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Volume 1
Juliana Duarte
2013
Para Emily e Lathan
Sumário
Capítulo 1_______________________________________________7
Capítulo 2______________________________________________39
Capítulo 3______________________________________________77
Capítulo 4_____________________________________________112
Capítulo 5_____________________________________________157
Capítulo 6_____________________________________________195
Capítulo 7_____________________________________________232
A Gata Mascarada
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atrapalhava tudo. Mas ele se sentiu ofendido. Tirou minha mão e até
levantou-se.
– Estou cansado disso. Dessa sua pressa e falta de respeito. Ouça o
que as pessoas dizem!
– Desculpe – falei, baixinho.
– Já chega. Vamos terminar.
– Nem começamos!
– Eu quis dizer, terminar o namoro.
Eu não acreditei. Senti uma dor no peito. Uma sensação horrível.
Tentei pedir perdão e prometer que não tocaria no assunto de novo. Ele
não aceitou.
Senti tanta raiva e tristeza que pensei em tocar o bolo na cara dele.
Mas não fiz isso. Preferi deixar o bolo lá para que ele se lembrasse de
mim com arrependimento até que terminasse de comer. Simplesmente
fui embora, demonstrando não tristeza, mas indignação.
De lá, fui direto para a casa da Pâmela. Em vez de chorar nos braços
dela, eu xinguei Otávio de todos os nomes e continuei a falar mal dele
até o fim do dia. Cheguei em casa mais aliviada depois disso.
Foi bem chato vê-lo na aula no dia seguinte. O que mais me irritou é
que ele parecia muito bem. Ficava conversando com os amigos e rindo.
Eu esperava que não fosse sobre mim.
– Eu te falei que ele era um idiota – disse Irene, no intervalo – até me
impressiono que ele tenha arrumado um tempo na “agenda” dele para te
encontrar no Dia dos Namorados. Ele sempre dizia que estava ocupado
para qualquer coisa que você combinava.
Irene era uma das minhas únicas amigas na escola. Seus cabelos
castanhos pareciam uma espiga de milho. Tinha vários contatos e sempre
estava por dentro de todas as fofocas.
– Ainda bem que se livrou dele – disse Cíntia – menos uma pedra no
sapato.
Cíntia era a outra amiga. Tinha cabelos castanhos ondulados e, assim
como Irene, usava óculos de aros negros. Ela era apaixonada por verde.
Tanto pela cor como pelas plantas. Dizia que queria ser botânica. Irene
queria mexer com computação. Eu não fazia ideia do que ia ser e não
dava a mínima.
No final da aula, Irene veio me contar uma novidade desagradável.
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Por isso, quando vi aquelas duas figuras de capas negras logo pensei
que fossem do curso de teatro. Um dos dois com certeza era uma
mulher. Ela cobria o rosto com um capuz, mas eu podia ver o batom. O
outro era mais estranho ainda. Usava uma máscara branca de palhaço
realmente assustadora, com uma grande boca sorridente pintada em
negro. Confesso que senti um calafrio quando vi e achei aquilo bem
emocionante.
Aproximei-me cautelosamente para ver o que eles colaram no quadro
de avisos. Foi então que o sujeito com máscara de palhaço me notou e
olhou para mim.
E que olhos! Bem arregalados, de um negro profundo. Com seus
cabelos negros desgrenhados ele era como o irmão irônico da morte.
Quem sabe a morte fosse a senhorita encapuzada ao seu lado?
Até recuei. Mas ele não me analisou por muito tempo. Após a espiada
rápida, ele e a mulher continuaram seu caminho, colando novos cartazes
nos demais quadros. Aproveitei para ler o que eles tinham acabado de
colar.
Pensei que leria algo como “Recrutamos membros para o grupo de
teatro” ou “Confira nosso espetáculo de estreia: „O Sétimo Selo‟ de
Bergman; quando a morte joga xadrez!” ou qualquer coisa do gênero.
Mas o que li foi o seguinte:
Uau! Aquilo não era algo que se via todo dia. Seria ainda mais
impactante se estivesse escrito “Ordem de Magia Negra”, logo ao lado
do aviso do encontro para os cristãos. Ainda assim, eles usaram o
emblema da própria universidade, pintado de negro e roxo. Era mesmo
oficial? Tinha até o e-mail da universidade.
E, que apropriado! Era segunda-feira e quase seis da tarde. Por isso
eles estavam por lá. No aviso não constava o local exato do encontro,
mas se eu seguisse aqueles dois descobriria.
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parte daquilo tudo. Melhor do que apenas olhar de longe, com fascínio e
admiração.
Para mim era muito mais do que uma necessidade de fazer parte de
um grupo que tinha os mesmos interesses. Eu era apenas uma estudante
do oculto. Não ousava praticar. Afinal, eu tinha medo. Não queria fazer
algo errado e me dar mal. Eu precisava de orientação, urgentemente. Pela
internet era difícil. Eu queria alguém do meu lado, para sentir o que era
aquilo dentro de mim.
Por esse motivo, eu senti algo diferente quando o sujeito mascarado
me fitou. Será que ele sabia quem eu era? Quando me olhou, ele
percebeu que eu era diferente? Provavelmente não, ou teria ido falar
comigo. Isso significava que ele não conseguia sentir? Ou que ele
escolheu me ignorar? Eu precisava entender o que eram aquelas pessoas.
Se eram como eu. Desejava encontrar outros. É como estar em outro
país por muito tempo, subitamente fitar um brasileiro e se sentir à
vontade. Quase uma necessidade de fazer contato com outros da minha
“espécie”.
Eu gostava da minha família, dos meus amigos e da minha vida. Ao
mesmo tempo, um tempero daria mais sabor. Principalmente no meu
caso, que enfrentei problemas no passado.
Lembra-se que eu disse que amava demais a vida real? E por esse
amor algumas coisas diferentes tinham acontecido. Eu não entendia se
era bom ou ruim, mas tinha um pouco de medo só de recordar.
Você já conheceu a parte “normal” da minha vida. Agora vem a parte
estranha.
Desde pequena, acontecem eventos bizarros ao meu redor. Só com o
passar do tempo eu me dei conta de que era eu a provocá-los.
Um dia peguei um colar da minha mãe na caixa de joias. Era estranho,
pois havia um orbe que refletia tudo ao seu redor. Como num espelho,
eu podia me enxergar nele. Mas via outras coisas também.
O orbe mostrava imagens que não havia no mundo real. Eu o
balançava diante de meus olhos. O movimento ritmado me induzia a um
estado de sono. Quando isso acontecia, eu via outras formas.
Eu era muito pequena para entender. Eu balançava o colar porque
era divertido. Gostava de ver as coisas aparecendo.
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– Não – ele disse – ou melhor, pode, mas não faça. Esqueça, por
favor. Pare de espiar o que não deve ou vai ficar louca. Se mexer nisso,
irá alterar outras partes. Vai ficar pior.
– Sempre fica pior?
– Nem sempre, mas provavelmente. Muitas coisas possuem um
motivo para ocorrer dessa maneira. Não todas. Mas nesse caso eu
consigo sentir uma coisa ruim se você mexer.
– Droga.
Chorei mais. Estava se tornando insuportável.
Depois dessa experiência, minha curiosidade de ver o futuro ou o
passado sumiu completamente. Em compensação, viciei em outros
poderes psíquicos.
Baq ensinou-me métodos específicos de concentração. Eu acessava
zonas do meu cérebro e conseguia mexer nas coisas de fora. Era incrível
perceber as ligações. Era como encaixar as peças de um quebra-cabeça.
Com o tempo, comecei a fazer algumas coisas. Quebrar vidros era
uma das mais divertidas. Eu podia riscar diversas superfícies, só com a
mente. No começo eu precisava passar a mão sobre a parede ou janela.
Depois, nem mesmo esse contato era necessário.
Descobri que eu poderia fazer muito mais. O limite era inimaginável.
Porém, certas capacidades eu não devia nem tentar desenvolver. Ainda
bem que não me mantive completamente surda aos conselhos de Siii.
– Telepatia, fuja disso imediatamente. Não queira saber o que se
passa na cabeça das pessoas ou irá odiá-las. Você espia as pessoas na
privacidade delas? Provavelmente não, porque sabe que elas iriam se
aborrecer. Isso é ainda pior.
– Entendi. Você acabou de me proibir de fazer tantas coisas
interessantes! O que sobrou?
– Uma das habilidades você já possui: mediunidade, pois consegue se
comunicar conosco. Isso não é exatamente negativo.
– Eu sei, é como fazer amigos, pode ser negativo ou positivo
dependendo da pessoa. O que mais temos?
– Projeção astral você já consegue fazer nas meditações, para visitar
outros planos, mas tome cuidado com isso também. Há planos que
geram êxtase e outros que podem te afetar negativamente, gerando
depressão e outros sintomas.
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– E se for ilusão?
– E se a vida for ilusão também? – desafiei – Um truque do cérebro?
E daí? Faz diferença? É menos real?
– Não começa. Odeio as suas respostas estilo vale-tudo, que ao
mesmo tempo explicam tudo e não dizem nada.
– Não tenho culpa se o cérebro humano é limitado para raciocínios
mais complexos. Não sou tão burra quanto você pensa.
– Como você pode ter tanta certeza que há vida depois da morte?
Você afirma isso com mais convicção do que qualquer pessoa que eu
conheça. Até as pessoas que dizem isso afirmam que é a crença delas.
Para você é real como respirar. Impressionante, mas não me convence.
– Não quero convencer ninguém. As pessoas veem o mundo de
acordo com o que o corpo e a mente delas podem captar. Seria
necessário que elas tivessem experiências em outras dimensões para
entender do que falo.
– Seria interessante se a vida continuasse, contanto que tivessem
pessoas igualmente interessantes para interagir – disse Iolanda – não
quero ser um fantasminha flutuando no espaço.
– O espírito não é um fantasminha – corrigi, cansada de explicar
aquilo – é emoção pura. Não é corpo, mente ou alma. Geralmente vai
tudo embora, memória também.
– Então é como morrer. Qual a diferença?
– Você não entende o que eu digo porque não sentiu. Não é algo
possível de explicar. Na vida podemos duvidar de tudo, mas precisamos
confiar em alguma coisa. Pode ser numa pessoa, no amor, na
humanidade, em si mesmo. As pessoas precisam viver por algo ou por
alguém. Ou viverão como vegetais, sem emoções?
– É como você está tentando viver, para não explodir coisas –
criticou Iolanda – está mexendo com essas coisas bizarras de novo e vai
se dar mal.
– No meu caso eu exagerei, mas se as pessoas contatam o mundo
espiritual de forma moderada é saudável e lindo. Inspirador. Revelador.
– É, mas você não pode fazer sexo com os espíritos.
– Até posso. Tem um tal de incubus que... bom, esquece.
– Não ligo para suas esquisitices, mas trate de arrumar logo um cara
legal para parar com essas besteiras. Você fica bem mais sorridente e age
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“Cara Ofélia,
Meus cumprimentos
Joo-Gzai”
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copo com a mão e jogá-lo no chão em vez de usar a mente para explodi-
lo. Certamente havia questões e práticas mais importantes e complexas
que aquela.
– Que bom, então não vou sentir pesar em perder esse poder – decidi
– podem fazer isso parar?
– Vamos tentar.
Eles se levantaram e me conduziram a outro cômodo. Lá sim que era
impressionante
Era a sala ritualística, para magia cerimonial. Altares, toalhas, mesas,
tudo muito bem decorado com símbolos arcanos. Geraria a emoção
necessária.
Pediram que eu deitasse no centro. Percebi até a mesa sagrada da
Magia Enochiana num canto e pensei: “Ah, já era. Vão fazer um
exorcismo”.
No outro canto havia uma mesa com utensílios de alquimia. Os
quatro folheavam grimórios e debatiam, como se fossem médicos e eu a
paciente aguardando que a operação se iniciasse.
Raquel, que provavelmente era boa em RHP, ia operar a Mesa
Enochiana. O tal Jonas ia mexer nas poções. Fábio traçou o círculo e o
triângulo para se ocupar da Goetia. Ângela, por sua vez, coordenaria a
totalidade da operação para que tudo ocorresse conforme os planos e
iniciou com o banimento. Pelo jeito, eles tinham misturado um monte de
sistemas mágicos para ver se pelo menos um surtia efeito.
Meu coração estava acelerado. Era a primeira vez que eu fazia parte
de um ritual de grupo. E provavelmente eu só precisaria assistir. Se bem
que eu era a protagonista do espetáculo. Ia improvisar.
Círculos arcanos foram traçados. Fórmulas evocatórias em
Enochiano e em idiomas bárbaros foram pronunciadas. Aquilo tudo
mexeu comigo. O formalismo era espetacular. Se eles tinham poderes de
fato ou não, eu desconhecia. Mas, pelos céus, eles eram elegantes ao
extremo. E aquilo funcionou comigo. Eu expressei reação. Era isso que
eles queriam.
Sim, tinha algo lá. Um choque de entidades. Aquilo era demais. Tudo
vindo para cima de mim, me sufocando. Atmosfera extremamente
pesada. Forte, muito forte. Eu gritei.
Estava ficando nervosa, com medo. Queria que parasse.
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Capítulo 2
Ela sentia fraqueza pelo corpo inteiro. Até abrir os olhos era difícil.
Ficou assustada quando se deparou naquele local desconhecido, pois
estava sozinha.
Não via problema em estar só, contanto que sua memória estivesse
boa e conhecesse o cheiro dos lençóis que cobriam seu corpo ou do
travesseiro no qual repousava sua face.
Aquele não era o caso. Todos os cheiros estavam diferentes. A
textura das coisas também era esquisita. Foi tentar tocar as superfícies e
não conseguiu se mexer.
Seu coração acelerou. Sentia o corpo inteiro dormente.
– Ofélia, você acordou.
Não houve sinal de surpresa na voz. A recém-chegada apenas sentou-
se numa cadeira ao seu lado.
– Estou com sede – disse Ofélia – tenho uns pedaços de
acontecimentos na minha memória, mas eles não se encaixam.
– Vão encaixar – garantiu a garota.
Ofélia levou um susto.
– Por que tem uma agulha no meu braço? – perguntou Ofélia, com
voz trêmula – Não quero. Tira isso.
– Calma. Vou buscar sua água.
Ela saiu de lá. Ofélia suspirou; meio mal humorada, meio preocupada.
Alcançou o controle e ligou a TV que havia naquele quarto de hospital.
Era um aparelho pequeno e a imagem era péssima.
– Por que ligou a TV se você não gosta? – perguntou a garota,
quando retornou.
– Porque é como se eu tivesse batido a cabeça. E tenho vontades
diferentes.
– Não foi bem isso que aconteceu. Na verdade acho preferível não te
contar o que houve. Melhor você esquecer.
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Meu sonho era obter meu primeiro pet, que só era conseguido com
cartas que os monstros dropavam. Enquanto as moças elegantes da
Dreamers tinham os pets mais raros e charmosos, eu ainda lutava para
conseguir meu primeiro. O meu preferido era o Box Pig e eu até cheguei
a sonhar com ele uma vez. Infelizmente eu não podia continuar com o
pet robô que eu obtinha no tutorial.
Cozinhei tanta coisa no jogo que fiquei com fome e devorei uma
janta com arroz, bife e batata frita. Eu já estava no level 9 e pretendia
ficar ainda mais forte.
Pelo menos com aquela distração relaxei desde a pequena briga com
Alfredo. Na manhã seguinte eu iria vê-lo.
Assim que entrei na sala já ouvi os apitos de tamagotchis. Digamos
que metade da turma carregava um daqueles bichinhos, para a
infelicidade dos professores, que eram constantemente perturbados com
os apitos infernais.
Gisele conseguiu um tamagotchi colorido e fiquei morrendo de inveja.
A mascote era um bolinho. O bichinho do Otávio era um alien. Gabriela,
uma riquinha metida, encomendou um todo elaborado em que podia
criar três bichos ao mesmo tempo.
Eu nem andava falando com Cíntia e Irene, já que elas não tinham
tamagotchis. A praia delas era um jogo chamado Littlest Pet Shop. Eu
não era tão fã. Até achava meio assustador. Algumas colegas minhas
gastavam horrores para conseguir colecionar todos os bichos. Você
podia criá-los virtualmente e também comprar a coleção na vida real. Eu
tinha uma colega louca chamada Maiara que tinha um verdadeiro
exército com algumas centenas.
– E aí, Ofélia. Firmeza?
– Fala, Bernardo.
– Me explica aí como é que tá esse trem da modinha das garotas –
disse Bernardo – não tô entendendo mais nada. Primeiro foi tamagotchi,
depois HKO e agora LPS. Eu não tenho tanta grana, meu. Saca só meu
tamagotchi.
E eu ainda fui olhar o tamagotchi vermelho dele com uma suástica e
um bonequinho com corte de cabelo peculiar.
– Nazigotchi – li – que mau gosto, cara.
– É o Führer. Tô só zoando. Nem curto ele.
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Todo fim de aula íamos para a minha casa ou para a casa dele.
Permanecíamos na cama por no mínimo três horas. Depois do sexo, eu
logava no HKO. Era esse meu dia: aula, sexo e Hello Kitty. E aquele
padrão foi mantido pelas próximas semanas.
– Ofi, a gente tem que estudar – Alfredo tentou avisar – vai ter
prova...
– Nosso amor é mais importante.
– Mas... essa rotina ocupa o dia inteiro. Pelo menos vamos reduzir o
nosso período no jogo enquanto tá perto da semana de provas.
– Eu estou no level 21 e quero ficar cada vez mais forte. Não posso
reduzir meu tempo de jogo.
Ele não teve argumentos. Como não conseguiu me convencer, ele
começou a ficar cada vez menos tempo logado. Eu percebia que ele não
gostava muito de HKO e só logava lá para falar comigo, pois ele estava
sempre em level baixo.
Foi uma pena que não consegui fazê-lo gostar do jogo. Ele também
não tomou conta direito do tamagotchi e ele morreu. É verdade que
devido ao meu vício no RPG online também fiquei meio desleixada em
cuidar do meu bichinho e Mimi morreu antes do tempo previsto. Pelo
menos durou mais que Fufu, o que prova que fui uma dona mais
dedicada.
– Vamos criar novos tamagotchis, desde o começo? – sugeri.
– Não sei, Ofi, talvez depois da semana de provas...
Nem quis saber. Criei um novo. Ele, sob pressão, também. O
bichinho dele morreu em pouquíssimo tempo dessa vez.
Eu estava braba, porque Alfredo tinha perdido o interesse tanto no
tamagotchi quanto no jogo online. Naturalmente ele nunca gostou muito
dessas coisas, mas a chegada da época das provas foi a desculpa perfeita
para se livrar delas.
Foi algo que aconteceu pouco a pouco. Alfredo, com todo seu
cavalheirismo e gentileza, raramente recusava algo que eu pedia. Tanto
que ele estava suportando bravamente nossa jornada de sexo por meio-
período.
Um dia ele se manifestou.
– Ofélia, preciso falar com você.
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– Caso ainda tenha interesse, em mais dois anos poderá fazer parte
do nosso grupo. Então terá uma resposta mais completa para sua
pergunta. Por enquanto digo apenas que as coisas estão agitadas por lá.
Novos membros, novas confusões.
– Não sei se ocultismo é pra mim – confessei – tenho medo de mexer
demais na minha cabeça e ficar fora de controle.
– Gregório destruiu seu pingente – lembrou Ângela – no seu caso é
desaconselhável reunir muita fonte de poder num único amuleto.
Trabalhe menos com magia cerimonial e mais com meditações sem
utensílios. É a via ideal para direcionar a mente. Quando estiver
preparada, avance para as próximas etapas.
– Eu estava pensando em trabalhar com servidores e usar um
tamagotchi como fonte de energia.
– Não – ela disse, imediatamente – péssima ideia. A não ser que
queira quebrá-lo depois. É como o jogo do copo. Não use copo de
cristal. Você não sabe o que te espera.
Pelo jeito eu tinha o hábito de amaldiçoar qualquer coisa que eu
energizasse por muito tempo. Era como uma faca de dois gumes. As
coisas com as quais eu mexia podiam ser maravilhosas ou horríveis. Eu
tinha que aceitar esses dois lados do poder, que no fundo eram uma
coisa só.
– Você pode achar estranho o que vou te dizer agora, mas você devia
ser treinada na magia negra.
– Quê? – perguntei, completamente confusa – Eu não quero
machucar pessoas. Já machuco o suficiente sem magia. Minha
personalidade é muito explosiva em picos de raiva, embora eu seja
estável na maior parte do tempo.
– Não foi isso que eu quis dizer – explicou Ângela – o Left-Hand
Path lida com as mais diversas dimensões da psique. Não precisa fazer o
mal e sim conhecer o mal.
– Que é o mal? – perguntei, intrigada.
– É uma dimensão consciente da sua mente que age intencionalmente
para produzir efeitos que você, em seu conhecimento empírico, reflete
para seu próprio axis mundi.
– Pode explicar isso na minha língua? Só entendi metade.
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tempo belo e perspicaz me irritou ainda mais. Era isso que gerava o
poder?
– Não entendi qual a diferença desse cara pra um psicopata –
argumentei – ele é um psicopata ocultista?
– Ele não faz isso para enganar as pessoas, fingir ou obter alguma
vantagem material. Ele será sincero, mas tão sincero quanto uma mulher
que cobre o rosto com uma maquiagem. Todos sabem que aquele não é
o rosto dela, mas aceitam com naturalidade.
– Ângela, eu estive no psiquiatra tomando remédios recentemente –
comentei, meio com medo – vai ser a coisa mais fácil do mundo pra esse
cara me convencer a, sei lá, cometer suicídio.
– Eu não te indicaria essa pessoa se não confiasse nele.
– Será que ele não te enganou também? – perguntei, desconfiada –
Para ele deve ser mais fácil ludibriar mulheres.
Ela riu.
– Não pense que sou uma iniciante nesses assuntos – avisou Ângela –
é verdade que alguns membros, tanto homens quanto mulheres, não
gostam dele porque o acham muito convencido. Eu devo expulsá-lo sob
que pretexto? Por ser vaidoso e presunçoso? Prefiro tentar aproveitar
essa presença que causa perturbação para objetivos ambiciosos.
– Como me treinar.
– Você tem algo especial, mas só o tempo e o treinamento correto
vão te levar a atingir um potencial ideal, que não apresente perigo à sua
existência física e ao seu estado mental. Não vou permitir que atinja as
estrelas, mesmo que toque Deus ou além, se isso for te ferir. Não sei se
você está ciente do quão mal você estava quando nos contatou da
primeira vez.
– Eu não estava ciente, mas minha psiquiatra sim – garanti – agora
também estou mal, mas não tanto. Terminei um namoro há pouco
tempo.
– Estou te enviando um instrutor e não um namorado. Bem, eu não
tenho nada a ver com a vida pessoal dele ou com a sua. Eu o conheço
como magista e se ele a ferir com ensinamentos, eu assumo a
responsabilidade por esse mal. Mas se ele te ferir com um tipo de
amizade que foi longe demais, isso está por sua inteira conta e risco.
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imortais, mas espíritos mortais. Isso porque o espírito ainda não havia
recebido a luz. O fruto tornou seus corpos mortais, mas seus espíritos
eternos.
– Que extraordinário...! – exclamei, impressionada.
– E não é só isso. Daat é o conhecimento. O abismo tem o mesmo
nome do fruto proibido. Porque Lúcifer, a serpente, tinha em si Daat;
tinha em si a luz. Ele atravessava os túneis de Set, mergulhava no abismo.
A Árvore da Morte é o corpo mortal. A Árvore da Vida é o espírito
imortal. E a Árvore da Ciência é a mente que os unifica; aquela que dá o
conhecimento do bem e do mal e a capacidade de julgamento que realiza
a unificação e equilíbrio dos opostos.
– Ah, é como na alquimia – lembrei – o sal é a mente que une
mercúrio e enxofre; alma e corpo.
– Vamos parar por aqui – disse Demian – você não vai suportar o
resto. Sinto sua mente pesada.
Ele entregou-me um pedaço de papel. Lá havia uma imagem humana
com os símbolos dos chakras e o alfabeto Devanagari.
– Eu não sei ler sânscrito – eu disse – não adianta.
– Olhe mesmo assim. Seu corpo não lê. Seu cérebro não processa as
informações para impressionar sua mente. Contudo, o espírito entende.
Fitei o pedaço de papel e tentei sentir o que estava escrito.
– Você vai me falar sobre os chakras e o poder psíquico que cada um
desperta? – perguntei, com medo.
– Eu falaria, mas sei que você não quer ouvir. Isso porque no fundo
você já sabe.
Eu tremi. Queria sair de lá. Odiava a presença dele. Eu estava com
medo.
– Quero ir embora – falei, com voz trêmula – por favor.
Lágrimas caíram dos meus olhos. Ele não se apiedou de mim.
– Você sabe onde está Keter no seu corpo? – ele perguntou.
Aquela pergunta era fácil. Correspondia ao Sahasrara, chakra
coronário; a Coroa, como Keter.
– E agora, você saberia me dizer onde está Daat? – ele perguntou,
astutamente, sem nem esperar minha resposta.
– Não...
Eu sabia.
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Capítulo 3
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Geny: Rosinha, sua sumida! Nunca mais logou no HKO, sua traidora,
bastarda miserável. Abandonou nossas ovelhas. Tomara que seu milho
tenha apodrecido e seus pets tenham virado cadáveres!
Fifi: Também estava com saudades, líder. Mas eu não sou rosinha! Só
o meu arroz que é rosa.
Geny: Sua buceta também é.
Fifi: Ah, cala a boca, flor!
Geny: Eu te vi ontem, docinho.
Fifi: Quê? Não me diga que você era o caminhoneiro disfarçado!
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– Olha, até hoje estamos esperando por alguém que possa competir
de igual para igual com ele – disse Eugênia – nem o Fábio segura a bola,
pois o nível da discussão é alto. Acho que a minha irmã até aguentaria,
mas ela não tem paciência com ele.
– Aposto que ele só está se gabando.
– Pior que não, Fifi. Ele sabe mesmo, mas é um babaca. Quando ele
chega na sede da Ordem sempre tem um ar de superioridade. Ele senta
no canto e ignora todo mundo, como se fosse um rei. Às vezes ele só
fica quieto e até dorme nos debates, pois ele não considera certas
discussões “ao nível dele”. É um perigo cada vez que ele resolve abrir a
boca. Até o mais trivial comentário dele soa como uma bomba. Nada
que ele diz é inocente ou pra contribuir com o debate e sim pra humilhar
os outros. Ele não deixa escapar nada, o menor erro. E enquanto fala é
cuidadoso e perfeito.
– Eu acharia um furo nos argumentos – garanti – e iria humilhá-lo na
frente de todos. Eu o deixaria sem reações.
– Com certeza todos iriam adorar isso, já que o pessoal o detesta.
Seria um show e tanto. No fundo já aconteceu: Gregório calou a boca
dele, mas também “apanhou metafisicamente” com o discurso insistente.
Gregório é muito melhor. Aquele cara sabe disso, por isso ele tem muita
inveja do mestre da Ordem.
Quanto mais eu ouvia elogios ao Gregório, mais eu me derretia. Mas
eu já havia me conformado que ele era inatingível e morava longe. Eu
não conseguia nem falar com ele por telefone!
Quem sabe se eu voltasse a manifestar meus poderes psíquicos eu
poderia chamar a atenção dele. Por outro lado, eu não tava a fim de
parar no hospital de novo ou sofrer algum impacto psicológico severo.
– Esse membro metido aí, o que você acha dele, particularmente? –
perguntei.
– Ele é um imbecil – garantiu Eugênia – não tenho a menor vontade
de bater papo com ele. Não sei nada sobre ele e nem quero saber. Eu já
insisti pra minha irmã expulsá-lo, mas ela disse que não pode fazer isso.
Afinal, ele contribui bastante pra Ordem. Ele arruma o site e até já
escreveu alguns artigos muito bons. Ângela não quer mandá-lo embora,
pois sabe que seria um desperdício perder alguém tão inteligente quanto
ele. O jeito é aguentar a pedra no sapato. Mas de vez em quando Ângela
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dá umas indiretas pra ele se comportar. Não sei se ele liga muito. Ele é
muito confiante e não deve se importar se for expulso. Deve achar que a
presença dele é um presente pra Ordem. Filho da puta! Meu sonho é
meter um soco nas fuças desse desgraçado.
– Woa! Você o odeia mesmo! – eu ri demais – Tô muito curiosa
agora. Quero conhecer esse cara. Qual a idade dele? Como ele se parece?
– Por incrível que pareça, ele só tem 18 anos – contou Eugênia – na
verdade deve ser por isso mesmo que ele só quer perturbar todo mundo
e se acha tão esperto. Quando for mais velho, espero que ele adquira
mais maturidade, humildade e vergonha na cara. Ele é um tipo com
olhos e cabelos pretos. Confesso que ele é bonito, mas de que adianta se
é um idiota? O nome dele é Demian. Provavelmente um dos exemplares
mais insuportáveis de ser humano com quem você vai cruzar nessa vida.
Levei um susto quando ouvi isso.
– Eu conheço esse cara – falei – naquele dia que eu e você nos
conhecemos no ano passado, a Ângela marcou um encontro para que eu
conversasse com ele.
– Não me diga que é você a garota com superpoderes que bateu no
Demian? – perguntou Eugênia, surpresa – E que fez com que objetos
levitassem com a força da mente quando Gregório veio a Brasília?
– Essa sou eu! – garanti, orgulhosa.
– Poxa! – Eugênia riu – Que viagem! Sou sua fã. Tanto por ter batido
no Demian quanto por saber usar TK e esses outros poderes sinistros.
Que achou dele?
Eu não soube responder imediatamente. Sinceramente, ao pensar no
sujeito senti um arrepio.
– Eu não gosto dele – decidi – eu me senti muito mal quando me
aproximei desse sujeito. Ele tem uma aura pesada, horrível. Você não
sentiu nada?
Eugênia deu de ombros.
– Eu não sinto essas coisas. Para mim ele é um cara normal, mas
extremamente chato.
– Pelo que você descreveu, pensei que ele fosse mal educado –
comentei, meio surpresa – mas ele foi muito gentil comigo. Todo polido,
com fala suave, movimentos leves.
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Ainda bem que ele sentou longe de mim. Nem olhou na minha
direção e era provável que não tivesse me notado. Sentou-se perto de
Laura. Mas, enquanto ela optou por uma cadeira, ele preferiu o chão.
Simplesmente encostou-se numa parede e fechou os olhos.
“Ótimo, ele já vai dormir” pensei, indignada. Era exatamente como
Eugênia disse: ele provavelmente não se importava com os debates e
aguardaria até que o assunto fosse de seu interesse para prestar atenção.
Eugênia fez uma careta quando o viu entrar. Os demais também não
o fitaram com bons olhos. Pelo menos dormindo ele não incomodaria.
– Você tá bem, Fi? – Eugênia me sussurrou.
– Não sei – confessei, ainda meio perturbada.
– Mana, a Ofélia não tá se sentindo bem – avisou Eugênia.
Ângela ficou preocupada e perguntou o que eu tinha.
– Um pouco de dor de cabeça – confessei, nervosa.
Falei baixo. Preferia que aquele cara não reparasse que eu estava na
sala. Quem disse que ele ligava? Aquele ali não se moveria e não abriria
mais os olhos até o fim da reunião.
Ela me deu um comprimido. Agradeci e bebi a água, sempre olhando
na direção do sujeito, para ver se haveria algum movimento daquele lado.
Enquanto eu me mantivesse a alguns metros dele, tudo ficaria bem.
Respirei fundo e tentei me controlar.
– Onde estávamos? – perguntou Ângela, meio perdida.
– Você dizia que o praticante não precisa mais seguir os
mandamentos após contatar o SAG – informou Jonas – então se o anjo
mandar o adepto matar alguém, ele deve matar?
– Sim – informou Ângela – porque o “bem” tornou-se mais
complexo. Ele não se baseia mais em regras e leis distintas. Afinal, a
consciência de Deus não pode ser apreendida pelos seres humanos. O
contato com o anjo guardião quebra as concepções estabelecidas. É
como um resgate do simbolismo do Éden.
– E aqui entra a filosofia cabalística – observou Fábio – Crowley
menciona a queda no abismo de Daat após esse contato. Isso porque
durante o período de preparação para receber o mensageiro, o magista
escala a Árvore da Vida a partir de Malkhut, o Reino. Ele se enrosca nos
galhos que envolvem os planos da misericórdia e julgamento. Tropeça
no abismo, porque ele deseja a sabedoria; contudo, não pode haver o
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Ele olhou na minha direção pela primeira vez. Eu devia ter ficado
quieta. Não gostei da sensação que senti quando ele me fitou, como se
estivesse perscrutando minha alma.
– Não importa o que eu fale ou o que eu faça – respondeu Demian,
com calma – nem mesmo o que eu penso. Deus conhece minha alma.
Mesmo que eu blasfeme mil vezes, ele enxergará a pureza de meu
espírito e saberá que o meu amor é muito maior do que o daqueles que
O defendem por fora, mas o renegam por dentro, como a senhorita.
– Achei que o seu Deus apreciava a humildade – observei, perspicaz.
– Aquele que desenvolveu o contato supremo com seu SAG não
precisa mais seguir o bem e os mandamentos triviais construídos para os
humanos fracos – disse Demian – ele se encontra acima disso,
extremamente elevado diante dos olhos do Salvador; assim como os
anjos do Apocalipse que pilham e destroem. Afirmar que humildade é
boa e arrogância é ruim não passa de um maniqueísmo ingênuo que os
falsos bons usam para julgar seus irmãos.
Finalmente eu entendi a que Eugênia se referia. Os argumentos dele
eram tão absurdos que não havia o que rebater, a não ser que o
interlocutor também escolhesse seguir uma lógica igualmente absurda.
Não é que Ângela não fosse capaz de vencê-lo numa discussão. Ela
simplesmente não via sentido em se envolver com aquele discurso
nonsense.
A reunião daquele dia terminou com todos completamente putos da
cara. Claro, Demian tinha destruído a palestra de Ângela. Não era para
menos. Estavam todos irritados com ele novamente. Ou talvez já
tivessem desistido de se estressar com aquilo. Alguns nem discutiam
mais com Demian, como Ângela e Fábio. Pedro então devia tapar os
ouvidos.
No final, Laura foi falar com Demian:
– Ian, você sabe onde está o meu gnomo Chou-chou?
– Lá – Demian apontou para um canto – ele estava assustado e
escondeu-se atrás da cortina.
– Mesmo? Vou lá ver. Obrigada.
E ela se afastou. Balancei a cabeça em desaprovação. Era difícil dizer
qual dos dois tinha mais furos no cérebro.
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com quem tenho relações rezo uma Ave-Maria. Ainda tenho uma conta
para completar minha Coroa de Rosas.
– Desculpe interromper a discussão teológica, mas desejo falar com
você em particular, Demian. E deve ser agora.
Quem disse isso foi Ângela, que havia voltado para a sala. Eu me
virei e vi a Eugênia rindo. Entendi imediatamente o que havia
acontecido: Eugênia ouviu o comentário de Demian sobre Ângela e foi
fofocar para a irmã. Eu me sentei com a Eugênia para assistir ao
espetáculo.
– Minha irmã acabou de me contar que você fez certo comentário
desrespeitoso a meu respeito enquanto conversava com a Ofélia – disse
Ângela – isso é verdade?
– Sim, mestra – respondeu Demian, de cabeça baixa – sinto muito.
Prometo que não vai se repetir.
– Espero que não. Pois se eu escutar outro comentário sobre isso no
futuro, irei expulsá-lo imediatamente da Ordem. Está claro?
– Sim, madame – respondeu Demian.
Ângela foi embora. Eu e Eugênia seguramos o riso. Embora Demian
não tenha ficado constrangido – já que ele não tinha vergonha na cara
mesmo, e falava qualquer coisa sem o menor pudor –, foi uma situação
chata. Ângela nunca o havia ameaçado antes.
Portanto, aquele dia foi uma vitória. Mas ainda faltava um longo
caminho até derrotá-lo por completo.
– Minha meta é que ele seja expulso – Eugênia contou-me depois – e
não seria só eu que ficaria feliz se isso acontecesse.
O próximo encontro da Ordem só aconteceu alguns dias depois.
Daquela vez Demian não chegou atrasado. Quando entrei na sala, ele já
estava lá no canto dele de olhos fechados, enquanto a Laura procurava
duendes nas cortinas. Dessa vez ela usava um vestido muito sensual,
preto com detalhes em vermelho, certamente para impressionar Fábio
quando ele chegasse.
Sentei-me ao lado de Demian para ver se ele abria os olhos. Ele não
deu a mínima.
– Que estava lendo? – perguntei.
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– Então por que você está com uma Playboy e fica falando besteiras?
– perguntou Eugênia.
– Um colega meu do seminário me emprestou – contou Demian – eu
prefiro cometer esse pecado a fazer o que não devo.
– Você se masturba com isso? – perguntei.
– Acho que estamos indo longe demais nas perguntas, hã? –
comentou Demian, guardando as Bíblias de volta na mochila – Que nada,
eu só ligo os pontos e pinto de canetinha.
– Pro inferno que tu é seminarista, rapaz! – falei – Até parece, seu
mentiroso.
– Ahhhh! Morcegooooo!!!
Quem gritou isso foi Laura, que pelo jeito encontrou mais do que
duendes na fresta da janela.
Demian levantou-se imediatamente e foi até lá. Segurou o morcego
com a mão. Caminhou até onde nós duas estávamos.
– Não se aproxime! – gritou Eugênia – Tira isso de perto de mim!!
– Mas ele é tão gracioso – observou Demian.
Eu e Eugênia gritamos. Demian sorriu: aí estava uma coisa nova.
Por fim, ele soltou o morcego de novo lá fora e fechou a janela.
Alguns minutos depois, Ângela e Fábio chegaram.
– Gil, o Demian disse que é seminarista – informou Eugênia – baita
mentiroso.
– Eu já sabia – contou Ângela – fui informada das circunstâncias
desde a época da admissão dele na Ordem.
– Então é verdade? – perguntou Eugênia, boquiaberta.
Ela confirmou. Eu me senti meio mal quando eu soube disso.
Digamos que foi um susto. Não importava que ele lesse revista de
sacanagem. Ele devia estar muito certo do que queria para estar no
seminário desde os 12 anos. Estava lutando contra alguma coisa dentro
dele e queria vencer. Eu só atrapalharia com minhas perguntas e
insinuações indelicadas.
– Se você tá lá desde os 12, então... você não transou com cinquenta
e nove mulheres – constatei.
– Você é um gênio – ele observou.
Eu o fitei com uma expressão estranha. Agora eu via uma coisa
diferente quando eu olhava para ele. Demian não gostou do meu olhar.
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– Não me olhe assim – ele avisou – não fique com pena. Eu não vou
morrer. Essa escolha foi minha.
– Por quê?
Minha pergunta era idiota. Ele também sabia. Por isso não respondeu.
– Me desculpa por ter feito brincadeiras rudes – resolvi dizer – se
bem que você pediu por isso, mas... prometo que não vou implicar mais.
– Eu apreciaria – respondeu Demian.
– Deixa ele, Ofélia – disse Eugênia, me levando pro sofá – o resto do
pessoal já tá chegando. A reunião de hoje vai começar.
Naquele dia o assunto em pauta era meditação. Não liguei muito para
o que Fábio discursava sobre isso, pois minha cabeça estava longe.
Eu estava meio triste. Eu não entendia como uma pessoa escolhia
acabar com a própria vida em questão de segundos. Demian havia
arrancado uma parte fundamental da existência. Aquilo era difícil. Mas se
ele tinha um objetivo maior com tudo aquilo, eu entendia. Só não
aceitava.
– Quando o praticante domina os estados de jhanas na meditação
pode desvendar os caminhos para desenvolver as cinco abhinnas, ou
poderes supramundanos – explicou Fábio – elas incluem: dibbacakku:
olho divino, ou clarividência; dibbosotta: audição divina;
pubenivasanusattuna: lembrança das vidas passadas; paracitta vijanana:
telepatia e iddhividha: poderes psíquicos diversos, como voar pelo ar e
andar sobre as águas.
– Com licença – observei – eu nunca meditei a sério, mas já consegui
umas habilidades estranhas. Isso significa que também posso obtê-las
sem passar pelos jhanas.
– Sim, mas o desenvolvimento será mais instável – observou Fábio.
Aquilo era verdade. Minha telecinese era completamente aleatória ou
só acontecia quando eu expressava um sentimento muito forte.
– Perdão, mas tudo o que vocês disseram até aqui está errado –
comentou Demian – permitam-me corrigir.
“Lá vai ele outra vez” pensei, aborrecida.
– Não é necessário meditar para alcançar a graça – observou Demian
– basta crer em Deus e tudo mais lhe será acrescentado.
– Poderes também? – perguntei.
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– Por quê?
– Porque o anjo perdeu sua inocência e pureza – respondeu Demian.
– O amor e o sexo são puros – afirmei – envolver-se nos braços do
ser amado e retornar à inocência de uma criança. Isso sim é divino e
perfeito. Se você quer sentir Deus, deveria sentir o abraço de uma
mulher. Entregar-se a esse abraço, assim como você entrega seu amor a
Deus. Sem medo, sem vergonha... não foi você que disse que devemos
chorar diante de Deus e simplesmente amá-lo?
– Sim, mas... droga, você está me deixando confuso – disse Demian.
– Ao comer da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva se deram
conta de que estavam nus e se esconderam – observei – a união sagrada
de um homem e de uma mulher através do sexo restabelece a inocência
original. Homem e mulher não fogem um do outro ao verem-se nus e
recuperam o Éden por esse amor.
Demian apenas fitava o chão, completamente imerso em
pensamentos. Sentei-me no chão ao lado dele e abracei-o.
Ele não me evitou. Estava paralisado. Mas por mais que ele se
fingisse confiante por fora, não conseguia disfarçar as batidas aceleradas
do seu coração.
Dei-lhe um beijo nos lábios. Um beijo longo, o melhor que consegui.
Depois disso, sussurrei-lhe no ouvido:
– Estou louca pra ver a expressão que você fará quando eu fizer uma
felação em você.
Nesse instante, ele se afastou.
– É o bastante – ele levantou-se – você sabe que quero ser padre e
está destruindo meus sonhos. Jamais se aproxime de mim de novo.
– Mas... achei que você pudesse construir novos sonhos.
Ele agarrou o crucifixo do pescoço com força.
– Você não vai arrancar meu Deus de mim.
E, com essas palavras, ele foi embora.
“Que cara complicado!” pensei, confusa. Eu não devia ter sussurrado
pra ele algo tão forte. Eu precisava criar uma atmosfera de inocência e
pureza para que ele aceitasse aquilo com naturalidade. Malícia não
funcionaria com ele.
Resolvi sair de casa também, para ver se eu encontrava Demian nos
arredores ainda. Era pouco provável, mas não custava tentar.
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– Vou fazê-la sentir muita dor – ele afirmou, todo sério – não pense
que sou iniciante.
Tive que segurar a gargalhada.
– Sim, querido, você e sua mão devem ter praticado duro no
seminário – afirmei.
Empurrei-o com força contra a parede e dei-lhe um beijo longo. Tirei
a camisa dele e a minha.
“Que magrelo” pensei, desapontada. Dava pra sentir até as costelas.
Eu esperava um pouco mais de carne, mas decidi não dizer nada para
não chateá-lo.
Demos uns amassos no chão, mas depois ficou desconfortável.
Subimos na cama e arrancamos o resto da roupa.
Seria a primeira vez que eu faria sexo com um maior de idade. Não
contei a ele, senão ele se sentiria mais confiante do que eu desejava. Até
então eu só havia transado com adolescentes de 13 e 14 anos. Então
digamos que o resto do corpo dele era como outro universo pra mim.
O momento da felação foi genial. Ele fez umas caras muito boas, por
mais que tentasse manter a frieza.
– Ei, eu tô te matando? – perguntei, pra me certificar – Tô te
torturando?
– Não... mas você vai ter o troco em breve.
Aquela transa seria tipo uma guerra, um tentando submeter o outro.
Que divertido! Jardim do Éden o escambau. Estava mais pra Apocalipse.
– Ei, padre – joguei a camisinha na direção dele – veste aí tua batina.
Aquilo foi um espetáculo. Ele não conseguia colocar o negócio de
jeito nenhum e ficava mais nervoso a cada nova tentativa.
– O senhor experiente que possuiu cinquenta e nove mulheres bateu
a cabeça, teve uma amnésia e esqueceu como se coloca camisinha? –
desafiei-o – Me dá isso aí que eu resolvo o problema em um segundo.
Dessa vez eu serei a instrutora.
O cheiro dele me fazia delirar. Aquela transa provavelmente foi a
melhor que eu já tive, mesmo ele sendo tão inexperiente. Eu não caçoei
dele quando houve problemas. Achei que ele saiu-se excelente para
alguém que nem sabia pôr uma camisinha.
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Depois daquela guerra sensual violenta, a gente dormiu. Não sei por
quanto tempo. Talvez umas duas horas. Quando acordei, havia aquele
anjinho caído ao meu lado.
“Seu idiota. Já sofreu por muito tempo. É hora de viver: sem culpa,
sem arrependimentos. Simplesmente chorar e sorrir sem esperar
julgamentos do céu, do inferno ou da terra”.
Coloquei a cabeça para fora da janela. Vi algo lindo e acordei Demian.
– Ei, Demian, vem aqui ver! Deus está feliz por você. Ele te enviou
um presente. Os duendes da Laura fizeram um bom trabalho. Olhe para
o céu!
Ele levantou-se preguiçosamente e foi até a janela. Lá ele viu um
belíssimo arco-íris por trás das casas.
– É mesmo – ele comentou, maravilhado – não é que o Senhor está
feliz comigo?
Dei-lhe um beijo na bochecha. Demian ficava ainda mais fofinho
acreditando em Deus.
– Me conta uma coisa – pedi – por que brigou com seus pais?
– Eles batiam em mim, então fugi de casa até a igreja e nunca mais
voltei.
– Mas eles batiam... para machucar mesmo?
– É, eles pegavam meio pesado às vezes – disse Demian – e eles
faziam umas punições envolvendo sexo que eu sempre odiei.
Nesse instante fiquei horrorizada. O choque cobriu meu rosto de
lágrimas e eu o abracei.
– O que foi, Ofélia? – ele perguntou, intrigado – Isso não foi agora,
foi há seis anos.
Ele era tão inocente que nem devia se dar conta do quão grave era
aquilo. Bem, se ele foi abusado sexualmente pelos pais, não importava o
quão levemente tivesse sido, era perfeitamente compreensível que ele
pensasse no sexo como algo ruim, que o afastaria de Deus. Agora eu o
entendia totalmente.
– Não pense que eu sou um santo – ele avisou – quando eu era
criança tinha tendências muito violentas. Não sei direito do que eu tinha
raiva, mas eu espancava meus colegas pra valer. Já mandei vários pro
hospital. Eu pareço ser fraco, mas quando a fúria me domina, eu quebro
coisas e pessoas que estão pela frente. Sempre fui assim.
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– Você ficou assim por causa dos seus pais que te batiam, seu tonto!
– falei, com raiva dos pais dele.
– Por tudo isso, tive que depositar minhas esperanças apenas em
Deus – ele explicou – eu queria que Deus me salvasse da minha própria
fúria.
– E agora você não tem apenas a Deus, mas também a mim pra te
ajudar.
Ele não sabia direito o que ia fazer a partir dali. Decidiu que ainda
adiaria alguns dias para comunicar a decisão de largar tudo no seminário,
pois ainda precisava de um lugar para dormir. Ia tentar obter uma vaga
na casa do estudante até lá.
– Parabéns, Ofélia – ele disse, antes de sair da minha casa – você
passou no teste.
O que ele disse me deixou muito intrigada, pensando em quem
realmente havia ajudado quem.
Naquela mesma noite, claro que eu fiz questão de ligar para Eugênia
e contar essa fofoca quente.
– Você trepou com o padre?! – ela perguntou, com espanto – Como
conseguiu convencê-lo?
– Através de argumentação teológica, é claro – respondi,
naturalmente.
– Ele é quente na cama? Como é o corpo dele?
– Me desculpe, Geny, mas eu obtive essa conquista com muito
esforço, então vou guardar esses segredos só pra mim.
Não me comuniquei com Demian nos dias seguintes. Somente na
ocasião do próximo encontro da Ordem. Como Demian informou
Ângela de que eu havia passado no teste dele, obtive a permissão de
participar de um ritual.
Era uma evocação goética. Eu definitivamente não entendia Demian:
ele vivia falando de Deus, mas ia lá evocar demônios com a maior
naturalidade.
– Eu tenho meu SAG – ele explicou – minha honra, meu orgulho e
meu poder!
“Começou...” pensei aborrecida.
Enquanto Jonas explicava sobre a evocação de demônios, é claro que
Demian interrompeu-o para dizer:
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Capítulo 4
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– Dorme aqui hoje, meu bem? – sugeri – Você nunca dormiu aqui
antes.
– É, vai ter que ser. Já é madrugada, nem sei se consigo ônibus mais.
Demian levantou-se.
– Aonde vai? – perguntei.
– Pegar o celular na minha mochila e colocar para despertar – ele
disse – amanhã tenho aula.
– Sábado de manhã?
– É.
– Que dó. Por que não falta?
– Sou um aluno aplicado – ele informou – nunca faltei uma aula
nesse curso e essa não será a primeira vez. Além do mais, sábado tem a
melhor matéria da semana, com um padre indiano que faz um estudo
comparativo sobre todas as principais religiões, com base no Documento
Conciliar Nostra Aetatae.
– Tá, tá – eu disse, sem interesse – mas não precisa colocar pra
despertar. Eu vou ter que acordar amanhã cedo também, aí te chamo.
– OK.
Ele deitou-se de novo.
– Tá com fome? – perguntei, passando a mão pelos cabelos dele –
Tem uma sopa de feijão na geladeira. Se quiser eu esquento.
Ele fez que não. Dei-lhe um beijo na boca e apaguei a luz. Puxei as
cobertas e deitei-me ao lado dele.
Acordei com um toque de celular. Levantei-me e atendi no corredor.
– Eugênia, você tá atrasada! – eu disse – Onde você tá?
– Na frente da sua porta. Não apertei a campainha pra não acordar
seus pais.
Vesti um roupão e atendi a porta.
– Você disse que vinha às sete e já são nove! – murmurei – Eu
prometi ao Demian que iria acordá-lo cedo. Ele tinha aula hoje. Ele vai
me matar!
– Ele tá aí com você? – perguntou Eugênia, meio surpresa.
Confirmei. Eugênia tirou o celular do bolso, toda contente.
– Quero tirar uma foto da cara dele dormindo e babando, pra depois
zoar ele – disse Eugênia.
– Espera, Geny, ele tá...
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– Não.
– Se não me mostrar agora...
– ...você termina comigo? – perguntei, cansando-me daquilo – Para
com isso, cara. Coisa mais infantil. Se não tá a fim de a gente namorar, só
diz que não. Não usa isso pra me controlar.
Subitamente, Demian deu-se conta de uma coisa.
– Quando fazemos sexo, você sempre liga esse computador, antes,
depois e, se duvidar, até durante – observou Demian – não me diga que
você fica descrevendo tudo para a Eugênia?
– Claro que não! – defendi-me – Não sou tão indiscreta a esse ponto.
– Não acredito em você. Quero ver o histórico das suas conversas.
– Nem pensar, isso é invasão de privacidade!
No entanto, Demian tentou tirar-me do computador. Eu não quis
sair de jeito nenhum. Nós brigamos assim por alguns segundos, até que
Demian empurrou-me com força e caí da cadeira.
– Ai, seu animal! – gritei – Você me machucou!
– Quero ver o que você está escondendo com tanta convicção – disse
Demian, sentando-se na cadeira.
Ele viu o histórico de várias conversas.
– “Gregório é sensual, inteligente e tem cheiro de avelã com mel” –
Demian leu em voz alta – “O Greg é tão gostosão que eu deixaria ele me
picar em pedacinhos para fazer uma salada de tomate, alface e cenoura
com meu corpo nu”. Você só fala desse infeliz! Não citou meu nome
sequer uma vez!
– Ah, então você queria que eu tivesse citado? Eu te disse que não
falo das nossas transas, mané. Pela sua reação, você preferia que eu
tivesse falado.
Ele mexeu nas minhas gavetas.
– O que é isso? – ele perguntou.
– Um elfo centauro, um alce e um carneirinho – descrevi – fui eu
quem desenhou. E eu não te dei permissão para abrir minhas gavetas,
seu grosso.
Demian jogou meus desenhos no chão.
– Que está fazendo? É isso que dá namorar uma criança emburrada.
Aposto que Gregório jamais faria algo tão imaturo.
Demian sentou-se no chão. Permaneceu fitando o nada.
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– Você não estava com pressa pra ir à sua aula? – perguntei, irritada –
Já peguei meu endereço. Vou sair. Se quiser ficar aí sentado, você que
sabe.
Demian suspirou para se acalmar.
– Vou terminar esse namoro – decidiu Demian.
– Ainda bem. Eu sofri muito durante essas horas em que fomos
namorados. Assim não serei pressionada e chantageada.
– Não serei mais seu ficante também. Não virei mais aqui, não
teremos mais relações sexuais, não sairemos juntos, não iremos nos
beijar. Não teremos mais nenhum tipo de contato físico a partir de agora.
– Essa é uma punição só porque você sabe que adoro sexo, não é? –
perguntei.
– Eu sempre soube que você só queria meu corpo – falou Demian –
É esse o tipo de pessoa que você é. Se não quer meu coração, também
não terá o corpo. Esse é o trato.
– Você não é o único corpo masculino desse mundo. Arranjarei
outros.
– Ah, então eu sou só um corpo agora, hã? Finalmente está
mostrando sua verdadeira face.
– Também existem outros caras com papos menos entediantes que
os seus. Pelo menos não vou mais escutar pregações sobre Deus no meu
ouvido.
Dessa vez Demian não gostou. Ele ficava muito mais brabo quando a
ofensa era de âmbito religioso. Mas ele controlou a raiva e apenas fitou-
me friamente.
– Não é aqui nessa terra que você pagará por essas palavras, Ofélia –
Demian ameaçou – Deus é justo. Jesus Cristo morreu por nós e essa é
sua sorte. Ele possui misericórdia pelo desprezo dos ímpios. Sabe que
agem assim somente por ignorância, pois se conseguissem escutar a
Palavra do Senhor, seriam simples e humildes.
– Demian, eu só tenho uma coisa pra te dizer...
– Se eu te cumprimentar no encontro da Ordem amanhã, já se
considere lisonjeada. Minha alma foi muito purificada pela oração e
entrega. Aqueles que recebem a graça de minha atenção serão perdoados
pelo Senhor.
– Enfia Deus no seu rabo!
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– Ah, para com isso, padre – disse Chifrudo – também não precisa
exagerar. Tirei 8 no seu teste.
– A monografia dele será sobre anjos – disse o padre – realizou uma
pesquisa tão minuciosa sobre Lúcifer nos apócrifos e em todas as fontes
possíveis que recebeu sua alcunha.
– É, foi o meu orientador que me chamou assim.
– Vou indo, crianças.
– Falou, padre.
O professor despediu-se e foi embora.
– Fale-me mais sobre sua monografia – pedi, interessada.
– Meu enfoque é na primeira tríade, os anjos mais próximos de Deus,
especialmente os serafins e querubins – explicou Chifrudo – então estou
estudando mais a fundo Metatron no Livro de Enoch e, obviamente,
Lúcifer, que é um querubim.
– E o que você está fazendo aqui, Ofélia?
Lá estava Demian com a mochila nas costas. Levantei-me e dei-lhe
um beijo na boca.
– Oi, meu docinho! – eu disse – Surpresa! Vamos lá no seu quarto
conversar?
– Sim, claro – disse Demian – tenho que ir, pessoal. Vejo vocês
depois.
– A gente se fala na missa – falou Chifrudo – e não se esquece de me
devolver minha Playboy.
Demian passou um braço nas minhas costas e saiu comigo. Quando
já estávamos suficientemente afastados, perguntei:
– Você mentiu dizendo a eles que eu era sua namorada, não é,
desgraçado?
– E você não está feliz da vida com isso? – desafiou Demian.
– Mais ou menos. Por que não faz a mentira se tornar verdade?
– Porque este não é o paraíso e você não é um anjo.
– Eles dizem que você fala de mim e que está todo apaixonado.
– É, mas como a outra metade não aconteceu, isso não faz diferença.
– Que outra metade?
– Você se apaixonar por mim – disse Demian.
– Vamos lá no seu quarto fazer amor? – propus – Quem sabe assim
eu me apaixone!
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– E qual a diferença de dizer tudo isso e falar: foda-se, tanto faz essa
merda, rale-se a filosofia, vou inventar uma coisa louca aqui até ficar
satisfeita? – sugeri.
– É um caminho – concordou Gregório – o perigo está em ficar
apenas na filosofia, somente na criação sem chão, abraçar só a tradição
ou qualquer tipo de postura exclusivista. Experimente um equilíbrio
interessante entre teoria e prática, mas sem ficar fanático pela busca do
equilíbrio. Não há problema em dançar num pé só de vez em quando. Se
ficar tonto ou cansar, saberá que a outra perna está lá ou até o resto do
corpo, para sentar, deitar, dormir ou morrer. Precisamos de um pouco
de tudo e, ao mesmo tempo, numa vida não conheceremos tudo, então
será suficiente abraçar aquilo que sabemos; e confiar.
Escutar Gregório era como ouvir uma música tranquila. Ele tinha
respostas suaves e interessantes. E vê-lo assim ao vivo, escutando as
palavras fluírem de sua boca, presenciando seu corpo inteiro, os sons, as
visões, era realmente mágico. Estranho como as pessoas desejam
procurar espíritos ou fenômenos sobrenaturais quando a visão de um ser
vivo e pensante já é tão incrível.
– Nós estamos vivos e mortos ao mesmo tempo. Quando estamos
vivos, há um pouco de morte em nós. E quando morremos, ainda resta
um pouco de vida. Vida e morte estão sempre unidas num abraço e não
podem se separar, assim como o corpo e o espírito. O estado da morte
ou do nascimento é apenas uma ilusão divertida. A verdade é que o
corpo não perde o espírito na morte e o espírito não perde o corpo.
Nosso corpo de carne se une aos espíritos da terra, do fogo, da água e do
ar no momento da morte, se enterrado, cremado, jogado às águas ou
com suas cinzas ao vento; enquanto nossa essência etérica é envolvida
pelas dimensões. Sempre há um abraço; nunca há a solidão. A vida e a
morte são eternos amantes apaixonados.
Quem disse isso foi Griselda. A voz dela era ligeiramente grave e
sensual. Foi um discurso de força e senti-me envolvida por ele. Aqueles
dois eram um doce mistério.
Como eu queria ir para a cidade deles e escutar regularmente aquelas
palestras de poder! Seria uma inspiração sem tamanho. Mas eu já sabia o
que eles diriam se eu manifestasse essa minha vontade. Gregório falaria
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que ele não era um professor e que o debate era uma troca, em que cada
um contribuía com partes, em busca da apreensão do Todo e blábláblá.
Debatemos sobre outros temas além de deidades, crenças,
epistemologia, dialética e hermetismo. As palestras daquele dia renderam
horrores. Só terminou tarde da noite e era como se eu estivesse num
sonho, conversando com um sábio profeta. Sabe quando dizem que
através de uma meditação profunda é possível atravessar uma dimensão
temporal, voltar para o passado e escutar o discurso de um Buda? Eu me
sentia desse jeito.
Pensando bem, era ainda mais especial. Gregório não era sagrado,
mesmo que fosse delicioso vê-lo daquela forma. Ele era humano. Eu
tinha vontade de conhecer mais sobre ele; sobre seus interesses
mundanos como hobbies, comida favorita, preferências sexuais... e
principalmente vê-lo em situações casuais, rindo e falando de assuntos
triviais. Eu queria conhecer esse lado dele!
Mas aquilo seria impossível para mim. Eu só tinha a oportunidade de
vê-lo formalmente na Ordem. Algo como uma vez ao ano e isso era
tudo.
Eu ainda teria um ano de colégio pela frente. Quem sabe eu tentasse
me mudar para a cidade dele depois disso e cursar uma faculdade lá.
Assim eu faria parte de um grupo maior e liderado por ele, em pessoa.
Não que eu estivesse insatisfeita com a liderança de Ângela. Ela era
inteligente e tinha ótimas ideias, mas... Gregório era Gregório!
Insubstituível.
Ângela resolveu quebrar a seriedade dos debates daquele dia,
distribuindo as luvas coloridas para pegarmos os brindes.
Em cada luva havia uma frase de ensinamento, uma bala ou bombom,
e um presentinho.
– O Demian pegou a bala de caramelo, é minha! – exclamei.
– Não quero sua bala de menta – falou Demian.
Mesmo assim, eu roubei a bala de caramelo dele e coloquei na minha
boca. Ele ficou furioso!
– Tá bom, queridinho, devolvo sua balinha – falei, docemente.
Dei-lhe um beijo na boca e, com a língua, coloquei a bala na boca
dele.
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cara de quem sentia muito desagrado por ter duas malucas histéricas ao
seu lado.
– Por que mulheres vão juntas ao banheiro? – perguntou Demian –
Ou isso também faz parte dos mistérios herméticos?
– Para fofocar, é claro – disse Eugênia, emburrada.
– Imaginei – disse Demian.
– E retocar a maquiagem – acrescentei.
– Você nem tá de maquiagem hoje – observou Demian – tá
parecendo uma tia solteirona. Ai!
Dei um tapa no braço dele.
– E às vezes fazer xixi – eu disse, por fim.
– Essa seria a função original dos banheiros, não? – perguntou
Demian – Da perspectiva teológica eu acrescentaria: Deus desejava o
bem, mas ele é onisciente e já sabia que Adão e Eva comeriam do fruto
proibido e o mal iria nascer. Ele também soube que iriam criar os
banheiros, que seriam desvirtuados de sua função original pelas mulheres.
É tudo culpa do sexo feminino, assim como foi Eva que ofereceu o
fruto a Adão e... ai, ai! Ofélia! Para de me espancar! Não sou seu saco de
pancadas.
Gregório e Griselda precisaram ir embora mais cedo. Alguns
membros foram lá para dentro organizar os pratos e copos na cozinha.
Só Laura ficou ali no chão num canto conversando com seus duendes,
além de nós três.
– Demian, por que seus colegas e professores agem de forma tão
diferente na universidade e na igreja? – resolvi perguntar – Não sabia que
padres e seminaristas faziam piadinhas com o Diabo e fossem tão
divertidos.
– Quando você estuda, seja na universidade ou de forma autodidata,
descobre certas informações históricas, filológicas, filosóficas e
teológicas que abrem seu campo de visão – explicou Demian – por
exemplo, os padres sabem que não existem provas históricas da
existência de Moisés e de vários profetas bíblicos. Mas eles não podem
dizer isso na igreja. Na universidade padres podem adotar mais
abertamente certas posturas, como defesa do aborto, homossexualidade
e eutanásia, que eles não podem manifestar em outros lugares. Muitas
pessoas simples frequentam a igreja e, sem o embasamento histórico e
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que havia acontecido? Ou ele havia entrado num transe louco, numa
fúria repentina e incontrolável, em que perdeu completamente a razão?
Mas se aquilo acontecesse com frequência, ele não poderia ficar à solta
por aí para matar alguém a qualquer momento.
Finalmente, eu resolvi me aproximar dele, com cautela.
– Demian? – chamei-o.
Ele olhou na minha direção, afastando completamente os braços do
rosto. Quando ele fez esse movimento, eu instintivamente dei um passo
para trás.
– Você também está com medo de mim – ele constatou, com uma
voz distante e vazia – todos estão.
– Não estou – menti.
– Está tudo bem – disse Demian – porque eu também tenho medo
de mim.
Resolvi sentar-me perto dele.
– Você sabia que a Eugênia pode morrer por causa do seu soco?
– Sim, fui informado – respondeu Demian.
– Você fez de propósito?
– Não sei, acho que não. Eu não sabia que ela era tão frágil; ou que
eu era tão forte. Eu só queria puni-la, mas nem eu lembro direito o que
fiz. Se ninguém tivesse me segurado, acho que eu teria estraçalhado o
corpo dela.
Eu senti um arrepio quando ele disse isso.
– Sério? – perguntei, para me certificar.
– Você acha que eu estou brincando? – ele perguntou-me, levemente
aborrecido.
– Não... – respondi, com voz trêmula, com medo de deixá-lo
aborrecido.
Ele derramou mais algumas lágrimas.
– É a primeira vez que faço isso desde meus 12 anos. Eu nunca matei
ninguém. Meus colegas já foram para o hospital com lesões feias, mas
nunca houve risco de ninguém morrer. Eu não entendo...
– Você cresceu, foi isso que aconteceu. E embora Deus tenha
aplacado sua raiva, não a fez desaparecer. Ela apenas ficou escondida
bem fundo, em algum lugar dentro de você. E hoje explodiu.
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Ela estava com o braço direito enfaixado e outras lesões. Mas o pior
era o rosto... preferi não expressar meu susto, para não assustá-la ainda
mais. Ela provavelmente ainda não tinha se olhado no espelho. Era
melhor que mantivessem espelhos bem longe dela, pois do jeito que ela
era vaidosa, era capaz que se matasse ao fitar o próprio rosto.
Sentei-me ao lado dela na cama.
– Oi Geny – peguei na mão dela – como se sente?
– Como um guisado – ela respondeu, com dificuldade – não sinto
meu rosto. Os médicos disseram que vou precisar fazer uma cirurgia no
nariz.
– Mas será algo simples, certo? Disseram que já está tudo bem, não é?
– É, só o meu crânio que ficou meio deformado. Como sou cabeluda,
tanto faz. Espero que não tenha afetado meu cérebro. Se bem que meu
cérebro nunca foi lá às mil maravilhas, então quem sabe essa pancada
tenha endireitado as coisas. Posso até ter adquirido algum poder, que
nem você.
Se ela estava bem o suficiente para fazer piadas, concluí que ela já
estivesse melhor mesmo.
– O problema maior é só o meu olho esquerdo – ela apontou – pode
ser que eu fique cega desse olho. Que merda, né? Quem vai querer
namorar uma caolha? Eu devia ter arranjado um namorado fixo logo,
antes de ficar deformada. Mas como eu ia saber? Agora só vou poder
pegar os trubufus lá do colégio. Bem, contanto que tenha um pau tá
valendo. Não serei mais tão exigente, agora que virei um monstro.
– Para com isso, Geny. Você logo estará linda de novo. E seu olho
pode até se curar. Então você será a mesma Eugênia de antes.
– Não, eu não serei – ela garantiu – eu tive uma experiência de quase
morte. Foi horrível, foi chocante, foi... porra! A dor que eu senti, meu.
Eu não saberia descrever. Meu corpo inteiro parecia ser anestesiado
pelas pancadas. Eu sabia que ia morrer. Eu vi isso bem claramente.
Nunca vou esquecer.
– Demian está arrependido – informei – ele chorou um monte e
sofreu. Ele queria obter sua permissão para vir te visitar e se desculpar.
Eugênia fitou-me incrédula.
– Ele teve a cara-de-pau de pedir isso? Pois envie minha mensagem a
ele: “Morra, desgraçado”. Eu nunca mais quero vê-lo na vida. Se minha
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irmã não expulsá-lo da Ordem, jamais falarei com ela de novo também.
E serei eu a sair. Você disse que ele chorou e sofreu? O que ele sentiu
com certeza não chegou nem perto do que eu passei. Ele quase me mata
e vem pedir desculpas? Que falso miserável!
– Eu sei. Você tem toda a razão. Estou do seu lado. Mas você não
concorda que foi longe demais na provocação?
– Nada justifica o que ele fez – afirmou Eugênia, com firmeza – e
não me venha dizer que há impactos psicológicos piores que a dor física.
Essa dor que senti e minha deformação causaram um trauma ainda pior.
As consequências futuras disso eu não posso prever. Mas não vejo nada
de bom vindo disso.
– Sim, sim, mas... mesmo que você não acredite, Demian diz que não
fez de propósito. Você sabe que os pais dele batiam nele. Ele tem sérios
problemas psicológicos e precisa de tratamento.
– Claro que eu acredito que aquele retardado tenha problemas
mentais. Não pense que vai me convencer a ter pena dele. E se continuar
a tentar defendê-lo, vou ficar chateada com você também, Ofélia. Que
bosta, eu tô toda quebrada aqui na cama e todos vocês só defendem o
meu agressor? Se eu estivesse no caixão também iriam fazer isso? Que
merda é essa, meu? Em que mundo a gente tá? É isso que você chama de
justiça? Ter compaixão por todos? Justiça o caralho! Só porque aquele
merdinha fica falando de Deus você acha que ele é bonzinho? Ah, vai te
foder. Vocês tão falando isso porque não vão perder um olho por causa
de um filho da puta revoltado qualquer.
Ela estava braba de verdade. Preferi ficar quieta. Isso porque no
fundo eu sabia que ela tinha razão. Ela estava indignada e tinha todo o
direito. Ela tinha um ponto de vista da situação que nenhum de nós
tínhamos.
– Desde o começo eu não gostei dele – disse Eugênia – Ângela devia
tê-lo mandado para fora enquanto era tempo. Teria impedido tudo isso.
Na verdade ainda é tempo.
Naquele instante, alguém bateu na porta do quarto. Surpreendi-me ao
ver que era o próprio Demian quem estava lá. Ele foi entrando, sem nem
pedir permissão.
Ao vê-lo, Eugênia deu um grito.
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Jesus Cristo morreu por nós. Deus sabe que não matei Eugênia de
propósito. A justiça será feita no céu.
– Demian... o céu e o inferno são aqui na terra.
– Eu sei. Já estou no céu, não importa o que façam comigo aqui fora.
Porque minha mente está em paz. Este é o grande mistério impenetrável
da religião, que poucos compreendem.
– Você é tão forte. Eu torcerei por você. Vou vir te visitar sempre
que puder. Mas seguirei minha vida.
– Eu entendo isso. E eu espero que você seja feliz. Não me importo
de não ter namorada. Sou acostumado ao celibato e sempre me dei bem
com isso. Não há problemas. Prometo que ficarei bem. Nunca pensei
que diria isso, mas me sinto mais próximo de Deus do que nunca.
Demian derramou lágrimas de emoção. Ele tinha um sorriso pacífico
no rosto.
– O Senhor me contou que Eugênia está bem com Ele, no paraíso –
revelou Demian – foi difícil, mas ela conseguiu me perdoar.
– Não está dizendo isso só para se sentir melhor? E para me fazer
sentir melhor?
– Se nossas existências são breves como um sonho, qual a diferença?
Por que perder tempo corroendo-se em culpa e tristeza, buscando os
comos e os por quês? Prefiro seguir minha vida simples com Deus.
Sempre foi assim. Tem funcionado bem até hoje e, até nessa etapa tão
difícil, eu consigo forças.
– Obrigada – eu disse – você me ensinou muita coisa. Antes eu
pensava que religiosos eram fanáticos de cabeça fechada. Mas você é...
especial.
– Você é especial também, Ofélia. E vai encontrar seu caminho.
Mesmo que você encontre suas respostas numa pessoa, numa atividade
importante ou num outro tipo de crença, para mim tudo isso são
manifestações de Deus com outros nomes para nos trazer alegria.
– Que Eugênia e Ângela me perdoem, mas eu te amo. Como ex-
amante, como amigo, como guia espiritual e como companheiro de
jornada. Devo ir agora. Boa sorte.
– Na próxima visita eu queria... aquele bolo de chocolate da sua mãe
– disse Demian – pode ser?
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– Na minha forma estou confusa sobre gostos, pois não possuo mais
o sentido da gustação da mesma maneira que você o conhece – explicou
Eugênia – imagino que na dimensão em que seja possível beber o tempo
o sentido da gustação desapareça completamente, para prevenir um
paradoxo. Assim nunca seria possível conhecer o gosto.
– Em um mundo sem comida e sexo deve ter outros tipos de
prazeres.
– Sim, os poderes psíquicos e estados refinados de êxtase. Minha
mente também está meio chacoalhada desde que o cérebro foi embora.
Mesmo assim, eu tenho alguns desejos ligados à minha existência
passada, como me contatar com vocês e viajar. Consegui visitar uns
países que eu jamais teria dinheiro para conhecer em vida.
– Bom saber, então não vou perder tempo e dinheiro viajando –
decidi – vou me focar mais em curtir aquilo que minha terra e esta
existência oferece, já que como espírito ou em outras encarnações terei
novas oportunidades para conferir o resto. Espero que eu volte como
uma gatinha! Queria ser a gatinha de estimação do meu bisneto.
– Prefiro que minha reencarnação seja surpresa e aleatória, pois assim
é mais divertido e estimulante.
– É um alívio conversar com você, Eugênia. Eu tinha muito medo
que você quisesse se vingar do Demian. Você viu ele?
– Eu vi, mas não muito – disse Eugênia – como eu te disse, meu
novo princípio como espírito é não invadir a privacidade das pessoas.
– Pode invadir a minha, não ligo.
– Nem tem o que invadir – reclamou Eugênia – você já conta pra
todo mundo o que faz e, se duvidar, faz até na frente dos outros e
fotografa.
Eu morri de rir dessa vez.
– Se quiser pode conferir eu transando com o Alf pra avaliar nossa
performance. Posso perguntar a ele se autoriza que um espírito assista.
– Cala a boca, Fifi. Sinceramente, eu tenho mais o que fazer. Além do
mais, prefiro evitar ver transas, pois além de eu não ter mais esse tipo de
desejo, posso ter saudades do desejo que eu possuía antes. Espero que
eu não reencarne como uma ameba! Pelo menos nessa forma não terei
consciência do meu sofrimento pela falta de sexo. Realmente, na vida
costuma haver uma compensação.
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– De onde você tirou isso? – ele até ficou meio espantado – Você
espiou o histórico do meu computador, por acaso?
– Sim – resolvi dizer, pois era mais convincente do que falar que
espiei a mente dele.
– Ah, Ofi, que droga...
Mas, em vez de ficar triste comigo, ele ficou irritado também.
– Não é por eu ser seu namorado que você precisa saber tudo o que
eu faço quando estou sozinho – justificou Alfredo – eu nunca ia te
obrigar a fazer essas coisas se você não quisesse, imagina. Uma fantasia
só é algo que excita. Não precisa virar realidade.
– Sim, eu sei. Eu tenho uma fantasia com um alienígena laranja de
sete cabeças, cinco caudas e nove braços que pressiona meus seios
contra uma máquina espaço-temporal de trufas sortidas cantantes. Não
precisa virar realidade.
– Nossa, que fantasia específica – observou Alfredo, impressionado –
nunca vi isso antes. O mais próximo que eu ia conseguir seria me
fantasiar como esse alienígena e comprar trufas.
– Mas não pode ser aqui na Terra, tem que ser no planeta Rupopopo,
que tem céu de areia, chão de céu e borboletas em forma de grama.
– Acho que nem o namorado mais esforçado conseguiria te satisfazer,
Ofi.
A gente acabou o sexo por ali mesmo, pois eu tinha perdido o desejo
depois de descobrir a fantasia do Alfredo. Ele ficou muito chateado que
eu tivesse espiado as coisas dele. Se eu continuasse a bancar a
engraçadinha, ele ia terminar comigo mais depressa do que da vez
anterior.
Como o clima ficou meio tenso, depois que terminamos a transa
resolvi mudar de assunto.
– Você não quer participar da Ordem de ocultismo quando for maior
de idade? – sugeri.
– Já te disse que tenho medo dessas coisas – disse Alfredo.
– Por quê?
– Sei lá, só tenho medo. Assim como alguns têm medo do escuro ou
medo de altura.
– Você tem medo de fantasmas?
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– Não posso me gabar de algo que ainda não sou – ele justificou.
– Não interessa, não se joga limpo em conquistas amorosas, vale tudo.
Por que não canta as meninas em inglês?
– Mas isso é tão... bobo. Estou no Brasil, então obviamente vou falar
português.
– Pera, fala a palavra “português” de novo – eu ri – você acabou de
falar “portuguese”. Você tem sotaque! Eu nunca tinha reparado. Achei que
era só sua voz fanhosa. Que bonitinho! Também sei falar em inglês:
“The book is on the table”. E então, como me saí?
– Ótimo, Ofélia. Você é sempre maravilhosa.
“Opinião de namoradinho apaixonado não vale” pensei, contrariada.
– Diga que morou nos Estados Unidos, que assiste BBC e que quer
ser engenheiro de sei lá quê e pronto! – expliquei – Não precisa dizer
mais nada e todas as garotas vão suspirar de paixão.
– Eu acho que não, hein...
Engraçado que eu tivesse namorado ele por tanto tempo e não
soubesse de nada daquilo. Provavelmente porque eu só ficava falando de
mim, para Alfredo apaixonar-se ainda mais, e nem me preocupava com
as coisas dele.
– Cara, eu não entendo como você não tem medo de matemática e
engenharia, mas teme espíritos! Sinceramente, isso não faz o menor
sentido.
– Mas... uma coisa não tem nada a ver com a outra – observou
Alfredo.
– Tem sim. Tudo o que falo faz sentido.
– Claro, Ofi. Você só fala coisas lindas.
Achei melhor interromper aquela conversa esquisita e ir logo para
casa me arrumar. Lá foi a bruxa verde-limão sem criatividade para
fantasias comparecer ao encontro da Ordem.
Ângela estava com um vestido em tom escuro, muito bonito. A
maioria dos outros membros também estava com roupas pretas. Só eu
que me destacava de verde. “Dã, eu não tô numa festa à fantasia e sim
numa Ordem. Mas agora já era”.
Gregório deu uma palestra fantástica e informativa. E enquanto ele
falava, o tempo todo eu pensava: “Demian teria com certeza odiado essa
parte e iria retrucar”. Era inevitável me lembrar disso.
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ursinho para aquela mocreia assim que terminou comigo. Que dessa vez
você dê esta abóbora de pelúcia para uma garota meiga como você.
Dei a abóbora de pelúcia para Alice.
– Ali, o Alf tá te pedindo em namoro e vai te dar esse bonequinho –
eu disse – você aceita?
Alice costurava bichinhos de pelúcia. Claro que ela se apaixonou pela
abóbora, mas ficou confusa com o que eu disse.
– Alfredo, qual a sua opinião? – perguntou Alice.
Alfredo ficou com uma expressão completamente perdida. Eu peguei
as mãos dos dois, uni-as e saí correndo. Com sorte em algumas horas
eles iam conseguir se declarar um pro outro e era melhor que eu não
estivesse perto.
No dia seguinte, a Alice falou comigo pelo MSN e parecia furiosa.
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– O Alfredo era perfeito pra mim, ele é gentil e meigo. Mas eu não
me considerei boa o suficiente pra ele.
– Só por isso terminou?
– Eu não me apaixonei tanto por ele quanto me apaixonei pelo
Demian.
– E por causa disso precisa enfiar esse punhal no meio das pernas?
– É para eu me lembrar que a culpada de tudo é ela – eu expliquei –
porque se não fosse esse meu desejo, eu ia viver em paz. Eu preciso de
um cara para me dar prazer. E eu odeio depender de alguém pra ser feliz.
– Deixa de ser orgulhosa.
Uma parte de mim queria alimentar aquela dor, porque se satisfazia
com ela. E a cada dia eu ia sentindo mais prazer em sofrer.
Comecei a me machucar de verdade; tanto no corpo quanto na mente.
Fui numa festa novamente, mas dessa vez eu estava descabelada e com a
maquiagem borrada. Cambaleante, de tanto que já tinha enchido a cara.
Comi mais uns cinco caras sem usar preservativo. E a cada transa eu
desejava, secretamente, com o coração pulsante, pegar uma doença. Eis
meu jogo venenoso e tentador. Deliciosamente insano como a morte.
Eu era a chaminé invicta, beijando o tabaco, arrancando-lhe abraços e
suspiros nesse prelúdio do fim. Mas mesmo em tal estado, não toquei as
drogas mais pesadas, porque tive medo. E talvez tenha sido esse medo
que me acordou. Pessoas querem se livrar do medo e não enxergam o
quanto ele é precioso.
Eu não sabia se eu queria ser salva, morrer ou curtir. Afinal, ser salva
de quê? Da vida? Da morte? Do prazer? Da dor? Provavelmente de mim
mesma. Porque a nossa mente é a coisa mais aterrorizante e mais
maravilhosa do mundo. É uma faca de dois gumes que pode construir o
universo mais gracioso e delicado; e destruí-lo em um segundo.
A cada dia eu ficava pior. Faltei aulas, perdi provas. Eu apenas
dormia. Eu não queria acordar. Eu ia dormir cedo, desejando que o dia
acabasse. E acordava tarde, amaldiçoando o novo dia que se iniciava,
desejando que ele terminasse logo novamente.
E assim experimentei uma sobrevida por algumas semanas perigosas.
Minha bebida era álcool e meu alimento era fumaça.
Festa, sexo, prazer, vômito, dor, sangue.
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fizesse isso parar. Então eu retirei minha queixa. Eu disse que foi tudo
um grande mal entendido. Que Demian não matou Eugênia. O Fábio e
o resto do pessoal da Ordem que estava lá também deram o mesmo
depoimento.
– E o que aconteceu?
– Eles levaram Demian às pressas para ser tratado dos ferimentos –
explicou Ângela – e a partir de agora, em vez de ficar preso, ele ficará
internado numa clínica psiquiátrica.
– Que clínica?
– Essa aqui.
– Não acredito que me colocaram na mesma clínica que um assassino
– eu me queixei – provaram a inocência dele da noite para o dia? Parece
mágica.
– A Igreja também testemunhou a favor de Demian – disse Ângela –
parece que Deus está mesmo ao lado dele.
– Que bastardo sortudo – comentei, de má vontade.
– Eles também explicaram que aquele ato dele na igreja foi
mortificação. Mas ele não poderá deixar a clínica enquanto não for
considerado completamente são e recuperado. E isso vai levar tempo.
Pelo menos agora ele receberá o tratamento adequado: remédios e
acompanhamento. E ainda haverá muita burocracia até que a pena dele
na prisão seja formalmente retirada. A estadia aqui na clínica é
temporária. Como as prisões estão superlotadas, talvez até facilitem a
saída dele.
Eu não imaginava Demian consultando um psicólogo.
Provavelmente ia dizer que tudo o que ele disse estava errado e depois
faria uma pregação sobre Deus para ele.
– Posso vê-lo? – pedi.
Eu estava muito quebrada. Era difícil afirmar qual de nós dois estava
mais detonado, então foi complicado decidir quem iria se dirigir para
qual quarto. No final eu fui para lá, de muletas. Para variar, ele estava
lendo a Bíblia.
“Sujeito previsível do caralho”.
– Oi, otário – cumprimentei.
– Oi, sua louca – ele cumprimentou-me – ouvi falar que você andou
imitando minhas mortificações.
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Capítulo 6
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você é a primeira pessoa, com exceção dos sacerdotes, para quem revelo
detalhes tão pessoais do meu passado.
– Como você se sente em contar?
– Você sabe que sofri abuso, então qual o sentido de eu traduzir isso
para você? Quando uso esse termo, “abuso sexual”, não fica implícito
que meu pai introduzia o pênis no meu ânus à força? Preciso colocar isso
em palavras para a sua satisfação?
– Antes você estava triste – disse o psiquiatra – e agora está irritado.
– Isso significa que o senhor não está fazendo corretamente seu
trabalho – retrucou Demian – já que o objetivo dessa entrevista
pretensiosa era retirar a minha raiva.
– Isso não pode ser feito em um único instante. Não sou mágico para
fazer esse milagre.
– Somente Deus faz milagres – disse Demian, seriamente – e Ele me
fornece uma cura superior a qualquer ciência ou técnica que você jamais
sonharia em inventar.
O psiquiatra suspirou.
– Demian, não tenho nenhuma intenção de competir com Deus.
Estou aqui para ajudá-lo. Precisamos investigar a causa do problema para
encontrar a solução. Somente remédios sem assistência psicológica não
terão o efeito desejado no seu caso. Então você precisa colaborar.
– Eu já colaborei além do que minha boa vontade permitiria. Essas
sessões já perderam o sentido. Sim, há momentos em que eu fico furioso.
Mas isso não acontece com todos nós diante das injustiças?
– Se essa fúria chega a ameaçar a vida de uma pessoa, ultrapassa o
limite do tolerável.
– Eu não desejo tirar a vida de ninguém – Demian deixou claro –
nunca desejei. Isso vai contra a Divina Lei. O que aconteceu foi um
acidente horrível, um descontrole insano da minha parte. Eu já
compreendi as consequências de meus atos. Fui espancado na prisão. E
estou sofrendo ainda, com todos esses remédios que me provocam
efeitos colaterais dolorosos. Todas essas lembranças, e principalmente o
choque que sofri por ter tirado a vida de alguém, serão mais do que
suficientes para impedir que minha fúria exploda outra vez.
– Isso não há como garantir ainda – explicou o médico – os
resultados não são conclusivos. Precisamos de mais tempo.
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que perdi. Não dava para acreditar. Eu tinha recém chegado em casa e já
teria que voltar a estudar.
– Então é isso Susana, já que você é um gênio em matemática pode
me emprestar seus cadernos? – pedi a ela por telefone – Porque eu tô me
ferrando legal nessa disciplina.
– Claro, será um prazer poder contribuir com sua aprovação – disse
Susana, que era muito esquisita e falava desse jeito mesmo – quer que eu
lhe dê umas aulas particulares também? Seria uma boa diversão pras
minhas férias.
– Hã... não, brigada, não precisa ser assim tããão gentil. Se eu rodar
meus pais só vão quebrar meu pescoço. Mas como eu tava internada,
talvez eles só quebrem metade dele por consideração e eu vire um zumbi.
– Mas você será um zumbi bem sexy. Você é linda, Ofelhinha.
Alguém já te chamou assim antes? É um trocadilho com “ovelhinha”,
compreende?
– Não, você é a primeira a ter a ideia de um apelido tão original –
observei, tentando deixar o sarcasmo evidente – e eu saquei o
“trocadilho”, mas valeu pela tradução simultânea.
– Estou solteira – contou Susana – não sou lésbica, mas talvez eu seja
bi. Então, se um dia estiver a fim de trocar uns amassos, só pra brincar,
saiba que estou disponível.
– Sua gentileza não possui limites, Susi, mas essa eu passo. Só os
cadernos já tá bom. Não preciso das suas aulas ou do seu corpo. Mas se
quiser me dar um presente de Natal, eu aceito um 3DS rosa.
– Minha irmã tem um 3DS que posso emprestar – ofereceu Susi –
mas só se a gente trocar uns selinhos enquanto traçamos um plano
cartesiano cheio de coordenadas hiperbólicas. Troca de favores, meu
bem.
– Ai, como você é tarada, querida! – exclamei, achando aquele papo o
máximo – Mas eu tô com um namorado gatão e fogoso me aguardando
pra eu dar uns pegas nele lá no hospício, ou melhor, hospital... sei lá que
porra é aquela.
– Então tenha um Feliz Natal com seu cachorrão!
– Feliz Natal, sua cadelinha safada! – desejei a ela, rindo.
No mesmo segundo que desliguei, liguei para a clínica.
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– Ofélia, por favor, vamos parar por aí. Eu até tolero que você faça
brincadeiras com meu... pênis, mas com Deus não. Pela milésima vez,
respeite minha religião.
– É que eu sou hilária e tenho sacadas geniais. Então gosto de
compartilhar minhas piadinhas com meu amor!
– Obrigada?
– Pelo menos vamos nos ver no dia que você sair da clínica. Quando
vai ser?
– 23.
– Perfeito. E no dia 26 você é meu de novo, ouviu bem? – avisei –
Nem que eu tenha que me aliar a Lúcifer e derrubar todas as falanges de
Miguel e dos arcanjos do seu Deus, não vou deixar que você continue
enfurnado rezando depois do Natal.
– Isso foi meio assustador, mas tá certo – decidiu Demian – no dia 26
terei o dia livre pra ficarmos juntos.
– Te amo, seu padre.
– Te amo, sua herege. A fogueira seria pouco pra você.
– Tenho bastante fogo aqui no meu fruto proibido. Em breve você
vai provar mais um pedacinho. Beijinho.
E eu desliguei, rodeada de coraçõezinhos. Não conseguia parar de
sorrir e passei o resto do dia com a cabeça nas nuvens.
– Ofélia, você tá queimando a calda de chocolate! – exclamou minha
mãe – Vai derramar! Presta atenção no que você está fazendo. Baixa esse
fogo, menina!
– Ih, nem vi.
Eu estava distraída demais. Pensei em fazer uma sobremesa, mas nem
rolou. Eu queria cozinhar algo bem gostoso para quando fosse visitar
meu pãozinho de açúcar na clínica.
Claro que eu não teria paciência para aguardar uma semana. Fui
visitá-lo antes disso e levei um pedaço de pudim de leite.
Quando entrei no quarto e ofereci-lhe o pudim e um beijo, não
aguentei e pulei no pescoço dele.
– Como é que você pode ser tão gostosão assim? – perguntei,
pendurada nele que nem um macaquinho – Quero te devorar todinho!
– Me deixa só comer o pudim antes – pediu ele.
– Tá me trocando pelo pudim!
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Ele espiou.
– Mas isso aqui é muito fácil, Ofélia. Eu te ajudo.
– Sério? – perguntei, maravilhada – Brigadinha!
Dei-lhe mais um beijo. E, com toda a paciência do mundo, ele me
explicou tudo. Era difícil alguém conseguir me explicar alguma coisa
direito, porque eu ficava fazendo perguntas óbvias e piadinhas estúpidas
no meio da explicação.
– Então, aqui você nem precisava ter feito todo esse cálculo, porque
é uma matriz de projeção – explicou Demian – ela é quadrada,
idempotente e hermitiana.
– Saúde! Traduza – solicitei.
– A matriz hermitiana é aquela com elementos complexos que
satisfaz a condição de... ah, deixa pra lá – resolveu Demian – isso aqui
nem cai na sua prova. Vou te explicar como se faz, esquece esses nomes
que eu falei.
– Tá vendo esse 1 e esses dois zeros de cada lado, no determinante? –
mostrei.
– Aham.
– Você não acha que parece um caralho e duas bolas?
A expressão séria com que ele me fitou foi muito engraçada. Ele
estava puto da cara. Que divertido!
– Você quer entender isso ou não? Está ao menos tentando prestar
atenção?
– Mas você é tão lindo e sua voz é tão relaxante que estou me
desconcentrando – justifiquei.
– Não faz nem meia hora que fizemos sexo! Esse seu desejo não tem
fim?
– Meu desejo por você é infinito.
Eu joguei os cadernos longe e agarrei-o outra vez. Depois daquela
segunda trepada, ele alcançou meus cadernos e tentou me explicar de
novo. Eu estava entendendo nos primeiros quinze minutos. Até que o
ataquei de novo e tivemos outra foda gostosa.
– Tá, chega Ofélia, agora eu cansei mesmo – falou Demian – não
tenho condições... físicas de te satisfazer uma quarta vez. A terceira já foi
um milagre do Senhor.
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– Opa, agora foi você que fez uma piadinha com religião! – eu ri – Tô
sendo uma má influência pra você.
– Ainda bem que vou passar o sábado e o domingo inteiros me
confessando na igreja. Agora a gente vai estudar até eu ir embora e não
aceitarei recusas. Se você for abaixo da média nessa prova irá reprovar o
ano. Não vou deixar que isso aconteça. É uma ofensa com uma matéria
fácil como essa.
– Você que não sabe explicar, só complica tudo! Vai cair o Teorema
de Laplace e a regra de Chió e não essas porras aí de hermitiana e o raio
que parta, meu. Não confunde minha cabeça ainda mais!
Enquanto o engomadinho do Demian foi passar o Natal rezando
com a galera da teologia, eu passei o Natal com minha família.
Comemorei com meus pais, minha irmã e o marido dela.
No dia 25, que ninguém tinha nada melhor pra fazer, a não ser o
Demian, que estava fazendo sei lá que enfurnado na igreja ainda, tivemos
uma reunião da Ordem de ocultismo. Contei a eles a notícia sobre a
liberação do Demian.
– Agora que ele foi solto e considerado saudável pelos médicos
depois do tratamento, será que ele pode voltar pra Ordem? – perguntei.
– Não sei, Ofélia – disse Ângela – isso seria pedir muito. Isso tudo
que aconteceu foi recente e ainda estou chocada. Não importa quantos
meses se passem, ou mesmo anos, isso vai ficar marcado em mim pra
sempre.
– Eu sei – baixei os olhos – em mim também. Mas eu me comuniquei
com o espírito da Eugênia e isso me deixou tranquila. Não estou mais
insegura. Eu tenho certeza que ela não odeia o Demian.
– Ela também falou comigo nos sonhos – disse Ângela – no dia que
eu sonhei, tive certeza absoluta de que era real. Mas, após ter passado
tanto tempo, embora eu ainda acredite, sempre resta a dúvida. Então eu
ainda me sentiria culpada de permitir que ele voltasse. Além de que, não
me sinto confortável com ele aqui.
– Ele deseja voltar? – perguntou Gregório.
Cada vez que eu ouvia a voz poderosa de Gregório, eu sentia uma
sensação de força. Ele era uma pessoa que sabia das coisas e eu confiava
no discernimento dele. Por isso, o que ele dissesse soaria bem pra mim.
Como se fosse a melhor decisão a ser feita.
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“Era uma vez um menino de cabelos negros que era muito fechado e misterioso.
Sério demais, tinha uma expressão triste. Até que conheceu um anjo”.
Passei o laptop para que ele continuasse. Demian leu o que coloquei.
Fitou-me de relance e escreveu:
“Esse anjo tinha cabelos negros como o menino. Ela se disfarçava de anjo caído,
mas por dentro seu coração brilhava. Era tão sincera, alegre, divertida. O menino não
conseguia ser assim. Precisava daquele anjo lindo para resgatar a essência da vida”.
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– Não, está até poético. Mas você parece tão fraca e acabada. Fico
triste de te ver assim. Por causa de uma negligência da sua parte. E não
venha me dizer que dessa vez não se arrepende.
– Não. Nem que eu morra.
E eu sorri quando disse isso.
– Você é tão forte assim? – ele perguntou.
– Não – senti meus olhos marejados; mas não permiti que as lágrimas
escapassem – mas me sinto muito forte quando digo. Esse é o motivo.
– Você realmente pode morrer?
Eu dei de ombros.
– O risco não é zero – informei – mas posso ficar com sequelas
graves. Isso se eu não tratar, é claro. Mas sei lá. Eu me sinto mais viva do
que nunca nessa cama. Levei um susto quando passei mal. Achei que
fosse morrer mesmo. Mas teve uma coisa que me deu mais forças que
tudo.
– O quê?
Mostrei a ele o chaveiro de gatinho. Ele segurou na minha mão com
mais força.
– Quero ficar com você. Não vou sair desse quarto enquanto você
não sair.
– Que bobagem. Logo estarei boa. A doença não se encontra em
estágio avançado. Mas essa febre tá uma merda.
– Você tá com voz rouca.
– Sexy, né? – eu ri.
Alguma coisa estava errada. Eu não melhorava logo. Os sintomas só
aumentavam. Os dias passavam.
– Tem certeza de que você não pegou outras doenças além dessa? –
perguntou Demian, para se certificar.
– Como vou saber? Eu fodi com tantos que perdi a conta. Algumas
doenças podem se manifestar sei lá daqui a quantos meses ou anos.
Eu estava com manchas e feridas pelo corpo. E aquilo coçava como
o inferno. Eu me sentia nojenta. Mas o Demian continuava lá.
– Você vai perder suas aulas, idiota. Já se atrasou nos estudos. Pode
perder sua bolsa.
– Tem razão – ele disse – vou voltar a frequentar as aulas, mas logo
depois retornarei. Pode ser assim?
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nos criou dessa maneira, é porque existe uma sabedoria incrível em cada
dor e prazer que sentimos, que está além de nossa compreensão. A nossa
existência é a melhor que pode haver. Existe um tipo de equilíbrio
fantástico por trás de tudo.
– Me desculpe, Demian, mas não consigo ver nada de fantástico em
apodrecer nessa cama, toda fedorenta, feia e sentindo o inferno no corpo.
– Isso não é defeito da natureza e sim uma falha nossa em entender
porque as coisas são dessa maneira – ele explicou – algumas dores do
corpo acontecem para que uma parte necessária da mente desperte. E
algumas dores da mente devem despertar partes do corpo. Mas isso não
é uma punição. Deus não está “punindo”. E isso tampouco é mau karma.
Você entende o que é?
– Bom karma que não é – eu disse – e nem bênção.
– Aí que está. O problema está em nossa ignorância em dividir o
mundo em recompensas e punições. Existe beleza na feiúra,
simplesmente porque não há o feio. Há apenas nossa inabilidade em
enxergar a beleza de todas as coisas: desse mundo perfeito criado por
Deus. As coisas que aqui existem só podem ser bonitas.
Tentei ver beleza na minha doença. Qual seria a moda no universo
hospitalar? Misteriosamente, uma parte de mim amava a morte, a
tragédia, o repugnante, a feiura. E graças a esse detalhe, eu tinha forças
para descobrir novas belezas.
– Como você pode dizer algo assim se a força da sua religião está no
maniqueísmo? – desafiei-o.
– A força está em ver o toque de Deus em tudo – disse Demian –
Lúcifer veio de Deus. Era seu anjo mais belo. Ele caiu. E levantou-se
fortalecido. Para que Deus possa reinar, precisa haver o adversário.
Satanás ofereceu o fruto proibido, para que houvesse a jornada e a vida:
escalar a Árvore da Vida para alcançar o entendimento. Lembre-se: o
Senhor é onipotente, onipresente e onisciente.
– Então está presente aqui e agora – concluí – sabe que estou
sofrendo e tem poder para interromper meu sofrimento. Por que não o
faz?
– Ofélia, embora suas entranhas gritem isso, o sofrimento que você
sente agora não é a dor física. É somente sua incapacidade de
compreender a perfeição dessa dor.
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– Meu docinho, você não precisa estar sozinha – ele segurou minha
mão – eu nunca me sinto só, porque Deus está sempre comigo. Você
acha que Deus disse “crescei e multiplicai-vos” porque queria que
lidássemos sozinhos com isso tudo? Ele sabia que seria desafiador.
Nunca existe um obstáculo maior que nossa força para o superarmos.
Deus jamais inventou desafios impossíveis. O quebra-cabeça da
existência sempre se encaixa em algum lugar. Mas é muito complicado
que uma mente humana resolva isso sozinha. Por isso as pessoas se
unem. O destino do ser humano já estava definido desde o início de
nossa criação: o amor. Não há como fugir disso. Porque ele é a sabedoria.
E é Deus.
– Tudo isso soa lindo, mas não faz parar minha dor de cabeça.
– E quando a pessoa que você ama segura a sua mão? – perguntou
Demian.
– Então a dor diminui um pouco – confessei – e tem uma parte do
meu coração que se aquece, pois me sinto protegida.
– Eu não poderia te proteger assim se você estivesse sempre segura –
disse Demian – e caso se sentisse completa estando só, como nasceria o
amor?
– Demian... eu detesto quando você é inteligente como um gênio
maldito – observei – assim me deixa sem palavras. Agora entendi porque
Gregório respeita seu catolicismo, sua crença absoluta em Deus. Porque
ele sabe que existem interpretações extraordinárias por trás de grandes
religiões. Não somente o que especulações e superstições clamam. Mas,
me desculpe, não quero me converter.
– Não estou tentando fazê-la acreditar em Deus. Estou te explicando
o conceito que há por trás disso para que você crie sua própria versão,
lógica e estética, para o conceito em si, conforme lhe seja mais
confortável. Mas é fundamental que a essência permaneça: o amor, a
alegria.
– No começo do seu discurso você mencionou algo sobre ter força
para suportar uma grande dor – lembrei – me explique essa parte, pois
preciso dela agora.
– Quando existe uma dor física imensa isso é um alerta do corpo,
mostrando que algo está errado. É a natureza demonstrando novamente
como é sofisticada. O aviso é dado. A dor aumenta. Cada vez mais, para
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devoradores de alma que você mencionou. Mas será que uns demônios
básicos não fazem o serviço?
– Claro, é bem menos arriscado – zombou Demian – em vez de ter
sua alma devorada, ela será enviada diretamente ao inferno.
– Ela é católica, então imagino que seja mais fácil utilizar demônios
para manipulá–la... – justificou Alfredo.
– Evidentemente, o Deus dos católicos é fraco demais para lidar com
um “demônio básico” – observou Demian, com ironia.
– Garoto – Gregório dirigiu-se a Alfredo – se busca mexer com os
demônios, te indico essa pessoa.
Ele entregou-lhe um pedaço de papel. Alfredo leu o que estava
escrito:
– Sancha, líder da ODE, Ordem dos Demônios do Éden, satanismo
tradicional. Isso é sério?
– Não me diga que iremos realizar os últimos dias de retiro na sede
da ODE? – perguntou Demian, incrédulo.
– Exatamente – informou Gregório.
– Então Sancha é sua “velha amiga”? – perguntou Demian,
desconfiado – Ela é minha inimiga mortal!
– Estou surpreso que a conheça.
– Debato com ela seguidamente no FoRCS. Ou melhor, discuto.
– O Fórum do Ringue de Cristãos e Satanistas, aquela lista de
discussão apelativa e vulgar? – perguntei – Eu jamais imaginaria que você
perdesse tempo em algo assim. Só tem barraco por lá. Não foi de lá que
surgiram aquelas histórias falsas sobre a OCB, uma Ordem satânica
fictícia em que os membros sacrificam animais e jogam os neófitos no
esgoto?
– Eu não conheço Sancha pessoalmente, só pela internet – informou
Demian – sério, se eu me encontrasse com ela na vida real, eu juro que
chamaria a galera da teologia para humilhar a argumentação LHP dela.
– Então faça – disse Gregório – chame-os.
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Capítulo 7
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Ele queria me abraçar, mas eu fugi. Ele entendeu. Claro que ele sabia
que aquela situação me fez lembrar da Eugênia e de todo o resto.
Demian também se encostou na parede, mas longe de mim.
Escondeu o rosto nas mãos. Parecia estar chorando também, mas
baixinho.
Por fim, fiquei com pena dele e fui até lá. Nos abraçamos e ambos
nos desculpamos.
– Precisamos parar esse sangramento – disse Demian.
– Demian... um dia você vai se irritar comigo e me bater...? –
perguntei, insegura.
– Nunca – ele afirmou – juro que foi sem querer. Eu estava meio
dormindo e fiz um movimento brusco. Jamais pensei que fosse causar
isso.
Eu levantei-me.
– Vou ao banheiro.
Lavei o rosto. Alcancei um paninho para pressionar o nariz até que o
sangramento parasse.
No caminho ouvi vozes. Imaginei que alguém ainda estivesse
acordado. O som vinha do quarto do Gregório.
Fui até lá e encostei o ouvido na porta para escutar. Mas os sons
estavam meio confusos. Fiquei tão curiosa que entreabri a porta. Com
sorte não iam me notar.
Felizmente a porta não fez barulho. Eu tinha muita vontade de
escutar o que Gregório falava sobre a gente pelas costas. Será que ele era
educadinho daquele jeito o tempo todo?
Mas o que eu vi fez meu corpo gelar. Apesar de a luz do quarto estar
apagada, houve iluminação suficiente vindo do corredor para que eu
pudesse distinguir as formas e entender.
Ângela estava embaixo. Gregório estava em cima. E ele me viu.
Eu corri imediatamente. Voltei para meu dormitório com o coração
acelerado e a respiração descompassada.
– Que aconteceu? – perguntou Demian.
– Ouvi vozes – respondi.
– Espíritos?
– Não! Era o Gregório e a Ângela.
– O que eles diziam? – perguntou Demian.
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Talvez por isso eu não tenha conseguido curtir tanto aquele segundo
dia de retiro. Achei melhor me comportar, então acabei não sendo
espontânea e natural. Eu segurava minha língua antes de fazer certas
perguntas e meu comportamento foi quase exemplar. Também me
esforcei para não pegar no sono, pois desconfiei que se isso acontecesse
Gregório iria me criticar mais que o normal.
Demian me acotovelava o tempo todo durante a meditação, pois
aquela almofada macia me recordava do meu travesseiro. Ângela recitava
o que devíamos visualizar, mas eu não escutei metade do que ela disse.
No final do dia eu havia preenchido várias folhas do meu caderno.
Eu estava contente por ter sido uma aluna muito aplicada. Fiquei tão
confiante que tirei uma dúvida com Gregório, somente para ele ver
como meu caderno estava bonito e completo. Aproveitei para mostrar a
ele o artigo que eu estava preparando para o site.
Isso foi o suficiente para que ele voltasse a me tratar normalmente.
Ele notou que eu estava me esforçando.
– Demian, que horas são? – perguntei, bocejando.
– Oito da noite.
– Ainda? – eu me espantei – No meu relógio diz que são onze horas.
– Não pode ser – disse Demian – Laura, que horas você tem aí?
– Nove e meia – ela informou.
Raquel e Jonas também informaram horários diferentes. Parecia que
todos os relógios estavam desregulados.
– Acho que foi minha culpa – eu disse – o ritual de hoje à noite
mexeu comigo. Meu cérebro deve ter bagunçado os aparelhos digitais.
Como vamos saber a hora agora?
Gregório abriu a janela e olhou para o céu.
– Terminamos por hoje – ele informou – podem organizar suas
coisas. Pela manhã iremos para o retiro da ODE.
Eu fiquei muito intrigada com aquilo. Mais tarde perguntei ao
Demian:
– O Gregório viu as horas pelas estrelas? Ou pela lua?
– Parece que tem como ver as horas pelo Cruzeiro do Sul – informou
Demian – mas com uma olhada rápida como aquela, ele deve ter se
guiado vagamente pela lua e disse aquilo só pra posar de poderoso. De
qualquer forma, não teria como haver um alto grau de precisão.
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Eu fiquei quieta.
– Como assim... morreu? – perguntei, confusa – Assim, de repente?
– Sim, Ofélia. Caso não saiba, as pessoas morrem. Eu recebi a notícia
hoje de manhã. Passei na sede da Ordem pra buscar um grimório e o
Jonas me contou.
– Ela morreu de quê?
– Foi suicídio.
Eu não gostei do que ouvi. Eu preferia escutar a notícia de que um
caminhão atropelou a pessoa e a partiu ao meio do que saber que alguém
tirou a própria vida intencionalmente.
– Que merda – eu disse.
– É.
E o assunto morreu aí. Nos encontros da Ordem ainda houve alguns
comentários sobre isso, mas depois a galera esqueceu por um tempo.
Aquilo me perturbou um pouco porque havia uns boatos mal
resolvidos. Por isso fui pesquisar na internet. E descobri umas coisas
extraordinárias.
Eles se referiam a ela por “AMV”. A Ordem dela estava sendo mais
cobiçada do que nunca. Se aquilo fosse possível, ultimamente o número
de interessados pela OCB estava superando a Flolan.
“A Ordem dela ficou pop, por isso tá todo mundo indo atrás, como
boas ovelhinhas” pensei, com desagrado.
“E se... eu tentasse entrar também?” confesso que aquele pensamento
se passou pela minha cabeça. Eu não tinha tanto interesse pelo
satanismo. No fundo o desejo de entrar era simplesmente para que os
outros me temessem, já que a galera da internet pagava muito pau pra
quem se dizia membro da OCB. A maioria que falava isso abertamente
era mentiroso, já que a maior parte dos membros mantinha a identidade
em segredo pra se proteger da polícia e de denúncias.
Pensando bem, eu não era tão sangue-frio assim para aquela aventura.
Mas confesso que fiquei curiosa pra caralho depois de ler os boatos!
Queria contatar alguém dessa Ordem para satisfazer minha curiosidade.
Resolvi procurar por um membro que tivesse minha idade, pois eu
poderia ficar com vergonha de falar com o pessoal mais velho, embora
eu não fosse de ter muita vergonha na cara.
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– Rale-se o colégio. Não vou fazer só o que eles mandam. Quero ser
uma livre pensadora e não só decorar o que os outros disseram.
– Você precisa ter uma base pra isso – falou Demian – não é bem
assim. O ensino do colégio poderá te acrescentar muito. Basta você ser
menos preconceituosa em relação a ele. É imbecilidade da sua parte
desprezar a educação. Ela não é perfeita, mas deve ser devidamente
valorizada. Então não critique o que não entende.
– Você me chamou de imbecil! – exclamei, ofendida.
– E você já me chamou de tanta coisa que não deveria reclamar em
receber o mesmo tratamento – disse Demian – eu trato cada um da
forma que merece.
– Foi isso que Jesus te ensinou? – desafiei-o.
– Jesus me ensinou a ser paciente e piedoso com a ignorância. Por
isso sempre me esforço para tratá-la bem.
“Ui... essa doeu”. Primeiro foi Gregório que me fez ficar quieta.
Depois Alfredo. E agora Demian. Era isso que chamavam de karma? O
meu devia estar mais poluído do que uma chaminé de fábrica.
– Amor – falei – eu tenho uma coisa pra te dizer.
– O quê? – perguntou Demian, já antevendo uma ofensa, pronto para
rebater.
– Você tá perdendo cabelo – falei, passando a mão pela cabeça dele –
olha só isso! Tá ficando careca aqui em cima!
– Ah...!
Demian tirou minha mão. Ele queria esconder. Ficou constrangido
que eu visse.
– Me deixa em paz – ele disse.
Eu ri.
– Não se preocupe, carecas são sexy. Eu acho o máximo. Mostra
maturidade.
– Não é esse o caso.
Eu não entendi. Os dias se passavam e Demian estava perdendo cada
vez mais cabelo. Até que um dia em que me encontrei com ele na
universidade e sentamos num banco, ele desmaiou.
Eu levei um susto. Eu já tinha notado desde o começo que ele estava
meio tonto e com cara de morto.
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pernas. Tirar a minha vista. Remover tudo o que faz a Ofélia ser ela
mesma. Mas, eu te suplico de joelhos, não tira o Demian de mim.
Eu beijei a cruz e ajoelhei-me. Repousei o rosto no colo de Demian e
senti lágrimas nos olhos.
– Remova meu orgulho – pedi – tire tudo de mim. Me torne
horrorosa, um monstro. Mas não me tire o sentido da minha existência:
esse anjo que enviou para meus braços. Eu sou uma garota má. Poderei
ser perdoada? É tudo que me resta. Se não for assim, que será de mim?
– Ofélia... isso não me comove – disse Demian – não seja hipócrita.
Você não acredita em Deus.
Eu levantei-me.
– Adeus, Demian. Pode ficar com minha casa, ela é sua. Fique com
tudo meu. Menos eu.
– Do que você tá falando? Essa casa nem é sua, é dos seus pais.
– Aposto que meus pais vão preferir te ter como filho do que a mim.
Um aluno exemplar, tão educado e correto. O mundo não precisa de
escórias como eu.
– O que deu em você? O que é esse complexo de inferioridade
repentino?
– Um complexo cobre outro – revelei – você não conhece meu
passado. Eu sempre me senti inferior a todos. Eu era apenas uma garota
tímida e invisível. Eu sentia inveja das outras garotas. Para cobrir meu
complexo de inferioridade, eu resolvi fingir que eu era importante. Então
eu criei essa máscara. Demian, eu vou te contar um segredo: você nunca
conheceu a verdadeira Ofélia. A Ofélia real, por trás da minha máscara
de gata desgarrada, é uma menininha sensível, meiga e tímida. Como eu
era antes da minha primeira vez. O cara que tirou minha virgindade
mostrou que o mundo não é bonito. E que eu não era mais virgem,
então eu era apenas algo sujo e descartável. Eu estava usada. Ninguém
mais ia me querer. Então eu corri. Eu fugi. Queria desaparecer. Porque
eu queria meu hímen de volta.
Demian apenas me escutava, cada vez mais espantado ao ouvir meu
discurso inesperado.
– Deus não gostava mais de mim – prossegui – perdi meu lugar no
céu. Porque esse Deus só ama os puros. Então eu não gostei mais dele,
porque eu não era mais pura. Eu odiei esse mundo, que só oferece o
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A Gata Mascarada
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Juliana Duarte
Naquele tempo eu tinha medo de ficar mais velha. Virar uma adulta,
gente grande. Eu não queria crescer, porque o mundo dos adultos era
muito complicado e assustador.
Eu estava quase com dezoito anos. Que adolescência intensa,
fascinante!
“Não quero crescer. Não quero jogar fora meus ursinhos. Jamais
quero conhecer o corpo de um homem. Desejo ser criança para sempre!”
Ninguém ia me culpar. Ninguém ia me julgar. Eu nunca estaria errada.
“Ela é só uma criança”.
Bastava não viver. Eu não teria responsabilidades. Não seria
condenada. Não seria chamada de má.
Minha respiração estava falhando. Eu sentia que a vida ia embora.
Água. Nada mais que água.
Subitamente, eu emergi. Respirei muito rápido, tossindo a água.
– Ofélia! – exclamou Demian – se você morresse agora, eu ia me
matar imediatamente. E não ia me importar com o que Deus achasse
disso!
Demian tinha me salvado. Estávamos nós dois no lago e ele me
abraçava forte.
Eu o abracei de volta. Brinquei com a cruz do pescoço dele entre
meus dedos.
– Você renegou Deus por mim? – perguntei.
– Não – disse Demian – eu acredito firmemente em Deus e sempre
acreditarei. Mas eu só acredito num Deus que ama a Ofélia. Se não
amasse, qual seria o sentido da existência Dele?
Dei-lhe um longo beijo na boca. Aquele foi o beijo mais apaixonado
e profundo que eu me lembrava de ter dado em Demian ou em qualquer
outra pessoa.
Eu senti como se aquele fosse meu primeiro beijo. E de fato era: o
primeiro beijo da Ofélia verdadeira, sem máscaras. Finalmente pronta
para entregar seu coração sem medo.
Eu não precisaria ter medo nunca mais. Nem arrependimentos.
Jamais teria medo de responsabilidades ou de envelhecer enquanto
Demian estivesse ao meu lado. Nós dois ficaríamos velhinhos juntos.
Bem velhinhos.
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A Gata Mascarada
FIM
Continua no Volume 2
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