Sei sulla pagina 1di 268

A Gata Mascarada

Volume 1

Juliana Duarte
2013
Para Emily e Lathan
Sumário

Capítulo 1_______________________________________________7

Capítulo 2______________________________________________39

Capítulo 3______________________________________________77

Capítulo 4_____________________________________________112

Capítulo 5_____________________________________________157

Capítulo 6_____________________________________________195

Capítulo 7_____________________________________________232
A Gata Mascarada

Capítulo 1

– Ofélia, por favor, olhe para mim.


Ela não escutou. Seu olhar estava escondido em lugar nenhum. Nem
mesmo ela sabia para onde fitava.
Seus olhos brilhavam com intensidade. Apesar de tanta luz, não havia
presença. Ela estava perdida: nem mundo real, nem sua mente. Queria
simplesmente escapar de todos os lugares.
As pupilas eram cavernas profundas que não ofereciam refúgio
seguro. Assim, seus olhos não mais poderiam brilhar.
– Sua mãe disse que você interrompeu a medicação – observou a
psiquiatra – não pode fazer isso sem me consultar.
– Por que não? – perguntou a garota, sem muito interesse, ainda sem
olhar para a médica.
– Porque seu corpo se acostuma com o remédio – explicou a médica
– caso interrompa subitamente, pode haver reações psicológicas ruins.
– Não faz diferença – disse Ofélia – já está ruim.
A garota permanecia a fitar o infinito. Após alguns segundos de
silêncio, prosseguiu:
– Fico com sono o dia inteiro. Minhas mãos tremem. Tenho
pesadelos. Esses remédios são diabólicos. Mas acho que preciso do
Diabo se eu quiser chegar a Deus.
Dessa vez, houve um período de silêncio mais longo.
– Ofélia, essa é apenas a segunda vez que nos encontramos – disse a
psiquiatra – duas semanas é muito pouco para testar a eficácia do
remédio. Precisamos de mais tempo. Se conseguir superar isso,
poderemos ter o resultado esperado.
– Você não sabe de nada – disse Ofélia – não preciso de remédios.
Preciso de outra coisa.
– E que outra coisa seria essa?
A garota parou para pensar por um momento. Ou talvez esperasse
que o infinito lhe trouxesse a resposta: que um mensageiro descesse dos
céus com a solução milagrosa.

7
Juliana Duarte

– Não sou tão inteligente – confessou Ofélia – há coisas que eu não


sei. Essa é uma delas. Logo a mais importante. É meio frustrante.
– Não conversamos direito da outra vez – lembrou a psiquiatra – que
tal me contar como tudo isso começou?
– Pode ser, mas será uma história longa – avisou Ofélia – e não
exatamente agradável.

Meu nome é Ofélia Alvarenga Castelo. Tenho 15 anos, embora todos


achem que eu tenha menos. Estou no 1º ano do 2º grau. As pessoas
sempre me importunam por causa do meu nome. Perguntam se meus
pais me deram esse nome por causa do Hamlet. Faço questão de
desapontá-las.
Sou baixinha, tenho olhos e cabelos negros. Faço caretas para fotos.
Minhas notas no colégio são boas, mas nada muito além da média.
Adoro ouvir David Bowie. Viciei por causa de um dos meus filmes
preferidos: Christiane F. Gosto de cozinhar, principalmente sobremesas,
como bolos, tortas e pudins.
Também gosto de correr, sabe? Só correr. Quando estou correndo
muito rápido e por muito tempo, de repente o mundo desaparece. Meus
pés perdem o contato com o solo e apenas flutuam no universo.
Gosto muito de pessoas reais. Prefiro o mundo real à imaginação. Na
verdade, meu amor pelo mundo real gerou consequências imprevisíveis.
Nunca gostei muito de ler, escrever ou desenhar. Curto filmes, mas
não compulsivamente. Eu trocaria numa boa um ótimo filme por um
passeio à beira do lago para ver o pôr-do-sol. Quero sentir o cheiro. Não
tem isso em filmes. E mesmo se tivesse, não seria a mesma coisa.
Tenho uma melhor amiga chamada Pâmela. É minha vizinha, três
anos mais velha que eu. Somos amigas há muitos anos. Ela se dava
melhor com minha irmã, mas desde que ela se casou eu roubei Pâmela
para mim.
Pense na pessoa mais doce do mundo. Pâmela é assim. Ela é muito
bonitinha. Cabelos pretos ondulados, olhos escuros. Pele morena clara.
Tem uma pintinha embaixo do olho direito que dá a ela um toque todo
especial. Ela é simplesmente única. Sinto vontade de mordê-la. Ela é o
queijo da minha goiabada, o achocolatado do meu leite.

8
A Gata Mascarada

Tenho duas amigas na escola. E uma inimiga também.


Mas agora quero falar da pessoa que, desde o início do ano letivo,
vem sendo uma maravilhosa companhia e a inspiração dos meus sonhos:
Otávio. Ele é fofo, embora meio tapado. Dei várias indiretas no primeiro
dia de aula que eu queria ficar com ele. Tive que esperar o fim da aula e
arrastá-lo para um canto, para falar com todas as letras: “Gosto de ti.
Quer namorar?”. Ele disse que ia pensar. No dia seguinte aceitou. É um
bobo, mas eu o amo. E, sim, eu sou corajosa e cara-de-pau. Não gosto
de ficar com aquele sentimento dentro de mim me incomodando. Faço
questão de colocar para fora. É questão de sobrevivência, ou não
consigo dormir à noite.
E lá estava eu naquela manhã de domingo terminando de cozinhar o
bolo do Dia dos Namorados. Acordei cedo para a tarefa. Ficou
simplesmente divino, todo decorado com marzipã. Minha mãe me
ajudou, mas fiz as partes mais importantes. Passei a manhã inteira
fitando o forno com as bochechas infladas de ansiedade.
Depois disso, tomei um banho, coloquei meu novo vestido rosa,
batom rosa, sapatos pretos, brincos dourados, me perfumei e fui a pé até
a casa do Otávio, que não era tão longe dali.
– Surpresa, Tatá!
Ele mesmo abriu a porta. Ficou surpreso mesmo. Repousei o bolo na
mesa da sala, abracei-o e plantei-lhe um beijo nos lábios.
– Feliz Dia dos Namorados! – anunciei, contente – Que roupas são
essas?
– Acabei de chegar em casa.
– Nem está tão frio assim.
– Eu estava patinando no gelo – explicou Otávio.
– Que gelo? – perguntei, confusa.
– No shopping. Eles abriram a pista hoje por causa do Dia dos
Namorados.
– Por que não me esperou chegar para irmos juntos? – perguntei,
desapontada.
– Porque você me disse que já tinha planos para hoje.
– Tem razão. Podemos ir para o seu quarto?
– Claro.

9
Juliana Duarte

Chegando lá, sentamos na cama e mostrei a ele o cartão bonito que


comprei. Tinha pássaros também, para combinar com o bolo.
– “Teus sonhos são os meus. Não preciso de asas para voar até os
céus. Somente do fogo da paixão e dos teus lábios que são ardentes
como a chama. Com teu beijo, eu sinto Deus. Façamos deste um
momento inesquecível” – ele leu em voz alta – que lindo, Fafá. Sinto-me
tão mal por não ter preparado nada. Eu devia ter feito isso em vez de ir
patinar.
– Não me importo – eu disse, sinceramente – presentes são meras
formalidades. O principal é que passaremos o dia juntos. É só o que eu
quero.
– E depois diz que não sabe escrever? – perguntou Otávio, ainda
impressionado – Esse poema está muito bom.
– Pâmela me ajudou – confessei.
– E então, o que quer fazer hoje? Sair para ver um filme? Os cinemas
devem estar lotados. Podemos alugar um DVD, que tal?
– Pensei em outra coisa.
– No quê?
Otávio era mesmo tapado. E um esquecido.
– Já estamos namorando há três meses. Você prometeu que no Dia
dos Namorados teríamos nossa primeira vez.
Ele me observou e depois desviou o olhar. Nesse momento eu
pensei: “Droga. Ele vai dar outra desculpa e amarelar de novo”.
– Sobre isso, Ofélia, me desculpe. Queria esperar mais um pouco.
Pode ser?
– Por quê? E “mais um pouco” é quanto tempo?
– Sei lá – ele disse, meio incomodado – você está me perturbando
com isso desde a segunda semana de namoro. Por que não dá um
tempo? Está me pressionando!
– Por favor, hoje é um dia especial. Vamos fazer só um pouquinho.
Pode ser até a metade.
– Metade? – perguntou ele, aturdido – Como assim? O que é a
metade?
– Deita aí que eu te mostro – inventei.
Minha ideia era deixá-lo bem excitado, então não teria como ele
recusar ir até o final. Fui logo tirando aquele casaco pesado dele, que

10
A Gata Mascarada

atrapalhava tudo. Mas ele se sentiu ofendido. Tirou minha mão e até
levantou-se.
– Estou cansado disso. Dessa sua pressa e falta de respeito. Ouça o
que as pessoas dizem!
– Desculpe – falei, baixinho.
– Já chega. Vamos terminar.
– Nem começamos!
– Eu quis dizer, terminar o namoro.
Eu não acreditei. Senti uma dor no peito. Uma sensação horrível.
Tentei pedir perdão e prometer que não tocaria no assunto de novo. Ele
não aceitou.
Senti tanta raiva e tristeza que pensei em tocar o bolo na cara dele.
Mas não fiz isso. Preferi deixar o bolo lá para que ele se lembrasse de
mim com arrependimento até que terminasse de comer. Simplesmente
fui embora, demonstrando não tristeza, mas indignação.
De lá, fui direto para a casa da Pâmela. Em vez de chorar nos braços
dela, eu xinguei Otávio de todos os nomes e continuei a falar mal dele
até o fim do dia. Cheguei em casa mais aliviada depois disso.
Foi bem chato vê-lo na aula no dia seguinte. O que mais me irritou é
que ele parecia muito bem. Ficava conversando com os amigos e rindo.
Eu esperava que não fosse sobre mim.
– Eu te falei que ele era um idiota – disse Irene, no intervalo – até me
impressiono que ele tenha arrumado um tempo na “agenda” dele para te
encontrar no Dia dos Namorados. Ele sempre dizia que estava ocupado
para qualquer coisa que você combinava.
Irene era uma das minhas únicas amigas na escola. Seus cabelos
castanhos pareciam uma espiga de milho. Tinha vários contatos e sempre
estava por dentro de todas as fofocas.
– Ainda bem que se livrou dele – disse Cíntia – menos uma pedra no
sapato.
Cíntia era a outra amiga. Tinha cabelos castanhos ondulados e, assim
como Irene, usava óculos de aros negros. Ela era apaixonada por verde.
Tanto pela cor como pelas plantas. Dizia que queria ser botânica. Irene
queria mexer com computação. Eu não fazia ideia do que ia ser e não
dava a mínima.
No final da aula, Irene veio me contar uma novidade desagradável.

11
Juliana Duarte

– No intervalo de hoje Gisele pediu Otávio em namoro. E ele aceitou.


Gisele era minha arquiinimiga. Sempre achei legal ter uma inimiga,
como nos filmes. Mas naquele ano descobri que na vida real não era tão
agradável. Fiz de propósito. No primeiro dia de aula chamei-a de tarada,
porque ela usava blusas muito decotadas. Blusas coloridas, era muito
metida com seu chiclete e óculos escuros. Resultado: sempre trocávamos
ofensas quando nos cruzávamos. E naquele dia ela tinha concluído sua
vingança.
Mas eu não era de me sentir mal por tão pouco. Se o fim de um
namoro não me abalava, suspeitei que seria necessário algo muito forte
para me derrubar.
Estava entediada depois do almoço. Fiquei brincando com minha
gatinha. Ela se chama Babushka, como as bonecas russas. O apelido é
Babu. Uma gatinha preta, é claro, para combinar com minhas meias. Isto
é, não foi bem por esse motivo que quis uma gata preta. Sempre achei os
gatos elegantes e independentes. Os de cor escura se escondem
facilmente nas sombras. Queria aprender aquela arte de desaparecer
quando me perturbassem. Portanto, secretamente eu treinava minha gata
para que virasse ninja. Ou ela me treinava. Algo assim.
Meu cérebro estava fervilhando naquele dia. Eu não queria pensar,
então resolvi pegar um ônibus e ir até a universidade da minha irmã. Lá
tinha um cachorro-quente gostoso. Ia aproveitar e dar um alô para ela,
pois fazia quase um mês que não nos víamos.
Primeiro eu comprei o cachorro-quente, é claro. Então sentei num
banco e fiquei ali no corredor, na frente da sala dela. Em uns dez
minutos ela ia sair. Então eu daria um oi e, de quebra, receberia carona
para casa.
Acabei de comer, levantei-me e observei o quadro de avisos. Estava
cheio de papéis colados uns por cima dos outros. Os corredores eram
sempre lotados. O pessoal colava novos avisos nesse fim de tarde.
Eu não esperava que algo diferente fosse acontecer. Eu já tinha
visitado aquela universidade o suficiente para saber que, volta e meia, o
grupo do curso de artes cênicas ou outro bando de malucos inventava
algo aleatório como se fantasiar e sair declamando discursos ou a
maratona dos pelados, em que todos corriam sem roupa pelo campus, só
de tênis.

12
A Gata Mascarada

Por isso, quando vi aquelas duas figuras de capas negras logo pensei
que fossem do curso de teatro. Um dos dois com certeza era uma
mulher. Ela cobria o rosto com um capuz, mas eu podia ver o batom. O
outro era mais estranho ainda. Usava uma máscara branca de palhaço
realmente assustadora, com uma grande boca sorridente pintada em
negro. Confesso que senti um calafrio quando vi e achei aquilo bem
emocionante.
Aproximei-me cautelosamente para ver o que eles colaram no quadro
de avisos. Foi então que o sujeito com máscara de palhaço me notou e
olhou para mim.
E que olhos! Bem arregalados, de um negro profundo. Com seus
cabelos negros desgrenhados ele era como o irmão irônico da morte.
Quem sabe a morte fosse a senhorita encapuzada ao seu lado?
Até recuei. Mas ele não me analisou por muito tempo. Após a espiada
rápida, ele e a mulher continuaram seu caminho, colando novos cartazes
nos demais quadros. Aproveitei para ler o que eles tinham acabado de
colar.
Pensei que leria algo como “Recrutamos membros para o grupo de
teatro” ou “Confira nosso espetáculo de estreia: „O Sétimo Selo‟ de
Bergman; quando a morte joga xadrez!” ou qualquer coisa do gênero.
Mas o que li foi o seguinte:

“Ordem de Ocultismo da Universidade de Brasília


Os encontros ocorrem no campus todas as segundas, às 18h. Aos interessados,
enviem e-mail para:
oounb@unb.br”

Uau! Aquilo não era algo que se via todo dia. Seria ainda mais
impactante se estivesse escrito “Ordem de Magia Negra”, logo ao lado
do aviso do encontro para os cristãos. Ainda assim, eles usaram o
emblema da própria universidade, pintado de negro e roxo. Era mesmo
oficial? Tinha até o e-mail da universidade.
E, que apropriado! Era segunda-feira e quase seis da tarde. Por isso
eles estavam por lá. No aviso não constava o local exato do encontro,
mas se eu seguisse aqueles dois descobriria.

13
Juliana Duarte

De longe, vi que eles continuavam a colar avisos. Logo após,


entraram numa das salas. Corri para espiar. A porta estava entreaberta.
Eu ouvia pouca coisa e via menos ainda. Se eu chegasse mais perto, iam
me flagrar.
Além dos dois sujeitos de capa, havia mais uns gatos pingados lá
dentro, que não fui capaz de identificar. Como eu queria saber o que eles
falavam! Seria uma aula sobre ocultismo? Alguém rabiscava no quadro-
negro. Notei um cara na frente anotando coisas num caderno.
Mas logo minha atenção foi desviada, pois lembrei que a aula da
minha irmã já devia ter terminado. Tive que correr para alcançá-la.
– Ofélia, o que faz aqui? – perguntou ela, meio surpresa.
– Oi Iolanda. Vim comer cachorro-quente e pedir carona. Não quer
dormir lá em casa hoje? Aí eu te conto os detalhes de como fui chutada
pelo Otávio.
– Vocês terminaram? – perguntou Iolanda, mais surpresa ainda –
Bem, já era de se esperar. Você só tem namoros relâmpago. Esse deve
ter sido o mais longo.
– Sim, três meses, meu recorde. O anterior durou um mês. Os outros,
uma ou duas semanas.
– Você fala isso com tanto orgulho, sendo que são sempre seus
namorados que terminam com você. E é você quem sempre faz o
pedido.
– Sim, sou uma perdedora, mas falamos disso lá em casa. Vamos logo
que está um vento frio.
Entramos no carro. Ela colocou uma música pop esquisita. No
caminho, lembrei de perguntar:
– Já viu o aviso da Ordem de ocultismo da universidade?
– Devo ter visto – disse Iolanda – por quê?
– Nem ficou curiosa?
– Por que eu ficaria? Se tivesse um aviso de um grupo de terrorismo
eu também não daria a mínima. Quando você convive nesse ambiente se
acostuma com as maluquices. Por isso esses caras andam livremente por
aí, sem ser incomodados.
Se algo assim ocorresse no meu colégio todos ficariam sabendo e
tentariam investigar. Então aquilo era maturidade? Acostumar-se com a
estranheza do mundo e não surpreender-se com mais nada. Se fosse

14
A Gata Mascarada

assim, eu não queria crescer. No dia que eu achasse o pôr-do-sol algo


normal e sem graça, minha vida seria chatíssima.
Naquela noite, contei para a Iolanda todos os detalhes do fim do meu
namoro e reclamei bastante. Era divertido repetir aquilo tantas vezes,
para extravasar.
– Preciso arranjar um novo namorado urgentemente para fazer
Otávio morrer de ciúmes. Tem algum colega seu procurando parceira?
Melhor ainda se for universitário.
– Melhor só para você – disse Iolanda – você acha que algum deles se
interessaria por uma criança? Ainda mais você, que tem carinha de 12
anos.
– Não fala assim – reclamei, incomodada – sou quente na cama.
– Cuidado com isso – alertou Iolanda – se pegam um maior de idade
transando com você, ele pode ser preso.
– Eu só tava brincando, não precisa ser tão séria, Ioiô...
No dia seguinte, arrisquei enviar um e-mail para a tal Ordem de
ocultismo, expressando meu desejo de entrar. A resposta foi mais ou
menos o que eu esperava: eu era muito nova. Eu imaginava que eles
diriam que somente alunos da universidade podiam fazer parte, mas
aparentemente eles permitiam pessoas de fora, contanto que fossem
maiores de idade.
Como eu odiava ser criança! Bom, eu era adolescente, mas me
tratavam como se eu não fosse capaz de pensar, sendo que eu
certamente era mais inteligente que muita gente mais velha que eu.
Eu não era iniciante.
Fitei meu altar, repleto de livros de ocultismo, velas, utensílios,
imagens, representações e meu grimório. A decoração era singular. Para
uma pessoa como eu, que não gostava de ler, era impressionante que
livros tão grandes e de leitura tão árida tivessem me prendido tanto. Isso
tudo pela sede do conhecimento. Eu queria entender.
No dia anterior tinha sido a primeira vez que vi outros ocultistas em
carne e osso. No máximo eu tinha falado com alguns pela internet.
Nunca tive o desejo de me juntar a um grupo. Era mais agradável estudar
sozinha. Mas depois que eu os vi pessoalmente, com aqueles mantos e
máscaras, algo se acendeu dentro de mim. Um desejo genuíno de ser

15
Juliana Duarte

parte daquilo tudo. Melhor do que apenas olhar de longe, com fascínio e
admiração.
Para mim era muito mais do que uma necessidade de fazer parte de
um grupo que tinha os mesmos interesses. Eu era apenas uma estudante
do oculto. Não ousava praticar. Afinal, eu tinha medo. Não queria fazer
algo errado e me dar mal. Eu precisava de orientação, urgentemente. Pela
internet era difícil. Eu queria alguém do meu lado, para sentir o que era
aquilo dentro de mim.
Por esse motivo, eu senti algo diferente quando o sujeito mascarado
me fitou. Será que ele sabia quem eu era? Quando me olhou, ele
percebeu que eu era diferente? Provavelmente não, ou teria ido falar
comigo. Isso significava que ele não conseguia sentir? Ou que ele
escolheu me ignorar? Eu precisava entender o que eram aquelas pessoas.
Se eram como eu. Desejava encontrar outros. É como estar em outro
país por muito tempo, subitamente fitar um brasileiro e se sentir à
vontade. Quase uma necessidade de fazer contato com outros da minha
“espécie”.
Eu gostava da minha família, dos meus amigos e da minha vida. Ao
mesmo tempo, um tempero daria mais sabor. Principalmente no meu
caso, que enfrentei problemas no passado.
Lembra-se que eu disse que amava demais a vida real? E por esse
amor algumas coisas diferentes tinham acontecido. Eu não entendia se
era bom ou ruim, mas tinha um pouco de medo só de recordar.
Você já conheceu a parte “normal” da minha vida. Agora vem a parte
estranha.
Desde pequena, acontecem eventos bizarros ao meu redor. Só com o
passar do tempo eu me dei conta de que era eu a provocá-los.
Um dia peguei um colar da minha mãe na caixa de joias. Era estranho,
pois havia um orbe que refletia tudo ao seu redor. Como num espelho,
eu podia me enxergar nele. Mas via outras coisas também.
O orbe mostrava imagens que não havia no mundo real. Eu o
balançava diante de meus olhos. O movimento ritmado me induzia a um
estado de sono. Quando isso acontecia, eu via outras formas.
Eu era muito pequena para entender. Eu balançava o colar porque
era divertido. Gostava de ver as coisas aparecendo.

16
A Gata Mascarada

Um dia o orbe mostrou alguém tocando no meu ombro. Olhei para


trás e não havia nada. Mas o orbe mostrava claramente uma forma quase
humana, embora levemente embaçada.
No começo eu não conseguia me comunicar com eles. Conforme o
tempo passou, o orbe retratava mais formas, onde quer que eu estivesse.
Comecei a andar com o colar no pescoço.
Normalmente ele era só um espelho. Somente quando eu estava à
beira do sono, conseguia ver. Por isso a maioria desses contatos ocorreu
tarde da noite, quando eu estava sozinha no meu quarto.
Quando eu me assustava, corria para o quarto dos meus pais ou da
minha irmã, chorando. Logo, a sensação passava e eu ficava em paz.
– Está tudo bem, Fai. Os espíritos já foram embora.
Com o tempo percebi que alguns espíritos eram simpáticos e outros
não, assim como as pessoas. Afinal, eles eram pessoas mortas, vagando
por um espaço-tempo diferente do nosso.
O colar era meu canal de comunicação com eles. Entendíamos um ao
outro. A princípio eu só queria informações, curiosa como sempre fui.
Eu perguntava como era morrer, como era a vida após a morte e quando
seria minha hora. Mas eles se negavam a responder a maior parte das
minhas perguntas.
Eles diziam que era melhor eu não saber certas coisas. Isso poderia
gerar um impacto negativo, psicoses ou traumas. Os espíritos mais
receptivos eram muito cuidadosos em me ensinar. Alguns contavam
sobre suas próprias existências passadas. E quando eu pedia para saber
coisas ao meu respeito, eles tinham cuidado redobrado ao me dizer.
Aprendi que os espíritos não eram Deuses sapientes ou nada assim.
Eles também tinham muitas dúvidas, então entendiam minha curiosidade.
Alguns até tinham esquecido como era ter um corpo e me perguntavam
sobre isso também.
A memória é algo muito fugaz. Aprendi que quando você morre
perde praticamente tudo que entende como “eu”, incluindo o corpo, a
mente, até a memória. O que restava não era nem mesmo a alma. Aquilo
tudo era muito complicado.
Os espíritos diziam que o termo “alma” abarcava implicações
inapropriadas que não refletiam o verdadeiro resquício do vir-a-ser. O
que restava era algo mais próximo das emoções que experimentamos em

17
Juliana Duarte

vida. Como um conhecimento que transcende a memória. Eu, que era


uma criança pequena, fiquei muito confusa com as explicações.
Restar algo após a morte e não restar. Nenhuma das explicações
estava certa; ainda assim, não estavam totalmente incorretas. Não
chegava a ser apenas um problema de linguagem, mas uma dificuldade
de refletir os eventos das outras dimensões neste plano, regido por
outras regras e leis.
– Se perdemos a memória quando morremos, como vocês
conseguem se recordar de traços de suas existências com tanta precisão?
– perguntei uma vez, intrigada.
– Porque somos vagantes astrais, ou fantasmas – explicou Siii, um
dos espíritos com quem eu conversava – só quem ainda tem ligações
fortes com esse plano retorna sob essa forma. Em breve partirei para
outra existência. Talvez não neste plano. Mas pode ser que ainda
possamos nos contatar.
Eu chamava os espíritos conforme os sons peculiares que escutava.
Siii eu ouvia como um chiado agudo. Leee era como um suspiro de
lábios entreabertos.
Siii era bonzinho e me explicava tudo com calma. Leee era mais
impaciente. Comuniquei-me com os dois por pelo menos uns três anos,
e também com outros espíritos.
Era fantástico acompanhar a trajetória de evolução deles. Eu sabia
que o tempo nos outros planos passava de forma diferente. Alguns
“tempos” eram rápidos demais, outros excessivamente lentos.
Perdi o traço da existência de alguns. Eu, com meu raciocínio infantil,
concluí que certamente tinham reencarnado como alienígenas, em outros
planetas. Siii disse que era possível, mas me recordou que alguns podiam
voltar como seres humanos, animais, plantas ou diversos outros seres da
Terra.
Mas esse não era o limite. Podiam habitar outros planos, como os
reinos celestiais, infernais, planos de seres mitológicos e outros tipos de
criaturas que nem mesmo em livros eu saberia da existência. Alguns seres
estavam fora do acesso da mente humana.
– Você certamente voltará como um anjo, Siii – eu disse – afinal,
você é muito bonzinho. Leee deve virar um demônio.

18
A Gata Mascarada

– Nessa forma que estou, tenho muito mais consciência de meu


karma e sinto que meu tempo aqui está se esgotando. Devo voltar como
animal.
– Onde? Que animal?
Fiquei ansiosa, pois era confortante saber que ele habitaria meu plano.
– Não sei. Conforme os dias passam, entendo mais. Prometo que
tentarei reencarnar próximo de você, que é minha amiga.
Chorei muito no dia em que perdi contato com Siii. Concluí,
naturalmente, que ele havia partido para outra existência. E não foi
coincidência que a gata da Pâmela deu cria bem nessa época.
Derramei lágrimas, emocionada, quando senti a energia de Siii na
gatinha. Imediatamente quis dar esse nome a ela, mas a metida da minha
irmã, que ainda morava em casa, achou ridícula a minha ideia e inventou
o “Babushka”. Meus pais também foram a favor da sugestão da minha
irmã.
Então só quando estou sozinha com Babu eu a chamo de Siii.
Consigo comunicar-me com ela, até certo ponto. É bem diferente da
comunicação mais livre que eu tinha com Siii como espírito, já que ele
ainda possuía o antigo raciocínio humano da última forma. Ainda assim,
era maravilhoso poder sentir meu amigo pelo toque, com o calor da vida.
Era muito mais próximo do que contatar um espírito.
Siii me contou, ainda como espírito, que em sua outra vida tinha sido
um homem, na Nigéria. No começo eu duvidei daquela informação. Eu
já tinha ouvido histórias de pessoas que dizem conhecer suas vidas
passadas e afirmam que foram franceses, egípcios ou qualquer outra
nacionalidade que gostem, conforme a conveniência.
Mas... eu não tinha nenhuma predileção particular pela Nigéria para
querer que Siii fosse de lá, então eu queria uma explicação.
– Eu não tenho todas as respostas – confessou Siii – conforme o
tempo passa, minhas lembranças se apagam. Pode ser que eu tenha
nascido em outro lugar e pense ter sido nigeriano.
Alguns espíritos não se lembravam de praticamente nada ou não
queriam recordar. Outros me narravam com detalhes coisas que eu não
tinha o menor interesse em saber. Até tentei confirmar na internet as
informações e descobri que algumas estavam totalmente erradas.

19
Juliana Duarte

– Leee, você está me dizendo tudo ao contrário! – reclamei – Errou o


nome da capital da Indonésia. Se tivesse nascido lá mesmo, não erraria.
E, afinal, como entende minha língua? Está tentando me confundir ou
você mesmo é confuso?
– As duas coisas – ele respondeu – se é assim, me diga algo da sua
vida passada.
– Não sei! – protestei – E se eu não tive uma vida passada?
– Eu não sou Deus! Pode ser que todos nós estejamos sendo
enganados!
Siii nunca gostava desses dramas metafísicos de Leee. Baq tinha sido
mulher na outra vida e bagunçava minha cabeça ainda mais. Era cheia
das teorias, mas eu não estava interessada em hipóteses e sim em fatos.
– Muito bem – disse Baq – se é isso que quer, eu te darei “fatos”,
caso se refira a algo que possa captar com os sentidos do seu plano.
Coloque sua mão sobre o vidro da janela.
Fiz como ela indicou. Depois disso, ela me ordenou que eu
pronunciasse algumas vogais e me concentrasse. Ela disse que a vibração
seria suficiente.
Houve uma rachadura na janela, bem leve. Mesmo assim, eu me
impressionei. Ela disse que ajudou a produzir, mas que se eu treinasse
em breve poderia fazer sozinha.
Baq era muito boa nisso e me dava lições sobre como despertar
poderes psíquicos. Era questão de concentração: de compreender o
funcionamento do meu cérebro e da estrutura da matéria.
– O plano dos humanos... ele é tão simples e frágil que parece de
brinquedo – comentou Baq, cheia de si – é extremamente fácil manipulá-
lo.
– Se é tão simples, como não se vê gente lançando fogo pelas mãos e
lendo mentes por aí?
– Ainda não, mas a ciência vai avançar. A física, a neurociência e
tantos outros campos que lidam com essa área direta ou indiretamente.
Para quem está fora, é mais fácil entender. Se você estivesse onde estou,
compreenderia.
Só era divertido saber mexer com aquilo porque poucos sabiam.
Num mundo em que as pessoas flutuassem e movessem objetos com a

20
A Gata Mascarada

mente, seriam habilidades comuns como comer e dormir, e não teriam a


menor graça.
– Ainda vai ter graça – garantiu Baq – porque certos poderes serão
mais difíceis de desenvolver que outros. Os mais complexos terão mais
status. Assim como é possível aprender idiomas ou tocar instrumentos,
mas ainda se reconhece pessoas que o fazem com maestria.
No fundo eu não me importava. Eu já estaria com outro corpo nessa
época.
– Quando eu reencarnar vou manter comigo meus poderes
psíquicos?
– Talvez alguns, mas não se preocupe com as outras vidas. As
circunstâncias serão tão diferentes e suas preocupações tão diversas que
não há o menor sentido em pensar nelas agora.
Teve uma época em que desejei saber de tudo. Eu queria acessar
outras dimensões. Queria ter poder tanto sobre a matéria como sobre
meu espírito. Até mesmo desejei conhecer quem eu fui em outras vidas e
quem foram as pessoas próximas a mim. Siii, quando ainda era um
espírito humano, alertou-me quanto a isso.
– Não importa quem você foi ou quem será. Por que acha que as
pessoas normalmente não se lembram dessas coisas? Porque pensar
nisso pode fazer mal. Você deve se ocupar do presente. Não faz sentido
viver no passado ou no futuro. Apenas respire. Isso é o bastante.
Eu não me convenci. Eu achava Siii meio careta, como um pai dando
sermão. Eu queria viver perigosamente.
Enxerguei algumas de minhas vidas passadas. Eu sofri. Praticamente
revivi o instante da minha morte e muitas dores. Consegui até espiar
coisas do futuro e chorei. Queria esquecer, mas era tarde demais.
Naquela época eu chorava todos os dias. Sofria pelo meu passado
horrível em outras vidas, pois recordei de dores que jamais imaginaria
existir. É verdade que também me maravilhei. Mas minha mente não
tinha força para suportar aquele impacto.
O pior foi espiar o futuro. Vi meu pai morrendo. Eu já sabia que ele
ia morrer antes da minha mãe, em que época e circunstâncias.
– Siii, eu posso evitar?

21
Juliana Duarte

– Não – ele disse – ou melhor, pode, mas não faça. Esqueça, por
favor. Pare de espiar o que não deve ou vai ficar louca. Se mexer nisso,
irá alterar outras partes. Vai ficar pior.
– Sempre fica pior?
– Nem sempre, mas provavelmente. Muitas coisas possuem um
motivo para ocorrer dessa maneira. Não todas. Mas nesse caso eu
consigo sentir uma coisa ruim se você mexer.
– Droga.
Chorei mais. Estava se tornando insuportável.
Depois dessa experiência, minha curiosidade de ver o futuro ou o
passado sumiu completamente. Em compensação, viciei em outros
poderes psíquicos.
Baq ensinou-me métodos específicos de concentração. Eu acessava
zonas do meu cérebro e conseguia mexer nas coisas de fora. Era incrível
perceber as ligações. Era como encaixar as peças de um quebra-cabeça.
Com o tempo, comecei a fazer algumas coisas. Quebrar vidros era
uma das mais divertidas. Eu podia riscar diversas superfícies, só com a
mente. No começo eu precisava passar a mão sobre a parede ou janela.
Depois, nem mesmo esse contato era necessário.
Descobri que eu poderia fazer muito mais. O limite era inimaginável.
Porém, certas capacidades eu não devia nem tentar desenvolver. Ainda
bem que não me mantive completamente surda aos conselhos de Siii.
– Telepatia, fuja disso imediatamente. Não queira saber o que se
passa na cabeça das pessoas ou irá odiá-las. Você espia as pessoas na
privacidade delas? Provavelmente não, porque sabe que elas iriam se
aborrecer. Isso é ainda pior.
– Entendi. Você acabou de me proibir de fazer tantas coisas
interessantes! O que sobrou?
– Uma das habilidades você já possui: mediunidade, pois consegue se
comunicar conosco. Isso não é exatamente negativo.
– Eu sei, é como fazer amigos, pode ser negativo ou positivo
dependendo da pessoa. O que mais temos?
– Projeção astral você já consegue fazer nas meditações, para visitar
outros planos, mas tome cuidado com isso também. Há planos que
geram êxtase e outros que podem te afetar negativamente, gerando
depressão e outros sintomas.

22
A Gata Mascarada

– Posso transformar meu corpo? – perguntei, empolgada – Ficar


invisível, voar, mudar minha aparência? Sentidos aguçados, superforça,
superagilidade, visão de raio-x. Lançar bolas de fogo, respirar embaixo
d‟água, curar, reviver os mortos, ser imortal.
– Calma! Por que tudo isso?
– Porque é legal.
– Bem, assim como na vida, você precisa fazer escolhas – explicou
Siii – pode ser muito legal fazer todos os cursos de uma universidade,
aprender todas as línguas ou qualquer habilidade que queira possuir. Mas
você não terá o tempo. Ou mesmo que tivesse, é elementar que quando
deseja se focar em apenas uma área ficará muito bom nela.
– Tem razão, melhor eu me focar em poucas áreas em vez de ser
medíocre em todas. Acho que as três últimas que mencionei devem ser
as mais difíceis.
– Mas não impossíveis – garantiu Siii – curar é bem útil. Mas
prolongar a vida e reviver os que se foram é quase desnecessário. A não
ser nos casos em que a pessoa teve uma vida muito curta. A vida humana
tem um período suficiente. Logo terá outras existências, em outras
formas e consciências.
– Queria superinteligência para me dar bem nas provas. Não posso
substituir a telepatia pela empatia?
– Isso já é melhor. Captar os sentimentos das pessoas, mas sem
invadir a privacidade delas. É aceitável. E só um aviso, antes que
proponha: não mexa no tempo. Desconsidere os poderes de
manipulação temporal e viagens temporais.
– Sim, já tive problemas suficientes com premonição.
Antes eu achava que Siii era muito certinho. Mas depois de
experimentar algumas sensações horríveis, eu compreendi que certas
posturas éticas dele eram justificáveis.
Acabei optando por poderes específicos e foquei-me neles.
Naturalmente, a mediunidade e as projeções sempre foram muito fortes
em mim.
Eu tinha facilidade em captar as entidades e me comunicar com elas.
No começo, apenas com os espíritos dos mortos, ou necromancia. Por
causa da nova encarnação de Siii, também adquiri a capacidade de
comunicar-me com os espíritos dos animais, como os xamãs. Baq

23
Juliana Duarte

posteriormente encarnou como demônio e eu não desejei comunicar-me


com ela, por medo. Eu não sabia o destino de Leee, mas certamente não
era como anjo, com os quais eu tinha pouquíssimo contato.
Quando os três espíritos com os quais eu tinha mais contato
desapareceram, passei a comunicar-me com novos amigos espirituais. Já
que eram principalmente os espíritos desse plano que retornavam para cá,
para acessar a mente de outros seres eu tinha que mergulhar nas outras
dimensões pelas projeções. Assim como faziam os orientais com
meditações.
Além desses dois poderes, eu foquei na empatia, principalmente
porque eu sabia que possuía o consentimento de Siii para fazer isso.
Quando eu fitava uma pessoa e principalmente quando conversava com
ela, eu normalmente conseguia perceber seus sentimentos reais, mesmo
que ela tentasse dissimulá-los. Era um bom truque para detectar mentiras.
Uma pessoa raramente conseguia mentir para mim, embora eu mesma
fosse muito boa nisso. Eu sabia enganar, porque entendia com as
pessoas normalmente fazem para captar emoções.
Nesse ponto, talvez eu estivesse adquirindo certas habilidades de
psicopatas. Mas eu preferia pensar que eram eles que obtinham certos
poderes paranormais por serem tão calculistas.
No meu caso, era um equilíbrio entre razão e emoção. Era nisso que
eu estava trabalhando. Análise atenta de como funcionava o mundo e de
como eu o via. Até que ponto eu poderia afetá-lo ou ser afetada por ele.
Mas isso não foi o pior. A brincadeira passou dos limites quando
comecei a focar nos exercícios que Baq me ensinou, de manipular
objetos com a mente. Eu melhorei muito minha capacidade telecinética.
O problema é que, se captar as emoções das pessoas já é difícil,
manipular as partículas de objetos inanimados é muito mais. Eu não
conseguia fazer isso direito. E como foquei no treinamento empático, o
estado das minhas emoções influenciava muito a maneira com que eu
alterava o mundo mentalmente lá fora.
Quando eu mantinha a calma e me concentrava, eu raramente era
capaz de mover os objetos de forma regular e de acordo com a vontade.
Mas algumas vezes quando eu me irritava ou expressava algum tipo de
emoção muito intensa, coisas iam pelos ares.

24
A Gata Mascarada

Nesse momento, eu agradeci Siii mentalmente por ter me impedido


de estudar a telepatia. Ela exerceria grande influência para fazer com que
minhas emoções flutuassem, o que geraria uma desconcentração
tremenda.
Houve alguns episódios particularmente preocupantes. Uma vez
discuti com minha irmã e quebrei a janela. Outra vez, no colégio, irritei-
me enormemente com um colega meu na sala de informática e acabei
fazendo com que os computadores parassem de funcionar. Gerei pane,
eu era muito sensível quando havia equipamentos eletrônicos por perto.
Até explodi um celular mentalmente uma vez.
Aquilo não era legal. Não era divertido como nos filmes. Era
monstruoso. Estava afetando minha vida de forma negativa. Eu não era
capaz de viver sem expressar emoções e nem queria.
Num momento da minha existência, o que mais desejei foi ter uma
vida normal. Conversar com uma pessoa normalmente sem analisar suas
condições mentais a cada segundo. Ter tristezas ou alegrias livremente,
sem me preocupar em me conter, pelo medo de quebrar ou destruir
alguma coisa.
Por esse motivo, eu comecei a diminuir meu contato com os espíritos.
Tranquei o colar numa gaveta. Até que parei de chamar entidades para cá
ou segui-las no plano astral. E, evidentemente, eu sempre me mantinha
longe de métodos divinatórios, pois eu tinha um faro aguçado para
enxergar eventos. O ideal era manter-me distante de qualquer coisa que
me desse uma pista.
Eu simplesmente escolhi não enxergar os espíritos. Algumas vezes
era inevitável vê-los, mas como comecei a ignorá-los eles me evitaram
também por um tempo. Até aí tudo estava maravilhoso.
Também parei de observar as pessoas para tentar entendê-las. Melhor
que continuassem misteriosas. Mas, infelizmente, eu não conseguia evitar
a telecinese espontânea. Por causa dela, tive que me submeter a um
exercício emocional forçado.
A partir daí, comecei a treinar para suprimir as emoções. Esse
treinamento começou aos meus 12 anos. Desde então, eu evitava
principalmente crises intensas de fúria ou de tristeza. A alegria não era
tão perigosa. Ainda assim, eu procurava não me exaltar demais.

25
Juliana Duarte

Isso gerou um problema, principalmente nas minhas amizades e


namoros. Meus amigos me achavam meio apática, já que eu raramente
gritava e pulava de alegria. E quando eles estavam tristes, eu não me
envolvia muito com a tristeza. Eles se sentiam ofendidos.
Eu não fazia isso porque queria. Sempre fui uma pessoa intensa, que
abraçava todos os tipos de sentimentos do mundo, fossem negativos ou
positivos. Mas eu não queria machucar alguém sem querer. Ou talvez,
pelas minhas atitudes, eu estivesse gerando machucados psicológicos
piores que eventuais feridas físicas.
Namoro era ainda mais delicado. Por causa dessa constante supressão
de emoções, eu me sentia solitária. Apaixonava-me com facilidade. Pedi
muitos colegas meus em namoro nos últimos dois anos. Dos que
aceitaram, nenhum me aguentou por muito tempo.
Eles diziam que eu não tinha sentimentos. Ou que eu parecia fingir
emoções, que soava artificial. Talvez fosse mesmo. Eu era mestra na arte
da dissimulação.
Tentei mudar com Otávio. Acho que fui uma namorada perfeita,
dando toda a atenção a ele e expressando minha alegria e paixão sem
medo. O problema é que tentei mudar bem quando namorei um otário.
Ele estava sempre ocupado com as coisas dele e não me dava atenção.
Eu já estava acostumada a suprimir a tristeza de fins de namoro, por
isso não me abalei muito. Mesmo assim, era sempre uma flechada no
coração. Eu precisava de um novo namorado logo ou poderia me sentir
tentada a me comunicar com os espíritos de novo.
Quando eu era bem nova evitava ter amigos na escola, porque eu
achava que meus amigos espíritos eram muito mais legais. Só
posteriormente que pude compreender que não se pode trocar uma coisa
pela outra. Não é porque vou comer que não preciso dormir. São duas
coisas diferentes. Precisamos de ambas para viver.
Muitas pessoas vivem normalmente sem ter contato com o espiritual.
Mas essa falta é compensada por outras fontes, como amor, amizade e
envolvimento com diversos afazeres e diversões.
O contato com o outro mundo supre muito disso. A ponto de
algumas pessoas pensarem que não precisam mais desse mundo, de tão
fascinadas que ficam com as coisas da mente. Mas esse é outro tipo de
vício.

26
A Gata Mascarada

Tive que sentir na pele para entender a necessidade do equilíbrio.


Claro, cada pessoa busca sua medida ideal na balança das sensações. Eu
decidi que não podia negar o mundo. Devia ter amigos reais também. E
assim, voltei a me apaixonar pelo mundo real.
O problema é ter gostado tanto do nosso mundo a ponto de querer
alterá-lo com telecinese. E isso gerou outra espécie de desequilíbrio: a
paixão pelas coisas da Terra a tal ponto de desejar que estejam sob o
nosso comando, que sejam eternas e controláveis por nossa vontade.
Nesse momento, tive que dar outro passo para trás. Para entender o
mundo, eu precisava desse equilíbrio. Se eu abraçasse o espiritual e
negasse o mundo, eu me esqueceria de viver essa vida. Se eu esquecesse
completamente o espiritual, poderia ficar confusa em relação à vida,
achando que as coisas não tinham sentido. Afinal, como um mundo tão
bom poderia perecer?
Normalmente as pessoas vivem bem, sem precisar do espírito. Elas
só ficam confusas quando se deparam com realidades como dor, doença
e morte. Nesse instante, não sabem lidar com a tristeza. E nessa ocasião,
o espírito possui todas as respostas. Porque quando você o abraça,
compreende o significado profundo da impermanência da matéria e da
eternidade do espírito.
– Ei, Fai. Tá falando sozinha?
– Não, eu só tô lendo mentalmente um texto que escrevi.
– Você consegue decorar tudo o que escreve?
– Sim. Mas eu não escrevo muito. Odeio escrever. Só quando tenho
algum devaneio mental bom.
– Fico aliviada que seja só isso. Já estava achando que tinha voltado a
falar com espíritos de novo – disse Iolanda.
Eu sentei-me na cama ao lado dela.
– Por que veio dormir em casa outra vez?
– Porque tive uma briga boba com o Gui. Mas não se preocupe, é só
briguinha ridícula. Amanhã já estaremos bem.
– Que bom. Tem algum lindinho na sua turma que seja pedófilo?
– Cala a boca, fedelha – disse Iolanda – E o que você estava
declamando alto? Algo sobre seu espírito eterno? Bem, eu nunca falei
com espíritos, então não sei se existe.
– Existe – eu confirmei.

27
Juliana Duarte

– E se for ilusão?
– E se a vida for ilusão também? – desafiei – Um truque do cérebro?
E daí? Faz diferença? É menos real?
– Não começa. Odeio as suas respostas estilo vale-tudo, que ao
mesmo tempo explicam tudo e não dizem nada.
– Não tenho culpa se o cérebro humano é limitado para raciocínios
mais complexos. Não sou tão burra quanto você pensa.
– Como você pode ter tanta certeza que há vida depois da morte?
Você afirma isso com mais convicção do que qualquer pessoa que eu
conheça. Até as pessoas que dizem isso afirmam que é a crença delas.
Para você é real como respirar. Impressionante, mas não me convence.
– Não quero convencer ninguém. As pessoas veem o mundo de
acordo com o que o corpo e a mente delas podem captar. Seria
necessário que elas tivessem experiências em outras dimensões para
entender do que falo.
– Seria interessante se a vida continuasse, contanto que tivessem
pessoas igualmente interessantes para interagir – disse Iolanda – não
quero ser um fantasminha flutuando no espaço.
– O espírito não é um fantasminha – corrigi, cansada de explicar
aquilo – é emoção pura. Não é corpo, mente ou alma. Geralmente vai
tudo embora, memória também.
– Então é como morrer. Qual a diferença?
– Você não entende o que eu digo porque não sentiu. Não é algo
possível de explicar. Na vida podemos duvidar de tudo, mas precisamos
confiar em alguma coisa. Pode ser numa pessoa, no amor, na
humanidade, em si mesmo. As pessoas precisam viver por algo ou por
alguém. Ou viverão como vegetais, sem emoções?
– É como você está tentando viver, para não explodir coisas –
criticou Iolanda – está mexendo com essas coisas bizarras de novo e vai
se dar mal.
– No meu caso eu exagerei, mas se as pessoas contatam o mundo
espiritual de forma moderada é saudável e lindo. Inspirador. Revelador.
– É, mas você não pode fazer sexo com os espíritos.
– Até posso. Tem um tal de incubus que... bom, esquece.
– Não ligo para suas esquisitices, mas trate de arrumar logo um cara
legal para parar com essas besteiras. Você fica bem mais sorridente e age

28
A Gata Mascarada

de forma mais normal quando está namorando. Quero te ver feliz. E


arrume um menino na sua escola! Nada de pedir para mim, ouviu?
– No meu colégio só tem babacas... – falei, baixinho.
Quando Iolanda saiu do meu quarto, folheei meus velhos livros de
ocultismo. No passado procurei respostas neles, mas só tive mais
dúvidas. Eu não encontrava meios de controlar minha telecinese
aleatória. Os livros forneciam ótimo material em outros campos e
aprendi muito, mas não no que eu mais precisava.
Os espíritos já tinham me explicado as partes mais importantes e me
recomendaram não olhar adiante. O problema foram as instruções de
Baq. Só contatando-a para resolver esse problema, mas eu precisava
pensar duas vezes antes de invocar um demônio. Com um poder
psíquico forte como o meu, era uma péssima ideia.
Estudei alguns símbolos de proteção nos livros, para eventualidades.
Siii havia me passado alguns selos também. E mantras era a minha
especialidade, por causa dos treinamentos. Eu conhecia bem os sons de
poder. Meus sentidos eram aguçados.
Quando fui para o colégio, foi um tormento ver Gisele agarrando
Otávio debaixo da árvore do pátio no intervalo.
“Ela você deixa te agarrar” pensei, levemente aborrecida.
Mas eu tinha decidido que não ia descontrolar minhas emoções. Se eu
ficasse com mais raiva, capaz de fazer aquela árvore despencar na cabeça
deles. Ou ainda pior: eu poderia contatar uma entidade para possuí-los.
Isso seria ainda mais fácil. Ou qualquer tipo de maldição simples...
Em vez disso, para esquecê-los decidi pedir outro colega meu em
namoro: Humberto, que até que era bonitinho também.
Ele recusou educadamente meu pedido, todo preocupado achando
que eu ficaria mal depois.
– Que nada, fica tranquilo – eu disse – já levei tanto fora que um a
mais não faz diferença.
Talvez eu o tenha ofendido dizendo aquilo, mas não me importei.
Decidi reenviar o e-mail para o grupo de ocultismo dizendo que,
mesmo que não me aceitassem na Ordem, eu precisava urgentemente de
auxílio. Expliquei brevemente as circunstâncias. Disse que estava com
problemas gerados pelo desequilíbrio do uso de poderes psíquicos.
Dessa vez eles concordaram em ajudar. A resposta foi a seguinte:

29
Juliana Duarte

“Cara Ofélia,

Teremos prazer em prestar-lhe auxílio com as ferramentas que estiverem ao nosso


alcance. Devo dizer que também temos interesse em analisar seu caso. Convidamos a
senhorita a comparecer à filial da Ordem, na data e endereço que forneço no
documento em anexo.
Peço que confirme presença e, em caso de dúvida, daremos os esclarecimentos numa
próxima mensagem.

Meus cumprimentos

Joo-Gzai”

Confirmei presença imediatamente. Aquela aparentava ser uma


Ordem um pouco maior e mais organizada do que os pequenos grupos
de ocultismo de costume. Tinham até um endereço oficial para encontro.
No fim de semana, fui até o endereço indicado. Quatro pessoas já me
aguardavam.
– Boa tarde, Ofélia – ela estendeu a mão.
Quem me cumprimentou foi uma moça que devia ter em torno de 27
anos.
Reconheci o formato do rosto e dos lábios. Ela era certamente a
moça que acompanhou o homem de capuz no dia em que pregaram os
folhetos nos quadros de aviso da universidade.
Ela aparentava ser a líder. Tinha um semblante muito sério e
inteligente. Talvez meio malvado. Mas eu senti boas intenções nela.
O segundo a me cumprimentar foi um homem de cabelos negros
inconfundíveis. Lá estava ele sem a máscara. Devia ter uns 35 anos, caso
meu cálculo estivesse correto. Mas eu raramente errava. Era boa em
observar rostos. Senti que ele era uma pessoa divertida.
O terceiro era um cara bem normal, de casaco azul e cabelos
encaracolados, com idade próxima a de Iolanda. A quarta, uma moça
também de cabelos de caracóis, muito sorridente. Simpatizei com ela na
hora. Devia ter uns vinte e poucos anos.

30
A Gata Mascarada

Eles me convidaram a sentar. Nossa, tinha até um sofá! Até que


aquele lugar era bem confortável. A atmosfera era boa, mas meio
carregada. Era certo que eles já tinham evocado entidades perto dali. Eu
podia sentir.
– Me desculpe, mas qual é a sua idade mesmo? – perguntou a
primeira moça.
– Quinze – informei.
– Tem certeza?
– Claro que tenho certeza!
Eles me fitavam como se achassem que eu tivesse dez. Pensaram que
eu estava mentindo. Não gostei muito dessa desconfiança. Se eles
pretendiam mesmo estabelecer alguma comunicação ali, tinha que haver
confiança.
– Meu nome é Ângela – ela informou – sou a líder da filial da Ordem
aqui de Brasília. O vice-líder é o Fábio.
O cara da máscara.
Os outros dois eram o Jonas e a Raquel.
– Seu nome é por causa do Shakespeare? – perguntou Fábio,
perspicazmente.
– Não – respondi, pela milésima vez – era o nome da minha bisavó.
– Por acaso você tem um irmão chamado Laertes?
– Não, só uma irmã chamada Iolanda – respondi para o engraçadinho.
– Conheço uma Iolanda – informou Ângela – sua irmã é da
economia? Faço mestrado em economia empresarial por lá.
– Essa mesma. Bom, essa não é uma Ordem da universidade, então?
– Não, só fizemos uma extensão lá para atrair novos membros –
explicou Ângela – mas vamos ao que interessa. Eu peço que nos forneça
mais detalhes para analisarmos sua situação.
Agora ela estava falando minha língua. Todo aquele papo de
apresentações era muito demorado.
– Eu explodo coisas com a mente. Quebro vidros, danifico aparelhos
eletrônicos. Tudo inconscientemente, quando tenho raiva ou outro
sentimento forte. Queria que isso parasse. Desisti de aprender a
controlar, é muito difícil. Os espíritos com quem eu me comunico
também me desencorajaram a mexer com isso.

31
Juliana Duarte

– Você tem certeza sobre a relação direta entre os eventos? –


perguntou Ângela.
– Absoluta. Mas não sei demonstrar. É só quando desperto um
sentimento.
Eles me fitavam como se duvidassem. Aquilo me dava ainda mais
raiva. Eles eram ocultistas ou não? Aquela moça tinha duvidado até que
eu sabia minha própria idade.
– Ofélia, peço desculpas se estamos sendo rudes – comentou Fábio,
em outra demonstração de sagacidade – acabamos de nos conhecer,
portanto precisamos fazer certas perguntas.
– Já nos conhecemos – afirmei – no dia em que você e a líder
colavam cartazes no quadro de avisos.
– Sim, eu me lembro do seu rosto. Parece que você nos seguiu para
espiar o encontro da Ordem, mas não ficou por muito tempo.
Então ele lembrava mesmo. Fiquei contente por isso.
– Quando me observou, você percebeu que eu era diferente? –
perguntei, ansiosa – Que eu tinha poderes?
– Me desculpe, mas não percebi – disse Fábio – mesmo entre os
ocultistas são poucos de nós que possuem uma percepção extra-sensorial
desenvolvida.
– Vejo que estão mais preocupados com a teoria do que com a
prática.
– De fato, o ocultismo é o estudo teórico, mas a base empírica é
fortemente desejável para que uma teoria forte seja estabelecida – disse
Fábio – devo dizer que há várias formas de treinar essa prática além do
desenvolvimento de certos poderes. É um campo tão amplo que não há
limites.
– Então um mago não é mais forte quando possui poderes
sobrenaturais mais elevados?
– Não necessariamente – disse Fábio – e nem aquele que possui
habilidade com feitiços. De fato, eu diria que cada um é superior na sua
área. A harmonia da teoria e prática escolhidas que o torna um bom
mago.
Aquela informação me desapontou um pouco. Eu sempre tinha me
considerado uma maga poderosíssima, pois sabia explodir coisas.
Aparentemente aquilo não era o mais importante. Eu podia pegar um

32
A Gata Mascarada

copo com a mão e jogá-lo no chão em vez de usar a mente para explodi-
lo. Certamente havia questões e práticas mais importantes e complexas
que aquela.
– Que bom, então não vou sentir pesar em perder esse poder – decidi
– podem fazer isso parar?
– Vamos tentar.
Eles se levantaram e me conduziram a outro cômodo. Lá sim que era
impressionante
Era a sala ritualística, para magia cerimonial. Altares, toalhas, mesas,
tudo muito bem decorado com símbolos arcanos. Geraria a emoção
necessária.
Pediram que eu deitasse no centro. Percebi até a mesa sagrada da
Magia Enochiana num canto e pensei: “Ah, já era. Vão fazer um
exorcismo”.
No outro canto havia uma mesa com utensílios de alquimia. Os
quatro folheavam grimórios e debatiam, como se fossem médicos e eu a
paciente aguardando que a operação se iniciasse.
Raquel, que provavelmente era boa em RHP, ia operar a Mesa
Enochiana. O tal Jonas ia mexer nas poções. Fábio traçou o círculo e o
triângulo para se ocupar da Goetia. Ângela, por sua vez, coordenaria a
totalidade da operação para que tudo ocorresse conforme os planos e
iniciou com o banimento. Pelo jeito, eles tinham misturado um monte de
sistemas mágicos para ver se pelo menos um surtia efeito.
Meu coração estava acelerado. Era a primeira vez que eu fazia parte
de um ritual de grupo. E provavelmente eu só precisaria assistir. Se bem
que eu era a protagonista do espetáculo. Ia improvisar.
Círculos arcanos foram traçados. Fórmulas evocatórias em
Enochiano e em idiomas bárbaros foram pronunciadas. Aquilo tudo
mexeu comigo. O formalismo era espetacular. Se eles tinham poderes de
fato ou não, eu desconhecia. Mas, pelos céus, eles eram elegantes ao
extremo. E aquilo funcionou comigo. Eu expressei reação. Era isso que
eles queriam.
Sim, tinha algo lá. Um choque de entidades. Aquilo era demais. Tudo
vindo para cima de mim, me sufocando. Atmosfera extremamente
pesada. Forte, muito forte. Eu gritei.
Estava ficando nervosa, com medo. Queria que parasse.

33
Juliana Duarte

O alquimista, que segurava uma garrafa com uma mistura vermelha,


recuou. Alguns potes de vidro diante dele explodiram. Grimórios
voaram.
E, de repente, tudo parou.
Coincidência? Não sei. Foi tudo bem calculado. Eu duvidava muito
que eles fossem dizer que o mago simplesmente tinha derrubado a
garrafa no chão por acidente.
Eles encerraram o ritual, liberaram os espíritos e realizaram o
banimento. Tudo o mais rápido possível.
– Eu me assustei – desculpou-se Jonas – derrubei a garrafa. Mas
alguma coisa voou.
– O livro – disse Fábio – essa garota realmente explode coisas.
– Obrigada por acreditarem em mim – comentei, ironicamente – os
senhores ocultistas estão mais céticos que ateus?
– A senhorita precisa entender que muitos falsários aparecem, pelas
mais diversas razões – explicou a líder – precisávamos nos certificar.
– Pelo que vi, vocês têm algum poder – reconheci – a magia
cerimonial de vocês é impressionante. E realmente aconteceu uma
evocação.
– Pelo seu tom, você também parecia duvidar que fôssemos sérios –
disse Ângela – então estamos quites.
Sim, ela venceu. Mas só daquela vez.
– Como pretendem resolver meu problema, então? – perguntei,
confusa.
– É mais forte do que pensávamos – disse Ângela – vamos contatar a
sede da Ordem. Precisamos de reforços. Veremos se alguns membros
podem viajar.
Aquilo estava ficando cada vez mais dramático. Iam chamar magos
de outros estados só por minha causa. Eu era mesmo uma estrela.
Aqueles fenômenos deviam ser raros, mesmo no meio ocultista. Por
isso, suspeitei que alguns membros fossem mesmo viajar, para presenciar
o espetáculo antes que eu perdesse meus poderes.
Posteriormente, me avisaram por e-mail que quatro membros
confirmaram presença. Até mesmo o líder nacional da Ordem viria de
São Paulo direto para minha cidade no próximo fim de semana.
Sensacional!

34
A Gata Mascarada

Pesquisei um pouco sobre ele na internet. A biografia era bem


impressionante. E a foto fez meu coração derreter. Ele era negro, bem
mais velho que eu, sensual e sábio. Eu não ia deixá-lo escapar. Ia pegar
para mim. Derrotaria o líder deles para mostrar que até uma garota do
colegial poderia dominar uma Ordem de adultos.
Durante aquela semana, preparei um voodoo bem feito. Comuniquei-
me com o espírito da minha gata para ajudar-me.
– Siii, quero Gregório para mim. Quero ter tudo. Desde pequena
tenho tudo. Se não consigo o que quero, explodo. Não vou deixar que o
líder tire de mim esse poder. É com ele que irei humilhá-lo diante dos
membros.
– Ofélia, Ofélia, ainda é tão imatura – observou Siii, através do
espírito de Babushka – mesmo depois de tudo o que te ensinei e de tudo
que passou. Não tinha decidido não usar seus poderes para punir
pessoas?
– Beijá-lo não será uma punição e sim uma bênção – expliquei,
enquanto enfiava agulhas no bonequinho de voodoo que costurei.
No dia do ritual de exorcismo, abri minha gaveta trancada depois de
tantos anos. Coloquei o colar ao redor do pescoço. Agora que eu estava
de posse do meu poder total ficaria mais divertido.
– Mas... Ofélia, aquelas pessoas estão fazendo tudo isso para ajudá-la
e você vai piorar a situação!
– Eles não querem me ajudar e sim ver o que tenho para mostrar – eu
disse – e se eu tiver que mostrar, que seja meu poder máximo.
E chegou o grande dia.
Os membros dos outros estados se apresentaram. Todos se
cumprimentaram, em suas capas negras. Lá estávamos nós de novo na
filial da ordem. Mas dessa vez seriam oito magos me atacando. Ótimo!
Ou melhor, não exatamente me atacando, mas o princípio seria
semelhante.
Gregório era ainda mais atraente ao vivo. Todos o respeitavam muito.
Ele era mais sério do que pensei. Achava que ele cumprimentaria a
todos com sorrisos, mas ele não fez isso. Ele nem mesmo sorriu quando
apertou minha mão. Engoli em seco. Aquele cara era meio assustador.
O ritual ocorreu de forma semelhante ao anterior, mas dessa vez com
muito mais força e vontade. Eu sentia a vibração. E era exatamente do

35
Juliana Duarte

mestre da Ordem que emanava uma energia pesada desgraçada. Aquele


título não era brincadeira. Ele não ia pegar leve.
Tive que beber um gole de uma poção alquímica antes de tudo
começar. Aquilo alterou meu estado de consciência rapidinho.
Gritei. Senti-me terrivelmente mal. Anjos, demônios, servidores,
elementais, espíritos familiares, potências mitológicas! A cavalaria vinha
com tudo para me esmagar! Eu jamais permitiria.
Não aqueles senhores dos livros, que mal sabiam agitar uma espada
cerimonial. Eles não eram uma ameaça real.
Com exceção do mestre miserável.
Eu suportei a pressão. Eu resistia de propósito. Por fim, quando a
operação já chegava ao final, eu informei que o demônio que havia no
meu corpo só falaria ao mestre da Ordem. Eu precisaria estar a sós com
ele.
Todos saíram. Até então, eu não tinha explodido nada. O jogo ia
começar.
Chamei Baq. Seria o fim da brincadeira. A besta possuiu meu corpo.
Subitamente, levantei do chão e avancei diante de Gregório, apertando
seu pescoço. O demônio gerou em mim outro poder sobrenatural
extraordinário: força sobre-humana.
Aquilo tudo era muito louco. Eu ia colocar tudo a perder num só
segundo. Mas que, se fosse perdido, eu o fizesse com classe.
– Maldita – ele pronunciou, compreendendo rapidamente a situação
– atraiu-me para a armadilha propositalmente. Quem é você e o que
quer?
Ele não se dirigia ao demônio e sim diretamente a mim. Eu já tinha
soltado o pescoço dele. Sorri.
– Eu quero seu corpo – eu disse – sua mente, sua alma, seu espírito.
Vou devorar tudo. Eu sou Ofélia Alvarenga Castelo. E farei de você meu
príncipe, no meu reino de glória e excelência em que eu sou a musa
absoluta.
Dei alguns socos no rosto dele. Com o demônio dentro do meu
corpo eu tinha a “força forte de toda a força”, como diriam os versos
esmeraldinos.
Minha telecinese viraria psicocinese e nesse momento estaria fora de
controle.

36
A Gata Mascarada

Quando ele já estava sangrando no chão, dei-lhe um beijo nos lábios.


– Menina, você precisa de ajuda – disse Gregório – não há demônio
algum no seu corpo. Quem fez essa escolha foi você.
Só então que percebi: eu tinha um punhal na mão. Por isso ele
sangrou tanto. Eu estava ficando louca? Não me lembrava de ter
segurado a faca.
– Não te afastei porque não quero te machucar – disse o mestre –
mas sinto tristeza e solidão em você. Não precisa de atenção. Não
precisava ter me trazido até aqui. O único demônio do seu coração é o
seu medo.
Ele venceu. Era mais esperto. Por isso ele era o mestre.
Gregório arrancou o colar do meu pescoço e quebrou-o.
– Está livre – ele disse – vá para casa, criança.
No fim, quem foi humilhada fui eu: por ser chamada de criança,
mesmo depois de tudo.
Minha telecinese desapareceu, mas não o meu medo.
Tive febre nos dias seguintes. Sentia uma sensação ruim em mim. Fui
para a psiquiatra antes que eu descontasse toda minha fúria no Otávio ou
qualquer coisa assim.
Com os remédios, meus pesadelos só aumentaram. E os dias ficaram
vazios. Isso porque de nada valia possuir todos os poderes do mundo,
reinar sobre a terra e sobre os universos se eu estava sozinha...

– Essa é minha história – contou Ofélia – do que acha que eu preciso,


doutora?
– Acho que você mesma já respondeu a sua pergunta – observou a
psiquiatra.
Ofélia tomou os remédios por mais tempo. Aos poucos, conseguiu se
acalmar, depois desse período de tanta destruição.
Saiu mais com sua irmã e com suas amigas. Principalmente com
Pâmela.
Três meses depois, um colega seu que mal conhecia dirigiu-se a ela no
final da aula. Naquele momento ela estava apática, sentada num canto.
– Você está bem, Ofélia? Estava chorando?
– Não... – disse Ofélia – ou melhor, estou bem. Não estava chorando.

37
Juliana Duarte

Depois disso, houve um longo período de silêncio. Ele finalmente


disse:
– Ofélia, estou apaixonado por você.
Ofélia observou-o. Alfredo era meio feio. E muito simpático. A
maioria de seus colegas bonitos eram uns retardados. Dessa vez não
haveria erro.
– Vamos namorar, então! – decidiu Ofélia.
Era a primeira vez que Ofélia recebia uma declaração. Antes, era
sempre ela que dizia. Ela era importante para alguém. Sentiu-se feliz.
– Sou uma maga – observou ela – você não se incomoda, certo?
– Claro que não – ele disse – eu já sabia, pois você enfeitiçou meu
coração.
“Eca!” pensou Ofélia. Lá estava um poeta horrível e enfadonho. Mas
bem melhor que Otávio, que sequer lhe fazia poesias.
– Vou te ensinar magia – prosseguiu Ofélia – também poesia e a arte
da culinária. Ah, uau! Você é CDF! Me dei bem! Vou colar de você em
todas as provas a partir de agora.
– Posso te ajudar a estudar.
– Que nada, colar é mais fácil.
– Mas você não é maga? – ele desafiou – Como não consegue tirar
notas altas?
– Ora, se eu soubesse manipular o mundo inteiro e prever tudo, não
teria a menor graça. Não acha?

38
A Gata Mascarada

Capítulo 2

Ela sentia fraqueza pelo corpo inteiro. Até abrir os olhos era difícil.
Ficou assustada quando se deparou naquele local desconhecido, pois
estava sozinha.
Não via problema em estar só, contanto que sua memória estivesse
boa e conhecesse o cheiro dos lençóis que cobriam seu corpo ou do
travesseiro no qual repousava sua face.
Aquele não era o caso. Todos os cheiros estavam diferentes. A
textura das coisas também era esquisita. Foi tentar tocar as superfícies e
não conseguiu se mexer.
Seu coração acelerou. Sentia o corpo inteiro dormente.
– Ofélia, você acordou.
Não houve sinal de surpresa na voz. A recém-chegada apenas sentou-
se numa cadeira ao seu lado.
– Estou com sede – disse Ofélia – tenho uns pedaços de
acontecimentos na minha memória, mas eles não se encaixam.
– Vão encaixar – garantiu a garota.
Ofélia levou um susto.
– Por que tem uma agulha no meu braço? – perguntou Ofélia, com
voz trêmula – Não quero. Tira isso.
– Calma. Vou buscar sua água.
Ela saiu de lá. Ofélia suspirou; meio mal humorada, meio preocupada.
Alcançou o controle e ligou a TV que havia naquele quarto de hospital.
Era um aparelho pequeno e a imagem era péssima.
– Por que ligou a TV se você não gosta? – perguntou a garota,
quando retornou.
– Porque é como se eu tivesse batido a cabeça. E tenho vontades
diferentes.
– Não foi bem isso que aconteceu. Na verdade acho preferível não te
contar o que houve. Melhor você esquecer.

39
Juliana Duarte

A informação deixou Ofélia insatisfeita. No fundo ela sabia que não


ia se sentir bem em recordar, pois quando pensava naquilo sentia uma
sensação ruim.
Ainda assim, ela decidiu que queria enfrentar a realidade. Por isso, fez
força em sua memória e tentou recordar até onde sua mente formava as
imagens. No fim de tudo, aquele quebra-cabeça estranho iria mostrar
algum cenário não exatamente brilhante.

– Olha só! A Mimi está escovando os dentes! Ela não é adorável?


Mimi é meu tamagotchi. Uma gatinha, é claro. Minha paixão por
gatos ultrapassa as fronteiras do real e penetra no mundo mágico virtual.
Quem sabe fui uma gata na vida passada? Quando perguntei isso,
Alfredo imediatamente disse:
– Não sei quanto à vida passada, mas você é uma gatinha na vida
presente.
Coitadinho, ele achava que estava arrasando com aquelas cantadas
bregas. Sinceramente, eu achava fofo o quanto ele não tinha consciência
do ridículo e isso fazia com que eu me apaixonasse ainda mais.
– Provavelmente fui uma rata – decidi – pois eu adoro queijo.
– Ainda bem que é humana nessa vida – observou Alfredo – já que
eu também sou. Vou te acompanhar nas próximas encarnações em todas
as formas que você assumir.
– Ah, pera, meu tamagotchi tá apitando – eu disse, alcançando-o
imediatamente – puxa, a Mimi tá doente! Vou dar injeção. Ufa, pronto.
Ela tá curada. Tô tão feliz! O que você tava dizendo mesmo?
– Nada...
A febre dos tamagotchis voltou na minha turma. Por isso mesmo eu
comprei um. O Alfredo, vendo que minha atenção estava totalmente
focada nisso, resolveu adquirir um também. Enquanto o meu modelo é
rosa com um gatinho, o dele é azul com um cachorrinho.
– Que charme, o cocô do seu bichinho tem carinha! – comentei,
encantada.
– Que genial, não é? – concordou Alfredo.

40
A Gata Mascarada

Eu podia ver claramente que ele estava pouco interessado no


tamagotchi. Ele não o alimentava muitas vezes e não costumava brincar
com ele.
– Alf, você é um insensível – eu disse, de cara amarrada – você deixa
o Fufu passar fome. Ele está triste porque você não o leva ao parque
para se exercitar.
– Mas... Ofi, minha linda, ele não existe. É só um brinquedo.
– Falando assim você estraga toda a magia da vida! Mimi e Fufu
precisam crescer fortes e saudáveis. Quando eles se tornarem adultos
daqui uma semana, quero conectá-los para que se reproduzam. Se o seu
tamagotchi estiver fraco e sujo, não vou querer que minha Mimi tenha
um filho com ele!
– Tá, entendi – disse Alfredo, todo sério – se isso é tão importante
pra você, prometo que irei me esforçar pra tomar conta dele.
Nesse momento eu sorri e dei-lhe um beijo no rosto.
– Tava brincando, Alf – falei no ouvido dele – Mimi vai ter filho com
seu tamagotchi sim. Só o alimente para que sobreviva mais uma semana.
Depois que cumprir a tarefa da reprodução, aí ele já pode morrer.
– Nossa, como você é fria. Mas como é que uma gata vai ter filho
com um cachorro?
– No universo mágico dos tamagotchis tudo é possível. E o amor
sempre triunfa!
– Espero que ele triunfe também na vida real – observou Alfredo –
não que eu esteja reclamando, mas podíamos fazer coisas diferentes de
vez em quando além de nos encontrarmos pra brincar com esses
bichinhos. Veja só, até sua gatinha está triste porque você a trocou pelo
tamagotchi. Vem cá, Babu.
Naquela tarde estávamos lá em casa, sentados no sofá da sala.
Alfredo segurou Babushka e colocou-a em seu colo, acariciando-a.
– Entendi, quer esquentar o relacionamento na vida real? – perguntei,
em tom descontraído – Nesse caso, quer ir agora pro meu quarto pra
gente transar?
Ele me olhou com uma expressão muito engraçada. Completamente
surpreso, como se essa fosse a última coisa que ele esperasse que eu
dissesse. Ele não sabia nem por onde começar a responder.

41
Juliana Duarte

– Quando eu disse “coisas diferentes” eu me referia a caminhar no


parque ou ir ao cinema – explicou Alfredo – estamos namorando há uma
semana e a única coisa que fizemos até agora foi brincar de tamagotchi.
Disso para a cama parece um pouco súbito.
– Bom, minha política de namoro é geralmente esperar pelo menos
duas semanas antes de pedir sexo, para que eu não pareça muito
desesperada. Por mim eu já faria no primeiro dia. Eu só mencionei
porque você deseja que o amor triunfe.
– Você parece ter muitos ex-namorados. E já é experiente. Você é
minha primeira. Não sei como as coisas funcionam. Não sabia que era
assim.
– Não tem regras, a gente que inventa. Você parece desapontado com
meu pedido. Então você não quer.
– Não é que eu não queira. Claro que eu quero! Tudo bem, vamos lá.
Eu o abracei e dei-lhe um beijo na boca. Era recém nosso terceiro
beijo. Não tínhamos a menor intimidade um com o outro. Ele ainda era
formal demais e muito cuidadoso ao falar comigo. Achei que fazer sexo
logo seria ideal para quebrar aquela barreira que nos separava.
No entanto, ele parou de me beijar.
– Desculpa, Ofélia. Estou nervoso demais. Não vou conseguir hoje.
Vou tomar um calmante da próxima vez e a gente faz, pode ser?
Quando ele disse isso, eu desatei a rir. Não conseguia parar. Quando
o fitei de novo, ele estava confuso.
– Por que riu? Eu disse alguma coisa estranha?
– Quando você falou do calmante eu... foi mal, não consegui me
segurar. Foi hilário. Eu sou tão assustadora assim? Não se preocupe, eu
prometo que não vou te machucar, meu docinho...
Dei-lhe outro beijo na bochecha. Mas dessa vez ele ficou sério.
– Você me trata como criança. Deve achar que eu sou um idiota.
– Não! – eu falei, surpresa – Eu te acho meigo.
– Ofélia, eu me senti meio ofendido quando você riu. Talvez ir para a
cama comigo não signifique nada para você. Seja algo trivial como trocar
de roupa. Mas para mim significa. É importante. E você fez pouco caso
dos meus sentimentos.
– Que drama. Eu só quis que as coisas fossem naturais. Deixa de ser
gay.

42
A Gata Mascarada

Dessa vez ele até se levantou.


– Então demonstrar sentimentos e nervosismo é ser gay? – ele
perguntou, em tom de desafio – Para provar a você que sou
heterossexual tenho que ser um cara sério e frio viciado em sexo que não
se importa com amor? Provavelmente você adoraria se eu fosse assim.
– Não, eu já namorei um estúpido assim e foi terrível – respondi –
prefiro muito mais um companheiro sensível e gentil.
– Então não entendi seu comentário.
– Saiu sem querer – confessei – desculpa, foi uma observação infeliz.
Inclusive eu já tive um amigo homossexual e era mais interessante
conversar com ele do que com a maioria dos garotos heteros que
conheci.
– Acho que vou pra casa agora – disse Alfredo – já está tarde e eu tô
meio chateado com o que acabou de acontecer. Preciso colocar meus
pensamentos em ordem. Amanhã vou estar melhor e a gente se fala.
– Você não vai terminar comigo, certo? – perguntei, com medo.
– Não... não se preocupe. Eu gosto de você. Mas é que às vezes você
diz umas coisas que... sei lá. Bem, vou indo. Até amanhã.
Quando ele foi embora, eu não sabia se eu estava triste ou com raiva.
Provavelmente as duas coisas. Estava com raiva de mim mesma, por ter
agido como uma imbecil. E estava triste por ter magoado o Alfredo, que
era tão bonzinho.
Fui para meu quarto ensaiar violino. Eu tinha começado a fazer aulas
recentemente e era péssima em tocar. Saía tudo desafinado e eu não
tinha a menor paciência para treinar. Mas tocar aquelas notas agudas e
dissonantes parecia ideal para descontar a raiva.
E eu estava tão possessa que quebrei a corda mais fina sem querer.
Aquilo me encheu de ódio, de uma forma que eu não sabia como
controlar.
Eu odiava trocar cordas. Dava trabalho e eu teria que afinar o violino
tudo de novo. Lá fui eu dedicar-me ao processo.
Adivinhe: quando eu estava quase conseguindo, quebrei outra corda.
E as outras duas estavam completamente fora do lugar.
O que eu fiz? Segurei o violino com as duas mãos e quebrei-o contra
a parede. Bati mais vezes para garantir, até ter certeza de que não restaria
uma só parte do instrumento que pudesse ser consertada depois.

43
Juliana Duarte

– Ofélia, que barulho é esse?


Minha mãe tinha entrado no meu quarto.
– Mãe, eu já te disse pra bater na porta antes de entrar – bufei.
– Que aconteceu ao seu violino? – ela perguntou, surpresa.
– Infelizmente ele morreu – informei – mais especificamente, foi
assassinado. Nem mesmo a alma foi poupada, veja só.
Alcancei a pequena madeira que ficava dentro do violino e lancei-a
contra o chão.
– Que bonito, Ofélia – comentou minha mãe, sarcasticamente – esse
era o violino novo que seu pai te deu.
– Era um instrumento vagabundo, de marca barata. Depois arranjo
um melhor.
– Claro, pode quebrar tudo no seu quarto que foi barato – incentivou
minha mãe – afinal, uma promoção não custa dinheiro, é de graça.
Ao dizer isso, ela fechou a porta. Devo confessar que aquele pequeno
diálogo não melhorou meu ânimo.
Resolvi logar no Hello Kitty Online. Eu tinha feito uma conta
naquele MMORPG recentemente. O nome da minha personagem era
Pink Rice. Minha estreia naquele jogo gerou um impacto impressionante
na minha memória.
Como eu era iniciante, conhecia pouca coisa. Mas assim que cheguei
a Sanrio Harbour, a primeira cidade após passar pelo bônus e tutorial,
deparei-me com ninguém menos que a guild dos top players.
Aquele era um RPG online com aproximadamente 90% dos
jogadores do sexo feminino, incluindo os GMs. Portanto, a fofoca corria
solta. Intrigas entre guilds era a diversão favorita das garotas.
Outra característica é que havia um público significativo de gente
mais velha. Embora houvesse adolescentes jogando, também havia um
pessoal com mais de trinta anos, inclusive mães. Com um público
feminino de faixas etárias tão diversificadas, muita coisa interessante
ocorria.
A maior parte dos jogadores masculinos era de maridos, que fizeram
a bondade de acompanhar as esposas naquele jogo todo rosa e feliz. Por
isso, era difícil para que as garotas adolescentes conseguissem achar
namorados por lá, o que as deixava ainda mais zangadas, descontando a

44
A Gata Mascarada

raiva nas iniciantes. Quando surgia um novato do sexo masculino no


jogo, ele era disputado.
A GM Abby era um sucesso com seu black power arrasador. Ela e as
outras GMs tinham bastante trabalho no jogo para apartar as leoas
quando alguma briga começava.
A guild mais famosa do HKO era a Dreamers, que tinha como
mascote o Cinnamoroll. Cada guild tinha o símbolo de uma mascote da
Sanrio como emblema. A líder da guild Black Sheep pegou a mascote
mais disputada: o pinguim negro zangado Badtz-Maru. Por essa e mais
outras milhares de razões, a líder da Dreamers odiava a líder da Black
Sheep mortalmente.
Quando cheguei ao porto, deparei-me com nada menos que quatro
membros da Dreamers, incluindo a líder YaYaa.
Desnecessário dizer que aquele RPG era um verdadeiro desfile de
moda e possuía ampla opção de vestuário e customização na loja do jogo.
O avatar de YaYaa tinha uma beleza simples e encantadora, com uma
estrela azul no rosto e cabelos negros e lisos, corte que a líder da Black
Sheep tinha copiado, o que a deixava completamente fula. E era
exatamente disso que ela falava naquela ocasião.
– Aquela vadia não tem um pingo de originalidade – YaYaa digitou
no chat público do mapa, para que todos lessem – Além de roubar meu
emblema, ela comprou blusa e pantufas do Badtz. Chegou até a construir
uma casa no formato do navio do Maru para deixar claro que ela
dominava o símbolo.
– Não xinga no chat público, a GM Morning Bell está logo ali –
avisou Marie Lovely Heart – se ela ler, pode te banir, honey.
Marie era dos Estados Unidos. Usava uma blusa rosa encantadora,
jeans, sapatos e uma bolsa marrom que caía perfeitamente para
completar seu estilo único.
– Como sabe que ela tem uma casa do Badtz-Maru na fazenda dela? –
perguntou Rina Lyna – Por acaso já foi visitá-la?
– Claro que não – informou YaYaa – tenho minhas fontes de
informação. Infiltrei alguns membros da minha guild na dela. Elas
tiraram screenshot.
O visual de Rina Lyna era um espetáculo: boné vermelho da Hello
Kitty, óculos rosa de coração, pulôver azul, saia preta, sapatos coloridos.

45
Juliana Duarte

Ela era da Malásia. Havia um número grande de jogadoras asiáticas no


HKO.
– Ai, YaYaa, você é tão malvada que eu fico pasma, amiga! –
comentou Ccomotti – também quero punir aquela mocreia que usa uma
blusa do Batzinho igualzinha à minha.
Ccomotti era uma paty rosa assustadora, que vivia rodeada de estrelas,
corações, morangos e qualquer coisa bonitinha.
Foi amor à primeira vista. Eu me apaixonei pelo estilo e atitude
daquelas garotas. Eu ainda estava no level 1 na época, mas
imediatamente pensei: “Quero ficar forte e bonita para ser admitida
nessa guild maravilhosa de princesas”.
Desde então, eu logava pelo menos uma vez ao dia por alguns
minutos. Cada vez que eu cruzava com uma garota da Dreamers, meu
coração acelerava. Todas as garotas de lá eram especialmente lindas e
gastavam dinheiro real no jogo para adquirir as roupas, acessórios e
cortes de cabelo mais bonitos.
Eu não tinha cartão de crédito, então não podia comprar. Meus pais
não deixavam gastar dinheiro nessas coisas. No futuro eu bolaria uma
estratégia para obter as roupas. Até lá, eu precisava me concentrar em
ficar forte e habilidosa. Tinha que estudar os personagens da Sanrio,
conhecer as cidades do jogo e os sistemas para não passar vergonha.
– Os hobbies da Hello Kitty são música, viajar, ler e comer os
deliciosos biscoitos que sua irmã gêmea Mimmy cozinha – repeti,
tentando decorar – Keroppi gosta de basebol e bumerangues, e seu
melhor amigo é uma lesma chamada Den Den. Deery-Lou vive com
seus amigos na Floresta do Arco-íris e passa a maior parte de seu tempo
brincando no sol, perseguindo borboletas e fazendo novos amigos.
Quando ele está realmente feliz sempre balança sua cauda.
Aqueles eram conhecimentos muito importantes. Marquei no meu
calendário as datas de aniversário de todos os personagens da Sanrio,
porque as garotas costumavam comemorar as datas com festas nas casas
de encontro das cidades.
Fiz algumas missões, plantei cenouras, tricotei uma blusa regata de
maçã verde, cozinhei hambúrgueres de melão e preparei sanduíches de
manteiga com banana e amendoim.

46
A Gata Mascarada

Meu sonho era obter meu primeiro pet, que só era conseguido com
cartas que os monstros dropavam. Enquanto as moças elegantes da
Dreamers tinham os pets mais raros e charmosos, eu ainda lutava para
conseguir meu primeiro. O meu preferido era o Box Pig e eu até cheguei
a sonhar com ele uma vez. Infelizmente eu não podia continuar com o
pet robô que eu obtinha no tutorial.
Cozinhei tanta coisa no jogo que fiquei com fome e devorei uma
janta com arroz, bife e batata frita. Eu já estava no level 9 e pretendia
ficar ainda mais forte.
Pelo menos com aquela distração relaxei desde a pequena briga com
Alfredo. Na manhã seguinte eu iria vê-lo.
Assim que entrei na sala já ouvi os apitos de tamagotchis. Digamos
que metade da turma carregava um daqueles bichinhos, para a
infelicidade dos professores, que eram constantemente perturbados com
os apitos infernais.
Gisele conseguiu um tamagotchi colorido e fiquei morrendo de inveja.
A mascote era um bolinho. O bichinho do Otávio era um alien. Gabriela,
uma riquinha metida, encomendou um todo elaborado em que podia
criar três bichos ao mesmo tempo.
Eu nem andava falando com Cíntia e Irene, já que elas não tinham
tamagotchis. A praia delas era um jogo chamado Littlest Pet Shop. Eu
não era tão fã. Até achava meio assustador. Algumas colegas minhas
gastavam horrores para conseguir colecionar todos os bichos. Você
podia criá-los virtualmente e também comprar a coleção na vida real. Eu
tinha uma colega louca chamada Maiara que tinha um verdadeiro
exército com algumas centenas.
– E aí, Ofélia. Firmeza?
– Fala, Bernardo.
– Me explica aí como é que tá esse trem da modinha das garotas –
disse Bernardo – não tô entendendo mais nada. Primeiro foi tamagotchi,
depois HKO e agora LPS. Eu não tenho tanta grana, meu. Saca só meu
tamagotchi.
E eu ainda fui olhar o tamagotchi vermelho dele com uma suástica e
um bonequinho com corte de cabelo peculiar.
– Nazigotchi – li – que mau gosto, cara.
– É o Führer. Tô só zoando. Nem curto ele.

47
Juliana Duarte

– Tô vendo. E pra que comprou tamagotchi se você não tá nem aí


pra isso?
– É pra pegar mulher.
– Não vai pegar nenhuma com essa coisa aí – avisei.
– Eu sei, só tô tentando ser engraçado, meu.
– Não funcionou.
– Não ligo pra sua opinião, você já tem namorado – ele disse – mas
eu não quero saber de LPS. Muito chato aquela merda. Não vou
comprar bonequinho de cavalinho não.
Bernardo era legal, mas conseguia ser um saco às vezes.
– Deixa disso, meu chapa – eu disse a ele – vai lá jogar seu Zelda e
seus joguinhos de tirinho.
– Joguinhos de tirinho? – ele perguntou, ofendido – FPS comanda.
– Então vamos combinar assim: você joga Call of Duty, eu jogo
Hello Kitty Online e ninguém enche o saco do outro, OK?
– Mas eu quero encher teu saco. Tô tentando entender qual é a graça
de um jogo em que você toca os monstros com uma varinha de condão
e eles dormem. Não tem sangue e lutas nesse mundo de elefantes rosa
voadores? Fiz uma conta lá esses dias e só não morri de tédio porque
algumas garotas bonitas vieram falar comigo.
– Ah, claro, se você é garoto elas te tratam com todas as cortesias –
expliquei – se é garota precisa gastar horrores no visual e ter habilidade
para que elas te respeitem.
– Me ensina as manhas, Ofélia? Tô com preguiça de ler o tutorial
daquela porcaria de jogo rosa.
– Peça para que as garotas bonitas do jogo te ajudem – sugeri.
E ignorei-o. Ele não ia durar muito no HKO. Se em algum momento
ele soltasse a língua falando mal do jogo, aquelas garotas metidas iriam
desprezá-lo no mesmo instante. Elas procuravam algum príncipe
encantado que fosse fã de Hello Kitty. Aquele era o ideal de homem para
elas.
Eu estava muito feliz e orgulhosa por ter um namorado. Só faltava eu
convencê-lo a jogar HKO comigo. Alfredo comprou um tamagotchi só
porque eu pedi, então provavelmente aceitaria fazer um personagem no
jogo da Hello Kitty também, se eu pedisse. Se isso acontecesse, todas as

48
A Gata Mascarada

meninas do Hello Kitty Online morreriam de inveja de mim porque eu


teria um homem e elas não.
No intervalo fui conversar com o Alfredo.
– Desculpa, Alf. Não sei o que deu em mim ontem. Fui muito rude
com você.
– Tudo bem. Eu me ofendi por pouca coisa. Também agi errado.
– Não, você estava totalmente certo – eu precisava agradá-lo bastante
naquele dia para convencê-lo a ir para a cama comigo – a culpa foi toda
minha.
Então ficamos nessa de “desculpe, desculpe” até que ambos ficamos
satisfeitos e fizemos as pazes.
Fomos lá para casa de novo e mencionei o jogo. Achei que era
melhor começar com outros assuntos antes de ir direto ao ponto.
– Claro, posso fazer um personagem no RPG online que você joga –
ele garantiu – eu gosto de jogos. Será maravilhoso poder te encontrar
virtualmente também.
– Pode fazer o personagem hoje?
– Assim que eu chegar em casa.
– Que ótimo! – dei-lhe um beijo – Só toma cuidado com as garotas,
porque elas vão tentar dar em cima de você. Deixe claro que tem
namorada.
– É óbvio.
Fiquei feliz. Alegre demais! Precisávamos comemorar.
– Alf, vamos pro meu quarto? – sugeri – Lá teremos mais privacidade
para um contato mais íntimo.
– Sim, hoje eu tô bem mais calmo.
Contudo, Alfredo ainda não sabia que aquele consentimento iria
tornar sua vida um inferno. Ele aceitava atender todas as minhas
vontades? O preço não seria de graça.
Tudo ocorreu maravilhosamente bem na ocasião. Foi tão bom que eu
queria mais. No dia seguinte e no próximo. Tinha que acontecer
necessariamente todos os dias. Eu não aceitava desculpas. Estava
cansado? Estava doente? Indisposto? O sexo era o remédio milagroso
para curar todos os males, portanto não existiria justificativa perfeita para
evitá-lo.

49
Juliana Duarte

Todo fim de aula íamos para a minha casa ou para a casa dele.
Permanecíamos na cama por no mínimo três horas. Depois do sexo, eu
logava no HKO. Era esse meu dia: aula, sexo e Hello Kitty. E aquele
padrão foi mantido pelas próximas semanas.
– Ofi, a gente tem que estudar – Alfredo tentou avisar – vai ter
prova...
– Nosso amor é mais importante.
– Mas... essa rotina ocupa o dia inteiro. Pelo menos vamos reduzir o
nosso período no jogo enquanto tá perto da semana de provas.
– Eu estou no level 21 e quero ficar cada vez mais forte. Não posso
reduzir meu tempo de jogo.
Ele não teve argumentos. Como não conseguiu me convencer, ele
começou a ficar cada vez menos tempo logado. Eu percebia que ele não
gostava muito de HKO e só logava lá para falar comigo, pois ele estava
sempre em level baixo.
Foi uma pena que não consegui fazê-lo gostar do jogo. Ele também
não tomou conta direito do tamagotchi e ele morreu. É verdade que
devido ao meu vício no RPG online também fiquei meio desleixada em
cuidar do meu bichinho e Mimi morreu antes do tempo previsto. Pelo
menos durou mais que Fufu, o que prova que fui uma dona mais
dedicada.
– Vamos criar novos tamagotchis, desde o começo? – sugeri.
– Não sei, Ofi, talvez depois da semana de provas...
Nem quis saber. Criei um novo. Ele, sob pressão, também. O
bichinho dele morreu em pouquíssimo tempo dessa vez.
Eu estava braba, porque Alfredo tinha perdido o interesse tanto no
tamagotchi quanto no jogo online. Naturalmente ele nunca gostou muito
dessas coisas, mas a chegada da época das provas foi a desculpa perfeita
para se livrar delas.
Foi algo que aconteceu pouco a pouco. Alfredo, com todo seu
cavalheirismo e gentileza, raramente recusava algo que eu pedia. Tanto
que ele estava suportando bravamente nossa jornada de sexo por meio-
período.
Um dia ele se manifestou.
– Ofélia, preciso falar com você.

50
A Gata Mascarada

Ele disse isso assim que terminamos o sexo. Eu tinha me vestido


rapidamente e já pretendia voltar para casa.
– Pode ser rápido? Preciso upar.
– É exatamente sobre isso que eu queria conversar. Não tem como
ser rápido, desculpe.
Conformei-me e sentei na cama ao lado dele.
– Sabe, eu adoro quando a gente faz amor – ele começou assim –
mas a gente chega da aula e vai direto pra cama, sem nem conversar. E
assim que a gente acaba você já sai correndo pro seu jogo. Não tá legal
isso.
– Você tem personagem no HKO, então é só logar lá se quiser falar
comigo.
Ele suspirou. Pelo jeito seria difícil explicar o problema.
– Não sei o que fazer para chamar sua atenção. Te dou um
tamagotchi da Hello Kitty? Um bonequinho do Littlest Pet Shop? Cash
pro seu jogo?
– Adorei todas as opções! Meu aniversário está próximo, então sugiro
que tente arranjar um desses. A propósito, quando é seu aniversário?
– Já foi, em fevereiro.
– Então você já tem 15?
– Não, tenho 14 – ele informou – entrei um ano antes, já que faço
aniversário no começo do ano.
– O meu caso foi o contrário – eu disse – como meu aniversário é só
no fim do ano, entrei um ano depois. Nesse mês faço 16.
– Legal, vamos fazer algo especial nesse dia para comemorar –
sugeriu Alfredo – mas, voltando ao assunto, ultimamente você só fala
comigo para me pedir pra comprar camisinha.
– Desculpa, tô te fazendo gastar horrores com isso. Quer dividir a
conta?
– Não ligo, o problema não é esse – ele prosseguiu – mas já estamos
namorando há quase dois meses e nunca tivemos um encontro. Para ir
ao cinema, por exemplo.
– Assim que eu pegar lv 30 a gente vai, pode ser?
– Tá, mas... ah, Ofélia, eu queria conversar mais com você.
– Sobre o quê?
– Sei lá, qualquer coisa!

51
Juliana Duarte

– Você tem cartão de crédito? – perguntei.


– Tenho, por quê?
– Vamos fazer um acordo – decidi – me paga 10 dólares num item de
cash no Hello Kitty Online e vou contigo no cinema hoje mesmo.
– Uau, hoje? – ele se empolgou – É pra já!
Ele nem se importou em pagar para usar meu tempo, já que meu
tempo ultimamente estava muito precioso. Ele ligou o computador e
comprou meu cash.
– Yes! Nem acredito! Só vou comprar umas roupas e a gente já vai.
O problema foi que eu demorei quase uma hora até decidir quais
itens eu usaria para decorar minha personagem. Por fim, optei por um
corte de cabelo e uma blusa. Infelizmente não deu para comprar muita
coisa com aquela quantia, mas já fiquei feliz.
Já era noite quando fomos ao cinema. Só deu tempo de ver o filme,
fazer um lanche rápido e ir embora. Foi divertido.
Mesmo assim, conforme os dias passavam, eu percebia o clima tenso
do nosso namoro. Algo me dizia que nosso relacionamento estava por
um fio. Mas eu não queria parar de jogar. Principalmente com meu
avatar com cabelo tão lindo.
Quando fui para a aula no dia do meu aniversário, eu estava ansiosa
para encontrar Alfredo. Queria saber qual presente ele me daria. Ele
disse que era surpresa. Será que ele tinha encomendado o tamagotchi da
Hello Kitty?
– Parabéns, minha querida! – ele me deu um abraço apertado e um
beijo longo.
Entregou-me o pacote de presente. Eu estava morta de curiosidade.
Mas quando abri, para minha decepção, não era nada do que eu
esperava. Nem mesmo um bonequinho do LPS.
Era um gatinho de pelúcia negro.
– Sei que adora gatos, principalmente pretos – ele comentou,
contente – demorei pra encontrar, até que finalmente achei um que fosse
a sua cara.
– Ele é minha cara? – perguntei, com uma careta – Ele é tão feio. Por
que tem olhos de botões?
O sorriso desapareceu do rosto dele.
– Você não gostou? – ele perguntou, visivelmente desapontado.

52
A Gata Mascarada

– Isso foi caro?


– Bom, eu encomendei, mas dá pra trocar.
– Troque – devolvi o gato de pelúcia para ele – quero a quantia do
gato em cash, pode ser? Preciso de uma saia e de um sapato para meu
avatar.
– Tá...
– Desculpa, eu tô com pressa, preciso encontrar uma garota do
segundo ano – eu informei – ela disse que me vende um bonequinho de
LPS dela por algumas moedas de crédito na cantina.
E saí correndo. Consegui alcançar a garota. Finalmente eu obtive meu
primeiro bonequinho do Littlest Pet Shop: um gatinho, é claro. O
melhor de tudo era que ainda estava fechadinho na embalagem. Algumas
meninas tinham essa mania de não abrir a embalagem para aumentar o
valor do boneco.
Quando voltei para a sala, não achei Alfredo. O primeiro período
começou e nada dele.
No segundo período, Bernardo veio falar comigo.
– Ofélia, o que você fez com o Alfredo, meu?
– Por quê? Onde ele está?
– Ele tá mal pra caralho – ele informou – tá lá no banheiro masculino
meio que chorando. Ele falou alguma coisa sobre um ursinho que você
não gostou.
Senti uma sensação ruim. Quase senti vontade de chorar também, só
de saber que ele estava chorando. E por minha causa. Eu tinha deixado
ele triste e não percebi. Eu era uma idiota.
Eu não queria saber de aula. Fui falar com ele. Entrei lá no banheiro
masculino.
Não adiantou pedir desculpas. Aquela tinha sido a gota d‟água para
que o relacionamento que já estava ruim transbordasse.
– Não aguento mais – ele confessou – fico pensando em você a noite
inteira, ansioso pra te ver no dia seguinte. E quando o outro dia chega, a
gente só faz sexo e você vai embora.
– Também fico pensando em você! – falei, sentindo os olhos
marejados – Vou parar de jogar. Eu vou mudar. Prometo.
– Agora não dá mais. Você já me destruiu, não tem volta. Vamos
terminar.

53
Juliana Duarte

Só percebi o quanto gostava de Alfredo quando ele disse aquilo.


Naquele momento entendi que não queria perdê-lo. É, isso acontece
direto.
Tarde demais. Eu não tinha argumentos. Ele saiu de lá e voltou para a
sala. Eu também saí, é claro, antes que algum cara aleatório entrasse e
visse que eu tava no banheiro masculino.
O ápice do absurdo ocorreu no intervalo. Alfredo pegou o meu
boneco de pelúcia do gatinho preto e entregou para Gabriela, pedindo-a
em namoro.
Pouca gente estava na sala naquele instante. Eu era uma das pessoas.
Ouvi tudo e não gostei. Alfredo não era do tipo que acabaria um namoro
e pediria a mão de outra menina no dia seguinte, como Otávio fez.
Alfredo foi ainda mais eficiente: falou com Gabriela poucos minutos
depois de terminarmos.
– Hmm... não sei – disse Gabriela, enrolando os cabelos com os
dedos – vou pensar. Posso te dar a resposta amanhã?
Eu não suportava ouvir aquela conversinha. Alfredo tinha feito o
pedido na minha frente de propósito. Ele queria que eu armasse um
barraco? Pois eu iria satisfazer o desejo dele.
Levantei-me. Fui em direção a eles. Arranquei o gato de pelúcia das
mãos de Alfredo e disse:
– Isso é meu! Ele é meu namorado!
Gabriela fitou-me perplexa.
– Acho que não – comentou Gabriela – Alberto disse que terminou
com você.
– O nome dele é Alfredo, garota insignificante – corrigi.
– Não me interessa qual é o nome dele! – Gabriela arrancou o gato da
minha mão – Isso me pertence. Alberto é meu namorado!
– Largue isso, cadela!
– Do que me chamou, sua vaca?! – gritou Gabriela.
Tentei arrancar o urso da mão dela. Gabriela me empurrou. Avancei
na direção dela, puxando-a pelos cabelos. Nesse momento, Gabriela
lançou o urso longe para me puxar pelos cabelos também.
– Cachorra!
– Égua barranqueira!
– Galinha depravada!

54
A Gata Mascarada

Dei um tapa na cara dela. Ela me devolveu com um soco. Trocamos


alguns socos e chutes até cair no chão. Rolamos, puxamos mais cabelos,
derrubando uma mesa e duas cadeiras.
Alfredo ficou completamente perdido e assustado. Bernardo estava
perto também e presenciou o espetáculo.
– Puta merda! Ei, caras! A Gabi e a Ofélia tão se pegando!
Ele gritou isso no corredor. Seja qual fosse o sentido de “se pegando”,
o pessoal correu pra ver. Logo tinha alunos até de outros anos e turmas
na nossa sala. Até que chegou uma professora para nos separar.
Obviamente, fomos levadas na diretoria e assinamos uma ocorrência.
E meus amáveis colegas fizeram a bondade de contar que fui eu quem
começou a briga. Afinal, fui a pioneira em pelo menos três coisas: iniciar
a discussão, xingá-la e bater nela. Gabriela só rebateu. Por isso eu levei
suspensão e ela não.
Achei ótimo, pois teria ainda mais tempo livre para jogar. E o fim
daquele namoro me liberou completamente.
Embora na teoria isso fosse ótimo, foi um desastre na prática. Eu
estava furiosa. Lancei na lixeira a caixinha com as pílulas. E não era
apenas a falta de sexo que me deixava zangada.
Eu tinha falhado de novo. Havia alguma maldição em mim. Meus
namoros não duravam. Era sempre eu ou o cara que fazia algo de errado.
Nunca havia uma harmonia. Quando namorei Otávio esforcei-me
horrores para dar certo e ele não estava nem aí. Daquela vez tinha sido o
contrário.
E, já que eu estava sem sexo, achei que seria melhor permanecer
jogando o dia inteiro para compensar. E também para esquecer. Eu tinha
machucado Alfredo pra caramba e não queria pensar nisso. Ele também
tinha me machucado ao terminar o namoro, mas eu mereci. Daquela vez
nem Cíntia e nem Irene tinham me defendido. Até Pâmela disse que
dessa vez eu pisei na bola.
Eu raramente via Pâmela ou minha irmã nas últimas semanas. Não
tinha ninguém próximo para xingar e meu violino já estava quebrado e
eu não poderia quebrá-lo de novo. Por isso minha única opção foi
aumentar o meu tempo no HKO.
Era um saco ter que continuar indo nas aulas de violino. Naquela
semana fui com completa má vontade.

55
Juliana Duarte

– Ofélia, presta atenção – alertou o professor – você não tá


segurando direito o arco.
Eu estava no mundo da lua.
– Assim? – perguntei, com voz de zumbi.
– Não. A propósito, já tem previsão para conseguir um violino novo?
As aulas terão pouca utilidade se não ensaiar.
Eu suspirei. Não pretendia comprar um novo violino. Eu acabaria
por quebrá-lo outra vez. Tinha vontade de acabar logo aquelas aulas.
Quando o ano terminasse, eu iria me livrar delas e não me matricular
novamente no ano seguinte.
– Você precisa aprender a ler partitura. Não vou colocar os números
para você o tempo todo.
“Que sujeito maçante” pensei, de mau humor. Ele raramente tinha
paciência comigo, me olhava torto e era sério demais.
– Ofélia, você está tocando a música errada – ele observou.
– Não estou! – insisti
– Então que nota é essa?
Ele apontou para a segunda linha.
– Como vou saber? Não tem o numerozinho.
– É uma nota da clave de sol. Começa-se a traçar a chave na segunda
linha para indicar a posição de uma nota. Qual é o nome dela?
– Não sei. Dó?
Meu professor me olhou com uma expressão de quem pensa: “Puta
que pariu”.
Aquela aula me deixou irritada, embora não tanto quanto meu
professor. Em casa fiquei ouvindo Vanessa Mae para ver se aquilo me
inspirava a me dedicar, mas não funcionou. Fiquei ouvindo e jogando.
Logo começou um evento especial no Hello Kitty Online, de
culinária. Era uma competição entre guilds para ver quem cozinhava o
maior número de receitas. Tínhamos que entregar as comidas para o
NPC Cinnamoroll no centro de Londres. Uma parte da nossa produção
virtual de comidas seria usada como doação para uma instituição de
caridade no mundo real, para as vítimas de desastres naturais.
Esse aspecto da doação, que caracterizava muitos eventos do HKO,
fazia com que todos se esforçassem ainda mais. Aquela era uma época

56
A Gata Mascarada

em que as guilds estavam recrutando novos membros, então eu tinha


que aproveitar.
Eu ainda não tinha coragem de me aproximar da Dreamers. Eu
achava YaYaa muito maneira e assustadora. Por isso resolvi tentar
primeiro na Black Sheep. Quando ouvi que o nome da líder deles era
Monja, eu me perguntei se ela falaria português ou espanhol. Isso
significava que a possibilidade de ela ser brasileira não era zero.
Ela estava na fazenda dela naquele momento. Tomei coragem e pedi
permissão para entrar. Ela concedeu.
Ela era linda. A fazenda e a casa dela, tudo era fantástico. No entanto,
ela disse que não me convidaria para entrar na casa porque ainda estava
organizando os móveis.
Conversamos em inglês, embora eu não fosse tão boa nesse idioma.
Mas escrever em espanhol seria pior ainda. Preferi não arriscar perguntar
de onde ela era, pois seria indelicado. Se ela não escreveu no perfil era
porque preferia não informar. Mas ela tinha um pet ovelhinha muito
gracioso.
Eu tinha conseguido um pet também há poucos dias: uma abelhinha.
Embora eu não gostasse muito desse, foi mágico quando consegui meu
primeiro card.
– Vou te aceitar na guild porque estamos precisando de reforços para
o evento – disse Monja – encare isso como seu período de teste. Se
conseguir cozinhar bastante, será oficialmente aceita.
Até o fim do evento eu não fiz outra coisa. Vendi tudo o que eu tinha,
gastei todo meu dinheiro do jogo só em ingredientes para cozinhar.
Passava o dia todo coletando frutas nas árvores dos bosques e plantando
para depois preparar tudo.
No final, a Dreamers foi a vencedora, como esperado. Mas ficamos
em segundo lugar. Por isso, fui oficialmente aceita na guild, notícia que
se espalhou. Agora minhas chances de um dia ser da Dreamers tinham se
reduzido a zero, já que eu era membro da guild rival.
Mas eu curtia as conversas no chat da guild. As garotas da Black
Sheep eram bem esquisitas. Elas falavam de aliens, chocolates azuis com
anilina e coisas assim.
– Há cupcakes azuis – observou Puwiawoou – você pode fazer
comidas de qualquer cor que quiser. Até invisível.

57
Juliana Duarte

– Nesse caso você teria que esconder um alienígena dentro do


cupcake – disse Lola Gemini.
– Lola, pelo seu nome posso inferir que você curte astrologia? –
perguntei.
– Bingo – respondeu Lola – quer que eu faça seu mapa astral?
– Não, mas eu tenho uma dúvida que talvez você possa responder –
eu disse – acha que posso fazer meu tamagotchi ser possuído por um
espírito?
– Não sei ao certo, mas ele certamente pode possuir você.
– E já possuiu – afirmei – agora é o HKO que encarnou no meu
corpo. Mas você acha que eu posso utilizá-lo como receptáculo para um
servidor?
– Não sei o que é um servidor.
– Eu sei – falou Monja – você se refere à Chaos Magick, não é? As
entidades coringa, estilo vale-tudo. É uma ideia criativa utilizar um
tamagotchi para gerar uma potência desse tipo. Vai fundo. Apoio
totalmente.
– Obrigada. Agora que reparei, o nome do seu personagem deve ter
alguma razão especial. Sua guild tem um pessoal meio místico também.
– Não se deixe enganar – avisou Monja – um nome é apenas um
nome. E nada mais que isso.
Ela me deixou com isso na cabeça por muito tempo. Aquela era uma
maldita frase budista. Aqueles dizeres me faziam pensar em Siddhartha
Gautama. Ou talvez em Freud?
Eu não queria mais saber de ocultismo. Estava tentando levar uma
vida normal. Eu não pretendia mais explodir coisas. Nem no dia do fim
de mais um namoro eu me descontrolei. Optei por bater fisicamente em
Gabriela em vez de deixar a profundeza da minha mente ser afetada por
aquela atmosfera densa.
Isso significava que eu precisava sair daquela guild o quanto antes. E
foi isso que fiz. Não dei a menor satisfação. Eu entrei naquele jogo para
falar de assuntos triviais e não para alguma pretensa evolução espiritual.
Eu já estava no limite. E quando isso acontecia, eu ia atrás da minha
maravilhosa irmã mais velha. Não importava o quanto eu soubesse ou
aprendesse; ela sempre estava um passo a frente para dar bons conselhos.
Simplesmente porque ela era a Iolanda. Simples assim.

58
A Gata Mascarada

Eu preferia procurá-la na universidade em vez de ir até a casa dela.


Queria privacidade para conversar, não com o marido dela por perto.
E eu também considerava aquele ambiente muito confortável. No
passado fui lá tantas vezes para visitar Iolanda que eu já me sentia em
casa. Não via a hora de terminar logo o segundo grau para poder
caminhar naqueles corredores. O mundo limitado do colégio me
aprisionava. Lá tinha um ar mais livre, mais revolucionário. Podia ser
impressão, mas eu preferia manter essa fantasia, pois ela me agradava.
Resolvi procurar Iolanda no Caeco, Centro Acadêmico de Economia.
Lá o pessoal relaxava nos sofás, jogando bilhar, desenhando nas paredes,
fumando, ouvindo música, lendo, dormindo ou qualquer coisa parecida.
Mas ela não estava lá. Só vi dois caras fumando e jogando conversa
fora, além de uma moça deitada no sofá, de expressão inteligente e
compenetrada com olhos delineados de negro.
Eu provavelmente não a teria reconhecido se ela não tivesse me
chamado de volta.
– Procurando sua irmã?
Eu me virei. Era Ângela, a mestra da tal Ordem de ocultismo de
Brasília.
– É, acho que ela ainda tá em aula – comentei.
Ela só fez algo como “Hm” e continuou deitada, sem me dar atenção.
Mas aquela era uma oportunidade perfeita demais para ser desperdiçada.
– Como vai a Ordem? – perguntei.
– Vamos lá fora.
Ela ergueu-se do sofá. Entendi que ela não tinha intenção de
comentar sobre isso no CA.
Lá fora estava um calorão. Ela tirou o casaco e se deitou embaixo de
uma árvore.
“Nossa, como ela é quente!” pensei, admirada. Ela era inteligente,
madura e tinha um ar respeitável. Se eu fosse como ela, nem Otávio e
nem Alfredo jamais pensariam em me dispensar. Se bem que, chata
como eu era, nem mesmo uma beleza superior a dos Deuses seria
suficiente para que um namorado me aturasse por mais de três meses.
– Que idade você está? – ela me perguntou.
– Dezesseis – informei, orgulhosa por estar um ano mais velha.

59
Juliana Duarte

– Caso ainda tenha interesse, em mais dois anos poderá fazer parte
do nosso grupo. Então terá uma resposta mais completa para sua
pergunta. Por enquanto digo apenas que as coisas estão agitadas por lá.
Novos membros, novas confusões.
– Não sei se ocultismo é pra mim – confessei – tenho medo de mexer
demais na minha cabeça e ficar fora de controle.
– Gregório destruiu seu pingente – lembrou Ângela – no seu caso é
desaconselhável reunir muita fonte de poder num único amuleto.
Trabalhe menos com magia cerimonial e mais com meditações sem
utensílios. É a via ideal para direcionar a mente. Quando estiver
preparada, avance para as próximas etapas.
– Eu estava pensando em trabalhar com servidores e usar um
tamagotchi como fonte de energia.
– Não – ela disse, imediatamente – péssima ideia. A não ser que
queira quebrá-lo depois. É como o jogo do copo. Não use copo de
cristal. Você não sabe o que te espera.
Pelo jeito eu tinha o hábito de amaldiçoar qualquer coisa que eu
energizasse por muito tempo. Era como uma faca de dois gumes. As
coisas com as quais eu mexia podiam ser maravilhosas ou horríveis. Eu
tinha que aceitar esses dois lados do poder, que no fundo eram uma
coisa só.
– Você pode achar estranho o que vou te dizer agora, mas você devia
ser treinada na magia negra.
– Quê? – perguntei, completamente confusa – Eu não quero
machucar pessoas. Já machuco o suficiente sem magia. Minha
personalidade é muito explosiva em picos de raiva, embora eu seja
estável na maior parte do tempo.
– Não foi isso que eu quis dizer – explicou Ângela – o Left-Hand
Path lida com as mais diversas dimensões da psique. Não precisa fazer o
mal e sim conhecer o mal.
– Que é o mal? – perguntei, intrigada.
– É uma dimensão consciente da sua mente que age intencionalmente
para produzir efeitos que você, em seu conhecimento empírico, reflete
para seu próprio axis mundi.
– Pode explicar isso na minha língua? Só entendi metade.

60
A Gata Mascarada

– É o bastante – disse Ângela – você costuma acessar o site do


Vaticano?
– Nunca acessei, nem sabia que tinha site – respondi, perplexa.
– Eu soube através de um novo membro. Depois procura lá uma
Encíclica do Papa João Paulo II chamada “Veritatis Splendor”. Lá é
informada a posição da Igreja Católica sobre o bem e o mal. Você
conhece a diferença entre pecado mortal e pecado venial?
– Eu já ouvi falar nisso – respondi, incerta – o pecado mortal é aquele
que causa morte espiritual, não tem perdão e gera a separação definitiva
de Deus. Exclui as pessoas do reino e causa morte eterna. O pecado
venial tem possibilidade de perdão quando é expiado pela confissão ou
pelas tormentas do purgatório.
– Não me importa as palavras fortes que a Igreja usou para explicar
isso, com a intenção de assustar as pessoas. Em verdade, o pecado venial
é aquele realizado sem conhecimento pleno do ato e suas consequências.
O pecado mortal é o ato deliberado que é cometido repetidas vezes com
o conhecimento completo da pessoa sobre a ação inteira.
– Um ser humano não pode ter conhecimento total sobre um ato e
todas as suas possíveis consequências, pois ele não é Deus – observei –
portanto, na prática seria impossível que cometesse um pecado mortal.
Ah, mas no Éden, antes de consumir o fruto da Árvore da Ciência,
talvez ele tivesse uma particularidade que permitisse essa condição.
Então comer do fruto proibido foi um pecado mortal?
– Foi – disse Ângela – pois havia o conhecimento de que comer do
fruto era errado. Se o tivesse consumido sem a advertência de Deus,
seria um pecado venial, portanto passível de perdão.
– Isso tornou os humanos separados de Deus eternamente?
– Não, porque Jesus Cristo redimiu os pecados na cruz – explicou
Ângela – mas um pecado mortal não é aquele que é cometido somente
com o conhecimento de que ele é errado. Ele se torna mortal quando
existe a insistência compulsiva em tal ato ou quando alguém renega Deus
amaldiçoando-o e blasfemando-o de forma irreversível.
– Então os ateus vão pro inferno?
– Não, porque o céu e o inferno são condições mentais. Quando um
ateu não acredita em Deus, dentro dele ele sabe que não está ferindo
ninguém com esse ato. Portanto, em sua mente não se completa o

61
Juliana Duarte

pecado. O pecado só existe quando há a consciência absoluta de que


algo é incorreto e mesmo assim é feito. Se uma pessoa matasse outras e
dentro dela tivesse algum tipo de crença de que aquilo é certo, não seria
pecado mortal, mesmo sendo contra os mandamentos.
– Uau, que complicado. Então os muçulmanos fundamentalistas que
assassinam em nome de Alá vão pro céu mesmo?
– Provavelmente não vão para o inferno – disse Ângela – mas
somente se o praticante tiver uma fé poderosa no Corão. Matar outros é
uma das condições mais difíceis de não se transformar em pecado. O
pecado não está no ato em si e sim na visão de mundo da pessoa que o
realiza. Essa visão conecta ato e intenção. Nossa cultura e, até certo
ponto, algo dentro de nós mesmos, nos faz sentir sensações e com elas
acreditamos que matar outros é um erro. É a solidificação dessa crença
que caracteriza um ato de “bom” ou “mau”.
– Caso uma pessoa se convença de que matar é bom, ela realizou um
ato positivo e vai para o céu?
– O céu, sendo uma dimensão mental, permite essas aparentes
contradições. Quando na verdade são formas de moldar a mente. Não
estou dizendo que o céu é apenas uma invenção individual e sim
agregados. Existe a egrégora céu e nosso céu moral. Esses planos se
cruzam constantemente.
– Psicopatas vão para o paraíso? Eles não conseguem sentir
plenamente a sensação ruim que a maioria sente na presença da morte.
Eles só entendem racionalmente, pois o cérebro deles funciona de forma
diferente.
– A compreensão racional às vezes é requisito suficiente. Não existe
uma categoria específica de pessoas que certamente vai para o céu ou
para o inferno – disse Ângela – cada ser humano é único. Não há regras.
Os mandamentos não são definitivos. Céu e inferno tampouco são
absolutos.
– Então por que as pessoas dividem bem e mal? – perguntei, confusa
– E essa história de pecado, qual é a desse sistema?
– Olha, irmã da Iolanda, poderíamos ficar aqui conversando até a
noite e talvez não fosse suficiente. Eu vou te indicar uma pessoa, OK?
Eu fiquei frustrada. Ela aqueceu meu coração para o fervor da
discussão e depois subitamente interrompia? Eu queria muito entrar para

62
A Gata Mascarada

aquela Ordem. Cara, eu queria conhecer o desenvolvimento de todos


aqueles raciocínios, ver as peças se encaixando. Seria mágico,
impressionante. Perto daquele nível de discussão, até explodir coisas com
a mente parecia brincadeira de criança. De que adiantava saber fazer
aquilo se eu não tinha a base?
– Meu nome é Ofélia. Eu desejo os fundamentos. Essa conversa foi
brilhante. Quero mais.
– Dois anos.
– Por quê? – perguntei, desapontada – Você já viu o que sei fazer.
Vocês não abrem exceções? Universidades, monastérios, todos eles
abrem exceções para que adolescentes participem, sejam superdotados
ou pessoas sob circunstâncias especiais.
– Calma, garota! Não é como se você fosse morrer amanhã e ficasse
sem esse conhecimento. E mesmo se ficasse, há outras vivências
igualmente incríveis que você irá experimentar. Não pense que é só o
contato com sábios, mestres e professores que irá te acrescentar algo de
valor. Seja humilde para reconhecer que até a pessoa que você considera
no mais baixo grau pode te mostrar um novo mundo.
– Bela reflexão, mas isso não apagou o meu desejo de praticar com
vocês.
– Como eu mencionei, vou te colocar em contato com um de nossos
novos membros – disse Ângela – ele era como você. No ano passado ele
nos contatou quando tinha 17 e ficou impaciente aguardando um ano
inteiro. Finalmente foi admitido na Ordem, mas não está nada feliz. Em
poucos meses ele já teve desentendimentos com muitos membros.
– Ele é do tipo esquentado? – perguntei, curiosa.
– Não, ele é muito calmo e tranquilo. Não é do tipo que joga cerveja
na cara dos outros. Ele apenas faz afirmações definitivas que não
agradam muito.
– Ele amaldiçoa? Não me diga que esse é o cara LHP que você quer
que me treine.
– Ele não clama ser LHP, mas tem uma aura muito pesada. Você, que
é naturalmente sensível a esse tipo de energia psíquica, notará
imediatamente quando estiver na presença dele.
– Por que um iniciante vai me treinar? – perguntei, aborrecida –
Achei que ele era novato na Ordem.

63
Juliana Duarte

– Apesar da idade, ele é muito experiente. Tem uma visão de mundo


muito sutil e exótica.
– Pessimista?
– Quando você o ouvir, vai entender. Talvez baste vê-lo.
O toque de mistério era emocionante. Um novato que recém tinha
entrado na Ordem e já impressionou tanto assim a mestra? Até eu queria
conhecê-lo. Nem mesmo euzinha, com minha telecinesia, fui capaz de
causar tamanho impacto.
– O Gregório já esteve em contato com ele? – perguntei.
A resposta daquela pergunta me interessava enormemente. Gregório
tratou-me como criança da última vez e nem se impressionou tanto
assim com meu espetáculo, embora tenha viajado somente para me ver.
– Sim – respondeu Ângela – o mestre não gosta dele. Alertou-me
para que ficasse de olho nesse membro.
Que interessante! Gregório sentiu-se ameaçado. Seria inveja?
Dificilmente. Gregório devia ter suas razões para manter cautela.
– Ele tem grande poder psíquico? – perguntei, interessada.
– Não que eu saiba. Mas devo dizer que ele possui uma capacidade
impressionante de lábia.
Senti um arrepio.
– Ele manipula as pessoas? Faz lavagem cerebral nelas? Ângela, eu
sou facilmente influenciável. Não quero esse sujeito perto de mim.
– Pensei em colocá-los juntos porque vocês dois têm idades parecidas
– falou Ângela – ele é o membro mais jovem da Ordem. E você já sabe
o que fazer caso ele fale o que não deve. Seu psiquismo o impedirá de ir
mais longe. Ele nem se importa com poderes sobrenaturais. Ele não dá a
mínima para isso. Para ele, uma construção lógica refinada que gera uma
forte carga emocional é a chave do ocultismo.
Aquelas palavras me aterrorizaram.
– Não se deixe enganar – avisou Ângela – não baixe a guarda. Ele vai
tentar obter sua confiança. Ele tem aparência apresentável, voz suave e é
extremamente gentil quando deseja. Ele vai te observar e perceber como
te impressionar.
“Ele tem aparência apresentável? O maldito é bonito”, pensei, com
raiva. Eu não ia cair na armadilha. O fato de saber que ele era ao mesmo

64
A Gata Mascarada

tempo belo e perspicaz me irritou ainda mais. Era isso que gerava o
poder?
– Não entendi qual a diferença desse cara pra um psicopata –
argumentei – ele é um psicopata ocultista?
– Ele não faz isso para enganar as pessoas, fingir ou obter alguma
vantagem material. Ele será sincero, mas tão sincero quanto uma mulher
que cobre o rosto com uma maquiagem. Todos sabem que aquele não é
o rosto dela, mas aceitam com naturalidade.
– Ângela, eu estive no psiquiatra tomando remédios recentemente –
comentei, meio com medo – vai ser a coisa mais fácil do mundo pra esse
cara me convencer a, sei lá, cometer suicídio.
– Eu não te indicaria essa pessoa se não confiasse nele.
– Será que ele não te enganou também? – perguntei, desconfiada –
Para ele deve ser mais fácil ludibriar mulheres.
Ela riu.
– Não pense que sou uma iniciante nesses assuntos – avisou Ângela –
é verdade que alguns membros, tanto homens quanto mulheres, não
gostam dele porque o acham muito convencido. Eu devo expulsá-lo sob
que pretexto? Por ser vaidoso e presunçoso? Prefiro tentar aproveitar
essa presença que causa perturbação para objetivos ambiciosos.
– Como me treinar.
– Você tem algo especial, mas só o tempo e o treinamento correto
vão te levar a atingir um potencial ideal, que não apresente perigo à sua
existência física e ao seu estado mental. Não vou permitir que atinja as
estrelas, mesmo que toque Deus ou além, se isso for te ferir. Não sei se
você está ciente do quão mal você estava quando nos contatou da
primeira vez.
– Eu não estava ciente, mas minha psiquiatra sim – garanti – agora
também estou mal, mas não tanto. Terminei um namoro há pouco
tempo.
– Estou te enviando um instrutor e não um namorado. Bem, eu não
tenho nada a ver com a vida pessoal dele ou com a sua. Eu o conheço
como magista e se ele a ferir com ensinamentos, eu assumo a
responsabilidade por esse mal. Mas se ele te ferir com um tipo de
amizade que foi longe demais, isso está por sua inteira conta e risco.

65
Juliana Duarte

– Ele me parece metido demais, então está fora de questão. Odeio


caras que se acham o galã. Se for assim, prefiro um feioso humilde. E eu
nem teria interesse no ensinamento dele se não fosse sua insistência, mas
obrigada mesmo assim. É uma honra ter um membro da sua Ordem me
treinando, mesmo que seja por um curto período.
Aquele foi o fim da conversa. Ângela tinha aula. E eu só consegui
encontrar Iolanda uma hora depois daquilo. Liguei para o celular dela.
– Não me ligue no meio da aula! – ela reclamou.
– Maninha, meu namorado terminou comigo.
– Boto fé.
– Fala sério! – reclamei, ofendida – Foi tão esperado?
– Com certeza. No dia em que os dois realmente quiserem, isso vai
dar certo. Não me pergunte como, mas vai.
– Você conhece a Ângela da economia, não é? O que acha dela?
– Esquisita, segura de si e educada – foi a resposta de Iolanda;
concisa e precisa.
Tinha recém passado o Halloween. O clima estava gostoso. Eu
adorava quando se aproximava do Dia das Bruxas. Meu aniversário era
naquela data e eu sentia que o mês de outubro me pertencia. A
festividade fechava meu mês com elegância.
Eu não estava mais logando tanto no HKO ultimamente, pois não
queria que notassem que saí da guild e que me odiassem por causa disso.
– Ei, Ofélia, posso trocar uma palavra com você?
Eu nunca tinha falado com Susana antes. Que raios ela queria?
Sentei-me na árvore ao lado dela. Ela rabiscava alguma coisa num
caderno.
– Escreva seu nome aqui.
Fiz como ela pediu. Coloquei o nome completo. Ela observou o que
escrevi com atenção.
– Seu nome soa forte – concluiu Susana – principalmente o primeiro.
É efeito do “f”, não acha?
– É – confirmei, imaginando que diferença isso fazia.
– Você tem uma caligrafia com letras bem grandes e redondas – ela
analisou – mas é curioso como escreve rápido. Uma escrita que devia ser
tão graciosa acaba saindo meio torta e rabiscada.

66
A Gata Mascarada

– Isso foi uma tentativa de me ofender? – perguntei, na defensiva –


Cuidado comigo, pois eu dei uma sova na Gabriela outro dia.
– Eu sei, assim como todo o colégio sabe. Não ligo, nunca gostei
muito dela. Acho que foi bem feito.
Susana fez umas linhas ligando as letras de meu nome. Depois foram
números e quadrados. Cálculos. Que droga era aquela?
– Tenho um número para você: cinco.
– Obrigada. O que faço com ele agora?
– Você o pendura no cabide, já que ele tem uma perninha em cima.
– Ahhh, claro... – eu disse – achei que você ia dizer que meu nome
simbolizava os quatro elementos mais o éter, as pontas do pentagrama
ou qualquer besteira óbvia do tipo. Obrigada por sua originalidade, mas
eu não consegui ir além da piada.
Susana levantou-se e foi até um dos brinquedos da praça do colégio.
Entrou lá, numa posição que lembrava vagamente uma estrela torta.
– O erro das pessoas é ver um mundo bidimensional – explicou
Susana – isso acontece porque elas leem muitos livros e ficam muito
tempo fitando a tela do computador. Isso não é ruim, mas às vezes a
gente precisa sentir as outras dimensões. Não somente a grama e o sol,
mas também a fumaça das indústrias, o barulho do tráfego, o concreto.
Todas elas construções humanas. Mas o humano também é natureza. Ele
também é da terra.
– Que bom, e o que isso tem a ver com o número cinco? – perguntei,
impaciente.
– São as dimensões – ela explicou – meus dois braços, minhas duas
pernas e minha cabeça formam o cinco. Mas minha cabeça está num
plano diferente das pernas. E se você pudesse atingir outras dimensões
do espaço-tempo perceberia que o cinco pode ter ainda mais braços.
– Então ele não seria mais o cinco – observei.
– Pode ser o 5,2, um número imaginário ou outra categoria
matemática, dentre tantas possibilidades. Ainda é cinco. A propósito, seu
número é 5, mas mais precisamente 5,2. Ou mais especificamente ainda,
5,201. Quer saber o motivo?
– Não realmente – eu respondi – esqueci que você é aquele gênio que
gabarita as provas de matemática e pega recuperação em português e

67
Juliana Duarte

literatura. Nunca se passaria pela minha cabeça que você curte


numerologia. Por que quis conversar comigo?
– Porque você está com meu livro de química que emprestei pra
Irene e ela passou pra você. Quero de volta.
Tirei o livro de química da bolsa e devolvi para a pequena maldita.
Ela tinha algo que lembrava a mim mesma. Ao mesmo tempo gostei e
não gostei dela. Talvez porque eu sentisse o mesmo em relação a mim.
Eu fui espetacularmente mal na semana de provas. Minhas notas
foram terríveis. Eu, que sempre ficava na média e passava raspando,
peguei várias recuperações.
Nem liguei. Continuei jogando Hello Kitty. As garotas da guild Black
Sheep me juraram de morte. Tentei entrar para a Dreamers e fui barrada
também. Eu estava comendo o pão que eu mesma amassei. O gosto não
era agradável, pois eu só sabia fazer bolos e não pães.
– Monja, você é brasileira?
Eu digitei isso em português. Ela me ignorou completamente. Para a
minha surpresa, quem falou comigo foi uma menina da Dreamers: a paty
cor-de-rosa purpurinada Ccomotti.
– A Monja é brasileira e eu também – ela informou – têm outros
membros da Dreamers e da Black Sheep que falam português.
– Que ótimo! Detesto digitar em inglês, eu escrevo tudo errado. Tem
jeito de convencer a YaYaa a me fazer entrar pra guild?
– Vou ver.
– De onde você é, Ccomotti?
– De Brasília.
– Ah, você tá de sacanagem – eu disse – só falta dizer que a líder da
guild de vocês é brasileira também.
– Não, ela é chinesa. É um terror.
Eu me conformei. Nunca conheceria pessoalmente a líder da
Dreamers. Mas a Monja era brasileira também.
– De onde é a Monja?
– Do Rio – ela respondeu.
– Posso te ver pessoalmente?
– Não sei, linda. Fica complicado isso, né, amor?

68
A Gata Mascarada

Demorei para convencê-la. Acho que a Ccomotti não confiava muito


no pessoal da internet. Bem, no HKO tava cheio de cretinas, então
algum grau de desconfiança era normal.
Lá fui eu combinar com a gatinha.
Ela era tão doce na vida real quanto sua personagem. Nos
encontramos num local público. Ela usava duas chiquinhas.
– Oi, Arroz Rosa – ela cumprimentou – ou deseja que eu te chame de
outra forma?
– Meu nome é Ofélia. E o seu?
– Como em Shakespeare? Que graça. Sou Alice.
– Como em Lewis Carroll? – perguntei – Que massa.
Era fantástico poder conhecer uma das fadinhas de Hello Kitty
Online na vida real. Ainda por cima um membro da guild mais famosa,
Dreamers.
Na minha cabeça elas eram inatingíveis. Não queriam contato com
meros mortais e viviam eternamente no mundo de fantasia de HKO,
com seus carrosséis e criaturas graciosas. Ora, eu via um pouco disso
nela.
Eu sentia vontade de apertá-la como a um ursinho e perguntar:
“Quer ser minha melhor amiga?”, porque a Pâmela não parava de falar
nas colegas da faculdade e eu ficava morrendo de inveja. Precisava de
novas amigas para fazê-la ficar com inveja também.
Ela era tão feminina, tão leve nas palavras. Ela contou que sabia
costurar bichinhos de pelúcia. Ela até me deu um: algo como um
sapinho rosa esquisito que cabia na palma da mão.
Fiquei feliz com o presente. Eu sorri. Mesmo quando se está triste dá
para montar belos sorrisos.
Naquela noite recebi um e-mail meio assustador da mestra da Ordem.
Ela disse que o tal membro de 18 anos ia se encontrar comigo naquele
fim de semana. Anotei local e hora. O tema da discussão seria a Qabalah
hermética e eu logo desconfiei que aquilo seria, de algum modo, uma
extensão da discussão que Ângela tinha iniciado.
Só tinha um problema: no dia seguinte recebi um e-mail de Alice me
contando uma incrível notícia. Monja, líder da Black Sheep, viria a
Brasília no fim de semana para visitar parentes e poderia “dispor de um

69
Juliana Duarte

pouco de seu tempo” para se encontrar comigo, embora ela ainda


estivesse braba por eu ter saído da guild.
Antes eu pensava que os membros das duas guilds eram inimigos
mortais, mas isso ocorria principalmente dentro do jogo, como uma
interpretação de personagens. Na vida real eu soube que membros de
São Paulo das duas guilds se encontravam direto. Aquela briga toda era
só fachada e elas me assustaram pra caramba com aquilo. Eu iria tratar
de xingar bastante a líder, que provavelmente riria da minha cara.
Ou talvez ela me odiasse se eu faltasse o encontro.
“Rale-se o membro metido misterioso”, decidi. Encontrar minha
amiga era mais importante. Por isso, enviei um e-mail para Ângela em
cima da hora, avisando que eu não iria mais.
Encontrei-me com Monja num bar e descobri que ela era uma garota
toda estilosa de luvas de couro, óculos escuros e cabelos presos em rabo-
de-cavalo.
– Eugênia – ela disse, apertando minha mão apressadamente –
menina, não tenho muito tempo pra ficar aqui de papo pro ar. Já te
conheci, então tchau.
– Espera! – falei – Eu desmarquei um encontro importante só pra te
ver.
Ela deu um sorrisinho.
– É sério, eu não tenho muito tempo – disse Eugênia – já tá perto do
meu voo. Tive que marcar em cima da hora contigo. Eu tinha outras
amigas pra ver nesse fim de semana. Só posso ficar pouco tempo, é
assim que as coisas são.
“Brilhante”, pensei, com raiva. “Elas são... umas putas”.
– Meu nome é Ofélia, antes que eu esqueça – informei, confusa – só
quero que você me conte sua relação com o ocultismo.
– Nada demais. Tô numa Ordem.
– Não me diga que o nome do mestre é Gregório.
– Esse é o nome do mestre de SP – ela disse – no RJ é a Bárbara.
– Sabia. Qual sua idade?
– Dezesseis.
– Ângela maldita! Bem, agora sou eu quem está com pressa. Tenho
assuntos a tratar. Foi um prazer te conhecer. Obrigada pela preciosa
informação. Até daqui dez anos!

70
A Gata Mascarada

E corri. Peguei um táxi para ver se eu chegaria no encontro a tempo.


Provavelmente o novo membro não tinha recebido a mensagem que
mandei para Ângela por e-mail na última hora.
E lá estava ele, provavelmente me esperando por aquele tempo todo.
Cheguei com duas horas de atraso. Eu não sabia se eu me desculpava
primeiro ou se antes disso eu deveria reclamar sobre eles terem aceitado
uma menina do Rio com 16 anos na Ordem e terem me deixado de fora.
Mas quando ele se virou, eu não consegui dizer nada. De repente
tudo aquilo perdeu a importância.
Senti uma sensação horrível. Quando aquele cara olhou pra mim,
senti o mundo cair na minha cabeça. O que era aquilo?
Há alguns meses eu tinha desligado a minha capacidade empática,
desde que o pingente foi quebrado. Bastou um único instante para que
essa capacidade retornasse com força total. Ele fez voltar. Porque só de
olhar para ele eu percebi que havia algo errado.
As coisas não estavam certas. Havia algo fora do lugar. O que era?
Eu não fitava o lado de fora dele. Dentro havia algo sinistro. Não era
o mal. Nem o bem. Era outro tipo de força. Havia aquela coisa dentro
dele. Eu não sabia o que era, mas me incomodava enormemente.
Será que era aquilo que os magistas sentiam? Era aquela energia que
fazia tantos o odiarem? Era muito mais fácil desejar se afastar daquela
pessoa. Os poucos que se aproximavam, como Ângela, deviam ser seres
únicos.
– Senhorita Ofélia – ele pronunciou – sou Demian. Prazer.
Woa. Assim, bem direto? Incomum. Eu tinha quase certeza de que
ele iria declamar um poema inventado na hora ou qualquer coisa
extravagante do tipo. Agir normalmente era a posição mais inesperada.
Ele não comentou sobre meu atraso monstruoso. Apenas me
aguardava, fitando o céu, como quem não se importa.
A voz dele era suave sim. Mas não era musical. Meio monótona
talvez.
Ele usava casaco preto e jeans. Tinha olhos e cabelos negros. Os
cabelos tinham um penteado que não me agradou muito. Bem, a
existência dele como um todo não me agradava. Possuía algo de
repulsivo, por causa da coisa dentro dele.

71
Juliana Duarte

Se tirasse a coisa, era difícil dizer de que forma eu o olharia. Ou talvez


a coisa fosse ele. Seu corpo que precisaria ser retirado.
Ele não sorriu quando me cumprimentou. Tampouco foi mal
educado. A posição dele foi relativamente neutra. Resolvi seguir a dica e
optar pela neutralidade, embora aquele fosse um caminho quase
impossível.
– Hoje você vai me falar da Qabalah? – perguntei.
– Sim – ele confirmou – você também poderá interpretar esse
discurso como uma palestra sobre o bem e o mal, já que prefiro me
abster de utilizar os termos cabalísticos largamente para não tornar ainda
mais hermética uma discussão que já é obscura. Tudo bem?
Por mim achei ótimo.
– Era uma vez Adão, Eva, Deus, uma serpente e duas árvores – ele
começou – soa-lhe familiar? Que aconteceu aos outros protagonistas?
A conversa ia começar assim, nós dois em pé? Achei melhor não
reclamar. Ele já estava há duas horas lá em pé aguardando minha
chegada, então não faria mal eu sofrer um pouco também antes de
sugerir a mudança de lugar.
– Os animais? – perguntei – Ou Lilith e os anjos? Acho que numa
fábula breve como essa não dá tempo de listar todos os participantes.
– Deus tem todo o tempo do mundo – disse Demian – mas havia
outro ser com Ele naquele momento: o anjo Metatron, príncipe dos
serafins e secretário de Deus. Uma vez ele foi um humano chamado
Enoque. Ele foi o único que Deus permitiu ascender aos céus sem passar
pela morte.
– Ele não cometeu nenhum pecado? – perguntei.
– Deus precisava de um secretário, assim como Buda chamou
Ananda. Enoque era humano, mas ainda assim foi designado como seu
servo mais fiel, dentre todos os anjos. Buda estava cercado por Arahants.
Ananda era o único não iluminado. Você consegue enxergar uma
semelhança?
– Sim, claramente. Deus queria alguém fraco perto dele, para exercer
o esplendor de seu poder. Buda também agradava-se de Ananda, que era
simples e gentil. É como aquelas palavras do apóstolo Paulo: “Quando
sou fraco, sou forte”.

72
A Gata Mascarada

– A confiança de Jesus em Judas. Tudo já estava planejado. Jesus


nasceu para morrer crucificado. Seu destino já estava determinado. Por
isso Jesus, secretamente, pediu que Judas o traísse. Queria que o
vendesse. Tinha que sofrer, tinha que morrer por nós. Por causa do
pecado original.
– Os muçulmanos e os judeus dizem que não há pecado original –
observei.
– É por isso que eles não precisam de Jesus – disse Demian – Jesus
só faz sentido dentro da doutrina cristã. Judeus e muçulmanos seguem a
doutrina pelagiana, que defende que o pecado de Adão afetou apenas a
ele e não foi legado pelo resto da humanidade. No islamismo também é
dito que Adão era muito mais poderoso do que qualquer anjo. Os anjos
se ajoelharam diante dele. Adão só perdeu sua posição depois do fruto.
– E Lúcifer, ele é o culpado por tentar Eva com o fruto? – perguntei.
– Lúcifer trouxe a luz. Essa chama iluminou a Árvore da Vida.
Porque antes do fruto só havia a morte. Adão e Eva passeavam como
cadáveres pelo jardim do Éden, sem o poder da escolha. Deus achou
mais seguro. Assim eles não poderiam cometer o pecado mortal. Deus
não queria que Adão e Eva fossem para o inferno. Não queria que
nascessem. Pois uma vez nascidos iriam morrer.
– Então a luz de Lúcifer iluminou a Árvore da Vida, que existia na
sombra da Árvore da Ciência?
– Exatamente – confirmou Demian – Daat, o Conhecimento, marca
o abismo que liga a Árvore da Vida à Árvore da Morte. As sephiroth às
qliphoth. Contudo, a Árvore da Vida está conectada à Árvore da Ciência
a partir de Keter.
– Fantástico, agora você me confundiu. Eu entendo que a vida e a
morte estão conectadas e são interdependentes. A Coroa seria o
princípio unificador, correto?
– As árvores se ligam uma à outra pela raiz. Elas se unificam, uma se
alimenta da outra. Portanto, ao provar do fruto do conhecimento, Adão
e Eva também provaram bocados do fruto da Árvore da Vida.
– Isso os teria tornado imortais, mas na verdade ocorreu o contrário.
Eles morreram!
– Espere, agora que vem a melhor parte – comentou Demian – antes
de comer do fruto do conhecimento, Adão e Eva tinham corpos

73
Juliana Duarte

imortais, mas espíritos mortais. Isso porque o espírito ainda não havia
recebido a luz. O fruto tornou seus corpos mortais, mas seus espíritos
eternos.
– Que extraordinário...! – exclamei, impressionada.
– E não é só isso. Daat é o conhecimento. O abismo tem o mesmo
nome do fruto proibido. Porque Lúcifer, a serpente, tinha em si Daat;
tinha em si a luz. Ele atravessava os túneis de Set, mergulhava no abismo.
A Árvore da Morte é o corpo mortal. A Árvore da Vida é o espírito
imortal. E a Árvore da Ciência é a mente que os unifica; aquela que dá o
conhecimento do bem e do mal e a capacidade de julgamento que realiza
a unificação e equilíbrio dos opostos.
– Ah, é como na alquimia – lembrei – o sal é a mente que une
mercúrio e enxofre; alma e corpo.
– Vamos parar por aqui – disse Demian – você não vai suportar o
resto. Sinto sua mente pesada.
Ele entregou-me um pedaço de papel. Lá havia uma imagem humana
com os símbolos dos chakras e o alfabeto Devanagari.
– Eu não sei ler sânscrito – eu disse – não adianta.
– Olhe mesmo assim. Seu corpo não lê. Seu cérebro não processa as
informações para impressionar sua mente. Contudo, o espírito entende.
Fitei o pedaço de papel e tentei sentir o que estava escrito.
– Você vai me falar sobre os chakras e o poder psíquico que cada um
desperta? – perguntei, com medo.
– Eu falaria, mas sei que você não quer ouvir. Isso porque no fundo
você já sabe.
Eu tremi. Queria sair de lá. Odiava a presença dele. Eu estava com
medo.
– Quero ir embora – falei, com voz trêmula – por favor.
Lágrimas caíram dos meus olhos. Ele não se apiedou de mim.
– Você sabe onde está Keter no seu corpo? – ele perguntou.
Aquela pergunta era fácil. Correspondia ao Sahasrara, chakra
coronário; a Coroa, como Keter.
– E agora, você saberia me dizer onde está Daat? – ele perguntou,
astutamente, sem nem esperar minha resposta.
– Não...
Eu sabia.

74
A Gata Mascarada

De repente, minha voz sumiu. Ele queria me induzir a acessar a


Árvore da Morte. Minha respiração ficou descompassada. O coração
acelerou. Caí no chão.
– Eu soube que você roubou um beijo do Gregório – ele abaixou-se
e sussurrou-me isso – Isso foi tão sujo. Gregório é o Deus da Ordem e
eu sou o Diabo. Eu posso te mostrar o caminho até as qliphoth se você
adentrar nesse abismo e percorrer os túneis de Set. Você aceita?
Abandone Gevurah e te darei Hesed.
Eu cuspi no rosto dele.

A partir desse ponto, Ofélia não se lembrava de mais nada.


Pâmela apenas estendeu a ela o copo d‟água. Ofélia bebeu-o com
dificuldade. A próxima pessoa a entrar foi Ângela, que queria conversar a
sós com ela.
– Eu pretendia observar vocês dois de longe no encontro – explicou
Ângela – embora eu confie em Demian, sei que às vezes ele é mais
dramático que o necessário e passa do limite. Li seu e-mail pouco antes
de sair de casa. Por isso, acabei não indo. Liguei avisando para Demian
sobre sua ausência, mas vejo que ele continuou lá mesmo assim. O
universo conspirou para que vocês se encontrassem sem minha presença,
sendo eu arauta desse encontro.
– Que aconteceu? – perguntou Ofélia – Demian bateu em mim?
– Não... na verdade foi você quem bateu nele – informou Ângela –
você despertou outro de seus transes de superforça, mas isso foi culpa
do Demian. Os seus machucados foram as tentativas dele de se defender.
Acho que ele exagerou, mas ambos saíram feridos dessa. Demian só
sofreu uns arranhões feios, mas você...
Não me importei. Não queria pensar. Liguei meu DS e comecei a
jogar Littlest Pet Shop. Ângela já ia embora quando eu lembrei.
– Ei, por que deixaram uma menina de 16 anos do Rio entrar na
Ordem e eu não?
– Ela é minha irmã caçula, então digamos que rola um esquema de
nepotismo.
– Ordem enganadora do caramba! – exclamei – Espere só. Quando
eu conseguir entrar aí, vou levar pra Ordem toda a minha família,

75
Juliana Duarte

conhecidos, parentes próximos e distantes. Todo mundo vai ter


privilégios!
– Tá, Ofélia. Agora dorme antes que exploda a própria cabeça. E não
vai ser a Árvore da Ciência que você vai encontrar do outro lado.

76
A Gata Mascarada

Capítulo 3

Eis a fantástica estreia de Ofélia no 2º ano do ensino médio!


Não posso dizer que eu estava feliz. Ainda não tinha convencido a
líder da Ordem a me deixar fazer parte do grupo. Ângela era uma pessoa
difícil de persuadir. Além do mais, ouvi dizer que Gregório, o líder oficial
da Ordem, era rigorosíssimo. Permitiu que Eugênia, a irmã mais nova de
Ângela, fizesse parte do grupo sob algumas restrições. Seria ainda mais
difícil convencê-lo a me deixar entrar. Principalmente depois de eu ter
queimado meu filme com Gregório quando ele veio de São Paulo
especialmente para me ver e me ajudar.
Naquela época eu pensava que as coisas eram brincadeira.
Atualmente eu estava meio arrependida das minhas ações. Se eu tivesse
me comportado, poderia ter conquistado a confiança do líder e minha
entrada na Ordem estaria quase garantida.
– Ofélia, eu não vou repetir – disse Ângela, quando fui procurá-la na
universidade pela milésima vez – essa decisão não depende só de mim. E
eu sugiro que você não perturbe Gregório insistindo no pedido ou isso
pode comprometer sua entrada oficial quando completar 18 anos.
Eram argumentos suficientes, mas eu não ia desistir. Sempre que eu
ligava para São Paulo outro membro da Ordem se comunicava comigo.
Eu nunca conseguia falar diretamente com Gregório e isso me irritava.
“Ele provavelmente é muito importante para se comunicar com uma
reles mortal” eu pensava, aborrecida.
Eu soube que houve muitos acontecimentos emocionantes na Ordem
durante as férias, incluindo reuniões com debates acalorados e rituais
incríveis. Isso só fazia com que eu me mordesse de inveja. Eu não podia
acreditar que teria que esperar mais dois anos inteiros até minha
admissão. Eu ia perder muita coisa!
Eu não podia incomodar o pessoal de SP ou Ângela o tempo todo.
Então é claro que resolvi me comunicar com o vice-líder, Fábio. Ele era
um cara bacana, então eu podia chorar um pouco até deixá-lo com pena.

77
Juliana Duarte

– Desculpa mesmo, mas infelizmente não posso fazer nada – disse


Fábio – eu sou o vice, mas não o irmão do fundador ou o namorado da
líder.
O namorado de Ângela! Lá fui eu procurar por ele. Quando o tal
namorado contou a ela que eu havia ligado, ela ficou uma fera.
– Eu aprecio sua perseverança, mas isso tem limites – avisou Ângela
– se for mais longe, irei solicitar diretamente com Gregório que barre sua
entrada.
– Não! – falei, desesperada – OK, eu vou parar... mas prometa que
pensará sobre a possibilidade de minha admissão.
– Verei o que posso fazer. Aguarde alguns meses e logo irei contatá–
la.
– Meses? – perguntei, desapontada.
– Dependendo de sua postura nesse período, irei reconsiderar.
Toda aquela burocracia me desagradava. Mas afinal, não era uma
Ordem? Bem, aquilo exigia alguma... ordem. E, de certa forma, era
emocionante haver a dificuldade. A comemoração seria ainda maior
quando eu fosse membro.
Eu poderia simplesmente procurar Outra ordem de ocultismo na
minha cidade. Mas, diabos, agora era questão de honra. E eu queria ser
parte da mesma Ordem da minha amiga Eugênia, minha companheira de
jogo.
Depois de ter atingido o nível máximo no Hello Kitty Online durante
as férias, eu estava meio distante do jogo. Já fazia mais de um mês que eu
não me comunicava com Eugênia. Até que um dia a vi online no MSN.

Geny: Rosinha, sua sumida! Nunca mais logou no HKO, sua traidora,
bastarda miserável. Abandonou nossas ovelhas. Tomara que seu milho
tenha apodrecido e seus pets tenham virado cadáveres!
Fifi: Também estava com saudades, líder. Mas eu não sou rosinha! Só
o meu arroz que é rosa.
Geny: Sua buceta também é.
Fifi: Ah, cala a boca, flor!
Geny: Eu te vi ontem, docinho.
Fifi: Quê? Não me diga que você era o caminhoneiro disfarçado!

78
A Gata Mascarada

Geny: Eu quis dizer que a vi com roupas, saindo da escola. Eu tô aqui


em Brasília.
Fifi: Você não está em época de aula?
Geny: Eu me mudei definitivamente pra cá. Vou fazer vestibular aqui.
Estudo num colégio perto do seu.
Fifi: Não acredito! Vamos combinar imediatamente. Eu, você e a
Alice.

Foi exatamente o que fizemos. Monja, Pink Rice e Ccomotti; as três


donzelas do Hello Kitty Online reunidas. Aquela conversa rendeu
horrores. Falamos de maquiagem, cabelos, roupas, sapatos, gatinhos,
iguanas, garotos, bolos, samambaias, sexo, novelas, caras mais velhos
gostosos, xingamos vadias e por fim falamos de mais sexo.
– Por que está chamando a Marie Lovely Heart de vaca se você é
muito mais puta, sua safada? – perguntei, rindo.
– Sou mesmo! – exclamou Eugênia, orgulhosa – Eu comi metade dos
meus colegas de classe na minha turma lá no Rio. Aqui só vou comer um
terço, porque os garotos da minha classe são uns trubufus.
– A Ryna Lina e a Marie são terríveis mesmo – comentou Alice,
sorrindo.
– Elas são umas perdedoras – falou Eugênia – só pegam meninos no
jogo, enquanto eu pego na vida real. Isso quando elas não pegam
shemales! Outro dia a YaYaa deu em cima de um garoto no jogo e
descobriu que ele era uma menina com avatar masculino. Quase quis
matá-la. Mandou suas escravas hackearem a conta da coitada.
– Hmmm! – exclamei, deliciada – Esse milk-shake de morango tá
muito gostoso!
– Posso provar? – pediu Alice, tomando um gole no canudinho – uau,
que maravilha!
– Cara, tu fica muito diferente sem cabelos presos e óculos escuros –
comentei para Eugênia – quando te vi ano passado você parecia uma
motoqueira.
– Não é? – observou Eugênia, olhando o menu – Não me diga que
essa parada custa 7 conto, mermão. Não pago essa porrada por esse
shake nem ferrando.

79
Juliana Duarte

– Adoro pra caramba sotaque carioca – eu disse, encantada – me dá


teu sotaque pra mim.
– Vai morar lá por um tempo – sugeriu Eugênia – pelo menos vê se
desencana. Você tá na seca desde o lance com o Alf, né?
– Sim, tô sem sexo há cinco meses – eu disse, desapontada – quase
me matei nessas férias por isso.
– Vai pra balada, ué – sugeriu Eugênia – foi a primeira coisa que fiz
quando cheguei aqui.
– Não curto essas aventuras – confessei – quero um negócio mais
sério.
– Não me diga que você é santa desse jeito! – exclamou Eugênia,
escandalizada – vai vestir um hábito e virar freira, sua nojentinha metida.
– Não sou contra sexo ocasional, mas tô cansada disso. Queria um
namoradinho pra dar uns cheiros nele sentada na cama comendo pipoca.
– Um rolo pode virar coisa séria – disse Alice – foi o que aconteceu
comigo e com meu ex.
Alice era mais comportadinha e meiguinha. Ela só ficava rindo das
besteiras que eu e Eugênia falávamos. Ela era muito fofa. O cara que
ficasse com ela seria um sortudo.
– Geny, desculpa interromper o papo emocionante sobre rapazes,
mas você podia me falar um pouco sobre como vão as coisas na Ordem?
– perguntei – Sua irmã nunca me diz nada.
– Bom, eu tô há mais de um mês por aqui e já contatei o pessoal de
Brasília – respondeu Eugênia – fui em alguns encontros na sede e
participei de um ritual.
– Que inveja! – eu não conseguia me conter de ansiedade – Me conte
tudo!
– Não posso. Você nunca fez parte de uma Ordem de ocultismo
antes? É um esquema tipo sociedade secreta, saca? Você não pode sair
comentando. É proibido.
– Por que existem essas regras se há tantos livros de magia por aí?
– Pelo exclusivismo – respondeu Eugênia – geralmente acontecem
uns debates mais profundos, não no mesmo nível dos livros. Mas claro
que também há obras que abordam questões de natureza bem elaborada.
Só que muitas delas ficam disponíveis apenas para membros.

80
A Gata Mascarada

– Então você tem acesso à literatura exclusiva da Ordem? – perguntei,


fascinada.
– Sim – respondeu Eugênia, orgulhosa – já li material escrito pela
Ângela e pelo Fábio. É do caralho.
– Droga! Quero entrar!
– Foi mal, baby, mas você não é a irmã mais nova da líder –
comentou Eugênia, com um sorrisinho – que pena, né?
– Você já leu algum grimório do Gregório?
– Não, mas eu estou morrendo para ler. Tem uma obra dele chamada
“O Abraço dos Deuses” que é quase uma lenda dentro da Ordem. Pouca
gente teve acesso a ela. Só membros da mais alta confiança do mestre.
– Ahhhhh! – exclamei, cobrindo o rosto com as mãos – O Gregório
é tão maduro, sexy, sábio e poderoso. Quantos anos ele tem? Uns trinta
e poucos?
– Sim, queridinha – Eugênia sorriu – Você não tem a menor chance
com ele. Ele é um sonho distante. Menina, se eu transasse com o
Gregório, o Diabo podia me torturar e me puxar pro inferno depois.
Puta que pariu! Ele é muito quente. Só o vi pessoalmente duas vezes,
mas valeu cada vista. Não pude falar pessoalmente com ele, mas apertei a
mão dele.
Preferi guardar para mim o segredinho de que eu havia beijado o
Gregório, embora a notícia já tivesse se espalhado para alguns membros.
Aquilo me fazia sentir poderosa.
– Você podia entrar pra Ordem, Alice – lembrou Eugênia – você tem
19, certo?
– É, mas eu sou católica – respondeu Alice.
– Isso não impede – disse Eugênia – você pode ter sua religião, ir
para a igreja, acreditar em Deus e, ainda assim, mexer com o ocultismo.
Isso pode até fortalecer sua fé.
– Não sei se quero – disse Alice – eu respeito as práticas de vocês,
mas tenho um pouco de medo de mexer com essas coisas.
– Tudo bem.
– Lili, se eu tivesse a sua idade estaria nas nuvens – eu disse – como o
mundo é injusto.
– Acabo de me lembrar de uma coisa – disse Eugênia – eu não devia
estar fofocando sobre as histórias dos membros, mas eu não resisto. O

81
Juliana Duarte

grupo aqui de Brasília tá cheio de gente anormal. No Rio o pessoal era


mais centrado, mas o povo daqui parece que não gira muito bem da
cabeça. Por exemplo, tem uma moça nova, ela tem 22 anos. Ela é meio
maluca, fala sozinha e faz uns comentários nada a ver durante os debates.
– Como assim? – eu ri, interessada.
– Ela tipo, sei lá, coloca uns vestidos curtos e fica trovando o Fábio.
Não sei se é de propósito ou ela só tá viajando. Ela disse que vê duendes
nas cortinas. Outro dia me mijei de rir quando ela perguntou se havia
uma magia pra achar o pote de ouro no fim do arco-íris. Então ela
começou a falar que tinha contatos com as inteligências do arco-íris e
que uma vez escorregou num prisma mágico que a teletransportou até o
sol para se comunicar com as potências solares.
– Uau, quero conhecer essa garota! – falei, entusiasmada.
– Mas você não sabe da melhor – observou Eugênia – tem um cara
na Ordem que entrou no ano passado. Não sei nem por onde começar a
falar dele. Digamos que 99% dos membros o odeiam. Ele criou caso até
com o pessoal da Ordem dos outros estados. Ele brigou com o
Gregório! Ele o desafiou. O mestre não vai com a cara dele e com razão.
– Talvez a intenção dele seja essa mesma – sugeri – ser odiado.
– É o que parece, pois ele nunca se esforça para ser agradável. Ele se
acha o máximo! Pensa que sabe tudo de ocultismo e que os outros são
vermes. Ele realmente estudou muito e não entendo de onde ele tirou
tanto conhecimento.
– Livros?
– Ele parece ter lido muito mesmo, mas não é só isso. É a postura
dele. O sujeito é um maldito arrogante, mas também é extremamente
calmo e seguro de si. É como se ele não tivesse medo de nada. Ele
responde qualquer pergunta com a máxima segurança. Tem resposta
pronta pra tudo. Ele é esperto, tem erudição, mas isso não significa
necessariamente que ele é sábio! Se fosse, ele faria o mínimo esforço para
respeitar a opinião dos outros. Você devia ver, alguém opina sobre algo e
ele afirma: “Não, está errado”. Ele nem mesmo diz: “Sua opinião é
válida, mas eu discordo”. Que porra é essa?
– Odeio gente assim – afirmei – quero entrar pra Ordem e dar nos
dedos desse cara, pra calar a boca dele. Duvido que ele ganhe de mim
num debate. Eu também sou boa em fornecer argumentos.

82
A Gata Mascarada

– Olha, até hoje estamos esperando por alguém que possa competir
de igual para igual com ele – disse Eugênia – nem o Fábio segura a bola,
pois o nível da discussão é alto. Acho que a minha irmã até aguentaria,
mas ela não tem paciência com ele.
– Aposto que ele só está se gabando.
– Pior que não, Fifi. Ele sabe mesmo, mas é um babaca. Quando ele
chega na sede da Ordem sempre tem um ar de superioridade. Ele senta
no canto e ignora todo mundo, como se fosse um rei. Às vezes ele só
fica quieto e até dorme nos debates, pois ele não considera certas
discussões “ao nível dele”. É um perigo cada vez que ele resolve abrir a
boca. Até o mais trivial comentário dele soa como uma bomba. Nada
que ele diz é inocente ou pra contribuir com o debate e sim pra humilhar
os outros. Ele não deixa escapar nada, o menor erro. E enquanto fala é
cuidadoso e perfeito.
– Eu acharia um furo nos argumentos – garanti – e iria humilhá-lo na
frente de todos. Eu o deixaria sem reações.
– Com certeza todos iriam adorar isso, já que o pessoal o detesta.
Seria um show e tanto. No fundo já aconteceu: Gregório calou a boca
dele, mas também “apanhou metafisicamente” com o discurso insistente.
Gregório é muito melhor. Aquele cara sabe disso, por isso ele tem muita
inveja do mestre da Ordem.
Quanto mais eu ouvia elogios ao Gregório, mais eu me derretia. Mas
eu já havia me conformado que ele era inatingível e morava longe. Eu
não conseguia nem falar com ele por telefone!
Quem sabe se eu voltasse a manifestar meus poderes psíquicos eu
poderia chamar a atenção dele. Por outro lado, eu não tava a fim de
parar no hospital de novo ou sofrer algum impacto psicológico severo.
– Esse membro metido aí, o que você acha dele, particularmente? –
perguntei.
– Ele é um imbecil – garantiu Eugênia – não tenho a menor vontade
de bater papo com ele. Não sei nada sobre ele e nem quero saber. Eu já
insisti pra minha irmã expulsá-lo, mas ela disse que não pode fazer isso.
Afinal, ele contribui bastante pra Ordem. Ele arruma o site e até já
escreveu alguns artigos muito bons. Ângela não quer mandá-lo embora,
pois sabe que seria um desperdício perder alguém tão inteligente quanto
ele. O jeito é aguentar a pedra no sapato. Mas de vez em quando Ângela

83
Juliana Duarte

dá umas indiretas pra ele se comportar. Não sei se ele liga muito. Ele é
muito confiante e não deve se importar se for expulso. Deve achar que a
presença dele é um presente pra Ordem. Filho da puta! Meu sonho é
meter um soco nas fuças desse desgraçado.
– Woa! Você o odeia mesmo! – eu ri demais – Tô muito curiosa
agora. Quero conhecer esse cara. Qual a idade dele? Como ele se parece?
– Por incrível que pareça, ele só tem 18 anos – contou Eugênia – na
verdade deve ser por isso mesmo que ele só quer perturbar todo mundo
e se acha tão esperto. Quando for mais velho, espero que ele adquira
mais maturidade, humildade e vergonha na cara. Ele é um tipo com
olhos e cabelos pretos. Confesso que ele é bonito, mas de que adianta se
é um idiota? O nome dele é Demian. Provavelmente um dos exemplares
mais insuportáveis de ser humano com quem você vai cruzar nessa vida.
Levei um susto quando ouvi isso.
– Eu conheço esse cara – falei – naquele dia que eu e você nos
conhecemos no ano passado, a Ângela marcou um encontro para que eu
conversasse com ele.
– Não me diga que é você a garota com superpoderes que bateu no
Demian? – perguntou Eugênia, surpresa – E que fez com que objetos
levitassem com a força da mente quando Gregório veio a Brasília?
– Essa sou eu! – garanti, orgulhosa.
– Poxa! – Eugênia riu – Que viagem! Sou sua fã. Tanto por ter batido
no Demian quanto por saber usar TK e esses outros poderes sinistros.
Que achou dele?
Eu não soube responder imediatamente. Sinceramente, ao pensar no
sujeito senti um arrepio.
– Eu não gosto dele – decidi – eu me senti muito mal quando me
aproximei desse sujeito. Ele tem uma aura pesada, horrível. Você não
sentiu nada?
Eugênia deu de ombros.
– Eu não sinto essas coisas. Para mim ele é um cara normal, mas
extremamente chato.
– Pelo que você descreveu, pensei que ele fosse mal educado –
comentei, meio surpresa – mas ele foi muito gentil comigo. Todo polido,
com fala suave, movimentos leves.

84
A Gata Mascarada

– Ele é assim, não se deixe enganar – alertou Eugênia – apesar da


aparência delicada, ele é um monstro. Ele não ofende as pessoas com
xingamentos. Nunca ouvi um palavrão da boca dele. Ele destroi as
pessoas lentamente, como veneno, de forma sutil. Vai aumentando a
dose, até que dá o bote e devora. Humilha, pisa, tudo isso com aquelas
palavras aparentemente gentis, mas pesadas.
Eu tinha um pouco de medo dele. Eu tremi naquele dia que o
encontrei. Isso tudo por causa da atmosfera negra que o circundava. Ele
não era normal. Havia algo profundo naquela pessoa. E não era apenas o
conhecimento; aquilo era a superfície. Ele devia ter mexido a fundo com
goécia: evocado potências do inferno, sido possuído por elas, cedido seu
corpo, vendido sua alma.
Eu não via nele somente teoria; via práxis, num nível elevado,
sublime. Ele era experiente. Do tipo que mexe com energias ou espíritos
há longos anos. Ele devia ter feito algo grave no astral, se aprisionado e
chegado num ponto em que não poderia voltar atrás. Teria sido um
pacto com um absurdo sacrifício?
Uma coisa era certa: havia algo sombrio no passado daquele cara, que
eu não desejava desvendar.
– Naquele dia ele me disse que era o Diabo – lembrei – ele é LHP,
certo?
– Não sei, Fifi – disse Eugênia – vamos parar de falar dele. Dá azar.
– Meninas, não me deixem de fora da conversa – reclamou Alice –
ontem eu descobri uma loja que vende uns crochês lindos. Vamos até lá?
– Claro – disse Eugênia – tem um sex shop aqui perto também?
Preciso fazer um rancho urgentemente.
Eu fiquei meio chateada vendo aquelas coisas do sex shop. Não me
senti muito animada em comprar algo para um prazer solitário e vazio.
Eu precisava da coisa real.
Na aula do dia seguinte, fui procurar Alfredo. Pedi para
conversarmos em particular.
– Vamos voltar a namorar? – fui bem direta.
Ele ficou confuso com o pedido.
– Desculpa, Ofélia, mas não quero passar por aquilo de novo.
– Você foi o namorado mais bonzinho que já tive. Por favor!
Ele fez que não.

85
Juliana Duarte

– Então vamos só transar sem compromisso? – sugeri.


– Não...
E foi isso. Eu fiquei muito irritada! A culpa era minha que havia sido
uma namorada péssima e perdi algo precioso.
Conversei com a Eugênia pelo MSN naquela noite.

Fifi: Falou com sua irmã?


Geny: Não adiantou muito.
Fifi: Mas que merda! O que eu preciso fazer pra entrar na Ordem?
Você tem a minha idade e está lá.
Geny: Relaxa. Ó, vou te passar um link. Dá uma olhada no site da
Ordem.
Fifi: Pensei que ele fosse restrito aos membros.
Geny: Tem o externo e o interno.

Analisei o site aberto ao público. Observei o layout, que era meio de


mau gosto com uns querubins e uns detalhes em amarelo claro.
Havia uns artigos interessantes. Li um escrito pela Ângela, que era
particularmente encantador. E havia outro artigo extremamente
pretensioso, sobre a “verdadeira magia divina” ou qualquer coisa do tipo.
Não me surpreendi quando vi que o texto estava assinado pelo Demian.
Então ele devia ser do tipo eclético, que sabia a fundo diversas áreas da
magick. Aquilo me fez sentir ainda mais raiva. Ele escreveu um monte de
coisas no site. Tentei localizar algum erro, mas não consegui. Estava
tudo certinho.
“Droga!” Aquele cara era prevenido. Apelei em busca de erros de
português, mas no máximo achei uma vírgula ou duas fora do lugar, que
eu nem tinha certeza se estavam erradas mesmo.
– Putz, esse sujeito deve ser um filhinho de papai que estudou em
escola particular, recebeu excelentes lições de gramática, estava entediado
e resolveu evocar demônios – concluí, monotonamente.
No outro dia, quem falou comigo na sala de aula foi o Bernardo. Ele
devia ter ficado sabendo da minha conversa com o Alfredo.
– Ei, Ofélia, vamos transar? – ele disse isso num tom de quem
pergunta: “Me empresta um lápis?”
– Hmmm... pode ser – respondi.

86
A Gata Mascarada

– Oba! – ele comemorou.


– Não, mudei de ideia, não quero mais.
– Droga!
No final das contas, eu era muito emotiva. Eu não sentia nada pelo
Bernardo, então não tinha vontade de trepar com ele. Será que eu era
uma santinha mesmo, como Eugênia tinha dito? Só faltava eu ir à igreja.
Quando eu saí da escola na hora do almoço, fui surpreendida ao
encontrar Eugênia me aguardando na saída.
– Boas notícias – ela informou – minha irmã tá toda feliz porque
passou num concurso, então ela tá boazinha. Ela deixou que você
participe dos encontros da Ordem por um tempo, até que decida se vai
aplicar em você os testes para admissão oficial. Mas haverá algumas
restrições: você não poderá participar dos rituais e nem do encontro
mensal para a mesa redonda sobre temas polêmicos.
– Yeeesssss!! – comemorei, com alegria.
– Teremos um encontro lá na sede agora de tarde. Vamos?
Aquilo me pegou de surpresa.
– Mas já? Agora?
– Por quê? – perguntou Eugênia – Você tem algum compromisso?
– Graças aos Deuses e aos demônios que recusei o convite pra comer
o Bernardo – suspirei, aliviada – senão eu teria que cancelar. Sexo ou a
Ordem? Seria uma escolha difícil.
Fazia muito tempo que eu não entrava naquele lugar. Fiquei até
nervosa. Era melhor que eu me portasse de acordo. Afinal, eu ainda
estava sob análise.
Cumprimentei Ângela e Fábio com entusiasmo. Observei os demais
membros. Dois eu já conhecia: Jonas e Raquel. E também havia outros
dois desconhecidos: um cara de uns 30 anos com cabelos castanhos
escuros e uma moça de cabelos longos e castanhos claros, com blusa
branca e saia florida.
Contando com Eugênia, havia somente sete membros. “Só isso?”,
pensei, intrigada. Mas, pensando bem, além de Demian não estar
presente podia haver outros ausentes no momento.
– Essa é a Laura – Ângela apresentou-a, apontando a moça de saia.
– A garota dos duendes – Eugênia sussurrou-me.
Ela deu um sorrisinho.

87
Juliana Duarte

– E esse é o Pedro, meu namorado – disse Ângela, referindo-se ao


sujeito de cabelos castanhos e barba.
“Que bom, hein? Traz o namorado, traz a irmã” pensei, aborrecida.
Bem, essa devia ser a vantagem de ser a líder: podia convidar quem
quisesse, sem dar satisfações. Mas eu achei aquilo um pouco injusto. Se
bem que eu não ia reclamar. Era melhor eu me comportar enquanto
ainda era convidada.
– O Demian não vai vir hoje? – resolvi perguntar.
Afinal, mesmo que eu não fosse com a cara dele, fiquei perplexa ao
não vê-lo.
Percebi que minha pergunta causou alguma reação. A maioria torceu
o nariz.
– Infelizmente ele está ocupado com outras coisas hoje e mandou
avisar que não estará presente – informou Ângela.
Pela cara dos presentes, imaginei que o “infelizmente” fosse
traduzido como “felizmente”. Demian devia sentir-se muito satisfeito
por ser tão detestado.
Havia alguns sofás e cadeiras no ambiente. Eu e Eugênia nos
acomodamos num dos sofás, em que também estava Fábio.
– Sugiro que você não mencione o nome do Demian – Fábio me
sussurrou – o Pedro fica possesso.
– Por quê? – perguntei, intrigada.
– Existe o boato de que Demian está a fim de Ângela. Provavelmente
é mentira, mas nunca se sabe.
Essa era a emoção de participar dos encontros da Ordem: saber de
todas as fofocas.
– Você sabia dessa? – cochichei para Eugênia.
– Duvido que seja verdade – respondeu Eugênia – e mesmo se não
tivesse namorado, a Gil não ia querer nada com ele, imagina! Ela é dez
anos mais velha que ele. Até parece que ia dar corda pra criança.
Eu ri. Ângela não nos escutou, mas notou que estávamos
cochichando e nos repreendeu.
– Vamos começar logo com isso – disse Ângela, sentando-se e
folheando uma apostila – estamos bem atrasados na programação. Aqui
está o programa e o texto de hoje.

88
A Gata Mascarada

Ela distribuiu as apostilas. Dei uma olhada na programação para


saber os temas que já tinham sido abordados naquele mês e os que
seriam tratados com mais profundidade nas próximas semanas.
Nos últimos meses eles já tinham estudado áreas como alquimia,
necromancia, xamanismo, astrologia, gematria, simbologia e divinação.
“Porra, eu perdi tudo” pensei, chateada. Não era uma tragédia ter
perdido as palestras sobre alquimia, astrologia, gematria e simbologia,
pois eu provavelmente podia resgatar a teoria em bons livros. Mas era
um desperdício não ter participado do debate sobre necromancia, onde
eu poderia esclarecer muitas dúvidas sobre minha experiência de contato
com espíritos quando criança. Sem falar na divinação, pois eu estava
interessada no scrying, pela minha antiga experiência do orbe no colar.
Eu não ligava muito para o rebuscado vocabulário alquímico, mas teria
ficado interessada se tivessem tratado sobre o poder de infusões e
poções, que tivesse uma aplicação prática, já que eu gostava de cozinhar
e inventar receitas.
Chequei os temas que seriam abordados ao longo do mês de março e
início de abril. Havia uma montanha de assuntos relacionados a RHP e
LHP. Eu não estava tão interessada nisso. Por outro lado, também
seriam abordados os temas da magia cerimonial e meditação.
Infelizmente, o ritual era totalmente direcionado ao maniqueísmo das
mãos, o que me desagradou muitíssimo.
– Por que não estudamos umbanda e quimbanda? – resolvi sugerir.
– O Gregório escreveu um livro sobre isso, embora ele foque mais
em outros sistemas – disse Ângela – infelizmente não estou qualificada
para ensinar essas áreas, e não conheço alguém próximo que esteja.
“Tanto faz” pensei, sem me importar. Perguntei por perguntar. Eu só
queria ser poupada do discurso sobre Qabalah e hermetismo. Eu
provavelmente dormiria.
– Hoje vamos falar sobre chakras? – será que eu estava muito falante
para uma convidada?
– A última reunião foi runologia – informou Fábio – estamos
alternando entre áreas bem diversas, então hoje teremos...
– Florais? – tentei adivinhar.
– Right-Hand Path.

89
Juliana Duarte

Eu suspirei, entediada. Se eu quisesse ouvir um sermão, iria para a


igreja.
– Comecemos com a questão da ética do SAG – decidiu Ângela – a
operação clássica de Abramelin exige que o praticante mantenha fé
absoluta, bondade e siga os mandamentos. Deve praticar as virtudes
teologais da fé, esperança e caridade. Contudo, isto somente se dá antes
do contato e conversação com o Sagrado Anjo Guardião. Após o
contato, ocorre uma completa inversão da prática e o adepto não mais
seguirá os mandamentos e sim a vontade direta do mensageiro de Deus.
– Quando ele contata o anjo, descobre que bem e mal não estão
separados como ele pensava, certo? – perguntei.
– Algo assim, pois essa confusão da divisão de bem e mal ocorreu
quando Adão e Eva comeram do fruto da Árvore da Ciência – explicou
Ângela – então seus olhos se abriram e ambos conheceram o bem e o
mal. Antes eles eram unos com Deus e não havia o dual. A oposição de
Deus versus Diabo foi selada depois disso.
A campainha soou.
– Falando no Diabo... – comentou Fábio.
“Salva pelo gongo”, pensei aliviada. A palestra mal começou e eu já
estava no maior tédio. Eu não queria nenhuma discussão teológica.
Desejava grandes emoções: evocar Deuses, espíritos, entidades
fantásticas. Até mexer nas cartinhas do tarô teria me agradado mais.
Em pouco tempo, Ângela estava de volta. E acompanhada. Meu
coração quase saiu pela boca quando vi quem era.
Senti uma sensação horripilante. Fiquei apavorada. Aquilo não era
brincadeira. Quando aquele cara entrou, senti a sala ser tomada por uma
sombra. Estremeci. Meu corpo ficou meio frio.
Eu precisava me controlar, ou podia até desmaiar ali mesmo. Aquilo
era sério: eu tinha medo daquele cara!
“Puta merda”, pensei, nervosa. Eu não ia aguentar ficar na mesma
sala que ele.
Demian vestia uma camisa verde escura e suspensórios. Olhou ao
redor sem muito interesse. Quando Eugênia me contou que ele entrava
na sala e observava a todos com desprezo, eu imaginei outra coisa.
Naquele caso, o olhar dele parecia meio morto, distante ou com sono.
Eu não vi arrogância ali, talvez tédio.

90
A Gata Mascarada

Ainda bem que ele sentou longe de mim. Nem olhou na minha
direção e era provável que não tivesse me notado. Sentou-se perto de
Laura. Mas, enquanto ela optou por uma cadeira, ele preferiu o chão.
Simplesmente encostou-se numa parede e fechou os olhos.
“Ótimo, ele já vai dormir” pensei, indignada. Era exatamente como
Eugênia disse: ele provavelmente não se importava com os debates e
aguardaria até que o assunto fosse de seu interesse para prestar atenção.
Eugênia fez uma careta quando o viu entrar. Os demais também não
o fitaram com bons olhos. Pelo menos dormindo ele não incomodaria.
– Você tá bem, Fi? – Eugênia me sussurrou.
– Não sei – confessei, ainda meio perturbada.
– Mana, a Ofélia não tá se sentindo bem – avisou Eugênia.
Ângela ficou preocupada e perguntou o que eu tinha.
– Um pouco de dor de cabeça – confessei, nervosa.
Falei baixo. Preferia que aquele cara não reparasse que eu estava na
sala. Quem disse que ele ligava? Aquele ali não se moveria e não abriria
mais os olhos até o fim da reunião.
Ela me deu um comprimido. Agradeci e bebi a água, sempre olhando
na direção do sujeito, para ver se haveria algum movimento daquele lado.
Enquanto eu me mantivesse a alguns metros dele, tudo ficaria bem.
Respirei fundo e tentei me controlar.
– Onde estávamos? – perguntou Ângela, meio perdida.
– Você dizia que o praticante não precisa mais seguir os
mandamentos após contatar o SAG – informou Jonas – então se o anjo
mandar o adepto matar alguém, ele deve matar?
– Sim – informou Ângela – porque o “bem” tornou-se mais
complexo. Ele não se baseia mais em regras e leis distintas. Afinal, a
consciência de Deus não pode ser apreendida pelos seres humanos. O
contato com o anjo guardião quebra as concepções estabelecidas. É
como um resgate do simbolismo do Éden.
– E aqui entra a filosofia cabalística – observou Fábio – Crowley
menciona a queda no abismo de Daat após esse contato. Isso porque
durante o período de preparação para receber o mensageiro, o magista
escala a Árvore da Vida a partir de Malkhut, o Reino. Ele se enrosca nos
galhos que envolvem os planos da misericórdia e julgamento. Tropeça
no abismo, porque ele deseja a sabedoria; contudo, não pode haver o

91
Juliana Duarte

conhecimento quando existe a separação do bem e mal, de Deus e Diabo.


Somente então, ele deverá alcançar os domínios da Árvore da Ciência,
em busca da reunificação das partes.
– A partir do abismo ele penetra nas qliphoth – explicou Ângela – e
de lá terá que lidar com os demônios da ilusão, que barram o
conhecimento, como a batalha épica de Buda e Mara. E também como o
magista de Abramelin que, com o auxílio do SAG, enfrenta os príncipes
infernais e suas legiões de espíritos familiares. No chakra laríngeo está a
chave: no reino das palavras. Somente aquele que domina a espada
epistemológica da clareza mental será capaz de ascender até o chakra
Ajna, em busca de Sahasrara, assim como o adepto salta do abismo,
busca por Binah e Chokmah, para tocar a coroa.
– Discordo plenamente.
Quem disse isso foi Demian, que continuava na mesma posição, mas
entreabriu os olhos. Então ele não estava dormindo. Estava totalmente
atento a tudo que era dito.
A mesma voz suave e calma que eu me recordava. Mas saiu um
pouco rouca, como se ele levantasse da tumba, e isso me deu um arrepio.
Eu não esperava aquela interrupção repentina, mas era provável que
aquilo acontecesse com frequência.
Eugênia me deu uma leve cotovelada e sussurrou:
– Lá vai ele...
– Que parte você discorda? – perguntou Ângela.
– Tudo – respondeu Demian – está tudo errado. Desde o princípio o
discurso foi iniciado de forma incorreta.
– Você não estava aqui desde o princípio! – argumentou Eugênia –
Chegou atrasado.
– Baseado na presente ordem do discurso, é fácil prever as sentenças
anteriores que foram pronunciadas – explicou Demian – suspeito que
nossa respeitável líder tenha começado com uma explanação a respeito
da operação de Abramelin. Foi esclarecido o sistema clássico e suas
variantes do Left-Hand Path. Depois disso, foi inevitável adentrar nas
alternativas ao mito bíblico, como a alegoria judaica de Lilith, assim
como a supremacia original de Adão e o debate metafísico do anjo e
Moisés no Corão. Isso, imperativamente, emergiu nos relatos da
Primeira e Segunda Rebelião. Lúcifer convocando suas falanges,

92
A Gata Mascarada

derrotando Miguel e sendo derrubado por Jesus Cristo. Samyaza em


fornicação com as mulheres mortais, como é retratado no apócrifo de
Enoch, gerando os gigantes Nefilim, construtores da Torre de Babel. E
tudo isso somente para cair nos velhos clichês mitológicos e cabalísticos.
Vergonhoso, no mínimo.
– Na verdade, antes de você chegar só havíamos trocado poucas
frases sobre o assunto – explicou Eugênia – portanto, sua adivinhação
está incorreta.
– Então foi pior do que eu pensava – observou Demian – como
chegaram a estas conclusões sem fundamentos?
– O que as rebeliões têm a ver com isso? – desafiou Eugênia.
– A Primeira Rebelião, especialmente, constitui papel primordial –
explicou Demian – para aqueles que desejam um belo relato poético
sobre essa jornada, recomendo “Paradise Lost” de John Milton. Se
deseja cavar as origens da dicotomia original, em busca de uma
investigação dedutiva, deve compreender o coração de Lúcifer.
– Que sorte, eis aqui Satanás em pessoa para uma entrevista – disse
Eugênia – revele-nos o que se passa em seu coração.
– Meu coração é insondável – respondeu Demian – não pode ser lido,
mas se quiser tente acompanhar o compasso das batidas e dançar
conforme essa melodia trágica e inescrutável. Fui o primeiro concebido
pelo Demiurgo e fonte de seu mais alto orgulho. Miguel foi o segundo.
Gabriel o terceiro. Uriel foi o quarto. Mas o meu poder estava muito
acima de Miguel. A distância era incomparável, tanto que o derrubei
facilmente na guerra. Então o próprio Deus carregou sua espada e me
derrotou. Ele, Jesus. Pois, diferente do que se pensa, Jesus não é o filho
de Deus. Ele é o próprio Deus! Você pode pecar contra o Filho ou até
contra o Pai, mas o pecado contra o Espírito Santo não será perdoado!
Isso constitui danação eterna, pois foi cometido o pecado mortal.
– Pronto, a criança se empolgou! – exclamou Eugênia.
– Se sou uma criança, você poderá quebrar a minha linha de
raciocínio com facilidade – desafiou Demian – forneça os argumentos e
hei de rebatê-los, com honra e dignidade.
– Ele pensa que está na Guerra Santa – comentou Eugênia – Ângela,
por que você dá corda pra ele?
– Não estou dando corda – defendeu-se Ângela.

93
Juliana Duarte

– Mas está deixando ele falar! – disse Eugênia.


– O que quer que eu faça? – perguntou Ângela – Que eu o mande
ficar quieto? Que o amordace?
– Ou isso ou dê um bom argumento – disse Eugênia – ele tá dizendo
uns troços nada a ver com o assunto. Você ia falar do SAG e ele tá aí
dando um sermão de qualquer coisa.
– Demian, por que você mesmo não dá a palestra de hoje sobre o
SAG, já que está tão inflamado pelo calor do debate? – sugeriu Ângela.
– Se a mestra me dá essa honra, prometo que não irei desapontá-la –
disse Demian.
“Que cara-de-pau” pensei, com raiva. Aquele tom com que ele se
dirigia a ela era terrivelmente irônico. Há pouco tempo ele havia dito que
o discurso dela estava todo errado. Aquilo era de tirar do sério. Mas
Ângela era surpreendentemente paciente. Eu me perguntava quanto
tempo a paciência ia durar.
– O contato com o Sagrado Anjo Guardião é uma técnica pouco
compreendida – informou Demian – esqueçam a mitologia e a Kabbalah.
Vocês não irão capturar o anjo na rede da lógica. O que fará toda a
diferença serão seus joelhos tocando o chão. Ora, abre teu coração e
chora. Pois Deus irá recolher suas lágrimas. Emocione-se, não se
envergonhe do divino. Toque a testa no chão, humilhe-se! E não espere
recompensa. Seja torturado e morra, não importa! Mesmo que sua vida
te destrua, Deus irá te amar.
Espere... aquilo tudo estava muito estranho.
Aquele cara era insano. Que discurso doido era aquele? Eu sentia o
sarcasmo supremo na voz dele. Ele falava de Deus ao mesmo tempo
com tanto amor e ódio. Eu não entendia o que aquele sujeito maluco
estava planejando.
Ele era LHP, certo? Evocava demônios, se vestia com trajes escuros e
afirmava ser o próprio Diabo. Então por que raios ele não parava de
exaltar Deus naquele tom irônico e terrível? Ele sentia tanto ódio assim
de Deus?
– Você é detestável – resolvi dizer, deixando o medo de lado – por
que não para de blasfemar? Eu não ligo se Deus existe ou não, mas com
esse seu discurso você está ofendendo as pessoas que acreditam. Isso
não é legal da sua parte.

94
A Gata Mascarada

Ele olhou na minha direção pela primeira vez. Eu devia ter ficado
quieta. Não gostei da sensação que senti quando ele me fitou, como se
estivesse perscrutando minha alma.
– Não importa o que eu fale ou o que eu faça – respondeu Demian,
com calma – nem mesmo o que eu penso. Deus conhece minha alma.
Mesmo que eu blasfeme mil vezes, ele enxergará a pureza de meu
espírito e saberá que o meu amor é muito maior do que o daqueles que
O defendem por fora, mas o renegam por dentro, como a senhorita.
– Achei que o seu Deus apreciava a humildade – observei, perspicaz.
– Aquele que desenvolveu o contato supremo com seu SAG não
precisa mais seguir o bem e os mandamentos triviais construídos para os
humanos fracos – disse Demian – ele se encontra acima disso,
extremamente elevado diante dos olhos do Salvador; assim como os
anjos do Apocalipse que pilham e destroem. Afirmar que humildade é
boa e arrogância é ruim não passa de um maniqueísmo ingênuo que os
falsos bons usam para julgar seus irmãos.
Finalmente eu entendi a que Eugênia se referia. Os argumentos dele
eram tão absurdos que não havia o que rebater, a não ser que o
interlocutor também escolhesse seguir uma lógica igualmente absurda.
Não é que Ângela não fosse capaz de vencê-lo numa discussão. Ela
simplesmente não via sentido em se envolver com aquele discurso
nonsense.
A reunião daquele dia terminou com todos completamente putos da
cara. Claro, Demian tinha destruído a palestra de Ângela. Não era para
menos. Estavam todos irritados com ele novamente. Ou talvez já
tivessem desistido de se estressar com aquilo. Alguns nem discutiam
mais com Demian, como Ângela e Fábio. Pedro então devia tapar os
ouvidos.
No final, Laura foi falar com Demian:
– Ian, você sabe onde está o meu gnomo Chou-chou?
– Lá – Demian apontou para um canto – ele estava assustado e
escondeu-se atrás da cortina.
– Mesmo? Vou lá ver. Obrigada.
E ela se afastou. Balancei a cabeça em desaprovação. Era difícil dizer
qual dos dois tinha mais furos no cérebro.

95
Juliana Duarte

Levantei-me. Caminhei na direção do Demian. Decidi não ter mais


medo. Ele não era um demônio. Era um ser humano. Portanto, não
havia nada a temer.
Bem, provavelmente alguns humanos conseguem ser muito mais
terríveis que demônios. E o discurso daquele cara me sugeria que ele
seria um desses tipos.
– Por que você usa um crucifixo? – perguntei.
Ele levantou os olhos.
– Porque não tinha um pentagrama invertido com um bode quando
fui comprar – respondeu Demian.
“Você não leva ninguém a sério, não é, seu maldito?” pensei, irritada.
– O que você faria se eu te desse um chute no saco? – ameacei, pois
eu também já estava puta da cara com aquele sujeito.
– Tenho certeza de que a senhorita não faria uma ação tão
deselegante quanto os termos que usa – foi a resposta dele.
Realmente, ele tinha uma boa resposta para tudo. Nunca saía do sério
ou se exaltava. Ficava apenas com aquela expressão tranquila e segura.
Eu precisava arranjar um jeito de irritá-lo.
– É verdade que você gosta da Ângela? – resolvi perguntar.
– Essa é uma inverdade – ele respondeu – contudo, eu aprecio os
seios dela. Parecem macios.
Essa resposta foi inesperada. Ele falou aquilo como quem não quer
nada, com a maior cara-de-pau.
“Que merda esse cara quer?” pensei, fora de mim. Ele não fazia
sentido! Não falava coisa com coisa.
– Os meus são macios – resolvi dizer, tentando encurralá-lo – quer
tocar?
– Não, parece uma armadilha – ele observou.
“Espertinho”. Assim tão óbvio?
– Com quantas garotas você já transou? – desafiei-o; numa hora eu
acharia uma pergunta que o faria pensar antes de dar a resposta.
– Cinquenta e nove.
– Quê? – perguntei, confusa – Esse é um número cabalístico?
– Cada dama simboliza uma conta do meu Santo Rosário, que
também representa mistérios gozosos – ele explicou – para cada menina

96
A Gata Mascarada

com quem tenho relações rezo uma Ave-Maria. Ainda tenho uma conta
para completar minha Coroa de Rosas.
– Desculpe interromper a discussão teológica, mas desejo falar com
você em particular, Demian. E deve ser agora.
Quem disse isso foi Ângela, que havia voltado para a sala. Eu me
virei e vi a Eugênia rindo. Entendi imediatamente o que havia
acontecido: Eugênia ouviu o comentário de Demian sobre Ângela e foi
fofocar para a irmã. Eu me sentei com a Eugênia para assistir ao
espetáculo.
– Minha irmã acabou de me contar que você fez certo comentário
desrespeitoso a meu respeito enquanto conversava com a Ofélia – disse
Ângela – isso é verdade?
– Sim, mestra – respondeu Demian, de cabeça baixa – sinto muito.
Prometo que não vai se repetir.
– Espero que não. Pois se eu escutar outro comentário sobre isso no
futuro, irei expulsá-lo imediatamente da Ordem. Está claro?
– Sim, madame – respondeu Demian.
Ângela foi embora. Eu e Eugênia seguramos o riso. Embora Demian
não tenha ficado constrangido – já que ele não tinha vergonha na cara
mesmo, e falava qualquer coisa sem o menor pudor –, foi uma situação
chata. Ângela nunca o havia ameaçado antes.
Portanto, aquele dia foi uma vitória. Mas ainda faltava um longo
caminho até derrotá-lo por completo.
– Minha meta é que ele seja expulso – Eugênia contou-me depois – e
não seria só eu que ficaria feliz se isso acontecesse.
O próximo encontro da Ordem só aconteceu alguns dias depois.
Daquela vez Demian não chegou atrasado. Quando entrei na sala, ele já
estava lá no canto dele de olhos fechados, enquanto a Laura procurava
duendes nas cortinas. Dessa vez ela usava um vestido muito sensual,
preto com detalhes em vermelho, certamente para impressionar Fábio
quando ele chegasse.
Sentei-me ao lado de Demian para ver se ele abria os olhos. Ele não
deu a mínima.
– Que estava lendo? – perguntei.

97
Juliana Duarte

Ao lado dele havia uma mochila entreaberta. Estava saindo alguma


coisa lá de dentro. Como ele me ignorou, resolvi puxar o que estava por
baixo.
– Playboy – constatei, sem ficar muito surpresa – tu tá de sacanagem,
né, cara?
– Por quê? Você quer ler? – perguntou ele, sem nem abrir os olhos –
Se quiser, eu te empresto.
– Não, obrigada, só tem mulher aqui dentro – respondi – se tivesse
homens a história era outra. Ei, Geny. Olha aqui a revista que o Demian
tava lendo.
Eu sacudi a revista pro alto. Eugênia deu de ombros.
Que sem graça. Nada que ele fizesse nos surpreenderia. Os outros
também não estavam nem aí pra ele.
Embaixo da Playboy tinha uma Bíblia. Lá dentro havia várias partes
marcadas e sublinhadas.
– Então aqui está o seu arsenal para argumentação – constatei,
folheando a Bíblia – nossa, quantas vezes você já leu isso? Tá tão velha e
toda riscada.
– Umas trinta vezes inteira – ele respondeu – embora eu tenha relido
livros como Gênesis, Salmos e Apocalipse algumas centenas de vezes.
– Como você aguentou ler as Crônicas trinta vezes? – perguntei – Ei,
você tá falando sério ou tá só zoando?
Eu nunca sabia quando ele estava sendo sério ou brincando. Mas ele
não respondeu, porque pelo jeito queria dormir. Ele parecia estar sempre
caindo de sono.
– Vou abrir sua mochila, tá? – avisei.
Mesmo ele sendo chato, achei que seria indelicado mexer nas coisas
dele sem avisar. Nem sei se ele ouviu quando eu disse, mas pelo menos
eu pedi permissão antes.
– Nossa, tem uma Bíblia em hebraico, uma em latim e outra em
grego aqui – constatei, espantada – e até elas tão sublinhadas! Vejo que
você tem tempo sobrando pra brincar com isso. O que você faz tanto,
que vive morrendo de sono? Você trabalha?
Novamente, ele me ignorou.

98
A Gata Mascarada

– Tem os apócrifos e pseudo-epígrafos bíblicos também – localizei –


Você lê tudo isso só pra ter argumentos pra defender o demônio ou você
é do tipo que vai para a igreja?
– Sou um bom garoto que reza e vai à missa – ele respondeu.
– Não acredite nele, Ofélia! – alertou Eugênia – Esse cara é muito
suspeito.
Continuei mexendo na mochila.
– Tem um caderno aqui – constatei – como é que cabe tudo isso na
sua mochila? Você não fica com dor nas costas?
– Sim, estou a meio caminho de ficar corcunda – ele respondeu.
Abri o caderno para analisar o que havia lá. Tinha várias divisões.
Não me surpreendi ao encontrar exercícios de hebraico bíblico. Mas
também havia partes estranhas intituladas “História de Israel”, “Teologia
Moral”, “Exegese do Antigo Testamento”, “Teologia Patrística”,
“História da Igreja” e “Filosofia da Religião”.
– Ô, Demian... por acaso você faz faculdade de teologia? – perguntei,
intrigada.
Ele fez que sim.
– Sério? – dessa vez Eugênia também foi até lá. Pegou o caderno que
eu estava folheando e olhou também – Que viagem! Um ateu fazendo
teologia...
– Não sou ateu e nem cético – insistiu Demian – eu acredito em
Deus. Quantas vezes preciso dizer? E aí está a prova: estou no terceiro
semestre do curso.
– Isso não significa nada – disse Eugênia – um ateu pode cursar
teologia sim, mas com certeza é estranho. Bom, você curte ocultismo,
então eu suponho que você seja... agnóstico?
– Eu sou cristão – ele afirmou.
– Um cristão esquisito – disse Eugênia – seus colegas devem ser sem
graça, bem certinhos e comportados. Afinal, quase todos eles são
seminaristas, certo?
– Eu também sou seminarista – ele disse.
Eu e Eugênia desatamos a rir.
– Ótima piada! – falou Eugênia – Seus professores são padres, né?
– É sério – disse Demian – eu moro no seminário desde os 12 anos.
Eu e Eugênia nos entreolhamos, com desconfiança.

99
Juliana Duarte

– Então por que você está com uma Playboy e fica falando besteiras?
– perguntou Eugênia.
– Um colega meu do seminário me emprestou – contou Demian – eu
prefiro cometer esse pecado a fazer o que não devo.
– Você se masturba com isso? – perguntei.
– Acho que estamos indo longe demais nas perguntas, hã? –
comentou Demian, guardando as Bíblias de volta na mochila – Que nada,
eu só ligo os pontos e pinto de canetinha.
– Pro inferno que tu é seminarista, rapaz! – falei – Até parece, seu
mentiroso.
– Ahhhh! Morcegooooo!!!
Quem gritou isso foi Laura, que pelo jeito encontrou mais do que
duendes na fresta da janela.
Demian levantou-se imediatamente e foi até lá. Segurou o morcego
com a mão. Caminhou até onde nós duas estávamos.
– Não se aproxime! – gritou Eugênia – Tira isso de perto de mim!!
– Mas ele é tão gracioso – observou Demian.
Eu e Eugênia gritamos. Demian sorriu: aí estava uma coisa nova.
Por fim, ele soltou o morcego de novo lá fora e fechou a janela.
Alguns minutos depois, Ângela e Fábio chegaram.
– Gil, o Demian disse que é seminarista – informou Eugênia – baita
mentiroso.
– Eu já sabia – contou Ângela – fui informada das circunstâncias
desde a época da admissão dele na Ordem.
– Então é verdade? – perguntou Eugênia, boquiaberta.
Ela confirmou. Eu me senti meio mal quando eu soube disso.
Digamos que foi um susto. Não importava que ele lesse revista de
sacanagem. Ele devia estar muito certo do que queria para estar no
seminário desde os 12 anos. Estava lutando contra alguma coisa dentro
dele e queria vencer. Eu só atrapalharia com minhas perguntas e
insinuações indelicadas.
– Se você tá lá desde os 12, então... você não transou com cinquenta
e nove mulheres – constatei.
– Você é um gênio – ele observou.
Eu o fitei com uma expressão estranha. Agora eu via uma coisa
diferente quando eu olhava para ele. Demian não gostou do meu olhar.

100
A Gata Mascarada

– Não me olhe assim – ele avisou – não fique com pena. Eu não vou
morrer. Essa escolha foi minha.
– Por quê?
Minha pergunta era idiota. Ele também sabia. Por isso não respondeu.
– Me desculpa por ter feito brincadeiras rudes – resolvi dizer – se
bem que você pediu por isso, mas... prometo que não vou implicar mais.
– Eu apreciaria – respondeu Demian.
– Deixa ele, Ofélia – disse Eugênia, me levando pro sofá – o resto do
pessoal já tá chegando. A reunião de hoje vai começar.
Naquele dia o assunto em pauta era meditação. Não liguei muito para
o que Fábio discursava sobre isso, pois minha cabeça estava longe.
Eu estava meio triste. Eu não entendia como uma pessoa escolhia
acabar com a própria vida em questão de segundos. Demian havia
arrancado uma parte fundamental da existência. Aquilo era difícil. Mas se
ele tinha um objetivo maior com tudo aquilo, eu entendia. Só não
aceitava.
– Quando o praticante domina os estados de jhanas na meditação
pode desvendar os caminhos para desenvolver as cinco abhinnas, ou
poderes supramundanos – explicou Fábio – elas incluem: dibbacakku:
olho divino, ou clarividência; dibbosotta: audição divina;
pubenivasanusattuna: lembrança das vidas passadas; paracitta vijanana:
telepatia e iddhividha: poderes psíquicos diversos, como voar pelo ar e
andar sobre as águas.
– Com licença – observei – eu nunca meditei a sério, mas já consegui
umas habilidades estranhas. Isso significa que também posso obtê-las
sem passar pelos jhanas.
– Sim, mas o desenvolvimento será mais instável – observou Fábio.
Aquilo era verdade. Minha telecinese era completamente aleatória ou
só acontecia quando eu expressava um sentimento muito forte.
– Perdão, mas tudo o que vocês disseram até aqui está errado –
comentou Demian – permitam-me corrigir.
“Lá vai ele outra vez” pensei, aborrecida.
– Não é necessário meditar para alcançar a graça – observou Demian
– basta crer em Deus e tudo mais lhe será acrescentado.
– Poderes também? – perguntei.

101
Juliana Duarte

– Basta recordar-se dos milagres de Nosso Senhor Jesus Cristo –


disse Demian.
– Demian, é ótimo que você acrescente novos elementos com sua
opinião, mas não queira converter os outros – observou Jonas.
Demian não gostou da observação.
– Essa Ordem não é democrática – ele disse – Minha opinião está
sendo barrada por aqui.
– Mas que porra é essa? – perguntei, irritadíssima – Você é sempre o
primeiro a dizer que todos estão errados e agora vem com essa desgraça?
– Vocês podem questionar qualquer coisa, mas não Deus – ele
garantiu.
– Por que não? – perguntei.
– Porque Deus é a verdade e a vida – ele respondeu, simplesmente –
a única certeza num mundo de incertezas.
– Não ligo para verdades e certezas – eu disse – acho muito mais
emocionante viver em liberdade, como meu coração manda. Deus é
questão de fé. A razão não decide se ele faz sentido ou não.
– Eu preciso de Deus – disse Demian.
– Tá bom – eu disse – mas eu não preciso.
A discussão ia terminar assim tão facilmente?
– Eu poderia lhe fornecer o argumento ontológico de Santo Anselmo
– observou Demian – e uma série de outros argumentos com validade
filosófica.
“Putz, começou. Eu sabia”.
– Mas não farei isso – ele concluiu – porque só andaríamos em
círculos. Debater filosofia não faz sentido quando consiste em pintar a
cara de um palhaço. E uma série de discussões metafísicas seguem esse
caminho. É preciso saber quando parar de apelar para a razão e
direcionar-se para a força da emoção.
– Demian, acredite no que você quiser – eu falei – não vou discutir
isso.
– Se você pudesse sentir o que eu sinto, experimentar a alegria de
Deus! – ele exclamou – Então você entenderia que aquilo que chama de
felicidade é apenas uma faísca de algo maior e muito mais profundo. Se
obtivesse essa experiência de comunhão com Deus, aceitaria abandonar
qualquer coisa desse mundo por isso.

102
A Gata Mascarada

– Se seu Deus está fora do mundo e te obriga a abandoná-lo, ele não


faz sentido – retruquei – eu só acreditaria num Deus apaixonado. Seu
Deus frio e solitário fala sobre um amor que não existe. Se Ele te nega
amar uma mulher, que é o amor que faz gerar a própria vida e fornece o
sentido da existência, que autoridade Ele possui para falar de qualquer
outro tipo de amor?
– Diga o que quiser – falou Demian – você não possui o poder de
quebrar a minha fé. Eu construí essas fortificações mentais, inflamando-
me de orações e leituras sagradas ao longo dos anos. Não será meia dúzia
de palavras pretensiosas que irão me enganar.
– Tá, calma – eu disse – fica frio. Essas discussões sobre Deus
raramente chegam a algum lugar e só estressam. Então vamos parar por
aqui. Você está doente e precisa de remédio. Eu estou saudável, então
não preciso de Deus.
Obviamente, ele odiou o que eu disse. Ele me fitou de forma
perigosa. “Epa”, pensei. Provavelmente eu tinha tocado na ferida. Então
era esse o caminho para irritá-lo. Mas eu já não estava a fim de fazer isso.
Nem tive vontade de falar com ele no fim da reunião. Contudo, a
líder da Ordem deu uma notícia perigosa:
– Demian irá aplicar seu teste de admissão, Ofélia. Ele irá avaliá-la.
Sugiro que se encontrem fora da sede pelo menos uma vez para resolver
essa parte.
“Merda, ele vai me ferrar”, constatei, derrotada.
Claro que ele ia inventar algo bem difícil pra me deixar de fora. Ler
toda a Bíblia de ponta cabeça ou qualquer coisa viajada do tipo.
– Vamos combinar essa semana – decidiu Demian – afinal, quando
estiver na semana da Páscoa ficará bem complicado pra mim. Estarei
super atarefado.
– Ótimo – concordei – amanhã lá em casa?
– Não precisa ser na sua casa.
– Evocar demônios no seminário que não vai ser! – exclamei – Eu
não tô a fim de ir em shopping ou lugar movimentado. Fica tranquilo,
minha mãe vai estar lá em casa. Se quiser, chamo a Eugênia também.
– A irmã da líder não precisa estar presente.
Então ficou decidido assim.

103
Juliana Duarte

Naquela noite, procurei o Demian em redes sociais, como orkut,


Facebook e twitter, mas não o localizei. Será que ele usava outro nick?
Quando chegou à minha casa no dia seguinte, Demian portou-se
como um príncipe, todo polido cumprimentando minha mãe. “Há, você
acha que engana quem?” pensei, com desagrado.
Fomos para meu quarto. A Babushka pareceu gostar do Demian.
– Que surpresa – eu observei – Babu geralmente foge quando chega
gente estranha em casa.
– Eu tenho mais empatia com animais do que com seres humanos –
disse Demian – assim como aquele morcego, sua gata sentiu minha alma
inflamada pelo amor do Senhor e desejou se aproximar.
– Será? – perguntei, pensativa – Bom, eu não duvido que suas rezas
fervorosas tenham provocado uma alteração profunda em você. Ainda
assim, você parece guardar algo violento. Desde o primeiro dia que te vi,
enxerguei uma aura negra.
– Você é boa observadora – disse Demian.
– Não te achei em redes sociais. Você não usa Facebook?
– Nunca me envolvi com essas coisas. Só uso e-mail. Principalmente
porque nossos professores mandam arquivos de texto por lá.
– Você devia tentar fazer coisas mais ousadas de vez em quando –
sugeri – além de esconder uma mera revista da Playboy na pasta achando
que é um garoto mau. Não é porque vai ser padre que você precisa
morrer pra vida.
– No momento sou o seu instrutor e ostento posição superior –
Demian deixou claro – portanto, sugiro que desligue o computador para
que eu aplique seu teste.
– Tá bom, “mestre”. Só comenta essa imagem aqui antes. Diga-me o
que vê.
Mostrei a ele na tela do computador a imagem de um anjo.
– A pintura mostra um anjo e uma mulher no mar – ele comentou –
há uma cobra aprisionando o anjo. A mulher o seduz e o anjo é tentado
por ela; não há escapatória. Isso me recorda de Samyaza, que foi punido
por Deus por sua transgressão. Os anjos forneceram os segredos divinos
para os humanos e tiveram relações com mulheres mortais.
– Não é lindo? – perguntei, encantada.
– Mas é triste também.

104
A Gata Mascarada

– Por quê?
– Porque o anjo perdeu sua inocência e pureza – respondeu Demian.
– O amor e o sexo são puros – afirmei – envolver-se nos braços do
ser amado e retornar à inocência de uma criança. Isso sim é divino e
perfeito. Se você quer sentir Deus, deveria sentir o abraço de uma
mulher. Entregar-se a esse abraço, assim como você entrega seu amor a
Deus. Sem medo, sem vergonha... não foi você que disse que devemos
chorar diante de Deus e simplesmente amá-lo?
– Sim, mas... droga, você está me deixando confuso – disse Demian.
– Ao comer da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva se deram
conta de que estavam nus e se esconderam – observei – a união sagrada
de um homem e de uma mulher através do sexo restabelece a inocência
original. Homem e mulher não fogem um do outro ao verem-se nus e
recuperam o Éden por esse amor.
Demian apenas fitava o chão, completamente imerso em
pensamentos. Sentei-me no chão ao lado dele e abracei-o.
Ele não me evitou. Estava paralisado. Mas por mais que ele se
fingisse confiante por fora, não conseguia disfarçar as batidas aceleradas
do seu coração.
Dei-lhe um beijo nos lábios. Um beijo longo, o melhor que consegui.
Depois disso, sussurrei-lhe no ouvido:
– Estou louca pra ver a expressão que você fará quando eu fizer uma
felação em você.
Nesse instante, ele se afastou.
– É o bastante – ele levantou-se – você sabe que quero ser padre e
está destruindo meus sonhos. Jamais se aproxime de mim de novo.
– Mas... achei que você pudesse construir novos sonhos.
Ele agarrou o crucifixo do pescoço com força.
– Você não vai arrancar meu Deus de mim.
E, com essas palavras, ele foi embora.
“Que cara complicado!” pensei, confusa. Eu não devia ter sussurrado
pra ele algo tão forte. Eu precisava criar uma atmosfera de inocência e
pureza para que ele aceitasse aquilo com naturalidade. Malícia não
funcionaria com ele.
Resolvi sair de casa também, para ver se eu encontrava Demian nos
arredores ainda. Era pouco provável, mas não custava tentar.

105
Juliana Duarte

Eu tive sorte. Encontrei-o na parada de ônibus, sozinho. Ele estava


rezando e chorando. Quando eu o vi, senti uma pena danada. Mas eu
precisava ser forte. Sentei-me ao lado dele. Preferi não abraçá-lo. Todo
cuidado era pouco. Era melhor eu não me aproximar.
– Demian, você ainda pode acreditar em Deus sem ser padre –
expliquei – não quero tirar seu Deus de você. Deus não vai te renegar
por você amar uma mulher, entende?
– Eu entendo isso – ele disse, enxugando as lágrimas – mas minha
situação é mais complicada.
– Você pode até continuar seu curso de teologia mesmo sem estar no
seminário.
– Mas eu não vou ter onde morar – disse Demian – e a Igreja não vai
mais me sustentar e me dar o que preciso.
– E seus pais?
– Eu briguei com eles.
– Vocês podem fazer as pazes – decidi, bem otimista – como se
costuma dizer: tem jeito pra tudo, menos pra morte. Mas no fundo até
pra morte tem jeito se você acreditar em Deus, renascimento... enfim, a
vida é bela, então vamos desfrutá-la. Você pode conseguir um estágio
remunerado no seu curso e uma vaga na casa do estudante. Quando se
formar já começa a trabalhar e aluga um JK. Perfeito, né? Tudo resolvido
e maravilhoso! Agora, vamos voltar lá pra casa?
– Você só está dizendo tudo isso porque quer ter relações sexuais
comigo, não é mesmo? – ele perguntou.
Era engraçado demais o quanto ele era certinho. Ele dizia “relações
sexuais” em vez de “me comer”, “trepar” ou simplesmente “transar”.
Era no mínimo hilário.
– Aham – confirmei, segurando na mão dele e fazendo com que me
seguisse – quando eu te der bastante prazer, essas lágrimas vão cessar
rapidinho.
Ele me seguiu apreensivo, como se estivesse indo para a forca.
Coitadinho!
Voltamos lá para casa. Tranquei a porta do meu quarto. Era melhor
eu pegar leve para não assustá-lo demais.
Porém, quando eu voltei a fitá-lo ele já estava sério e confiante
novamente.

106
A Gata Mascarada

– Vou fazê-la sentir muita dor – ele afirmou, todo sério – não pense
que sou iniciante.
Tive que segurar a gargalhada.
– Sim, querido, você e sua mão devem ter praticado duro no
seminário – afirmei.
Empurrei-o com força contra a parede e dei-lhe um beijo longo. Tirei
a camisa dele e a minha.
“Que magrelo” pensei, desapontada. Dava pra sentir até as costelas.
Eu esperava um pouco mais de carne, mas decidi não dizer nada para
não chateá-lo.
Demos uns amassos no chão, mas depois ficou desconfortável.
Subimos na cama e arrancamos o resto da roupa.
Seria a primeira vez que eu faria sexo com um maior de idade. Não
contei a ele, senão ele se sentiria mais confiante do que eu desejava. Até
então eu só havia transado com adolescentes de 13 e 14 anos. Então
digamos que o resto do corpo dele era como outro universo pra mim.
O momento da felação foi genial. Ele fez umas caras muito boas, por
mais que tentasse manter a frieza.
– Ei, eu tô te matando? – perguntei, pra me certificar – Tô te
torturando?
– Não... mas você vai ter o troco em breve.
Aquela transa seria tipo uma guerra, um tentando submeter o outro.
Que divertido! Jardim do Éden o escambau. Estava mais pra Apocalipse.
– Ei, padre – joguei a camisinha na direção dele – veste aí tua batina.
Aquilo foi um espetáculo. Ele não conseguia colocar o negócio de
jeito nenhum e ficava mais nervoso a cada nova tentativa.
– O senhor experiente que possuiu cinquenta e nove mulheres bateu
a cabeça, teve uma amnésia e esqueceu como se coloca camisinha? –
desafiei-o – Me dá isso aí que eu resolvo o problema em um segundo.
Dessa vez eu serei a instrutora.
O cheiro dele me fazia delirar. Aquela transa provavelmente foi a
melhor que eu já tive, mesmo ele sendo tão inexperiente. Eu não caçoei
dele quando houve problemas. Achei que ele saiu-se excelente para
alguém que nem sabia pôr uma camisinha.

107
Juliana Duarte

Depois daquela guerra sensual violenta, a gente dormiu. Não sei por
quanto tempo. Talvez umas duas horas. Quando acordei, havia aquele
anjinho caído ao meu lado.
“Seu idiota. Já sofreu por muito tempo. É hora de viver: sem culpa,
sem arrependimentos. Simplesmente chorar e sorrir sem esperar
julgamentos do céu, do inferno ou da terra”.
Coloquei a cabeça para fora da janela. Vi algo lindo e acordei Demian.
– Ei, Demian, vem aqui ver! Deus está feliz por você. Ele te enviou
um presente. Os duendes da Laura fizeram um bom trabalho. Olhe para
o céu!
Ele levantou-se preguiçosamente e foi até a janela. Lá ele viu um
belíssimo arco-íris por trás das casas.
– É mesmo – ele comentou, maravilhado – não é que o Senhor está
feliz comigo?
Dei-lhe um beijo na bochecha. Demian ficava ainda mais fofinho
acreditando em Deus.
– Me conta uma coisa – pedi – por que brigou com seus pais?
– Eles batiam em mim, então fugi de casa até a igreja e nunca mais
voltei.
– Mas eles batiam... para machucar mesmo?
– É, eles pegavam meio pesado às vezes – disse Demian – e eles
faziam umas punições envolvendo sexo que eu sempre odiei.
Nesse instante fiquei horrorizada. O choque cobriu meu rosto de
lágrimas e eu o abracei.
– O que foi, Ofélia? – ele perguntou, intrigado – Isso não foi agora,
foi há seis anos.
Ele era tão inocente que nem devia se dar conta do quão grave era
aquilo. Bem, se ele foi abusado sexualmente pelos pais, não importava o
quão levemente tivesse sido, era perfeitamente compreensível que ele
pensasse no sexo como algo ruim, que o afastaria de Deus. Agora eu o
entendia totalmente.
– Não pense que eu sou um santo – ele avisou – quando eu era
criança tinha tendências muito violentas. Não sei direito do que eu tinha
raiva, mas eu espancava meus colegas pra valer. Já mandei vários pro
hospital. Eu pareço ser fraco, mas quando a fúria me domina, eu quebro
coisas e pessoas que estão pela frente. Sempre fui assim.

108
A Gata Mascarada

– Você ficou assim por causa dos seus pais que te batiam, seu tonto!
– falei, com raiva dos pais dele.
– Por tudo isso, tive que depositar minhas esperanças apenas em
Deus – ele explicou – eu queria que Deus me salvasse da minha própria
fúria.
– E agora você não tem apenas a Deus, mas também a mim pra te
ajudar.
Ele não sabia direito o que ia fazer a partir dali. Decidiu que ainda
adiaria alguns dias para comunicar a decisão de largar tudo no seminário,
pois ainda precisava de um lugar para dormir. Ia tentar obter uma vaga
na casa do estudante até lá.
– Parabéns, Ofélia – ele disse, antes de sair da minha casa – você
passou no teste.
O que ele disse me deixou muito intrigada, pensando em quem
realmente havia ajudado quem.
Naquela mesma noite, claro que eu fiz questão de ligar para Eugênia
e contar essa fofoca quente.
– Você trepou com o padre?! – ela perguntou, com espanto – Como
conseguiu convencê-lo?
– Através de argumentação teológica, é claro – respondi,
naturalmente.
– Ele é quente na cama? Como é o corpo dele?
– Me desculpe, Geny, mas eu obtive essa conquista com muito
esforço, então vou guardar esses segredos só pra mim.
Não me comuniquei com Demian nos dias seguintes. Somente na
ocasião do próximo encontro da Ordem. Como Demian informou
Ângela de que eu havia passado no teste dele, obtive a permissão de
participar de um ritual.
Era uma evocação goética. Eu definitivamente não entendia Demian:
ele vivia falando de Deus, mas ia lá evocar demônios com a maior
naturalidade.
– Eu tenho meu SAG – ele explicou – minha honra, meu orgulho e
meu poder!
“Começou...” pensei aborrecida.
Enquanto Jonas explicava sobre a evocação de demônios, é claro que
Demian interrompeu-o para dizer:

109
Juliana Duarte

– O que você disse está completamente errado. Você não pode


alcançar as qliphoth sem antes possuir a experiência das sephiroth no
RHP.
– Claro que é possível chamar demônios sem anjo, sendo LHP, com
a cara e a coragem – desafiei-o – somente os covardes se escondem sob
a sombra de um anjo.
– Um LHP não possui a disciplina, a confiança, a entrega e o
sacrifício para obter a confiança de Deus, de um magnífico RHP –
retrucou Demian.
– Ah, vai tomar no cu, seu mago branco de merda – retruquei.
– A senhorita deveria segurar a língua no círculo da Arte – sugeriu
Demian – se continuar a exaltar-se, caso uma entidade tentar possuí-la eu
posso negar-me a salvá-la com meu anjo.
– Enfia esse anjo no rabo.
– Ei, ei, Ofélia – avisou Ângela – depois vocês discutem isso.
Estamos no meio da cerimônia. E você está pisando fora do círculo,
ainda por cima!
– Pisa ali no triângulo – sugeriu Demian – é 100% seguro.
Dei o dedo pra ele.
Era divertidíssimo utilizar a sala dos rituais. Eu estava com saudades.
Minha última experiência nela tinha sido o exorcismo dos espíritos.
No final do ritual, fui conversar em particular com Demian.
– Já sei o que vou fazer – decidi – vou denunciá-lo para a polícia,
contando que obrigou uma menor de idade a transar com você.
– A polícia nem vai desconfiar que foi a situação contrária que de fato
ocorreu – observou Demian.
– Tô zoando, nem vou contar, há, há – falei – vamos sair num
encontro hoje? Tipo, comer no McDonald‟s e jogar videogame.
Ele ficou meio surpreso com o convite.
– Você tá mesmo me convidando pra sair? – perguntou Demian,
desconfiado – Achei que você era do tipo que ia transar comigo uma vez
e ignorar-me no dia seguinte, me chamando só quando estivesse a fim de
sexo.
– Felizmente, eu ainda sou old school em matéria de amor – informei
– sou do tipo que se interessa por essas coisas ultrapassadas como
namoro.

110
A Gata Mascarada

– Acho que podemos pensar no assunto enquanto saímos – disse


Demian – e para sua informação, já saí do seminário e consegui uma
vaga na casa do estudante. Vai ser complicado me manter agora, mas eu
dou um jeito.
– Pode contar comigo pra qualquer coisa que precisar – garanti –
mesmo que você conclua que sou um pé no saco e queira me ter apenas
como amiga, vou te ajudar, beleza?
Aquele encontro foi divertido. Saímos para comer no Mc e fiquei
feliz ao perceber que ele não estava com a expressão vazia e distante de
sempre. Ele parecia um pouquinho mais feliz. Eu ainda ia soltá-lo mais
daquela timidez que ele escondia na máscara de arrogância.
Em vez de irmos ao cinema ou fliperama, convidei-o para ir à minha
casa novamente, pois saía mais barato. Jogamos um pouco de videogame.
Eu me espantei ao saber que ele não conhecia quase nada de jogos, nem
os clássicos.
– A vida é muito mais do que você imagina – eu disse a ele,
misteriosamente – como é que você tem vivido até agora sem o Mario?
Não consigo nem imaginar como seria uma vida assim. Não se preocupe,
estou aqui para te salvar. Mas quero ser salva também! Acho que
encontrei a fórmula secreta para que um namorado não me abandone:
que ele seja tão chato quanto eu.
– Calma, eu ainda não dei uma resposta para seu pedido – ele
lembrou.
– Não se preocupe – eu garanti – prometo que vou arrumar a
argumentação teológica perfeita para convencê-lo.

111
Juliana Duarte

Capítulo 4

– Gregório virá para Brasília mês que vem! Waaaaa!


Digitei numa velocidade impressionante. Balançava as pernas
loucamente.
– Preciso fofocar a novidade quentíssima para a Geny!
Em poucos segundos, contatei-a no MSN e escrevia entre suspiros e
gritinhos. Demian assistia a tudo lá da cama, com pouco interesse.
– O que esse cara tem de mais? – ele perguntou.
– Ele é o mestre da Ordem, oras – respondi, simplesmente.
– E? – perguntou Demian, sem se convencer – Já falei com ele antes
e não faço questão de vê-lo de novo.
– Você mesmo testemunhou o quanto Gregório é incrível. Todos
dizem que ele foi uma das poucas pessoas capazes de calar sua boca.
– Um mestre não deveria tentar humilhar os membros da Ordem e
sim ser imparcial, respeitando a opinião de todos – disse Demian – Eu
forneci argumentos lógicos que quebraram a linha de raciocínio dele. No
meu ponto de vista, fui eu o vencedor do debate, não me importa o que
os outros digam.
– Gregório está em outro nível, tolinho. Ele não prosseguiu o debate
porque achava que não valia a pena discutir com um fanático religioso
como você.
– Eu não sou um fanático religioso! – falou Demian, elevando
ligeiramente o tom de voz – E também não perdi a discussão.
– Tá bom, queridinho, você venceu seu joguinho – eu disse, com voz
meiga – quer que eu peça pra Gregório te comprar uma balinha como
prêmio?
Demian fitou-me seriamente.
– Algumas vezes eu tenho vontade de te dar uma boa resposta –
falou Demian – ainda bem que tenho muito autocontrole ou já teria
desonrado a elegância de meu vocabulário.
– Ohhhh – zombei – você é tão nobre que eu me sinto uma pessoa
vulgar perto de sua imponência, vossa majestade.

112
A Gata Mascarada

– É bom que se sinta mesmo, porque Deus escuta suas blasfêmias.


Ele também vê o quanto você me maltrata verbalmente e o quanto sou
misericordioso e altruísta.
– E humilde – acrescentei.
– Ainda estou trabalhando nisso. Seria boa coisa se você auxiliasse,
não provocando uma possível reação de minha parte.
Eu continuava digitando, vidrada na tela do computador.
– Ei, você está me escutando? – perguntou Demian.
– Alto e claro, “senhor” – respondi, digitando mais alguma coisa e
dando um risinho.
– Do que está rindo? – perguntou Demian, sentindo-se ofendido pela
pouca atenção que eu lhe dava.
– A Geny disse que o Gregório está solteiro no momento – informei
– parece que ele foi casado por alguns anos e depois se divorciou.
– E quem disse que tenho interesse em saber disso?
– Foi você quem perguntou!
– Bastava dizer que tinha relação com Gregório que não seria
necessário contar-me o resto. E eu pensei que você estava tentando
convencer-me a ser seu namorado.
– Não vou perder meu precioso tempo e paciência se você fica se
fazendo de difícil – esclareci – melhor que seja só meu ficante mesmo.
Assim me sinto livre para dar em cima do mestre quando ele vier.
– Você e aquela sua amiga desagradável não ficam dizendo que não
têm chance por ele ter o dobro da idade de vocês? – perguntou Demian,
deitando-se de novo e fitando o teto.
– Mas não custa tentar. Você também sabe como a maturidade
mágica das pessoas mais velhas é fascinante. Você mesmo confessou
sentir atração pela Ângela, que é dez anos mais velha que você.
– De qualquer forma, é idiotice sentir atração por alguém só por
causa da idade. Se fosse assim, eu teria te ignorado completamente.
– Também já tive namorados mais novos que eu – contei – mas
Gregório tem outros atrativos além desse.
– Quais? A cor da pele? – perguntou Demian – Pois quanto à
inteligência, não perco para ele.
– Isso mesmo! Ele é um negro gostoso e você é só um branquelo
azedo – eu disse, para irritá-lo – e até parece que você seria mais

113
Juliana Duarte

inteligente que Gregório. Ele é mais maduro e experiente. Mas,


independente de idade e de qualquer outra coisa, ele é simplesmente
lindo! Ele tem um ar respeitável. E o beijo dele é mais delicioso que
fondue de chocolate, mais amoroso que goiabada com queijo e mais
estonteante que milk-shake de morango!
– Naturalmente, não é melhor que o meu – acrescentou Demian.
– Claro que é. Sou sua primeira namorada. Gregório já deve ter se
envolvido em inúmeros relacionamentos. Foi até casado, então teve
muito tempo para treinar. Deve ser um rei na cama...
– Se eu disser que vou me tornar seu namorado oficial, você promete
que nunca mais vai falar do líder da Ordem?
– Pode apostar! – comemorei, contente – Só estava dizendo tudo isso
para ver se você ficava com ciúme. Parece que funcionou.
– Então, já que agora sou o namorado, tenho direito a mais uma
relação – disse Demian – eu apreciaria que fosse agora, caso esteja
disponível. A não ser que queira continuar a falar do líder com sua
amiguinha. Nesse caso, volto atrás no que eu disse antes.
– Espera, me deixa só contar pra ela que você me pediu em namoro –
eu disse, digitando.
– Eu não pedi! Somente aceitei o pedido que você me fez há um mês.
– E olha que eu nem insisti muito. Eu sabia que você era caidinho
por mim.
Ele me ignorou. Desliguei o computador e voltei para a cama.
Apertei a bochecha dele.
– Não faça isso – ele disse, afastando minha mão – não sou seu
boneco.
– Mas você é fofo! Nhawn!
– O que é “nhawn”? – ele perguntou.
– Nada, só tô miando – eu ri e envolvi meus braços nele, num abraço
– sou sua gatinha no cio e você é meu gatinho. Vou te lamber todinho,
meu leitinho, meu peixinho!
– Eu sou um gato, um leite ou um peixe afinal?
– Um gato, pois assim você tem um pau – decidi – e muitas vidas
para eu te matar mil vezes nessa trepada violenta e arrasadora!
– Eu preferia as analogias meigas – observou Demian – mas prefiro
mais ainda os termos nobres.

114
A Gata Mascarada

– Então vamos foder com nobreza! – exclamei, contente – Por onde


quer começar? Ou prefere que eu te morda e devore de surpresa?
– Eu apreciaria uma massagem.
Pressionei os dedos nas costas dele.
– Você sabe onde – disse Demian.
– Sim – sorri maliciosamente – mas eu só vou fazer se você disser a
palavrinha mágica. Eu quero te ouvir dizer.
Ele fitou-me de canto. Eu sabia que ele ficava puto da vida com
minhas condições. Eu fazia de propósito.
– Nos meus testículos.
– Por que não fala “saco”, bebê? Ou “bolas”?
– Eu não desejo realizar um debate filosófico e etimológico sobre
isso nesse momento – falou Demian – por que você gosta tanto de ficar
falando no meio?
– Você é do tipo que curte pouco papo e mais ação, não é? –
perguntei, massageando-o – Ah, perdão, você não está em condições de
papear agora.
Quando nós dois já tínhamos tentado algumas posições, fiz uma
proposta:
– Que tal anal? Não fizemos ainda.
– Não – disse Demian – sodomia é pecado.
– Ah, vai te foder!
– Na verdade é o que estamos fazendo – observou Demian.
– É mesmo. Então vai tomar no cu! Ou melhor, eu quero tomar!
– Ofélia, eu só não te solicito para que fique em silêncio porque não
quero ser indelicado.
– Se fizer o que te pedi, te faço uma massagem de meia hora no final.
– Pensando bem, não é um pecado tão grande assim – acrescentou
Demian – alguns exegetas afirmam que a condenação da sodomia é um
grande mal entendido, pois o termo referia-se apenas a atos de abuso
sexual e humilhações diversas realizados pelos habitantes de Sodoma e
Gomorra.
– Demian, cala a boca. Você fala demais, eu quero trepar, caramba!
Quando experimentamos várias posições até ficarmos satisfeitos, já
era tarde da noite.

115
Juliana Duarte

– Dorme aqui hoje, meu bem? – sugeri – Você nunca dormiu aqui
antes.
– É, vai ter que ser. Já é madrugada, nem sei se consigo ônibus mais.
Demian levantou-se.
– Aonde vai? – perguntei.
– Pegar o celular na minha mochila e colocar para despertar – ele
disse – amanhã tenho aula.
– Sábado de manhã?
– É.
– Que dó. Por que não falta?
– Sou um aluno aplicado – ele informou – nunca faltei uma aula
nesse curso e essa não será a primeira vez. Além do mais, sábado tem a
melhor matéria da semana, com um padre indiano que faz um estudo
comparativo sobre todas as principais religiões, com base no Documento
Conciliar Nostra Aetatae.
– Tá, tá – eu disse, sem interesse – mas não precisa colocar pra
despertar. Eu vou ter que acordar amanhã cedo também, aí te chamo.
– OK.
Ele deitou-se de novo.
– Tá com fome? – perguntei, passando a mão pelos cabelos dele –
Tem uma sopa de feijão na geladeira. Se quiser eu esquento.
Ele fez que não. Dei-lhe um beijo na boca e apaguei a luz. Puxei as
cobertas e deitei-me ao lado dele.
Acordei com um toque de celular. Levantei-me e atendi no corredor.
– Eugênia, você tá atrasada! – eu disse – Onde você tá?
– Na frente da sua porta. Não apertei a campainha pra não acordar
seus pais.
Vesti um roupão e atendi a porta.
– Você disse que vinha às sete e já são nove! – murmurei – Eu
prometi ao Demian que iria acordá-lo cedo. Ele tinha aula hoje. Ele vai
me matar!
– Ele tá aí com você? – perguntou Eugênia, meio surpresa.
Confirmei. Eugênia tirou o celular do bolso, toda contente.
– Quero tirar uma foto da cara dele dormindo e babando, pra depois
zoar ele – disse Eugênia.
– Espera, Geny, ele tá...

116
A Gata Mascarada

Ela abriu a porta do quarto. Demian estava todo enrolado em


cobertores, deixando apenas uma parte do nariz e dos cabelos para fora.
– Droga, acabou a bateria bem na hora – reclamou Eugênia – me
empresta tua câmera?
Peguei a câmera na gaveta e entreguei a ela.
– Mas não acho que seja uma boa ideia – eu avisei, meio rindo –
somente mostre a ele e apague depois, ouviu? Se ele se ofender com a
brincadeira, quem vai se ralar sou eu. Vou dizer que foi tudo ideia sua e
não tenho nada a ver!
Eugênia tirou uma foto. Demian apertou os olhos com o flash e
acordou. Levou um susto quando viu Eugênia diante dele, e sentou-se na
cama subitamente.
– O que está fazendo aqui? – perguntou Demian, meio aturdido, com
os olhos apertados e cabelos arrepiados.
Eugênia riu ainda mais com o susto dele e com a cara de sono de
Demian.
– Vai ter uma liquidação com 80% de desconto em bolsas e calçados
numa loja – explicou Eugênia – ela abre às dez e vai ter muita mulher se
empurrando e descabelando, então vim pegar Ofélia aqui para
chegarmos mais cedo. Eu planejava vir às sete pra pegar um lugar bom lá
na frente, mas me atrasei.
– Que horas são? – perguntou Demian.
– Nove.
– Que droga, Ofélia, você disse que ia me acordar!
Ele passou a mão pelo rosto e já ia levantar-se quando acordou de
verdade e deu-se conta.
– Por que estava tirando fotos minhas?! – exclamou Demian – Além
do mais, eu estou sem roupas! Por que a deixou entrar, Ofélia? Ficou
louca?!
– Você tá cheio de cobertor por cima – justifiquei – era só uma
brincadeira.
– Me dá essa câmera! – exigiu Demian – Quero ver essas fotos!
– Não vou dar – disse Eugênia, com a câmera na mão.
Demian começou a respirar rápido. Estava nervoso e começando a
ficar irritado.

117
Juliana Duarte

– Ofélia, pegue a câmera dela! – mandou Demian – Se não pegar


agora, eu termino com você!
Eu e Eugênia nos entreolhamos. Eugênia balançou a cabeça sem
acreditar e entregou a câmera para mim. Joguei-a para Demian.
– Vou indo na frente pra guardar lugar, amiga – falou Eugênia – você
me encontra lá daqui a pouco?
Eu confirmei. Eugênia saiu.
Quando estávamos só nós dois no quarto, Demian disse:
– Eu juro que se eu estivesse vestido, teria levantado e pegado a
câmera dela à força.
Ele apagou a foto.
– Por quê? – perguntei – Você geralmente é tão calmo.
– Hoje vocês duas passaram dos limites.
– Eu não tenho nada a ver!
Demian vestiu a calça preta e ia abotoando a camisa branca. Eu
também comecei a me vestir.
– Vocês combinaram isso – ele disse – gostam de me sacanear só
porque sabem que sou uma pessoa reservada e discreta.
– Eu só combinei de ir com ela na loja. Ela que foi entrando aqui no
quarto.
– Curioso ela saber onde estava sua câmera fotográfica, e que você
estivesse observando tudo rindo, sem tentar impedir.
– Desculpa – resolvi dizer – nunca mais vou deixá-la entrar aqui
quando você estiver.
– Mas o pior de tudo foi que você me fez perder a aula – falou
Demian – vou chegar atrasado hoje, pela primeira vez. Nunca mais
confio em você.
– Não sei o que dizer para te fazer sentir melhor se você não aceita
minhas desculpas – falei, ligando o computador.
Demian foi até lá.
– Que está fazendo aí?
– Vendo o endereço da loja.
– Você está com o MSN ligado – falou Demian.
– Ele liga automaticamente quando entro – expliquei – não estou
usando.
– Me deixa ver isso.

118
A Gata Mascarada

– Não.
– Se não me mostrar agora...
– ...você termina comigo? – perguntei, cansando-me daquilo – Para
com isso, cara. Coisa mais infantil. Se não tá a fim de a gente namorar, só
diz que não. Não usa isso pra me controlar.
Subitamente, Demian deu-se conta de uma coisa.
– Quando fazemos sexo, você sempre liga esse computador, antes,
depois e, se duvidar, até durante – observou Demian – não me diga que
você fica descrevendo tudo para a Eugênia?
– Claro que não! – defendi-me – Não sou tão indiscreta a esse ponto.
– Não acredito em você. Quero ver o histórico das suas conversas.
– Nem pensar, isso é invasão de privacidade!
No entanto, Demian tentou tirar-me do computador. Eu não quis
sair de jeito nenhum. Nós brigamos assim por alguns segundos, até que
Demian empurrou-me com força e caí da cadeira.
– Ai, seu animal! – gritei – Você me machucou!
– Quero ver o que você está escondendo com tanta convicção – disse
Demian, sentando-se na cadeira.
Ele viu o histórico de várias conversas.
– “Gregório é sensual, inteligente e tem cheiro de avelã com mel” –
Demian leu em voz alta – “O Greg é tão gostosão que eu deixaria ele me
picar em pedacinhos para fazer uma salada de tomate, alface e cenoura
com meu corpo nu”. Você só fala desse infeliz! Não citou meu nome
sequer uma vez!
– Ah, então você queria que eu tivesse citado? Eu te disse que não
falo das nossas transas, mané. Pela sua reação, você preferia que eu
tivesse falado.
Ele mexeu nas minhas gavetas.
– O que é isso? – ele perguntou.
– Um elfo centauro, um alce e um carneirinho – descrevi – fui eu
quem desenhou. E eu não te dei permissão para abrir minhas gavetas,
seu grosso.
Demian jogou meus desenhos no chão.
– Que está fazendo? É isso que dá namorar uma criança emburrada.
Aposto que Gregório jamais faria algo tão imaturo.
Demian sentou-se no chão. Permaneceu fitando o nada.

119
Juliana Duarte

– Você não estava com pressa pra ir à sua aula? – perguntei, irritada –
Já peguei meu endereço. Vou sair. Se quiser ficar aí sentado, você que
sabe.
Demian suspirou para se acalmar.
– Vou terminar esse namoro – decidiu Demian.
– Ainda bem. Eu sofri muito durante essas horas em que fomos
namorados. Assim não serei pressionada e chantageada.
– Não serei mais seu ficante também. Não virei mais aqui, não
teremos mais relações sexuais, não sairemos juntos, não iremos nos
beijar. Não teremos mais nenhum tipo de contato físico a partir de agora.
– Essa é uma punição só porque você sabe que adoro sexo, não é? –
perguntei.
– Eu sempre soube que você só queria meu corpo – falou Demian –
É esse o tipo de pessoa que você é. Se não quer meu coração, também
não terá o corpo. Esse é o trato.
– Você não é o único corpo masculino desse mundo. Arranjarei
outros.
– Ah, então eu sou só um corpo agora, hã? Finalmente está
mostrando sua verdadeira face.
– Também existem outros caras com papos menos entediantes que
os seus. Pelo menos não vou mais escutar pregações sobre Deus no meu
ouvido.
Dessa vez Demian não gostou. Ele ficava muito mais brabo quando a
ofensa era de âmbito religioso. Mas ele controlou a raiva e apenas fitou-
me friamente.
– Não é aqui nessa terra que você pagará por essas palavras, Ofélia –
Demian ameaçou – Deus é justo. Jesus Cristo morreu por nós e essa é
sua sorte. Ele possui misericórdia pelo desprezo dos ímpios. Sabe que
agem assim somente por ignorância, pois se conseguissem escutar a
Palavra do Senhor, seriam simples e humildes.
– Demian, eu só tenho uma coisa pra te dizer...
– Se eu te cumprimentar no encontro da Ordem amanhã, já se
considere lisonjeada. Minha alma foi muito purificada pela oração e
entrega. Aqueles que recebem a graça de minha atenção serão perdoados
pelo Senhor.
– Enfia Deus no seu rabo!

120
A Gata Mascarada

Quando eu disse isso, Demian olhou-me longamente e fez o sinal da


cruz. Pegou sua mochila e se mandou de lá.
“Cretino que fica se fazendo de certinho, só fala de Deus com voz
suave e nem diz palavrão. Isso é só aparência. No fundo você é um
hipócrita que julga os outros, se acha melhor que todos e tem uma alma
podre. Sim, Deus está vendo que você só usa o nome Dele pra justificar
todas as suas ações e pensamentos deturpados. É aqui nessa terra que
você pagará por isso”.
Enviei essa SMS para ele. Peguei minha bolsa e saí de casa para
encontrar Eugênia. Logo após, recebi a mensagem de resposta:
“Pelo menos eu tento melhorar. Rezo todo dia por você também,
Ofélia. Sinto muito que pense isso de mim. Eu te perdoo. No que
concerne a Deus, não há garantias do perdão do Altíssimo”.
Puta da cara, mostrei a mensagem para Eugênia. Ela balançou a
cabeça em desaprovação.
– Ignora esse lixo, Fifi – ela sugeriu – não vale a pena se estressar por
causa dele.
Minha próxima SMS foi assim:
“E quem foi que pediu o seu perdão? Não perca seu tempo rezando
por mim para o seu amigo imaginário! Por sua causa eu perdi de comprar
um sapato rosa lindo porque uma vaca pegou na minha frente. Seu
bastardo!”
Enviei a mensagem e tentei brigar por uma bolsa bege que Eugênia
puxava de um lado e uma perua puxava do outro.
Mas tive que largar a bolsa porque em seguida meu celular apitou de
novo:
“Rezarei por você mesmo assim, pois caso exista a ínfima
possibilidade de a senhorita salvar-se, você irá debulhar-se em lágrimas
de gratidão por mim no céu. No paraíso você encontrará tesouros muito
mais preciosos que sapatos. Tenha fé em Adonai, Elohim, El Shaddai e
tudo mais lhe será acrescentado, ó, infiel!”
Eu não conseguia acreditar.
– Ah, tá de sacanagem, né, meu – falei sozinha – tá me zoando, deve
estar rindo até. Desgraçado.
“Quem veio primeiro: Deus, Diabo, o ovo, a galinha, o ser humano
ou os alienígenas?”

121
Juliana Duarte

Enviei essa mensagem. A resposta dele foi a seguinte:


“Deus é um alienígena, pois naturalmente não havia a Terra antes de
o Senhor criá-la. Ele também possuía Satã, o adversário, dentro de si. Da
dualidade gerada com o consumo do fruto da Árvore da Ciência houve a
separação do bem e do mal, de Deus e Satã, que antes eram unos.
Lúcifer e o ser humano também já estavam no coração de Deus. Ele é
onisciente e já sabia que suas criações originariam o mal e mesmo assim
inventou também o ovo e a galinha para serem consumidos pelo ser
humano na panela”.
– Que porra é essa que vocês tão falando, meu? – perguntou Eugênia,
espiando as mensagens – Que viagem. As SMS de vocês são do tamanho
de uma Bíblia, pô.
– Esse idiota tá levando minhas mensagens a sério – eu disse – que
merda!
– Azar o seu que vai perder de fazer compras. Divirta-se aí batendo
boca com seu ex, ficante, amigo colorido ou sei lá qual o seu rolo com o
padreco.
Tentei algo diferente dessa vez:
“Demian, te amo”.
E enviei. Esperei ansiosamente pela resposta dele:
“Também te amo, Ofélia. Mas amo mais Deus”.
Não gostei. Respondi assim:
“Seu Deus não tem uma vagina para você transar com ele! Porque o
seu Deus machista é homem, então você deve ser gay!”
E enviei.
“A brincadeira termina aqui. Estou muito triste com você, Ofélia.
Você não respeita minha crença. Foi a única coisa que te pedi e você
continua a desrespeitar minha religião. É tão difícil assim aceitar que
tenho Deus em primeiro lugar e que fico muito chateado com você
quando zomba do Senhor? Por favor, pare. Você está me machucando”.
Quando li isso, senti um pouco de pena dele. Talvez eu estivesse
pegando pesado demais. Mesmo assim, não aceitei e respondi:
“Você também devia respeitar que as pessoas possuem crenças
diferentes das suas sem tentar convertê-las, dar seus discursos
pretensiosos e condenar todos ao inferno. Se é assim, meu Deus é o

122
A Gata Mascarada

Gregório. Espero que não se incomode se eu adorá-lo em meu altar


enquanto transamos”.
Senti-me muito orgulhosa de mim mesma por ter dado uma resposta
tão sagaz. Mas Demian não ficou muito impressionado.
“Chega dessa discussão sem sentido. Eu e você não temos mais
nenhuma relação com o outro. Procure um cara negro e mais velho para
ser seu par e eu procurarei uma temente a Deus como eu. Não responda
a essa mensagem. Está atrapalhando minha aula”.
Fiquei desapontada. Eu gostava de ser a última a dar a resposta.
– Onde está indo? – perguntou Eugênia.
– Vou flagrar Demian na saída da aula para não deixá-lo fugir – decidi.
– Boa sorte indo atrás daquele traste – falou Eugênia – eu não
perderia um sapato por causa de um cara como ele. Com o sapato posso
pegar mais cinco.
Não dei ouvidos a ela. Eu já tinha ido até a universidade dele.
Inclusive já tinha dormido com ele na casa de estudante uma vez. Não
foi difícil achar o departamento de teologia.
Sentei-me nas escadas e fiquei por lá. Vi um garoto de óculos e fone
de ouvido jogando DS do meu lado e resolvi falar com ele.
– Sabe se o pessoal de teologia já saiu? – perguntei.
Ele baixou o fone de ouvido.
– Qual semestre?
– Terceiro.
Ele pensou por um momento.
– Ei, César. Você sabe se a galera do 3º semestre da teo já pulou fora?
– Olha, eu não conheço muita gente do 3º – respondeu César – mas
o Chifrudo se pá tá ligado nisso. Ele é do 7º. Ei, Chifre, chega mais!
César era um cara de óculos escuros e boina, que estava comendo
algo parecido com um sorvete. Tinha também uma lata de refrigerante
do lado.
Quem chegou no skate foi o tal de Chifrudo, que era um sujeito pra
lá de esquisito. Usava óculos grandes, boné, uma camiseta cheia de
zumbis, jeans rasgado e tinha até tatuagem no braço.
– Que foi, moleque? – perguntou Chifrudo.
– Fala, capeta – disse César – o Ferrabráz tá querendo saber se os
manolos do 3º já saíram.

123
Juliana Duarte

– Nem – disse Chifrudo, girando o skate com o pé – eles tão tendo


liturgia com o Flamarion. Aquele ali não libera nem com o tridente do
cão na cola. Por quê?
– Essa garota aqui está esperando alguém do terceiro semestre –
explicou Ferrabráz.
– Quem? – perguntou Chifrudo, curioso.
– Demian – respondi.
– Ah, você deve ser a namorada dele! – exclamou Chifrudo, com um
largo sorriso – Prazer em conhecê-la... Ofélia, certo? – ele estendeu a
mão; eu apertei-a – Eu me lembro do seu nome por causa de
Shakespeare. Quando Demian falou de você pela primeira vez, ele disse
que o relacionamento de vocês era mais trágico que Romeu e Julieta. Soa
romântico.
– Ele fala tanto assim de mim? – perguntei, curiosa.
– Não para de falar de você, ele está todo apaixonado – contou
Chifrudo – até a gente que é seminarista tá tudo morrendo de inveja
desse sortudo. O Marc, colega dele, tá até pensando em largar o
seminário também, de tão inspirado que ficou com a paixão do Gnóstico.
– É assim que vocês o chamam por aqui? – perguntei, interessada –
Não me digam que vocês são todos seminaristas! Não parecem.
– Pode crer – falou Chifrudo – ele é o Gnóstico porque saca umas
paradas de ocultismo. Mas não se engane, tem uma galera também toda
certinha na teologia. Tá vendo aquele povo de blusa social e sapato
engraxado? Pois é.
– Não acredito que vocês vão ser padres! Principalmente você – eu ri
– Provem!
Os três tiraram de dentro da blusa um pingente com uma cruz.
– Isso não prova – observei.
– Ei, padre Danilo! – Chifrudo chamou um velhinho que passava por
ali – Não é verdade que sou seminarista? Essa donzela não acredita em
mim.
O professor parou ali por um momento.
– Esse garoto vai ser um padre muito influente entre o pessoal mais
jovem – o padre deu tapinhas nas costas dele – é um aluno muito
aplicado. Gabaritou minha prova.

124
A Gata Mascarada

– Ah, para com isso, padre – disse Chifrudo – também não precisa
exagerar. Tirei 8 no seu teste.
– A monografia dele será sobre anjos – disse o padre – realizou uma
pesquisa tão minuciosa sobre Lúcifer nos apócrifos e em todas as fontes
possíveis que recebeu sua alcunha.
– É, foi o meu orientador que me chamou assim.
– Vou indo, crianças.
– Falou, padre.
O professor despediu-se e foi embora.
– Fale-me mais sobre sua monografia – pedi, interessada.
– Meu enfoque é na primeira tríade, os anjos mais próximos de Deus,
especialmente os serafins e querubins – explicou Chifrudo – então estou
estudando mais a fundo Metatron no Livro de Enoch e, obviamente,
Lúcifer, que é um querubim.
– E o que você está fazendo aqui, Ofélia?
Lá estava Demian com a mochila nas costas. Levantei-me e dei-lhe
um beijo na boca.
– Oi, meu docinho! – eu disse – Surpresa! Vamos lá no seu quarto
conversar?
– Sim, claro – disse Demian – tenho que ir, pessoal. Vejo vocês
depois.
– A gente se fala na missa – falou Chifrudo – e não se esquece de me
devolver minha Playboy.
Demian passou um braço nas minhas costas e saiu comigo. Quando
já estávamos suficientemente afastados, perguntei:
– Você mentiu dizendo a eles que eu era sua namorada, não é,
desgraçado?
– E você não está feliz da vida com isso? – desafiou Demian.
– Mais ou menos. Por que não faz a mentira se tornar verdade?
– Porque este não é o paraíso e você não é um anjo.
– Eles dizem que você fala de mim e que está todo apaixonado.
– É, mas como a outra metade não aconteceu, isso não faz diferença.
– Que outra metade?
– Você se apaixonar por mim – disse Demian.
– Vamos lá no seu quarto fazer amor? – propus – Quem sabe assim
eu me apaixone!

125
Juliana Duarte

– Sinto muito, Ofélia, mas tenho um trabalho para entregar na


segunda-feira – disse Demian – e com o encontro da Ordem amanhã
não terei tempo para ele. E você, não tem provas e trabalhos?
– É mesmo! Tenho prova segunda! Tchau Demian.
E saí correndo de lá.
No ano anterior, eu havia quase reprovado por causa do jogo online.
Dessa vez decidi que era melhor garantir notas boas já no primeiro
semestre. Assim, quando estivesse mais perto das férias do fim do ano,
poderia dar uma relaxada nos estudos.
Naquela noite, minha irmã foi dormir lá em casa.
– Oi Io – cumprimentei.
– Oi Ofi – disse Iolanda – como vai seu namoro? Já terminaram?
– Não é bem um namoro, é um rolo – expliquei – na verdade eu nem
sei bem o que é. Mas como ele é ex-seminarista, não acho que serei
traída. Até porque só tem garotos na classe dele.
– Ele pode te trair com um cara – sugeriu Iolanda.
– Ele já me traiu com Deus, não faz tanta diferença. É complicado
competir com um amante onipotente, onipresente e onisciente.
– Eu meio que acredito em Deus e meu marido nunca ficou com
ciúme. Não seja infantil, Ofélia. Os seus namoros acabam porque você
sempre fica criticando os gostos dos seus namorados.
– Mas ele quer me converter!
– Você já não converteu ele, convencendo-o a deixar o seminário pra
fazer sexo com você? – perguntou Iolanda – Então deixe-o compartilhar
uma parte do que ele gosta com você também, Ofi. Você não precisa
concordar, mas pelo menos respeita.
– Por que as pessoas podem fazer piada com tudo, menos com
religião? – perguntei, indignada – Por que esse exclusivismo?
– Porque algumas pessoas levam suas religiões muito a sério. Se você
leva algo a sério, não vai gostar se fizerem piada com isso.
– É verdade...
– Então agora deixa de ser teimosa e peça desculpas ao seu ficante –
falou Iolanda – e vê se pelo menos não deixa esse escapar, já que todos
os outros se assustaram com você e fugiram correndo!
– Eu sei, sou assustadora mesmo – eu ri.

126
A Gata Mascarada

– Está na hora de começar a ceder e entender que namorar não


significa o seu namorado concordar com você em tudo e atender a todas
as suas vontades. Ouviu bem?
– Tá certo.
Suspeitei que a próxima reunião da Ordem fosse ser divertida. E já
começou bem, com Ângela num avental de bolinhas pendurando meias
coloridas.
– O que é tudo isso? – perguntei, curiosa.
– Preparação para a festa de boas-vindas do Gregório – explicou
Ângela – ele chega hoje com a irmã.
– Que decoração singular – comentei – não sabia que a irmã dele
vinha.
– Ouvi dizer que a irmã dele é bonita – comentou Demian, que já
estava lá no seu canto no chão, falando de olhos fechados.
– Isso já era esperado, já que ele é um gato – retruquei.
– Eu não disse isso.
– Eu sei, você prefere morrer a admitir.
– Por outro lado, nossa mestra está muito atraente hoje com esse
avental – observou Demian – com todo o respeito, é claro.
– Obrigada, Demian – disse ela, continuando a pendurar as meias.
– Também gostei! – resolvi dizer – O que há dentro das meias?
– Surpresas – revelou Ângela, misteriosamente – vamos fazer um
joguinho hoje.
– Adoro jogos! – eu disse.
– Odeio jogos – falou Demian.
– Seu estraga-prazer – reclamei.
Aos poucos o pessoal foi chegando: Laura, Fábio, Jonas, Raquel...
faltava alguém.
– Cadê a Geny? – perguntei para Ângela.
– No cabeleireiro. Ela disse que precisava se produzir para receber o
mestre da Ordem.
“Droga, por que não pensei nisso?” pensei, contrariada. Ângela
também estava arrumada. Só eu que estava parecendo um espantalho.
– E Pedro? – lembrei de perguntar.
– Nós terminamos no mês passado – disse Ângela – não notou que
ele não veio nos últimos encontros?

127
Juliana Duarte

– Agora que você falou...


Eugênia chegou um pouco depois disso e pegou-me pelo braço para
fofocar.
– Desculpa, Demian, mas você vai ter que me emprestar Ofélia um
pouco.
– Pode levar, fique à vontade – disse Demian, sem dar a mínima.
Nós duas fomos fofocar num canto.
– Eles devem estar quase chegando, estou tão nervosa! – contou
Eugênia, entusiasmada.
– Que eles vieram fazer aqui, afinal? – perguntei, intrigada.
– Ninguém sabe direito, mas parece que ele tem assuntos
administrativos da Ordem pra tratar com a Gil. Ele provavelmente só vai
ficar uns dias, então essa pode ser nossa única reunião com ele.
Precisamos aproveitar!
Quando a campainha tocou, meu coração pulou. Eu me arrastei pro
lado de Demian para apertar o braço dele. Levei Eugênia junto. Ele não
gostou de a gente ter chegado perto.
– Vão fofocar lá longe do meu ouvido – falou Demian, afastando o
braço que eu peguei – não quero saber disso!
Ângela foi recebê-lo bem naturalmente. Ela já devia ter visto o líder
mais vezes e para ela não era novidade.
Quando ele entrou, sinceramente, eu quase caí pra trás. Ele estava
diferente do que eu me lembrava. Estava de barba, bigode e cabelos
longos, estilo rastafári. Parecia uma estrela de cinema. E o que era aquela
irmã dele, meu Deus? Era como uma Deusa: a mesma pele negra do
irmão. Mas, enquanto ele tinha olhos negros, os olhos dela eram
castanhos. Os lábios dela eram carnudos e brilhantes.
A maneira com que o Demian acompanhou a irmã de Gregório com
os olhos enquanto ela passava... ele entreabriu a boca e não fechou mais.
“Pronto, já era. Perdi meu ficante” pensei, aborrecida. Mas quem ligava
pra isso com Deus Gregório ali perto?
Como a Ângela conseguia agir com tanta naturalidade? Eu não
entendia. Ela convidou-os a sentar no sofá.
– Preparamos uma pequena festinha de recepção – explicou Ângela –
não é nada de mais, mas espero que vocês se sintam bem-vindos. Para

128
A Gata Mascarada

quem não os conhece, esse é Gregório, o líder da Ordem de São Paulo, e


sua irmã Griselda.
– Ela tem 29 – Eugênia sussurrou-me – é três anos mais nova que
Gregório. Não posso acreditar que ela seja linda desse jeito! A beleza está
no sangue.
Então Griselda era um ano mais velha que Ângela. Até o nome dela
era poderoso.
– Pode esquecê-la, Demian – eu sussurrei-lhe – contente-se comigo,
pois ela é inatingível.
– Poderia largar meu braço, por gentileza? – Demian sussurrou de
volta – Seus gemidos estão me incomodando.
– Ei, vocês três aí – Ângela nos chamou a atenção – baixem a voz,
por favor.
“É, as crianças da Ordem estão perturbando a reunião” pensei,
aborrecida. Eu não queria ser tratada daquele jeito só por ser mais nova.
Que injusto! Sendo que eu me considerava muito inteligente. E Demian,
mesmo sendo um metido, também não era burro.
– É um prazer estar na filial de Brasília novamente, já faz um ano –
começou Gregório – soube que houve alguns contratempos envolvendo
admissão de novos membros, mas creio eu que esta questão já foi
resolvida. Também notei que houve diminuição significativa no número
de membros daqui.
Então ele primeiro iria tratar das questões técnicas antes de partir
para os debates de magia. Eu esperava que a parte administrativa não
durasse muito, pois eu queria presenciar uma palestra dele. E, se eu
tivesse sorte, queria ver Demian debatendo com ele. Eu duvidava
altamente que Demian tivesse coragem de dizer para Gregório: “O que
você disse está completamente errado” como ele costumava fazer com
todos os outros.
– Minha irmã Eugênia havia recebido autorização para entrar na
Ordem, mesmo tendo 16 anos – explicou Ângela – e a Ofélia, de mesma
idade, achou injusto que não tivesse esse direito. No final, acabamos
permitindo sua entrada. Enquanto isso, Demian, aos 17 anos, requisitou
entrar na Ordem e teve que esperar um ano.

129
Juliana Duarte

– Eu fui injustiçado – falou Demian – sendo que possuo mais


sabedoria do que muitos aqui. Está claro que eu teria contribuído
enormemente para a Ordem se eu tivesse entrado um ano antes.
Gregório fitou Demian com interesse. “Ótimo, a discussão vai pegar
fogo. Só porque Demian é um idiota convencido” pensei, satisfeita.
– O que está em pauta aqui não é a capacidade de ninguém, senhor
Demian – esclareceu Gregório – não duvido do potencial de nenhum de
vocês. A idade envolve questões de outras naturezas. Já tivemos casos de
pais insatisfeitos que vieram nos procurar porque seu filho ou filha havia
ingressado em nosso grupo e encontrava-se frequentemente com
estranhos mais velhos. Em São Paulo nós temos uma grande quantidade
de membros, muitos deles na faixa dos 30 ou 40 anos. Então é natural
que os pais desconfiem que o filho menor de idade saia com essas
pessoas. Também tivemos casos em que pais religiosos proibiram que o
filho praticasse magia. Eu e os outros administradores tivemos que lidar
com esse problema. Por tudo isso, o limite de idade tornou-se inevitável.
Abrimos exceções, mas isso não poderá se tornar regular.
Demian ficou quieto. Nem precisou começar o debate de magia e eu
já testemunhava Gregório calando a boca dele. Eu não poderia estar
mais feliz.
– Sobre a diminuição do número de nossos membros, houve algumas
cisões internas – explicou Ângela – principalmente envolvendo os
membros da universidade. Dois rapazes de 17 anos, alunos de lá,
participaram de reuniões. Ainda não tinham entrado oficialmente, mas
houve uma briga em que os dois e mais três de nossos membros saíram.
– Eu sabia, tinham que ser os menores de idade arranjando intrigas –
comentou Demian – ainda bem que já tenho 18 anos e sou uma pessoa
madura.
Algumas vezes Demian sabia ser sarcástico de uma maneira tão séria,
que eu nunca sabia quando ele estava tirando uma com a cara de todos
ou realmente pensava aquilo.
– Acredito que seja melhor evitarmos esse tipo de discussão – sugeriu
Gregório – maturidade não é uma questão de idade, embora certas coisas
compreendam-se melhor com tempo e experiência. Há brigas entre
pessoas de todas as idades. Na Ordem de São Paulo já tivemos muitos

130
A Gata Mascarada

casos de membros, inclusive mais velhos que eu, causando grandes


confusões.
Houve mais uns debates chatos acerca das filiais dos outros estados e
cronograma de atividades. Gregório e Ângela eram os que mais falavam.
Fábio às vezes esclarecia algumas dúvidas. Enquanto isso, eu estava
quase dormindo no ombro de Demian. Ele já estava cochilando há
muito tempo.
– Eu me lembro de você, Ofélia – falou Gregório, de repente –
tivemos aquela questão do ritual de exorcismo no ano passado. Houve
mais algum caso de manifestação ou descontrole de suas capacidades
psíquicas desde então?
Eu despertei de meu torpor quando me dei conta que mencionaram
meu nome.
– Não houve mais nenhum caso ultimamente – respondi – acho até
monótono que eu não tenha conseguido usar mais nenhum poder.
– Você deseja voltar a usar essas habilidades?
– Sim – respondi, confiante – ao mesmo tempo, tenho medo de
tentar. Traz más lembranças. Se ao menos eu tivesse maior controle, não
seria tão doloroso.
– Quanto a isso não há garantias – disse Gregório – somente o fato
de haver a manifestação de forma aleatória já constitui um fenômeno
singular. Mas não fique triste caso opte por abandonar completamente o
desenvolvimento dessas forças latentes. O ocultismo é muito mais amplo
que a esfera dos estados alterados e dos poderes psíquicos.
– Eu sei. Mesmo que uma pessoa tenha o poder de mover objetos e
de explodir coisas com a mente ou comunicar-se livremente com
espíritos, isso não prova que seja um bom magista. Assim como um
perito em meditação pode ser um completo ignorante. De nada adianta
ter a capacidade de mover-se livremente nas dimensões astrais e ser um
completo imbecil aqui na terra.
Eu fitei Demian de soslaio quando disse isso. Ele ainda devia estar
dormindo e nem olhou na minha direção. Demian era um fanático que
se inflamava de orações, entregava-se a leituras compulsivas da Bíblia e a
outras práticas extremas. Pelo visto, aquilo não adiantou tanto assim. Em
vez de repetir as mesmas ações de forma compulsória, talvez Demian
precisasse experimentar novas práticas e linhas de pensamento.

131
Juliana Duarte

– Muitos ocultistas são assim: só ligam para as aparências – disse


Gregório – se um magista alega ter poder de manipular o mundo aqui
fora, seja pelo chamamento de espíritos, premonições divinatórias,
feitiços ou despertar de poderes supramundanos, as pessoas se
interessam. Elas acham exótico e estimulante. Quando na verdade esta
não é a meta. É somente um atrativo a mais. A verdadeira transformação
que ocorre no iniciado é interna: alterar sua forma de ver o mundo pela
magia. Quando ocorre uma transformação realmente profunda, não há
mais a necessidade intensa de desejar mudar tudo ao seu redor para que
as situações ocorram conforme a vontade.
– “Magia é a Ciência e a Arte de provocar mudanças de acordo com a
vontade” – eu citei – então Crowley estava errado?
– Se estamos falando de uma mudança externa, na manipulação dos
objetos que cercam o mundo que os olhos veem, seria analisar apenas
um lado da moeda – disse Gregório – contudo, se falamos a respeito de
uma alteração interna conforme a vontade, numa alquimia mental, então
temos uma questão digna de análise.
– Isso significa que devemos ignorar o corpo e o mundo lá fora? –
perguntei – Só a parte de dentro que muda?
– Não, pois esse tipo de pensamento seria a desculpa perfeita para
entregar-se apenas a meditações de forma compulsiva, explorando
somente as dimensões mentais. Esta posição e aquela de manipular o
mundo para conquistas mundanas; ambas estão certas e erradas ao
mesmo tempo: certas quando encaradas em conjunto; erradas quando
utilizadas de maneira exclusiva. A recomendação é explorar um pouco de
cada parte para encontrar uma harmonia individual de mente, corpo e
espírito, conforme as inclinações de cada um. Não afirmarei que é errado
orar demais, meditar demais, explorar muitos poderes supramundanos,
fazer muitos rituais, focar nos feitiços ou qualquer direção que seja. É
opção de cada um encontrar a área com que mais se identifique e
dedicar-se mais a ela. Mas ainda assim é estimulante possuir uma prática
variada.
– Entendi, não há regras – concluí – precisamos fazer o que
gostamos e o que sentimos funcionar melhor para nós. Ainda assim,
nossas ações aqui fora são reflexo de uma transformação mental mais
profunda. Então não podemos julgar a sabedoria e poder de uma pessoa

132
A Gata Mascarada

baseando-se somente em sua rotina mágicka. Eu, por exemplo,


identifiquei-me mais com necromancia, enquanto Demian gosta mais de
orar, de Deus, de mexer com anjos na magia cerimonial teúrgica, estas
coisas.
Dei uma cotovelada em Demian.
– Ai! Por que fez isso? – perguntou ele – Eu estava dormindo. E
sonhando.
– Como foi seu sonho? – perguntei, curiosa.
– Eu sonhei que tinha uma matraca falando no meu ouvido e eu
desejava que ela silenciasse – contou Demian – na verdade, creio que
tenha sido um pesadelo.
Dei um tapa na cara dele; de leve, só de brincadeira. Mas, como
esperado, ele se ofendeu.
– Comporte-se! – falei – O mestre da Ordem está aqui.
– Eu digo o mesmo – retrucou Demian – em vez de vocês falarem de
temas que dão sono, com os quais todos concordam, que tal esquentar
um pouco a discussão com debates polêmicos? Por exemplo: eu afirmo
que a magia divina de Nosso Senhor Jesus Cristo é a única magia
verdadeira e superior. Quero ver alguém apresentar argumentos fortes
que provem que existe uma magia mais suprema que o poder do próprio
Deus!
Eugênia cutucou meu ombro e girou um dedo em torno da orelha,
para indicar que Demian estava lelé da cuca.
– A Magia Sagrada de Abramelin foi ensinada a Moisés por Adonai! –
prosseguiu Demian – e foi através dela que foram chamadas as pragas e
os mares foram abertos! Quando o cajado tocou o solo foi o SAG que
separou as águas através dos quadrados! A magia foi ensinada a muitos
profetas bíblicos e Yeshua era conhecedor de seus maiores segredos,
incluindo a mais difícil das operações: reviver os mortos! Peger Etiae
Gisig Eaite Regep!
– Você decorou todas as fórmulas desses malditos quadrados? –
perguntei, sem acreditar.
– Eles são benditos, não malditos – corrigiu Demian – só decorei as
principais, como ressurreição, que poderá ser útil quando eu te matar
sem querer.

133
Juliana Duarte

– Eu não acredito em Deus e desenvolvi poderes psíquicos –


observei – o que prova que poderes podem ser obtidos sem esse tipo de
crença e sem assumir nenhuma conduta moral específica. Algumas vezes
eles simplesmente... acontecem!
– A crença no Senhor está acima desses poderes – disse Demian – o
que vem de outras fontes provém do demônio.
– Eu nunca chamei o demônio tampouco, seu imbecil – eu disse –
também existem os Deuses gregos, egípcios, espíritos, elementais e
muitos outros tipos de potências. Todos eles são o demônio, babaca?
– Segundo o que você me disse, essas outras são fontes limitadas e
aleatórias. O poder vindo do Altíssimo é mais estável, belo, puro e
divino.
– Se você se convencer disso, assim será. Se eu me convencer de
outra coisa, poderei manifestar na matéria a minha crença. É tudo uma
questão de lavagem cerebral mágicka. O Deus cristão só adquiriu um
poder tão grande porque a cultura e a tradição alimentaram esse poder
através dos séculos, assim como um vampirismo psíquico, uma alienação
em massa.
– Ei, ei, vocês dois – alertou Ângela, que sempre agia como uma mãe
para apaziguar as brigas – estão exagerando. Há outras maneiras de falar
do assunto sem fica condenando um lado ou outro.
– Mestre, diga a Demian que ele está errado! – pedi, ansiosa para ver
Gregório dar um discurso formidável que faria Demian tomar nos dedos
e o calaria para sempre.
– Sinto muito, mas não direi isso – falou Gregório – esta é a crença
dele. Isso também constitui uma fonte, Ofélia. Sua visão também é um
tipo de crença e uma fonte. Todos nós estamos fadados a construir um
chão para nosso castelo. E essa passa a ser nossa certeza. Antes de
condenar a crença de uma pessoa em Deus, devemos compreender que
todos nós também construímos nossos próprios Deuses, na forma de
diferentes tipos de crenças acerca da natureza da realidade. Se não há
garantias nem que esse mundo ou nós existimos, que não somos
ilusórios, uma parte de nossa base precisa ser criada, inventada,
imaginada. Sem chão você não pode caminhar. Sem céu não poderia
voar. Até a mente precisará elaborar os ditames mais profundos da
própria mente.

134
A Gata Mascarada

– Levou um fora do mestre, Ofélia – Demian parecia imensamente


satisfeito – que feio...
– Ah, para, ele acabou de dizer que seu Deus é uma invenção e você
acha que fui eu quem levou o fora? – desafiei-o.
– Não foi isso que ele disse – falou Demian – mas você que sabe,
interprete como lhe convém. Já cansei dessa discussão sem sentido que
não vai levar a nada.
Típico. Bastou Gregório pronunciar meia dúzia de frases e Demian
desistiu da discussão, sentindo que ia perder e não iria segurar a linha de
raciocínio.
– O ocultismo não é reduzir a filosofia mística a um debate retórico –
explicou Gregório – não estamos aqui para brigar ou provar quem está
certo ou errado e sim para conhecer diferentes pontos de vista
igualmente válidos. Nenhum é superior ou inferior. Segundo a Lei da
Polaridade do Caibalion: “Tudo é duplo, tudo tem dois pólos, tudo tem
o seu oposto. O igual e o desigual são a mesma coisa. Os extremos se
tocam. Todas as verdades são meias-verdades. Todos os paradoxos
podem ser reconciliados” Na filosofia hermética, existe o ponto de vista
do Todo e o ponto de vista relativo. Somente quando um grupo de
pessoas fornece, cada uma, sua visão relativa da realidade, pode
aproximar-se da compreensão do Todo. Como nos conta a parábola sufi,
não adianta brigar para definir o que é o elefante quando cada um de nós
toca uma parte dele com os olhos vendados. Mesmo que tentemos
apreender a realidade por diversas facetas, só possuímos estes olhos. Pois,
para o Todo, a realidade não é.
– O Todo é Deus? – perguntou Demian.
– Você diria que sim – respondeu Gregório – Ofélia diria que não.
Eu daria uma resposta diferente; poderia dizer que o Todo é a reunião
das opiniões da humanidade ou da percepção de todos os seres humanos,
animais, vegetais e de outras naturezas. Uma quarta pessoa poderia
utilizar o argumento panteísta ou deísta. Então poderíamos dizer que o
Todo ao mesmo tempo é Deus e não é; ele é todos e não é ninguém; é a
razão e também não apreende a razão. O Todo é todas essas coisas e ao
mesmo tempo não é. Porque ele é e não é ao mesmo tempo.

135
Juliana Duarte

– E qual a diferença de dizer tudo isso e falar: foda-se, tanto faz essa
merda, rale-se a filosofia, vou inventar uma coisa louca aqui até ficar
satisfeita? – sugeri.
– É um caminho – concordou Gregório – o perigo está em ficar
apenas na filosofia, somente na criação sem chão, abraçar só a tradição
ou qualquer tipo de postura exclusivista. Experimente um equilíbrio
interessante entre teoria e prática, mas sem ficar fanático pela busca do
equilíbrio. Não há problema em dançar num pé só de vez em quando. Se
ficar tonto ou cansar, saberá que a outra perna está lá ou até o resto do
corpo, para sentar, deitar, dormir ou morrer. Precisamos de um pouco
de tudo e, ao mesmo tempo, numa vida não conheceremos tudo, então
será suficiente abraçar aquilo que sabemos; e confiar.
Escutar Gregório era como ouvir uma música tranquila. Ele tinha
respostas suaves e interessantes. E vê-lo assim ao vivo, escutando as
palavras fluírem de sua boca, presenciando seu corpo inteiro, os sons, as
visões, era realmente mágico. Estranho como as pessoas desejam
procurar espíritos ou fenômenos sobrenaturais quando a visão de um ser
vivo e pensante já é tão incrível.
– Nós estamos vivos e mortos ao mesmo tempo. Quando estamos
vivos, há um pouco de morte em nós. E quando morremos, ainda resta
um pouco de vida. Vida e morte estão sempre unidas num abraço e não
podem se separar, assim como o corpo e o espírito. O estado da morte
ou do nascimento é apenas uma ilusão divertida. A verdade é que o
corpo não perde o espírito na morte e o espírito não perde o corpo.
Nosso corpo de carne se une aos espíritos da terra, do fogo, da água e do
ar no momento da morte, se enterrado, cremado, jogado às águas ou
com suas cinzas ao vento; enquanto nossa essência etérica é envolvida
pelas dimensões. Sempre há um abraço; nunca há a solidão. A vida e a
morte são eternos amantes apaixonados.
Quem disse isso foi Griselda. A voz dela era ligeiramente grave e
sensual. Foi um discurso de força e senti-me envolvida por ele. Aqueles
dois eram um doce mistério.
Como eu queria ir para a cidade deles e escutar regularmente aquelas
palestras de poder! Seria uma inspiração sem tamanho. Mas eu já sabia o
que eles diriam se eu manifestasse essa minha vontade. Gregório falaria

136
A Gata Mascarada

que ele não era um professor e que o debate era uma troca, em que cada
um contribuía com partes, em busca da apreensão do Todo e blábláblá.
Debatemos sobre outros temas além de deidades, crenças,
epistemologia, dialética e hermetismo. As palestras daquele dia renderam
horrores. Só terminou tarde da noite e era como se eu estivesse num
sonho, conversando com um sábio profeta. Sabe quando dizem que
através de uma meditação profunda é possível atravessar uma dimensão
temporal, voltar para o passado e escutar o discurso de um Buda? Eu me
sentia desse jeito.
Pensando bem, era ainda mais especial. Gregório não era sagrado,
mesmo que fosse delicioso vê-lo daquela forma. Ele era humano. Eu
tinha vontade de conhecer mais sobre ele; sobre seus interesses
mundanos como hobbies, comida favorita, preferências sexuais... e
principalmente vê-lo em situações casuais, rindo e falando de assuntos
triviais. Eu queria conhecer esse lado dele!
Mas aquilo seria impossível para mim. Eu só tinha a oportunidade de
vê-lo formalmente na Ordem. Algo como uma vez ao ano e isso era
tudo.
Eu ainda teria um ano de colégio pela frente. Quem sabe eu tentasse
me mudar para a cidade dele depois disso e cursar uma faculdade lá.
Assim eu faria parte de um grupo maior e liderado por ele, em pessoa.
Não que eu estivesse insatisfeita com a liderança de Ângela. Ela era
inteligente e tinha ótimas ideias, mas... Gregório era Gregório!
Insubstituível.
Ângela resolveu quebrar a seriedade dos debates daquele dia,
distribuindo as luvas coloridas para pegarmos os brindes.
Em cada luva havia uma frase de ensinamento, uma bala ou bombom,
e um presentinho.
– O Demian pegou a bala de caramelo, é minha! – exclamei.
– Não quero sua bala de menta – falou Demian.
Mesmo assim, eu roubei a bala de caramelo dele e coloquei na minha
boca. Ele ficou furioso!
– Tá bom, queridinho, devolvo sua balinha – falei, docemente.
Dei-lhe um beijo na boca e, com a língua, coloquei a bala na boca
dele.

137
Juliana Duarte

– Não faça essas coisas na Ordem, tenha o mínimo de compostura! –


disse Demian, ofendido.
Ângela serviu os lanchinhos e bebidas que ela havia preparado para a
festa. Fábio ajudou-a com as bandejas.
– Demian, você desistiu do sacerdócio? – perguntou Gregório,
intrigado.
– Sim, como pode ver, agora tenho uma namorada bem idiota – falou
Demian.
– Não sou sua namorada – eu disse – estou solteira. E procurando
namorado! Seria ótimo que ele fosse de São Paulo, pois penso em me
mudar para lá quando acabar o ensino médio... ai!
Eugênia deu-me uma cotovelada, rindo.
– Também estou cogitando me mudar para Brasília e deixar Griselda
liderando o grupo de São Paulo – informou Gregório – ou talvez Ângela
se transfira pra São Paulo em vez disso.
– Por quê? – perguntou Eugênia, sem entender.
– Sua irmã não lhe contou? – perguntou Gregório – eu e Ângela
estamos namorando.
Eugênia abriu a boca e não fechou mais. Segurou-me pelo braço e
levantou-se.
– Com licença, nós duas precisamos ir ao banheiro! – exclamou
Eugênia, imediatamente.
Ela saiu correndo até o banheiro, me arrastando junto. Entramos lá e
ela trancou a porta.
– Não dava para ser mais discreta? – reclamei, incomodada.
– Não acredito que fui traída por minha própria irmã! – comentou
Eugênia, toda chorosa – eu sei que Gregório era só uma fantasia, mas eu
sempre o elogiei e Ângela nunca falou nada! Que mundo cruel!
E Eugênia ainda deu um longo discurso sobre isso. Mas ela chorou
de verdade. Embora eu e ela falássemos do Gregório mais como quem
elogia um ídolo, um artista com muitas fãs, era frustrante ouvir que ele
tinha arranjado namorada.
– Ângela não vai me contar os detalhes do relacionamento, ela é
certinha e reservada – concluiu Eugênia – Que merda! Mundo de bosta!
Ela enxugou as lágrimas e arrastou-me de lá com ela. Retornamos ao
salão principal. Sentamos no chão ao lado de Demian, que estava com

138
A Gata Mascarada

cara de quem sentia muito desagrado por ter duas malucas histéricas ao
seu lado.
– Por que mulheres vão juntas ao banheiro? – perguntou Demian –
Ou isso também faz parte dos mistérios herméticos?
– Para fofocar, é claro – disse Eugênia, emburrada.
– Imaginei – disse Demian.
– E retocar a maquiagem – acrescentei.
– Você nem tá de maquiagem hoje – observou Demian – tá
parecendo uma tia solteirona. Ai!
Dei um tapa no braço dele.
– E às vezes fazer xixi – eu disse, por fim.
– Essa seria a função original dos banheiros, não? – perguntou
Demian – Da perspectiva teológica eu acrescentaria: Deus desejava o
bem, mas ele é onisciente e já sabia que Adão e Eva comeriam do fruto
proibido e o mal iria nascer. Ele também soube que iriam criar os
banheiros, que seriam desvirtuados de sua função original pelas mulheres.
É tudo culpa do sexo feminino, assim como foi Eva que ofereceu o
fruto a Adão e... ai, ai! Ofélia! Para de me espancar! Não sou seu saco de
pancadas.
Gregório e Griselda precisaram ir embora mais cedo. Alguns
membros foram lá para dentro organizar os pratos e copos na cozinha.
Só Laura ficou ali no chão num canto conversando com seus duendes,
além de nós três.
– Demian, por que seus colegas e professores agem de forma tão
diferente na universidade e na igreja? – resolvi perguntar – Não sabia que
padres e seminaristas faziam piadinhas com o Diabo e fossem tão
divertidos.
– Quando você estuda, seja na universidade ou de forma autodidata,
descobre certas informações históricas, filológicas, filosóficas e
teológicas que abrem seu campo de visão – explicou Demian – por
exemplo, os padres sabem que não existem provas históricas da
existência de Moisés e de vários profetas bíblicos. Mas eles não podem
dizer isso na igreja. Na universidade padres podem adotar mais
abertamente certas posturas, como defesa do aborto, homossexualidade
e eutanásia, que eles não podem manifestar em outros lugares. Muitas
pessoas simples frequentam a igreja e, sem o embasamento histórico e

139
Juliana Duarte

moral, não entenderiam certas coisas. É preciso adequar a linguagem do


discurso conforme o local.
– Então eles estão alienando essas pessoas? – perguntei.
– Não, Ofélia – disse Demian – o objetivo da religião cristã é apenas
desenvolver fé irrestrita em Deus e, assim, obter a salvação, que é a
felicidade e a paz de espírito nessa terra. Como um padre pode explicar
que muitas dessas histórias são metáforas e parábolas para a busca da
tranquilidade e felicidade humana? O objetivo de ir à igreja não é estudar
história. É despertar o amor e a fé. Não é preciso entender; apenas crer e
amar.
– Você admite que Deus e o céu sejam metáforas?
– Não é bem assim. Sua existência é uma metáfora, Ofélia?
– Não... mesmo que minha existência seja ilusória, ela é bem real pra
mim – decidi – na prática, eu existo. Isso é mais do que suficiente.
– Então você entende a fé das pessoas em Deus – falou Demian –
um ateísta que discute com um teísta, dizendo que a crença dele é
absurda, é tão ignorante quanto um teísta que critica um ateísta. Até um
cético precisa acreditar que ele deve comer para manter sua existência
viva, mesmo que ele não acredite nem na comida e nem na própria
existência.
– Se você é tão inteligente quanto faz parecer, por que se comporta
como um fanático religioso intolerante? – perguntei, com desagrado.
– Exatamente por isso – Demian deu um sorriso perigoso – por eu
possuir todo esse embasamento de estudo, eu tenho certeza absoluta da
existência de Deus; mais forte do que nunca. Pois sei que, mesmo se
Deus não existisse, Ele ainda existe. O próprio hermetismo defende essa
ideia da existência e não existência como dois pontos de vista válidos da
verdade, como você pode aprender no discurso do Gregório.
– Finalmente entendi o que você quis dizer – concluí – isso significa
que não vamos discutir mais? Que chato. Já que os dois pontos de vista
são válidos, eu prefiro escolher que Deus não existe, para eu ter mais
liberdade.
– Prefiro que Deus exista, pois me sinto mais seguro e em paz. E,
mesmo que você não entenda isso, o fato de ter Deus me protegendo me
concede ainda mais liberdade. Posso viver sem medo, pois tenho um ser
bom e onipotente como protetor.

140
A Gata Mascarada

– Demian, deixa de falar merda – falou Eugênia, cansada daquilo –


você só precisa de seu Deus imaginário porque você é fraco. Você
precisava disso para curar seu trauma de infância, só porque teus pais te
espancavam e te comiam.
Eu levei um susto. Demian não acreditou quando ouviu aquilo.
Fitou-me com raiva.
– Você contou para ela – disse Demian – eu vou te matar.
– Desculpa – eu disse, meio arrependida – só contei porque quis te
defender! Eu disse que não era sua culpa você ser rabugento desse jeito.
Que você se tornou assim por culpa dos seus pais.
– Não interessa o motivo! – gritou Demian – Essa revelação é muito
grave. Você nunca devia ter contado pra ninguém. Jamais!
Eu nunca tinha visto o Demian tão irritado. Até fiquei com medo.
– Eu fui uma idiota, sei disso – confessei – mencionei por acaso
somente para Eugênia; para ninguém mais. E você nunca disse que era
segredo...
– Precisava dizer? – perguntou Demian – Achei que fosse óbvio.
Você foi uma das únicas pessoas na minha vida pra quem já contei isso.
Como pode mencionar isso “por acaso”? E revelou logo para uma
pessoa que odeio, que agora sabe de uma informação horrível para usar
contra mim! Contar somente a ela é a mesma coisa que gritar para o
mundo inteiro!
– Não contei para ninguém, seu exagerado – falou Eugênia – Além
do mais, ninguém se importaria. Não se ache tão importante.
Demian baixou os olhos.
– É, a culpa foi minha – ele concluiu – fui um imbecil por ter
confiado algo importante assim da minha vida pessoal para Ofélia. Não
posso confiar em ninguém mesmo. Só em Deus. Não acredito que
larguei o seminário por alguém como você.
– Ah, para, você só tá fugindo – disse Eugênia – por medo da vida.
Você busca algo perfeito, inatingível. Ninguém é perfeito, cara. Nem
você. Aliás, muito menos você. Todos te acham um saco, um arrogante
metido de merda. Te enxerga antes de criticar os outros, otário.
– Silêncio! – exclamou Demian – Não ouse me julgar! Você não me
conhece. Não sabe nada sobre minha vida! Então não tente achar que
sabe.

141
Juliana Duarte

– Já sei o suficiente – Eugênia deu um sorrisinho – aposto que deve


ter ficado todo assustado pra fazer sexo com a Ofélia por causa das suas
lembranças traumáticas, né?
– Eu não disse nada! – defendi-me – Geny, para com isso. Já chega,
senão eu que vou me ralar por sua causa, que nem no sábado.
Demian estava estranho. Apertava o próprio braço e tremia
involuntariamente. Parecia estar muito nervoso. Respirava rápido. Sua
expressão não era das melhores.
– Que foi, vai chorar, bebezinho? – provocou Eugênia.
– Fique quieta! Fique quieta! – gritou Demian, segurando a própria
cabeça – Estou muito irritado! É um perigo quanto estou assim. Não
provoque!
– “Fique quieta, fique quieta” – imitou Eugênia, fazendo uma voz
calminha e etérea, para imitar a voz de Demian – Você não tem coragem
nem de me mandar calar a boca ou me xingar. Isso porque você tem
medo até do seu Deus.
Dessa vez Demian reagiu. Quando alguém zombava de sua crença,
ele não se continha. Subitamente levantou-se, segurou Eugênia pela
blusa e lançou-a contra a parede.
Eu levei um susto enorme! Tapei a boca com a mão.
Ele continuou a segurar Eugênia, batendo a cabeça dela na parede.
Eugênia gritava.
– Para, Demian! Está louco?! – gritei, desesperada.
Tentei segurá-lo, mas, como se ele tivesse adquirido uma força
imensa, com um único movimento de braço lançou-me no chão.
Ele fechou a mão e ameaçou Eugênia com o punho em riste.
– Blasfeme de novo! – berrou Demian, mais louco que nunca; sua
voz calma subitamente tornou-se arranhada, rouca e violenta – Ouse
insultar meu Deus!
Eugênia estava chorando e protegeu-se com os braços. Demian deu
três socos nela. Eu comecei a chorar também, implorando para que
Demian parasse. Mas ele não ouvia mais a voz da razão.
Laura ficou muito assustada e encolheu-se num canto. O pessoal
voltou correndo da cozinha. Assustaram-se quando viram Eugênia
ensanguentada no chão.

142
A Gata Mascarada

Para finalizar o espetáculo, antes que alguém o segurasse, Demian


arrastou Eugênia e quebrou-a contra o vidro da janela.
“Puta que pariu, ele quebrou a janela!” Eu não entendia como ele
tinha feito aquela merda. Que força horrível era aquela? Nem quando eu
manifestava meus poderes de superforça, com aquelas habilidades
psíquicas loucas, eu seria capaz de espancar alguém daquele jeito.
E aquilo ali não era poder. Demian simplesmente... era assim. Ele
conseguia fazer aquelas coisas quando seu limite de ódio e autocontrole
era ultrapassado.
Fábio e Jonas tentaram segurar Demian, mas foi muito complicado.
Raquel e Ângela também tiveram que ajudar a pará-lo. Ainda assim, ele
não se acalmava. Parecia um animal enfurecido. Seu rosto delicado se
contorceu e se avermelhou.
Fábio teve que dar-lhe uma joelhada no estômago para que Demian
sossegasse. Ele caiu no chão e se acalmou. Mas ainda estava ofegante e
meio nervoso.
Todos foram ajudar Eugênia. Ela estava desmaiada.
– Alguém veio de carro? – perguntou Ângela, com urgência.
– Eu vim, mas deixei no estacionamento lá da outra quadra –
informou Fábio.
– Não importa, vá rápido! – falou Ângela, com urgência – Alguém
entende de primeiros-socorros? Ah, meu Deus...
Eu nunca tinha ouvido tantos “Meu Deus” antes num grupo de
ocultistas.
Eugênia foi levada às pressas para o hospital. Quando eu ouvi a
notícia, meu coração quase parou:
– Eugênia corre risco de morrer.
As lágrimas escorreram dos meus olhos. Era um choque muito
grande.
– Por causa de um soco? – perguntei, incrédula.
Não achei que os vidros da janela a tinham machucado tanto. Então
o problema havia sido ou a batida na cabeça ou o soco.
– Três socos – corrigiu Ângela – é possível matar uma pessoa com
um soco. Algumas vezes apenas um golpe pode ser fatal.
– Mas... Demian é tão magrelo!

143
Juliana Duarte

– Não importa. Parece que, de alguma forma, ele aprendeu a


direcionar a pouca força que tinha.
– Agora eu me lembrei – confessei – Demian disse que quando
criança batia nos colegas de classe e já tinha mandado vários para o
hospital. Isso com menos de 12 anos. Porque os pais dele batiam nele.
Deve ser esse o motivo de tanta fúria. Então ele foi para a igreja para
aprender a controlar a irritação. Embora ele pareça mais calmo e
tranquilo que a maioria das pessoas, dentro dele ele é... um monstro; um
demônio.
– Ele só se esqueceu que ele não tem mais 12 anos – observou
Ângela – ele não pode socar uma pessoa da mesma forma que fazia com
12, com seu corpo atual de 18. Não me importa o motivo; que tenha
sido Eugênia a provocá-lo e que os pais tenham batido nele no passado.
Se ele matar minha irmã, eu quero vê-lo na cadeia.
Eu não podia acreditar. Naquele instante eu me dei conta: e se tivesse
sido eu? Eu estava num rolo com aquele demônio. Ele podia ter me
matado se eu o tivesse irritado o suficiente. E se eu continuasse a me
envolver com ele, provavelmente acabaria morta cedo ou tarde.
Fiquei com medo. Ângela achava que a melhor coisa era expulsá-lo
da Ordem, mesmo que Eugênia se salvasse. Eu também queria me
afastar dele.
Por outro lado, Demian precisava de ajuda, urgentemente. Será que
era certo simplesmente mandá-lo embora como se ele fosse um assassino
cruel?
Alguns estavam no hospital e outros na sede da Ordem naquela
madrugada. Demian ainda estava na sede e foi proibido de ir ao hospital.
Quando eu voltei para a sede, vi o estado de Demian. Ele parecia
mais nervoso do que nunca. Estava encolhido num canto, cobrindo o
rosto com as mãos. Ainda estaria irritado? Ou arrependido?
Eu não quis chegar perto dele. Ninguém quis. Laura também tinha
fugido. Havia voltado para casa.
Quando Demian afastou as mãos, percebi que ele estava chorando.
Rezando também, talvez. Eu já tinha notado isso: quando chorava,
Demian geralmente rezava junto.
Eu achei muita hipocrisia da parte dele socar alguém até quase matar
e depois ficar chorando. Mas será que ele tinha mesmo controle sobre o

144
A Gata Mascarada

que havia acontecido? Ou ele havia entrado num transe louco, numa
fúria repentina e incontrolável, em que perdeu completamente a razão?
Mas se aquilo acontecesse com frequência, ele não poderia ficar à solta
por aí para matar alguém a qualquer momento.
Finalmente, eu resolvi me aproximar dele, com cautela.
– Demian? – chamei-o.
Ele olhou na minha direção, afastando completamente os braços do
rosto. Quando ele fez esse movimento, eu instintivamente dei um passo
para trás.
– Você também está com medo de mim – ele constatou, com uma
voz distante e vazia – todos estão.
– Não estou – menti.
– Está tudo bem – disse Demian – porque eu também tenho medo
de mim.
Resolvi sentar-me perto dele.
– Você sabia que a Eugênia pode morrer por causa do seu soco?
– Sim, fui informado – respondeu Demian.
– Você fez de propósito?
– Não sei, acho que não. Eu não sabia que ela era tão frágil; ou que
eu era tão forte. Eu só queria puni-la, mas nem eu lembro direito o que
fiz. Se ninguém tivesse me segurado, acho que eu teria estraçalhado o
corpo dela.
Eu senti um arrepio quando ele disse isso.
– Sério? – perguntei, para me certificar.
– Você acha que eu estou brincando? – ele perguntou-me, levemente
aborrecido.
– Não... – respondi, com voz trêmula, com medo de deixá-lo
aborrecido.
Ele derramou mais algumas lágrimas.
– É a primeira vez que faço isso desde meus 12 anos. Eu nunca matei
ninguém. Meus colegas já foram para o hospital com lesões feias, mas
nunca houve risco de ninguém morrer. Eu não entendo...
– Você cresceu, foi isso que aconteceu. E embora Deus tenha
aplacado sua raiva, não a fez desaparecer. Ela apenas ficou escondida
bem fundo, em algum lugar dentro de você. E hoje explodiu.

145
Juliana Duarte

– Sempre temi que isso acontecesse um dia – confessou Demian –


mas não precisava ser desse jeito. Seria melhor eu ter partido o pescoço
em vez de matar alguém. Assassinato vai contra as leis de Deus.
– Se Eugênia morrer, eu não vou te perdoar – eu disse – não vou
aceitar a desculpa que um demônio se apossou de seu corpo. Você já é
bem grandinho para lidar com as consequências de seus atos.
– Eu sei – disse Demian – não vou fugir. Estou preparado para as
consequências.
Gregório chegou à sede. Levantei-me e fui falar com ele.
– Como está Eugênia? – perguntei-lhe – E Ângela?
– Ângela está junto com a irmã no hospital – informou Gregório – e
não vai sair de lá até que receba notícias sobre o estado definitivo de
Eugênia. Demian está aqui?
Eu apontei. Ele continuava sentado no chão, de cabeça baixa.
Gregório foi até lá.
– Demian, olhe para mim.
Demian levantou o rosto quando Gregório disse isso. Aguentou o
olhar dele.
– O que aconteceu? – perguntou Gregório.
– Eugênia me ofendeu – disse Demian, com uma voz rouca e
apagada de quem não sente vontade de falar – ela me humilhou. E
depois tentou humilhar meu Deus. Ela fez isso rindo, estava me
provocando propositalmente, para testar meu limite.
– E por causa disso você acha que tinha o direito de tirar a vida dela?
– perguntou Gregório, seriamente.
– Ela morreu? – perguntou Demian, assustado.
– Não, mas pode morrer. Você acha que fez o certo? Pensa que Deus
ficaria mais feliz se você matasse outros para defendê-lo?
– De forma alguma. Jesus Cristo ensinou a dar a outra face. Se o
próprio Deus agiu dessa forma, eu, que sou humano, não tenho o direito
de exercer minha justiça sobre outros.
– Então como você explica sua reação?
– Eu não explico. Agi impulsivamente. Foi um erro. Certamente o
maior erro da minha vida. E temo que possa acontecer de novo.
– Você precisa de um tratamento – disse Gregório – psicoterapia.
Mas não só isso. Remédios seriam fundamentais nesse quadro. O ideal

146
A Gata Mascarada

seria ir a um psiquiatra e que, paralelo aos remédios, você consultasse um


psicólogo regularmente. Se necessário, até a internação constituiria
alternativa. Mas eu não sou um médico. Somente um profissional poderá
indicar o que é melhor no seu caso. Você já consultou um psicólogo
antes?
– Não – disse Demian – e não tenho dinheiro para isso.
– Universidades possuem esse tipo de profissional para atender aos
alunos. Eu ouvi que você teve problemas graves com seus pais. Não sei
que tipo de problemas, mas era importante que você tivesse procurado
ajuda profissional desde aquela época. Religião é importante, mas ela
sozinha não resolve todos os problemas. Não substitui remédios quando
eles são necessários.
– Sim, mas... estou tão triste agora que um remédio não vai
simplesmente apagar isso. Eu só preciso de Deus. Somente o Senhor é
refúgio seguro.
– O remédio realmente não vai apagar – concordou Gregório – você
precisa do remédio, de Deus e de pessoas. Precisa de todas as coisas.
Não tente substituir uma pela outra.
– Eu vou ser preso? – perguntou Demian, com medo – Serei expulso
da Ordem? Eu queria poder voltar no tempo. Eu faria tudo diferente
desde aquela época...
Demian voltou a chorar, dessa vez ainda mais desesperadamente que
antes. Se ele estava chorando daquele jeito logo na frente do Gregório,
que ele odiava, era porque Demian estava mal mesmo. Abandonou o
orgulho e só queria consertar as coisas.
Mas não dava para simplesmente ter pena dele e perdoá-lo. A vítima
ali era Eugênia. Claro que ela havia feito uma besteira, mas Demian
conseguiu fazer uma besteira ainda maior. Não era assim que se
resolviam as coisas.
Bem, todo mundo ali tinha uma parcela de vítima e de algoz. Eu
também me sentia culpada, pois fui eu quem contou o segredo de
Demian para Eugênia, em primeiro lugar. E Demian tinha aquela história
complicada com os pais, então não dava para afirmar que ele era um
demônio porque estava a fim de ser. Ele sofria com aquilo também.
Vê-lo ali chorando diante de Gregório era quase como ver uma
criança arrependida diante do pai. Demian esperava seu julgamento com

147
Juliana Duarte

medo. Gregório suspirava fundo, com compreensão, mas sem


compaixão; ele queria colocar-lhe a situação com clareza, para mostrar a
ele como a vida funcionava.
– Eu não tenho todas as respostas, Demian – disse Gregório –
algumas vezes precisamos aguardar o desenrolar dos acontecimentos e
aceitar o que vier, com serenidade. Essa é uma das situações. Você
precisará ser forte. Há outras pessoas sofrendo com isso também. O que
quer que aconteça, será doloroso para todos.
Aquilo não foi um consolo. Gregório não quis ser irreal e passar-lhe a
mão na cabeça dizendo que tudo ficaria bem. Pois aquilo não era
verdade.
Já era tarde. Precisávamos ir embora. Eu decidi voltar para o hospital
com Gregório e avisei meus pais por telefone.
Gregório não disse uma palavra no caminho. Ele era uma pessoa
severa algumas vezes. Por outro lado, me senti aliviada por não precisar
dar minha opinião sobre a situação.
Eu mal via Pâmela e minhas outras amigas do colégio nos últimos
tempos. Já fazia uns bons meses que Eugênia tinha se tornado minha
melhor amiga. E naquele namoro que não era namoro, mesmo com as
brigas, eu havia desenvolvido um afeto especial pelo Demian.
Claro que eu ficaria do lado de Eugênia, até porque eu estava com
medo o suficiente de Demian para não desejar voltar a namorá-lo. Por
outro lado, seus amigos iriam puni-lo com expulsão da Ordem e
abandono; e a sociedade iria puni-lo com a prisão por uma situação que,
lá no fundo, fugia a seu controle.
– Cara, que merda – eu me vi pronunciando, sozinha.
Passamos a noite no hospital. Somente pela manhã recebemos a
notícia.
Uma médica de jaleco branco aproximou-se de nós em passos lentos.
Eu já esperava pelo pior.
– Eugênia não corre mais riscos – a médica informou – mas terá que
permanecer internada por mais alguns dias antes de receber alta.
Aquela notícia foi libertadora. Somente no fim da tarde recebemos
permissão para falar com ela.
Eu me assustei muito quando a vi. O rosto dela estava meio
deformado. Eu não sabia se seria definitivo ou era só efeito do inchaço.

148
A Gata Mascarada

Ela estava com o braço direito enfaixado e outras lesões. Mas o pior
era o rosto... preferi não expressar meu susto, para não assustá-la ainda
mais. Ela provavelmente ainda não tinha se olhado no espelho. Era
melhor que mantivessem espelhos bem longe dela, pois do jeito que ela
era vaidosa, era capaz que se matasse ao fitar o próprio rosto.
Sentei-me ao lado dela na cama.
– Oi Geny – peguei na mão dela – como se sente?
– Como um guisado – ela respondeu, com dificuldade – não sinto
meu rosto. Os médicos disseram que vou precisar fazer uma cirurgia no
nariz.
– Mas será algo simples, certo? Disseram que já está tudo bem, não é?
– É, só o meu crânio que ficou meio deformado. Como sou cabeluda,
tanto faz. Espero que não tenha afetado meu cérebro. Se bem que meu
cérebro nunca foi lá às mil maravilhas, então quem sabe essa pancada
tenha endireitado as coisas. Posso até ter adquirido algum poder, que
nem você.
Se ela estava bem o suficiente para fazer piadas, concluí que ela já
estivesse melhor mesmo.
– O problema maior é só o meu olho esquerdo – ela apontou – pode
ser que eu fique cega desse olho. Que merda, né? Quem vai querer
namorar uma caolha? Eu devia ter arranjado um namorado fixo logo,
antes de ficar deformada. Mas como eu ia saber? Agora só vou poder
pegar os trubufus lá do colégio. Bem, contanto que tenha um pau tá
valendo. Não serei mais tão exigente, agora que virei um monstro.
– Para com isso, Geny. Você logo estará linda de novo. E seu olho
pode até se curar. Então você será a mesma Eugênia de antes.
– Não, eu não serei – ela garantiu – eu tive uma experiência de quase
morte. Foi horrível, foi chocante, foi... porra! A dor que eu senti, meu.
Eu não saberia descrever. Meu corpo inteiro parecia ser anestesiado
pelas pancadas. Eu sabia que ia morrer. Eu vi isso bem claramente.
Nunca vou esquecer.
– Demian está arrependido – informei – ele chorou um monte e
sofreu. Ele queria obter sua permissão para vir te visitar e se desculpar.
Eugênia fitou-me incrédula.
– Ele teve a cara-de-pau de pedir isso? Pois envie minha mensagem a
ele: “Morra, desgraçado”. Eu nunca mais quero vê-lo na vida. Se minha

149
Juliana Duarte

irmã não expulsá-lo da Ordem, jamais falarei com ela de novo também.
E serei eu a sair. Você disse que ele chorou e sofreu? O que ele sentiu
com certeza não chegou nem perto do que eu passei. Ele quase me mata
e vem pedir desculpas? Que falso miserável!
– Eu sei. Você tem toda a razão. Estou do seu lado. Mas você não
concorda que foi longe demais na provocação?
– Nada justifica o que ele fez – afirmou Eugênia, com firmeza – e
não me venha dizer que há impactos psicológicos piores que a dor física.
Essa dor que senti e minha deformação causaram um trauma ainda pior.
As consequências futuras disso eu não posso prever. Mas não vejo nada
de bom vindo disso.
– Sim, sim, mas... mesmo que você não acredite, Demian diz que não
fez de propósito. Você sabe que os pais dele batiam nele. Ele tem sérios
problemas psicológicos e precisa de tratamento.
– Claro que eu acredito que aquele retardado tenha problemas
mentais. Não pense que vai me convencer a ter pena dele. E se continuar
a tentar defendê-lo, vou ficar chateada com você também, Ofélia. Que
bosta, eu tô toda quebrada aqui na cama e todos vocês só defendem o
meu agressor? Se eu estivesse no caixão também iriam fazer isso? Que
merda é essa, meu? Em que mundo a gente tá? É isso que você chama de
justiça? Ter compaixão por todos? Justiça o caralho! Só porque aquele
merdinha fica falando de Deus você acha que ele é bonzinho? Ah, vai te
foder. Vocês tão falando isso porque não vão perder um olho por causa
de um filho da puta revoltado qualquer.
Ela estava braba de verdade. Preferi ficar quieta. Isso porque no
fundo eu sabia que ela tinha razão. Ela estava indignada e tinha todo o
direito. Ela tinha um ponto de vista da situação que nenhum de nós
tínhamos.
– Desde o começo eu não gostei dele – disse Eugênia – Ângela devia
tê-lo mandado para fora enquanto era tempo. Teria impedido tudo isso.
Na verdade ainda é tempo.
Naquele instante, alguém bateu na porta do quarto. Surpreendi-me ao
ver que era o próprio Demian quem estava lá. Ele foi entrando, sem nem
pedir permissão.
Ao vê-lo, Eugênia deu um grito.

150
A Gata Mascarada

– Sai daqui, assassino! – ela berrou – Morra, morra e sofra muito!


Filho da puta desgraçado! Se manda daqui agora, maldito!
Ela jogou o travesseiro nele. Lançou tudo o que havia na mesa de
cabeceira. Até levantou-se da cama. Ângela e as enfermeiras chegaram.
Colocaram Demian para fora e tentaram acalmar Eugênia, que se
contorcia na cama. Ela dava gritos esganiçados.
– Quem deixou esse cretino entrar?! – ela gritava e chorava ao
mesmo tempo – Que merda, que merdaaaa!!!
Ela derramava lágrimas, em desespero. As enfermeiras tentavam
acalmá-la, pois ela não podia se exaltar no estado em que estava. Ela teve
uma recaída. Colocaram-me para fora do quarto também.
– Quem te deu permissão para vir aqui? – perguntou Ângela,
seriamente – Você não é bem-vindo!
– Perdão – disse Demian – eu estava preocupado. Queria pedir
desculpas.
– Não há desculpas para o que você fez! – falou Ângela – E se
Gregório não quiser te expulsar da Ordem, eu mesma expulso! Suma
daqui. Nunca mais apareça na nossa frente ou vou dar queixa na polícia.
Já estou sendo muito boazinha em te deixar passar por isso sem
denúncia.
Quando a médica saiu do quarto de Eugênia, deu a notícia:
– Você é a irmã da paciente? Preciso falar com você em particular.
– O que aconteceu? – perguntou Ângela, assustada – Pode falar para
nós todos. Ela morreu?
– Ela estava se recuperando de uma cirurgia muito delicada – disse a
médica – não podia ter sofrido todo esse estresse. Ela levantou da cama
e desligou-se dos aparelhos também. Então ela não aguentou...
Ângela começou a chorar desesperadamente.
“Eugênia morreu”, pensei.
Ainda não tinha caído a ficha. Aconteceu muito de repente, como um
soco no estômago. Senti um frio horrível na barriga. E ver Ângela chorar
daquele jeito só tornava tudo pior.
Até que as lágrimas correram dos meus olhos e não pararam. Um
soluço atrás do outro. Aquilo não podia ser real. Só podia ser mentira.
Como alguém estava tão bem e de repente... morria! Eu tinha falado com
ela há poucos segundos!

151
Juliana Duarte

O choro não parava. Eu estava tremendo.


“A vida é uma merda”. pensei, contrariada. “Só uma merda”.
Finalmente fitei Demian. Ele estava mais pálido do que nunca.
Parecia um fantasma. Fitava o quarto boquiaberto, sem saber como
reagir.
“Parabéns, você é oficialmente um assassino” pensei, com raiva e
medo. Eu temia um pouco a reação dele depois disso.
“Morra e sofra muito”; aquelas tinham sido algumas das últimas
palavras de Eugênia para Demian. Ele não devia estar se sentindo muito
feliz por ter sido amaldiçoado por alguém à beira da morte. Eu mesma
não me sentiria nada bem em ter que carregar uma praga assim e essa
culpa para o resto da vida.
– Demian – disse Ângela, ainda entre lágrimas – esqueça o que eu
disse antes. Você vai para a cadeia. Ouviu bem?
– Sim, mestra – ele confirmou – não vou fugir. Só queria passar na
igreja antes de ir para a polícia.
– Isso não vai acontecer – disse Ângela – vou comunicar agora
mesmo os médicos para que cerquem o hospital e venha uma viatura te
prender. Nós já temos provas concretas de que você é o assassino.
– Eu sei que sou o assassino – confirmou Demian – mas eu gostaria
de obter um advogado para que seja apresentado meu histórico de
problemas psicológicos e abuso por parte dos meus pais para que haja
diminuição em minha pena.
– Vai pro inferno – disse Ângela.
– Pensando bem, não tenho dinheiro para contratar um bom
advogado – corrigiu Demian – e não quero ver meus pais de novo.
Então apenas me prendam, mas peço que me deixem passar na igreja
antes.
– O que quer fazer na igreja? – perguntei, desconfiada.
– O que sempre fiz – disse Demian – rezar.
– Mentira – eu disse – Ângela, ele vai se matar. Ele vai fazer uma
preparação macabra dentro da igreja e tirar a própria vida de forma
dramática para traumatizar a todos. Não deixe!
Eu comecei a chorar. Claro que eu estava triste pela Eugênia e achava
que Demian tinha que ser preso. Mas não queria que ele morresse.

152
A Gata Mascarada

Como Ângela proibiu aquilo, Demian simplesmente correu. Ele fugiu


de lá! Ângela imediatamente alertou os médicos, provocando um alarde
no hospital, dizendo que havia um assassino nos corredores. Houve um
alvoroço e logo a polícia foi chamada.
Não sei por que fiz aquilo, mas eu corri também. Talvez porque só eu
soubesse onde era a igrejinha que Demian gostava de ir. E eu não avisei
ninguém. Eu queria seguir Demian sem a polícia. Acho que eu estava
louca, como todos.
Eu também estava com medo de Demian. Naquele instante eu me
aterrorizava com a vida, com a morte e com todos os seres humanos.
Aquela igrejinha pequena e pacífica, meio afastada, com um singelo
jardim, era quase como um Éden. Um refúgio seguro naquele mundo
caótico.
Quando entrei na igreja, parecia que eu estava em outro universo: os
vitrais, a atmosfera paradisíaca. Era como se aquele local fosse rodeado
por espíritos de paz. Eu sentia uma aura magnífica lá dentro.
Demian estava lá rezando. Pronunciei o nome dele. Mas ele não se
virou.
Toquei seu ombro e perguntei:
– O que planeja fazer?
– Mortificação – Demian disse – essa é a igreja do padre Danilo. Eu
tenho as chaves. Alcançarei alguns instrumentos de tortura para me
autoflagelar. Assim minha alma ficará em paz completa.
– Não vou deixar!
Mas ele me fitou de uma forma que me fez recuar. Se eu tentasse
impedi-lo de verdade, eu podia acabar como Eugênia. Pelo medo, não
insisti.
Ele abriu uma porta e se trancou lá dentro. Eu não teria acesso.
Eu ouvia apenas os sons e os gritos de Demian. Fiquei ali na porta
chorando, implorando que ele parasse. Mas de nada adiantaria.
– Demian, apenas vá para a prisão pacificamente! – eu pedi – Não se
machuque mais!
Mas aquilo ainda continuou por um longo tempo. Eu sofria junto a
cada grito dele.
Até que a polícia chegou. Cercou o local e arrombou a porta.

153
Juliana Duarte

Eu fiquei chocada quando vi Demian sair lá de dentro. Ele estava de


pé, nu e banhado em sangue. Havia cortes fundos em sua carne e
pedaços da pele arrancados. O sangue pingava e suas pegadas estavam
marcadas em vermelho.
– Na minha carne eu completo o que falta às aflições de Cristo, pelo
bem de seu corpo, que é a Igreja.
Ele pronunciou essas palavras do apóstolo Paulo, para completar seu
espetáculo, derrubando no chão um chicote com pontas de espinhos e
outros objetos metálicos com correntes.
O show chegava ao fim. O rosto dele emanava uma calma e paz
impressionantes. Ele talvez tivesse conseguido, através daquela dor,
acalmar seu coração.
Eu não sabia se aquilo era certo. Eu desconhecia a tênue fronteira
entre o sofrimento e a alegria. Ao mesmo tempo, eu a entendia
perfeitamente. Eu não sei se as pessoas são loucas ou se simplesmente
tentam o melhor possível, usando aquele monte de truques, artifícios
delirantes e lindos, para enganar e acalmar o misterioso cérebro humano.
Bem, se Demian queria convencer os outros de que tinha uma
parcela de inocência, aquela sua apresentação ensanguentada não
contribuiu muito para isso. Mas eu sabia que ele não tinha feito aquilo
para os outros e sim para si mesmo; porque precisava. E ele não daria
satisfações a ninguém sobre sua crença.
Ele não estava muito preocupado em diminuir sua pena. Não
procurou advogado e nem fez questão de se defender. Provavelmente ele
queria ser punido. Eu o chamaria de idiota, mas se ele tinha se acertado
com Deus através disso, não era assunto meu.
Não me importava que Ângela e o resto do pessoal ficassem furiosos
comigo porque fui visitar Demian na prisão. Eles não tinham nada a ver
com isso também.
– Fui ao funeral da Eugênia – contei a ele – e levei flores.
Mostrei a ele uma pequena florzinha do mesmo tipo que eu levei.
– Tenho orado muito por ela – disse Demian – mas não acredito que
sairei daqui melhor do que entrei. Não tenho auxílio psicológico aqui
dentro e existe muita briga. Pelo menos posso meditar e rezar. Pois não
importa que me prendam e que me isolem. Eu nunca estarei sozinho.

154
A Gata Mascarada

Jesus Cristo morreu por nós. Deus sabe que não matei Eugênia de
propósito. A justiça será feita no céu.
– Demian... o céu e o inferno são aqui na terra.
– Eu sei. Já estou no céu, não importa o que façam comigo aqui fora.
Porque minha mente está em paz. Este é o grande mistério impenetrável
da religião, que poucos compreendem.
– Você é tão forte. Eu torcerei por você. Vou vir te visitar sempre
que puder. Mas seguirei minha vida.
– Eu entendo isso. E eu espero que você seja feliz. Não me importo
de não ter namorada. Sou acostumado ao celibato e sempre me dei bem
com isso. Não há problemas. Prometo que ficarei bem. Nunca pensei
que diria isso, mas me sinto mais próximo de Deus do que nunca.
Demian derramou lágrimas de emoção. Ele tinha um sorriso pacífico
no rosto.
– O Senhor me contou que Eugênia está bem com Ele, no paraíso –
revelou Demian – foi difícil, mas ela conseguiu me perdoar.
– Não está dizendo isso só para se sentir melhor? E para me fazer
sentir melhor?
– Se nossas existências são breves como um sonho, qual a diferença?
Por que perder tempo corroendo-se em culpa e tristeza, buscando os
comos e os por quês? Prefiro seguir minha vida simples com Deus.
Sempre foi assim. Tem funcionado bem até hoje e, até nessa etapa tão
difícil, eu consigo forças.
– Obrigada – eu disse – você me ensinou muita coisa. Antes eu
pensava que religiosos eram fanáticos de cabeça fechada. Mas você é...
especial.
– Você é especial também, Ofélia. E vai encontrar seu caminho.
Mesmo que você encontre suas respostas numa pessoa, numa atividade
importante ou num outro tipo de crença, para mim tudo isso são
manifestações de Deus com outros nomes para nos trazer alegria.
– Que Eugênia e Ângela me perdoem, mas eu te amo. Como ex-
amante, como amigo, como guia espiritual e como companheiro de
jornada. Devo ir agora. Boa sorte.
– Na próxima visita eu queria... aquele bolo de chocolate da sua mãe
– disse Demian – pode ser?

155
Juliana Duarte

– Claro, eu arrumo um jeito de trazer, nem que seja escondido – eu ri


– fica bem, tá, seu doido?
– Se cuida, maluquinha. Adeus.

156
A Gata Mascarada

Capítulo 5

– É Halloween, Babu! Como estou sem namorado vou te apertar,


minha mimosa.
Espremi minha gatinha, que deu um miado baixinho. Dei-lhe um
beijo e liberei-a. Ela pareceu muito feliz em se livrar do meu colo e saiu
correndo.
– Estou sem fantasia, vou improvisar. Só consegui um chapéu.
Colocarei um vestido e meias listradas.
– Eu consegui um modelo muito estiloso. Os detalhes você irá
conferir na festa.
Sara estava fazendo mistério. Não liguei para aquela exibida. Quando
desliguei o telefone, dei um longo suspiro e deitei-me na cama. Fitei o
teto.
Já fazia alguns meses desde que Eugênia havia morrido e Demian
tinha ido para a prisão. Eu evitava pensar nela para não me sentir triste.
Desde aquela ocasião, eu tentei me aproximar mais das meninas da
minha classe. Achei que uma nova amizade ia apagar Eugênia da minha
mente, mas aquilo era mais complicado do que eu pensava.
Ironicamente, fiquei amiga de Sara, uma garota para quem eu mal
dava “oi” antigamente. Ela também tinha terminado com o namorado
bem naquela época. Como ambas estávamos sozinhas, começamos a
bater papo.
– Gatos ou cães?
– Gatos, definitivamente – afirmei.
– Rosa ou azul?
– Rosa, sempre!
– Loiro ou moreno?
– Moreno.
– Nirvana ou Silverchair?
– Silverchair.
– Morango ou chocolate?
– Não me faça perguntas difíceis!

157
Juliana Duarte

Aquela menina parecia um questionário ambulante. Em poucas


semanas ela já sabia tudo sobre a minha vida. Era extraordinário! Às
vezes eu pensava que ela sabia mais a meu respeito do que eu mesma. Se
duvidar, ela tinha quase uma memória fotográfica. Quando eu fazia uma
afirmação e me contradizia depois, ela sempre lembrava.
– Bonecas de porcelana são imbatíveis.
– Mas você tinha dito que seu tipo preferido de bonecas era de pano,
por causa da Bochechuda, a boneca que você ganhou com cinco anos.
“Droga, ela me pegou” pensei, contrariada.
Eu mesma sabia pouco sobre ela. Provavelmente porque eu não
perguntava. Mas graças a Sara, eu estava indo a muitas festas.
Eu costumava frequentar festas quando eu tinha 11, 12 anos, para dar
uns amassos nos garotos. Aos 13, quando me tornei sexualmente ativa,
optei por ter parceiros mais ou menos fixos.
Aquilo estava mudando. Desde que terminei com Demian, Sara me
levou a muitas festinhas legais. Transei com alguns belos desconhecidos,
mas nunca virava nada sério.
Era foda ter perdido minha melhor amiga e meu namorado ao
mesmo tempo. Então eu tentava preencher esse espaço com a primeira
coisa que aparecesse: uma amiga aleatória que me levava a danceterias e
ficantes que satisfaziam meu desejo.
Confesso que eu estava me divertindo. Sara era uma pessoa
interessante e eu nutria verdadeira paixão por sexo. Mesmo assim, a
lembrança do rosto de Eugênia brilhava no reflexo dos copos naquelas
festas barulhentas e lotadas. Parecia que, em meio àquela multidão de
cadáveres dançarinos, o rosto dela era o único que emanava vida.
Eu gostava de pensar que o fato de eu ir naquelas baladas era um
tributo a Eugênia, já que ela não costumava ter parceiros fixos e me
sugeria fazer o mesmo. Mas quando eu me deitava com os rapazes – ou
às vezes fazia em pé mesmo, ali no cantinho – eu me lembrava do
Demian.
“Por que o rosto desse bastardo não sai da minha mente? Por que o
cheiro dele é melhor do que o de qualquer um dos rapazes com quem já
dormi?”
Era como um feromônio que me enlouquecia e me atraía
perdidamente. Eu nunca pensei que sentiria tanta falta dele. E,

158
A Gata Mascarada

surpreendentemente, não era só do corpo, embora isso pesasse bastante.


Eu sentia falta da chatice dele, dos seus olhares de reprovação, das
críticas... de tudo! Eu descobri que tinha me apaixonado até pelos
defeitos dele, que o tornavam uma pessoa única.
Antes eu pensava que iria visitá-lo na prisão só nas primeiras semanas
e aos poucos o abandonaria. Mas eu simplesmente não conseguia fazer
isso. E como ele estava preso, era uma maneira de estar perto dele e ter
segurança ao mesmo tempo. Eu não corria tanto risco de ser espancada
num ataque de fúria dele.
Numa das ocasiões em que fui visitá-lo, ele perguntou:
– Trouxe o bolo?
“Você fica ansioso pelas minhas visitas só por causa do bolo, não é,
seu cuzão?”, pensei, irritada. Mas eu não podia culpá-lo. Eu também ia
sentir falta de doces e da comida da minha mãe se ficasse presa.
Entreguei-lhe uma fatia num guardanapo, que ele devorou
avidamente. Parecia um desesperado.
– Tem mais?
Fiz que não.
– Poxa, Ofélia, eu te pedi...
– Devia ao menos me agradecer por esse pedaço!
– Tá certo. Obrigado.
Mesmo assim, ele baixou a cabeça, meio desapontado. Mas eu estava
escondendo uma segunda fatia. Entreguei a ele de surpresa.
– É mais gostoso uma só fatia de surpresa do que um bolo inteiro
quando já é esperado, não acha?
Talvez ele não achasse, com a fome que estava. Enquanto ele comia,
eu não resisti e comecei a dar-lhe beijinhos na bochecha e na boca.
– Hm! – ele reclamou, de boca cheia – Me deixa comer. E não somos
mais ficantes. Então você não pode me beijar.
– Quem liga pra isso? Eu tô solteira. Então eu faço as regras.
E ele não poderia me trair, já que parecia sempre estar em lugares
longe de mulheres. Primeiro o seminário, depois a prisão. Coitado.
– É terrível aqui dentro – disse Demian, terminando de comer e
lambendo os dedos – os presos são muito violentos.
– E você é super calmo – zombei.

159
Juliana Duarte

– Fui condenado por apenas um surto violento de minha parte, pois


geralmente sou calmo. E sou muito assediado também, pois sou jovem e
bonito.
– E humilde – acrescentei – você nunca vai conseguir superar isso,
seu convencido. Por isso que Deus ficou brabo com você e te meteu aí
dentro.
– Eu não tô brincando, Ofélia – disse Demian – sou muito desejado
aqui dentro. Os caras já tentaram me violentar algumas vezes. Mas eu
nunca permito que eles se aproximem. Pelo menos minha força me ajuda
para que eu consiga me defender.
– Que merda, cara. E eu sou a única pessoa que te visita?
– Também já recebi visitas de alunos e professores da teo. Têm
alguns padres que são influentes e possuem contatos. Acho que podem
conseguir diminuir a minha pena.
– Que ótimo, boa sorte – eu desejei – eu tava pensando, será que
posso te fazer uma visita íntima?
– Para transar comigo?
– É, tipo isso. A única coisa que me desagrada é que eu terei que ficar
seminua para me revistarem.
– E qual a diferença se você ultimamente faz sexo com todos os
rapazes nessas festas? – perguntou Demian, com olhar distante.
– Eu gosto de escolher quem vai me ver pelada. Você é o homem
mais gostoso com quem eu já trepei. Tô doidinha pra te comer de novo.
– Desculpe, mas não estou a fim – disse Demian – só aceitarei se
tivermos um relacionamento mais sério, você parar de ir nessas festas e
me fazer visitas íntimas regulares.
– Nada feito. Quero continuar indo nas festas e dar pra você também.
Se não concordar, não trago mais bolo.
Esse foi um golpe forte para ele. Demian fitou o nada, pensativo.
– Você vai me forçar a me prostituir por bolo? – ele perguntou,
incrédulo.
– Garoto esperto.
Dessa vez ele ficou ofendido. Deu o maior discurso. Disse que,
mesmo preso, ainda tinha honra e dignidade. Ele me mandou sumir,
dizendo que não ligava mais para o bolo também.

160
A Gata Mascarada

Fui embora de lá, emburrada. Eu não precisava dele. À noite teria a


festa de Halloween e eu iria me divertir horrores sem ele.
Quando anoiteceu, Selma, a irmã mais velha de Sara, foi me pegar de
carro em casa.
Selma estava de preto, com uma flor no cabelo e uma maquiagem
brilhosa incrível em tons de branco e azul claro. Já Sara estava ainda mais
esquisita, com seus olhos negros enormes sobressaindo-se na pintura
facial branca e preta. Usava sobretudo preto, anéis gigantescos nos dedos
e uma cartola.
– Que cara de louca – comentei – tá vestida de quê?
– Papa Lazarou. Saca The League of Gentlemen?
– Ah, saquei.
Minha fantasia de bruxa verde-limão estava super simples. Eu devia
ter pegado mais pesado na make-up.
Aquele seria um evento enorme. O anúncio dessa festa atraiu gente
de todos os cantos da cidade. E quando chegamos lá, descobri o motivo.
A decoração era estonteante. Havia lápides e esqueletos no quintal. A
ponte estava decorada por lanternas de abóboras. A iluminação
avermelhada pelos arredores conferia uma atmosfera sinistra. Era como
abrir o portal para o mundo dos mortos e adentrar noutro universo,
elegante e macabro.
– Supimpa! – exclamou Sara – Um estouro!
– Show de bola! – concordei – Vamos botar pra quebrar, Geny.
Nenhum garoto vai escapar vestido hoje. Vou desenrolar essas múmias e
chupar os ossos dessas caveiras.
– Não sou a Geny, Ofi.
Levei um susto. Nem me dei conta.
– Foi mal.
“Minha cabeça está em outro lugar, hã?” dei-me conta, meio confusa.
Eu precisava deixar aquilo de lado e entrar no clima da festa.
– Vai ter umas bandas joias até – comentou Sara – nunca ouvi falar
em nenhuma, mas quem se importa?
– Só vou dançar pra pegar homem – eu ri – vou dar uns requebrados
sensuais e quando o primeiro chegar eu agarro.

161
Juliana Duarte

Puxei da bolsa uma tira repleta de camisinhas personalizadas de


Halloween, coloridas e de vários sabores, com desenhos de caveiras,
abóboras e teias de aranha.
– É por isso que eu te amo, Ofi – riu Sara, animada, pegando algumas.
– Ei, quero ficar com mais! – reclamei, rindo também – A de abóbora
é minha! E como eu adoro abóboras, encomendei essas também.
Mostrei pirulitos com lacinhos. Na ponta de cada um deles havia uma
camisinha temática de Dia das Bruxas.
– Sua safada! – ela me deu um empurrão, ainda rindo – Me apaixonei
pelos pirulitos. O gosto vai ficar ainda melhor com o pirulito verdadeiro
que irá aí dentro!
Nós duas gargalhamos com a piada ridícula, dando gritinhos. E olha
que nem tínhamos bebido ainda.
Subimos as escadas enfeitadas. A música alta já vibrava no meu peito.
Quando chegamos lá em cima, eu quase caí para trás com a decoração
impressionante. Tinha morcegos, fantasmas, vampiros, zumbis e bruxas
pendurados nos arredores. E os doces! Em formato de olho humano,
morcego, minhocas, dentaduras!
– Uau! – Sara pegou um doce de minhoca vermelha e amarela e
colocou na boca – Delícia! Quem precisa pedir “gostosuras ou
travessuras” nas portas das casas quando temos esse banquete divino?
Provei um docinho de olho humano. Arregalei os olhos.
– Muito bom! – comentei, de boca cheia – Se eu não estivesse
louquinha para devorar meus pirulitos, ia passar a noite toda só aqui
comendo olhos!
Sara parou de comer para cumprimentar uma garota com chapéu de
bruxa e cabelos azuis. Trocou algumas palavras com ela. As duas caíram
na risada.
– Ofi, essa aqui é a Maria Clara. Ela quer camisinhas de Halloween
emprestadas também.
Não gostei, pois naquele ritmo minhas camisinhas lindas iam
terminar sem eu nem ter traçado meu primeiro homem da noite! Só
aceitei dar uma para ela e de má vontade. Mesmo assim, ela agradeceu
com um sorriso.
Depois apareceu outra amiga dela chamada Lilica atrás das minhas
preciosidades. A fantasia dela era um vestidinho fofo, cabelos brancos e

162
A Gata Mascarada

pretos, maquiagem massa e ursinho. Até senti vergonha da minha falta


de criatividade.
– Teu nome é Lilica mesmo? – perguntei, duvidando.
– É sim.
– Mas... Lilica?
– Pode me chamar de Lili.
– Cara, teus pais te chamaram assim?
– Tô falando que sim, meu. Que bosta, pô.
Eu resolvi fugir de lá para não encherem mais meu saco. Observei as
fantasias. Tinha o Homem Invisível, Freddy Krueger e até “Son of Man”
do Magritte.
– Que viagem! Que genial, velho!
Todo mundo queria apertar a mão e tirar fotos do cara fantasiado
com a paradinha do Magritte. É, ninguém ia apertar minha mão porque
eu era só uma bruxinha simples. Mas eu esperava que pelo menos algum
carinha olhasse pra essa bruxinha.
Foi então que eu localizei minha primeira vítima: um zumbi tomando
refri! Resolvi ir trovar ele.
– Oi zumbi.
– Olá bruxinha.
– Tu é quente.
– Tu também.
– Bora transar?
– Bora.
Simples e direto. Era assim que eu gostava: sem enrolações, timidez
ou cantadas bregas.
Ele tinha pele negra e aparentava ter uns vinte anos.
– Meu amigo pode vir junto? – o zumbi perguntou de repente.
O amigo dele era um cara de terno com um monte de sangue na
roupa. Também era negro e devia ter mais ou menos a idade do outro.
Mas a expressão dele era muito séria e meio assustadora.
– Não sei...
– Ah, gatinha, deixa de fazer charme.
E, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, me vi indo com os dois
para o banheiro. A gente se trancou lá e não tinha muito espaço. Já
foram arrancando minha roupa, sem cerimônia. Nem me deram tempo

163
Juliana Duarte

pra ficar excitada e já foram aos finalmentes. Um me pegou pela frente e


o outro por trás. Foi gostoso, mas não tanto quanto poderia ter sido.
Eu não tava no clima ainda. Eles estavam meio desesperados. Eu
deixei, na boa. Era minha primeira experiência trepando com dois caras.
Nem tive orgasmo. Quando eles gozaram, saíram e me deixaram
largada lá. Nem deram tchau, só se mandaram.
– Estrupícios – xinguei, sozinha.
Nem deu tempo de mostrar a eles minhas camisinhas customizadas
de Halloween. Até parece que eles ligariam pra isso. Eles colocaram
camisinhas deles, sem cor ou sabor, em um segundo e partiram pra cima.
“Pelo menos colocaram, já é alguma coisa”.
Mesmo assim, eu não fiquei legal depois daquilo. Eu me senti uma
boneca inflável. Senti saudade de ter um namoradinho. Pelo menos ele
me cumprimentaria, eu saberia o nome dele e teria preliminares.
Só de raiva, nem fui mais atrás de outros caras depois disso. Sentei de
cara amarrada e resolvi que ia ficar me enchendo de doce até o fim da
festa. Até a música me parecia irritante naquele momento.
E assim foi pelas próximas duas horas. De repente, sentou ao meu
lado um rapaz com camisa listrada de fazendeiro e com uma abóbora no
lugar da cara. Ele só ficou lá paradão na frente dos doces.
Depois de longos segundos de reflexão, ele simplesmente escolheu
um doce. Colocou dentro do buraco da abóbora onde ficava a parte da
boca. Eu achei a cena engraçada.
Aquilo continuou por pelo menos quinze minutos. Ele pegava um
doce atrás do outro. Acho que tinha comido mais que eu. Fiquei até
intrigada com o sujeito espirituoso.
– Oi Ofélia.
Quando ele disse isso, eu levei um susto. De onde eu conhecia aquela
voz?
– Alf! Ou melhor, Alfredo! – corrigi, para evitar a intimidade.
Ele tirou o chapéu de abóbora.
– Por que não me cumprimentou logo de cara? – perguntei – Vai
dizer que tava com vergonha?
Ele não respondeu. Em vez disso, pegou mais um doce.
– Tente um desses – eu apontei pro doce de olho – é divino.
Ele provou e concordou comigo. Depois ficou quieto.

164
A Gata Mascarada

– Que tá fazendo aqui? – resolvi perguntar – Conseguiu pegar muitas


meninas?
– Nenhuma... eu sou feio.
– Nada a ver. Você não pega porque não toma iniciativa. Tem que
chegar e trovar as garotas, na maior cara-de-pau mesmo. Sério, elas
curtem.
– Curtem? – ele perguntou, incerto – Então por que quando cheguei
perto de uma ela olhou pra mim e se afastou?
– Impressão sua – resolvi dizer – tem que ser mais decidido! Com
quantas meninas você ficou desde que terminamos o namoro?
– Uma.
– Só uma?! – perguntei, horrorizada – Faz um ano que a gente
terminou, Alfredo. Pelo menos namoraram?
– Na verdade foi meia – ele corrigiu – a gente ia ficar. Aí começamos
a nos beijar e no meio do beijo ela mudou de ideia e foi embora.
– Mas que vaca! Pelo menos xingou ela?
– Não, eu chorei... não na frente dela. Depois, quando eu tava
sozinho.
– Porra, Alfredo! Você merece um soco na cara, sabia?
– Sim, eu sei. Mas é difícil, Ofélia. Você não sabe porque é mulher. É
super complicado um cara chegar numa garota. Para você é muito mais
fácil. Principalmente porque você é bonita... com todo o respeito.
Fiquei toda contente com o elogio. Elevou minha autoestima, que
estava baixa naquela noite.
– Você é fofo – eu disse – as meninas que te dão fora são idiotas.
– É, as meninas dizem que sou fofo. Mas quando se referem a caras
que elas curtem, elas chamam de gostoso. Então elas devem me achar
feio.
– Nada disso. As meninas podem achar o cara fofo e gostoso ao
mesmo tempo. Mas se está indo tanto a festas, então você desistiu de ter
um relacionamento mais sério?
– Preferia namorar. Mas quem sabe eu fique com uma garota, ela
ache bom e queira ficar mais... eu sei, é quase impossível. Acho que vou
desistir e virar padre.
Aquilo me fez lembrar imediatamente de Demian. Ele não podia ter
usado outra analogia?

165
Juliana Duarte

– Você acredita em Deus? – perguntei.


– Não sei... talvez. Acho que sim, às vezes.
“Nossa, que resposta „profunda‟” pensei, desapontada. O nível de
uma conversa com o Demian e com o Alfredo era bem diferente.
Demian era metido e convencido e, embora fosse contraditório, era
muito inteligente. Alfredo ia super bem nas provas do colégio, mas
parecia que, além das disciplinas que nos mandavam estudar para as
provas, as outras áreas de conhecimento dele e interesses eram como um
espaço vazio.
Eu sempre desconfiei disso: que os CDFs da escola na verdade eram
burros, pois passavam tempo demais como escravos do sistema,
estudando só aquilo que os mandavam estudar; perfeitos burros de carga.
E não sobrava tempo para imaginar, inventar, ousar, fitar novas áreas da
vida com outros olhos.
Eu via isso em Alfredo. Tínhamos namorado por um período
considerável e, subitamente, dei-me conta que eu não sabia quase nada
sobre ele. Talvez porque não houvesse o que saber. O próprio quarto
dele era arrumadinho e sem nada especial.
– Estou brincando, não quero ser padre. Mas tô cansado de vir nessas
festas chatas só pra ser ignorado.
“Sim, meu filho, eu entendo sarcasmo”. Que sujeito sem graça!
Demian era muito mais sagaz e interessante.
– Alfredo, o que você faz quando chega da aula?
– Ajudo minha mãe a colocar a mesa, almoço e às vezes lavo os
pratos. Depois vou para meu quarto, faço os deveres de casa, reviso as
novas matérias que aprendemos no dia e estudo as disciplinas do dia
seguinte.
“Que mané”.
– E isso se estende pelo dia inteiro? – perguntei, incrédula.
– Às cinco da tarde minha mãe me traz uma bandeja com sanduíche e
suco de laranja, então faço uma pausa nos estudos para lanchar.
– Pelo menos tem maionese e salame no sanduíche?
– Alface, tomate e pasta de ricota.
“Mas que bundão”. Por que ele queria viver tanto se a vida dele era
tão entediante? Se eu dedicasse todas as minhas tardes só para estudar,

166
A Gata Mascarada

eu iria me entupir de frituras e gorduras para morrer logo e me livrar


daquela vida.
– À noite arrumo meu quarto, janto, tomo banho e vejo um filme
com meus pais.
– Você não usa o computador?
– Quando dá tempo eu vejo uns sites, mas geralmente só olho o e-
mail, pois durmo às dez. Nunca tem mensagens novas, mas sempre fico
ansioso que chegue. Lembro que fiquei muito feliz quando você me
mandou um e-mail uma vez, quando namorávamos.
– Você dorme às dez da noite?! – perguntei, espantada – Então você
não tem vida. Você não ficou desesperado quando destruí sua rotina
perfeita na época em que namorávamos?
– Não, eu gostei de namorar. Eu sei que no namoro há sofrimento
também, faz parte.
“Coitado!” Ele se referia a eu não dar atenção a ele. Ele
provavelmente achava que num namoro sempre haveria muitas dores.
– Quais seus hobbies?
– Ver filmes e ouvir música. Vejo o que meus pais gostam, que são
filmes políticos ou romances. E escuto MPB. Sempre ouço baixo, por
isso não gosto de festas, com essas músicas estranhas que doem meus
ouvidos.
– Você não tinha dito que gostava de videogame?
– Sim, mas conheço pouco. Eu jogo mais Paciência no computador,
quando tenho tempo.
“Paciência!” Eu sentia vontade de bater na cabeça dele com um
martelo. Para os pais dele com certeza era maravilhoso ter um filho
assim, que dormia na hora certa, ajudava na casa, estudava, tirava boas
notas e os acompanhava nos momentos de lazer.
A maior rebeldia da vida dele havia sido namorar comigo e ir
naquelas festas comer doces.
– Cara, se eu tivesse a tua vida eu dava um tiro na cabeça.
– Por quê? – ele perguntou – Eu gosto da minha vida. Minha família
tem condições de me pagar um bom colégio e de me manter. Há muitas
famílias que passam necessidades, é muito triste. Então sou muito grato.
Eu o fitava com uma expressão cada vez mais desagradável.
– Sua namorada será a garota mais sortuda do mundo – eu garanti.

167
Juliana Duarte

– Se ela existir um dia, quem sabe. Mas as garotas não gostam de


caras como eu. Elas preferem aqueles mais confiantes que pegam todas.
Eu queria aprender a ser mais radical, mas é difícil. Não sei me vestir
bem ou ter papos legais. Não sou bom em esportes. Então não sei o que
fazer.
– Você disse que dorme às dez. Você não se masturba?
Quando eu perguntei isso, ele ficou da cor de um tomate.
– Desculpe, Ofélia, não vou responder.
– Ah, larga de ser trouxa! Eu já vi teu pau e já te comi várias vezes.
Então por que tá todo sem jeito, seu otário?
Ele ficou brabo. Levantou-se.
– Vou pra casa. Minha mãe deve estar preocupada.
– Não é nem meia-noite. Fica mais.
Ele acabou sentando-se de novo. Sem saber o que dizer, pegou mais
um doce.
Tive uma ideia. Ofereci a ele um dos meus pirulitos de abóbora.
– Obrigado – ele sorriu.
Ele abriu um dos pirulitos para comer e só então reparou que havia
uma camisinha lá dentro. Ainda demorou alguns segundos pra cair a
ficha.
– Por que você me deu isso? – ele perguntou, confuso – Não tenho
parceira...
– Quer transar comigo? – ofereci – Tô com saudades daqueles
tempos.
Ele me devolveu o pirulito.
– Não quero. Perdão.
– Se a gente voltar a namorar, você aceita? – propus.
Ele fez que não. Mas eu o surpreendi e dei-lhe um beijo na boca. Ele
aceitou o beijo e continuamos por mais tempo. Coloquei a mão entre as
pernas dele, por baixo da mesa. Ele ficou excitado rapidinho.
– Tá – ele disse, respirando rápido.
– “Tá” o quê? – perguntei, me fazendo de inocente.
– O... sexo. A gente vai fazer?
Peguei-o pela mão e levei-o comigo até o banheiro. Coloquei a
camisinha de Halloween nele e provei pra ver que gosto tinha.
– Abóbora – eu constatei, sorrindo – bom demais.

168
A Gata Mascarada

E aquela noite terminou maravilhosamente. Saímos de lá de


madrugada e nos deitamos na grama do quintal depois disso, em meio às
lápides falsas e esqueletos de silicone. Repousei a cabeça no peito dele.
Alfredo acariciou os meus cabelos.
– Ofélia, por que fez isso comigo? – ele perguntou, meio arrependido
– Você vai me fazer sofrer de novo.
“Eu sei, mas você precisa ser forte”. Eu queria mudar e dar mais
atenção a ele. Mas Alfredo era como um cachorrinho carente.
“O problema não é ele, sou eu” constatei. Ele tava certo: era super
gentil, atencioso e carinhoso. Eu que era meio errada.
Quando cheguei em casa, já eram quase cinco da manhã. Era a
madrugada do dia 30 para o dia 31. Portanto, meu aniversário.
Deitei na minha cama, completamente exausta e feliz. Então a
bruxinha verde-limão tinha conseguido pegar uma abóbora! Não deixava
de ter sido um encontro interessante.
Tirei minha fantasia e guardei. Mas demorei-me observando meu
novo colar, que possuía uma pedra multicor meio transparente.
Aquilo me fez recordar de uma sensação estranha. Lembrei de uma
época esquecida: em que um colar balançava como um pêndulo e abria o
portal para o mundo dos espíritos.
Com as mãos trêmulas, segurei o novo colar e deixei-o pender de um
lado a outro. Eu acompanhava a esfera translúcida com o olhar. Aquilo
foi o suficiente para alterar meu estado de consciência.
Meus olhos piscaram freneticamente e senti meu coração pulsando
num ritmo macio. Meu corpo enrijeceu e desfrutei daquele prazer.
– Ofélia.
Alguém chamou meu nome. Sussurrava em meu ouvido.
– Por que demorou tanto para me reencontrar?
Quando escutei isso, senti as lágrimas caindo dos meus olhos.
– Você está bem? – perguntei, em voz baixa, bem nervosa – Por
favor, diga-me que está bem.
– Melhor que você, sua boba.
Eu sorri, em meio ao choro intenso. Tive que me acalmar para
conseguir pronunciar as próximas palavras.
– Você ainda sente raiva do Demian? – perguntei, com medo da
resposta.

169
Juliana Duarte

– Um pouco, mas quero esquecê-lo. Não vale a pena viver do


passado; ou morrer atado a ele.
– Há algo que eu posso fazer por você, Eugênia?
Ela não respondeu imediatamente.
– Só vim dizer “olá” – ela esclareceu – como vai sua vida?
– Fiz uma amiga. Tenho levado bolos para Demian na prisão. Vou
muito para festas ultimamente. Hoje é Dia das Bruxas e transei com Alf.
Lembra, meu ex-namorado.
– Sim, o meiguinho. Não cometa mais nenhum erro dessa vez, Fifi.
Pare de ver Demian e dedique-se a Alfredo. Ele merece muito mais.
Eu não soube o que dizer diante disso. Era diferente conversar com a
Eugênia de carne e osso e com o espírito dela. Eu tinha medo de discutir
e deixá-la irritada. Talvez ela tivesse poder para me punir se isso
acontecesse.
– Você ainda tem vontade de ter os seus poderes de volta? –
perguntou Eugênia – Se quiser, eu posso fazê-los retornar. Mexer com
isso na forma em que estou é muito mais fácil. Eu brinco com as
energias entre meus dedos. Não dá pra acreditar que tem gente que
perde tempo tentando mexer com o mundo espiritual quando ainda
possui o corpo de carne. Basta morrer e você pode viajar pelo astral sem
medo, em êxtase.
– Não deve ter graça conquistar poderes psíquicos no seu plano –
observei – já que todos os possuem. Deve ser tão comum quanto comer
e dormir por aqui.
– Verdade. Aqui no nosso plano a gente inveja os prazeres de vocês.
Por isso, enquanto estiver viva você tem que curtir bastante os prazeres
do corpo: comer, fazer sexo, ter muitas diversões loucas. Aí cada um
deve pesar se a diversão pode prejudicar outra pessoa ou levar a uma
dependência física ou psicológica destrutiva. Nesse caso algumas vezes é
melhor evitar, realizar com moderação ou substituir por outro prazer.
Opções não faltam.
Fiquei feliz ao constatar que eu, naturalmente, já desfrutava de muitos
prazeres da vida sem culpa. Era só continuar fazendo isso, aproveitando
a diversão e a alegria. Então quando eu morresse, conheceria as
diversões do espírito numa nova e incrível jornada.

170
A Gata Mascarada

– Eugênia, por que as pessoas sofrem? – perguntei – Por que existe o


mal e o sofrimento? Você sabe que a dor é inerente à existência, já que a
natureza exige matarmos uns aos outros para comer e sobreviver. Então
não tem como sempre evitar prejudicar os outros. Estar vivo exige isso.
– Ei, não é por eu ter morrido que significa que virei Deus e possuo
todas as respostas! – queixou-se Eugênia – Por eu estar numa dimensão
mais sutil, posso sentir a realidade por outro ponto de vista. É só isso.
Não virei uma sábia do dia para a noite.
– Os outros espíritos com quem eu conversava antigamente me
diziam a mesma coisa – lembrei – mas a passagem do tempo acontece de
forma diferente na sua dimensão. De repente você já vivenciou o
equivalente a muitos séculos nesses poucos meses e aprendeu alguma
coisa que possa compartilhar comigo.
– Há coisas que não adianta nem eu tentar explicar, pois você não
entenderia pelas palavras. Precisaria estar sem o corpo para compreender.
Então não tenha pressa, pois quando você morrer terá mais respostas.
Você descobrirá que alguns de seus questionamentos eram inúteis e
passará a ter outros que antes não possuía.
– Mas essa questão do sofrimento é o que move as religiões, as
filosofias, o mundo inteiro! O que você tem a dizer sobre isso?
– Não sabemos por que as coisas são dessa forma – respondeu
Eugênia – afinal, por que precisa haver um motivo? Talvez seja uma
falha do cérebro humano querer buscar uma lógica em tudo, quando em
alguns momentos basta sentir para entender.
– É verdade, você tem razão.
– Não é “razão”! Viu? Tente perder essa mania de tentar analisar
tudo racionalmente. A lógica simplesmente não alcança. O cérebro tem
limitações. E muitas coisas que te parecem lógicas nem sempre o são. A
mente trabalha de forma que te permita sobreviver. Por isso ela te induz
a ter medo da morte e da dor, por exemplo, para estender sua vida. Não
há nenhum mistério nisso. As religiões apenas poetizaram essa condição.
A arte e a filosofia também.
– Então pode ser que as coisas tenham um propósito, que o universo
e os fenômenos sejam apenas um caos aleatório ou que no fundo nada
disso importe – concluí.

171
Juliana Duarte

– Prefiro essa última opção – disse Eugênia – pois se tiver um motivo


ou se não tiver, que diferença faz? O problema está na pergunta e não na
resposta. A pergunta: “Qual o sentido da vida?”, no fundo não faz
sentido. Então se livre dela. Remova da sua vida o que não importa. Ou
você gosta de colecionar sacolas de lixo na sua casa?
– Não, isso fede e iria apodrecer!
– As pessoas gostam de inventar significados para as coisas. O
propósito da caneta é escrever, o da cadeira é sentar e o do fruto é nos
alimentar. Mas você também pode enfiar a caneta no rabo ou colocá-la
num pedestal e transformá-la numa obra de arte.
– Adoro sua maneira de explicar as coisas – eu sorri – que nem o...
como era o nome daquele artista que fez as obras com o urinol e a roda
de bicicleta? Do dadaísmo e arte conceitual.
– Duchamp – respondeu Eugênia – é o ready-made. Nossa, você tá
malz, hein, Fifi? Até eu que tô morta ainda lembro dessas merdas. Vai
estudar, caralho. Desocupada do cacete.
– Sortuda é você que se livrou dessa porra toda e não precisa mais
estudar pras provas! – reclamei.
– Mas não se mate só pra se livrar das provas, faça-me o favor.
– Claro que não. Morta eu não posso foder, então quero aproveitar.
Bom, o fruto só serve como nosso alimento da perspectiva humana.
Muitas religiões têm essa mania de achar que o mundo todo existe pra
servir ao ser humano.
– Sim, as pessoas só acham que a vida faz sentido quando estão
alegres – concordou Eugênia – mesmo que isso implique em fazer todo
o resto infeliz, vai continuar fazendo sentido se houver felicidade. Os
seres humanos se acham o centro do universo! Eles se queixam até de
uma coceira, caramba.
– Mas incomoda mesmo. Eu sei que o mosquito só tá se alimentando.
Mas então essa parada de só ser feliz o tempo todo não funciona, né?
– Claro que não – disse Eugênia – ser feliz significa tentar encarar
com mais calma e naturalidade tanto a alegria como a dor. Não é tentar
sumir com a dor da nossa vida. Precisa haver a dor. Mas nem por isso
precisamos ter medo do prazer ou causar mais dor de forma proposital,
saca?

172
A Gata Mascarada

– Um espírito falando comigo com gírias, era tudo o que eu queria –


comentei, satisfeita – tá, eu já saquei tudo isso, Geny. O que vem a
seguir?
– Perguntei se você deseja recuperar seus poderes. Eu sei que os seres
humanos sentem êxtase com eles e isso também confere certo prazer.
Mas, assim como as drogas, precisamos pesar se vale a pena pagar o
preço. Aí eu já não posso opinar. Fica ao seu critério.
– Eu passo por umas crises existenciais e depressão quando uso isso,
porque é muito pesado mergulhar a fundo nessas coisas com este corpo.
É como uma simbiose: o poder me dá prazer, mas me consome. Ele
também drena minha existência para manifestar-se; minha sanidade é seu
alimento.
– Então você não os deseja?
– Eu quero – decidi – porque sou vaidosa e tenho sede de poder. Eu
gosto da ideia de possuir habilidades psíquicas exóticas. Só porque é
massa.
– Não vou dizer que essa visão seja fútil – disse Eugênia – também
não há nada de fútil em as pessoas incrementarem a aparência e se
apaixonarem umas pelas outras pelo cheiro, pela beleza, pela junção de
tudo. Não somos só mente ou só corpo. Constituímos um todo
completo. A vaidade faz parte dessa inerente completude.
– Gosto quando as pessoas usam palavras bonitas para justificar
filosoficamente suas besteirinhas particulares, construindo um
fundamento bem piradão – eu ri – então temos um acordo. Qual o seu
preço?
– Calma, não sou um demônio! Não vou exigir sua alma em troca de
meus serviços, ou qualquer coisa assim. Você é minha amiga, Fifi. Eu só
quero me divertir com você. Minha função neste plano também é ser
feliz. Até eu conseguir outro corpo, para mais curtição.
– Ah, que show! A existência é um negócio da hora mesmo! –
comemorei – Então quero ter o poder de ver o Gregório tomando
banho ou transando com sua irmã.
– Quanto a isso não vou concordar, Ofélia – disse Eugênia – isso daí
é invasão de privacidade. Nem eu que estou como espírito faria isso.
Questão de princípios. Não acho certo. Eu respeito Gregório e não

173
Juliana Duarte

desejo colocá-lo nessa situação. Até porque, ele possui os sentidos


espirituais bem aguçados. Ele poderia me sentir.
– Falando nisso, você já se comunicou com a Ângela? – lembrei de
perguntar – Ela sofreu demais quando você morreu. Seria bom que se
comunicasse com ela, dizendo que você está bem.
– A capacidade mediúnica dela não é tão apurada quanto a sua. Eu
falei com ela por sonhos, enviando mensagens positivas. Embora ela
possa pensar que foi “apenas um sonho”, espero que isso a tenha feito se
sentir melhor.
– Quer que eu conte a ela que você falou comigo?
– Sim, apenas diga que estou bem. Não precisa se prolongar nisso.
Ela não precisa se envolver a fundo com a necromancia para me ver. Eu
quero que ela curta o Gregório por mim em vez de ficar atrás de
sombras.
– E como eu tô sem namorado, você veio me encher o saco, né?
– Claro. Mas não ignora o Alf, Fifi. Até eu sinto pena dele pelo que
você contou.
Diferente dos outros espíritos, a Eugênia topou me relevar algumas
coisas sobre o outro mundo. Ela disse que estar como espírito era
divertido, pois podia realizar viagens no espaço-tempo com uma rapidez
impressionante.
– Você foi ao passado conferir se Jesus e Buda existiram? – perguntei,
curiosa.
– Meu, não me faz essas perguntas, senão tu me coloca numa
situação difícil – falou Eugênia – qual a diferença se eles existiram ou
não? O importante são os ensinamentos, certo?
– É verdade. Perguntei só por curiosidade e tal.
– A curiosidade matou o gato – brincou Eugênia – nem tô muito
curiosa sobre o passado ou o futuro. Pra mim só existe o presente; ou
nem ele existe, pois o tempo é uma dimensão ilusória e relativa. Mas
foda-se tudo isso. Na minha forma, mexer com tempo é algo bem mais
maleável; como montar origami. Na sua dimensão, as folhas para montar
este mesmo origami são de aço. Aqui são de papel. Há dimensões mais
sutis com superfícies finíssimas ou líquidas.
– Queria beber o tempo. Será que tem gosto de quê? De Deus?

174
A Gata Mascarada

– Na minha forma estou confusa sobre gostos, pois não possuo mais
o sentido da gustação da mesma maneira que você o conhece – explicou
Eugênia – imagino que na dimensão em que seja possível beber o tempo
o sentido da gustação desapareça completamente, para prevenir um
paradoxo. Assim nunca seria possível conhecer o gosto.
– Em um mundo sem comida e sexo deve ter outros tipos de
prazeres.
– Sim, os poderes psíquicos e estados refinados de êxtase. Minha
mente também está meio chacoalhada desde que o cérebro foi embora.
Mesmo assim, eu tenho alguns desejos ligados à minha existência
passada, como me contatar com vocês e viajar. Consegui visitar uns
países que eu jamais teria dinheiro para conhecer em vida.
– Bom saber, então não vou perder tempo e dinheiro viajando –
decidi – vou me focar mais em curtir aquilo que minha terra e esta
existência oferece, já que como espírito ou em outras encarnações terei
novas oportunidades para conferir o resto. Espero que eu volte como
uma gatinha! Queria ser a gatinha de estimação do meu bisneto.
– Prefiro que minha reencarnação seja surpresa e aleatória, pois assim
é mais divertido e estimulante.
– É um alívio conversar com você, Eugênia. Eu tinha muito medo
que você quisesse se vingar do Demian. Você viu ele?
– Eu vi, mas não muito – disse Eugênia – como eu te disse, meu
novo princípio como espírito é não invadir a privacidade das pessoas.
– Pode invadir a minha, não ligo.
– Nem tem o que invadir – reclamou Eugênia – você já conta pra
todo mundo o que faz e, se duvidar, faz até na frente dos outros e
fotografa.
Eu morri de rir dessa vez.
– Se quiser pode conferir eu transando com o Alf pra avaliar nossa
performance. Posso perguntar a ele se autoriza que um espírito assista.
– Cala a boca, Fifi. Sinceramente, eu tenho mais o que fazer. Além do
mais, prefiro evitar ver transas, pois além de eu não ter mais esse tipo de
desejo, posso ter saudades do desejo que eu possuía antes. Espero que
eu não reencarne como uma ameba! Pelo menos nessa forma não terei
consciência do meu sofrimento pela falta de sexo. Realmente, na vida
costuma haver uma compensação.

175
Juliana Duarte

– Você é meu espírito preferido para jogar conversa fora.


– Não se esqueça de manter o colar com você – avisou Eugênia – sua
mediunidade já retornou com muita força. Outras capacidades irão se
manifestar com o tempo. Tenha paciência e verá.
Aquilo estava ficando emocionante! Assim que me despedi da
Eugênia – quando meu cansaço mental ficou no limite – fui correndo
falar com minha gatinha.
– Siii!
Babushka veio correndo até mim.
– Acabou o leite do meu pote – informou a gata – e preciso me
queixar dos seus apertos, Ofélia. Você anda me espremendo além da
conta ultimamente.
– Desculpa, Siii. Já vou encher seu pote. Mas não prometo que vou
parar de te apertar. Você é irresistível!
– Concordo com a Eugênia: você precisa urgentemente de um novo
namorado, senão vou morrer sufocada com seus abraços. A propósito:
feliz aniversário!
– Obrigada. Nada melhor que ser parabenizada por espíritos no
Halloween.
Achei melhor dormir. Eu tinha combinado de me encontrar com
Alfredo de tarde. E de noite haveria o espetacular evento de Dia das
Bruxas da Ordem.
Quando cheguei à casa do Alfredo, dei-lhe um abraço apertado. A
mãe dele nos serviu um delicioso sorvete no quarto, cheio de confetes
coloridos.
– Parabéns, Ofi – ele desejou – 17 anos, né? Você tá dois anos mais
velha que eu de novo. Mas no começo do ano que vem, isso logo
mudará.
– Você não tá sofrendo por estar comendo sorvete em vez do seu
sanduíche natural?
– Que nada. Por você eu faço isso, pois quero te acompanhar. Hã... a
gente voltou a namorar, né?
– Claro – falei, embora a gente nem tivesse decidido nada sobre isso
até então – eu tenho ainda camisinhas do Halloween. Depois que a gente
terminar de comer, vamos usar?
– Pode ser.

176
A Gata Mascarada

No meio da transa, eu pensei: “será que tento usar algum poder


psíquico?” Tentei, pelos poderes, aumentar o prazer que o Alfredo sentia.
A diferença foi visível na expressão dele. Mas logo ele começou a
suar e pediu para pararmos.
– Nossa, o que você fez? – ele perguntou, surpreso – Até me assustei.
– Por que parou?
– O prazer foi tão intenso que começou a doer...
Então era assim que funcionava. Resolvi deixar isso de lado.
– Alf, me conta qual sua fantasia sexual?
– Hmm... melhor não.
– Conta! – insisti – Assim posso tentar fazer algo relacionado da
próxima vez.
Eu insisti horrores, até o ponto de ser chata. Mas ele não revelou de
jeito nenhum.
Então eu resolvi jogar sujo: enquanto transávamos, tentei ler os
pensamentos dele. Eu tinha dito que nunca usaria telepatia, mas eu
estava simplesmente morta de curiosidade.
Contudo, eu quase me arrependi. Observei as imagens na mente dele
e aquilo... me deu nojo.
Eu não ousaria descrever o que vi. Basta dizer que eram fantasias
com fezes e urina. Os detalhes do que eu e ele fazíamos na mente de
Alfredo não serão inclusos. E depois disso, apareceu na mente dele algo
como vídeos da internet em que pessoas faziam essas coisas. Cenas
terríveis! Eu perdi o desejo na mesma hora.
– Alf, você curte scatsex? – perguntei num tom de quem não quer
nada, como se eu estivesse interessada.
Ele ficou completamente surpreso com a minha pergunta.
– Você gosta? – ele perguntou, incerto.
– Ah, então você sabe o que isso significa – observei – como você
sabe?
– Ouvi falar – ele mentiu – mas qualquer coisa que você queira tentar,
está ótimo pra mim.
– Seu nojento! – exclamei – Então você gosta mesmo dessas coisas.
Que horror! Seu pervertido repugnante! Eu jamais ia pensar que você
tinha essas taras escatológicas! Puta que pariu.
Eu fiquei irritada de verdade. Mas ele estava confuso.

177
Juliana Duarte

– De onde você tirou isso? – ele até ficou meio espantado – Você
espiou o histórico do meu computador, por acaso?
– Sim – resolvi dizer, pois era mais convincente do que falar que
espiei a mente dele.
– Ah, Ofi, que droga...
Mas, em vez de ficar triste comigo, ele ficou irritado também.
– Não é por eu ser seu namorado que você precisa saber tudo o que
eu faço quando estou sozinho – justificou Alfredo – eu nunca ia te
obrigar a fazer essas coisas se você não quisesse, imagina. Uma fantasia
só é algo que excita. Não precisa virar realidade.
– Sim, eu sei. Eu tenho uma fantasia com um alienígena laranja de
sete cabeças, cinco caudas e nove braços que pressiona meus seios
contra uma máquina espaço-temporal de trufas sortidas cantantes. Não
precisa virar realidade.
– Nossa, que fantasia específica – observou Alfredo, impressionado –
nunca vi isso antes. O mais próximo que eu ia conseguir seria me
fantasiar como esse alienígena e comprar trufas.
– Mas não pode ser aqui na Terra, tem que ser no planeta Rupopopo,
que tem céu de areia, chão de céu e borboletas em forma de grama.
– Acho que nem o namorado mais esforçado conseguiria te satisfazer,
Ofi.
A gente acabou o sexo por ali mesmo, pois eu tinha perdido o desejo
depois de descobrir a fantasia do Alfredo. Ele ficou muito chateado que
eu tivesse espiado as coisas dele. Se eu continuasse a bancar a
engraçadinha, ele ia terminar comigo mais depressa do que da vez
anterior.
Como o clima ficou meio tenso, depois que terminamos a transa
resolvi mudar de assunto.
– Você não quer participar da Ordem de ocultismo quando for maior
de idade? – sugeri.
– Já te disse que tenho medo dessas coisas – disse Alfredo.
– Por quê?
– Sei lá, só tenho medo. Assim como alguns têm medo do escuro ou
medo de altura.
– Você tem medo de fantasmas?

178
A Gata Mascarada

– É, vocês mexem com espíritos, demônios, essas coisas, certo? –


perguntou Alfredo.
– Aham – confirmei – mas até um seminarista já fez parte da nossa
Ordem.
– Que loucura!
– Ele foi meu namorado, até ser preso por matar minha melhor
amiga.
Eu falei isso num tom tão casual que ele não teve certeza se eu estava
falando sério ou brincando.
– Agora eu levo bolo pra ele na prisão e me comunico com essa
minha amiga por scrying.
– Você leva bolo pro seu ex-namorado homicida? – ele perguntou –
E conversa com sua amiga morta?
– Sou uma pessoa exótica, não acha?
– Que ótimo você manter suas amizades até depois da morte – ele
comentou, meio incerto – mas você realmente precisa levar bolo pro seu
ex? Por que a mãe dele não leva?
– Ele não fala mais com os pais e não tem muitos amigos – expliquei
– quer ir à prisão comigo da próxima vez, para conhecê-lo?
– Não, Ofélia – ele ficou sério – sei que não tenho o direito de exigir
isso, mas eu não queria que você continuasse visitando seu ex com tanta
frequência. E se ele é um assassino, não é perigoso?
– Típica visão maniqueísta limitada de um CDF – observei,
contrariada – na escola te ensinaram que existem os “cidadãos de bem” e
os bandidos, certo? Isso está errado. Essa fronteira não é assim tão
separada. Uma pessoa bacana pode acabar na prisão e filhos da puta
podem continuar à solta. É assim que o mundo funciona.
– Eu sei disso, mas esses casos são exceções – comentou Alfredo –
eu conheço um pouco a Constituição. Não ache que o fato de eu estudar
demais me torna alienado. Pelo contrário, Ofélia. Estudar amplia a visão.
– Você lê jornal e vê noticiário, certo? Sabia que eles manipulam as
informações, principalmente na TV aberta? – desafiei – a ordem em que
aparecem as notícias, a colocação dos comerciais, tudo funciona para que
nos induzam a pensar certas coisas positivas ou negativas sobre cada
reportagem. Por isso eu não leio jornal e não vejo noticiário, para não
me alienar!

179
Juliana Duarte

– Nossa, eu não sabia que você pensava assim – disse Alfredo – eu


sigo outro caminho. Entendo a manipulação que existe na mídia. Mas
em vez de deixar de consultar essas fontes, eu busco também referências
alternativas. Por isso eu também vejo BBC e CNN. E na internet eu
consulto vários jornais estrangeiros, para comparar as informações.
– Você sabe inglês tão bem assim para assistir noticiários em inglês
sem legenda? – perguntei, impressionada.
– Eu morei nos Estados Unidos por um tempo e fiz metade do meu
primeiro grau lá.
– Você é americano?! – de repente eu estava descobrindo um monte
de novas informações sobre ele.
– Não, eu sou brasileiro. Morei cinco anos lá, dos sete aos doze.
– Minha nossa senhora! – eu nem sabia o que dizer.
– Por que essa reação? O que tem de especial em morar em outro
país? – perguntou Alfredo – Eu adoro o Brasil. Só vou sair daqui caso eu
precise um dia fazer uma pós-graduação numa área específica que não
tenha aqui. Do contrário, daqui não saio. Amo minha terra.
– Você já sabe o curso que vai fazer na faculdade?
– Provavelmente alguma engenharia. Adoro matemática. Por
exemplo, tem uma área chamada engenharia de sistemas complexos, pela
qual tenho interesse. Mas não tem no Brasil.
– Que porra é essa?
– Design com modelagem e simulação de projetos como espaçonaves,
chips, robótica, software, esse tipo de coisa.
– E por que alguém em sã consciência se interessaria por uma
profissão tão entediante? É pelo dinheiro?
– Dá dinheiro, mas não é por isso – ele respondeu – é
intelectualmente estimulante. Embora não seja algo exatamente novo, a
área está adquirindo novas proporções que exigem bastante investigação
e inovação. Isso chama minha atenção.
Eu apenas o fitava boquiaberta. Eu estava diante de um gênio e se eu
casasse com ele talvez nunca precisasse trabalhar na vida, pois ele seria
rico. Eu não podia perder a oportunidade.
– Com todo o respeito, Alfredo, eu jurava que você fosse burro com
uma porta! – exclamei – Por que você é tão humilde? Podia usar esse
papo pra pegar garotas, pô!

180
A Gata Mascarada

– Não posso me gabar de algo que ainda não sou – ele justificou.
– Não interessa, não se joga limpo em conquistas amorosas, vale tudo.
Por que não canta as meninas em inglês?
– Mas isso é tão... bobo. Estou no Brasil, então obviamente vou falar
português.
– Pera, fala a palavra “português” de novo – eu ri – você acabou de
falar “portuguese”. Você tem sotaque! Eu nunca tinha reparado. Achei que
era só sua voz fanhosa. Que bonitinho! Também sei falar em inglês:
“The book is on the table”. E então, como me saí?
– Ótimo, Ofélia. Você é sempre maravilhosa.
“Opinião de namoradinho apaixonado não vale” pensei, contrariada.
– Diga que morou nos Estados Unidos, que assiste BBC e que quer
ser engenheiro de sei lá quê e pronto! – expliquei – Não precisa dizer
mais nada e todas as garotas vão suspirar de paixão.
– Eu acho que não, hein...
Engraçado que eu tivesse namorado ele por tanto tempo e não
soubesse de nada daquilo. Provavelmente porque eu só ficava falando de
mim, para Alfredo apaixonar-se ainda mais, e nem me preocupava com
as coisas dele.
– Cara, eu não entendo como você não tem medo de matemática e
engenharia, mas teme espíritos! Sinceramente, isso não faz o menor
sentido.
– Mas... uma coisa não tem nada a ver com a outra – observou
Alfredo.
– Tem sim. Tudo o que falo faz sentido.
– Claro, Ofi. Você só fala coisas lindas.
Achei melhor interromper aquela conversa esquisita e ir logo para
casa me arrumar. Lá foi a bruxa verde-limão sem criatividade para
fantasias comparecer ao encontro da Ordem.
Ângela estava com um vestido em tom escuro, muito bonito. A
maioria dos outros membros também estava com roupas pretas. Só eu
que me destacava de verde. “Dã, eu não tô numa festa à fantasia e sim
numa Ordem. Mas agora já era”.
Gregório deu uma palestra fantástica e informativa. E enquanto ele
falava, o tempo todo eu pensava: “Demian teria com certeza odiado essa
parte e iria retrucar”. Era inevitável me lembrar disso.

181
Juliana Duarte

Depois da falação, fomos para a sala de rituais. A ideia era chamar as


Torres de Vigia e abrir os quatro portais para a evocação dos espíritos.
Utilizaríamos um enorme espelho para isso.
Quando olhei a mim mesma nesse espelho, vi o orbe do meu colar
tilintar. Minha face tornou-se anuviada e depois negra. Vi o rosto de
Eugênia no reflexo.
– Ângela! – chamei-a com urgência – Você consegue ver a imagem?
– Só vejo você – ela comentou, com firmeza – e a mim.
– Olhe com atenção – eu apontei – é o rosto de Eugênia no lugar da
minha face.
Ela observou. Mas não adiantou.
– Uma ilusão? – perguntou Ângela, confusa.
– Ofélia, eu poderia saber o que é este seu novo colar? – indagou
Gregório, atentamente – Parece um método divinatório para scrying.
– Sim – confessei – você quebrou meu colar antigo. Esse meu novo
utensílio aumenta muito minha mediunidade. Eugênia está se
comunicando conosco.
– Diga logo para minha irmã que estou bem – disse Eugênia,
monotonamente.
– Eugênia mandou dizer que está bem – contei para Ângela – ela
também me disse antes que não tem mais nada contra o Demian, OK?
– Essa segunda parte eu não acredito – disse Ângela.
– Eugênia, faço algo para Ângela acreditar – sugeri – por exemplo,
exploda alguma coisa.
Naquele instante, algumas velas apagaram.
– Recebeu o recado? – perguntei para Ângela.
– Vou precisar de mais que isso para me convencer de que Eugênia
perdoou o cara que a matou e a quem ela amaldiçoou no momento da
morte – comentou Ângela, com firmeza.
– Então o espetáculo vai começar – anunciei – Eugênia, você precisa
fazer algo mais... decisivo.
O espelho enorme pendeu para frente e espatifou-se no chão em mil
pedaços.
– Sete anos de azar? – comentei.

182
A Gata Mascarada

– Ofélia, pare com isso – disse Ângela, seriamente – eu vi que foi


você quem empurrou. Não precisa fazer todo esse teatro para que eu
perdoe aquele sujeito, pois isso não vai acontecer.
– Diga algo que iria convencê-la de que Eugênia está se comunicando
comigo – pedi.
– Uma informação que somente eu e ela saberíamos – informou
Ângela – por exemplo: o nome do nosso tio-avô.
– Eugênia, qual o nome dele? – perguntei.
Mas nesse momento, Eugênia se calou.
– Não entendo – confessei – ela estava muito falante até agora.
– Os espíritos não desejam fornecer certas provas de suas existências,
pois a mente não alcança – explicou Gregório – ou informações
confidenciais que fariam outra pessoa ter poder sobre ele. É como o
nome mágicko de um magista.
– Isso tudo é só conversa mole – concluiu Ângela – ou Ofélia está
mentindo ou está sendo enganada por seu subconsciente.
– Provavelmente o espírito que se manifesta para mim é somente a
Eugênia da minha memória – concluí – eu posso resgatar informações
antigas que ela me disse um dia ou montar novos raciocínios derivados
daquilo que eu conheci dela. Não posso obter o que eu nunca soube.
– O que é, naturalmente, prova de que sua visão é um delírio – disse
Ângela.
– Talvez não, Ângela – observou Gregório – não existe apenas um eu.
O que nos dá a ilusão de um “eu” são os observadores. Existem várias
Eugênias: a da sua memória, a da minha, a da memória de Ofélia. Não há
essência, apenas várias entidades multifacetadas que nos deram a ilusão
de uma Eugênia viva. Mas mesmo quando ela estava viva, já estava
morta, pois nunca existiu. E ela estando morta, continua viva na
memória de todos os agregados que nós, vivos, recordamos dela.
Portanto, ela sempre esteve morta e viva ao mesmo tempo. Então ela
pode ser naturalmente invocada. Ofélia, que possui mais sensibilidade
para captar essas sutilezas, consegue notar esses sinais mentais mais
facilmente.
– Ângela, você é muito cética – comentei – não estou dizendo que
devia acreditar em qualquer coisa, mas devia pelo menos confiar em seus

183
Juliana Duarte

amigos. Eu não ia inventar uma história maluca somente para inocentar


Demian. Sejamos razoáveis.
– Não estou usando minha razão aqui e sim meus sentimentos –
explicou Ângela – e eu não voltarei atrás na minha posição.
Eu senti raiva da Ângela. Como ela podia ser tão teimosa? Ela podia
simplesmente perdoar o Demian, caramba! Ele era um louco
problemático e já estava preso! Custava um pouco de consideração em
vez de condená-lo eternamente?
Senti a minha testa pesada. Uma pressão intensa. E, antes que eu
explodisse alguma coisa, resolvi sair correndo de lá.
Corri. E a raiva ainda me consumia. Eu queria fazer aquilo parar, mas
o ódio já tinha dominado meu corpo.
Começou a chover, como se as nuvens tivessem sentido minha
tensão e desejassem apagar minha fúria pela água. Mas aquele fogo
dentro de mim era muito mais poderoso. Meus sentimentos lançavam
mais lenha na fogueira para manter essa chama sempre acesa.
Peguei um ônibus. Eu queria ver Demian. Não teria bolo e ele ficaria
triste. Mesmo assim, eu precisava ir.
Quando cheguei lá, ele reclamou exatamente da falta do bolo. Eu
sabia. Ele era previsível.
– Por que não veio mais me visitar? – ele perguntou.
– Eu vim faz pouco tempo!
– Mas você não veio no dia que prometeu.
– Não tenho a obrigação de vir! – exclamei – Olha, eu reatei com um
ex-namorado meu e ele não quer que eu te visite mais. Então vim te
avisar que infelizmente você não terá mais o prazer da minha ilustre
presença, embora eu saiba que você só ligasse pra comida que eu trazia.
– Não ligo – falou Demian – o padre Leonardo vai conseguir
diminuir minha pena pela metade. Daqui alguns anos já caio fora daqui.
Não precisarei mais nem de você e nem dos seus bolos.
– Eu podia te soltar agora – informei – meus poderes psíquicos
voltarem. Destrancar essa cela é brincadeira de criança.
– Eu não sou um fora da lei! Se o governo acha seguro me manter
preso, assim ficarei.
– O governo não te concedeu auxílio psicológico quando você mais
precisava! – aleguei – As prisões estão superlotadas e vocês vivem aí

184
A Gata Mascarada

dentro em condições desumanas. É anti-higiênico, anti tudo! Ficar aí por


mais tempo vai até aumentar as suas tendências violentas.
– Anti o que, Ofélia? – perguntou Demian, calmamente – O objetivo
deles não é diminuir minhas tendências violentas e sim me manter preso
num local em que eu não ataque ninguém.
– Então eles te consideram um lobo perigoso e não querem te
adestrar e te transformar num cachorrinho obediente – concluí – pois
isso dá trabalho e exige recursos.
– Obrigado por informar o óbvio.
Eu já estava até com saudades do sarcasmo do Demian depois
daquelas horas de papos comportados com o Alfredo.
– Eu não entendo nada de política e de leis – confessei – só sei que
você tinha que estar internado numa clínica de tratamento psiquiátrico
em vez de estar aí dentro dessa escola de violência e lixo.
– Sim, mas até eu chegar nisso terei que conseguir mais advogados,
mais audiências, mais papelada indo e voltando. E essa burocracia leva
anos.
– Eu posso te colocar um disfarce para você ficar “invisível” –
expliquei – não é invisibilidade de verdade. É só um truque que vai fazer
com que as pessoas não olhem para você. Então você poderá
naturalmente sair comigo daqui como se estivesse visitando um dos
presos, assim como eu.
– E para onde eu iria?
– Sei lá, a Igreja pode encobrir seu caso. Ela não é poderosa? Eles
não encobrem vários casos de pedofilia?
– Existe pedofilia em diversas instituições. Existe nas Igrejas
luteranas, nas evangélicas, entre ateus e pessoas de outras religiões. Eles
só focam na Igreja católica por implicância. Somente porque eles acham
hipocrisia alguém ter feito voto de castidade e cometer esse tipo de crime.
Crimes são cometidos entre pessoas de todos os tipos. A Igreja não é
melhor ou pior do que nenhuma instituição e os padres não são
melhores ou piores que ninguém. Mas as pessoas querem julgar e acusar,
porque isso as satisfaz e as fazem sentir menos culpadas.
– Tá, Demian, isso não me interessa agora. Quer sair daí ou não?
– Para ser um fugitivo? Não, obrigado. E você já tem namorado. Eu
não poderei voltar a estudar enquanto estiver escondido. O que vou

185
Juliana Duarte

fazer lá fora então? Eu tenho Deus em qualquer lugar. É só disso que


preciso.
– Se eu te soltar, voltamos a namorar e termino com o Alfredo –
decidi.
Mesmo que o Alfredo fosse queridinho, ele era meio entediante. Era
terrível admitir isso, mas eu preferia minhas discussões com o Demian.
E daí que Alfredo soubesse de atualidades e ciências exatas? Eu não
estava interessada nisso e não teria papos legais para bater com ele. Já eu
e Demian tínhamos interesses parecidos e ele possuía uma personalidade
mais interessante.
– Ofélia, acabou – disse Demian – esse meu período aqui me fez
perceber várias coisas. Eu decidi que quando sair da prisão irei retomar
tanto meus estudos de teologia como o seminário. Estou confiante de
que o padre conseguirá diminuir minha pena. Farei tratamento e serei
padre.
“Pronto, Ofélia, você foi formalmente dispensada. Retire-se”.
– Peça para o padre te trazer bolo – eu disse a ele.
– É exatamente isso que farei.
E saí de lá. Pensando bem, o padre podia mesmo levar bolo pra ele...
E a pressão na minha testa continuava. Era como se eu tivesse um
poder desejando sair a qualquer momento.
Já era tarde, mas resolvi ir para a casa de Alfredo.
– Posso dormir aí?
– Claro!
Ele ficou todo contente com meu pedido. No dia seguinte, fomos
juntos para a aula.
– Tenho um presente para você – informou Alfredo, com alegria –
voltamos a namorar muito repentinamente, então não deu tempo de
comprar antes. Mas aqui está: feliz aniversário.
Era que nem no ano passado: Alfredo me dando um presente bem
no dia em que iríamos terminar. Assim eu não ia conseguir dizer!
Resolvi abrir. Era uma abóbora de pelúcia toda torta! Apesar de meio
bobo, era gracioso.
– Alf, seu idiotaaaaaaa! – eu o abracei – Você é querido demais. Não
merece uma namorada chata como eu.
– Eu te amo, Ofi.

186
A Gata Mascarada

“Awwwnn e agora?” pensei, delirando. Alfredo era um anjinho e eu


me sentia um demônio. Mas eu precisava acabar com aquele namoro.
Não podia enganá-lo mais. Dois dias de namoro já era uma duração além
da conta, sendo que eu não gostava tanto assim dele.
– Vamos sair juntos hoje de tarde? – ele propôs – Escolhi um lugar
bacana. Pesquisei bastante até achar...
“Diante disso, como posso dizer não?” E lá fui eu. Era uma
lanchonete, até que bem chiquezinha. E lá eu encontrei uma pessoa
completamente inesperada.
– Alice!
A garota de Hello Kitty Online que eu não via há muito tempo.
Abracei-a. A gente já tinha se falado por MSN algumas vezes desde a
morte da Eugênia, mas era a primeira vez que nos víamos desde então.
Convidei-a para sentar conosco. Alice era super querida e eu me
encantava cada vez mais com sua voz graciosa e com seus movimentos
suaves.
Ela e Alfredo até que se deram bem.
– Um amigo do meu pai trabalha com engenharia de sistemas – Alice
informou – acho que você devia conversar com ele!
– Isso seria ótimo – falou Alfredo, animado.
E aqueles dois conversavam, conversavam... e sorriam tanto!
– Alice, você tá namorando no momento? – resolvi perguntar.
– Não...
– Eu reatei com Alfredo há dois dias – expliquei – mas eu preciso ser
sincera com você, Alf: eu não te amo. Acho melhor a gente terminar.
O rosto dele mudou de cor. Ele não esperava isso assim, de repente.
– Você podia ter dito isso numa conversa reservada... – ele disse, com
os olhos marejados.
Ele já ia se levantar para sair de lá, mas eu o puxei de volta.
– Calma, não é só isso que tenho a dizer. Eu quero que vocês dois
namorem. Vocês parecem se dar bem. Que tal?
– Ofélia! – Alfredo exclamou – Não posso terminar um namoro e
simplesmente começar outro!
– Por que não? – perguntei – Você quer curtir sua dor de cotovelo
por quanto tempo? Você gosta de sofrer? Naquele dia você deu o

187
Juliana Duarte

ursinho para aquela mocreia assim que terminou comigo. Que dessa vez
você dê esta abóbora de pelúcia para uma garota meiga como você.
Dei a abóbora de pelúcia para Alice.
– Ali, o Alf tá te pedindo em namoro e vai te dar esse bonequinho –
eu disse – você aceita?
Alice costurava bichinhos de pelúcia. Claro que ela se apaixonou pela
abóbora, mas ficou confusa com o que eu disse.
– Alfredo, qual a sua opinião? – perguntou Alice.
Alfredo ficou com uma expressão completamente perdida. Eu peguei
as mãos dos dois, uni-as e saí correndo. Com sorte em algumas horas
eles iam conseguir se declarar um pro outro e era melhor que eu não
estivesse perto.
No dia seguinte, a Alice falou comigo pelo MSN e parecia furiosa.

Ali: Não faça mais essas coisas! Você me deixou encabulada.


Fifi: Foi mal. Então, como você o dispensou?
Ali: Eu aceitei. E ele também. Estamos namorando agora.
Fifi: Quê?!
Ali: Obrigada, Ofélia. Não sei como você fez isso, mas funcionou.
Fifi: Viu como a vida é simples? É só colocar a chave na fechadura!
Por que as pessoas complicam tanto?

Finalmente eu estava livre dos meus dois pretendentes. Demian


voltaria a ser seminarista e Alfredo arranjou namorada. Eu estava super
feliz por eles.
– Só quem ficou triste foi a Fifi...
Eu estava deitada na minha cama, abraçando meu travesseiro. Babu
subiu.
– Você sente raiva? Remorso? – perguntou Siii – Quer explodir
alguma coisa?
– Sim. Minha cabeça.
Eu comecei a chorar.
Quando você sente uma dor muito grande por dentro, qual o melhor
caminho para fazê-la parar? Deve ter um caminho melhor que esse, mas
eu conheço um bem rápido: causar uma dor maior do lado de fora.

188
A Gata Mascarada

Mas eu não queria apenas causar uma dor gratuitamente. Desejava


conferir-lhe significado.
Tracei um círculo e um triângulo com giz no chão do meu quarto.
Deitei-me no círculo e clamei que eu fosse possuída.
– Esse é o tempo em que os espíritos das bruxas, anjos caídos e
monstros vagam em busca de um caminho – eu sussurrei – eu forneço a
minha vela e guio o monstro para dentro de mim. Quando eu fizer-me
monstro, não haverá retorno e irei desfrutar da minha condição absoluta,
irrevogável e irreversível.
Coloquei a vela negra na minha boca. A cera derretia e tocava meus
lábios. Senti uma lágrima no meu olho esquerdo.
De repente, a vela caiu no chão e apagou. Meu quarto ficou escuro.
Minha mão alcançou o punhal e derramei singelas gotinhas de sangue
para chamar a fera.
– Você é o monstro?
– Eu sou.
– Haverás de fazer-me monstro?
– Como desejares.
– Não poderei voltar atrás?
– Nunca mais.
No dia seguinte, tingi meu cabelo de loiro. Coloquei mini saia, decote
e salto alto. À noite fui numa festa. Experimentei cigarro, bebi até cair e
transei com uns dez caras, sem camisinha.
Quando eu cheguei em casa, estava chorando e enfiei um punhal na
minha vagina.
– Esse é seu planejamento para morrer mais depressa e me
encontrar? – perguntou Eugênia, ironicamente – Não faz isso, Ofélia. Se
continuar, eu vou chorar, mesmo não tendo olhos ou lágrimas.
– Por quê? – perguntei, completamente zonza e com o punho
manchado de sangue – se eu vou morrer um dia, por que eu preciso
sofrer tanto?
– Por que está sofrendo?
– Eu não sei – confessei – porque estou viva.
– Você só está depressiva porque terminou com seu namorado – ela
disse – não precisa se destruir por causa disso.

189
Juliana Duarte

– O Alfredo era perfeito pra mim, ele é gentil e meigo. Mas eu não
me considerei boa o suficiente pra ele.
– Só por isso terminou?
– Eu não me apaixonei tanto por ele quanto me apaixonei pelo
Demian.
– E por causa disso precisa enfiar esse punhal no meio das pernas?
– É para eu me lembrar que a culpada de tudo é ela – eu expliquei –
porque se não fosse esse meu desejo, eu ia viver em paz. Eu preciso de
um cara para me dar prazer. E eu odeio depender de alguém pra ser feliz.
– Deixa de ser orgulhosa.
Uma parte de mim queria alimentar aquela dor, porque se satisfazia
com ela. E a cada dia eu ia sentindo mais prazer em sofrer.
Comecei a me machucar de verdade; tanto no corpo quanto na mente.
Fui numa festa novamente, mas dessa vez eu estava descabelada e com a
maquiagem borrada. Cambaleante, de tanto que já tinha enchido a cara.
Comi mais uns cinco caras sem usar preservativo. E a cada transa eu
desejava, secretamente, com o coração pulsante, pegar uma doença. Eis
meu jogo venenoso e tentador. Deliciosamente insano como a morte.
Eu era a chaminé invicta, beijando o tabaco, arrancando-lhe abraços e
suspiros nesse prelúdio do fim. Mas mesmo em tal estado, não toquei as
drogas mais pesadas, porque tive medo. E talvez tenha sido esse medo
que me acordou. Pessoas querem se livrar do medo e não enxergam o
quanto ele é precioso.
Eu não sabia se eu queria ser salva, morrer ou curtir. Afinal, ser salva
de quê? Da vida? Da morte? Do prazer? Da dor? Provavelmente de mim
mesma. Porque a nossa mente é a coisa mais aterrorizante e mais
maravilhosa do mundo. É uma faca de dois gumes que pode construir o
universo mais gracioso e delicado; e destruí-lo em um segundo.
A cada dia eu ficava pior. Faltei aulas, perdi provas. Eu apenas
dormia. Eu não queria acordar. Eu ia dormir cedo, desejando que o dia
acabasse. E acordava tarde, amaldiçoando o novo dia que se iniciava,
desejando que ele terminasse logo novamente.
E assim experimentei uma sobrevida por algumas semanas perigosas.
Minha bebida era álcool e meu alimento era fumaça.
Festa, sexo, prazer, vômito, dor, sangue.

190
A Gata Mascarada

Eu me esqueci de comer. Até que chegou um dia que eu não


consegui mais me levantar da cama. Arrastei-me pelo chão. Eu não
entendia porque eu não conseguia mais me mexer.
Segurei meu punhal e deslizei-o pelos braços, como se ralasse
cenoura; tal qual arco arranhando as cordas de violino em minha canção
violenta e sagrada. Eu estava tão chapada que não sentia os cortes
penetrantes. Então comecei a produzir feridas cada vez mais fundas na
minha pele, rindo enquanto via o sangue pingando como conta-gotas de
remédio para sarar minha doença. O aço da faca era meu parafuso para
capturar minha natureza robótica. Eu queria alcançar a essência perdida
no interior do meu corpo, como ouro incrustado nos meus ossos.
Eu gargalhei. Depois eu gritei. E não parei mais de gritar.
Bati o rosto no chão e comecei a bufar. Ergui minha mão ao alto e
contemplei o espetáculo: unhas vermelhas com esmalte desgastado. O
plasma era como esmalte: bonito, elegante e vencido.
“Eu só quero ser bonita”.
“Eu só quero me sentir viva”.
Fui até o banheiro e bebi um frasco com um resto de perfume. Isso
me fez vomitar e apagar.
Quando acordei, eu estava num lugar que parecia um hospital. Só que
não era um hospital...
Eu não sabia que eu tinha me machucado tanto. Eu estava cheia de
curativos pelo corpo.
– Incrível, eu não morri – observei para mim mesma, testando a voz,
que saiu meio embargada.
Mas depois caíram lágrimas. Eu me sentia vazia. Eu não apreciei a
sensação.
Recebi visitas. Meus pais vieram me ver. Alfredo e Alice me visitaram.
Ângela, Gregório e Fábio também. Subitamente eu descobria que tinha
muitas pessoas ao meu redor para me ajudar. Então por que eu tinha me
sentido tão sozinha?
Talvez porque o estado de solidão seja interno. Podemos nos sentir
completos em meio a um planeta deserto; e totalmente sós em meio à
multidão. Eu era uma estranha na festa das pessoas bonitas e a rainha do
universo de minhas fantasias.

191
Juliana Duarte

Eu me senti um pouco mais feliz ao ver Alfredo e Alice se dando tão


bem. Era mágico. Vê-los juntos me fazia acreditar no amor. Não para
mim, mas para aqueles que o mereciam.
Será que o amor só era privilégio dos fracos, que no fundo são mais
fortes que qualquer um?
Eu estranhei quando Ângela pediu para conversar em particular
comigo.
– Todos se assustaram muito com o que aconteceu – ela confessou –
te encontraram completamente ensanguentada em seu quarto, com um
punhal na mão. Estavam dizendo que seu estado lembrava o que
Demian fez na igreja naquele dia.
– Nem pensei nisso – defendi-me – não quis imitá-lo. Simplesmente
aconteceu.
Ou seria meu inconsciente brincando comigo outra vez? Talvez no
fundo eu desejasse sentir o que Demian sentiu.
– Quebramos seu colar – disse Ângela – nunca mais volte a se
comunicar com espíritos, entendeu?
Mais um colar quebrado para a coleção.
– Entendi. Dessa vez eu senti na pele, literalmente.
– Você gritava o nome de Demian quando estava ardendo em febre e
loucura – disse Ângela.
Não dava para acreditar que aquele desgraçado habitava até meu
inconsciente.
– Você pediu para que eu perdoasse Demian – ela disse – e hoje
Eugênia apareceu para mim numa visão dizendo a mesma coisa. Ela
disse que ele estava sofrendo muito na prisão. Muito mais do que ele
contava para você, Ofélia.
– Sério...?
– Eugênia contou que ele te pedia um bolo não somente para que ele
comesse, mas para que ele dividisse com os outros presos também, para
que eles não o espancassem tanto. Eles estavam torturando o Demian lá
dentro. Encontraram feridas horríveis no corpo dele.
– Você está falando no passado – observei, assustada – Demian
morreu?
– Não. Na visão, Eugênia estava chorando, porque ela viu o que
faziam com Demian – contou Ângela – e ela me implorava para que eu

192
A Gata Mascarada

fizesse isso parar. Então eu retirei minha queixa. Eu disse que foi tudo
um grande mal entendido. Que Demian não matou Eugênia. O Fábio e
o resto do pessoal da Ordem que estava lá também deram o mesmo
depoimento.
– E o que aconteceu?
– Eles levaram Demian às pressas para ser tratado dos ferimentos –
explicou Ângela – e a partir de agora, em vez de ficar preso, ele ficará
internado numa clínica psiquiátrica.
– Que clínica?
– Essa aqui.
– Não acredito que me colocaram na mesma clínica que um assassino
– eu me queixei – provaram a inocência dele da noite para o dia? Parece
mágica.
– A Igreja também testemunhou a favor de Demian – disse Ângela –
parece que Deus está mesmo ao lado dele.
– Que bastardo sortudo – comentei, de má vontade.
– Eles também explicaram que aquele ato dele na igreja foi
mortificação. Mas ele não poderá deixar a clínica enquanto não for
considerado completamente são e recuperado. E isso vai levar tempo.
Pelo menos agora ele receberá o tratamento adequado: remédios e
acompanhamento. E ainda haverá muita burocracia até que a pena dele
na prisão seja formalmente retirada. A estadia aqui na clínica é
temporária. Como as prisões estão superlotadas, talvez até facilitem a
saída dele.
Eu não imaginava Demian consultando um psicólogo.
Provavelmente ia dizer que tudo o que ele disse estava errado e depois
faria uma pregação sobre Deus para ele.
– Posso vê-lo? – pedi.
Eu estava muito quebrada. Era difícil afirmar qual de nós dois estava
mais detonado, então foi complicado decidir quem iria se dirigir para
qual quarto. No final eu fui para lá, de muletas. Para variar, ele estava
lendo a Bíblia.
“Sujeito previsível do caralho”.
– Oi, otário – cumprimentei.
– Oi, sua louca – ele cumprimentou-me – ouvi falar que você andou
imitando minhas mortificações.

193
Juliana Duarte

– Nada a ver, nem te imitei. A minha foi genuína. Foi tipo um


demônio me possuindo, um monstro ou uma parada grosseira do tipo.
– Que adorável – ele comentou – curioso você pronunciar meu nome
seguidamente.
– Ah, vai te foder. Eu tava delirando. Nem vem se achar.
– E terminou com seu namoradinho. Sim, eu estou sabendo de todas
as fofocas. Virei um maldito fofoqueiro também. Sua culpa.
– Quando vai ser liberado para voltar ao seminário e retomar suas
aulas? Pois acho que é só questão de tempo até resolverem aquelas
porras de burocracias.
– Sei lá, nem tô preocupado com isso. Não penso mais em ser
sacerdote desde aquela nossa primeira transa.
– Então você mentiu quando disse que ia voltar pro seminário?
– Menti.
– Mas mentir é pecado!
– A sua existência é um pecado muito maior – disse Demian – será
que dá pra gente deixar de frescura e namorar de uma vez? Namorar
sério, sem essa de ficar terminando toda hora.
– Claro – concordei – seu filho da puta.
– Vadia.
– Você falou um palavrão! – comentei, encantada.
– Claro. Se eu vou te namorar, vou precisar aprender vários nomes
desse tipo para elogiá-la.
– Te amo, seu bosta.
– Te amo, minha vaca.

194
A Gata Mascarada

Capítulo 6

Eu caminhava vagarosamente pelos corredores da clínica, com os pés


descalços. Dava cada passo na ponta dos pés, erguendo minha longa
camisola branca para não tropeçar. Até que finalmente cheguei onde
queria.
Encostei-me na porta, tentando ouvir cada palavra. No começo foi
difícil. Depois as coisas ficaram mais claras.
– Você consegue se lembrar de alguma coisa? – perguntou o
psiquiatra.
– Eu me lembro.
– Gostaria de compartilhar?
Silêncio.
– Essas lembranças são dolorosas? – o psiquiatra indagou.
– Tudo isso ficou no passado – disse a voz de Demian – então não
dói mais.
– Qual a primeira imagem que vem à sua memória?
A quietude estendeu-se por meio minuto.
– Meu pai – respondeu Demian – a sombra dele no corredor.
Quando eu ouvia o som dos seus sapatos e distinguia a sombra projetada
na parede, eu ficava de joelhos.
– De joelhos?
– Eu rezava. A sombra era gigantesca. Um monstro.
Eu ouvia tudo atentamente. Não queria perder uma palavra.
– Ele não era muito alto – lembrou Demian – provavelmente estou
mais alto que ele agora. Mas naquela época eu levantava o rosto para
olhar sua face: a barba negra, o hálito de nicotina. Isso quando eu tinha
coragem de fitá-lo nos olhos.
– Ele entrava no seu quarto nesse momento?
– Parava na porta – explicou Demian – ele não acendia a luz.
A voz dele falhou. Ele suspirou fundo. Ouvi uns soluços. Aquilo
continuou por mais de um minuto.
– Por favor – suplicou Demian – eu não quero falar...

195
Juliana Duarte

– Você quer sair daqui logo, não quer? – perguntou o psiquiatra – Já


interrompemos três sessões. Isso não pode se prolongar.
– Que bem fará se eu disser?
– Precisamos entender. Tem alguma coisa dentro de você que precisa
se libertar. Você se sentirá melhor depois que contar.
Demian resolveu ceder.
– Ele colocava... na minha boca...
Demian parou de falar. Começou a chorar. Eu senti uma lágrima
escorrer do meu rosto.
A cada vez que ele interrompia, demorava em voltar a falar.
– Quantos anos você tinha? – perguntou o psiquiatra.
– Não lembro – confessou Demian – oito anos. Talvez nove. Eu
vomitava quando ele fazia isso. E ele me obrigava a lamber o chão e
engolir meu vômito. Chutava meu rosto muito forte enquanto eu não
terminava.
– O que mais ele fazia?
– Você está me torturando – disse Demian.
– Isso vai terminar em breve – garantiu o psiquiatra – ele batia em
você com que frequência?
– Ele e minha mãe me batiam por qualquer coisa errada que eu fazia.
Meu pai usava o cinto frequentemente. Mas foi só quando ele me
golpeou nas costas com uma garrafa quebrada que eu acordei. Tenho as
marcas até hoje. Na manhã seguinte eu corri para a igreja e fui falar com
o padre. Eu disse que desejava entregar minha vida para Deus.
– E foi assim que Deus entrou na sua vida?
– O Senhor sempre esteve lá, me observando – contou Demian –
quando passei a gilete no pulso, caíram lágrimas dos meus olhos. Mas eu
não estava triste. As lágrimas caíram diretamente no pulso para lavar o
sangue. Era Deus chorando pelos meus olhos. Ele não queria que eu
destruísse minha vida. Se eu entregasse minha vida ao Senhor, não
haveria mais lágrimas e sangue.
– Você sempre rezou?
– Sim. Fui batizado, fiz catequese e primeira comunhão. E crisma...
quando isso aconteceu, eu já estava completamente certo daquilo que eu
queria. O seminário me libertou. Mesmo antes eu me confessava. Mas

196
A Gata Mascarada

você é a primeira pessoa, com exceção dos sacerdotes, para quem revelo
detalhes tão pessoais do meu passado.
– Como você se sente em contar?
– Você sabe que sofri abuso, então qual o sentido de eu traduzir isso
para você? Quando uso esse termo, “abuso sexual”, não fica implícito
que meu pai introduzia o pênis no meu ânus à força? Preciso colocar isso
em palavras para a sua satisfação?
– Antes você estava triste – disse o psiquiatra – e agora está irritado.
– Isso significa que o senhor não está fazendo corretamente seu
trabalho – retrucou Demian – já que o objetivo dessa entrevista
pretensiosa era retirar a minha raiva.
– Isso não pode ser feito em um único instante. Não sou mágico para
fazer esse milagre.
– Somente Deus faz milagres – disse Demian, seriamente – e Ele me
fornece uma cura superior a qualquer ciência ou técnica que você jamais
sonharia em inventar.
O psiquiatra suspirou.
– Demian, não tenho nenhuma intenção de competir com Deus.
Estou aqui para ajudá-lo. Precisamos investigar a causa do problema para
encontrar a solução. Somente remédios sem assistência psicológica não
terão o efeito desejado no seu caso. Então você precisa colaborar.
– Eu já colaborei além do que minha boa vontade permitiria. Essas
sessões já perderam o sentido. Sim, há momentos em que eu fico furioso.
Mas isso não acontece com todos nós diante das injustiças?
– Se essa fúria chega a ameaçar a vida de uma pessoa, ultrapassa o
limite do tolerável.
– Eu não desejo tirar a vida de ninguém – Demian deixou claro –
nunca desejei. Isso vai contra a Divina Lei. O que aconteceu foi um
acidente horrível, um descontrole insano da minha parte. Eu já
compreendi as consequências de meus atos. Fui espancado na prisão. E
estou sofrendo ainda, com todos esses remédios que me provocam
efeitos colaterais dolorosos. Todas essas lembranças, e principalmente o
choque que sofri por ter tirado a vida de alguém, serão mais do que
suficientes para impedir que minha fúria exploda outra vez.
– Isso não há como garantir ainda – explicou o médico – os
resultados não são conclusivos. Precisamos de mais tempo.

197
Juliana Duarte

– E meu testemunho não vale nada?


– De fato houve uma melhora significativa desde o início do
tratamento – reconheceu o psiquiatra – e mesmo que você seja liberado
em breve, ainda deverá tomar alguns remédios por um tempo.
– Eu aguento isso. Só quero sair daqui.
– Verei o que posso fazer – ele fez algumas anotações; olhou o
relógio – nosso tempo dessa sessão se esgotou. Obrigado pela sua
grande colaboração. Hoje você superou minhas expectativas.
– Fico lisonjeado – disse Demian.
E levantou-se.
– Demian, você é uma pessoa admirável, inteligente e íntegra – o
psiquiatra disse – confio em sua plena recuperação. Então acredite em
nosso trabalho aqui e tudo dará certo.
– Sim, senhor. Obrigado.
Quando Demian saiu pela porta, já levemente entreaberta, deparou-se
comigo. A expressão com que ele me olhou... era de seriedade extrema.
E por trás daqueles olhos eu enxerguei uma raiva contida.
– Há quanto tempo está aqui na porta? – ele perguntou-me – O
quanto você ouviu?
– Eu ouvi tudo – confessei – desculpa.
Ele fitou–me incrédulo.
– Por quê? – ele perguntou-me – Queria rir da minha cara depois?
– Não. Eu queria estar aqui pra te abraçar se você chorasse.
Ele desviou o olhar.
– Essas palavras não me comovem. É óbvio que só veio por
curiosidade.
– Isso porque me interesso por sua vida. E me preocupo.
– Se você realmente se preocupa, esconde isso muito bem.
Eu abracei-o. E mantive o abraço forte, para que ele sentisse.
– Você me deixa confuso, Ofélia – confessou Demian – algumas
vezes você me maltrata e outras vezes é tão graciosa. Eu não te entendo.
– Não queira entender – eu disse – cada um tem um jeito diferente de
expressar amor.
Quando o psiquiatra deixou a sala, sorriu ao nos ver juntos.
– Cuide bem dele, Ofélia – ele disse – enquanto você estiver perto,
ele não vai se perder.

198
A Gata Mascarada

– Então é verdade que ele será liberado em breve? – perguntei,


esperançosa.
– Isso só depende dele – respondeu o médico – mas quero acreditar
que sim.
Quando o médico saiu, eu disse a Demian:
– Comporte-se, ouviu? Amanhã eu já serei liberada, mas virei te
visitar. Fico com medo de te deixar aqui sozinho.
– Eu sei me cuidar – garantiu Demian.
Foi estranho voltar para casa. Fiquei internada por um tempo
considerável, por causa das minhas invenções de jerico. Maluquice
normal de adolescente. Nem fiquei preocupada. Eu tinha colegas que
fizeram coisa pior, por isso ser internada numa clínica psiquiátrica por
um período era quase normal.
– Babu, que são esses olhos? Por que tá me olhando assim?
Minha gatinha estava me fitando firmemente. Imaginei que tivesse
algo a me dizer.
– Não vai mexer com espíritos novamente, não é? – perguntou Babu,
desconfiada – Você viu o resultado.
– Estou conversando com você agora mesmo, sua boba! – retruquei.
– Só vim para me despedir – esclareceu Babushka – Eugênia ficará
bem. E eu estarei sempre ao seu lado, protegendo-a. Não mexa mais
com os poderes psíquicos, pois seu corpo é tão sensível a eles a ponto de
sua mente ficar descontrolada.
– Não vou parar de ir à ordem de Ocultismo – teimei.
– Não tem problema que você vá – disse minha gatinha – apenas
comporte-se, certo? E um último aviso: não me aperte demais, coce
minha cabeça mais vezes e coloque sempre ração fresquinha para mim.
Aqui me calo.
No segundo seguinte, eu já não conseguia captar nenhuma mensagem
mental vinda de Babushka. Fiquei braba! Dei-lhe um apertão carinhoso
só de raiva. E dei a língua para ela. Mas ela voltou a agir como uma
gatinha normal.
Já estava no final do ano. Meus pais tinham informado ao colégio
sobre a minha internação. Enquanto todos já estavam de férias, eu ainda
teria que retornar ao colégio por algumas semanas para fazer as provas

199
Juliana Duarte

que perdi. Não dava para acreditar. Eu tinha recém chegado em casa e já
teria que voltar a estudar.
– Então é isso Susana, já que você é um gênio em matemática pode
me emprestar seus cadernos? – pedi a ela por telefone – Porque eu tô me
ferrando legal nessa disciplina.
– Claro, será um prazer poder contribuir com sua aprovação – disse
Susana, que era muito esquisita e falava desse jeito mesmo – quer que eu
lhe dê umas aulas particulares também? Seria uma boa diversão pras
minhas férias.
– Hã... não, brigada, não precisa ser assim tããão gentil. Se eu rodar
meus pais só vão quebrar meu pescoço. Mas como eu tava internada,
talvez eles só quebrem metade dele por consideração e eu vire um zumbi.
– Mas você será um zumbi bem sexy. Você é linda, Ofelhinha.
Alguém já te chamou assim antes? É um trocadilho com “ovelhinha”,
compreende?
– Não, você é a primeira a ter a ideia de um apelido tão original –
observei, tentando deixar o sarcasmo evidente – e eu saquei o
“trocadilho”, mas valeu pela tradução simultânea.
– Estou solteira – contou Susana – não sou lésbica, mas talvez eu seja
bi. Então, se um dia estiver a fim de trocar uns amassos, só pra brincar,
saiba que estou disponível.
– Sua gentileza não possui limites, Susi, mas essa eu passo. Só os
cadernos já tá bom. Não preciso das suas aulas ou do seu corpo. Mas se
quiser me dar um presente de Natal, eu aceito um 3DS rosa.
– Minha irmã tem um 3DS que posso emprestar – ofereceu Susi –
mas só se a gente trocar uns selinhos enquanto traçamos um plano
cartesiano cheio de coordenadas hiperbólicas. Troca de favores, meu
bem.
– Ai, como você é tarada, querida! – exclamei, achando aquele papo o
máximo – Mas eu tô com um namorado gatão e fogoso me aguardando
pra eu dar uns pegas nele lá no hospício, ou melhor, hospital... sei lá que
porra é aquela.
– Então tenha um Feliz Natal com seu cachorrão!
– Feliz Natal, sua cadelinha safada! – desejei a ela, rindo.
No mesmo segundo que desliguei, liguei para a clínica.

200
A Gata Mascarada

– Quarto 11 – informei à secretária – Oooiii, meu bombonzinho,


meu quindãozão!
– Olá, meu docinho de leite condensado – disse Demian – minha
tortinha de morango. Já está em casa?
– Sim, meu caldo de mocotó! – exclamei, toda emocionada – Você
nem sabe da última! Liguei pra Susi agora mesmo e tenho fofocas
quentíssimas!
– Mal posso esperar.
– Isso foi uma ironia?
– Não, imagine...
– Eu recebi uma cantada! – revelei, contente – É a primeira menina
que dá em cima de mim, isso é tão tudo! Mas não se preocupe, pois eu
disse a ela que já tenho um leão feroz pra me enrabar.
– Você disse isso mesmo?
– Não com essas palavras. Disse de um jeito mais bonitinho.
– Vindo de você, eu não duvido de nada – falou Demian.
– Eu tô doidinha pra gente foder de novo – falei, lambendo os lábios
– já sabe quando te liberam?
– Acho que semana que vem.
– Oba! – comemorei – Poderemos passar o Natal juntos comendo
um ao outro, que romântico! Já tô com saudades do cheiro do seu pau!
Tô piradinha pra te fazer um elegante boquete natalino!
– Você está com saudades do meu pau ou de mim?
– Dos dois, pois não posso arrancar seu pau, já que você tá grudado
nele, há, há! Brincadeirinha...
– Não achei graça.
– Nah, seu conservador sério, quadrado, comunista!
– Comunista? – perguntou Demian, cada vez mais pasmo – Eu nem
me envolvo com política, de onde tirou isso?
– É porque você quer que seu pau e o resto do seu corpo sejam bens
comuns... tá, esquece – acrescentei, pensando melhor – o importante é
que vamos trepar no Natal.
– No Natal eu vou pra igreja – informou Demian.
– Pooorraaaaa!! – gritei – Tá me trocando por Jesus de novo! Só
porque ele tem uma barba estilosa e eu não?

201
Juliana Duarte

– Ofélia, por favor, vamos parar por aí. Eu até tolero que você faça
brincadeiras com meu... pênis, mas com Deus não. Pela milésima vez,
respeite minha religião.
– É que eu sou hilária e tenho sacadas geniais. Então gosto de
compartilhar minhas piadinhas com meu amor!
– Obrigada?
– Pelo menos vamos nos ver no dia que você sair da clínica. Quando
vai ser?
– 23.
– Perfeito. E no dia 26 você é meu de novo, ouviu bem? – avisei –
Nem que eu tenha que me aliar a Lúcifer e derrubar todas as falanges de
Miguel e dos arcanjos do seu Deus, não vou deixar que você continue
enfurnado rezando depois do Natal.
– Isso foi meio assustador, mas tá certo – decidiu Demian – no dia 26
terei o dia livre pra ficarmos juntos.
– Te amo, seu padre.
– Te amo, sua herege. A fogueira seria pouco pra você.
– Tenho bastante fogo aqui no meu fruto proibido. Em breve você
vai provar mais um pedacinho. Beijinho.
E eu desliguei, rodeada de coraçõezinhos. Não conseguia parar de
sorrir e passei o resto do dia com a cabeça nas nuvens.
– Ofélia, você tá queimando a calda de chocolate! – exclamou minha
mãe – Vai derramar! Presta atenção no que você está fazendo. Baixa esse
fogo, menina!
– Ih, nem vi.
Eu estava distraída demais. Pensei em fazer uma sobremesa, mas nem
rolou. Eu queria cozinhar algo bem gostoso para quando fosse visitar
meu pãozinho de açúcar na clínica.
Claro que eu não teria paciência para aguardar uma semana. Fui
visitá-lo antes disso e levei um pedaço de pudim de leite.
Quando entrei no quarto e ofereci-lhe o pudim e um beijo, não
aguentei e pulei no pescoço dele.
– Como é que você pode ser tão gostosão assim? – perguntei,
pendurada nele que nem um macaquinho – Quero te devorar todinho!
– Me deixa só comer o pudim antes – pediu ele.
– Tá me trocando pelo pudim!

202
A Gata Mascarada

– Mas foi você que trouxe!


– Tá bom, eu deixo, meu anjinho.
Mas enquanto ele comia, eu atrapalhava enchendo-lhe de beijos.
– Ofélia! – falou Demian, com a boca cheia – Eu já tô terminando
aqui, calma.
– Eu não consigo me acalmar! – exclamei, sacudindo a cabeça e os
cabelos, mais louca que nunca – Então enquanto sua boca tá ocupada eu
vou brincar com outras partes do seu corpo.
Quando eu coloquei a mão entre as pernas dele, dei um sorrisinho
malicioso.
– Hmmm, vejo que você já tá preparado – concluí, com um gritinho.
– Por que será? – perguntou Demian, repousando o prato vazio na
mesa de cabeceira.
Trocamos um beijo delicioso com gosto de pudim.
– Minha calcinha já tá se afogando, socorro! – exclamei, jogando-me
por cima dele.
Abri a bolsa e espalhei na cama dezenas de camisinhas de todos os
sabores.
– Só vou te liberar dessa cama quando você estiver morrendo de
exaustão e chamar o médico pra te socorrer antes que eu te mate! –
anunciei, dando risadinhas histéricas.
– Hã... Ofélia, só um detalhe – observou Demian – embora eu
compartilhe de seu... entusiasmo, essa porta não tem tranca. Então acho
melhor adiarmos isso para o dia 23, para termos mais privacidade.
O sorriso sumiu de meu rosto.
– Vou ter que esperar mais dois dias? – perguntei, escandalizada.
– Desculpe. Não fui eu que construí a fechadura da porta. Não me
sinto bem sabendo que um médico ou uma enfermeira podem entrar a
qualquer momento. E se for meu psiquiatra que entrar, ele vai tirar com
a minha cara. Aquele sujeito é irritante.
– Eu não ligo nem se o papa entrar aqui. Mas se você se importa, eu
espero. Terei que me contentar com um triste prazer solitário nos
próximos dias. Você não tem pena de mim, seu ser cruel e sem coração?
– Você é louca – ele riu.
– Só um pouquinho.

203
Juliana Duarte

– Mas há algo de gracioso na sua maluquice. E é exatamente isso que


me atrai.
– Eu gosto de tudo em você – garanti – da unha do seu polegar aos
seus pelos pubianos, você é a perfeição encarnada. Até Deus morreria de
inveja.
– Lá vem você de novo. Sugiro que guarde energias para o dia 23,
porque eu a quero ver tão disposta quanto hoje.
Claro que eu não estudei matemática nos dias seguintes. Passei o
resto desse tempo me produzindo. Fui ao cabeleireiro e à loja de roupas,
manicure, pedicure, depilação, fiz o serviço completo, pulando de alegria.
Quando nos reencontramos foi lindo. Eu estava esperando abaixada
na porta, mas ele saiu pelo outro lado. Tocou no meu ombro. E
trocamos o beijo mais bonito e apaixonado desse mundo.
– Você tá morena de novo – observou ele – tá uma princesa.
– E você é meu príncipe saboroso, com cheirinho de framboesa.
Para mim era um prazer imenso vê-lo sorrir com o que eu dizia.
Demian não sorria facilmente. Até me dava um pouco de peninha dos
sorrisos bobos dele. Quando eu o fitava assim, pensava em tudo o que
ele já tinha passado e sentia uma dor no coração. Mas tudo o que eu
podia fazer era sorrir com ele. Seria a melhor coisa a se fazer, sempre.
Talvez a única.
Fomos para minha casa de mãos dadas. Encostei a cabeça no braço
dele e fechei os olhos. Tropecei numa pedra e caí de cara no chão.
– Por que não me segurou, seu idiota?!
– Eu não vi, tá?
– Meh – falei, com uma careta.
Mas claro que eu não tinha ficado irritada. Precisaria de muito mais
que isso para eu me irritar com minha rabanada de banana.
Foi delicioso. A gente abriu a porta de casa e já foi se despindo.
Corremos para meu quarto. Aquilo foi mágico, especial, tudo.
Quando terminamos, eu me lembrei:
– Tenho prova de matemática no dia 26!
– E você queria se encontrar comigo nesse dia?
– Ainda quero – insisti – mas preciso estudar, senão vou rodar... a
Susana só me emprestou os cadernos dela, mas não sei nada.
– Me deixa ver os cadernos – ele pediu – qual é a matéria?

204
A Gata Mascarada

Ele espiou.
– Mas isso aqui é muito fácil, Ofélia. Eu te ajudo.
– Sério? – perguntei, maravilhada – Brigadinha!
Dei-lhe mais um beijo. E, com toda a paciência do mundo, ele me
explicou tudo. Era difícil alguém conseguir me explicar alguma coisa
direito, porque eu ficava fazendo perguntas óbvias e piadinhas estúpidas
no meio da explicação.
– Então, aqui você nem precisava ter feito todo esse cálculo, porque
é uma matriz de projeção – explicou Demian – ela é quadrada,
idempotente e hermitiana.
– Saúde! Traduza – solicitei.
– A matriz hermitiana é aquela com elementos complexos que
satisfaz a condição de... ah, deixa pra lá – resolveu Demian – isso aqui
nem cai na sua prova. Vou te explicar como se faz, esquece esses nomes
que eu falei.
– Tá vendo esse 1 e esses dois zeros de cada lado, no determinante? –
mostrei.
– Aham.
– Você não acha que parece um caralho e duas bolas?
A expressão séria com que ele me fitou foi muito engraçada. Ele
estava puto da cara. Que divertido!
– Você quer entender isso ou não? Está ao menos tentando prestar
atenção?
– Mas você é tão lindo e sua voz é tão relaxante que estou me
desconcentrando – justifiquei.
– Não faz nem meia hora que fizemos sexo! Esse seu desejo não tem
fim?
– Meu desejo por você é infinito.
Eu joguei os cadernos longe e agarrei-o outra vez. Depois daquela
segunda trepada, ele alcançou meus cadernos e tentou me explicar de
novo. Eu estava entendendo nos primeiros quinze minutos. Até que o
ataquei de novo e tivemos outra foda gostosa.
– Tá, chega Ofélia, agora eu cansei mesmo – falou Demian – não
tenho condições... físicas de te satisfazer uma quarta vez. A terceira já foi
um milagre do Senhor.

205
Juliana Duarte

– Opa, agora foi você que fez uma piadinha com religião! – eu ri – Tô
sendo uma má influência pra você.
– Ainda bem que vou passar o sábado e o domingo inteiros me
confessando na igreja. Agora a gente vai estudar até eu ir embora e não
aceitarei recusas. Se você for abaixo da média nessa prova irá reprovar o
ano. Não vou deixar que isso aconteça. É uma ofensa com uma matéria
fácil como essa.
– Você que não sabe explicar, só complica tudo! Vai cair o Teorema
de Laplace e a regra de Chió e não essas porras aí de hermitiana e o raio
que parta, meu. Não confunde minha cabeça ainda mais!
Enquanto o engomadinho do Demian foi passar o Natal rezando
com a galera da teologia, eu passei o Natal com minha família.
Comemorei com meus pais, minha irmã e o marido dela.
No dia 25, que ninguém tinha nada melhor pra fazer, a não ser o
Demian, que estava fazendo sei lá que enfurnado na igreja ainda, tivemos
uma reunião da Ordem de ocultismo. Contei a eles a notícia sobre a
liberação do Demian.
– Agora que ele foi solto e considerado saudável pelos médicos
depois do tratamento, será que ele pode voltar pra Ordem? – perguntei.
– Não sei, Ofélia – disse Ângela – isso seria pedir muito. Isso tudo
que aconteceu foi recente e ainda estou chocada. Não importa quantos
meses se passem, ou mesmo anos, isso vai ficar marcado em mim pra
sempre.
– Eu sei – baixei os olhos – em mim também. Mas eu me comuniquei
com o espírito da Eugênia e isso me deixou tranquila. Não estou mais
insegura. Eu tenho certeza que ela não odeia o Demian.
– Ela também falou comigo nos sonhos – disse Ângela – no dia que
eu sonhei, tive certeza absoluta de que era real. Mas, após ter passado
tanto tempo, embora eu ainda acredite, sempre resta a dúvida. Então eu
ainda me sentiria culpada de permitir que ele voltasse. Além de que, não
me sinto confortável com ele aqui.
– Ele deseja voltar? – perguntou Gregório.
Cada vez que eu ouvia a voz poderosa de Gregório, eu sentia uma
sensação de força. Ele era uma pessoa que sabia das coisas e eu confiava
no discernimento dele. Por isso, o que ele dissesse soaria bem pra mim.
Como se fosse a melhor decisão a ser feita.

206
A Gata Mascarada

– Não sei ao certo – confessei – mas imagino que sim.


– Se ele quiser mesmo retornar, aguardaremos que venha até nós –
disse Gregório – e terá que ser uma vontade sincera, genuína. A presença
dele aqui será crucial para essa decisão. Teremos uma conversa a respeito
desse assunto. Mas deixemos isso para depois das festividades. No início
do ano marcaremos um horário. Que ele reflita sobre sua verdadeira
vontade nesse período.
Achei aquilo bastante justo e coerente.
– Gregor... quero dizer, mestre, eu tenho uma pergunta – falei,
timidamente – que são os sonhos e as visões? Como saber se o contato
que eu e Ângela tivemos com Eugênia foi real?
– De pouca coisa podemos ter certeza nessa vida – respondeu
Gregório – das poucas que temos, vale a pena agarrar-se a elas. Não
como quem agarra uma ideia e jamais quer abandoná-la, por medo de
perdê-la e ficar sem um chão seguro. É mais como uma mãe que acalenta
um bebê: com amor, cuidado, proteção. Ela pode amar um segundo
filho depois desse e não amará necessariamente um mais que o outro.
Eu gostava do jeito de Gregório para explicar as coisas: ao mesmo
tempo simples e profundo. Diferente de Demian, que fazia força para
complicar e encher de temos difíceis. O que Demian dizia também
possuía certa profundidade e força. Mas algumas vezes eu sentia um
pouco de imaturidade graciosa no meio daquilo tudo: como se ele
encaixasse os termos somente para apoiar o todo, dar mais brilho, por
medo que a explicação não se sustentasse sozinha.
Já Gregório não temia as palavras. Ele não tinha medo da
simplicidade e a buscava. Ele me explicava de uma forma que eu
entendia. Não esbanjava conhecimento. Eu via maturidade nessa atitude.
E a luz de um ensinamento maior do que eu poderia compreender.
Tudo que eu sabia de Gregório eram os discursos em termos simples
que ele nos dava. Eu não conhecia o Gregório erudito e sábio que tinha
conversas complexas somente com Ângela ou outros sujeitos fodões do
ocultismo. Eu ainda não tinha acesso aos grimórios escritos por ele. Mas
eu desejava ter um dia.
Diante dele eu sentia-me pequena. Eu já achava Ângela uma pessoa
admirável. Gregório então, estava a anos luz de mim. Por isso quando eu
estava perto dele acontecia algo raro: eu ficava tímida.

207
Juliana Duarte

Imagine só: Ofélia tímida! É quase inacreditável. Mas perto de


Gregório era inevitável. Ele era respeitável demais. Sério demais. Claro
que eu queria conhecer o Gregório fora da Ordem, tendo conversas
informais, rindo, divertindo-se. Sempre quis.
Mas eu era uma novata. Eu não tinha o direito de conhecer tantos
detalhes assim a respeito da vida pessoal dele.
Eu estava apaixonada por Demian e aquilo era verdadeiro e sincero,
com todas as minhas convicções. Contudo, isso não me impedia de
admirar Gregório como pessoa e mestre.
Eu queria evitar qualquer pensamento do quanto Gregório era lindo e
desejável, pois não queria trair Demian nem em pensamentos, já que eu
não curtia muito traições. Quando fiquei com vários caras na festa eu
não estava namorando Demian formalmente. Mas, ah... algumas vezes eu
tinha umas recaídas quando fitava o corpo de Gregório. Eu via de
relance o braço musculoso dele por baixo da manga e pensava: “Ofelia,
controle-se. Você está com o Demian agora”.
Pensei em fazer uma pergunta sobre a explicação de Gregório a
respeito dos sonhos e visões. Mas logo percebi que a resposta dele estava
tão misteriosamente completa que não havia mais nada a ser dito.
Era difícil conversar com uma pessoa como ele. Não resultaria num
diálogo interessante e sim com ele me dando palestras. E eu
concordando com praticamente tudo. Eu ainda não estava no nível para
um debate empolgante com Gregório.
Meu alívio era que, apesar dos boatos, Demian também não estava.
Ele era só um adolescente metido. Inteligente sim, mas ainda imaturo.
“Não ligo se as pessoas são inteligentes ou não. Só quero estar com
quem amo, com quem realmente me importo” decidi. “Foda-se se
Gregório é mais inteligente, mais bonito e mais velho que Demian. Eu
amo Demian, ele precisa de mim e eu dele. E isso não vai mudar”.
Gregório estava com Ângela. Eu não sabia muito sobre o
relacionamento deles, mas eu sentia que eles combinavam.
“Então assim todo mundo fica feliz. Só falta o Demian ser
readmitido na Ordem”.
– Ofélia.
– Sim? – perguntei, imediatamente, despertando do meu transe.
– Já mandou fazer seu manto? – perguntou Gregório.

208
A Gata Mascarada

– Já. Um manto negro com os detalhes do símbolo da Ordem. A


costureira disse que fica pronto em duas semanas. Vou precisar de
mantos de outras cores?
– Por enquanto não. Temos diferenciação nos graus mais altos e
também um manto de coloração específica utilizado para celebrações
especiais. Mas isso você estudará quando tiver acesso aos grimórios dos
outros graus.
– Certo – eu concordei – e seus grimórios eu ainda não posso ler...
não é?
– Terá ainda que aguardar para isso – informou Gregório – mas você
encontrará arquivos muito interessante no nosso site, para estudo e
análise.
– Já li quase tudo. Eu queria um livro grosso. Um grimório genuíno,
não somente artigos.
– Temos uma coleção tão grande e importante de artigos que a
junção de vários deles já formaria um grimório. E o site é atualizado com
frequência.
– Mas... – como eu ia explicar aquilo sem parecer uma idiota? –
embora eu adore a tecnologia, também tenho certa paixão pelo
ocultismo à moda antiga. Eu sinto falta de segurar um livro físico, de
cheirá-lo, folhear suas páginas e olhar a capa com um título nosso, com o
autor sendo um membro da Ordem.
– Poucos de nossos membros publicam livros – explicou Gregório –
eu mesmo publiquei o meu numa editora pequena e simples, com uma
tiragem limitada. Alguns vão direto numa gráfica, que sai mais barato.
Ou até improvisam livretos ou apostilas para distribuir aos demais
membros. É algo modesto.
– Eu entendo que os livros internos da Ordem já ficarão ótimos com
uma encadernação – concordei – mas não tem algum livro nosso aberto
ao público, que seja encontrado nas prateleiras de ocultismo das livrarias
para as pessoas nos conhecerem?
– Eu e Ângela estamos organizando algo assim – disse Gregório –
tendo o livro publicado, mesmo que seja em uma editora desconhecida,
não é difícil colocá-lo em algumas livrarias.
– Então o desafio é conseguir publicar? – perguntei.

209
Juliana Duarte

– Não – disse Gregório – o verdadeiro desafio é ter tempo,


conhecimento e boas ideias para escrever. Para ser escritor, basta
escrever. Isso é tudo. Para isso, deve-se dominar seu idioma e o tema do
qual tratará.
– Então eu também posso escrever! – falei, animada, dando-me conta
daquilo somente naquele instante – Eu queria lançar um livro sobre
ocultismo. Acho minhas ideias boas e acredito que já tenho uma ótima
base. Pensando agora, me lembro que o primeiro livro de ocultismo que
comprei foi escrito por uma autora brasileira de 17 anos.
– Tente começar escrevendo um artigo para o site – sugeriu Gregório
– claro que ele passará por uma revisão antes de autorizarmos que
apareça por lá. Basicamente correção de erros gramaticais. E também
olharemos para a qualidade do texto em si. Isso é o principal. Afinal, a
parte técnica pode ser arrumada.
– Não tenho muitos erros de português... eu acho – acrescentei,
pensando melhor – só tô viajando ainda com essa nova reforma
ortográfica.
– Todos estamos – garantiu Ângela.
– Eu adorava o trema, era tão chique – comentei – coitado do
pinguim. Acho que o maldito do Demian é o único que tá por dentro
das novas regras. Ele disse que tem uma disciplina em teologia que
ensina a aperfeiçoar o português para monografias. Eu não achei sequer
uma vírgula errada nos artigos que ele fez para o site da Ordem.
– Mas não se trata somente de acertar vírgulas – observou Gregório –
o texto deve possuir riqueza estética: o autor deve saber utilizar
sinônimos, não repetir muitas palavras, montar o texto de forma
ordenada. Não tentar parecer mais sábio do que é, abusando de termos
rebuscados desnecessários. Porém, se ele domina o idioma, não precisa
utilizar apenas linguagem simples para ser humilde. A riqueza linguística
está aí. As regras não são absolutas, pois é belo que cada autor crie seu
próprio estilo de escrever. Mas sempre há coisas que não batem bem em
certos contextos.
– Eu confio nas minhas ideias – garanti – meu domínio da língua
portuguesa não é perfeito. Meu conhecimento de ocultismo não é tão
vasto. Mas eu tenho paixão. E acredito que consigo passar essa paixão
para quem ler.

210
A Gata Mascarada

– Seu domínio da língua e conhecimentos da filosofia oculta


melhorarão muito se você, além de ler, escrever e começar a desenvolver
ideias próprias. É por isso que os professores aplicam provas: para que o
aluno fixe o que aprendeu. A maneira ideal de consolidar
verdadeiramente esse conhecimento é escrevendo.
– Bom, então não posso esperar sentada que eu melhore, até que um
grimório prontinho escrito por mim surja embaixo do meu travesseiro.
– Eu já dei a sugestão – reforçou Gregório – se desejar, converse
com Demian a respeito dos artigos que ele escreveu, para que ele possa
lhe dar dicas de como melhorar. Quem sabe ele tenha até disponibilidade
para corrigir e comentar seus textos.
– Ele vai corrigir sim, porque ele faz tudo o que eu mando. Mesmo
que seja de má vontade.
– Desculpe interromper – disse Fábio – tenho que tomar nota sobre
a parte cerimonial antes que eu esqueça. Além do manto, você possui
outros utensílios de magia para seu uso pessoal, Ofélia?
– Tenho um altar em casa – respondi – bastão, adaga, cálice, cristais,
runas, essas coisas. Por quê?
– Você pode optar por manter uma parte deles aqui na sede, para
facilitar o transporte – explicou Fábio – sabemos que fica complicado
trazer alguns utensílios, como espada e objetos maiores que formos
utilizar com mais frequência. Por isso mantemos uma estante com
armários para que cada membro organize suas coisas.
– Que nem armário do colégio para guardar livros, cadernos e
uniforme de educação física? – perguntei, empolgada – Parece divertido.
Já perdi a chave do meu armário umas três vezes. Tem chave aqui
também?
– Antigamente não tínhamos – respondeu Fábio – até que houve um
caso de roubo. O membro foi expulso já faz tempo, mas desde então
reforçamos a segurança dos utensílios pessoais. Também há os utensílios
públicos, se é que podemos chamá-los assim. Para quem esquece seu
bastão e adaga nos dias de rituais, mantemos uma pequena quantia
dessas coisas ali junto das ervas e óleos essenciais. Mas isso em último
caso, já que poucos gostam de utilizar utensílios que não tenham sua
energia.

211
Juliana Duarte

Eu particularmente adoraria utilizar a espada pessoal do Gregório


para experimentar. Já tinha manipulado a do Demian uma vez e foi
muito interessante. Mesmo depois de já tê-lo conhecido bem, eu ainda
conseguia captar os resquícios daquela energia sinistra de Demian da
qual eu tinha tanto medo quando o conheci.
– Aqui em Brasília é somente uma filial da Ordem, então tanto nossa
biblioteca como nossos materiais são poucos – disse Ângela – em São
Paulo temos um bom acervo de livros para alugar. E até um armário
com mantos. Mas é sempre melhor ter um sob medida. Mais higiênico
também.
A nossa “biblioteca” era o apelido para pouco mais de vinte ou trinta
livros usados de ocultismo obtidos em sebos, que ficavam na estante
perto dos sofás. Aquilo não era praticamente nada. Eu tinha bem mais
que aquilo em casa.
– Estamos aceitando doações de grimórios – lembrou Fábio – novos
ou usados.
– Posso doar um ou dois – ofereci.
Havia algumas apostilas escritas por membros também. E uma gaveta
trancada com livros de grau mais alto da Ordem, que eu não era
autorizada a mexer. Meu sonho era abrir aquela gavetinha. Demian
também tinha curiosidade sobre ela.
– E então, além do meu “uniforme”, qual será meu “material escolar”
de ocultismo? – brinquei.
– Aqui dentro você pode utilizar as vestes que desejar – disse Fábio –
só temos regras para roupas na ocasião de rituais e celebrações formais.
– Eu sei – falei – mas além da espada e do bastão, que são os
principais, queria saber o que mais terei que arranjar.
– Traga o que tiver, para tudo se encontra utilidade, principalmente
quando você possui afinidade com o utensílio – disse Gregório –
geralmente é sugerido que se tenha pelo menos um instrumento
simbólico para cada elemento, para consagrar os novos utensílios sob o
selo das Torres de Vigia. Mas nós requisitamos que, além do material
padrão para cerimônia, tenha consigo uma almofada para meditação e
pelo menos um oráculo.

212
A Gata Mascarada

– Droga, não tenho a almofada – informei – o resto eu tenho. É que


sou muito inquieta para uma atividade parada como a meditação. Vou
ver se consigo uma almofada, então.
– Não é urgente, pois temos almofadas extras aqui – disse Ângela –
mas é bom que um dia tenha uma somente para seu uso.
– Você disse que queria algo para ler, Ofélia – falou Gregório,
mexendo nos livros da estante – eu encadernei as programações de todas
as reuniões dos últimos anos. A partir de agora tentarei realizar o estudo
na forma de apostilas mensais em vez de somente folhas soltas. Assim
ficará muito mais organizado.
Eu tinha curiosidade para conhecer algumas atividades da Ordem,
anteriores à ocasião de minha entrada. Fábio anotava tudo o que
acontecia nos encontros, então eu teria também uma sinopse dos debates.
Infelizmente eu não teria as descrições dos debates do Gregório, já que
isso fazia parte do material de São Paulo. Mas eu acompanharia as
famosas reuniões em que Demian discutia com todo mundo, que eu
perdi.
– Está morando aqui definitivamente, não é, mestre? – perguntei –
Por que não transfere a sede da Ordem para cá?
– Ainda não tenho certeza se é definitivo – disse Gregório – e a
quantidade de membros de São Paulo é incomparavelmente maior do
que aqui. Minha irmã está coordenando admiravelmente as coisas por lá.
Por enquanto deixaremos assim.
Quando cheguei em casa resolvi analisar a tal apostila. Eu ri pra
caramba lendo aquilo. Desde que Demian havia entrado para a Ordem,
as anotações de Fábio tinham se tornado sutilmente mais sarcásticas e
irritadas. Ele mencionava com frequência a respeito de
desentendimentos internos e anunciava que a reunião havia terminado
antes devido à “incapacidade de alguns membros de admitir quando
estão errados”.
Demian se afastava de todos, era orgulhoso e se achava inteligente
demais. O “eternamente incompreendido” provavelmente...
Lá fui eu procurar atualizações no site da Ordem. Aproveitei e dei
uma olhada na seção escrita pelo Demian. Obviamente, só tinha material
antigo.

213
Juliana Duarte

Reli algumas coisas. Eu já não me lembrava do quanto ele escrevia


bem. Algumas vezes eu me esquecia que ele era inteligente daquele jeito.
No outro dia era a minha prova de matemática. Quando terminei,
encontrei Demian me esperando.
– Como se saiu?
– OK – respondi, dando de ombros – acho que passei. Graças ao
meu pãozinho de mel!
– Ainda bem – disse Demian – achei que minhas explicações tinham
entrado por um ouvido seu e saído pelo outro.
– Hoje tenho uma programação diferente para fazermos! – anunciei.
– Mal posso esperar – disse Demian, com um olhar desconfiado.
– Vamos passar o dia escrevendo.
– Essa é nova. Até me surpreendeu.
– Quero escrever um artigo para o site oficial da Ordem de
ocultismo!
– Você? – perguntou ele – Do que você entende para colocar lá?
– Eu leio livros de ocultismo há anos – esclareci – sem falar no meu
invejável desenvolvimento psíquico. Então é evidente que estou super
qualificada para a tarefa.
– Algumas vezes o ocultismo se encontra em livros de outros temas;
ou nem mesmo em livros. Você sabe o que é ocultismo pelo menos?
– Eu sei. Só não consigo colocar em palavras!
– Isso demonstra seu excelente potencial para escrever – ironizou
Demian.
– Vamos sair juntos por aí para enlouquecer?
– Mas você disse que queria escrever!
– Ah, é mesmo – eu ri – vamos lá pra casa, então? Aí a gente dá uma
trepada depois de escrever cada linha, pra estimular.
– Ou a gente podia sair pra algum lugar se você levar um caderno.
– Caderno? Você vive na Idade da Pedra? Vou levar meu laptop, isso
sim. Tô com ele aqui na mochila.
Fomos para uma pastelaria. Fizemos os pedidos e eu abri meu laptop.
– Eu escrevo uma frase ou parágrafo e você continua a história, OK?
– Pensei que fosse escrever sobre ocultismo – observou Demian.
– É um treinamento.
Eu comecei assim:

214
A Gata Mascarada

“Era uma vez um menino de cabelos negros que era muito fechado e misterioso.
Sério demais, tinha uma expressão triste. Até que conheceu um anjo”.

Passei o laptop para que ele continuasse. Demian leu o que coloquei.
Fitou-me de relance e escreveu:

“Esse anjo tinha cabelos negros como o menino. Ela se disfarçava de anjo caído,
mas por dentro seu coração brilhava. Era tão sincera, alegre, divertida. O menino não
conseguia ser assim. Precisava daquele anjo lindo para resgatar a essência da vida”.

Eu me impressionei muito quando li o que ele escreveu.


– Pensei que você fosse fazer um discurso sobre Deus! Jamais
imaginei que fosse falar de mim.
– Eu sei porque você se finge de poderosa – disse Demian – porque
não quer sofrer, finge não se importar. Mas não precisa ter medo, Ofélia.
Pode ser meiga comigo. Eu adoraria ver seu lado mais sensível. Mostra
pra mim, por favor.
– Como você consegue me ler assim, tão facilmente? – perguntei,
surpresa.
– Aos poucos começo a te entender. E é mágico descobrir cada vez
mais um pedacinho de você.
Dei um beijo nele. Sem fazer piadas dessa vez. Só um beijo
apaixonado.
– Uma vez tive um namorado que foi ruim comigo – contei – desde
então, nunca mais fui a mesma. Não queria me entregar pra não sofrer.
– Eu não vou te enganar – disse Demian.
– Sei que não, mas dói...
– O que dói, Ofélia?
– Dói abandonar minha máscara.
Eu não queria explicar. Achava melhor não falar.
– O que o seu ex fez? – perguntou Demian – Você já conhece tantos
detalhes horríveis do meu passado que seria injusto eu desconhecer
completamente o seu. Só agora estou me dando conta que não sei
praticamente nada sobre sua vida. Você finge ser um livro aberto. Há
pessoas que são assim: por fora são completamente seguras e felizes. Por

215
Juliana Duarte

dentro, escondem um segredo. E ele é muito mais bem guardado do que


os melancólicos saberiam esconder.
– Meu ex não fez nada de mais – expliquei – não tenho nenhum tipo
de trauma forte. Ele apenas era um idiota. Eu tinha 13 anos, foi minha
primeira transa. Uma merda.
– Você se arrepende?
– Não – eu ri – falando assim você está parecendo seu psiquiatra.
Sabe, eu não gosto de me arrepender de nada. Tudo é momento,
vivência, aprendizado. E até quando é uma merda, tem que ter algo de
bom. Então eu foco no que é bom pra suportar o que é ruim.
– E onde seus poderes psíquicos entram no meio disso tudo?
– Eu queria ser poderosa para que o mundo inteiro girasse em
minhas mãos. Eu me surpreendi quando ouvi que você já tentou se
matar.
– Quem nunca tentou? – perguntou Demian.
– Sempre fui mais de fazer nascer do que matar – contei – em vez de
cessar o espírito que respirava em mim, eu queria despertar tudo o que
estava vivo lá dentro. Um vício desesperado pela vida, pelo compasso da
respiração.
– Você encontrou as batidas do coração?
– Pulsando em meu peito, mas havia muitas de mim mesma: um
amontoado de Ofélias sapateando em meus ossos, gritando em meus
ouvidos. Os sussurros dos espíritos me mantinham acordada. Eu
descobri que tudo isso era eu.
– Então você inventou tudo isso? Mas como, se os poderes eram
reais?
– Não inventei. Apenas transformei. Liguei os pontos. Somei dois
mais dois. É fácil depois que se descobre como faz.
– Conte-me mais – pediu Demian – isso me interessa.
– Existe uma teia no mundo, que desenha a si mesma. Você agarra
pedaços. São como trilhas numa floresta. Há árvores por todos os lados,
assim como há pessoas. Até que as árvores são cortadas. Ela ainda é uma
floresta, mas com outro nome.
– Você se refere aos anjos caídos?
– Eu me refiro a qualquer coisa que possa cair ou levantar – foi
minha resposta – então você enrola uma corda: a mais colorida e

216
A Gata Mascarada

brilhante, ou aquela que se camufla de verde e marrom na floresta. É tão


fascinante que vamos morrer. Mas nós nunca nascemos. Então o
fascínio se converte em glória.
– Perdi a linha das metáforas – confessou Demian.
– Eu não estou viva – revelei – e nem você. Porque nunca nascemos.
E como nunca existimos, não podemos morrer.
– A alma imortal?
– Não, somente a vontade humana. A vontade de existência e de não
existência. Como mortais, tememos a morte. E como imortais nos
sentimos presos, engaiolados. Como se resolve esse enigma?
– Com uma música.
– Com uma máscara de gás – respondi – estamos sufocados. A
embalagem do meu corpo quer dançar. Mas preciso do ritmo.
– Como eu disse, uma música – insistiu Demian – um cálculo. O
algoritmo da vida.
– Não quero estar viva e nem morta. Nem mortal e nem imortal.
Porque existe um mundo que é possível acessar quando você está nesse
limite.
– Eis o princípio da meditação. Qual a novidade, Ofélia?
– Eu queria entender.
– Não precisa entender. Só sentir e viver.
– O maior mistério para mim não é a vida, a morte, a verdade,
grandes segredos; e sim a beleza.
– Por isso artistas são tão irritantes – disse Demian – numa tentativa
tola de tocar a perfeição do Grande Artista.
– A beleza da vida, a beleza da morte. Não notou que tudo que
fazemos se baseia na beleza? Escolhemos aquilo que nos pareça mais
poético, romântico, violento, que desperte sensações mais poderosas.
– Você criou um alter ego – concluiu Demian – ou muitos. Eu não
consigo enxergar onde está a verdadeira Ofélia por baixo disso tudo.
– Eu queria passar a imagem de alguém popular, confiante e
pegadora – expliquei – só porque isso é legal. E nesse teatro, por
brincadeira, talvez eu tenha me transformado nisso tudo por engano. Até
achei engraçado. Mas no fundo somente eu sabia quem eu realmente era.
– Uma menina solitária, insegura, em busca de amor e felicidade –
respondeu Demian – não é assim com todos nós?

217
Juliana Duarte

– Talvez. Olha, esse papo tá muito sério. E você tá com ketchup na


bochecha.
Lambi a bochecha dele.
– Você tá triste? – perguntou ele, estranhando – Foi culpa minha?
– Tenho que te contar uma coisa...
Mas antes que eu falasse, ele me estendeu um pacotinho de presente
rosa.
– Feliz Natal – ele disse.
Surpresa, abri. Era o chaveiro de um gatinho.
– Adorei – falei – e aqui está o seu.
Ele abriu o pacote. Era um livro. Ele apenas me lançou um de seus
olhares de esguelha e eu ri.
– “A Bíblia Satânica”, minha nova leitura de cabeceira – ele disse.
– Tá ligado no LaVey, né?
– Infelizmente estou – falou Demian – mas o que você ia me contar
mesmo?
– Nada demais. Só que estou com sífilis.
– Quê? – perguntou ele, num susto.
– Tô de sacanagem.
– E você ainda brinca com isso?
É, eu brinquei. Um mês depois, Demian recebeu a notícia de que eu
estava no hospital. Ele foi me visitar. Eu não estava muito bem.
– Mimi – falei – você veio.
Ele sentou-se ao meu lado e segurou na minha mão.
– Vou tentar adivinhar – ele disse – isso foi resultado das suas
dezenas de transas sem camisinha nas festas.
– Bingo.
Ele não gostou do que ouviu. Tampouco da minha tranquilidade.
– Você pode ter me passado isso, sabia?
– Não – eu garanti – sempre usamos camisinha. É improvável.
– Mesmo assim, vou fazer exame de sangue em breve.
Depois disso, ficou quieto por um tempo, me observando.
– Sua aparência está péssima.
– Eu tô feia? – perguntei, preocupada.

218
A Gata Mascarada

– Não, está até poético. Mas você parece tão fraca e acabada. Fico
triste de te ver assim. Por causa de uma negligência da sua parte. E não
venha me dizer que dessa vez não se arrepende.
– Não. Nem que eu morra.
E eu sorri quando disse isso.
– Você é tão forte assim? – ele perguntou.
– Não – senti meus olhos marejados; mas não permiti que as lágrimas
escapassem – mas me sinto muito forte quando digo. Esse é o motivo.
– Você realmente pode morrer?
Eu dei de ombros.
– O risco não é zero – informei – mas posso ficar com sequelas
graves. Isso se eu não tratar, é claro. Mas sei lá. Eu me sinto mais viva do
que nunca nessa cama. Levei um susto quando passei mal. Achei que
fosse morrer mesmo. Mas teve uma coisa que me deu mais forças que
tudo.
– O quê?
Mostrei a ele o chaveiro de gatinho. Ele segurou na minha mão com
mais força.
– Quero ficar com você. Não vou sair desse quarto enquanto você
não sair.
– Que bobagem. Logo estarei boa. A doença não se encontra em
estágio avançado. Mas essa febre tá uma merda.
– Você tá com voz rouca.
– Sexy, né? – eu ri.
Alguma coisa estava errada. Eu não melhorava logo. Os sintomas só
aumentavam. Os dias passavam.
– Tem certeza de que você não pegou outras doenças além dessa? –
perguntou Demian, para se certificar.
– Como vou saber? Eu fodi com tantos que perdi a conta. Algumas
doenças podem se manifestar sei lá daqui a quantos meses ou anos.
Eu estava com manchas e feridas pelo corpo. E aquilo coçava como
o inferno. Eu me sentia nojenta. Mas o Demian continuava lá.
– Você vai perder suas aulas, idiota. Já se atrasou nos estudos. Pode
perder sua bolsa.
– Tem razão – ele disse – vou voltar a frequentar as aulas, mas logo
depois retornarei. Pode ser assim?

219
Juliana Duarte

Eu fiz que sim.


Minha mãe vinha me visitar bastante. Mas quando Demian não estava
perto, eu me sentia sozinha.
Eu não tinha vontade de comer, pois sentia o estômago queimar.
Fiquei enjoada e vomitei. Eu fazia novos exames, pois os médicos
achavam que eu havia desenvolvido outra doença decorrente daquela.
Foi só no dia que tive uma diarréia terrível que eu finalmente acordei.
Meu corpo inteiro doía. Eu achava que fosse desmanchar. Eu chorei e
minha mãe me abraçou.
Somente naquele instante eu senti verdadeiro arrependimento. Pois
eu sabia que a culpa tinha sido totalmente minha.
Algumas vezes eu era descuidada. Queria viver perigosamente. Eu me
esquecia de um detalhe crucial: sim, eu ia morrer um dia, mas a questão
não era aquela. Se eu pegasse uma doença grave e sofresse por
circunstâncias além das minhas forças, era uma coisa. Mas se tivesse sido
eu a causar aquilo, a sensação era muito pior.
Se eu desejava me sentir psicologicamente bem, mesmo doente, eu
queria que a natureza me levasse quando fosse a hora. Não que eu
abreviasse a minha existência porque estava entediada.
Eu entendi que a dor de algumas doenças ultrapassa o limite que eu
entendo como tédio e tristeza. E houve momentos em que eu quis
morrer. Só para parar de sentir aquela dor.
– Demian! Por favor, me abraça.
Eu chorei nos braços dele. Então eu entendi como fazia toda a
diferença ter uma pessoa especial na minha vida. Mais de uma. Porque
meus pais estavam lá. A Pâmela me visitou. Minha irmã.
– Levei um susto hoje quando eu fraquejei – contei a ele – teve uma
hora em que pensei: “é melhor eu morrer do que sentir essa dor por mais
tempo”.
– Ofélia, eu não sei o que você está sentindo – confessou Demian –
não posso medir a intensidade da sua dor. Mas eu já peguei uma doença
grave quando era criança uma vez. Sabe como eu aguentei?
– Rezando? – perguntei.
– Eu rezava sim, mas não era isso que eu ia contar. Eu aprendi que a
natureza é incrível. O nosso corpo está do jeito certo. Perfeito em sua
suposta imperfeição. Porque somente Deus sabe o que é perfeito. Se Ele

220
A Gata Mascarada

nos criou dessa maneira, é porque existe uma sabedoria incrível em cada
dor e prazer que sentimos, que está além de nossa compreensão. A nossa
existência é a melhor que pode haver. Existe um tipo de equilíbrio
fantástico por trás de tudo.
– Me desculpe, Demian, mas não consigo ver nada de fantástico em
apodrecer nessa cama, toda fedorenta, feia e sentindo o inferno no corpo.
– Isso não é defeito da natureza e sim uma falha nossa em entender
porque as coisas são dessa maneira – ele explicou – algumas dores do
corpo acontecem para que uma parte necessária da mente desperte. E
algumas dores da mente devem despertar partes do corpo. Mas isso não
é uma punição. Deus não está “punindo”. E isso tampouco é mau karma.
Você entende o que é?
– Bom karma que não é – eu disse – e nem bênção.
– Aí que está. O problema está em nossa ignorância em dividir o
mundo em recompensas e punições. Existe beleza na feiúra,
simplesmente porque não há o feio. Há apenas nossa inabilidade em
enxergar a beleza de todas as coisas: desse mundo perfeito criado por
Deus. As coisas que aqui existem só podem ser bonitas.
Tentei ver beleza na minha doença. Qual seria a moda no universo
hospitalar? Misteriosamente, uma parte de mim amava a morte, a
tragédia, o repugnante, a feiura. E graças a esse detalhe, eu tinha forças
para descobrir novas belezas.
– Como você pode dizer algo assim se a força da sua religião está no
maniqueísmo? – desafiei-o.
– A força está em ver o toque de Deus em tudo – disse Demian –
Lúcifer veio de Deus. Era seu anjo mais belo. Ele caiu. E levantou-se
fortalecido. Para que Deus possa reinar, precisa haver o adversário.
Satanás ofereceu o fruto proibido, para que houvesse a jornada e a vida:
escalar a Árvore da Vida para alcançar o entendimento. Lembre-se: o
Senhor é onipotente, onipresente e onisciente.
– Então está presente aqui e agora – concluí – sabe que estou
sofrendo e tem poder para interromper meu sofrimento. Por que não o
faz?
– Ofélia, embora suas entranhas gritem isso, o sofrimento que você
sente agora não é a dor física. É somente sua incapacidade de
compreender a perfeição dessa dor.

221
Juliana Duarte

– Besteira. Então por que nós corremos para o prazer e fugimos da


dor?
– Porque o prazer só faz sentido com a dor. Só podemos desfrutar o
prazer em plenitude quando existe uma dor de medida equivalente
atravessando a vida. Não algo controlado e previsível. Um cálculo divino
e exato, mas que não é mensurável pela compreensão humana.
– Se a vida já é belíssima e perfeita com todos os seus prazeres e
dores, Deus tem que nos salvar do quê?
– Da nossa ignorância em não enxergar a beleza e a perfeição –
explicou Demian – há gente passando fome, há tragédias naturais.
Também existe ignorância humana nisso tudo, quando o humano causa
o desequilíbrio, na tentativa de fazer-se Deus. O ser humano tenta
governar o mundo material, mas não alcança a justiça. E assim os
direitos humanos são violados. Enquanto existir uma mão humana que
não teme o Senhor, haverá tristeza.
– Por que temer o que é perfeito e justo?
– Ofélia, “temer” não significa somente sentir medo. Também é ter
respeito e reverência pelo magnífico. Quando você consegue sentir a
perfeição de Deus até em coisas que julgamos imperfeitas, como doença,
velhice, dor e morte, entendemos o que é a vida. Sabe, existem muitos
seres no mundo, não somente os humanos. Não podemos achar que a
perfeição da natureza gira ao nosso redor. Ela deve sorrir para toda
criatura, pois Deus ama todos em igual medida: o bom e o mau. Aos
olhos Dele, as crianças humanas ainda não aprenderam a viver. Elas
sofrem porque a mente falha em enxergar a beleza da obra de arte da
vida.
– Quando passo muito tempo sem sentir dor, seja física ou emocional,
vem o tédio – falei – somente depois de uma dor eu consigo acordar
para a vida uma vez mais e enxergar a beleza de coisas simples como ter
duas pernas ou simplesmente respirar. Mas eu pensei que Deus
garantisse o paraíso aos bons e enviasse os maus para o inferno.
– O que são os bons e os maus? – perguntou Demian – o “bom” é
aquele que vê a beleza. Então é possível viver uma vida mais alegre
quando tudo ao nosso redor é lindo, mesmo as coisas consideradas feias
pelo senso comum dos cegos. O “mau” é apenas aquele que vê feiúra em
tudo, ou numa parcela das coisas. Daí nasce o preconceito, a tristeza, o

222
A Gata Mascarada

ódio, a guerra. Deus não envia ninguém ao inferno. O próprio ser


humano envia a si mesmo para onde quer, mentalmente. Ou seja,
Satanás, a ignorância. Ele sofre seu inferno quando não entende. Mas
pode experimentar o céu até na dor, pois ela não o atinge. É aí que o ser
humano se faz uno com o Senhor.
– Esse papo todo de Lúcifer e Satanás são metáforas para a ilusão e a
ignorância? – perguntei – Então eu estava certa em meu discurso sobre a
beleza.
– Não são “metáforas” – corrigiu Demian – ou por acaso você
considera sua dor física uma metáfora?
– Não, ela é bem real.
– Os adversários de Deus são bem reais. A ignorância cria vida como
uma quimera enquanto vivemos esse pesadelo. Até que abrimos os olhos.
Por isso Jesus morreu por nós: para que, com os olhos bem abertos,
víssemos que Jesus não sofria na cruz. Porque independente de todos os
sofrimentos de Sua carne, Sua mente mantinha-se firme no Senhor.
Porque Jesus é o Senhor feito carne. Ele não tem pecado. Porque o
pecado é fruto da ignorância.
– Então a Bíblia é escrita em uma linguagem que divide bem e mal,
Deus e Satã, somente para facilitar o entendimento – concluí – pois no
fundo Deus é a sabedoria e Satã é a ignorância: ensina enxergar a vida
com tudo que ela contém como dádiva e alegria e não como maldição e
tristeza. No budismo existe um ensinamento parecido quando se fala do
véu de Maya, a ignorância, que nos impede de chegar ao nirvana.
– Quando um crente em Deus coloca toda a sua confiança no Senhor,
ao passar por uma doença, dor ou um período extremamente crítico, ele
obtém a paz mental. Pois a fé é a chave da doutrina cristã. Crer na
existência de Deus como salvador também é crer na possibilidade
humana de ver o mundo com os olhos da sabedoria, que enxergam
perfeição e amor em todas as coisas. Nós não somos perfeitos. Mas com
o Senhor no coração, nossa vida se torna muito mais plena, alegre e
pacífica. As coisas ficam mais leves. Há esperança.
– Eu não gosto de chamar isso de Deus por causa das tantas pessoas
que deturparam o significado real da coisa toda. Prefiro pensar que eu,
sozinha, posso alcançar o poder de superar minha ignorância, pela minha
própria força.

223
Juliana Duarte

– Meu docinho, você não precisa estar sozinha – ele segurou minha
mão – eu nunca me sinto só, porque Deus está sempre comigo. Você
acha que Deus disse “crescei e multiplicai-vos” porque queria que
lidássemos sozinhos com isso tudo? Ele sabia que seria desafiador.
Nunca existe um obstáculo maior que nossa força para o superarmos.
Deus jamais inventou desafios impossíveis. O quebra-cabeça da
existência sempre se encaixa em algum lugar. Mas é muito complicado
que uma mente humana resolva isso sozinha. Por isso as pessoas se
unem. O destino do ser humano já estava definido desde o início de
nossa criação: o amor. Não há como fugir disso. Porque ele é a sabedoria.
E é Deus.
– Tudo isso soa lindo, mas não faz parar minha dor de cabeça.
– E quando a pessoa que você ama segura a sua mão? – perguntou
Demian.
– Então a dor diminui um pouco – confessei – e tem uma parte do
meu coração que se aquece, pois me sinto protegida.
– Eu não poderia te proteger assim se você estivesse sempre segura –
disse Demian – e caso se sentisse completa estando só, como nasceria o
amor?
– Demian... eu detesto quando você é inteligente como um gênio
maldito – observei – assim me deixa sem palavras. Agora entendi porque
Gregório respeita seu catolicismo, sua crença absoluta em Deus. Porque
ele sabe que existem interpretações extraordinárias por trás de grandes
religiões. Não somente o que especulações e superstições clamam. Mas,
me desculpe, não quero me converter.
– Não estou tentando fazê-la acreditar em Deus. Estou te explicando
o conceito que há por trás disso para que você crie sua própria versão,
lógica e estética, para o conceito em si, conforme lhe seja mais
confortável. Mas é fundamental que a essência permaneça: o amor, a
alegria.
– No começo do seu discurso você mencionou algo sobre ter força
para suportar uma grande dor – lembrei – me explique essa parte, pois
preciso dela agora.
– Quando existe uma dor física imensa isso é um alerta do corpo,
mostrando que algo está errado. É a natureza demonstrando novamente
como é sofisticada. O aviso é dado. A dor aumenta. Cada vez mais, para

224
A Gata Mascarada

que se faça logo algo a respeito, urgentemente, pois constitui ameaça à


existência. Mas o corpo é inteligente. Quando o sistema nervoso está
sobrecarregado, o corpo desmaia, a dor para subitamente, diminui de
intensidade, se transforma. Algo necessariamente acontece, porque o
corpo é sábio. E, finalmente, há a morte, que também é um tipo de
libertação engenhosa da dor.
– Então o meu consolo quando sentir dor extrema será lembrar que
há um sentido – refleti – que aquela dor não é punição, não é defeito,
azar ou erro. É a perfeição da natureza. E meu entendimento me dará
tranquilidade.
– Eu acho complicado chegar a essas conclusões sem a majestosa
egrégora divina – disse Demian – quando se está em meio à dor, é difícil
formar todos esses raciocínios. Se eu pronuncio apenas: “Deus! Entrego-
me ao Senhor”, subitamente minha mente se enche de paz e meu corpo
transborda uma energia especial.
– É mais rápido mesmo. Acho que só não falo com Deus na hora da
dor por teimosia e orgulho. Esse truque funcionaria bem.
– Esse “truque” funciona ainda melhor quando não se vê o processo
como um truque e sim como uma comunhão genuína – disse Demian.
– Então você admite que Deus é um truque para você se sentir bem –
comentei, triunfante – e se inflama de orações para realizar uma lavagem
cerebral auto induzida.
– É nesse ponto que eu e você nos diferenciamos nesse aspecto da
crença – disse Demian – pois para mim Deus é a verdade que sustenta a
lógica. E para você a lógica é a verdade que sustenta Deus.
– Porra, Demian, para de me humilhar com essa sua inteligência
irritante – reclamei – eu não vou admitir que sua solução é melhor que a
minha. Somos pessoas diferentes. Eu me sinto mais livre sem Deus, sem
sentir culpa ou me controlar para reforçar ou evitar certos atos.
– Não a condeno por isso. Não sei ao certo o que se passa no interior
da sua mente, então somente você poderá julgar qual é a melhor maneira
de ter uma vida mais feliz. Mas mesmo sabendo que você não acredita
em Deus, eu rezo por você.
– Por alguma razão estranha, só em saber que você reza por mim já
me sinto melhor – confessei – mesmo eu não acreditando em Deus, sei
que pode haver falha na Matrix e haver um tipo de Deus ex machina

225
Juliana Duarte

salvando minha vida no último momento com um milagre por causa


dessa sua reza. Engraçado, não?
Aos poucos fui melhorando. Eu não estava acostumada a ficar
doente daquele jeito, por isso me assustei tanto e pensei que fosse
morrer. Na verdade estava ainda no início da manifestação da doença e
com antibiótico eu melhorei. Mesmo assim, eu ficaria de olho.
Ainda bem que eu não passei aquilo para o Demian, pois eu me
sentiria extremamente culpada. Os resultados dos exames dele
mostraram que estava tudo normal.
Eu me senti tão bem quando me recuperei! Queria pular, dançar,
gritar, dar gargalhadas! A vida nunca me pareceu tão deliciosa.
– Demi, quer saber de uma coisa? – falei – Eu não preciso ser tão
forte assim. Não vou iniciar nenhum treinamento rigoroso, físico e
mental, para ser capaz de aguentar com mais resistência momentos ruins.
Sejam eles ruins mesmo ou ignorância minha em entender que há um
sentido maior naquilo tudo, dane-se. Você e as pessoas especiais para
mim estarão comigo quando eu estiver triste ou feliz. Eu confio nas
pessoas, em você, no mundo. Então, tudo ficará bem. Sempre. Pois
mesmo quando não houver a presença física das pessoas, o amor que
sinto por elas estará no meu coração.
– Então você entende Deus, só chama por um nome diferente –
concluiu Demian.
– Não enche meu saco, tá? – comentei, aborrecida – A propósito,
não vai voltar para a Ordem de ocultismo? Até o Fábio já está com
saudades da sua chatice. Ele não tem mais com quem bater boca.
– Que tragédia – comentou Demian, fazendo pouco caso – posso
pensar no assunto. Sei lá, sendo completamente sincero, eu tô com medo
de olhar na cara da Ângela de novo. Na verdade eu morro de medo disso.
– Seu covarde! – exclamei – Deus está com você e eu também vou
estar. Então larga de ser bundão e vamos logo pra lá. Quero ter um
ombro pra me escorar quando os discursos ficarem monótonos.
Consegui arrastá-lo, embora ele ainda resistisse. Foi uma surpresa
enorme para todos quando viram Demian passando pela porta.
Gregório, Ângela, Fábio, Jonas, Raquel e Laura estavam presentes.
Nos velhos tempos Demian caminhava por lá com ar de superioridade,

226
A Gata Mascarada

ignorando a todos, discutindo e posando de fodão. Dessa vez foi bem


diferente.
Demian entrou lá de cabeça baixa. Claro que ele estava se cagando de
medo da reação da Ângela ao vê-lo. E seria difícil dirigir-se a ela.
– Mestra, não sei o que dizer – ele começou assim – eu sinceramente
sinto muito, de todo meu coração. Eu abriria meu peito com uma faca e
lhe mostraria meu coração pulsante agora mesmo para demonstrar a
dimensão de meu arrependimento, se isso não ocasionasse em minha
morte.
“Nossa, que melodramático!” pensei. Será que Ângela ia se comover
com aquilo? Quando espiei a expressão dela, imediatamente concluí:
“Vejo que não”.
Demian aguardava seu julgamento. Até que Ângela falou:
– Você não sabe o que dizer. Quanto a mim, eu teria um discurso
enorme a fazer. Mas tais palavras não fazem mais sentido. Não quero
reaver mais briga e lembranças dolorosas.
– Seria uma honra se eu fosse aceito como membro da Ordem uma
vez mais, caso isso ainda seja possível.
– Permitir o retorno de membros anteriormente expulsos é ruim para
nossa credibilidade – falou Ângela – mas nos importamos mais com
nossos membros do que com nossa imagem. Irei dar-lhe uma nova
chance, mas ficarei de olho.
– Muito obrigado, mestra – disse Demian – foi uma decisão
imensamente caridosa. Darei o meu melhor em contribuir para o grupo e
possuir comportamento exemplar.
– Esperamos que sim. Isso será atentamente observado.
Eu e Demian nos sentamos. Gregório preparou-nos para a palestra
do dia, distribuindo as apostilas.
– Hoje eu gostaria de falar a respeito de um retiro que realizaremos
em breve – informou Gregório – será algo bastante tradicional, com
palestras sobre a filosofia oculta. Os discursos serão intercalados por
momentos de prática: evocação, meditação, divinação, o de costume. A
programação completa é detalhada na página 5.
Eu ainda não havia participado de nenhum retiro da Ordem.
Aparentemente, Demian havia retornado no momento certo. Iríamos

227
Juliana Duarte

aproveitar o feriado para a realização de um retiro prolongado. Eu já


estava empolgada.
Recentemente havia ocorrido a fantástica estreia de Ofélia no 3º ano
do ensino médio! Meus professores já estavam enchendo o saco desde a
primeira semana de aula com a história do vestibular. Aquele retiro ia
afastar tais preocupações da minha mente.
– Como veem, teremos quatro dias inteiros disponíveis, então muito
poderá ser alcançado nesse período – prosseguiu Gregório.
– O retiro será feito aqui? – perguntei.
– Somente os dois primeiros dias – respondeu Gregório – nos outros
dois iremos nos mover para a residência de uma velha amiga minha.
Infelizmente Eugênia não estava mais lá para eu e ela trocarmos
risinhos satisfeitos com a possibilidade incrível de dormir sob o mesmo
teto que Gregório num retiro. Sinceramente, sem ela já não tinha tanta
graça ter fantasias com Gregório. Que ele fosse feliz com Ângela. Eu já
tinha a pessoa mais especial do mundo comigo.
– Posso saber o que exatamente iremos evocar? – perguntou Demian.
– Isso faz parte da surpresa dos últimos dois dias – respondeu
Gregório, misteriosamente.
Pelo visto, pouco seria dito além do que era informado na
programação. As atividades dos dois primeiros dias estavam bem claras.
De resto, pouco sabíamos. E todo aquele mistério me deixava ainda mais
entusiasmada e curiosa. Devia ser algo grande, importante. Algo que
mudaria nossa visão da magia, talvez?
– Não gosto de surpresas – comentou Demian – é desconfortável
não possuir o controle da situação.
– O encanto da magick está exatamente em trabalharmos nas
fronteiras do desconhecido – observou Fábio – para que exista o
encanto com o extraordinário.
– Esse tipo de visão está completamente equivocado – disse Demian
– típico de magistas fúteis que se encantam somente com a aparência
requintada dos utensílios e aspectos ritualísticos. O desejo de assombrar-
se, de deparar-se com fantasmas e levar grandes sustos. Ora, a que vem
isso? O magista sério é compenetrado e exato. Ele prevê seus resultados.
Não é a toa que seu talento divinatório é notável.

228
A Gata Mascarada

“Lá vai ele” pensei, desapontada. Demian disse que ia se comportar e


já exalava arrogância nas primeiras frases pronunciadas após sua
readmissão na Ordem.
– Não vejo qualquer propósito nessa discussão e tampouco prevejo
um desfecho atraente para tal debate – disse Fábio – o fato é que haverá
o elemento da surpresa e o Frater Demian terá que aprender a lidar com
ele.
– É curioso o quanto certos magistas agradam-se de acrescentar
termos em latim no diálogo quando não há a menor necessidade de seu
uso, a não ser para um eventual sarcasmo pitoresco – observou Demian.
– Senhores – falou Gregório – não desviemos do tema central.
– Meu comentário é relevante inclusive para medir a qualidade
daquilo que será apresentado no retiro – disse Demian – se focará na
forma ou conteúdo. Portanto, tecnicamente não desviei do assunto em
questão.
“Muito esperto de sua parte retrucar as palavras do mestre da Ordem,
para comprar sua expulsão iminente” pensei, pasma ao ver que Demian
estava com tantas saudades de bater boca que o faria até com Gregório,
por aparentemente nenhum motivo.
A campainha soou. Fábio levantou-se para atender. Ele retornou
acompanhado de um garoto. Fiquei boquiaberta quando vi quem era.
– Alfredo! – exclamei – Que está fazendo aqui? Como encontrou esse
lugar?
– Desculpe, eu te segui – confessou ele.
Eu estava pasma. E Demian ainda mais.
– Você já mencionou o nome dele antes – comentou Demian – é
quem imagino? Seu ex-namorado é um stalker?
– Ofélia, explique isso – exigiu Ângela – solicitamos que não
repassasse esse endereço. Essa é uma associação privada. Não
permitimos a presença de gente de fora.
– Alfredo, eu falo com você depois – eu disse – agora estamos no
meio de uma reunião importante.
– Não queria ser indelicado, mas não vim até aqui para falar com
você, Ofélia – informou Alfredo – lembrei que você me disse uma vez
que fazia parte de uma associação mística misteriosa que mexia com
espíritos e criaturas sobrenaturais.

229
Juliana Duarte

– Somos uma associação caça-fantasmas – zombou Demian,


divertindo-se – e realizamos pactos com os mortos e possessões para
assombrar os vivos.
– Preciso assombrar uma viva – informou Alfredo – pode me
emprestar um de seus fantasmas, senhor?
– Não me diga. Que adorável! – Demian esboçou um leve sorriso –
O problema é que meus espíritos cobram um alto preço. O pagamento
será metade de sua alma devorada após amaldiçoar sua vítima.
– E o que acontece com a outra metade da alma, guru? – perguntou
Alfredo, temeroso.
– Ela reencarna no verme que rói a carne do amaldiçoado – informou
Demian, prontamente.
– Parece meio perigoso – decidiu Alfredo – prefiro uma operação
com menos riscos.
– Ah, então você é do tipo que preza sua segurança. Nesse caso, foi
uma má ideia atravessar aquela porta.
Demian passou o braço por trás de meus ombros, puxando-me para
perto de si. Ele não fazia aquilo normalmente. Óbvio que era para
indicar ao Alfredo que eu era “propriedade” do “guru”.
– Quem está querendo amaldiçoar? – perguntei, curiosa.
– Alice – ele respondeu – ela terminou comigo.
– E em que circunstâncias terríveis isso aconteceu para ela merecer
uma maldição? – perguntei, intrigada – Nós já terminamos duas vezes e
eu avacalhei um pouco com você. Não fui amaldiçoada. Então por que
isso agora?
– Você é poderosa, Ofélia – falou Alfredo – sei que mexe com
espíritos, então tenho medo de tentar algo contra você. Mas não se
preocupe, não quero machucar sua amiga e sim trazê-la de volta para
mim.
– Esse cara veio até aqui em busca de uma magia de amarração? –
perguntou Demian, incrédulo – Seja homem e conquiste-a de volta na
raça em vez de ir atrás de um feitiço que você encontra até em revista de
fofoca.
– Na verdade eu estava pensando em algo mais pesado para trazê-la
até mim – disse Alfredo – fiquei com medo de mexer nesses espíritos

230
A Gata Mascarada

devoradores de alma que você mencionou. Mas será que uns demônios
básicos não fazem o serviço?
– Claro, é bem menos arriscado – zombou Demian – em vez de ter
sua alma devorada, ela será enviada diretamente ao inferno.
– Ela é católica, então imagino que seja mais fácil utilizar demônios
para manipulá–la... – justificou Alfredo.
– Evidentemente, o Deus dos católicos é fraco demais para lidar com
um “demônio básico” – observou Demian, com ironia.
– Garoto – Gregório dirigiu-se a Alfredo – se busca mexer com os
demônios, te indico essa pessoa.
Ele entregou-lhe um pedaço de papel. Alfredo leu o que estava
escrito:
– Sancha, líder da ODE, Ordem dos Demônios do Éden, satanismo
tradicional. Isso é sério?
– Não me diga que iremos realizar os últimos dias de retiro na sede
da ODE? – perguntou Demian, incrédulo.
– Exatamente – informou Gregório.
– Então Sancha é sua “velha amiga”? – perguntou Demian,
desconfiado – Ela é minha inimiga mortal!
– Estou surpreso que a conheça.
– Debato com ela seguidamente no FoRCS. Ou melhor, discuto.
– O Fórum do Ringue de Cristãos e Satanistas, aquela lista de
discussão apelativa e vulgar? – perguntei – Eu jamais imaginaria que você
perdesse tempo em algo assim. Só tem barraco por lá. Não foi de lá que
surgiram aquelas histórias falsas sobre a OCB, uma Ordem satânica
fictícia em que os membros sacrificam animais e jogam os neófitos no
esgoto?
– Eu não conheço Sancha pessoalmente, só pela internet – informou
Demian – sério, se eu me encontrasse com ela na vida real, eu juro que
chamaria a galera da teologia para humilhar a argumentação LHP dela.
– Então faça – disse Gregório – chame-os.

231
Juliana Duarte

Capítulo 7

– Esse manto é lindo! Simplesmente maravilhoso! Super fashion!


Eu dei vários giros com meu novo manto negro, fitando-me num
espelho de corpo inteiro.
– Tô bonita? – perguntei, com uma carinha de quem queria ser
elogiada.
– Você tá sempre linda – disse Demian.
– E você tá um gatão de manto. Me dá aqui tua espada.
– Pare de manipular meus utensílios – reclamou Demian – gosto que
fique somente minha energia neles.
– Mas eu sou a namorada, então tenho o direito de segurar tudo o
que eu quiser – comentei, com um tom malicioso.
Peguei a espada da mão dele. Joguei a minha pra ele.
– Pensa rápido! – alertei.
Ele deixou cair no chão.
– Cuidado com meu utensílio mágico! – falei, ofendida – Você jogou
minha espada no chão!
– Mas quem jogou foi você! – exclamou Demian, recolhendo a
espada, levemente aborrecida.
– En garde! – exclamei, atacando-o com minha espada.
– Ei, vocês dois – alertou Fábio – parem de brincar. Não é porque o
mestre não chegou ainda que vocês podem bagunçar.
– Eu não fiz nada – defendeu-se Demian – Ofélia, pare de ser infantil.
Estamos na sede da Ordem, então se comporte.
Eu bocejei.
– Por que o retiro precisa ser tão cedo? – esfreguei os olhos – Vou
dormir na meditação. Tô morrendo de sono.
– Não parece – observou Demian – você não para quieta. Espero que
não faça nada absurdo quando estiver completamente desperta.
Nem liguei. Continuei fuçando os utensílios de Demian. Passei a
brincar com o tarot dele.

232
A Gata Mascarada

– Não toca no pêndulo! – avisou Demian – Eu limpei e deixei no sal


grosso, então não estrague tudo.
Abri meu armário. Peguei meu caderno de anotações, meu grimório
pessoal e um estojo com lápis, borracha e caneta. Alcancei também meu
saquinho de runas e minha nova almofada para meditar, que era muito
macia e bonita. Eu provavelmente ia cochilar assim que me sentasse nela.
Reunimos o material e nos dirigimos até a sala central ritualística
enquanto aguardávamos Gregório e Ângela. Abri meu laptop e mostrei
para o Demian o artigo que eu estava preparando para o site da Ordem.
– Escreveu sobre poderes psíquicos – comentou Demian – bem a sua
cara. Só dei uma olhada, mas parece bom.
– Obrigada – eu disse – estou me esforçando.
Quando Gregório e Ângela entraram na sala, fechei meu laptop. Eles
também estavam trajados em mantos cerimoniais. Eu estava muito
ansiosa. Nunca tinha participado de um retiro antes.
Gregório distribuiu as apostilas.
– Bom dia – cumprimentou Gregório – sejam bem-vindos ao
primeiro retiro da Flolan do ano de 2011. Vocês têm em mãos nossa
programação para esses dois dias, assim como os textos com os quais
iremos trabalhar. Hoje começaremos com uma sessão de leitura. Depois
de todos terem lido o texto indicado, faremos uma mesa redonda sobre
ele. Iremos alternar teoria e prática. Pela tarde organizaremos um
seminário, em que cada um ficará responsável por um capítulo diferente
e irá apresentá-lo. O ritual principal será realizado à noite, mas ainda
teremos pequenas práticas como divinação e meditação ao longo do dia.
Eu estava quase dormindo com o falatório interminável de Gregório.
Mesmo a voz dele sendo tão sensual, ela tinha um tom tranquilo, que me
embalava cada vez mais na fronteira de um sonho.
Lá estava Ofélia dançando no arco-íris, pisando nas faixas coloridas.
Eu gostava desse tipo de sonho. Nunca fui muito fã de sonhos lúcidos,
pois eu preferia não ter o controle e permitir que meu inconsciente me
surpreendesse. Assim era bem mais divertido.
Havia ursinhos de pelúcia felpudos, abelhas sorridentes, um sol com
nariz de batata. Todos cantavam. Eu sapateava no arco-íris e cada faixa
soava como notas de um piano.

233
Juliana Duarte

De repente o mundo brilhante ficou escuro. Tudo derreteu e virou


piche. Os bichinhos morreram e se tornaram zumbis. Tentei destruí-los
com pontapés, mas eles eram muito poderosos. Alcancei minha arma:
um violino quebrado. Ataquei-os com uma melodia desafinada que os
ensurdeceu.
O próximo passo era direcionar os espíritos de volta ao além. Para
isso tracei no chão um círculo mágico com mel de abelha e declamei a
evocação enquanto pairava de ponta cabeça.
Quando eu acordei, estava estirada no chão, com a manga rasgada e
cheia de coisas quebradas ao meu redor.
– Finalmente acordou – disse Demian – que sono pesado esse, hein?
O discurso do mestre estava tão interessante assim?
– Que aconteceu? – perguntei, ainda meio tonta – Por que tem tantas
coisas no chão?
– Porque você as lançou longe! – falou Demian.
– Eu sou sonâmbula?
– Imagina, você só me enche de socos e chutes durante a noite e
pede pra eu te trazer comidas enquanto tá dormindo – observou Demian.
– Então eu dei meus golpes de caratê na vida real? – perguntei,
fascinada – Onde estão os zumbis do arco-íris?
Demian só me fitava de canto.
– Ofélia, parece-me que em meio aos seus movimentos corporais sua
mente também estava bem alerta, a ponto de manifestar alguns de seus
poderes psíquicos dormentes – comentou Gregório.
– Pensei que eu havia apenas chutado tudo isso.
– A maior parte sim – disse Ângela – quando você levantou e
começou a quebrar coisas no meio da explicação do Gregório, pensamos
que tivesse ficado louca ou estivesse com raiva de alguma coisa. Só
depois notamos que você devia estar dormindo ou em transe.
– Isso me recorda do dia em que nos conhecemos – disse Demian –
você começou a me bater do nada.
– Minha cabeça está doendo – eu disse – onde está meu laptop?
– O que você quer com ele? – perguntou Demian.
– Não sei – confessei – ele está me chamando.
Abri meu laptop. Ele estava desligado. Bastou eu me concentrar que
ele ligou.

234
A Gata Mascarada

– Viu que incrível? – mostrei para Demian.


– Eu te vi apertar no botão – disse Demian – duvido que você
consiga comandar essa máquina sem tocá-la.
– Vou olhar meu e–mail.
Abri uma página na internet e chequei meu e-mail sem nem encostar
no laptop. Quem estava perto de mim e viu ficou boquiaberto.
– Como você fez isso? – perguntou Demian.
– Vou te ensinar – expliquei – é um truque com os olhos, parecido
com o que se usa em meditação. Você precisa fitar um ponto
firmemente, sem piscar. Então você faz um movimento no peito para
acelerar os batimentos e trancar a respiração. Você sente o corpo inteiro
se aquecer e uma pressão na testa. Desse momento em diante não sei
explicar como se faz. Só sei como proceder. Realizo um movimento
específico com os olhos parecido com o que ocorre no REM. Mas
quando faço isso por muito tempo dói e me sinto mal.
– Isso é incrível – prosseguiu Demian – nunca pensei que pudesse
fazer algo assim.
– Nem eu – confessei – veja só, chegou um novo e-mail. Fui eu
mesma que enviei para mim.
– O que diz? – perguntou Demian, desconfiado.
– É um relato do meu sonho.
Demian espiou.
– Não consigo ler isso – confessou Demian – as letras estão
embaralhadas.
– Como não consegue ler? – perguntei – Está extremamente claro.
Recitei exatamente o que havia ali, ordenando as letras.
– Você possui uma capacidade anormal de ler textos com letras fora
do lugar – disse Demian – para mim isso era apenas um monte de
caracteres digitados aleatoriamente.
Deu pane no computador. Ele desligou sozinho. E meu cérebro ficou
em pane também.
Eu desmaiei, mas só por alguns segundos. Depois senti uma dor forte
na cabeça e dei um grito.
– Não! – gritei – Está dentro de mim!

235
Juliana Duarte

O pessoal ao redor se mobilizou. Com as espadas cerimoniais


traçaram círculos e outras formas geométricas. Demian traçou um
círculo ao meu redor com a espada e mostrou a cruz.
– Sai desse corpo, pelo sangue de Cristo! – ele exclamou.
Depois disso ele tocou a espada no meu peito e recitou alguma coisa
em hebraico. Eu sentia uma pressão enorme.
– Com licença – disse Gregório.
Ele adentrou o círculo e afastou Demian, tirando a espada da mão
dele e colocando-a no chão. Gregório colocou uma das mãos na minha
testa e com a outra segurou minha mão esquerda.
– Ofélia, você está aí? – ele perguntou.
– Quase – eu disse.
– Você está com febre – constatou Gregório – não pense demais
nisso. Esqueça os espíritos, seu sonho e as máquinas. Agora você precisa
descansar. Deixe sua imaginação e as dimensões de lado por enquanto.
Iremos lhe dar um analgésico. Nada de magia ou curas alternativas.
– Por quê? – perguntou Demian.
– Não queremos que ela manifeste seus poderes psíquicos. Portanto,
o ideal é não ter nada por perto que a inspire.
Eu estava morrendo de sono. Tinha ido dormir altas horas da
madrugada preparando o artigo para o site e acordei muito cedo para o
retiro. Então para mim foi maravilhoso me colocarem numa cama.
Quando acordei já era noite. Eu perdi praticamente o dia todo do
retiro. Quando apareci na sala todos pareciam preocupados e me
perguntavam se eu estava bem.
– 100% – garanti – estou com fome. Já passou da hora da janta?
– Guardamos a sua parte na geladeira – informou Ângela,
levantando–se – encomendamos o jantar de um restaurante
macrobiótico.
“Eca, aposto que é sem gosto” pensei, desapontada. Levei o potinho
para comer enquanto assistia à palestra de Gregório sobre o poder da
crença para a eficácia mágica. Tive uma agradável surpresa, pois aquele
arroz tinha um tempero maravilhoso e exótico.
Agora que eu estava completamente recuperada, acordada e
alimentada, estava sem paciência para permanecer ali sentada escutando
discursos.

236
A Gata Mascarada

Olhei momentaneamente na direção de Demian e percebi que ele


estava mais sexy do que nunca trajado naquele manto negro e com sua
cruz por cima. Eu estava ao lado dele e, como todos estavam
concentrados na palestra, imaginei que ninguém ia perceber se déssemos
uns amassos.
Coloquei a mão entre as pernas de Demian, mas acho que apertei
muito forte, pois ele expressou alguma reação. E todos olharam na nossa
direção.
– Ofélia! – exclamou Demian, claramente perturbado – eu não
acredito! Na frente de todo mundo!
– As crianças poderiam fazer o favor de conter os hormônios? –
requisitou Fábio – Isso aqui é um retiro, sabiam? Exigimos o mínimo de
disciplina.
Como sempre, Demian estava levando a culpa pelo que eu fazia.
Quase ri, mas me segurei.
– Não vou levar a culpa por isso – garantiu Demian – sou a vítima
aqui!
– Cavalheiros – Gregório interrompeu-os – deixemos esse debate
para outra ocasião. Vamos retomar.
Demian me olhou feio. Ele já tinha sido expulso da Ordem uma vez,
então é claro que ele não queria reunir mais pontos negativos em sua
ficha.
Peguei a apostila e minha caneta marca-texto. Fiquei quietinha
marcando em amarelo as partes do texto que o Gregório apontava como
relevantes. Também anotei no meu caderno algumas coisas que ele disse.
– Só um parêntese – observou Demian, de repente – essa explicação
do último capítulo está parcialmente incorreta. O senhor mencionou que
pode haver a mobilidade de crenças dependendo do sistema utilizado.
Mas é evidente que se torna muito mais poderoso selecionar uma crença
fixa e inflamá-la no coração. Todos os experimentos realizados a partir
disso serão uma derivação extremamente forte, como é o caso da crença
absoluta em Nosso Senhor.
“Lá vai ele” pensei, aborrecida. Pelo menos ele havia dito que a
explicação de Gregório estava “parcialmente incorreta” Se fosse com
outra pessoa, Demian provavelmente afirmaria, cheio de si, que o que foi
dito estava completamente errado.

237
Juliana Duarte

– De fato, existe essa vantagem – concordou Gregório – mas a


mobilidade expande os pontos de vista acerca da realidade. Isso também
permite um conhecimento básico de diversas armas. Que é melhor, um
desenvolvimento avançado no manejo da faca ou habilidade moderada
em facas, espadas e canivetes? Depende. Pode ser que alguém se
encontre numa situação em que esteja sem uma faca e tenha que
improvisar com outro utensílio. Nesse caso, o conhecimento em
múltiplas áreas seria valioso. No caso de uma luta de vida ou morte em
que tudo acabaria num único golpe, com uma escolha prévia da arma,
seria mais indicado um desenvolvimento avançado numa coisa única.
– Não existe esse furo na crença em Deus – afirmou Demian –
jamais me encontrarei numa situação sem facas, pois o Senhor está
sempre comigo.
– Em um instante em que a fé fraqueja, é boa coisa possuir opções –
disse Gregório.
– Minha fé jamais fraqueja – afirmou Demian, com seriedade extrema.
Dessa vez Gregório ficou quieto. Ele não havia perdido o argumento.
Apenas desistiu da disputa. Demian tinha essa mania de encurralar o
interlocutor numa situação incômoda. Se a conversa fosse com alguém
educado como Gregório, era evidente que ele não iria rebater com algo
que pudesse ofender a crença de Demian.
Sendo assim, Gregório apenas passou para a explicação do próximo
capítulo. Demian ficou todo satisfeito, tendo certeza de que havia
derrotado a argumentação de Gregório.
– Nada a ver – afirmei, quando as atividades do dia já tinham se
encerrado e nos preparávamos para dormir – ele apenas ficou com pena
de você e decidiu não discutir mais.
– Está dizendo isso apenas porque você gosta que me humilhem –
disse Demian – tanto que me tocou propositalmente só para me deixar
numa situação ruim na frente de todos. Foi uma atitude bastante infeliz e
ainda me machucou.
– Desculpinha – eu disse – é que você é tão lindo que não resisti. A
gente vai transar hoje, né? Pra reunir energias pra amanhã.
– Não – disse Demian – aguente por mais alguns dias. Estamos numa
atividade espiritual. Deixe os desejos carnais para quando isso tudo
acabar. Mantenha o foco.

238
A Gata Mascarada

– Que papo de rabugento conservador – eu disse – parece aqueles


discursos de gente que não tem nada na cabeça. Sexo é bom! A culpa foi
da sua Igreja que ensinou que o corpo deve ser inimigo da alma. Na
Grécia antiga, antes do cristianismo, não era assim! Eles sabiam foder
com nobreza!
– Não coloque a Igreja no meio! – criticou Demian – Para você é
tudo culpa da Igreja? Agora é você quem está sendo quadrada e limitada
em sua análise. Eu só quis dizer que não vamos morrer se ficarmos mais
dois ou três dias sem sexo. Estamos na sede da Ordem. É meio
desrespeitoso fazer isso aqui.
– Eu vou morrer sim! – exclamei, dramaticamente – Então está
decidido: vou pedir autorização pro mestre pra trepar.
– Você não faria isso...
Ora, claro que eu fiz! Fui lá incomodar o Gregório, que ainda estava
na sala arrumando as coisas.
– Mestre, a gente tem autorização pra transar na sede? – perguntei,
simplesmente.
Ele olhou na minha direção. Acho que ele não esperava uma
pergunta do tipo.
– Como estamos em retiro, isso não é recomendável – disse Gregório.
– Por quê? – perguntei, desapontada – Prometo que não vamos sujar
nada. Eu trouxe até um lençol especial, já pensando nisso.
Quando Gregório me fitou de novo, eu corei. Eu nunca ficava
envergonhada em falar desses assuntos com qualquer pessoa. Mas... com
o Gregório era diferente. Parece que tudo mudava quando era com ele.
Talvez eu não devesse insistir. Não devia ter tocado no assunto.
Fiquei até meio arrependida. Ele podia achar que eu estava zombando da
Ordem dele. Até porque causei várias confusões mais cedo.
– Não é exatamente proibido – explicou Gregório – não existe
nenhuma regra específica quanto a isso. Só achamos que não é adequado.
Você entende?
– Eu entendo – concluí – perdão por fazer essa pergunta. Fui uma
idiota.
– Não se preocupe – disse Gregório – e não se esforce demais nas
práticas da Ordem, pois não queremos que fique com febre novamente.
Se desejar, amanhã te libero da prática e bastará assistir às palestras.

239
Juliana Duarte

– Não precisa – garanti – eu conheço meu limite. Apenas extrapolei


hoje. Não vai acontecer de novo.
– Esperamos que não. Mas qualquer problema que surgir, me
comunique. Boa noite.
– Boa noite.
Aquele “boa noite” me soou levemente rude, pois mesmo que ele
tivesse dito tudo aquilo em tom bastante educado, estava claro que ele
não tinha intenção de prosseguir a conversa. Havia momentos em que
formalidade excessiva acabava soando como má educação. Eu não
gostava disso.
Quando retornei ao quarto, comuniquei ao Demian a posição de
Gregório.
– Não te disse? – comentou Demian, triunfante – Não devia ter ido
perturbá-lo com essa questão irrelevante.
– Não é irrelevante! – defendi-me – Quero estar junto contigo. Posso
pelo menos te masturbar?
– Quero dormir – disse Demian – boa noite.
Ele se virou.
– Puxou todo o lençol pra você! – reclamei, puxando de volta pra
mim.
Houve uma pequena briga pelo lençol. Quando conseguimos chegar
a um meio termo, eu me grudei nele e fiquei massageando-o onde não
devia.
– Ofélia, para com isso – reclamou Demian – quando o retiro acabar,
eu deixo você fazer o que quiser.
– Seu corpo me diz que você tá gostando da minha massagem –
observei, toda contente.
– Para quieta por um segundo, pelo amor de Deus! – exclamou
Demian, meio irritado.
– Não diga o nome de Deus em vão.
– Tem outro nome mais direto que não pode ser pronunciado – disse
Demian.
– Qual? – perguntei – Javé?
– Isso – confirmou Demian – Não diga em voz alta. Meus
professores nunca falam. Quando é necessário, dizem em voz baixa.
– Ah, é que nem o Voldemort?

240
A Gata Mascarada

Dessa vez Demian me fitou com uma expressão incrédula.


– Quê?! – perguntou ele.
– Você não leu Harry Potter? – perguntei.
– Felizmente não – ele respondeu – mas infelizmente eu entendi sua
analogia ridícula por causa da internet. Isso foi uma blasfêmia, no
mínimo.
– Meh – falei – vou dormir então, seu chato.
Apaguei a luz. Mas como eu tinha dormido o dia todo, estava sem
sono. Eu não parava de me mexer na cama. Volta e meia eu me
aproximava do Demian e começava a passar a mão nele.
– Por favor, me deixa dormir! – disse Demian, com voz sonolenta –
Eu não quero pegar no sono no meio do retiro amanhã.
– Só deixa eu mexer um pouquinho pra satisfazer meu desejo – pedi
– não consigo dormir pensando nisso. Prometo que depois me
comporto.
– Não! Mas que teimosia!
Eu só ria com a irritação dele. Tentei pegar nele só para incomodá-lo,
mas ele levou a sério. Tentou me afastar. E usou mais força do que
pretendia.
Em uma de minhas investidas ele fez um movimento muito intenso.
Certamente ele queria apenas me mover para o lado, mas ele socou meu
rosto. Foi com tanta força que eu fiquei tonta e caí no chão. Eu não
sentia mais o meu nariz e o sangue escorreu em grande quantidade.
– Ofélia! – ele exclamou assustado, levantando-se.
Acendeu a luz. Ele viu que eu estava derramando lágrimas.
– Desculpa, foi sem querer!
Ele abaixou-se para me ajudar. Mas eu me afastei dele, com medo.
– Não chega perto! – eu disse, chorando e me encolhendo na parede.
Eu estava tremendo. Fiquei com medo dele de verdade. Se ele se
aproximasse e eu fizesse qualquer coisa que o irritasse, podia acontecer
algo pior comigo.
Ele havia matado a Eugênia com três socos porque ela disse algo
estúpido. Eu vivia dizendo coisas idiotas e o perturbando. Era óbvio que
se aquilo continuasse, eu ia acabar morrendo. Mesmo que fosse “sem
querer”. Bastava irritá-lo o suficiente.

241
Juliana Duarte

Ele queria me abraçar, mas eu fugi. Ele entendeu. Claro que ele sabia
que aquela situação me fez lembrar da Eugênia e de todo o resto.
Demian também se encostou na parede, mas longe de mim.
Escondeu o rosto nas mãos. Parecia estar chorando também, mas
baixinho.
Por fim, fiquei com pena dele e fui até lá. Nos abraçamos e ambos
nos desculpamos.
– Precisamos parar esse sangramento – disse Demian.
– Demian... um dia você vai se irritar comigo e me bater...? –
perguntei, insegura.
– Nunca – ele afirmou – juro que foi sem querer. Eu estava meio
dormindo e fiz um movimento brusco. Jamais pensei que fosse causar
isso.
Eu levantei-me.
– Vou ao banheiro.
Lavei o rosto. Alcancei um paninho para pressionar o nariz até que o
sangramento parasse.
No caminho ouvi vozes. Imaginei que alguém ainda estivesse
acordado. O som vinha do quarto do Gregório.
Fui até lá e encostei o ouvido na porta para escutar. Mas os sons
estavam meio confusos. Fiquei tão curiosa que entreabri a porta. Com
sorte não iam me notar.
Felizmente a porta não fez barulho. Eu tinha muita vontade de
escutar o que Gregório falava sobre a gente pelas costas. Será que ele era
educadinho daquele jeito o tempo todo?
Mas o que eu vi fez meu corpo gelar. Apesar de a luz do quarto estar
apagada, houve iluminação suficiente vindo do corredor para que eu
pudesse distinguir as formas e entender.
Ângela estava embaixo. Gregório estava em cima. E ele me viu.
Eu corri imediatamente. Voltei para meu dormitório com o coração
acelerado e a respiração descompassada.
– Que aconteceu? – perguntou Demian.
– Ouvi vozes – respondi.
– Espíritos?
– Não! Era o Gregório e a Ângela.
– O que eles diziam? – perguntou Demian.

242
A Gata Mascarada

– Eles tavam transando! – exclamei, como se aquilo fosse a coisa


mais surreal do mundo.
– Mas que sujeitinho hipócrita – comentou Demian – depois do belo
discurso nos proibindo de fazer isso.
– Foi exatamente o que pensei.
– Que raro a gente concordar em alguma coisa.
– Mas não importa se ele tava errado – completei – nada justifica eu
ter aberto a porta do quarto dele pra espiar. Digamos que eu já
desconfiava antes de abrir a porta e não resisti em dar uma olhada.
– Tarada.
– A culpa é sua que não me ofereceu seu corpo!
– OK, chega disso – falou Demian – quem sabe a gente dorme agora,
o que acha? Se seu sangramento já estancou, é o melhor a fazer.
– Você não entende – eu disse – o Gregório me viu. Ele me fitou
com um olhar mortal. Eu nunca o vi tão sério assim antes. Eu juro,
amanhã ele vai me matar.
Abri a porta do nosso quarto para passar uma água no pequeno
pedaço de pano que eu carregava. Mas no caminho topei com o próprio
Gregório, já vestido e com expressão de poucos amigos. Aparentemente
ele tinha intenção de se dirigir até meu quarto, mas eu facilitei as coisas
estando lá fora.
– Ofélia – ele pronunciou – vamos conversar.
“Droga, eu tô fodida” constatei.
Nós dois nos sentamos nos sofás lá da entrada. Ele ficou num sofá
em frente ao meu e me encarava com aquela expressão séria. Eu nunca o
tinha visto com o rosto assim antes. Ele estava claramente irritado e não
tentava esconder isso.
– Que estava fazendo rondando por aí de madrugada?
– Houve um acidente – mostrei o pano com sangue e indiquei meu
nariz.
– Por que se dirigiu ao nosso quarto e entrou sem bater? – perguntou
Gregório.
– Não sei. Ouvi vozes e fiquei curiosa.
– Vejo que satisfez sua curiosidade.
“Merda, ele tá puto”. Aquela frase sarcástica me confirmou isso
claramente.

243
Juliana Duarte

– O senhor havia dito que era proibido...


– Sim, eu violei minha própria regra – concordou Gregório,
interrompendo-me – mas isso não tem relação alguma com esse seu
comportamento extremamente inapropriado.
– O senhor está brabo comigo?
– Estou.
– Vai me expulsar da Flolan? – perguntei, com medo.
– Não – disse Gregório – mas ficarei de olho em você a partir de
agora.
“Já era. Ele me marcou”. Eu e Demian, ambos marcados. Péssima
notícia.
– Isso era tudo o que eu tinha a dizer – disse Gregório, levantando-se
– sugiro que durma agora. E que me deixe dormir também.
– O senhor não estava dormindo.
Eu disse a coisa errada. Como eu era imbecil!
– Independente do que eu estava fazendo, isso não é da sua conta.
“Toma nos dedos, Ofélia” pensei, desconcertada. Dessa vez eu
mereci. Completamente.
Gregório caminhou em direção à porta e, sem nem desejar-me boa
noite, voltou para seu quarto. Agora o “boa noite” anterior dele já me
parecia bastante educado.
Quando retornei, relatei a conversa ao Demian.
– Bem feito – foi o que ele disse – quem manda ficar espiando os
outros?
Pensando bem, a Ângela também não devia estar muito feliz. E, para
completar, naquela noite o corpo de Gregório não saía da minha cabeça.
Sequer se passou pela minha mente que um dia eu iria vê-lo. Nem nas
minhas fantasias mais loucas. E o corpo real dele era ainda mais perfeito
do que minha imaginação era capaz de atingir. Aquilo tudo estava me
perturbando pra caramba.
No outro dia, Ângela não parecia muito braba comigo. Acho que ela
não tinha se importado tanto assim com o ocorrido. Mas Gregório
continuava meio aborrecido. Eu percebi isso claramente. Ele estava
agindo de forma meio fria comigo, embora não fosse diretamente mal
educado. Eu apenas via isso no olhar dele.

244
A Gata Mascarada

Talvez por isso eu não tenha conseguido curtir tanto aquele segundo
dia de retiro. Achei melhor me comportar, então acabei não sendo
espontânea e natural. Eu segurava minha língua antes de fazer certas
perguntas e meu comportamento foi quase exemplar. Também me
esforcei para não pegar no sono, pois desconfiei que se isso acontecesse
Gregório iria me criticar mais que o normal.
Demian me acotovelava o tempo todo durante a meditação, pois
aquela almofada macia me recordava do meu travesseiro. Ângela recitava
o que devíamos visualizar, mas eu não escutei metade do que ela disse.
No final do dia eu havia preenchido várias folhas do meu caderno.
Eu estava contente por ter sido uma aluna muito aplicada. Fiquei tão
confiante que tirei uma dúvida com Gregório, somente para ele ver
como meu caderno estava bonito e completo. Aproveitei para mostrar a
ele o artigo que eu estava preparando para o site.
Isso foi o suficiente para que ele voltasse a me tratar normalmente.
Ele notou que eu estava me esforçando.
– Demian, que horas são? – perguntei, bocejando.
– Oito da noite.
– Ainda? – eu me espantei – No meu relógio diz que são onze horas.
– Não pode ser – disse Demian – Laura, que horas você tem aí?
– Nove e meia – ela informou.
Raquel e Jonas também informaram horários diferentes. Parecia que
todos os relógios estavam desregulados.
– Acho que foi minha culpa – eu disse – o ritual de hoje à noite
mexeu comigo. Meu cérebro deve ter bagunçado os aparelhos digitais.
Como vamos saber a hora agora?
Gregório abriu a janela e olhou para o céu.
– Terminamos por hoje – ele informou – podem organizar suas
coisas. Pela manhã iremos para o retiro da ODE.
Eu fiquei muito intrigada com aquilo. Mais tarde perguntei ao
Demian:
– O Gregório viu as horas pelas estrelas? Ou pela lua?
– Parece que tem como ver as horas pelo Cruzeiro do Sul – informou
Demian – mas com uma olhada rápida como aquela, ele deve ter se
guiado vagamente pela lua e disse aquilo só pra posar de poderoso. De
qualquer forma, não teria como haver um alto grau de precisão.

245
Juliana Duarte

– Meu relógio interno diz que já é hora de dormir desde a tarde –


informei.
O encontro com a ODE foi algo único. Achei aquele pessoal bem
diferente. O visual deles era incrível! Pareciam super vilões, vestidos de
preto e com cara de mau.
O mais engraçado foi ver Demian e os amigos seminaristas dele
discutindo sobre LHP com os satanistas. Eu devia ter gravado.
– Qual o seu nome mesmo? – perguntei.
– Sancha – respondeu a moça alta e atraente – sou a líder da ODE.
– Um dia quero ser uma líder de Ordem de ocultismo tão bonita
quanto você.
Sancha sorriu. Falei algo bobo, mas foi sincero. Para ela eu devia ser
como uma criança, então decidi bancar a fofinha. Além de eu ser quase
dez anos mais nova, eu era uma anã perto dela. Eu tinha 1,53 e ela devia
ter pelo menos 1,70. Com aquele salto enorme eu nem queria imaginar
com quanto ela estaria.
– Você acha que eu deveria usar meus poderes psíquicos? – perguntei.
– Acho que você deve fazer o que quiser, contanto que realmente
deseje – respondeu Sancha.
– Tenho problemas físicos e psicológicos quando os utilizo.
– Temos os mesmos problemas pelo simples fato de estarmos vivos
– respondeu Sancha – tudo o que realizarmos terá algum efeito colateral.
Use sua intuição para saber o que compensa.
Foi um bom conselho. Resolvi pedir a sugestão da líder daquela
Ordem mais radical.
– Você é a Ana Maria, certo? – perguntei.
– Assim está escrito em minha certidão de nascimento – foi a
resposta dela.
– Qual é o “ramo” de satanismo que vocês praticam?
– Satanismo puro – respondeu Ana Maria – ou satanismo extremo,
também chamado de “heavy magick”. Não me importo tanto com nomes,
contanto que sirvam aos meus propósitos.
– Qual o seu conselho em relação ao uso de poderes psíquicos, tia? –
perguntei.

246
A Gata Mascarada

– Use-os ou morra tentando, se é esse seu caminho – respondeu Ana


Maria – e não sou sua tia. Sou apenas dois anos mais velha que você.
Tenho a idade do seu namorado.
– Como você sabe a idade do Demian?
– Valentina está dando em cima dele e me contou.
– Como assim? – perguntei, aborrecida – Quem é essa tal de
Valentina?
Descobri que ela tinha a minha idade. Fui lá tirar satisfações. Eu a
xinguei e recebi xingamentos de volta. Resultado? Acabamos rolando no
chão e puxando cabelos.
– Vaca!!
– Vadia!
Quando Demian soube da história, ele apenas balançou a cabeça em
desaprovação.
– Eu estava lutando por você! – informei, orgulhosa.
– Você não consegue se comportar mesmo, não é? – comentou
Demian – Nem na casa dos outros.
Quando terminaram os dois dias de retiro da ODE, fomos
comemorar num restaurante. Seria a primeira vez que eu presenciaria
Gregório beber. Eu torcia para que ele ficasse bem alterado.
Infelizmente aquilo não aconteceu. No máximo ele riu de algumas
piadas idiotas que Fábio contava. E Laura só ficou brincando com o
vidrinho de palitos de dente o tempo todo. Quebrou quase todos.
Depois desse feriadão, lá fui eu voltar para minhas aulas chatas. Eu
estava de muito mau humor. O ano tinha recém começado e eu já estava
de saco cheio.
Eu estava muito mais empolgada com o estudo do ocultismo do que
com o colégio. Por isso eu ficava lendo grimórios no meio da aula e
decorando alfabetos mágicos, os quais eu usava para realizar anotações
no meu livro espelho.
– Sara, vamos sair pra endoidar por aí? – sugeri.
– Ih, Ofi, nesse ano nem vai dar – disse Sara – minha mãe me
matriculou em cursinho. Uma merda.
– Meus pêsames. Se eu passar de ano já fico satisfeita.

247
Juliana Duarte

Eu nem tinha pensado ainda em que curso me inscrever no vestibular.


Resolvi cabular o próximo período e liguei para Demian enquanto
relaxava embaixo de uma árvore.
– Oi, Mimi – falei – aposto que tá de pau duro só porque eu liguei, né,
amorzinho?
– Não posso, pois estou em aula – disse Demian – tudo bem com
você?
– Eu tô ótima, como sempre. Tava refletindo sobre qual curso devo
me inscrever pro vestibular. Tem alguma sugestão?
– Você ainda tem mais de meio ano pra decidir isso. Não me diga que
interrompeu minha aula só por esse motivo?
– Eu quero me inscrever para um curso que eu não precise pensar,
porque ando com muita preguiça ultimamente. Alguma sugestão?
– Eu preciso mesmo responder isso? – perguntou Demian,
monotonamente.
– Vou passar na farmácia pra comprar camisinha – resolvi – qual
sabor você quer?
– Quem tem que decidir isso é você. Não é óbvio?
– Eu gosto que seja da cor rosa. Você gosta?
– Qualquer coisa tá bom – disse Demian – você vem aqui na
universidade quando sair?
– Você vem aqui no meu colégio. Quero te exibir pras minhas
colegas. Quero que o mundo inteiro saiba que tô namorando um
universitário gostosão.
– OK.
– Você é muito sem graça, sabia? – comentei.
– Sim. Eu sou uma pessoa séria.
– Ah, vai te foder.
– O que foi que você disse?
– Nada, meu docinho – falei, com voz suave – beijinho.
E desliguei na cara dele. Ai, como era divertido fazer isso.
Tive mais um período chato, que resolvi cabular também. No horário
do intervalo, avistei uma pessoa conhecida.
– Oi Alf! – pronunciei, de longe – Que tá fazendo aí embaixo desse
poste com cara de quem chupou limão e não gostou?

248
A Gata Mascarada

– Oi Ofélia – ele cumprimentou – tô triste porque usei até magia


negra e a Alice não voltou pra mim.
Pensei em dizer: “Tu é trouxa mesmo, hein? Toma coragem e vai lá
falar com ela, dá uma flor, recita um poema! Ou larga de vez e vai ficar
com uma que te mereça”. Mas em vez disso eu entreguei a ele uma
página do meu grimório chamada “Amarração dos 99 nós”.
– Basta pegar uma corda e dar 99 nós nela – expliquei – para ser mais
eficiente você deve copiar o poema dos nós 99 vezes.
– E dá certo isso? – perguntou Alfredo, duvidando – As garotas não
gostam de mim porque me acham muito calmo, bonzinho, ingênuo,
simples, sensível... o que tenho que fazer pra mudar isso?
– A maldição dos nós é tiro e queda se você, além de dar os 99 nós e
copiar o poema 99 vezes, bater punheta na frente da sua amada 99 vezes
– expliquei – aí não tem erro, garanto que funciona em 99% dos casos!
Eu ri ao dizer isso. Alfredo apenas me fitou sem dizer nada. Quando
eu parei de rir, ele disse:
– Você está caçoando de mim, não é, Ofélia? Essa maldição dos nós
é mentira...
– Veja pelo lado bom – completei – se ainda assim tua ex não voltar
pra ti, já vai ter batido várias.
Quando eu continuei a rir da cara dele, Alfredo ficou sério.
– Todas as garotas me maltratam só porque sou gentil com elas –
disse Alfredo – incluindo você. Tô cansado disso. Vocês preferem os
violentos, é isso?
– Alfredo, cala a boca – eu disse, cansada daquele assunto – para de
se achar a vítima, caramba. Isso é tão chato. Você seria bem mais legal se
ficasse de boca fechada. É só isso que tá faltando.
Algumas colegas nossas que estavam lá perto ouviram isso e riram.
Alfredo me fitou uma última vez e voltou para o colégio, constrangido.
“Cacete, isso que eu tô fazendo é bullying” dei-me conta, sentindo-
me meio culpada.
Eu tinha apresentado uma super gata para o Alfredo. Se ele não sabia
como manter a namorada, a culpa não era minha.
Tive que assistir dois períodos muito chatos de geometria. Aproveitei
para montar selos com as formas geométricas. Quando deu o sinal para
o fim da aula, fui esperar Demian num banco de praça na frente do

249
Juliana Duarte

colégio e continuei desenhando os símbolos no meu caderno. Estava


divertido.
– Oi Alfredo – cumprimentei, sem nem levantar os olhos – não foi
embora ainda? Tá amarrando os nós?
– Queria conversar com você – disse Alfredo – tem um tempo?
– Não, desculpe.
Continuei desenhando. Mas ele segurou no meu braço e me puxou.
– Ei, me larga! – reclamei – Seu cavalo!
Ele não foi muito longe. Encostou-me num muro branco.
– Qual é! Olha, eu tô meio ocupada. O que quer que tenha para dizer,
faça isso rápido.
– Eu tô cansado de ser tratado feito lixo! – exclamou Alfredo – Ser
estúpido e violento é sensual? Então eu vou dar a vocês o que querem!
Ele falou isso em tom alto, fitando-me firmemente. Ele colocou uma
das mãos na parede, indicando que ele não permitiria que eu fosse
embora até que ele terminasse.
Sinceramente, aquilo não me intimidou muito. Porque eu conhecia
Alfredo e sabia que ele não faria mal a uma mosca. Aquilo tudo era só
pose de fodão.
Eu só não ri porque achei que seria muita maldade com ele. Mesmo
assim, eu me aborreci.
– Por que eu tô ouvindo isso? – perguntei – Vá fazer esse discurso
pra sua ex.
– Alice é um anjo – disse Alfredo – mas até uma pessoa como ela se
entediou comigo. Ela pediu desculpas, mas disse que o amor dela
desapareceu.
– E mesmo assim você quis amaldiçoá-la? Você é o pior. Não vem se
achar o bonzinho injustiçado pelo mundo. Eu também já tive uns
namorados filhos da puta e nem por isso saí descontando minha
frustração nos outros como você.
– Por isso você se tornou uma pessoa assim – concluiu Alfredo – pra
se proteger da rudeza dos outros com mais rudeza. Você sente poder me
tratando mal. Acha que eu gosto disso?
– Desculpe – falei, para deixá-lo satisfeito – juro que não vou mais
dizer nada do tipo. Agora, por favor, me deixa ir.

250
A Gata Mascarada

– Não – falou Alfredo – isso não é o suficiente. Está dizendo isso


agora. Se eu tiver pena e te soltar, amanhã vai fazer a mesma coisa.
Preciso fazer algo que não esqueça jamais.
Ele estava muito sério. Não era o Alfredo que eu conhecia. Pela
primeira vez, senti uma sensação ruim ao olhar pra ele. Um mau
pressentimento.
“Ele não é fraco” concluí. Ele era daquelas pessoas certinhas que
tiravam notas altas no colégio para agradar o papai e a mamãe. Devia
fazer alguma atividade física para manter “mente sã em corpo são”. E se
fosse academia? Uma luta? Eu nunca fiz nada, pois sempre fui
preguiçosa. Eu não ia conseguir me defender se ele me batesse.
Tentei fugir. Mas ele não deixou. Ele segurou com tanta força no
meu braço que doeu. Meu coração acelerou. Eu estava com medo. Por
mais que disfarçasse, deixei isso transparecer. Ele percebeu e gostou.
Alfredo deu um sorriso cruel.
De repente eu vi nele uma pessoa extraordinária. Ele estava tão cool
assim, poderoso, me dominando. Por alguns segundos eu o desejei. E, ao
mesmo tempo, tive medo e queria que ele voltasse logo a ser o Alfredo
meiguinho. Eu não sabia como agir ao vê-lo assim. Era como fitar um
desconhecido e isso me deixava confusa.
Até que ele parou com o teatro e me abraçou. Ele envolveu-me num
abraço tão forte que até isso me machucou. Ele me apertava e parecia
que não ia largar mais.
– Que droga, Ofélia – disse Alfredo – eu ainda gosto de você. Apesar
de tudo o que faz comigo... eu sou um idiota.
– Me perdoe por ser uma idiota também – tentei – pode me soltar
agora?
– Não vou soltar nunca mais.
“Que merda é essa? Ele tem múltiplas personalidades?” pensei,
aborrecida, tentando me desvencilhar dele. Não consegui.
Então era assim. Eu achava que era poderosa. Mas Demian tinha a
força pra me dar um soco que me fez sangrar, mesmo sem querer. E até
um cara todo desajeitado e bobo como o Alfredo era capaz de fazer o
que quisesse comigo, como se eu fosse uma boneca. Imaginei que
bastaria um único movimento dele para que eu ficasse sangrando
também.

251
Juliana Duarte

E o que eu podia fazer pra me defender? Me fazer de vítima? Isso


não funcionaria. Porque eu nunca fui uma vítima. Eu era só uma garota
mimada que esperava que os homens satisfizessem todas as minhas
vontades. Mas eles não eram meus escravos. Eles eram seres humanos
complexos e extraordinários que sofriam e tinham sentimentos. Até
Gregório, que parecia tão maduro, também ficava aborrecido, cometia
erros, tinha falhas e fraquezas.
“Que bosta. Eu sempre quis um cara sério e respeitável pra eu exibir
pras outras garotas, que fosse como um poste do meu lado, mas no
fundo fosse um gentleman que jogasse a blusa na lama para que eu
atravessasse”.
Aquilo eram só fantasias tolas da minha cabeça. Eu gostei de Alfredo
um dia porque ele fazia tudo o que eu queria. Gostava de Demian
porque ele tinha um porte meio sério. Mas ambos eram imaturos.
Alfredo era inseguro e Demian ficava brabo por qualquer coisinha como
se fosse uma criança.
“Bem-vinda ao mundo real, Ofélia. Os homens não são os seus
brinquedos”.
Péssima hora para notar isso. Logo quando um deles estava
aborrecido por ter sido usado por mim como um burro de carga, sempre
açoitado e maltratado. Eu achava meio dramático ver as coisas dessa
forma, mas não era como Alfredo via a si mesmo? Não era assim que ele
queria se ver? Para justificar qualquer ato que ele realizasse para me punir.
Ele tentou me beijar. Aí estava algo novo. Geralmente era eu que
tentava persuadir os caras a me beijarem e não o contrário! Eu não tinha
nada contra dar um beijo no Alfredo ou comer ele. Até acharia divertido.
Mas eu tinha um namorado! E eu sinceramente não me sentia tão
tentada a dar aquele beijo, pois a atitude dele já estava me irritando. E eu
também queria provar que as coisas não sairiam como ele queria.
Quando tentei me livrar dele, ele me espremeu contra o muro e
prendeu-me com suas pernas e braços. Ele deu aquele beijo em mim
com a maior facilidade, mesmo que eu tentasse socá-lo ou chutá-lo.
Eu fiquei furiosa! Senti vontade de dar-lhe um belo chute no meio
das pernas, mas minha perna também estava presa.

252
A Gata Mascarada

Consegui soltar o braço direito e dei-lhe um tapa na cara. Ele não


gostou. Eu bati forte mesmo. E o jeito com que ele me olhou depois...
eu senti que ele queria me moer de pancada.
“Ele não vai fazer isso. É o Alfredo. Ele só está confuso”.
Felizmente aquilo tudo terminou no segundo seguinte. Alguém
segurou na camisa de Alfredo e jogou-lhe contra o muro. Agora era
Alfredo quem parecia um bonequinho indefeso nas mãos dele.
– Quem é você, infeliz? – perguntou Demian, seriamente – Ah, é só
o “ex” idiota. Pensei que fosse um tarado aleatório. Por que me
preocupei?
Ele simplesmente deu um empurrão no Alfredo e largou-o no chão.
– Ele fez alguma coisa ruim? – perguntou Demian – Devo puni-lo?
– Não, fui eu quem o provocou – confessei – deixe que ele vá
embora.
Alfredo levantou-se. Ele me fitou com irritação.
– Ofélia, não vou mais fazer justiça com as próprias mãos – resolveu
ele – e sim fazer as coisas do meu jeito: o correto. Se continuar a me
maltratar, irei comunicar à diretoria e arranjar um jeito de te expulsar do
colégio. Eu tenho contatos. E testemunhas. Fazer isso será muito fácil
para mim.
Ele foi embora. Demian entendeu a situação rapidamente.
– Não sei por que ainda te defendo – disse Demian – era você quem
estava perturbando o sujeito, certo? Ele apenas reagiu.
– Sim, sou eu a vilã, como sempre – comentei, aborrecida – seu papel
como namorado é me apoiar em tudo o que eu fizer, independente de eu
estar certa ou errada.
– Nem seus pais devem fazer isso – falou Demian – pare de agir
como se fosse a dona do mundo. Há outras pessoas vivendo aqui além
de você.
Eu imaginei que Demian fosse me defender como numa cena
melodramática de um filme. Em vez disso, ele estava me dando sermão e
defendendo o Alfredo.
– Enfim, comprou as camisinhas? – perguntou Demian – Vamos
para a sua casa?
– Não tô a fim de trepar hoje.

253
Juliana Duarte

– Como assim? Está doente? – perguntou Demian, incrédulo –


Nunca pensei que fosse ouvir essa frase de você.
– Ainda tô meio chocada com o que aconteceu – confessei – não me
incomoda, tá?
Na verdade eu estava braba. Eu não ficaria tranquila enquanto aquele
problema com o Alfredo não fosse resolvido, pois daquele jeito não dava
para continuar.
Ignoramos um ao outro nos dias que se seguiram. Até que eu fui
chamada na diretoria para conversar.
Recebi acusações diversas. Eu não tinha tirado com a cara do Alfredo
só uma vez em público. Tinham sido várias. Ele conseguiu depoimentos
de diversos alunos. No papel havia relatos de tantas coisas absurdas que
eu havia feito com Alfredo que até eu me surpreendi. E eram usadas
palavras tão pomposas e fortes como “intimidação” e “humilhação” que
eu não via como poderia me defender.
– A senhorita está convidada a se retirar de nossa instituição – foi o
veredicto da diretora.
“Uau, o Alfredo é foda” constatei. Ele devia ter um bom advogado
para ter-lhe ajudado a reunir aquela papelada. Ou ele mesmo era fera
naquelas questões de Direito, porque eu fiquei totalmente sem palavras.
Todas as acusações eram verdadeiras. Ele apenas arrumou um
vocabulário dramático para relatar todos os detalhes e reuniu dezenas de
testemunhas para confirmar.
As palavras da diretora eram uma forma educada de me comunicar
que eu estava expulsa. Claro que eu ainda poderia recorrer. Numa
situação como aquela, o que poderia me salvar seriam minhas notas. Mas
foi aí que eu me ferrei. Se eu fosse uma aluna aplicada, eu provavelmente
ainda teria outra chance e não seria oficialmente expulsa. Mas não teve
jeito. Eu estava fora do colégio. Teria que me matricular logo em outra
instituição antes que eu me ferrasse mais. E não seria fácil conseguir uma
transferência quando eu comunicasse o motivo da minha expulsão.
Alfredo venceu. Imaginei que ele não estaria rindo, pois ele não era
disso. Mas ele havia obtido sua vingança e seria finalmente deixado em
paz. Pensando bem, eu mereci.
Meus pais não gostaram muito da notícia. Se bem que eles estavam
acostumados com a filha que tinham, que quebrava o violino na parede,

254
A Gata Mascarada

chegava de festas altas horas da noite e ficava internada no hospital com


sífilis por ter transado demais com desconhecidos sem usar camisinha.
Quando dei a notícia, Demian me fitou com aquela expressão séria
dele, me olhando de soslaio.
– Por que não estou surpreso? Enquanto sou um dos alunos mais
aplicados da minha turma, que nunca chega atrasado e tira notas elevadas,
você quase rodou ano passado, fica cabulando aula e agora arruma um
jeito de ser expulsa. Por que estamos juntos mesmo? Até esqueci.
– Sabe, eu tenho pontos positivos – recordei-o – só falta eu descobrir
quais são eles!
Eu ri.
– Você parece bem despreocupada – constatou Demian – então nem
vou me preocupar também. Só dê um jeito de se matricular logo em
outro colégio, não importa qual seja. Você precisa concluir o ensino
médio. Só falta esse ano.
– Não fale como se fosse meu pai! Odeio quem fica dando esses
discursos óbvios. Por que estamos juntos mesmo? Até esqueci – zombei.
Foi difícil que eu conseguisse vaga num bom colégio. Tentei em
vários. Além de transferência no meio do ano ser um negócio
complicado, minha ficha estava suja. E meus pais já não estavam
dispostos a pagar muito caro pela minha educação, depois daquela
confirmação evidente de que eu não estava nem aí pra isso.
Finalmente fui matriculada numa instituição de ensino médio. Não
gostei muito do lugar que me arranjaram. Meus colegas eram uns
completos imbecis. O ensino era fraco, o colégio era pequeno, o bar só
tinha comidas ruins.
– E ainda está reclamando? – perguntou Demian – devia se sentir
muito grata por seus pais estarem dispostos a pagar pela sua educação.
Eu sempre estudei em colégio público e fui muito agradecido. Eu
compensava o ensino fraco estudando em outros turnos nas bibliotecas.
– Você não conta – eu disse – porque você é um bundão. Eu tenho
coisas mais interessantes para fazer na minha vida, pois sou jovem e bela.
Não vou desperdiçar minha magnificência enterrada em livros
entediantes.
– Eu também sou jovem e belo, mas diferente de você não me
satisfiz com isso e também resolvi ser inteligente – retrucou Demian.

255
Juliana Duarte

Dessa vez fui eu que lancei a ele um olhar atravessado. Demian


apenas deu um leve sorriso.
– Faça o que quiser, Ofélia. Eu sou trouxa o suficiente pra aceitar te
sustentar no futuro. Mas não conte com isso, porque como teólogo vou
poder te garantir no máximo comida. Algo que atualmente quase me
falta.
– Hã? – perguntei – Não tô sabendo disso. Como assim?
– Esqueça – disse Demian – apenas não cometa a estupidez de ser
expulsa desse seu colégio novo. Fique satisfeita que o ensino é fácil e
estude direitinho.
Foi exatamente porque o ensino era fácil que me senti desestimulada
a estudar. No meu outro colégio havia mais desafios, provas longas e
bem elaboradas, trabalhos interessantes. As propostas dos meus novos
professores eram tão idiotas que eu fazia os trabalhos de qualquer jeito e
mal estudava para as provas. Se eles exigiam o mínimo, então eu
estudaria o mínimo também. Fiquei totalmente desapontada com meu
novo colégio, pois até meu uniforme era feio.
E lá estava eu matando aula de novo embaixo de uma árvore. Até as
árvores de lá eram um horror! Se eu continuasse entediada daquele jeito,
ia experimentar algo novo pra ter um barato, como cigarro ou qualquer
merda do tipo.
Meu celular tocou. Eu estava com preguiça até de atender. Aquele
colégio estava me deixando meio molenga. Os professores eram lentos
como tartarugas, levavam mais de um mês para explicar uma matéria que
no meu velho colégio teria levado poucos dias. E os alunos eram
tomados pela mesma lentidão, num universo de lesmas mortas.
– Oi, Mimi – atendi, monotonamente – tô morta de tédio. Por favor,
me mata de uma vez. Se eu continuar mais tempo nesse colégio de
jumentos, vou ficar louca. Meus colegas fazem perguntas tão estúpidas!
Não quero me contaminar com a burrice deles.
– Você se lembra da líder da OCB?
– A Sancha?
– Não, a outra – disse Demian – Ana alguma coisa.
– Ana Maria, a que tem a sua idade – lembrei – é meio louca, mas
estilosa. Tem ideias originais e esquisitas. Que tem ela?
– Ela morreu.

256
A Gata Mascarada

Eu fiquei quieta.
– Como assim... morreu? – perguntei, confusa – Assim, de repente?
– Sim, Ofélia. Caso não saiba, as pessoas morrem. Eu recebi a notícia
hoje de manhã. Passei na sede da Ordem pra buscar um grimório e o
Jonas me contou.
– Ela morreu de quê?
– Foi suicídio.
Eu não gostei do que ouvi. Eu preferia escutar a notícia de que um
caminhão atropelou a pessoa e a partiu ao meio do que saber que alguém
tirou a própria vida intencionalmente.
– Que merda – eu disse.
– É.
E o assunto morreu aí. Nos encontros da Ordem ainda houve alguns
comentários sobre isso, mas depois a galera esqueceu por um tempo.
Aquilo me perturbou um pouco porque havia uns boatos mal
resolvidos. Por isso fui pesquisar na internet. E descobri umas coisas
extraordinárias.
Eles se referiam a ela por “AMV”. A Ordem dela estava sendo mais
cobiçada do que nunca. Se aquilo fosse possível, ultimamente o número
de interessados pela OCB estava superando a Flolan.
“A Ordem dela ficou pop, por isso tá todo mundo indo atrás, como
boas ovelhinhas” pensei, com desagrado.
“E se... eu tentasse entrar também?” confesso que aquele pensamento
se passou pela minha cabeça. Eu não tinha tanto interesse pelo
satanismo. No fundo o desejo de entrar era simplesmente para que os
outros me temessem, já que a galera da internet pagava muito pau pra
quem se dizia membro da OCB. A maioria que falava isso abertamente
era mentiroso, já que a maior parte dos membros mantinha a identidade
em segredo pra se proteger da polícia e de denúncias.
Pensando bem, eu não era tão sangue-frio assim para aquela aventura.
Mas confesso que fiquei curiosa pra caralho depois de ler os boatos!
Queria contatar alguém dessa Ordem para satisfazer minha curiosidade.
Resolvi procurar por um membro que tivesse minha idade, pois eu
poderia ficar com vergonha de falar com o pessoal mais velho, embora
eu não fosse de ter muita vergonha na cara.

257
Juliana Duarte

Recordei da garota que eu soquei: Valentina Jabbah. Foi fácil


encontrá-la pelo Facebook.
Bati um papo com ela e combinamos de nos encontrar.
“Ai, ai, lá vamos nós...”
Cheguei bem adiantada no local de encontro, de tão ansiosa que
fiquei. Aquilo demorou demais. “Bem, eles são satanistas, não precisam
ser corteses” concluí.
– E aí, Ofélia – cumprimentou-me Valentina, chegando atrasada na
sorveteria – sem ressentimentos?
– Nenhum – garanti – contanto que me passe todos os grimórios da
OCB. A garota já morreu, então ela não pode mais te punir por isso.
Valentina gargalhou.
– Você que pensa – disse Valentina – Moisés Al Kalb al Rai ainda
está vivo e lidera a Ordem como um leão. Há outros membros de peso
que iriam atrás de mim pra me ferrar se descobrissem que divulguei esses
grimórios.
– Não podemos negociar?
– Te passo o grimório de grau mais baixo se você me deixar dar um
beijo no seu namorado – propôs Valentina – um idiota deixou ele vazar
na internet de qualquer forma, então não vale muito.
– Tá dizendo que o beijo do meu amor não vale muito? – desafiei,
irritada.
– Por outro lado, se me conseguir uma transa com o líder da Flolan,
te passo os grimórios de todos os graus.
– Ah, o Gregório vale ouro, não vai ser fácil assim trepar com ele.
Mas se eu te deixar dar um selinho no Demian você me dá os grimórios
de primeiro e segundo grau?
– Fechado.
Quando contei minha conversa com Valentina para Demian, ele
quase quis me matar.
– Você pensa que é minha cafetina? – perguntou Demian – Que tipo
de namorada você é? Isso é uma piada, certo?
– Só um beijinho, por favor... – eu pedi.
– Eu vou fingir que não ouvi isso – falou Demian – sério, Ofélia, se
você repetir esse pedido absurdo de novo eu vou ficar muito brabo com
você. E eu te garanto que você não quer me ver furioso.

258
A Gata Mascarada

Não, eu não queria. Eu já tinha visto uma vez. Para Eugênia a


primeira vez havia sido a última.
– Além do mais, você é a única garota que já beijei – acrescentou
Demian – não quero beijar outra. Muito menos essa daí que ficou dando
em cima até dos meus colegas seminaristas.
– Que lindo! Você é um dentre as dezenas ou centenas dos garotos
que já beijei. Então também não quero beijar outro, amorzinho.
– Isso era para ser romântico?
Mesmo assim, a frase do Demian me comoveu. Informei Valentina
que eu teria que declinar sua oferta.
– Que tal a gente montar uma Ordem só nossa em vez de ficar
correndo atrás dos preciosos grimórios escritos por essas criaturas
lendárias? – sugeri.
– Tá aí uma boa ideia – disse Valentina – vou te apresentar a Lotte.
Quem sabe nós três possamos fundar um grupo!
Adorei a ideia. Charlotte era uma garota adorável. Eu me lembrava
dela no encontro da ODE.
Fomos para uma confeitaria falar de doces, ursinhos e homens
gostosos. Só no final a gente se lembrou porque havíamos combinado
aquele encontro.
Quando as duas mostraram a escarificação de AMV no ombro, eu
fiquei fascinada.
– Na nossa Ordem vai ter uma escarificação de ursinho! – sugeri.
– Eu acho melhor um patinho – disse Valentina.
– Qual vai ser o nome? – perguntou Charlotte – Que tal
combinarmos nossas iniciais? CVO?
– Por que seu nome vem primeiro? – perguntou Valentina,
aborrecida – Está muito claro que sou a mais experiente aqui. Eu cheguei
ao grau mais elevado da OCB!
No final só ficamos debatendo sobre nomes, símbolos e o aspecto
estético da Ordem. Ninguém sabia qual seria nossa proposta e muito
menos tinha uma ideia pra montar um grimório. Então no dia seguinte já
tínhamos desistido da ideia de fundar uma Ordem.
– Eu sei por que você está inventando essas besteiras – constatou
Demian, quando relatei o encontro – é porque não te dão deveres
suficientes no colégio.

259
Juliana Duarte

– Rale-se o colégio. Não vou fazer só o que eles mandam. Quero ser
uma livre pensadora e não só decorar o que os outros disseram.
– Você precisa ter uma base pra isso – falou Demian – não é bem
assim. O ensino do colégio poderá te acrescentar muito. Basta você ser
menos preconceituosa em relação a ele. É imbecilidade da sua parte
desprezar a educação. Ela não é perfeita, mas deve ser devidamente
valorizada. Então não critique o que não entende.
– Você me chamou de imbecil! – exclamei, ofendida.
– E você já me chamou de tanta coisa que não deveria reclamar em
receber o mesmo tratamento – disse Demian – eu trato cada um da
forma que merece.
– Foi isso que Jesus te ensinou? – desafiei-o.
– Jesus me ensinou a ser paciente e piedoso com a ignorância. Por
isso sempre me esforço para tratá-la bem.
“Ui... essa doeu”. Primeiro foi Gregório que me fez ficar quieta.
Depois Alfredo. E agora Demian. Era isso que chamavam de karma? O
meu devia estar mais poluído do que uma chaminé de fábrica.
– Amor – falei – eu tenho uma coisa pra te dizer.
– O quê? – perguntou Demian, já antevendo uma ofensa, pronto para
rebater.
– Você tá perdendo cabelo – falei, passando a mão pela cabeça dele –
olha só isso! Tá ficando careca aqui em cima!
– Ah...!
Demian tirou minha mão. Ele queria esconder. Ficou constrangido
que eu visse.
– Me deixa em paz – ele disse.
Eu ri.
– Não se preocupe, carecas são sexy. Eu acho o máximo. Mostra
maturidade.
– Não é esse o caso.
Eu não entendi. Os dias se passavam e Demian estava perdendo cada
vez mais cabelo. Até que um dia em que me encontrei com ele na
universidade e sentamos num banco, ele desmaiou.
Eu levei um susto. Eu já tinha notado desde o começo que ele estava
meio tonto e com cara de morto.

260
A Gata Mascarada

– Demian, o que tá acontecendo? – perguntei – Por favor, conta pra


mim.
Ele hesitou em me contar. Depois ele finalmente cedeu.
– Você sabe que eu só estudo e não trabalho. Estou fazendo um
estágio não remunerado. Então dependo da comida que me dão aqui na
universidade. Mas às vezes preciso ficar até mais tarde no meu estágio e
perco a hora do almoço no restaurante. Quando isso acontece, fico sem
comida pelo resto do dia.
– Eu não acredito! – exclamei, assustada – Por que não me contou
antes? Comida é o que não falta lá em casa!
– Você não disse que gosta de caras maduros? – perguntou Demian –
Eu queria mostrar a você que eu era independente e sabia me virar
sozinho.
– O que você fez não foi maturidade – eu briguei com ele – só estava
sendo orgulhoso! Vem lá em casa. Ou se quiser comer em qualquer lugar
específico eu te levo.
– Qualquer coisa serve – disse Demian.
Fomos para minha casa. Esquentei pra ele as sobras do almoço.
Mesmo assim, ele parecia meio chateado.
– Não fica desse jeito – eu falei, com pena – fico super feliz de poder
te ajudar. É sempre você que faz as coisas pra mim. Acabo me sentindo
meio inútil.
– Ofélia...
– Que foi?
– Vamos terminar esse relacionamento.
Quando ele disse isso, senti uma sensação horrível por dentro.
Percebi que não queria perdê-lo de jeito nenhum.
– Não, por favor! O que foi que eu fiz?
– Eu e você somos muito diferentes – falou Demian – em tudo. Isso
não tá dando certo. Você é uma gata desgarrada. Arisca, sensual,
misteriosa, livre. Enquanto eu sou um cara mais centrado, que busca algo
mais sério.
Eu aproximei-me de Demian e segurei a cruz dele.
– Deus, por favor – supliquei – me faça linda. Somente aos olhos
dele. Faça com que ele me ame. Pode cortar meus braços e minhas

261
Juliana Duarte

pernas. Tirar a minha vista. Remover tudo o que faz a Ofélia ser ela
mesma. Mas, eu te suplico de joelhos, não tira o Demian de mim.
Eu beijei a cruz e ajoelhei-me. Repousei o rosto no colo de Demian e
senti lágrimas nos olhos.
– Remova meu orgulho – pedi – tire tudo de mim. Me torne
horrorosa, um monstro. Mas não me tire o sentido da minha existência:
esse anjo que enviou para meus braços. Eu sou uma garota má. Poderei
ser perdoada? É tudo que me resta. Se não for assim, que será de mim?
– Ofélia... isso não me comove – disse Demian – não seja hipócrita.
Você não acredita em Deus.
Eu levantei-me.
– Adeus, Demian. Pode ficar com minha casa, ela é sua. Fique com
tudo meu. Menos eu.
– Do que você tá falando? Essa casa nem é sua, é dos seus pais.
– Aposto que meus pais vão preferir te ter como filho do que a mim.
Um aluno exemplar, tão educado e correto. O mundo não precisa de
escórias como eu.
– O que deu em você? O que é esse complexo de inferioridade
repentino?
– Um complexo cobre outro – revelei – você não conhece meu
passado. Eu sempre me senti inferior a todos. Eu era apenas uma garota
tímida e invisível. Eu sentia inveja das outras garotas. Para cobrir meu
complexo de inferioridade, eu resolvi fingir que eu era importante. Então
eu criei essa máscara. Demian, eu vou te contar um segredo: você nunca
conheceu a verdadeira Ofélia. A Ofélia real, por trás da minha máscara
de gata desgarrada, é uma menininha sensível, meiga e tímida. Como eu
era antes da minha primeira vez. O cara que tirou minha virgindade
mostrou que o mundo não é bonito. E que eu não era mais virgem,
então eu era apenas algo sujo e descartável. Eu estava usada. Ninguém
mais ia me querer. Então eu corri. Eu fugi. Queria desaparecer. Porque
eu queria meu hímen de volta.
Demian apenas me escutava, cada vez mais espantado ao ouvir meu
discurso inesperado.
– Deus não gostava mais de mim – prossegui – perdi meu lugar no
céu. Porque esse Deus só ama os puros. Então eu não gostei mais dele,
porque eu não era mais pura. Eu odiei esse mundo, que só oferece o

262
A Gata Mascarada

paraíso aos puros de corpo e aos puros de coração. Eu queria de volta


minha inocência. Ou eu poderia simplesmente concluir que era Deus
quem estava errado. E eu estava certa. Porque não é errado transar ou
ser má. Esse Deus não sabe de nada. Eu não quero mais sentir culpa por
causa desse Deus invisível. Dessa sociedade mascarada. Só se eu também
vestir a minha máscara e juntar-me a eles no espetacular baile à fantasia:
esse show de horrores da humanidade.
Demian permanecia a fitar-me. Eu nunca o tinha visto com tal olhar.
– Você não foi capaz de desvendar o coração da Ofélia – eu disse –
não conseguiu enxergar que por trás dessa máscara havia uma garotinha
tremendo? Como não percebeu? Será que você só prestava atenção a si
mesmo? Fitava-me superficialmente? Só meu corpo, minhas atitudes.
Não conseguiu penetrar na profundidade dos meus pensamentos e do
que sou. Você sofreu na vida. Eu também. Então por que Deus só te
ama e não me ama?
– Ofélia...
– Eu sei que fiz várias coisas cruéis! – eu gritei – Mas eu tenho medo
também. Do mundo, de tudo! Eu preciso me proteger pra não ser
machucada. Posso ter machucado outros no processo, sem perceber.
Mas eu tô apenas aprendendo a viver. Quero aprender mais, sem sentir
tanta culpa e arrependimento. Sem ser julgada. Eu ainda acredito no
amor. Ainda quero abrir meu coração para alguém, sem envergonhar-me.
Então procure uma temente a Deus, como você queria. Eu ainda tenho
esperanças de encontrar uma pessoa que enxergue a verdadeira Ofélia
por trás desse monstro destruidor.
Eu corri, porque percebi que havia lágrimas nos meus olhos.
Continuei correndo. Aquele vento no rosto me fazia sentir viva. Meu
coração acelerava. Eu sentia que minha máscara de vidro havia caído no
chão e se quebrado. Eu precisava de outro refúgio. Qualquer um.
Contemplei meu rosto no lago. Estava difuso naquela água suja. Mas
eu concentrei-me no chakra do terceiro olho e consegui enxergar meu
rosto perfeitamente, como se fosse água límpida.
Em minha mente estava a imagem de uma garotinha. A Ofélia
criança de vestido rodado, correndo num bosque. Eu brincava com
flores e contemplava o sol claro penetrando pela copa das árvores.
Eu ainda era aquela garota. O mesmo sorriso.

263
Juliana Duarte

Naquele tempo eu tinha medo de ficar mais velha. Virar uma adulta,
gente grande. Eu não queria crescer, porque o mundo dos adultos era
muito complicado e assustador.
Eu estava quase com dezoito anos. Que adolescência intensa,
fascinante!
“Não quero crescer. Não quero jogar fora meus ursinhos. Jamais
quero conhecer o corpo de um homem. Desejo ser criança para sempre!”
Ninguém ia me culpar. Ninguém ia me julgar. Eu nunca estaria errada.
“Ela é só uma criança”.
Bastava não viver. Eu não teria responsabilidades. Não seria
condenada. Não seria chamada de má.
Minha respiração estava falhando. Eu sentia que a vida ia embora.
Água. Nada mais que água.
Subitamente, eu emergi. Respirei muito rápido, tossindo a água.
– Ofélia! – exclamou Demian – se você morresse agora, eu ia me
matar imediatamente. E não ia me importar com o que Deus achasse
disso!
Demian tinha me salvado. Estávamos nós dois no lago e ele me
abraçava forte.
Eu o abracei de volta. Brinquei com a cruz do pescoço dele entre
meus dedos.
– Você renegou Deus por mim? – perguntei.
– Não – disse Demian – eu acredito firmemente em Deus e sempre
acreditarei. Mas eu só acredito num Deus que ama a Ofélia. Se não
amasse, qual seria o sentido da existência Dele?
Dei-lhe um longo beijo na boca. Aquele foi o beijo mais apaixonado
e profundo que eu me lembrava de ter dado em Demian ou em qualquer
outra pessoa.
Eu senti como se aquele fosse meu primeiro beijo. E de fato era: o
primeiro beijo da Ofélia verdadeira, sem máscaras. Finalmente pronta
para entregar seu coração sem medo.
Eu não precisaria ter medo nunca mais. Nem arrependimentos.
Jamais teria medo de responsabilidades ou de envelhecer enquanto
Demian estivesse ao meu lado. Nós dois ficaríamos velhinhos juntos.
Bem velhinhos.

264
A Gata Mascarada

O suicídio de Ofélia no lago por amor a Hamlet é considerada uma


das mortes mais poéticas da história da literatura. Mas eu não desejava
ficar louca ou colher flores. Meu Hamlet renegou-me e retornou a mim
uma vez mais.
Quem morreu foi somente a Ofélia orgulhosa. Agora uma nova flor
nascia, morrendo de vontade de viver e amar.

FIM

Continua no Volume 2

Leia também meu livro “LHP Excelsis”.

265

Potrebbero piacerti anche