivemos no pântano e no meio do
lixo. E agora vocês se ofendem quando eu digo que o país de vocês ficou limpo
demais sem a nossa presença suja?
Aquele cara teria uma boa resposta para tudo. Ele estava nos provocando de
propósito. Estava nos desafiando. Pelo jeito, tudo o que ele queria era ser
atacado, para ter uma boa desculpa para colocar alguém em coma e não ser
punido por isso, como fez Solovro.
– Caras, não briguem. Cazka, senta aí. Na boa.
– Por quê?
– Porque me incomoda o fato de você estar em pé.
– Eu não ligo para a sua incomodação.
– Pô...
– Se houver algo nesse sofá, Eopala, você está morto.
– Não há perfume aí. Essa merda está bem velha e suja. Do jeito que você
gosta.
Finalmente, ele sentou–se. Aleluia! Consegui convencer o maldito a se sentar.
– Não tenho muito tempo para ficar aqui. Então, seja breve.
– Baixa aí teu capuz.
– Só porque você pediu? Você é chato pra caralho, infeliz.
Eu ri.
– Você tem tipo uns 36 anos, como Valonde?
– 24.
Houve algumas exclamações de surpresa.
– Woa! Isso foi bem inesperado. Já faz muitos anos que você escreveu o
GGM.
– Você me parou aqui para fazer perguntas pessoais? Que tipo de idiota
você é?
– Cazka, normalmente Sremino não permite que ninguém o xingue. Você é
uma das únicas pessoas a quem ele já se dirigiu com respeito.

334
Fábula dos Gênios

– Isso não faz a menor diferença. Para mim, ele não é ninguém. Todos
vocês são lixo. Se de fato batalharam contra Solovro com aquele joguinho de
tabuleiro estúpido de vocês, já devem ter concluído que o que digo é verdade.
Enquanto conversávamos, Solovro estava jogando um joguinho eletrônico
portátil que Hparral emprestou para ele. Quando viu isso, Cazka deu um suspiro
de desaprovação.
– Nós somos fortes, cara. Os membros da Vibri estão entre os mais
poderosos de Jins. Se nós vinte o enfrentássemos numa batalha ao mesmo
tempo, até mesmo você teria problemas.
– De fato, eu teria. Não me digam que vocês realmente se orgulham em
saber que precisam ter vinte de vocês para estar à altura de apenas um
destruidor?
A inteligência dele me incomodava. Ele dava respostas perspicazes e rápidas
para qualquer coisa que dizíamos.
– Você mantém sexo regular com sua mulher?
– Eu mantenho sexo regular com meu cérebro. Por isso ele funciona e o seu
não.
A galera riu. Tanto com a pergunta imbecil de Hparral quanto com a
excelente resposta de Cazka.
– O que você acha de Sassa Soma?
– Uma maga admirável.
– Ela é mais forte que você?
– Ela é.
O pessoal assobiou. Bom saber disso.
– Como vai o processo de seleção para a Missão dos Deuses? Já começaram
as entrevistas?
– Já começamos. Mas Jins está repleto de imprestáveis. Jinas também. Soma
e Jrass também não estão muito empolgadas com a tarefa.
– Algum membro da Fagenar Vibri será entrevistado?
– Veremos.
– Solovro, qual teu rolo com a Naridana?
Ele não escutou. Estava muito entretido no joguinho.
– Ei, Solovro. Te liga. Tão falando contigo.
Ele levantou os olhos, meio perdido.
– Sim?
Cazka explicou a situação em dezkazil e Solovro respondeu.
– Ele disse que isso não é da conta de vocês. A propósito, já fiquei tempo
demais aqui dentro. Vou embora. Se Solovro quiser ficar mais tempo, que fique.
Eu já enchi o saco.
Ele levantou–se.

335
Wanju Duli

– Pelo menos mostra um selo fodão antes de ir. Ou teu gênio.


– Eu não vou mostrar meu gênio. Isso é mais pessoal do que qualquer
pergunta que vocês poderiam me fazer. Ela é a fonte do meu poder máximo.
Ele já ia saindo. Mas Hparral fez a besteira de segurá–lo pelo manto.
– Mostre pelo menos um selo, senhor Cazka.
Ele fez um gesto forte com o braço, livrando–se de Hparral. Foi tudo muito
rápido. Bastou que ele o tocasse que Cazka fez surgir um selo negro brilhante,
com formas complicadas, e fino como uma lâmina. A palma da mão de Hparral
sangrou um pouco, apenas com um toque leve do selo.
Cazka não fez surgir o selo porque Hparral pediu. Foi uma reação natural
sua ao toque. Ele fez com que o selo sumisse no segundo seguinte.
– Por que vocês, construtores, são tão pegajosos? Pelo menos assim satisfiz
o desejo dos senhores. Tenham um bom dia.
Ele retirou–se. Mas Solovro continuava conosco.
– Quer almoçar com a gente no refeitório, Solovro?
– Não. Melhor eu ir embora.
Ele devolveu o jogo para Hparral e levantou–se.
– Quando quiser nos visitar de novo, fique à vontade.
Mas ele apenas despediu–se e retirou–se.
Dois destruidores permaneceram na sala da Fagenar Vibri por mais de uma
hora e ninguém morreu. Era um ótimo começo.

***

Quando Krazie foi liberada da entrevista, a professora Valonde me chamou.


Eu fiquei emocionada! Não estava acreditando que eu, uma caloura, estava
sendo cogitada como membro oficial para a Missão dos Deuses! Ora, afinal, eu
era membro da Armana! Só podia ser isso. E eu me dava bem com a princesa
Aibara.
E lá estava eu, sozinha com Valonde naquela sala. Pensei que as duas
destruidoras estariam lá também para me avaliar. Eu estava ficando nervosa,
mas bastante emocionada.
– Senhorita Trai. Como sabe, tivemos as nossas primeiras avaliações na
segunda semana de aula.
– Dei meu melhor para tirar boas notas nas provas, professora.
– Era exatamente sobre isso que eu queria falar. Suas notas deixaram muito
a desejar. Nenhuma delas atingiu a média. Se deu o seu melhor como diz, fica
claro que não haverá meios de melhorar o seu desempenho nas avaliações
seguintes.

336
Fábula dos Gênios

– Espere. Então... eu não fui chamada aqui para entrevista?


– Você foi chamada para que eu lhe informe que você falhou em Jinas. E
para que eu lhe entregue esta carta oficial de expulsão de nossa universidade.
Isso é tudo, Tirupa Trai. Devolva o seu número e empacote suas coisas. Você
deverá se retirar do campus até o amanhecer. Tenha um ótimo dia.

337
Wanju Duli

Capítulo 4: Sexo dos Triângulos

Nascer como destruidor é uma bênção e uma maldição. Você sabe que não
terá mais paz na vida. Por outro lado, a paz fica muito monótona depois de um
tempo. Entender isso faz com que ter sangue de destruidor transforme–se em
símbolo de status, poder e diversão extrema.
Tive esse mestre extraordinário que me contou muitos segredos. Até então,
uma porção esmagadora da MGM era passada oralmente. Ele me ferrou
bastante com duros treinamentos. Isso só fez com que o fogo dentro de mim
ardesse mais forte e queimasse até as dimensões do meu espírito.
Na magia existem muitos temas polêmicos, tópicos controversos e não há
apenas um jeito correto de fazer as coisas. Por isso, se alguém espera encontrar
algum livro com uma definição exata e absoluta do que é a magia, a alma ou
uma dimensão, está somente caminhando em círculos. É válido debater e é
válido fazer. Mas por mais que você fale ou faça, jamais alcançará a resposta
correta e definitiva.
Algumas vezes um ensinamento é a chave para a ocorrência de uma prática
extraordinária. O contrário também é verdadeiro. Pessoas brincam com palavras,
com a lógica, com o corpo, com a alma. Existem diversas maneiras de brincar.
Quem sabe tudo seja apenas uma grande enganação. Ou pode ser que até as
mais ingênuas brincadeiras sejam sérias, se geram sentimentos fortes.
O problema é quando se atribui valores. Essa é uma grande prisão. O
importante é funcionar: que a magia te traga felicidade, êxtase ou algum efeito
foda que, no fundo, não fará a mínima diferença para a ordem do universo.
Portanto, o verdadeiro significado de uma magia “funcionar” é ocorrer uma
mudança interna. O que acontece lá fora sempre foi irrelevante.
Tudo isso eu aprendi com meu mestre. Eu ficava frustrado quando não
conseguia traçar um selo que gerasse um corte no meu adversário, para que
escorresse o sangue. Então ele me perguntava:
– Por que você quer ver o sangue?
E eu respondia, impetuoso:
– Para que eu me sinta foda. Para que as pessoas vejam que minha magia de
fato funciona e me admirem.
– Então você não está preocupado se sua magia funciona ou não. Está
interessado no que os outros irão pensar de você. Mas você já parou para pensar
que aquilo que você supõe que os outros acham de você é apenas reflexo de seu
próprio pensamento? Nunca é o que elas pensam de fato. No final, toda a
existência que seus olhos veem é apenas uma suposição dentro de sua mente.

338
Fábula dos Gênios

Esses diálogos me deixavam louco.


– Assumindo que sua premissa é verdadeira, mestre, então eu não preciso
fazer minha magia funcionar de verdade. Basta que eu convença os outros disso.
– Errado. Você precisa convencer a si mesmo. Assim, a mentira se tornará
verdade, de forma incontestável. Veja bem: o que você busca não é o sangue, e
sim a sensação dentro de seu corpo ao contemplar a substância rubra. Sendo
assim, toda a sua magia deverá estar focada na alquimia de sensações. Todo o
resto que ocorrer lá fora será apenas impacto residual de sensações mágicas.
E eu finalmente aprendi a não mais ficar frustrado. Antes eu sentia alegria
quando minha magia dava certo e me irritava quando meus esforços pareciam
em vão. O segredo era compreender um ensinamento precioso: as minhas
magias sempre davam certo. E a maneira de fazer com que todas funcionassem
era me sentir satisfeito, qualquer que fosse o efeito gerado. Se o produto final de
tudo o que eu fizesse fosse felicidade, então não importaria mais o que
acontecesse externamente: todas as minhas magias funcionariam e seriam fortes.
Esse é um ensinamento duro. É difícil. É a compreensão de que não
importa se o resultado for vida ou morte. Quando você iguala ambas na balança,
elas se tornam iguais: magia.
Esse discurso foi fundamental para que eu compreendesse a fundo o
princípio das frações dimensionais.
Existem muitos tipos de dimensões. Eu não desejava estar naquelas que
geravam em mim sensações terríveis. Mas aos poucos passei a ver como iguais
tanto as dimensões desejáveis quanto as indesejáveis.
O corpo do destruidor está parcialmente morto. Para penetrar numa
dimensão especialmente terrível, é preciso elevar a parte morta dentro de nós.
Com 2/3 de morte e 1/3 de vida eu consigo atingir uma dimensão indesejável.
Os construtores só podem tocar as dimensões desejáveis, pois eles possuem
100% vida. Mas aí também reside um enigma.
Ninguém está completamente vivo ou morto. Por isso, até um construtor
pode baixar um pouco a porcentagem de vida no próprio corpo para atingir
uma dimensão particularmente pesada. Só que eles não conseguem baixar muito,
ou podem morrer. Eles não são capazes de lidar com isso.
Um destruidor aprende desde pequeno que nenhum ser humano está
totalmente vivo ou morto. Desde que nascemos, nós vamos morrendo pouco a
pouco. Quanto mais velhos ficamos, conseguimos utilizar a MGM com maior
potencialidade. Isso porque quanto mais morte há no corpo, é possível atingir
mais dimensões e o poder aumenta assustadoramente.
Esse conhecimento trouxe aos destruidores a descoberta da Magia da
Ressurreição. Mesmo que um corpo ou um gênio estejam com a morte próxima
a 0%, é possível resgatar a vida por intermédio de cerca de 0,1% de vivência.

339
Wanju Duli

Em casos de porcentagem menor que essa, ainda é possível utilizar a Magia de


Inversão. Com taxa inferior a 0,001%, o gênio, que é o próprio mago,
transforma–se em dimensão, convertendo–se assim em poder puro. Infere–se
daí que o mago somente alcança poder máximo com a morte final.
O objetivo da vida do destruidor consiste em ir morrendo desde o começo
da sua existência. O gênio vai devorando o mago por dentro para que no dia em
que ocorra a morte final ele já esteja praticamente morto e converta–se em
dimensão e em poder puro muito naturalmente, com pouca dor e medo. Ele já
está em contato com a morte desde sempre e a conhece como poucos. Ela faz
parte de sua vida, por dentro e por fora: por dentro, com o gênio a devorá–lo; e
por fora, com as espetaculares batalhas.
Mais apuradamente, poderíamos dizer que os destruidores desvendaram o
objetivo da morte. Mas não é somente em morte que pensam os destruidores.
Nós possuímos verdadeira paixão pela luta, pela guerra, pelo sangue.
Violência é algo que nos gera prazer, pois nos traz o êxtase de morte. Mas sexo
é algo que também nos enche de prazer puro, pois eleva a porcentagem de vida.
A existência de um destruidor consiste em equilibrar de forma aprazível a
porcentagem de vida e de morte. Para isso, ele alterna entre sexo e violência.
Os destruidores chegaram numa máxima filosófica primorosa que atribui um
sentido maior à guerra dos cadáveres e ao sexo selvagem. Isso é lindo.
É comum a arte da necrofilia entre nós, pois a prática do sexo com
cadáveres permite que possamos transar com humanos de sexo diferente do
nosso e que não sejam nossa ligação.
Eu me lembro bem de um dia em que foi realizada uma enorme conferência
entre destruidores. Até mesmo alguns sábios das montanhas desceram para
debater a respeito da montagem de nossos escritos oficiais.
Eu havia lançado o GGM há pouco tempo, como forma de contrapor os
escritos do GG. Soma também havia publicado a primeira edição do AM
poucas semanas antes. Na verdade foi o grimório dela que acarretou aquela
polêmica grandiosa. Como até então não se conhecia muitas formas escritas
oficiais de MGM, reunimos especialistas para aprovar os dizeres de nossos
escritos.
– Há uma série de imprecisões no chamado Grimório dos Gênios Malignos.
O Arcano da Morte está um pouco mais correto, mas os dois volumes precisam
ser revisados.
Alguns dos destruidores veteranos torciam o nariz para aquela reunião e não
paravam de criticar meus escritos e os de Soma. Estavam decididos a encontrar
erros, para provar a supremacia da passagem oral dos ensinamentos, como
mandava a tradição.

340
Fábula dos Gênios

– Os autores são apenas adolescentes. Sequer se uniram às suas ligações


ainda! Possuem uma porcentagem muito elevada de vida no corpo. Não estão
aptos a escrever grimórios.
Isso era duro de ouvir, depois de todo o esforço que tive para trabalhar no
meu grimório. Eu tinha 18 anos e Soma 20. A idade adulta só se iniciava
oficialmente aos 21, depois que o destruidor havia ganhado um bebê. Antes
disso, aos olhos deles éramos todos adolescentes imaturos.
Eu saí daquela reunião puto da vida. Dei uma série de bons argumentos para
defender os meus escritos. Mas para eles só importava se eu já havia fodido ou
não. Antes disso, ninguém ia me respeitar.
Eu já havia assassinado dezenas de jovens destruidores em campeonatos,
como podia ser observado pela quantidade imensa de tiras de couro que eu
possuía no manto. Além disso, eu já tinha trepado com diversos cadáveres de
mulheres destruidoras que matei. Para os veteranos, nada daquilo importava. Eu
tinha que ter trepado com uma mulher viva, que fosse minha ligação, para gerar
um descendente. Só assim minha magia cresceria ao extremo e eu teria
autoridade para dizer qualquer coisa. Para os adultos, matar outros adolescentes
em batalha ou foder com cadáveres era brincadeira de criança.
Eu não queria saber do que aquele bando de velhos dizia. Deixei a reunião
com sede de luta e de sexo. Eu queria mastigar pele e carne para ofertar ao meu
maligno. E, por fim, comeria uma buceta morta.
Eu tinha dois grandes amigos: Fravem e Kzaierrul. Ambos com 18.
Companheiros de batalha. Nós apreciávamos buscar mulheres destruidoras para
lutar, pois assim, além de desmembrá–las e estripá–las, poderíamos meter o
caralho na buceta delas.
– O que vai ser hoje, Vlebre? Ouvi falar de um campeonato entre donzelas
nas redondezas. Vamos nos meter lá para matar e comer todas.
– Ó, Fra, somente se forem fortes! Eu não desejo matar uma criança
somente por sexo. É boa coisa que já tenham seios fartos.
Nós nos dirigimos para o local, como lobos carniceiros prontos para a
próxima refeição. Havia oito adolescentes de 15. Presa fácil. Ou assim pensamos.
– Pare, Cazka! Somente permitimos mulheres para esta carnificina.
– Assistamos portanto, rapazes!
Decidimos contemplar os duelos das moças, de longe. Selvagens como a
morte, mataram umas às outras e mastigaram a carne, lançando selos fortes.
Somente quatro delas restaram vivas.
Senti um frio na espinha. Contra elas valeria a pena usar todas as minhas
forças.
Levantamos para enfrentar as quatro, mas elas nos pararam.
– O nosso campeonato ainda não terminou.

341
Wanju Duli

E as quatro se enfrentaram. Dessa vez, só viveram duas. E, dentre as duas,


somente restaria uma.
– Cacete, Babajali! Desse jeito não sobrará sequer restos de ossos para
lambermos e teremos que competir com os urubus!
Eu conhecia Babajali. Mesmo com 15, derrotava muitos destruidores
poderosos mais velhos que ela. E foi com aquele poder que ela matou a última
destruidora, partindo–a ao meio. E foi a campeã.
Fravem e Kzaierrul avançaram, famintos como cães, desejando roubar um
pouco da carne da vice–campeã, ou mesmo trepar com o cadáver ao mesmo
tempo. Mas Babajali não permitiu.
– Para possuir o corpo de Lamoala deverão partir meu cérebro em dois.
– Que assim seja. Partirei tua buceta em duas também, vadia!
– Vem, filho da puta. Vou fritar as tuas bolas no espeto.
Fravem foi o primeiro a duelar. Seus olhos brilharam. Ele transferiu seu
olhar para o maligno. Através dele, cuspiu uma teia pela boca e jogou selos de
múltiplas dimensões no labirinto.
Babajali manipulou o tempo e realizou a previsão da saída do labirinto.
Enquanto Fravem estava fora do corpo, ela rasgou o manto dele, arrancou o
saco com suas longas garras e mastigou–o com gosto.
Fravem gritou. Babajali rasgou a barriga dele e consumiu seus órgãos
internos. O gênio tentou fugir para longe do cadáver, mas a garota aprisionou o
gênio dele numa teia. O maligno dela devorou–o.
Kzaierrul, enfurecido pela morte de Fravem, foi o próximo a atacar. Lançou
uma trilha de selos multidimensionais, rasgando uma dimensão atrás da outra,
mas Babajali somente ria e dançava.
– Você devia cuidar melhor daquilo que te faz homem, meu queridinho...
Ela deu uma risadinha, com sua boca pingando sangue e vísceras. E
arrancou os genitais de Kzaierrul rapidinho, sem nem mesmo precisar de uma
distração. Mastigou o caralho junto com o escroto, engolindo pelos e tecido de
roupa.
– Delíciaaaa!
Ela ria enquanto partia a carne e os ossos dele. Agarrou o maligno de
Kzaierrul e chupou–o todinho. Logo, ela estava fazendo a festa, em meio a
sangue e cadáveres. Seu rosto já estava todo vermelho e ela se lambuzava com
as vísceras, como uma criança.
Eu não consegui ver o que ela fez! Ela manipulou o tempo de novo? Jogou
selos tão finos ou de dimensões que eu não era capaz de enxergar? Ela tinha
usado algum poder hiperpsíquico. Só podia.
Ela era uma maga superior. Eu e meus dois amigos fomos atrás daquelas
garotas somente por diversão. Mas dois de nós já estavam mortos.

342
Fábula dos Gênios

Morte final. Eu engoli em seco. Eu ainda tinha muita vida dentro de mim,
como diziam os veteranos. Ainda temia demais a morte. Eu compreendi. Queria
fugir. Mas seria muita covardia.
– O que foi, Cazkinha? Por que está aí parado, tremendo? Está com medo
que eu arranque seu pau, como fiz com seus amigos?
Eu me senti ofendido.
– Não a temo, Baba. Eu sou o autor do GGM. Não há meios de me destruir.
Eu sou o discípulo do reverendo Ceah.
– Teu mestre está morto. Morreu de velhice, há dois meses.
– Bem sei. Mas seus ensinamentos vivem comigo. E seu poder.
– Tu ainda estás psicologicamente abalado com a morte de teu mestre. Não
lutarás com toda a tua força. E mesmo se lutasse, perderia. Ceah iria se
desapontar se soubesse que escreveste aquela merda de GGM, distorcendo os
ensinamentos dele.
Dessa vez eu me enfureci de verdade. Desejei matar aquela vaca.
– No meu grimório passo minhas visões de mundo e não as de Ceah. Não
sou uma cópia mal feita dele. Sentirás na pele o peso dessa verdade quando eu
arrancar as tuas tetas e mastigá–las, Baba!
– Tu estás morto, Cazka: 100%. Eu vejo o futuro da tua carne putrefata em
minha boca.
Avancei, como haveria de ser. Eu não iria deixar de graça.
Tracei dois trapézios e os projetei. Meu tetraedro riscou o chão, mas eu não
fui capaz de conceber uma trilha de selos.
Que estava acontecendo? Eu estava com medo de Babajali? Ela era uma
criança. Mas eu não conseguia lutar com todas as minhas forças.
– Vlebre, concentre–se. Eu posso acabar com o maligno dela. Mas você
deverá cuidar do corpo.
Meu maligno estava confiante. Era uma confiança que eu não sentia em mim.
Mas, se no fundo eu era ela, seria capaz de ser o vencedor daquele duelo
fascinante e macabro.
O suor descia. Adrenalina ao extremo. Meu coração já atingia 98%: batida
magnífica. Todos os meus selos tinham a cor negra.
O suor pingava...! A chuva dentro de mim. Maldição! A vaca forte mugia.
Ela ria do meu evidente nervosismo, que eu não era capaz de esconder.
A maga saltitava. Ela colocava a cabeça para os lados, agitando os cabelos
crespos e cheios, gargalhando. Como uma bruxa insana e traiçoeira. Só queria
matar e matar.
– Cheiro de morte dentro dela.
Tinha a pele negra. E que cheiro bom que emanava daquele corpo: sangue,
carne e coragem. Eu queria aquilo em mim.

343
Wanju Duli

– 97%, cara? Que tá fazendo, meu?


Ela, que era meu maligno, estava se irritando com minha concentração
fugidia. Meu coração batia em ritmo descompassado. Babajali patinava nos selos
que eu traçava.
– Aiiii que tédio lutar contra você, Cazka. Eu esperava muito mais do
famoso patife que você é. Só tem língua, cretino!
“Cala essa boca, porra”. Como fazer a maldita se calar?
Foi nesse instante que me recordei dos dizeres do mestre. Eu estava
tentando produzir efeitos visuais lá fora. Mas eu precisava alterar meu lado
interno. Se eu fosse capaz disso, iria vencer a batalha, mesmo morrendo lá fora.
Ela jogou um selo na minha direção que rasgou uma parte do meu manto e
da minha pele. Produziu um corte fundo na minha coxa. Tão fundo que o chão
ficou empapado de sangue e até mesmo o osso tornou–se visível.
Eu caí. Não ia conseguir mais andar, pois minha perna estava a meio
caminho de ser decepada. Já no chão, entreabri os olhos. Eu avistei uma grama
muito verde, tingida de vermelho. E acreditei que seria a última coisa que eu
veria.
Havia outros cortes menores pelo meu corpo. Eu nem notei que eles
estavam lá. Toquei no meu rosto e vi que também havia sangue. Eu
simplesmente não era capaz de notar os movimentos dela. Sequer enxergava os
selos, que pulavam de dimensão em dimensão, como num trampolim.
Eu tinha perdido. Ela riu. Aproximou–se de mim e ajoelhou–se ao meu lado.
– Você fica tão lindo agonizando, Cazkinha...
– Me mata logo, sua puta. Deixa de falar merda.
Ela deu um tapa na minha cara. Com aquelas unhas longas, ela arrancou
ainda mais sangue do meu rosto.
– Fica quietinho, seu excremento. Irei te matar lentamente, para te
traumatizar pra sempre.
Ela levantou meu manto e segurou no meu pênis, com aquelas garras.
Aproximou o rosto do meu e deu um sorrisinho malicioso.
– Eu tô vendo seu caralho. Tão bonitinho... eu não sabia que você era tão
meigo assim, Cazka.
Eu não disse nada. Apenas desviei o olhar, para não dar a ela ainda mais
satisfação. Agarrei a grama com força e já não vi nenhuma beleza naquele
cenário de bosta.
Ela ia arrancar e comer meus genitais a qualquer momento. Meu coração
estava disparado e todo meu corpo devia estar molhado de suor, em meu horror.
Mas, em vez de arrancar logo o meu pau, ela começou a brincar com ele. Ela
estava me masturbando e sorrindo. Eu comecei a respirar mais forte e ela
apenas ria de mim.

344
Fábula dos Gênios

– Geme mais, Vlebre Cazka. Seu corpo é meu e farei tudo o que eu quiser
com ele.
– Mulher burra! Você vai morrer se fizer isso comigo vivo. Não somos
ligação, cacete!
– Eu não me importo. A vida sempre foi um jogo. Eu vou diminuir cada vez
mais a sua porcentagem de vida. Dessa forma, posso brincar um pouco mais
antes de te conceder a bênção da morte.
Ela foi descuidada. Estava tão confiante, que não viu quando meu maligno
pulou numa dimensão e enrolou–se ao braço dela. Minha Peowril decepou o
braço da putinha. Aquele mesmo com que ela me masturbava.
– Merdaaaaaaaaaa!!
Ela gritou. Levantou–se e me chutou no rosto.
– Morra por isso, Cazka!
E ela teria me matado imediatamente. Mas alguém veio por trás dela.
Arrancou–lhe os seios e atravessou–lhe um selo fino pela barriga, empalando–a.
Baba caiu morta na hora, tendo seu maligno destroçado.
Era Sassa Soma. Ela fez isso em um breve instante. Como se não fosse nada.
Ela aproximou–se de mim. Sentou–se ao meu lado.
Que humilhação ser visto por Soma naquelas condições. Eu cuspia sangue,
de tão quebrado e acabado.
– Parece que te salvei. Não irá violentar o cadáver dela, como você faz com
todas as mocinhas que mata?
– Não estou a fim.
– Mentiroso. Não consegue sequer se levantar. Fica posando de poderoso,
mas hoje você perdeu.
– E você irá espalhar a notícia da minha derrota por todos os cantos de
Desmei, estou certo? E contará que me salvou, para ter a glória.
– Incorreto. Eu irei te matar também, para ter dois troféus.
Ela esfolou a barriga de Baba e costurou a pele no próprio manto. Era muito
habilidosa com linha e agulha. Larga experiência.
– Você é o próximo, Cazka. Prepare–se. Vou esfolá–lo vivo.
Ela arrancou um pedaço da pele da minha perna. Eu gritei. Puta merda! Era
a primeira vez que alguém levava uma porção do meu couro como troféu.
Humilhação extrema. Superava a dor.
– Que corte feio na perna. O que pretende fazer sobre isso?
– Não é da sua conta, Soma. Você ferrou a minha perna ainda mais. Mate–
me ou suma daqui.
– Você já fodeu com sua ligação, Cazka?
– Eu odeio minha ligação. Somente iremos trepar aos 20 e poucos anos para
gerar o terceiro gênio e irei matá–la em seguida.

345
Wanju Duli

– Então você somente transou com cadáveres até hoje? Não conhece o
calor do corpo de uma mulher. Você é virgem de vida. Alguém já fez isso a
você?
Ela abaixou–se e chupou meu pau.
Eu não esperava isso de Soma. Eu sentia uma sensação estranha, que nunca
havia experimentado antes.
Confesso que eu tinha uma forte atração sexual por Sassa Soma. Mas eu
nunca a havia visto sem capuz antes. Ela baixou o capuz para fazer aquilo.
Ela tinha cabelos negros e lisos, ligeiramente embaraçados. Quando vi o
rosto dela e os cabelos, aquilo gerou em mim tanto prazer como se eu a tivesse
visto nua.
Mas eu não vi o corpo dela. Ela estava completamente coberta com seu
manto putrefato. Ela pensou que estava me torturando ao fazer aquilo. É
verdade que senti muita irritação quando Baba masturbou–me contra minha
vontade, pois eu repudiava aquela puta. Mas quando Soma fez aquele boquete,
eu não senti raiva. Era apenas prazer.
Mas ela logo interrompeu o que fazia. Largou–me. Ao beijar ou transar com
alguém que não era nossa ligação havia um risco elevado de morte. Mas mesmo
toques, principalmente toques intensos como aquele, enfraqueciam o mago.
Sexo oral não gerava tanto risco de morte, mas eu notei que Soma sentia–se tão
enfraquecida que já não conseguia levantar também.
Ela sentou–se ao meu lado de novo, respirando rápido. E olhou para mim.
Eu não consegui explicar o motivo, mas não aguentei o olhar dela. Eu jamais
imaginei que ela fosse fazer aquilo. E, mesmo agonizando, eu gostei pra
caramba.
– Soma, me mate desse jeito. Eu vou gostar.
– Não parecia estar gostando quando Baba te tocou.
Eu segurei Soma e abracei–a, tentando beijá–la. Mas ela não permitiu.
– Que agradecimento desgraçado depois de eu salvar a sua vida, Cazka.
Eu sentia minha parte animal me possuindo com violência. Mesmo
sangrando como uma besta ferida, eu tive uma ereção e naquele instante tudo o
que eu queria era possuir Soma. Mesmo que aquilo destruísse minha vida.
Eu cuspi meu gênio. Tracei selos negros, acelerando meu coração em batida
magnífica. Aquilo pegou Soma de surpresa.
Eu tentei feri–la. E consegui.
Coloquei meu corpo por cima do dela, mesmo com a perna empapada de
sangue. Agarrei–lhe com violência e tentei pegá–la por trás. Eu estava louco. Eu
precisava daquele corpo. Eu bufava como uma fera, antecipando o prazer
daquela foda.

346
Fábula dos Gênios

Quando tentei passar as mãos nos seios dela, por cima do manto, ela
simplesmente tirou a minha mão e disse, firmemente:
– Cazka, não seja infantil. Não estou a fim de me matar junto contigo.
E, com aquelas palavras, eu me senti apenas uma criança tola. O olhar que
ela me lançou era o de uma mulher séria e madura. Eu, por outro lado, era
apenas um menino bobo com vontade de foder, para seguir os meus instintos.
Ela era inteligente. Pensava bem, raciocinava com cautela. Diferente de mim,
que tentei agir por impulso, para ter prazer imediato.
Ela me desejava, mas não tinha qualquer sentimento por mim. Ao perceber
isso, eu corei, porque notei que ela podia interpretar meu ato como sentimentos.
Senti–me constrangido com a negação dela. Baixei os olhos e notei que eu
estava nervoso para me dirigir a Soma.
– Você gosta de mim, não é?
Quando ela perguntou isso, percebi que eu entreguei o jogo. Eu não queria
que aquela situação incômoda continuasse.
Ela tinha mais poder que eu. Escreveu um grimório melhor que o meu. Foi
como me derrotar em batalha, matando minha adversária. E, para coroar minha
condição infeliz, naquele instante eu percebi que eu não somente a desejava,
mas a admirava profundamente, de uma forma que excedia o mero respeito.
Antes eu pensei que a odiava. Que eu a invejasse. Mas isso não era verdade.
Ela não esperou minha resposta. Apenas deu um leve sorriso e levantou–se.
Foi embora.
Com aquele sorriso, ela mostrou que possuía poder completo sobre mim.
Não somente sobre meu corpo e meu gênio, mas também sobre meu coração.
E, para completar, notei que ela ficava linda quando sorria. Era a primeira
vez que eu contemplava o sorriso de Sassa Soma. Vê–la sorrir foi como prender
meu coração com correntes e cadeado. Esse meu coração que já estava
encarcerado.
Desde esse dia, sempre que eu via Soma eu sentia essa sensação maravilhosa
e terrível. Eu preferia que ela tivesse me matado, fosse com sexo, com selos ou
com seu maligno.
Eu fantasiava como seria o corpo daquela poderosa mulher por baixo
daquele manto pesado. Mas eu jamais vi o sorriso dela de novo. Então, o meu
desejo mais sincero só podia ser que ela sorrisse novamente. Um desejo ingênuo.
Eu era um destruidor. Eu tinha orgulho disso. Mas eu não tinha orgulho de
amar, porque era algo que eu não compreendia.
Trepei com minha ligação pouco antes dos meus 21 e foi gerado o terceiro
gênio. Soma também transou com sua ligação: com o príncipe. Eu tive um filho
e ela uma filha. Eu invejei o príncipe. Queria que aquela filha fosse minha.

347
Wanju Duli

E, como prometi, matei minha ligação logo após meu filho nascer. Por que
eu fiz aquilo? Eu não queria depender daquela mulher para aumentar o meu
poder. Não desejava batalhar ao lado dela, porque para mim ela não era nada.
Eu não queria depender de ninguém. Ia ficar cada vez mais forte por meu
próprio mérito.
Quando alguns de nós fomos selecionados para participar da Missão dos
Deuses, eu não fiquei satisfeito. Eles não queriam enviar os veteranos, pois
consideravam essa questão pequena, como sempre. Os sábios das montanhas
não ligavam para guerras. Nem se importavam. Já eram muito “sábios” para
considerar relevantes os acontecimentos do corpo de carne. Talvez fossem
mesmo.
Eu ainda curtia uma batalha e uma aventura. Topei participar, embora fosse
desagradável lidar com os construtores. Só queria que tudo aquilo terminasse
logo e eu pudesse retomar meu treinamento em Desmei. Eu já não via a menor
graça em me exibir para pessoas fracas.

***

Lá estava eu, na Universidade Paunim. A única ruim o suficiente para aceitar


novos alunos passadas três semanas após o início das aulas.
– Mas a sua nota no vestibular geral de Consman foi excelente, Rupa. Até
Jinas te aceitou. Por isso Paunim liberou sua entrada.
– Estou arrasada por ter sido expulsa, Loro. Ainda não consigo acreditar que
isso aconteceu.
Embora no Colégio Paunim usássemos uniformes laranjas com calças, na
universidade não precisávamos usar uniformes. Além disso, moças e rapazes
estudavam no mesmo campus, embora em prédios diferentes. Por isso, ainda
mantínhamos certo contato. Na minha turma só havia garotas, mas era possível
conversar com os garotos nos intervalos.
Eu soube que andavam comentando muito sobre Jins e Jinas ultimamente.
Isso porque a chegada dos destruidores se espalhou, embora para alguns não
passasse de um boato. Por isso, muitos estudantes queriam conversar comigo,
ao saberem que eu vim de Jinas.
– Eu conheci todos os famosos! Piayo era minha colega. Valonde minha
professora. Também conheci Naridana, que agora é líder da Fagenar Vibri! E eu
era membro de Armana, a Ordem da princesa Aibara!
– Uau! Que extraordinário! E quanto ao boato dos destruidores?
– Cazka, Soma e Solovro. Todos no campus!

348
Fábula dos Gênios

Houve mais exclamações de surpresa. Em poucas palavras, eu era uma


estrela naquela universidade. Todos queriam conversar com a fantástica ex–
aluna de Jinas. Enquanto em Jinas eu era a pior estudante, em Paunim eu era a
melhor de todas. Bastaram alguns dias de aula para que eu mostrasse meu vasto
conhecimento respondendo todas as questões das professoras, depois de ler
todos aqueles grimórios em Jinas e assistir àquelas aulas complexas.
Os alunos de Paunim eram muito mais simpáticos. Era bem mais divertido
conviver com eles. Por outro lado, eu logo notei que meu poder mágico ficaria
estagnado por um longo período, assistindo àquelas aulas fáceis.
No outro dia, levei meu uniforme azul de Jinas na mochila para que as
garotas vissem. Depois que elas babaram bastante, eu resolvi ir para o pátio e
deitar na grama. Matei a primeira aula. Nem a professora deve ter notado.
– Por que matou aula, Tirupa? Você estava tão entusiasmada com os estudos
em Jinas. Aqui em Paunim nem as lições você faz.
– Por isso mesmo. As aulas são idiotas e as lições são fáceis demais. Não é
um desafio. Nem sinto vontade de estudar. Que droga.
Eu reclamava tanto das aulas difíceis de Jinas. Eu mal tinha tempo de
respirar. E quando finalmente consegui me livrar delas, fiquei com saudades. Eu
queria sentir aquilo de novo: a sensação extraordinária de dar tudo de mim por
um objetivo maior.
O que eu tinha agora? Não tinha nada. Estava cercada de pessoas
dispensáveis e preguiçosas.
Eu consegui entender como as estudantes de Jinas me viam: como um
incômodo. Era assim que eu via as meninas de Paunim que vinham conversar
comigo apenas porque eu fui aluna de Jinas e aquilo dava status. Pois eu queria
conversar com as moças de Jinas apenas porque elas eram poderosas e
inteligentes. Não era a mesma coisa?
– Tirupa, está a fim de ir ao cinema nesse fim de semana?
Embora fosse um tipo de internato, podíamos sair nos fins de semana. Mas
logo pro cinema? Aquilo era tão bobo. Borrai me contou que quando os
estudantes de Jins saíam escondidos era para comprar pacotes de cartas
colecionáveis, para magia. Em Jins e Jinas todos só pensavam em se envolver
nas diversões que dariam a eles conhecimento e poder.
– Não... fica pra próxima.
– Beleza.
Quando ela foi embora, Lorobol brigou comigo.
– E essa agora? Por que recusou? Em Jinas tudo o que você queria era uma
amiga. Aqui em Paunim as garotas conversam com você aos montes e você
ignora todas elas. Você está sendo contraditória! Ou será que depois de estudar

349
Wanju Duli

em Jinas se considera superior demais para fazer amizade com alunas de


Paunim?
– Infelizmente, eu não adquiri somente o conhecimento de Jinas, mas
também o orgulho e a vaidade das estudantes de lá. Aquilo me contaminou.
Agora eu entendo tudo. Estamos em níveis diferentes.
– Que nível? Do que você tá falando?
– Eu sou tão boba... estou me tornando o tipo de pessoa que sempre
critiquei. Não vou aguentar permanecer aqui dentro por muito tempo. Depois
de estar em Jinas eu notei como os professores daqui são fracos. E como os
estudantes são despreocupados. Eles odeiam os estudos e não se importam em
melhorar. Eu não desejo ser como eles novamente...
– O que pretende fazer?
– Vou tentar vaga em outra universidade. E terá que ser rápido.
Eu contatei as quatro melhores depois de Jinas, que se encontravam dentro
do círculo restrito que possuía as cinco cópias oficiais do AVB.
É claro que eu não consegui. Mesmo eu tendo tirado boas notas no
vestibular, todas as vagas já estavam preenchidas. E eles não iriam aceitar uma
aluna expulsa de Jinas.
Eu queria chorar.
– Vai com calma! Por que suas opções são somente as universidades mais
concorridas? Que bobagem. Você não quer um diploma? Qualquer universidade
pode te dar um, até Paunim!
– Mas... eu também não quero ficar na pior!
Tentei contatar mais algumas. Eu já estava ficando cansada de procurar.
– Não importa se você estuda na melhor ou na pior universidade, Tirupa. O
mais importante é o seu esforço. Aproveite que terá tempo sobrando e estude
na biblioteca. Monte um calendário para práticas. Utilize essa oportunidade ao
seu favor.
– Tem razão. Eu não preciso ter alguém me mandando fazer alguma coisa
para que eu evolua. Farei isso sozinha. Eu prometo. E prometer para mim
mesma será forte o bastante.
– Já que não existem fraternidades e irmandades em Paunim, por que você
não monta uma? Tem tanta gente ao seu redor. Por que precisa fazer as coisas
sozinha? Assim vocês serão a motivação uma da outra.
– Eu, como líder? Ora... mas que ótima ideia!

***

350
Fábula dos Gênios

Quando fui chamada para a entrevista, fiquei muito nervosa. De que ia


adiantar eu ser selecionada para a Missão dos Deuses se logo após minhas
colegas iam delatar que eu havia destruído a honra da universidade? Eu não
somente seria expulsa como seria imediatamente descartada da missão.
Por isso, não entrei naquela sala com muitas expectativas.
Brisgrar Valonde, Mufita Jrass e Sassa Soma. As três me fitando com
expressão severa, com aqueles olhos terríveis.
– Está ciente sobre a Missão dos Deuses, senhorita Razeta?
– Certamente, professora Valonde. É uma honorável missão para evitar a
guerra. Eu estava presente na ocasião do encontro entre Jins e Jinas.
– Excelente. Essa não será uma missão para lidar com seres humanos e sim
com energias. Por isso, selecionaremos diversos magos que se destaquem em
manipulação energética. Isso será muito mais desejável que experiência em
batalha. O teste para ser aceita como membro será interpretar a mensagem
desse cristal.
Então eles desejavam aqueles experientes em meditação e divinação.
Especialmente os de maior sensibilidade para captar sutilezas e padrões.
Fechei os olhos e concentrei–me. Coloquei a mão próxima ao cristal, para
tentar captar alguma coisa.
– Descobri. É uma peça de quebra–cabeça. Nela está escrito: “Busco este
planeta dentro de uma barra”.
Revelei a mensagem que meu gênio disse. Valonde deu um sorriso. Com
aquele batom vermelho, sua expressão parecia ainda mais maléfica.
– Querida, a mensagem não está em creemah. As letras são as mesmas. O
significado muda.
– Então, por acaso seria: “As leituras dos planetas não impedirão minha
vontade” ?
– Não, coração. Ou por acaso essa é uma interpretação tendenciosa sua para
defender a ideia do livre arbítrio?
– Não, professora. Pode haver um destino. Ou, como dizem os antigos: nós
possuímos 10% de livre arbítrio, 60% de destino e 30% são forças de outras
naturezas.
– Onde você leu essa grande asneira?
A autora do AM estava se dirigindo a mim. Resolvi não fitá–la diretamente.
– Perdão, senhorita Soma. Eu somente estava tentando contribuir.
– Sendo assim, obedeça a sua professora e interprete a mensagem. Não tente
proferir uma resposta ambígua.
Sassa Soma me aterrorizava. Mas provavelmente Valonde me assustava
ainda mais com seus óculos de aros grossos e cara de poucos amigos.

351
Wanju Duli

– Me desculpe, não posso dizer ao certo o que é a mensagem. Mas sinto


uma energia positiva e terna vinda do cristal. Eu imediatamente saberia que se
trata de um amigo e faria o que fosse preciso.
Minha resposta pareceu agradar Valonde, pois ela fez a mesma expressão de
quando uma aluna respondia corretamente um problema de geometria.
– Sua resposta não é exatamente correta, mas é interessante e singular.
– Sinto uma aura agradável nessa garota. Mas também há algo que me intriga.
Mostre seu gênio.
Quem disse isso foi a outra destruidora. Eu hesitei.
– Agora.
Tive que revelar Dima. Algumas professoras já tinham contemplado meu
gênio em certas provas práticas. Provavelmente aquilo não ia dar em nada.
Elas não questionaram o fato de meu gênio ser do sexo feminino. Mas a
forma com que as duas destruidoras me fitaram sugeria que elas já sabiam de
tudo. Somente Valonde não devia estar ciente do que se passava.
– Pode se retirar.
Quem deu a palavra final foi Soma. Eu apenas obedeci.
Pelo que entendi, elas apreciaram meu desempenho na entrevista e eu seria
chamada novamente em outra ocasião. Senti–me feliz.
Só não achei fácil ter que encarar novamente o grupo de garotas raivosas
que me aguardava.
– Você foi escolhida?
O tom com que Werda me perguntou aquilo me sugeria que ela me mataria
se aquilo fosse verdade.
– Acho que me saí bem na entrevista. Elas ainda não deram resposta.
– Eu sei uma forma de estragar todas as suas chances.
– Por que não me desafia em batalha em vez de me delatar? Seria bem mais
digno.
– E a sua mentira por acaso foi digna, sua grande imbecil? Ou eu deveria
dizer, seu grande imbecil?
Derida estava possessa.
– Sinto muito informar, Krazie, mas você está expulsa da Fagenar Vibri.
Eu já esperava que Naridana fosse me expulsar depois daquilo. Na verdade,
eu já desconfiava que ela fosse fazer isso desde que descobriu que eu era
membro da Armana. Ela simplesmente arrumou mais um motivo para fazê–lo.
– Você poderá continuar na Armana, mas não será a mesma coisa.
– Por que não será a mesma coisa?
– Apenas... não será. Pelo menos não no começo.
Eu teria que aposentar as minhas meias de arco–íris. Mas, com a autorização
da princesa, manteria meu medalhão dourado da Ordem Arcano do Mana.

352
Fábula dos Gênios

Quando fui para o próximo chá da Armana, senti que estava tudo muito
artificial. E Tirupa não estava presente, pois havia sido expulsa de Jinas. Para
completar, as garotas estavam espantadas ao descobrir que Qah era mulher e
que tanto Krashkah como Hparral eram destruidores.
Eu também me espantei ao saber que a Kah era destruidora. Se Werda ainda
fosse líder da Vibri, tenho certeza de que ela iria expulsar Krashkah
imediatamente por causa disso. Mas Naridana não o fez.
Derida subitamente apaixonou–se por Hparral ao saber que ele tinha sangue
de destruidor. Era difícil entender aquelas garotas.
No fundo eu estava contente por não estar mais perto das moças
apimentadas da FV. Estar com a princesa e com as amigas meigas dela era
muito mais tranquilo.
Mas havia momentos em que eu não achava isso. Werda dizia tudo o que
queria e me xingava quando desejava. Aibara, por outro lado, apenas me lançava
olhares misteriosos que eu não conseguia desvendar. Aquilo me fazia sentir
desconfortável. Eu não sabia o que se passava na cabeça dela.
– Mais chá de framboesa, Zie?
– Sim, por favor.
Elas estavam sorrindo pouco naquele dia. Elas não falaram mal de mim.
Não me trataram mal. Mas aquela atmosfera me perturbava.
Resolvi sair mais cedo da reunião. Eu sabia que elas falariam de mim nas
minhas costas depois que eu fosse embora.
Comprei uma caixinha de suco de gengibre no refeitório e fui até o pátio.
Sentei–me num banco e fiquei por lá, fitando o céu.

***

– Meu, essa história de a Kah ser uma destruidora ainda está me deixando
meio cabreiro. Terei uma conversa séria com ela sobre isso no próximo
encontro entre as universidades.
– Em vez de ficar intrigado com algo assim, acho que devíamos tentar
conversar com Solovro mais vezes. Para termos mais chances de participar da
missão...
– Ele realmente parece um cara bacana. Diferente do outro, o Cazka, que
tem um ego maior que o do Mino.
– Ao menos sou uma pessoa sociável.
– Deixem os destruidores em paz, galera... vocês sabem que é perigoso estar
com eles.
– Está com medo, cagão?

353
Wanju Duli

Colmon era um merdinha. Só porque era forte e a ligação de Naridana, ele


se considerava acima de mortais comuns. Mas quando se cagava, parece que se
esquecia disso.
Fomos para o departamento central chamar Solovro. Surpreendentemente,
ele aceitou vir conosco.
– E aí, cara? Topa mais uma partida de JTG?
Foi exatamente esse jogo que selou nossa amizade. Em pouco tempo, já
éramos como amigos. Todo dia chamávamos Solovro para uma partida. Teve
uma vez que ele até topou comer no refeitório conosco, numa ocasião em que o
local estava meio vazio.
Solovro comia com as mãos, de uma forma muito estranha. A gente segurou
o riso. Meu, era sempre uma tentação zoar o cara. Em vários momentos eu tive
vontade de tirar com a cara dele. A gente até tirou um pouco, mas tomando o
cuidado para manter certo respeito e distanciamento.
– Ele nem entende direito o que a gente diz. Então tanto faz.
– Eu entendi isso, Hparral.
Mais risos. A gente estava ensinando pra ele um pouco de creemah naqueles
dias. E pedimos também umas lições básicas de dezkazil.
– Não é correto que construtores aprendam o dezkazil.
– Por que não?
– Há segredos da MGM em nosso idioma, Somoyol.
Ele já sabia o nome de vários de nós. Aos poucos ele também ia permitindo
que nos aproximássemos mais. Em uma ocasião eu dei tapinhas nas costas dele
e Solovro não reagiu. Provavelmente porque ele via que batíamos ou
empurrávamos uns aos outros de vez em quando como gestos de amizade. Ele
não interpretava mais isso como um ataque.
Podíamos perguntar a ele qualquer dúvida sobre o uso de malignos ou a
respeito da construção daqueles selos fodas dos destruidores. Mas eu sabia que
ele não iria revelar tudo.
– É complicado explicar, porque vocês não possuem miasma.
– Que porra é essa?
– Uma emanação morbígena do maligno. Por isso o corpo dos destruidores
possui um odor característico. Nosso corpo emana odor de doença e morte,
porque está morrendo por dentro, enquanto o destruidor traça teias de miasmas
para costurar os órgãos internos devorados.
Então era essa a explicação real. O cheiro dos destruidores não era somente
um odor de alguém que não toma banho há muito tempo. Também não era
exatamente cheiro de morte ou doença. Era quase como um gás.
– Os destruidores sentem atração sexual pelo outro através desse odor?

354
Fábula dos Gênios

– Sim. Para nós, é o cheiro de vocês que parece estranho. Muito artificial,
cheio de produtos químicos sintéticos.
Isso explicava porque eles aguentavam vestir aquele manto cheio de peles e
pedaços de cadáveres. O gás abafava um pouco o cheiro e o modificava.
Tudo neles funcionava de forma diferenciada. Eles percebiam o cheiro de
forma diferente de nós. O paladar também era alterado, para suportar carne
humana podre e vegetais velhos e cheios de terra. Eles escutavam sons que os
construtores não percebiam. A visão também abrangia uma extensão maior do
espectro de luz. E até mesmo o tato captava detalhes imperceptíveis para nós.
Tudo isso Solovro nos contou ou conseguimos perceber através de nossa
breve convivência. Era realmente fantástico ter um destruidor como amigo.
Aquilo estava expandindo minha visão do mundo e da magia.
– Isso explica como seu corpo e seu gênio conseguem alcançar dimensões
invisíveis para nós. Nossa mente não alcança algumas direções.
– Eu tenho um maligno, mas não sou capaz de despertar poderes psíquicos
fortes. Que merda. Somente raspo alguns deles de vez em quando.
– Você deve perder o medo de tornar–se uma dimensão.
Solovro às vezes era engraçado mesmo sem tentar ser. Da última vez ele
havia enchido a comida de pimenta. Esvaziou quase o vidro inteiro na comida e
não conseguia sentir. Ele fazia combinações estranhas de alimentos, como jogar
a bebida por cima da comida. E alguns alimentos que considerávamos deliciosos
ele achava horríveis.
– Tira teu capuz aí, meu.
– Não há razão para isso.
– E depois são os destruidores que criticam nossa racionalidade.
– Deixa de frescura, porra. Já te vi sem capuz lá no hospital, cacete.
Eu baixei o capuz dele, só pra zoar. A expressão com que ele me fitou...
pensei que ele fosse me matar a qualquer instante. Senti um frio horrível na
barriga. Merda, que sensação violenta de nervosismo.
Mas a sensação passou rápido quando percebi que ele não estava irritado e
sim sem jeito. Nossa, que surreal. Eu jamais esperaria isso de um destruidor,
mas eu já havia notado há algum tempo que Solovro ficava meio tímido ao estar
conosco. Ele apenas tentava disfarçar. Mas sem o capuz isso ficou evidente.
Dessa vez até Colmon riu e ficou mais tranquilo.
– Que é isso, velho. Relaxa.
Colmon passou um braço pelas costas dele. Depois embaraçou os cabelos
de Solovro, que tentou se desvencilhar de Colmon.
– Sai, pau no cu.
Mas ele falou isso sorrindo. Solovro era um companheiro da hora. Estava
até aprendendo nossos costumes.

355
Wanju Duli

– Ei, tu sabe que sou a ligação de Naridana, né?


Dessa vez Solovro se afastou, fitando Mon com uma expressão intrigada, de
poucos amigos.
– Mas que merda é essa? Isso é sério?
– Eu não escolho minha ligação, sabia? Por que ela foi pra Desmei comprar
briga contigo?
– Os construtores temiam guerra. Por isso, enviaram uma maga forte para
assassinar o príncipe dos destruidores, numa missão secreta. Algo parecido com
o que vamos fazer em Samerre, embora no nosso caso não busquemos destruir
membros da realeza dos Deuses.
– Quem é o príncipe dos destruidores?
Para o espanto de todos, Solovro mostrou um anel no dedo da mão direita,
com uma espécie de coroa. Para nós, ficou muito claro que era o selo real.
– Você é...?
– Eu era o príncipe naquela época. Agora sou o rei, porque meu pai morreu.
Eles pretendiam quebrar a centralização dos destruidores com a minha morte.
Na época Naridana era tão forte quanto eu, mas agora as coisas mudaram. Os
destruidores avançam muito em pouco tempo com a MGM. Se eu enfrentasse
Naridana agora, ela cairia morta. E isso também vale para você, Colmon, que
nem mesmo é tão forte quanto ela, como pensa.
– Puta merda! Rei?!
Todo mundo ficou surpreso. Além de ser destruidor e forte pra caralho, era
rei. Que filho da puta!
– Quem é a sua ligação?
– Sassa Soma.
– Mas... porra!!
– Ela é gostosa?
– Hparral, cala essa boca.
Putz. Eu provavelmente já tinha xingado Soma uma ou duas vezes em
conversas nas quais Solovro estava presente. Era melhor tomarmos mais
cuidado.
– Você já conversou com o príncipe Assavil?
– Evidentemente. Ele também auxilia na seleção dos membros da Missão
dos Deuses.
– Como os destruidores fazem sexo?
– Hparral, respeite o rei.
– Na adolescência nós treinamos transando com cadáveres de destruidores
que assassinamos em batalha.
– Que porreta! Vocês são muito foda, cara.
– Quem é a ligação de Cazka?

356
Fábula dos Gênios

– Ele matou a ligação dele logo após a geração do terceiro gênio.


– Está explicado porque ele está sempre mal humorado. Só fodeu uma vez
na vida e jamais poderá comer uma mina de novo.
Mas a verdadeira situação era mais complicada. Eu só viria a descobrir
alguns dias depois, quando a própria Soma foi passar alguns dias em Jins.
Quando eu soube da notícia eu estranhei. Logo eu concluí que ela estava lá
para foder com Solovro. Óbvio.
Contudo, numa manhã em que eu passei pelo pátio, antes do início da
primeira aula, vi Soma e Cazka num canto. Ambos com capuzes abaixados. Ele
tentando tocá–la e ela recuando.
Eles conversavam em dezkazil. Não entendi nada do que diziam. Por fim,
Soma disse alguma coisa com irritação. Empurrou–o, recolocou o capuz e saiu
de lá.
Sinceramente, aquela garota era uma das mais lindas que eu já tinha visto na
vida. Não somente sua voz era doce. Sua face e seus cabelos eram perfeitos.
Não me admirava que Cazka também a desejasse.
– Bom dia, senhor Cazka.
Cazka olhou na minha direção por um momento. Mas apenas recolocou o
capuz e ignorou–me.
– Ainda não tinha te visto sem capuz. E nem a belíssima senhorita com
quem você estava tentando trepar.
– Cuidado, Eopala. Sugiro que segure sua língua, ou irá perdê–la.
– Talvez eu devesse contar para o rei que você tentou cortejar a ligação dele.
Dessa vez ele se enfezou. Eu soube disso porque ele segurou nas minhas
vestes e me colocou contra a parede. Destruidores não gostavam muito de
toques. Muito menos Cazka. Só se tocavam quando queriam atacar. Aquilo
demonstrava com clareza que Cazka estava puto. Eu tava fodido.
– Ouse fazer isso e você não será somente um homem morto. Irei torturá–
lo e empalar o seu cadáver deixando–o com 2% de vida, por um mês. Irá
agonizar até a morte final. E nem mesmo o desejo da morte de seu gênio irá
salvá–lo. Porque eu irei tirá–lo de você.
Eu nunca tinha ouvido falar num mago que roubasse os desejos de outro
gênio. Mas se Cazka dizia, devia ser possível. Ele não parecia do tipo que mentia
somente para intimidar. Eu não duvidei por nenhum momento que de fato ele
faria todas aquelas coisas.
– Senhor Cazka, com todo o respeito... você tem medo de Solovro? Ele é
um cara legal. Não esquenta com isso.
Eu falei isso com o coração na mão, porque eu tava nervoso pra cacete.

357
Wanju Duli

– Eu sou mais forte que ele. Contudo, Solovro ostenta o poder político. Ele
tem inclusive o poder de me banir de Desmei. Não desejo ficar longe de meu
povo. Não me ferre, Eopala. Senão eu te ferro, a ferro e fogo.
– Já entendi, meu! Pode me soltar?
Ele obedeceu. Lançou–me um olhar assassino antes de se retirar.
Mas eu já não pensava mais na ameaça. Assim como Cazka, eu estava
pensando mais com o cérebro de baixo do que com o de cima. Imediatamente,
desejei Soma. Era um prêmio perigoso. Talvez fosse divertido exatamente por
isso: tê–la iria despertar a ira de dois destruidores. Sem contar com a ira da
própria Soma, que, segundo Cazka, era ainda mais terrível.
– Senhorita Soma!
Consegui pará–la no corredor. Felizmente, o diálogo com ela prometia ser
frutífero, já que ela também entendia perfeitamente o creemah.
– O que você quer, construtor?
Ela era ríspida. A forma com que ela pronunciava o termo “construtor”
expressava profundo desagrado.
– Eu gostaria de convidar a senhorita para visitar a sede da Fagenar Vibri.
– Não tenho interesse.
– Precisamos debater um assunto de importância vital.
– Diga–o agora.
Droga. Que mulher astuta e irritante. De que adiantava ser bonita, poderosa
e inteligente se ela era insuportável? Tão metida. Tão cheia de si... precisava
mesmo de uma punição.
Os destruidores eram mesmo odiosos. Precisavam ser humilhados de vez
em quando para perder aquela pose. Para parar de nos fitar de cima...
– Há um grimório extremamente poderoso e antigo em nossa biblioteca.
Mas ele está muito velho, com as páginas despedaçando. Preciso te levar até a
sala da Vibri para que possa analisá–lo. Prefiro não movê–lo de lá para não
danificar o material.
– Pois guie–me até lá. E seja rápido.
Ela acreditou na história que inventei. Eu sabia que ela se sentiria
intelectualmente estimulada se eu mencionasse um grimório misterioso. Afinal,
ela era autora de um dos mais famosos grimórios. Seguir–me não era uma
escolha. Ela desejava ver aquilo. Aquele grimório que nem mesmo existia...
Borrai abriu a porta da sala da Vibri. Estranhou a visita.
– Madame Soma! Que honra!
Eu não sabia se o idiota estava sendo sincero ou irônico. A verdade era que
os construtores realmente admiravam os destruidores. Que palhaçada... até
mesmo eu, confesso. Mas eu os invejava mais. Eu não admitia que houvesse

358
Fábula dos Gênios

seres tão mais fortes que eu. Precisavam ser pisados e eliminados. Mesmo que
fosse através de um truque sujo.
O pessoal se levantou quando Soma entrou, como se ela fosse uma rainha.
Está certo: no fundo ela era a rainha, por ser a esposa de Solovro. Imaginei que
fosse assim.
Mas a galera não tinha se erguido quando Solovro e Cazka nos visitaram.
Que era aquele respeito extremo? Eles achavam Soma tão incrível assim? Era
por ser a autora do AM? Ou porque Cazka afirmou que ela era mais forte que
ele?
Assim como Cazka, ela não queria se sentar. Aguardava de pé que eu
entregasse o tal grimório. Parecia mais impaciente que Cazka e não se sentiu
nem minimamente intimidada por estar numa sala cheia de construtores.
– Senhorita Soma, poderia autografar o meu Arcano da Morte?
Aproveitei a distração ridícula que Hparral gerou para preparar um grimório
fictício. Alcancei o livro mais acabado de uma pilha de grimórios sujos e
irrelevantes. Adicionei a ele um pó especial, que era uma mistura de canela e
outros condimentos que Solovro particularmente odiou. Com isso descobri que
destruidores eram sensíveis a eles.
– Você está brincando, certo? Não possui orgulho como construtor?
– Eis o grimório do qual lhe falei. Abra a primeira página com rapidez, pois
há um selo mágico nela.
Entreguei o livro para Soma. E ela caiu no meu truque como um patinho.
Mal dava para acreditar.
Quando ela abriu a primeira página, minha mistura de canela atingiu o seu
rosto. Assim que ela aspirou aquele ar diretamente, desmaiou de imediato.
– Opa! Nem mesmo eu poderia prever que o efeito seria tão maravilhoso!
Abaixei–me e segurei Soma. Coloquei–a deitada no sofá. Baixei o capuz dela,
para que os demais contemplassem.
– Muito gata, velho!
– Por que você a fez desmaiar, Mino? Não tem um pingo de honra?
– Eu não poderia vencê–la numa batalha de magos.
– É melhor acordá–la logo ou tirá–la daqui. Ela vai te matar quando
descobrir o que fez.
– Eu espirrei canela no rosto dela. E daí? Só queria sacaneá–la e mostrar que
sou um cara esperto.
– Ela não parece do tipo que aprecia piadas.
– Isso que você fez não foi nada esperto, mano. Se o Solovro descobre, a
gente tá fodido.
– Tem uma gatinha destruidora desmaiada na nossa frente e tudo o que
vocês sabem é criticar o meu feito glorioso de tê–la trazido aqui para nós?

359
Wanju Duli

– Não me diga que pretende roubar o maligno dela. Você já tem um. Quer
possuir três gênios? Isso é possível?
– Eu não havia pensado nisso. Que excelente ideia!
Eu me debrucei no sofá para observá–la mais de perto. Eu precisava abrir os
lábios dela para tentar retirar o maligno.
– Meu, saca só essa elevação no manto dela. São os peitos! Que gostosinha.
Que comentário imbecil. Mas aquilo mexeu comigo. Bastou que ele
pronunciasse a palavra “peitos” que eu já senti meu caralho pulsando.
Eu também notei o volume que havia no manto verde e marrom dos
destruidores. Senti uma vontade louca de pegar nos seios de Soma. Mas... eu
tinha certeza de que eu não viveria se ousasse fazer aquela merda. Alguém ia
ficar sabendo. Havia uma platéia com boca grande para entregar o meu couro
para os destruidores.
– Você não disse que a fonte da magia são os peitos, mestre? Eis nossa
motivação filosófica, apoiada por um cálculo exato. Ela está desacordada.
Poderíamos tirar uma parte do manto dela, para ver os peitinhos. E quem sabe
brincar um pouco. Enfiar uma vara na buceta dela...
Quando Hparral tentou colocar a mão nela, Somoyol avançou e deu um
soco na cara dele.
– A tua mulher não te dá prazer suficiente, seu degenerado?
– Derida me odeia...
– Ah, agora vem se fazer de coitadinho. Mino é outro que vive reclamando
das frescuras de Krashkah. A gente tá quase em guerra, cacete! Pode estourar
uma guerra contra os Deuses. Vocês tão a fim de provocar outra porra de
guerra contra os destruidores pra nos ferrar ainda mais... por sexo?!
– Guerra e sexo são as melhores coisas que existem.
– Com todo o respeito, mestre, se gosta da morte, então apenas se mate. Eu
ainda pretendo ficar vivo por mais tempo, para estudar magia. Essa “mocinha
inocente” aí deitada tem o poder de reduzir nossa universidade inteira a pó em
um segundo. E você sabe disso.
– Se querem tentar roubar o maligno dela, apenas façam isso. Solovro nos
contou que eles somente possuem o corpo de outros destruidores após matá–
los em batalha. Ninguém aqui venceu Soma para ter o direito sobre o corpo dela.
Então não deem uma de idiotas. Não façam coisas desnecessárias.
Eu desisti de argumentar. Coloquei meus dedos na boca dela, para tentar
entreabrir os lábios.
– Eu sinto o maligno. Nossa, que bafo terrível que ela tem. Eu não toparia
comer essa mina não.

360
Fábula dos Gênios

Eu levei um susto quando ela abriu os olhos. Enormes olhos castanhos. Eu


me afastei imediatamente, apavorado. Eu não antevia muitos milésimos de
segundo de vida.
Mas pelo jeito quem se assustou mais foi ela. Parecia uma garotinha perdida.
Sua expressão foi doce.
Ela imediatamente sentou–se no sofá, abraçando o corpo com as mãos.
Parecia muito ciente da situação ou do que poderia ter acontecido, pois se
encolheu. Uma reação instintiva.
Seu segundo gesto depois disso foi colocar uma das mãos por baixo do
manto, entre as pernas, procurando algum indício estranho. Tocou os seios, por
cima do manto e lambeu os lábios. Tapou a boca com uma mão trêmula,
fitando–nos com horror.
– Madame Soma, eu posso explicar...
Eu disse a coisa errada. Eu poderia naturalmente dizer que ela desmaiou por
acidente e que estávamos muito preocupados. Eu era estúpido demais. E não
ajudava que todos ao redor a fitassem com expressão de culpa e susto.
Ela tapou o rosto com as mãos. Parecia que ia explodir de fúria a qualquer
instante. Capaz de matar a todos nós, sem exceção.
Mas, para a nossa surpresa, quando ela retirou as mãos havia lágrimas.
Naquele momento ela se parecia com uma menininha de doze anos que perdeu
a boneca.
Os destruidores se matavam e fodiam entre si. Mas eles não desejavam
construtores no meio disso. Ser ferido por um construtor era uma desonra. E
estar desmaiado na frente de vários construtores fortes, sem saber o que
aconteceu, devia ter deixado Soma pensando merda.
Claro, Hparral havia dito muita merda. Ainda bem que ela não tinha ouvido...
certo?
– Senhorita Soma, nada aconteceu. Você desmaiou e Sremino apenas
colocou–a no sofá até que acordasse.
– Cale–se, construtor. A sua palavra não vale nada. Esse miserável me
chamou aqui sob um pretexto infeliz e me fez desmaiar propositalmente com o
odor desgraçado desse grimório.
Ela falou isso com muito ódio e parecia ter extrema convicção sobre o que
dizia. Não haveria meios de enrolá–la.
– Além do mais, eu sinto um cheiro muito esquisito nos meus lábios. Você,
líder da Vibri, estava perto de mim quando acordei. Por acaso colocou seu
caralho na minha boca?
– NÃO! Putz!
Seria indelicado dizer: “você fede demais para que eu sinta vontade de
trepar?” ou isso somente pioraria a situação?

361
Wanju Duli

Na verdade a situação piorou sem precisar disso. Cazka entrou no recinto.


Soma tentou esconder as lágrimas dele, mas Cazka viu.
– Quê...?! Que merda é essa que está acontecendo?
– Nada, Cazka. Não se meta no que não é da sua conta.
– Eu nunca te vi chorar, Soma. Eu exijo saber que porra é essa!
– O idiota do Mino colocou canela num grimório e a senhorita Soma
desmaiou. Pedimos desculpas pelo ocorrido.
Cazka não caiu nessa. E Soma parecia puta da vida por Somoyol ter revelado
que ela caiu num truque imbecil desses.
Cazka interpretou a situação rapidamente.
– Quanto tempo a senhorita Soma ficou desacordada?
– Não muito. Meia hora, talvez.
Quando escutou isso, Cazka me segurou pela gola da camisa de novo.
– E agora você morre, desgraçado. Você morre! Entendeu?!
– Qual é a sua, Cazka? Não era você que estava tentando agarrar a madame
Soma há pouco tempo?
Eu disse a coisa errada. Por que eu estava vivo ainda? Era um milagre!
– Sabe por que você está vivo ainda, Eopala? Porque eu não quero ferrar a
Missão dos Deuses e fazer estourar uma guerra pior por causa de um ser
insignificante como você.
– Cazka, não tente me defender. Em poder mágico eu o supero, e muito.
– Você chorou, Soma.
– Pelo medo de perder meu maligno, cara. Eopala tentou tomá–lo de mim.
Essa não é a coisa mais covarde que um mago pode fazer?
Era difícil dizer se a situação estava piorando ou melhorando. Só sei que
Soma dirigiu–se a mim depois que disse isso. Colocou a mão a poucos
centímetros da minha face. Fez surgir um selo transparente por dentro da minha
boca. Eu cuspi sangue, junto com o meu maligno. Soma explodiu–o.
Eu caí no chão. Se eu não tivesse dois gênios, eu estaria morto.
Soma finalmente sorriu.
– É assim que se faz, Eopala. Não em meia hora, mas em somente um
segundo. Com o mago acordado e com pleno poder para defender–se.
Ela me fitou com nojo e saiu de lá junto com Cazka. Ele estava rindo de
mim quando saiu.
Eu fiquei puto. Estava sentindo uma dor maldita. Cada parte do meu corpo
que meu maligno devorou estava pulsando. Tive que ser levado às pressas para
o hospital e fiquei de cama.
Só consegui levantar no dia seguinte. A primeira coisa que fiz foi chamar
Solovro, para contar a ele uma fofoca quentíssima.

362
Fábula dos Gênios

– Sabe quem é que tava pegando tua mulher ontem de manhã, rapaz? O
Cazka! Ele mesmo! Teu amigo da onça!
A expressão que Solovro fez me disse tudo. Eu pensei, satisfeito: “agora o
pau vai quebrar”.
Ele foi atrás de Cazka imediatamente. Eu o segui e chamei a galera para
assistir, anunciando que teríamos uma briga muito boa pela frente.
Sinceramente, não entendi nada do que os dois disseram. Eles bateram boca
em dezkazil, mas ambos pareciam muito zangados.
Até que Solovro lançou um selo cinza na direção de Cazka. O pessoal soltou
exclamações impressionadas. Cazka não foi atingido, mas precisou se defender.
Os dois gritaram mais. Até que o pau quebrou pra valer, sob uma salva de
palmas.
Solovro usava selos cinza, para a batida intolerável. Cazka optou pelos selos
de cor negra, da batida magnífica. Um em 2% e o outro em 98%. Batidas
diametralmente opostas, espelhadas. Isso só podia significar uma coisa.
– Eles vão virar!
Sem cubo, sem nada. Mexeram diretamente na dimensão e a porcentagem
de um passou para o outro. O pessoal vibrou quando isso ocorreu.
Logo, estavam em 1% e 99%. A galera carregava eletrocardiógrafos e folhas
quadriculadas, registrando tudo. Quando chegaram em tal porcentagem, houve
mais gritos.
Os selos deles racharam o chão. Porra! Trilha de selos fantasmagórica e
fantástica. Fantasmagórica porque não conseguíamos enxergar os selos. Aquilo
era material secreto do AM: os selos fantasma eram aqueles que somente o
mago que os lançava via. Ou outros magos fodas que eram capazes de
interpretar os padrões de selos conforme a ressonância e os resíduos de miasma.
Aquilo era impossível para leigos, ou mesmo para a maioria esmagadora dos
construtores.
E a trilha era fantástica porque expressava fantasia: não era uma trilha real,
mas somente um reflexo dimensional. Somente se tornava real quando o mago
não era capaz de utilizar o Aforismo Reverso de Cazka: transformar a verdade
em mentira. Mas, porra, era o próprio Cazka quem estava lutando! O inventor
dos aforismos.
Aqueles merdinhas nem mesmo se dignaram a traçar selos de proteção. Já
saíram atacando, os bastardos! Quem não traçava selos de proteção eram
somente dois tipos de magos: ou os iniciantes burros ou caras que já estavam
tão avançados que nem se preocupavam mais com defesa, por se julgarem
invencíveis. Era muito simples definir qual era o caso ali.

363
Wanju Duli

Ou seja: ninguém era capaz de captar a batalha real que ocorria nas outras
dimensões. Somente acompanhavam as batidas dos dois e imaginavam. O
próximo a rachar foi o teto.
– É melhor eles pararem. Essa bagunça imensa nas dimensões pode alterar
até as leis da física, sabia?
– Até parece, covarde...
No segundo seguinte, todos nós estávamos flutuando. Beleza! Mas logo
aquilo parou e todos nos espatifamos no chão.
Até que os dois se cansaram de brincar com selos. Ou a brincadeira estava se
tornando perigosa demais sem gênios. Os dois chamaram seus malignos.
Aqueles eram os gênios mais gigantescos que já fitei. Muito maiores que um
ser humano. E aquelas formas! O que era aquilo? Um adversário poderia morrer
de susto apenas ao fitar aquelas magníficas bestas da morte.
Minha percepção dos sentidos estava se alterando. Ouvi um urro que quase
me fez ficar surdo. Algumas formas ao meu redor se distorceram e fiquei tonto.
Até que Sassa Soma chegou para acabar com a festa. Deu sermão nos dois,
que interromperam a briga. Mas eles não interromperam somente porque ela
pediu. Soma lançou um selo fantasmagórico que deixou os dois paralisados. O
próprio Cazka ajoelhou–se e soltou sangue misturado com miasma pela boca. A
galera gritou mais quando isso aconteceu. Puta merda!
Eu não saberia descrever ao certo o que ocorreu naquela batalha. Somente
pude sentir que foi incrível.
– Os construtores estão fazendo vocês dois de idiotas. Eopala armou tudo
isso, para que vocês se confrontassem e se matassem.
– Então eu vou matá–lo agora, para que não nos cause mais problemas!
Cazka lançou um selo negro na minha direção. Eu só consegui enxergá–lo
quando já estava muito próximo. Eu seria partido ao meio. Foi tão rápido que
nem deu tempo de ficar nervoso. Ah, moleque!
E não é que eu fui salvo? Por uma mulher. Por que Jins ficou cheio de
mulheres de repente? Certamente alguém avisou a galera de Jinas sobre a briga.
Os dois campus ficavam muito próximos. Foi o tempo suficiente para que
minha salvadora chegasse: ninguém menos que Brisgrar Valonde. Aquela que
um dia julguei uma vadia, de repente se tornava minha heroína!
Sua aparência era inconfundível: blusa social branca e saia negra. Sapatos
vermelhos de salto alto. Cabelos presos num rabo de cavalo. Óculos de aros
pretos.
– Não se meta, Valonde. Essa briga é minha!
– Eu não permito que matem meus alunos, Cazka. Você prometeu se
comportar aqui dentro.

364
Fábula dos Gênios

– Você sabe tão bem quanto eu que só lancei esse selo para assustá–lo. No
máximo arrancar–lhe um braço. Mas o próximo selo será pra valer se você não
sair da minha frente!
– Pois ouse, menino! Vamos ver se tem tanta habilidade com as mãos como
tem com os insultos naquela sátira mal feita que chamou de grimório.
Cazka sorriu. Essa briga ele queria. E nem precisou comprar. Teve de graça.
Ele traçou sua trilha de selos invisível. Ele pensou que seria fácil lidar com
Valonde, mas enganou–se: ela usou técnicas só nossas.
Uma explosão! Valonde usou a Técnica de Fios. Mas os cabelos dela eram
completamente negros!
Eu entendi: ela utilizou a cor negra para colorir os cabelos, para ocultar a TF.
Um golpe de mestre.
Aquele começo de luta já intimidou Cazka o suficiente. Ele já estava com
energia limitada depois do ataque de Soma. Agora ele estava com um corte na
testa.
– Filha da puta...!
– Vlebre, fica frio! Já chega.
E foi o bastante. Cazka teve que parar, pois depois daquela estava sem
condições de duelar. Foi direto para o hospital.
Depois daquela merda que esse que vos fala causou, houve uma reunião de
urgência. Os professores constataram que era melhor anteciparem a data para a
realização da Missão dos Deuses, pois poucas semanas de convivência entre
construtores e destruidores já havia gerado um belo estrago.
No dia seguinte, entrevistaram muitas pessoas. Até eu fui entrevistado,
embora eu tenha sido xingado pra valer e visse com clareza que minha chance
de ser convocado era praticamente nula.
Mais dois dias depois, eles já tinham a lista definitiva dos membros para a
missão.
Pensei que o príncipe e a princesa dos construtores, assim como nossos
professores, especialmente Yym e Valonde, iriam junto. Mas isso não
aconteceria.
Além dos quatro destruidores, eles selecionaram quatro construtores: três
moças e um rapaz. Ou seriam duas moças e dois rapazes?
Krazie. Krashkah. Naridana. Somoyol.
Critérios de seleção? Boas notas, comportamento exemplar, elevado poder
mágico, alta sensibilidade energética.
Logo que os nomes foram anunciados, o pessoal das outras universidades
começou a reclamar por só terem selecionado estudantes de Jins e Jinas. Ora,
isso já era esperado. A busca em outras universidades não passou de mera
formalidade.

365
Wanju Duli

O rei dos destruidores nos acompanhava, mas nosso príncipe e nossa


princesa se acovardaram no último instante. Eles também diziam isso. Aquelas
queixas estavam cada vez mais divertidas.
Eu não iria acompanhá–los. Merda.
– Yol, quero um relatório completo quando você voltar, ouviu bem? Se você
voltar vivo. Mas mesmo que volte morto, tente conservar pelo menos 1% de
vida para me trazer o relatório, OK?
– Firmeza.

***

Não precisei empacotar muitas coisas. Pelo jeito aquela viagem não ia durar
muito. O que mais me intrigava é que ninguém falava sobre a volta. Resolvi
ignorar esse detalhe. Se aquela fosse mesmo uma missão suicida, parecia
bastante lógico salvar o príncipe e a princesa. De quebra, já iam se livrar do rei
dos destruidores, que era o que tanto queriam.
– Podem tentar se livrar de mim. Eu deixei uma filha em Desmei, que irá
gerar mais descendentes. Os construtores não irão destruir nossa linhagem
facilmente.
– Eu te matei naquele dia, cara. Você que é teimoso e não morre nunca,
Solovro.
– Fico feliz de saber que se eu morrer nessa missão, você vai junto, Naridana.
A propósito, Sassa, poderíamos fazer mais uns filhos para que diminuam as
chances de acabarem com nossa linhagem.
– Isso é desnecessário. A princesa será forte. Ela possui meu sangue.
– Eu sinceramente não entendo os destruidores. Vocês agem como pessoas
quase normais quando conversam. Mas quando lutam são selvagens. Por que
não apreciam o cálculo?
– Vocês inventaram os malditos números. Podem lidar com os problemas
que criaram com eles e se divertir com isso. Eu mato o primeiro que me desafiar
a resolver um desses cálculos estúpidos de aplicação filosófica fraca.
Acho que mentiram. Aquela viagem de navio seria beeem longa. Já não era
questão se sairíamos vivos de Samerre, mas se chegaríamos vivos lá.

366
Fábula dos Gênios

Capítulo 5: Os Deuses não estão no céu

– Naridana e Solovro estão brigando! Alguém ajude a parar os dois!


Melhor forma de começar a manhã.
Eu estava preparando alguns ovos com geléia. Resolvi que era melhor comer
bem nos primeiros dias, pois algo me dizia que logo ficaríamos sem comida.
Aquele não era um navio muito grande. Eu não havia trazido muitos
mantimentos. E se os idiotas dessem um jeito de quebrar o navio, eu teria
vontade de jogar aqueles quatro destruidores no mar.
– Yol, tem ovos para mim?
– Eu fiz o bastante para nós quatro. Que os destruidores deem um jeito de
se alimentar.
– Hmmm! Que cheirinho bom! O que temos para o café da manhã?
Foi incrível o quanto aprendi sobre aquelas criaturas em poucos dias de
convivência.
Krazie não parava quieta. Ficava perturbando todo mundo o tempo todo,
até os destruidores. Era uma pentelha.
– Yoyol, tem sobremesa? Eu estou morreeeendo de vontade de mastigar
algo bem docinho e colorido!
– Estamos numa missão, Zie. Não queremos extravagâncias com comida, ou
não irá sobrar nada para a volta. E não me chame de Yoyol...
– Mas podemos colher frutinhas em Samerre para a volta. Deve ter também
pão e leite para vender em alguma loja.
– Nós vamos nos infiltrar na floresta e não fazer um tour pela cidade!
Imagine desfilarmos por lá com esses quatro sujeitos de mantos de peles
humanas para chamar a atenção!
– Nem vai dar para trazer um souvenir? É a primeira vez que saio do país!
Queria pelo menos uma lembrancinha.
– A lembrancinha será você voltar viva.
Krashkah não parava de fazer gráficos. Estava sempre com folhas
quadriculadas, régua e compasso, medindo alguma coisa e calculando.
– Não vai comer?
– Não me interrompe. Sai daqui.
– Você disse que queria ovos.
– Então traz pra mim. Tô ocupada.
Mas Krashkah não era a única que só queria ficar socada num canto fazendo
suas coisas. Eu achava praticamente impossível dialogar com Naridana. Ela

367
Wanju Duli

sempre estava contemplando o horizonte. Eu não tinha coragem de


interrompê–la.
Eu andava ocupado o suficiente preparando nossas refeições. Eu até me
divertia fazendo isso.
No segundo dia, resolvi oferecer alguma coisa para os destruidores, que pelo
jeito estavam em jejum. Somente Solovro e a tal de Mufita aceitaram. Cazka e
Soma nem chegavam perto de nós, construtores, como se tivéssemos alguma
doença.
Era difícil dizer sobre o que os destruidores conversavam. Eles nos
deixavam completamente de fora, falando em dezkazil. Propositalmente.
Mesmo assim, aos poucos eu descobria que aquela Mufita era... estranha.
Mufita Jrass era a mais velha entre os destruidores que estavam conosco.
Tinha 30 anos. E sem dúvida era a mais animada dos quatro. Falava muito alto e
era sempre alegre. Embora os destruidores não gostem muito de toques, essa
parecia gostar. De vez em quando abraçava Soma, que não apreciava o gesto e
tentava se livrar dela. Solovro também não curtia quando Mufita fazia isso.
Cazka ficava puto quando ela começava a tagarelar e pelo visto mandava que ela
se calasse muitas vezes.
– Sol, eu e a Zie vamos jogar JCG. Quer participar?
– Eu também quero!
Mufita se meteu. Ela não sabia jogar aquilo e ia atrapalhar tudo. Era chato
ter que explicar as regras desde o começo. Até porque ela não entendia
perfeitamente o creemah.
Aquela garota era famosa no GGM, pela grande habilidade de arrancar
pedaços do adversário com mordidas. De fato, ela tinha dentes poderosos, que
ela mostrava constantemente em seus largos sorrisos. Agia com meiguice e
petulância, mas na verdade era um monstro.
Enquanto tínhamos uma partida extremamente leve e moderada de Jogo de
Cartas dos Gênios, conversávamos sobre outros assuntos.
– Missão secreta? Que palhaçada. Toda Consmam já sabe que vamos para
Samerre. Essa notícia vazou até em sites de Tecraxei. Pelo jeito seremos
recepcionados com um exército.
– Não esquenta. Os Deuses estão ocupados demais com os assuntos do
espírito. Além do mais, ninguém sabe o que vamos fazer ao certo. Nem mesmo
nós.
– Porra.
– Não é? Eu acho essa missão uma merda. Tomara que tenha monstros com
couraça grossa. Pra eu mastigar, saca?
Pouca coisa que os destruidores diziam fazia sentido pra mim. E tudo o que
Mufita dizia não fazia sentido algum.

368
Fábula dos Gênios

– Tu chegou a se encontrar de novo com os construtores do GGM? Legrizo,


Prevou e a cambada.
– Sim, são uns merdinhas. Mas a carne é da boa. Suculenta.
– Alguém faz alguma ideia da rota que pegamos? Quem está com o mapa?
Cazka foi até a nossa direção. Entreguei a ele vários rolos de pergaminho.
– Eu não entendo nada disso. Traduza, construtor.
E lá fui eu traduzir para Cazka. Mesmo assim, ele não ficou satisfeito.
– Meu... na boa, dava pra esperar a gente terminar o jogo? Depois
discutimos isso.
– Eu não vou esperar que terminem esse jogo idiota.
Cazka pisou nas cartas e estragou tudo. Quando ele fez isso senti vontade de
meter–lhe um soco na cara, mas me contive. Eu ainda dava valor para a minha
vida.
Quem se enfezou foi Mufita, que se levantou e bateu boca com Cazka em
dezkazil. Ele apenas ignorou–a, levando os mapas consigo.
– Nós devíamos montar um clube enquanto estamos aqui. Ou uma
sociedade secreta, só nos oito. Somos os aventureiros da Missão dos Deuses!
Quando retornarmos para Consmam seremos heróis!
– Para os construtores tudo é um jogo. Isso porque a vida de vocês é tão
monótona que precisam adicionar novas emoções a cada segundo, com criações.
Nós já temos diversão natural destruindo.
– Acho que você acabou de definir em palavras a filosofia máxima que
diferencia construtores e destruidores, Solovro. Mas também é possível criar
pela destruição. E destruir através da criação.
– Precisamente. Mas há outra questão importante a ser considerada: vocês,
construtores, são muito solitários. Por isso sentem a necessidade de criar grupos
artificiais para se unir, o tempo todo. Vocês têm fraternidades, irmandades e
outros grupos secretos na universidade de vocês. E além da Fagenar Vibri, da
Armana e de outros grupos que não conheço, se não me engano há os clubes,
correto?
– Para unir aqueles com interesses em comum.
– Pois os destruidores estão sempre juntos. Somos poucos, num país
pequeno, cheio de pântanos. Dormimos ao relento, não temos casas para nos
separar. Nascemos e morremos ao ar livre, perto da natureza. Para nós a morte
não é tão horrível como o é para vocês. Vemos plantas e animais nascendo e
morrendo ao nosso redor. Fazemos parte da vivência animal, sendo o caçador e
a presa. Essa é uma vida estimulante.
– Mas vocês também possuem sociedades secretas.
– Elas operam num nível diferente dos grupos de vocês. Vocês querem
aprender magia, inventam cálculos complexos, debatem em torno dos mesmos

369
Wanju Duli

temas, andando em círculos. Pensam que assim avançam, mas sequer


descobriram ainda como se vive. Então como esperam dominar magia se sequer
compreendem a fundo o sentido da existência?
– Lá, nas estrelas. Temos aulas de astronomia e calculamos a posição dos
planetas. Eles dançam no universo em formas geométricas. As estrelas também
formam constelações mensuráveis e contam sobre o destino dos homens.
– Por que olhar tão longe? Está fitando o lugar errado. Não nas estrelas, mas
dentro de você. Por isso somos tão poderosos. Não evocamos nossas entidades
lá fora, elaborando rituais complexos e arrancando–as das dimensões. O ritual
mais extraordinário ocorre dentro de nosso corpo, quando o maligno traça
labirintos em nossos órgãos internos, devorando–os e costurando–os com teias
de miasma.
– Sabe, cara, acho que tudo isso que você disse é incrível. Mas não é
superior olhar pra dentro ou pra fora. A fonte de poder está em todo lugar. Não
só em Samerre. O poder tampouco é propriedade de Deuses ou destruidores.
Quando tudo é igual, nem superior ou inferior, não há diferenças. E não
precisamos da guerra.
– “O senhor que comanda sua própria dimensão será capaz de saltar pelas
outras como quem pula corda”. Esse é o 4º aforismo de Yym. Palavras do
precioso GG de vocês. Isso significa que precisam conhecer a si mesmos antes
de tentar desvendar o universo, como cegos.
– “O tolo que deseja conhecer os outros mundos sem viver o seu é como
aquele que anseia viajar para terras distantes sem antes conhecer sua própria
terra”. Então somos tolos agora, buscando resolver um problema em Samerre
em vez de solucioná–lo dentro de nós?
– Creio que a resposta não esteja no 5º aforismo e sim no 3º: “Deuses são
fortes e eles existem. Eu sou forte, eu existo e, além disso, eu monto quebra–
cabeças com os mundos dos Deuses”.
Krashkah e Naridana estavam próximas quando eu disse isso. Elas soltaram
exclamações e aplaudiram. Eu e Krazie também nos unimos nas manifestações
entusiasmadas.
– “É irrelevante se Deuses existem e são fortes. Eu sou relevante e não
monto quebra–cabeças. Eu destruo todos eles”.
Cazka foi até onde estávamos para proferir seu próprio aforismo. Dessa vez
foram os destruidores que soltaram exclamações.
– Eu devia ter trazido o GGM para reler enquanto vocês falam asneiras. Mas,
oh, espere: eu o sei de cor. Poderia reescrevê–lo na íntegra, aqui e agora. Uma
bela distração para as horas vagas. Se eu tivesse horas vagas, pois cada instante
de minha existência consiste em elevar a potencialidade de minha força.
Solovro e Mufita riram quando Cazka disse isso.

370
Fábula dos Gênios

Resolvi aproveitar que estávamos todos reunidos e abri uma garrafa de licor
para oferecer a todos e celebrarmos, enquanto contemplávamos as estrelas. Mas
Cazka negou a oferta.
– Além de jogar, os construtores só sabem fazer festa e se embebedar. Eu
aceito uma taça somente na volta. Como estão assim, despreocupados? Ou já
aceitaram a morte? Treinem, preguiçosos! Montem selos, realizem mergulhos
dimensionais, vadios!
– Estou treinando. Sempre.
Krashkah mostrou o caderno. Cazka desejou olhá–lo.
– Lápis.
Ele corrigiu rapidamente algumas imprecisões em selos daquela página e
devolveu o caderno para Krashkah.
– Senhor, você cometeu um erro.
Ela comparou o selo que Cazka desenhou com o gráfico que ela mesma
tinha construído. Cazka concordou e arrumou.
– Cazkinha cometeu um erro? Não acredito! Sendo corrigido por um
construtor? Que vergonha! HÁ, HÁ, HÁ!!
– Cale–se, Jrass. E não me chame dessa forma. Isso me traz lembranças
extremamente desagradáveis.
– Que lembranças? De quando a garota destruidora pegou no seu pau?
Cazka lançou um olhar mortal para Soma quando Mufita disse isso. Soma
tapou a boca com o capuz, de onde estava sentada. Parecia estar segurando o
riso.
Cazka ficou brabo e se trancou na cabine.
– Bando de putas fofoqueiras.
Foi o que ele disse antes de se trancar lá. Em creemah, para todos
entenderem.
– Que história é essa? Não estou sabendo.
– Melhor não saber, Vossa Majestade. A propósito, minha citação favorita
do GGM é: “Por que esse grimório é tão maravilhoso? Porque eu sou lorde
Cazka e madame Valonde é uma vadia”!
Ela gargalhou ao dizer isso. Levantou a taça de licor para o alto, abriu a boca
com a língua pra fora e derramou todo o conteúdo. Depois disso, ela lançou a
sua taça no chão do convés e quebrou–a. Solovro lançou a sua no mar.
Cara, ainda bem que eu não convivia com destruidores. Seria um pesadelo.
Se o próprio rei dos destruidores e os outros letrados faziam aqueles absurdos,
eu nem queria imaginar como o “povão” de Desmei se portaria.
– Chiclete?
Krazie ofereceu para nós chicletes de diferentes sabores. Eu recusei.
– É mesmo, você está sem seu gênio! Mas e aí, como vai batalhar?

371
Wanju Duli

– Fui escolhido para essa missão pela minha habilidade de enxergar a cor das
auras das plantas. Vocês terão que me proteger.
– Eu não vou te proteger. Vou te deixar morrer.
– Obrigado, senhorita Jrass. Já será de grande ajuda você não me matar.
Nós dormimos lá mesmo deitados no chão do convés, fitando o mar de
estrelas; ou o céu de peixes brilhantes. E, por um momento, pude compreender
as palavras de Solovro: como era conectar–se com a vida vivendo–a ao ar livre,
sem se esconder entre paredes de concreto.
Na manhã seguinte eu soube que iríamos fazer uma parada em Tecraxei, o
país da tecnologia, em busca de um artefato: um vaso de cerâmica no qual havia
um sensor eletrônico embutido. Precisaríamos dele para localizar certa planta na
floresta de Samerre, através da medição de águas.
– O nome do artefato é Vaso de Chuá. A planta que buscamos é a Orquídea
de Chuá.
Pelo jeito, só tinham confiado os detalhes da missão para Naridana, que era
a líder do grupo.
– Que porra é essa de Chuá?
– É o som da sabedoria e perfeição, quando o cristal do gelo se rompe e
surge a água para saciar a sede. Nesse caso, a sede pelo conhecimento.
– Devíamos pegar mais comida em Tecraxei. Eles são famosos pelos
docinhos de silício com merengue!
– Eu digo que precisamos de mais equipamentos mágicos para proteção e
ataque. Vamos nos foder na floresta de Samerre, com as mãos vazias.
– Pois eu digo que deveríamos pisar nessa merda de país de uma vez e em
seguida dar o fora.
– A floresta de Samerre é chamada “Rainha Verde Gelo”.
– Ninguém perguntou como se chama a floresta, construtora.
– Não seja rabugento, Cazka. Conhecimento é uma dádiva.
– Vê–la de boca fechada também é uma dádiva.
Eu estava cercado de estúpidos. Mas o pior de tudo foi entrar em Tecraxei
acompanhado de quatro destruidores. Quatro desgraçados vestidos com peles
humanas! Os famosos mantos dos destruidores eram conhecidos em qualquer
lugar do mundo. Eles entraram lá encapuzados, mas não ajudou muito.
As pessoas apontavam e se afastavam, temerosas. Até mesmo os magos. Em
Tecraxei os magos utilizavam implantes eletrônicos e chapéus cinzentos de
bruxos. E, realmente, as ruas tinham cheiro de merengue e silício, como Krazie
falou.
A propósito, Krazie já estava batendo boca com um vendedor de rua, que
não entendia creemah e tampouco aceitava nossa moeda. Tive que arrastá–la de
lá, embora ela estivesse ansiosa por um saquinho de doces de Tecraxei.

372
Fábula dos Gênios

Verifiquei na mochila o que mais precisávamos de equipamentos para a


jornada. Todos os magos do grupo já tinham seus acessórios pessoais. Isso
significava que os destruidores não estavam carregando nada. Os construtores
possuiriam ao menos um punhal ou adaga para traçar os círculos e rasgar as
dimensões. Como eu não tinha gênio, iria me defender com o JCG, que possuía
uma boa variedade de cartas para diversas ocasiões. Além disso, os chicletes
quebravam um galho.
– Também precisamos de defumador, velas e cristais. Sabe, para traçar os
selos com fumaça, fogo, gelo... o básico.
– Nós traçamos os nossos com o veneno do miasma. Não dependemos de
equipamentos, amuletos ou quaisquer objetos externos.
– Paradoxalmente, são tão apegados a esses malditos mantos que sequer
aceitam se disfarçar com vestes de outras cores para visitar outros países.
– É nossa honra e símbolo de força. São úteis para se camuflar na floresta,
não nessas cidades nojentas. Mas sem o manto não perdemos poder mágico,
Naridana. Ao contrário de vocês, que fragmentam o poder não somente em
objetos, mas também na alma.
Estávamos demorando demais fazendo compras. Krashkah também queria
passar numa loja de poções mágicas.
– Como a Krazie disse, precisamos ao menos do básico: poção de cura para
ferimentos não mágicos, antídoto, alguma poção para fazer mortos–vivos caso
alguém morra...
– Que estupidez. Não há plantas mais venenosas que nós, destruidores, na
floresta feliz. O antídoto somente seria necessário caso queimem a pele com
nossos selos de miasma. Quanto à poção de ressurreição, os habitantes desse
país não entendem nada do assunto. O meu povo conhece essa magia. Se um de
vocês morrer, eu revivo. Só preciso de um receptáculo. Comprem bonecos para
isso.
Sendo assim, em vez de passarmos numa loja de poções, fomos numa loja
de bonecas. As garotas construtoras se encantaram com as bonecas de porcelana.
Até Mufita achou–as graciosas.
– Será que tem gosto bom?
– Credo, Mufita. Você come até pano? Se eu morrer, só vou querer reviver
se for nessa linda boneca cor–de–rosa com bochechas rosadas!
– Eu sugiro que vocês comprem linha e agulha e costurem bonecos durante
a viagem. Sai mais barato.
– O Cazkinha é um estraga–prazeres. Você sequer tem dinheiro. Por que
quer economizar a grana dos construtores? Deixe que torrem tudo. De repente
nem voltam vivos.

373
Wanju Duli

– Costurar os bonecos com a própria energia gera muito mais poder mágico,
sua ignorante.
Mufita deu de ombros. No final, compramos linha, agulha, tecido e algodão.
– Agora chega, né? Não viemos até aqui para fazer compras. Onde está o
artefato? Num museu?
– Sim. Teremos que roubar.
– Ah, é claro. Assim, além do risco de guerra contra Deuses e destruidores,
teremos os magos da tecnologia querendo nosso couro. Excelente!
– Eu roubo. Nós possuímos poderes hiperpsíquicos. Vou mergulhar numa
dimensão para ficar invisível. Ou, mais especificamente, enganar o campo de
visão daqueles imbecis.
– Não, Cazka. Eu faço. Não queremos que cometa erros.
Mufita morreu de rir quando Soma disse isso. E foi Soma quem se infiltrou
no museu para roubar o tal vaso de cerâmica. Fácil como tortinha.
E saímos logo do país antes que flagrassem nosso furto. Roubar artefatos
mágicos era barra pesada. Imaginei que os magos de Tecraxei fossem ficar putos
e sair ao nosso encalço.
– Vamos devolver depois, certo?
– Devíamos vender no mercado negro. Renderia uma boa grana.
– Para que você quer dinheiro, construtora? Sua magia não é nobre o
bastante para diverti–la plenamente?
– Dinheiro pode alimentar os pobres. O povo de vocês passou fome. Você
deveria entender isso.
– Duvido que você fosse usar o dinheiro para isso. Suas justificativas me
enojam. Os construtores são hipócritas.
No navio, começamos a costurar os bonecos. Garanti que meu boneco
tivesse uma expressão apresentável, pois eu passaria a ser ele caso viesse a
morrer. Pelo menos temporariamente, até reconstruírem meu corpo. Eu
duvidava que os destruidores fossem nos fazer aquela gentileza.
– Os magos da tecnologia reconheceram de imediato os mantos dos
destruidores, mas ninguém lá reconheceu os uniformes de Jins e Jinas! Nem as
meias coloridas da Fagenar Vibri ou meu medalhão da Armana.
– Vocês não metem medo em ninguém. Eu nunca me importei se os outros
temem meu manto. Eles devem temer o meu poder, e não roupas. E o poder de
um mago só pode ser colocado a prova em batalha.
Meu coração estava confuso. Eu já tinha ouvido falar muito sobre Samerre.
O lar dos Deuses. Que tipo de lugar seria? Diziam que era um país pacato e
pequeno. Pouquíssimos habitantes, mas extremamente poderosos. Seriam mais
fortes que os destruidores? Se fossem, ninguém ia querer briga com esses caras.

374
Fábula dos Gênios

– Naridana, já estamos quase chegando. Que tal nos dizer logo o que vamos
fazer lá?
– Eu sei que precisamos achar uma flor. O resto só saberemos quando
estivermos na floresta, sendo guiados pelas energias e criaturas mágicas.
– É pior do que eu pensava. Por isso pediram pessoas sensitivas. Haverá
seres mágicos escondidos nas dimensões, então?
– Exato. Por isso precisamos dos destruidores. Sem contar que também é do
interesse deles evitar essa guerra.
– Não é do meu interesse. Eu gosto de guerra. Estamos aqui pela aventura.
– Não ouça o que Cazka diz, Somoyol. Os destruidores se gabam de suas
vidas emocionantes e depois topam vir numa aventura porque estão entediados.
– Eu nunca disse que estava entediado. Amo minha rotina de sangue e
morte. Isso não significa que eu não tope quebrá–la se uma ocasião como essa
surge.
Estar naquele navio era uma beleza. Costurar bonecas, debater filosofia da
magia, discussões gratuitas, batalhas gratuitas, rabiscar em mapas, jogar cartas de
gênios, brincar de riscar selos no chão, pão e vinho. Relaxante.
Eu não estava muito preocupado. Não íamos lutar contra monstros ou algo
assim. Íamos até uma floresta buscar uma flor. Dar uma passadinha no
cemitério e se mandar, certo? Então por que raios estávamos costurando os
malditos bonecos? A flor ia nos matar? O próprio Cazka afirmou que não
haveria plantas venenosas na floresta. Ao menos não teria nenhum veneno que
nosso grupo não fosse capaz de curar.
– Quem são... os Deuses?
Achei que minha pergunta ficaria sem resposta. Alguém saberia?
– Você leu pouco, Yol. Os Deuses são seres humanos como nós. Mas são
muito sábios.
– Eu também sou muito sábia e poderosa. Então por que não sou uma
Deusa? O que nos separa? Não pode ser apenas o local de nascimento. As terras
de Samerre são apenas terras.
– Vocês estão fazendo confusão. Deuses têm sangue de Deuses, assim como
destruidores têm sangue de destruidores. Aquelas terras são mágicas, assim
como nossos pântanos são mágicos. Toda a terra na qual um mago toca os pés,
o ar que ele respira, os objetos que ele toca, adquirem propriedades mágicas.
Consman, Desmei, Samerre, Tecraxei e tantas outras terras, todas elas são
mágicas e únicas. Com energias diferentes umas das outras. Elas carregam o
poder de seus magos.
– Essa foi uma explicação simplista, Soma. Não é isso que eles querem saber.
A floresta de Samerre é particularmente mágica porque possui o poder dos

375
Wanju Duli

Deuses mortos, que foram enterrados no misterioso cemitério numa clareira. E


todos sabem que Deuses mortos são muito mais poderosos do que vivos.
– Por que diz isso, Cazka?
– Porque os Deuses de Samerre carregam no sangue a maldição da
imortalidade. Só os Deuses mais poderosos conseguem se livrar dela, tornando–
se mortais, como nós. Os Deuses invejam a mortalidade dos homens. Esse é o
maior segredo dos Deuses.
– Por que os Deuses querem a morte?
– Porque os sábios sabem que a vida é apenas uma preparação para a morte.
E a morte é uma preparação para a vida; para outra vida, diferente dessa que
conhecemos. Os destruidores conhecem tão bem o poder da morte que
possuem malignos, que facilitam nossa passagem. Nós nos transformamos em
dimensão ao morrer. Somente assim alcançamos poder máximo e felicidade
suprema. Os Deuses não são capazes disso. Eles estão presos aos seus corpos
de carne, incapazes de se libertar da dor do corpo e da mente, ou de viajar
livremente entre as dimensões.
– Isso significa que todos os Deuses que se libertaram da maldição da
imortalidade foram enterrados nessa floresta. Eles são muito mais poderosos do
que os Deuses de carne, que vivem na cidade, tentando bolar um jeito de morrer.
– Exato. E é para essa floresta que vamos. As energias de lá são
esmagadoras por esse motivo. Está repleta de dimensões de Deuses.
– As dimensões dos construtores ficam em nosso cemitério de túmulos
coloridos. E onde ficam as dimensões dos destruidores? Onde vocês enterram
seus mortos?
– Aí é que está: não enterramos. O nosso maligno devora nosso corpo e
nossa alma. Ou outros destruidores nos devoram. Isso é feito exatamente para
evitar a aglomeração de dimensões num único local de poder. Isso é uma
fraqueza. Se outro povo se dirigisse para nosso cemitério e fizesse o que
tentaremos alcançar em Samerre, seria devastador. Perderíamos nossa maior
fonte de poder e nosso sangue se enfraqueceria.
– Partimos nessa missão para tentar evitar uma guerra. Mas a destruição da
fonte de poder de Samerre não poderá acarretar numa guerra ainda maior? Isso
poderá provocar a ira dos Deuses.
– Não irá. Se fizermos uma oferenda... eis a lógica que apazigua a ira dos
Deuses. Sempre foi assim.
E foi sob o mistério de tal enigma que desembarcamos em Samerre. Não no
porto. Não na cidade. Seguimos pela floresta. Atracamos na praia. Até a âncora
espirrou magia quando tocou naquela areia.
Caminhar sobre aquela terra era magia pura. O ar da entrada da Floresta
Rainha Verde Gelo era modificado. As árvores possuíam um tom verde quase

376
Fábula dos Gênios

azul. E delas respingava água, como um chuvisco constante sobre nós. Mas era
apenas o choro das árvores.
Além das altas árvores azuladas, eu não era capaz de avistar qualquer criatura
viva. Não sentia sequer uma aura animal.
Tão quieto. Uma floresta repleta de silêncio.
– Por acaso os Deuses reencarnam como árvores? Eu sinto uma energia
poderosíssima dessas existências ao nosso redor.
Eu não devia ter falado. Até o menor som ressoava.
– Tentem captar a presença de criaturas mágicas em outras dimensões.
Podemos pedir auxílio a elas.
Segui o conselho de Solovro e concentrei–me. Nada senti. O ar estava tão
pesado ao meu redor que meus sentidos espirituais pareciam surdos e apagados.
Caminhamos mais um pouco, em passos lentos. O único som era o do
farfalhar das majestosas árvores, numa leve brisa. A areia era vermelha.
– Essas cores, azul e vermelho, me fazem pensar que a areia e as árvores
respiram na porcentagem correspondente do espectro. Não conseguem sentir o
coração das árvores?
Krashkah abraçou uma das árvores e fechou os olhos. Sorriu.
– Essa está em 29%. Belíssimo...! Meu coração quase bate com ela.
Naridana encontrou a primeira poça d’água e abaixou–se. Encheu o vaso de
cerâmica com uma porção d’água. Aguardou para ver o resultado do aparelho
eletrônico.
– A flor está tão perto! As águas do Vaso de Chuá mudaram de cor. Tentem
sentir. Ligeiramente para o oeste... sudoeste.
Havia um campo de flores ali perto. Seria muito difícil encontrar logo a
orquídea que buscávamos em meio àquele paraíso perdido.
– Para encontrá–la, seu coração precisa bater na mesma porcentagem da flor.
Deve ser em torno de 18%.
– Como você sabe disso, Kah?
– Eu apenas sei.
– Então apenas encontre–a, OK? Eu estou ficando tonto nesse lugar. A
energia desse campo é forte pra caralho. Vou cair desmaiado a qualquer
momento.
Tive que ficar longe das flores. Sentei–me debaixo de uma árvore,
respirando rápido. Estava começando a me sentir mal de verdade.
– Isso está acontecendo porque você está sem gênio, idiota. Fraco assim,
não vai conseguir nem percorrer o resto do caminho, quanto mais ser útil em
batalha.
– Que batalha, Cazka, seu imbecil? Contra as flores assassinas?

377
Wanju Duli

– Ria agora. Aproveite essa pequena dor que sente. Ela é boa, não é? Parece
que vai parar em algum momento.
Filho da puta.
Eu estava suando frio. Krazie sentou–se ao meu lado e passou para mim
uma pequena garrafinha azul com uma rolha.
– Comprei uma poção de cura, como a Kah sugeriu, mesmo com o otário
do Cazka nos dizendo para não comprar.
– Pensei que você tivesse saído naquela hora para comprar doces de silício.
Quando bebi um gole senti–me mais disposto, mas aquela poção não fazia
milagres. Eu precisava equilibrar meu estado psicológico, ou logo teria uma
recaída.
– Achei essa merda. Que coisa horrorosa. O que vamos fazer com essa
bosta?
– NÃO ARRANCA, CAZKA!
Krashkah correu até onde Cazka estava e protegeu a flor.
– Precisa ser feito, Kah. Desculpe.
Krashkah chorou sobre a flor. Quando ela fez isso, a flor desprendeu–se do
solo imediatamente e flutuou, com raiz e um punhado de terra.
Aquilo foi magnífico. Krashkah segurou a flor nas mãos e protegeu–a,
encostando–a contra o peito.
– Você será a guardiã da Orquídea de Chuá, Kah. Não permita que o puto
do Cazka toque nela.
– Vai falando, Naridana. Vai estar bem morta daqui a pouco.
Continuamos a andar. Era como uma eternidade. As belas árvores azuladas e
com odor paradisíaco não me encantavam mais.
– Há frutas lá. Vejam! Parecem gostosas!
– Devem ser horríveis.
– Seu paladar é esquisito, Mufita.
Por que elas não ficavam quietas? A voz delas estava aumentando minha dor
de cabeça. E a voz de Cazka particularmente fazia meu cérebro explodir.
Até que localizamos o cemitério. Um mar de lápides soturnas naquele
cenário pacífico. O contraste tinha beleza.
– Essa missão foi fácil. Vamos acabar logo com isso.
– Krashkah, deposite a flor nessa lápide grande. Você será a noiva–sacrifício.
– Você sabia desde o começo que eu morreria pela salvação da flor, não é,
Nari?
– Evidentemente.
– Puta.

378
Fábula dos Gênios

Krashkah ajoelhou–se diante da lápide. Depositou a flor na terra, que foi


imediatamente sugada. Krashkah caiu morta em seguida. A flor cravou as raízes
em sua carne e avermelhou–se, alimentando–se dela.
Na sua outra mão estava um boneco de pano.
– Vocês vão revivê–la agora... certo?
Minha voz estava trêmula quando eu perguntei isso. Krashkah não explodiu,
não foi desmembrada ou nenhuma morte violenta do tipo. Estava ali, inteirinha,
servindo de alimento para a flor. De alguma forma, aquela morte me parecia
muito mais cruel.
– Ela ainda não está completamente morta. Só estará quando a flor terminar
de sugar o gênio e a alma dela. Isso ainda vai levar algum tempo.
– E ela vai ficar sofrendo enquanto isso, sendo devorada viva? Com isso
iremos evitar a guerra?
– Nós juramos apaziguar a ira dos Deuses com uma oferenda. A flor
acalmará os Deuses mortos. E a garota acalmará os vivos.
A calma com que Soma disse isso me deu nos nervos. Eu fui até ela e
segurei–a pelo manto, completamente alterado.
– Reviva Krashkah assim que isso terminar, ouviu bem? Não viemos até
aqui para que os destruidores brinquem com nossas vidas, por mero prazer!
Quando eu fiz isso, a galera se assustou. Solovro ficou particularmente puto.
Cazka também não gostou muito.
– Não ouse colocar suas mãos na minha ligação, miserável!
– Eu não posso colocar as mãos nela, mas vocês podem matar nossa amiga.
Que porra é essa, Solovro?
– Largue–me, seu traste. Não fale do que não entende. Isso é necessário. Ela
não será o único sacrifício aqui.
Eu larguei Soma.
– Não se desconcentrem. Todos devem prestar bastante atenção. Olhem
para o céu.
As árvores choviam tanto e a estrela maior estava tão brilhante que nem
notei que havia um gracioso arco–íris no firmamento.
– Cada um de nós deve colocar os batimentos numa porcentagem do
espectro de uma das cores do arco–íris.
Naridana entregou a nós sete varetas coloridas. Eu fiquei com a cor amarela.
– Iniciaremos com a cobra. Depois virarei para a abelha. Por favor, deixem
seus bonecos à vista.
Eu percebi o que ela ia fazer. Meu coração acelerou tanto que eu me
desconcentrei. Não conseguiria colocá–lo na minha porcentagem facilmente. Eu
chorei.
– O que foi, Somoyol? Acha que não vai conseguir?

379
Wanju Duli

– Eu jurei morrer pelo meu país. Mas eu me esqueci que estaria sem gênio.
Deixei passar esse detalhe crucial. Não terei meu desejo da morte e isso não é o
pior. Eu morrerei sozinho. Sem gênio. O maior medo que os seres humanos
possuem da morte é o medo da solidão. A Magia dos Gênios é fantástica porque
te concede uma companhia extraordinária no momento da morte. Mas eu
estarei completamente só.
Eu me ajoelhei, desolado. Abracei meu próprio corpo, tremendo. Naridana
abaixou–se, sentando ao meu lado. Colocou a mão no meu ombro.
– Yol, você nunca está só. Sente o calor da minha mão? Sente a presença de
todos nós? Essa grama ao seu redor. As árvores. O céu, o mar, o ar. Tudo
exalando vida, nesse ciclo de energia e matéria. Tudo isso estará ao teu lado na
morte, e vocês trocarão energias. Teu corpo volta para a terra. A tua alma toca
dimensões. Vira dimensões. Contata outras almas e mundos. Como isso pode
ser solidão, Yol? Quando estamos em nosso corpo de carne temos a impressão
de ser apenas um. A morte é quando enxergamos a verdade: somos vários. E
nunca estivemos sozinhos. Por isso, jamais houve razão para temer.
Eu toquei na mão dela.
– Obrigado. Por existir...
– Bem, eu nunca existi de verdade. Todos nós já estamos mortos e apenas
aparentamos vida. E quando morrermos, será apenas impressão. Na verdade
viveremos. Esse é o equilíbrio da porcentagem. Isso é matemática.
Eu finalmente consegui me concentrar. E não mais temi.
Coloquei meu coração na porcentagem exata. E ocorreu a virada. Meu
coração atingiu exatamente a porcentagem oposta.
Naridana forçou outra virada. Dez viradas seguidas. Meu coração já não
aguentava mais. Era muita pressão.
Até que tudo parou.
Ocorreu alguma dor e medo, mas por que aquilo importava? Em vida eu já
experimentei sensações muito mais terríveis. Perto disso, aquela sensação era
como um sonho ligeiramente incômodo, mas que promete um final feliz.
Quando minha consciência retornou, eu estava num mundo de formas
geométricas e fantasmas. Ou assim pensei a princípio. Quando consegui me
acostumar novamente a meus novos sentidos espirituais, reparei que aquilo tudo
era uma dimensão. Uma não. Dezenas. Centenas. Milhares.
Eu conseguia voar livremente entre elas. Tudo estava leve. Perfeito. A
melhor sensação do mundo. Nem minha memória me incomodava mais. Eu
também havia me libertado do grande peso dela.
Num primeiro momento, entendi que aquele prazer não se comparava a
nenhum outro prazer que experimentei em vida. Nem a sensação mais incrível
da meditação mais elevada. Se eu tivesse olhos, teria chorado. Eu arrancaria

380
Fábula dos Gênios

meus olhos da face e os ofertaria, somente para permanecer a sentir aquela


sensação eternamente.
E eu provavelmente teria ficado preso lá por toda a minha vida, ou morte.
Eu somente consegui me salvar porque um resquício de memória, ou de karma,
ainda permaneceu em mim: o quinto aforismo de Yym:

“O tolo que deseja conhecer os outros mundos sem viver o seu é como aquele que anseia
viajar para terras distantes sem antes conhecer sua própria terra”.

Eu não podia morrer ainda. Não por vontade própria. Somente quando a
vida me levasse, naturalmente. Somente então eu aceitaria. Mas antes disso, eu
não permaneceria semimorto, eternamente preso num mundo de fantasias e
sensações, deixando para trás todas as florestas, toda a matéria e os prazeres da
carne.
Eu só ficava entediado, como os destruidores diziam, porque meu mundo se
tornou algo comum para mim. Eu achava aquelas outras sensações psíquicas
fantásticas somente porque era algo incomum. Possuir poderes psíquicos
também se torna algo corriqueiro depois que se acostuma a eles.
Nós, magos, sabíamos disso melhor do que ninguém. Mergulhávamos em
dimensões e realizávamos feitos admiráveis. Ainda assim, curtíamos uma cerveja,
sexo, ríamos com bobagens. A magia não poderia ser suprema. Não poderia
haver uma dimensão ou um mundo superior e outro inferior.
Um dia escutei uma crença dos antigos que dizia que os Deuses estavam no
céu. Porque os antigos achavam que o céu era mais nobre que a terra. Mas eles
não sabiam que uma coisa jamais pode ser superior a outra. Todas as dimensões
são iguais. Os seres humanos são iguais aos Deuses. Ninguém é melhor ou pior.
Viver não é melhor do que morrer. Todas as coisas apenas são. E assim
viveremos em harmonia, aceitação e paz.
E foram essas energias mentais que enviei para as dimensões dos Deuses
mortos.

“Mas se todas as coisas são iguais, a paz não é igual à guerra?”

Essa pergunta ressoou de uma das dimensões de Deuses. E a isso respondi,


confiante: “Isso não pode ser. Porque precisamos da sabedoria para chegar ao
entendimento de que todas as coisas são iguais. A ignorância e a guerra são
contrárias à sabedoria. A paz pode ser equilibrada com o estímulo mental de
uma aventura divertida. Não com dor provocada. Quando a dor vem da
natureza, dizemos: dor é apenas dor”.

381
Wanju Duli

E os Deuses ressoaram novamente, em alegria. Aqueles Deuses que


invejavam a mortalidade dos homens.
Isso acalmou quase todos os Deuses mortos. Menos um: o Deus do
Orgulho. Este berrou:

“Eu não sou inferior a um humano. As coisas somente ocorrerão conforme a minha
vontade! Hei de quebrar a teia de teu raciocínio fraco!”

Eu enxerguei uma espiral. E, uma vez mais, tudo mudou.


Quando dei por mim, estava novamente sobre a grama do cemitério. Mas eu
não estava mais no meu corpo de carne.
Eu era meu boneco de pano. Assim como todos os meus sete companheiros
de jornada. Até mesmo Krashkah estava conosco.
Uma das lápides rachou. Ela foi completamente quebrada. Os pedaços do
caixão que ergueu–se da terra voaram para todos os lados.
De lá surgiu um monstro. Ele possuía vários pedaços de dimensões e formas
geométricas. Eu precisava de muita concentração para ser capaz de visualizá–lo
com clareza.
Esse monstro urrou. Novamente, exigiu muita força de vontade de minha
parte para escutar o urro com precisão.
Era gigantesco! Elevava–se muito mais que as árvores. Pelo menos dez
vezes mais.
Seria difícil lutar como boneco. Mas os quatro destruidores, mesmo em
forma de bonecos, libertaram seus malignos e traçaram seus selos
multidimensionais.
Eu não pude participar da batalha plenamente, pois não tinha gênio. Ataquei
apenas com selos, embora com muita dificuldade para acostumar–me ao meu
novo corpo.
Mesmo assim, foi lindo. Sete gênios de muitas cores voando ao mesmo
tempo, unindo–se para lutar. Atacando a forma espectral e geométrica do Deus
morto. Uma existência residual da criatura fenomenal.
Os selos dos destruidores eram fortíssimos. Rachavam a terra, rasgavam os
céus. Foi então que me dei conta: os destruidores eram capazes de atacar com
tamanha força porque seus corações estavam integralmente no interior do
maligno. Assim, eles podiam utilizar poder máximo, mesmo sem a totalidade de
seu corpo de carne, através das batidas e miasmas.
Nós construtores, por outro lado, utilizamos nosso grande trunfo:
escondemos a alma nas bonecas. Os destruidores não tinham alma e não
poderiam fazer isso. Nem precisavam. Mas a nossa fragmentação e dependência
de objetos externos, das quais criticou Cazka, foi o que nos salvou.

382
Fábula dos Gênios

Não poderíamos falar um com o outro. Apenas atacar. E, pensando bem,


nada mais precisaria ser dito. Não tínhamos bocas. Mas eu ainda sentia certa
comunicação com o Deus morto através das ondas dimensionais. Por algum
motivo, eu entendia seus urros, que pareciam fruto da raiva e não da dor com
nossos ataques.

”Cérebro limitado. Como espera bolar a teoria perfeita sobre a vida com ele?”

Lancei a ele esses pensamentos, por energia: “Não espero a resposta


absoluta e definitiva. Apenas algo simples e suficiente que me faça feliz. Para
nós, a morte não é difícil de ser obtida. Mas para ti era uma busca grandiosa e
justa. Então por que tu deverás julgar aquilo que buscamos? Deixe–nos com
nossos pequenos pensamentos e nós permitiremos que descanse em paz”.
Ele entendeu. O Deus do Orgulho parou de atacar. Não desejou mais
provar quem era superior. Não quis mais brigar ou provar nada. Ele sorriu. E
desapareceu.
De fato, os Deuses não coloriam seus túmulos e sim suas almas. Eu, de
minha parte, somente desejava colorir o meu coração, com todas as cores.
A flor, que havia murchado, reviveu. Com isso, Krashkah despertou
novamente em seu próprio corpo.
Ela já sabia exatamente o que fazer. Recolheu cada um dos sete
bonequinhos atirados no chão e caminhou pela floresta com eles nos braços. Eu
também estava lá com ela.
Até que ela chegou ao campo de flores e nos jogou lá. Cada um de nós
pegou a energia vital de uma das flores. Sete flores murcharam. E com isso,
despertamos em nossos próprios corpos no cemitério.
Krazie chorou quando acordou.
– Por que uma flor teve que morrer para que eu pudesse viver?
– Nós matamos animais e vegetais em nossas refeições todos os dias para
nos mantermos vivos. Não chore por isso. Apenas viva com alegria e faça com
que o sacrifício de todos esses seres seja honrado.
– Mas eu senti a dor dela na morte...
– Você já morreu uma vez hoje também, Zie. Por um breve instante. Não
foi tão ruim, minha querida. Você sabe. Agora aquela flor é uma dimensão e está
desfrutando do êxtase dimensional que você também sentiu.
Naridana abraçou Krazie.
Na verdade seria um pouco difícil esquecer aquele êxtase que minha alma
sentiu após a morte. Só de pensar nele dava uma vontade louca de cometer
suicídio, mas eu precisava segurar minha existência nesse mundo por mais

383
Wanju Duli

tempo. O melhor remédio para curtir mais essa dimensão seria, naturalmente,
alguns belos prazeres da carne. E a alegria de estar com os amigos.
De quebra, após experimentar todas aquelas sensações delirantes por estar
fora do corpo, eu já não temia tanto a morte como antes. Sabia que quando
viesse eu teria um presente fabuloso. E nunca mais me sentiria só.
Nós retornamos para o campo de flores e encontramos uma Krashkah
esparramada por lá, deitada sobre a grama, com um grande sorriso no rosto.
– Então não haverá mais guerra?
– Os Deuses da cidade de Samerre sempre consultam os Deuses mortos
dessa floresta em busca de conselhos, como adivinhos. Pois hoje nós oito nos
comunicamos com eles, enviando mensagens de paz. Tenho certeza de que tudo
ficará bem agora. Eles aceitaram nossas oferendas.
– Mas e as flores...?
Naridana plantou sete sementes na terra, que trouxe consigo.
– Essas são sementes da Fruta da Tecnologia, de Tecraxei. Não fomos até lá
somente para roubar o vaso. Essas plantas crescem depressa e enviam
mensagens positivas. Todos os Deuses estarão repletos de amor.
– Menos os magos de Tecraxei, depois de roubarmos o vaso do museu deles.
– Bora lá devolver, galera. Coitados dos caras. Sacanagem.
– Falando nisso, Cazka, espero que tenham enviado mensagens positivas
para os Deuses mortos.
– Mais ou menos. Só não compartilho desse sentimentalismo de vocês ao
deparar–se com a morte. Nós, destruidores, já estamos muito mais acostumados
a lidar naturalmente com ela.
– Cazkinha, não mente que eu vi o seu medo naquela hora.
– Você não sabe ficar quieta, Mufita?
Nós devolvemos o vaso, secretamente. Eles deram pela falta dele, é claro.
Mas depois que o viram de volta no lugar, ficaram calminhos. Beleza!
Sem rixas com Tecraxei. Tudo em paz com os Deuses mortos e com os
vivos. Tudo indicava que uma guerra não estouraria por um longo tempo. Afinal,
quem mais deveríamos temer?
Os destruidores. Tememos tanto a ira dos Deuses que nos esquecemos da
ira dos destruidores.
Pensamos que eles tinham se aliado a nós naquela missão para enviar
mensagens de paz aos Deuses porque também era do interesse deles evitar uma
guerra. Mas isso não era verdade. Eles apenas fingiram serem nossos amigos.
Foi duro aceitar isso, mas o peso daquela realidade desabou sobre nossas
cabeças oito anos depois.

384
Fábula dos Gênios

O que eles fizeram no cemitério dimensional de Tecraxei foi algo muito bem
planejado. Eles bagunçaram a ordem dimensional dos Deuses mortos. Eles
arrancaram uma enorme fonte de poder dos Deuses.
Ninguém seria capaz de fazer aquilo com os destruidores, porque eles não
enterravam seus mortos. Sequer tinham alma. Portanto, eles não teriam
fraquezas e só tendiam a ficar cada vez mais poderosos.
Pensamos que os Deuses não declararam guerra por causa de nossa
mensagem de amor. Balela. Eles não declararam por medo, depois de
contemplarem sua fonte de poder completamente reduzida.
Provavelmente no passado os Deuses foram mais fortes que os destruidores.
Mas aquilo acabou. Nos anos seguintes, os destruidores se fortaleceram cada vez
mais através da fonte de poder dos Deuses. Até que estourou a guerra.
Eles ainda queriam se vingar pela fome e pela humilhação que os
construtores os fizeram passar. Por não termos ajudado o povo deles quando
precisava. Queriam nos destruir por motivos múltiplos. Mas o principal era um
só: porque esta era sua natureza.
No dia da guerra, nós lutamos. Todos nós, orgulhosos estudantes de Jins e
Jinas, estávamos nas linhas da frente. E nos reencontramos com nossos quatro
velhos amigos destruidores. Ou aqueles que pensamos ser nossos amigos.
E, sem nenhum impedimento, finalmente realizamos aquilo que os dois
povos desejavam: uma luta.
Mas, lá no fundo, eu não queria. Talvez eles não quisessem também e só o
fizeram tomados pela ira do Deus do Orgulho; porque não foram realmente
capazes de apaziguá–lo.
Até mesmo os filhos deles atacaram nossos filhos, somente para provar a
supremacia absoluta dos destruidores. Mas, independente do poder mágico que
possuímos, no fundo não éramos iguais? Nós não os tratamos como iguais no
passado. Então eles não nos tratavam no presente. Aquilo era justo. Que é a
justiça?
Mas eu ainda me lembrava do sorriso de Solovro, o poderoso rei dos
destruidores, que julguei sincero, enquanto nos divertíamos juntos na
universidade. E será que os dizeres finais do GGM de Cazka não continham
uma verdade maior?

“– Eu acredito que construtores e destruidores podem voltar a se dar bem no futuro –


afirmou Prevou.
– Eu jamais vou acreditar nisso”.

***

385
Wanju Duli

FIM

(Aguarde o lançamento do AVB e do AM!)

Epílogo

– Ei, Nhanha. Você tá me ouvindo? Eu disse que o caixão de Valonde está


vazio!
– Eu ouvi, seu bobo. Por que tem o nome da Valonde como autora do AM?
– E eu vou saber! Se ela é a autora do AM, quem é o autor do AVB? Que
confusão! Por que será que houve essa troca? E por que será que a sacerdotisa
de Samerre te deu essa chave?
– Eu... acho que entendi.
– Espere. Você está chorando, Nhahia?
– Estou com medo. Vá até o túmulo de meus pais, depressa!
Fiz o que Nhanha pediu. Mas não vi nada de errado lá.
– Tirupa Trai. Borrai Daono. Ambos mortos na guerra. Por quê?
– Eu ouvi falar de dois ex–colegas dos meus pais que tinham sangue de
destruidor. Os nomes eram Krashkah e Hparral. Mas não acho que seja possível
que eles tenham tido uma mãe destruidora e um pai construtor, ou o contrário.
Porque uma união entre construtores e destruidores provavelmente não é
possível.
– Hm? E o que me diz de você e Sablerie?
– Eu acho que os colegas de nossos pais foram enganados. Provavelmente
os dois pais deles eram destruidores e os enviaram para Consman por um
motivo desconhecido. Eu acho que foi por um desejo de paz entre os povos!
– Que legal! Seria fantástico se fosse verdade, mas essa teoria parece meio
furada.
– Calma, eu ainda não terminei. Você não acha que construtores e
destruidores deviam fazer isso de tempos em tempos? Sabe, mandar
construtores para Desmei e destruidores para Consman?
– Improvável, mas não impossível. Em nome da paz entre os povos, de uma
forma natural... pelo jeito não funcionou.
– Você sabe bem que muitos dos amigos que tive são filhos dos colegas dos
meus pais em Jins e Jinas. Morávamos em casas próximas e isso foi proposital.
Nossos pais queriam que fôssemos amigos.
– Bem, Consman sempre foi um país artificial. Mas o que isso tem a ver com
o resto?

386
Fábula dos Gênios

– Me deixa falar, seu chato! Cromo é filho de Krashkah e Sremino. Varra é


filha de Derida e Hparral. Isso não significa que os dois possuem sangue de
destruidores?
– Você realmente leva a sério esse boato?
– Como era mesmo os nomes dos pais de Bilubelei? Procura aí.
– Nesse monte de lápides? Poxa! Você não quer mais nada, né?
Mesmo assim eu topei procurar. Demorei a encontrar. Localizei até o nome
dos pais de outro amiguinho dela: Krazie e Qah, pais de Tchei.
– Os nomes dos pais dela são Somoyol e Werda. Pelo jeito ela não tem
sangue de destruidores. Qual é a sua brilhante teoria?
– Minha brilhante teoria é que não há lápides para Krashkah e Hparral, pois
eles tinham sangue de destruidor. Você não acha que retiraram o corpo de
Valonde pelo mesmo motivo?
Dessa vez eu tive que rir.
– Brisgrar Valonde, autora do GG e defensora ferrenha de construtores,
uma destruidora?
– Ela escreveu o AM, seu burro! Nesse único volume tem o nome dela. Pelo
jeito é o grimório original. Era isso que os Deuses queriam me contar: que
destruidores e construtores estiveram misturados. E que a paz entre os povos
ainda pode ser possível, mesmo depois dessa merda que os destruidores fizeram.
Mas agora quem não quer paz somos nós! Esse ciclo de vingança não tem fim...
– Eu acho que os Deuses querem nos ferrar e estão confundindo sua cabeça.
– E o que me diz dos príncipes? Wakwa é filho do rei Assavil e a princesa
Miabina é filha de Sassa e Solovro. Mas será que isso é mesmo verdade? Os
destruidores mantiveram Wakwa cativo por muito tempo, sem matá–lo. Será
que ele é o filho verdadeiro da venerável Soma, que o Sablerie tanto admira?
– Woa! Isso seria devastador. Mas você tem provas?
– Eu não. Mas Wakwa deve saber de tudo. A realeza esconde segredos.
Aquele tal quebra–cabeça de grimórios. Então era isso! Valonde escreveu o AM.
Pela lógica, o pai do Sablerie seria o autor do AVB. Mas não é ele. Por quê?
– Porque Sassa Soma é a autora...
– Isso mesmo! Se ela e Solovro tiverem sangue de construtor isso faz
sentido, não?
– Que grande baboseira. Não houve troca de príncipes.
– Vlebre Cazka é um grande mentiroso! Ele inventou aquela história de
mantenedores de mesmo sangue. Essa é uma história inventada e passada por
gerações para manter o truque sujo. Vlebre é construtor e Sablerie também. E
ponto final.
– Quê?!

387
Wanju Duli

– Pensa bem: eu não sou uma destruidora. Então é óbvio que ele só pode
ser um construtor, ou ter sangue de construtor, pra ser minha ligação. Ele
apenas foi criado em Desmei.
– Você acha que ele sabe disso?
– Claro que não. Será uma revelação chocante. E quando ele souber, não vai
mais me odiar tanto, não acha?
– Eu acho que ele continuará a te odiar. Mas além disso, passará a odiar a si
mesmo. Quem é construtor, quem é destruidor. No fundo, isso faz mesmo
diferença?
Eu me deitei na terra do cemitério e fitei o céu. Por um instante, tive a
impressão de que alguém piscou para mim.
– Mana?
Talvez tenha sido a minha imaginação.
Mas imaginação... não é ela uma das coisas mais extraordinárias?
Magia pura.

388
Fábula dos Gênios

Fábula dos Deuses

Capítulo 1: Quando meu mundo termina

– Você ouviu falar que os destruidores dizimaram os construtores?


– Pensei que a guerra mal tinha começado.
– Aquilo não foi uma guerra. Foi um massacre. Em poucas horas os caras
varreram o chão com todos os habitantes. Consmam virou um túmulo.
– Eu já sabia que os destruidores eram foda, mas isso foi insano.
Quando ouvi aquela assustadora notícia eu tinha 15 anos. Ainda estava no
colégio. Meus colegas receberam a informação pelo RP.
Eu construí o meu primeiro robô pessoal completo no 9º grau, com 14 anos,
que era a idade limite para fazê–lo. Minha habilidade era boa, mas eu não estava
entre os melhores da classe de robótica mágica. Sovishka era o homem do
momento do 10º grau e repassou os detalhes do entrevero.
A propósito, S tinha montado uma coluna acoplada em seu RP, chamada
“Mexericos de Tec”, com o intuito de roubar material sigiloso de quem fosse
trouxa o bastante para deixar vazar.
– Sei mais um ou outro detalhe. A galera queria se inteirar a respeito da
batalha ocorrida entre o construtor e a destruidora com algum conhecimento de
tecnologia, mas isso não está no sistema.
– Lekham é o nome dela?
– Não, é a outra. A mestra da Sociedade da Soma.
– Então o nome dela é Soma, otário. Ou seria esse um trocadilho com
operações aritméticas tradicionais? Falando nisso, a autora do Grimório dos
Números sobreviveu?
– Salana Blah? Sei lá! A pergunta é se restou algum construtor vivo.
– Ninguém se importa. Esses dois povos usam uma magia completamente
restritiva e interna. Magia de clubinho. Do tipo que nem com grimórios ou
mestres é possível reproduzir.
– Eu não ligo para as entidades deles, mas os selos multidimensionais são
extraordinários.
– Ironicamente, para passear pelas dimensões você precisa de um gênio na
coleira. Preferencialmente um maligno. Se não fosse esse o segredo, os
simbologistas seriam magistas muito mais fantásticos.

389
Wanju Duli

– Eu levo muito mais a sério os magos de Sinabil do que os construtores. Os


simbologistas utilizam o esqueleto de nosso sistema.
– Cara... os destruidores rebaixaram os Deuses de Samerre. Os destruidores
conhecem zero de matemática ou literatura, então não se pode comparar a fonte
de magia deles com os magos de Sinabil ou Narrara.
– Então me conta como aqueles bastardos sem tecnologia nem para
cozinhar carne crua derrubaram os escudos tecnológicos de Consmam?
– Nós também desconhecemos o mistério de Samerre. Sem cálculos, sem
recitações. Onde está a força?
– Quando não há letras e números você busca a magia na emoção do
sacrifício. Os destruidores sacrificam o corpo e a alma. Os Deuses entregam a
mente e o espírito.
Anotei aquele último pronunciamento de Ceioba, pois julguei as palavras de
alto valor. Ele era o melhor amigo de Sovishka.
Eu não conhecia bem o terceiro cara. Só sabia que era chamado Foartez.
Todos eram meus colegas.
Para mim, a magia de meu povo era a melhor que havia. E meu colégio era o
lugar mais respeitável que eu desejaria estar.
O nosso livro de magia era denominado “Grimório da Automação”. Eu
tinha muito orgulho de estudá–lo. Através dele, eu desenvolvia cada vez mais o
meu andróide espiritual chamado Jim–jim; ou JJ03, para os íntimos, já que era o
resultado do meu terceiro protótipo.
– Por que não conversa com seus colegas? Ficar só por aí escutando é feio.
– Nem sei, JJ03. Não me dou bem com aqueles caras. Eu me dou bem com
poucas pessoas. Vou espalhar as notícias do “Mexericos do Tec” pro Alburni.
Guardei meu computador no bolso. Todo nosso material escolar, incluindo
cadernos e grimórios, cabia nos nossos bolsos, pois era tudo virtual. Não
tínhamos mochilas ou canetas. Isso era coisa do passado, embora ainda
houvesse um pessoal meio retrô aqui e acolá.
Em geral, cabia tudo dentro do RP. E foi para JJ03 que pedi uma cópia da
nova edição do jornal.
– Quer que ele imprima para você?
– Não é necessário. Me envia o arquivo com os dados, T.
Ele checou no próprio computador, bastante curioso.
– Muito interessante a informação, mas você sabe que eu não ligo porra
nenhuma para os construtores ou destruidores. Eles estão literalmente do outro
lado do planeta.
– É um mundo pequeno. Agora, se você quiser conhecer os magos dos
outros planetas...

390
Fábula dos Gênios

– ...os Deuses podem me levar até lá por meditação, é isso? Pois eu acho que
nossa tecnologia irá estabelecer um contato muito mais efetivo e duradouro.
– Me passa a tua cópia do GA? Meu robô engoliu a minha.
– Eu não engoli merda nenhuma. Cale–se, idiota.
– Viu só como meu RP me respeita?
– Aí está o grimório. Arquivo C37. Anexo com lição de casa sobre selos
derivados de circuitos eletrônicos.
– Maldito aluno brilhante. Fez até a lição de casa, seu puto?
– Sabe, eu não estou nesse colégio de brincadeira. A vida é séria. Você devia
começar a pensar no seu futuro.
– O que pretende fazer?
– Assim que eu me formar, vou prestar concurso para aquela empresa, a
Magaut.
– Boa sorte. Eu vou para a Cirele.
– Qual é! Eles são uns perdedores.
– Minha decisão já está tomada. Não preciso de notas altas para pisar
naquele lugar. Então não me importo. Falando nisso, acho que vou cabular a
próxima aula. Tchau.
Afastei–me de Alburni e fui até a biblioteca. Lá era tudo eletrônico. Não
tínhamos livros de papel.
Até mesmo lá dentro, suposto local de silêncio, as pessoas já estavam
comentando sobre o jornal de Sovishka.
“Mataram os construtores. Que surreal!” era o que mais se ouvia. No
começo, aos murmúrios. Logo, até os professores estariam comentando.
Eu não queria saber desse monte de caras fortes matando ou morrendo. Já
havia me contentado em ser um mago medíocre.
Um dia eu já liguei para poder, dinheiro, fama, essas coisas. Quando criança,
cheguei a me esforçar para ser um mago forte, para ser admirado. Até que
descobri algo mais importante.
Eu não iria para Cirele porque queria. E nem havia matado aula por nada.
Havia um propósito maior.
De onde eu estava era o melhor ângulo para observar a conversa entre
aquelas três garotas. Vi quando entraram na biblioteca e resolvi segui–las.
– Você é uma desastrada, Lipsei. Derramou suco no seu uniforme de novo.
– Eu estava tentando montar meu robô, mas ele nunca me obedece...
– Francamente, você já devia ter montado esse robô aos 14 anos. Já está
com quase 16 e não entende algo assim tão simples?
– Perdoem–me, Crana e Zome. Eu não entendo nada de nada. Vou rodar de
novo...

391
Wanju Duli

Os olhos de Lipsei se encheram de lágrimas. Senti uma dor no coração


quando vi. Crana abraçou–a.
– Tudo vai ficar bem. Agora vamos voltar para a aula, certo?
– Podem ir. Antes vou passar no banheiro para enxugar as lágrimas. E
depois vou comprar um docinho, para ficar feliz.
– Você não pode mais faltar aula. Já está no limite.
– Só mais hoje, por favor. Eu não aguento...
As outras duas se despediram dela e voltaram para a aula. Lipsei levantou–se
e dirigiu–se até o banheiro, provavelmente para secar o rosto e limpar a blusa
suja de suco.
Ela demorou a sair. Voltou com o rosto levemente avermelhado, indicando
que havia chorado mais. Depois disso, ela passou na cantina do colégio e
comprou um chocolate. Sentou–se num banco para comê–lo, mas enquanto
fazia isso mais lágrimas caíam.
Essa é a menina de quem eu gosto. A garota da minha vida. Sou apaixonado
por ela desde meus 12 anos, quando ela era minha veterana. Quando ela rodou,
fiquei ao mesmo tempo contente e triste: feliz, porque seria colega dela, mas
triste por ela, que havia se saído mal nos estudos.
Nunca falei com ela.
Eu me contentava em admirá–la em silêncio. Eu não tinha coragem de me
declarar, de ser amigo dela ou sequer de dirigir–lhe a palavra.
Naquele instante, enquanto comia o chocolate, Lipsei enrolava os dedos em
sua gravata de cruz, desapontada.
Quando se avança para o 10º grau, o estudante ganha mais um cruzamento
em sua gravata. Mas aqueles que tiram as melhores notas ganham grampos: um
grampo prateado para notas boas, acima da média; dois grampos para notas
ótimas; três grampos para excelentes. E o grampo dourado só era dado ao
melhor aluno da classe.
Eu tinha um grampo na gravata, indicando que todas as minhas notas eram
acima de sete. Eu somente tinha algumas das minhas notas acima de oito. Num
bimestre em que conquistei todas elas acima de oito fiquei com dois grampos.
Nunca consegui três grampos, mas eu não ligava muito para esse sistema.
Sovishka e os dois amigos dele tinham três grampos. Alburni tinha dois.
Crana tinha dois, Zome tinha um e... Lipsei não tinha nenhum.
Lipsei nunca tinha conseguido todas as suas notas acima de sete; isto é, na
média. Sempre pegava recuperação em alguma disciplina. Ela sonhava um dia
conseguir um grampinho. Por mim, eu daria o meu a ela, mas isso não era
permitido.
Por que aquilo era tão importante para ela? E por que, por mais que se
esforçasse, ela nunca se saía bem nos estudos?

392
Fábula dos Gênios

Lipsei até que estudava bastante, mas nos dias das provas ela ficava nervosa
demais e errava quase tudo. Ela tinha pouco controle sobre suas emoções. Era
teimosa e chorava facilmente. Então por que eu gostava dela?
Por causa daquele sorriso. Quando ela estava feliz, ela iluminava o mundo.
Cantava, dançava, sorria, era muito brincalhona e divertida. Ela só se soltava na
frente das amigas. Na frente dos outros alunos e professores era sempre muito
tímida. Principalmente quando falava com um cara.
Eu não tinha coragem de falar com ela, pois eu sabia que ela ficaria sem jeito.
Eu não queria embaraçá–la. Imagine se eu a fizesse chorar! Lipsei chorava por
qualquer coisa, então se ela chorasse depois de falar comigo eu me sentiria mal...
E lá estava ela, sorrindo de novo: era só comer algum doce que ela já voltava
a ficar feliz. Parecia uma criança.
Eu queria abraçá–la e dizer que a protegeria. Que ela não precisava se
preocupar em passar de ano ou em conseguir um emprego na Cirele, como ela
queria. Eu poderia sustentá–la, dar tudo o que ela quisesse. Cara, trabalhar na
Cirele era uma piada. Qualquer um entrava, mas... Lipsei às vezes conseguia
zerar algumas provas, então talvez ela fosse uma das poucas pessoas com
dificuldade em realizar aquele feito simples.
Peguei o meu celular e tirei uma foto dela, escondido, no momento em que
ela estava sorrindo, lambuzada de chocolate. Aquele seria o meu tesouro.
Eu tinha outras fotos dela, mas essa foi a mais meiga que tirei. Senti orgulho
de mim mesmo. Aquela foto era digna de um quadro. Uma obra de arte da
natureza.
– Tirando mais fotos dessa menina? Isso é tão aborrecedor. Você não acha
mais emocionante fotografar carros ou helicópteros?
– Você é uma máquina, JJ03. Não entende nada de amor.
– Ainda bem, porque esse tal amor torna as pessoas estúpidas.
– Eis a natureza humana. É assim que os seres de carne funcionam. Amor é
uma droga mais potente que álcool. Mais embriagante que sexo.
– Pensei que álcool e sexo tivessem relação com amor. Eu vejo esses dois
termos ao lado do amor na maioria das minhas pesquisas.
– Você não está tão errado. Minha coleção de fotos dela funciona como um
gatilho no momento em que dou prazer a mim mesmo. A propósito, o que você
sabe sobre o robô dela?
– Aquele monte de sucata flutuante? Ele tem um nome imbecil: “Tchuu”; ou
T69.
– Ela o construiu 69 vezes até dar certo? Que determinação impressionante!
– E você ainda elogia a burrice dela? Veja só aquela aberração: não tem
pernas, tem apenas um braço, os olhos são de tamanhos diferentes e os botões
estão na cabeça.

393
Wanju Duli

– O RP dela é gracioso. Reflexo da dona.


– Uma geringonça como aquela não merece o título de RP! Ela está fazendo
as provas práticas com aquilo? Inacreditável! Não sei como ainda não
desmontou. Reflexo da dona, realmente, que em breve será expulsa.
Dei um tapa na cabeça de JJ, ativando um botão para travar a fala. Ele ficou
irado e começou a fazer barulho com outro botão, piscando loucamente.
Enquanto isso, eu observava mais um pouco a minha amada. Ela trajava o
uniforme vinho e cinza de nosso colégio, a Escola Cibernética da Ordem, ECO.
Não estava entre as melhores instituições do país, mas tinha seus méritos. No
melhor colégio de Tecraxei a média era nove, então nem eu e muito menos
Lipsei teríamos chance de sair de lá com uma boa carta de recomendação para
uma empresa.
Universidades eram raras por lá. Havia algumas escolas técnicas, mas a
maioria saía do colégio direto para as empresas.
– Muito bem, Tchuu, hoje eu vou te consertar. Sei que até o final da semana
farei com que você pronuncie ao menos uma palavra. Ops!
Ela deixou o chapéu cair no chão e acabou arrancando a cabeça do robô
quando se desequilibrou. Quando notou a besteira que havia feito, desatou a
chorar.
– Vou levar um mês para encaixar essa cabeça de novo. Não, não...!
– Nossa, que cena patética. Você está mesmo apaixonado por essa manteiga
derretida?
– Ela é uma garota muito divertida e gentil. Só está passando por tempos
difíceis, coitadinha...
– Então vá lá ajudá–la, cavalheiro.
– Oh, não! Eu não cometeria a heresia de aproximar–me desse ser tão doce
e delicado...
– Isso tudo deve ser apenas cena. Aposto que ela fica falando bobagem com
as amigas dela.
– Crana e Zome não são bons elementos, mas Lipsei não é facilmente
influenciável. Ela é ingênua e pura.
– Isso é só uma forma educada de dizer que ela é burra e imbecil.
– Diga isso de novo e irei apertar novamente naquele botão!
Lipsei tirou uma chave de fenda enrolada na coxa para começar a tentar
consertar seu robô. Quando ela foi pegar o utensílio, levantou ligeiramente a
saia. Eu vi uma porção generosa da coxa dela e em meu entusiasmo já fui
posicionando o celular para fotografar, mas não tive coragem.
– Eu não sou um pervertido vulgar. Eu respeito Lipsei.

394
Fábula dos Gênios

– Não sei qual dos dois é mais burro, sinceramente. Vai lá e fotografa,
covarde! Você pode conseguir todos os ângulos que deseja! Ela é tão bobinha
que está agachada. Basta você se abaixar um pouco e vai enxergar a calcinha dela.
– Não, NÃO me tente! Olha, eu vou voltar para a aula. Isso é uma tortura
para mim. Se eu voltar agora ainda consigo assistir o próximo período.
E, como um bom menino, voltei para a sala. Foi difícil, mas eu consegui.
Uma parte de mim ainda tremia no corredor, com o nervosismo que senti.
Sentei–me e abri o computador. O professor falava, falava... e eu estava
distante. Ainda pensando naquela coxa cheia de carne.
– Eu tirei uma foto da calcinha dela sem sua permissão, como um presente.
Quer ver agora?
– Não. Que falta de respeito, JJ03. Apague isso.
– Está bem, vou apagar. Eu sei que você não perguntou, mas a calcinha dela
era azul clara, com triângulos amarelos.
– Eu não acredito que você me disse isso. Como eu poderei me livrar dessa
informação agora? Esse conhecimento irá me perseguir pela eternidade, maldito
seja!
– E tinha rendinhas.
– SEU TRAIDOR! INIMIGO DAS MULHERES!
E eu joguei JJ03 pela janela. Foi assim que nos separamos. E o espírito de
JJO3 foi para outra dimensão.
Digamos que meu ato chamou a atenção dos meus colegas e do meu
professor. Senti que eu devia uma explicação.
– Perdão, irei me dirigir até a diretoria para solicitar uma advertência pelo
meu comportamento inapropriado. Meu robô estava com defeito, se revoltando
contra seu mestre.
– Você está ciente de que quebrou um espírito? Matou uma existência?
– Eu usei magia fraca, professor. Foi uma eutanásia nobre. Trabalhoso será
realizar uma pescaria dimensional para obter outro espírito. Irei dirigir–me até o
Templo Tecnológico para expiar a minha falta, senhor.
E eu saí da sala. Fui até o TT do colégio. Depois de me confessar, eu teria
que obter novos materiais para construir o JJ04... cacete.
Peguei algumas placas de metal do depósito, uns parafusos e toda a
parafernália que consegui reunir. Selecionei um dos meus computadores e tentei
rastrear uma boa dimensão.
– Ótimo, tenho prova amanhã. Preciso finalizar esse maldito andróide até a
noite.
Infelizmente, eu precisaria de ajuda para fazer aquela merda. Resolvi
contatar a melhor aluna da classe, que tinha o grampo dourado: Niapam Oravoa.
– Você é tão estúpido que nem sabe montar um robô simples?

395
Wanju Duli

– Quebra meu galho, Nia. Tenho prova amanhã. Não dá tempo. Vou me
ferrar.
– E eu com isso?
– Pô, meu...
– Quero algo em troca. Odeio aquela metida da Crana. Ela tem dois
grampos e pensa que é a maioral. Acabe com ela!
– Hã... o que eu tenho que fazer exatamente?
– Sei lá. Destrua o material dela. Derrame sorvete em cima. Eu cuido do seu
robô e você resolve minha situação, combinado?
Resolvi aceitar.
Quando voltei para a aula e não tive nenhuma boa ideia, optei por seguir as
duas sugestões de Niapam ao mesmo tempo: quebrei dois computadores de
Crana e comprei um sorvete especialmente para derramar em cima do resto.
Ela tinha saído para ir ao banheiro e quando retornou viu o estrago.
– Professora, alguém quebrou todo o meu material escolar!
Era desagradável me envolver naquelas intrigas de meninas. Sozinhas elas já
matavam umas às outras facilmente.
Eu não fui pego. Ninguém jamais saberia que fui eu. Foi o que pensei.
Contudo, no final da aula, Lipsei veio falar comigo.
Quando vi aquela menina de vastos cabelos castanhos na minha frente achei
que fosse um sonho. Eu nunca a havia fitado tão de perto. Mas o sonho acabou
depressa.
Era a primeira vez que eu a via com uma expressão séria assim.
– Você é desprezível.
Ela disso isso para mim. Deu–me as costas e foi embora.
“Você é desprezível”.
Perdi um pedaço do coração naquele dia. As palavras dela foram como uma
facada. Senti uma sensação horrível.
Ela havia visto o que eu fiz. Somente ela. Eu fiz algo ruim à amiga dela. E
ela viu–se no direito de defendê–la, é claro. Era compreensível. Ela não estava
errada.
Mas eu não consegui dormir naquela noite. Na manhã seguinte, Niapam, a
mocinha de cabelos curtos e negros, entregou–me o meu novo RP prontinho.
– Por que tem um lacinho na cabeça dele?
– Porque é fofo.
– Vou arrancar.
– Não! O cérebro do robô está no lacinho.
– Você tá me tirando, né?
– Não. A propósito, ela é uma menina e se chama Pluft–plim. Ela só vai
atender por esse nome.

396
Fábula dos Gênios

– Que bom.
Ela me passou um arquivo com todos os novos dados do robô. Aquela
máquina era espetacular. Fora o vexame de ser visto por aí com um robô de
lacinho, ele superava em muito o meu velho JJ03.
O lacinho de PP01 (como eu passaria a chamá–la) era azul claro com
detalhes em amarelo. A mesma cor da calcinha de Lipsei. Será que a cor do sutiã
dela combinava com a calcinha?
Mas... não. Eu não podia pensar naquelas coisas. Principalmente depois de
Lipsei ter me tratado com tanto desprezo.
Consegui realizar minha prova com sucesso usando aquele robô de última
geração. Quando retornei para a sala com ele, em vez de ser zombado pelos
rapazes, eu fui cercado de garotas, que começaram a abraçar o meu robô,
dizendo o quanto ele era fofinho.
Um sorriso de triunfo formou–se em meu rosto. Eu era um campeão. Em
vez de ser visto como ridículo pelos caras da minha turma, eu estava sendo
invejado pela atenção que recebia das meninas. O lacinho foi realmente um
golpe de mestre.
Meus colegas do sexo masculino, que se achavam muito machos, adoravam
construir uns robôs grandes e fortes com cara de mau. E eles duelavam entre si
com aqueles monstros gigantescos, algumas vezes usando até mais a força bruta
dos robôs do que a própria magia. Arrancavam pernas e braços dos andróides e
estavam realizando reparos constantes.
Eu não me metia muito naqueles duelos, porque eu tinha mais o que fazer
do que ficar reposicionando membros soltos do meu RP. Mas quem sabe com a
capacidade imensa do meu novo PP01 eu me desse bem naquelas lutas?
Niapam era uma que vencia duelos facilmente, mas duelar também não era
sua praia. Ela chamava nossos colegas de selvagens e dizia que utilizava suas
máquinas para “propósitos mais nobres”.
– Para quê? Para arrumar seu cabelo?
Quando um colega meu perguntou isso, Niapam esmagou o robô dele
imediatamente, deixando–o em pedaços. Depois disso, ela enrolou uma mecha
dos cabelos com os dedos.
– Meu Fifu arruma meus cabelos sim. E minhas unhas.
Ela deu um sorrisinho ao dizer isso e saiu.
Desde então, ninguém nunca mais falou nem dos robôs e nem dos cabelos
de Niapam.
Mas com o tempo eu notei que aquela trapaça me traria consequências bem
mais graves.

397
Wanju Duli

Ironicamente, Lipsei era uma das únicas pessoas que sabia de tudo. Ela
soube do meu acordo com Niapam. Sabia que aquele robô não era meu. Se um
dia ela já me respeitou, aquele respeito acabou.
No mês seguinte, pela segunda vez na vida eu conquistei dois grampos
prateados. Isso porque meu novo RP executava minhas magias
maravilhosamente. Enquanto isso, Lipsei tirou nota vermelha em todas as
disciplinas.
Eu via o esforço dela. Sempre lendo muitos livros de robótica mágica,
embora fosse incapaz de terminar qualquer um deles. Ela não aguentava a leitura
pesada e abandonava o livro, indo comprar mais doces para deter as lágrimas.
Eu concluí que ela estava certa: eu era desprezível. Enquanto Lipsei lutava
dia após dia para conseguir bons resultados com sua máquina, eu até estava
deixando de estudar muito ultimamente, já que PP01 fazia tudo por mim. Mal
precisava de manutenções periódicas como os outros, de tão avançado que era.
Enquanto quase todas as minhas colegas elogiavam meu robô, Lipsei era a
única garota que não fazia isso. Embora gostasse de bichinhos bonitinhos, ela
não se deixou encantar pelo lacinho de PP. Porque ela sabia que aquilo tudo era
falso.
De que adiantava ter os elogios dos professores, dos meus colegas e a
admiração de tantas meninas se a única pessoa que eu queria que olhasse para
mim me dava as costas?
Subitamente eu entendi o que era importante na vida. Eu não precisava de
fama, de grampos, de nenhuma daquelas coisas.
Quando você ama de verdade, existe somente você e a outra pessoa no
mundo. Não importa mais o que os outros pensem de você. Não me importava
ser visto como um mago fraco, ser pobre ou fazer qualquer outro sacrifício por
ela. Sem nem mesmo me importar se ela faria o mesmo por mim.
Mas eu não pensei nisso quando quebrei o material escolar da amiga de
Lipsei, apenas para atender aos caprichos da mocinha mais inteligente da turma,
que certamente desejava carregar o universo nas mãos.
Lipsei ficou triste tanto pela amiga como por constatar que eu era uma
pessoa assim. E ao descobrir o que eu havia comprado com aquele ato,
desapontou–se ainda mais.
Talvez ela visse minha farsa como uma tentativa de humilhá–la. Eu pedi que
outra pessoa fizesse um robô para mim. Niapam fez um robô magnífico em
apenas um dia, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. E Lipsei... nunca
conseguiu montar um robô inteiro.
Eu não aguentava mais aquela situação. Dediquei–me a construir outro robô
para mim nos próximos dias: JJ04. Em uma semana ele ficou pronto e devolvi o
PP01 para Niapam.

398
Fábula dos Gênios

– Vai amarelar só porque está com pena da pior aluna da classe?


– Eu decidi que desejo conquistar as coisas por meus próprios méritos.
Obrigada pela ajuda, Niapam, mas agora você não é mais necessária.
Obviamente ela sentiu–se ofendida. Por saber fazer robôs brilhantes, ela via
os andróides e máquinas dos outros como lixo.
Eu me desculpei diante de toda a sala e dos professores. Apresentei a todos
o novo robô que construí, que superava o meu JJ03. Em vez de ser criticado por
mentir, fui parabenizado pela coragem de confessar meu erro diante de todos e
começar outra vez.
Perdi meu grampo e tive que refazer algumas provas. Mas eu me sentia
muito mais leve e aliviado. Era bom receber elogios por algo que fiz sozinho,
mesmo que não fosse uma grande ovação. Assim aprendi que vale muito mais
um pequeno elogio sincero por uma tímida conquista minha do que ter o
mundo me parabenizando por um feito espetacular atribuído a mim, mas que
não era real.
Ainda assim, Lipsei não sorriu. Ela ainda me olhava feio nas poucas vezes
que percebia minha presença.
– Ela está com inveja, T. Ela viu que até esse segundo robô feioso que você
construiu supera em muito o dela. Viu como ela não é tão boazinha como você
pensava?
Não achei isso errado. Era normal que as pessoas sentissem inveja às vezes,
principalmente se a pessoa era mau caráter, como ela achava que eu era. Eu não
podia fantasiar Lipsei como uma menina ingênua, gentil e perfeita. Claro que ela
tinha defeitos. Ela não ficava apenas triste por si e pelos outros, como se fosse a
grande redentora do mundo e aceitasse se sacrificar por todos.
Lipsei também era um ser humano e sentia raiva e inveja. Devia invejar a
mim, Niapam e até as suas duas amigas que se saíam bem melhor que ela.
Talvez ela estivesse cansada que os outros sentissem pena dela.
Eu queria ajudá–la, mas descobri que ela tinha outro defeito: orgulho.
Queria conseguir tudo sozinha, sem ajuda. Pensando bem, ela era realmente
incrível.
A pior aluna da classe era a pessoa que eu mais admirava, pela sua
determinação. Ela não desistia. Embora chorasse e se enchesse de doces para
esquecer, embora não tivesse força de vontade para ler muitos livros, assistir
aulas ou estudar, ela continuava tentando. Acreditando. Como num sonho.
Eu não devia comparar as pessoas como se elas pensassem da mesma forma
e tivessem a mesma percepção de mundo. Niapam era uma chata, mas para ela
estudar era fácil e natural. Para mim não era tão difícil assim assistir a uma aula,
mas Lipsei ficava sofrendo, desejando que a aula terminasse logo, como se cada
dia fosse uma tortura.

399
Wanju Duli

Isso significava que cada mínimo avanço que Lipsei fazia em seu robô
defeituoso era um mérito mais complexo e espetacular do que se Niapam
construísse vinte robôs no mesmo período.
Cara, que complicado. Claro que eu também não sabia nada da vida de
Niapam para julgá–la. Ela era tão inteligente, mas tão invejosa e mal educada.
Mesmo sendo a primeira, por que ela não estava feliz? E por que raios ela
invejava até a pior aluna, mesmo sabendo que ela não era e nunca seria uma
ameaça?
Lipsei, mesmo com todas as derrotas, tentava ser gentil com todos. Por
outro lado, Niapam fez questão de construir robôs a pedido de muita gente nos
meses seguintes, apenas para aumentar seu prestígio.
O resultado não foi de acordo com seus planos. Dois meses depois, um
colega nosso chamado Suul Gaecer conquistou o grampo dourado, roubando
dela o primeiro lugar.
Suul já era o segundo lugar há muito tempo e se destacava cada vez mais em
competições de robótica mágica, as quais Niapam não participava por se achar
suprema demais para se envolver com as batalhas da “ralé”. Pois foi exatamente
essa experiência que fez com que Suul passasse dela. Além do ligeiro descuido
de Niapam com as notas, já que estava construindo tantos robôs ultimamente.
Niapam ficou irada! Eu ainda não sabia a que ponto poderia chegar a fúria
de alguém. Nos dias seguintes ela foi vista com mais quatro colegas nossas, que
também eram terríveis, bolando planos mirabolantes para tentar acabar com
Suul.
Suul era muito gente boa. Ele sempre ajudava a galera nas dúvidas. Em
alguns bimestres ele chegou a perder o 2º lugar e cair para 3º ou 4º apenas
porque ficava ajudando os alunos com dificuldades. Ele não se importava tanto
com grampos.
– O mais importante é ajudarmos o grupo. Um país só se desenvolve
quando há o foco no desenvolvimento coletivo e não na competição entre
indivíduos. Eu não sou superior a ninguém por causa de notas. Cada pessoa tem
seus pontos fortes e eu sempre aprendo muito cada vez que ensino. Ao mesmo
tempo, me sinto ajudado por todos e é muito gratificante.
Niapam detestava Suul cada vez mais, principalmente porque ele era
certinho e fazia esses discursos polidos. Além de ter consciência política e ser
tão prestativo, estava sempre sorrindo e, segundo ela, realizando “gestos
gratuitos de gentileza” somente para ser elogiado.
Ele era um cara popular. Todos gostavam dele. Ele tinha muitos amigos e
admiradoras. Muitas das meninas da nossa sala gostavam dele, dizendo que era
perfeito: bonito, inteligente e gentil.

400
Fábula dos Gênios

– Pessoas assim precisam morrer. Não me enrole, T. Eu sei que você gosta
daquela mula da Lipsei. E eu já vi o Suul dando sorrisinhos para ela. Então, vai
me ajudar a destruir o sujeito que está dando em cima da sua musa feia e burra?
– Ele é gentil com todo mundo. Não acho que ele esteja interessado na
Lipsei...
– E se ela estiver apaixonada por ele? E aí, vai permitir?
Aquilo era um perigo. Se tantas colegas nossas gostavam dele, era natural
concluir que provavelmente Lipsei sentisse o mesmo. E agora que ele tinha o
grampo dourado, seria disputado.
– Me desculpe, mas não vou me envolver mais nas suas sujeiras.
– Bundão.
Eu não imaginava que ela jogaria tão baixo.
Ela reuniu as suas quatro amigas imbecis para desafiar o Suul. Mas fez tudo
isso secretamente. Não foi uma disputa limpa. Exigiram que ele duelasse de
olhos vendados, mãos e pés amarrados. Naquele dia eu descobri que Suul
também era um pouco orgulhoso, pois ele aceitou esse desafio absurdo.
O improvável aconteceu: Suul venceu a batalha mesmo naquelas condições,
lutando contra cinco magas fortes. Ele tinha mais experiência em prática do que
em teoria, diferente de Niapam.
Mas em vez de soltar Suul depois de sua vitória, Niapam resolveu se vingar.
Amarrou Suul num poste e amordaçou–o. A batalha foi à noite. Ela tirou todas
as roupas dele e quebrou seu robô. Deixou–o assim por toda a madrugada,
naquele frio.
Na manhã seguinte, houve uma grande confusão. Niapam foi imediatamente
expulsa do colégio. As quatro meninas levaram suspensão, por compactuar com
aquele ato. E Suul, sentindo–se humilhado, saiu do colégio.
No meu ponto de vista, foi ele quem humilhou as cinco, vencendo uma
batalha difícil naquelas condições. Mas Suul me disse uma coisa muito estranha
quando tentei persuadi–lo a permanecer.
– Eu gostava da Niapam. Acho que só peguei o primeiro lugar para
impressioná–la. Eu acho que o mundo é todo errado. Ou a cabeça das pessoas.
Não posso continuar aqui.
– Mas... que porra!
O pessoal ficou assustado com o que aconteceu. Subitamente, o grampo
dourado virou símbolo de medo. Quem é que tinha coragem de se sair bem nos
estudos para depois ser destruído pelas mocinhas assassinas? Tinham mandado
uma delas para fora, mas é claro que havia mais discípulas da infeliz lá dentro
daquele colégio de loucos.

401
Wanju Duli

– Meu... as garotas são piradas! Elas não somente acabam umas com as
outras, mas ferram os caras que se metem no caminho delas também. Puta que
pariu.
– Eu não vou deixar de disputar o grampo dourado só por causa de uma
besteira como essa. Agora que os dois se mandaram, eu ou vocês temos alguma
chance.
– Essa notícia vai para o “Mexericos da Tec”, pois vai dar ibope.
Aquilo chegou aos ouvidos de Sovishka e seu bando. Teríamos muito a
pensar durante as férias.
No ano seguinte, quem estreou com o grampo dourado foi o próprio
Sovishka. Ele desafiou qualquer um a aplicar bullying nele.
Não sei se consegui deixar claro qual a importância desse cara. Sovishka é o
editor do jornal mais popular que circula no nosso colégio. E de repente ele
virou notícia. Todo mundo curtia o que ele escrevia. Improvável que tivesse
muitos inimigos. Ele era respeitado.
Naqueles tempos de confusão, conversei bastante com Alburni. Ele também
estava assustado com o rumo da situação.
– O cara que conquistou o grampo dourado no 12º grau também teve o
robô destruído. Está virando tradição agora. Antigamente você era admirado
quando tinha o grampo. Agora é odiado!
Construir um robô bem feito era barra pesada. Principalmente se houvesse
arquivos e magias importantes nele. E se você o tivesse desde a infância, repleto
de memórias, e chegasse um desgraçado para matá–lo só porque você conseguiu
o maldito grampo?
E eles não tinham honra. O 1º lugar não era desafiado por um só mago. Eles
chegavam em bando, quebrando tudo. Patético.
Aparentemente, Niapam só plantou a semente. Os nossos colegas babacas
se ocuparam de regá–la e fazê–la florescer. Aquele costume insano estava se
multiplicando como um vírus.
Os professores até tentaram intervir com ameaças e novas regras que não
serviam para nada. Quando existe um acordo entre os próprios estudantes é
algo difícil de ser quebrado pela autoridade. Principalmente pela força. Isso
somente os deixaria mais irados.
Lipsei foi reprovada. Não éramos mais colegas. Eu ouvi falar que na turma
dela a situação estava ainda mais espinhosa.
– Meninas, eu estou com medo. Na minha turma, além de maltratarem o
aluno do grampo dourado, eles também rebaixam os que não têm grampos.
– Que coisa mais idiota. Agora você tem que cuidar para não ser nem o
melhor e nem o pior. Isso é um incentivo para ser uma pessoa medíocre? Não
entendi qual é a deles.

402
Fábula dos Gênios

– Toma cuidado, Lili. Se fizerem qualquer coisa a você, comunique


imediatamente aos professores.
Eu também temi por ela. Eu já era medíocre naturalmente, então não
precisava temer por mim mesmo. Não haveria nenhum risco de eu me tornar o
melhor ou o pior.
No outro dia, vi Lipsei chorando contando como tinham humilhado o
menino do grampo dourado da turma dela. Ela contou que ele havia chorado
muito quando mataram o robô dele.
Em compensação, houve uma vitória do nosso lado: Sovishka foi
surpreendido por nada menos que dez estudantes no dia anterior. Ele derrotou
todos eles, manteve sua honra e seu título. A manchete do jornal de S na manhã
seguinte foi uma mensagem furiosa, desafiando a todos. Mas não foi uma
explosão de fúria qualquer. Havia primor estético e linguístico naquela explosão,
mostrando uma genialidade corajosa.

“Eu não chamo pelos covardes e sim pelos guerreiros da magia. Aquele que possui não
somente um autômato de metal, mas que também controlou o seu espírito para ser inviolável
diante da espada de ódio dos desgraçados”.

Mas eu não estava preocupado com o famoso editor do jornal. Ele sabia se
virar. Eu não conseguia parar de pensar no desespero que Lipsei sentiria se lhe
tirassem o pouco que ela possuía: aquele robô torto que sequer sabia falar ou se
equilibrar sozinho. Sinceramente, acho que eu mataria o cara que tirasse aquele
tesouro dela.
Muitas vezes eu a vi abraçando aquele robozinho, chorando com ele.
Dizendo o quanto o amava. Ele era especial para ela. O relacionamento dela
com o seu robô espírito era diferente dos outros magos, que substituíam seu
velho robô quando elaboravam um melhor. Para ela, o seu era único e melhor
que qualquer robô avançado. Porque foi feito por ela. E eles tinham uma
história juntos.
– Tchuu, eu te amo. Você é meu melhor amigo. Jamais iremos nos separar.
Por você eu entrego meu mundo e meu coração. Te dou até esse docinho, veja
só. Porque um dia você entenderá que, apesar de todas as injustiças, vale a pena
existir nesse lugar. Sempre lute por isso. Não se renda! Eu vou ser forte. E você
também.
– Bzzzttt.
Eu me comovia muito cada vez que via aqueles dois sozinhos, em segredo.
O robô dela apenas emitia uns ruídos esquisitos e parecia que se desmontaria a
qualquer momento. Era algo delicado. Assim como o coração da garota que eu
amava.

403
Wanju Duli

“Eu quero protegê–la”. Mas como, se eu nunca tive a coragem de dizer uma
palavra diante dela? Nesse sentido, até o robô dela estava acima de mim.
Quando eu a via, eu não era capaz de fazer o menor som, por covardia.
Lipsei não era fraca. Era a pessoa mais forte do mundo.
Alguns dias depois, a notícia do jornal “Mexericos de Tec” surpreendeu–me
enormemente:

“Chegou aos ouvidos deste que vos fala a espetacular notícia de que o famoso Cromo
D’aship colocou os pés em nossa terra há alguns meses. Ele está vivo! Eu e meus homens
iremos fazer–lhe uma visita no hospital e retornaremos com notícias”.

S não divulgou o nome do hospital, ou aquilo lotaria de magos curiosos.


Posteriormente ele divulgou que Cromo era um garoto de 11 anos que foi
deixado vivo pela misericórdia da destruidora SS. Sovishka parecia fascinado ao
conversar com um construtor ao vivo. Embora nós fizéssemos pouco caso dos
construtores, era muito exótico conversar com um raro sujeito que possuía um
gênio. Principalmente um que o possuía por nascimento.
A história contada por Cromo comoveu a todos. Ele narrou a batalha e
Sovishka publicou–a em seu jornal. No mesmo dia, o único assunto em voga era
os destruidores. De repente nossas brigas por grampos se tornaram pouco
interessantes. Quando havia ocasiões de guerras entre povos, a galera se unia.
– Então o poder dos destruidores superou mesmo o dos Deuses? É oficial?
– Sim, F. Agora até eu tenho vontade de ver esses desgraçados ao vivo.
– Eles já pisaram aqui uma vez. Éramos muito novos, mas nossos pais se
lembram. Foi uma aliança entre construtores e destruidores para impedir uma
guerra com Samerre.
– Então hoje em dia os Deuses estão putos com os destruidores? Aliás, qual
é a diferença entre “Deuses” com letra minúscula e maiúscula?
– Eu tenho o maldito grampo, mas não sei de tudo, meu. Você pode grafar
das duas formas, mas isso também depende da época de prestígio. Há dez anos
era comum chamarem os Deuses utilizando letras maiúsculas, pois eles eram os
mais fortes. Depois os destruidores se fortaleceram e começaram a chamá–los
com letra minúscula. Atualmente já estamos metendo maiúscula de novo, talvez
pelo medo.
– Uma vez eu vi grafarem “Destruidores” com letra maiúscula.
– Merda. Isso não é bom. Os Deuses matam, mas os destruidores realizam
massacres. Não duvido que em breve se inicie uma guerra entre Deuses e
destruidores para provar quem é o melhor.
– Ou seja, uma guerra para provar qual será o povo chamado com letra
maiúscula. Que imbecis.

404
Fábula dos Gênios

– Nós não somos muito melhores que eles brigando por grampos.
A entrevista com Cromo vazou. Não somente em outros jornais de Tecraxei.
Ela chegou na internet e, de lá, em Samerre. Já em Desmei pouca coisa chegava.
A não ser que fosse pelas ondas cerebrais da destruidora monstro.
Eu nunca tinha visto um destruidor ou um Deus. Talvez eles nem existissem.
Para mim, os destruidores sempre tinham sido uns pobres mortos de fome do
outro lado do mundo, então era extraordinária a notícia de que de repente eles
tinham se tornado os magos mais poderosos!
Quanto aos Deuses, diziam que em Samerre só habitavam sacerdotes. Então
onde estavam os imortais? Aparentemente os destruidores mais poderosos não
saíam do topo das montanhas. Será que com os Deuses ocorria algo parecido?
Eles moravam num local secreto e quase inacessível?
Com toda aquela agitação, um assunto que há muito tempo não era debatido
voltou a entrar na pauta de discussões: quem era o maior mago do mundo
atualmente?
– O maior mago vivo ou morto? Pois isso faz diferença. Dizem que os
destruidores estão praticamente mortos, são como zumbis, com os malignos
devorando seus corações. Então eles entram na conta? E os Deuses são imortais,
então será que isso vale também? Acho que só faz sentido essa pergunta se
compararmos magos vivos que possuam a duração de uma vida humana normal,
sem truques.
– O truque a que você se refere se chama magia. Se o mago virou um
morto–vivo ou adquiriu imortalidade através de poderes mágicos é claro que
isso não é sujeira. É genuíno, obtido por meio de sabedoria e poder.
– Mas os Deuses já não nascem imortais? Não se esforçaram, então eles
estão fora do ranking.
– Construtores e destruidores já nascem com gênios. E aí? Vai deixar fora
todo mundo que teve algum benefício? Se for assim, nós possuímos implantes
eletrônicos no corpo. Estamos fora?
– Meninas, eu... não estou preocupada em saber quem é o melhor mago do
mundo. Eu já rodei duas vezes. Não posso rodar de novo ou serei expulsa do
colégio.
E, mais uma vez, não tive coragem de oferecer–me para ajudá–la.
Para completar, vazou a informação sobre o hospital em que Cromo estava.
Houve um grande tumulto na entrada, pois todos queriam vê–lo. Aquela tarde
foi turbulenta. Somente a noite a situação se acalmou.
Eu mesmo tinha ido lá, pois tinha vontade de falar com Cromo. Por isso, eu
aguardei quase até a madrugada. Só que o horário de visitas já tinha terminado.
Sentei–me num sofá da sala de espera, desapontado. Já estava pensando em
ir embora, quando avistei Lipsei.

405
Wanju Duli

Eu estava sozinho com ela na sala de espera. Será que ela também queria
falar com Cromo?
Ela ficou tímida quando me viu e começou a ler uma revista. Será que ela
não estava mais braba comigo?
Era a primeira vez que eu a via sem o uniforme do colégio. Ela estava com
uma fita no cabelo e um vestidinho. Mais encantadora do que nunca. E tímida
assim, toda encolhida, fazia meu coração pulsar.
Cara, eu queria conseguir falar alguma coisa, mas a voz travou. Como é que
eu ficava nervoso daquele jeito na frente daquela menina? Logo ela, que era toda
meiguinha. Bem, talvez fosse exatamente por isso. Eu tinha medo de dizer ou
fazer algo que a entristecesse. Eu sabia que Lipsei era muito sensível.
Peguei uma revista também, mais para me esconder. Eu ia fingir ler e daria
umas espiadas em Lipsei. Enquanto lia, ela mordia a ponta do dedo indicador,
toda concentrada. Que bonitinha!
Aqueles lábios deviam ser tão macios. Eu estava enlouquecendo vendo
aquela cena. Aquela boquinha me fez imaginar como seriam os lábios da vagina
dela. Mas quando eu pensei nisso levei um susto e comecei a suar. Meu coração
já estava disparado. Se eu não segurasse minha imaginação eu teria uma ereção.
E Lipsei não estava ajudando, estando de vestido, com aquelas meias longas e
pernas cruzadas.
No instante em que eu me movi no sofá, ela olhou na minha direção. Eu
quase morri, mas disfarcei.
“Fale agora! Diga alguma coisa!”
Não adiantava. Não ia sair.
Por quanto tempo esperamos em nossas vidas para fazer o que realmente
importa para nós?
Uma explosão. A parede foi pelos ares. Sinceramente, eu não sei o que me
assustou mais: o olhar de Lipsei ou aquela explosão que quase arrancou minha
vida.
Eu estava meio tonto. Havia um pequeno corte no meu braço e na minha
testa. Consegui me proteger.
Tirei o pó da roupa. Olhei para o lado. Como eu pude proteger a mim
mesmo e deixar Lipsei se defender sozinha? Eu somente cometi aquele erro
porque tudo tinha acontecido muito rápido.
Felizmente, ela não se feriu. Estava sentada no chão. Havia protegido o
corpo com os braços. Eu precisava apressar–me e perguntar se ela estava bem.
Mas antes disso, uma luz quase me cegou. Uma mulher alta, de longos
cabelos negros repartidos ao meio, entrava pela parede destruída.

406
Fábula dos Gênios

Ela usava um vestido vermelho e jóias de ouro. Era deslumbrante! Os lábios


avermelhados, os olhos brilhantes e rubros. Sua beleza era tão estonteante que
ela não parecia ser humana.
As curvas de seu corpo eram perdidamente sensuais. Os seios fartos e
redondos. Em nada se parecia com o corpo quase infantil de Lipsei.
Por um momento, a beleza daquela mulher me dominou a tal ponto que eu
não entendi e nem quis entender o que estava acontecendo. Até que eu
despertei de meu transe.
– Mago robótico, leve–me até o construtor chamado Cromo.
A voz grave feminina que saiu daqueles lábios ressoou no meu corpo inteiro.
O poder de sedução daquela moça era tão impressionante que eu cheguei a me
perguntar como um dia eu pude achar sensual a voz aguda de Lipsei...
Mas eu ainda conservava um pouco de razão.
– Quem é você? Por que quebrou nosso hospital? O que quer com Cromo?
Você não é de nosso povo.
Eu tremi quando disse isso. De repente me pareceu óbvio. Se ela havia
realizado uma entrada rude como aquela, estava claro que não foi lá somente
para conversar.
– Eu sou a Deusa do Infinito. Vim até aqui para matar Cromo D’aship.
Senti um frio na espinha. Aquela mulher não estava de brincadeira. O poder
da voz dela, o perfume que ela exalava, sua imponente presença... eu não
duvidei das palavras dela sequer por um instante.
– Por que quer matá–lo...?
– Isso não lhe diz respeito. Mostre–me o caminho ou arranco sua vida.
Eu não consegui dizer mais nada. Ela falava meu idioma com perfeição.
Tudo nela era perfeito. Então, ela só poderia ter razão, certo? Eu devia liberar–
lhe passagem. Eu nem mesmo conhecia Cromo. Eu não iria morrer por ele.
Contudo, Lipsei pôs–se de pé.
– Não permito que o mate. Vá embora!
– O que você tem de coragem, lhe falta em poder mágico. Saia da minha
frente, garotinha. Ou você possui alguma predileção especial pela morte?
Ela chamou seu espírito robótico. Tchuu flutuou todo torto diante de Lipsei.
A Deusa riu com gosto.
– O que é isso? Ainda quer lutar, mesmo sendo assim tão fraca?
– Eu vou proteger Cromo. Ele lutou bravamente contra os destruidores e
agora está doente. É covardia matá–lo assim!
Dessa vez a Deusa não gostou do que ouviu. Sua expressão tornou–se
assustadora.
– Nunca mais ouse mencionar os destruidores diante de mim!

407
Wanju Duli

Eu estava tão apavorado que não era capaz de me mover. E ao ver a Deusa
assim tão furiosa, meu corpo congelou–se.
Aqueles brincos com o símbolo áureo do infinito brilharam. O símbolo
misterioso em sua testa também.
A Deusa ergueu sua mão direita, com suas longas unhas vermelhas. Tocou
os dedos no rubi de seu bracelete.
Surgiu no ar uma fórmula matemática dourada, harmoniosamente decorada
pela lemniscata.
Lipsei caiu no chão. Eu levei um susto enorme! Corri até ela e segurei–a em
meus braços.
– Ela ainda não está morta. Você pode salvá–la se liberar a minha passagem
e entregar–me em mãos o Grimório da Automação. Chegou ao meu
conhecimento que estudantes de sua faixa etária possuem acesso a ele.
– Salve minha amiga! O que pretende fazer com nosso grimório?
– Onde está Cromo? Eu não sinto a presença dele! Esse hospital possui
dezenas de quartos. Passe–me a informação e o grimório imediatamente ou a
mato!!
Ela estava ficando irada de novo. A vida de Lipsei estava em risco. Eu não
podia me demorar.
Liguei meu celular.
– Eu possuo o grimório eletrônico. Passe–me seu número de celular e eu
envio.
– Você está zombando de mim, infeliz? Dê–me esse aparelho!
Dei a ela o meu celular.
– Cromo está na sala 88.
Quando eu disse isso, a Deusa estendeu a mão, para que eu lhe entregasse o
corpo de Lipsei. Assim ela poderia curá–la.
Eu permiti que a Deusa a segurasse. Ela tocou na testa de Lipsei. No
instante seguinte, derrubou o corpo dela no chão.
– Agora sim, sua amiga está morta. E não há magia nesse mundo que a faça
voltar a vida.
E ela sorriu. Eu apressei–me em segurar Lipsei outra vez. Aquilo não
poderia ser verdade.
Não havia o menor sinal de vida no rosto dela. Ela não respirava mais.
– Agradeça por eu poupar sua vida.
A Deusa já ia sair da sala de espera quando eu me levantei e coloquei–me
diante da porta, impedindo–a.
– Saia. Ouço movimentos. Alguém certamente ouviu a explosão. Não me
faça perder mais tempo, criança.
Eu chamei o meu robô e ataquei–a com ele.

408
Fábula dos Gênios

JJ04, assim como todos os nossos robôs de batalha, era um autômato. Ele
não precisava de controle remoto ou comandos imediatos para executar suas
ações. Eu o havia programado previamente para agir em diferentes situações de
acordo com meu estado de espírito.
Isso significava que meus neurônios estavam conectados à rede neural dele.
Essa era a grande empatia que existia entre o robô e seu senhor.
JJ04 era um robô recente meu e não tínhamos uma conexão assim tão forte.
Mas a minha fúria era tamanha que imaginei que qualquer robô vagamente
conectado a mim alcançaria a frequência daqueles pensamentos e entraria num
modo violento.
Não era somente uma conexão de carne e metal. Os nossos espíritos
estavam relacionados. Isso permitia que minha magia atuasse em modo máximo.
O meu robô traçou no ar um selo feito de fios elétricos que soltava faíscas.
Tentou dar um choque na Deusa. A sua garra tornou–se gigantesca. Mas diante
dela meus conhecimentos de ciências eletrônicas eram inúteis.
Eu pensei que minha fúria pudesse destruí–la, mais que qualquer coisa. Mas
naquele tempo eu ainda não sabia o que era odiar.
A Deusa retirou o seu brinco do infinito, que agarrou o meu robô,
aprisionando–o. A lemniscata o espremeu e JJ04 foi destruído. O cadáver de
peças metálicas espalhou–se pela sala.
Ela me segurou pela blusa.
– Tolinho. Se não se afasta por mal, o fará por bem.
Ela me deu um beijo nos lábios.
A mulher que havia assassinado a garota que eu amava tinha me dado um
beijo na boca. Aquilo era quase imperdoável. Ela queria me torturar.
Fui embriagado pelo odor paradisíaco do perfume dela. O gosto daqueles
lábios era indescritível.
Mas ela logo me lançou no chão após o beijo, com um empurrão violento.
Eu desejei morrer. Eu chorei. Eu sentia um desejo louco por aquela mulher.
E, ao mesmo tempo, era a pessoa que mais despertava meu ódio. Aquela
confusão levou–me a lágrimas assim: de desespero, dor, desejo, paixão e morte.
Mas quando ela cruzou aquela porta, algo aconteceu. A Deusa do Infinito
gritou. Foi um grito genuíno de dor.
Tchuu, o robô de Lipsei, havia agarrado a Deusa pelas costas. Ele segurava
seu próprio coração metálico na garra, que possuía um revestimento pulsante de
músculos e sangue.
T69 atravessou aquela garra nas costas da Deusa, trespassando seu coração e
saindo pelo outro lado. As veias e artérias, misturadas aos fios elétricos,
fundiram–se ao coração dela.

409
Wanju Duli

A Deusa lançou o robô para longe. O buraco em seu peito imediatamente


passou a regenerar–se, como uma máquina de lavar, mas a dor parecia ter sido
real.
– Eu tenho uma mensagem para Cromo. Mande que se dirija imediatamente
a Samerre. Tenho assuntos inacabados com ele. Se ele fugir, irei persegui–lo.
Ela recolheu meu celular do chão. Tinha a posse do grimório. Formou uma
parede de energia que cegou meus olhos. Quando consegui enxergar novamente,
ela não estava mais lá, ou em lugar algum perceptível para mim.
Apressei–me em correr até o corpo de Lipsei novamente. Quando vi Tchuu
mover–se tive um resquício de esperança de que ela ainda estaria viva.
Quando vi o corpo de Lipsei, havia um enorme buraco em seu peito, no
lugar do coração. Sangue por todos os lados.
O RP de Lipsei havia sido programado com uma magia poderosa para o
instante final. Tchuu fundiu seu coração ao dela e, com um breve instante de
consciência, atacou.
Será que, naqueles últimos segundos, era a própria Lipsei quem atacava? Eu
provavelmente jamais saberia.
Agora já era tarde. Como a Deusa do Infinito falou, não havia qualquer
magia possível de trazer Lipsei de volta. E seu robô havia partido com ela.
Eu também perdi JJ04. Eu tinha perdido tudo o que possuía valor para mim.
Então, qual era o saldo final da minha vida? Valeria a pena prosseguir?
Não havia mais espírito em Lipsei ou em JJ04. Mas eu me surpreendi
quando notei que o espírito de T69 estava lutando para permaneceu envolto
àquele coração de metal e carne.
Tchuu estava em pedaços. A cabeça separada do corpo e da garra. Mas ainda
havia alguns botões piscando em sua cabeça, como se ele desse o máximo de si
para permanecer vivo. Desesperadamente.
Eu me emocionei. Como eu poderia sequer cogitar abreviar minha existência
quando havia seres como Tchuu que lutavam tão bravamente? A minha vida
ainda tinha um alto valor: eu poderia usá–la para salvar aquela criatura.
Segurei T69 nos braços, envolvendo–o com todo meu ser: meu corpo deu
calor a ele. As batidas do meu coração uniram–se às dele, assim como o
compasso da minha respiração. Até que nossas conexões neurais se encaixaram.
Foi difícil. Foi doloroso. Eu suei para fazer aquilo. Toda a força de vontade
que eu consegui reunir estava ali.
Eu era oficialmente o novo senhor de Tchuu. E envolto em lágrimas e
sangue, eu jurei que jamais teria outro robô em minha vida. Eu iria sacrificar–me
por T69 se fosse necessário, pois ele seria toda a lembrança que eu teria da
garota mais especial que conheci.

410
Fábula dos Gênios

Eu também jurei que um dia eu o faria falar. Porque eu queria ouvir a voz de
um ser que conhecesse Lipsei melhor do que qualquer outro: todos os seus
sonhos, pesadelos, medos e desejos. Eu queria saber de tudo. Muitas memórias
dela estavam lá.
Logo, pessoas começaram a entrar na sala, perguntando o que havia
acontecido. Todos estavam assombrados. A parede estava caída e havia dois
cadáveres no chão: um robótico e um humano.
Solicitei que um dos médicos repassasse a mensagem para Cromo, pois eu
não estava em condições psicológicas para fazer qualquer outra coisa que não
fosse abraçar T69 fortemente.
Comuniquei a todos que Lipsei havia se sacrificado para proteger Cromo. E
que eu não fui capaz de protegê–la.
Quando eu disse isso, chorei de novo. Segurei na mão dela uma última vez
antes que retirassem o cadáver.
Ela estava mais bela do que eu jamais a vira. Não só as roupas, mas o rosto:
os lábios dela se entreabriam num quase sorriso. Ela sabia: ela morreu sabendo
que seu robô realizaria aquele ato último para vingá–la. Ela planejou tudo.
No final, eu descobri porque Lipsei tinha tanta dificuldade em aprender
magia: ela era tão inteligente no coração, que não era capaz de controlar sua
razão da forma que a escola ensinava. Ela possuía uma magia forte, mas era algo
totalmente seu. Algo que ela conquistou e fortificou através do seu imenso amor,
e não pela lógica.
Foi essa força que atravessou o coração da Deusa. Aquela que tinha poder
infinito. Lipsei só foi capaz de colocar–se contra ela devido ao seu amor infinito.
Eu precisava consertar Tchuu.
Eu não queria depor ou dar satisfações sobre o ocorrido. Só queria que me
deixassem em paz.
Faltei todas as aulas na semana seguinte. Permaneci trancado no meu
laboratório pessoal, curando T69. Eu iria realizar o mínimo de modificações
possível, pois queria que aquele robô continuasse a ser tão fiel com fora
originalmente. Eu iria apenas repará–lo, utilizando umas poucas peças minhas.
Ele tinha coração metade humano e metade robótico. Isso significava que
uma parte de Lipsei estava nele? Eu não sabia dizer. Eu não queria forçar o robô
a falar pelo método convencional, pois isso iria alterar a programação de Lipsei.
Por isso, decidi que seguiria o mesmo método dela: tentando ensinar o
robozinho aos poucos, como se fosse uma criança, resgatando memórias de
outra vida.
Em alguns momentos cheguei a pensar a apagar todas as fotos de Lipsei dos
meus computadores. Ou zerar toda a memória de Tchuu, pois seria doloroso
lembrar.

411
Wanju Duli

Mas, no fundo, eu não queria esquecer. Ainda era tudo muito recente.
Fiquei um pouco feliz pela primeira vez depois de tudo quando consegui
consertar Tchuu com bastante precisão. Fiquei orgulhoso de mim mesmo. Eu
nunca havia tomado tanto cuidado em reparar um robô antes. Isso porque eu
estava segurando uma preciosidade. O que os outros viam como um monte de
sucata, eu via como o tesouro mais valioso.
Fui ao enterro de Lipsei. Mas só fiquei à vontade para conversar com ela
quando nós dois ficamos a sós.
Sentei–me diante do túmulo. Tchuu flutuando ao meu lado. O cemitério
estava deserto. Apenas o barulho do vento.
– Lipsei, eu te amo.
Finalmente eu consegui dizer. Tive coragem, após quase quatro longos anos.
“Você é desprezível”. Essa foi a única frase que ela já disse para mim.
Aquilo doía, mas ao mesmo tempo eu ficava contente ao lembrar que ela já
tinha falado comigo um dia. Ela já soube da minha existência. Já olhou para
mim. Eu também fiz parte de um pedacinho das memórias dela e de sua vida.
Afinal, o que é a vida? Eu entendi que não havia nada para temer. Eu
precisava fazer tudo o que eu desejasse. Por medo, deixei de dizer a ela que eu a
amava e que queria protegê–la. Que ela não devia chorar, pois eu iria ajudá–la.
Ela poderia contar comigo.
– Eu juro que a partir de agora viverei intensamente e com sinceridade,
assim como você. Seguirei o meu coração, sem medo de sorrir ou chorar. Pular
ou dançar. Agora eu vejo como tudo pode ser lindo agora que estamos juntos. E,
ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes. Mas... você me deixou um
presente.
Fitei T69 com ternura; aquele robô torto e esquisito que não parava de
piscar e chacoalhar. Ela dedicou–se tanto a ele. Eu sabia que ele não era para
mim, mas embora eu não tenha conseguido salvá–la, eu pude resgatar uma
porção do coração dela. E eu iria proteger aquele coração com todas as minhas
forças.
Mas para isso eu precisava me tornar forte.
Deuses, destruidores, guerra, poder... eu não era um grão de areia no meio
disso tudo?
Não, eu não era.
O tempo todo eu estava me comparando com as outras pessoas. Quem
tinha mais grampos na gravata? Quem era capaz de construir o robô com o
maior número de funções? Enquanto eu e todos os outros estudantes de
Tecraxei permanecíamos perdidos nesses jogos tolos, somente Lipsei sabia o
que realmente importava.

412
Fábula dos Gênios

Eu tinha certeza de que nenhum dos meus colegas ou professores, mesmo


aqueles que possuíssem os robôs mais potentes, teriam sido capazes de tocar
num fio de cabelo da Deusa do Infinito. Isso porque a única coisa infinita nos
corações deles era a vaidade.
No colégio os professores davam para Lipsei nota baixa porque eles não
eram sábios o bastante para captar a profundidade da inteligência daquela garota
incrível.
Por causa disso, eles a tinham feito chorar tantas vezes. Mas a confiança dela
jamais se abalou. Ela resolveu não se importar com o que os outros diziam e
seguir seu próprio caminho. Ela devia sentir que estava avançando cada vez
mais na magia. Quem não sentia era somente aquele bando de eruditos
presunçosos, que pensavam ter o poder de classificar a dimensão da capacidade
das pessoas com números.
Um dia, quem sabe, eu reencontrasse alguns deles. Mas eu decidi que não
desejava mais permanecer naquele país que, embora possuísse grimórios tão
lindos, tinha pessoas tão frustradas e perdidas.
Eu era uma dessas pessoas. Eu desejava me dirigir para onde estava a
sabedoria e o poder. Concluí que não era naquela terra. Então eu deveria partir.
– Adeus, amor de minha infância. Meu primeiro amor. Aprendi muito cedo
a dor da morte, mas, juntamente, entendi o objetivo de minha existência. E
agora, diante de teu túmulo, realizo um juramento sagrado, que devo perseguir
ardorosamente até que esse corpo junte–se ao teu na terra e meu espírito
reencontre o teu nas dimensões.
Ajoelhei–me, colocando uma das mãos na terra.
– Eu, Taha Vorta, juro que hei de tornar–me o mago mais poderoso do
mundo. Um dia chegará ao conhecimento do mundo que nem os destruidores e
nem os Deuses são os mais fortes. Que um mago da tecnologia os superou. Pois
graças à união do coração metálico e do coração de carne eu entendi que não
somente a vida e a morte estão conectadas, mas também toda a criatura viva e
não viva. Os minerais, toda a substância, tudo isso também não respira? Então
por que um autômato seria menos vivo ou menos inteligente que minha
existência? Somos apenas feitos de materiais diferentes, mas os mesmos átomos
e partículas nos unem. Sobretudo as partículas de karma e forças desconhecidas
que, embora a razão não entenda, o coração sente. E a alquimia de todas as
forças, iguais e contrárias, gera a magia.
E, com o peso daquela promessa no coração, eu parti daquela terra. Viajei
com T69 para bem longe.
Eu tinha outro segredo. E esse segundo juramento eu fiz para mim mesmo,
pois não queria perturbar a doce Lipsei com lembranças de ódio: eu, como o
mago mais forte, vingaria minha amada. Eu desejava a cabeça da Deusa do

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Wanju Duli

Infinito. Um dia eu iria entregar a cabeça dela como oferenda para ela, naquele
mesmo túmulo.
Afinal, por que Cromo D’aship ficou tão famoso? Porque era um construtor
mexendo com magia tecnológica. Por que a destruidora Sassa Soma era vista
como quase invencível? Novamente, devido ao contato com nossa magia. E até
mesmo uma Deusa veio atrás de nosso grimório.
Havia algum grande segredo por trás daquilo tudo. Estavam escondendo
alguma coisa. A magia não rodava em torno de Samerre ou do mundo
escondido dos Deuses. O centro de tudo era Tecraxei.
Por quê? Eu somente descobriria se saísse de lá e explorasse outras terras:
Sinabil, o país da matemática; Narrara, a terra da literatura; Crava, o recanto dos
adivinhos; Bruznia, onde a beleza era a magia. E muitos outros locais de poder.
Ah, naquele tempo eu sequer sabia que a Deusa do Infinito não era a Deusa
mais forte. Havia outros Deuses muito mais assustadores e de poder
imensurável.
No instante em que fiz a promessa de tornar–me o mago mais forte, eu
jamais imaginei que poderia tornar aquilo realidade.
A verdade era que eu desconhecia minha própria capacidade. Um dia,
quando eu descobrisse até onde poderia chegar o meu poder, eu ficaria
assombrado.
Dez anos e quatro meses depois, aos meus 26 anos, eu me tornei o mago
mais poderoso do mundo. E essa é a extraordinária história de como isso
aconteceu. A história de como os adivinhos de Crava se apavoravam ao
enxergar o meu futuro. A minha jornada com um grupo de amigos de diferentes
países, todos eles cobiçando aquele título.
E como foi que eu o conquistei? Vencendo meu medo de fracassar. Quando
perdi Lipsei, eu prometi a mim mesmo que nunca mais deixaria de falar ou fazer
alguma coisa quando eu ardentemente o desejasse. Então eu decidi buscar a
meta mais difícil de todas. Eu queria provar a mim mesmo que era mais fácil se
tornar o mago mais poderoso do que me declarar para a garota que eu amava.
Eu não tinha mais nada a perder. Iria acreditar firmemente em mim.
Acreditaria ser capaz de realizar qualquer coisa que eu quisesse. Se eu fosse
capaz disso, eu tinha certeza: algo muito especial aconteceria em minha vida.
Algo que superasse qualquer título, fama ou glória.
Sabe o que é a magia? É realizar todos os seus desejos dentro de você, com
alegria genuína e sem arrependimentos, independente do que acontece lá fora. E
a minha maior magia não seria derrotar todos os magos fortes e superá–los em
sabedoria, e sim adquirir o poder de aceitar a morte.

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Fábula dos Gênios

Capítulo 2: Quando meu mundo começa

– Você sabe quem é o mago mais forte do mundo?


– Taha Vorta, é claro.
– Dizem que ele é mais forte que os deuses. Supera até os Destruidores.
– De onde ele é?
– Ele usa roupas e magia dos magos robóticos, mas o poder dele parece de
outro mundo.
– De repente ele é um Destruidor.
– Os Destruidores nunca tiram seus mantos. Vorta não tem gênio. Além do
mais, a maioria dos destruidores têm cabelos pretos. Vorta tem cabelos
castanhos.
– Um construtor?
– Eu já disse que ele não tem gênio. E dá para contar nos dedos quantos
construtores restaram vivos após a ascensão dos Destruidores.
– Poderia ser um sobrevivente buscando vingança.
– Sim, ele quer vingança... contra os deuses. Mas há também quem diga que
ele já foi vingado.
– Seria ele mesmo um imortal? Isso explicaria a dimensão de sua força.
– Ele realmente tem a idade que aparenta. Poder não se mede pelos
ponteiros do relógio. Quem comanda dimensões pode mexer na maquinaria do
tempo, mas isso não significa que o mago irá estender seu tempo nesse corpo.
Os magos mais sábios não possuem tamanha vaidade sobre o corpo de carne a
ponto de desejarem alterar o ritmo da natureza.
– Ele já foi visto em Crava.
– E em muitos outros lugares. Ele é obviamente um mago robótico e se
orgulha tanto de sua terra que não faz questão de esconder a fonte de seu poder,
seja na aparência ou na magia.
Onze anos depois, pessoas comentavam coisas assim por todos os lados.
Se eu sentia orgulho de mim mesmo? Não por isso. Eu sentia por outras
razões. Pessoas comentam sobre o que está na moda. Ser a moda não passava
de um capricho inútil. Cedo ou tarde, eles se cansariam de comentar sobre mim
e arranjariam outras ocupações. Os seres humanos são assim. Ninguém ia me
colocar num altar. Ainda bem, ou eu ficaria incomodado. Era um alívio saber
que aquela fama repentina seria apenas fogo de palha.
A verdade é que as pessoas comuns se preocupam pouco com magia. Eles
só curtem a aparência da magia em jogos ou campeonatos, pois tudo parece
muito bonito e poderoso. Mas a magia real, que envolve cálculos avançados e

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Wanju Duli

pesados, assim como debates ontológicos severos, é muito árida e penosa. Sem
contar os treinos intensos, que exigem alto controle e disciplina do corpo e da
mente. As pessoas não querem algo assim. Preferem as coisas fáceis. Como
comida, que basta aguardar para que seu corpo possa digeri–la. Ser o cozinheiro
mágico é trabalhoso e cansativo.
“Por que Taha Vorta é o mago mais poderoso?” Os leigos não se
perguntavam isso. Apenas acreditavam nas notícias, nos rumores e no
julgamento de outros magos fortes. Era quase questão de fé. “Como ele chegou
lá?” Ninguém sabia tampouco.
O povão só queria um espetáculo para babar, não importava que fosse
incompreensível. Escutar explicações era difícil. Pensar nelas então era um
suplício.
Meu sonho sempre foi ser um cara comum e medíocre ao lado da mulher
que eu amava. Eu teria abandonado a magia por ela. Mas quando ela se foi, eu
precisei desesperadamente de outro objetivo maior pelo qual eu pudesse
abandonar tudo. Para conseguir até mesmo esquecer a dura verdade de que ela
nunca esteve comigo, para começar.
Sempre quando eu critico “o povão”, no fundo eu o invejo. Eu invejo
pessoas que conseguem apenas curtir as coisas simples da vida, sem pensar
muito na dor. Eu não sou a favor da ignorância, mas sou menos a favor ainda
do sofrimento sem explicação. Para superá–lo, eu tive que explicá–lo. E isso só
seria possível investigando a fundo a essência da natureza, fosse nos grimórios
ou na própria magia.
Então, que é ser o melhor mago? E por que ser o melhor? A maioria quer
ser o melhor para ser admirado e pensa que isso se consegue vencendo uma ou
duas dúzias de batalhas mágicas. Não é bem assim. Os caras mais fortes e sábios
meditam nas montanhas por boas razões.
Uma delas é que eles simplesmente não aguentariam a idiotice dos ditos
magos e pseudo magos do mundo e do submundo. Algumas vezes parece que
eles estão participando de um concurso de moda, de dança ou de pirotecnia. Eu
também já fui um mago assim, cobiçando grampos, antes de conhecer a morte.
Ah, meu, eu nunca me incomodei na época em que eu mesmo era um
completo idiota. Muitos magos ficam fortes pela sede de novos desafios, porque
estão entediados. Outros porque necessitam, pois se sentem tristes e vazios. Eu
fiz parte dessa segunda categoria.
Quando Lipsei foi assassinada, eu mergulhei numa profunda depressão.
Eu interrompi meus estudos. Afinal, eu só permanecia a estudar na ECO
por causa dela. Meus planos de trabalhar na mesma empresa que ela queria
também foram por água abaixo. Subitamente, nada mais do que eu fazia tinha
sentido.

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Fábula dos Gênios

Meus pais não eram magos e sempre foram contra que eu estudasse numa
escola de magia. Por isso, minha desistência não trouxe nenhum contratempo.
– Estudar magia não dá futuro. Tente conseguir um emprego de verdade.
– Eu gostaria de partir numa viagem.
– Não irei financiá–lo nisso. Se pretende viajar, vá por conta própria. Mas
não permaneça fora por mais de seis meses, ou os vizinhos começarão a
comentar que meu filho é um vagabundo.
Minha decisão já estava tomada, independente da opinião de meus pais. Eu
precisava daquele tempo longe de tudo.
Eu estava com tanta pressa que viajei com o uniforme do colégio: o chapéu
cinza, a capa bordô. Eu nunca imaginei que esse meu desleixo seria tão
significativo. Muitos anos depois, eu me tornaria conhecido pelos trajes da
Escola Cibernética da Ordem. Se eu soubesse disso, teria pedido para a escola
me pagar comissão, pela propaganda. Onze anos depois, aquela instituição
elevaria muito seu prestígio e seria reconhecida como a melhor escola de
Tecraxei. E tudo por minha causa: minha escolha trivial de vestir aquilo.
Se bem que aquela escolha teve seu mérito. Independente de quais trajes
fossem, eu sempre quis continuar a vestir algo que remetesse ao orgulho da
minha terra. E esse legado ficou incrustado no meu poder.
Viajei somente com minha roupa de corpo e com uma mochila de couro na
qual eu guardava alguns acessórios básicos de higiene e sobrevivência. A maior
parte da minha magia estava nos computadores portáteis que eu mantinha nos
bolsos da calça.
Levei só uns trocados comigo, porque meu pai não me deu muita coisa. Eu
usaria aquele dinheiro para comprar metal e diversos componentes elétricos e
eletrônicos para construir robôs. Decidi que viveria disso nos outros países, já
que a tecnologia lá fora era cara. Dava para fazer boa grana e sobreviver.
Eu não saí de Tecraxei com planos para voltar. Minha ideia era encontrar
outra terra na qual eu me sentisse à vontade e me estabelecer por lá. Mas eu só
faria isso se voltasse vivo.
Antes disso, minha primeira parada seria em Samerre. Chegando lá, eu me
informaria com os sacerdotes sobre o paradeiro da Deusa do Infinito. Eu sabia
que ainda não tinha poder para puni–la ou muito menos matá–la. Ainda assim,
eu desejava permanecer a par da situação para, a partir dali, tecer meu plano de
vida e treinamento mágico dos anos seguintes.
Mesmo que fosse uma visita inocente, havia o risco de eu me envolver em
batalha. Por isso eu fortifiquei T69 durante minha viagem de navio.
– Agora somos somente você e eu...
Tchuu ainda não sabia falar. Eu não estava com pressa. Por enquanto, seria
suficiente que ele soubesse lutar... sem desmontar.

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Wanju Duli

Viagens de navio costumam ser um pouco monótonas e nostálgicas. Você


fica sentimental olhando para o horizonte. Por isso eu evitei fazer isso. Queria
chegar em Samerre cheio de fúria, mas para onde meu ódio tinha ido?
Eu queria proteger o robozinho de Lipsei. Não faria sentido enviá–lo para a
morte. Ela não ia querer isso.
Fizemos uma parada em Bruznia. O que tornava aquela viagem tão
aborrecedora era que além de o navio ser lento, ele parava demais.
Uma garota toda emperiquitada embarcou. Ela usava um vestido
exageradamente arrumado e rendado. Tinha cabelos com mexas verdes e cor–
de–rosa, muito cheios. Eu olhei para o rosto dela cheio de maquiagem e para
aqueles trajes cobertos de laços de fita. Em Bruznia talvez aquilo fosse
considerado bonito, mas eu só via ali um bolo com excesso de cobertura e
confeitos.
Sinceramente, eu não compreendia bem o que era a magia estética daquela
terra. Eu respeitava, mas era um mistério para mim como aqueles magos
tiravam poder de transformar a aparência para a batalha.
Mais habitantes de Bruznia subiram. Parecia uma agência de modelos, mas
eram todos magos. E, segundo os rumores, eles não eram fracos. Era uma
diversão costumeira em Tecraxei fazer piada com a aparência cintilante dos
magos estéticos, mas provavelmente poucos os desafiariam em batalha.
Bem, a viagem estava mesmo chata. Pelo menos aqueles sujeitos prometiam
encher o navio de cores e bom humor. Foi o que pensei. Mas eles não eram tão
educados assim. Olhavam de canto magos de vestes maltrapilhas, como se
fossem mendigos.
– Sim, eu soube que restaram alguns construtores vivos. Dois caras estavam
fazendo intercâmbio em Bruznia quando a guerra estourou. Então quem
morreu foram dois magos do nosso povo. Os destruidores são uns filhos da
puta.
– Ou foi um azar desgraçado.
Meses depois da guerra, ainda se comentava sobre isso. Até os magos de
Bruznia! Era impressionante.
Aqueles dois caras estavam cobertos de perfume e utilizavam mantos de fino
tecido. Um deles carregava um cajado cravejado de cristais. Eles conheciam o
poder do metal como canalizador de energia, assim como os magos do meu
povo.
Era boa coisa que eu tivesse prestado atenção nas aulas de linguística. Eu
conhecia o básico do idioma dos magos de Bruznia e inclusive consegui ler as
inscrições do robe de um deles.
– Ei menino. Você é de Tecraxei?

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Fábula dos Gênios

A maga cheia de laços dirigiu–se a mim, no meu idioma. Ela devia ser
poucos anos mais velha que eu, mas isso não era motivo de chamar–me daquela
forma desrespeitosa.
– Eu sou.
– Pessoas dizem por aí que os Deuses invadiram sua terra. Isso procede?
– Apenas uma Deusa. Estou indo até Samerre para matá–la.
Ela deu um assobio, fingindo que estava impressionada. Eu interpretei o
gesto como zombaria.
– Também vou para Samerre. Vou matar o Deus da Mentira. Ele já me
importunou suficientemente com suas piadas de mau gosto.
Aquele era um universo que eu desconhecia até pouco tempo: magos tão
putos da vida que desejavam não somente dilacerar o corpo de um ser humano,
mas também destruir suas almas ou qualquer outro resquício de existência.
Infelizmente, eu sentia mais tristeza do que ódio. E, para ser honesto,
naquele momento eu não sentia nada. Meu corpo era como um cadáver e minha
mente não encontrava descanso.
Provavelmente foi essa a impressão que passei durante a viagem. Eu me
sentava sozinho num canto do chão do convés e cobria o rosto inteiro com o
chapéu, em desalento.
Alguns minutos depois, voltei a contemplar aquelas fotos. Por que uma
moça tão radiante e cheia de vida como Lipsei estava morta? E por que um cara
como eu, vagando como um cadáver, ainda vivia? Há momentos em que a
natureza não é somente misteriosa, mas também desesperadora.
– Ela é sua namorada? Onde ela está?
Desliguei o meu computador portátil quando notei que a maga de Bruznia
espiava. Levantei–me.
– Ela está morta.
– Sinto muito. Meu nome é Eian Puwi. E o seu?
– Eu não tenho nome.
– Você deseja revivê–la?
– Eu desejo reviver a mim mesmo.
– Agora você vai viver se lamentando pelos cantos só por causa dela?
– Foda–se. Você não tem nada a ver com isso.
Resolvi voltar para meu pequeno quarto no interior do navio. Eu não queria
ser mal educado com ela, mas... por que as pessoas se metiam tanto?
Agora que eu tinha privacidade, resolvi me masturbar olhando para as fotos
de Lipsei. Mas quando tentei fantasiar em minha mente como seriam os peitos
dela, recordei–me do buraco aberto no coração dela e do vestido cheio de
sangue.

419
Wanju Duli

Eu não fiquei satisfeito. Talvez Eian tivesse razão. Viver no passado era uma
estupidez. Eu só estaria morto quando eu realmente desejasse. Vida ou morte
não dependem do corpo, e sim do espírito.
Seria esse o segredo da imortalidade? Se as dimensões eram mesmo
cadáveres astrais de seres humanos, então... eu somente precisava resolver um
grande enigma para alcançar um estado próximo de meu poder máximo.
Quando saí do meu quarto outra vez, a maga de Bruznia não se dirigiu mais
a mim. Provavelmente minha rudeza havia ultrapassado o limite. Senti–me meio
culpado.
– Posso ver o seu futuro no cubo de ônix negro?
Uma garota baixinha dirigiu–se a mim. Seus cabelos negros encaracolados
lhes tocavam os ombros. Ela me fitou intensamente com seus olhos pretos e
profundos.
– Por que você quer ver o meu futuro?
– Venho de Crava. Agrada–me espiar a dimensão do tempo.
– Ótimo, mas eu não sou exatamente interessante.
Os viajantes estavam repletos de passatempos intrigantes. A maga de Crava
encarou meu comentário como uma afirmativa e passou a embaralhar suas mãos
ágeis e morenas no ar em volta, como se através das correntes de ar pudesse
desanuviar a sua contemplação do ônix.
– Eu posso vê–lo matar uma pessoa.
– Dificilmente. Só há uma pessoa que desejo matar e duvido que um dia eu
seja capaz disso.
– Agora eu o vejo matar dezenas delas. Você destruiu uma cidade inteira
sozinho com sua magia.
Eu ri.
– O que é isso? Eu vou me tornar um mago negro?
– Você vai se tornar o mago mais forte do mundo.
– Um dia eu fiz essa promessa para alguém. Você consegue ler
pensamentos?
Dessa vez eu fiquei desconfiado. Era estranho que ela mencionasse minha
promessa. Mesmo que fosse uma promessa tola que realizei apenas para minha
vida ter um sentido. Como era algo praticamente impossível de atingir, aquilo
iria me impelir a continuar vivendo.
Mas... se minha meta fosse possível, eu não teria mais razão para viver.
Então eu obviamente não queria me tornar o cara mais poderoso. Aquela tinha
sido quase uma piada ruim.
– Ei, me desculpe, mas não desejo que leia mais nada. O que você diz me
incomoda, mesmo sendo mentira.
Era quase como se ela tirasse sarro da minha importante promessa.

420
Fábula dos Gênios

Contudo, ela não estava ouvindo mais o que eu dizia. Ela fitava seu cubo
mágico com grande fascínio. No começo com medo. A seguir, ela chorou de
emoção. Ajoelhou–se diante de mim.
– Por favor, não faça isso aqui na frente de todos...
Era embaraçoso. Aquela garota era louca? Era uma criança impertinente.
Devia ter uns treze anos e fazia coisas sem sentido.
– Poderia me dar um autógrafo, senhor?
Ela estendeu caneta e papel. Realmente, os passageiros daquele navio não
giravam bem da cabeça. Aquilo devia ser um brinquedo que ela usava para
perturbar os viajantes.
– Eu me recuso. Esse jogo já foi longe demais.
– Meu nome é Leassa Cazara. Sou uma maga prodígio.
Eu levantei as sobrancelhas, meio impressionado. Eu já tinha visto notícias
sobre uma criança capaz de levitar coisas e fazer previsões muito corretas antes
mesmo de aprender a ler e escrever.
– Já ouvi falar. Qual a sua idade?
– Onze anos e sete meses.
– Só isso? E já é muito forte. Logicamente, é você quem tem chances de se
tornar a maga mais forte e não eu. Sempre fui muito atrasado na magia. Minhas
notas no colégio nunca foram grande coisa. Eu seria imediatamente derrubado
num duelo contra você.
Era decepcionante admitir isso, mas era a verdade.
– Eu sei. Não estou me ajoelhando diante de seu eu do presente, e sim de
seu eu do futuro.
– Não há nada de interessante no meu passado e nem haverá no meu futuro,
principalmente no que diz respeito a conquistas mágicas. Pretendo me
estabelecer em qualquer cidade e vender robôs. Isso é tudo. Talvez eu até deixe
de ser mago.
– Então por que está indo para Samerre?
– Nada de especial. Eu perdi uma pessoa importante para mim e pretendo
me confortar com alguma religião. Depois de alguns dias de paz de espírito,
partirei outra vez.
Ela não acreditou em mim.
– Posso ver seu robô?
– Não...
Embora meu RP fosse valioso para mim, confesso que eu ficava meio
embaraçado de mostrar aquele robô mal feito de Lipsei para outras pessoas.
Leassa apenas sorriu bondosamente.
– Eu não estou mentindo. O senhor será grandioso no futuro. E eu poderei
contar a todos que falei com o mago mais forte!

421
Wanju Duli

E ela saiu de lá, toda saltitante e sorridente. Eu ainda estava meio aturdido.
Só para contrariá–la, eu tinha vontade de simplesmente chegar em Samerre e
sair logo depois. Eu não tinha que me envolver nas coisas dos Deuses.
Quando desembarcamos, eu senti um ar pacífico desde o porto. Aquela
cidade era extraordinária. Como uma grande cama felpuda e macia, para apenas
deitar e dormir... para sempre. Concluí que seria um bom lugar para morrer,
com muita tranquilidade e sossego.
Entrei num dos majestosos templos. Seria um tiro no escuro.
– Com licença, eu gostaria de saber do paradeiro da Deusa do Infinito.
O sacerdote fitou–me com curiosidade.
– Não há Deuses aqui.
– Para quem vocês rezam?
– Nós não rezamos. Apenas estudamos nossos grimórios e meditamos.
– Então vocês são os Deuses!
– Nós não somos imortais.
– Oh, vocês são os Deuses mais fortes, que se livraram da maldição da
imortalidade!
– Senhor, tem certeza de que não bateu a sua cabeça em algum lugar?
Temos pilastras bem grandes por aqui. Tome cuidado.
Eu tinha viajado tão longe para que o sacerdote de Samerre tirasse com a
minha cara. Não dava para acreditar.
– Então onde habitam os imortais?
– Eles não habitam, porque eles não têm corpos.
– Espere. Eu já vi uma Deusa de carne e osso.
– Aquele não era o corpo dela. Um mago de qualquer proveniência pode
incorporar o espírito de um Deus.
– Isso significa que os Deuses podem estar literalmente em qualquer parte?
Posso já ter cruzado com um Deus por aí e eu não sabia?
– Improvável. A presença deles é muito forte. Mas boa sorte em sua busca.
A Deusa do Infinito possui uma lemniscata no pulso. Você verá essa marca
facilmente, gravada a fogo.
Aquilo era o bastante. Desisti de procurá–la. Era melhor eu devotar minha
vida a proteger T69.
– Por que... Samerre é chamado de país dos Deuses se eles não estão aqui?
– Na verdade eles estão. Mas somente os Deuses mortos, no cemitério.
– Se eles não têm corpo, o que foi enterrado?
– O espírito. Fortemente lacrado com magia. Os espíritos dos Deuses
possuem uma categoria diferenciada. Isso porque são os únicos espíritos que
não se tornam uma dimensão quando morrem. Eles apenas vagam, o que define
a imortalidade. E eles sonham em se tornar uma dimensão. Dizem que os

422
Fábula dos Gênios

Deuses são espíritos defeituosos. Esse defeito trouxe poder. Isso acontece
frequentemente.
– Quase como fantasmas. Você acha que também posso transformar os
meus defeitos em força? Sou muito preguiçoso e ruim com magia. O que você
me sugere?
– Eu não sugiro nada, senhor. Lembre–se que um dia os Deuses já tiveram
um corpo, mas o perderam. Hoje em dia não existem mais Deuses de carne,
mas dizem que eles existiam no passado.
– Existe uma magia muito próxima da imortalidade do corpo. Os robôs não
precisam comer ou dormir. Eles podem ser consertados.
– Vejo que acabou de descobrir as respostas para suas perguntas. Tenha um
bom dia.
Que sujeito mal educado. Saí de lá. Verifiquei no meu computador qual seria
o horário do próximo navio. Eu cheguei lá aguardando uma batalha de vida ou
morte e tudo que encontrei foi uma pretensiosa disputa de lógica que teve
pouco sentido.
Pelo menos obtive algum direcionamento. Mas apenas para minha mente,
não para meu corpo. Qual deveria ser o meu destino?
Verifiquei o mapa. Resolvi que iria para Crava. Afinal, eu queria saber que
raios era aquela previsão esquisita sobre meu futuro.
E durante a viagem eu toparia com mais passageiros esquisitos...
– Você procura a Deusa do Infinito?
Quem perguntou isso para mim foi uma moça de óculos e aparelhos nos
dentes.
– Ela não está em Samerre.
– Muito prazer. Meu nome é Narda e sou uma simbologista. Qual é o seu
nome?
– Taha, de Tecraxei. O prazer é meu. Você tem notícias sobre a Deusa?
Ela me estendeu a mão e eu a apertei. Diferente de Eian e Leassa, Narda era
gentil.
– Ora, se ela domina o infinito, não está claro que ela pode estar enrolada
nos números?
– Nunca me interessei muito por numerologia.
– Se seu destino é Crava, quem sabe devesse procurar nessa direção.
Ela era uma moça divertida e até um pouco tímida. Sorria quando eu olhava
para ela, com seus dentes metálicos. Pensando bem, ela me lembrava um pouco
Lipsei, embora tivesse cabelos pretos.
Conversamos por um longo tempo. Aquilo tomou quase toda a viagem. Até
que um duelo estourou.

423
Wanju Duli

Um mago de Narrara estava brigando com um cara de... sei lá de onde era
aquele desgraçado. Ele usava um manto negro em farrapos que cobria seu corpo
inteiro. E ele era muito forte!
Ambos eram fortes, mas o mago de manto negro estava claramente
dominando a batalha. Ele usava selos geométricos, que me pareceu muito com
magia de Sinabil.
– Aquilo não é magia dos simbologistas. É magia dos gênios malignos.
– Tá louco...!
Eu não via o maligno dele. Seria um cara de outro povo usando magia de
destruidores? Aquilo era sequer possível?
O mago de Narrara declamava trechos de seu grimório. O mago de negro
utilizava figuras geométricas tridimensionais que se entrecruzavam e pareciam
nascer de outras dimensões do espaço, carregando energias extremamente
pesadas.
Até que meus olhos contemplaram uma cena macabra. Dentro do capuz
dele havia um rosto no qual a pele estava parcialmente destruída e era possível
fitar um esqueleto. Algumas partes do pescoço estavam ligadas somente por
teias, para compensar a falta da pele carcomida. As famosas teias de miasma...
então aquilo existia mesmo?
Ele não era somente um destruidor. Ele era um destruidor extremo, dos
quais só se ouvia falar nas lendas.
Segundo a tradição, em algum momento da juventude e do início da idade
adulta, a maioria dos destruidores fortes o suficiente para atingir os 20 ou 30
anos sem morrer, sobe para as montanhas, tendo como finalidade meditar e
comunicar–se com outras dimensões e Deuses.
Contudo, existe um número muito pequeno de destruidores que, ao atingir
essa faixa etária, decide entrar para uma sociedade secreta chamada “Derradeiros
da Exímia Providência”; a Derraexi–Pro.
Não é uma sociedade de batalhas. Dizem que lá eles guardam os espíritos de
seus mortos, já que não possuem cemitérios. Nesse círculo restrito eles
desenvolvem uma necromancia severa, como os guardiões de seus fabulosos
mortos. Por isso a aparência deles se torna horrível. O maligno os devora por
fora também e eles chegam a perder a carne, a pele ou até os ossos.
Portanto, eles também são conhecidos como os Guardiões, ou os Coveiros
dos destruidores. Mas, pelas últimas décadas, todos se referem a eles por um
título absoluto, que é o nome oficial dado a esses destruidores extremos: os
Derradeiros.
Eu jamais imaginaria viver para poder ver um cara daqueles. Eu não sabia se
eles estavam ou não entre os mais fortes dos destruidores, mas aquilo não

424
Fábula dos Gênios

importava. Eles eram uma porra de uma lenda viva! Ou morta, ninguém sabe ao
certo... provavelmente uma lenda morta–viva.
Afinal, quem era o maluco do mago livreiro para comprar briga com um
monstro daqueles?
Um sujeito de cabelos pretos e pele negra. Usava um robe roxo
completamente repleto de fórmulas mágicas, que estavam mais para trechos de
livros de literatura. Eu não entendia a magia daqueles caras, sinceramente. Eram
uns fissurados por livros, por oratória, dialética e por toda a maldição das
recitações de trás para frente.
A batalha acabou quando o Derradeiro arrancou o olho do livreiro com um
selo em forma de losango cruzado. O livreiro deu um grito e, todo
ensanguentado, começou a xingar o Derradeiro numa língua estranha.
O Derradeiro respondeu na mesma língua, com uma voz poderosa e rouca.
E os dois partiram para as agressões verbais, ou assim pareceu. Eu não entendia
nada do que era dito e, aparentemente, ninguém mais.
Os passageiros começaram a gritar, exigindo que o navio atracasse em
qualquer porto ou acabariam todos mortos. Era sempre assim: quando tinha um
destruidor no meio todos sempre pensavam que morreriam instantaneamente,
principalmente após os rumores da guerra... ou massacre... ou holocausto.
– Você está bem?
Eu me dirigi ao livreiro.
– Acabo de perder um olho, mas eu me sinto ótimo!
– Se já se encontra em condições de fazer piadas, imagino que não esteja
assim tão mal. Precisa de ajuda?
– Não, pode deixar. Já estou acostumado. Eu e ele somos amigos. Ou
amantes. Quero dizer, estamos num rolo.
– Um rolo com o Derradeiro?
Era difícil de acreditar.
– É briga de amor. É a maneira dele de dizer que me ama. Ele vai alimentar
o maligno dele com meu olho. Isso significa que sou importante para ele.
– Ah... saquei.
Saquei merda nenhuma. Eles eram insanos. Ou eu simplesmente tinha azar
com os navios que eu pegava?
E mais: o que o Derradeiro estava fazendo em Samerre? Os destruidores
eram conhecidos por seus mantos verdes com tiras de couro marrom. Então
talvez usando um manto negro ele não fosse imediatamente reconhecido. Será
que ele foi até o cemitério?
Eu sabia o quanto destruidores e Deuses estavam se desentendendo nos
últimos tempos. Aquilo era ruim...
Felizmente, já estávamos perto do porto de Crava. E desembarcamos.

425
Wanju Duli

Contudo, houve um problema com o destruidor. Não queriam deixá–lo


entrar em Crava. O livreiro bateu boca com o mago de Crava por causa disso.
Enquanto isso, a maga de Sinabil dirigiu–se a mim outra vez.
– Para onde pretende ir agora?
– Eu estava pensando em procurar um adivinho sério para ler o meu futuro.
De preferência o melhor mago daqui.
– A melhor maga de Crava chama–se Yavia. Eu e Zraba iremos até o templo
dela. A propósito, meu nome é Suaten.
Apertei a mão dele.
– Taha.
Fiquei contente em não precisar apertar a mão cadavérica do Derradeiro.
Imaginei que não seria a melhor experiência do mundo.
Ainda bem que o sujeito não usava o manto verde e marrom, ou dificilmente
teríamos caminhado tranquilamente pelo país. Não eram todos que conheciam a
cor do manto dos Derradeiros. O cara mantinha o capuz baixo para evitar ainda
mais contratempos.
Narda também ficou empolgada com a oportunidade de conhecer a maga
mais sábia do país e nos acompanhou. Portanto, fomos os quatro até o templo.
E nos deram um chá de cadeira assim que chegamos. Aparentemente Yavia
era popular e havia uma fila enorme para consultá–la. Tivemos que aguardar
numa mesa. Filas de espera eram tão comuns que havia até uma lanchonete ali
perto.
Zraba e Suaten não compraram nada, porque os dois estavam de mau
humor. Mas eu estava morrendo de fome e ansioso para experimentar a
culinária local.
Comprei um sanduíche de algas e Narda me acompanhou. Mesmo com
pouco dinheiro, ofereci–me para pagar o lanche para ela. Narda agradeceu–me
com um gracioso sorriso.
E meu coração bateu mais forte, lembrando–me de Lipsei.
– Então, Zraba, existe um grimório dos Derradeiros?
– Ele não entende seu idioma. Vou traduzir para você.
Se Suaten sabia falar o dezkazil fluentemente, imaginei que os dois já deviam
se conhecer há um longo tempo.
– Há um livro de magia. Ele se chama Grimório dos Gênios de Sacrifício. O
GGS contém uma magia exclusiva de Derradeiros. É quando o seu gênio
maligno se transforma em gênio de sacrifício.
– Uau! Meu, eu entendo muito pouco de magia dos destruidores, mas isso
me soa poderoso. E você, Suaten, também é um mago forte? Que grimório
você usa?

426
Fábula dos Gênios

– O Grimório da Eloquência é a base da magia dos livreiros. Eu me


especializei num só autor: Formo Duaroso. Ele escreve livros de fantasia sobre
gigantes. Eu frequentemente sou capaz de evocar gigantes e monstros no
momento da batalha, dependendo do meu envolvimento emocional com a
leitura do trecho.
– Que foda. E o que me diz de sua magia, Narda?
– Você sabe, selos geométricos da matemática. Eu realizo um cálculo para
cada ataque e o adversário precisa resolver a chave da equação para quebrar o
meu escudo.
– Extraordinário! Eu aprecio muitíssimo magia de selos. Eu utilizo selos
eletrônicos.
– Posso ver a sua entidade?
– Ah, o meu RP...
Fiquei embaraçado de mostrá–lo, mas não queria deixar Narda triste. Por
isso, abri uma dimensão sutil e tirei T69 de lá.
– Que lindo! Qual é o nome dele?
Ela ficou encantada com meu robô torto.
– Tchuu... não fui eu quem deu o nome. Uma amiga o construiu. Ela o
deixou para trás quando foi derrotada em batalha e desde então sou seu novo
mestre.
– Essa é uma história poética e melancólica. Que magias ele sabe fazer?
– Ele é um autômato, e por enquanto o que sabe fazer melhor é flutuar e
emitir ruídos estranhos. Não desejo modificar completamente suas funções
originais, pois desconfio que ele possua magias escondidas. Eu sei alguns
pequenos feitiços de robótica para me proteger ou atacar e eles quebram o galho
contra... ratazanas.
Narda riu. Estava muito claro que aqueles três eram muito mais fortes que
eu. Especialmente o Derradeiro.
Bem, os dois magos deviam ter o dobro da minha idade. A maga tinha pelo
menos uns vinte e poucos. Mas aos 16 já era esperado que eu tivesse
conhecimentos mais amplos dentro da minha própria área.
Eu não costumava ler muito ou realizar estudo próprio fora do ambiente
escolar. E agora que eu havia desistido do colégio, eu seria sempre visto como
um sujeito sem estudos formais completos, nem mesmo de nível básico. O mais
foda era que muitos destruidores nem sabiam ler e eram extremamente
respeitados.
Finalmente chegou nossa vez de ver Yavia. Enfiei o resto do sanduíche na
boca e acompanhei os três até o interior da sala, que cheirava fortemente a
incenso.

427
Wanju Duli

Ela era muito velha. Devia ter uns 100 anos. Estava coberta de rugas e
roupas coloridas. Os dedos gordos cheios de anéis cintilantes. E no chapéu dela
havia um abutre... difícil dizer se estava vivo ou morto, mas aquilo me meteu um
pouco de medo.
– Eu receberei um de cada vez. Começaremos pelo Derradeiro, pois você
me desperta extremo interesse...
Dessa vez aguardamos na sala logo ao lado. Obviamente, o destruidor era o
mais empolgante de nós quatro: o mais forte e envolto em segredos.
Mas bastaram dez minutos e ele já estava de volta. Ele riu e falou alguma
coisa para nós em dezkazil.
– Mesmo sem ela saber dezkazil, os dois se comunicaram perfeitamente.
Zraba disse que achou Yavia assustadora.
Eu tava ferrado. Ela tinha intimidado até o destruidor.
– A moça pode entrar agora. Sinto uma energia forte emanando dela.
Quando ela entrou, voltei–me para Suaten:
– Então ela é mais forte que você, para chamar a atenção da adivinha?
– Talvez. Eu não duvido nada dos magos simbologistas.
Dessa vez houve uma demora de meia hora. Eu estava ficando nervoso.
Quando ela foi liberada, Yavia chamou o mago livreiro.
Quinze minutos de espera... até que chegou minha vez.
– O último pode vir.
Confesso que me senti um pouco ofendido pela falta de interesse dela. Ela
era tão sábia assim para perceber logo de cara que eu era o mais fraco de nós
quatro? Ela tinha feito essa suposição por eu ser o mais jovem? Aquilo não
tinha nada a ver...
Quando eu entrei, meu coração batia forte. Por que eu estava tão ansioso?
Aquela sala tinha um odor místico. Não somente o cheiro me metia medo,
mas também aquela aura de poder extremo em torno daquela mulher.
Ela deve ter notado meu nervosismo. Como eu era patético.
– Por favor, aproxime–se, jovem mago robótico.
Eu me sentei na cadeira diante dela, ainda decepcionado ao notar como eu
deixava minha timidez visível.
– Está chateado por ter sido o último a ser chamado, não é mesmo?
– Um pouco.
– Não fique. Foi proposital.
– Eu sei.
– Mas não pelo motivo que você imagina. É uma honra para mim conhecê–
lo, Taha Vorta, ainda em sua adolescência; ainda inseguro e inexperiente. Porque
em alguns anos você se tornará confiante e inatingível.

428
Fábula dos Gênios

– Espere... aquela maga prodígio te disse isso, não é mesmo? Eu me


encontrei com ela no navio e ela me disse coisas parecidas.
– Leassa? Faz meses que não me encontro com ela. Se ela te falou as
mesmas coisas, isso significa algo para você?
– A senhora sabe algo sobre o meu passado? Se acertar, acreditarei no que
me diz.
– Você era apaixonado por uma garota. Ela foi assassinada e você deseja
vingá–la.
– Bem, contei um pouco sobre essa história para os três magos que viajam
comigo. Eles poderiam ter dito algo a respeito...
A adivinha deu um sorriso matreiro.
– Você não acredita na nobre arte da divinação?
– Acredito que há certos padrões e ligações que conectam a realidade e as
existências, que podem ser lidos por aqueles que possuem olhos para encaixá–
los. Eu gostaria que você provasse que é uma dessas pessoas.
– Por que você precisa de provas para confiar nos outros? Não é mais
emocionante maravilhar–se com o mistério e abrir seu coração diante de
diferentes possibilidades?
– Conte mais sobre meu passado e irei me maravilhar.
– Você se masturba todo dia olhando para a foto da sua amada manchada de
chocolate. Faz isso desde os 12 anos, até hoje.
Eu corei.
– Isso é uma mentira.
– Quer que eu descreva a maneira com que você faz isso?
– Não, pare! Eu acredito em você. Ninguém sabe disso... ou sabia. Estou
muito zangado com você agora.
– Você criticou minha capacidade divinatória. Eu apenas lhe dei a
informação que você queria: uma da qual somente você teria o conhecimento, e
seria a prova definitiva para o estabelecimento da confiança.
Eu fiquei quieto. Eu me senti como um brinquedo nas mãos dela. Aquilo
não era justo.
– Eu a proíbo de ver qualquer outra coisa no meu passado.
– Então falemos sobre o futuro. Aqueles dois magos que estão com você se
tornarão grandes amigos seus. Vocês serão companheiros de jornada. Daqui a
dez anos eles ainda serão amigos os quais você muito respeita.
– É mesmo? Eu vou ter uma amizade tão profunda com um destruidor? Eu
vou saber até o dezkazil?
– O suficiente para comunicar–se com seu amigo. Eu revelei isso para os
dois também. Eles pareceram surpresos e satisfeitos. Você também irá

429
Wanju Duli

reencontrar alguns de seus velhos colegas de escola. Mas isso somente daqui
certo tempo.
– Meu futuro parece ótimo. E sobre Narda? Ela não será mais nossa amiga?
– Melhor que isso: será a sua namorada.
– Oh!
Eu fiquei meio confuso com essa nova informação. Eu a havia conhecido
naquele mesmo dia. Era verdade que eu a achei bonita. Ela também tinha um
sorriso gracioso como o de Lipsei. Mas fazia menos de um mês que a garota que
eu amava tinha morrido. Então eu ainda não conseguia me ver namorando
outra pessoa.
Mas apesar dessa revelação repentina, eu não me senti mal com a previsão.
– Quando isso vai acontecer?
– Em breve.
– Então ela gosta mesmo de mim?
– Sim, rapaz.
– Nós vamos continuar juntos? Tipo, casar, ter filhos...
– Você irá matá–la acidentalmente após a primeira transa.
– Você tá brincando, né? Como eu poderia matá–la acidentalmente? Ela vai
ter um orgasmo tão bom que vai morrer do coração?
– Não direi mais nada.
– Quê...? Por acaso você revelou isso para ela também? Por isso demoraram
tanto?
– A conversa com ela teve outro nível. Não posso te contar mais do que isso,
pois esse será o acontecimento derradeiro que fará de você o mago mais
poderoso do mundo.
Eu a fitei com desagrado.
– Eu prefiro ser o mago mais fraco e evitar matá–la. Portanto, eu exijo que
me revele a verdade.
– Você entrou aqui nesta sala tão tímido, e agora já estão tão brabo! Prelúdio
daquilo que será no futuro.
– Eu vou me tornar um mago negro?
– Você será o melhor. Você acha que magos possuem cores de acordo com
o ritmo que bate o coração?
– Você entendeu o que eu quis dizer. Quando digo “mago negro” me refiro
a uma pessoa que mata ou fere outros, fisicamente ou psicologicamente, de
forma deliberada. E não para vingar ou defender alguém. Apenas pelo prazer de
ver o sofrimento.
Eu até senti certo prazer quando eu disse isso. Ser um mago negro me soava
bastante poderoso. Era tentador. Mas havia algo mais forte dentro de mim,

430
Fábula dos Gênios

talvez um senso de justiça ou de bondade, que gritava fortemente contra essa


possibilidade.
Yavia sorriu. Ela sentiu meu prazer quando pronunciei essas palavras.
– Você deseja ser um “mago branco”?
– Eu não consigo ser completamente bom e nem irei me forçar a isso. Mas
também não quero ser um desgraçado.
– Você se sente tentado em seguir o caminho do prazer em causar a dor.
– Não me provoque. Você não é uma adivinha. É alguém que manipula as
pessoas para que elas alcancem o futuro que você deseja, para sua diversão.
– Eu irei assombrá–lo com minha última previsão. Em alguns anos você
retornará para me matar. Você estará furioso porque tudo o que eu disse irá se
cumprir. E, com esse último ato seu, eu vencerei o mago mais forte do mundo
em sabedoria.
Eu a fitei incrédulo.
– Eu jamais mataria minha namorada. Nem por acidente.
– Eu fui generosa em minhas palavras. Você não irá matá–la por acidente.
Será por sua vontade. E logo após, se arrependerá.
– Eu não sou uma pessoa assim. Mesmo que ela me traísse com outro cara,
eu não faria isso. No máximo eu ia punir o cara, e não ela. Eu somente iria
abandoná–la. Quer saber? Eu irei me afastar de Narda. Assim sua previsão não
se concretizará. E eu mostrarei que você está errada.
– Tente, criança. Não poderá fugir de teu destino. O destino não é uma
cobra traiçoeira que irá derrubá–lo. É como a morte: em vez de lutar contra ela,
por que não aceitar pacificamente e com serenidade?
Eu me levantei da cadeira.
– É o bastante. Vou me retirar.
– Espere. Ainda não permiti que saísse.
– Eu tenho livre arbítrio para sair por aquela porta. Mas se estava em seus
planos me deixar zangado, devo parabenizá–la: você conseguiu.
– Da próxima vez em que nos encontrarmos, a sua fúria não poderá ser
medida.
Eu saí. Os três me aguardavam. Eles me fitaram estranhamente.
– Essa mulher também falou coisas sem sentido para vocês?
– Ela disse que você será o maior mago do mundo. E que deveremos estar
por perto para conter a sua fúria.
– Isso é uma grande bobagem.
Olhei para Narda. Ela baixou os olhos. Ela era exatamente o tipo de menina
que eu gostava: meiga, calma, tímida, gentil...
Mas eu iria me afastar dela. Se jamais ficássemos juntos, não haveria meios
de a previsão daquela... bruxa tornar–se verdade.

431
Wanju Duli

– Eu acho que perdemos tempo vindo até aqui. A propósito, não tenho
nada mais a fazer em Crava. Partirei para outro lugar.
– Eu e Zraba partiremos agora para Desmei. Deseja nos acompanhar?
Aquilo me pegou de surpresa.
– Woa! Os destruidores não se mudaram para Consmam?
– Os Derradeiros sempre permanecem nos pântanos, guardando seus
mortos. Zraba quer me mostrar algumas técnicas extremas com o GGS. Topa a
aventura?
– Na hora!
Eu não tinha ideia para onde ir. Não tinha planos imediatos. Independente
do que a adivinha tinha dito, eu apreciei a ideia de fazer amizade com aqueles
dois. E, de qualquer forma, se a profecia me beneficiaria, eu não via problemas
em facilitar as coisas para concretizá–la.
Porém...
– Estou de férias da universidade. Por isso estou viajando. Ainda tenho
tempo disponível. Sempre quis conhecer Desmei! Você sabe que nós
simbologistas amamos os selos geométricos tridimensionais e os idiomas. Tenho
fascínio por aprender dezkazil e principalmente em ver mais dos maravilhosos
selos multidimensionais!
– Você será mais do que bem–vinda para nos acompanhar.
Eu não consegui impedi–la depois de vê–la sorrir com tanto entusiasmo. Eu
não devia me importar tanto assim com aquela previsão besta. Eu não me
sentiria tentado por ela apenas porque Narda iria nos acompanhar na viagem.
Dessa vez optamos por algo mais emocionante: fomos de barco para
Desmei. Afinal, pouquíssimos navios paravam naquele “porto assombrado”.
Durante a viagem, eu senti como se já conhecesse aqueles três há muito
tempo. Aquele era um sentimento gratificante. E provavelmente a previsão da
adivinha nos uniu ainda mais e selou nossa amizade. Afinal, no dia em que nos
conhecemos soubemos que seríamos amigos pelos próximos dez anos, talvez
por toda a vida! Falamos a respeito disso durante a viagem.
– Aparentemente não são apenas as sociedades secretas que selam amizades,
mas também as previsões dos magos de Crava.
– Você faz parte de alguma fraternidade de Narrara, Suaten?
– O quê? As sociedades de literatura são as mais famosas! Possuímos uma
tradição gigantesca. É claro que estou numa.
– Eu ouvi falar de grupos assim na UD, mas ainda não fui convidada...
– Eu curto essas paradas. Será que Derradeiros aceitam membros de outros
povos na Derraexi–Pro?
– Cara... tu tá a fim de ofertar teu corpo em sacrifício pra ser devorado em
troca de poder?

432
Fábula dos Gênios

– Ah, sei lá, bicho. Sinceramente, eu preferia usar magia do meu povo, mas
não desejo voltar para Tecraxei. Tenho alguns grimórios aqui no meu
computador portátil, então posso estudar quando quiser que tá suave.
– Só. Mas relaxa. Vamos viajando que de repente tu encontra algo do teu
interesse no caminho. Na vida também é assim, já reparou? Você descobre uma
conexão entre coisas que aparentemente não possuíam relação nenhuma. E de
repente você passa a gostar de algo que antes odiava.
Suaten era gente fina. Foi tranquilíssimo se dar bem com ele. Só era um
porre quando ele começava a falar dos autores que ele curtia e dava um discurso
sobre isso, citando passagens com grande paixão. Talvez eu sentisse raiva
porque também queria me viciar numa linha de magia tanto quanto ele. Eu
achava massa magia tecnológica, mas não tinha nenhuma predileção especial por
ela. Minha preferência permanecia aí por causa da minha base, e por ser magia
da minha terra. Eu queria me orgulhar das minhas raízes.
Tanto eu como Narda ainda tínhamos certo receio e medo de lidar com
Zraba. Mas se ele ia ser mesmo um amigo de longa data, era melhor irmos nos
acostumando. Mais de uma vez eu já levei um susto ao fitar uma parte do rosto
carcomido dele por baixo do capuz ou contemplar aquelas mãos quase em carne
viva. Ele ria com nosso susto. Maldito.
Então nem mesmo ou destruidores eram “magos negros”, no sentido
clássico do termo. Eles matavam, mas isso era algo, hã... cultural. Eles sabiam
reviver seus mortos, as duas partes concordavam em realizar uma batalha com
honra. Um mago realmente cruel torturaria suas vítimas contra a vontade. Acho
que eu não queria me tornar uma pessoa assim: um cara com uma fama pior que
os destruidores. Ser temido não era assim tão delicioso que valesse o sacrifício
do meu espírito.
Quando chegamos em Desmei, eu senti uma emoção estranha. Eu temi, mas
também foi fabuloso. Era um medo que dava prazer de sentir.
De qualquer forma, havia um Derradeiro conosco. Então não corríamos
perigo.
Nós caminhamos muito até atingir uma região erma.
Fogo–fátuo. Eu levei um susto! Estava tudo tão silencioso. O fogo começou
a nos perseguir, mas Zraba nos tranquilizou e mandou que parássemos de nos
mover.
Um segundo mago de manto negro surgiu. As mãos também estavam
carcomidas e não se via o rosto. Quando notei algum volume no peito, concluí
tratar–se de uma mulher. E, putz, até senti um pouco de desejo tentando
imaginar as curvas dela por baixo do manto. Até por uma moça morta–viva eu
sentia isso!

433
Wanju Duli

“Eu sou um pervertido”. Tentei me convencer que não, com a desculpa de


que eu estava na adolescência com os hormônios aflorando, então era natural
pensar aquelas coisas, mesmo ao contemplar uma Derradeira.
Obviamente, eu não desejava, por nada desse mundo, aborrecê–la. Achei
que seria mais sábio desviar os olhos antes que desse merda.
A voz dela era sensual. Eu não entendia o que os dois Derradeiros
conversavam. E isso somente aumentava o meu fascínio pela pronúncia exótica
da mulher misteriosa. Será que também era possível ver ossos do crânio dela em
alguns pontos?
Cara... acho que eu tava desesperado. Eu comecei a imaginar como seria
enfiar meu pau numa buceta sem pele ou carne. Se eu permanecesse muito
tempo em Desmei, concluí que minhas fantasias sexuais se tornariam
particularmente bizarras.
Ainda bem que eu tinha uma companheira de jornada com os ossos e a pele
no lugar, para me fazer recordar do meu desejo por carne viva. Ao mesmo
tempo, eu não desejava me envolver com ela. Mas num país de moças em
decomposição, que escolha eu teria? Até porque eram destruidoras. Elas tinham
ligação.
Eu não entendia o que estava acontecendo comigo. Devia ser mesmo a
adolescência. Nas últimas semanas eu não conseguia contemplar uma mulher
sem ter pensamentos pervertidos. Eu me sentia culpado e, ao mesmo tempo, ter
desejo não era algo natural?
Naquela noite resolvi ter uma conversa privada com Narda sobre a profecia.
– A adivinha te falou alguma coisa sobre nós dois?
– Ela disse que íamos namorar. E que você ia me matar quando a gente se
deitasse...
– Putz, então você ouviu isso. Vamos combinar uma coisa: ficaremos apenas
como amigos, certo? Sempre.
– Você tem medo da profecia?
– Não exatamente. Só não quero que as coisas aconteçam segundo essas
previsões, como se meu destino já estivesse traçado e eu não tivesse escolha.
– Eu entendo perfeitamente.
Não era necessário perguntar se sentíamos algo um pelo outro. Acho que
isso ficou claro desde que conversamos pela primeira vez. Íamos colocar um fim
naquilo antes que começasse. Era melhor assim.
Era desagradável ter que dormir ao relento. Ainda mais num pântano,
sabendo que havia alguns destruidores à espreita. Felizmente, como éramos
convidados e havia um Derradeiro conosco, enquanto estivéssemos na
companhia dele não ocorreria nenhum mal entendido.

434
Fábula dos Gênios

Antes de pegar no sono, resolvi dar uma olhada no Grimório da Automação


que havia no meu computador. Qual não foi minha surpresa ao ver o arquivo
corrompido!
– Aquele filho da puta do Alburni me passou uma merda bugada...
Mas... espere. Isso significava que a Deusa do Infinito não tinha a posse do
grimório. Problema dela. Teria que retornar para Tecraxei e roubar o celular de
outro estudante. Não seria muito difícil.
Chamei T69 para realizar mais alguns reparos. Eu gostava de mexer nele
antes de dormir. Era relaxante. Quase como se eu estivesse com ela...
Voltei os olhos na direção de Narda. Ela dormia. Tinha tirado os óculos.
Respirava devagar e profundamente.
Aqueles cabelos pretos... aquele vestido azul. Por que tudo nela parecia tão
perfeito? Até o aparelho tornava o sorriso dela deslumbrante.
Eu conseguia ter um vislumbre das coxas dela. Isso me fez lembrar o dia em
que meu velho robô pervertido, JJ03, tinha tirado uma foto da calcinha de
Lipsei.
Mas, pensando agora, o tarado era eu. Afinal, eu programei aquele autômato.
Eu desejava que ele ficasse me incentivando a ter pensamentos sujos. Enquanto
isso, eu podia bancar o bom garoto.
No outro dia, Zraba nos apresentou o GGS. Acordamos tão cedo e eu
sentia tanto sono que nem consegui me fascinar tanto pela oportunidade incrível
de contemplar aquele raro grimório.
– Zraba disse que não são exatamente escritos secretos. Afinal, poucas
pessoas, incluindo destruidores, topariam destruir a aparência por fora sem ter
nenhum ganho mágico significativo. Seria quase como um primor estético
reverso.
– Então para que serve obter um gênio de sacrifício?
– Para poder vagar entre as dimensões dos mortos sem apresentar rejeição.
Você não obtém magia forte por esse método, mas assim é capaz de se tornar
um guardião poderoso dos espíritos dos destruidores, protegendo as dimensões.
Colocando em outros termos, os Derradeiros são como os sacerdotes da religião
dos destruidores. São magos respeitáveis.
– Que interessante!
As páginas do GGS eram fenomenais. Eu não entendia nada do idioma, mas
era uma escrita rabiscada, com aspecto rústico e selvagem. As imagens também
estavam desenhadas muito rapidamente, como rascunhos. Selos feitos com tinta
negra e marrom.
– Essa cor marrom aqui é sangue?
– Sangue seco.

435
Wanju Duli

Aquele lugar era assustador. Quase não consegui dormir, pois eu sentia que
dimensões mortas viriam me trazer pesadelos. Eu logo concluí que não
aguentaria permanecer por muito tempo naquela terra. Além de dormir ao
relento com mosquitos, sons noturnos macabros não me deixavam pegar no
sono.
Eu não consegui dormir na segunda noite. Na terceira eu só desabei por
sono extremo, mas em poucos dias eu já estava completamente esgotado.
Até então, os Derradeiros tinham nos mostrado algumas magias básicas de
destruidores. Sinceramente, eu não me sentia à vontade com aqueles caras sem
pele. E com as moças menos ainda, o que me remetia desejos estranhos.
O pior era que a cada noite eu espiava o corpo de Narda. O meu desejo
aumentava cada vez mais. Até que, duas semanas depois, eu não me segurei.
Em uma das noites ela mexeu as pernas de um jeito que eu vi a calcinha dela.
Eu queria tocá–la. Eu precisava tocá–la, mas eu não ousaria. Eu era um
cavalheiro.
Novamente, tive que satisfazer a mim mesmo sozinho. Mas eu não ia
aguentar por muito tempo aquela tortura. Eu precisava tocar numa mulher.
Eu não queria fazer nada sem a permissão dela. Por isso, tive que ser
indelicado: acordei Narda, sacudindo–a pelo ombro.
– Já está na hora de acordar?
– Não. Eu só queria te dizer para esquecer aquela história da profecia. É
bobagem aquilo. Narda, eu quero você.
Eu disse isso quase num desespero silencioso, aguardando a permissão dela
para avançar. Eu respirava rápido.
Ela me abraçou. Quando senti os peitos dela pressionando contra meu peito,
tive outra ereção. Mas, cacete, eu tinha acabado de gozar após bater uma! Como
aquilo era possível?
Eu beijei aqueles lábios. Ela permitiu, mas depois se afastou.
– Eu fiz algo errado? Me desculpe!
– Vamos namorar?
– É claro.
Tentei abraçá–la outra vez, mas ela apenas se esquivou. Eu me sentia um
imbecil me atirando em cima dela de pau duro só para ser empurrado. Até me
senti ofendido. Acho que isso ficou claro em minha expressão. Fiquei quase
irritado. Ela dizia que queria e depois agia como se não quisesse? Que merda era
aquela?
– Calma. Fica calmo, tá?
– Eu tô calmo...
– Você se atira assim em todas as meninas no primeiro dia de namoro?
– Eu sou virgem.

436
Fábula dos Gênios

Ela me olhou com uma expressão tão espantada como se eu tivesse dito “eu
sou um alienígena”.
– Bom, eu não sou.
– Mas eu já fiquei com algumas meninas quando eu tinha onze anos.
Eu disse isso com muito orgulho, para mostrar a ela que eu era um cara
experiente. Mas ela me olhou com uma expressão de pena por eu estar na seca
há cinco anos.
– Você é uma criança. Não quero me aproveitar de você. Agora, vamos
dormir. Amanhã você estará pensando com mais calma.
– Mas a gente ainda tá namorando, né?
Ela fez que sim. E se virou para o lado, para dormir.
Voltei para meu canto. Senti lágrimas nos olhos. Além de eu estar com um
desejo desesperado ultimamente, estava muito sensível. Eu só conseguia chorar,
porra! Muitos fluídos deixando meu corpo naqueles dias. Mas é claro que
disfarcei. Seria vergonhoso que ela soubesse que, além de ser virgem, eu era uma
criança chorona.
Eu devia ter me livrado daquela merda de virgindade antes. Podia ter sido
com qualquer uma. Só para não ter que ser ridicularizado daquela forma.
Talvez eu estivesse esperando por Lipsei. Mas agora nada mais me prendia.
E, para completar, ainda tive uma ereção ao abraçá–la. Ela devia ter sentido.
Mas, em vez de se ofender, ela havia interpretado meu desejo desesperado como
um ato incontrolável de um adolescente babaca.
O que havia de interessante em mim? Eu não tinha grana. Eu era um mago
fraco com um robô que mal servia para batalha. Minha aparência não era ruim,
mas aquilo não seria o suficiente. Narda era belíssima, mais velha e experiente.
Além disso, uma maga poderosa e inteligente.
Então eu precisava impressioná–la de alguma forma. Por isso, virei a noite
construindo um cajado metálico. Coloquei um parafuso na ponta, que serviria
como uma espécie de controle remoto para comandar uma cabeça de robô que
flutuaria logo acima. Esse não seria um autômato. Sequer teria espírito. Era
somente a extensão da minha arma mágica.
Depois que terminei de montar a arma em estado bruto, testei algumas
conexões. O cajado soltava faíscas elétricas, mas eu ainda precisava repará–lo.
Quando Narda acordou, mostrei a ela meu utensílio de poder. Eu me sentia
muito orgulhoso de minha obra. E ela me elogiou.
Mas por que eu ainda me sentia inseguro daquela forma? Eu não queria
passar a minha vida toda apenas catando elogios, como um mendigo. Assim eu
sempre me acharia inferior a ela e sentiria que ela estava me fazendo um favor
ao estar comigo.

437
Wanju Duli

Nem tive coragem de me aproximar muito dela naquele dia, por receio de
ser empurrado e rejeitado.
À noite, eu quis conversar com meu amigo livreiro. Pedir alguns conselhos.
Contei a ele que eu e Narda estávamos namorando e eu me sentia perdido.
– Cara, é assim mesmo. Zraba era um cara muito fechado quando eu o
conheci. Parecia ser invencível e sem sentimentos. Mas depois que eu o conheci
melhor, notei que, apesar da pose, ele era tão inseguro quanto eu. Ele só agia
assim para se proteger. Quando você confia mesmo numa pessoa, não precisa
ter medo de chorar ou sorrir na frente dela. Ou dizer o que tá pensando, saca?
– Mas com mulheres é diferente.
– Diferente no que, velho? Não somos todos seres humanos com
sentimentos e desejos?
– Sim, mas eu preciso provar minha masculinidade pra ela. Trazer a lua e as
estrelas como prova de amor, ou qualquer coisa romântica ou impossível.
– E tu acha que não somos machos, rapaz? É foda quando o Zraba dá uma
de orgulhoso. Nós batalhamos constantemente. Muitas vezes são embates
violentos. Ele curte, se excita com isso. Eu também. Só que ele precisa arrancar
pedaços. E aí eu já acho foda, mas deixo passar às vezes, pra agradá–lo.
– Imagino que por ele ser um destruidor seja ainda mais barra pesada esse
relacionamento de vocês. Mas no meu caso, eu sinto que ela espera certas
atitudes de minha parte por eu ser um cara. E muitas vezes os desejos dela são
extremamente contraditórios. Ela queria que eu tivesse muita experiência em
sexo. E, ao mesmo tempo, não queria que eu avançasse logo de cara.
– Ah, meu rei, demorou um pouco pra eu comer o meu parceiro. Ele se
esquivava. A gente costuma fazer tipo um ritual de batalha. Quem derrotar o
outro será o ativo. A gente fode forte. Ele gosta que sangre.
– Confie em mim, ela não vai gostar assim. Você acha que se eu desafiá–la
em batalha mágica e vencer ganho uma trepada?
– Sei lá, porra. De repente ela curte algo mais violento. Tá cheio de mina por
aí muito mais perigosas que caras. A mãe do Zraba, por exemplo, mete muito
medo nele. E você viu lá ele todo assustado com a adivinha. E, afinal, por que
precisa ser tudo do jeito que a Narda quer, meu? Ela também tem que fazer o
que tu gosta às vezes.
– Acho que nem eu e nem ela curtimos muito transar no chão. Facilitaria
bastante se encerrássemos nosso turismo por Desmei e fôssemos para uma
cidade com uma cama.
Contudo, não recebi boas notícias de Narda no dia seguinte. Ela avisou que
suas aulas da faculdade recomeçariam em três dias e ela teria que retornar para
Sinabil de qualquer forma.

438
Fábula dos Gênios

Se eu me mudasse para lá também só para tentar conseguir uma trepada, ela


ia achar que eu estava desesperado e que era um desocupado. Portanto, concluí
que eu teria uma imagem melhor se fosse visto como um sujeito ocupado, e que
não vivesse correndo atrás dela implorando por atenção.
Por isso, informei que ainda precisaria fazer algumas viagens, mas que iria
visitá–la de vez em quando. Seria algo difícil de cumprir, pois meu dinheiro tava
acabando e eu não queria importunar meus pais pedindo mais grana. Eles nem
mesmo sabiam onde eu andava. Enviei só umas duas ou três mensagens pelo
celular naqueles dois meses.
Suaten ofereceu–se para me emprestar uns trocados, mas avisou que ainda
permaneceria por mais algumas semanas com Zraba em Desmei.
Por isso, dessa vez eu teria que me virar sozinho. Peguei um barco e uma
bússola. Eu era péssimo naquilo. Acabei indo para Bruznia, mas como eu não
conhecia aquela terra seria uma boa oportunidade.
Eu precisava de um lugar para ficar. Quem sabe um hotel. Cara, aquilo ia
sair bem caro.
Vendo minhas roupas sujas e simples, bem como a aparência desleixada,
ficava claro que eu não era nativo de Bruznia. Os olhares dos habitantes me
incomodavam.
– Mas veja só quem está por aqui! Se não é o menino sem nome!
Olhei para o lado. Era a maga de Bruznia que encontrei no navio em minha
primeira viagem. Dessa vez os cabelos dela já estavam de outra cor: amarelo e
vermelho. Usava um vestido vermelho que tinha tantos laços quanto o anterior.
– Eu me lembro de você. Qual é o seu nome mesmo?
– Eian! Por onde você tem andado? Rolando na lama? Me desculpe, mas
você está fedendo!
– Isso não é problema seu.
– Não posso permitir que ande assim por aí. Venha até a minha casa, tome
um banho e troque suas roupas.
– Eu gosto das minhas roupas.
– Pelo menos elas precisam ser lavadas e costuradas. Enquanto isso, te
empresto alguma coisa.
– Não acho que seja uma boa ideia...
– Na minha casa moramos somente eu e minha parceira.
– Sua namorada?
– Isso. Ninguém irá incomodá–lo.
– Nesse caso, acho que aceito seu convite.
Beleza! Hotel de graça! Não era nada mal conhecer pessoas de outras terras.

439
Wanju Duli

A casa de Eian era uma graça, toda colorida e enfeitada. Parecia uma casa de
bonecas. Eu me encantei particularmente com a estante de grimórios. Queria
dar uma olhada lá.
Mas ela não permitiu que eu tocasse nos livros enquanto não lavasse as mãos.
Por isso, fui logo tomar o banho enquanto ela aguardava na sala lendo um
grimório. Ela me deu para vestir um manto grande azul esverdeado, de seda.
– Então é esse tipo de roupa que vocês usam em casa?
Era nostálgico tocar em livros impressos em papel. O GGS era ainda mais
artesanal: escrito à mão. Mas lá naquela prateleira havia exemplares ainda mais
exóticos.
A maioria eram livros de magia estética. Mas também havia um ou outro
volume de magias de outras terras.
– Opa, esse é de robótica! Pode me emprestar?
– Claro. Durma aqui hoje. E agora conte–me sua história. Aceita um chá?
– Eu aceito. E se tiver comida para acompanhar, eu gostarei ainda mais.
Não foi fácil permanecer em Desmei por mais de um mês vivendo de restos
de vegetais.
Até que aquela garota rude e sincera era bastante hospitaleira. Ganhei um
banho quente, roupas novas, um grimório e agora receberia até comida e uma
cama. E, o melhor de tudo: uma boa conversa. Imaginei que ela também tivesse
uma história para contar.
Ela retornou com uma bandeja com um bule de chá, xícaras, torta de limão
e sanduíches de cenoura. Era tudo muito delicado, mas eu teria comido qualquer
coisa que ela colocasse na minha frente, tamanha era minha fome.
– Conseguiu matar o Deus da Mentira?
– Está complicado. Os Deuses são muito ariscos.
– De fato. Mas seria de pouca valia para mim encontrar a Deusa do Infinito.
Eu não possuo poder para enfrentá–la. Como posso adquirir poder, Eian? Viajei
por algumas terras nos últimos meses, inclusive lugares distantes. Mas pouco do
que vi mexeu comigo. No máximo, belas coisas a serem contempladas, mas
nada que eu desejasse que fosse meu. A não ser pessoas. Mas magia? Difícil.
– A vida é uma viagem para encontrar coisas e pessoas que amamos, para
depois perdê–las. O encanto disso tudo é que só as perdemos do lado de fora.
Aquilo que realmente amamos nunca é perdido de verdade. Ou esquecido.
Eu sabia daquilo muito bem. Um dia pensei que eu tinha perdido Lipsei,
mas no fundo ela sempre esteve comigo.
– Hã... estou viajando para estudar magia, mas sinto que ainda não melhorei
em nada.
– É aí que você se engana. Magia mexe com energias sutis. Apenas ao viajar
e conhecer pessoas, respirar novos ares, olhar muitos magos batalhando usando

440
Fábula dos Gênios

técnicas diferenciadas e observar a diversidade dos grimórios, passando os olhos


por poucas linhas, você já aprendeu pedaços preciosos de magia. Eles vão ficar
flutuando dentro de você, sem que perceba, até que um dia as conexões são
realizadas, muitas vezes de forma inconsciente.
– Isso me recorda das técnicas dos destruidores. Eles se colocam contra as
coisas que encaixam, os cálculos ou quebra–cabeças. Mas, no fundo, para que a
magia deles ocorra também existem encaixes. Mas não através da razão.
– Quando começamos a aprender qualquer coisa, iniciamos usando a lógica.
O cálculo precisa ser pensado com cuidado. Você raciocina para entender quais
dedos tocam as teclas do piano. Mas, com o tempo, você não pensa tanto para
realizar um cálculo rápido. Ele ocorre de forma intuitiva, já está dentro de você.
Ou os dedos simplesmente viajam pelas teclas, como se você e o instrumento
fossem um. Você entra num transe. A magia também funciona dessa forma:
você começa lendo os grimórios e estudando tudo com cuidado. Você pensa
com calma para escolher com que tipo de energia ou dimensão realizará sua
magia. Os destruidores são poderosos porque eles alcançam a etapa intuitiva
muito rápido. Você sabe por quê?
– Porque o maligno os devora por dentro e eles se tornam um. Eles e as
dimensões são um só e é como se o mundo inteiro fizesse parte do corpo deles.
E do espírito. Eles não veem diferença entre o indivíduo e o todo. Por isso são
capazes de manipular tudo ao seu redor tão facilmente como uma respiração.
Ouvi um barulho de chave na fechadura. Uma moça de cabelos curtos
entrou. Na verdade ela se parecia muito com um garoto. Só identifiquei que era
uma mulher por causa dos seios.
– Cara, meu professor de artes marciais mágicas é um pé no saco. Ele quer
que eu faça uma posição impossível!
– Não é impossível, Jalima. Você deve estar usando muito sua razão para
fazer o movimento. Também deve estar com medo. Apenas confie e não
raciocine muito nos passos do processo que precisa realizar. Esse é mais um
ótimo exemplo de como a intuição possui um papel fundamental. A resistência
do ar não será seu inimigo e sim seu aliado. Quando você se tornar uma só com
o ar e o mundo ao seu redor, poderá até voar.
– Intuição no meu rabo! Esse seria um ótimo conselho se eu já soubesse
onde está cada tecla do computador antes de tentar escrever de olhos fechados.
Primeiro preciso aprender a base. Sou uma iniciante.
– Não existe uma só maneira de aprender as coisas. Há a forma tradicional
passo a passo que costuma funcionar bem na maioria dos casos. Pessoas
excepcionais podem encontrar atalhos.

441
Wanju Duli

– Essas pessoas dificilmente conseguiriam montar um mapa para meros


mortais, desconhecendo metade do caminho, e seriam péssimos professores.
Eles somente conseguiriam ensinar a si mesmos ou a outros gênios.
– Por isso poucos entendem a magia utilizada pelos destruidores ou pelos
Deuses. É difícil construir uma metodologia de treinamento por etapas quando
a técnica utilizada é altamente intuitiva. Na magia dos livreiros você lê cada vez
mais para se tornar mais forte. Na magia dos simbologistas você calcula tanto
até se tornar exímio nisso. Na nossa magia você testa diferentes efeitos e
combinações de cores e odores de variados cosméticos, para receber as
impressões mentais estéticas que levam o magista e seu adversário a se
impressionar ou se horrorizar na batalha, manipulando o impacto psicológico;
incluindo dança e movimentos aplicados a dobras de tecido das vestimentas.
Isso tudo faz parte de um treinamento seriado. Quanto a linha da magia é
fortemente subjetiva, o processo de aprendizado é extremamente complexo.
– Tudo isso parece ótimo. Mas quem é esse cara sentado no nosso sofá?
– Não quero incomodar. Se quiserem, posso ir embora agora.
– Suas roupas ainda estão na máquina de lavar. Eu vou costurá–las assim
que secarem. Somente depois disso permito que saia.
– Obrigado.
A recém–chegada, chamada Jalima, sentou–se no sofá ao lado de Eian e
serviu para si uma xícara de chá. Ela me observava.
– Você é um mago. Sinto magia em seu espírito. Você é um destruidor?
– Eu me pareço com um?
– Não, mas eu já ouvi falar de estrangeiros estranhos que mexem com a
magia deles. Ou tentam. Sinto uma energia pesada ao seu redor. Por isso
perguntei.
– Você é muito perspicaz. Eu passei um tempo em Desmei. Tenho um
amigo Derradeiro.
– Aí está algo que eu nunca tinha ouvido. De onde vem?
– Tecraxei.
– A magia de sua terra tem ganhado muita notoriedade ultimamente.
– Como assim? Não sei disso.
– Até os Deuses têm interesse nela. Também teve aquela história da briga
entre o construtor e a destruidora pelo escudo cibernético.
– Eu gostaria de entender a magia. Poder manipulá–la. Mas quanto mais
converso com magos e presencio batalhas, mais confuso fico. É tudo tão bonito,
mas parece tão distante da minha capacidade.
– Você já tem uma magia linda na sua terra. Então o que ainda está
procurando em todas essas viagens?

442
Fábula dos Gênios

Eu já sabia. Quis viajar para me certificar de que não havia nada fabuloso
perdido por aí. Mas a verdade era que a mais poderosa magia sempre esteve
dentro de mim.
Eu também viajei para esquecer a mim mesmo. Mas eu não era uma concha
vazia. Eu tinha um passado. Tive uma educação. Aprendi algo de valor no meu
tempo de escola. Olhando para trás, parecia que aquilo tudo era inútil. Mas, indo
para a escola cada dia, mesmo achando um saco, pedacinhos de conhecimento
foram se colando dentro de mim. Assim como naquelas viagens.
Eu não notava como ocorria o processo. Somente mais tarde eu iria
entender porque as coisas eram dessa maneira. Poder mágico não era algo que
iria surgir dentro de mim de repente, como um dom. Era resultado de um longo
processo de pequenas conquistas.
Decidi que eu não iria sair por aí como um novato em busca do mestre
perfeito. Ou da escola perfeita. Aquilo simplesmente não existia. Independente
de onde eu estivesse, com quem estivesse e da magia que eu usasse, o que
sempre valeria mais seria quem eu era. E minha visão de mundo.
Eu poderia agregar pequenas porções de conhecimento aqui e ali. Mas havia
algo muito mais importante no meio daquilo tudo. Eu não iria apenas decorar o
que já foi criado, como um robô. Eu iria pensar, imaginar. E desenvolver a
minha magia.
“Como um robô...”
Quando me despedi de Eian e Jalima, depois de ter passado quase uma
semana lá, eu jamais poderia agradecê–las o suficiente.
– Devo partir agora para Sinabil. Minha namorada estuda lá e eu irei visitá–la.
– Que bonitinho! Boa sorte em sua jornada!
E foi com entusiasmo que peguei o navio para Sinabil. Pensando em Narda
durante o caminho. Eu já estava com saudades.
Era isso: eu iria construir minha nova vida, o meu futuro. Quem sabe eu
devesse deixar de ser teimoso e retornar logo para Tecraxei, para continuar os
estudos. Aquilo não era tudo, mas era importante. Para poder montar uma vida
com minha namorada. Ter uma família... e ser feliz.
Eu devia me esquecer da Deusa do Infinito e da maldita adivinha de Crava.
Elas foram acidentes infelizes da minha vida. E daí que eu tinha me apaixonado
por uma menina um dia e ela morreu? O jeito era seguir em frente. E daí que
Yavia tinha feito previsões completamente absurdas? Era melhor ignorá–la. Ela
já devia ter errado muitas vezes antes. Ela era humana e estava sujeita a falhas.
Enquanto eu estava no navio, fazia mais reparos em T69. Aquilo era apenas
uma diversão para mim. Eu não notava que aquelas pequenas magias diárias
estavam alimentando meu espírito.

443
Wanju Duli

Assim que cheguei em Sinabil fui procurar minha querida Narda. Fui até a
universidade dela e abracei–a. Tentei beijá–la.
– Não na frente de todo mundo...
– Por que não? Nós não nos vemos há quase duas semanas.
Para mim era uma eternidade. Nós sentamos num banco para conversar.
Demos as mãos.
– Taha... estou no meio de uma semana de provas. Me desculpe, mas não
terei tempo para você agora.
– Eu... só vim fazer uma visita. Já estou de saída. Resolvi que voltarei para
Tecraxei e retomarei meus estudos. Também estarei bem ocupado.
– É mesmo? Isso é ótimo!
Só disse aquilo para mostrar que eu também tinha planos. Por que ela achou
ótimo saber que eu ficaria longe?
– Mas se quiser, eu posso estudar na mesma universidade que você.
– Você disse que ainda não se formou no colégio. Então não conseguirá
permissão de admissão antes disso.
– É mesmo. Então daqui a dois anos venho pra cá.
– Em dois anos já estarei saindo.
– Sendo assim, vou concluir meus estudos num colégio de Sinabil.
– Isso não é necessário. Gosto mais de você praticando magia robótica. É
mais exótica. Por aqui magia de símbolos e matemática é bem comum. Chega a
ser chato. Por isso vou fazer minha pós em qualquer outro país. Menos aqui.
– Então foi por isso que gostou de mim? Você me achou exótico?
– Sim, você tem esse sotaque e faz essas magias com tecnologia. É
estimulante.
– Isso significa que se você fosse estudar em Tecraxei se apaixonaria por
qualquer outro cara do meu povo, pelo mesmo motivo.
– Não é verdade. Você também é bonitinho e gentil.
Ela passou a mão no meu rosto. Meu coração batia mais forte quando ela
me tocava ou fazia gestos de carinho. Mas eu não ia me deixar enganar. Eu
sentia que eu era um mero jogo para ela. Um passatempo.
Baixei os olhos. Então era disso que a adivinha de Crava falava? Narda ia me
trair. De repente isso se tornava muito claro.
Senti lágrimas nos olhos, mas disfarcei. Eu estava tão apaixonado que
aceitava largar tudo por ela. Não me importava o que eu ia estudar ou no que eu
ia trabalhar. Nem mesmo onde. Contanto que eu estivesse com ela.
Mas para ela era mais importante que eu estudasse certo tipo de magia para
ter status, mesmo que isso me fizesse ficar longe. Ela provavelmente só queria
me exibir para os amigos.
– Você tá me traindo?

444
Fábula dos Gênios

– Claro que não!


– Olha... eu vou estudar num colégio de Sinabil. Acabei de decidir. Somente
para podermos nos ver com mais frequência. E se você achar ruim minha
decisão, é melhor acabarmos logo esse namoro.
– Não quero terminar. Eu não sabia que você ia interpretar as coisas dessa
forma. Me desculpe. Quero estar com você.
Ela me abraçou forte, também com lágrimas nos olhos.
– Eu te amo.
Aquelas três palavras me compraram imediatamente. Agora eu seria dela.
Aquelas lágrimas e aquelas palavras me comoveram.
– Também te amo.
A partir de então, a única coisa que eu tinha certeza na minha vida era que
queria estar com aquela garota.
Aquela doce menina fechou meu coração com um cadeado. Somente através
daquele momento.
Senti que eu poderia morrer por ela.
Eu era somente um adolescente dramático mergulhando de corpo e alma
nas armadilhas da paixão. Eu me esqueci que eu estava namorando uma moça
mais experiente, que já conhecia alguns dos ardilosos truques do amor: seus
jogos de sedução, a luta do casal por poder.
Ela se arrumava e se enfeitava, usando perfumes e pequenos mimos. Até um
chaveiro felpudo na bolsa adicionava um toque todo especial. Enquanto isso, eu
sempre ia vê–la usando aqueles mesmos trajes velhos do meu uniforme.
Ela se fazia de difícil, me negando o sexo só para me deixar com ainda mais
desejo. E, para completar, era toda cheia de atividades e precisava verificar em
sua agenda se tinha algum espaço para me encaixar.
Ela sabia que todos esses truques ultrapassados ainda funcionam para
sedução, porque as pessoas são idiotas. Principalmente para enganar um cara em
sua primeira experiência de namoro, caindo de cabeça.
Eu não tinha uma amiga ou amigo próximo naquele momento que sugerisse
para que eu me arrumasse mais, pelo menos quando fosse vê–la. Ainda bem que
a maga de Bruznia havia lavado e costurado as minhas roupas, ou imaginei que
Narda teria me chutado naquele mesmo dia.
Eu também não sabia me fazer de difícil, ou nem mesmo suportaria, porque
eu estava apaixonado demais. Era sempre eu que corria atrás dela... era sempre
eu o sujeito desocupado que só queria saber de passar o dia inteiro com ela,
como se a vida fosse só curtição.
– Eu já sofri demais quando me entreguei em namoros anteriores. Não
quero me machucar de novo.
Então ela me machucava em vez disso, para se proteger...

445
Wanju Duli

– Não se preocupe. Eu jamais vou machucá–la. Eu irei protegê–la.


Eu queria ter dito essas palavras para Lipsei. Pois Lipsei era uma menina
ingênua e frágil. Ela não faria jogos de sedução comigo. Se ela também se
apaixonasse por mim, seria o namoro dos sonhos: os dois se entregando, dando
a vida um pelo outro. Como nos contos de fadas.
Narda, além de ser experiente, era forte na magia. Lipsei era fraca e
desastrada. Então eu me sentiria à vontade cuidando dela, ensinando–a. Eu me
sentiria útil. Mas o que eu poderia acrescentar na vida de Narda? Ela, que já
parecia ter tudo?
“Pessoas assim precisam morrer”
Recordei–me da frase da minha ex–colega invejosa Niapam, que era quase
perfeita, não fosse sua personalidade insuportável. E ela desejava destruir todos
que ela julgava melhores que ela.
Eu não pensava assim. Mas eu me sentia desconfortável em ter uma
namorada tão cheia de beleza e habilidades. Eu me apaixonava cada vez mais e
sentia orgulho por ela, mas para ela seria o suficiente ser adorada por mim?
Então naquele namoro ela somente seria a musa e eu o cara prestando–lhe
ovação. Até cair de quatro e ser pisado assim que aparecesse algum mago
poderoso e bombado diante dela.
O que estava acontecendo comigo? Será que eu ainda sentia medo da
previsão da bruxa? Se não era por traição, eu mataria Narda por ela ser perfeita e
eu não conseguir lidar com isso? Claro que não. Que estupidez.
Quando consegui me matricular num colégio de Sinabil, senti–me mais
confiante. Finalmente eu teria horários para cumprir e Narda precisaria se
adequar a eles antes de combinarmos.
Por outro lado, passamos a nos encontrar com cada vez menos frequência,
já que raramente nossos horários livres fechavam. Isso me fez ter vontade de
abandonar o colégio logo no primeiro mês de aula. Afinal, no fundo eu só
resolvi estudar lá para preencher meus horários vagos e parar de perseguir
Narda. Eu não ligava para a magia de Sinabil...
– Eu não acredito! Você aqui, T?
E lá estava a própria encarnação do mal para me levar à ruína: Niapam
Oravoa. Quem diria que eu iria reencontrá–la em outro país! E eu pensando que
tinha me livrado dela quando ela foi expulsa.
– Estamos estudando no mesmo colégio outra vez? Isso é sério?
– Quando fui expulsa, nenhum outro colégio de Tecraxei me aceitou. Por
isso, tive que me mudar para cá, para apagar meu passado.
– Você não apagou nada. Ouvi falar de uma aluna da minha sala que andava
aplicando bullying nas outras meninas. Eu devia ter adivinhado.

446
Fábula dos Gênios

– Vou adivinhar também: você ficou arrasado com a morte da sua musa, que
nunca olhou para a sua cara, e se mudou para longe para apagar as memórias.
No fundo, somos iguais.
– Você está enganada. Me mudei para cá porque minha namorada estuda
numa universidade daqui.
– Sua namorada dez anos mais velha, ou algo assim? O que ela ia querer
com uma criança? Se eu fosse da idade dela, namoraria um menino da sua idade
só para me aproveitar da ingenuidade dele. A propósito, essa sua namorada é
real ou imaginária?
– Essa pergunta era mesmo necessária? Ela é real.
– Dificilmente. Vindo do covarde que levou quatro anos para se declarar
para uma garota e não deve ter conseguido fazer isso nem com ela morta. Então,
me conte tudo! Em quantas décadas você terá coragem de dar nela o primeiro
beijo?
– Meu namoro não te interessa. Sugiro que não fale comigo. Eu não quero
ser visto conversando por aí com alguém como você. Isso estragaria minha
reputação.
Eu tava me fodendo para minha reputação. Só falei isso para provocá–la. E
funcionou. Ela deu um sorriso malévolo.
– Em breve você será destruído.
Cara, até parece que eu tinha medo daquela vaca. Mas eu temi por Tchuu. Se
ela arrumasse um meio de destruí–lo, eu entraria em desespero. Era minha
última lembrança quase viva de Lipsei.
Pelo menos eu sabia que com Niapam como colega meu tempo naquele
colégio não seria monótono.
Entrei atrasado e precisei recuperar meu tempo perdido com provas e
trabalhos extras. Logo eu soube de outra novata que havia entrado com atraso,
assim como eu.
– Você ouviu falar que tem uma nova aluna que é construtora? Ela tem uns
11 ou 12 anos. Ela escapou viva da guerra! Anda numa cadeira de rodas. E mais:
há quem diga que ela é a princesa. Parece que ela tem um anel.
Aquela sim era uma notícia bombástica. Uma vez eu vi a menina de cadeira
de rodas e chiquinhas cor–de–rosa no corredor. Eu não falei com ela, até
porque eu não teria o que falar. Ela provavelmente não gostaria de saber que eu
trocava mensagens de texto com meu amigo Derradeiro. Na verdade eu falava
com o Suaten e ele mandava meus cumprimentos para Zraba. Mas Suaten estava
ensinando o parceiro a usar um computador, embora ele não tivesse muito
entusiasmo para aprender outros idiomas.

447
Wanju Duli

Aquele meu tempo na Escola Selo de Oles foi bastante produtivo. Eu


fortifiquei minha bagagem linguística. E o conhecimento de álgebra e geometria
com certeza era precioso para fortalecer as bases da minha magia robótica.
E, novamente, a cada país que eu visitava, eu absorvia um pouco sobre a
magia daquela terra. Absolutamente tudo o que eu aprendi em cada canto do
mundo faria parte do sustentáculo de uma magia muito mais extraordinária que
eu desvendaria.
Mas enquanto eu não alcançava aquele nível intuitivo, me dava a impressão
de que eu era apenas mais um mago comum. E quando peguei duas
recuperações, em gramática e retórica, Niapam me humilhou publicamente,
clamando em voz alta o quanto eu era péssimo em linguística.
– Eu li sua redação. Tem erros tão idiotas! Ele escreveu tudo num parágrafo
só. Sabia que existem coisas chamadas ponto e vírgula, babaca? Se duvidar, ele
escreveu o texto inteiro numa só frase gigante, do início ao fim. Está
incompreensível! E sua letra é completamente ilegível.
– Eu tenho boas ideias, é isso que importa. Isso que você citou é apenas a
forma. O importante é o conteúdo.
– É com base nesse raciocínio que você se veste tão mal? Você não sabe
escrever e nem mesmo falar. Devia ser alfabetizado novamente. Você gaguejou
tanto quando leu seu texto em voz alta lá na frente que quase senti pena!
– Eu não sou gago. Mas sou tímido. Só por isso que me dei mal em oratória,
e por nenhum outro motivo. Eu tenho bons argumentos. Tirei 8 em lógica.
– E eu tirei 10.
– Eu costumo me sair melhor em exatas do que em humanas.
– Então por que todas as minhas notas são melhores que as suas?
Ela era a melhor aluna da turma outra vez. E só por causa disso, ela se via
no direito de criticar todos os outros.
Ela logo começou a reunir algumas seguidoras e admiradoras. Eu estava
pensando seriamente em mudar de colégio. Para completar, ela se aliou à melhor
aluna da classe da construtora, chamada Djam. Ela desejava acabar com a
menina também. Coitada, ela tinha perdido o país, pais e amigos na guerra,
estava numa cadeira de rodas e a Niapam queria ferrá–la ainda mais?
Eu estava farto de viver num mundo assim. Ou eu só atraía pessoas
esquisitas para perto de mim. Nem minha namorada podia me ver com
frequência e Niapam amava me lembrar disso. Ela ainda não acreditava que eu
tivesse mesmo uma namorada.
– Pois hoje eu irei apresentá–la para você. Venha comigo até a universidade.
Eu não gostava de ser chamado de mentiroso. Era questão de honra.
Niapam aceitou o convite, toda contente. Quando chegamos lá, apontei para
Narda.

448
Fábula dos Gênios

– É aquela ali.
– Você nem tem coragem de chegar perto dela? Eu quero que você a beije
na minha frente. Somente assim eu ficarei convencida.
Eu tinha medo de perturbá–la. E não era sempre que Narda topava me
beijar em público. Se ela recusasse na frente de Niapam, seria mais humilhante
do que se eu tirasse nota zero em todas as disciplinas do colégio.
Mas, pensando bem, agora era eu que estava exibindo minha namorada para
os outros. Aquilo não era correto.
Contudo, algo muito pior aconteceu. Quando Narda olhou na minha
direção e notou minha presença, Niapam me deu um beijo na boca. Não
consegui impedir. Foi muito súbito.
Narda fitou–me incrédula. E, para meu horror, Niapam ainda armou um
barraco no meio da universidade.
– Quem é aquela vadia? Então você está namorando a nós duas ao mesmo
tempo? Eu não acredito! Seu cachorro!
Niapam me deu um tapa na cara e saiu de lá. Provavelmente ela estava
gargalhando com sua vitória logo depois.
Narda foi até onde eu estava e não foi capaz de pronunciar uma palavra.
– Espere! Eu posso explicar...
Mas ela não quis ouvir. E saiu. Lá fui eu correr atrás dela. De novo, e de
novo...
– Ela é minha colega. E não acreditava que eu tivesse namorada. Vim aqui
para te apresentar pra ela, e...
– Eu não quero saber. Apenas vá atrás dela. Quem sabe você ainda consiga
salvar uma de nós.
E ela me deu as costas.
Meu... desde a conversa com a adivinha, eu não me lembrava de ter ficado
assim tão furioso.
Sério, eu fiquei puto com Niapam. Quando eu a vi no dia seguinte, ela me
cumprimentou com uma expressão zombeteira.
– Você é tão sujo, T. Roubou um beijo meu na frente de sua namorada!
Você está assim tão apaixonado por mim?
– Por que fez aquilo? Você não consegue ver alguém feliz que já quer
estragar tudo?
– Do que está falando? Eu sou a melhor da classe. É natural que você me
deseje, mas jamais imaginei que estivesse assim desesperado...
– Vai tomar no cu.
– Recém tivemos nosso primeiro beijo e você já quer meu cu? Que menino
pervertido...
Eu saí daquele colégio. Só aguentei um semestre. E foi até demais.

449
Wanju Duli

Naquele mesmo dia, fui comunicar Narda da minha desistência. Expliquei


de novo que minha colega imbecil tinha me sacaneado. Narda nunca tinha me
visto tão zangado. Provavelmente por causa disso ela acreditou na minha
história. Fiquei aliviado.
– Fico feliz que você confie em mim.
– Você vai se transferir para outro colégio em breve, certo? Isso será
importante para seu futuro.
– Sim, eu vou...
Eu não estava muito animado para fazer isso. Mas tínhamos recém nos
reconciliado e eu não queria arrumar mais motivos para contrariá–la.
– Sabe, eu tenho um tempo livre hoje. E a menina que divide o quarto
comigo vai sair para uma festa. Então o apartamento estará vazio essa noite...
Aquela foi a melhor notícia dos últimos meses. Eu concordei na hora.
Fomos até o apartamento.
Narda trancou a porta e, logo após, começou a me beijar. Beijos muito
intensos. Ela nunca tinha feito daquela forma antes. Eu pude sentir o gosto
daqueles lábios profundamente.
Estávamos nos pegando pra valer. Coloquei a mão na bunda dela. Eu
respirava rápido. Ela começou a arrancar minha camisa. Eu fiz o mesmo com
ela. Meu coração pulsava enquanto eu abria os botões da blusa dela, com as
mãos trêmulas. Os ombros nus se revelando lentamente.
Os peitos dela eram grandes. Como eu era sortudo... Tentei tirar o sutiã, mas
não consegui. Nós dois rimos. Quando eu realizei esse feito, passei as mãos
neles com cuidado.
– Pode apertar mais forte.
Ela sussurrou no meu ouvido. Eu estava passando as mãos no corpo inteiro
dela e beijando–a onde meus lábios alcançavam: no pescoço, na barriga...
Quando ela baixou minha calça e tirou minha cueca, eu estava suando. Ela
segurou no meu pau como se soubesse exatamente o que fazia. E, sem o menor
pudor, me chupou.
Ela não era tímida. Nem perto disso.
Tirei o resto da roupa dela, agarrando forte naquelas coxas grossas. Chupei a
buceta e meti meus dedos lá. Quando ela estava lubrificada o suficiente, ela
subiu em mim e se deixou penetrar.
Ela dominou aquela transa. Cavalgava com destreza. Foi somente no sexo
que eu descobri como aquela garota era poderosa.
Aquele corpo suado era repleto de curvas espetaculares. Narda mexia a
cintura de uma forma tentadora. Contraía a vagina constantemente, apertando
meu caralho de um jeito que me dava um prazer que eu jamais sentira. Como se
ela desejasse devorar cada pedaço do meu corpo.

450
Fábula dos Gênios

Ela me beijou mais, lambendo meu rosto. Arrastava as mãos nos meus
braços e no meu peito, com aquelas unhas longas. Ela queria me rasgar. Eu
gostava disso. Principalmente quando ela gemia como uma cadela no cio.
Ela agarrou meu saco e massageou–me, enquanto enterrava mais a buceta
no meu cacete.
– Hun... nhawnnn... unnhh...
Eu estava pirando. Aquela mulher era muito gostosa! Gemendo assim, eu
não me segurava. Sentei–me e lambi os peitos dela. Agarrei aqueles cabelos
negros.
Eu fazia movimentos fortes para enterrar meu pênis bem fundo. Estava
quase gozando. E foi no auge do meu prazer, quando meti minha porra nela,
que enxerguei, em completo horror: ela tinha uma lemniscata no pulso.
Ela percebeu que eu olhei. E, antes que eu saísse de perto dela, ela apertou
meu saco com força.
– Você não vai para lugar algum, mago robótico.
Ela meteu as unhas. Eu gritei. Depois disso, eu a fitei com ódio extremo.
– Filha da puta...!
Tentei bater nela. Mas ela apenas segurou meu braço e aplicou–me uma
torção.
– Sugiro que fique bem quieto. Ou irei mastigar o seu caralho até decepá–lo,
menininho...
Eu estava nervoso. Confuso. Desesperado. Contudo, a fúria era muito mais
intensa.
Meu ódio foi tanto que caíram lágrimas.
– Por que fez isso? Por que me enganou? O que eu fiz a você, Deusa
miserável?!
– Eu teria matado Cromo naquela noite, enquanto ele estava doente. Agora
ele ficou mais forte. Seu robô me feriu. Eu exijo a cabeça dele.
– O que Cromo fez a você?
– Ele é o filho de Krashkah, a construtora que abriu o portal para a
dimensão dos Deuses mortos, o que gerou a supremacia dos destruidores.
– Ele é apenas uma criança. Eu tampouco sou uma ameaça.
– Cromo também tem sangue de destruidor. E, segundo a profecia, ele se
tornará o segundo mago mais forte do mundo.
– Fodam–se as profecias! Eu confiei em você. Isso foi muito pior que uma
traição. Eu perdi a virgindade com a assassina da garota que eu amava.
Doeu em mim pronunciar essas palavras. E eu chorei.
Foi tudo planejado. Ela atrasou o momento da transa somente para que eu
me apaixonasse cada vez mais perdidamente. Para depois revelar a sua
verdadeira identidade e me fazer sofrer, repleto de culpa e humilhação.

451
Wanju Duli

Os olhos de Narda se tornaram vermelhos e com uma expressão morta.


Aquele perfume. A voz poderosa. A energia magnífica. Tudo isso no corpo da
minha Narda. Como pude não reconhecê–la desde o começo?
Minha namorada tinha um cheiro diferente. Outro tom de voz. Ela
costumava prender os cabelos, usava óculos e aparelhos. Sem contar as roupas
comportadas. Era completamente o oposto da minha lembrança da Deusa do
Infinito naquele vestido vermelho decotado, com maquiagem pesada, cabelos
soltos e coberta de jóias.
Mas o principal era que as duas emanavam uma energia diferente. Então a
Deusa tinha esse poder de disfarçar até seu cheiro e sua energia? Por isso os
Deuses nunca eram facilmente encontrados.
A Deusa do Infinito gargalhou com gosto, contemplando minha tristeza e
minha vergonha. Minha derrota foi completa.
A sua provocação não tinha fim. Ela queria que eu a atacasse. Estava
pedindo por isso. Mas se eu chamasse T69, ela iria destruí–lo.
Porém, não fazer nada seria infinitamente pior.
Por isso, eu tirei Tchuu da dimensão na qual ele se escondia. E ordenei que
ele partisse o corpo dela ao meio.
Eu jamais pensei que seria tão fácil.
– NÃO, TAHA!
Quem gritou isso, segundos antes de meu ataque, foi a minha namorada.
Com seus olhos escuros e sua voz melodiosa. A Deusa do Infinito queria me
enganar outra vez. Mas eu não iria cair nesse truque imbecil.
Aquela cintura sensual e suada que antes dançava foi partida. Os ossos
foram quebrados e a carne rasgada. O sangue verteu. As vísceras se derramaram
no lençol, com os intestinos enrolando–se uns sobre os outros.
Mas minha fúria era tanta que isso não me satisfez. Ordenei que Tchuu
partisse o crânio dela ao meio, para que aquela bela face fosse completamente
desfigurada.
E assim se fez. O cérebro também se derramou. E aquela boneca quebrada e
macabra estava decididamente morta.
Mas, para meu horror, a risada espectral ainda ecoava pelo quarto.
– Eu somente possuí o corpo dela. Essa garota inocente, que era sua
namorada, jamais desconfiava de minha presença dentro de si quando eu a
colocava em transe e a induzia a realizar certas ações. Ela realmente te amou,
mago robótico. E você a matou, pensando que assim assassinaria a mim.
Senti uma sensação horrível.
Então era por isso que Narda às vezes se afastava de mim e outras vezes se
aproximava. A Deusa dentro dela desejava induzi–la a me agarrar, enquanto a

452
Fábula dos Gênios

verdadeira Narda ainda estava confusa sobre seus sentimentos. Não foi culpa
dela agir dessa maneira.
– Eu já conheci muitos magos tolos, que se deixavam levar pelas emoções.
Mas de todos os que já enganei, você, Taha Vorta, foi o mais ingênuo de todos.
Eu te desafio: tente me rastrear no próximo corpo que irei possuir. Se não
tomar cuidado, em breve pode acabar matando outra pessoa importante para
você. Eu vou rir de novo quando acontecer.
E a voz desapareceu. Assim como a majestosa presença.
Eu estava tremendo.
Não queria que a colega de Narda encontrasse o cadáver da amiga na cama.
Por isso, num ato impensado de desespero, toquei fogo naquele quarto.
Eu saí do país naquela mesma noite. Peguei um barco e coloquei–o à deriva.
O que eu mais desejava era seguir diretamente para Crava e matar a adivinha
pau no cu, como ela queria. Mas, segundo a própria previsão dela, aquilo ainda
demoraria alguns anos para acontecer. Quando eu fosse o mago mais forte do
mundo, talvez...
“Então Cromo será meu inimigo. O cara pelo qual a Lipsei deu a vida para
salvar”.
Quanto mais o tempo passava, mais eu acreditava que a profecia fosse
mesmo verdadeira. Mas quando eu fitava a mim mesmo, não entendia de onde
poderia vir todo aquele poder. Até então, eu era apenas um mago como
qualquer outro. Mas muito enfurecido.
Seria a fúria a chave que me concederia um poder tão grandioso?
“Não pense. Use sua intuição”.
Chamei T69, porque eu desejava abraçar alguém. Do jeito que Lipsei fazia
quando estava com medo. E o coração dele bateu junto com o meu.
Foi então que entendi: o coração metálico de Tchuu tinha uma parte de
carne, e aqueles músculos não eram somente do coração de Lipsei. Também
havia uma parte do coração de Narda ali dentro. Desde aquele dia em que T69
havia atravessado o peito da Deusa do Infinito.
Ele fez isso enquanto ela estava no corpo, como espírito. Isso significava
que, além da carne das duas, havia uma porção do espírito da Deusa naquele
coração. Essa seria a chave para derrotá–la.
Em sua vaidade, a Deusa preferiu me induzir a matar Narda para me fazer
sofrer, e deixar o rapto do meu robô para outra hora. Ela me achava tão
estúpido que pensou que eu não notaria a porção do espírito dela dentro
daquele robô.
Esse erro lhe custaria caro.

453
Wanju Duli

Peguei a minha bússola e dirigi–me para Tecraxei. Com o dinheiro que ainda
me restava, comprei uma série de peças metálicas numa loja. Fui até a casa de
Alburni e bati na porta. Ele ficou surpreso ao me ver.
– Cara, por onde tem andado? Faz, tipo, um século que não te vejo.
– Um ano, para ser mais preciso. Não tenho coragem de ir para a casa dos
meus pais depois de sumir por tanto tempo. Me quebra esse galho?
– Claro, meu. Entra aí.
Eu só precisava de um local reservado para trabalhar. Liguei meus
computadores portáteis, reuni as peças e dei início à operação.
– Precisa de ajuda?
– Pode deixar, eu me viro aqui. Mas um copo d’água seria ótimo.
E pelo resto do mês seguinte dediquei–me à tarefa de compreender o
coração de Tchuu. Eu realizava muitas meditações, tentando me conectar a ele,
mas estava complicado.
– Por que você não tenta...
– Nem pensar. Não vou alterar a programação original dele. Antes, desejo
desvendá–la.
– Lipsei fez algo assim tão complexo?
– Tem tantos erros nisso que está quase impossível decifrar. Preciso ler
dígito por dígito. Trabalho braçal e mental extremo. Não entendo a lógica que
ela usou nessa passagem...
Eu estava abusando da hospitalidade do meu amigo. Fiquei mais alguns
meses lá dentro, pesquisando em dezenas de grimórios de magia eletrônica, sem
muito progresso.
– Estou no último ano do colégio. Me formo daqui a alguns meses e acho
que terei nota suficiente para ser contratado pela Magaut. A prova do concurso
vai ser tranquila com essas notas para subir minha média. E um professor vai
enviar carta de recomendação para mim.
– Isso é excelente! Parabéns. Seu futuro está garantido. Diferente de mim,
que abandonei os estudos formais e estou destruindo meu futuro dia após dia.
Mais algumas semanas depois, resolvi deixar Alburni em paz. Ele tinha os
estudos dele e minha presença iria atrapalhá–lo. Ele nunca dizia nada, para não
ser rude. Por isso eu mesmo optei por me despedir, anunciando que já tinha
feito um grande progresso no meu estudo de T69.
E tive que perturbá–lo ainda mais, pedindo dinheiro emprestado para minha
próxima viagem.
– Ah, meu, não vai rolar. Se eu já tivesse começado a trabalhar até te dava
meu primeiro salário, mas...
– Nossa, imagina. Nem esquenta com isso.

454
Fábula dos Gênios

Em vez disso, ele colocou na minha mochila algumas comidas em conserva


que havia no armário dele. E me deu algumas moedas de sua carteira, ainda se
desculpando. Eu me senti mal com isso, porque era eu que estava dando gastos,
aparecendo assim do nada. Ele não tinha a obrigação de me ajudar.
Eu pretendia ir de navio, mas não rolou. Tive que encarar os perigos de uma
viagem de barco. Fui parar na floresta de Samerre: aquele local místico repleto
de árvores azuis.
A energia daquele lugar me estimulava a fazer magia. Passamos tanto tempo
sozinhos, somente eu e T69, que eu perdi a noção de espaço e tempo. Eu estava
mergulhando cada vez mais em viagens dimensionais, por intermédio de
meditações fantásticas.
Até que meu coração encontrou o coração dele. Era o ritual do Grimório da
Automação conhecido como “Controle do Coração Autômato”. Era quando
seu coração se tornava um com o coração do RP.
E aquele não era qualquer coração metálico. Eu poderia resgatar lembranças
daquelas três existências: Narda, Lipsei e até da Deusa do Infinito. Porque havia
uma porção do espírito das três naquele autômato.
A energia que utilizei para fazer aquilo foi imensa. Uma enorme bola de
raios elétricos, que fazia meu corpo inteiro doer. Assim que eu atingi o ponto
chave, desmaiei.
Acordei com alguém me cutucando. Qual não foi a minha alegria de
encontrar Tchuu ao meu lado, realizando novos movimentos!
– Bom dia, mestre.
– Bom dia!
Que surpresa! Eu havia realizado o maior sonho de Lipsei: tinha feito Tchuu
falar. Agora eu já podia morrer feliz.
Sentei–me. Eu sentia um peso enorme no peito, como se carregasse dentro
de mim uma bomba relógio.
– Estou com fome...
Tchuu, muito prestativo, voou até uma árvore próxima e colheu algumas
frutinhas. Trouxe–as para mim.
– Muito obrigado, Tchuu.
– Às suas ordens, senhor.
Mas havia alguma outra coisa estranha no meu corpo. Eu me sentia
diferente. Era como se eu tivesse me esquecido como se movia meu corpo.
É natural para nós realizar atos como respirar ou mover as pernas e braços.
Só que eu não me lembrava mais. Até mastigar era complexo. De repente, eu
havia adquirido uma consciência enorme a respeito de mim mesmo.
– Eu sinto como se meu corpo estivesse morto.
Então o que ainda vivia em mim?

455
Wanju Duli

Coloquei o braço para frente. E ele adentrou uma dimensão. Retirei–o,


assombrado.
– Tchuu... que dia é hoje?
– Hoje é o seu aniversário de 22 anos.
– Mas COMO? Eu cheguei nessa floresta com 18! Como é que quatro anos
se foram sem que eu notasse?
– Porque você estava se divertindo tanto com seus experimentos de magia
que não viu o tempo passar. Essa floresta está repleta de dimensões de Deuses e
existe distorção da percepção temporal.
Eu achava que estava lá somente há alguns meses. Embora aquela terra fosse
um encanto de paz e mistério, achei melhor me retirar antes que minha vida
inteira se passasse e eu não percebesse.
Eu tinha dificuldade para caminhar até o barco. Resolvi me acostumar outra
vez com meu corpo antes de partir.
Era impressão minha ou eu tinha me tornado extraordinariamente forte?
Como é que eu podia penetrar nas dimensões assim, de repente? Aquilo parecia
até técnica de destruidores. Ou Deuses...
Mas eu estava vivo. Será que meu corpo desejava desesperadamente se
separar de mim, para mergulhar nos prazeres dimensionais?
A não ser que eu conseguisse me tornar apenas um com o mundo. Os
Deuses só obtinham aquele alcance de força por não ter a limitação da carne.
Mas eu poderia realizar o caminho inverso. E se eu fosse capaz disso, tornar–me
o maior mago do mundo, com uma existência mortal e mantendo meu corpo,
não seria absurdo.
Eu não precisava destruir meu corpo como os destruidores. Ou nem matá–
lo, como os Deuses. Bastava... enganar a mente, através de algo falso!
Um robô. Era só isso que eu precisava. Para desviar a atenção da energia,
assim como os construtores e destruidores faziam com suas entidades.
Um destruidor movia–se constantemente para o interior do maligno,
deixando seu corpo lá fora como um fantoche. Assim, nunca se sabia ao certo
onde a energia estava focada em dado instante. Eles deixavam metade do corpo
físico no estômago dos malignos, para salvar–se em caso de morte. Aquilo era
muito engenhoso.
Pois eu iria mais longe. Eu tinha um autômato. Ele obedecia fielmente a
minha programação. E a minha diferença em relação aos outros magos
eletrônicos era que eu também tive contato com magia de Derradeiros e
vivenciei energias fortes da floresta dos Deuses mortos por quatro anos. Minha
alma absorveu uma parte daquilo.
E mais: eu era capaz de transformar aquilo num grimório. Diferente dos
destruidores, eu podia traduzir logicamente o processo intuitivo. Pelo menos a

456
Fábula dos Gênios

base dele, já que a construção de robôs seguia certos padrões, o que não
acontecia na geração de malignos.
E eu estava tão viciado que escrevi o maldito grimório! Dediquei os
próximos dias a isso. Montei–o, testei–o, revisei–o. Obtive meus direitos
autorais e depois coloquei à venda na internet. Se eu conseguisse comprar uma
bala com as vendas daquele grimório já seria boa coisa.
Olhei no calendário e percebi que um mês já tinha passado. Era hora de
partir. Dali a pouco eu iria esgotar todas as frutas da floresta de Samerre...
Foi então que notei a origem da minha dificuldade em caminhar. Eu estava
muito magro, vivendo só de frutas e vegetais. Eu ficava a maior parte do tempo
parado, mas ainda assim era dureza. Meu cérebro trabalhava tanto fazendo
magia que exigia energia extra.
Finalmente peguei o barco. Eu dormi no caminho. Quando acordei, vi um
rosto bastante familiar.
– Mas se não é o futuro maior mago do mundo! Onde você estava não tinha
sinal, cara? Você ficou incomunicável. Sempre cheio de segredos.
– Porra, Suaten. Onde é que eu tô, velho?
– Narrara.
– Ah, droga. A terra dos livreiros. Me ferrei. Odeio ler.
Cobri a cara com o chapéu novamente, esperando que meu barco pudesse
me levar para qualquer lugar sem literatura. O meu Grimório de Corações
Eletrônicos tinha mais números e conceitos do que linguagem poética.
– Ah, vai te foder, Taha. Deixa de frescura e olha essa merda aqui.
Ele colocou um folheto na minha cara.
– Ahh... hãã? “Campeonato de magia”? Deixa disso, camarada. Essa bosta
aqui é pra criança. Por que eu entraria nessa palhaçada? Só deve ter adolescente
mal comido se achando bonzão.
– Por causa do prêmio em dinheiro.
– Opa. Por que não falou antes?
– Espero que tenha aprendido algo de valor nesse seu retiro espiritual. Eu
treinei pra caralho. Vou levar o Zraba junto para ele intimidar metade daqueles
bostinhas. Se um de nós três ganharmos dividimos o prêmio com os três,
combinado? Porque é uma bolada.
– Fechado. Essa besteira vai servir pra me aquecer.
A série de batalhas mágicas que aconteceria a seguir seria memorável. Eu
mesmo ficaria espantado com minha própria força. E completamente
embasbacado quando descobrisse do que meu RP era capaz.
– Depois vou precisar da ajuda dos livreiros para divulgar um grimório
muito especial.
Energizei o meu cajado. No dia seguinte eu não iria dormir de barriga vazia.

457
Wanju Duli

Capítulo 3: A Deusa da Libido

Meu nome é Caliderina. Deusa de nascimento.


Alguns dizem que não mais existem Deuses de carne, mas eles estão
enganados. Somos poucos e estamos escondidos. Não importa o lugar. Os
mortais raramente compreendem com clareza as dimensões de espaço do
mundo oculto.
Somos seres deformados. A imortalidade é uma gaiola. Quando eu soube
que jamais morreria, desejei me soltar do corpo a qualquer preço. Minhas
tentativas de suicídio foram em vão.
Entre os Deuses, aquele que descobre como morrer é visto como herói.
Está entre os Deuses mais poderosos: os que deixaram de existir. Como
dimensão, apenas pulsam e se apagam.
– Nós somos amaldiçoados.
Minha mãe assim me dizia. E eu odiei minha condição. Eu era diferente.
Não me encaixava em nenhum lugar.
As magias mais extraordinárias da terra são aquelas que encaixam.
“E de repente, tudo faz sentido. A conexão foi estabelecida. O que deveria
ser feito, foi feito”.
Eu não me via pronunciando essas palavras. Para os mortais, basta matar o
corpo que ocorre a liberdade. O espírito voa como um pássaro para abraçar os
planos de açúcar e mel. Sim, é como se descreve: doces, pois a sensação está
além das palavras.
Eu não era como eles. Não fui abençoada assim.
Por que os seres humanos temem a morte? Aquilo que eles temiam era o
que eu mais cobiçava. Mesmo se um dia eu realizasse uma magia forte capaz de
me soltar do corpo, o meu espírito não voaria com os dos mortais.
Permaneceria a vagar como um fantasma. De que adiantava obter poder ao
longo de toda a minha imortalidade se minha mente jamais encontraria um
refúgio seguro?
Os Deuses não sabem amar. Eles invejam a mortalidade dos seres humanos.
Gostaríamos de ser como eles e, como não somos, nos tornamos vaidosos.
Fingimos superioridade. E queremos destruí–los.
Meu melhor amigo se chama Mioae. Ele é Deus como eu. E com ele não me
sinto a única a ter dor.
– Você é a Deusa do Infinito. É a senhora do tempo. Se existe alguém capaz
de abreviar sua existência, é você.

458
Fábula dos Gênios

– E, como Deus da Mentira, você tem o poder de enganar a verdade de


nossa imortalidade.
– Um desafio. Isso me soa forte. Veremos quem será o primeiro a desvendar
o segredo da morte.
Quando fizemos essa aposta ambos tínhamos oito anos.
Infelizmente, fomos separados.
Eu fui mandada para Consmam e Mio para Bruznia. Em Consmam sofri
muito preconceito, porque eu não tinha um gênio ou uma ligação. E não
possuía o poder de morrer como eles.
Eu era ridicularizada pelas minhas colegas.
– Ela diz que é uma Deusa. Se é mesmo imortal, será que se eu arrancar um
pedaço, ela continua viva?
Ela decepou minha mão. Eu gritei. Depois ela simplesmente costurou–a no
lugar.
– Nossa, não ficou nem cicatriz! Ei, meninas! Venham despedaçá–la comigo.
A Cali é uma boneca viva.
Elas se divertiam em arrancar partes minhas e depois costurá–las. Eu
também fazia isso no meu coelhinho de pelúcia, mas até ele se desmanchava
quando ficava rasgado demais.
Eu tinha medo delas. Eu corria quando minhas colegas construtoras
chegavam com serras, linhas e agulhas. Até que um dia elas vieram com fogo.
– Será que essas mechas douradas também voltarão? Ou a Caca vai ficar
carequinha?
E veio o fogo. Elas me amarraram numa árvore. E eu fui queimada viva.
A árvore virou cinzas. Eu derreti, mas depois meus ossos e minha carne
voltaram para o lugar. Até mesmo meus cabelos. Mas meu bichinho de pelúcia...
eu o perdi para sempre. E chorei.
Meu vestidinho foi consumido pelo fogo. Até mesmo meus laços de fita. Eu
abracei meu próprio corpo, com frio. Não sabia onde estava ou para onde ir. Eu
tremi.
Quando vi um garoto por perto, levei um susto! Eu estudava num colégio
feminino. Não estava mais acostumada com a presença dos meninos, depois de
um ano inteiro naquele ambiente.
– Não se aproxime!
Mas ele apenas me estendeu sua capa.
– Eu sei quem você é. Cubra–se com isso.
Eu aceitei a oferta e enrolei–me na capa. O menino sentou–se ao meu lado.
– É duro ser uma Deusa?
– Apenas vá embora! Você não faz ideia.
– Quer que eu te conte um segredo? Eu tenho sangue de destruidor.

459
Wanju Duli

Eu o fitei com estranheza.


– Sabe, esse boato acabou vazando na minha escola recentemente. Desde
então, a convivência com meus colegas se tornou insuportável. Vou poucas
vezes para a aula. Passo a maior parte do tempo trancado no meu quarto
navegando na internet. Quebrando códigos. Desafiando meus limites.
– Você não tem amigos?
– Bem poucos. Mas você é mais parecida comigo do que eles.
Ele levantou uma parte da calça e mostrou a perna decepada, na qual havia
um implante metálico.
– Meus colegas arrancaram minha perna. Mandaram que meu maligno me
curasse. Mas eu não tenho um maligno. Por isso, tive que estudar magia
robótica. Para ter minha perna de volta... desde então, eu mergulhei no universo
dos computadores.
– A sua perna não se regenera como a minha. Você tem sorte. Assim não
irão arrancá–la mil vezes, como fizeram a mim.
– Não aguento mais viver num mundo assim. Eu sinto que, não importa
para onde eu vá, as pessoas ao meu redor sempre arranjarão motivos para me
odiar. Também não vejo esperanças no mundo dos adultos. Prefiro a morte.
Você quer morrer comigo?
Ele me estendeu a mão. Meus olhos brilharam, mas... eu logo baixei a cabeça.
– Infelizmente, eu sou imortal.
– Eu conheço muitos grimórios. Eu juro que arranjarei um meio de arrancar
a sua vida.
– É uma promessa.
E eu esperei. O dia em que meu salvador retornaria com o tesouro mais
cobiçado.
Ele estudava muito. Não encontrava uma solução. Até que um dia resolvi
revelar–lhe um segredo.
– Eu conheço a língua dos Deuses. É proibido contar para os mortais. Mas,
se esse conhecimento trará o fim da minha existência, eu te entrego.
Ele se impressionou. E, com isso, eu dei a ele a chave para ir mais longe do
que jamais sonhou.
Ele estava começando a se viciar no conhecimento. Quebrava cada vez mais
barreiras no mundo virtual. Afinal, ele conhecia aquele idioma que, para os
mortais, significa quase livre acesso a mistérios de muitos tipos: do mundo físico
e do espiritual.
Eu sentia que ele estava perdendo sua vontade de morrer. Ele desejava viver
mais para aprender mais. Aquilo era inaceitável.
– Você prometeu que morreríamos juntos!

460
Fábula dos Gênios

– E eu descobri um caminho para destruir seu corpo. Contudo, não estou


certo sobre o destino de seu espírito.
– Não importa! Só quero me livrar dessa quimera de carne, que me traz dor
infinita.
Ele traçou um círculo no chão ao meu redor. Símbolos estranhos. Realizou
cálculos. Eu não entendia o que ele fazia.
– Eu também não entendo. Acredite em mim: entender não é necessário. O
mais importante é sentir. Eu vou fazer isso funcionar. Os meios utilizados
ultrapassam o limite da verdade.
Eu senti uma energia estranha emanando ao meu redor.
– Eu vou transferir a sua alma para este autômato. E depois irei destruí–lo.
– E você? Como morrerá?
– Eu já estou morto. Para ser mais preciso, nesse instante encontro–me na
tênue linha entre a vida e a morte. E logo viverei para sempre. Porque irei
roubar a sua imortalidade.
Meu corpo foi imediatamente carbonizado por aquela luz verde. E logo após
transferir–me para o corpo do robô que ele construíra, ele destruiu o robô em
mil pedaços.
– Você queria morrer. Eu apenas atendi ao seu pedido. Cumpri minha
promessa. Eu não vou usar sua imortalidade por vaidade. Eu desejo defender o
meu povo. Sei que um dia os destruidores virão. Sou um construtor? Ou um
destruidor? Não sei. Eu sou tudo e não sou coisa alguma. Eu amo e odeio todos
os povos. E, em meio a essa realidade de confiança e traição, eu busco o poder.
O poder não julga. Ele apenas acontece, tal qual a vida e a morte.
Do carvão, o meu velho corpo regenerou–se. Mas a partir de então, era
apenas um cadáver, sem mente ou vontade. Ele trancou meu corpo num caixão
de vidro protegido por escudos mágicos. Ele mesmo usava uma defesa
impenetrável. Eu não era mais capaz de destruí–lo, mesmo através do meu
poder de Deusa.
Onde eu estava? Eu não me tornei uma dimensão. Meu espírito era
defeituoso.
Quando os destruidores atacaram Consmam, dois anos depois, eu senti
satisfação. Sempre observando de longe.
Eu odiava os construtores. Ao mesmo tempo, eu amava e odiava Cromo.
Ele tirou minha vida, como pedi. Porém, enganou–me para roubar o idioma dos
Deuses e o segredo da minha imortalidade.
Por isso, eu senti raiva dos destruidores, que deformaram o corpo de meu
salvador. Afinal, era eu quem desejava fazê–lo. Somente eu me via no direito de
puni–lo.

461
Wanju Duli

Eu não sou uma boa pessoa. Para mim, todos os seres humanos são iguais.
Portanto, eu não me importava de usar seus corpos e de fazê–los sofrer, como
uma vingança. E aquilo continuaria infinitamente, até que eu obtivesse a cabeça
de Cromo D’aship.

Eu fiquei abismado.
Naquela noite, antes do dia do grande campeonato de Narrara, espiei o
coração da Deusa do Infinito, dentro de Tchuu. Nele havia pedaços de
memórias, que eu tive que resgatar do banco de dados.
Eu jamais imaginei que a Deusa do Infinito fosse uma garotinha com um
passado tão sombrio, que perdeu o corpo aos nove anos. Eu não olhei tudo,
porque não tive coragem. Havia regiões do coração com uma energia muito
mais amarga, o que indicava sombras ainda mais profundas em seu passado.
Isso não justificava nenhuma das atrocidades que ela fez. Por outro lado, a
mente dela era a de uma criança. Como julgar uma criança assassina?
Eu também queria espiar as memórias de Lipsei. Contudo, eu não desejava
invadir a privacidade dela. Mesmo ela estando morta, achei que isso fosse errado.
No próximo dia, surpreendi–me ao constatar como havia desafiantes para o
campeonato. A platéia também era grande. A maioria dos magos seria de
livreiros, mas também havia uns sujeitos de outras terras.
– E aí, quem vai ser teu primeiro adversário?
– E eu vou saber? Me passa a lista.
– Que lista?
– Esse cacete que tu tá segurando.
Suaten me passou a relação dos nomes. Eu conferi.
– Tá cheio de desgraçados que eu não conheço. Que merda, hein? Espero
que não me coloquem para lutar com um mago muito fodido. Opa! Como é que
tá, Z?
Nem tinha visto Zraba lá. Parecia um vulto negro.
– De boa. Onde estão os caras fortes? Não tem nenhum famoso?
Ele tinha aprendido o idioma dos livreiros naqueles quatro anos. Ele
provavelmente já estava pronunciando até melhor do que eu.
– Cara, nesse campeonato só vai dar um bando de punheteiros paga pau de
mariola. Saca só aquele jeca chupa rola.
Apontei para um mago aleatório que de tão bebum mal se mantinha em pé,
se apoiando num cajado de madeira podre.
Suaten teve que traduzir meus xingamentos para Zraba, que ainda não
entendia tudo. Bem, e eu não entendia metade dos xingamentos do Derradeiro.

462
Fábula dos Gênios

A primeira batalha foi entre dois adolescentes que mal sabiam montar
círculos de proteção. Eu estava bocejando.
– Me acordem quando acontecer algo interessante.
Eu me encostei na parede e baixei o chapéu. Pior que acabei dormindo
mesmo.
Acordei com muitos gritos. Era o duelo de Zraba, que evocou seu gênio de
sacrifício, assombrando a todos. Eu mesmo deixei meu chapéu cair com o que
vi.
Aquele gênio era ainda mais macabro que um maligno. Metade dele estava
sem pele e carne, com órgãos à mostra e um coração pulsante, pingando sangue.
Algumas vezes eu não me dava conta que meu amigo era um destruidor.
Forte pra caralho. Mas nas poucas batalhas que eu o vi lutar, ele só usou selos
multidimensionais. Eu nunca tinha visto o gênio do cara. Era a primeira vez.
Mas para ele ter usado aquele gênio só podia estar enfrentando alguém muito
poderoso.
Para a minha surpresa, era um mago robótico. O RP do sujeito era
gigantesco. O mago tinha olhos e cabelos pretos. Eu conhecia aquele rosto.
– Sovishka...!
O cara do grampo dourado. Ah, velho!
– Você conhece o mago eletrônico?
– Meu, o mundo dos magos é um cu. Todo mundo se conhece nessa porra!
– Quando você se torna forte, cedo ou tarde acaba topando com os sujeitos
mais poderosos.
– Ele é meu ex–colega. Sempre o admirei. Ele era popular desde o tempo de
colégio. É uma honra vê–lo lutar.
Os selos eletrônicos de Sovishka contra os selos geométricos
multidimensionais de Zraba. O confronto entre as entidades também era de
deixar o queixo cair. A platéia não parava de fazer barulho. De minha parte, eu
estava silencioso e em transe, para não perder nenhum movimento.
Até que Sovishka pronunciou algo impressionante:
– Eu me rendo.
Porra! Bastaram alguns segundos de batalha para que ele captasse a
dimensão da força do Derradeiro. Ele viu que era barra pesada e ia acabar
perdendo seu RP. O autômato de um mago robótico é muito mais importante
que dinheiro ou glória.
Mas depois disso a galera soube que havia um destruidor participando do
campeonato. A maioria dos desafiantes desistiu. E a platéia aumentou
assustadoramente. Cada vez chegava mais gente, ansiosos para assistir ao
Derradeiro.

463
Wanju Duli

E a confusão começou. Houve certa polêmica sobre a presença dele. Alguns


queriam barrá–lo, pois achavam covardia que ele participasse.
Aqueles que não conheciam a lenda dos Derradeiros se referiam a ele como
“o destruidor de capa negra” ou “o destruidor morto–vivo”.
Zraba tentou explicar para os jurados que os Guardiões tinham uma força
diferente daquela dos destruidores, já que eles não se especializavam em lutas e
sim em estudar as dimensões. Mas ninguém queria saber daquilo. Ele era um
destruidor e pronto. Mesmo que estivesse entre os mais fracos já seria um
problema.
Mas como a platéia queria vê–lo e os poucos desafiantes restantes estavam
ansiosos para enfrentá–lo, permitiram que ele ficasse.
Zraba ficou meio aborrecido por ter que dar satisfações. Quando voltou
para onde eu e Suaten estávamos, resmungou qualquer coisa sobre os
“insignificantes livreiros caipiras”. Eu ri.
– Minha vez. Vou nessa.
– Deixe seu adversário acertar pelo menos um ataque, por caridade.
Ele duelaria contra uma garota de Crava. Ela era gata. Os caracóis negros, a
pele morena escura. O vestido marrom e dourado era fascinante.
– Eu comia.
– Eu não.
– Eu sei.
Mas o primeiro ataque dela me assombrou. Eu não entendi o que aconteceu!
No segundo seguinte, Suaten já estava no chão, protegendo–se ajoelhado, junto
com seu precioso grimório. Nem teve tempo de recitar o primeiro trecho. Uma
fumaça roxa ainda estava perdida no ar.
– Porra.
– Só.
Mas Suaten não se deu por vencido. Levantou e começou a ler a primeira
frase, tentando evocar suas criaturas. Contudo, antes que ele pronunciasse o
trecho seguinte, a garota pronunciou por ele. Depois disso, ela recitou o trecho
em ordem reversa e anulou a magia.
– Eu não acredito...
A cada página que ele tentava ler, a mocinha já conhecia o trecho seguinte.
Ele colocou a mão no bolso para retirar outro grimório.
– “Eu deterei a idiossincrasia das máquinas”.
Ela já sabia de antemão qual grimório ele selecionaria e o trecho escolhido.
Suaten ficou zangado e lançou seu grimório no chão. Saiu de lá.
Quando a platéia berrou com a vitória da moça e Suaten voltou para onde
estávamos, ele estava puto.
– Eu nunca fui tão humilhado.

464
Fábula dos Gênios

– O que você poderia fazer contra isso? Ela lê o futuro. Sabe as magias que
serão escolhidas.
– Ela não tem honra.
Quando o nome da maga foi pronunciado, eu levei um susto.
– Leassa Cazara? Eu conheço esse nome! É a criança prodígio. Quando eu a
conheci, ela tinha só onze anos. Seis anos se passaram. Inacreditável!
Eu teria que lutar contra ela. Era minha vez de batalhar. Antes que eu
subisse na arena, Zraba me alertou.
– Cuidado para não vencer. Ou terá que lutar contra mim.
Pelo jeito, o Derradeiro estava a fim de ganhar o “campeonato dos caipiras”.
Eu tava ferrado.
Aquele campeonato já tinha se tornado uma palhaçada, com todo mundo
abandonando a luta depois de ver o Derradeiro. Pelo jeito só tinham sobrado os
caras fortes. O prêmio já estava ganho, contanto que aquela menina não
atrapalhasse. Não era possível que ela vencesse de Zraba também.
Leassa ficou maravilhada quando me viu. E o pior de tudo: eu estava com as
mesmas roupas de quando ela me conheceu. O que ela ia pensar de mim?
– Oizinho.
– E aí, faz tempo...
Até fiquei meio sem jeito de falar com ela, agora que ela era uma moça tão
atraente. Ela notou meu embaraço, mas apenas sorriu.
– Sugiro que lute para valer, Taha Vorta. Não se permita distrações.
– Se já sabe o resultado desse confronto, Leassa Cazara, por que não me
conta?
Mais um sorriso misterioso. Ela elevou seu cubo negro ao alto, que flutuou.
A platéia se manifestou. Aquele cubo devia significar algo como o gênio: ela ia
pegar pesado desde o começo. Ela não usou aquilo contra Suaten.
Tirei meu RP da dimensão na qual ele se escondia. Por enquanto eu o
deixaria como escudo, atacando somente com selos eletrônicos.
Mas não adiantava o que eu fizesse: aquele cubo refletia todas as minhas
magias, como um espelho. Como é que se vence de uma maga que é capaz de
ler seus pensamentos e adivinhar o ataque seguinte?
Bastava não pensar. Eu precisava realizar uma luta puramente intuitiva.
Aquilo seria complicadíssimo. A maior parte dos meus selos era construída com
base em esquemas de circuitos elétricos e eletrônicos. No meu último selo
elétrico houve um processo racional do controle sobre o cálculo de voltagem
das correntes contínuas ou alternadas. Era algo meio porreta fazer aquilo por
intuição. Mas não era o que os destruidores faziam?
Somente um selo altamente energético poderia derrubá–la. Mas até então ela
dominava completamente aquele embate.

465
Wanju Duli

Ela sorria, mas era muito cuidadosa. Será que ela temia minha força? Ela via
o futuro. Tinha dito que eu me tornaria o maior mago do mundo. Então aquele
conhecimento a afetaria psicologicamente naquela batalha. Bastava eu
demonstrar confiança para intimidá–la.
– T69, destrua aquele cubo.
Tchuu avançou. A maga recuou imediatamente, protegendo–se. Agora quem
sorriu fui eu. Dificilmente Tchuu teria o poder de fazer o que mandei. Ela caiu
no meu blefe e ia alterar a técnica.
– Há um espírito no cristal?
– Há.
– Não vou tocá–lo.
– Não seja ingênuo.
Ela quebrou uma xícara no chão. Os pedaços desapareceram, bem como o
conteúdo, que foi se materializar em cima de Tchuu. Aquilo era ruim. O líquido
poderia estragá–lo.
Eu ia calculando a corrente. E ela podia prever o resultado de todos os meus
cálculos, por mais rápido que eu fosse.
Até que eu parei. Ali de pé, meditei. Minha mente penetrou em outra
dimensão. Uma que ela não poderia prever. No segundo seguinte, eu carregava
o cubo dela nas mãos. Leassa levou um grande susto.
– Eu me rendo.
Muitos gritos.
“A famosa Leassa Cazara se rendeu!”
“Quem é aquele cara de chapéu engraçado?”
“Mas que lutas monótonas, sem gritos e sangue. Todo mundo só se rende!”
Eu nem mesmo voltei para meu lugar. Seria a luta final, já que o último
imbecil que ainda tinha sobrado de outra luta também se acovardou.
Quando Leassa passou por mim para descer da arena, devolvi–lhe seu cubo
mágico.
– Obrigada.
– Podemos conversar mais depois?
Fiquei com receio que ela interpretasse minha pergunta como um desejo
meu de dar em cima dela. Mas ela respondeu muito naturalmente, com um
aceno afirmativo de cabeça.
Zraba entrou na arena. Eu estava suando. A expressão dele era mortalmente
séria. E aquele papo de dividir o dinheiro do prêmio entre nós três? Ah, até
parece que ele se importava com o prêmio. Ele só queria acabar comigo.
De repente, todas as lembranças das nossas conversas informais e aventuras
divertidas saíram da minha mente. Naquele instante ele era como um
desconhecido. Um adversário forte que não pegaria leve em nenhum momento.

466
Fábula dos Gênios

Os destruidores não cometiam erros. E ele era um Derradeiro com pleno


entendimento dimensional. O truque de me esconder instantaneamente numa
dimensão, que usei com Leassa, não funcionaria com aquele cara.
Ele conhecia a profecia. Por isso, usou diretamente seu gênio. Era melhor
que meu RP segurasse a barra. Mas eu não iria arriscá–lo demais. Eu poderia ter
uma luta tranquila com Zraba a qualquer outra hora. Não ia arriscar a vida do
robô de Lipsei por uma fama inútil. Uma derrota contra um destruidor jamais
seria vergonhosa.
“Por que não desisti dessa merda desde o começo?” Cada vez que eu fitava
o rosto medonho de Zraba eu me apavorava mais. Os destruidores lutavam pra
valer. Arrancavam pedaços até no sexo. A gente teria o dinheiro de qualquer
forma! O que eu tava fazendo ali em cima? Eu era pirado?
Zraba lançou um selo em cima de mim composto por tantas figuras
geométricas entrelaçadas que meu cérebro nem conseguiu identificá–las naquela
velocidade. Usei um dos meus selos elétricos para defesa, mas mal tive tempo de
traçá–lo. Aquela bosta quase me arrebentou. Consegui me desviar a tempo, mas
quando olhei para a palma das minhas mãos depois disso, elas estavam quase
em carne viva.
“Cacete...!”
Xinguei Zraba em dezkazil. Eu sabia umas poucas frases naquele idioma,
fruto de nossa convivência. Zraba me respondeu de volta em sua língua. Eu não
entendi direito, mas pelo jeito ele estava me provocando. Era um desafio.
A arma contra a maga de Crava era abafar os pensamentos e usar a intuição.
Mas a arma contra um Derradeiro seria valer–se da lógica. Ele não saberia
interpretar meus cálculos.
Fiz algo bem elaborado para confundi–lo. Mas, para meu desagrado, ele
anulou todos os meus selos com facilidade.
Eu tive contato com a magia dos Derradeiros. Até vi o GGS. Minhas mãos
seguraram aquele grimório raro. Eu podia vencê–lo. Bastava descobrir como.
Ele não ia esperar que eu descobrisse. Seu gênio macabro aproximou–se de
meu RP, enchendo–o de teias de miasma. Desse jeito, ele iria quebrá–lo.
Era a hora de eu me render.
Mas eu não consegui. Concentrei–me fortemente. Eu não precisava ordenar
que Tchuu se soltasse. Ele era um autômato programado por mim, caralho! Ele
iria cuidar do gênio de sacrifício. Enquanto isso, eu me ocuparia do destruidor.
Caminhei até Zraba e segurei–o pela capa.
– Que tá fazendo, meu? Você não é um mago?
– Eu sou um guerreiro da magia.

467
Wanju Duli

Sei lá o que eu tava fazendo. Só queria desviar a atenção dele do gênio.


Afinal, o maligno precisava do direcionamento dele. Meu robô podia lutar
sozinho.
Tentei derrubá–lo no chão. E consegui. Aquele cara esquelético era fácil de
deter pela força.
Quando o capuz dele caiu, Zraba ficou puto. Acho que foi até pior para
mim ver aquele rosto que mal parecia humano.
Ele mordeu meu braço. E lá se foi um pedaço da minha capa, da minha
manga e até da pele. Eu me lembraria de não fazer aquilo de novo.
Ele tentou me partir ao meio com um selo desgraçado que rachou o chão!
Se eu não tivesse escapado, eu estaria morto.
A platéia gritou.
“Se rende, se rende...!” eu pensava, em desespero.
Eu era teimoso. Mãos palpitando, braço sangrando... ainda não era o
bastante.
Ataquei com meu cajado. O robô redondo circundou o destruidor. Eu o
comandava pelo controle remoto do parafuso. Acho que isso confundiu Zraba
por um momento. Era minha chance.
“Ele estudou as dimensões para guardar a vida e a morte. Os Derradeiros
não compreendem o que não está vivo e nem morto”.
Eles compreendiam mortos–vivos, mas não objetos metálicos que não
nasceram da carne, como nós. Então ele não era capaz de rastrear a presença
deles.
Lancei meu chapéu para o alto. Mergulhei–o numa dimensão. Fiz cálculos
embaixo. Assim eu teria o controle do chão que meus pés pisavam e do espaço
de ar logo acima.
Zraba se deu conta que meu RP estava em modo automático, massacrando
o gênio dele. Por isso, ele moveu–se para o interior do maligno, deixando seu
corpo para trás, como um fantoche.
Os pés dele foram aprisionados por meu selo de cálculos. Obrigado, escola
de Sinabil! Aprendi aquele truque com os simbologistas. E, graças à energia de
Deuses da floresta de Samerre, pude encher meu chapéu de energia dimensional.
Quando ele repousou sobre o Derradeiro, isso lacrou sua magia.
Zraba estava preso, no interior do meu círculo mágico, que atuava como
uma esfera de energia. Para sair dela era preciso resolver um cálculo. O
destruidor não ia conseguir.
Mas... aquele desgraçado entendeu. Ele abriu um portal. O maldito! Os
destruidores não sabiam matemática, mas, de alguma forma, eles olhavam
praquela merda e sentiam o que era!

468
Fábula dos Gênios

Só que já era tarde. Peguei o gênio dele como refém. Mas Zraba fez uma
ameaça.
– Se eu ordenar que meu gênio exploda, ele irá matar seu RP.
– A escolha é sua.
Ele não ia fazer isso. Se matasse o gênio, ele perderia quase todos os órgãos.
Era morte certa.
Mas ele não tinha nada a perder. Porque já estava morto.
O gênio de sacrifício dele explodiu, numa chuva de carne, sangue e ossos. O
gênio não tinha esse nome por acaso.
Tchuu foi quebrado. Os pedaços dele desabaram no chão, em meio a
músculos de carne e fios elétricos.
– Filho da puta!
Eu não podia acreditar que ele tinha feito aquela merda no campeonato dos
babacas! Só para impressionar os roceiros de Narrara! Ele mesmo não dava a
mínima para aquela gentalha e fazia aquele absurdo, só para proporcionar um
espetáculo.
E a platéia gritou. Zraba desabou. Estava ajoelhado, com sangue a escorrer
pela boca. Eu não via meios de aquele cara permanecer vivo.
Até que alguma coisa se mexeu no chão. Os pedaços metálicos se reuniram
de novo, absorvendo partes do gênio de Zraba. Meu RP usou a energia imensa
daquele gênio para recuperar sua existência.
Tchuu reergueu–se, fortalecido. Agora estava maior e mais imponente. Um
coração forte e pulsante, cujo brilho se via através do metal.
Graças a T69, Zraba não morreu. Mas ele perdeu seu gênio. E somente
continuaria a existir enquanto meu RP também vivesse. Estaríamos conectados.
Agora um pedaço do coração e do espírito do Derradeiro, que estava no gênio,
estaria em T69.
Zraba sofreu uma derrota completa. Os livreiros que assistiam foram à
loucura! Um Derradeiro derrotado por um mago robótico? Isso faria subir
muito a fama da magia de minha terra natal.
Estendi minha mão para que Zraba a segurasse, para ajudá–lo a se levantar.
Mas ele não aceitou. Ergueu–se sozinho.
– Cara... se você espiar minhas memórias dentro desse seu maldito robô,
juro que te mato.
– Fica frio. Não vou olhar nada. Não precisa me ameaçar, velho.
Ele estava agindo de forma esquisita. Era seu lado destruidor. Mas era
ilógico que ele sentisse raiva de mim, sendo que foi ele quem tentou matar meu
RP.
– Eu não começo uma luta para perder. E nunca me rendo. Eu precisava ir
às últimas consequências.

469
Wanju Duli

– Eu já entendi o que você fez. Não precisa explicar. Eu vi seu olhar de


louco desde que subiu aqui. Já sabia o que você queria.
Eu dei a ele uma luta à altura. Esperava que assim ele ficasse satisfeito. Mas
ele nem olhava mais para a minha cara. Mesmo depois de eu salvar a vida dele.
– Apenas não olhe. Por favor.
Só podia haver algo muito horrível nas memórias para que ele tivesse me
pedido daquela forma.
Ele saiu de lá. E eu fui aclamado.
Todos queriam conversar comigo. Me entrevistar. Não me deixavam em paz.
– Qual o seu nome, rapaz?
– Onde está o meu dinheiro?
– Quantos anos tem? De onde vem?
– Eu não vou responder nada enquanto não me derem meu dinheiro.
Eu só queria pegar a minha grana e sumir de lá. Foi exatamente o que fiz.
Fui até meio mal educado. Um mago aleatório segurou na minha capa e eu me
desvencilhei, mandando que ele se fodesse.
No dia seguinte, os jornais de Narrara estampariam na capa uma notícia bem
melodramática: “Jovem mago desconhecido derrota Derradeiro e conquista o
grande prêmio”. Na notícia também dizia que as únicas frases que eu pronunciei
foram “Onde está o meu dinheiro?” e “Foda–se, desgraçado”. Não era
exatamente a melhor imagem para o futuro maior mago do mundo. Acho que
não causei boa impressão. Provavelmente em vez de mago negro, eu seria
conhecido como mago mercenário...
E mais: alguns jornais afirmavam que eu matei o destruidor. Outros diziam
que eu utilizava tantas técnicas diferentes, de Tecraxei, de Sinabil, de Desmei, de
Samerre, que era difícil dizer de onde eu vinha. As energias possuíam muitas
proveniências.
Além de eu ter derrotado um destruidor de forma completa, fiz a famosa
maga prodígio de Crava se render. Por isso, minha fama já estava se espalhando
em Crava também. Mas os adivinhos mais fortes de Crava dificilmente se
impressionariam com a notícia, pois já tinham adivinhado esse futuro. Na
verdade, certas fontes diziam que eles já tinham estampado essa notícia nos
jornais de lá 24 horas antes da luta... isso eu já não sabia dizer se era verdade.
“Talvez ele também seja um destruidor. Tem gente que o viu conversando
com o Derradeiro antes da luta. Parece que são amigos”.
Isso apareceu na internet. E mais outras coisas.
“Ele deve ser um Deus. Só pode, para ter tanta força. Muitos magos
sentiram energia de Samerre nele”.

470
Fábula dos Gênios

Aquilo era mera especulação. Eu podia ser de qualquer parte, usando magia
de outras terras. As teorias mais malucas eram as que diziam que eu era um
construtor sobrevivente buscando vingança.
Mas a magia robótica foi a que mais se destacou. Teve gente que até
identificou a roupa que eu usava e descobriu de onde era.
“É uniforme de uma escola de Tecraxei. Será que isso significa que ele tem
17 anos ou menos? Que impressionante!”
Eu estava acompanhando todos os boatos pelo meu computador. Era
engraçado, mas às vezes irritante. Principalmente quando havia comentários
infelizes.
“Ele estava enfurecido. Matou o destruidor e depois que fez isso quase
matou alguns fãs. Ele é bem estúpido”.
Depois que li isso, parei de procurar essas coisas na internet. Fiquei muito
satisfeito por não ter dado minhas informações pessoais para aqueles imbecis.
E só por causa daquela confusão, eu perdi a oportunidade de conversar mais
com Leassa depois do campeonato. Eu devia ter deixado Zraba ganhar.
– Que grande ofensa. Você ia me deixar ganhar, criança? Veja só com quem
está falando. Eu admito minha derrota em nossa luta justa, mas não saia dizendo
essas coisas por aí.
– Você realmente se importa com sua reputação? Eu sinceramente me
importo mais em conquistar uma parceira para passar meus genes adiante.
– Esse é o jeito polido de Taha dizer que quer foder. Passou mesmo quatro
anos naquela floresta sem trepar? Que tortura.
– Isso só aconteceu porque há distorção temporal naquele lugar. Se eu não
encontrar Leassa novamente nas próximas semanas, vou pra um puteiro. Já
dizem por aí que sou mal educado e mercenário. Seria ótimo se também
dissessem que sou um depravado.
Mas logo suspeitei que aquelas medidas urgentes não seriam necessárias.
Felizmente consegui localizar Leassa pela internet. Nós combinamos algo para o
outro dia.
Ela ficou muito contente quando me viu. Aguardava–me na mesa de uma
confeitaria.
– Parabéns, campeão! Vou te contar um segredo: em breve seu poder
mágico irá adquirir uma proporção gigantesca. Se você já está surpreso com o
poder que tem agora, nem imagina o que vem pela frente.
– Então ainda estou fraco?
– Pra caramba!
– Pelo menos estou mais forte que você.
– Só um pouquinho...

471
Wanju Duli

– Um pouquinho? Você viu como derrotei o Derradeiro. E agora meu RP


está altamente foda. Aumentei muito minha magia depois daquela batalha.
– Sim, Taha. Eu só estava brincando. Eu sei, mais do que ninguém, como
você tá forte agora. E como ficará.
Ela sorriu. Senti um calor gostoso no peito quando ela pronunciou meu
nome, com sua voz doce.
– Você sabe o que eu tô sentindo agora? Consegue ler?
– Eu não vou ler, se você não quiser. Eu não invado a privacidade das
pessoas quando elas desejam se fechar. Questão de princípios.
Eu queria que ela tivesse lido, pois era algo difícil de dizer. Mas era melhor
não, pois eu podia ter algum pensamento pervertido e ofendê–la.
Ela pediu um sorvete. Pedi um também. O mesmo que o dela.
Lipsei também gostava muito de doces. Eu só me apaixonava por meninas
alegres e divertidas, que tinham um belo sorriso. Uma pessoa que me fazia
esquecer todas as minhas dores por um breve instante.
Ela nem mesmo precisava dizer uma palavra. Bastava sorrir daquela forma.
E eu ficava em paz. Era com uma garota assim que eu queria estar: calma,
tranquila... e que me apoiasse, me confortasse. Que fizesse brincadeiras bobas e
graciosas. Que me deixasse à vontade para ser um bobo também, num universo
de brincadeiras. Um mundo só com a gente.
Mas... não era só a gente. Eu descobri isso quando uma terceira pessoa
chegou. Ele estava de pé na frente da nossa mesa. Eu o reconheci.
– Se não é o Taha, o garoto de um grampo. Você era da minha classe. Mas
não se preocupe. Não soltei suas informações pessoais pra mídia.
– Há quanto tempo, cara! Hã... que você tá fazendo aqui?
Ele sentou–se na nossa mesa.
– Você quer dizer, nesse fim de mundo, em Narrara? Vim só pro
campeonato. Pelo prêmio em dinheiro, que você tomou de mim. Em breve
retornarei para Tecraxei. Trabalho como jornalista.
– Jornalista! Que massa. Eu já imaginava. Você era fera nas reportagens
desde a época de colégio. Mas a minha pergunta era: o que você tá fazendo por
esses lados? Procurando por mim? Tem algum assunto a tratar?
– Leassa me convidou.
– Vocês dois se conhecem?
– Sovishka é meu namorado.
Fiquei bem desapontado. Decidi que naquela mesma noite eu ia dar uma
pesquisada nos bordéis locais.
E eu pensando que aquilo era um encontro. Leassa foi formal desde o
começo. Ela não tava me dando mole. Eu que imaginei demais.

472
Fábula dos Gênios

Acabei indo embora mais cedo do que pretendia. Assim que terminei meu
sorvete, eu me despedi. Era insuportável ficar segurando vela enquanto os dois
se abraçavam.
Lá fui eu bater na porta do Suaten.
– O que tu quer? Me contar que pegou a Leassa? Parabéns. Boa noite.
Ele já foi fechando a porta, mas eu coloquei o pé para impedi–lo.
– Ela já tem namorado.
– Que pena. Boa noite.
– Calma, porra. Tu tem o telefone de um bordel bom, aí? Agora eu tenho
grana. Posso gastar tudo em putas.
– Hã... por que não vai numa festa, que sai mais barato?
– E ser reconhecido lá como o cara que venceu o campeonato? Nem pensar.
– Você ia pegar várias.
– Não quero me incomodar. Prefiro ir num local sossegado que ninguém me
conheça. Por que eu preciso economizar dinheiro, afinal? O Zraba não aceitou
receber a parte dele. Só dividi o dinheiro contigo, ainda tenho um monte.
– Eu apliquei minha parte numa poupança.
– Que bundão. Depois a gente vence outro campeonato e ganha mais.
– É disso que você pretende viver?
– Não, mãe. Eu vou dar a bunda. Me arranja logo o telefone de qualquer
bordel. Eu sou muito tímido pra chegar nas meninas em festas. Prefiro pagar e
sair como eu quero.
– E eu pensando que você era romântico...
– Eu sou romântico pra caralho, isso eu garanto. Mas não quando a menina
que eu gosto tá namorando e eu tô há quatro anos sem trepar.
– “A menina que eu gosto”. Qual é! Você reencontrou ela, sei lá, anteontem?
Não vem fazer drama.
– Eu não tô fazendo drama. Só quero a merda do telefone.
– Por que não procura na internet?
– Ah, eu nem entendo direito essas letrinhas feias do idioma de vocês. Até
eu encontrar o que quero já amanheceu.
– Entra aí.
Não foi uma boa ideia. Assim que entrei, notei que Zraba estava lá, deitado
na cama. Ele cobria o corpo inteiro com um cobertor. Seu manto negro estava
numa cadeira. Ele ficou furioso quando me viu.
– Suaten, da próxima vez vamos trepar no cemitério. Pelo menos assim os
mortos não irão nos fazer visitas.
– Foi mal, cara. Não queria perturbar. Até quando você vai ficar puto
comigo?
– Até eu te matar.

473
Wanju Duli

– Hm, estou com ciúmes. Tá aqui um telefone, meu. Pega isso e dá o fora.
– Valeu.
Lá na porta, antes que eu saísse, Suaten me deu um alerta.
– Você sabe que os destruidores sentem atração por violência. Você tá
ficando forte e ferrou ele naquela briga. Ele tá muito irritado contigo, mas às
vezes essa é a maneira dele de sentir tesão. Então, cara, se você continuar nessa
rixa com ele, quem vai te matar sou eu.
– Calma, velho! Eu sou teu amigão. Não vou roubar teu amante. Eu tô
desesperado por sexo ultimamente, mas não tanto... Não se preocupe, não sinto
nenhuma atração pelo teu parceiro e nunca sentirei. Satisfeito?
– Bastante. Divirta–se com sua vadia.
E ele bateu a porta na minha cara. Excelente! Estavam todos fulos da vida
comigo ultimamente: meus amigos, os outros magos, os jornalistas...
Sem nenhum amigo por perto era vazio ter dinheiro. Eu tinha me afastado
da minha família e dos meus poucos amigos de Tecraxei. Minha vida não parava
de dar reviravoltas. Era meio assustador.
Minha magia estava se tornando muito forte. Tive meus primeiros
momentos de fama. Mas eu sentia que tudo aquilo só estava me afastando das
pessoas importantes pra mim.
Fui até um telefone público e liguei para o bordel. Uma voz muito sensual
atendeu.
– Oi, hã... tenho interesse nos serviços desse estabelecimento. Estou me
dirigindo para o local agora. Poderia ir preparando alguém para mim?
Eu me senti um idiota. Eu nem sabia o que dizer, ou como dizer. Era a
primeira vez que eu ligava pra um local do tipo.
– Normalmente você escolhe a moça quando já está aqui, dentre as que
estarão disponíveis. A não ser que já as conheça e requisite uma específica.
– Ah... entendi. E pode ser com duas? Ao mesmo tempo?
Eu senti vergonha de perguntar isso. Será que ela ia rir do meu pedido?
– Com quantas quiser, pelo tempo que quiser, contanto que possa pagar.
– Certo. Logo estarei aí. Obrigado.
Eu desliguei, me sentindo cada vez mais ridículo. Eu precisava dizer as
coisas com mais segurança.
No caminho, fui imaginando quem eu ia escolher. Se fossem duas, eu
pegaria uma branquinha de cabelos castanhos, como Lipsei. E a outra seria uma
negra de cabelos pretos e encaracolados, como Leassa. Mas, se fossem três, eu
acrescentaria uma alta gostosa e peituda, de cabelos longos e negros, como
Narda. Mas... três... será que era muita coisa? E se fosse só uma? Que dilema!
No caso de uma só, quem sabe eu escolhesse uma que fosse uma mistura das
características das três.

474
Fábula dos Gênios

Eu estava tão perdido em pensamentos que quase esbarrei numa garota no


meu caminho.
– Nossa, desculpe.
– Oi Taha! Você ainda está por aqui? Eu estava na confeitaria até ainda
pouco. Agora estou indo pro hotel.
– Meu amigo mora aqui perto. Agora vou pro... meu hotel também...
– Em qual hotel você está?
– Na verdade eu estava hospedado na casa do meu amigo antes. Preciso
procurar um hotel para passar a noite.
– Eu te ajudo a escolher um. Conheço bons hotéis. Já viajei várias vezes pra
Narrara. Você tem um computador, né? Podemos pesquisar os hotéis pela
internet. Vamos sentar ali no banco.
– Obrigado. Eu ainda me confundo um pouco com essas letras estranhas do
idioma dos livreiros. Será de grande ajuda.
Eu não precisava de um hotel para passar a noite. Eu pretendia pagar uma
puta e ficar trepando no bordel até o amanhecer. Ou dormir lá mesmo com ela
na cama, sei lá. Eu achava que valeria a pena pagar pra acordar de manhã
enroscado ao lado de uma mulher.
Eu nem tinha me masturbado na noite anterior, devido a uma série de
suposições: de que Leassa não teria namorado, que ela se apaixonaria por mim,
aceitaria meu pedido de namoro e faríamos sexo naquele mesmo dia. É, minhas
suposições já falharam logo na primeira delas.
Só de tentar imaginar as mocinhas do puteiro, eu já sentia meus genitais
palpitando. Então eu torcia para que Leassa escolhesse rápido um hotel para
mim. Eu estava com um pouco de pressa.
– Você prefere um hotel perto do centro da cidade ou no bairro dos magos?
“Tanto faz!” Eu nem ia dormir lá naquela noite. Se duvidasse, eu já me
mandaria da cidade no dia seguinte.
– Eu confio nas suas sugestões. Escolha o que achar melhor.
– Nesse caso, sugiro que seja no centro da cidade, próximo às melhores lojas
de conveniência. Imagino que podiam incomodá–lo no bairro de magos, caso o
reconhecessem. Até o Sovishka é meio conhecido e já foi perturbado por lá. Um
cara chegou pra ele esses dias dizendo: “E aí, meu! Tu é aquele jornalista lá,
famoso! Curti pra caralho teus artigos!” e os dois ficaram conversando por
horas. Sovishka queria se livrar dele e não ia embora pra não ser rude. Tipo, eu
ri litros, meu! Foi hilário!
Bem, eu estava numa situação parecida. Leassa ficava uma gracinha rindo e
contando aquelas histórias com entusiasmo, mas eu não tinha tempo pra algo
assim. Já estava escurecendo. Nós dois estávamos numa praça meio deserta.
Pegaria mal se Sovishka chegasse de repente, pois pelo jeito ele tava hospedado

475
Wanju Duli

nas redondezas também. Eu não queria problemas com o cara. Ele era gente
boa e um mago forte. E, acima de tudo, eu o respeitava, como jornalista e como
pessoa.
E, bom, Leassa era minha amiga. Eu a considerava assim. Uma velha amiga.
Eu também a respeitava pra caramba.
– Taha? Você está me escutando?
– Hã...?
Onde minha cabeça andava nos últimos minutos? Acho que eu fiquei
sentado no banco, olhando pro nada, pensando nas mocinhas imaginárias do
bordel. E a voz de Leassa era tão relaxante, que eu devia ter entrado num transe.
Mas num transe erótico.
Eu levei um grande susto quando vi o que tinha acontecido. Eu tava muito
excitado. Ali, sozinho, pensando merda. Ao lado da minha amiga.
Meu coração acelerou. Eu comecei a tremer. De repente, eu fiquei muito
nervoso! Meu corpo estava ficando louco. Eu estava respirando rápido e minhas
mãos estavam tremendo sozinhas.
– O que foi? Você tá bem?
– Tô, não se preocupe. Eu só preciso passar num hospital...
Até minha voz estava falhando. Eu simplesmente não entendia o que era
aquela sensação. Inicialmente pensei que era uma libido violenta se apoderando
do meu corpo, mas era mais que isso. Será que eu estava tendo, sei lá, um
derrame? Não, derrame não era assim. Síndrome de pânico? A verdade era
muito mais assustadora.
Eu perdi o controle de mim mesmo. Completamente. Logo, eu não me
recordaria de mais nada.
Quando acordei, eu estava deitado na grama da praça. A noite já tinha caído.
Eu sentia uma sensação muito boa no corpo. Como se tivesse gozado. Coloquei
a mão dentro da calça e percebi que tinha mesmo acontecido. Mas... aquilo não
fazia sentido.
Sentei–me, ainda sentindo o corpo trêmulo. Olhei para o lado. Levei um
susto quando vi que Leassa estava perto.
Tanto eu como ela estávamos completamente vestidos. Mas ela estava
sentada na grama com seu cubo de ônix negro nas mãos. Parecia ter realizado
uma magia muito forte, porque eu ainda sentia energia pesada ao redor.
– Finalmente voltou a si. Você se machucou?
– Não me machuquei. Estou bem. Aliás, muito bem. O que aconteceu? Por
que está com seu cubo?
– A Deusa do Infinito se apoderou do seu corpo. Precisei fazer um
exorcismo violento para tirá–la de você.

476
Fábula dos Gênios

– Não me diga que ela me fez fazer algo estranho na sua frente? Ela só sabe
me ferrar, cara! Sinto muito que tenha testemunhado essa cena vergonhosa. Na
verdade eu estava a caminho de um bordel. Eu estava com receio de te contar
para você não pensar algo estranho, mas acho que nesse caso é bom esclarecer
as coisas.
– Então foi isso. Ela se conectou ao seu estado de espírito e somente
potencializou–o. Qual o seu rolo com a Deusa? Por que ela está interessada em
você?
– Ela quer se vingar de um construtor chamado Cromo, que a matou. Eu
tive o azar de me meter no meio da vingança e desde então a diversão dela é
matar ou ferir as pessoas ao meu redor para me fazer sofrer. É pura frustração,
porque ela inveja os mortais.
– Cromo, o futuro segundo mago mais forte. E você será o primeiro. Isso
não foi azar. E nem é coincidência. Mesmo que ela ainda não saiba que você se
tornará o mais forte, algo a atrai até você. Só pode ser isso. Ela sente algo
misterioso em você e não sabe o que é.
– Ela não pode ser assim tão burra. Se bem que ela morreu quando criança,
então pode ser ingênua e precipitada em muitas coisas. Falando nisso, e suas
previsões? Você não soube que a Deusa ia tomar meu corpo? Por que não me
alertou?
– Taha, eu não sou perfeita. Tampouco realizo previsões o tempo todo. Já
disse que não fico espiando o interior das pessoas e invadindo a privacidade dos
outros se elas não me dão essa autorização. Eu até poderia, mas acho rude. Se
bem que, no dia em que nos conhecemos, quando eu tinha onze anos, eu vi uma
coisa...
– O que você viu?
– Eu vi que minha primeira vez seria com você. Mas como eu era criança, eu
nem entendi bem o que vi. Pensei que íamos nos casar, ou algo assim. E quando
nos reencontramos novamente há uns dias, eu já com 17 anos e namorado,
concluí que essa previsão certamente estava errada. Até porque eu e Sovishka
começaríamos a morar juntos daqui umas duas semanas e certamente faríamos
amor.
– Quê? Do que está falando? Eu não entendo.
Para meu horror, vi que, por baixo da saia, havia sangue nas coxas dela. Meu
corpo inteiro congelou.
– Você está menstruada? Sai tanto sangue assim da primeira vez?
Eu sabia que não era nenhuma daquelas coisas. Mas eu ainda tinha
esperanças de que eu pudesse estar enganado. Eu precisava estar.
Ela não respondeu. Assim eu entraria em desespero!

477
Wanju Duli

– Leassa, você fez sexo comigo? Fez porque quis, né? Eu não te forcei nem
nada assim, certo?
– Apenas não pense nisso. Você não se lembra de nada.
– Você traiu seu namorado?
– Eu jamais o trairia.
Quando ela disse isso, eu senti lágrimas nos olhos.
– Você nunca vai me perdoar.
– Não. A Deusa só potencializa um desejo que já estava dentro de você. Mas
eu não irei acusá–lo. Sovishka não precisa saber disso, ou ele irá matá–lo. Mas
nós nunca mais nos veremos.
Notei que, além do sangue nas coxas, ela estava com alguns hematomas. Eu
a havia espancado? Puta que pariu!
Pensando bem, Leassa estava sendo extraordinariamente compreensível. Se
fosse outra garota na mesma situação, talvez estivesse me xingando e me
ameaçando de morte.
Ainda bem que as memórias não tinham ficado em mim, para me
atormentar. Eu nunca queria saber, ou aquilo permaneceria nos meus pesadelos.
Eu queria pedir desculpas a ela, mas porra. Seria muito cara–de–pau depois
de tudo. Eu era apenas um mago fraco incapaz de conter um desejo tão básico
como aquele. Era só um animal, servo dos meus instintos, que feria meus
pensamentos constantemente com imagens pecaminosas. Tudo o que a Deusa
fez foi apenas exteriorizar coisas que já existiam dentro de mim.
Então eu era um monstro? O monstro é aquele que pensa ou aquele que
age? Será que, no fundo, os pensamentos não são os combustíveis das ações,
que permanecem a assombrar o corpo, como um fantasma, até que um dia
explode?
Será que a Deusa do Infinito existia mesmo? Ou ela era apenas uma
invenção da minha cabeça? Um bode expiatório. Alguém para culpar pelos
meus erros. Da mesma forma que eu culpava meu robô, sendo que fui eu que o
programei. Eu sempre precisava culpar alguém pelas desgraças da minha
existência. Jamais era culpa minha. Não podia ser. Porque eu era um cara
bondoso. Um rapaz gentil. Não podia haver aquela monstruosidade dentro de
mim.
Eu queria que as coisas e pessoas fossem só minhas. Eu desejei Lipsei para
mim. Eu não podia tê–la. Será que, por esse motivo, eu a matei? Narda não me
dava a atenção que eu desejava, depois de eu fazer tudo por ela. Eu a destruí por
causa disso? E ao descobrir que Leassa tinha namorado e não podia ser minha,
eu a possuí à força?
A Deusa do Infinito só existia como projeção da minha mente? Eu dei
existência a ela? Eu era um esquizofrênico e inventei todo um mundo mágico

478
Fábula dos Gênios

que afetava fisicamente a realidade, tamanho o poder que eu tinha? A


esquizofrenia da magia.
Afinal, quem já tinha testemunhado a existência daquela Deusa além de
mim? Em nosso primeiro encontro, entrei num transe. Eu vi Lipsei enfrentá–la.
Ou será que eu desejei ver isso? Meu inconsciente criou essa história e eu
convenci o mundo? Eu a matei naquele dia na sala de espera, enquanto ela lia
calmamente aquela revista? Pela minha covardia de dizer que a amava? Pelo
medo da rejeição?
Narda e a Deusa do Infinito vestida em vermelho que vi da primeira vez
eram realmente a mesma pessoa? Ou eu simplesmente distorci as coisas naquele
meu desejo louco, na hora do sexo? Eu fui dominado por Narda naquela
trepada. Ela era poderosa. Assim como ela dominava todo nosso
relacionamento e eu era apenas um capacho dela. E então eu a matei. Pois eu
queria dominar.
Finalmente, eu realizei o meu desejo. E dominei Leassa. Mas... por que ela
estava sustentando a história sobre a Deusa do Infinito? Ela leu isso no meu
inconsciente e alimentava aquela mentira somente para que eu não me sentisse
mal?
– Leassa, eu preciso que você me responde uma coisa com sinceridade: a
Deusa do Infinito existe?
Eu estava suando esperando por essa resposta. Quando ela ficou em silêncio,
eu sofri enormemente. Eu chorei com força.
– Por favor, diga alguma coisa. Qualquer coisa.
Mas Leassa estava quase desmaiando. Tive que ajudá–la.
Ela não conseguia ficar em pé. Estava muito mais machucada do que pensei.
Ela estava disfarçando. Eu não podia apenas enviá–la para o hospital naquelas
condições. Resolvi fazer algo desesperador: liguei para Sovishka. Disse que tinha
acontecido um terrível acidente.
Ele foi até a praça às pressas. Sentou–se ao lado de Leassa, segurando–a nos
braços e chamando o nome dela, desesperado.
– Eu estou bem, Sov... vou ficar bem.
Ela até mesmo sorriu. Tudo aquilo para me proteger. Como é que existiam
pessoas assim tão boas no mundo? Eu as invejava. Eu não era uma delas. Assim
como a Deusa invejava a mortalidade dos humanos.
Mas Sovishka não era idiota. Ele notou os hematomas. Viu o sangue nas
coxas dela. Devia ter restado até a minha porra por ali.
Ele ficou sério. Levantou–se. Segurou–me pela blusa com força.
– Que tipo de acidente você disse que ela sofreu, seu filho da puta?!
Ele me meteu um soco na cara. Eu caí no chão.

479
Wanju Duli

– Eu vou te matar, ouviu, infeliz? Vou te torturar! Te esfolar vivo! EU NÃO


ESTOU BRINCANDO!!
– Sovishka, para! Já acabou. Eu estou bem.
– Você não está bem.
Eu era o único ali que tava chorando. Eu era um hipócrita? Sovishka ficou
confuso.
– Quem fez isso?
– A Deusa do Infinito.
– Hã? Foi uma mulher? Isso é verdade, Taha?
– Sim, é verdade. Estou indo agora mesmo matá–la.
– Espere. Eu vou junto.
– Não. Tome conta da Leassa. Eu farei o máximo possível para acabar com
esse grande pesadelo de uma vez por todas.
Eu fui embora. Não aguentaria mais fitar nenhum dos dois. Peguei um
barco imediatamente para Crava. Eu já sabia muito bem quem matar.
Subitamente, eu me recordei de um detalhe fundamental.
“– Leassa? Faz meses que não me encontro com ela”.
Quando a adivinha de Crava disse isso a mim, sua expressão se tornou
particularmente esquisita. Quase uma satisfação. Como se escondesse um
segredo. Um brinquedo. Então ela sabia. No fundo era ela que manipulava
tudo? Lá estava eu novamente, desejando achar culpados.
Assim que cheguei em Crava, fui até o maldito templo. Furei a fila. Invadi a
sala de Yavia. A fúria me consumindo. Eu queria a cabeça daquela puta.
Assim que me viu, Yavia deu um largo sorriso satisfeito.
– Está tão charmoso, rapaz. Um homem feito. E essa expressão de ódio
extremo em sua face só o torna ainda mais sensual e facilmente manipulável.
Depois de uma foda tão boa, devia estar satisfeito. Minha hora chegou. Corte
minha cabeça. Meu abutre é seu.
Ela já sabia exatamente o que eu faria. Nos mínimos detalhes. Eu não
mudaria meus planos somente para contrariá–la. Afinal, a velha já estaria morta.
– Somente me responda a uma última pergunta antes de falecer, vadia: quem
é a Deusa do Infinito?
– A mulher de seus sonhos. Sua amante mais fogosa e desesperadora.
Aquela que, desde o começo, aprisionou seu coração e devorou–o.
T69 arrancou a cabeça de Yavia. O corpo inerte e gordo da adivinha
desabou no chão.
Eu segurei a cabeça dela pelos cabelos; o sangue ainda derramando. Meu
imponente robô me seguia.
Os magos que aguardavam sua vez para consulta naquela fila se
assombraram quando viram a cena. E gritaram. Eu clamei:

480
Fábula dos Gênios

– Magos de Crava! Eu os libertei! Jamais serão enganados novamente por


essa charlatã miserável! Ela era uma maga poderosa? Isso é irrelevante. Se suas
previsões eram certas? Foda–se! Sejam os senhores de seus próprios destinos.
Não se desesperem antes do tempo. A morte virá. Mas que o medo da morte
jamais aconteça juntamente com o medo da vida!
Meu robô roubou mais um pedaço de espírito, daquela maga forte. Eu
explodi aquela cabeça. As pessoas corriam e gritavam perante meu ódio.
Eu tremia de êxtase. Aquele robô estava coberto com minha programação
de ódio. Também ia gostar de matar.
Respirei fundo. Consegui me acalmar por um instante. Eu já sabia o que
fazer a seguir: eu precisava de Zraba. Onde ele estava?
Nem precisei procurá–lo. Meus dois amigos me acharam antes. A notícia do
assassinato da maga mais forte de Crava correu o mundo. Espalhou–se como
fogo. Poucos minutos depois, quase todos os países foram alertados sobre o
“perigoso mago assassino super poderoso, que tinha matado até um
Derradeiro”.
– É foda, hein? Eu nem morri. E o boato continua. Parabéns, Taha. Você se
tornou mais forte e sanguinário que eu. Devo te dar uma bala? Ou você estava
me procurando para me matar de verdade e tornar os boatos verdadeiros?
– Não, cara, deixa de falar merda. Eu preciso da tua ajuda. Você, que mexe
com necromancia e essas paradas do outro mundo, deve saber como reviver
uma pessoa.
– Eu conheço algo sobre o outro lado, mas não sou um Deus.
– Bom ter mencionado os Deuses, porque é uma Deusa que desejo reviver.
Em primeiro lugar, preciso encontrar Cromo urgentemente. Onde anda o
infeliz?
– Ele não “anda”. Está paralítico e mudo numa cadeira de rodas. Culpa
daquela destruidora, que parece ter uma relação misteriosa com os Deuses
também. Ele está sentado ou deitado em Samerre.
– Excelente. Partiremos de Crava agora mesmo. Nosso destino já está
definido.
– O que é esse bicho no teu ombro?
– O abutre de Yavia. Ele é mágico. E agora me pertence. Aparentemente ele
é útil para enviar mensagens, matar magos filhos da puta, torturar vivo, devorar
tripas e outras coisas úteis do tipo.
– Adorável.
Aquelas viagens de navio eram bem cansativas. A viagem até Samerre foi um
porre. Eu tinha adquirido uma má fama do cacete. Segundo as previsões, eu me
tornaria o maior mago do mundo somente aos 26 anos. Mas mesmo com 22,
muitos já sabiam meu nome. Aquilo era incômodo. Eu me perguntava o que

481
Wanju Duli

precisava ser feito para adquirir tal título idiota. Eu ia viajar por aí para matar
todos os magos fortes e tirar o título deles? Ridículo. Eu não me prestaria a essa
enorme perda de tempo.
Pessoas fugiam de mim quando eu caminhava pelo convés. Eu sentia o
poder. Era bom. Eu quase desejava me tornar malvado e temido, somente para
gerar aquele tipo de impacto. Mas... para quê? Para ser evitado? Desprezado?
Grande merda. Minha vida já estava ruim. Eu não precisava torná–la pior.
Foi muito fácil localizar Cromo em Samerre. Ele conversava comigo através
de aparelhos. Nós nos encontrávamos pela primeira vez. Aparentemente, eu
estava cumprimentando meu futuro arquiinimigo. Mas que se fodessem as
malditas previsões. Por enquanto eu precisava da ajuda do cara.
– “Você se pergunta se a Deusa do Infinito é real ou imaginária? Bem, meu
amigo, ela me parecia bem real quando arranquei a vida dela. Para que algo
morra precisa estar vivo. Tenho muita confiança na minha magia”.
– Eu sugiro que você enfie no rabo a sua confiança e me revele logo onde
está o corpo da Deusa.
– “Obviamente, em Consmam. No subterrâneo, onde o deixei”.
– Agora você irá acompanhar–me até lá e usar essa magia, na qual você
muito confia, para enfiar aquele espírito sujo de volta naquele corpo torpe.
– “Assim será feito, senhor Vorta. Porque lhe devo uma. A você, sua amiga
e seu robô, por terem salvado minha vida”.
– Poupe as palavras bonitas. Sejamos pragmáticos. Você nem mesmo sabe
se terá poder para revivê–la. Está reunindo um exército de construtores para
invadir Consmam. Mas eu exijo que contenha seus instintos assassinos enquanto
me ajuda, pois esse cavalheiro de negro ao meu lado é um destruidor. Para ser
mais preciso, um Derradeiro. É um grande amigo meu e ele irá ajudar–nos não
somente a entrar em Consmam com segurança, mas também no processo de
ressurreição.
– “Eu não sei o que dizer”.
– Não precisa dizer nada. Você será arrastado até lá.
Até mesmo os meus dois amigos estavam impressionados com a autoridade
que eu tinha sobre Cromo. Pegamos um navio particular, diretamente para
Consmam. Chegando lá, Zraba nos abriu caminho. Ele comunicou que eram
assuntos sigilosos. Os destruidores respeitavam a presença dos Derradeiros, que
eram como seus sacerdotes. Por isso, não houve muitos questionamentos. Nem
mesmo protestos pela presença do construtor.
Cromo nos guiou até a câmara subterrânea. E lá estava o belo caixão de
vidro. Da mesma forma que vi nas memórias da Deusa.
– “O que acha, Derradeiro? Devemos levá–la até Desmei para que seus
amigos nos ajudem a colar o espírito de volta nesse corpo?”

482
Fábula dos Gênios

– Isso seria o mais indicado. O poder atual dessa criatura é tão grande que
poderia explodir esse seu laboratório e afundar metade de Consmam. Vamos
levá–la para os pântanos. Os espíritos dos destruidores mortos irão intimidá–la.
E assim foi feito. Uma próxima viagem, com o caixão de vidro.
Eu sentia que minha jornada estava perto de terminar. Por tantos anos vivi
com a assombração daquela Deusa. Finalmente lhe seria concedida a morte final.
E eu começaria a assumir a responsabilidade por meus atos.
Foi assustador pisar em Desmei com o cadáver da Deusa. Alguns
Derradeiros já aguardavam no porto. Devem ter sentido a energia.
As notícias não chegavam em Desmei, pela tecnologia fraca. Por isso, eles
eram alguns dos únicos àquela altura que não sabiam quem eu era.
Independente disso, eles se deram conta da grandiosidade da missão.
E eles não gostavam dos Deuses tampouco. Embora houvesse as clássicas
comunicações nas montanhas e dissessem que nem os Deuses e nem os
destruidores adultos ligavam para poder, havia algo mal contado naquela história.
Talvez os Deuses jovens também fossem inconsequentes. Exatamente como eu,
que ainda desejava brincar de matar.
Uma roda foi feita. Nós quatro e mais seis Derradeiros. Dez de nós para
segurar a fera.
Os Derradeiros urraram. Era algo como uma canção, mas meio violenta.
Estavam chamando o espírito da Deusa do Infinito. Ela provavelmente
atenderia ao chamado. Adorava ser desafiada.
Eu senti o espírito dela nos arredores. Era fácil chamar. Domá–la? Meu
maior desejo.
– Pois querem a mim? Terão o que desejam. Eu não recuso o convite de
destruidores. O prazer é meu.
E ela adentrou no círculo. Nós o lacramos. O espírito não sairia mais de lá.
Contudo, era preciso direcioná–lo para o interior do caixão de vidro.
Se eu era o futuro maior mago do mundo, eu deveria ter confiança o
suficiente para realizar aquele feito. Fui para o centro do círculo e cravei o meu
cajado no caixão.
– Vem, puta. Eu te quero aqui na minha vara.
A Deusa gargalhou.
– Eu já vi a tua vara muitas vezes, cão. Já fodi nela. Já a senti. Você jamais
foi uma ameaça. Fedendo a medo. Eu te repudio.
E ela voou ao redor, lançando magia. Sempre me provocando. Aquilo teria
um final.
Joguei um selo eletrônico. Um atrás do outro. Até que meu RP se enfezou e
agarrou aquele espírito com suas garras magníficas, desvendando a dimensão na

483
Wanju Duli

qual ele se escondia. Socou o caixão de vidro e enfiou–o lá. Estilhaços cortaram
o ar.
Houve um grito cortante e fino. Até que o caixão de vidro explodiu.
De dentro dele saiu uma garotinha loira, nua e assustada. Ela encolheu–se e
abraçou o próprio corpo, fitando–me com ódio e susto.
– Por que me devolveu ao meu antigo corpo, cretino?
– Para te dar a morte final. Considere meu ato como misericórdia.
Finquei meu cajado metálico na terra, com força, bem próximo a ela. A
menina tremeu. Contudo, eu apenas tirei minha capa e atirei para ela.
– Eu sei quem você é. Cubra–se com isso.
Ela aceitou minha oferta e escondeu seu corpo miúdo na minha capa bordô.
– Essas palavras...! Cromo está aqui?
– Ele está tetraplégico. Bem perto de nós. Ele sente sua presença.
A Deusa do Infinito derramou algumas lágrimas. Eu... não podia me deixar
comover. A aparência inocente, no corpo de uma criança de nove anos, não me
enganava. Ela era a filha da puta que tinha matado Lipsei. Que me induziu a
matar Narda, brincando com meus sentimentos. E que me fez machucar Leassa
de uma forma doentia.
Ela merecia que eu fizesse tudo isso a ela, mil vezes. Que a torturasse e
matasse mil vezes. A Deusa do Infinito ainda não se recordava de como usar
poder mágico no seu antigo corpo. E havia muitos caras fortes lacrando o seu
poder. Eu precisava puni–la horrivelmente enquanto podia.
Eu me abaixei. Fitei a Deusa do Infinito firmemente, em seu corpo original,
de nascimento. Meus olhos verdes furiosos encararam aqueles olhos azuis
cheios de insegurança e medo. Como uma pessoa se transforma assim, de
repente? O que é o ser humano? Pelos Deuses, no dia que eu tiver essa resposta
desvendarei todos os segredos sob e sobre a terra. E mesmo acima dos céus não
restará mais nada a ser perscrutado.
– Caliderina... esse é seu nome, certo? O nome que seus pais te deram. E
será por ele que irei dirigir–me a ti. Conte–me, criança: você é real? Ou é apenas
um fantasma da minha mente inconsciente?
– Minha mãe se chama Libido. E meu pai se chama Desejo. Eu sou a Deusa
do Infinito, porque meu desejo e minha libido não têm fim. Em verdade, eu
surgi de tua luxúria. Quando tu tinhas cinco anos, me conheceste. E quando te
tocaste, eu surgi no mundo dos Deuses. E lá teria continuado, se não fosse essa
atração enorme que sempre senti por ti. Eu desejava destruir todas as minhas
inimigas. Não era justo que somente por serem mortais elas pudessem te possuir.
Eu também queria.
– Então tu és real. Mas foi criação minha.

484
Fábula dos Gênios

– Os Deuses são gerados quando os seres humanos precisam deles. Eles os


adoram. E assim nascemos. Teu desejo por sexo era tão poderoso que precisaste
reprimi–lo. Tu eras um menino gentil, mas cheio de culpa. Por que, meu
menino? Eu, mais que todas, te entendo. Eu sou a perfeita prostituta. A tua
musa do sexo. Eu preciso de ti. Eu apenas estava enciumada, meu querido...
– Não posso aceitar tal justificativa. Por matar pessoas especiais para mim,
serás assassinada.
– Tu também mataste.
– Para consertar o estrago que fizeste em minha vida.
Eu não aguentava mais aquela conversa. Eu não a revivi para sentir pena. E
sim para fazê–la sentir na pele o desespero e sofrimento que eu tive.
Mas quando eu olhava para aquele corpo frágil e inocente, eu não tinha
coragem de fazer nada.
– Que desgraça... não serei capaz de matá–la.
Amaldiçoei meu destino. Caliderina deu um sorrisinho maroto. Recordei–
me da última profecia de Yavia. Eu seria assassinado por ela um dia? Ela me
enganaria novamente, me enchendo de mimos, para ter a honra e glória de
assassinar o futuro maior mago do mundo?
Nem mesmo Cromo deu opinião. E nenhum outro. Também não me
importava mais o paradeiro do Deus da Mentira e de todos os outros Deuses
gerados pelos desejos dos mortais.
Aquilo era entre nós dois. E a decisão seria somente minha.
– Se eu lançasse Kraezunassei, meu abutre mágico, para te devorar viva
agora, eu ficaria sozinho de novo. Eu não vou te negar, minha libido. Você é
sincera. Às vezes cruel. Mas esse prazer não pode ser superado.
Eu não aguentava mais o prazer solitário. Aquela libido era ciumenta.
– Tem certeza disso, Taha? Ela não é o monstro dentro de você? Vai amá–
lo?
– Eu vou. E pacificá–lo. Promete que vai se comportar?
Ela baixou os olhos.
– Como posso prometer algo assim, quando sou tão má?
– Tão sincera. Tão pura! Sem as traquinagens do Deus da Mentira. Onde ele
anda?
– Que importa? Você gosta de mim quando sou má.
O teatro havia terminado. Levei Caliderina comigo para Tecraxei.
Depois de tanto tempo, vi meus pais outra vez. Eu estava com saudades.
– Esta criança... não sei bem explicar. Poderiam tomar conta dela por um
tempo? Por favor, eduquem–na. Daqui alguns anos retornarei para buscá–la.
Meus pais foram contra, mas eu deixei–a lá mesmo assim. Afinal, em quem
mais eu confiava no mundo do que neles, apesar de tudo?

485
Wanju Duli

Sumi de lá outra vez. E realizei mais viagens. Sempre estudando magia e


fortalecendo mais meu elegante robô.
Naqueles quatro anos, conheci adversários formidáveis. Eian não quis me
revelar nada sobre o Deus que procurava. Será que ela era uma grande
mentirosa também?
Eu não sei se os Deuses existem ou não. Desconheço se são mentiras ou
verdades. Mas um dia li em certo grimório que temos o poder de tornar
verdadeiras as nossas mentiras. Então faz mesmo diferença conhecer o limite
entre o real e o imaginário? Há mesmo algo assim?
Há quem chame essa conexão de magia. Eu chamo de a melhor diversão do
mundo.
Aos 26 anos fui aclamado como o maior mago da atualidade. Mas eu jamais
teria sido nada sem ela.
Foi quando voltei para buscá–la. Caliderina estava na flor de seus treze anos.
Meus pais não a suportavam mais. Diziam que ela era uma peste. E que roubava
todos os doces da geladeira durante a noite.
– Não precisará mais temer a noite, criança. Porque estarei contigo.
E foi no aniversário de 13 anos dela que lhe dei um novo bichinho de
pelúcia.
– Oba! É um coelhinho?
– Não. Um abutre de pelúcia.
– Como Kraezunassei! Para comer vísceras de pelúcia. Que fofo!
E ela me abraçou. Eu me sentia como se fosse o pai dela naquela época. E
de fato foi assim que aconteceu por um bom tempo. No fundo, não foram
meus desejos que lhe deram vida?
Caliderina estava sempre comprando novos vestidos e bichinhos de pelúcia.
Eu achava que ela devia se ocupar com alguma coisa para fazer amigos.
– Que tal entrar num colégio?
– Para ter aulas de magia com aqueles seres inferiores? Eu não! Sou muito
mais poderosa. Eu poderia até matar um deles sem querer.
A partir do ano seguinte, “deuses” passou a ser escrito oficialmente com
letra minúscula e “Destruidores” com letra maiúscula, principalmente pela fama
recente de uma sociedade secreta chamada Fagemal Armor. A Cali de 14 anos
sentiu–se bastante ofendida.
– Eu juro que irei recuperar o antigo prestígio dos Deuses. E vou continuar
a escrever meu título com letra maiúscula, para influenciar a geração vindoura de
ignorantes.
Cromo, após a realização da magia de Inversão, para recuperar a saúde de
seu corpo físico, atualmente estava como mulher. Era a segunda mais forte, o

486
Fábula dos Gênios

que confirmava a profecia. Eu tinha uma arquiinimiga com maestria de gênios e


magia tecnológica.
– Que tal se a gente tomasse um chá hoje na tia Owmaq?
Pensando bem, não nos odiávamos tanto assim.
Quando Cali fez 15 anos, já era uma mulher feita. Mas foi somente aos
dezoito anos dela que a desposei oficialmente. Tivemos nossa primeira relação
sexual. Aos dezenove anos, ela ganhou gêmeas: duas meninas, que eram
semideusas. Elas teriam metade de uma vida infinita, o que já era muita coisa.
Mas eu decidi que ensinaria às minhas filhas, quando tivessem idade para
entender, que elas não deveriam aspirar nem à imortalidade e nem à mortalidade.
Deviam ficar satisfeitas em ser do jeito que eram. Felizes e gratas. E isso valeria
para muitas outras coisas.
Os cabelos de Cali escureceram em sua adolescência: tornaram–se castanhos
claros. Isso me fez recordar dos cabelos castanhos de Lipsei. E eu me perguntei:
era certo eu ter casado com a assassina dela?
Eu não podia reviver Lipsei. Os Derradeiros só tiveram o poder de trazer
Cali de volta porque ela era deusa e seu espírito ainda vagava. Lipsei morreu
protegendo Cromo. Ele ainda vivia. E seu robô vivia comigo. Isso não era o
bastante?
Eu não sei o que é o certo e o errado. Mas eu me senti redimido por ter
salvado o espírito da Deusa do Infinito, que fez tantas atrocidades por amor a
mim.
Aquele facho de felicidade seria arrancado de mim um dia? Cali me mataria?
Minhas filhas o fariam por ela? Apareceria alguém um dia para se vingar de mim,
ou um dos meus frutos germinariam e eu passaria por grande sofrimento?
Talvez. Eu aceitava esse risco. Afinal, ainda havia uma profecia não realizada: a
de que eu mataria dezenas de pessoas um dia, e destruiria uma cidade. Como?
Por quê? Eu realmente acreditava naquele dado de sorte? Minha vida era jogada
por mim ou por deuses?
Eu já tinha colocado duas filhas no mundo, cumprindo meu papel como
animal. Mesmo que elas virassem assassinas ou pessoas horríveis, eu me sentiria
culpado? Não. Assim como não me senti culpado pela existência da deusa
gerada por meu desejo. Mesmo depois de tudo, eu ainda a amava. Ela era parte
de mim. E me fazia ser quem eu era.
Dizem que as pessoas vivem da melhor maneira que sabem, pois é tudo que
podem fazer. Na natureza há apenas a luta pela sobrevivência. Os nossos
valores humanos foram inventados pelos deuses? Ou nós inventamos os deuses
e valores, pelo desejo de viver com um pouco de culpa? Se não houvesse a culpa,
não haveria nada a ser perdoado.

487
Wanju Duli

Me perdoe, Lipsei. Eu te amei de verdade. E se um dia Leassa ou Sovishka


desejarem cravar uma faca no coração de Caliderina, oferecerei o meu em troca.
Eu consigo proteger monstros, porque meu desejo por eles sempre foi o
mais forte, nesse coração de monstro.

488
Fábula dos Gênios

Fábula da Pompa

Capítulo 1: A Princesa Despedaçada

Eu não estava de bom humor.


Minha expressão sempre foi assim, zangada, como se os músculos de minha
face soubessem exatamente onde se encaixar para manter as pessoas longe de
mim. Mas particularmente naquela ocasião eu estava fora do sério.
O som dos meus sapatos plataforma gritando com meus passos apressados
ecoava pelos corredores. Até que, fortuitamente, deixei aquela jaula perfumada
para pisar na grama fedida.
Sinceramente, qualquer coisa cheiraria melhor que o orgulho daquelas
donzelas.
Sentei embaixo duma árvore e atirei minha pasta para longe. Sei bem que a
natureza nada tinha a ver com minha fúria, mas algumas vezes a destruição dos
inocentes me confere um prazer desmedido. Exatamente naqueles momentos
em que a moderação não poderia ser a lei.
Abracei as pernas e fiquei lá, de cara emburrada. Algumas vezes o mundo é
feio quando existe. Quanto a mim, posso ser bela até mesmo na tempestade. Se
não houvesse um universo ou olhos julgadores, minha beleza certamente
atingiria a amplitude máxima.
– Que é essa cara, Flora? Quem te deixou puta dessa vez?
– Isso não é questão fácil. Sabe das novatas?
– Completamente.
Ele sentou–se ao meu lado, largando a pasta perto da minha.
Ofruw Qamh, 15 anos. Meu melhor amigo desde que passei a morar na
gaiola. Também é meu colega e segue de perto a saga da minha sina.
Só pra constar: eu sou lésbica; ele é gay. Deve ser por isso que nossa
amizade dá tão certo. De outra forma, seria imprestável fazer amizade com um
cara. Essas coisas de paixão só deixam a bola mais embolada e o rolo mais
enrolado. Nossa parada era estática e retinha.
– Pois então. Saca as gêmeas? Elas fizeram questão de falar comigo quando
me enxergaram.
– Já está fazendo sucesso com as calouras?

489
Wanju Duli

– Laelia e Leilen. Ambas me odeiam. Implicaram comigo por causa do meu


chaveiro.
– O coelhinho?
– Leilen tem um igual pendurado na pasta, só que de outra cor. Ela diz que
eu a copiei. Você se lembra quando comprei esse chaveiro, Of?
– Seguramente há mais de um ano.
– Se elas continuarem a me perturbar, enfio a porra do chaveiro na buceta
da Leilen.
– Você não seria louca de comprar essa briga. Sabe quem é o pai delas?
– E nem me interessa. Poderia ser até um Destruidor que eu não me
intimidaria.
– Elas são filhas de Taha Vorta.
Eu fiquei quieta. Alguns segundos depois, fitei–o assombrada.
– Puta que pariu!
Ele riu da minha surpresa. Mas eu não consegui rir.
– Quase falei merda pra elas.
– Seja sábia. Sabedoria é um tesouro precioso nesse lugar. É o que te faz
ficar viva.
– Agora, além de ter que segurar a língua diante da princesa, precisarei fazê–
lo diante daquelas duas crianças. Isso é revoltante. Se ao menos meu pai fosse
um cara importante, eu poderia...
Mas eu me calei no meio da frase. Ofruw entendeu.
– Você não está aqui porque quer. Por que não faz as pazes com seus pais e
volta para sua terra natal?
– Isso não é necessário.
Levantei–me.
– Te vejo depois, na aula de alquimia.
Os magos estéticos eram os mais fabulosos alquimistas de Marlaquina,
especialistas nos cosméticos e perfumes mágicos. E era na capital de Bruznia,
Alprez, que se localizava o colégio mais renomado do reinado: Pompa Prima.
Era um maldito internato. Briguei com meus pais e, por causa disso, eles me
jogaram lá. Sempre prezei a minha liberdade, então para mim aquilo era um
castigo severo. Que se fodesse que a princesa e as irmãs Vorta estudassem lá. Se
eu fosse uma princesa iria requisitar aulas particulares em vez de me envolver
naquele esquema sufocante e manipulador.
Fui até o telefone público do pátio e usei a última ficha que ainda me restava
para a semana.
Aguardei na linha, ansiosamente.
– Ei...
– Floraze?

490
Fábula dos Gênios

Quando ele atendeu, eu comecei a chorar.


– O que aconteceu? Você está bem?
– Eu não aguento mais... quero sair desse lugar.
– Quer que eu converse com o pai?
– Não. Ele morreu para mim. Prefiro sair daqui com magia ou mesmo me
matar a implorar algo a ele.
– Ele te criou. Foi a pessoa que deu a você a vida. Apenas por isso, não
deveria se sentir um pouco mais grata?
Eu bati o telefone.
Se meu irmão não tomasse cuidado com as palavras, eu passaria a odiá–lo
também. Ele era a pessoa mais boazinha que eu conhecia. Mas há momentos em
que muita bondade se torna um veneno e gera o tipo de ódio mais cruel.
– Você não pode abraçar o mundo inteiro, Ech... senão um dia ele o
esmagará. Sustente somente quem merece ser segurado. Mas será que eu
mereço?
Minha vida era uma merda. Estava tudo errado.
Eu não queria fazer novos amigos. Em parte, porque seria um fardo chato.
Por outro lado, ainda havia um pingo de misericórdia em mim que queria evitar
machucar aquelas pessoas podres. Somente Ofruw foi maluco o suficiente para
se aproximar de alguém como eu.
Eu tinha um passado muito pesado. Uma série de situações incômodas
tinham se colado em mim. Eu poderia tentar descolar, deixando de lado e
desfrutando uma nova vida. Mas quando se é adolescente, você precisa possuir a
sua tragédia particular. Somente o suficiente para deixar a sua mente
enlouquecida, à beira da morte. Mas isso jamais deve arrancar a sua vida
completamente, ou a diversão termina.
Não o masoquismo do corpo, mas da mente.
Meu terror psicológico se chamava vida, mas somente porque eu assim o
desejava. Eu conhecia coisas muito mais terríveis.
Quando eu pensava nos meus pais, as lágrimas rolavam. Não por pena deles
ou de mim, e sim por tristeza perante o colapso ribombante inerente à própria
existência.
Eu pensava na escolha desgraçada, no sacrifício: eles decidiram ter um filho.
Desejaram dar continuidade à existência, numa tentativa torpe de arrastar uma
imortalidade fugidia num cérebro frangalhado.
Nem sempre uma escolha. Muitas vezes um destino. Aquele do animal
insano com sede de carne e piedade.
Tempo, dinheiro, suor e sangue. Tudo e o inimaginável entregue em nome
do bebê ingrato. Essa pessoa era eu.
Meus pais estavam estressados. Eu os estressava. Eles me feriram. Eu os feri.

491
Wanju Duli

Eu não queria ter filhos. Se um dia meu filho fizesse a mim o que fiz aos
meus pais, eu teria vontade de me matar ou de matá–lo. Matar–me por me julgar
uma idiota na tentativa vã de educar um ser humano que vem ao mundo assim,
todo estúpido, extremo ignorante. E matá–lo enquanto ainda era imbecil o
suficiente para entender que ele nunca soube o que é sofrimento.
Uma pessoa somente conhece o que é verdadeiro amor e sofrimento quando
tem um filho. Somente assim entende o que é entregar a vida por alguém,
cedendo um pedaço de sua existência e de seu coração. Somente para depois ser
renegado.
Isso é dor. Isso é amor. Isso é vida e morte.
Minha vida não era somente minha. Por que havia tantas pessoas incômodas
coladas no meu passado e no meu presente? O prelúdio do futuro era uma
melodia assustadora e cínica.
“Eu te odeio”.
Por quê? Por quê...?
Eu já nasci com uma dívida. E se eu decidir não pagá–la? E caso eu decida
endividar novos seres, o amor se tornará assim tão precioso que nem o
diamante mais brilhante poderá pagar.
Esse contrato foi assinado com sangue. Antes mesmo que eu tivesse
consciência da minha existência.
Eu devo algo a você. A minha vida. O meu amor?
E você não deve nada a mim. Eu não tenho poder sobre você. Mas vocês
sempre serão o senhor e a senhora da minha consciência.
– Flora, eu estava te procurando.
– Não me incomode agora, Crona. Não percebe que nesse instante estou me
debulhando em complexas amarguras ontológicas?
– Sabe o super gatinho da turma B? O cara por quem todas as meninas do
colégio estão a fim?
– Todas, vírgula. Acho Fuopaj nojento. Enfim, o que tem esse infeliz?
– Estou pensando em me declarar para ele hoje. O que você acha?
– Não perca seu tempo. O idiota deve receber no mínimo uma declaração
por dia e recusa todas. Ele se acha superior demais ou é gay.
– Talvez ele esteja procurando a menina certa.
– Sinto informar, mas essa pessoa não é você. Mesmo eu curtindo meninas,
não te pegava nem se me pagassem. Você é bonitinha, mas é retardada demais.
– Mas eu realmente o amo. Se ele não me quiser, eu me contentarei em
admirá–lo à distância.
– Fico feliz de saber que não sou a única masoquista. Agora saia daqui. Já
tenho minhas próprias lamúrias para ter que me ocupar com as dos outros.

492
Fábula dos Gênios

Edzgarran Fuopaj. Aquele aluno era o melhor do colégio. O mago mais


forte da nossa idade. Isso era absoluto. Ninguém questionava. Só que em
Bruznia força também significa beleza.
Não importa a sua aparência física. Os magos de Bruznia são mestres da
filosofia estética. Isso significa ostentar o poder de manipular padrões de beleza.
Portanto, mesmo que Fuopaj fosse um ogro, todos babariam por ele. Ou quase.
Alguns caras do nosso colégio também curtiam aquele babaca. Ainda assim,
a maioria esmagadora dos fãs dele eram garotas. Com exceção do clubinho das
piranhas alopradas, como eu gostava de me referir a elas.
Gizwa Situa era outro nome de peso. Ela era da minha sala e tinha muita
fama no colégio. Ela era lésbica e odiava mortalmente Fuopaj. Isso porque
antigamente as meninas babavam somente por ela. De repente, deixaram–na de
lado para venerá–lo.
Ora, isso não estava certo. Então Gizwa reuniu um exército de peruas com
um quilo de maquiagem para tentar derrubar o “galã”. Queriam achar o ponto
fraco dele. Elas provavelmente nunca ouviram falar em honra.
Eu jamais atacaria alguém no ponto fraco, cacete. Um mago que se preze
entra pela porta da frente e batalha com coragem, utilizando somente técnicas
suas. Elas queriam encontrar algum furo mágico ou psicológico no cara, mas
Fuopaj parecia realmente uma parede impenetrável.
Sinceramente, eu só implicava com ele por birra, porque ele não parecia ser
assim tão chato. Ele era inteligente e poderoso. E daí? Isso é proibido?
Fuopaj só queria ficar na dele. Tratava a galera mal quando lhe enchiam o
saco. Eu o entendia completamente.
– Essa gente não tem mais o que fazer? Eu tenho problemas e dilemas reais
para lidar. Por que esses filhinhos de papai ficam pegando briga por aí, de graça?
– Deve ser falta de sexo.
– Aposto que as gêmeas também estão caidinhas pelo Fuozinho...
– Eu ouvi falar que as duas são namoradas. E que já se aliaram ao clubinho
da Situa, para tentar derrubar o número 1.
– Me diz a verdade: tu também curte ele?
– Um pouco. Não desesperadamente.
E eu precisava confessar: eu realmente admirava Gizwa Situa. Ela era
gostosa demais. Era a musa do colégio, e Edgarran Fuopaj era o ídolo
masculino.
Era natural que, não importando seu gosto sexual, você inevitavelmente se
apaixonasse por um deles. Ou pelo menos nutrisse uma profunda admiração.
Os dois eram sábios. Sabedoria conferia poder. E o poder levava à beleza.
Sim, era esse o funcionamento da magia estética: um doce mistério.

493
Wanju Duli

Ao contrário do que pensavam os estrangeiros, os magos estéticos não


somente se embelezavam por fora. A maior beleza que poderia haver ocorria
primeiro internamente, através de estudos e práticas intensas de nossa linha de
magia. Aos poucos a magia interna era equilibrada por elementos externos, para
que a inspiração fosse gerada e o efeito passasse das dimensões astrais à esfera
material.
Essa magia jamais foi fútil. Era apenas extremamente difícil de entender,
assim como a arte. O que é o belo? O que é o feio? O gosto pode ser
manipulado? Por que nos sentimos atraídos por certas coisas e desprezamos
outras?
No Grimório da Formosura existe um estudo aprofundado da filosofia
estética tendo como finalidade apreender esses conceitos básicos. Contudo, esse
é um poder perigosíssimo. Os maiores mestres da magia estética podem se
tornar verdadeiros monstros.
Digamos que você aprecie a cor azul e deseja passar a apreciar mais o
marrom. Então, você precisará criar um programa seriado para produzir uma
particular lavagem cerebral em si mesmo. Os estéticos batizaram essa técnica de
“banho de loja”.
Em Bruznia, a expressão “tomar um banho de loja” não significa fazer
compras e sim realizar uma série de experimentos, que variam de escala leve à
violenta, para fazer com que seu cérebro aceite certas informações.
Com essa técnica, você pode até mesmo se convencer de afirmações
absurdas, como “Eu não preciso comer” ou “Eu estou morto”. Em verdade,
aparentemente os Destruidores se apropriaram de algumas dessas técnicas, mas
apreendidas por métodos diferenciados, principalmente pela tradição.
Em Bruznia, isso se dava num nível totalmente consciente. Por isso, os
grimórios de lá eram mantidos a sete chaves.
Muitos já tinham morrido ao dominar as técnicas do grimório mais fabuloso:
o Grimório da Excelência, que levava a magia estética a níveis sensacionais.
Pouquíssimos já tiveram acesso a ele. E quem o teve era proibido de ter
discípulos.
Era praticamente como ter um pêndulo mágico que obrigasse a si ou a
outros acreditar em certas farsas.
Aquela magia era ensinada de forma muito controlada em Pompa Prima.
Desde o começo seguíamos um código ético forte, com bastante disciplina.
Respeito aos direitos humanos. Aquela linha não poderia ser facilmente
quebrada com aquele monte de magos estéticos fortes?
Eu ainda me considerava uma iniciante, mas me aterrorizava saber que as
filhas de Vorta estavam de segredinhos com Situa, que era certamente uma das
magas mais fortes do colégio.

494
Fábula dos Gênios

Cara, eu sempre me considerei meio extrema. Mas mesmo uma pessoa como
eu não estava preparada para testemunhar o desenrolar dos eventos
extraordinários que ocorreriam naquela arena de fanáticos.
Você já assistiu alguma vez a uma batalha de magos estéticos? Pois prepare–
se: esse é um espetáculo inesquecível. É muito mais que uma disputa de retórica,
para provar quem possui os argumentos mais interessantes.
Essa é uma batalha em que você não luta somente com a mente, mas com
tudo o que te faz humano: com sua emoções mais profundas e secretas. Com
sua sanidade.
Brinque com o limite do belo e do feio. Mexa em suas concepções de certo e
errado. Quebre as barreiras do bem e do mal. Somente assim pode ser realizada
a dança mais impecável do mundo.
Sabe qual é o verdadeiro motivo de Edzgarran Fuopaj não se apaixonar por
ninguém? Porque ele é um mago estético tão poderoso que domina todos os
jogos de sedução e peripécias do amor. Ele não se deixa enganar por truques
como aparência física, conversas interessantes ou outros atrativos. Ele vê acima
disso para enxergar a beleza nas pessoas.
Ele é o senhor da beleza. Portanto, somente alguém com maior poder que
ele seria capaz de seduzi–lo. Esse não é um desafio formidável? Quem é capaz
de realizar um “banho de loja” em Fuopaj?
Talvez Crona e Ofruw não gostassem dele de verdade e fosse tudo uma
mera enganação. Talvez minha admiração pela poderosa Situa fosse apenas o
poder de manipulação de padrões estéticos dela sobre mim.
Quando ela passava, com seu penteado fenomenal e seu perfume, todos
caíam de amor. O jeito de caminhar, o tom de voz... tudo era cuidadosamente
calculado pelos melhores magos estéticos. Isso induzia o adversário ao delírio, e
o estético vencia a disputa.
Dominá–los utilizando uma magia de outro povo? Essa não era a maneira
de os estéticos fazerem as coisas. O desafio era ganhar da magia estética
utilizando outra estética mais refinada. Era compreender aquele mundo de
códigos intrincados. E penetrá–lo. Somente assim você poderia realizar um
inesquecível sexo selvagem, subjugando seu amado, e jamais saberia ao certo se
foi realmente amor ou ilusão.
Aquele não era somente um mundo de aparências. Era um universo de
mentiras e ilusões descaradas. Todos sabiam disso. Mas curtiam aquele delírio
falso de paixão e desejavam cada vez mais serem engolidos por ele.
Quanto a mim, eu não tinha nada a perder. Eu topava fazer parte daquela
guerra de beldades, desfilando sobre os saltos mais altos e exalando os mais
tentadores perfumes. Somente os sábios aceitavam participar desse fabuloso

495
Wanju Duli

desafio. Afinal, todo mago poderoso sabe que para ser bonito não precisa ter
sorte e sim sabedoria.
Há magos de outros povos que não entendem a magia de Bruznia, pensam
que é tudo tolice superficial e decidem procurar um jogo diferente. No final, não
são tudo jogos? Eles geram poder. O ganho? Cada qual tem seu preço. E seu
prêmio.
Taha Vorta é robótico, e é o mago mais forte do mundo. Ele conquistou
esse poder por mexer com aquilo que não é vida e nem morte: conferindo
inteligência à máquina, colocando–se acima da imortalidade. Assim ele venceu
até os deuses.
Por outro lado, os Destruidores são o povo que possui os magos mais fortes
de Marlaquina. Mas poucos sabem que um dos maiores segredos da fonte de
poder dos Destruidores é uma lavagem cerebral inconsciente, fruto da tradição,
que os fazem lutar e matar como desesperados, dominando a si e a tudo ao seu
redor, nesse e em outros mundos.
Eles somente não morrem, mesmo possuindo corpos mortos ou em
decomposição, porque eles ACREDITAM que estão vivos. Essa “crença” é a
magia de Bruznia. A religião daqui consiste numa alquimia da confiança.
Vorta teve contato com um Derradeiro. Sem saber, ele também entendeu
esse princípio.
Vorta é o mais forte como indivíduo. Os Destruidores são os mais fortes
como povo. Mas aos poucos eu começava a entender que, como magia, talvez a
estética fosse a mais espetacular. No dia em que os magos estéticos
descobrissem o potencial que possuíam, algo grande poderia ocorrer.
Eu, Floraze Rezei, estaria prestes a testemunhar essa reviravolta gigantesca,
que abalaria todos os sistemas mágicos do mundo. As filhas de Vorta estavam
em Pompa Prima. Aquele foi somente o primeiro sinal.
O segundo sinal me deu um frio na espinha.
– Flora...
Que menina pentelha. Eu nem a considerava uma amiga.
– Por que está me perturbando outra vez?
– Você soube o que aconteceu com a princesa Dilhieba?
– Os afazeres da princesa não me interessam.
– Ela foi torturada.
Crona estava tremendo quando me disse isso. Eu não levei muito a sério,
mas fiquei intrigada.
– As pessoas desse lugar usam a palavra “tortura” até quando um sapato
aperta no pé. Então a princesa quebrou as unhas?
– Quebrou, mas... foi um pouco mais que isso.

496
Fábula dos Gênios

No dia seguinte, a princesa foi para a aula com os dedos cobertos de faixas.
Ela estava com um sorriso estranho no rosto.
Os rumores voavam. Diziam que ela havia dominado uma magia secreta.
Será que ela tinha acesso ao Grimório da Excelência? Ele estava na arca real.
– Há quem diga que ela descobriu o segredo da beleza. Em Bruznia isso é
mais importante que saber o sentido da vida. Pois, em última instância, a beleza
é o sentido. Ver a beleza na alegria e na dor, na vida e na morte, não é alcançar a
felicidade última? Não significa destruir as barreiras do limitado raciocínio
humano e as falhas de nosso aparelho cognitivo?
– Me diz logo o que ela fez, Crona. Estou ficando nervosa.
– As unhas dela foram arrancadas. Os magos estéticos tiveram dor de cabeça
por séculos estudando os melhores formatos de unhas, cores e padrões de
esmaltes. Mas agora... ela desafiou o mundo. Amanhã ela disse que vai remover
as ataduras. E ela garante que todos os alunos do colégio irão considerar seus
dedos sem unhas a beleza máxima. Ela afirma que até mesmo Edzgarran se
sentirá atraído. E se não for, ela o submeterá por duelo.
Meu coração acelerou. Aquela lógica era insana. Havia muito mais por trás
disso.
Eu não queria ver. Mas, sobretudo, eu não queria sentir. Assustava–me a
perspectiva de ver beleza nisso.
Contudo, eu sabia que ela ia conseguir. Pois, no cérebro humano, além da
fascinação pela construção e a vida, existe o deslumbre pela destruição e morte.
Ela iria se apropriar do segredo da paixão pelo macabro para gerar uma quimera
deturpada, fruto de sua genialidade tão bela quanto um pesadelo.

☆☆☆

“O que é essa fúria dentro de mim?


Sempre gritando estapafurdicamente. Talvez lembranças da infância.
Eu preciso pilhar e destruir. Pois, acima de tudo, essa é minha natureza.
Eu quero superar a mim mesma. Mas não como quem ama. Há esse furo no amor que
não pode ser costurado. Hoje, no meu limite, eu me perguntei onde reside o mistério do colosso.
Uma vez pensei que eu havia compreendido todas as coisas. E, depois de entregar minha
vida em troca do ultimato repulsivo da abstração transcendente, eu descobri que jamais desejei
isso de verdade.
O que eu realmente queria era a emoção suficiente.
O ser humano só deseja a vida no limite da não vida”.

497
Wanju Duli

Fechei meu laptop. Aqueles escritos eram o bastante para o dia.


Eu tinha um blog. No começo, nem mesmo eu dava bola para ele. Aos
poucos, algo foi acontecendo.
Eu escrevia qualquer coisa naquele negócio. Sentimentos idiotas.
Reclamações recorrentes sobre tudo. Eu até mesmo xingava alguns grandes
imbecis do meu colégio. Outras vezes eu apenas xingava os pequenos imbecis.
O pessoal gostava. Não sei quem descobriu meu blog. Tinha uma galera que
lia. Eu tava pouco me fodendo pra isso. Falava mal deles mesmo assim.
Quando você é um gênio, você sabe disso. Do fundo do coração. Pode até
fingir ser humilde, mas você sabe. Começa a olhar os outros de cima. Aquela
escória suja.
Pode optar por ser misericordiosamente gentil. Ou apenas cuspir nos outros.
Até que você se depara com outros gênios...
Eu me considerava especial. Não. Eu era especial. Mas o mundo é grande e
surpreendente. Eu nunca fui a única.
É nesse instante mágico, quando um pequeno grupo de gênios se encontra,
que eles desejam fundar uma sociedade secreta.
Os gênios não querem lixo lá dentro. Em geral, o lixo não aguenta muito
tempo. Por isso mesmo os segredos não são revelados assim, no começo. Você
não pode fazer isso, filho da puta estrambólico e espetacular.
Há irmandades, fraternidades e todos os tipos de esquisitices formais do tipo
em Pompa Prima. Alguns desses grupos são apenas confraternizações de
perdedores, tentando se achar foda.
Eles acham que é cool ter um grupo secreto. Então reúnem meia dúzia de
palhaços para repetir e decorar as velhas fórmulas dos grimórios clássicos, como
papagaios. Eles podem se tornar inteligentes fazendo isso. Historiadores da
magia. Robôs da magia. Mas eles não são gênios.
Vamos classificar os seres humanos em categorias. Dentro desses grupinhos
de falsos magos há muitos porcos e vacas. Eles fazem muita sujeira e se
orgulham imensamente do leite que soltam pelas tetas. Sempre o mesmo leite...
Já nos grupos dos gênios há muitas aranhas e camaleões. Tecendo teias de
argumentação espetaculares, com suas dialéticas requintadas e elegantes. Tudo
isso pronunciado com um arsenal de cores e formas, brilhando conforme o
ambiente.
Afinal, o mago tolo deseja transformar o mundo lá fora. Alguém está doente.
Ele deseja que se encontre a cura. Alguém vai morrer. Ele precisa dominar o
segredo da imortalidade.
É por isso que digo que o mago sábio é como o camaleão. Ele não precisa
ser a vaca que dá o leite que atua como a cura do mundo: “Bebi dessa poção e

498
Fábula dos Gênios

me curei! Que mago poderoso!” Balela! Magos que são como vacas fedem.
Meros feiticeiros e ilusionistas medíocres.
Não deseje controlar o formato de cada uma de suas pegadas, e das pegadas
de cada um dos que atravessam o mundo. Seu corpo sempre esteve morto.
Quando você usa aqueles vestidos rendados e passa os esmaltes mais coloridos,
está apenas enfeitando um cadáver.
Um cadáver não fica doente e não morre. Porque ele nunca nasceu. Um
mago um pouco inteligente afirmaria que a única coisa realmente viva é a mente.
Contudo, até mesmo esta está sujeita a flutuações desagradáveis, que podem
gerar o logro.
Nós não somos apenas um. Somos o mundo. Então quando morremos
ainda vivemos. Porque permanecemos vivos naquilo que ainda é vida. Ou
mortos naquilo que sempre foi eternamente morte.
Disso infere–se que o mago camaleão não deseja tornar–se o alquimista do
segredo final. Ele é antes um artista de sua própria consciência. O cérebro é sua
tela. Suas emoções são as cores da paleta. Com as cores pinta a si e não o
mundo.
Os gênios são, em sua maioria, solitários e incompreendidos. O único
consolo que podem encontrar é em si mesmos. Os demais não são inteligentes o
bastante para dar–lhes conforto. Assim eles acostumam–se com a solidão.
Mas há exceções: o momento sublime em que dois gênios se encontram...
Assim como existem infinitos grandes e pequenos, há alguns gênios que são
menores e outros maiores. Mas até isso é uma questão relativa. Eu sou um gênio
grande em relação à maioria dos seres humanos que conheço. Porém, eu me
sinto pequena fitando gigantes.
Não deixo de ser, contudo, menos gênio. Eu apenas preciso fitar o alto com
mais desenvoltura. Eu fico na ponta dos pés. Os coelhinhos medrosos ao meu
redor pulam para enxergar e aplaudir o espetáculo, mesmo que não o
compreendam.
O meu maior deslumbre e orgulho foi saber que aqueles gênios liam meu
blog. Cara, ser citada por Gizwa Situa ou por Edzgarran Fuopaj é a coisa mais
absolutamente surreal que pode acontecer no período de uma existência.
Eu escrevia todas aquelas coisas estúpidas sobre coelhos, porcos e todo o
zoológico. Eu fazia aquilo nos momentos em que eu me sentia particularmente
puta com a vida, com o mundo, ou até comigo mesma. Mesmo os comportados
davam um sorriso de canto lendo minhas manifestações efusivas de ódio.
Porque no fundo eles concordavam. Só eram muito certinhos e covardes para
admitir.
“Eu quero ser um bom menino, para ser respeitado e elogiado”. Meu,
raramente gênios são bonzinhos. Principalmente na hora de fazer arte. Na vida

499
Wanju Duli

real podem até ficar de sorrisinhos, para sobreviver psicologicamente no meio


da selva de bestas odiosas, mas, porra, nem os deuses sabem o que os gênios
realmente pensam.
– Os construtores e os Destruidores são os únicos magos que nascem com
gênios. Portanto, pode–se dizer que eles são aranhas e camaleões de nascença.
Os demais precisam despertar a genialidade escondida.
Quando ouvi Situa citar isso um dia, meu coração quase parou.
No Grimório dos Gênios fala–se muito da abelha e da cobra para a
contagem das batidas. A abelha que dá o mel e pica. A cobra que mata com
veneno e engole inteira a sua presa. Fosse a batida neutra ou a excelente, cada
uma possuía um preço a pagar pela porcentagem de prazer proporcionada.
Eu possuía uma analogia mais precisa. Eu costumava dizer que os
construtores eram camaleões e os Destruidores eram aranhas. Ora, era
recorrente citar as teias de miasma dos Destruidores, então a analogia era óbvia.
Já os construtores desejavam criar mundos em diferentes cores. Daí a
correspondência com o camaleão.
E a aranha capturou o camaleão em sua teia, devorando–o.
– Os magos de outros povos devem acoplar os espíritos em algum objeto
externo. Os robóticos os colocam em robôs construídos por eles. Os divininos
os aprisionam em cristais. No nosso caso, podemos escolher algum belíssimo
utensílio de beleza. Não somos abençoados?
– Os simbologistas possuem números desde o nascimento. E os livreiros
ganham o Grimório da Vida ao nascer.
– Destrua o número ou o grimório e logo os matará. Essas coisas são
fraquezas. Nós, magos estéticos, que somos superiores. Possuímos a beleza
interna e externa. E os construtores sequer existem mais...
– Pela lógica, restariam os Destruidores, que são os mais fortes. Adquiriram
muito prestígio nos últimos tempos.
– Então por que Taha Vorta não utiliza magia de gênios malignos?
– Meu pai teve contato com magia de diversos povos, incluindo a magia
estética. Ele não tem interesse na beleza dos estéticos ou no poder desenfreado
dos Destruidores. Ele alcançou o poder puro.
– Não há tal coisa como o poder puro. Os caipiras chamam isso de Mana.
– Dizem que Mana é magia de Marlaquinos. Segundo os rumores, a fonte da
magia estava em Samerre porque caiu um pedaço de estrela lá.
– Querida, você é uma caipira também. Então fique calada.
Era impressionante ver como Situa tratava mal até suas seguidoras.
Chuchuza Mubeba era uma grande fã dela. Para ser mais específica, era sua
escrava. Fazia tudo o que Situa mandava e satisfazia–se com isso.

500
Fábula dos Gênios

Mas Situa não era rude com as gêmeas. Meu, ninguém naquele colégio era
rude com elas. Questão de sobrevivência.
Venfaus: Ventura Fausta. Eis a denominação da mais famosa sociedade
secreta de Pompa Prima. Gizwa Situa era a líder.
Ela possuía uma ambiciosa vontade: convidar Fuopaj para membro. Ousadia
extrema, já que ele tinha mais poder que ela.
Gizwa Situa decidiu fazer o convite na mesma manhã em que a princesa
Dilhieba mostraria seus dedos sem unhas para Fuopaj. Aquilo teria platéia.
Muitos alunos seguiram a princesa de mãos enfaixadas e a beldade de
penteado extravagante, líder da Venfaus, rumando até a biblioteca. Aquelas duas
iriam fazer história.
Lá dentro, um garoto de cabelos pretos e óculos lia atentamente um
grimório. Típico rato de biblioteca, Edzgarran Fuopaj não se distraiu nem
mesmo quando aquela multidão adentrou o recinto, tamanha era sua
concentração. Ao lado dele, na mesma mesa, estava um garoto de pele negra
que também lia alguma coisa.
Situa deu alguns passos adiante. Faria o pedido ali mesmo, na frente de
todos. Ela era corajosa. Estava imponente como sempre naquelas vestes cor–
de–rosa cheias de babados. Ela usava os trajes de gala mesmo quando não era
solicitado, para deixar sua imagem ainda mais radiante.
– Fuopaj, eu o solicito como membro de minha Ordem Venfaus.
Ele levantou os olhos. Fitou Situa, sem muito interesse. Logo depois, baixou
os olhos para seu grimório outra vez.
– Não estou interessado.
Houve muitas exclamações impressionadas. Pelo jeito, aquilo tudo
terminaria da maneira que a platéia queria: em batalha.
Situa estava claramente furiosa.
– Eu o exijo como membro imediatamente.
– Para ser explorado como suas outras escravas? Eu nego.
– Você será tratado com muita cortesia.
– Eu vejo sua cortesia ao me ordenar ser membro contra minha vontade.
– Irei agraciá–lo com a posição de vice.
– Irá agraciar–me ainda mais interrompendo sua insistência incômoda e
retirando–se da biblioteca, senhorita Situa.
Uau! Aquela discussão estava um espetáculo. Dessa vez houve assobios.
Evidentemente, Situa não aceitaria a humilhação.
Mas antes que Situa se manifestasse, a princesa foi até lá.
– Vossa Alteza Real.
Ele curvou a cabeça ligeiramente. Depois disso, ela retirou as ataduras.

501
Wanju Duli

Houve muitos gritos. As pontas dos dedos da princesa estavam em carne


viva. Ferimentos profundos e sangue. Era duro de ver. Uma das alunas
desmaiou.
– Não se incomode com essas pessoas delicadas. Você vê beleza nisso?
– Eu vejo muita beleza em diversos estudantes desse colégio. Tuas mãos são
graciosas, mesmo machucadas. Contudo, se a intenção é a aplicação da magia
estética, em mim o efeito inexiste.
Ele foi muito cortês com a princesa. Porém, Situa já estava impaciente.
– Você vai ou não vai entrar na porra da minha Ordem, seu filho da puta?!
– Eu já disse que não vou, menina. Deixe de ser mimada e aceite o fato de
que nem sempre as coisas acontecem como você quer.
– Se elas não acontecem, eu faço acontecer.
Ela arrancou o aparelho respiratório de Fuopaj. Ele conseguia respirar sem a
ajuda do aparelho, mas sentia muita falta de ar sem aquilo.
– Devolva–me. Não seja infantil.
– Está bem aqui na minha mão. Levante–se de sua cadeira de rodas e venha
pegar.
A provocação estava passando dos limites.
– Eu o desafio para um truelo. Lutaremos eu, você e a princesa. Mas você
terá que lutar de pé e sem seu aparelho. Se perder, você entra para a Venfaus. Se
vencer, eu farei o que você quiser.
– Eu não quero nada de você, Gizwa Situa.
Furiosa, Situa quebrou um vidro de perfume no chão, sinalizando o início
do truelo.
Ela traçou um selo de proteção no chão com um batom vermelho. Todos
ficaram impressionados com a velocidade com que ela fez isso, delineando
símbolos complexos e detalhados em poucos segundos. E, o mais importante:
com graça e elegância.
Fuopaj saiu da cadeira de rodas, atendendo ao capricho de Situa, e sentou–se
no chão. Quando ele tirou os óculos, seus olhos mudaram de cor: adquiriram
uma tonalidade em tom creme, como se ele estivesse cego. Compreendi
imediatamente o significado: ele não seria atingido facilmente pelos truques de
charme mágico.
Situa tinha os braços cobertos por pulseiras coloridas. Ela lançou algumas
delas para o ar, que se transformaram em selos de ataque. Eram os famosos aros
de selos, que poderiam se enroscar e recombinar, gerando símbolos
diferenciados.
Mas aquilo era só o começo. Seu colar e seus anéis estavam repletos de
cristais, o que significava potencial para magia divinina.

502
Fábula dos Gênios

Fuopaj nem mesmo traçou um selo de proteção e conseguiu bloquear os


aros mágicos. Subitamente, os cabelos de Situa cresceram assustadoramente. Os
cachos loiros e ruivos adquiriram vida própria e agarraram Fuopaj pelo pescoço.
Aquela era a variante esdrúxula da Técnica de Fios, a TFA: magia de
Destruidores. Como ela ousava...?
Fuopaj apenas sorriu. Retirou uma tesoura do bolso, que carregou–se de
uma quantidade assombrosa de energia. Com o utensílio mágico ele cortou não
somente os fios, mas a energia pesada que os dominava.
– Meus belos cabelos! MEUS CABELOS PERFEITOS, VOCÊ OS
CORTOU! EU VOU MATÁ–LO, SEU PAU NO CU!!
Ele só havia cortado algumas mechas, enquanto ele estava alongado. Ela era
mesmo escandalosa. Mas havia algo de sensual naquela fúria feminina
indomável.
Eu levei um susto quando notei que a princesa estava pingando sangue logo
ao lado.
Ela estava comendo os próprios dedos. O batom rubro de seus lábios se
misturava ao vermelho–sangue que cobria seu queixo e pingava no uniforme
cor–de–rosa, delicado e magistral.
Com seus dentes ela puxava a pele, que se prendia nas gengivas; a pele
esticava como chiclete, até se rasgar e restar somente a carne macia e rosada.
E nos tocos dos dedos revelou–se o osso. Foi somente nesse instante que a
princesa riu. Ela cuspiu um pedaço da carne de seu dedo em cima de Fuopaj.
– Eu sou tão bonita. Meus dedos assim, sem pele... esse não é o padrão
estético máximo? Eu me casaria contigo. Tu serias o príncipe, querido Edz...
mas agora não quero mais te dar minha vagina, porque eu irei despedaçá–la por
mim mesma. Entrega–me a tua tesoura e o farei aqui, diante de ti. Irei rasgar
meu clitóris, os lábios menores, os maiores... e jogar tudo sobre ti, para que
minha buceta despedaçada te encha de beijos.
Os Destruidores usavam uma magia meio extrema, mas aquela garota estava
tornando tudo pior com aqueles toques de doçura. Era perturbador.
Fuopaj recusou–se a entregar–lhe a tesoura. Segundo os constantes rumores
era nela que ele escondia seu espírito. Ele não entregaria a fonte de sua força.
– Com todo o respeito, Vossa Alteza, mas apesar de esse ser oficialmente
um truelo, prefiro acabar com ele sozinha. Você deverá apenas me dar suporte.
Fora isso, não se meta.
– Tua língua está muito solta, líder de Venfaus. Ela precisa ser arrancada.
– Ao contrário de ti, ainda tenho dedos, donzela vermelha.
– Sua perua.
Situa derramou o esmalte roxo, formando selos com a tinta, através dos
quais chamou um espírito. Para mim ficou muito claro que o espírito veio

503
Wanju Duli

através de um dos sapatos plataforma de vinte centímetros que ela usava. A


pergunta era: qual dos sapatos?
Ou talvez a pergunta fosse outra: por que as duas tinham se agarrado e
estavam se puxando pelos cabelos, esquecendo de repente que aquela era uma
disputa de magia? Os espíritos ficaram esquecidos.
As unhas de Situa, que já eram bem grandes, triplicaram de tamanho e ela
estava tentando atingir a princesa com as garras. As duas gritavam e se
estapeavam. Situa atingiu–a no rosto, o que arrancou um pouco de sangue.
Quando ela tentou chutar a princesa, eu podia jurar que ela iria matá–la se
conseguisse.
Felizmente, as outras meninas que assistiam ao truelo – que se tornou um
duelo, pois Fuopaj foi esquecido – as separaram.
Fuopaj estendeu a mão, exigindo que Situa devolvesse sua máscara
respiratória.
– Já estou ficando com falta de ar. Isso não é brincadeira, sabia?
– Dilhieba arrancou os dedos por esse truelo e você não queria nem passar
mal por alguns minutos?
– Ela fez isso porque quis. Mas você tomou minha merda de mim. Agora
me devolva, sua ignorante.
– Usando suas próprias palavras: eu nego. Da próxima vez pense duas vezes
antes de ser rude com uma dama refinada como eu.
Fuopaj desistiu. Voltou para sua cadeira e arrastou as rodas para dirigir–se
ao hospital.
– Ao atacá–la, evitei que você ferisse a princesa. Agradeça–me.
– Nada do que você diz faz sentido. De qualquer forma, meu sangue
também está contido na lista dos Magos Acima da Lei. Agora, faça–me um
favor e vá se foder.
Fiquei surpresa em saber disso.
Na lista dos MAL estavam somente os maiores magos do mundo. Taha
Vorta figurava o primeiríssimo lugar há mais de dez anos. Além dele, havia mais
nove magos contidos no ranking dos dez.
Porém, alguns familiares que estivessem relacionados a esses dez magos de
alguma forma também obtinham proteção. Portanto, poderíamos afirmar, sem
medo de errar, que Laelia e Leilen Vorta estavam sob a proteção da MAL. Isso
significava que a autoridade deles se encontrava acima de reis e príncipes, de
governos e leis. Em suma, eles tinham o direito de matar qualquer pessoa, não
importava quem fosse, e sair impunes.
Um dos maiores prestígios de ser um dos dez caras mais fortes era ganhar
essa proteção enorme para pessoas queridas. Afinal, Marlaquina era um mundo
de guerras e magos poderosos. Um lugar perigoso para viver. E como aquele

504
Fábula dos Gênios

pessoal forte ganhava muito reconhecimento e recebia diversos desafiantes,


pegar reféns seria um método efetivo, mas covarde. A MAL trabalhava para
evitar esse tipo de coisa, protegendo tanto os familiares com os próprios dez.
Para resolver problemas entre os dez magos mais fodas, o que contava era a
posição que se ostentava. Taha Vorta poderia matar o rei de qualquer país,
qualquer um dos outros nove ou os filhos deles e sairia dessa sem castigo. Não
porque a lei fosse gentil com ele. No fundo, era porque ninguém seria capaz de
puni–lo. A MAL só oficializava esse absurdo.
Assim, o respeito e a ordem se instalavam, pelo temor.
– Que achou da briga?
– Uma merda.
– Não é? Bem quando iam usar evocações partiram para a agressão física.
Ridículo.
– Elas não queriam que descobrissem onde escondem seus espíritos.
– Meu, a princesa tava doidona.
– Se acha isso, você ainda não viu nada, Ofruw. A princesa tem acesso a
grimórios proibidos. Ouvi dizer que também há umas pirações bem fodas na
Venfaus.
Eu queria ser membro. Apesar de desprezar as vacas escandalosas de Pompa
Prima, eu precisava confessar toda a minha admiração por Gizwa Situa. Não
importava que ela fosse tão coberta de defeitos e crueldade. Ela era poderosa.
Havia um rumor popular que afirmava a existência da MAL. Um mago só
poderia obter tanto poder se houvesse uma sabedoria significativa por trás
daquela energia. Portanto, era essa a justificativa maior de aqueles dez estarem
acima da lei: eles possuíam uma sabedoria superior, que era mais elevada que o
julgamento dos povos. Estavam acima do bem e do mal e poderiam julgar
conforme fosse suas vontades.
Eles sim eram mais próximos de um conceito de divindade e inteligência, e
não o povo dos deuses, já que os deuses geralmente nascem através de um
desejo humano materializado numa dimensão.
Contudo, além do meu desejo de entrar para a Venfaus, que era tão forte
que poderia gerar um deus, havia outra questão ainda mais espinhosa: a guerra
iminente entre magos estéticos e Destruidores, que prometia ser um conflito
fodido.
Os estéticos planejavam invadir Consmam em breve para roubar matérias–
primas. Os perfumes de Bruznia eram caros e geravam magia forte. Eles
precisavam de mais ingredientes para as poções mágicas.
Eu era autora de um blog de certo prestígio entre os alunos de Pompa Prima.
Portanto decidi colocar–me contra a guerra. Uma posição duvidosa por parte de
uma pessoa que falava tanta merda como eu. Até os estudantes fortes se

505
Wanju Duli

intimidavam diante de minhas palavras de fúria, sem nem mesmo saber quem eu
era. Eu conseguia esse efeito e minha intenção era direcioná–lo de forma a criar
uma situação interessante.
Naquele mesmo dia eu digitei um texto enorme desencorajando os estéticos
a odiar os Destruidores.

“O espetáculo de hoje foi sublime, mas faltou açúcar na minha boca.


Eu mesma, por certas razões, conheço o gosto da carne humana. A princesa Dilhieba
sentiu hoje esse prazer. Algumas pessoas dizem que os dedos possuem o melhor gosto. É como
carne no espeto.
Infelizmente, os seres humanos ainda acham mais nobre devorar animais inocentes do que
consumir a carne de seus semelhantes. Quando uma pessoa está morta é apenas um corpo.
Não é terrível ou macabro devorá–lo. Na natureza animais consomem outros ainda vivos.
Se um corpo humano é sagrado, ele é mais bem servido com tempero de lágrimas.
Uma buceta recortada? Seria majestoso. Afinal, uma vagina é constituída por pedaços de
carne dobrados uns sobre os outros. Alterar a composição seria apenas acrescentar mais
buracos. O suficiente para que os intestinos escorreguem por lá, como no escorregador de um
parquinho.
Não obstante, numa guerra as coisas não são tão calculadas. A tesoura não repousa na
minha mão. O inimigo não se interessa pela beleza de um corpo nu sem pele e sem carne.
Querem somente o assassinato imediato e a torção da alma. Não é bonito.
A magia está na flutuação de emoções como um tobogã. A retaliação sucintamente
executada jamais me deixaria satisfeita”.

Eu ainda filosofei mais um pouco, até meus dedos cansarem e se recostarem


num canto. Depois disso, passei esmalte amarelo e alaranjado, com brilhos.
Tocando meus longos dedos cor de chocolate e pensando no gosto que teriam.
No próximo dia de aula, os estudantes estavam em polvorosa.
– Quem é a Veladora de Doçuras?
Meu apelido do blog não era algo muito hermético, em respeito aos
estúpidos. Alguns estudantes estavam putos por eu ter defendido os
Destruidores. E eu também revelei intencionalmente que assisti ao truelo dos
notáveis infelizes.
– Essa garota é realmente atrevida.
– Deveríamos puni–la?
– Deixe que se divirta. Isso não vai durar.
Fui até o banheiro retocar a maquiagem. Passei um pouco mais de blush e
escovei meus vastos cabelos negros. Naquele dia eles estavam alisados. Em
outros momentos ficavam crespos. Eu gostava deles das duas formas. Variava
penteados intencionalmente, tudo mantido num equilíbrio dinâmico e por vezes

506
Fábula dos Gênios

irreverente. Houve dias em que eu alisava somente a parte esquerda e deixava a


direita bem crespa. Aplicava laços de fita de colorações diferentes.
Eu precisava confessar que esse era um treinamento para a Venfaus. Ah, eu
não me atrevia a realizar o mesmo padrão que os membros, ou seria
severamente castigada. Eram apenas insinuações.
Os membros da Venfaus frequentemente inventavam penteados esquisitos.
O suprassumo era a mestra da Ordem: Situa usava um penteado especial que era
chamado de rolos triplos ou quádruplos. Aparentemente, ela escondia armas
mágicas lá dentro. Mas aquilo não era nada diante do boato de que a secretária
da Ordem, Blargra Tubivi, ocultava o receptáculo de seu espírito num objeto de
beleza dentro da vagina.
Honestamente, Blargra era uma das meninas que mais me assustava. Ela
tinha longos cabelos castanhos e olhos cor–de–rosa. Assim como todas as
mocinhas, tinha unhas longas e quadradas, com cores alternadas. A marca dela
era uma unha vermelha alternada pela cor negra. Ela só pintava assim quando
estava de mau humor. Então ninguém chegava perto.
Eu não ousava alternar as cores das minhas unhas, pois só os membros da
Venfaus tinham permissão de fazer isso. Quando colori de amarelo e laranja, eu
pintei num padrão diferenciado.
Eu estava tão distraída pensando nisso que nem notei o som próximo de
tamancos pesados.
As gêmeas entraram no banheiro. O perfume delas exalava exatamente o
mesmo odor. Naquele dia elas estavam tão semelhantes que era impossível
distingui–las. Aquele cheiro era tão doce que me dava náuseas.
Prestei atenção na cor de esmalte: ambas usavam azul alternado por amarelo.
Elas eram oficialmente membros de Venfaus. E aquilo não era tudo.
Os membros usavam maquiagem especial na ocasião de rituais: o lábio
superior tinha cor diferente do inferior. Mesmo que fosse uma variação sutil,
como vermelho e rosa, isso era perceptível. Além disso, o lábio inferior era
colorido apenas no centro, para se parecer com uma boneca.
As gêmeas estavam se pintando daquela forma, ajeitando também o rímel e a
sombra, com cores distintas, para harmonizar com o batom.
Era tudo muito exclusivo. Ambas também tinham uma pulseira especial da
Ordem e ganharam um selo gravado no tamanco. Os membros da Venfaus
eram tão orgulhosos e vaidosos que desejavam mostrar ao mundo que faziam
parte de um grupo extremamente privativo. Ao contrário de outras sociedades
secretas, que mantinham a identidade de seus membros em sigilo.
As gêmeas me fitavam de canto. Particularmente quando enxergaram meu
chaveiro de coelhinho, elas fizeram uma expressão de nojo.

507
Wanju Duli

Até que finalmente saíram do banheiro. Meu coração estava acelerado. Eu


podia sentir nelas uma carga de energia imensa. Elas tinham os genes de Taha
Vorta. Lembrar disso me dava um frio na espinha.
Ainda nervosa, resolvi segui–las. Eu queria ver aquele ritual. Ou ao menos
ter a chance de escutar a conversa que ocorreria antes da respeitável reunião.
Lá estava a imponente Gizwa Situa, com os grossos lábios brilhando, assim
como seus olhos púrpura. A misteriosa Blargra Tubivi, com expressão séria e
indiferente. Chuchuza Mubeba, a escrava da líder. As gêmeas. E mais dois
membros do sexo masculino que eu desconhecia.
– Eu invejo tanto os uniformes vermelhos com longos vestidos rodados dos
colégios de Crava. Também aprecio as cores rosa e púrpura, mas o vermelho é
tão mais... intenso!
A voz de Tubivi era perdidamente sensual. Não era grave e nem aguda.
Estava na medida certa. Eu a achava muito gostosa. Aquela expressão séria e
impenetrável, que não deixa escapar nem a raiva e nem o sorriso. Apenas um
tédio infinito.
Os seios dela, cujo volume podia ser percebido pelo tecido do vestido, não
eram nem grandes e nem pequenos. Os cabelos tampouco eram curtos ou
longos. Quase como se ela fosse, de corpo e alma, a garota da harmonia perfeita.
Nem gorda e nem magra. Nem raivosa e nem risonha. Será que a buceta dela
também era harmoniosa assim? Com um objeto secreto embutido, que escondia
um espírito fenomenal.
Já Situa possuía um rosto mais cheio e redondo, quadris mais largos e certo
exagero no formato do rosto, como uma carne no ponto prontinha a ser
consumida. Também era ligeiramente mais... exaltada.
– Eu não invejo as putas divininas. Elas têm bundas murchas. Já minha
bunda e minhas coxas grossas são incomparáveis.
– Com certeza, mestra. Seu traseiro é bastante respeitável.
– Obrigada, Chuchuza. Agora que já me deixou feliz com seu elogio imbecil,
eu preciso que obtenha a fórmula química que me dará o segredo da
composição do Perfume de Vololitaz.
– Irei pesquisar na biblioteca agora mesmo, senhorita Situa.
– Se topar com Fuopaj por lá, empine o nariz para ele. Faça bastante
barulho com os saltos ao caminhar, para atrapalhá–lo. E, por fim, empilhe uns
vinte grimórios grossos e deixe tudo cair em cima dele. Diga “Oooops”, com
sua voz aguda irritante, dê um risinho mais irritante ainda e saia da biblioteca
rebolando a bunda e com uma expressão de puta.
– Ai, que delícia! Pode deixar, vou fazer tudo isso.
Chuchuza Mubeba não passava de uma ratinha magricela e feia. Ou melhor,
era até engraçadinha, mas usava duas chuquinhas pequenas e infantis nos

508
Fábula dos Gênios

cabelos curtos. Tinha olhos e cabelos castanhos. Dificilmente teria alguma


bunda por baixo daquela saia, para conseguir rebolar. Os cambitos de suas
pernas eram vergonhosos. Pelo jeito, a líder achava o mesmo, pois comentou
algo parecido quando Mubeba saiu toda contente para cumprir suas ordens.
– Sendo horrível assim não sei como ela tem coragem de viver. Ela tem
pernas tortas e dentes grandes.
– Você a subestima. Afinal, o segredo de nossa magia é tornar o feio belo.
– Sim, querida Leilen. Mas ela é tão fraca em poder mágico que não seria
capaz de seduzir nem mesmo um verme. Eu só a permito na Ordem porque ela
faz tudo o que eu mando. Se duvidar, ela deve até ser virgem. Que nojo! Ela já
tem quinze anos. Isso é inadmissível.
– Com licença, senhorita Situa. Preciso tomar nota da programação para o
ritual.
– Sim, Rabezo. Apenas copie o anterior e acrescente mais laços amarelos.
Situa falava tudo com muita segurança e a palavra dela era lei. Rabezo tinha
longos cabelos negros, que mantinha presos num rabo de cavalo. Ele usava
óculos retangulares com aros muito finos, quase imperceptíveis. Seu uniforme
púrpura estava impecável. Tinha um pequeno brinco de argola na orelha
esquerda. Usava um anel e um singelo bracelete com símbolos da Venfaus.
Parecia ser uma das únicas pessoas ligeiramente normais daquele grupo, embora
a calma dele me incomodasse um pouco.
O outro cara tinha cabelos castanhos curtos e espetados. Pele morena. Esse
parecia ser mais largado. Estava com os dois primeiros botões da camisa abertos,
gravata afrouxada e usava um cordão de prata. Tinha vários anéis prateados nos
dedos.
– Meu, a Chuchuzinha tá demorando. Será que o Edz matou ela?
– Não duvido. Espero que sim.
Mas logo ela já estava de volta, relatando alegremente como havia derrubado
um monte de grimórios em cima de Fuopaj.
– Tá bom, minha filha, agora se comporte e cale a boca. Vamos fazer logo a
porra do ritual, porque esse tanto de pó de arroz já estava fazendo minha cara
rachar.
Eles se trancaram numa sala. Merda. Ainda observei por um tempo. De vez
em quando entravam outros membros da Ordem atrasados, que logo eram
xingados. Eu resolvi correr para não chegar atrasada na próxima aula.
Eu corria tanto pelos corredores que acabei derrubando dois grimórios no
chão, junto com meu caderno. Abaixei–me para pegá–los.
Foi quando vi outro par de sapatos de salto alto diante de mim. Longas
meias brancas. Quando ela estendeu a mão para me devolver um dos grimórios,
percebi que os ossos de seus dedos estavam visíveis.

509
Wanju Duli

– Não seja descuidada. Não é belo que uma dama corra assim... Floraze
Rezei.
A princesa leu meu nome no caderno antes de devolver–me. Fitou–me
atentamente com seus profundos olhos castanhos delineados de negro.
Eu curvei–me ligeiramente diante dela.
– Vossa Alteza Real... isso não vai se repetir.
– Fico imensamente satisfeita.
Quando ela foi embora, senti meus joelhos tremendo. Eu senti que ela me
olhou como se soubesse minha verdadeira identidade.
Mas eu não precisava ter medo de nenhum deles. Nem mesmo de Fuopaj.
Ou das gêmeas malditas.
Dirigi–me até o laboratório de alquimia. Vesti meu jaleco rosa.
Cumprimentei meu amigo Ofruw, mas fui breve. Eu não estava a fim de
explicar meu atraso.
Infelizmente, a pobre apaixonada Crona dividiu a bancada comigo naquele
dia.
– Florinha, o Edz estava tão gostosão no truelo, não achou? Eu acho que ele
fica ainda mais sensual com aquela máscara respiratória e aquelas cadeiras de
rodas. Os óculos então dão um ar todo intelectual. É impressionante pensar que,
mesmo com todos esses problemas de saúde, ele seja assim tão supremo na
magia! Eu o admiro ainda mais por isso.
– Problemas de saúde não têm nada a ver com poder mágico, sua ignorante.
Um mago foda simplesmente é foda porque essa é sua natureza, independente
de qualquer outra coisa: país de origem, condição física ou mesmo mental. É
algo que vem do espírito. Quebra os limites da alma, da emoção e da razão.
– Mas ele tava lindo de morrer!!
– Arg. Você não ouviu nada do que eu disse, né?
Aquela aula foi muito longa. Minha energia mágica ficou completamente
esgotada e eu não consegui produzir nenhuma substância aromática relevante.
Eu estava viciada em escrever no meu blog “Alta Costura Nigromante”.
Logo após o fim da aula, peguei meu celular e escrevi mais um parágrafo.

“Sabe, eu descobri uma fórmula maravilhosa de reviver os mortos. Não por capricho. Eu
me satisfaço pensando na possibilidade de matar um dos estudantes bem vestidos de Pompa
Prima e testar meu método para verificar se funciona. Caso falhe, não há nada a perder.
Afinal, nossos uniformes são produzidos em larga escala e sempre haverá seres de ossos e carne
para cobrir com eles seus vergonhosos corpos, escondendo o vazio repugnante de suas almas de
brinquedo”.

510
Fábula dos Gênios

Eu não imaginava o efeito tremendo que aquele parágrafo inocente teria


naquele lar de vadias abelhudas. Afinal, eles só conheciam a magia dos porcos e
das vacas.
Eu estava provocando a todos. Mas aquele teste seria realmente iniciado.
Poucas horas depois, houve uma mensagem repentina no alto falante.
– Requisitamos imediatamente a presença da Veladora de Doçuras. Vem a
mim. Daremos a ti exatamente aquilo que desejas.
Aquilo não poderia ser um blefe. Era real demais.
Eu conhecia alguns dos esconderijos da sociedade secreta, embora nunca
tivesse adentrado em nenhum. Dirigi–me a alguns deles, até que localizei
Mubeba, que me recebeu com respeito.
– Que está havendo? Que merda é essa?
– Você está com medo?
Ela riu ao dizer isso. Quando entrei na sala que ela indicou, a porta foi
trancada por trás de mim.
Lá estavam todos os principais membros de Venfaus. No chão, estava
Edzgarran Fuopaj, com as pernas e braços acorrentados. Sua cadeira de rodas
estava caída logo ao lado. Gizwa Situa ostentava a máscara respiratória dele com
orgulho.
– Seja bem–vinda. Você é a Veladora?
– Doçuras, a seu dispor.
Trocamos dois beijos na bochecha, por cortesia. O perfume de Situa era
delirante.
– Eu descobri que Fuopaj guarda seu espírito em sua máscara respiratória.
Ele não tentou recuperá–la no truelo para não levantar suspeitas. Depois ele me
procurou. Eu mal podia acreditar.
– Pensei que você me daria um cadáver. Por que me chamou?
– Vamos fazer um joguinho aqui. Afinal, uma morte não pode ocorrer de
qualquer forma. Deve ser feito com beleza.
– O sangue dele faz parte dos Magos Acima da Lei. Matá–lo pode trazer
sérias consequências.
– As irmãs Vorta estão aqui. Que há para se temer? Como eu disse, esse será
somente um jogo divertido.
Fuopaj já estava passando por enorme dificuldade em respirar.
– Então você não pretende me matar? Você jamais conseguiria de qualquer
forma.
– Só quero conhecer o seu limite.
– Para mim chega. Eu defendo tortura e morte realizadas em duelo mágico
justo, e não de uma forma covarde e humilhante como essa. Onde está a sua

511
Wanju Duli

honra, Situa? Devolva–lhe a máscara e deixe que ele lute. Ou você teme a
derrota nessas condições?
Situa aproximou–se de mim. Acariciou meu rosto. Colocou–me contra a
parede e arrastou o salto fino pela minha perna. Fez isso tão intensamente que
um filete de sangue escapou. Eu quase senti o espírito que habitava o interior do
salto penetrando na minha carne e produzindo uma dor aguda.
Ela aproximou o rosto do meu, sussurrando em meu ouvido.
– Eu realmente amo a linguagem doce e furiosa dos mexericos que colocas
na ACN. Mas tu defendeste os Destruidores. Isso me deixou zangada. Tu
conheces magia de ressurreição. Isso me fez questionar teu sangue.
Ela abaixou–se e lambeu o sangue da minha perna. Depois disso, ela me deu
um tapa na cara.
– Destruidora miserável! Nós vamos matar o teu povo e pilhar Consmam.
Destruiremos as preciosas árvores daqueles putos pobres. Faremos quantos
perfumes desejarmos. Eu já te seduzi. Logo seduzirei o mundo.
– Caiu em nossa armadilha como um ratinho na ratoeira... hi, hi, hi.
Então Fuopaj foi somente a isca? Um pretexto? Eles não me chamaram lá
para me entregar o cadáver dele ou de qualquer outro aluno. Era o meu cadáver
que queriam.
– Mas, espere... primeiro vou punir esse daqui. Você, Doçuras, tem um
poder mágico tão baixo que sequer me dará trabalho. Será até chato.
Fuopaj mal conseguia respirar. Iam acabar matando o cara sem querer. Mas
ele ainda poderia chamar seu espírito. O aparelho estava próximo: nas mãos dela.
Situa jogou o aparelho respiratório no chão e pisou em cima com seu salto
gigantesco, destroçando–o.

☆☆☆

Algumas pessoas são más perdedoras. Elas não conseguem lidar com isso.
Por que eu tenho que vencer, se a platéia só é composta de porcos?
O princípio de colégios como aquele não era ensinar magia. Você reúne
seres humanos sob um pretexto qualquer, para que aprendam a suportar
conviver com outros. Eles não podem se esquecer que o ser humano é um
animal social.
Ironicamente, numa escola que deveria te ensinar como ser um humano, eles
somente te mostram como ser um animal.
Competição, competição, competição. Matar ou morrer, na vergonhosa
selva da sapiência.

512
Fábula dos Gênios

Eu quero meu lugar nesse mundo. Ainda assim, eu não preferia outro
mundo?
“Todos os mundos são iguais. Não importa onde eu esteja ou com quem;
algo só vai começar a se transformar quando eu decidir mudar algo dentro de
mim”.
E por que aquelas mulas estúpidas insistiam em alterar o lado de fora? Os
magos de araque, desejando moldar a vida e a morte nas mãos sem serem sequer
capazes de fitar o próprio cérebro no espelho. Arrancar o coração do peito, fitá–
lo e contemplar qual será a emoção infinita, a escolhida e estupenda?
– Ah, filha da puta. Me diz logo o que você quer.
– Euzinha? Nada. Por que eu haveria de querer algo? Eu somente me
encanto com a pele que se descola. Não a morte rápida e indolor, mas a artística
e estupefata.
– O encanto com a morte é uma reversão mágica, vadia. Uma subversão da
ordem.
– Tu saberás o que é a ordem quando meu salto esmagar o teu escroto,
queridinho...
Situa tomou a tesoura do bolso de Fuopaj. Com ela, recortou a camisa
branca que ele vestia. Jogou os picotes longe.
Ela encostou a lâmina de metal da tesoura no peito dele.
– Tudo o que eu queria agora era abrir teu peito e comer teus órgãos.
Lambuzar–me com cada bocado. Mas bem sei que tens a sobremesa: casquinha
de sorvete com duas bolas. Laelia e Leilen, assustem bastante o menininho
enquanto Blargra e Chuchuza se fartam.
Uma gota de sangue na lâmina. Situa provou e não gostou. Fez cara de nojo.
– Sangue é para covardes. Eu só mastigo corações.
Situa sentou–se por perto, ajeitando o vestido. Iria assistir e ordenar, como
uma rainha. Não desejava encostar nele.
As gêmeas recortaram a calça de Fuopaj. Depois foi a vez da cueca. Ele
reagiu. Jogou uma magia tão poderosa e repentina, que quase decepou o braço
de Leilen.
A garota deu um grito horrível enquanto um espírito se enrolava na pele e
no osso, tentando rebentá–los. Com a raiva, Leilen enfiou a ponta da tesoura no
olho esquerdo de Fuopaj, arrancando o globo ocular e cegando–o.
– Ah, esses gritos másculos. Isso é música para meus ouvidos.
Enquanto Leilen se curava e Fuopaj agonizava, Laelia segurou um alicate
para começar a arrancar os dentes dele. Contudo, Situa não permitiu.
– Primeiro brinquem com o pinto dele. Só depois deformem o rosto.
– Ai, que chato, Sisi. Detesto carne de homem. O cheiro é repulsivo.

513
Wanju Duli

– Se me permite, eu realizarei o serviço, Gizwa. A raça masculina possui


alguma atração sobre mim. Eu vou lamber essa minhoca.
A atraente Blargra Tubivii, a moça misteriosa dos olhos cor–de–rosa e
cabelos achocolatados, sentou–se sobre as pernas do garoto.
– Já está tremendo. Pobrezinho... você tem medo de mim, bebê?
– Não se atreva a me tocar, mulher. Pode até tentar. Não haverá nenhuma
reação de minha parte.
– Eu faço levantar até pau de cadáver com minhas tetas, lindinho...
Ela terminou de recortar a cueca dele. Massageou os genitais do mocinho
com destreza. Mas por mais que ela insistisse no processo, ele não reagiu de
forma alguma.
Ela tentou lambê–lo. Fez um boquete poderoso, mas ele se mantinha sério.
– Mas hein, que puto é esse? Assim você deixa a Vivii tristinha...
Ela aproximou–se mais. Abraçou–o. Esfregou a calcinha no pau dele. Ela
sussurrou no ouvido de Fuopaj:
– Eu vou fazer a tua porra virar sangue.
– Blargra, mete o dedo no rabo desse viado. Ele vai ficar de pau duro nem
que você enfie uma motosserra aí dentro.
Blargra enfiou o dedo no cu dele e deu um sorrisinho malicioso. Ela brincou
assim até que conseguiu forçar a ereção. Fuopaj fitava Blargra como se desejasse
matá–la. Tentou pronunciar outra magia, mas estava com falta de ar e nervoso
demais para isso.
Quando Fuopaj começou a pronunciar as sílabas, Tubivii enfiou dois dedos
da outra mão na boca dele.
– Fica quietinho, filho da puta. Assim não vai doer tanto, gostosão.
Ela colocou um anel metálico no caralho dele e chupou–o com violência.
Apertou o saco com força e torceu–o. Fuopaj gritou. Ele estava suando.
– Eu não consigo... respirar...
Blargra deu–lhe um profundo beijo de língua. Depois cuspiu dentro da boca
dele. Os olhos de Fuopaj estavam úmidos.
– Coitadinho... para onde foi toda aquela fúria? Ele não para de tremer! Não
tenha medo. Vou te dar um abraço, meu amor...
Ela abraçou–o. Lágrimas escaparam dos olhos dele. As lágrimas se
misturaram com o sangue da face. Quando a tinta rubra caiu, formou–se uma
letra do alfabeto de Bruznia, que atuava como uma abertura de selo.
Quando o selo foi ativado, Blargra deu um grito fino. Uma mancha
vermelha formou–se em sua camisa branquinha e rendada.
Ela desfez o lacinho cor–de–rosa e abriu a blusa. Verificou no sutiã. Havia
um grande corte, que partia seu mamilo esquerdo em dois.
Irada, Blargra segurou uma agulha e enfiou no saco dele.

514
Fábula dos Gênios

– Calma, sua galinha! Não me desobedeça! Primeiro, foda Fuopaj. Só depois


torture–o do modo convencional.
Blargra afastou a calcinha para o lado. Quando ela tentou encaixar a buceta
no cacete dele, Fuopaj desesperou–se.
– Não, NÃO! Você vai me matar se fizer...!
– Ah, que drama. Vá em frente, Vivii. Eu quero ver a porra escorrendo
desse miserável.
Fuopaj ficou fora de si. Perdeu a calma e a razão e começou a chorar forte
quando Blargra cavalgou nele. Ele gemia, com falta de ar.
– É agora que o espetáculo começa. Chuchuza, arranque o prepúcio dele
com a tesoura. Laila e Leilen, podem arrancar pedaços do rosto até tocar o osso.
Quando Chuchuza deformou os genitais dele, Blargra cavalgou mais um
pouco. Ela obteve o que queria: ele jorrou porra e sangue.
– É o bastante. Soltem–no.
As gêmeas libertaram os braços e pernas dele das correntes. Fuopaj desabou
no chão, lutando para conseguir respirar, e quase desmaiando. Estava sem um
olho, com a bochecha direita descarnada e com os genitais quase despedaçados.
A mando de Situa, Chuchuza amarrou um barbante no resto de pênis e
escroto. Situa segurou na outra ponta e finalmente abriu a porta da salinha.
Ela caminhou com elegância em seu salto alto, como se arrastasse um
cachorro pela coleira. Fuopaj agonizava, com a boca aberta soltando sangue,
dentes e pedaços de gengiva.
Ela jogou Fuopaj no chão, como um saco de lixo. Ele lutava para conseguir
respirar, chorando e soluçando.
Logo, muitos alunos foram atraídos com o barulho. O corredor ficou lotado.
Todos gritavam de horror com a cena. Notaram que aquele pedaço de carne no
chão era o notável aluno de Pompa Prima. Ou o que restou dele.
Eu nunca vi Situa tão feliz. Estava com um sorriso maldoso e nojento de
orelha a orelha. Ela emanava todo o prazer que sentia. E clamou para todos.
– Eis aqui o famoso mago mais forte de Pompa Prima: o pequeno Edz,
completamente nu, destroçado, dominado e humilhado! Com esse ato
respeitável mostro que eu, Gizwa Situa, e os membros de minha Ordem
Venfaus somos os estudantes mais belos e poderosos. Digam–me se continuam
a ver beleza nessa criatura digna de pena. Nesse bicho podre disfarçado de ser
humano. Somente a feiúra: esta sim que reina nos fracos e derrotados!
Três garotas, que certamente eram apaixonadas por Fuopaj, abaixaram–se
para tentar ajudá–lo. Elas estavam em lágrimas, mas Fuopaj ainda foi orgulhoso
o suficiente, mesmo naquelas condições, para negar ajuda. Ele não queria que
elas se aproximassem dele daquele jeito.

515
Wanju Duli

Mas antes que mais alguém se aproximasse, Situa deu um puxão no barbante
e pisou no saco de Fuopaj com seu salto quase mortal. Ele gritou muito alto.
Mas os estudantes ao redor gritaram mais.
O corpo inteiro de Fuopaj tremia. Ele fazia muito barulho com a respiração,
tentando captar cada porção de ar, como se estivesse no limite.
E as lágrimas... o choro desesperado daquele garoto, todo banguela e fodido,
era o que mais chocava. Era de arrancar o coração.
– Eu adoraria matá–lo agora diante de todos, desmembrando–o e
devorando–o, mas não sou tão piedosa. Ele deve viver, para sofrer essa
humilhação. Caminhará pelos corredores todos os dias de cabeça baixa, caolho e
com uma quimera entre as pernas. Aqui está tua máscara, infeliz. Ajoelha–te
diante de mim e te entregarei!
Mas Fuopaj mal se mexia. Irritada, Situa chutou–o novamente e jogou a
máscara dele no chão.
– Vai lá, pega isso e respira, verme! Pode te arrastar agora e sumir da minha
frente! A cada vez que fitar minha presença magnífica a partir daqui, irás tremer!
Ele estava imóvel. Devia ter desmaiado.
– Chuchuza, coloca a merda da máscara nele.
Mubeba fez isso. Tentou encontrar algum sinal de vida em Fuopaj, mas não
conseguiu.
– Ele está morto.
Quando Mubeba anunciou essa notícia, houve mais gritos ainda. Situa mal
podia acreditar. Pela primeira vez, o sorriso sumiu de seu rosto e ela ficou
perturbada.
– Isso não pode ser. Não sou leiga em tortura mágica. Minhas ordens foram
suficientes somente para deixá–lo à beira da morte. Ele é assim tão fraco? Eu
não quebrei o aparelho completamente. O espírito dele ainda devia estar...
– O espírito dele não habita uma tesoura ou uma máscara, como você
pensava. Ele é um construtor. O que feriu o gênio e matou–o foi a vagina
daquela criatura.
O aluno que chegou apontou para Blargra. Situa fitou–o intrigada.
– Deixe de falar merda. Quem é você afinal, recém–chegado? E como ousa
utilizar as vestes de gala num dia de aula comum? Somente eu tenho o direito de
realizar tamanha ousadia, em nome da beleza!
– Sua beleza está corrompida, maga covarde. O que você chama de tortura
mágica não passa de uma tortura baixa e desprezível, que leva pouquíssimo em
conta as capacidades mágicas do adversário. Você tomou a respiração dele.
Amarrou–o e atacou em bando. Como, pela terra e pelos céus, isso pode ser
chamado de batalha mágica justa?

516
Fábula dos Gênios

Quem era aquele aluno que chegava de repente, desafiando a grandiosa líder
da Venfaus?
Ele trajava pomposas vestes em tom púrpura. Era um uniforme diferenciado
do padrão masculino. Só era permitido usar mantos como aquele em festas
oficiais da instituição e outras ocasiões formais.
Foi então que recordei daquele rosto: um aluno de pele negra, cabelos
negros e crespos. Ele estava sentado na mesma mesa de Fuopaj na ocasião do
truelo.
Ele deu alguns passos a frente.
– Não ouse tocar este cadáver. Ele me pertence!
O rapaz não ligou. Abaixou–se e segurou o corpo de Fuopaj, tentando
encontrar algum sinal de vida nele. Levantou–se em seguida, confirmando o
pior.
– O nome dele era Anahel Mizah. Construtor de nascimento, meu
namorado e mais fiel amigo. Forte como poucos. Ele quis usar essa força para
me proteger, já que tenho um nome de peso. Desejou passar–se por mim e
pagou o preço. Eu não imaginava que isso chegaria tão longe.
– Então Edzgarran Fuopaj é você?
– Isso está correto, madame Situa. Saiba que na maior parte do tempo sou
um homem respeitável e contido. Mas não perdoo aqueles que machucam meus
amigos, seja o corpo ou a alma. Felizmente criaturas como você, que pouco
entendem da real essência da magia, jamais são capazes de tocar o espírito. O
corpo de Anahel não poderá ser recuperado, mas o gênio dele, que ainda possui
um desejo, mergulhou numa dimensão. Você não foi capaz de tocá–lo ou
sequer de percebê–lo. Tem certeza de que ganhou essa batalha, Gizwa?
– Do que está falando, idiota? Eu não temo suas palavras. Ao contrário, fico
imensamente satisfeita em saber que matei apenas um aluno dispensável. Agora
que sei que o verdadeiro Fuopaj ainda vive, convido–o a ser membro de nossa
Ordem.
– Você só pode estar drogada para proferir tamanha asneira. A senhorita
não viverá mais na próxima hora. Eu sinto a energia daquelas que tiveram
participação direta na tortura e no assassinato de Anahel. Nenhuma será
poupada.
Situa gargalhou.
– Se o sangue dele está contido na lista dos Magos Acima da Lei, isso
significa que ele era descendente do Rank Dois, Cromo D’aship? Ora, D’aship
não deixou descendentes. Todos sabem que a ligação dele morreu na guerra.
– Menina, é o meu sangue que está contido nessa lista. Eu sou descendente
do Rank 7. Essa informação lhe será de pouca valia. Mesmo depois do que

517
Wanju Duli

fizeste, te darei uma batalha mágica justa. Em troca disso, terei o direito de fazer
o que quiser com os cinco cadáveres.
– Cinco? Você sabe quem é o pai de Laelia e Leilen?
– Perfeitamente. Elas não serão favorecidas pelo sangue. Vou pendurar os
cadáveres lá fora. Então sigam–me, por gentileza. Não quero correr o risco de
macular o corpo de Anahel aqui dentro.
O verdadeiro Fuopaj foi até o pátio. Todos o seguiram. A platéia aumentou
ainda mais. Ele era confiante ao extremo. Em breve eu descobriria que aquela
confiança era bastante justificada.
Situa ainda estava com um grande sorriso no rosto.
– Não se importe tanto com o cadáver daquele lixo. Em breve ele será
entregue para os experimentos da Veladora.
Situa apontou para mim. Quando o rapaz me fitou com aqueles seus olhos
intensos e assustadores, eu senti um frio na espinha. Eu já sentia um pouco de
medo do tal Anahel Mizah, mas estava muito claro que aquele cara na minha
frente era muito mais perigoso.
– Sugiro que não se mexa, Destruidora. Finalizarei essa batalha num instante.
Assim que eu terminar, me ocupo de você.
– Se você me subestima assim, eu vou ficar puta.
Um imponente espírito saiu do interior do selo inscrito no tamanco cor–de–
rosa de Situa. Ela tirou o enorme laço rosa da blusa e com ele traçou uma série
de novos selos no ar.
Fuopaj duplicou o seu cajado, cuja ponta era afiada como uma estaca. Dali
emanava um cheiro muito forte. Era um perfume perdidamente sensual. Quase
um ímã.
Quando Situa pulou, pretendia atingir Fuopaj com o espírito de seu tamanco.
Mas até mesmo eu gritei quando vi aquele horror: ela pulou diretamente para a
estaca.
Como...? Situa era uma exímia bailarina. Ela dançava, tinha pleno controle
sobre os movimentos do corpo. Fuopaj usou uma magia muito mais poderosa.
A estaca penetrou diretamente a vagina de Situa, rasgando a calcinha. E
adentrava nela cada vez mais.
– Como... você...?
– Eu sei que você não gosta de homens, Gizwa Situa. Não se sentiria atraído
pelo cheiro de um. Mas aqui demonstro a dimensão do meu poder: a magia que
utilizo contra donzelas que desejo punir de forma especialmente cruel. Esse
cajado tem o cheiro do meu pênis, multiplicado por uma potência elevada. Eu
utilizei a Magia da Potência, que Anahel me ensinou. Essa é uma magia sexual
extrema. Funciona até mesmo numa lésbica convicta como você... quem diria.
Sua vagina pulou diretamente para minha presa.

518
Fábula dos Gênios

– Filho da puta!!
Situa adentrava cada vez mais na estaca, tendo seus órgãos perfurados.
Gemia de dor. Em meio à tortura, parecia estar delirando de prazer pelo cheiro.
Odiando a si mesma pela sua condição. Pelo pecado de sua sede de matar e
morrer.
– Sua magia é tão sublime...!
A outra ponta da estaca saiu pela boca dela. Fuopaj fincou a enorme estaca
no chão e deixou–a lá agonizando por longos minutos antes de morrer.
Ele duplicou seu cajado de símbolos arcanos numa segunda estaca,
dirigindo–se para Blargra Tubivii, que estava visivelmente apavorada.
– Aqui está o meu espírito.
Tubivii abriu a blusa, tirou o sutiã e entregou a ele.
– Eu não tenho interesse no espírito de cadelas.
E Fuopaj empalou–a, deixando–a sofrer ao lado da estaca da líder de
Venfaus.
A terceira estaca foi para Chuchuza Mubeba, a ratinha estúpida que chorou e
ajoelhou–se.
– Por favor, poupe–me, senhor! Eu só fiz isso porque mestra Situa me
ordenou...
– A sua lealdade é infeliz. De nada adianta haver amor se não há a sabedoria
para direcioná–lo. Assim, seu suposto amor não somente converteu–se em ódio,
mas também em morte.
E a vagina dela também foi atravessada. Mubeba gritava e esperneava, mas
era tarde demais para qualquer coisa. Ninguém ali teria poder para deter o
monstro ou ter piedade daquela pobre desgraçada burra.
Quando Fuopaj triplicou o seu cajado, houve mais gritos de desespero. Uma
parte de mim já estava morrendo.
– Ele vai matar as gêmeas!
Alguém gritou isso e houve pânico geral. Todos queriam detê–lo. Se aquelas
duas morressem, Fuopaj também morreria pouco depois. Taha Vorta ficaria tão
enfurecido que não somente lhe daria uma morte muito mais cruel como
também poderia arrastar a cidade inteira consigo em sua fúria implacável.
Quando um dos estudantes tentou puxar o poderoso Fuopaj pela capa,
levou uma cotovelada tão grande que caiu no chão sangrando. Depois disso,
ninguém mais teve coragem de se aproximar dele.
Em passos lentos, ele avançava até onde Laelia e Leilen estavam. As duas se
abraçavam e choravam. Era horror geral. Quanto mais gritos, maior o desespero
e a sensação incômoda que eu sentia por dentro.
– Não ouse! O meu pai...

519
Wanju Duli

Quando ouviu aquilo, Fuopaj demonstrou ira pela primeira vez. O rosto
dele converteu–se numa expressão de raiva e ele elevou a voz:
– Que Taha Vorta venha arrancar a minha vida! Que ele venha defender
suas duas putas que pariu!
Ele cruzou as duas lanças. A que entrou pela vagina de uma saiu pela boca
da outra.
O horror não terminava. Elas não morriam. Continuavam gemendo nas
estacas, escorregando por elas.
O rapaz continuou assistindo. Ele não sorria. Aguardou mais meia hora, de
braços cruzados, até que todas estivessem mortas.
Ele não permitiu que removessem as estacas. Ordenou que permanecessem
pelas próximas 24 horas, para inspirar o temor.
Ele não tinha medo que Taha contemplasse. Ele não fugiria. Eu não
duvidava que ele fosse se sentar para aguardá–lo.
Os professores, os magos fortes de Bruznia. Ninguém tinha autoridade para
repreender as ações de Fuopaj. Afinal, ele era parente de um dos magos do
ranking dos dez.
Mas Vorta, ou qualquer um dos números de dois a seis, poderiam se
manifestar. Os outros nem precisariam se incomodar. As notícias corriam
rápido. Ninguém duvidava que Vorta chegasse lá em no máximo algumas horas.
Como as filhas dele estudavam em Pompa Prima, sempre houve rumores de que
ele estivesse morando em algum lugar da cidade, escondido.
Eu não tinha certeza de que teria coragem para assistir àquilo. Nem as
batalhas dos Destruidores eram tão cruéis. Resolvi dirigir–me até o banheiro
para vomitar.
– Não tão rápido, Veladora. Preciso conversar com você. Uma conversa
privada.
Ele notou que eu tentei me retirar. Ele estava de olho em mim o tempo todo.
Merda.
– Siga–me.
Entramos novamente no colégio e nos dirigimos até uma sala vazia. Quando
Fuopaj passava, os alunos corriam com medo. Ninguém tinha coragem de ficar
perto dele.
Assim que entramos, eu não me segurei e vomitei no chão.
– Quem diria. Uma Destruidora assim tão sensível a cenas como essa.
Bruznia amoleceu você?
Aqueles olhos castanhos intensos com um brilho de fogo me intimidavam
pra cacete. Mas eu me ofendi com o que ele disse. Limpei a boca com a manga
da camisa e o fitei com seriedade.

520
Fábula dos Gênios

– Cuidado, Fuopaj. Você pode estar sob a proteção da MAL, mas meu pai é
sacerdote em Desmei.
– Oh? Daí que vem seu conhecimento de ressurreição. Eu preciso dele.
Reviva Anahel.
– Cara... foi mal, mas não vai rolar. Isso não é simples como parece. Eu
roubei alguns segredos do meu pai. Ele ficou puto comigo, porque não sou
membro da Derraexi–Pro. Nem mesmo os Derradeiros possuem habilidade de
reviver assim, como se fosse apenas uma cagada. Não com tanta frequência.
Ele bateu a mão na parede, me encurralando. Eu levei um susto!
– Você fala demais. Não vê que meu tempo é curto, droga? Se duvidar, em
alguns minutos Vorta já vai chegar pra arrancar o meu couro e assoar o nariz
com ele. Então NÃO ME INTERESSA suas explicações. Apenas me diga se há
alguma chance de revivê–lo.
– Surpreende–me que você não me pergunte a respeito de sua própria
ressurreição.
– Foda–se a minha vida.
– Saquei. Eu vou tentar preservar o corpo dele. Você disse que o gênio
escapou pra outra dimensão? Vou precisar de um profissional pra laçá–lo.
– Ah, come meu cu. Nem vem com essa que seu pai é um Destruidor.
– Beleza, mas a maioria dessas magias só faz efeito depois de alguns anos.
– Isso não faz sentido. Pensei que quanto mais recente a morte fosse, mais
fácil seria revivê–lo. Poderia anular possibilidade de reencarnação.
– Você não saca esses lances de karma. É muito mais complexo. O tempo lá
e aqui não passam da mesma forma, cara.
– Quanto tempo vai levar pra ele voltar? Uma década? Ou mais?
– Sei lá. Eu não vou reviver ninguém de graça. O que eu ganho com isso?
– Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que todo o conteúdo do seu blog é
uma grande merda. Você só fala bosta, menina. “Vamos classificar os seres
humanos em categorias. Dentro desses grupinhos de falsos magos há muitos
porcos e vacas”. Que porra é essa? Quem você pensa que é para julgar as
pessoas? Então você sabe reconhecer se alguém é sábio e poderoso com base
em critérios completamente arbitrários e preconceituosos como os que você
criou?
– Então você realmente lê meu blog.
– Não aguentei por muito tempo. Você é muito metida e gosta de dar
discursos imbecis sobre assuntos que sequer domina. Você dividiu os magos em
dois grupos: os gênios imaginativos e os burros sem criatividade. Poderia me
fazer o favor de informar em qual categoria você se encontra?
– Eu me considero muito criativa.

521
Wanju Duli

– Sabe onde você enfia essa criatividade sem o suporte da magia e


conhecimentos técnicos, filosóficos e tradicionais? Em qual grupo você acha
que se encontra o maior mago do mundo?
Eu não tinha parado para pensar nisso. A base da magia de Vorta era
completamente técnica. Ele era um mago robótico. Ele foi um pouco criativo
em reunir diferentes áreas do conhecimento, mas ele dificilmente poderia ser
considerado um mago artístico ou algo assim. Ele estudou em grimórios
extremamente tradicionais. Tirou todo o poder dele de lá, assim como de
práticas recomendadas e renomadas.
Quando eu não respondi, Fuopaj prosseguiu.
– Há muita gente aí fora que deseja reviver desgraçados. Não o faça. Por
favor.
– Então você não é um desgraçado?
– O que eu fiz foi extremamente condenável. Não precisa me reviver. Mas
Anahel não merecia uma morte assim.
– Não se preocupe, jamais reviverei as mocinhas que você matou. Mesmo se
o próprio Vorta me obrigar a reviver as gêmeas, direi que prefiro a morte.
– Fico extremamente satisfeito de ouvir isso. Apesar das idiotices que
escreve, você tem alguma honra. Como vou morrer em breve, confesso que
sinto um pouco de medo. Mas eu ficaria mais tranquilo se você dissesse que um
dia tentará reviver Anahel. Você realmente precisa ganhar algo com isso? Ou
não se considera do lado da justiça? Afinal, você não foi apenas uma
espectadora passiva. Não entende que toda a fúria dos seus escritos despertou
sentimentos ruins nos estudantes ingênuos daqui? Conserte o que fez. Sinta–se
um pouco responsável.
– Acho que entendi o que você quis dizer.
– Suas palavras violentas foram mais afiadas que minhas estacas. Se não
fossem por elas, talvez nada disso tivesse acontecido.
– Eu pouco sei sobre a justiça. Não sei bem o que é certo ou errado, mas de
uma coisa tenho certeza: eu não gostei das sensações que senti ao presenciar
todas essas cenas de tortura e morte.
– É muito perigoso haver a reversão destrutiva dos conceitos de beleza. A
magia estética está fundamentada completamente nisso. Há muitos magos
assassinos no nosso mundo, que começaram a gostar de matar. Essas sensações
são fortes. Parecem ruins no começo, mas depois viciam. Então surgem os
deuses da culpa e da desgraça. Segundo a lenda, o grandioso Vorta foi
amaldiçoado por uma deusa.
– Então ele era uma pessoa bondosa?
– Eu matei aquelas cinco meninas para vingar meu amigo. Esse foi um ato
bondoso? Julgar assassinos sádicos, tornando–me eu mesmo um deles, por

522
Fábula dos Gênios

melhores que fossem minhas intenções? Menina, um ser humano pode até
tentar ser bom, mas no meio do caminho irá se deparar com contradições como
essas. Foi por isso que os deuses perderam muita força: eles não possuíam mais
existência absoluta e dependiam da imaginação e dos conceitos diferenciados
das pessoas. Vorta é mais parecido comigo do que você pensa. Diz a lenda que
ele também perdeu uma pessoa importante no começo de sua jornada mágica.
– E agora perdeu mais duas... por mais desgraçadas que fossem, elas eram
filhas dele. Vocês dois estão repletos de tristeza e ódio. E vão se enfrentar com
esses sentimentos.
– Essa é uma grande bobagem. Não haverá sentimento algum. Eu, um
adolescente de 17 anos, serei instantaneamente eliminado antes de sequer sentir.
Houve um grande estrondo. O chão tremeu.
– Ele chegou.
Eu senti meu coração subindo na boca. Não apreciei o gosto. Quando
chegamos lá fora, a platéia era mínima. As pessoas não estavam somente
evacuando o colégio, mas também a cidade. Vorta devia ter matado algumas
pessoas que se colocaram no caminho. Se eu não me cuidasse, seria varrida
também.
– Ofruw! Que raios você tá fazendo aqui ainda? É perigoso!
Eu levei um susto quando notei meu amigo lá. Ele não era forte o suficiente
para aguentar aquilo. Eu ainda era uma Destruidora, então segurava a barra. Eu
precisava protegê–lo.
– Eu estava te procurando, Flora! Soube que você se envolveu com a
confusão.
– Sim, eu sou a autora do maldito blog que causou tudo isso.
– O quê? Você é a Veladora?
– Ai, ai, você foi o último a saber disso, meu. Você viu o namorado do
Fuopaj morrer? Viu o cara matar aquelas cinco magas fortes? E sabe quem está
vindo até aqui para vingar as gêmeas?
– Por acaso eu acompanhei toda essa merda. Vamos sair logo daqui antes
que Vorta nos mate.
– Não adianta mais. Fuopaj disse que ele já está aqui.
– Onde?
O que eu vi a seguir me fez sentir extremamente tonta.
A cidade, lá longe no horizonte, estava desaparecendo. Como se uma onda
fosse derrubando tudo no caminho. Um tornado.
Ao mesmo tempo, meu coração acelerava, com o peso enorme da energia
daquele mago. Eu tapei a boca com a mão e senti lágrimas nos olhos. Ofruw
também estava chorando ao meu lado.

523
Wanju Duli

Por quê? Não era somente o medo da morte iminente e inevitável. Era a
emoção pura perante o magnífico.
A cidade sendo engolida. O tufão se aproximando. Um tufão humano,
fundido com a natureza.
Era como se ele fosse uno com o mundo. Ele e o mundo não eram coisas
diferentes. Quando ele respirava era capaz de alterar a ordem do universo.
Até mesmo Fuopaj, que estava próximo, tremia. O mago mais forte do
mundo tinha derrubado metade da cidade atrás do cadáver dele.
Quando aquela pessoa colocou os dois pés no chão, distando poucos metros
de nós, eu gritei. Ofruw também, assim como pouco mais de uma dúzia de
alunos que tinha corajosamente escolhido permanecer por lá para contemplar o
espetáculo daquela batalha.
As lágrimas escorriam de meus olhos como água. Eu soluçava. A energia
emanada por aquele mago era tão poderosa que afetava todas as minhas
emoções. Uma fonte de magia alterando a ordem do meu cérebro e do meu
coração.
Eu já não sabia o que eu sentia: se era horror, deslumbre ou vontade de
morrer. Mas de uma coisa eu tinha certeza: depois de ter a honra de sentir
aquela sensação, minha vida já poderia ser arrancada.
Ele era o sentido da vida encarnado. Havia tanta energia reunida que os
seres humanos que estavam perto ficavam quase loucos. Eu sentia vontade de
me ajoelhar diante dele e adorá–lo como um deus.
Era isso: aquela pessoa emanava uma aura ainda mais poderosa que os
deuses. Mais forte que um Destruidor. Ele seria a justiça? Uma esperança na
vida ou na morte? O sagrado julgador? Ele teria todas as respostas, acima da
razão? Para ter tamanho poder, a sua sabedoria só podia ser suprema.
Quando ousei levantar os olhos, vi um par de botas marrons,
completamente desgastadas. Longas meias brancas. Calça cinzenta e capa bordô.
Um grande chapéu cinza.
As roupas dele estavam com vários rasgos e pareciam bem antigas. Ele devia
ter entre 40 e 50 anos. Tinha cabelos castanhos e segurava um cajado metálico
com um parafuso e uma cabeça robótica.
Tinha aparência completamente humana. Mas a dimensão de seu espírito
não poderia ser mensurada.
Eu sentei–me no chão, pois não era capaz de ficar em pé. Minhas pernas
tremiam tanto que não eram capazes de me sustentar.
Fuopaj foi o único que aguentou aquela presença. Aguardava–o de pé, com
o cajado em mãos e seriedade no rosto. Estava claro que havia muito medo nele,
mas ele havia decidido enfrentar as consequências de seus atos desde que
pronunciou aquelas palavras desmedidas e assassinou friamente as irmãs Vorta.

524
Fábula dos Gênios

Eu o via. Eu fitava Taha Vorta em pessoa! Aquilo era surreal demais para ser
verdade.
Vorta viu as estacas. Enxergou quem estava nelas.
A seguir, ele olhou para Fuopaj, que era o único de pé exatamente diante
dele.
Eles não trocaram uma palavra. Ambos compreendiam a situação
completamente.
Fuopaj evocou seu espírito com o cajado. Ele iria usar máximo poder
naquela batalha. Todos, incluindo ele mesmo, já sabiam que Fuopaj estaria
morto em breve. Mesmo assim, ele aceitou lutar por aquilo que acreditava.
O cajado de Fuopaj adquiriu vida própria e flutuou logo acima. Ele colocou
toda sua energia nele até a exaustão. Eu me impressionei com o poder daquele
rapaz. Era uma pena que fosse morrer tão cedo. Mas afinal, quem era eu para
pensar algo assim? Os Destruidores matavam uns aos outros ainda crianças e só
restavam os fortes.
Um mago não se importa com a idade da morte. Uma vida é uma vida.
Digna e maravilhosa. Não interessa se o mago viver uma década ou dez. A
morte virá cedo ou tarde. E se for em batalha, repleta de adrenalina e magia,
como poderia haver um final melhor?
Em respeito à potência de poder de Fuopaj, Vorta chamou seu robô mestre.
De fato, foi um gesto de respeito. Vorta sequer precisaria do espírito para
matá–lo. Ele o fez para honrá–lo. Vorta honrou o cara que matou as filhas dele.
Da mesma forma que Fuopaj tinha honrado as cinco estudantes de Pompa
Prima com uma batalha digna. Diferente delas, que realizaram um ato covarde.
O erro nasceu daí.
A emanação mágica do robô era tão grandiosa que uma rajada de vento
surgiu. Fuopaj tentou se proteger, traçando um selo mágico de escudo, mas não
adiantou. Apenas aquela “brisa” já arrancou pedaços de sua pele. Ele protegeu o
rosto com as mãos. Quando fitou novamente as mãos, elas estavam sangrando e
em carne viva. Em algumas partes quase se via o osso.
Tremendo, ele vestiu luvas de couro que havia no bolso do manto. Sentiu
dor ao colocá–las, o que ficou evidente em sua expressão. Mas a dor era melhor
do que perder as mãos.
Ele não conseguia se concentrar para lutar normalmente porque estava
diante de Taha Vorta? É claro que Vorta entendeu isso, ou não teria aguardado
que ele colocasse as luvas. Aliás, ele já podia ter arrancado a cabeça de Fuopaj há
muito tempo. Ele queria ver do que o cara que matou suas filhas era capaz.
Fuopaj finalmente conseguiu se concentrar. Pronunciou fórmulas de poder e
traçou selos mágicos altamente fodas. Por fim, montou uma trilha de selos,
como faziam os construtores. Tudo bem calculado. Mas aquele truque de magia

525
Wanju Duli

matemática não funcionaria contra Vorta, que era mestre em magia robótica e
simbólica, e poderia quebrar todos os cálculos.
E não é que Vorta entrou no jogo? Também usou uma trilha de selos para
atacá–lo. Ele devia conhecer todas as merdas das linhas de magia. Não
importava o que Fuopaj jogasse contra ele: Vorta poderia rebater com a mesma
técnica, melhorada.
Só que a potência daquela magia foi tão forte que quando as trilhas se
chocaram e os cálculos se cruzaram, o impacto decepou o pé esquerdo de
Fuopaj.
Ele caiu no chão, coberto de dor e sangue. E continuou atacando!
O que ele fez a seguir fez meu queixo cair: Fuopaj abriu uma dimensão. Dela
saiu um gênio. Só podia ser o gênio de Mizah. Fuopaj alimentou o gênio com
seu próprio pé, numa tentativa poderosa de convertê–lo num maligno.
Taha Vorta assistia a isso com interesse. Se Fuopaj tomasse o gênio para si,
ele seria capaz de se apropriar do último desejo dele?
Mas Fuopaj estava muito fraco. Mesmo assim, ele pegou seu cajado,
transformando–o numa lâmina, e com ele decepou a própria mão esquerda,
serrando a carne e o osso. Ofertou–a para o gênio, que se enrolou em seu corpo.
Possivelmente em sua alma.
A seguir, Fuopaj traçou um labirinto de selos. Técnica de Destruidores. Algo
que eu sabia fazer. Você constrói uma trilha extremamente confusa, que não
possui somente cálculos complexos, mas conectados uns aos outros. Caso se
perca no meio do caminho, o adversário se torna um prisioneiro do labirinto e
será submetido pelo senhor do maligno.
Vorta ficou intrigado com a coragem de Fuopaj, mas resolveu o enigma
facilmente. Eu senti que Vorta o respeitou pela ousadia de abrir uma dimensão e
ofertar partes de seu corpo. De lutar até suas últimas forças. Mas ele já estava se
cansando de jogos.
Na segunda ventania que produziu com seu robô, Vorta arrancou ainda mais
pedaços de Fuopaj. O suficiente para que ele permanecesse vivo.
Aquele vento forte, embora não viesse na minha direção, já estava
começando a me ferir. Senti pequenos machucados na minha pele, que estava
ficando seca e rachada. Se aquela batalha continuasse por mais alguns minutos,
eu, Ofruw e todos os alunos ao redor certamente morreríamos.
Vorta caminhou até Fuopaj, que estava no chão, em suas tentativas vãs de se
recompor.
Fuopaj devolveu o gênio para a dimensão da qual o retirara, para protegê–lo.
Ele olhou na minha direção rapidamente quando fez isso, me indicando qual
dimensão seria. Eu entendi.

526
Fábula dos Gênios

Vorta ficou imensamente intrigado quando ele me olhou. Ele fitou a minha
direção também. Ele era muito perspicaz, então eu não duvidei que fosse capaz
de desvendar a nossa comunicação.
Aquilo o irritou. Vorta segurou Fuopaj pelas vestes e, com as mãos, abriu a
barriga dele, como se fosse um brinquedo.
Ele arrancou os órgãos internos de Fuopaj, com ele ainda vivo. Vorta fez
questão de mantê–lo extremamente consciente enquanto o torturava, e o seu
robô ajudou nisso.
Em pouco tempo, Fuopaj estava com os olhos revirados e babando
enquanto Vorta esmagava seus órgãos internos com os dedos, atirando alguns
para a grama.
Taha Vorta não teve piedade. Ele foi arrancando órgãos e pedaços de
Fuopaj um por um, mantendo–o vivo e consciente da dor pelo maior tempo
que conseguiu.
Até que o libertou daquele sofrimento. No final, Fuopaj era somente uma
sopa de pedaços de carne e vísceras. Vorta segurava o cérebro de Fuopaj com
curiosidade, como se fosse capaz de analisá–lo apenas com esse toque e esse
olhar.
O robô de Vorta selecionou alguns dos ossos de Fuopaj, separando–os da
carne, e guardou num compartimento. Como se costuma dizer: quando se mata
um mago em batalha, o corpo dele lhe pertence, para que você faça com ele o
que desejar. Os Destruidores conheciam muito bem essa regra.
Até que Vorta levantou–se, limpando os dedos de sangue num lenço branco
que retirou do bolso da calça. E ele fez isso com tanta calma e indiferença como
se tivesse apenas terminado de comer uma coxa de galinha com as mãos e
limpasse os dedos da gordura.
O seu ato seguinte foi fazer descer duas das estacas, recuperando os corpos
das gêmeas. Enquanto o robô analisava os cadáveres friamente e calculava
alguma coisa, Vorta fez um gesto bem mais humano: fechou os olhos e
abraçou–as. Permaneceu assim por alguns segundos.
Ele deixou que o gigantesco robô se ocupasse dos corpos delas. Enquanto
isso, para meu espanto, ele caminhou na minha direção.
– Ofruw... ele tá vindo pra cá...!
Eu sussurrei para ele, com voz trêmula. Mas quando olhei para o lado, vi o
pescoço de Ofruw partido. Uma rajada de vento o atingira em cheio e ele caiu
morto. Quando percebi, tive que tapar os olhos.
Nos segundos seguintes, continuei com as duas mãos sobre o rosto. Eu não
mais desejava desvendar aquele mundo estranho que havia numa realidade
assombrosa. Quando consegui retirar as mãos, senti lágrimas. Fitei minhas
palmas e vi cortes vermelhos.

527
Wanju Duli

Meu coração quase parou quando avistei Vorta tão perto de mim.
– Você é neta de Zraba.
Como é que ele sabia daquilo? Eu já tinha ouvido falar que meu avô tinha
sido amigo de Vorta no passado. Nunca soube se era verdade. E mesmo se
fosse, eu jamais imaginei que aquela amizade fosse assim tão grande para o
próprio Vorta lembrar–se disso.
– Zraba é Derradeiro, assim como o filho dele, seu pai. O filho obteve um
conhecimento revolucionário no campo da ressurreição mágica, que nunca
aceitou compartilhar comigo, por se tratar de um segredo de sua Ordem.
Mesmo eu tendo o poder de ameaçá–lo e de matá–lo, não o fiz, em respeito ao
meu amigo. Por acaso você dominou parte desse conhecimento?
Ele estava me fazendo uma pergunta. Era melhor que eu respondesse rápido
para não morrer.
– Sim, talvez eu seja capaz de reviver uma pessoa, mas não qualquer uma.
Somente algumas pessoas, sob circunstâncias muito específicas. Também há
possibilidade de ocorrer erros.
– Não importa. Erros são parte fundamental do aperfeiçoamento mágico.
Eu preciso que você reviva uma pessoa para mim. Você pode fazer isso?
Pelo jeito, a ressurreição de Mizah teria que esperar. De qualquer forma,
como a morte dele tinha sido muito recente, eu não seria capaz de operar nesse
grau de necromancia.
Pensando bem, eu queria reviver meu amigo Ofruw antes de Mizah! Ah,
cara, tantas pessoas importantes estavam morrendo ao meu redor seguidamente
que eu não seria capaz de levar aquilo adiante.
Eu ainda era fraca em técnicas de Derradeiros. Eu sequer fazia parte da
Ordem e ainda não tinha certeza se eu desejava me juntar a eles. Se eu o fizesse,
ainda demoraria pelo menos cinco anos até que me revelassem o resto que eu
precisava saber.
– Não entre para a Ordem ainda, ou você será proibida de fazer esse serviço
para mim. A pessoa que desejo que você reviva morreu há muito tempo. Para
ser exato, ela morreu há cerca de trinta anos.
Ele sabia ler meus pensamentos. Porra, que medo! Se eu pensasse merda
sobre ele, eu tava ferrada.
– Trinta anos... então tem alta possibilidade de minha magia funcionar. Você
sabe onde está o corpo?
– Enterrado num cemitério de Tecraxei.
– Acho que isso pode ser feito. Mas não lhe darei garantias. E os erros que
podem decorrer de uma operação complexa como essa... está disposto a correr?
– Sim. Cometi tantos erros ao longo de minha existência que já não temo
falhas.

528
Fábula dos Gênios

– O mais complicado será resgatar o espírito. Pode levar meses. Ou anos.


– Eu o tenho comigo. No interior do meu robô.
– Então é verdade que você guarda o maligno do meu avô aí dentro
também?
Eu estava impressionada. Ele confirmou.
– Na verdade, há duas pessoas que eu desejaria que você trouxesse de volta.
– Eu só posso trazer uma. E se eu for capaz de fazer isso, eu gostaria de
uma recompensa.
Era meio ousado dizer algo assim para um mago forte como ele. A honra de
ajudá–lo não bastava? Não. Ele quase havia destruído minha escola. Tinha
matado meu amigo. E quantos habitantes de Bruznia ele havia assassinado em
sua fúria ao sentir a morte das filhas, afinal?
– Peça qualquer coisa. Se estiver ao meu alcance será feito.
– Eu quero que você mate meu pai.

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Wanju Duli

Capítulo 2: A Sociedade das Máscaras

Minha irmã é teimosa e desobediente.


Floraze nunca respeitou nossos pais. Ela brigava particularmente com nosso
pai, o que gerava discussões intermináveis.
– Eu não fodi com sua mãe porque quis. Ela é minha ligação e se eu não o
fizesse, morreria.
– Então por que a engravidou duas vezes, velho? Não bastava apenas uma?
Ele deu um soco na cara dela.
– Precaução, para o caso de um dos bebês morrerem. Mas agora vejo que foi
um erro. Você nunca foi necessária.
Mas meu pai não estava satisfeito comigo tampouco.
Sempre fui covarde. Nunca gostei de lutas. Eu fugia quando outros
Destruidores tentavam me matar. Meu pai já me puniu muitas vezes por causa
do meu medo.
– Você é uma vergonha para nosso povo. Até mesmo a puta da sua irmã é
melhor que você, pela coragem que demonstra.
– Eu nunca o desrespeitei, pai. Estou aqui para servi–lo. Pode contar
comigo.
Mas ele rasgou o meu precioso manto verde, orgulho dos Destruidores.
Arrancou–o de mim. Mesmo que meu manto não tivesse nenhuma tira de couro,
era tudo o que eu tinha.
Eu chorei por perder meu orgulho. Mas meu pai somente me odiou ainda
mais pela minha demonstração de fraqueza.
– Saia daqui. Você será banido. Se pisar novamente em Consmam ou
Desmei enquanto viver, irei matá–lo pessoalmente.
Muito antes de eu ser banido, minha irmã já havia fugido de casa. Ela se
orgulhava de ser uma Destruidora, não tinha medo de lutas e já tinha reunido
algumas tiras de couro no manto. Porém, ela estava farta de ser propriedade de
nossos pais e de não possuir autonomia para guiar sua própria vida.
Por isso, ela livrou–se do manto e partiu para outra terra. Ela odiava tanto
meu pai como minha mãe e não pretendia falar com eles outra vez. Mas por
mim, ela ainda nutria algum sentimento. Ou seria pena?
Eu soube quando ela foi para Bruznia. Ela foi para lá exatamente para
desafiar o pai. Ela queria provar que até mesmo uma magia cheia de vaidades e
perfumes, que prezava o excesso, também poderia ser poderosa, contrariando
os valores conservadores do nosso pai, que sempre considerou o desapego
material dos Destruidores como a via máxima.

530
Fábula dos Gênios

A verdade é que não existe um único meio, melhor e mais forte, de fazer
magia. Uma prova era que o melhor mago do mundo vinha de um país
completamente aleatório: Tecraxei. E o rank 1 anterior era de um local ainda
mais heterodoxo: Minimatza, a ilha da magia musical.
Há muito tempo os simbologistas e os filarmônicos eram inimigos. Os
simbologistas defendiam a supremacia da matemática e afirmavam que a magia
filarmônica não passava de uma perversão barata da magia dos números.
Em geral, os Destruidores troçavam de toda a magia que não fosse a dos
gênios malignos. Ridicularizavam a magia dos gênios e a magia simbólica, que
tornavam a necessidade do cálculo algo metódico e controlado, quando para nós
era muito mais intuitivo. Antigamente comunicavam–se com os deuses nas
montanhas, mas desde aquela briga na Floresta Rainha Verde Gelo a relação
entre eles nunca mais foi a mesma. Nunca ouvi falar de muita rixa com os
divininos, que também alcançavam poderes paranormais puros, sem o
intermédio de uma sistematização excessiva. Mas é óbvio que os livreiros eram
vistos como idiotas que enfiavam suas cabeças em livros. A essência da magia
dos Destruidores raramente estava em grimórios.
Havia algum respeito por Taha Vorta, principalmente por causa da lenda do
meu avô Zraba, pois diziam que o gênio de sacrifício dele estava no coração
metálico do RP de Vorta. Mas como magia tecnológica não tinha nada a ver
com o método dos Destruidores, com exceção do poder de madame Soma, era
difícil pagar pau pra eles sem trair nossos princípios.
Mas... magia estética? Talvez Floraze estivesse exagerando. Ironicamente, os
fundamentos da magia estética eram quase como uma filosofia reversa da magia
dos Destruidores. E, por ser completamente oposta, quase se encaixava a ela.
Eu sabia de todas essas coisas só de ouvir falar. Nunca fui um mago forte e
quando fui expulso de minha terra natal eu não sabia bem para onde ir.
Eu queria procurar por um mestre. Era assim que os Destruidores recebiam
educação mágica. Já na maior parte dos outros países, especialmente nas capitais,
a tradição era receber a educação formal em colégios e universidades. Inclusive,
boa parte das sociedades secretas deles se encontrava nessas instituições.
Eu também acreditava firmemente que a magia dos gênios malignos não era
o único caminho. Eu não queria me envolver em batalhas de vida ou morte com
as outras crianças e adolescentes de Consmam. Era errado eu querer viver? Eu
tinha medo de morrer. Isso também era errado?
Eu queria pelo menos chegar até minha vida adulta. Não achava um bom
negócio jogar minha vida fora por capricho, sem nem antes conhecer uma
magia que eu valorizasse de verdade, e que tivesse mais a ver comigo.
Também era possível aprender magia de uma forma saudável e alegre, que
não fosse suicida. Aqueles loucos curtiam matar uns aos outros e se achavam

531
Wanju Duli

muito foda fazendo isso. Eram respeitados em outras terras por essa insanidade,
que eles chamavam de “tradição cultural”.
– O Echnhas tá sempre se mijando de medo. Um cara que só foge, sem
sequer uma tira de couro no manto. Onde já se viu tamanha vergonha?
Eu era sempre alvo de piadas. Nunca tive um amigo Destruidor, pois todas
as outras crianças tiravam com a minha cara. Até mesmo minha ligação.
– Ai, que nojo, eu prefiro morrer a transar com esse menino fraco. Eu só
sinto tesão por assassinos.
Aparentemente eu não era o homem dos sonhos de Maquizarda. Para ser
honesto, as mocinhas Destruidoras me metiam muito mais medo que os rapazes.
Eles apenas me tiravam descaradamente. Já elas, me faziam sentir
completamente mal, com seus risinhos zombeteiros e suas palavras venenosas,
tratando–me como se eu fosse um verme.
Eu gostava de ser gentil com as pessoas, até mesmo com quem me tratava
mal. Eu me considerava um pouco tímido. Só possuía atributos inaceitáveis para
um Destruidor. Sendo assim, fui rejeitado como um deles.
Os estrangeiros dizem que é raríssimo encontrar Destruidores fora de
Consmam ou Desmei. Mas isso porque eles consideram que um cara só é
Destruidor se veste um dos mantos de nosso povo. Se um Destruidor está
disfarçado com outras vestimentas, pode passar despercebido.
Mas aí reside um enigma: todos sabem que um Destruidor jamais tira seu
manto, que é sua honra. Um Destruidor sem manto é um Destruidor sem honra,
então não é respeitado. Por isso, seguir por outra linha da magia significaria
manchar minha reputação para o resto da vida. Mas que escolha eu tinha se fui
banido e se nunca gostei da magia de meu país?
Eu somente era covarde segundo os padrões no qual fui educado. Eu era
corajoso para atos talvez mais complexos. Bastava que eu seguisse uma via que
despertasse minhas reais potencialidades.
Eu estava em dúvida entre estudar em Crava ou Narrara. Logo notei que
seria uma grande desvantagem ir para Narrara, já que eu mal sabia ler o idioma
de meu próprio povo. Eu achava bonita a ideia de ler um livro e dele ser capaz
de evocar os cenários e monstros das histórias, conforme a intensidade da
emoção gerada e do nível de concentração para alteração de consciência. Mas...
eu não lia livros, não tinha muita imaginação. Eu sofreria preconceito num lugar
assim.
Crava seria uma alternativa muito mais natural para mim. Como Destruidor,
eu possuía um bom acesso a muitas dimensões, por intermédio de meu maligno.
Despertar poderes psíquicos num nível divinatório seria dar apenas um segundo
passo.

532
Fábula dos Gênios

Com esse pensamento, fui de barco para Crava. Aquela viagem foi exaustiva.
Meu senso de direção não era bom fora do ambiente de minha terra natal.
Aquele era um continente escondido, que precisava ser encontrado por força
mágica.
Eu não conhecia o idioma local. Nem sei como fui capaz de chegar até a
capital. Eu tampouco tinha intenção de revelar minha origem. Preferia dizer que
eu era habitante de alguma ilha desconhecida, para evitar maiores perguntas.
Através da mímica e de desenhos, consegui informar aos habitantes que eu
desejava entrar para alguma escola de magia local. Para a minha surpresa, eu
soube que as instituições recepcionavam bem os estrangeiros, pois era do
interesse deles que os gringos falassem bem da educação de Crava lá fora.
Fui aceito num colégio chamado Diafaneidade Múltipla, que se centrava na
divinação com poliedros cristalinos e no estudo da geologia mágica, em especial
da mineralogia. Lá era muito popular a utilização de policristais místicos, pela
aleatoriedade dimensional que possuíam, o que era útil para capturar as
dimensões do tempo nas prisões de espaço dos cristalitos.
Entender os padrões geométricos seria uma vantagem para mim. Contudo,
as aulas de laboratório em que ocorria a análise de grãos pelo microscópio era
algo no qual eu enfrentaria muita dificuldade. Em especial, as distorções dos
padrões dos grãos geravam imenso poder mágico, como nas regiões de vazio.
Esse truque serviria para enganar o adversário, que calcularia os padrões sem
prever as deslocações.
E eu pensando que tinha ido para Crava somente para meditar e despertar as
capacidades psíquicas meramente por intermédio da mente. Eles realizavam
muito mais que isso.
Aos poucos eu aprendia o idioma local, mas continuava a ser visto como um
esquisito. Os professores eram gentis comigo, mas os estudantes eram meio
secos.
– De onde você veio mesmo, forasteiro?
– Ilha de Fuxia.
– Credo, onde fica isso?
– Trerda.
– O continente dos Derradeiros? Tá de brincadeira. Eu pensava que aquelas
ilhas eram desabitadas.
– Bem, eu sou de lá.
– Qual a técnica mágica de vocês?
– Magia com... lama.
– Quê?
Por que aquele pessoal fazia tantas perguntas? De vez em quando eu dava
respostas diferentes para cada pessoa, o que os deixava ainda mais intrigados.

533
Wanju Duli

Alguns diziam que eu era pirado. Como ninguém nunca tinha ouvido meu
sotaque na vida antes, tinha quem acreditasse na minha história.
Um sujeito estranho vindo do fim do mundo que nem sabia dar nó em
gravata. Até que minha reputação não estava ruim. Embora eu me saísse
péssimo nas aulas de laboratório e outras coisas mais técnicas, eu tinha
facilidade nas aulas práticas.
Os uniformes de Diamul eram vermelho–sangue. Os rapazes usavam calças
e gravatas vermelhas, camisa social branca e sapatos pretos. Coletes e jaquetas
em algumas ocasiões. Já no caso das mocinhas, o uniforme era simplesmente
deslumbrante e parecia um vestido de baile: tratava–se de um longo vestido
rodado em tom rubro. Elas também usavam laços de fita vermelhos nos cabelos.
Os estudantes andavam de lá para cá pelos corredores carregando grandes
cristais geométricos flutuantes. Energizavam os espíritos e faziam previsões. Os
mais habilidosos guardavam todo o material escolar embutido no interior do
cristal. E os mais habilidosos ainda dispensavam boa parte dos grimórios e
cadernos, pois decoravam tudo. Havia até quem cravejasse todas as informações
no próprio cristal, com uma letra quase microscópica.
Uma batalha entre dois divininos era algo notável. Era questão de quem
seria capaz de ler o outro primeiro. Portanto, as batalhas ocorriam no futuro; ou
no passado, não sei bem. Talvez elas jamais ocorressem e aquela impressão de
luta fosse apenas uma ilusão.
Eu gostava de combinar a magia de policristais com a de gênios malignos.
Eu alimentava meu cristal com partes internas do meu corpo, o que fazia com
que meu poliedro emanasse uma energia particularmente macabra e pesada.
Não demorou muito para que muitos estudantes notassem uma aura negra
ao meu redor. Eu estava cercado por adivinhos. Como eu pretendia manter
minha mentira por muito tempo?
– Meu, você viu como os estéticos andam putos com os Destruidores? Acha
que vão invadir Consmam?
– Estão putos uma ova. Eles só querem um pretexto para roubar matéria–
prima pra perfume. São uns bostinhas.
Aqueles rumores me preocupavam enormemente, já que minha irmã estava
em Bruznia. Ela curtia uma boa briga e se rolasse a guerra eu não saberia dizer
do lado de quem ela ficaria.
Quanto a mim, eu estava desejando algo ainda mais misterioso: ser membro
de uma famosa sociedade secreta de Diamul, chamada Polivaz. O “poli” era
uma referência tanto a policristais como poliedros. O “vaz” aludia aos padrões
alterados dos grãos.
Também era chamada “Sociedade das Máscaras”. Em muitas Ordens de
magia os membros deixam evidente suas identidades, seja através de meias

534
Fábula dos Gênios

coloridas, medalhões, tatuagens ou outros símbolos. No caso dessa sociedade


secreta, aqueles que faziam parte dela usavam máscaras.
Na ocasião de rituais, alunos muito fortes eram vistos com o uniforme
vermelho–sangue de Diamul e os rostos mascarados. Ninguém chegava perto,
pois havia rumores muito estranhos sobre as atividades do grupo.
A lista oficial de membros era secreta. Nem mesmo o próprio pessoal da
Polivaz conhecia a identidade do mestre da Ordem.
Eu me senti atraído pelo mistério. Mas devo confessar que o elemento mais
tentador era o boato de que aqueles magos misturavam cristalomancia com
necromancia. Aquilo tinha tudo a ver comigo.
– Ei, eu queria entrar pra esse grupo secreto. Como eu faço?
– Você chupa meu pau.
– Só isso?
– Quem sabe você deixa de ser otário e para de perguntar isso por aí, seu
gringo de merda. Ninguém sabe quem são os membros. Você não pede pra
entrar. Eles só chamam os fodas.
– Como mostro que sou foda?
– Calando a boca. Fale com sua magia.
Aquele aluno se chamava Algolbra e era xenófobo pra caramba. Ele vivia
implicando comigo e com outro cara que veio de Sinabil. Ele dizia que o pessoal
de fora roubava as vagas deles.
– Você é o estudante da Ilha de Fuxia, certo? Qual é o seu nome?
Fiquei surpreso quando uma das alunas dirigiu–se a mim. Eu achava
assustadoras aquelas meninas de longos vestidos.
– Echnhas.
– Eu me chamo Nanaetan. Acho fantásticas trocas culturais mágicas. Conte–
me sobre a magia de seu povo!
Assim que Algolbra soube que uma das estudantes estava me dando atenção,
ele ficou puto da cara.
Eu mesmo pensava que aquelas garotas lindas de Diamul eram inatingíveis.
De repente, uma delas fez amizade comigo.
Nos dias seguintes, inventei um monte de mentiras sobre a suposta magia da
minha terra. Eu queria mantê–la interessada na minha conversa, pois estava a
fim dela. Nanaetan tinha um sorriso muito bonito.
Eu percebia que ela estava me curtindo também. As coisas estavam dando
certo.
– Você tem tanta facilidade para despertar poderes sobrenaturais. Isso é
incrível!
– Isso porque temos uma poderosa papisa na minha terra. Ao nascermos,
ela faz um corte em nossa testa e introduz um espírito da natureza. Ele viaja

535
Wanju Duli

pelo cérebro do bebê, até que a comunhão se completa e as crianças passam a


conversar com as árvores e os animais.
Como eu era um mentiroso desgraçado! Quanto mais ela ria, mais eu mentia.
Eu queria vê–la cada vez mais fascinada.
– Ech... fecha os olhos. Eu tenho uma surpresa.
Eu obedeci, com o coração disparado. Quando senti os lábios dela próximos
dos meus, eu abri meus olhos num susto! Afastei–me dela imediatamente.
Ela ficou triste.
– Me desculpe. Eu fui rude. Vou embora...
Eu a puxei de volta pela mão e a abracei.
Como eu dizia a ela que eu morreria se a gente se beijasse? É claro que eu
queria aquele beijo. Mas não podia tê–lo.
Quando a abracei assim, fiquei muito excitado.
– Posso tocar nos seus seios?
Eu sussurrei isso para ela. Para minha surpresa, ela fez que sim.
Nos primeiros segundos eu a toquei por cima da roupa. Logo, meus dedos
estavam escorregando para o decote, rumo ao sutiã.
Abri os botões do vestido dela. Eu vi aquela beleza. Eram como duas
almofadinhas perfumadas.
Estávamos num local mais ou menos reservado do colégio. Então eu decidi
avançar. Como eu vi que ela queria, deixei toda minha timidez de lado, para que
ela me achasse confiante e sentisse ainda mais desejo. Se eu começasse a mostrar
insegurança e vergonha, ela podia acabar recuando. Eu não queria perder aquela
chance.
Chupei os mamilos, que eram dois botõezinhos. Nana gemeu como um
bichinho meigo. Eu a afaguei com carinho, mas eu também queria mostrar a ela
meu lado mais selvagem, que eu mesmo desconhecia.
Eu desejei apertar aquelas coxas. Coloquei a mão por baixo do vestido.
Nana se inclinava, permitindo que eu fizesse o que queria, embora tenha se
encolhido quando avancei os dedos para dentro da calcinha.
O que eu mais queria era fazer oral nela. Baixei a calcinha e meti a língua
naquela buceta gostosa que exalava um perfume paradisíaco. Eu nunca senti um
cheiro mais tentador na minha vida e a desejei completamente.
Meu corpo inteiro clamava por ela. Meu pau pulsava, mas eu não podia
enfiar. Seria morte certa. Amaldiçoei meu destino.
Eu não consegui lambê–la por muito tempo. Logo me senti tonto. Era
efeito da ligação. Se ela me chupasse, eu também sentiria um pouco de dor e
enjoo.
– Você tá bem, Ech?
Ela ficou preocupada quando eu parei. Resolvi disfarçar.

536
Fábula dos Gênios

– Pode ficar de quatro?


Ela fez isso. A visão da vagina dela quase me fez pirar de prazer. Mas em vez
de enfiar na buceta, enfiei no cu. Assim eu não morreria.
Enquanto eu metia, massageava o clitóris dela. Por que estava tão perto e ao
mesmo tempo tão longe?
Eu fui tirado de lá. Subitamente, fui forçosamente desencaixado dela e me
senti imensamente solitário.
Levei um soco na cara. Algolbra tinha me flagrado e estava furioso.
Estava na cara: ele sentia atração por Nanaetan. Ou ele gostava de todas as
meninas e queria todas para si...
Ele me segurou pela camisa.
– O que você veio fazer em Crava, imbecil? Violentar nossas mulheres? Se
eu comer seu rabo à força você vai gostar?
– Há um mal entendido aqui. Eu e Nana somos namorados.
– Você namora esse trouxa?
– Não, mas...
– Aí está sua resposta, filho da puta. Eu a ouvi gemendo de dor. Um
verdadeiro cavalheiro jamais machuca uma donzela quando come seu cu. Você é
um animal.
Ele chutou minha cara. Ele e mais dois amigos musculosos me arrastaram
até uma sala vazia do colégio. Fecharam a porta e me colocaram de quatro.
E daí, adiantava dizer que Nanaetan também queria? É claro que ele sabia.
Só estava se fazendo de louco para ter um pretexto para me ferrar.
Como eu não queria ser ferrado, mas tampouco desejava ser deselegante,
resolvi jogar pesado, mas justamente: revelei meu gênio maligno.
Aquilo teve um efeito muito mais poderoso do que pensei. Os três gritaram
e caíram pra trás.
– Puta que pariu!!!
Até um ignorante como ele devia saber o significado daquela entidade. Ele
me fitou com horror.
– Esse desgraçado é um Destruidor!!
Os três se levantaram e correram da sala. Mas... que porra era aquela? Os
divininos temiam os Destruidores tanto assim? Pelo jeito, a nossa fama tinha
disparado nos últimos anos.
Eles começaram a espalhar a notícia pelo colégio inteiro. Obviamente, Nana
ficou sabendo.
Quando eu a vi no corredor, com mais duas amigas, fiquei meio tímido para
me aproximar das três belas garotas, mas fui mesmo assim.
– Nana... podemos conversar em particular?

537
Wanju Duli

As duas amigas dela deram uma exclamação de susto quando me viram e


saíram de lá rapidinho. Tentei pegar na mão de Nana, mas ela tirou o braço,
tremendo.
– Por favor, fique longe de mim!
– Me desculpe por ter mentido. Eu gosto mesmo de você.
Mas ela não estava braba pelas mentiras. Sequer devia estar pensando nisso.
Ela estava com medo de mim de verdade!
Quando tentei abraçá–la, ela afastou–se num susto. Vi lágrimas nos olhos
dela.
– Não quero mais nada com você. Vá embora.
– Está com nojo de mim? Eu te machuquei?
– Eu não quero morrer. Me perdoe...
E ela correu de lá.
Os divininos viam os Destruidores desse jeito? Pensavam que eram
máquinas de matar? E realmente eram. Mas não eu.
Eu nunca tinha matado ninguém. Jamais pretendia matar. Até xingar alguém
me soava odioso.
Ninguém me queria na minha terra natal. Nem mesmo minha família. E não
me queriam nos outros lugares também.
Em vez de sentir orgulho por ser um Destruidor, eu sentia tristeza. Eu não
queria ser respeitado ou temido. Apenas desejava ter amigos. Uma namorada...
mesmo que eu não pudesse transar com ela da forma que eu queria.
Eu fui isolado.
As poucas pessoas que ainda me cumprimentavam pararam de fazer isso.
Quando eu chegava perto, os alunos cochichavam ou corriam. Até os
professores estavam me tratando de forma fria.
No intervalo, fui para o bar do colégio comprar um hambúrguer.
– O que tem aí dentro, Destruidor? É carne humana?
Algolbra e seus amigos riram da minha cara. Ele falou isso bem alto, para
todos ao redor ouvirem. Aos poucos ele percebia que eu era quase inofensivo.
Mesmo assim, ele sempre mantinha certa distância, por garantia. Ele via que eu
não reagia aos insultos, mas preferia não facilitar.
Como sempre, eu lanchei sozinho na escadaria. Enquanto eu dava as
primeiras mordidas, correram lágrimas dos meus olhos.
Para minha surpresa, alguém se sentou ao meu lado. Era um aluno mais
velho, usando uma máscara.
Os membros da Polivaz raramente ficavam mascarados durante o dia. Devia
ser importante.
– Você é Echnhas, o Destruidor?
Eu confirmei, sem fitá–lo.

538
Fábula dos Gênios

– Você está sendo considerado para membro de nossa Ordem. Se tiver


interesse, poderá se encontrar conosco hoje à noite para o primeiro teste.
– Eu tenho interesse...
Mas eu disse isso sem muita animação. Não me agradava saber que eu estava
sendo chamado apenas por ser um Destruidor e não pelo meu poder mágico.
Enxuguei os olhos.
– Você está bem?
Demorei um pouco para responder.
– Mais ou menos. Eu dou um jeito.
– Dezenove horas, no pátio.
Ele levantou–se. Foi embora.
Mas foi naquela mesma tarde que recebi uma visita inusitada.
Quando vi Floraze, eu a abracei imediatamente. Não nos víamos há muitos
anos. Aquele encontro foi bastante especial para mim.
Ambos já éramos adolescentes. Eu com 16 e ela com 15. Nos separamos
quando crianças. Ela estava muito diferente fisicamente. Mas a personalidade
era a mesma.
– Você nem imagina como me sinto sozinho nesse lugar.
– Vejo que continua o mesmo. Sempre fazendo drama... acorda, Ech. Se
continuar ingênuo, você vai sofrer.
Notei que havia um cara com ela. Ele usava o uniforme daquela escola
famosa de Tecraxei, mas ele não podia ser um aluno. Já era bem mais velho.
Seria um professor? Mas os professores não usavam o uniforme...
Quando me dei conta de quem poderia ser, eu o fitei com assombro. Mas...
era impossível!
– Esse é Taha Vorta, o assassino contratado por mim para matar nosso pai.
Preciso que você me diga onde ele anda.
Eu fiquei mudo. Não sabia a qual informação eu reagiria primeiro.
Só então eu entendi o medo que os alunos de Diamul sentiam ao me ver. Eu
sentia algo ainda mais horrível ao fitar aquele cara.
E aquela energia... ele quase não parecia ser humano. Como aquele monte de
poder podia estar contido num só corpo?
– Você não pode matá–lo. O pai está doente...
– Então você sabe onde ele está?
– Recebi uma correspondência da mãe recentemente. É possível que ele
venha a falecer em breve. Eu queria estar com ele, mas fui proibido.
– Não tem graça matá–lo desse jeito.
– Não fale assim. Visite–o por mim. Ajude–o.
– Ech, você é realmente um tolo.

539
Wanju Duli

★★★

– Esse mapa que você quer custará muito caro.


– Sério? E você acha que eu não tenho dinheiro para comprar o artigo que
eu quiser, Balaza?
– Você poderia simplesmente tomá–lo de mim, Vorta.
– Já que posso comprá–lo, isso seria completamente desnecessário.
Fazer negócios com madame Balaza era sempre sorte grande. Ela conhecia
as terras e mares de Marlaquina como poucos. E, o melhor de tudo: a
Cartógrafa dos Espíritos conseguia até mapear regiões astrais. E era um mapa
assim que eu cobiçava.
Assim que obtive o que queria, parti imediatamente para a sede da sociedade
dos Magos Acima da Lei. Nada mais que o refúgio dos dez magos mais
poderosos.
Claro que caras assim costumam ser muito ocupados. É um problema
encontrar um espaço na agenda para marcar aquelas reuniões nas quais
geralmente só rolava bebedeira e conversa fora.
Isso era o mais irônico: ser um membro da MAL era o objetivo máximo e
utópico de todos os magos sérios. Mas acho que até a mais modesta sociedade
secreta faria reuniões mais organizadas que as nossas.
Nós nos achávamos os maiorais. E realmente éramos. Se nós já éramos os
mais fodas, o que mais haveria para ser discutido na porra da sociedade?
Os encontros mensais eram realizados no topo de uma enorme torre de uma
ilha desabitada. Não havia regras específicas para a indumentária. A galera
costumava usar mantos de suas próprias Ordens. O que nos caracterizava era a
tatuagem.
Ao entrar para a MAL, todos recebíamos a tatuagem com o símbolo da
Ordem no dorso da mão direita. Mesmo que alguém mais forte entrasse no seu
lugar depois e você saísse da Ordem, uma vez MAL, sempre MAL. Ou seja:
você ainda teria a honra de possuir a tatuagem para provar que uma vez foi um
dos dez.
Claro que nas reuniões somente os dez atuais eram permitidos. Mas nem
todos obedeciam a essa regra...
– Por que não posso participar só hoje? Ah, deixa, tio. Vai, só um
pouquinho...
– Espero que não esteja falando comigo, ou será a última vez.

540
Fábula dos Gênios

Aquela porra de Deus da Mentira era um pé no saco. Mioae ficava


pendurado na janela da torre mais alta. Ele escalava toda a torre por fora só para
nos torrar a paciência.
– Se esse miserável não descer daí imediatamente, vou derrubá–lo e matá–lo.
– Calma, venerável Soma! Juro que já vou sair. Eu só queria cumprimentar
minha Deusa.
Sassa Soma era um dos lendários membros da MAL, além de ser a mestra da
Sociedade da Soma, respeitável Ordem de Destruidores das montanhas. Ela era
rank 3, atrás apenas de mim e de Owmaq. Estava com 66 anos, não tinha
cabelos e usava, como sempre, o longo manto marrom da SS.
Soma continuava a ser a musa dos Destruidores. Mesmo entre os magos de
outros povos ela era considerada um ícone de beleza. Provavelmente mesmo
aos cento e poucos anos ela ainda seria considerada extremamente gostosa.
Afinal... era Soma! Até eu ouvia falar da fama dela na infância. A voz sensual, o
porte respeitável. Tudo o que ela era só a tornava perdidamente desejável. Não
que ela se importasse com isso...
Nem eu, sendo o número 1, me atrevia a dar em cima dela. Principalmente
porque eu tinha uma esposa. Mas também porque ela inspirava temor, até
mesmo para mim.
Owmaq tinha 51 anos e era uma das únicas construtoras sobreviventes. Era
a versão feminina de Cromo D’aship após a realização da Magia da Inversão.
Ela costumava ser reservada nos encontros da Ordem. Estava mais ocupada em
mexer nos seus aparelhos eletrônicos.
Ironicamente os três mais fortes, mesmo sendo de povos diferentes, mexiam
com magia eletrônica. Será que aquilo significava alguma coisa?
– Bom dia, Mimi.
– Bom dia, Cali! O que achou do meu novo boné?
– Adorável, mas meio ultrapassado. Por que está sem roupas?
– Eu queria causar impacto com minha sensualidade. É assim que se faz
magia estética, Segrene?
– Não, você faz enfiando o cacete no próprio rabo.
– Mas isso é difícil demais de fazer. Vou precisar de mais uns quarenta
centímetros. Me ensina?
– Eu acho que o tamanho já está muito bom assim.
– Se você continuar a olhar pra lá, vai ficar ainda maior.
Fui até a janela. Segurei Mioae pelos ombros e lancei–o janela abaixo.
– YOOOOoooooo...!
De muito longe, ouviu–se o som de algo batendo contra o chão.
– Ele morreu?

541
Wanju Duli

– Esperamos que sim. Infelizmente, logo os Derradeiros irão revivê–lo outra


vez. Vocês deuses são irritantes por causa disso: nunca chegam à morte final!
– Ora, Tahinha, eu sei que você me prefere viva. Eu gosto muito mais do
seu pau do que do de Mio.
Caliderina, minha esposa, era rank 9 da MAL. Ela estava com 34 anos e eu
com 47. O Deus da Mentira jamais tinha entrado para a MAL, mas atualmente
era considerado próximo ao rank 11. Eu torcia para que ninguém da Ordem
morresse ou fosse ultrapassado em poder mágico, ou nossas reuniões, que já
eram imbecis, iriam para o buraco. Eu nem sabia que idade tinha aquela
desgraça. Já tinha morrido tantas vezes que eu tinha perdido a conta da idade do
corpo físico dele, mas devia ser alguns anos mais novo do que Cali.
Segrene era mago estético. Rank 7, 43 anos e mestre de uma famosa
sociedade secreta de Bruznia. Eu não me dava muito bem com ele.
– Por que não deixam de besteiras e começam logo a reunião? Isso está me
torrando a paciência. Senhor Vorta, faça o favor de colocar ordem na casa e de
ordenhar a sua mulher.
Weskada era um mago veterano de Samerre. Tinha 89 anos e era membro da
MAL há cinquenta anos. Estava no rank 5, mas costumava subir ou descer
algumas posições ao longo das décadas. Sua posição mais alta foi o rank 3. Uma
vez chegou ao 10 e todos pensaram que finalmente iam se livrar do velho
ranzinza, mas isso não aconteceu. Por ser o membro mais antigo, ele sempre se
via no direito de mandar em todos.
Para completar, ele era o mestre da SSAPP, uma sociedade insana de
livreiros que odiava a juventude.
Mas eu não aceitaria aquele insulto de graça. Aproximei–me de Weskada e
segurei–o pela gola do manto.
– Minha mulher não é uma vaca para ser ordenhada!
– Ai, obrigada por me defender, coração! Mas eu não sou a sua vaquinha
querida? Sei até mugir, veja só: Muuuuuuuuuu!!
Caliderina não colaborava muito com seus comentários dementes. E para
completar, ficava se engraçando com o outro deus infeliz pelado.
– Senhor Vorta, mudando de assunto, conseguiu o Mapa de Dims? Vamos
sair em outra jornada astral atrás de tesouros?
– Cale–se, criança. Ninguém lhe deu permissão para falar, cacete. Respeite
os mais velhos.
Vissido era rank 4 e o mais novo da Ordem: tinha 25 anos. Nem mesmo eu
tinha entrado tão jovem para a MAL. Weskada o odiava, tanto por ele ser uma
“criança” segundo as palavras dele, como por ostentar uma posição acima da
sua.

542
Fábula dos Gênios

Vissido era mago filarmônico e Weskada tinha raiva particularmente da


flauta dele, na qual ele carregava o seu espírito. O velho odiava barulho.
– Tem razão, senhor Weskada. Vissido é sempre muito intrometido e
impertinente.
Binhui, rank 6, 38 anos, simbologista. Estava muito clara a razão de ela
implicar com Vissido também.
– Estamos todos aqui? Espere, onde está Minaz?
– Eu pedi que ela passasse na padaria para trazer uns biscoitos.
Ela era estética, “amiguinha” de Cali. As duas tinham a mesma idade.
Tratavam–se de forma muito mimosa, mas na surdina brigavam pelo rank 8 há
muito tempo. Cali ainda pretendia derrotar a “baranga” como se referia a ela
pelas costas.
Eu já nem perguntava pelo rank 10. Era a quarta reunião que Buur faltava.
Ele era Destruidor, mas isso não me intimidava. Se ele faltasse durante seis
reuniões seguidas, pela lei eu iria atrás dele para matá–lo.
Quem estava entre os dez era obrigado a fazer parte da MAL. Não era uma
escolha. Os Destruidores não curtiam muito contato com outros povos e Buur
sempre ia às reuniões de má vontade. Ele tinha 50 anos e não desejava sair das
montanhas. Afirmou que não se importava com busca de poder mágico e
desejava apenas meditar.
Bem, e quem disse que eu ia àquelas palhaçadas de reuniões por querer? Se
eu era o líder dos Magos Acima da Lei, por que eu não tinha poder para
dissolver aquela merda?
Simplesmente porque a MAL foi criada pelos marlaquinos. Eles desejavam
se manter atualizados sobre o nível de poder mágico dos dez mais fortes. Uma
vez por ano eu era obrigado a me encontrar com um dos marlaquinos para
apresentar o relatório.
Eles não diziam o motivo, mas para mim estava muito claro porque faziam
aquilo. Se de repente surgisse um mago muito forte em Marlaquina, alguém que
fosse capaz de se aproximar do nível de poder mágico dos arlequins, eles iriam
destruí–lo antes que representasse uma ameaça.
Afinal, éramos uma raça diferente. Se não nos mantivessem sob controle,
um dia as coisas podiam se tornar perigosas para o lado deles.
Esse pensamento me atraía: saber que até os poderosos marlaquinos temiam
a nós, marlos. Sempre que um deles vinha checar o relatório, observava–me
atentamente.
Meu poder crescia a cada dia. Eu não duvidava que, em poucos anos, eu
viesse a me tornar o mais poderoso rank 1 que já pisou naquele mundo. E se
isso realmente ocorresse, minha morte era certa. Talvez eu nem fosse capaz de
chegar aos 50. Seria assassinado antes.

543
Wanju Duli

Eu já tinha ouvido falar de histórias assombrosas sobre os antigos rank 1.


Apenas dois deles, em toda a história de nosso mundo, tinham morrido pelas
mãos dos arlequins. De fato, era a morte mais honrosa que poderia haver.
Aquilo significava que você era foda o bastante para ser temido até pelos
arlequins das estrelas.
Eu já tinha me preparado para aquela morte há muito tempo. Na verdade,
eu acharia vergonhoso se eu viesse a ter uma morte natural, aos 80, 90 ou 100
anos, sem ter despertado a atenção dos marlaquinos antes disso.
Eu poderia dizer, sem medo de errar, que o objetivo da minha existência era
alcançar meu poder máximo o quanto antes. Quanto mais jovem eu morresse,
mais famoso eu ficaria. Eu já havia entrado para a história. Inclusive para a
história universal, como membro da MAL. Meu nome estaria inscrito nas
estrelas. Mas, como o terceiro assassinado por eles, minha fama seria como uma
supernova.
Brerrija Oqaer. Lhamila Pama. Esses eram os nomes dos dois únicos rank 1
já assassinados. O primeiro teve sua vida arrancada aos 70 anos por Desmei. A
segunda morreu aos 65 pelas mãos de Samerre. Como o primeiro era um
Destruidor e a segunda uma deusa, seria lógico supor que seria Tecraxei quem
me mataria.
Eu ainda não conhecia meu futuro assassino, mas estava ansioso por isso.
Meu coração acelerava só de pensar.
Mas... será que eu não estava sendo apenas vaidoso?
Pensando bem, não havia nenhum divinino como membro da Ordem. Por
outro lado, havia dois estéticos e dois Destruidores. Será que eles queriam os
divininos longe para evitar aquelas previsões fatalistas? Para que os divininos
não começassem a fazer previsões sobre o universo?
Será que havia realmente um meio de obter libertação do controle dos
marlaquinos? Até então, eles não interferiam muito em nosso mundo, com
exceção da criação da MAL. Mas sendo a MAL algo que ultrapassava nossa lei,
aquela não significava o tipo de interferência mais grave? Algo que mexia
diretamente com nossa liberdade.
Os marlaquinos estavam fazendo lavagem cerebral em mim, para que eu
fosse mais facilmente manipulável? Aquilo me deixava puto. Achar honroso
morrer pelas mãos deles era tudo o que eles queriam. Se todo o nosso mundo se
unisse, numa grande guerra contra os arlequins alienígenas, é óbvio que
seríamos dizimados. Mas não seria essa a verdadeira morte com honra? Morrer
pela nossa liberdade.
– Sobre essa guerra iminente entre Destruidores e estéticos, isso não me soa
bem. Se realmente acontecer, será problemático.

544
Fábula dos Gênios

– É do interesse dos A² que ocorram guerras entre nós. Nós somos como
peças no tabuleiro deles. Eles se divertem em assistir.
Eu havia tocado num tabu. Não era recomendável criticar os marlaquinos
naquelas reuniões.
– Não podemos fazer nada, Vorta. Eis a verdade. Nossa magia no máximo
nos permite manipular os limites da nossa própria vida e morte. Nos A² não
podemos tocar.
– Por que você acha que não há divininos como membros da MAL?
– Porque eles são fracos.
– Errado. Porque eles poderiam prever a derrota dos A². Eu tenho uma
amiga divinina muito poderosa que fez previsões extremamente corretas. É
assustador.
– Aquela que você decapitou? Ou a criança que eu violentei?
Quando Caliderina dizia coisas assim, eu tinha vontade de matá–la. Mas eu
me contive.
– Eu reencontrei Leassa há alguns anos. Ela disse que eu certamente iria
morrer pelas mãos dos marlaquinos.
– Ela só disse isso por raiva do que eu fiz a ela. Se me lembro bem, ela
também disse que você destruiria uma cidade. Isso jamais aconteceu.
– Essa previsão sempre me assombrou. Ela me assombra até hoje, até mais
do que a previsão óbvia da minha morte. Essa outra é muito mais misteriosa.
– Cheguei, queridoooooos! Trouxe os biscoitos!
– Espero que sejam biscoitos com poucas calorias. Estou de dieta.
– Minaz, fale mais baixo, por gentileza. Estamos no meio da reunião...
Ela repousou os biscoitos na mesa, fazendo uma careta. Sentou–se e
aquietou–se.
– Sabe o que mais tem me incomodado ultimamente? A Fagemal Armor,
Ordem fundada por Basza Cazka. Caso não saiba, Buur é membro.
– Eles realmente possuem filosofias heterodoxas por lá. Acredito que ele
não virá mais para nossas reuniões e aguardará que você o mate. Ele deseja isso.
– Owmaq, eu ouvi falar que você está reerguendo a Fagenar Vibri com os
construtores sobreviventes. Espero que as filosofias de sua Ordem também não
interfiram na sua vinda mensal para a sede da MAL.
– Nesse caso, você não me executaria. Ocorreria uma batalha.
– Novamente, é do interesse dos A² que essa luta ocorra. Se eles desejam me
ver morto em breve, facilitaria muito que minha morte ocorresse por um
acidente como esse.
– Então você chamaria minha vitória de acidente, Vorta? Bem, você já
estaria morto e isso o impediria de espalhar por aí uma mentira como essa.

545
Wanju Duli

– Ser rank 1 é uma merda. Não deseje isso. Eu nem imagino que tipo de
tortura os alienígenas conheçam para executar na ocasião de minha eliminação...
Eu interrompi minha fala subitamente. Senti uma sensação horrível.
Estava com falta de ar. Tive que levantar da cadeira.
– Amor...? O que você tem?
Eu caí de joelhos, tremendo. Abracei meu próprio corpo. Alguns também se
levantaram, assustados.
– Isso, morra logo e libere o rank 1, Vorta.
– Cale–se, Weskada. Você não sente isso, Cali? Esse horror...?
– São os marlaquinos? Eles irão matá–lo... agora?
Todos pensaram que eu estava morrendo. Pelas mãos invisíveis dos A². Mas
eu sabia que eles não eram disso. Se um dia os marlaquinos fossem mesmo me
matar, apareceriam pessoalmente na minha frente e me executariam, deixando
muito claro suas intenções antes de fazê–lo.
– Cali... Laelia e Leilen... elas morreram. Nesse exato instante.
Caliderina ficou imediatamente irada.
– Quem foi a puta? Irei matar essa galinha estética!
Eu me levantei. Coloquei a mão no ombro dela.
– Dessa vez eu faço.
– Você parece calmo demais.
– Acredite, não estou.
Eu estava chocado. As duas morreram assim, do nada! Eu as deixei
protegidas na melhor escola de Bruznia, que era onde elas fizeram questão de
estudar.
Quem eram os filhos da puta dos professores que permitiram que aquilo
acontecesse? Nenhum dos habitantes se levantou para protegê–las, em meu
nome?
Um grande ódio tomou conta de mim. Eu não estava odiando somente
todos os alunos e professores de Pompa Prima, como também a todos os
malditos estéticos. Então eles não se sensibilizaram para proteger duas crianças?
Não importava o que tivessem feito. Para mim, minhas filhas ainda eram
crianças inocentes, como a própria Cali, que havia cometido atos condenáveis,
sem possuir total consciência deles.
Eu ia morrer em breve. Caliderina também morreria um dia, mesmo sendo
tecnicamente imortal. Minhas duas filhas seriam tudo o que restaria de mim no
mundo. A única porção minha que permaneceria viva.
Matá–las era como matar uma parte de mim. Aquilo doía. E doía muito mais
do que ter minha própria vida arrancada.
Quem quer que tivesse feito aquilo, iria pagar.

546
Fábula dos Gênios

Eu chamei meu abutre, que estava gigantesco e repleto de força mágica.


Saltei pela janela da torre e subi em cima dele.
– Kraezunassei, voe depressa. Voe como quem clama por devorar o fedor
da morte.
Daquela ilha desabitada parti diretamente para Bruznia. Meu coração pulsava.
Eu perdi a razão. Desejei perdê–la. Eu precisava daquela redenção.
Assim que adentrei os portões da capital, levantei o meu cajado e ataquei,
sem piedade. Eu urrava, ordenando que me revelassem a localização de Pompa
Prima. Quem não respondia em dois segundos era aniquilado.
Não sei quantas pessoas matei. Dezenas, centenas. Provavelmente muito
mais.
Eu não podia permitir que o assassino escapasse. Eu iria persegui–lo até o
fim do mundo.
Para a minha surpresa, ele me aguardava. Ele tinha honra. Então, ofertei–lhe
uma batalha honrada.
Matei o filho da puta com uma tortura moderada. Somente depois disso,
meu coração se acalmou. Eu pude respirar outra vez, mesmo uma parte minha
estando morta.
Então era essa a diversão dos habitantes do meu mundo? A adrenalina que
sentíamos numa guerra eterna de magia, uma disputa de poder entre gigantes.
Aquilo me emocionava e ao mesmo tempo me destruía. Não era a toa que
construtores e Destruidores baseavam suas magias na mediação das batidas do
coração. Aquilo era tudo o que verdadeiramente possuíamos: um coração
pulsante.
Os marlaquinos brincavam com nossos corações. A maior honra da minha
vida seria que meu coração parasse pelas mãos deles.
Mas aquilo era tudo o que eu era? Tudo o que eu poderia esperar de uma
vida. Fama, poder... coisas tão vazias em meio a uma única esperança que
renasceu dentro de mim naquele momento, quando ouvi que bem ali ao meu
lado estava a neta de Zraba.
Com ela parti para Crava. Não fui bem–vindo naquele lugar. Afinal, eu era o
assassino da lendária adivinha, Yavia.
As pessoas me reconheciam na rua. Eu já havia me acostumado com aquele
fascínio e medo. Aquilo já não me divertia. Chegava a ser desagradável.
Os estudantes daquele colégio também me fitavam como se não
acreditassem no que viam. Eu os ignorei completamente.
E lá estava um Destruidor estudando magia divinina. Senti um mau
pressentimento sobre isso.
Nossa próxima parada foi em Desmei, para visitar o pai doente da
Destruidora.

547
Wanju Duli

– Por que deseja que eu o mate?


– Não te interessa.
– Você é muito corajosa para dirigir–se a mim dessa forma.
– Pague primeiro. Depois faço meu serviço. Se eu não completá–lo, pode
me matar.
Desmei estava exatamente igual desde que o visitei quando era adolescente.
Aqueles pântanos e terras ermas não mudavam muito. Principalmente porque a
interferência humana era mínima. E os poucos humanos que habitavam o local
viviam como animais.
Aquele Destruidor trajando negro estava deitado. Sua face era quase um
esqueleto completo. Aquilo não era doença. Ele havia utilizado alguma
necromancia severa. Era verdade que em breve morreria. Ele pediu por isso.
– Pai... sou eu.
Ele foi capaz de reconhecê–la.
– Flora, por que veio?
– Eu vim porque eu queria te pedir desculpas. Ech também manda
lembranças. Nós dois estamos bem, pai. Não se preocupe. Nós daremos
continuidade à sua existência.
Ela chorou. Então ela nunca quis matá–lo de verdade.
Eu tinha acabado de perder minhas duas filhas, então as palavras dela me
tocaram de uma forma que eu não soube descrever.
– Senhor, eu posso matá–lo sem dor.
– Quem é você?
– Meu nome é Taha Vorta.
– O grande amigo de meu pai. Será uma honra, senhor. Apenas faça. E
proteja o gênio de sacrifício dele.
Eu abaixei–me. Revelei meu RP. Seria com a energia do gênio de Zraba que
eu lhe ofertaria o destino dimensional e derradeiro.
Fiz aquilo com extrema rapidez e precisão. Eu possuía tantos métodos de
torturar meu adversário antes de matá–lo que às vezes me esquecia que isso
também me especializou na técnica oposta: colocar um espírito quietamente nas
outras dimensões.
Finalizei meu intento. Fechei os olhos dele e levantei–me.
– Você o arrancou de seu sofrimento. Sou–lhe muito grata. Por que não
exigiu que ele lhe revelasse os segredos da ressurreição dos Derradeiros?
– Esse segredo é terrível demais. O destino desse homem foi fruto dessa
magia. Mas ele sabe bem o que fez. Ele morreu em nome do que acreditava.
Seus discípulos irão explorar suas descobertas. Assim deve ser. Surpreende–me
a tua compaixão.

548
Fábula dos Gênios

– Eu era somente uma tola por odiá–lo. Nós odiávamos um ao outro. Será
que é por isso que existe a morte, Vorta? Não para separar as pessoas, mas para
uni–las de novo.
– As coisas não precisam de uma razão para existir. Elas apenas estão aí,
independente dos caprichos humanos de atribuir–lhes valores. Pode ser até que
elas não estejam aqui de verdade e sejam apenas ilusões.
– Então nós vivemos de ilusões? Morremos por elas?
– Sim. É tudo o que podemos fazer. E o maior de nossos caprichos e ilusões
sempre será o amor. Algo assim ultrapassa até mesmo o limite da nossa razão.
– Mas se é algo assim tão forte, não pode ser ilusório. Algo que aniquila até a
razão humana não é poderoso o suficiente para possuir uma existência real?
– Eu gostaria de descobrir isso. Agora que cumpri minha parte do acordo,
eu gostaria que você revivesse uma pessoa. Acha que pode?
– É uma promessa. Mas somente farei essa ressurreição. Se eu exagerar, logo
morrerei. Meu pai reviveu muitas pessoas. Essa é a única explicação para que
tenha ficado assim, nesse estado. Então será que, apesar da rudeza, ele desejava
ajudar as pessoas?
– O coração humano é inescrutável. Você pode acreditar nisso. O ser
humano é feito de um amontoado de crenças conectadas. Nós somos
preenchidos por religiões. Somos religiões.
Meu abutre alimentou–se dos restos do corpo do pai dela. Logo após, eu dei
uma carona para a Destruidora nas costas dele.
– Por que você viaja sobre uma criatura tão terrível?
– Para recordar–me da morte. Para ver beleza nela.
– Eu o entendo completamente. Fiquei muito chocada ao ver tantas mortes
hoje. Mas por que, lá no fundo, eu consigo me fascinar e compreender que as
coisas são perfeitas exatamente da forma que são?
– Porque elas realmente são perfeitas.
Quando aterrissamos no cemitério de Tecraxei, eu me emocionei.
Por que eu precisava trazê–la de volta se a morte era assim tão bela e
completa? Eu já havia aceitado. Ela teve uma morte rápida. Aquilo não era
somente um capricho meu?
De alguma forma, eu ainda me sentia responsável. Eu devia tê–la protegido.
Não consegui. Agora eu tinha o poder para fazê–lo.
A Destruidora abaixou–se diante da lápide. Pediu que eu não olhasse para o
corpo, pois ver o cadáver em decomposição avançada podia ser chocante para
mim.
– Eu já vi coisas muito mais terríveis.
Eu não estava me gabando. O que eu fiz nas décadas anteriores assombraria
qualquer um. Eu não tinha me tornado somente poderoso, mas cruel.

549
Wanju Duli

Mas por que ali, diante dela, eu sentia que voltava no tempo?
– Perguntarei pela última vez: tem certeza de que quer revivê–la? Não
poderá voltar atrás. – Acredite, é tudo o que eu quero. Nunca tive certeza de
nada na minha vida. Mas disso eu jamais duvidaria.
Não era uma questão racional. Era emoção pura. Um mistério da vida
animal.
Eu compreendia racionalmente que o amor apaixonado era apenas uma
estratégia da natureza para perpetuar a espécie. Mas por que um jogo era falso
por ser apenas um jogo, se gerava uma emoção real?
Revivê–la não seria contrariar a natureza. Afinal, mesmo na morte jamais
morríamos de verdade. Havia mais, sempre mais, em nossa ânsia de
continuidade. Pois, desde o começo, jamais houve um nascimento. Éramos
eternos.
Eu somente precisava de um pouco de amor e morte na minha existência.
– Vorta, venha.
Aquela garota linda abriu os olhos.
A Destruidora havia restaurado completamente o corpo. Ela estava
igualzinha ao que eu me lembrava.
Eu fui a primeira pessoa que Lipsei fitou quando acordou.
– Taha...?
Ela me reconheceu! Era inacreditável.
Eu podia ouvir novamente a voz dela. Fitar aqueles olhos castanhos
brilhantes.
Senti lágrimas nos meus olhos. As lágrimas caíram sem que eu percebesse.
– Você não é Taha. Me desculpe! Você é o pai dele? Taha está bem? Uma
moça estranha nos atacou...
Subitamente, Lipsei deu uma exclamação de susto. Ela reparou na própria
nudez. Cobriu os seios com as mãozinhas, envergonhada. Logo após, cobriu o
peito com a mão esquerda e colocou a direita sobre a vagina. Ela estava tão
confusa que nem sabia como faria para cobrir seu corpo inteiro.
A forma com que ela se envergonhou foi tão meiga, mas... eu me senti muito
mal. Por que a maldita Destruidora não havia colocado alguma roupa para
cobri–la? Ela por acaso pensou que nós dois éramos namorados ou algo assim?
Ela provavelmente não tinha previsto isso.
Eu já ia me virar para chamá–la, quando notei que a Destruidora já tinha
partido. Ela queria nos deixar a sós, hã? Mas... Lipsei precisava de outra garota
perto, para se sentir segura. Ela ia ficar assustada com um cara lá.
Lipsei era uma menina doce e sensível. Por mim, eu teria tirado toda a
minha roupa imediatamente e dado tudo a ela, mas isso somente a assustaria
mais.

550
Fábula dos Gênios

Ela começava a se dar conta da própria situação.


– Isso é um cemitério! Por que me trouxe aqui?
Eu nem sabia por onde começar a explicar. E, para piorar, minha língua
travou.
Eu nunca tive coragem de dizer uma palavra para Lipsei antes. Jamais
conversei com ela. Subitamente, eu me sentia como um adolescente outra vez.
Tirei minha capa. Aproximei–me dela, estendendo a capa para ela. Mas
Lipsei recuou e gritou.
– Não...!
Ela estava tremendo. Quando tentei dar–lhe a capa outra vez, ela começou a
chorar.
Provavelmente ela pensava que eu era algum louco que pretendia matá–la ou
enterrá–la viva. Eu nem fazia ideia do que se passava pela cabeça de Lipsei, mas
eu não desejava que a imaginação dela voasse muito.
Acabei chorando também, pois a ideia de Lipsei estar com medo de mim era
a mais dolorosa possível. Eu desejava protegê–la e não fazê–la ter medo.
Quando ela me viu chorar, se acalmou um pouco. Logo notei que ela não
tremia somente de medo, mas de frio.
Ela acabou aceitando minha capa e se cobriu com ela. Eu sempre achei
minha capa pequena, mas com Lipsei ela parecia enorme. Cobriu o corpo inteiro
dela e ainda arrastou uma parte no chão. Até notar aquilo me fazia morrer de
amores por ela. Lipsei era tão pequenininha e bonitinha...
Ela me observava com seus olhinhos curiosos. Acho que estava aguardando
que eu desse uma explicação.
Mas eu estava emocionado demais. Ela era a garota que eu gostava. Meu
primeiro amor. Eu simplesmente não conseguia pronunciar uma palavra na
frente dela.
Sentei–me ao lado dela, tomando o cuidado para não chegar muito perto.
Baixei os olhos, porque era difícil fitá–la.
Meu coração parecia que saltaria do peito a qualquer momento. Eu estava
respirando rápido. Tentei pronunciar as primeiras palavras, mas simplesmente
não saiu. Que merda! Eu jamais imaginaria que seria tão difícil.
Eu era o mago mais forte do mundo, temido e respeitado. As pessoas
tremiam ao me ver. Algumas se jogavam aos meus pés, adorando–me como a
um deus. Outras faziam isso implorando para que eu poupasse suas vidas.
E lá estava eu, incapaz de dizer uma só palavra diante de uma garotinha
baixinha e fraquinha de 17 anos.
– Onde está Tchuu?
Ela deu–se conta da falta dele e ficou preocupada. Resolvi mostrar–lhe onde
ele estava.

551
Wanju Duli

Abri uma dimensão e do interior dela saiu um imponente robô com mais de
três metros, coberto de acessórios, espíritos, botões e poderes mágicos.
Ela contemplou o robô com assombro. Mas ela entendeu imediatamente
quem era, apesar de estar tão diferente.
– Esse é meu robozinho! Está tão mudado! Você está bem, Tchuu?
T69 piscou de uma forma estranha. Eu nunca o vi daquele jeito. Ele também
entendeu imediatamente quem era ela.
Lipsei abraçou–o. Ela não se sentiu intimidada por aquele monstro
gigantesco. Tchuu abraçou–a de volta. Eu nunca o vi tão feliz. É claro que ele
estava com saudades. Ele a conhecia muito mais que eu mesmo.
Toda a base do poder de T69 se encontrava na programação original dela.
Mas Lipsei era tão ingênua que nem foi capaz de sentir que aquela máquina
havia sido responsável pela morte de centenas de pessoas.
Tudo o que eu queria era proteger o robô de Lipsei, que era minha última
lembrança dela. Mas acabei maculando–o.
– Sinto a energia de Taha aqui também. Senhor... quem é você?
Eu me senti meio estranho quando ela me chamou de “senhor”. De repente
eu me senti muito distante dela. Será que eu estava assim tão velho? Eu mesmo
não me considerava velho. Ao contrário, aos quase 50 eu me achava na flor da
idade, sendo que eu conhecia muitos magos com mais de 80 ou 90, que me
consideravam quase uma criança pelos seus padrões.
Mas para aquela garota, eu tinha idade pra ser o pai dela. Eu inclusive tive
duas filhas quase da idade de Lipsei.
Eu tomei coragem. Ia conversar com ela. Eu era capaz disso. Até porque ela
me fez uma pergunta. Eu jamais seria rude com a menina que eu amava.
– Lipsei, não se assuste, mas eu acabei de te reviver. Já se passaram trinta
anos.
Eu era um idiota por contar algo importante assim de repente. É claro que
Lipsei ficou chocada. Mas eu tampouco poderia esconder aquela informação
dela por muito tempo.
– Então eu realmente morri. Aquela moça bonita me matou. Uma Deusa...
eu nunca tinha visto uma garota tão bonita assim antes, e você?
Quê? Ela queria mesmo que eu respondesse aquilo?
Eu não tinha coragem de contar para Lipsei que eu havia namorado aquela
“moça bonita”. Transado com ela e depois tirado sua vida.
– Ela te matou. Como pode dizer isso?
– Perdão... eu sou muito boba.
– Não precisa se desculpar.

552
Fábula dos Gênios

– Você é mesmo o Taha. Está tão diferente, mas ao mesmo tempo... hã... o
que eu estava dizendo mesmo? Ah, eu me perco no meio das frases, eu fico
nervosa. Eu não costumo conversar muito com garotos...
Então de repente eu havia me tornado um garoto de novo? Eu achava a
coisa mais encantadora do mundo quando Lipsei se atrapalhava para falar. Eu
fui o stalker profissional dela na época de colégio, então eu já a conhecia muito
bem.
– Não se preocupe. Pode ficar à vontade. Temos todo o tempo do mundo.
– Obrigada por me reviver. Como você fez isso?
– Longa história. Em poucas palavras, é magia de Derradeiros.
– Eh? Mas...! Tinha um Destruidor aqui? Eu morro de medo de
Destruidores! Eles são assustadores! Mas envie meus agradecimentos...
Ela estava se atrapalhando de novo. Baixou os olhos. A timidez dela me
fascinava cada vez mais.
– Pode deixar, eu envio.
– Taha, eu estou preocupada. Se trinta anos já se passaram, onde estão meus
pais? E minhas amigas?
Como eu contaria algo assim?
– Sinto muito, mas a sua mãe... ela ficou doente quando soube da sua morte.
Infelizmente, ela faleceu logo depois. E eu soube que seu pai também já morreu.
Lipsei começou a chorar. Bem, isso era esperado. Eu não sabia como
consolá–la.
– Mas aquelas duas meninas que andavam no colégio com você estão vivas.
Deseja revê–las?
– Eu não sei... mamãe morreu. Ela era tudo pra mim. Eu a amava tanto.
Ela estava se acabando de chorar. Começou a soluçar e se encolheu.
Eu queria abraçá–la, mas não tinha coragem. Ainda mais que ela estava
vestindo apenas a minha capa.
Eu não previ isso. Eu revivi Lipsei para que ela pudesse sorrir de novo e ter
uma vida feliz. Será que não tinha sido uma boa ideia? Ela teria uma vida triste
ao saber da morte das pessoas que ela amava?
Mas ela logo fez força para conter as lágrimas.
– Me perdoe. Você gentilmente me reviveu e eu estou sendo rude e mal
agradecida.
– Como eu disse antes, não precisa se desculpar. Sei que você irá superar
isso.
– Sou chorona e mimada. Sou tão cheia de defeitos! Mas... eu estou
aborrecendo você com minhas reclamações. Estou feliz por estar viva. Juro que
estou feliz...

553
Wanju Duli

Ela enxugou as lágrimas e forçou um sorriso. Eu senti uma pena


desesperada dela.
– Você morreu para proteger Cromo D’aship. Saiba que graças ao seu ato
heróico ele está vivo até hoje. E ele é atualmente o segundo mago mais forte do
mundo.
Ela ficou muito surpresa ao saber disso.
– Ele é um membro da MAL? Que demais! Eu jamais pensei que eu fosse
conhecer um membro da sociedade secreta mais famosa! Uau! Agora posso
dizer a todos que um dia conheci um membro da MAL. Mas, espere, eu nunca o
conheci... ah, que pena.
Ela riu. Fiquei contente em ver que ela já estava ficando mais à vontade.
– Viu só? Seu sacrifício não foi em vão.
– Não haveria como ter sido em vão. Mesmo que eu tivesse protegido uma
pessoa que somente viveria mais alguns dias e que seria logo esquecida, teria
valido a pena. Uma vida é preciosa. Por isso eu jamais entendi o que se passa na
cabeça desses magos assassinos. Eles deviam entender que a vida é valiosíssima,
pois cada momento de nossa existência é maravilhoso.
– Você tem toda a razão. Mas... vamos sair logo desse cemitério. Você deve
estar com frio. Não é o melhor lugar para conversar.
– Por que você ainda está usando nosso uniforme?
– Não sei.
– Você o vestiu para que eu me sentisse em ambiente familiar quando
acordasse?
– Foi exatamente por isso.
Nós dois rimos. Cara... eu estava no paraíso.
– Mas eu não posso andar por aí desse jeito. Preciso de roupas.
– Venha, eu compro pra você.
Ela me seguiu. Saímos do cemitério. Pedi para ela esperar numa praça logo
ao lado. Eu passaria numa loja ali perto.
E lá fui eu escolher uma roupa para ela. Era melhor eu não demorar muito.
Podia ser qualquer coisa, seria provisório.
Acabei escolhendo um vestidinho, parecido com um que ela usou naquele
dia, no hospital. Voltei para a praça e dei a ela.
Fiquei sentado no banco enquanto ela colocava o vestido, atrás de uma
árvore. Quando ela retornou, me devolveu a capa.
– Brigada, mas... preciso de lingerie. Desculpa, estou sendo muito exigente.
Já está bom assim...
– Não, imagina. Eu que sou um idiota e não me dei conta disso. Vou
comprar, volto já. Me espere aqui.

554
Fábula dos Gênios

Eu não devia ter comprado vestido. É claro que ela iria precisar de uma
calcinha. Além do mais, comprei um vestido pequeno demais. Eu sempre
pensava em Lipsei como uma menina pequeninha, então comprei o menor
vestido que havia. Mas aquele modelo devia ser para uma criança.
Aquele vestido mostrava muito das coxas dela. E parecia apertado no peito.
O resultado foi um decote que me fez enrubescer quando vi.
Resolvi sair de lá logo para não olhar demais.
Quando retornei para a loja de roupas meu coração estava disparado. Eu
não comprei um vestido assim de propósito.
Escolher lingerie foi muito difícil. Eu não queria comprar algo minúsculo,
para não parecer um pervertido. E também não podia escolher algo enorme,
para não cair.
Afinal, por que eu estava nervoso daquele jeito? Eu já tinha visto mulheres
nuas. Eu inclusive tinha uma esposa muito gostosa e comia aquela carne macia
todas as noites.
Mas Cali tinha mais carne. Eu já havia presenteado Caliderina com lingeries
sensuais, mas imaginei que os tamanhos das duas seriam completamente
diferentes.
Resolvi não pensar demais. Acabei comprando uma calcinha amarela com
detalhes azuis claros.
Quando retornei, Lipsei ficou muito surpresa.
– Eu tenho uma muito parecida com essa. Como você sabe?
– Eu não sabia. Foi coincidência.
Eu era um imbecil ou o quê?
Depois daquilo, Lipsei se sentiu desencorajada com minha gentileza.
– Eu posso me virar agora. Vou visitar minhas amigas. Muito obrigada por
tudo.
– Espere! Posso te comprar sapatos também. Quer ir comigo na loja? Dessa
vez você escolhe.
– Tá...
Ela escolheu um par de sandálias muito baratas. Pegou um sutiã bem barato
também. Nossa, como eu era desatento. Eu esqueci completamente que garotas
também precisam de sutiã.
Quando fui pagar, dessa vez a atendente me reconheceu.
– Por acaso você seria Taha Vorta?
– Sim, eu sou.
Como eu poderia negar, se Lipsei estava do meu lado?
A atendente ficou fascinada.
– É uma honra conhecê–lo pessoalmente, senhor.
Quando saímos da loja, Lipsei ficou muito intrigada.

555
Wanju Duli

– Eu costumava visitar essa loja quando criança. Meu pai era muito
respeitado por aqui...
Acho que minha história não colou. Mas Lipsei não perguntou mais sobre
isso.
– Você ainda deve estar com frio. Quer um casaco ou minha capa?
– Não quero abusar de sua generosidade. Eu realmente devo ir...
– Para onde? Sabe onde moram suas ex–colegas? Nem mesmo eu sei onde
elas moram atualmente. Por acaso tem algum parente? Outra pessoa que
conheça?
– Não... parece que tudo mudou.
– Por favor, entenda que não é problema algum ajudá–la. Quer ficar na
minha casa por enquanto? Há muitos quartos vazios. Você pode ficar à vontade
lá...
– Senhor... existe algo que você deseje de mim em troca de toda essa
generosidade? Porque se assim for, sinto muito. Não posso lhe retribuir.
Quando ela disse isso, eu me senti muito mal.
Eu a revivi porque eu desejei revê–la outra vez. Nunca parei para pensar no
que eu faria depois disso.
Ouvir isso dela doeu. Depois que eu comprei aquele vestido curto e a
calcinha daquelas cores, percebi que ela estava me tratando mais friamente e
com certa distância.
E, para completar, ela estava me chamando de senhor outra vez.
– Lipsei, nós fomos colegas. Eu me senti responsável quando você morreu,
pois não pude protegê–la. Vivi com essa culpa ao longo de todos esses anos.
Finalmente, depois de muito tentar, arranjei um meio de revivê–la. Eu
sinceramente desejo ajudá–la. Você nunca vai precisar me pagar. Tenho uma
dívida com você. Aliás, por todo esse tempo tenho usado seu robô. Ele me
trouxe muito poder. Obrigado.
Essas palavras foram o bastante. Ela se sentiu melhor. Mas não aceitou o
convite de ir para minha casa.
– Vou achar outro lugar. Prometo que ficarei bem.
– Não pensa em retomar os estudos?
– Tem razão! Vou voltar para nossa antiga escola.
– O exame de admissão está muito difícil agora. O preço da mensalidade
também subiu muito.
– Ah... e vou ter que fazer um robô novo. Acho que você não vai me
devolver o Tchuu.
– Ele é seu. Se o quiser de volta, você o terá.
– Vou querer visitá–lo de vez em quando, se não se importar. Mas sinto que
eu não saberia comandá–lo, por isso não pedirei de volta. Você o modificou de

556
Fábula dos Gênios

uma forma muito complicada. Não entendo muito disso, mas ele parece bem
forte.
Qualquer mago de poder médio seria capaz de captar o imenso poder que
emanava de mim e do robô. Lipsei era inocente a esse ponto: sequer era capaz
de entender que eu não estava somente “bem forte”. Eu estava perto de atingir
um nível de poder próximo ao de um marlaquino. Algo que só tinha ocorrido
duas vezes em toda a história.
Mas aquilo não importava. Eu torcia para que ela não descobrisse aquilo tão
cedo. Eu não desejava que mais uma barreira nos separasse.
– Se você não quiser ter todo o trabalho de montar um novo RP, ainda pode
estudar em escolas de outros países.
– É mesmo! Sempre admirei Narrara. A magia dos livreiros é tão bonita!
– Então é para lá que nós vamos. Eu te dou uma carona.
Chamei meu enorme abutre. Lipsei ficou com muito medo quando o viu.
– Ele é mágico e muito dócil. Ele me obedece completamente. Pode fazer
carinho.
Lipsei acariciou a cabeça dele. Logo, ela estava sorrindo muito.
– Ele é tão fofinho!
Eu seria o cara mais feliz do mundo se um dia Lipsei dissesse aquilo
enquanto massageasse meu pau.
Mas... ahhhh! No que eu estava pensando? Eu tinha uma esposa. Claro que
era uma esposa desgraçada que tinha matado a menina que eu gostava e que
ficava dando em cima de outro cara.
Será que eu já era muito velho para Lipsei? Mas mulheres curtem caras mais
velhos. Além do mais, eu tinha grana e poder.
Pensando bem, eu era um excelente partido. Diversas mulheres tinham dado
em cima de mim desde que me tornei o melhor do mundo. Muito mais do que o
dinheiro, o poder as fascinava enormemente.
Eu poderia oferecer a ela proteção mágica e segurança financeira. Mas eu
ainda não tinha coragem de me declarar. Era melhor eu ir com calma.
Lipsei segurou na minha cintura enquanto voávamos em Kraezunassei.
Aquilo me deixou nas nuvens. Eu devia aproveitar o sonho enquanto durava.
Nós visitamos juntos o melhor colégio de Narrara. Ofereci–me a pagar toda
a mensalidade, até ela terminar os dois anos de colégio que faltavam. Como era
um internato, era mais caro ainda, mas eu não me importei. Assim ela já teria
um lugar para ficar.
– Não posso aceitar. Isso seria muito...
– Por favor, permita–me. Esse dinheiro não é muito para mim. As coisas
deram certo nos negócios e me tornei muito rico. Então não se preocupe.

557
Wanju Duli

Negócios? Os meus assassinatos? Sorri bondosamente. Ela sorriu também,


com alegria. Cara, eu a tinha feito sorrir. Aquele presente não tinha preço.
Lipsei tinha alguns dentes meio tortos e deixava uma grande parte das
gengivas à mostra quando sorria. Acho que era por isso que o sorriso dela me
fascinava. Lembrava–me o sorriso de uma criança banguela e desajeitada.
Eu amava cada pequeno “defeito” de Lipsei, que para mim eram charmes
totalmente únicos.
Confesso que não olhei o corpo nu dela no cemitério. Inicialmente eu estava
fascinado demais com o rosto e com o fato de ela ter voltado à vida. Depois, em
respeito a ela, não tentei espiá–la.
Mas um dia eu queria ver. Somente num dia em que ela deixasse. E nesse dia,
por mais estranho que pareça esse desejo, eu queria encontrar novos pequenos
defeitos, que para mim seriam extremamente charmosos. Eu até torcia para que
o corpo dela possuísse várias pequenas imperfeições, que me fizessem amá–la
ainda mais. Ela tentaria esconder esses defeitos e eu sorriria e a deixaria feliz,
dizendo que eu a amava exatamente daquele jeito. Que se não houvesse aquelas
falhas bem naqueles lugares, não seria a Lipsei.
Ela ficou deslumbrante em seu novo uniforme branco com detalhes em
negro. A jaqueta e a saia eram brancas para que nelas fossem escritas as
fórmulas mágicas nos idiomas de Narrara. E na gravata havia o emblema da
instituição.
Uma vez por mês eu visitava Lipsei para verificar como iam seus estudos.
Ela sempre me relatava animadamente as novidades.
– Olha só que máximo, Taha, eu consigo evocar os bonequinhos dessa
história! Ó, presta atenção: “E meus brinquedos eram tão formosos que os
guardei numa caixinha de coração com cadeado. Em especial, havia este ursinho
branco de orelhas vermelhas. Ele não era o mais brilhante?”
Ela evocou um ursinho. Ele era quase real. Lipsei conseguiu segurá–lo por
alguns momentos antes que desaparecesse.
– Isso é maravilhoso! Você poderá evocá–lo para batalhar.
– Eu não quero lutar. Desejo que minha magia apenas traga sensações lindas
para as pessoas.
A cada mês ela me apresentava novas magias. Eu preferia fingir que não as
conhecia, para que Lipsei me contasse tudo com ainda mais entusiasmo. Pela
minha convivência com Suaten, eu já havia aprendido muitas magias de livreiros,
mesmo contra minha vontade. A propósito, eu mandava que Suaten ficasse de
olho em Lipsei e tomasse conta dela. Eu o apresentei a ela uma vez e disse que
se ela precisasse de qualquer coisa bastava contatá–lo.

558
Fábula dos Gênios

– Eu tenho conhecidos de quase todos os países. Já informei algumas


pessoas sobre sua existência. A partir de agora, você terá vários contatos. Para
onde quer que viaje, será bem recebida.
Eu entreguei a ela uma lista com diversos telefones.
– Caramba! Você é tão popular assim?
– Desde que você morreu, eu larguei a escola e comecei a viajar. Muitas
pessoas me ajudaram quando precisei. Um dia, quando finalmente conseguir
reunir dinheiro, eu retornei para todos os lugares pelos quais passei e presenteei
a todos. Eu me senti muito feliz fazendo isso. Sabe, você não compra amizades.
Eles me ajudaram sem que eu desse nada. Eu apenas dei o presente depois para
expressar minha gratidão. Eu sei o que é estar sem nada e precisar de ajuda. Por
isso, eu gosto de ajudar, mas nunca ajudo esperando que me deem algo.
Algumas vezes o presente pode ser um sorriso.
– Você é admirável. Quem me dera se eu fosse como você...
– Ora, não diga isso. Nem chego a seus pés.
– Minha morte te afetou tanto assim?
Eu fiz que sim. Depois entreguei a ela um envelope lacrado.
– É da MAL...!
Ela abriu, curiosa. Nem foi capaz de acreditar no que estava escrito.
– A partir de agora, você é uma protegida de Cromo. Você deu sua vida para
salvá–lo. Então você entrou para a lista, como agradecimento.
– Como ele soube a meu respeito? E por que você tem esse envelope?
Eu não respondi. Tinha me esquecido daquele detalhe. Não imaginei que
Lipsei, que era mais desligada que eu, fosse reparar.
– Você também é membro da MAL, certo? Sou sua protegida, e não de
Cromo.
– Mas como é que você sabe?
– Ora, por favor! A todo lugar que vamos juntos as pessoas te conhecem.
Na rua apontam para você. Até na ocasião da minha matrícula os professores e
alunos te olhavam como se fosse de outro mundo. E, além do mais, a sua
tatuagem...
A tatuagem! Aquilo era tão óbvio. Como não me dei conta?
– Eu sabia que não poderia esconder isso por muito tempo. Mas eu tentei.
Estou te colocando em contato com muita gente porque pode ser que eu morra
em breve.
– Mas como...?
– Eu sou o rank 1. Acho que estou para atingir um poder próximo aos dos
marlaquinos. Quando isso acontecer, serei morto por eles.
– Não será. Eu não vou permitir. Irei protegê–lo.
– Eu quero protegê–la. Já vivi minha vida. Agora, viva a sua.

559
Wanju Duli

– Isso é injusto. Por que só você pode fazer coisas por mim? Queria poder
fazer algo por você também.
– Fique viva. Seja feliz. É tudo o que eu peço. Nada mais. Seu sorriso
radiante espalha alegria para o mundo. É disso que esse lugar precisa, e não de
novos assassinos.
– Há momentos em que assassinos só levam a sério outros assassinos. E se
alguns deles sorrirem sinceramente, do fundo do coração, aí sim algo pode
finalmente começar a se transformar.
Eu não entendi o que ela quis dizer. Eu não via lógica naquelas palavras, mas
eu sentia alguma força ali no meio.
Naquele meio tempo, algumas coisas desagradáveis aconteceram na MAL.
Logo na reunião do mês seguinte, depois que minhas filhas morreram, eu
descobri que o assassino delas era filho de Segrene. Nunca me dei bem com ele,
mas isso agravou ainda mais nossa inimizade. Ele passou a nutrir um ódio sem
tamanho por mim, mas não poderia fazer nada.
Era difícil falar em justiça. Ele afirmava que seu filho era digno.
– Certamente foram suas filhas quem fizeram merda. Se elas forem igual à
mãe, não tenho nenhuma dúvida disso.
– Não ouse depreciar a minha família.
– Você devia olhar mais por aqueles que lhe são caros, Vorta. Você jogou
suas duas filhas num colégio interno para se livrar delas e sequer ia visitá–las.
No caso do meu filho, ele apenas realizava um intercâmbio de dois anos e eu ia
visitá–lo frequentemente.
Pensando bem, eu não costumava prestar muita atenção no que acontecia na
minha casa. Eu era sempre muito ocupado com os assuntos grandes dos magos.
Eu só via minha mulher à noite para trepar com ela. Eu nem via o que ela fazia
no resto do dia. Caliderina criou as gêmeas praticamente sozinha, enquanto eu
permanecia a viajar.
– Eu vivo dizendo que você precisa colocar rédeas naquela sua esposinha e
você não me escuta. Por acaso sabe onde ela anda agora?
– Provavelmente ela está fazendo compras com Minaz, por isso as duas se
atrasaram.
– Estranho que o deus pelado não tenha aparecido mais na nossa janela.
Será que ele anda muito ocupado desde que você o matou?
As reuniões dos magos mais fortes de Marlaquina pareciam um encontro de
fofocas entre velhas lavadeiras.
Já fazia muito tempo que eu recebia insinuações do tipo. Eu costumava
ignorar o que Weskada dizia, porque eu o achava um grande imbecil.

560
Fábula dos Gênios

Até que os seis meses se completaram, desde que Buur deixou de


comparecer às reuniões. Eu não hesitei e me dirigi imediatamente até Consmam
para matá–lo pessoalmente.
Enquanto eu cruzava os céus de Consmam com meu abutre mágico, os
Destruidores se assustavam. Era a sensação mais deliciosa do mundo ser temido
por aqueles caras fortes. Mas eu não estava lá para brincar.
Ao encontrar–me com Buur, anunciei prontamente sua sentença.
– Buur Emada, segundo as diretrizes do conselho dos Magos Acima da Lei,
você será executado.
Ele não pronunciou uma palavra. Eu atravessei meu braço em seu peito e
arranquei o coração. Levantei para o alto o órgão podre e carcomido.
– Eis a lei: não há lei. Somente o decreto da minha vontade.
– Isso é muito conveniente, Taha Vorta. Saiba que acabou de matar o vice
da Fagemal Armor. Você, que é um escravo dos marlaquinos, logo receberá a
sentença derradeira dos seus deuses do outro mundo.
Quem pronunciou essas palavras foi Basza Cazka. Ela era a Inversão de
Sablerie Cazka, filho do autor do Grimório dos Gênios Malignos.
Eu mesmo era um autor, o que gerava muito prestígio entre magos. Meu
Grimório dos Corações Eletrônicos era famoso.
– Eu posso arrancar a sua vida antes de partir, se isso irá satisfazê–la. Assim
derrubo de uma vez por todas essa sua malfadada Ordem que tanto me enoja.
– Por que, Vorta? Teu orgulho te torna assim tão cego? Nós somos a
resistência.
– Cuidado, Basza. Minha morte não vai te salvar. Owmaq não vai permitir
que isso continue por mais tempo.
Eu não tinha mais nada a conversar com a desgraçada. Subi novamente na
minha imponente criatura. Esquartejei o corpo do segundo mais forte
Destruidor e espalhei os pedaços pelas terras de Consmam, numa chuva de
ossos e vísceras.
Eu era somente um tolo. Os marlaquinos estavam realmente comandando
minha mente e minhas ações.
Eu não me importava em morrer, porque não havia nada de valor na minha
vida além da busca desenfreada pelo poder. E até mesmo aquele jogo estava
aborrecedor, pois nenhum outro mago vivo possuía potencial para me alcançar.
Na reunião seguinte da MAL, achei que todos me respeitariam pela
execução de Buur, mas notei que alguns presentes estavam segurando o riso.
Através do meu ato, o Deus da Mentira filho da puta se tornaria
oficialmente um membro. E lá estava ele, já sentado à mesa, sem nem antes
receber minha permissão. Ele estava do lado de minha mulher e os dois
conversavam alegremente.

561
Wanju Duli

– O que faz aqui, seu merdinha? Pode sair.


Ordenei que ele esperasse lá fora. Ele se fez de idiota, mas logo saiu. Pelo
menos estava vestido naquele dia.
– Então, eu ouvi falar que Vorta aprendeu uma poderosa magia de
metamorfose.
– Por que o diz, Weskada?
– Porque você se transformou num corno.
– Você deseja falecer agora ou no final da reunião, filho da puta?
– Opa, onde está Cali, mesmo? Pensei que você só tinha arrastado o amante
dela para fora. Por que ela foi junto?
Eu resolvi seguir o conselho do idiota e fui checar. Abri o portão da torre e
olhei lá embaixo.
Nem precisei descer muito. Lá estavam Caliderina e Mioae, se agarrando nas
escadas. Caliderina parecia muito feliz com os seios à mostra, enquanto Mioae
passava as mãos neles.
Eu segurei Mioae pela camisa, pronto para decapitá–lo. Mas Caliderina
defendeu–o.
– Então, eu ouvi falar que você está dando em cima de uma vadia
adolescente de Narrara. Você pode me trair e eu não posso? Está até pagando
os estudos dela!
– Ela é a menina que você matou quando nos conhecemos. Eu a revivi. Ela
não tem quem a ajude após trinta anos, e como fui eu a devolver–lhe a vida me
sinto responsável. Eu não a traí em nenhum momento. Só estou ajudando a
garota.
– Eu sei que você a ama. Eu não recebi nenhuma atenção sua em todos
esses anos, desde que nos casamos. Você nunca gostou de mim de verdade e
nem cuidou das nossas filhas. Juro que te amei um dia. Mas você me deixou
largada. Agora estou apaixonada por Mioae. Quero ficar com ele. Vá lá pegar a
sua criança. Me deixe em paz.
Eu estava com tanta vontade de arrancar a cabeça daquele deus sorridente
de merda...
Por impulso, eu podia até ter assassinado os dois. Mas depois daquela
explicação, eu fiquei sem reação. Tudo o que ela dizia era verdade.
– Eu não vou suportar ver vocês dois se pegando nos encontros da MAL.
Ou vocês caem fora ou eu me retiro.
E, ao dizer isso, só de raiva, arranquei a cabeça de Mioae. Eu subitamente
me dei conta que ele era imortal e poderia reviver a seguir. Só fiz isso para
descontar um pouco da minha fúria. Que os dois imortais se fodessem pelo
resto de suas eternidades miseráveis. Eu não estava nem aí.

562
Fábula dos Gênios

Eu perdi minhas filhas. Depois a minha esposa. Meus amigos tinham a


família deles e seus assuntos. De repente eu fiquei confuso. De que adiantava
ser o mais forte? Aquilo não servia pra merda nenhuma. Eu nem podia mais me
divertir enfrentando meus amigos em duelo mágico, pois eu era forte demais e
não teria graça nenhuma.
Eu tinha o poder de quebrar qualquer lei. Se eu assaltasse lojas aquilo no
máximo me traria má fama, mas eu não seria tocado. Como eu tinha muito
dinheiro, nem roubar ou buscar tesouros me parecia divertido.
A única que me restou foi ela...
Se eu desejasse, poderia prender Lipsei à força na minha casa e pegá–la para
mim. Eu não seria julgado. Eu era Taha Vorta e podia tomar para mim tudo o
que desejasse.
Mas é claro que eu não queria deixá–la triste. Desejava conquistar o coração
dela e não recorrer a truques baixos.
Eu estava meio deprimido. Fui visitar Lipsei no colégio um pouco antes do
dia que eu geralmente ia.
– Hoje eu quero te dar um presente.
Evoquei Tchuu.
– Se eu for morto em breve, não desejo que o destruam. Há um pedaço do
seu coração aí dentro. E também do espírito de outras pessoas importantes.
Você deve protegê–lo.
– E quem vai te proteger?
– Não se preocupe. Eu ficarei bem. Deixei um dinheiro para você nessa
conta. Você pode estudar numa instituição de magia robótica quando concluir
seus estudos aqui. Ou poderá ir para qualquer outro lugar.
Eu estava vendo Lipsei mais como uma filha do que como uma futura
esposa. Eu só queria ter certeza que ela conseguiria se virar sozinha quando eu
não estivesse por perto.
– Taha... eu sou tão grata por tudo. Mas apesar de eu estar adorando minhas
aulas daqui, você nem imagina como me sinto sozinha nesse lugar.
Eu gostaria de dizer que ela não precisava mais ficar sozinha. Que eu ficaria
com ela.
Só me tornei o melhor mago porque minha vida ficou sem rumo depois que
ela se foi. Com Lipsei de volta, eu não precisava mais lutar. Podia me livrar de
toda a minha magia e apenas ter uma vida feliz com a menina que eu amava.
Somente assim minha vida teria sentido. Não o poder, não a fama. Apenas o
amor.
Mas... eu ainda era tão covarde! Eu não conseguia declarar meu amor. Eu
temia a rejeição. Aquilo doeria. Eu preferia morrer pensando que ela gostava de
mim.

563
Wanju Duli

De repente, eu me lembrei de outra pessoa que disse algo assim...


“Você nem imagina como me sinto sozinho nesse lugar”.
– Acho que posso te arranjar um amigo. Em breve te apresentarei uma
pessoa.
Eu rumei imediatamente para Crava. Era sempre desagradável estar naquelas
terras, principalmente voando sobre o bichinho de estimação de Yavia. Mas eu
me negava a viajar de navio, para não ser incomodado durante toda a viagem.
Consegui encontrar o estudante que eu procurava. Ele se chamava Echnhas.
O Destruidor se assustou com minha visita, mas eu o tranquilizei. Disse que fui
lá apenas para conversar.
– Não consegui agradecer a sua irmã apropriadamente pela ressurreição.
Peço que envie a ela meus agradecimentos.
– Pode deixar, senhor Vorta. Ela está estudando atualmente em Sinabil.
– E você, está satisfeito com seus estudos?
– Eu finalmente fui aceito na sociedade secreta daqui. Mas mesmo lá dentro
sofro preconceito. Eu não entendo os divininos. Aprecio a magia deles, mas eu
me sinto um estranho nesse lugar. Um dia eu gostaria de ir estudar em Narrara,
se eu conseguir reunir dinheiro suficiente...
– Gostaria de ir agora? Lipsei estuda lá. Ela me contou que lá existe não
somente uma Ordem principal como aqui, mas várias. Se o sistema mágico for
de seu agrado, você já vai começar os estudos com uma amiga.
Ele topou na hora. Levei o Destruidor até Narrara e apresentei os dois.
Embora Lipsei tivesse dito que temia os Destruidores, ele era irmão da menina
que salvou a vida dela.
Aqueles dois eram tão parecidos que era assustador. Eu nunca tinha visto
um Destruidor tão calminho e sorridente.
E eu me despedi dos dois animadamente, como se eu logo fosse retornar
para levar balas ou algo assim.
Eu me dirigi para Samerre. Para a floresta azul. Foi lá que eu combinei de
me encontrar com o marlaquino.
Mas chegando lá, eu encontrei Sassa Soma.
– Você não pode permanecer aqui. Se enxergar o marlaquino, morrerá.
– Hoje você será morto, Vorta. Todos da Ordem já sabem. Eu acabei de
ultrapassar Owmaq em poder mágico. Por isso, irei acompanhá–lo no dia de
hoje. Tomarei o rank 1 de você.
– Cuidado para não ficar forte demais, madame Soma, ou encontrará destino
semelhante.
Meu coração estava disparado enquanto eu aguardava a vinda de meu
julgador. Ao mesmo tempo, eu me sentia em paz por ter aquela mulher tão sábia

564
Fábula dos Gênios

e poderosa ao meu lado. De repente, a morte já não parecia tão solitária. Era
cheia de magia.
– Para a sua alegria, Mioae foi rebaixado de novo para rank 11 e saiu da
Ordem. Por ficar menos de um mês, ele nem chegou a receber a tatuagem. Uma
divinina chamada Leassa Cazara tomou o lugar dele.
– Isso é maravilhoso.
– Na próxima reunião, Mioae provavelmente estará pendurado na janela
outra vez.
– Eu realmente não queria que essa fosse minha última imagem antes da
minha morte...
– Pode deixar que eu o mato de novo. Na MAL sob meu comando não
haverá casais nas escadas, biscoitos ou risadas. Só trataremos de temas
filosóficos e profundos.
Eu havia acostumado mal as crianças da MAL. Soma colocaria ordem na
casa rapidinho. Quem sabe, pela primeira vez ocorresse uma reunião da MAL
que finalmente falasse de magia!
– Tenha uma morte gloriosa.
Senti um arrepio quando uma criatura multicolorida se materializou na
minha frente.
– Olá, Vorta. Meu nome é Tecraxei, muito prazer!!
Aquilo foi bem assustador. Era uma mocinha com um chapéu de bobo da
corte e um sorriso de orelha a orelha.
– O prazer é meu.
– Tipo, vou te matar, OK?
– Por quê?
– Tô a fim.
– Beleza.
Eu já sabia por quê. Todo mundo sabia. Perder tempo com explicações
sobre isso não tinha sentido.
– Pode me mostrar o seu mundo antes de tirar a minha vida?
– Todos os mundos são iguais. O que muda é o que está dentro de sua
mente. Com o sono eterno, eu te ofertarei o melhor sonho.
E eu realmente sonhei.
Sonhei com um universo de amor. Sonhei com um universo de ódio.
Havia guerra. Havia paz. E, em meio ao caos, poderia haver um refúgio
seguro? Eu realmente queria estar seguro?
Não havia mais perguntas. Não havia mais respostas.
Eu não precisava ser lembrado. Eu era o grão de areia que completaria a
fumaça cósmica que voava naquela festa eterna e faiscante.
Tudo o que eu precisava. Era tudo o que eu queria.

565
Wanju Duli

Fábula da Eloquência

– Os magos estéticos são mais exigentes que os livreiros com as palavras?


Faça–me rir! A senhorita Radiantez deve realmente ter um laço no cérebro. Tão
apertado que a impede de pensar!
– Deixe essa moça pra lá, Einaro. Os estéticos estão frustrados desde que
Vorta transformou a belíssima capital deles em pó.
– Achei que foi bem feito. Pena que o cara tá morto agora e não pode
destruir o restante daquele país cheio de merda perfumada. Quem é o Rank 1
agora?
– Ninguém disse que Vorta morreu...
– Ah, vai te foder, Camiania. Tecraxei em pessoa batalhou contra ele. Acha
que um marlo sobrevive por um segundo a uma batalha como essa? Nem o
mais forte da MAL.
– Soma lidera a Ordem agora.
– Dizem que essa Soma é foda pra cacete. Bom, lembra que ela esmagou o
D’aship.
– Velho... falar sobre as disputas desses gigantes da magia é altamente surreal.
– Aparentemente Vorta não teve um mestre. Então eu me pergunto o que tô
fazendo nessa porra de universidade.
Eu escutei a conversa, escondida. Quando ouvi mencionarem Taha, senti
um aperto no coração.
As pessoas ainda falavam nele. Demais. Desde o desaparecimento de Taha
dois anos atrás.
Eu estava com 19 anos. Fui transferida para a Universidade de Libila. O
foco estava nos escritos mágicos de fantasia.
As moças usavam vestidos rendados em tom verde claro como uniforme.
Uma capa verde mais escura com capuz. Contudo, não carregávamos cajados,
espadas ou outros utensílios especiais. Apenas grimórios, para materializar
nossas imaginações com a força da mente.
– Lipsei, que está fazendo escondida aí atrás?
Meu coração deu um salto.
– Echnhas, não me assusta desse jeito! Eu apenas ouvi mencionarem Vorta...
Echnhas tremeu.
– Esse sujeito me dá medo. Eu ainda acho que um dia ele vai voltar, seja
onde ele estiver. Nem que retorne dos braços da morte, ele vai arranjar um jeito
de te buscar.

566
Fábula dos Gênios

– Por que ele teria todo esse trabalho apenas por mim?
– Boa pergunta. Por alguma razão, eu acho que ele faria qualquer coisa por
você. Afinal, não foi ele quem te reviveu?
Eu ri. Mas foi um riso de simpatia. Era engraçado pensar que um homem
importante como Taha Vorta ligava tanto para uma ninguém como eu.
Eu não sabia por que ele tinha me revivido, me ajudado nos estudos e até
mesmo deu seu RP para mim.
Por um lado, o RP era originalmente meu. Ele disse que tentou me salvar
naquele dia e não conseguiu. Ele sentia que estava em dívida comigo.
Mas as peças do quebra–cabeça ainda não se encaixavam.
– Talvez eu seja alguém importante como uma princesa? Ou tenho
ancestrais de renome?
– Eu não contaria com isso. No meu caso, minha origem só me atrapalha.
Eu preferia poder viver sem esse peso. Ainda bem que terei apenas mais dois ou
três anos de vida.
– Como pode ficar tão calmo?
Ele deu de ombros.
– Lipsei tem razão, Echnhas. Você é um imbecil. Se eu tivesse só mais dois
anos de vida, não estaria estudando e sim viajando, procurando tesouros, tendo
altas aventuras! Por que vai desperdiçar seu tempo enfiado em livros?
Quem disse isso foi Morvia, uma garota da nossa classe.
– Eu consigo viajar para qualquer lugar nos livros. E eu tenho amigos aqui.
– Só a Lipsei. E você nem tem namorada. Afinal, quem iria namorar um
construtor?
Em Narrara todos pensavam que Echnhas era um construtor sobrevivente.
Ele preferia que pensassem isso, para que não o temessem. Em compensação, as
garotas costumavam perturbá–lo mais que o normal, ao saberem que, caso ele
desse um beijo na boca de uma moça, poderia morrer.
Mas antes que ele respondesse, Morvia acrescentou:
– Bem, na verdade eu ouvi dizer que a Braca, do terceiro semestre, está a fim
de ti...
– Está mesmo?
– É aquela ali. Mas ela só vai ficar contigo se você beijá–la.
Morvia apontou para um banco.
– Mas...
Echnhas foi até lá mesmo assim. Eu e Morvia assistimos de longe, enquanto
ele se aproximou da moça de rabo de cavalo e sentou–se ao lado dela.
– Se me beijar, prometo que te amo pra sempre. Faria isso por mim?
– Você sabe que corro risco de morrer se eu tentar isso.
– Por favor, sacrifique sua vida por mim...

567
Wanju Duli

Echnhas era muito romântico e ingênuo. Sem nem conhecê–la, ele fechou
os olhos, aproximou–se dela e aguardou pelo beijo.
Quando ele fez isso, Braca levantou–se do banco e juntou–se a outras três
amigas. As quatro começaram a rir.
Echnhas abriu os olhos.
– Você costuma sacrificar a sua vida só por uma foda? Babaca!
E as quatro saíram desfilando em seus impecáveis vestidos verdes.
Morvia riu dele também.
– Você é uma gracinha, sabia, Ech? Pena que é tão idiota...
E ela retirou–se também.
Echnhas ainda fitava o nada, sem saber como reagir. Resolvi sentar–me ao
lado dele. E inicialmente eu não disse nada.
– Por quê?
– Caso esteja se perguntando, é verdade o rumor de que dou em cima de
muitas estudantes. Mas eu sempre faço isso com respeito.
– Não foi isso que perguntei. Por que arriscar a vida por uma pessoa que
nem conhece?
– Vou morrer de qualquer forma. Queria ao menos ter alguém especial
comigo antes do fim.
– Tem uma coisa que não entendo. Você nunca deu em cima de mim, em
todos esses anos. Nem um pouquinho...
– Ah, mas você é uma protegida do Vorta. Eu não ousaria. Ele me mataria.
– Hm.
Retirei quatro grimórios grossos de dentro da minha mochila.
– Você escreveu todos esses?
– Basicamente sim. Por isso vim para essa universidade. Desejo escrever
muito mais. Histórias cada vez mais mágicas, cheias de vida e morte, amor e
ódio.
– Por que não escreve grimórios em vez de escrever histórias?
– Porque um grimório é como um manual de magia. Uma história é a magia
acontecendo. Sendo vivida, respirada. Sentimos todas as emoções, como se
realmente fosse real. E, na verdade, é... mas num outro plano de realidade. Ora,
vamos lá! Aprendemos tudo isso nas aulas.
– Eu sei. Mas eu tenho um passado de Destruidor. Os Destruidores pegam
pesado na carne. É uma magia dolorida. Não somente na imaginação.
– Sei por quê. Eles realizam um tipo de mortificação para que a dor no
corpo gere fervor na mente. Mas se o objetivo é sempre a mente, não
precisamos necessariamente realizar uma alteração física do lado de fora, certo?
Espadas, cartas, velas... nada disso é preciso. Aqueles que possuem uma mente
poderosa acessam o gatilho da magia apenas com a imaginação.

568
Fábula dos Gênios

– Mas isso é difícil. Inventar um mundo a ponto de torná–lo tão real quanto
esse que conhecemos.
– Se a emoção que experimentamos em relação a ele é igualmente real, qual
é a diferença?
– Você não pode morrer no outro mundo. Mas pode morrer nesse.
– Então se torna mais útil ainda construir diferentes mundos paralelos e
materializá–los com magia. Assim, quando morrermos, em vez de visitarmos
outros planos e dimensões, podemos mergulhar no mundo que criamos.
– Isso funciona quase como uma casa para gênios. Sabe, algo que os
construtores fazem...
– Vocês, Destruidores, preparam algo parecido?
– Hã... os Derradeiros têm túmulos para gênios e não casas. E o princípio é
bastante similar.
– Fascinante! Eu adoro quando você me conta histórias da sua terra. É
incrível poder conversar com um Destruidor. É uma honra, na verdade. Eu teria
muito medo de me aproximar de um deles, mas com você posso dialogar
normalmente. Adoro ser sua amiga!
Ele ficou meio sem jeito com os elogios.
– Obrigado, Lipsei. Também adoro ser seu amigo. Mas, sem querer ser rude,
não gosto quando as pessoas têm interesse em mim apenas por causa do meu
sangue. Sou muito mais que meu sangue, e eu gostaria que as pessoas se
interessassem pelas outras partes também.
– Mas é claro que eu me interesso! Você é muito gentil. Adoro sua
personalidade singular.
– E meu corpo não parece interessante, certo?
– O seu maligno já...?
– Não muito. Meu corpo está quase inteiro. Ele já comeu umas poucas
partes por dentro. Mas como estive utilizando a magia de Crava e Narrara, não
vou precisar alimentar meu maligno com meu corpo com tanta frequência.
– Entendi.
– Meus genitais estão funcionando normalmente. Estão inteiros.
– Ech, você realmente não precisa me contar isso. Eu já entendi que seu
corpo inteiro está funcionando bem...
– Não por dentro. Meu coração bate num ritmo estranho. Enfim, é melhor
eu calar a boca antes que eu fale mais besteiras, como sempre, e faça com que
até você me odeie.
– O coração dos Destruidores sempre bate de maneira diferente. Por isso
vocês conseguem usar a magia da porcentagem. Eu não vou te julgar. Eu sei que
suas emoções também não são iguais.

569
Wanju Duli

– Os Destruidores costumam ser mais frios. Provavelmente porque não


somente são expostos à morte desde crianças, mas também porque matam de
formas violentas. Mas eu sinto que sou o contrário de um Destruidor. Sou até
mais emotivo que os magos dos outros povos. Isso é frustrante. Faz com que eu
me sinta fraco.
– Alta sensibilidade é um gatilho para a magia. Echnhas você... já pensou em
ser um membro da MAL?
Ele ficou espantado com minha pergunta.
– Se eu conseguir me formar, já vou ficar satisfeito. Ou melhor, se eu não
fosse morrer antes... De qualquer forma, acho a MAL um objetivo ambicioso
demais.
– Eu quero entrar. Tenho pensado nisso há algum tempo. Estou com o
robô de Vorta. Eu sinto que ele o deixou comigo porque ele sentiu em mim
potencial para ser parte da MAL.
– Eu acho que ele viu potencial em você em outras partes...
Notei que ele fitou meu peito e minhas coxas. Eu era bobinha, mas eu
reparava nessas coisas.
Como ele era meu amigo, eu não fiquei zangada.
– Odeio ser uma mera sombra de Vorta. Confesso que me sinto um pouco
como você. Quero conquistar algo por meus próprios méritos. Não quero ser
“A Escolhida”. Não preciso de sorte. Eu somente desejo sentir a alegria de
conquistar algo grandioso porque me esforcei verdadeiramente. Não é preciso
sangue, tradição, beleza, riqueza... nada. Apenas um sonho que se torna real pela
vontade.
– E isso tem um nome. Chama–se magia. Quer tentar?
– Como?
– Te mostro. Vem comigo até a biblioteca.
Eu o segui, meio desconfiada. Provavelmente ele me mostraria algum
grimório misterioso e antigo, coberto de pó, com alguma magia estranha e
absurda que ninguém era capaz de realizar. As bibliotecas de Narrara estavam
cheias disso e ninguém se importava mais. Afinal, provavelmente havia mais
bibliotecas do que pessoas naquele país...
Mas no caminho para a biblioteca, vimos um cartaz colado na parede do
corredor, com uma propaganda. Pensei que fosse um anúncio sobre xampus ou
uma nova linha de fast food, já que a moça tinha cabelos crespos muito
volumosos, com batatas fritas dentro...
– Essa é Madame Mua! Mais bela do que nunca!
– Você conhece a moça da foto?
– Estou surpreso que não conheça. Ela é uma das modelos mais famosas de
Bruznia!

570
Fábula dos Gênios

– Acho que você se esqueceu que passei os primeiros 17 anos da minha vida
algumas décadas atrás. Essas propagandas também chegam em Desmei e
Consmam?
– Eu soube dela em Crava.
– Então não é um anúncio de xampus?
– Estão promovendo Bruznia. O país tem passado por dificuldades para
atrair turistas desde a destruição de Alprez. Os estéticos andam mais loucos que
nunca. Estão fazendo maratonas de desfiles de moda e batalhas mágicas, o que
por lá é praticamente a mesma coisa, só que com muita morte. Andam se
matando mais que os próprios Destruidores.
– Posso ver a sua chave, senhorita?
Quem se dirigiu a mim foi Einaro, que era meu sênior. “Posso ver a sua
chave?” era uma cantada comum em Narrara, já que todos os livreiros
carregavam as chaves de seus grimórios de nascimento num colar.
– Um cavalheiro deve mostrar a sua antes.
Einaro fitou–me com desconfiança quando eu disse isso. Mas cedeu,
colocando a mão dentro da gola da camisa e revelando o pingente prateado.
Eu toquei o pingente dele, sem saber se eu teria permissão para isso. Ele
fitava–me atentamente. Lambeu os lábios quando eu toquei as reentrâncias da
parte inferior da chave.
– Que lhe parece? Eu a agrado?
Eu não sabia interpretar chaves. Os livreiros aprendiam isso no ensino
secundário do colégio. Os homens geralmente possuíam chaves com
reentrâncias para fora, e as mulheres para dentro.
Um mago imensamente habilidoso seria capaz de ler a chave com poucos
toques e, através disso, produzir uma réplica para abrir o grimório de
nascimento de um livreiro e matá–lo. Por isso, eu entendi a expressão séria e
ligeiramente zangada quando ele notou que eu estava me demorando
demasiadamente em analisar a chave.
– Não sei ler chaves.
– Mas... como não?
– Eu sou uma robótica.
Ele me fitou com bastante surpresa.
– Ora, isso é quente. Então mostre–me seu RP.
Eu não podia fazer isso. Meu RP era o antigo robô de Vorta. Mundialmente
famoso. Ninguém podia saber da minha relação com Taha, ou eu correria
perigo. Ele possuía muitos inimigos que sentiriam verdadeiro prazer em me
matar, ao saberem que eu era uma de suas protegidas.
– Perdão. Não posso.

571
Wanju Duli

– Eu te mostrei a minha chave. Isso é completamente pessoal. Você precisa


me revelar algo em troca.
– O que significam aquelas duas saliências embaixo da sua chave?
Einaro fitou Echnhas com irritação.
– Por que estava olhando, idiota? Eu mostrei pra ela e não pra ti. Você é
gay?
– E se eu for? Vai querer ver minha chave?
– Não estou interessado.
– Que bom. Porque eu não tenho uma.
– Ah, agora me lembro! Você é o panaca construtor! Deve se achar muito
superior por ter sobrevivido à carnificina que os Destruidores fizeram no seu
país, hã?
– Pois eu acho que nos saímos muito bem na guerra...
– É claro! Sua população foi exterminada e só sobraram uma ou duas dúzias
de infelizes para infestar nossas nobres universidades. Perdedores devem morrer.
Deviam convidar Destruidores para um intercâmbio. Seria muito mais poderoso.
– Não estou fazendo intercâmbio.
– Evidente que não. Você não tem mais país ou casa para mandar alguém
para lá.
– Quem é esse imbecil com quem você está conversando?
E lá estava a outra veterana. Temi que aquilo pudesse terminar mal.
– Somente um imbecil qualquer. Eu estava falando com a mocinha.
– Mostrando sua chave a ela? Não se preocupe, querida. Ele mostra pra
todas... qualquer dia Einaro vai morrer de repente e não vai saber quem foi sua
assassina.
– Eu sou corajoso. Não temo morrer por amor. Mas pelo jeito essa
senhorita é uma covarde, que não deseja mostrar seu RP.
– Então essa é a caloura robótica. O outro deve ser o... construtor? Mais um
retardado, que tenta beijar mulheres mesmo sabendo que pode morrer por causa
disso.
– Nada disso me interessa. Eu apenas exijo que a garota me mostre o RP
agora, ou a desafiarei para um duelo mágico com morte.
– Então você tenta matar todas as garotas que te dão um fora?
– Eu não tento. Eu consigo.
– Quantas matou até agora?
– Duas. As outras vinte toparam trepar comigo após ler a minha chave.
– Então as saliências mostram que você tem pau grande?
Camiania caiu na risada quando ouviu isso.
– Não ignorante. Mostram meu potencial de poder mágico, verme!
– Oh, que legal. Muito interessante.

572
Fábula dos Gênios

Einaro fitava Echnhas com cada vez mais desagrado.


– Você não acharia interessante se soubesse interpretar chaves mágicas e
descobrisse que tenho o poder de te destruir em dois segundos.
– Bem, nós já estávamos indo embora. Vamos, Lipsei...
– Não tão rápido.
A garota pegou Echnhas pela mão e encostou–o na parede.
– A menina não mostrou o robô. Você vai ter que me beijar em troca.
– Só se você me mostrar sua chave antes.
Aquilo estava se tornando cada vez mais confuso. Ech não sabia ler chaves
tampouco. Não faria diferença.
– Foda–se a merda do beijo, Cami. Você disse que esse cara tenta pegar as
estudantes, então não dê a ele um prêmio. Obrigue–o a mostrar o gênio.
– Não, obrigado.
Mas Camiania gostou da ideia. Sorriu. Colocou a própria chave num
grimório trancado e libertou o espírito de uma ideia, através de uma recitação
dele:
– “Eu sou um gênio, mas não sou um fantasma. Eu sou uma ideia, mas não
sou vaga. Eu sou a luz, mas não consigo ser visto por ninguém, além de mim
mesmo”.
Com a última palavra pronunciada, em intensidade mais forte, saltou do
grimório uma espécie de espírito de luz, rasgando e iluminando as paredes. O
cartaz da modelo de Bruznia foi imediatamente picotado, além de parte da
parede arrancada. Precisei fechar os olhos para que a luz não me cegasse.
Echnhas retirou um pêndulo do bolso da calça para tentar retroceder o
tempo, mas Camiania quebrou–o em mil pedaços refratando a luz do cristal.
Ela não desejava magia de divininos sob aquele teto.
– Não aprendeu nenhuma magia de nosso povo, garotinho? Por aqui é bem
visto usar das mesmas armas. Das mesmas facas.
– “Do mesmo fogo”.
Echnhas reconheceu a citação e concluiu a recitação cruzada. Se você
resolve o enigma proposto pelo outro mago com quem duela, libera a magia.
Eis um trecho de um conhecido livro de fantasia de livreiros. Nesse trecho
da história, o personagem libera fogo com um sopro. E Echnhas adquiriu esse
poder ao solucionar a charada.
O sopro de fogo de Ech pegou no espírito de luz, que logo estava em
chamas.
– “A buceta da puta pegou fogo. Mas seu coração era frio como gelo.
Impenetrável, intransponível e invencível!”
O coração do espírito saltou em chamas e logo congelou, espalhando gelo
pelo resto de seu corpo. A água pingava pelo chão do corredor e uma chama

573
Wanju Duli

saltou na direção de Einaro, que teve que recitar um “verso escudo” breve para
defender–se.
– “Nada atinge minha face perfeita com fragrância de papoula!”
Ele recitou isso tão depressa que eu ri. Mas conseguiu defender–se a tempo.
– Papoula fede. Não conseguiu se lembrar de um verso melhor, Ein?
– Não quando tem fogo voando na minha direção!
– Eu não acredito que VOCÊ citou Cameze Fola. Você detesta esse autor!
– Pelo menos estou vivo. Não graças a você!
– Quem começou essa briga mesmo, amorzinho? Você devia beijar meus
pés por eu salvar a sua pele. “O machado de Linerro era tão mortal e afiado
quanto seu cacete de aço!”
– Ei! Agora foi você quem citou Fola! Beije meu traseiro, desgraçada!
A citação fez com que o espírito de luz e gelo agarrasse um gigantesco
machado materializado no ar.
– Espere... é o mesmo personagem que tem face com fragrância de papoula
e cacete de aço?
– Sim. Esse autor é doente.
– É sensacional.
– Ele escreve livros para o público feminino... cada palavra me dá nojo.
– Ele quer vender, pois sabe que mulheres leem mais que homens.
– Que mentirosa! Há um livreiro na MAL e, adivinhe: ele é um homem!
– Mais mulheres de outros países fazem intercâmbio para cá. Vocês, se
pudessem, iam todos para Consmam comer fezes como os Destruidores, e
matar uns aos outros como eles.
– Como se um monte de mulheres não fossem para Bruznia se maquiar...
Enquanto os dois batiam boca, Echnhas tentava se defender
desesperadamente das investidas furiosas do espírito com o machado.
– Ech, chame logo seu gênio, ou você vai...!
Tarde demais. Echnhas, em sua teimosia, não revelou seu maligno, apenas
para que não soubessem sua identidade. E perdeu um braço.
O machado do espírito decepou seu braço direito numa só investida. O
braço atingiu o chão, repleto de sangue, com osso e carne saltados para fora.
Echnhas ajoelhou–se e deu um grito. Ele pingava sangue e tremia, prestes a
desmaiar.
– Puta merda...! Não precisava arrancar o braço desse bostinha. Vamos levar
suspensão, só porque ele é estrangeiro! A reitora imbecil vai dizer que estamos
“promovendo a desarmonia entre os povos”.
– Pois eu acho que estamos ficando mais amigos com esse duelo. Levante–
se, seu fresco. Você só perdeu um braço. Se não levantar, o próximo a voar será
seu pau!

574
Fábula dos Gênios

E ela deu–lhe um chute no rosto.


– Pare!
Tentei segurá–la pelo braço, mas Camiania apenas me jogou no chão. Ela
mesma segurou o machado de gelo e luz e tentou cortar–me com ele.
O que aconteceu a seguir foi muito rápido para descrever.
Eu ouvi um grito alto. Como um grito de guerra. Quem ali tinha uma voz
assim, tão forte e poderosa? Einaro?
No segundo seguinte, Camiania estava no chão. Da cintura para cima,
tombou para frente. Da cintura para baixo, tombou para trás. As vísceras e o
sangue tingiram o chão quando ela foi partida ao meio.
Eu tentei fechar os olhos para não ver, mas... foi tarde demais.
Eu apenas me encolhi no chão e tentei me proteger do monstro que tinha
feito aquele horror.
Uma forma espectral abriu uma bocarra cheia de dentes afiados e começou a
devorar a carne e as vísceras de Camiania, com ela ainda viva. A moça gritava,
mas o monstro permanecia a rasgar sua pele e a consumir sua carne.
Os gritos dela eram finos e desesperados. Eu tapei os ouvidos para não
ouvir, mas aquele som permanecia a me atormentar. O som do bicho
mastigando os intestinos...
Aterrorizada, eu percebi a situação.
Dezenas de estudantes estavam ao nosso redor, sem mover um dedo,
contemplando o monstro devorar Camiania viva, cruelmente.
Quando o monstro ficou satisfeito, ele retornou para seu senhor.
No instante em que ele enrolou–se no pescoço de Echnhas, eu levei um
susto, pensando que a criatura fosse atacá–lo. Os estudantes ao redor também
gritaram, achando a mesma coisa. Mas ele apenas repousou lá, com obediência.
Era a primeira vez que eu via... o maligno do meu melhor amigo.
Destruidores evitam mostrar o maligno em público. É algo muito pessoal. E,
no caso de Ech, a situação era muito mais complicada.
Ele absorveu seu maligno com a boca. Abaixou–se e recolheu o próprio
braço decepado, que estava próximo à aluna morta no chão, parcialmente
devorada.
– Eu sinto muito. Ele estava realmente com fome, pois há muito tempo não
o alimento.
– Isso é um gênio...?
Morvia também presenciou a cena. Ela estava chocada.
– É um maligno. Como conseguiu roubar um...?
Mas quando Einaro fitou–o outra vez, compreendeu completamente a
situação.

575
Wanju Duli

– Esse cheiro estranho que emana do seu corpo. É como dizem os livros.
Você não é um construtor. Seu filho da puta...!
Muitos estudantes ao redor gritaram e fugiram. Morvia, Braca e as amigas
foram as primeiras a dar no pé.
Einaro quis se fazer de durão e não correu. Mas deu um passo para trás. Ele
suava frio. Ele queria vingar a amiga, mas não tinha coragem.
A mais corajosa foi a reitora. Ela foi na direção de Echnhas e, sem medo
algum, pronunciou:
– Venha até minha sala. Agora mesmo. Vocês dois deverão acompanhá–lo.
Com o braço na mão, Echnhas obedeceu–a. Os estudantes abriram caminho
quando ele passou.
Tivemos que relatar toda a história, desde o começo. Houve mais discussão
na sala da reitora até sermos liberados.
Einaro levou advertência e Echnhas uma semana de suspensão. Quando já
estávamos fora da sala, houve mais reclamações.
– Estão nos tratando como crianças. Isso não é uma escolinha. Assassinos
devem ir para a cadeia.
– Pensei que você tivesse dito que já matou duas garotas.
– Eu estava brincando.
– Mas a sua amiga tentou nos matar.
– Arrancar um braço está bem longe de arrancar uma vida.
– Eu não pretendia matá–la. Só quis defender minha amiga.
– Mas você se esqueceu que é um Destruidor, otário. Um sopro seu pode
arrancar a pele de uma pessoa.
– Não exagere. Sou um dos mais fracos do meu povo. Por isso fui exilado.
– Se estivesse entre os mais fortes, eu teria morrido junto, só com o peido
do seu maligno.
Era difícil dizer se Einaro estava zangado, frustrado ou com medo. Depois
do discurso, ele resolveu se afastar, antes que dissesse algo que irritasse Echnhas.
Era a primeira vez que eu tinha visto Ech irritado. E eu não queria vê–lo
assim de novo.
– Obrigada por me proteger.
– Você tentou me proteger primeiro. Você sempre me defende. Pelo menos
uma vez eu queria fazer isso por ti.
– Por favor, nunca mais chame seu maligno outra vez.
– Lili... eu sou o meu maligno. Aquele é o meu verdadeiro corpo. Isso que
você vê aqui fora é só uma casca. Minha mente e minha alma estão nele.
Eu me assustei ao ouvir isso. Só de ficar perto de Echnhas eu já sentia medo,
depois do que presenciei. Pensar que ele era na verdade aquele monstro com

576
Fábula dos Gênios

face distorcida e dentes afiados que consumia carne humana crua... me dava
náuseas.
Ele baixou os olhos.
– Você não quer mais ser minha amiga, certo? Vou ficar sozinho de novo...
Senti vontade de abraçá–lo, mas não tive coragem. Não enquanto ele
carregasse aquele braço na mão.
– Sempre vou ser sua amiga, Ech. Prometo.
No final, nem fomos à biblioteca. Até Echnhas se esqueceu o que ia me
mostrar lá.
Ao longo daquela semana, recebi todo tipo de pergunta estranha. Echnhas
sempre havia sido ignorado ou zombado por todos, devido à sua excessiva
gentileza e busca incessante por uma namorada. Subitamente, estavam todos
curiosos a respeito dele e, como não teriam coragem de perguntar diretamente a
ele, perguntavam para mim.
– Então ele come carne humana?
– Esse cara não tem alma? Ou ele está completamente morto?
– Quantos magos ele já assassinou?
Eu não sabia responder a maioria das perguntas, embora eu fosse a melhor
amiga de Ech. Eu não costumava falar desses assuntos com ele.
E as perguntas das meninas eram ainda mais difíceis.
– Ele também morre se uma menina fizer oral nele?
– O cacete dele é gelado como um cadáver, como dizem as lendas?
– Eu não o conheço tão bem assim...
– Ora, mas vocês são tão próximos! Aposto que você já colocou a mão lá
acidentalmente para checar a temperatura.
Felizmente eu me livrei de todas as perguntas uma semana depois, quando
Echnhas retornou. Eu pensava que iriam enchê–lo de questionamentos assim
que ele pisou na sala de aula, mas não foi bem assim.
A galera queria distância. Não paravam de cochichar.
Echnhas sentia–se mais sozinho do que nunca. Antes o pessoal ainda
conversava, para tirar sarro com a cara dele. Isso também acabou.
Ech era desastrado e frequentemente tropeçava nos próprios pés ou na capa
longa. Naquele fim de aula ele tropeçou e quase caiu. Não houve um único riso.
Ele derrubou alguns livros. Ninguém o ajudou a recolher tampouco. Somente
eu.
– Você está bem?
– Não se preocupe.
– Eu ouvi falar que ele já transou, mas nunca beijou...
Uma de nossas colegas sussurrou isso para a amiga. Mas nós dois ouvimos.
Echnhas virou–se para fitá–la. Ela se calou no mesmo instante.

577
Wanju Duli

Quando caminhávamos pelo corredor para ir até a sala da próxima disciplina,


fomos surpreendidos pelo grupinho de Braca e Morvia.
– Sabia que sua popularidade com as mulheres foi para as estrelas, Ech?
– Você está zombando de mim.
– Juro que é verdade! Todas amaram a forma fria com que você matou
aquela vaca. Todas sonhamos em casar com um mago forte, corajoso e com
sede assassina.
– Sinto desapontá–las, mas não sou essa pessoa.
– Ao mesmo tempo, estão todas tremendo de medo. E para termos certeza
de que você não vai nos matar depois de toda a maldade que fizemos a você,
nós arranjamos uma namorada pra ti. Por favor, aceite nosso presente...
Morvia puxou uma garota pelo braço. Ela era pequena e meiga, e era uma
das que mais tremia de medo dele.
Porém, sua aparência era impecável. Os sapatos lustrados, a meia–calça
completamente branca, o vestido e a capa bem passados e o laço amarrado com
perfeição. Seus cabelos negros formavam caracóis que brilhavam. Os olhos
escuros fitavam Echnhas com temor e fascínio.
– Meu nome é Vifim. Por favor, use meu corpo como bem desejar, senhor
Echnhas. Não se preocupe em cuidar para não me machucar. Eu aguentarei a
dor de ser possuída por um Destruidor...
– Espere... o quê? Eu não quero assim.
– Como quer? Tudo será como o senhor desejar.
– Morvia, você a ameaçou.
– Eu apenas dei a ela mil recicles para ser a sua puta particular. A família
dela é pobre, então ela aceitou.
Recicles era a moeda de Narrara. As notas eram cinzentas como papel
reciclado, com textura ricamente trabalhada.
– Eu não quero uma... puta. Quero uma namorada.
– Me desculpe, Morvia, eu não posso fazer isso. Posso aguentar ser tocada
por ele, mas não vou ir ao cinema e tomar sorvete com um Destruidor. Não
gosto de filmes de tortura e não desejo sorvete de carne humana.
E ela saiu. Morvia e Braca caíram na risada. Mas bastou um olhar de Ech
para que elas ficassem quietas e saíssem correndo.
– Não se preocupe. Todos estão muito interessados em você. Assim que
passar o medo, você fará vários novos amigos.
– Duvido...
– Você recuperou seu braço!
Só naquele instante eu havia reparado. Como eu era tonta!
– Meu povo lida com mortes e membros decepados por todos os lados. Já
perdi a conta de quantas vezes meus amigos já arrancaram meus braços e pernas

578
Fábula dos Gênios

em Consmam. Por causa disso, tornei–me particularmente bom em recolocá–los.


É uma magia complicada. Provavelmente uma das únicas na qual sou realmente
bom.
– Bem, aposto que seus novos amigos aqui em Libila não serão assim tão
ruins.
Estávamos recém no primeiro semestre da faculdade. Não tinha começado
bem.
Lembro que senti–me imediatamente atraída pela Universidade de Libila
desde que a visitei pela primeira vez, um ano atrás. Não ficava na capital, Nqui.
A cidade de Libila era uma das mais antigas. Suas construções possuíam um
estilo bastante tradicional. Nossa universidade se parecia muito com um museu.
É verdade que na capital havia mais shows de bandas famosas e era possível
ter uma vida noturna mais emocionante, com muitas opções de lazeres e lugares
para sair. Em compensação, em Libila havia mais bibliotecas com grimórios
raros. E havia alguns bares famosos, frequentados principalmente pelos
universitários.
Em suma, Libila era uma das cidades universitárias de Narrara. Uma cidade
pequena, na qual se viam principalmente pessoas trajando verde; cor do nosso
uniforme. Ou, quem não curtia muitos os uniformes andava por aí com
moletons com o nome da nossa universidade, jeans e tênis.
Eu havia ido para lá para estudar, e não para ir a shows ou fazer turismo.
Era verdade que em alguns momentos eu sentia falta de estar na capital, onde
terminei o colégio. Mas Libila era a melhor opção para o curso que eu queria.
– Como está a sua grade horária?
– Péssima. Me inscrevi em todas as disciplinas de poesia mágica e só agora
estou descobrindo que sou horrível nisso.
– Ah, mas todos querem fazer essas disciplinas no primeiro semestre. Só
com elas você adquire créditos para fazer a mais divertida: duelos de poesia.
Aquela em que uma pessoa inventa um verso e a outra deve bolar o verso
seguinte na hora, que rime. Isso pode gerar uma egrégora poderosa ou uma
quimera. Uma vez vi uma dupla que permaneceu com isso por cinco horas. Foi
sinistro.
– Estamos juntos na próxima aula?
– Sim. “Evocação de Cenários”. Eu realmente odeio essa merda. Prefiro as
aulas de narração em vez de descrição. Eu não me importo se a árvore era
“grande, alta e majestosa”. É só a porra do cenário.
Eu ri. A professora que dava essa disciplina também era muito monótona.
Ela vivia dizendo que era muito fácil evocar os personagens e os pequenos
objetos dos livros. Segundo ela, você só podia saber se um mago livreiro era

579
Wanju Duli

poderoso ou não observando sua capacidade de evocar cenários, para tornar


tudo mais vívido e intenso.
Ora, os magos dos vários países geralmente se especializam somente em
evocar entidades. Dá muito trabalho evocar outros planos inteiros para esse,
fundindo–os perfeitamente ao nosso. A magia dos livreiros era muito lenta. A
começar pelas recitações, que costumavam ser longas. A lentidão era o maior
ponto fraco dos livreiros. Em compensação, se o mago conseguia completar a
magia, poucos eram capazes de derrotá–lo com um mero “feitiço rápido”. Era
preciso pensar bem, porque cada recitação era lacrada por um cadeado, no qual
residia um enigma.
Uma magia sofisticada, somente para especialistas. E era exatamente um
elogio à nobreza de nossa magia que a professora realizava naquela aula...
– Tenho ouvido até mesmo nossos próprios estudantes questionarem a
força de nossa magia. Alguns pensam que coisas como malignos, robôs e
perfumes superam o sistema da imaginação, que é capaz de criar qualquer tipo
de entidade ou mundo, mil vezes mais poderoso que os previamente existentes.
E, como criação inteiramente sua, você tem pleno controle sobre ela. Um
maligno, por exemplo, poderia rebelar–se contra o dono e devorar–lhe...
Muitos lançaram olhares para Echnhas nesse instante. Ele não deu bola.
– Por alguma razão, habitantes de todos os países tendem a superestimar os
Destruidores. Isso porque eles vivem como animais? Bem, então rasteje como
uma minhoca e tente extrair magia disso!
Houve algumas risadas. Dessa vez, Ech não se conteve.
– Com licença, professora. Eu sou um Destruidor e não acho que a magia de
meu povo seja simplista da forma como a senhora a descreve.
Ela possivelmente não sabia disso, pois fitou–o com surpresa. E aquela era a
primeira vez que Echnhas afirmava aquilo em público, confirmando as suspeitas
dos estudantes.
– Se a magia de seu povo já o satisfaz plenamente, o que faz aqui em
Narrara?
Achei rude que a professora perguntasse dessa forma.
– Estou aqui por razões pessoais.
– Ele está aqui porque todas as mulheres Destruidoras cheiram a peixe
morto e ele teve que sair do país para tentar arrumar uma namorada.
O pessoal riu.
– É muita maldade sua dizer isso. Você não sabe nada sobre a vida dele.
– Falou a namoradinha dele, que é incapaz de beijá–lo, para não matá–lo...
– Não somos namorados. Somos amigos.
– Então por que ele não tira os olhos dos seus peitos e espia sua calcinha
quando você sobe a escada?

580
Fábula dos Gênios

Eu perdi a paciência com aquela garota. Embora eu fosse conhecida como a


“doce Lipsei”, naquele momento eu levantei–me e puxei–lhe os cabelos. Nós
duas nos agarramos pelos cabelos e caímos no chão.
– Peruaaaa!! Seu esmalte está descascando e seu xampu é de marca barataaaa!
– Mas o que é isso? Parem de brigar agora mesmo! Vocês são respeitáveis
senhoritas letradas de Narrara. Não se portem como vadias de Bruznia!
Escapamos de uma advertência porque nos largamos rapidamente. Mas
Mixirra, a garota que joguei no chão, fez uma careta para mim depois de sentar–
se de volta em seu lugar e ajeitar os cabelos.
No final da aula, a professora deu um aviso importante:
– Recentemente realizamos uma conferência no Congresso de Libila. E,
após longas horas de debate, decidimos liberar oficialmente as sociedades
secretas universitárias.
Houve muitas aclamações e vivas, mesmo antes de a professora concluir o
seu discurso.
Em nosso mundo, as primeiras sociedades secretas a surgirem foram as de
literatura. Eram as sociedades com mais tradição e excelência.
Aparentemente, alguns anos atrás houve um sério problema de brigas entre
as fraternidades e irmandades de Libila. E houve três casos de mortes
misteriosas no interior de uma das sociedades secretas. Por isso, foram fechados
e proibidos todos os tipos de grupos universitários.
Claro que era ainda mais divertido se reunir em segredo, mas poucos
arriscavam uma expulsão. Provavelmente seria mais seguro morrer do que ser
expulso. Pois uma vez que você se retira da Universidade de Libila, não pode
mais retornar. Essas são as regras. Só nascendo de novo para obter uma nova
vaga. Eles faziam isso para manter a qualidade. Quem reprovava um semestre
também era expulso. As regras eram rígidas.
Eu conversava com Ech sobre isso quando saímos da aula.
– Eu só não fui expulso quando matei a estudante porque expliquei minha
situação para a reitora. Ela está ciente de que fui exilado de Consmam e Desmei,
e não tenho para onde voltar. E ela também sabe que eu e você estamos sob a
proteção da MAL...
– Então eu também nunca serei expulsa?
– Não é bem assim. Se eu arranjar mais encrenca, não terei uma segunda
chance. Afinal de contas, sou apenas um antigo protegido de um ex–membro já
falecido da MAL. Não sou eu mesmo um Mago Acima da Lei, então não posso
sair simplesmente matando todos. Se eu não for punido pela academia, posso
ser penalizado pela lei.
Resolvi mudar de assunto, para animá–lo.

581
Wanju Duli

– Ei, adivinha só. Maninda me avisou que o pessoal vai se reunir no Barcas
hoje à noite. Estão decidindo a parada das sociedades. Muita gente vai.
– Será que os Capistas vão voltar à ativa?
– Eu diria que tudo pode acontecer. Muitos vão trajados nas vestes de gala,
para causar impacto. Parece importante.
O Bar das Capas era um dos bares universitários mais conhecidos da cidade
de Libila. Calouros e veteranos se reuniriam lá para planejar algo grande. Eu não
iria perder.
Os Capistas era uma das antigas sociedades secretas da nossa universidade.
Estavam parados há dez anos, desde bem antes do fechamento das sociedades.
Eu me perguntava onde andavam os líderes e membros dessa e das outras
famosas fraternidades.
Estava tão frio naquela noite que eu soltava uma baforada de fumaça ao
respirar. Coloquei o capuz para caminhar pelas ruas escuras e geladas,
iluminadas por uns poucos lampiões. Eu também levava na mão o meu copo
térmico com o emblema do Barcas, porque eu sabia que todos os participantes
do evento rachariam um barril de chocolate quente para a mesa inteira, embora
sempre houvesse aguardente disponível.
No caminho para o bar, encontrei Einaro, que usava um casaco com capuz,
com o nome da universidade, e um boné com o brasão. Ele também levava seu
copo térmico na mão e parecia entusiasmado.
– Essa noite será longa e épica. Varreremos a madrugada.
– Você acha que os Capistas voltam?
– Há muitas Ordens mais relevantes que os Capistas nos dias de hoje,
caloura. Não confie tanto nas informações dos livros oficiais. Há outros boatos
na internet e principalmente rumores que rolam só aqui dentro. Ah! Benzo! Não
acredito...
Ele apontou para um sujeito de calça de moletom e touca de lã no outro
lado da rua, que também parecia estar se dirigindo ao bar.
– Ele é alumnus de Libila. Antigo líder da “Pena de Rubi”. Parece que o
mestre do “Tinteiro e Cartas” também mostrará a face hoje. Os alumni virão em
peso. Excelente!
Tão excelente que minhas pernas estavam bambas de ansiedade. Sociedades
universitárias costumavam ser muito mais sérias, poderosas e duradouras do que
os clubes que organizávamos no colégio.
Ser membro de uma dessas sociedades era exatamente o tipo de ritual que eu
buscava para ser formalmente iniciada como aluna daquela instituição de
renome, reconhecida não por formar poetas e trovadores, mas sim magníficos
magos literatos, que realizavam grandiosas magias simplesmente lendo e
escrevendo, com toda a força de seus corações.

582
Fábula dos Gênios

– Vou estrangular o bastardo que comeu meu pretzel!


– Eu sou o seu sênior! Posso comer o seu alimento e também o senhor.
– Eu permitirei, somente se o senhor for capaz de recitar os Versos Maiores
dos Ossos Negros, com a fumaça do cachimbo na boca!
Era difícil enxergar o que se passava naquela longa mesa, pois ela estava
quase que inteiramente coberta de fumaça. Quase todos os presentes tinham um
cachimbo ou um charuto na mão.
Tratava–se de um bar aconchegante, com mesas de madeira. O brasão do
Barcas pendia na entrada. Se fosse em Tecraxei, os bares certamente teriam
luzas piscantes em neon, com mesas metálicas, robôs e muitos objetos
eletrônicos.
Não havia professores. Apenas estudantes, a maioria veteranos, e alguns
alumni, como suspeitou Einaro. Portanto, a faixa etária dos presentes beirava os
30 anos. Eu me senti uma criança lá, mas não me deixei intimidar. Afinal, eu
também era uma orgulhosa aluna de Libila.
As vestimentas eram diversificadas. Alguns usavam o uniforme tradicional,
com gravata e capa com capuz. Outros optaram pelas vestes de gala, que eram
numa tonalidade verde jade, com abotoadura prateada nas mangas. E ainda
tinham os moderninhos que detestavam andar com vestes engomadas e usavam
roupas informais.
Mas as regras eram claras: você só podia participar do encontro se vestisse
roupas que o identificassem como um estudante de Libila.
Capuzes, gorros, bonés, um anel com o brasão. Não importava. Precisava
haver algo. Teve um cara que chegou sem nada e precisou voltar.
– Tem uma loja da universidade aqui do lado, seu preguiçoso. Compre uma
pulseira de tecido e volte.
– Assim não sobra grana pro álcool.
– Temos um barril cheio na nossa mesa. Aproveite e compre um copo,
porque já vamos começar.
Não vi Ech por lá. Eu só torcia para que ele não chegasse atrasado. Pela
quantidade de presentes, podia até faltar cadeiras.
Notei que alguns veteranos possuíam uma quantidade enorme de grimórios
presos em correntes no cinto e no interior da capa. Afinal, os grimórios eram
nossa arma. E também a nossa memória e imaginação.
Os magos escritores de improviso, em vez de carregarem um monte de
livros diferentes escritos por eles mesmos, possuíam apenas um livro em branco
com fechadura. Mas nos bolsos da capa havia uma quantidade absurda de penas
e canetas, para que fossem obtidos diferentes efeitos enquanto se escrevesse
determinado verso mágico.

583
Wanju Duli

Em Nqui o pessoal usava uniformes brancos com detalhes em negro na


universidade. Eu sabia, porque já havia estudado num colégio de lá. E as
fraternidades de Nqui e Libila possuíam grande rivalidade.
– Fecharam a fraternidade da Grafia Escura de Nqui. Parece que a vice
avacalhou e revelou trechos do grimório de nascimento da líder.
– Ó, que interessantíssimo! Houve a morte ou haverá?
– Por acaso não.
Os magos livreiros tinham a mania de falar em tom de declamações,
especialmente os veteranos. Como se estivessem bradando as falas de uma peça
de teatro. Achei aquilo hilário no começo. Depois me acostumei. Acho que até
eu falava em tom de declamação vez ou outra. Eu já estava pegando um pouco
do sotaque depois de viver lá por mais de dois anos.
Enquanto a reunião oficial não se iniciava, havia vários grupinhos de
conversas. Até rolou um curto duelo de poesias na outra ponta da mesa.
– Eu sinto fome aqui no Bar das Capas.
– Juro em teu nome, vou te deixar marcas.
– De meu desejo, sede e sofrimento.
– Com minhas facas, bem nesse momento!
Quando a garota finalizou a recitação, a rima gerou três canetas tinteiros no
formato de facas, que ela lançou na direção do rapaz. Ele defendeu–se por
pouco com um pretzel açucarado.
– Por que raios vocês não param de brincar com a minha comida, crianças?
Mas uma das facas pegou no ombro do rapaz. Uma tinta negra começou a
preencher seu braço, até atingir a mão e pingar pelos dedos.
– Que tipo de maldição você me lançou, Arramara?
– O tipo que se lança em imbecis que não possuem o mínimo de eloquência
ou habilidade dialética.
– Em poesia? Para quê?
– Então você é outro desses que pensa como as bestas estéticas? Que
importa mais como falar do que aquilo que se fala?
– Podemos debater isso outra hora? Eu gostaria que você removesse essa
tinta pegajosa do meu braço, sim? Antes que ela se una à minha corrente
sanguínea.
– Pode fazer bem ao seu cérebro.
Reparei que aquela tal Arramara era particularmente bela. Eu já tinha ouvido
falar nela, mas era a primeira vez que eu a via pessoalmente.
Tinha 28 anos e estava no mestrado de Performance Poética. Muitos
pagavam pau para ela porque essa moça era capaz de evocar cenários com muita
perfeição. Aparentemente o hobby dela era moldar os mais variados tipos de

584
Fábula dos Gênios

planos e costurá–los em dimensões por aí, para utilizar em batalha quando fosse
necessário: florestas, mares, vulcões, etc.
Ela tinha pele bronzeada e cabelos castanhos muito longos e lisos, com luzes.
Confesso que ninguém notou quando eu cheguei. Eu não conhecia muita
gente. Einaro conhecia bastante e cumprimentou vários, com entusiasmo. Eu
apenas enchi meu copo térmico com chocolate quente e sentei–me num
cantinho, sentindo–me completamente deslocada no meio de tantos veteranos.
Por outro lado, era poderoso estar naquele lugar, tendo a incrível oportunidade
de presenciar um momento histórico: o retorno das fraternidades à
Universidade de Libila.
O que eles pretendiam fazer? Iam retomar os grupos antigos? Criar novos?
Unir antigas sociedades numa só? Meu coração pulava de ansiedade. Será que eu
seria aceita num desses grupos? O que seria preciso conquistar para tornar–se
um membro?
Tirei uma nota de dez recicles da bolsa e comprei um rolinho de caramelo,
muito popular na cidade. E o tempo todo eu me perguntava onde andava Ech
que não chegava...
Em vez de música, havia um estudante metido a menestrel, recitando
trechos de uma batalha épica, de algum autor famoso de Narrara. Havia trechos
particularmente famosos que vários estudantes recitavam em conjunto. Ao
terminarem, eles ficavam cheios de fervor e emoção; e enchiam mais um copo.
Era inacreditável pensar que ele havia decorado tudo aquilo. Ele já estava
recitando há mais de uma hora...
– Vamos começar logo isso antes que eu fique bêbado demais para falar.
Silêncio!
O pessoal se calou na hora. Até o menestrel. Esse cara parecia ser
importante.
– Minha ideia é simples. E simultaneamente complexa. Proponho reunirmos
as sociedades numa só, chamada Grimório da Valência. Seremos os grimoireare
e as grimoireara. Como nos velhos tempos...
Houve muitas expressões de surpresa e louvores de aclamação. Essa
sociedade tinha existido há quase cem anos. Foi uma das primeiras a serem
criadas na Universidade de Libila. Era muito ambicioso.
– E eu serei o mestre.
Nesse momento o pessoal não concordou.
– O líder deve ser decidido em batalha. Ou em disputa dialética; como
queira. Não bastam boas notas. Você deve provar seu valor. E eu serei a
primeira a desafiá–lo.
– Lá fora. Não quero destruir esse lugar.

585
Wanju Duli

Dezenas de estudantes saíram do Barcas com seus copos na mão para


testemunhar o embate. Aquilo seria divertido.
Confesso que vi pouca coisa. Subitamente, eu mudei de ideia a respeito da
velocidade da batalha dos livreiros.
Eles conseguiam evocar cenários inteiros com uma ou duas palavras, ou
frases curtíssimas. E uma frase era interrompida pela outra. Os dois falavam ao
mesmo tempo e se interrompiam. Honestamente, eu não entendi sequer uma
palavra do que foi dito. Até porque aquela não era minha primeira língua.
Não era somente a palavra que importava e sim o som e a emoção
desencadeada.
Arramara envolveu o local em que assistíamos num enorme globo. Logo,
tudo estava vermelho. O rapaz, Mescondes, mudou o ambiente para verde.
Árvores brotaram do chão, que a mocinha derrubou com uma chuva de pedras.
Todos esses eram trechos e cenários de histórias, que eles conflitavam umas
com as outras, ao recitarem frases ou descrições dos livros.
Mas aquilo durou poucos segundos. Logo, Mescondes estava sangrando no
chão, com sua impecável capa rasgada.
Muitos urros dos alunos aclamaram a nova líder de Grimório da Valência. E
foi nesse instante que Echnhas chegou, de braços dados com uma moça de
cabelos negros nos ombros.
– Cheguei tarde? A reunião já acabou?
– Olha quem chegou! O Destruidor assassino. Você não foi convidado.
– Deixe disso, Ein. O garoto pode vir.
– Essa é sua namorada? Pessoal, o Echnhas finalmente arrumou uma
parceira!
Nossas colegas analisavam a garota dos pés à cabeça. Até senti um pouco de
pena dela, que era fitada com muito ódio por elas.
– Meu nome é Malhana. Sou do segundo semestre.
– Eu proponho que o Destruidor batalhe com a líder. Veremos se o melhor
de nós é páreo para um dos nativos de Desmei.
Mescondes mal havia estancado seu próprio sangue e já queria ver mais
sangue.
– Isso não é necessário.
– Pois eu acho delicioso.
E, sem pedir licença, Arramara lançou um feitiço nele, de um dos seus
grimórios.
De dentro do livro, saíram árvores, pedras, fadas e trovões. Eles dançaram
no ar, numa espécie de tufão, até se arrumarem no cenário lá fora.
O corpo dos Destruidores já está parcialmente morto e pode ser custoso até
que respirem nesse plano de existência. Por isso, provocar uma alteração severa

586
Fábula dos Gênios

nesse plano era um golpe forte para Echnhas. Ele teve que usar o maligno outra
vez, ou seria rapidamente derrubado.
O maligno rapidamente quebrou e devorou o cenário. Arramara ficou
maravilhada. Ela usou uma chave para destrancar um grimório ainda mais
poderoso.
– “Minha fúria não é medida. Ela é sentida. Meu coração não é feito de
matéria, mas de espírito”.
Um coração espectral pingando sangue saltou do grimório, como uma
assombração. O coração do maligno estava pulsando junto com ele. Echnhas
ajoelhou–se no chão, cheio de dor.
– “Não é o bastante? Jamais será suficiente para mim, criatura de caprichos e
vingança, suprema senhora da maquinaria do mundo”.
Eu senti uma sensação horrível. Algo me dizia que o maligno de Echnhas
iria ser partido naquele exato instante. E ele morreria.
Por isso, num ato de desespero, envolvi–me na batalha, de uma forma que
eu jamais poderia prever.
Eu não seria capaz de detê–la com meu poder vindo dos livreiros. Por isso,
utilizei o meu espírito guardião.
Uma dimensão abriu–se no meio do nada, interpondo–se entre o coração
espectral e o maligno de Ech. Dela saiu um robô majestoso, de alguns metros.
Houve muitos gritos. A maioria correu para longe. Era óbvio que qualquer
criatura viva naquele mundo conhecia o robô de Taha Vorta.
– Vorta retornou dos mortos...!!!
– Puta merda! Ele não morreu!!
– Ele irá destruir Libila! Como fez a Alprez!
Ninguém era capaz de se perguntar porque o RP de Vorta havia surgido
exatamente ali, e naquele instante. Eles não pensavam. Apenas sentiam o terror,
e tudo o que queriam era escapar de qualquer maneira.
Mas eu não mandei Tchuu atacar. A presença dele já foi mais do que
suficiente para parar a luta.
– Por favor, não tenham medo! T69 não vai atacá–los!
– Como sabe?
– Ele é meu.
– O quê?!
Era uma longa história.
– Taha deixou–o comigo antes de morrer. Éramos amigos.
– Amiga de Vorta? É verdade! Você é robótica!
De repente, todos ficaram muito interessados em mim. Voltamos para
dentro do Barcas. Eles queriam ouvir a história completa antes de decidir os

587
Wanju Duli

assuntos da sociedade. Afinal, falar do ex Rank 1 da MAL parecia muito mais


interessante do que decidir o futuro da nova sociedade secreta de Libila.
Embora os livreiros fanáticos não concordassem com isso...
– Onde está o orgulho livreiro de vocês? Eu não estou interessado em
robóticos ou Destruidores!
– Você foi colega de Vorta no ensino médio? Mas que história é essa? Ele
era uns trinta anos mais velho que você.
Eu contei a eles sobre a Deusa que me matou. Sobre as viagens de Vorta
pelo mundo, para recuperar sua razão de viver. Também falei da destruição de
Alprez e sobre como a irmã de Echnhas me trouxe de volta à vida.
Todos me escutavam completamente fascinados.
– A história de sua vida é tão fantástica quanto as grandes lendas que lemos
e escrevemos em nossos livros.
– Então você tem sangue de Derradeiro, Ech? Isso é tão lindo!
– OK, OK... isso tudo é comovente. Mas está na hora de construirmos
nossa própria história. Não somente nos maravilharmos com as histórias de
outros. E nós vivemos a nossa vida agora mesmo.
– É por isso que hoje a sociedade secreta Grimório da Valência voltará à
ativa. Eu irei escolher um vice e reunir algumas pessoas de confiança. Em uma
semana estará tudo organizado, pois minha equipe será forte. E somente a partir
desse momento iniciaremos as provas de conquista.
“Provas de conquista” era o termo dos livreiros de Libila para se referir aos
testes de admissão. Mas eu tinha certeza de que os estudantes que fossem
reprovados nesse teste fundariam seus próprios grupos.
– Todos já podem sair. A reunião terminou. Agora será iniciada a reunião de
nossa sociedade, da qual farão parte somente eu, minha nova vice, Paniza, e
mais dois membros. Boa noite, senhores. Obrigada pela presença.
O pessoal saiu, reclamando. Nem mesmo Mescondes foi convidado, sendo
que a ideia original foi dele. Arramara apenas convidou suas três melhores
amigas. E somente as quatro iriam decidir sobre o teste e a admissão de novos
membros.
– Cara... a Arra é uma traidora maldita. Sem mais.
Eu fiquei ansiosa sobre o teste ao longo daquela semana. E Ech teve a
oportunidade de me apresentar melhor sua namorada.
Mas agora que ele tinha companhia, eu não podia simplesmente ficar
conversando com ele a sós por aí. No final, quem ficou sozinha fui eu.
– Somos somente você e eu outra vez, Tchuu...
E eu abracei meu robô. Eu sentia um pouco de Taha nele. Eu também
comecei a me perguntar se um dia ele realmente voltaria.

588
Fábula dos Gênios

– Taha... será que você está em algum lugar do espaço, com os marlaquinos?
Em outro planeta? Como serão as magias daí? Você deve estar mais forte do
que nunca.
Ter um marlaquino como mestre. Aquilo me soava surreal demais. Será que
eles tinham inventado a MAL para reunir discípulos? Somente os mais fortes de
nosso mundo seriam dignos para serem treinados por eles.
Ou talvez ele estivesse apenas morto. Ele se tornou uma dimensão,
completamente inacessível. Seria uma jornada e tanto reunir um grupo de magos
fortes para tentar conhecer a dimensão que formou o corpo astral de Vorta.
Devia haver muitos feitiços e segredos escondidos nela.
Uma semana depois, conforme prometido, a Grimório da Valência começou
a agir. Foram encontrados dezenas de papéis afixados nos quadros de avisos
convidados todos a uma caça ao tesouro.
Elas tinham escondido alguns feitiços fortes em grimórios lacrados, que
foram espalhados pelo campus da universidade. O nosso campus era imenso.
Sorte não contava nessa busca. Era preciso reunir grande poder mágico para
sentir as energias.
Mas isso não era o bastante. Depois de localizar o grimório, era necessário
ter poder para destrancá–lo. E aquele capaz de destrancá–lo ainda deveria
vencer o feitiço trancado no livro, que poderia ser qualquer coisa: um monstro
para matar, uma charada, um quebra–cabeça.
Somente após realizar a trinca de tarefas, o grimório se transformaria num
convite com permissão para realizar a entrevista de admissão. E supostamente
essa entrevista seria muito mais assustadora que todo o resto. Afinal, estávamos
falando de verdadeiros especialistas em magia de retórica e dialética.
Duas semanas se passaram sem que nenhum dos grimórios misteriosos
fossem encontrados. Quanto mais tempo passava sem ninguém achar nada,
mais todos se empolgavam.
E foi exatamente depois de duas semanas que recebemos uma visita
completamente inesperada.
Uma pessoa de capa verde com tiras de couro marrom adentrou nos portões
de nossa universidade, sem nenhuma dificuldade. O escudo mágico dos portões
não pareceu ter nenhum efeito na visita.
Bastou enxergar o vulto de capa verde e marrom para que todos se
retirassem do caminho.
A visita misteriosa adentrou na nossa biblioteca central, sem cerimônia. Eu
lia um livro lá, juntamente com outros estudantes. E, sem pedir licença, levantou
Echnhas pelo colarinho.
– Eu só vim até aqui buscar o meu homem. Vocês já podem retornar aos
seus brinquedos.

589
Wanju Duli

O Destruidor por baixo da capa era uma garota. Por alguma razão, eu
sempre desconfiei que eu presenciaria aquela cena um dia: o momento em que a
ligação de Echnhas voltaria para levá–lo de volta. Mas aquilo não estava sendo
tão romântico quanto na minha imaginação...
– Maquizarda...? Mas... você sempre me odiou. Por que voltou de repente?
– Adivinha, retardado? Em mais dois anos vou morrer se não trepar com
você. Por mais que me desagrade essa situação, eu não quero morrer. Então
você vem comigo. Será rápido. Em alguns minutos já te devolvo e você poderá
fazer o que bem entender do resto de sua vida miserável.
– Você só levará o meu namorado daqui por cima do meu cadáver!
E não é que Echnhas tinha arranjado uma namorada leal e corajosa? Ela
estava encarando a Destruidora sem medo algum. E estava preparada para
morrer por ele.
– O que essa menina está dizendo?
– Ela disse que não vai deixar.
– Então ela deseja morrer? Que assim seja.
E as duas lutaram. Mas não foi uma batalha qualquer.
Malhana, a namorada de Ech, era forte pra caramba. Ela sabia que a luta
seria de vida e morte. Por isso, ela utilizou diretamente a chave do pescoço, para
usar magias de seu grimório de nascimento. Era a primeira vez que eu
presenciava um livreiro lutar com sua própria chave e grimório. Aquilo era
perigosíssimo, pois qualquer deslize poderia ser fatal. Mas também era a magia
mais poderosa que um livreiro seria capaz de utilizar em toda a sua existência.
Malhana transformou as estantes da biblioteca em árvores que agarraram as
pernas, braços e o pescoço de Maquizarda.
A Destruidora foi surpreendida pela magia repentina, mas conseguiu escapar
dos galhos arrebatadores. No entanto, ela não escapou ilesa.
Maquizarda serrou a própria perna, sem pensar duas vezes. Afinal, era isso
ou a vida.
– Putinha, filha de uma cadela...! Vou te matar com dor.
E a Destruidora chamou o gênio maligno. Um monstro com metade do
corpo repleto de ossos e tripas para fora. Ela também devia ter antepassados
Derradeiros.
Ela prendeu Malhana no interior de um selo tridimensional. E seu maligno
soltou uma gosma nojenta de miasma incandescente, que caía por cima do
corpo da livreira, lentamente.
Malhana gritou enquanto seu corpo era derretido, até restarem somente os
ossos.
Echnhas deu um grito, tentando salvá–la, mas era tarde demais. Ele caiu
num choro desesperado. Maquizarda sorriu.

590
Fábula dos Gênios

– Você não poderia trepar com ela, de qualquer forma. Deixa de frescura e
vem logo meter em mim. Eu preciso desse bebê nojento pra continuar viva.
Matando mais. Somente essa vida vale a pena ser vivida.
– Eu prefiro morrer a transar contigo.
Echnhas atacou–a. Os dois malignos se enfrentaram. Mas aquela não foi
uma boa ideia, já que o maligno de Maquizarda tentou trepar com o gênio de
Ech. Ele notou e, com medo, absorveu–a novamente. Não era exatamente
possível lutar contra sua ligação usando o gênio.
Maquizarda deu um leve sorriso.
Ech lançou um selo tridimensional nela. Maquizarda ligou uma série de
círculos herméticos com teias de aranha e quebrou as formas geométricas de
Echnhas facilmente.
– Que tal me mostrar a sua magia inútil com livros? Estou ansiosa para vê–
la...
– “E a traidora foi encarcerada na teia de suas próprias farsas. Lá apodreceu
e morreu a morte mais desonrosa possível a um ser humano”.
Assim que Echnhas citou essa passagem, Maquizarda foi aprisionada em sua
própria teia de miasma. E seu gênio voltou–se contra ela para tentar devorá–la.
Mas em vez de se apavorar, Maquizarda gargalhou com gosto.
– Então é assim que funciona o joguinho de vocês? Excelentíssimo. Acho
que vou pegar um livro emprestado nesses restos de prateleira.
Ela alcançou um deles e rompeu o lacre. Não sabia ler o que havia ali, mas
conseguiu obrigar a magia contida nele a revelar–se.
Aquela era a história sobre um alfaiate. Do livro saiu uma tesoura, linhas e
agulhas. Maquizarda usou a tesoura para cortar a sua teia de miasma e libertar–
se. Assim que o feitiço terminou, a tesoura transformou–se num envelope.
– Que merda é essa?
Aparentemente a Destruidora havia encontrado o convite para ser membro
da nossa sociedade secreta. Foi a primeira a encontrar um dos magníficos
grimórios secretos. Aquilo não foi coincidência. Era evidente que Maquizarda
sentiu a imensa energia emanada do livro e por essa razão escolheu exatamente
aquele.
Ela picotou o convite, sem interesse. Dirigiu–se até onde estava Echnhas e
jogou–o no chão, abaixando as calças dele. Sentou–se em cima dele e
imobilizou–lhe os braços.
Os outros presentes da biblioteca correram rapidinho de lá, pois não
queriam morrer pelas mãos da Destruidora que picotou o poderoso convite da
sociedade secreta como se fosse um papel de assoar o nariz.

591
Wanju Duli

Eu precisava salvar Echnhas. Ele já havia me salvado uma vez. E eu


suspeitava que, depois de obter o que queria, a Destruidora iria livrar–se dele
imediatamente.
Chamei T69. Até mesmo a Destruidora foi capaz de reconhecê–lo. Fitou–
me com espanto.
– Ora, mas se não é a puta de Vorta! Você acha que é capaz de controlar o
robô dele, menininha? De nada vale o espírito sem o cérebro do mestre a
comandá–lo!
Eu sabia disso. Mas eu precisava tentar.
Tchuu foi feito por mim. Ele tinha uma parte do meu coração. Eu seria
capaz de usá–lo!
Porém, eu nem mesmo tive tempo para tentar.
Maquizarda quebrou o braço de Tchuu com um selo tridimensional negro
que me fez sentir um frio na espinha. Esse mesmo selo produziu um corte
profundo no meu braço. Saiu tanto sangue que eu desmaiei.
Quando eu acordei novamente, notei o caos da situação. A biblioteca estava
praticamente destruída. Acho que só apaguei por alguns minutos, mas foi o
bastante para que tudo fosse perdido.
– Tchuu...?
Aliviada, senti que ele havia retornado para a sua dimensão. Eu teria que
consertá–lo mais tarde. Eu seria capaz de consertar apropriadamente um robô
modificado por um mestre da MAL?
Maquizarda não estava mais lá, embora eu ainda sentisse a aura que ela
deixou para trás com sua impressionante presença.
Eu ouvi um choro baixinho e, num susto, corri até lá. Echnhas estava
encolhido num canto da biblioteca, em meio aos escombros. Eu o abracei.
– Você tem sangue de Derradeiro. Não pode trazer a Malhana de volta?
– Não. Meu pai poderia, mas ele não está mais vivo. E o corpo da minha
irmã já está extremamente debilitado por causa das pessoas que ela já reviveu.
Acho que preciso começar a aceitar a morte. Eis o destino de um Destruidor,
não importa para onde ele vá.
– A sua ligação foi embora? Não vai voltar?
– Se ela ousar voltar um dia, juro que irei matá–la.
Eu não tive coragem de perguntar se ela havia obtido o que foi lá buscar.
Pela expressão de desagrado de Ech, é claro que ela tinha conseguido.
– E o pior de tudo, foi que eu senti prazer quando ela fez. Eu não quero
sentir desejo pela assassina da minha namorada.
– Sabia que Taha teve uma história muito semelhante à sua?
– Eu sei. Eu gostaria muito de perguntar a ele como ele conseguiu reunir
forças pra viver. Pois eu nunca fiquei tão furioso ao saber que ainda vou

592
Fábula dos Gênios

continuar vivo daqui a dois anos. Não estou mais marcado para morrer. Isso é
assustador. E, Lipsei...
– Sim?
– Você sabe muito bem que a qualquer momento pode aparecer um inimigo
de Vorta pra te matar. Se eu fosse você, começaria a tentar treinar seu RP em
vez de continuar a usar a magia dos livreiros. Porque, como você já deve ter
notado, eu não sirvo nem para defender a mim mesmo. Nós vivemos num
mundo cheio de guerras e vinganças. Você não pode continuar a ser a “doce
Lipsei” para sempre. Se você mesma não lutar para mudar essa ingenuidade, isso
será arrancado de você um dia.
– Eu não sou ingênua. Eu conheço o mundo.
– Não, você não conhece. Você só foi para três cidades em sua vida:
Blokvkulh, onde você nasceu e viveu até seus 17, num colégio forte e seguro.
Nqui, onde estudou até os 19, em outro colégio muito bom. E Libila, onde está
agora, numa universidade respeitável. Você sempre esteve cercada por riqueza e
segurança. Assustou–se um pouco nas últimas semanas ao presenciar os alunos
brincando de matar. Mas você sabe muito bem que as mortes daqui não são
como as mortes lá de fora. Aqui você tem professores pra te proteger. Lá fora,
há muitas terras onde a lei não toca. Você pode gritar e não será atendida. Vorta
não virá para salvá–la. Entenda isso de uma vez por todas. Não espere mais por
ele. Você só pode contar consigo mesma.
– Você vai embora?
Ele baixou os olhos.
– Ei sei porque Vorta me trouxe aqui. Para te proteger. E eu fiz isso até
agora, ou pelo menos tentei. Mas Lipsei, você só me vê como amigo. Não posso
mais continuar com isso, me desculpe.
– Por favor, não vá!
– Eu serei expulso depois dessa confusão que aconteceu por minha causa.
Pela segurança da universidade, eles não podem mais manter um Destruidor
aqui dentro. E se você continuar perto de mim, também correrá perigo. Você já
corre perigo suficiente por ter o RP de Vorta com você.
O temor de Echnhas se concretizou. E ele foi expulso.
Ele não era louco de ir para Bruznia, já que os estéticos estavam prestes a
declarar guerra contra os Destruidores. Ele estava ficando com falta de opções.
Talvez ele se transferisse para Sinabil ou para alguma ilha.
Pensei em ir com ele. Mas por que eu iria sair da universidade a qual me
esforcei tanto para entrar? Não era fácil passar na prova. E uma vez que eu
saísse de lá, jamais poderia retornar.
Sendo assim, resolvi permanecer em Libila. Sem Echnhas.

593
Wanju Duli

Era estranho estar sem ele, depois de tanto tempo. Aquilo me deixou
bastante deprimida. Mas ele tinha seus próprios problemas para resolver. Ele
provavelmente queria descobrir uma magia que lhe desse poder suficiente para
um dia matar sua ligação.
E eu, o que eu queria? É óbvio que eu não seria capaz de enfrentar o
marlaquino que matou Taha.
Tecraxei, hã? Se eu dedicasse minha vida a uma vingança como essa, talvez
eu a desperdiçasse. Eu não devia ter mesmo chances de entrar para a Ordem
dos Magos Acima da Lei, e muito menos para encontrar um marlaquino.
Como diria Ech, era melhor eu me concentrar em me formar. Somente
depois disso eu poderia pensar em vinganças ou em tentar ser membro das
Ordens mais famosas do mundo. E todos sabiam que as Ordens mais fortes não
eram meras organizações estudantis de colégios ou universidades...
A MAL era a mais poderosa de todas. Depois dela vinha a AIM, a
Associação Internacional de Marlos. E em terceiro lugar vinha a SS: Sociedade
da Soma.
Sim, era extraordinário: a sociedade dos Destruidores de manto marrom
estava no Rank 3. E o mais incrível de tudo: Soma era líder das três sociedades
secretas simultaneamente.
– Parece que a Fagemal Armor anda dando muito trabalho para a Soma. A
líder dessa Ordem já está na AIM. Dizem que é questão de tempo até ela ir para
a MAL.
– Quem?
– Basza Cakza. E isso não é o pior. Parece que os construtores
sobreviventes não são tão poucos assim. Há quem diga que chegam a cinquenta.
Havia muitas ligações entre os sobreviventes e eles já fizeram filhos. E os filhos
deles já estão nascendo com ligações de filhos de outros construtores, acredita?
– Que malditos. Mas nós não temos nada a ver com construtores e
Destruidores. Não me importo mais se eles vivem ou morrem.
– Ah, é? Você nunca ouviu falar na Fagenar Vibri?
– Ela tinha fama na época da ascensão dos construtores.
– Eu sugiro que você pense de novo.
Desde que a Destruidora picotou o convite super secreto da Grimório da
Valência, acho que até os livreiros estavam um pouquinho interessados em
magia com gênios.
– É possível roubar um gênio de alguma dimensão, não é, Lipsei? Ou
roubá–lo de um construtor ou Destruidor, ao derrotá–lo?
– Eu não sei.

594
Fábula dos Gênios

– Destruidores são difíceis de derrotar, mas andam dizendo que os


construtores sobreviventes estão morando todos juntos numa região de uma
cidade de Bruznia.
– É a primeira vez que ouço isso. Que cidade?
– Werrau. Eles vão se aliar aos estéticos na guerra contra os Destruidores. E
os estéticos ficaram tão fortes por causa de um perfume dos alquimistas de lá,
que a maioria afirma que os Destruidores serão definitivamente exterminados
nessa guerra. E os estéticos passarão a ser escritos com letra maiúscula.
– Eles vão lutar por causa de uma letra?
– Não, sua idiota. É para derrubar as florestas para fazer esmalte, ou algo
assim.
– Não sei o que é pior.
– Soma vai liderar o exército dos Destruidores. E sabe quem vai liderar o
exército dos estéticos?
– Quem?
– Madame Mua.

595
Wanju Duli

Fábula da Farsa

Capítulo 1: Ovos de Poder

Meu coração ribombava como trovão. Aquela seria, inexoravelmente, a


última batalha da minha existência. Vencer não era opção. Pela primeira vez, fui
capaz de contemplar essa verdade com clareza.
Eu era Taha Vorta. Mesmo quando eu ainda não era membro da MAL,
nunca enxerguei a morte tão de perto. Mesmo contra um inimigo extraordinário
sempre haveria uma mínima chance de não cair.
A sorte havia acabado. Eu estava diante de um marlaquino. Meu título de
mais forte já não valia nada.
O sorriso de Tecraxei era gigantesco. Estaria pensando se me mataria
devagar ou depressa? Com dor ou sem dor?
Aquilo seria como um jogo para ela. Eu poderia optar por entregar–me sem
luta. Mas é claro que era uma luta que ela queria. E eu também. Qual seria o
significado de ter ficado tão forte se fosse para terminar a minha vida me
rendendo?
No fundo, eu havia me preparado por toda a minha vida exatamente para ter
aquela batalha. Os marlaquinos não iriam aguardar que meu corpo e mente
apodrecessem nas próximas décadas até me desafiar.
Mas... aquilo faria mesmo diferença? Enquanto meu espírito se mantivesse
forte, eu poderia enfrentá–los a qualquer momento. Um mago não enfraquece
se tem 90 ou 100 anos. Pelo contrário; ele se torna mais forte.
Era por isso que os marlaquinos queriam me matar naquele instante. Não
era por receio que eu perdesse minha força nas décadas seguintes e não lhes
desse uma boa luta. Era porque temiam que eu os superasse em poder.
Desgraçados. Eu ainda não podia matá–los. Eu me sentia pequeno. Mas,
acima de tudo, eu tinha medo. Um terror que jamais imaginei sentir.
Eu nunca tinha me sentido daquela forma em nenhuma outra batalha.
Quando lutei contra inimigos muito mais fortes que eu na minha juventude, eu
não temia o suficiente porque não tinha noção da força deles.
Naquela etapa da minha vida, bastava fitar um mago para que eu fosse capaz
de sentir a dimensão de seus poderes. E assim que eu olhei para Tecraxei, meu
corpo inteiro tremeu.

596
Fábula dos Gênios

Era algo incalculável. Eu não possuía sequer um milésimo da força dela.


Não poderia nem arriscar jogar os dados e tentar a sorte.
– Por que me fita com tanto terror, Taha?
Eu não iria permitir que Tecraxei zombasse de mim. Eu cairia morto nos
segundos seguintes. Não era uma escolha. Porém, eu teria o poder de morrer
tremendo ou encarando–a bravamente.
Eu estava sem T69. Mas eu conhecia muitos outros tipos de poderes. Eu iria
surpreender aquela miserável com magias que eu jamais havia utilizado antes em
batalha, pois eram poderosas demais.
Com meu cajado tracei um círculo eletrônico ao meu redor. Tecraxei deu
um riso divertido. Parecia ligeiramente surpresa ao constatar que eu me atreveria
a lutar.
– Vou te dar o que deseja.
– Apenas não me matem, bastardos. Não usem magias muito absurdas.
Ainda estou por perto.
– Encare isso como um teste, madame Soma. Se for capaz de assistir a essa
luta sem morrer, será digna do Rank 1. Pois eu não vou tomar cuidado.
Pela primeira vez, eu teria a incrível oportunidade de batalhar sem segurar a
minha força. Que delícia.
Eu iria fortificar o meu círculo eletrônico de proteção com todas as merdas
de magias mais fodas que eu já havia desenvolvido.
Para me aquecer, não tracei somente um. Foram ao todo 44 círculos de
proteção ao meu redor, fundidos, dos quais soltavam faíscas elétricas e
eletrônicas. 37 deles dançavam ao meu redor no sentido horário. Seis deles no
sentido anti–horário. O último e mais poderoso trocava direções a cada 0,8
segundos.
Eu sempre me achei muito bom em ciências exatas para calcular
corretamente as rotações e variáveis, mas naquele momento eu estava tão
nervoso que devo ter errado alguma coisa. E cada vez que eu sentia que havia
errado, meu coração explodia no peito.
“Você está dando seu melhor. É normal cometer enganos nessa situação,
pois estou prestes a morrer. Então, continue confiante”.
Eu dizia tudo isso para mim mesmo, ciente de que Tecraxei devia estar
lendo tanto meus pensamentos como minhas emoções.
Meu coração era como um livro aberto para ela. Então, se ela queria mesmo
ler o que estava escrito, eu daria a ela um conteúdo que a faria espantar–se pelo
menos algumas vezes antes do fim.
É claro que Tecraxei não usaria círculo de proteção nenhum. Ela assistia
meus esforços de braços cruzados. Até que, subitamente, tirou uma garrafinha

597
Wanju Duli

d’água do cinto. Colocou gotas d’água nas mãos e soprou nelas um ar congelado.
Em poucos segundos, moldou uma nuvem e sentou–se nela.
Sobre a nuvem, pairou poucos metros acima de mim e começou a dançar e
cantar.
Sua dança era tão veloz que acelerou a intensidade do vento. A voz era tão
impetuosa que escureceu o céu e provocou um trovão.
Sua voz era o trovão. Sua dança era o vento. E de sua nuvem surgiu um raio,
que atingiu a mim em cheio. Subiu aos céus e retornou de volta a terra.
Completamente aterrorizado, impedi que o raio me matasse
instantaneamente com a força mágica do meu cajado e dos orbes de luz que me
envolviam.
Alguns segundos depois, o céu voltou a ficar claro. Tecraxei apenas deitou–
se preguiçosamente em sua nuvem.
– Há, há! Eu só tava de zoeira. Nem tô lutando a sério.
– Puta que pariu! Que susto do cacete! Se quer me matar, me mate logo,
Tecraxei! Antes que eu cague nas calças. Isso seria deselegante. Prefiro morrer
com classe.
– Não há classe na morte, Vorta. E nem na vida. Carregue esse cajado de
prata e esses trajes de gala enquanto pode. Finja enquanto lhe apraz.
E lá estava Soma com seu sorriso no rosto. Para ela era divertidíssimo, já
que a treta não era com ela. Por isso, fui até lá e segurei–a pelo manto.
– É melhor calar o bico, madame Soma. Senão te arrasto junto pra minha
cova.
– Minha vida como Destruidora sempre foi uma cova muito maior do que
aquela que vai abraçar o teu corpo.
– Me avisem quando terminarem.
Tecraxei desceu de sua nuvem e deitou–se sob a sombra de uma árvore.
Acendeu um cachimbo com um isqueiro muito estranho de fogo azul. O
cachimbo soltava fumaça de nuvens cor–de–rosa.
Ela devia ter compromissos mais importantes do que matar marlos. Ainda
assim, aguardava nossa briguinha com paciência e devia até achar graça.
Soltei Soma. Dessa vez, segurei Tecraxei pela gola de suas vestes
escandalosas de arlequim.
– Mate–me! Faça logo o que veio fazer!
Ela abriu os olhos. Eu a fitava de muito perto e pude ver sua íris
multicolorida.
Tecraxei segurou nos meus pulsos. Baixou minhas mãos e fez com que eu
tocasse nos seios dela, por cima de sua blusa luminosa. O coração dela batia
num ritmo diferente do meu; calmo e pacífico, como a música das estrelas.

598
Fábula dos Gênios

Ela lia cada uma das minhas emoções e pensamentos. Eu não pude me
conter nesse momento. Aquilo era, de fato, apenas como um jogo pra ela.
Ela sussurrou no meu ouvido:
– Você quer viver ou morrer, Taha Vorta?
– Morrer.
Essa era a resposta esperada de um mago sábio. Quando chega a hora de
morrer, apenas morra. Não lute contra o vento ou será um tolo. Não tente
arrebentar a rocha com a língua. Fale enquanto viva. E cale na morte.
Eu conhecia divinação o bastante para prever que minha morte ocorreria
nos próximos segundos. Meu coração era como uma bomba–relógio. Tecraxei
apenas me fitava com simpatia. O pobre marlo que, mesmo como o mais forte
do mundo, era incapaz de conter suas emoções em seu momento final.
“Ela quer me ver por dentro”.
Num gesto veloz, Tecraxei atravessou o braço no meu peito e puxou meu
coração. Ele batia com intensidade em sua mão, envolto por pedaços metálicos
e faíscas elétricas.
Meu corpo pendeu para frente, por cima dela. Tecraxei beijou meus lábios
ternamente. Agarrou minha cabeça com tamanha força que a arrancou.
Meu corpo tombou para trás, no chão. Minha cabeça em suas mãos, fitando
aqueles olhos intensos e multicoloridos.
Mas Tecraxei não estava mais interessada na minha cabeça ou no meu
coração. Nem mesmo no meu cajado, nas minhas vestes ou em quaisquer tipos
de utensílios cerimoniais. Ela sabia onde residia minha verdadeira força.
Abraçou meu espírito com paixão.
Tecraxei mandou que Soma enterrasse o meu corpo no cemitério da MAL,
que ficava exatamente na floresta sombria da cidade dos deuses. Ela deteria meu
espírito, que seria impedido de mergulhar nas dimensões ou tornar–se uma delas.
Então seria esse o meu destino? O meu prêmio por tornar–me tão forte? Eu
não seria livre e sim um prisioneiro.
Tecraxei subiu numa estrela vermelha e cruzou o universo. Somente nesse
instante que perdi completamente a consciência.

Meus olhos se abriram. Aqueles eram olhos diferentes dos meus. Notar isso
me trouxe muita emoção.
Arrastei–me pela grama macia. O céu não era céu. Tudo era novo. Até que
achei um lago de leite. Contemplei minha face no lago e levei um grande susto.
Eu era uma criança. Mas não uma criança qualquer. Nos meus olhos tinham
muitas cores. Talvez todas as cores embaralhadas.

599
Wanju Duli

A consistência da minha pele era diferente. Eu quase senti medo. Não sabia
como caminhar com aquele corpo. E muito menos como usar magia. Senti–me
completamente desprotegido.
– Bom dia, Taha Vorta. Ou, eu deveria dizer, Viarrusque?
– É esse o meu novo nome? Quem é você? Onde estou?
Muitas perguntas a serem feitas. Por alguma razão, eu compreendia o idioma
estranho que eles falavam e era capaz de reproduzi–lo com exatidão.
Quem se dirigiu a mim foi uma moça muito atraente com um vestido
multicolorido e chapéu de bobo–da–corte.
– Meu nome é Xii. Sou responsável por guardar uma pequena ilha de
Marlaquina. Podemos dizer que sou sua guardiã.
– Você é... uma marlaquina? Isso significa que estamos no planeta dos...?
Era impressionante demais para ser verdade. Eu estava no planeta dos
marlaquinos. Devia haver dezenas ou talvez centenas de caras super poderosos
ao meu redor. Engoli em seco. Aquilo era aterrorizante.
Ela apenas me estendeu um pedaço de papel enrolado. Puxei a fita vermelha
e desdobrei–o, repleto de curiosidade.
Era minha certidão de nascimento. Eu havia nascido há exatamente dez
anos, minha idade atual. Mas por que eu só havia adquirido consciência dez
anos após meu nascimento?
– Levou um bom tempo para que conseguíssemos acordá–lo e devolver–lhe
suas memórias. Você é um marlaquino agora, sabia? Por favor, não se assuste.
Ela riu da minha expressão de choque. Eu estava utilizando uma daquelas
vestes tradicionais de marlaquinos.
– Quanto tempo se passou em Marlaquina? Lipsei está viva? Ela está bem?
Xii tirou um computador portátil da bolsa e checou os dados. Mostrou–me a
foto de uma mulher muito bonita de longos cabelos castanhos.
– Lipsei está com 27 anos agora, fazendo doutorado na Universidade Libila,
em Narrara.
– Uau! Isso é fantástico!
– Ela também é a vice–líder de uma sociedade secreta dessa universidade,
chamada Vaidade e Graça.
– Posso vê–la ao vivo? Eu gostaria muito de falar com ela.
Xii deu um longo suspiro.
– Nós não te devolvemos as suas memórias para que resolva os negócios
pendentes de sua vida anterior, e sim para que se lembre da sua antiga técnica
mágica. A partir de agora, você viverá somente em nosso planeta: Mirimarla.
Então eu realmente estava preso. Era uma grande tortura saber que toda a
galera continuava viva em Marlaquina e eu não podia voltar.

600
Fábula dos Gênios

Pensando bem, que se fodessem todos os outros. Eles não fariam falta. Eu
apenas queria ver Lipsei outra vez. Conversar com ela. Mesmo que ela já tivesse
um namorado ou marido, pelo menos eu ficaria feliz de checar como andavam
as coisas. Ser um amigo para ela. Por alguma razão, eu ainda me interessava pela
vida dela.
Quero dizer... todo marlo daria qualquer coisa para estar no planeta dos
marlaquinos. Entregariam sua vida para ser um deles, como eu era. Eu devia ser
o único cara que, mesmo estando na minha situação, desejava reaver sua antiga
vida.
Os marlaquinos não saíam de Mirimarla. Os nomes de alguns deles
representavam nossos continentes e cidades, mas eles estavam se fodendo pra
esses lugares. Os marlos eram formigas. Não estavam interessados neles.
Somente uma vez por ano um marlaquino ia bater um papo com o Rank 1 da
MAL para checar se o cara tinha ficado forte demais e representava uma ameaça.
Fora isso, não davam a mínima.
Meu prêmio por ter ficado tão forte foi ser arrancado do meu mundo. Eu
não via isso como um prêmio. Preferia ter virado uma dimensão, a qual Lipsei
poderia visitar um dia. Eu daria a ela mais poder mágico. E ficaria feliz ao saber
que eu estava por perto e que ela estava feliz.
Estranho. Por toda a minha vida eu estive interessado nos marlaquinos e no
mistério que eles representavam. De repente, ao conseguir o que eu queria,
aquilo já não significava mais nada pra mim.
Mirimarla era um planeta fantástico, com muita beleza, regido por força
mágica intensa. Confesso: era um lugar incomparavelmente mais bonito do que
Marlaquina. Mas não demorou muito para que eu me entediasse nesse novo
ambiente.
Eu era um privilegiado. Por ter sido Rank 1 da MAL, eu teria acesso aos
melhores colégios e universidades de Mirimarla. Leria os grimórios mais fodas
do universo, teria como mestres os melhores magos do mundo. E, para
completar, eu seria membro das mais poderosas sociedades secretas existentes.
Eu estava satisfeito? Nem perto disso. Simplesmente porque eu não me
importava com nada daquilo.
Desde meu tempo de colégio, eu não estava nem aí para notas e grampos de
gravata. Quando entrei para a MAL, eu mal sabia o que era essa sociedade e
nem estava interessado nela. Para mim, status e merda eram sinônimos. Eu só
me importava com as pessoas que estavam ao meu redor. Contanto que eu
estivesse com amigos importantes, eu não me importava de ter o emprego mais
chato do mundo ou ganhar uma bosta de salário. Minha vida teria sentido
porque eu estaria ao redor daqueles que amo.

601
Wanju Duli

Desde que perdi Lipsei, vaguei pela minha vida como um fantasma. Fama,
glória, dinheiro... nada daquilo tinha sentido. Eu buscava o poder como
distração. Para que eu tivesse um objetivo e só assim não me sentisse tentado a
arrancar minha vida na primeira oportunidade. Porque eu estava sem ela.
Lipsei estava viva. Ela era tudo pra mim. Então por que eu ficaria em
Mirimarla ganhando ainda mais poder do que eu já tinha se Lipsei estava em
Marlaquina?
Xii era minha guardiã. Era como uma mãe que eu tinha em Mirimarla. Ela
me proibiu de ir para Marlaquina e me matriculou num colégio muito forte
daquele planeta, que me mantivesse distraído por tempo suficiente para que eu
não sentisse mais vontade de rever Lipsei outra vez.
“Ensino Fundamental para Garotos de Mirimarla”, ou EFGM, era o melhor
colégio da capital. Era uma instituição masculina. Nossos uniformes eram
longas capas multicoloridas com capuz. Tínhamos aula em período integral.
Os grimórios dos marlaquinos eram simplesmente fantásticos. Eu os
devorava um após o outro, completamente fascinado. Estava me saindo muito
bem nas provas no começo. Após alguns meses, diminuí meu ritmo de estudos.
Comecei a pesquisar nas bibliotecas qual seria a magia mais efetiva para escapar
daquele planeta para sempre e retornar para Marlaquina.
– Por que você quer voltar para aquele planeta de fracos e pobres,
Viarrusque? Eles são uns fracassados.
É óbvio que os marlos eram inferiores a nós em poder mágico. Uma criança
marlaquina já seria capaz de esmagar o Rank 1 da MAL enquanto mastigava um
chocolate. E os marlaquinos também tinham muito mais riqueza, sobretudo pela
força mágica que possuíam. Ainda assim, achei absurdo que, mesmo sendo tão
esclarecidos e inteligentes, ainda zombassem dos habitantes do meu povo de
origem.
– Cale–se, Benirrino. Você nunca esteve em Marlaquina, então não ouse
julgar. Meu planeta é lindo.
– Cheio de ignorantes que fazem guerra por causa de perfumes. Você acha
isso lindo?
– Por aqui também há muitos ignorantes, assim como você, que xinga o que
não conhece.
– Ora, meninos, parem de brigar. Eu divido meu lanche com vocês. Querem
um pedaço?
Laldau nos ofereceu nacos de biscoitos de pão. Eu e Beni aceitamos. Lal era
um cara bacana. Mas eu já estava de saco cheio daquele colégio de riquinhos
metidos.

602
Fábula dos Gênios

O meu colégio em Tecraxei só ficou famoso porque eu estudei lá. Mas na


minha época não estava entre os melhores colégios do país. A maior parte dos
estudantes de lá eram de classe média. Eu não me sentia tão incomodado.
De certa forma, eu odiava o EFGM exatamente porque era um colégio de
ricos. As crianças não estavam lá por serem particularmente inteligentes e sim
porque os pais delas tinham grana. Eu achava os alunos de lá ainda mais
ignorantes e alienados do que normalmente seriam crianças daquela idade.
Eu era um adulto em corpo de criança. Embora eu estivesse estudando uma
magia poderosa e difícil, até mesmo para mim, confesso que me desagradava um
pouco ter que lidar com aqueles pirralhinhos cheios de si. Por isso, eu só queria
sumir de lá o quanto antes. Mesmo o ex–RANK 1 da MAL seria incapaz de
passar diretamente para uma universidade de Mirimarla. Nem eu tinha pode
mágico o bastante para isso.
– Assim que completarmos 11 anos realizaremos a Sagrada Cerimônia dos
Ovos de Poder. Vocês não estão ansiosos?
– É óbvio. Tomara que nasça um monstro de aparência bem aterrorizante
no meu ovo.
Até mesmo eu aguardava com ansiedade esse dia. Eu e meus dois amigos
completávamos onze anos mais ou menos na mesma época. No fim do ano
seríamos levados num bosque dimensional. De acordo com o poder mágico de
nosso espírito, seríamos guiados até certa dimensão e lá encontraríamos um ovo.
Que tipo de criatura nasceria do ovo? A nossa entidade particular. Assim
como os robóticos possuíam robôs e os construtores possuíam gênios, os
marlaquinos recebiam ovos de poder, dos quais um dia nasceria uma poderosa
criatura para ser usada em batalha. Ninguém sabia ao certo que forma ela teria e
qual seria a fonte de seu poder.
– Será que existe alguma forma de eu me encontrar com os marlaquinos
mais poderosos? Sabe, Tecraxei, Consmam, Desmei...
Os dois me fitaram surpresos.
– Você é louco? Só a família real tem permissão de vê–los. Os marlaquinos
mais fortes servem à família real e viajam em estrelas pelo universo, em busca de
outros mundos.
– Você tem sorte por ter visto Tecraxei uma vez. Ela é uma das mais
poderosas.
– E ela é gostosa pra caramba.
Eu sabia de tudo isso. Eu já não tinha certeza se eu queria matá–la ou casar–
me com ela. Acho que a única forma de eu ser capaz de esquecer Lipsei para
sempre seria tomar Tecraxei como minha esposa.
Mas é claro que aquilo não daria certo. O marido de Tecraxei era Exorria,
nome da capital de Tecraxei, onde nasci. Outro cara forte pra caralho.

603
Wanju Duli

Tornar–me forte o bastante para ser capaz de viajar ao lado dos magos mais
poderosos do universo... seria um objetivo que valeria a pena perseguir?
Não. Decidi não fazer o jogo deles. Os marlaquinos queriam que eu me
esquecesse das minhas origens. Eles mantinham os marlos como escravos.
Eram eles que fomentavam nossas guerras, para brincar. Eu não queria me
tornar outro dos caras que vigiavam a MAL, sempre pronto a matar o primeiro
marlo que adquirisse poder demais.
Os marlos não odiavam os marlaquinos. Eles os admiravam, queriam ser
como eles. Aquilo era errado. Devíamos nos unir, ter orgulho de nosso povo e
lutarmos juntos contra essa opressão.
Mesmo eu, estando na pele de um marlaquino agora, não queria esquecer
minhas origens. Eu me orgulhava de quem fui. Eu não queria ter como objetivo
de vida casar–me com uma marlaquina e morar em Mirimarla. Eu iria retornar
para Marlaquina, viver lá e casar–me com alguém do meu povo, mesmo que não
fosse com Lipsei.
Com isso em mente, decidi que iria apenas obter o meu ovo mágico e me
mandar daquele lugar.
Quando chegou o grande dia, havia alunos tanto do colégio feminino como
do masculino na entrada do bosque. Notei que as meninas do colégio irmão do
nosso EFGM eram muito bonitinhas e usavam vestidos coloridos, além dos
mais variados cortes e cores de cabelo. Eu dei um longo suspiro. Eu queria
realmente sair daquele planeta lindo? Sim, porque eu tinha um objetivo maior.
Cobri meu rosto com o capuz, porque notei que algumas das garotas
estavam apontando na minha direção. Eu era meio conhecido em Mirimarla,
porque era extremamente raro um marlo renascer como marlaquino. Essa honra
só era concedida a um Rank 1 da MAL que havia excedido o limite de poder de
um marlo comum.
Por um lado, isso me trazia fama. Por outro, eu era visto como o roceiro de
um planeta inferior. Era irritante ser olhado dessa forma. Era mais nobre ter
sido uma ameba de Mirimarla na outra vida do que ter sido o mago mais forte
de Marlaquina. Afinal, não éramos todos espíritos e iguais? Por que essa
diferença? Isso me frustrava. Não desejei mais estar entre eles, sempre tão
cheios de preconceitos e julgando aqueles que não conheciam.
Finalmente, obtivemos permissão para entrar no bosque. O escudo dos
marlaquinos foi retirado. E quando penetrei em seu interior, era como se
estivesse num lugar completamente diferente.
Eu mal conseguia respirar. O ar era pesado e estranho, como se eu estivesse
no interior da terra ou embaixo d’água. Minha visão também se anuviou. Decidi
não confiar mais em meus sentidos físicos e seguir minha intuição.

604
Fábula dos Gênios

Como eu estava num bosque, decidi procurar por árvores. Busquei tudo
aquilo que possuía um tom verde intenso e que me trazia paz. Caminhei às cegas,
sempre tateando ao redor. Eu sentia uma pressão no peito, como se fosse
desmaiar a qualquer momento.
Fomos alertados para não permanecer por mais que alguns minutos no
interior do bosque, pois aquilo poderia nos sobrecarregar. Éramos crianças.
Nossa mente e nosso corpo não estavam preparados para tamanho poder
mágico.
Eu enxergava apenas borrões. Os odores eram confusos. Meu cérebro não
era capaz de processar todas aquelas informações e dimensões. Por isso, eu
queria fugir dali o quanto antes.
“Vou ficar sem ovo”, eu me dei conta, tristemente. Havia histórias de
algumas crianças que não conseguiam ovos. Elas eram discriminadas e
precisavam buscar sua fonte mágica em outros lugares. Mas como eu já era
discriminado por ter sido um marlo em minha vida anterior, ter um ovo não
importava mais.
Foi então que eu entendi: se um marlo fosse levado para Mirimarla ele
morreria instantaneamente. O espírito dos marlos não era forte o bastante para
suportar aquele ambiente com tamanha carga de dimensões e poder mágico. Por
isso eles mantinham algumas regiões do país fechadas e protegidas; para que
crianças ou marlaquinos mais fracos não entrassem lá por acidente e morressem.
Em Marlaquina eu me achava muito poderoso por ser o cara mais forte do
planeta. Mas assim que eu entrei naquele bosque pude entender o quão fraco eu
era: completamente incapaz de realizar uma tarefa simples para crianças.
Subitamente, eu desisti. Ajoelhei–me. Eu não pertencia àquele lugar. Não era
forte como eles. Eu demorei dez anos apenas para conseguir adquirir
consciência após meu nascimento, já que meu espírito rejeitou fortemente meu
corpo novo, que era tão forte.
Eu não era digno de um ovo. Eu estava sem Lipsei. Encontrava–me num
planeta estranho, sem pessoas que falassem minha língua natal. Era doloroso.
Nem mesmo fora de Tecraxei eu me sentia assim tão solitário.
Eu não via mais as cinco estrelas brilhantes. Eu não via nada...
Senti lágrimas nos olhos pela solidão. Talvez fosse melhor eu morrer
naquele lugar. Desaparecer. Assim, quem sabe meu espírito reencarnasse em
Marlaquina outra vez. Eu perderia minhas memórias, mas talvez eu desejasse
perdê–las, para não sofrer tanto.
E foi em meio ao desespero que minhas mãos sentiram uma forma oval. Eu
abracei–a com todas as forças.
Ela parecia grudada em algum lugar. Puxei. Como eu iria soltar o ovo? Não
adiantava quanta força eu usasse; o ovo permanecia imóvel.

605
Wanju Duli

Eu não estava conseguindo respirar. Precisava soltar o ovo e ir logo embora


do bosque. Por isso, antes de sair, eu abracei o ovo uma última vez. E foi nesse
único gesto, ao sentir as batidas do meu coração, que o ovo se soltou.
Eu o carreguei comigo e corri. Meu coração acelerou quando temi não
conhecer o caminho.
Fui um dos últimos a retornar. Quando avistei a entrada do bosque,
atravessei o portal de imediato e caí de joelhos no chão, respirando rápido.
– Mas que lerdo! Pretendia ficar lá e morrer?
– O ovo estava preso. Ele não se soltava...
– Pelo jeito o seu ovo estava numa árvore, Viar. Tem uma folha em cima
dele.
Fitei meu ovo pela primeira vez. Havia realmente uma folha presa no topo.
O ovo era verde, mas parecia haver algo como uma pálpebra fechada e uma
mancha vermelha logo abaixo.
– O que é esse buraco vermelho no seu ovo? É o cu? O seu bicho caga por
aqui?
– Para mim me parece mais com uma boca...
– Também acho que seja uma boca. Me mostrem os ovos de vocês, estou
curioso!
– O meu estava grudado no teto de uma caverna. Quando puxei, ele caiu no
chão e rachou. Estou desapontado. Será que ele morreu?
O ovo de Benirrino era roxo e estava rachado bem no meio. Tinha umas
manchas verdes no canto, que pareciam musgos. Além disso, tinha dois chifres
de cores diferentes, um deles invertido.
– Eu gostei bastante do meu. Tem asinhas, e elas já se mexem!
O ovo de Laldau era laranja. Uma das asas era azul e a outra era amarela.
Também havia algumas marcas e reentrâncias, que devia ser algo como dois
olhos e uma boca, completamente fechados.
Ao nosso redor, havia muitos alunos felizes, mostrando seus ovinhos uns
aos outros. Mas também havia uns poucos chorando: meninos e meninas que
não tinham conseguido encontrar ovos. Esses jamais teriam outra chance. Só
recebíamos permissão de entrar naquele bosque uma vez na vida. Para ter outra
oportunidade, somente reencarnando como marlaquino. Isso porque aqueles
eram ovos de criaturas raras.
Os professores nos disseram que havia alguns milhões de ovos espalhados
pelo bosque. Mas a população de Mirimarla também era imensa. Se dessem
outra chance para alunos que não encontrassem ovos ou que quebrassem os
seus, poderia não haver ovos suficientes para as outras crianças; sem contar no
risco de morrer se eles permanecessem por tempo demais nos bosques.

606
Fábula dos Gênios

– Normalmente não permitimos que adultos entrem aí. Adultos já possuem


poder mágico suficiente para enxergar o bosque com clareza e obter um bom
ovo. Mas ao sentir o espírito de um adulto, essa força mágica poderia afetar os
demais ovos dormentes, que nasceriam antes do tempo e atacariam o mago.
Eles preferiam manter o elemento surpresa, já que as crianças usariam
somente a força do coração para encontrar um ovo, em vez de procurar pelos
mais bonitos, que dariam maior status ou força mágica. Além do mais, a força
de uma criança não perturbava a atmosfera do bosque, que continuava
dormindo e em paz.
– Olhem para o meu ovo, que lindo! Rosa com estrelas azuis! Vejam que
elegante!
Quem disse isso foi uma garota toda metida do colégio feminino. Ela tinha
obtido um ovo de classe alta e estava exibindo–o para as coleguinhas.
Descobri que meu ovo era de classe média. Bem, eu não entendia nada
sobre classes. Eu fiquei contente por pelo menos ter conseguido um ovo, então
essa besteira de classe não importava pra mim.
O ovo de Benirrino também era de classe média; talvez um ou dois graus
acima do meu. Mas o de Laldau era de uma das classes mais altas possíveis. Foi
o ovo de classe mais alta obtido naquele dia, por isso estavam todos admirados e
queriam vê–lo. Lal mostrava o ovo pra todos, com gentileza e orgulho.
Quem não gostou foi a mocinha de ovo cor–de–rosa. Ela foi logo tirar
satisfações com Laldau.
– Meu nome é Roniza. E meu ovo é muito mais bonito que o seu.
– Seu ovo é bonito mesmo. Parabéns.
– Cala a boca! Te desafio pra uma luta!
Éramos recomendados a deixar o ovo repousar pelas semanas seguintes. Ele
despertaria em breve, mas não devíamos apressar o tempo. Porém, Roniza
forçou seu ovo a acordar imediatamente. Ele abriu dois olhos enormes e atacou
o ovo de Laldau, a mando da mestra.
Eram apenas ovos. A criatura ainda demoraria uns bons meses ou anos para
acordar de dentro deles. Por isso, ainda tinham pouco poder mágico. O ovo
rosa apenas mordeu o ovo laranja de Laldau. O ovo com asinhas finalmente
despertou e começou a gritar. O ovo rosa arrancou–lhe um olho.
– Não!!!!
Laldau agarrou seu ovinho e abraçou–o. Começou a chorar, enquanto seu
ovo dava um gritinho fino, escorrendo sangue.
– Parem agora com essa briga! Roniza, sua professora irá puni–la
adequadamente por essa infração.
Não adiantou muita coisa a bronca leve do professor. O bichinho de Laldau
já tinha ficado caolho. Provavelmente aquilo não seria possível de consertar,

607
Wanju Duli

nem no futuro. Enquanto isso, o ovo de Benirrino estava quebrado e ele se


perguntava se um dia ele sequer abriria os olhos. Eu seria capaz de proteger o
meu?
Preferi não me preocupar com isso. Eu tinha questões mais urgentes para
resolver.
Decidi que roubar uma estrela e viajar até o meu planeta seria a coisa mais
arriscada que eu poderia fazer. Eu não era forte o suficiente para simplesmente
respirar no universo sem máscara nenhuma. Por isso, em vez de roubar uma
estrela, um cometa ou mesmo uma nave espacial, decidi que iria mergulhar
secretamente numa dimensão que daria acesso ao meu mundo.
Passei a madrugada inteira no dormitório do meu colégio fazendo cálculos
complicados. Eu queria saber a localização exata da dimensão que me faria
despertar na universidade de Lipsei. Dessa forma, mesmo que um marlaquino
pudesse ir atrás de mim algumas horas depois, eu teria tido a oportunidade de
falar com ela.
Os outros marlaquinos não estavam interessados em viajar secretamente
para outros planetas. Muito menos para Marlaquina, já que eles eram patriotas e
consideravam sua própria terra como suprema. Por isso, imaginei que as
dimensões que eu buscava estariam desprotegidas e eu teria fácil acesso a elas.
Minha suposição estava correta. Bastou uma magia simples para que essa
perigosa viagem dimensional se completasse. Usei um grimório simples e um
círculo arcano ainda mais descomplicado. Afinal, eu fui Taha Vorta. É claro que
eu era capaz de realizar esse feito.
Eu e meu ovo surgimos numa área verde do campus da universidade. Era
dia. Não fomos vistos. Será que eu estava no tempo certo? Eu esperava que não
tivesse feito uma viagem temporal maluca. Eu só queria viajar no espaço.
Tive dificuldade para respirar. É óbvio: eu era um marlaquino. A
composição atmosférica do meu planeta era diferente. Mas quem sofreu um
impacto ainda mais forte foi meu ovo: sua coloração se alterou. Estava surgindo
manchas marrons ao redor. Eu temi que ele pudesse apodrecer e morrer.
Decidi que permaneceria apenas por poucas horas naquele lugar. Falaria
com Lipsei e depois retornaria para meu mundo. Quando minha criatura mágica
fosse forte o bastante, eu o levaria comigo para vivermos em Marlaquina.
Eu precisava me disfarçar. Escondi o ovo no interior das minhas vestes.
Cobri a cabeça com meu capuz multicor. O ideal era que eu obtivesse um dos
uniformes daquela universidade, mas eu nem sabia quais eram. Era a primeira
vez que eu pisava naquela cidade, embora eu já tivesse ido para Narrara algumas
vezes no passado, especialmente para a capital. Sinabil era uma cidade
universitária e nunca tive nenhum motivo especial para ir lá.

608
Fábula dos Gênios

Bem, agora eu tinha. Fui lá, com a cara e a coragem, com minhas vestes
coloridas procurar por Lipsei. Nenhum deles já havia visto um marlaquino na
vida. Bastava eu dizer que eu era um estrangeiro de uma ilha desconhecida.
Talvez só estranhassem o fato de eu ser uma criança.
De fato, os estudantes ao redor me olhavam de forma estranha por causa
das minhas vestes. Eles usavam capas em um tom verde meio azulado. E agora,
onde eu procuraria por Lipsei?
Perguntei na secretaria pelas estudantes do doutorado. Meu sinabil estava
muito enferrujado e fiz essa pergunta com um sotaque forte da porra. Mas a
moça entendeu. O problema foi que eu não consegui entender a resposta dela.
– Poderia falar mais devagar, por favor?
Procurei em muitos lugares, mas nada de Lipsei. Até que alguém me disse
que o pessoal de sociedades costumava se encontrar em bares. Segui a dica e
resolvi passear pelos arredores.
E foi num lugar chamado “Bar das Capas” que a vi.
Lipsei estava mais linda do que nunca aos 28 anos. Eu me recordava de uma
menininha inocente e ingênua, com rosto de criança. Sempre tímida e retraída.
Ela estava mudada e confesso que a mudança agradou–me enormemente.
Lipsei usava maquiagem. Eu nunca a havia visto de maquiagem antes.
Estava com batom vermelho e esmalte vermelho. E tinha muito mais carne.
Pernas e ombros grossos. Como estava gostosa! E onde estava a timidez dela?
Lipsei discursava para todos, com muita confiança. E aquele sotaque de Narrara
caí–lhe perfeitamente.
Sentei–me numa mesa ali perto e prestei atenção ao que era dito.
– Nós, como Ordem com princípios éticos, não podemos manter os braços
cruzados enquanto uma guerra está prestes a estourar. Se os Destruidores e os
estéticos batalharem, isso pode significar a aniquilação dos dois povos. Eu sou
robótica e a maior parte de vocês são livreiros. Isso não significa que devemos
ignorar esse absurdo que está acontecendo com os outros povos.
– Mas Lipsei, o que você quer que a gente faça?
– Eu já sou bastante ativa em fóruns da internet, posiciono–me sobre o
assunto e participo de movimentos. Eu estou propondo que nossa sociedade se
envolva mais diretamente.
– Eu não acho que essa seja uma boa ideia. Que tal nos preocuparmos
apenas com os problemas de Narrara? E para ser sincero, acho ainda mais
indicado deixar a política para os políticos. Se for para se ocupar desse tipo de
questão, sugiro solicitarmos à reitora que libere a sala que era nossa antiga sede
da sociedade. Isso é mais urgente pra nós do que algo que está acontecendo do
outro lado do mundo.

609
Wanju Duli

– Esperem. Os Destruidores e os estéticos estão prestes a entrar em guerra?


Pelo mesmo motivo de onze anos atrás? Isso é verdade?
Eu me levantei, fui até a mesa deles e me meti na conversa, mesmo ciente de
que aquele era o encontro de uma sociedade secreta. E mesmo a par de que eu
tinha 11 anos e sotaque de gringo. Ou sotaque de alienígena, para ser mais exato.
Eles ficaram bem surpresos com minha intromissão.
– Em que mundo você vive, pirralho? Esses dois povos já entraram em
guerra uma vez, há quatro anos. Mas terminou depressa. Todos estão achando
que da próxima vez eles se matam.
– E quem ganhou da primeira vez?
– Os Destruidores. Mas foi por pouco. Agora saia daqui. Você está
atrapalhando. Estamos falando de coisas sérias. Assuntos de adultos. E você
não foi convidado.
– Espere. Foi a madame Soma quem liderou os Destruidores?
– Exato.
– E os marlaquinos foram a favor disso?
Houve muitas risadas na mesa. Estavam rindo da minha cara. Fiquei
contente ao notar que Lipsei não riu. Ela apenas me fitava intrigada.
– Os marlaquinos estão cagando e andando para os marlos. Você é uma
criança curiosa. Qual é o seu nome?
– Viarrusque.
– Nunca ouvi esse nome antes, e nem esse sotaque. De onde vem?
– De bem longe. Vim até aqui procurando a senhorita Lipsei. Será que
poderíamos conversar?
– Acho que sim. Com licença, pessoal. Volto já.
Lipsei levantou–se. Nos sentamos em outra mesa para uma conversa
reservada, enquanto o resto daquele pessoal nos observava, completamente
atônitos.
– Eu sou um velho amigo seu. E estava com saudades. Queria te ver de
novo.
– Me desculpe, mas acho que não te conheço. Não está me confundindo
com outra pessoa?
– Não. Eu preciso te perguntar... você tem namorado?
– O quê? Isso não é da sua conta.
Não era mesmo. Nunca foi. Ela se sentiu ofendida com minha pergunta. De
repente, percebi que cometi um erro ao voltar lá com 11 anos. Era melhor
esperar mais. Talvez ela me escutasse alguns anos mais tarde.
– Sabe guardar um segredo?
Ela não respondeu. Eu abri a capa e mostrei a ela meu ovo.
– Mas o que é isso? Nunca vi algo assim antes!

610
Fábula dos Gênios

– Uma criatura vai nascer desse ovo, provavelmente daqui uns dois ou três
anos. Eu gostaria que você o protegesse para mim até o dia do meu retorno.
– Mas por que eu?
– Porque só você tem a energia que eu gostaria que esse ovo recebesse. O
lugar do qual venho é perigoso. Meu ovo adquiriu essas manchas marrons assim
que cheguei aqui. Mas eu tenho certeza de que se ele sentir as batidas do seu
coração vai se curar.
– Do meu coração...?
– Faria isso por mim?
Ela demorou a responder.
– Eu corro perigo?
– Você? Duvido muito. Essa criatura vai te proteger.
– Está bem, tomarei conta dela. Mas quando você volta?
– Não sei. Quando eu estiver pronto.
Passei a ela o ovo por baixo da mesa. Ela o escondeu no interior da própria
capa.
– Obrigado. Por favor, fique bem.
E eu saí correndo de lá, pois senti que iria chorar se continuasse a olhar para
ela.
Eu dava a ela todas as minhas coisas. Principalmente o que eu possuía de
mais poderoso. Primeiro meu RP. Depois meu ovo. Minhas duas criaturas
mágicas de poder; as mais fortes que já consegui.
Por que eu fazia isso? Talvez porque considerasse a vida dela mais preciosa
que a minha. Eu não poderia levá–la para Mirimarla comigo. Então minha única
escolha era protegê–la de longe.
Voltei para o local que inicialmente aterrissei naquele mundo. Construí o
círculo arcano e, com alguma tristeza e saudade, retornei para Mirimarla.
Lá estava eu no meu dormitório, com uma dor no coração. Eu queria
envelhecer depressa. Eu queria me tornar muito forte e belo para que Lipsei me
amasse.
Bem, forte eu já era. A partir dali, seria só questão de tempo para que meu
corpo se desenvolvesse mais. E eu não ficaria exatamente de braços cruzados
durante esse período.
No próximo dia meus colegas já estavam batalhando com seus ovinhos. Eles
eram apressados. Os professores mandaram que os deixássemos em repouso,
num local quente e quieto. Eles desobedeciam, pois estavam ansiosos para lutar.
Na verdade era revoltante. Por todos os lados havia ovinhos voadores ou
saltitantes, berrando e cantando. Alguns costuraram chapéus para os ovinhos,
ou roupinhas. Nós só víamos as meninas do colégio feminino em ocasiões de

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Wanju Duli

eventos escolares, mas ouvimos dizer que elas estavam fazendo a festa nos
ovinhos, pintando, dando balões, colares e roupinhas felpudas.
– Elas pensam que os ovos são bonecas. Minha namorada estuda lá e ela deu
um balão de presente para meu ovo. Acredita nisso? Ela nunca me dá presentes,
mas deu um balão para meu ovo!!
– Você já transou com ela?
– O quê? Eu não! Estou usando toda a minha energia ultimamente pra
fortalecer meu ovo. Não quero desperdiçar meu poder tentando levantar meu
pau. Quando as nossas criaturas nascerem, a primeira coisa que vou fazer será
trepar com ela. Nós já combinamos isso. E no futuro nossas duas criaturas iram
trepar também, para que nosso filho tenha um ovo desde o nascimento.
– Não é proibido fazer isso? Todos os ovos não são propriedade do estado?
– Que se foda o estado. Cala a tua boca, Lal! Fica aí todo cheio de si só
porque tem um ovo de classe alta. Isso não é nada. Eu tenho uma na–mo–ra–
da! E você não tem.
Dois anos depois, Lal arranjou uma namorada também e Beni calou a boca.
Ele passou a pegar no meu pé.
– Minha namorada está em Marlaquina.
– Até parece...
Roniza estava adquirindo uma fama enorme nos últimos tempos. Sua
criatura já havia nascido: uma espécie elegante de pássaro cor–de–rosa com
escamas. Sua diversão era destruir ovos de criaturas ainda não nascidas. Estava
estourando uma verdadeira guerra no colégio feminino. E depois diziam que os
marlaquinos eram civilizados...
Eu não aguentava mais estudar lá. Morar naquele país. Decidi que retornaria
definitivamente para Marlaquina.
Realizei outra viagem dimensional. Dessa vez, aterrissei em Tecraxei. Eu
queria matar as saudades de minha terra natal.
A fama do meu antigo colégio estava nas alturas. Vi muitos estudantes com
os nossos uniformes: chapéus cinzentos e bordôs pela cidade. Eu vaguei por lá
por alguns dias, até que fiquei com fome. Eu não tinha mais dinheiro para pagar
hotel ou comida. Se eu acessasse minha fortuna nas minhas antigas contas
bancárias, pensariam que era outra pessoa tentando me roubar. Minha única
escolha era anunciar publicamente que Taha Vorta havia retornado.
Antes disso, resolvi meditar por um ano nas florestas azuis de Samerre. Da
mesma forma que fiz no passado. Entrei numa meditação profunda. Quando eu
me movia pouco precisava de menos comida. As águas dos lagos e as frutas das
árvores seriam o bastante para me sustentar por um período. Depois disso, eu
precisaria de comida cozida.

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Fábula dos Gênios

Como marlaquino, aguentei por muito mais tempo do que imaginei. Por
dois anos mantive uma vida regrada, realizando passeios dimensionais. Até que,
no dia do meu aniversário de quinze anos, despertei completamente. E decidi
dirigir–me até a sede da MAL.
Minha entrada foi um espetáculo. Aterrissei na mesa da torre, com um
chapéu de bobo–da–corte, típico dos marlaquinos, e minhas vestes coloridas e
reluzentes. Carregava um grimório de marlaquinos numa das mãos. Assim que
entrei, deixei–o cair pesadamente na mesa.
Os marlos se espantaram. Deixei os dez membros da MAL completamente
estupefatos e assustados. Aos meus quinze, eu já tinha altura e porte suficiente
para intimidá–los. Dei um sorrisinho.
– Uma boa noite para os senhores. Estou interrompendo a reunião mensal
de vocês?
Eu fiz de propósito, é claro. Já sabia que estariam todos reunidos ali, naquela
ocasião auspiciosa.
Até mesmo Sassa Soma ficou de queixo caído. Pelo jeito ela continuava
como líder absoluta. D’aship em segundo lugar. E fiquei imensamente satisfeito
ao reconhecer também Leassa.
Só não gostei quando vi o Deus pelado. Eu já tinha até me esquecido do
nome dele, mas desagradou–me enormemente vê–lo com a tatuagem da Ordem
na mão.
E lá estava também minha ex que me traiu. Pelo jeito, o velho grupinho não
tinha mudado tanto assim, mesmo depois de quinze anos.
– Acredito que nenhum de vocês me reconheceu, então permitam–me
apresentar–me. Meu nome é Viarrusque. Na minha vida anterior, eu era
conhecido pelo meu nome de batismo de Tecraxei, Taha Vorta. Só vim até aqui
comunicar Soma, que está como responsável por algumas de minhas contas
bancárias, que irei realizar um saque. Queria deixar claro que não é um roubo. E
como nenhum marlaquino liga para dinheiro de marlos, não creio que eu deva
confirmar minha história mais que isso.
Nesse instante, Soma não ficou mais surpresa.
– Muito bem, Vorta. Suas senhas são as mesmas. Divirta–se com seu
dinheiro. Ninguém irá pará–lo.
Soma fez pouco caso do meu retorno. Embora eu tenha deixado algumas de
minhas contas para Lipsei, deixei boa parte delas com Soma, pois eu sabia que
por ela ser uma Destruidora não teria o menor interesse em tocar no meu
dinheiro. E até mesmo naquele instante ela zombava do meu interesse por essas
“questões mundanas sem importância” como querer ter o que comer e um lugar
para dormir, já que ela mesma vivia de grama e carne humana, e dormia ao
relento.

613
Wanju Duli

– Você envelheceu.
Resolvi dizer isso só para ver a reação dela. Ela devia estar com uns 81 anos.
Achei–a muito bem conservada para a idade, mas eu não estava a fim de elogiá–
la. Talvez ela nem considerasse isso como elogio...
– E você está com cara de criança. Se pensa em liderar alguma Ordem, trate
de envelhecer uns trinta anos primeiro. Não pense que esse seu chapéu colorido
impõe algum respeito.
– Woa, Soma! Não pretendia ofendê–la com esse comentário. Acho que
essas rugas te deixam bastante sexy.
– E eu acho que você está morto e não faz mais parte da MAL, então caia
fora imediatamente.
Ela me pegou pela gola e me lançou pela janela; exatamente da mesma
forma que eu fazia com o Deus pelado nos velhos tempos. É claro que ele
adorou ver isso. Acho que era a primeira vez que um marlo se atrevia a fazer
algo assim com um marlaquino.
Mas tudo bem. Era Soma. Ela podia.
E eu pensando que ia aterrorizar todo mundo como marlaquino. Que nada.
Bastou eu revelar minha velha identidade para que todos respirassem aliviados.
Nem tive tempo de dar um alô para Leassa; e eu nem tinha certeza se tinha
coragem de fazer isso.
Felizmente não me machuquei com a queda. Ser um marlaquino tinha suas
vantagens. Eu economizaria em transporte também. Construí outro círculo
arcano para me teleportar até a universidade de Lipsei.
Assim que cheguei lá, havia uma grande confusão. Um enorme ciclope
esverdeado estava destruindo tudo ao redor.
“É, eu acho que meu bichinho já nasceu...”
Não devia ter despertado há muito tempo. Eu provavelmente despertei da
minha meditação naquela época pois inconscientemente senti que era a hora.
Fui procurar por Lipsei imediatamente. Encontrei–a numa praça do campus,
perto do monstro, tentando controlá–lo. Ela me reconheceu quando viu minhas
roupas, embora eu já estivesse mais velho e bem mais alto do que da última vez.
A questão era que, após quatro anos longe do meu ovo, eu já não fazia a
menor ideia de como domá–lo. Ele não me reconheceu. E não obedecia Lipsei
tampouco.
A energia do meu ovo seria sentida de muito longe. Até em outros mundos.
Eu era capaz de esconder minha própria energia, mas aquele bebê monstro só
devia saber destruir tudo.
E quando eu pensei que já estava fodido, dois círculos arcanos surgiram ao
meu redor: eram dois adolescentes de roupas coloridas, que eu já não via há
mais de dois anos. Eles estavam completamente mudados.

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Fábula dos Gênios

Um deles tinha fartos cabelos negros encaracolados e pele morena. Acima


dele havia um monstro roxo com muitos chifres, dentes e garras afiadas.
O outro tinha cabelos negros lisos e era um pouco mais baixo e menos
encorpado. Sua criatura tinha enormes asas de plumas. Um de seus olhos estaca
coberto por um esparadrapo.
Mas havia mais uma coisa em comum entre aqueles dois magos, além do
fato de vestirem trajes típicos de marlaquinos e possuírem monstros
fenomenais: ambos tinham olhos coloridos; tantas cores juntas que mal era
possível distingui–las. Seus olhos brilhavam, assim como os meus.
– Viarrusque, Viarrusque... sempre arranjando problemas para seus amigos.
Nos fazendo vir até esse lixo de planeta porque você deixou o seu bichinho
escondido aqui para destruir tudo. Não que eu me importe, mas...
– É claro que você se importa. Cara, controla a tua fera, sim? É tipo nada a
ver trazer ela pra cá. Se não pará–la, teremos que matá–la. Fomos enviados para
cá pelo governo. Não estamos de brincadeira. Essa criatura é rara. E forte.
Até a voz deles estava diferente. O jeito de falar. Eu não entendia o que eles
faziam lá.
Ninguém sabia quem éramos nós três. Os livreiros nos fitavam como se
fôssemos loucos. Mas acho que até eles perceberam que havia algo de muito
estranho.
Mas foi só quando Laldau traçou um círculo arcano quadrimensional no ar
que eles entenderam. Aquela energia não era daquele mundo.
– Eu não conheço o idioma daqui. Sugiro que peça para esse pessoal usar
escudos mágicos ou sair correndo. Alguns podem morrer por acidente.

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Wanju Duli

Capítulo 2: Morrer por Nada

Talvez eu tivesse cometido um erro ao deixar minha criatura mágica no meu


velho planeta. Mas quem se importa? Eu não poderia me permitir esse pequeno
capricho para tentar me reaproximar de meu primeiro amor? Havia um lance
romântico na parada, então não era como se eu fosse um idiota completo.
– Voltando ao assunto, Viarrusque... você tem ovos no lugar do cérebro?
– Hã? O quê?
Benirrino deu um longo suspiro e tomou fôlego.
– Eu perguntei se você tem OVOS em vez de malditos MIOLOS, seu filho
da puta!!
– Ah, agora eu entendi! Mas por que está me xingando, cara? Por que não
podemos apenas sentar e ter uma conversa razoável?
– Porque o seu monstro está engolindo um prédio.
– Eu não o eduquei para agir assim.
– Aí está, você não o educou. Você é o marlaquino mais idiota que já
conheci.
– Somente porque eu valorizo mais o amor em vez do poder?
– Dava para deixar o papo sobre ética normativa para depois? Nós temos
um mandado do governo para parar aquela coisa. Sua “namorada” não parece
ter nenhuma habilidade para contê–la.
– Lilico, não! Senta!
Pelo menos Lipsei estava tentando resolver a situação. Eu a admirava por
isso. Mas a culpa tinha sido minha em primeiro lugar, deixando uma criatura tão
perigosa assim com ela.
Enquanto eu e Benirrino batíamos boca, Laldau assumiu o cargo a que fora
designado.
– Vocês dois são inúteis.
A magia utilizada por Laldau tinha tantas dimensões que confundia os
sentidos. Os habitantes de Marlaquina não entendiam o que ocorria, tamanha a
complexidade da operação. Já para nós, marlaquinos, traçar aqueles círculos
arcanos quadridimensionais era brincadeira de criança. O conteúdo teorético
contido em nossos grimórios permitia desenvolver as habilidades mentais e
físicas necessárias para um procedimento desse porte.
Laldau foi capaz de paralisar a criatura alterando elementos do nosso mundo.
Meu monstro causava alguma interferência indesejável e esse fator devia ser
corrigido impreterivelmente.

616
Fábula dos Gênios

Outra pessoa de olhos multicoloridos apareceu em meu mundo. Era uma


garota. Havia algo familiar a respeito dela. Eu a conhecia de algum lugar.
Ela já chegou pisando no pé de Laldau. Ele deu um grito de dor e
massageou o próprio pé depois disso.
– Seus porcos lentos. Até uma lesma seria mais eficiente.
Agilmente, a garota ergueu um enorme cajado e rasgou uma dimensão,
enviando meu monstro para lá. Sua própria criatura mágica estava enrolada no
bastão dela.
Eu fiquei chocado.
– O que fez a ele?
– Relaxa, rapazinho. Acabei de salvar a sua vida e a de todos aqui, mesmo
que não mereçam. Seu bicho fedorento está seguro em Mirimarla, respirando
ares muito mais puros que esses.
Era uma moça elegante, usando saia jeans, suspensórios e botas. Sua camisa
cheia de babados tinha símbolos arcanos nas mangas. Os cabelos eram cheios
de cachos perfeitos, presos com duas grandes fitas roxas.
Ela cuspiu no chão.
– Eu amaldiçoo esse mundo cheio de lixo que sequer é digno de meu cuspe.
E você, Benirrino!
– Que tem eu?
– Como assim? Mova esse traseiro e suma da minha frente se não for ajudar
em nada.
– Roniza, por que não larga de ser histérica e rabugenta uma vez na vida?
Roniza deu um chute entre as pernas de Benirrino, que caiu no chão e se
dobrou com dor. Ela deu um sorriso meigo e falou a seguir com uma voz
repleta de doçura.
– Mal posso expressar a minha alegria ao contemplar que a situação atual foi
resolvida com minha humilde ajuda. Sinto que agora devemos partir de volta ao
nosso maravilhoso mundo Marlaquina e deixar as saudades para trás.
Subitamente recordei–me de quem ela era. Roniza era a menina que obteve
um ovo rosa com estrelas azuis, de classe alta, e costumava se gabar disso. Ela
cegou o bichinho de Laldau apenas para demonstrar o seu potencial mágico.
Ela segurou–me pela gola da camisa.
– E você vem com a gente, sem criar problemas. Estamos entendidos?
– Não.
– O que você disse?
– Eu disse que nós não estamos entendidos. Não vou com vocês. Estou
cansado de viver em Mirimarla, esse mundo todo luminoso, cheio de regras e
dimensões excessivas.
– Deixe–me adivinhar. É por causa daquela garota.

617
Wanju Duli

Senti um aperto no coração quando ela apontou para Lipsei. Roniza foi até
ela.
Nesse ponto, todos os estudantes da Universidade Libila que estavam nos
arredores nos fitavam assombrados. Nós não somente tínhamos olhos coloridos
e usávamos mantos estranhos. Nós também nos comunicávamos em idiomas
completamente desconhecidos por eles e usávamos magias que, até então,
ninguém ali imaginava ser possível.
Roniza segurou Lipsei pelo braço e atirou–a no chão. Tocou o cajado no
pescoço dela. Eu senti uma onda de irritação e medo.
– Se ela não existir mais, você não terá razões para permanecer nessa terra
pestilenta cheia de guerras e violência. A presença de um marlaquino por aqui
representa um problema. Não bastará andar de óculos escuros para esconder
seus olhos. Não poderá esconder seu poder quando entrar em batalha. E
mesmo que não queira, sua mera presença nesse lugar será como um ímã para
atrair a guerra até você. Não poderá se esconder nas florestas azuis para sempre.
No começo, os estudantes de Libila deviam estar considerando nossa
presença como positiva, já que o monstro havia sido mandado para longe. Mas
era diferente agora que Lipsei estava sendo ameaçada.
– Roniza, apenas saia. Está atrapalhando. Eu e Laldau assumiremos daqui
em diante e qualquer problema que resultar de nossas ações recairá sobre nós.
Roniza soltou Lipsei e deu de ombros.
– Vocês são amigos dele. Irão favorecê–lo.
– Isso não é da sua conta. Você nem foi chamada para essa missão. Só está
se metendo.
– Se continuar a me tratar assim, miserável, vai ficar sem sexo por uma
semana.
– Você me trata pior! Como se você aguentasse sequer um dia sem trepar.
– Eu comprei uma lingerie bordô com cheiro de vinho e outra verdinha com
cheiro de chiclete de menta. Caso se atrase, vai perder as duas.
Roniza deu uma rodadinha que levantou sua saia e depois sumiu num mar
de estrelas faiscantes.
– Sua namorada tem personalidade forte.
– Ela não é minha namorada! Ela apenas corre atrás de mim, mas eu nunca
quero nada com ela. Ela só me seduziu uma vez. Ou duas, três ou quatro, mas
fora isso me mantenho frio como gelo. Se bem que... a lingerie verde com
cheiro de chiclete é minha favorita. Melhor eu ir.
– Você vai me deixar aqui sozinho para lidar com o pepino?
– Sim. Basta cortar o pepino em rodelas e acrescentar um pouco de vinagre
para a salada.

618
Fábula dos Gênios

Benirrino se mandou também, traçando um selo quadridimensional e


desaparecendo, sob os olhares espantados dos estudantes.
– Viarrusque, hora de voltar para casa. Não me faça repetir duas vezes. Já
brincou demais com seus amiguinhos.
– Você não é a minha mãe!
Abaixei–me, com a intenção de ajudar Lipsei a se levantar. Mas eu demorei
tanto para ajudá–la que ela mesma resolveu se levantar sozinha. Ela não me
olhava com bons olhos.
– Por que me deu aquele ovo? Eu me apeguei muito a ele, somente para que
depois ele se voltasse contra mim. Pretendia me matar?
– Ao contrário. Minha intenção era protegê–la.
– Bem, você falhou. Vejo que sequer é capaz de proteger a si mesmo. Quem
é você? Vem mesmo de outro mundo? O que quer comigo?
Lipsei usava um tom agressivo. Não era mais a doce Lipsei de quem eu me
lembrava. Aquela menina meiga e sensível, sempre gentil com todos ao seu
redor, e que derramava lágrimas por nada. Ela estava assim tão mudada?
Eu não aceitava que Lipsei pudesse sentir raiva. Eu a queria ao meu lado:
um anjo amável e lindo, frágil como vidro, mas com um coração de ouro.
Acho que eu havia apenas fantasiado essas coisas na minha cabeça. Eu não a
conhecia de verdade.
– Laldau, por favor, dê–me um momento para que eu converse com essa
garota. Depois dessa conversa, as coisas serão resolvidas, para o bem ou para o
mal.
Lipsei não entendeu o que eu disse, já que eu falei no idioma de Mirimarla.
– Eu vou tomar uma bebida num bar daqui enquanto isso. Mas não fuja. E
já sabe que está proibido de levá–la para Mirimarla.
Fiz um gesto com a mão, indicando que eu já sabia muito bem daquilo, e
que eu queria conversar logo com ela. Laldau saiu de lá, embora ainda fosse
seguido pelos olhares dos estudantes, alguns temerosos e outros raivosos.
Voltei–me para Lipsei.
– Podemos conversar? Prometo que vou te contar tudo.
– Não quero conversar.
Tive que insistir para que ela aceitasse. Fomos até o Bar das Capas.
Sentamos numa das mesas e, embora conversássemos a sós, éramos
atentamente observados por estudantes nos arredores, que cochichavam. A
fofoca sobre a breve batalha e o monstro já devia estar se espalhando como
fogo na UL.
– Venho de um planeta chamado Mirimarla. Sou um marlaquino.
Os olhos dela se arregalaram.

619
Wanju Duli

– Você é mais forte que os membros da MAL. Vocês manipulam nosso


mundo. São nossos inimigos.
“Droga”. A conversa não estava tomando o rumo que eu desejava. Eu
queria que ela admirasse meu poder e minhas origens, e não que me desprezasse.
– Não escolhi nascer lá e não concordo com as decisões políticas dos
marlaquinos. Você vai me odiar devido ao meu sangue?
Nesse instante a expressão dela se abrandou.
– Não. Desculpe...
– Não estou mentindo quando digo que te dei aquele ovo porque me
importo com você.
Ela riu.
– Por que se importaria comigo? Até os membros da MAL são formigas
diante dos marlaquinos.
– Ficaria surpresa se eu te contasse que alguns marlaquinos se interessam
por esse planeta, e que nem todos nós ambicionamos o poder mágico máximo?
Ela me fitou com desconfiança.
– Não acho que esteja sendo sincero comigo. Caso não esteja mentindo, não
me contou toda a verdade.
Lidar com a jovem adulta Lipsei era muito diferente de conversar com a
Lipsei adolescente. A Lipsei de 32 anos era muito mais perspicaz do que a de 17.
Ela não era mais tão ingênua e sonhadora. Havia endurecido seu coração.
Não confiava mais nas pessoas tão facilmente. Por fim, o mundo a havia
estragado. Arruinado minha bonequinha sorridente...
Senti uma grande dor ao deparar–me com pensamentos tão vergonhosos.
No fundo, eu havia me apaixonado por uma imagem idealizada de Lipsei. Uma
imagem que eu mesmo criei.
Eu queria que Lipsei tivesse 17 anos para sempre. Que continuasse com seu
corpinho infantil, a marca de seus graciosos peitos adolescentes elevando sua
blusinha branca comportada do colégio. Eu poderia apenas imaginar o que havia
embaixo do tecido.
Eu desejava a Lipsei bobinha, sem malícia, que gostava de chocolates e
precisava da minha ajuda. Ela sorriria com seus dentinhos tortos: “Obrigada por
me ajudar, Taha. Você é maravilhoso!”.
Mas nem mesmo nos velhos tempos Lipsei se comportava dessa forma
perfeita que eu desejava.
“Você é desprezível”. Ela disse isso para mim um dia.
Eu não queria ouvir de novo. Por mais que eu tivesse sido Taha Vorta um
dia, o mago mais forte do mundo, que matava e torturava sem piedade, e que
estava acima da lei para fazer o que bem entendesse, eu seria derrubado se
Lipsei me tratasse mal. Eu choraria como um bebê, completamente derrotado.

620
Fábula dos Gênios

Lipsei me deixava sem defesas. Tinha total poder sobre mim. Ela estava
consciente disso? É claro que não. Ela sequer sabia que eu havia sido Taha
Vorta. Que fui um dos poucos a superar o poder permitido aos marlos e que,
por isso, tive que renascer em Mirimarla.
– Eu gostaria de te contar tudo. Mas não posso.
– Então como espera que eu confie em você?
A Lipsei adulta não era mais a garota dos meus sonhos.
Ela não era mais magrinha. Estava cheia de carne. Admito que isso a deixava
muito gostosa, talvez até mais do que quando era adolescente, principalmente
porque até seus seios ficaram maiores. Mas isso também me deixava confuso:
será que eu desejava uma Lipsei sedutora e adulta, ou uma menina meiga e
adolescente?
Eu queria tudo. Eu a queria de todas as formas. Eu desejava consumi–la por
inteiro.
Lipsei usava decote e maquiagem agora. Não era mais uma criança. Mas o
que mais me machucava era sua mudança interna: rigorosa, desconfiada, braba.
Acho que ela se cansou de ser machucada pelo mundo. Percebeu que se
continuasse doce para sempre, seu coração seria quebrado cedo ou tarde.
Por isso, eu desejei conservar seu coração puro no interior do meu robô. O
robô que agora estava com ela.
Eu não queria que ela mudasse. Que ela amadurecesse, crescesse e reagisse a
esse mundo cruel. Bastava que ela confiasse em mim para protegê–la. Ela não
precisava ficar mais forte ou mais dura. Eu faria tudo por ela.
Talvez ela não quisesse mais depender dos outros. Não desejasse ser mais
uma bonequinha frágil, um prêmio bonitinho e cobiçado.
Ela era um ser humano cheio de defeitos. Por que eu não aceitava isso?
Será que eu queria um brinquedo quebrado? Eu precisava de um brinquedo
perfeito.
Quando Lipsei morreu, será que no fundo eu desejei isso? Foi o ápice da
minha existência. Através disso, eu me tornei o mago mais forte do mundo,
vivendo sempre com a memória perfeita e inviolável da pura e doce Lipsei, que
jamais envelheceria, se irritaria comigo ou me decepcionaria.
Ela não me trairia, pois estava morta. Ela não gritaria comigo se eu fizesse
algo que a aborrecesse.
Eu apenas a ansiei como meu manequim. Eu tinha a foto dela para me
masturbar. Eu olhava para seu sorriso e isso me consolava em momentos de dor.
“Como espera que eu confie em você?”
Por que ela falava comigo desse jeito? Eu queria que ela dissesse somente as
coisas que eu queria ouvir.
“Eu estou aqui para você, Taha”.

621
Wanju Duli

“Não se preocupe, tudo vai ficar bem”.


“Eu te amo”.
Era tudo o que eu precisava. Se Lipsei me dissesse essas coisas, eu poderia
sustentá–la, protegê–la, amá–la. Eu lhe daria dinheiro, proteção, amor e tudo
mais que ela pedisse.
– Está tudo bem com você?
Eu me assustei um pouco ao ouvir essas palavras da boca dela. Por um
momento apenas fiquei perdido em pensamentos, olhando para o nada.
– Me desculpe, eu me distraí. Então você estuda nessa universidade? Quais
as suas áreas de interesse?
Ela franziu a testa por eu ter perguntado isso do nada.
– Eu obtive meu diploma recentemente. Agora faço parte de um grupo de
resistência. A guerra entre os Destruidores e os estéticos já começou e não pode
mais ser parada. Estou pensando em me aliar aos estéticos para combater os
Destruidores.
Senti uma sensação muito ruim. Eu tinha um problema muito mais urgente
pela frente: impedir que ela se matasse naquela guerra estúpida.
Eu ri.
– Donzela, você definitivamente não quer se envolver nisso. Sabe quem está
comandando o exército dos Destruidores? Sassa Soma. E Madame Mua lidera o
exército dos estéticos. Ambas são extremamente fortes e talvez não reste
ninguém vivo.
Eu senti que ela queria me matar com aquele olhar.
– Eu tenho duas amigas, magas estéticas, que estão envolvidas nessa guerra.
Não vou fugir como uma covarde enquanto meus amigos batalham bravamente.
E você nem é de nosso mundo! Não tem nada a ver com isso. Parece saber até
demais para um marlaquino.
– As guerras de vocês nos interessam muito. Mas eu pessoalmente não a
encorajo a tomar parte disso. Permaneça em algum lugar seguro.
Ela se ergueu da mesa com um baque. Eu levei um susto com a ferocidade
com que ela me fitou.
– A vida é minha. Não me diga o que devo fazer com ela.
– Se jogar sua vida fora, as pessoas que se importam com você ficarão tristes.
– Eu ficarei ainda mais triste se me impedirem de fazer o que quero, mesmo
que seja um ato estúpido. Todos vamos morrer um dia. Eu queria ao menos
poder morrer defendendo quem amo e os valores que acredito.
– Guerras são idiotas. Suas razões são contraditórias e altamente duvidosas.
– Sim, guerras são idiotas, mas elas acontecem e estão fora de nosso
controle. Nem sempre as coisas podem ser resolvidas de formas pacíficas. Por

622
Fábula dos Gênios

que devo sempre me ajoelhar? Eu acredito no amor, mas somente o amor não é
o bastante para conter a fúria do mundo.
Doía em mim ouvir Lipsei dizendo isso. Ela, que um dia já me disse que não
desejava usar magia para lutar ou matar...
Ela se levantou. Foi embora. Não consegui impedi–la.
– Merda...
Olhei ao redor e vi Laldau bêbado numa mesa, batendo canecas com alguns
estudantes da Universidade Libila. Eles estavam ensinando–o a falar alguns
palavrões na língua local e riam toda vez que Laldau os pronunciava com seu
sotaque carregado, sem entender porra nenhuma do que dizia.
Eu o levantei pelo cangote. Puxei sua capa e arrastei–o para fora.
– Hora de ir.
– Mas eles acabaram de me dizer algo tão engraçado...!
– Você nem consegue entender o que eles dizem, imbecil.
Como Laldau estava bêbado, eu fui capaz de enrolá–lo. Dei uma desculpa
qualquer, dizendo que eu ainda tinha negócios a resolver em Marlaquina e iria
retornar para Mirimarla assim que os concluísse.
Laldau traçou um círculo todo torto e, cambaleando, foi embora. Eu segurei
o meu cajado firmemente nas mãos e saí correndo pela cidade. Eu tinha uma
“pequena” tarefa pela frente: acabar com a porra daquela guerra antes que Lipsei
se envolvesse nela.
Lipsei tinha mencionado que iria batalhar do lado dos estéticos. Então tudo
o que eu precisava fazer era matar os Destruidores.
Voei imediatamente para Consmam. Abri uma dimensão especial e cheguei
lá com a velocidade de um raio. Contemplei a guerra que estourava, com
bastante sangue e ossos voando, círculos arcanos e magias fortes explodindo.
Agora que eu era um marlaquino, até a magia impressionante dos Destruidores
me parecia coisa de caipiras.
Sentei sobre o meu cajado, consultando um grimório acima das nuvens. Eu
não podia simplesmente soltar uma bomba lá embaixo, ou eu acabaria
explodindo os estéticos junto. Antes eu precisava realizar um cálculo para
provocar um dano mágico que atingira somente os Destruidores.
Tecnicamente, eles estavam quase mortos. Isso poderia ser usado ao meu
favor. Era complicado, pois eu precisava matar os gênios malignos, que tinham
devorado suas almas. Consultei certas páginas dos grimórios e realizei alguns
cálculos rápidos. Quinze minutos depois, eu já tinha o algoritmo que me
permitiria aniquilar todos eles.
Tranquilamente, tracei algumas figuras geométricas quadridimensionais no
ar e utilizei energia de outros planos. Lancei tudo lá embaixo e minha magia
explodiu espetacularmente, numa chuva de sangue e vísceras.

623
Wanju Duli

Embora eu já estivesse acostumado a matar, confesso que senti uma grande


adrenalina. Afinal, dessa vez eu não havia apenas destruído uma cidade como da
última vez, mas um país inteiro. Somente os estéticos teriam sobrevivido.
Mas eu havia me esquecido de um pequeno problema. Além dos
Derradeiros, que não estavam participando da guerra, e de Destruidores que
eventualmente vivessem em outros países, eu não seria capaz de matar a líder do
exército com aquela energia.
Ou melhor, por um instante pensei que eu poderia. Até que Sassa Soma em
pessoa surgiu na minha frente, com uma ira tão grande, mas tão grande, que eu
queria simplesmente sumir do universo, para um lugar que ela não fosse capaz
de me encontrar nem com o cálculo mais exato.
Ela estava ali, acima das nuvens, me olhando com uma expressão de
desgosto.
– Você acabou de enviar todos os Destruidores e seus gênios malignos para
a puta que pariu. Partiu meu maligno em dois e decepou o meu braço. Gostou
da brincadeira, Vorta? Está se divertindo?
– Foi mal, Soma. Não pensei que fosse ficar zangada.
Eu não senti mais meu nariz. Não senti mais meu rosto inteiro. Com o soco
que ela me deu, perdi vários dentes e a magia dela fez o meu nariz voar junto.
– Não se preocupe, não estou zangada. No dia que você me deixar zangada,
não terá mais olhos para ver depois disso.
– Adianta se eu pedir desculpas?
Eu tive que respirar com magia para prosseguir a conversa, já que meu nariz
devia ter caído lá embaixo e seria difícil encontrá–lo tão cedo.
– Se quiser, tente se desculpar com seu superior em Mirimarla. Ele não vai
gostar nada de saber que você interferiu na nossa guerra sem a autorização dele.
Eu tinha me esquecido desse detalhe. Eu estava me esquecendo de muitas
coisas.
– Você não está mais acima da lei, Vorta. Pode até ter mais poder
atualmente do que quando era Taha Vorta, mas não tem mais autoridade.
Soma foi embora. Ela provavelmente iria se reunir aos Derradeiros. Porém,
eu havia me esquecido de mais um detalhe: embora os estéticos tivessem
vencido, eles não obteriam seu prêmio, já que eu havia explodido as florestas
junto, e eles não seriam mais capazes de obter o precioso ingrediente para os
perfumes.
Retornei para Narrara ainda meio perturbado. As notícias voavam, pois
assim que cheguei em Libila todos os estudantes da UL já estavam sabendo do
desfecho da guerra. Lipsei também estava lá acompanhando as notícias. Resolvi
falar com ela.
– Viu só, não precisa mais ir para a guerra! Não está feliz?

624
Fábula dos Gênios

Lipsei fitou–me com desdém.


– Não me diga que você fez isso?
– Eu fiz. Matei todos os Destruidores por você. Para que a guerra cessasse e
você não mais precisasse ser parte dela.
Ela ficou chocada.
– Seu imbecil egoísta! Eu nunca pedi para que fizesse isso! Antes, preferia
que tivesse me matado.
– Não entendo. Eu acho que você é muito mal agradecida. Salvei sua vida e
a de suas amigas. Você está com tanta vontade assim de morrer?
– Você não entende nada! Não se meta mais, marlaquino!
Ela estava gritando comigo, me xingando. Por quê? O que poderia deixá–la
satisfeita? Eu estava confuso.
Não consegui responder. Dessa vez eu fui embora. Fiquei zangado também.
Eu precisava reencontrar Soma o quanto antes. Ela já estava em Desmei.
Era tão rápida quanto eu.
– Soma, Soma! Preciso de um favor!
Ela me fitou incrédula. Aliás, só me deu um meio olhar, já que era o máximo
que eu merecia. Revirou os olhos.
– Você acabou de assassinar quase todo meu povo. Só irei te fazer um favor
se requisitar que eu te mate.
– Pois é exatamente isso que eu vim pedir.
– Ignorem–no, garotas. Finjam que não o enxergam. É só um palhaço.
Vamos retomar nossos afazeres. Eu acho que você poderá reviver Pissarros
com 27%.
Eu tentei dizer outras coisas, mas Soma continuava me ignorando. Ela e as
amigas Derradeiras deviam ter todas mais de 80 anos, mas ainda assim elas se
referiam umas às outras como “garotas”. Era algo muito meigo da parte de
Soma, mas eu estava ansioso demais para reparar nesses detalhes.
Soma tinha pressa. Ela e os outros Derradeiros levavam alguns corpos de
Destruidores para Desmei, para tentar trazê–los de volta a vida. Besteira isso, já
que eu havia dado cabo dos malignos.
– Soma, por acaso você ainda guarda meu cadáver?
– É claro. Está enfeitando minha sala envolto em formol, no interior de uma
redoma de ouro e diamante.
– Você nem mesmo tem uma sala ou uma casa, você dorme ao relento! Por
favor, me mate e devolva–me para meu antigo corpo.
– Você quer que eu te dê um prêmio depois do que acabou de fazer? Enjoou
de sua vida de luxo como marlaquino?
– Apenas me faça esse favor. Eu te darei qualquer coisa em troca. Eu
prometo. Cumprirei minha palavra.

625
Wanju Duli

Ela me fitou firmemente pela primeira vez.


– Irei atender ao seu desejo, somente se me permitir torturar o seu corpo
atual por 24 horas seguidas, de todas as formas que eu desejar. Irei matá–lo
somente depois disso e em seguida um dos Derradeiros irá restaurá–lo ao seu
antigo corpo.
– Oh, muito obrigado! Serei eternamente grato.
– Eu não preciso da sua gratidão. Somente da sua dor.
– Você hein, Soma, sempre cheia de frases legais como essa...
– Acho que vou começar costurando sua boca para que se cale. Miliwana,
traga–me linha e agulha.
Eu respirei fundo. Mesmo se eu tentasse usar uma magia para diminuir a dor
que eu sentia, Soma não ia permitir. Ela iria se assegurar que eu sentisse cada
agulhada.
Ela enfiou a agulha na minha pele, embaixo da boca. Na terceira agulhada,
tive um leve desmaio e pendi para frente, babando.
– Está acostumado a torturar, mas não a ser torturado. Pobre tolo! Não vai
aguentar sequer uma hora.
Mantive Lipsei em minha mente. Imaginei o seu sorriso quando me visse no
meu antigo corpo, como Taha Vorta. Ela não precisava saber que fui o
marlaquino que fez todas aquelas coisas estúpidas.
Minha boca estava repleta de sangue, que pingava pelo meu queixo. Ela
havia costurado meus lábios com precisão. Eu não poderia pronunciar mais uma
única palavra.
Em seguida, ela ocupou–se do meu nariz. Tive tanto trabalho para recolocá–
lo no lugar e ela simplesmente iria destroçá–lo outra vez...
Mas nessa ocasião ela fez questão de cortá–lo lentamente, pedaço por
pedaço, para que eu sofresse mais. A seguir, ocupou–se de minhas orelhas. Eu
apenas grunhia em desespero. Eu seria capaz de aguentar mais que isso.
No começo eu tentei usar um pouco de magia para amenizar minha dor.
Mas logo eu não tinha mais forças para isso.
Soma pretendia me esfolar vivo. Tirava cada pedaço da minha pele com uma
faca. Parecia ser muito habilidosa em fazer isso. Ela também fez um belo
serviço nas minhas unhas. Nem a mais habilidosa manicure teria sido capaz de
tingir minhas unhas com um vermelho tão vívido – embora no final do
processo eu não tivesse mais unhas para serem coloridas com o vermelho do
meu sangue.
Senti vontade de desafiá–la.
“Está muito leve, Soma. Você pode fazer muito mais que isso”.
Ela recebeu minha mensagem mental. Por isso, ela ocupou–se de abrir
minha barriga com uma faca e arrancar meus órgãos. Ela usaria magia para que

626
Fábula dos Gênios

eu permanecesse vivo durante o processo. Também havia uma Derradeira


animada logo ao lado ansiosa para brincar com meu pau e com minhas bolas.
Cinco horas depois, quando minha magia já falhava completamente, eu
estava no meu limite. Nem sei como aguentei tanto tempo.
“Parabéns, Soma, foi muito bonito. Mas agora pare”.
– Nós temos um trato. Este é apenas o aquecimento. Nem comecei a me
divertir ainda.
Ela usou magia forte para derrubar todas as minhas defesas e aumentar a
intensidade da minha dor. Eu estava tão sensível a dor que apenas um dedo que
encostava em minha pele já me fazia tremer, como se fosse uma agulha
penetrando em carne viva.
“Soma, me mate! Eu te suplico!”
Ela ignorou os meus pedidos. Meus olhos ainda estavam intactos e deles
rolavam lágrimas. Meu coração disparava como fogo.
Para mim, era como se fossem muitos dias de tortura. Eu senti um imenso
desespero quando ela me informou, com muita calma, que apenas sete horas
tinham se passado.
Ela chamou outros Derradeiros, informando que havia sido eu o assassino
dos Destruidores. Os Derradeiros sabiam muito sobre ressurreição e
conheceriam métodos cruéis de me torturar a ponto de me deixar à beira da
morte, mas sem arrancar a minha vida.
Minha memória falhou, tamanha a dor que eu senti nas horas seguintes. Eu
não sei tudo o que fizeram, pois muitos de meus sentidos já não funcionavam.
No final, contemplei o meu corpo, como se flutuasse acima dele. Todos os
meus membros estavam separados. Um dos meus pés estava num buraco, sem
dedos. Um dos meus braços estava sem pele e sem carne. Havia muitos buracos
no meu cérebro. Vi vermes vivos no meu estômago.
Eu era minha alma? Eu não sei o que flutuava, mas eu fui laçado. Eu entendi
o que ia acontecer: a tortura física não era, nem de longe, a pior parte. Eles iam
torturar a minha alma.
A minha mente vagava perdida, enquanto eu sentia uma dor que superava
tudo o que já senti. Eu perdi a lembrança de Lipsei por um momento e já não
sabia pelo que eu lutava.
Meu amor por ela era tão grande a ponto de eu aceitar ser torturado daquela
forma para que ela voltasse a me amar? Não. Meu egoísmo, minha vontade de
possuí–la; aqueles eram os verdadeiros motivos da minha teimosia, do meu
sacrifício.
Até que eu despertei.
Eu sentia–me tonto. As memórias voltavam pouco a pouco. Confuso,
sentei–me e coloquei a mão sobre a testa. Fitei a minha mão e o meu corpo.

627
Wanju Duli

Eu era Taha Vorta outra vez. Finalmente.


Meu corpo estava surpreendentemente bem conservado, mesmo depois de
quinze anos. Subitamente, recordei–me do dia do despertar de Lipsei: o corpo
dela também estava perfeito. Os Destruidores tinham esse poder.
Eu era novamente o Vorta de cinquenta e poucos anos, que tantos temeram
no passado. Eu estava nu, rodeado por alguns Derradeiros que me observavam.
Soma também estava lá.
– Onde está meu uniforme?
– De nada, Vorta. Foi um prazer ajudar.
– Ao menos me dê um desses trapos de vocês para usar. Vejo que terei que
ir até o meu antigo colégio comprar um uniforme novo que me sirva.
– Você não é digno de usar o manto de um Derradeiro. Não ouse chamar as
nossas vestes nobres de trapos, ou te obrigarei a passar por outra sessão de
tortura antes de te reviver outra vez.
Eu levantei–me. Caminhei até onde Soma estava e fitei–a firmemente. Ela
não se intimidou.
– Muito obrigado pela ajuda, madame Soma. Poderia, por gentileza,
conceder–me a honra de utilizar um de seus nobres mantos fedorentos?
– Vá à merda.
Eu desisti. Comprar briga com Soma era a pior ideia que alguém em sã
consciência poderia ter. Ela tampouco me permitiria retomar meu antigo cargo
na MAL. Eu mesmo iria reconquistá–lo, já que eu ainda mantinha minhas
lembranças como marlaquino. Eu não teria tanto poder como um marlaquino
com esse corpo, mas ainda possuiria o conhecimento. Eu seria mais forte que o
Vorta antigo.
Usei magia marlaquina para abrir uma dimensão e teleportar–me para
Tecraxei. Cheguei lá em trajes marlaquinos e, após fazer um saque no banco, fui
até a loja de uniformes do meu antigo colégio e adquiri trajes novos.
Eu poderia muito bem ter roubado as roupas, mas eu não estava com pressa.
Além do mais, como eu ainda não havia retornado oficialmente para a MAL,
ainda tinha que seguir a lei local.
– Você se parece incrivelmente com Taha Vorta.
– Ah, já me disseram isso uma vez.
– Está comprando esse uniforme para seu filho?
– Isso mesmo, meu filho começará a estudar aqui no ano que vem...
– É uma grande honra matricular–se nessa escola, embora ela esteja
perdendo um pouco da fama desde a morte de Vorta. Há quem diga que ele era
apenas um grande idiota obcecado com fama, dinheiro e poder, mas quem se
importa?

628
Fábula dos Gênios

Senti a raiva subindo. Decidi não conversar mais com o dono da loja de
uniformes antes que eu o matasse sem querer.
Saí de lá com uma sacolinha em mãos. Agora era hora de vestir meu
uniforme e rever minha amada Lipsei. Ela certamente pularia para meus braços
assim que contemplasse minha imponente figura.
Fui até o banheiro de um shopping para trocar de roupa. Tomei um banho
para tirar a terra do corpo, fiz a barba e penteei os cabelos antes de colocar meu
chapéu. Enquanto eu escovava os dentes, já completamente vestido, um cara
entrou no banheiro e deu um grito.
– É Vorta! Taha Vorta!! Escovando os dentes no banheiro do shopping!!!
E ele saiu de lá na mesma hora, morrendo de medo, enquanto eu fazia um
bochecho com antisséptico bucal. Passei um pouco de perfume e depois disso
senti–me pronto para rever minha querida Lipsei. Com um perfume tão
cheiroso, eu duvidava que ela notasse que eu era apenas um cadáver duas horas
atrás. Fitei–me no espelho, bastante satisfeito com o resultado.
– Eu sou mesmo um gato arrasador!
Caminhei pelo shopping calmamente, olhando as vitrines. Eu costumava
frequentar aquele local quando era adolescente, então resolvi conferir como
andavam as coisas. Fiquei indignado quando notei que tiraram minha máquina
favorita de balas.
Resolvi ir embora de lá logo para não chamar atenção demais para minha
maravilhosa figura. Algumas pessoas me apontavam e tiravam fotos. Oh, como
era difícil ser uma estrela... mas eu não seria por muito tempo se não recuperasse
meu antigo cargo na MAL. Portanto, decidi que era melhor resolver isso antes
de rever Lipsei.
Visitei a torre da ilha, sede da MAL, vazia naquele momento. Sentei–me
numa das cadeiras e tamborilei na mesa.
Tomado de surpresa, vi minha ex–mulher entrando pela porta. Para começo
de conversa, era algo raro algum mago da MAL entrar comportadamente pela
porta, já que a maioria preferia a janela, para não ter que subir o imenso lance de
escadas. Mas minha ex–mulher vivia fazendo dietas para emagrecer, então devia
ser por esse motivo que escolheu a escada.
– Caliderina.
– Taha...!
Ela ajoelhou–se diante de mim, apoiou a cabeça no meu colo e derramou
lágrimas. Eu sabia que ela era casada com o patife do mago pelado, mas que
importava? Mesmo que ela tivesse me traído e que nosso casamento tivesse sido
uma imensa merda do início ao fim, mesmo que ela tivesse matado Lipsei,
minha ex–namorada e torturado pessoas importantes para mim... não é que eu
ainda derramei lágrimas pela desgraçada?

629
Wanju Duli

E ficamos lá os dois derramando lágrimas de saudade, por nada. Por aquela


merda de união, por aquela merda de amor, que sempre foi uma grande farsa.
Mas mesmo assim, fomos capazes de viver aquela mentira por tantos anos, a
ponto de torná–la real.
– Que está fazendo aqui, meu cachorrão? Como pode reviver sem me
consultar...?
– Estou amando de novo, minha cadelinha. Veja só, agora teus cabelos estão
mais brancos que os meus, mas é como se nosso velho amor ainda fosse uma
paixão boba e alegre de adolescentes.
Ela sorriu docemente.
– Veio tentar vaga pra MAL de novo, não é, patife?
– Quem é o Rank 10 atualmente?
– Sou eu. Basta me derrotar e terá a sua preciosa vaga.
A cabeça de Caliderina permaneceu descansando no meu colo, com suas
lágrimas. Porém, o resto do corpo dela tombou para trás, com seu belo vestido
azul escuro com bolinhas brancas.
Ergui nas mãos a sua cabeça decepada, segurando–a pelos seus belíssimos
cabelos brancos meio amarelados.
– Adeus, Cali. Estou finalmente vingado. Obrigado pela vaga, vadia. Pela
primeira vez, você serviu para alguma coisa, minha linda velhinha, flor da minha
primavera, esperança do inverno da minha vida.
Uma semana depois, ocasião da reunião mensal da MAL, entrei pela janela
da torre. Alguns já comentavam, ligeiramente perturbados, sobre a ausência de
Caliderina.
– Ela deve estar se enroscando com o deus pelado. Daqui a pouco os dois
chegam.
Porém, quando Segrene me viu chegar pela janela, ele não poderia ter ficado
mais espantado. Todos na mesa ficaram de queixo caído.
Segrene tentou disfarçar seu espanto.
– Recuperou seu antigo corpo, Vorta? Felicitações. Parece que mesmo como
marlaquino não aguentou de inveja das nossas maravilhosas reuniões. Pena que
não tenha autorização para participar delas novamente. Nós, atuais membros,
estamos muito mais fortes do que quando você deixou esse lugar.
Segrene estava sendo sarcástico. Todos odiavam as reuniões da MAL e só
participavam delas porque eram obrigados. A maioria dos magos mais fortes
invejavam uns aos outros e ansiavam ver as cabeças de todos daquela mesa
numa estaca.
Por isso, agraciei–os jogando a cabeça de Caliderina na mesa.
– Parece que acabei de conquistar o Rank 10. Assim que eu colocar a cabeça
de Soma nessa mesa irei recuperar o Rank 1.

630
Fábula dos Gênios

Notei que D’aship estava presente, jogando um joguinho eletrônico. Ela


nem levantou os olhos quando cheguei.
Poucos segundos depois, o deus pelado entrou pela janela. Ele fitou a mim e
a cabeça de sua esposa.
– Saudações, Mioae, Deus da Mentira. Perdeu seu brinquedo sexual?
Ele sorriu para mim.
– Você perdeu a sua perna, senhor Vorta?
Mioae, com o mesmo sorriso tranquilo no rosto, levantou o braço direito.
Ele carregava uma perna com um sapato preto lustroso e meia branca. A perna
tinha o osso pra fora e a meia aos poucos se tingia de vermelho sangue.
Fitei a minha própria perna direita. Em seu lugar, havia apenas um resto de
calça rasgado e um toco de osso.
Eu sorri. Logo, comecei a rir. Mioae me acompanhou. Logo, estávamos
ambos gargalhando.
D’aship levantou os olhos pela primeira vez. Fitou a mim e a Mioae,
balançou a cabeça em desaprovação e voltou a atenção para seu joguinho.
No segundo seguinte, tracei um círculo geométrico quadridimensional e
atravessei a barriga de Mioae com ele. Para a minha surpresa, ele deu um pulo
calculado, saltando em cima da mesa. Sua figura era um holograma. Eu não
podia acreditar que havia caído nesse truque tão ridículo. Eu estava mesmo
desacostumado ao meu velho corpo.
Mioae agarrou a cabeça de Caliderina sobre a mesa e deu–lhe um beijo nos
lábios.
– Você está fodido, Vorta. Completamente.
Soma chegou a seguir para dar um fim àquela bagunça.
– Seja bem–vindo ao Rank 10, Taha Vorta. Como prêmio, eu irei conceder–
lhe um ano de abstenção de nossas reuniões.
– Eu não quero esse prêmio. Nem é você quem decide isso, Soma. Desejo
desafiá–la para um duelo.
– Você não acha que já arrumou problemas suficientes? Destruiu Consmam,
mudou de corpo, decapitou Caliderina. Está na hora de ser disciplinado no laço.
D’aship, por favor, tenha a honra.
Ela afastou–se de seu jogo e retirou um chicote da cintura. Tentou acertar–
me com ele, mas eu consegui pular desajeitadamente, mesmo sem uma perna.
Ela me perseguiu pela sala, correndo atrás de mim, tentando acertar–me
chicotadas. Enquanto eu tentava correr desajeitadamente num pé só, arranquei a
minha perna da mão do deus pelado e coloquei–a de volta no lugar.
– Em vez de se preocupar com sua perna ou com o Rank 1 da MAL, sugiro
que preste atenção na sua namoradinha.
– Do que está falando...?

631
Wanju Duli

– A garota chamada Lipsei. Eu a raptei.


– Você o quê?!
– Eu não sou idiota. Cali sumiu há uma semana. Eu senti sua energia no
cadáver dela. Pensou que eu não fosse fazer o mesmo com sua amada?
Uma imagem de Lipsei sem cabeça assolou a minha mente. Se aquele
desgraçado tivesse mesmo feito isso, eu iria dar a ele uma tortura mil vezes pior
do que aquela que Soma aplicou a mim.
Mioae deu um sorrisinho e saltou pela janela. Eu o segui, irado.
Ele subiu a torre novamente, pelas escadas. Ele estava me fazendo de bobo?
Porém, num dos andares ele adentrou numa sala. Eu o segui. Lá estava
Lipsei, amarrada numa cadeira e amordaçada. Ele desenhou um círculo arcano
ao redor do pescoço dela. Bastaria um movimento para que Lipsei perdesse a
vida.
Eu engoli em seco. Eu estava vermelho de ódio. Queria matar o maldito.
Como ele sabia...?
– Dê–me uma só razão para não tirar a vida dela.
Não havia o que dizer. Eu senti que Mioae não a pouparia. Ele não tinha
nenhuma razão para isso. Eu tinha matado Cali. A vingança dele só estaria
completa se ele me desse o troco na mesma moeda. Eu não seria veloz o
suficiente para salvá–la. Tampouco poderia revivê–la novamente com a ajuda
dos Derradeiros, pois já o havia feito uma vez.
Lágrimas escaparam dos meus olhos. Eu só queria que Lipsei escutasse uma
coisa antes de morrer. Algo que eu já devia ter dito há muito tempo.
– Lipsei, eu te amo.
Mioae deu um largo sorriso quando escutou minhas palavras. Pensei que
veria a cabeça de Lipsei no chão no segundo seguinte. Mas em vez disso, ele
tirou a mordaça dela. Soltou–a.
Lipsei levantou–se. Caminhou até mim e me abraçou.
Eu estava nas nuvens. Abracei–a de volta.
Eu não queria mais entender. Não precisava. Não me interessava mais o que
estava acontecendo ali. Eu só queria viver aquele momento.
Finalmente Lipsei era minha. Depois de tudo o que sofri... de tudo o que
passei por ela. Eu iria protegê–la para sempre.
Ela me soltou.
– Me desculpe, Taha. Mas eu não sou sua. E nunca vou ser.
Levei um grande susto.
– Quem é você...? Não é a Lipsei. Mioae, o que você fez?
– Eu não fiz nada. Essa é a Lipsei que você conheceu; que você conhece.
Poderá entender por si mesmo.

632
Fábula dos Gênios

Lipsei mostrou a tatuagem na própria mão. Era o emblema da MAL. Eu não


podia acreditar.
– O quê...? Lipsei, você é um membro da MAL?
– Você ficou fora por muito tempo, Taha. Muita coisa aconteceu. Eu fiquei
mais forte, por meu próprio mérito. Você não pensou que eu conseguiria
sozinha, não é mesmo?
– Ora, eu sempre confiei no seu potencial. Mas você só ficou mais forte
porque eu te paguei um bom colégio e uma boa universidade. E porque você
ficou com meu RP.
– O “meu” RP, você quer dizer. Sugiro que dê uma olhada nele agora.
Lipsei evocou habilmente T69 de outra dimensão. Ele estava muito
diferente do que eu me lembrava.
Tchuu não estava mais tão grande quanto antes. Sua aparência era mais
meiga. Um imenso poder mágico emanava dele. Era uma mistura de magia
robótica com magia de livreiros. Ela havia aplicado o conhecimento dos livros à
tecnologia.
Ela retirou uma bolsa de couro da cintura, cheia de moedas valiosas.
– Aqui está todo o valor que você me emprestou ao longo desses anos. Eu
calculei com exatidão. Nessa bolsa está o suficiente para cobrir todo o gasto que
você teve com meus estudos. Eu obtive essa quantia com meu trabalho.
Especialmente vencendo campeonatos de magia de Tecraxei e Narrara.
Eu sentia uma grande confusão.
– Não posso aceitar.
– Por favor, aceite. Não me agrada dever nada para ninguém. Se não aceitar,
vou deixar aqui no chão.
Vi–me obrigado a aceitar o saco de moedas. É claro que ela havia obtido
todo aquele poder por seu próprio mérito. Se um mago não tivesse verdadeiro
potencial mágico e determinação, não chegaria muito longe mesmo com o RP
mais forte ou estudando na melhor universidade do mundo.
Mas algo ainda não se encaixava.
– Como nunca ouvi falar de seu sucesso mágico?
– Você passou a última década em outro planeta. Além do mais, a maior
parte do que conquistei foi algo recente. Recebi meu diploma duplo em Tecraxei
no ano passado. E conquistei o Rank 1 da MAL anteontem.
– Espere. Você o quê...?!
Soma entrou na sala um pouco depois disso. Outros membros da MAL
também foram para lá, assistir ao espetáculo das escadas da torre.
– Eu derrotei Sassa Soma em batalha. Se quiser tomar o Rank 1 de mim, terá
que me derrotar.
Eu a fitava, incrédulo.

633
Wanju Duli

– O seu rapto foi uma encenação? Não acredito que você fez isso comigo,
Lipsei!
– Por favor, não seja dramático, Taha. Você já me enganou e mentiu para
mim muitas vezes antes. Fui informada de que recentemente você reencarnou
como marlaquino. Foi você que causou toda essa confusão.
– Por você! Porque eu te amo!
– Eu aprecio os seus sentimentos, Taha. De verdade. Agradeço toda a ajuda
que me deu. Mas agora é minha vez de ajudá–lo. Não me sinto bem em apenas
receber ajuda das pessoas, sem dar algo em troca. Agora, como Rank 1 da MAL,
se eu puder lhe ser útil de alguma forma, apenas me diga.
– Não quero que me dê nada em troca. Por favor, pegue esse saco de
moedas de volta.
– Não posso aceitar isso.
Eu fitei o chão, desapontado.
– Você não parece contente com meu progresso mágico. Por quê? É porque
fiquei mais forte que você? É porque você não será capaz de me proteger agora?
– Não é nada disso! Em primeiro lugar, se você não tivesse revivido com
minha ajuda, jamais teria se tornado a mais forte. E ainda não sabemos se você é
mais forte que eu. Não antes de lutarmos...
Mas será que eu queria mesmo lutar contra ela? Mesmo que não fosse uma
luta feroz de vida ou morte, eu não sabia se teria coragem de atacar Lipsei.
Foi então que me dei conta: no começo de tudo, foi Lipsei quem sacrificou a
sua vida por mim e por Cromo. Foi ela quem nos protegeu e não o contrário.
De repente, senti–me culpado. Lipsei teria se tornado forte de qualquer
forma, com o robô que ela criou e sem o meu dinheiro. Ela já estava
matriculada num ótimo colégio. A sua própria família iria ajudar a financiar seus
estudos. O seu destino sempre foi a MAL.
Será que eu mesmo só havia me tornado forte por utilizar o RP dela? Agora
tudo tinha mudado. No fundo não era eu que a ajudava. Era ela que sempre
tinha me ajudado o tempo todo. Ela sempre foi a minha razão de viver, desde o
começo. Minha motivação. A minha estrela.
Ela segurou a minha mão.
– Você só me amava porque me via como um ser frágil que precisava ser
protegido. Proteger–me era a sua razão de viver. Pois eu não preciso mais ser
protegida. Agora sou forte e corajosa. Sou independente. E agora, Taha? Ainda
me ama?
Ela estava me deixando sem defesas. Eu era uma pessoa assim tão ruim? Fiz
tudo aquilo por motivos egoístas? Para satisfazer a mim mesmo?
E o pior de tudo, o que mais doeu em mim, foi descobrir que eu já não sabia
se a amava depois de todas aquelas revelações!

634
Fábula dos Gênios

Eu a invejei por ela ser Rank 1. Não me senti orgulhoso dela, como teria
sido normal nessa situação. Desejei arrancar o título dela. Seu orgulho, seu
poder.
– Taha, você parou uma guerra por mim. Foi torturado e morreu por mim.
Sem nem saber se me ama? Sem nem mesmo ter coragem para dizer isso para
mim, e nem para si mesmo. Talvez porque não quisesse admitir que fosse
somente um pretexto. Uma mentira. Você nunca me amou de verdade.
– Pare... pare! PARE! CALE A BOCA, LIPSEI!!
Tomado pela fúria, tracei um círculo arcano. Eu a ataquei. Mas eu chorei
quando fiz isso. Havia lágrimas nos meus olhos quando segurei o seu pescoço.
Mas ela livrou–se de mim facilmente.
Lipsei usava uma magia equilibrada. Não uma emotiva e instável como a
minha. A dela era mais repleta de razão e segurança.
Ela pronunciou os dizeres de um grimório. Eu não sabia nada de magia de
livreiros. Poderia até superá–la em magia robótica, mas jamais em magia da
eloquência.
Quem sabe fosse exatamente pela sua maestria em magia da eloquência que
ela era capaz de esmagar o meu coração com poucas palavras. Ela havia
destruído o meu psicológico. Como eu poderia superá–la em poder daquela
forma?
Lipsei continuava a ser doce até quando era dura nas palavras. Isso era o que
mais me machucava. Queria que ela tivesse simplesmente me chutado, me
xingado, me desprezado, cuspido em mim.
Em vez disso, ela não me deu uma resposta direta. Deu–me um saco de
moedas e agradeceu–me, como se indicasse que eu não era mais necessário em
sua vida.
Eu estava tão puto que destruí a torre. Joguei selos eletrônicos para todos os
lados. Os magos que assistiam à batalha saíram de lá rapidinho para não serem
esmagados.
Eu e Lipsei continuamos a luta lá fora, sobre os escombros.
Coloquei mais círculos de proteção ao meu redor do que quando lutei com a
marlaquina. Isso porque eu estava com um puta medo de Lipsei. De verdade.
Estava aterrorizado! Ela era a pessoa de quem eu mais tinha medo. Jamais
imaginei que um dia fosse lutar contra ela.
Ela usava o RP que usei um dia. Isso significava que grande parte do poder e
técnicas que acumulei ao longo de minha vida como Taha Vorta poderiam ser
usados contra mim. Isso me deixava tão assustado que eu errei várias técnicas
mágicas simples.
Lipsei não se aproveitou dos meus erros. Ela esperava com paciência que eu
realizasse o próximo movimento. Ela era uma maga honrada. Isso não

635
Wanju Duli

significava que ela iria me poupar. Poderia até poupar minha vida, mas jamais
me daria a vitória, se ela fosse digna de conquistá–la.
Eu não conseguia me concentrar na luta. Além do medo de machucá–la, eu
estava cheia de dúvidas, pensando em outras coisas. É claro que Lipsei devia ter
acessado a memória do RP. Ela devia saber que eu tinha olhado a calcinha dela
no colégio uma vez. E que eu me masturbava olhando para as fotos dela.
Eu não a culpava que ela se aborrecesse por isso. Mas eu tinha esperanças de
que ela já fosse madura o suficiente para entender a imbecilidade de um menino
adolescente e me perdoar. Ela mesma, como uma menina adolescente, tinha
passado por suas meigas imbecilidades, que para mim eram graciosas.
“Merda, merda!!” Se ao menos eu não fosse tão idiota. Se eu não
continuasse a ser idiota até mesmo naquele momento...!
Por que eu precisava do Rank 1? Sim! Eu não precisava. Por que eu não
ficava apenas feliz por Lipsei?
– Lipsei, vamos interromper essa luta inútil! Eu dou a vitória para você. Não
quero machucá–la!
Eu disse a coisa errada. Fui eu que comecei aquela luta. Eu mandei que ela
se calasse. Ataquei–a para valer. E depois, covardemente, ao notar que eu estava
perdendo e não era capaz de me concentrar lutando contra ela, vinha com
aquela história de “dar–lhe a vitória?”.
É claro que Lipsei não aceitou.
– Você não vai me dar nada, Vorta. Lute a sério! Lute para matar, se for
necessário para acessar seu poder máximo. Eu também farei isso. Estamos de
acordo?
Ela me chamou de Vorta. Resolvi deixar meus sentimentos de lado.
– Completamente.
Ambos iríamos lutar para matar. Não importava o desfecho. Que se fodesse!
Se Lipsei queria que eu lutasse para valer, eu iria honrar seu pedido. De coração.
Começamos de novo. Respirei fundo, controlei minhas emoções e
posicionei 89 círculos de proteção ao meu redor; 51 percorrendo meu corpo no
sentido horário, 22 no sentido anti–horário e 16 alternando sentido horário e
anti–horário. A velocidade dos círculos elétricos e eletrônicos era tão intensa
que os círculos mais pareciam borrões coloridos faiscando ao meu redor.
Lipsei protegeu–se com frases em línguas antigas. Eu nunca tinha visto
aquilo antes. Fórmulas mágicas em diferentes alfabetos rodavam ao seu redor.
Havia pelo menos cem. Ela pronunciou a primeira palavra ou letra de várias
delas e isso bastou para ativar um número imenso de magias. Era como uma
barreira impenetrável.
Eu nem enxerguei quando ela lançou o primeiro ataque. Bastou pronunciar
uma sílaba para que acontecesse.

636
Fábula dos Gênios

Foi uma sílaba aguda, que alterou a vibração do ar. Logo notei que minha
barreira não estava forte o suficiente. Quatro de meus círculos quase se
desfizeram com essa leve vibração. Foi apenas um aviso.
Lipsei deu um leve sorriso. Ela ficava linda quando sorria, com seus longos
cabelos a moldar–lhe a graciosa face. Mas ela logo voltou a ficar séria. Ela não
planejava usar nenhum truque sujo para me distrair. Eu fiquei sério também.
Lipsei traçou um gráfico de resistores no ar. Se ela pensava que poderia me
enganar com algo assim, precisava de mais treino.
Tracei no ar o gráfico de um circuito em estrela para confundi–la. Porém,
quem se confundiu fui eu. O robô de Lipsei traçou um segundo circuito que
quebrou o padrão do meu.
Senti um calorão no corpo inteiro. Eu estava suando. Não havia vento ao
redor. Eu o gerei, também pela eletricidade. Eu pretendia utilizar a energia
elétrica para resolver tudo, transformando–a em outros tipos de energia, mas
isso não alcançava todas as possibilidades de magia que eu queria.
Eu estava gastando energia à toa. Em vez de tirá–la de mim, eu deveria
extraí–la da natureza. Não havia vento, mas as estrelas solares queimavam
intensamente.
Improvisei uma célula solar com meu cajado de silício. Eu sabia que Lipsei
iria utilizar outro resistor mágico, por isso realizei um cálculo exato para prever
isso. Meu problema foi tentar prever demais.
Lipsei usou literatura. Ela leu um trecho em outro idioma. Se eu utilizasse a
porra da energia elétrica outra vez, corria o risco de levar um choque. Afinal, eu
não entendi o que ela disse.
Por segurança, empreguei a matemática pura. Sem física, sem elementos da
elétrica ou do caralho. Queimei oito partes da minha barreira de proteção por
isso.
Eu estava suando, mas dessa vez não de calor, e sim de nervosismo. Os
olhos castanhos de Lipsei eram profundos. Ela estava me atacando com tudo.
Eu senti isso.
Eu não estava mais pensando em “deixá–la ganhar”. Antes disso, eu
precisava salvar a minha pele, com todas as minhas forças.
Antes que eu notasse, o cajado dela encostou no meu. Estávamos ambos
face a face. Os círculos de proteção chocando–se uns com os outros. Resolvi
apelar para algo que ela não conheceria: magia de Destruidores.
Tracei no ar um tetraedro. Acelerei as batidas do meu coração. Eu não tinha
um gênio ou um maligno. Ainda assim, poderia obter um selo multidimensional
de Destruidores. Porém, Lipsei notou o que eu faria e traçou um cubo de
construtores. Eu fiquei pasmo.

637
Wanju Duli

Lipsei tirou um chiclete do bolso e colocou na boca. Afinal, quem era o


gênio? Ela nem mesmo precisava de um, quando já era assim tão genial em sua
própria mente.
Eu não iria mais jogar conforme as regras.
Com o cajado, tracei uma estrela na areia. Com grande fúria, tracei muitas
estrelas, umas sobre as outras, sem medi–las. As cinco estrelas de Yym
brilharam furiosas.
– O Ritual da Evocação da Fúria das Estrelas. Grimório dos Gênios
Malignos, página 22.
Ela sabia. Como...?
Lipsei tinha uma parte de um gênio em seu RP. Subitamente, recordei–me
do meu amigo Derradeiro. O feitiço havia se voltado contra o feiticeiro.
Literalmente.
Ela estourou a sua bola de chiclete. Traçou um eletrocardiograma psíquico.
Senti as batidas do meu coração se alterando sem que eu obtivesse controle
sobre elas.
Lipsei traçou um cubo e um losango, envoltos por gelo e fogo. Soprou
sobre eles e clamou:
– O gelo é o fogo e o fogo é o gelo. A morte é a vida e a vida é a morte. Eu
evoco a harmonia dos contrários. Os iguais são diferentes e os diferentes são
iguais. A partir desse momento excelente e admirável, meu beijo recebe o poder
de conciliar os opositores. Onde meus lábios encostarem, jamais haverá
discórdia. E por que, ainda assim, sou aquela que mais deseja ser conciliada?
Aquela era a Evocação do Beijo do Gelo e do Fogo, do GG. Eu a observava,
estupefato. Ela misturava magias como quem dança: com perfeita harmonia.
E ela ia me atacar com ela. Ia me matar. Meu coração já estava batendo num
ritmo estranho. Ele seria atravessado por uma estaca de gelo e fogo.
Em desespero, explodi minhas defesas. Transformei meu cajado de silício
num novo sol: uma esfera vermelha de fogo, que atravessou o robô de Lipsei,
roubando seus muitos corações. Eu libertei o pedaço de gênio que havia dentro
dele e tomei–o para mim.
A estaca de fogo e gelo atravessou meu coração. Meu corpo caiu no chão e
eu tomei a consciência do gênio. Como gênio, ativei um selo especial: um Selo
Bomba Invertido.
“Lançar um selo significa encontrar a chave para abrir a outra dimensão, completando o
quebra–cabeça”.
“Os Selos Bomba são selos especiais da batida excelente, cujo esquema é tão refinado que
a magia ocorre de forma perfeita. Quando é ativado, duas dimensões se juntam e um portal se
abre. Algo pode ser retirado de lá ou o mago pode escapar para outra dimensão”.
Eu, como gênio, explodi. Eu abri outra dimensão: invertida.

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Fábula dos Gênios

O meu corpo e o corpo de Lipsei permaneceram caídos na areia, um sobre o


outro. Nossas almas voando, perdidas.
Tecraxei pulou da dimensão que abrimos, resgatando nossas almas com uma
rede. A alma de Lipsei retornou e ela abriu os olhos. Mas a minha permaneceu
aprisionada.
– A magia ocorreu de forma perfeita.
Leassa aproximou–se e abraçou Lipsei.
– Você foi premiado, Vorta.
E o prêmio para aquele que realizasse uma magia perfeita antes da morte era
o mais sublime: tornar–se uma dimensão. Mas não qualquer dimensão.
Eu iria me tornar uma das dimensões mais famosas e cobiçadas, repleta de
tesouros escondidos. Aventureiros iriam até mim. Tentariam negociar mapas
com a fantástica Balaza. Não seriam baratos.
Eu havia me tornado uma Dimensão Invejável. Era perigoso aproximar–se;
perigoso deixar–me. Eu era um mundo. Dentro de mim viveriam somente as
mais extraordinárias criaturas mágicas. Vidas seriam perdidas. Vidas seriam
salvas.
– Um dia eu irei desvendar o segredo de sua dimensão, Taha. Entender
porque fez tudo isso. Até descobrir se o que chama de amor é mesmo amor.
“Minha magia tornou–se perfeita uma vez, doce Lipsei. Mas eu não sou uma
pessoa perfeita. Nem você é perfeitamente doce. Eu jamais me sacrificaria pela
perfeição. Eu só me sacrifico pelo que é imperfeito, porque aquilo que já é
sublime não exige sacrifícios, nem vida e nem morte. Eu te amei por sua
imperfeição. Te odiei quando pensei que havia se tornado perfeita, mas eu
estava enganado. Ninguém é tão forte, corajoso e independente que não precise
de ajuda. Os seres humanos são assim, Lipsei. Quando esbarram na perfeição é
somente quando a renegam, pela sua ânsia de imperfeição. Hoje foi assim. Eu
encontrei uma magia perfeita, tentando destruir algo puro. Noto a impureza em
ti uma vez mais e volto a te amar. Obrigado por me matar. Você me fez perfeito.
Obrigado por me odiar. Hoje eu te amo e te odeio em igual medida e isso parou
meu coração. Como Dimensão Invejável renasci, agora insuperável, aguardando
uma desbravadora”.
Antes de eu tornar–me completamente dimensão, vi um sorriso na boca de
Lipsei.
“Ela sabe de tudo”. Lipsei entendeu o segredo que eu guardava.
A paixão não era somente uma troca de gentilezas e carinhos, mas também
uma luta de poderes: uma batalha entre dois, lutando por tornar–se cada vez
mais extraordinário e irresistível para impressionar o outro.

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Wanju Duli

Eu tornei–me o mago mais forte do mundo. Lipsei superou–me. Então eu


tive que tornar–me uma dimensão, algo maior que a própria vida, para que
Lipsei olhasse para mim de novo, me buscasse e me desejasse.
O sacrifício que eu fiz não foi por Lipsei, e sim por poder. Até que ela se
tornou o próprio poder. Somente assim eu pude verdadeiramente amá–la: ao
vê–la como Rank 1 eu a odiei, pois finalmente entendi o que realmente me
motivava. Eu a ataquei, por ódio a mim mesmo. Era a mim que eu queria matar,
não a ela.
Ela me matou. Eu a amei por isso. Somente assim ela me tornou quase
perfeito e mais forte que ela. Ela me fez enxergar que minhas motivações não
eram tão nobres quanto eu pensei. Eu não era o salvador do mundo, o seu
redentor ou julgador.
Eu era carne. Eu era sangue.
Eu queria ter chorado sangue. Somente para que ela enxergasse a
profundidade da minha dor, da minha confusão, do meu desejo. Mas ela viu
mesmo assim. Ela entendeu que eu a amava e a odiava ao mesmo tempo.
Afinal, por que as pessoas amam outras? Como dimensão, eu queria que
Lipsei entrasse em mim, para que eu a abraçasse e ela fosse só minha. Ao
mesmo tempo, eu não queria ter braços. Não precisava mais segurar pessoas ou
poderes.
Eu não queria mais nada. Somente ser livre.
Era esse o dever dos magos: manipular dimensões, até se tornarem eles
mesmos uma dimensão. E que todas as dimensões se harmonizassem, se
tornassem unas. No final de tudo, eu iria vibrar juntamente com o amor e com
o ódio.
Os construtores e Destruidores possuíam uma rixa eterna. Os gênios e os
malignos. Mas tudo isso era somente uma grande farsa.
E a maior farsa de todas seria sempre o amor. Pessoas viviam por ele.
Morriam por ele. Simplesmente porque precisavam viver e morrer por alguma
coisa, para inventar um sentido para suas existências perdidas.
Eu quis acreditar que eu fui bondoso um dia. Que eu vivia e morria por
amor. Mas no fundo eu não vivia e morria por coisa alguma. Eu apenas
idealizava forças maiores que eu mesmo, porque eu precisava de um motivo
mais nobre que minha própria vida para ter forças e assim prosseguir, girando
no ciclo do mundo.
Finalmente, ao tornar–me uma dimensão e cumprir minha jornada, eu estava
aliviado por ter me livrado de todas as minhas farsas, a luta de amor e ódio, de
bem e mal.
Eu já tinha lutado demais. Sofrido e amado. Era hora de dormir. Outros
lutariam por mim a partir dali: que o fardo fosse passado para os jovens, para os

640
Fábula dos Gênios

filhos dos nossos filhos, e que o ciclo da respiração se estendesse por mais
tempo.
As correntes do certo e do errado tinham deixado meu corpo. Eu conseguia
ser sincero comigo mesmo. Lipsei nunca fez parte da minha vida de verdade.
Era apenas um sonho distante de infância, quase apagado. No fundo, quem eu
havia realmente amado era uma pessoal cruel. Eu precisei deixá–la, precisei
matá–la; somente porque ela me enganou, me traiu, me fez sofrer.
Caliderina, eu te amo. E eu espero sinceramente que você, antes de Lipsei,
seja capaz de alcançar o mais famoso tesouro do mundo, que por acaso está
escondido na dimensão do meu coração.

***

Somente um ano depois de minha morte, a Dimensão Invejável de Vorta


tornou–se a mais poderosa e cobiçada de Marlaquina. Muitos magos viajavam
até ela, pelo preço de suas próprias vidas, com o objetivo de obter o Baú da
Negação da Verdade, o maior tesouro do mundo.
O que havia lá dentro? O maior segredo da magia. O seu possuidor seria
capaz de derrotar não somente o líder da MAL, mas também seria superior a
qualquer marlaquino.
Finalmente, os marlaquinos começaram a se preocupar. Alguns deles
tentaram destruir a minha dimensão e não foram capazes. Minha dimensão só ia
sumir quando o meu tesouro fosse encontrado e aberto, e seu conteúdo se
tornasse propriedade de um mago extraordinário, possuidor da chave, que teria
vencido muitas charadas, enigmas e desafios. Não somente desafios de força,
mas da mente.
A corrida pelo poder havia começado. O vencedor seria aquele capaz de
desvendar o gênio da imperfeição necessária: a grande farsa do mundo.

Vem, aventureiro, desvenda o segredo


Que guardo, te torna a lenda viva
O primeiro, o vencedor, o rei da magia
Supera a mim, sem medo do fogo
Da tua ambição, pois todas as ternuras
Encontram seu ninho na superação
Da dualidade do fim
E na verdade do paraíso
Existente no choro e no riso
Perdido no calor de um sorriso
Temente de amor

641
FIM

Leia também o Grimório dos Gênios

Confira a versão ilustrada da história em

www.fabuladosgenios.blogspot.com.br

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