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Henrique Segurado

Almocreve das Palavras


© Henrique Segurado e Rui Sanches

Edição organizada por Joana Morais Varela

Composição de Vasco Rosa


Revisão de Luis Manuel Gaspar
Fotografia do Autor por Raul Neves Lourenço

Impressão e acabamento de Guide – Artes Gráficas

isbn: 1234567890
Depósito legal: 320 980/10
Henrique Segurado

Almocreve das Palavras


Poesia 1969-1989

Desenhos de Rui Sanches

lisboa, 2010
Henrique Segurado à porta da casa onde nasceu.
Para a minha Filha Joana
que se antecedeu à publicação deste livro
que lhe pertence inteiramente…
Com um beijo e a saudade do Pai.
A  voz de Henrique Segurado,
voluntariamente discreta pelas longos in-
tervalos que têm caracterizado o apareci-
mento das suas obras, é, no entanto, das
mais pessoais dentro da geração de Cin-
quenta, já por um sentido muito agudo do
aproveitamento da tradição em termos de
modernidade, já por uma exuberância ima-
gística que frequentemente alterna com um
pendor lapidar ou epigramático, de origi-
nalidade não menos surpreendente.
Além do amor, que constitui um dos
seus temas constantes, é sobretudo uma
interpretação crítico-lírica da sociedade e
da história portuguesas o que mais amiúde
o empolga, havendo escrito, nos tempos
do salazarismo, variadas composições que
devem considerar-se como das mais nobre-
mente marcadas por um desassombrado es-
pírito de protesto e de resistência. Quanto
à forma, e embora utilizando não raro o
verso livre, manifesta-se, na sua obra, uma
nítida preferência pelos metros tradicio-
nais, muito em especial pela redondilha —
tanto pela do romanceiro como pela das
«profecias» do Bandarra —, tendo sabido
conferir a uma e outra o halo renovador de
uma perspectiva actualizante.

David Mourão-Ferreira
Calendário

Nem me lembro
De Dezembro
E chegamos a Janeiro,
Entra Março
E disfarço os percalços de Fevereiro.

Flores de Abril
Num fuzil
Devolvendo a Primavera…
Chega Maio
Mês lacaio
Do trovão que não se espera.
Junho, Julho
Há entulho
Onde outrora havia areia
Vem Agosto
Cheira a mosto
Já Setembro s’incendeia,

Resta Outubro
E descubro
Um Outono que chegou…
Cai Novembro
Vem Dezembro
Mal o ano começou!

Lisboa, 8 de Novembro de 1969

11
Mergulho no Passado

Andavam mouros a saque Nestas escavações d’infância


No país nosso vizinho, Que testemunhos consigo,
Eu tinha um dois no bivaque Das coisas sem importância
E camisa de azevinho. Que se passaram comigo.

Sem perceber o sentido Tanta coisa se passou


— É por isso que se canta — Sem eu ter que perceber,
Lá fui de braço estendido Onde está quem me fardou
Libertar a «Terra Santa»! P’ra hoje me responder?

Era caqui amarelo Eu tinha um dois no bivaque


A minha calça subida E camisa de azevinho,
E fiz parte dum «castelo» Andavam mouros a saque
Que desfilou na Avenida. No país nosso vizinho…

Em qualquer ponto da quina Lisboa, 6 de Maio de 1970


Sem ter lugar definido,
Fiz por cumprir minha sina:
Soldado desconhecido…

Havia um S no cinto
Uma espécie de serpente
Era dum vulto indistinto
Que mandava em toda a gente!

Se ordenavam: «sentido!»
Morria toda a cidade,
O corpo reconhecido
Se gritavam: «à vontade!»

12
Faca

Cortasse o vento que invade


Este quadro secular
Que teimam chamar cidade
Por ser tudo tão vulgar…

Que cortasse o coração


— Onde teimas estar presente —
Esse «Diário-Razão»
Da nossa conta-corrente.

Retalhasse num só corte


O sono que é só mordaça,
Grande coutada da morte
Em que nós somos a caça.

Rasgasse bem as nascentes


Nesses rios que somos nós,
Uns dos outros afluentes
Vendo o fim na mesma foz!

Cortasse o que se destaca,


Mas que fora de calar
Que cortasse a própria faca
Em que me quero cortar!

Lisboa, 5 de Novembro de 1970

13
Também de noite
Os Rios Correm Inteiros

Palavras, fazem ninhos nos tinteiros,


Mas voam se as soubermos escrever.
Também de noite os rios correm inteiros.
Não quero o tempo de quem vai morrer.

Em letra corrida, sem pontos finais,


No muro que somos — sem o perceber! —
A morte afixa os seus editais.
Não quero o tempo de quem vai morrer.

No tronco dos dias gravo um coração


Que depois de mim inda irá bater,
Por não ter aceite a desproporção
Entre Tempo e tempo de quem vai morrer!

Lisboa, 10 de Dezembro de 1970

14
Calatrava

Poema feito duma só palavra


Talvez dê a ideia pretendida.
Não me fales assim de Calatrava,
Tão rente ao Guadiana, adormecida.

A poesia é luta que se trava,


Pela dama que queremos ofendida.
Não me fales assim de Calatrava
Que à lança moldou gente convertida.

É um poema terra, que se lavra


Que o povo quer depois distribuída.
Não me fales assim de Calatrava
Que a História já deixou desguarnecida.

É pondo palavra sobre palavra


Que temos a poesia construída.
Não me fales assim de Calatrava:
Os sarracenos foram de partida.

Só eu sei, canção, que te encontrava


No meio desta noite, definida:
Mas não me fales mais de Calatrava
Que o Tempo tudo muda de medida.

Lisboa, 20 de Janeiro de 1972

15
Vão-se As Águas sem Canção

Grande rio: o coração


A morte por afluente…
Vão-se as águas sem canção
Se nós vamos na corrente.

Escava um leito impenetrável


Fechado à navegação;
Longamente navegável
P’las barcas da sugestão.

É um rio subterrâneo
(À vista só se pressente)
Num reino subcutâneo
Da nossa estátua jacente…

Vão-se os seixos da razão,


Riscando a face do espelho
Que nem o sol de Verão
Consegue pôr mais vermelho!

Em perpétua confusão
Mistura a foz na nascente.
Vão-se as águas sem canção
E nós vamos na corrente…

Lisboa, 12 de Maio de 1972

16
Noite

Surges maleável Derradeiro trunfo


Mas depois compacta. Dos desesperados,
És impenetrável Arco de triunfo
Assim és exacta. Nos olhos fechados.

Como submetes És rio e riacho.


A nossa humildade Sendo tudo és nada.
E como repetes És um golpe baixo
A tua vontade! És morte adiada!

Já ontem vieste Lisboa, 2 de Janeiro de 1972


Já hoje chegaste…
O que nos disseste?
Nada há que te gaste?

És tão pontual,
Manto transbordável
Mas tão natural
Como indecifrável.

Não há quem te esculpa


A forma mortiça,
És peso de culpa
Assim és justiça!

És o trigo e joio,
Graças e ofensas,
És ponto de apoio
De pontes suspensas.

17
À Poesia

É tanta a vez que em ti me reconheço


Que és bem minha ascensão e minha queda
Não fosse a alma a vida do avesso:
Ou morte e vida, os cunhos da moeda…

Pode a bala errar a trajectória


Já foi crime o gatilho em movimento…
Se te quero bem inteira na memória
Porque te mato tanto em pensamento?

De certo além da vida tu acenas…


Assim não tenho medo de morrer,
Por isso dia a dia me envenenas
Na água que preciso de beber!

Lisboa, 16 de Setembro de 1973

18
Na Morte da Avó Adelaide

A minha última avó


Morreu
No dia em que o primeiro Homem
Partiu para a Lua.
Qual dos dois teve razão
Para deixar a Terra
Neste dia?

Lisboa, 27 de Janeiro de 1973

19
Zero

É número sem descendência


Que não se pode contar.
É curva de circunferência
Que se acaba de fechar…

Linha curva, intolerância.


Um destino indecifrável,
É a sede de distância
Dalgum compasso indomável…

Formato da nossa pele


Onde o tempo não demora.
É apenas um anel:
Nada por dentro e por fora…

Lisboa, 30 de Janeiro de 1974

20
Ressaca

Este soluço adiado


É que me dá equilíbrio:
É ter-me desencontrado
No local do suicídio.

É tão fácil de levar,


Como uma bilha vazia,
A vontade de chorar
Que passo p’ro outro dia…

É punhal que me desbasta


Sem me tirar a figura,
É entre o não basta e o basta
Que se limita a loucura.

Uma espécie de rastilho


Sem nunca se incendiar,
Este sorriso é espartilho
Que não me deixa chorar.

Mas o choro não resolve


O que em mim não tem motivo:
Sou o mar que se devolve
À onda que o traz cativo.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 1974

21
À Maneira de Dom Dinis

(Quer’eu en maneira de Proençal )

Quero eu em maneira provençal Ai! tanta Lua Nova que perdi


Cantar o que em silêncio foi ficando, Ao dedilhar nas cordas um afago…
Morna voz de cantor medieval Se andava alguém comigo nem o vi:
Que o fogo da fogueira foi queimando… Tanto o pó na Estrada de Santiago!

Que medo que trazia a madrugada Quero-te em maneira provençal


Ao chegar nas visitas do diabo: Na barbacã mais alta à minha espera…
Numa gota de rosa, orvalhada, Tudo simples, medonho e natural
Ou no correr mortal dalgum veado. Como Inverno ao morrer em Primavera!

Quero eu em maneira provença Lisboa, 19 de Novembro de 1974


Lembrar a escuridão quando nasci,
Apesar duma lua pontual
No mesmo céu igual que conheci.

Jogral de corpo inteiro, sem vergonha


Do que disser o bobo da canção…
Em Compostela, Trento ou na Gasconha
Tanta estrada na minha solidão!

Quero-te em maneira provençal,


Corpo nu em frente dum ribeiro,
Comendo o pouco pão do meu bornal
— Fazendo, no entanto, amor, primeiro… —

22
Pã no Seu Tempo

Deus dos pastores, Vento que passa


Quási sem gado. Cheira a lilases
Vende favores, Mais à couraça
Deus endeusado… Dos ananases.

Devora as rosas, Faunos no mato,


Os laranjais. Lobos sangrentos:
Entre outras coisas: São no regato
Sabe de mais… Vultos barrentos.

Come flores Os seus cabelos


De esfomeado, — Além de ideias —
Bebe licores Formam novelos
Da luz do prado. De centopeias.

Tanto defeito, Barro cozido:


Mas não tem pena A sua face…
Pois do seu peito Deus terá sido
Há sons de avena… Ou foi disfarce?

Toca flautas Lisboa, 27 de Novembro de 1974


Aos sagitários,
Tem argonautas
Nos aquários.

Tem os centauros,
As beladonas,
Dos tempos áureos
Das Amazonas.

23
Pastoral do Ano 2000

É nas grutas e nas gretas,


No fundo de almofarizes
E nos olhos dos profetas
Nos segredos das raízes…

Irão parir as provetas


E vão secar as varizes
Na memória das gavetas
Ficam nossas cicatrizes.

Nas sombras mais inconcretas,


No que dizes e desdizes
Ou nas tuas mãos abertas
De avalanches e deslizes…

Não há fronteiras abertas


Se deixa de haver países,
Mas as horas batem certas
Tanto na paz, como em crises…

Não morre a cor nas paletas


Nem nas penas das perdizes,
Tão pouco nas violetas
Ou nos frascos dos vernizes.

Não interessam descobertas:


Só amo a terra que pises…
E nos olhos dos profetas
Leio tudo o que me dizes.

Amesterdão, 15 de Fevereiro de 1975

24
Na Guerra do Roussilhão

Secam flores pelas jarras Águia: só as tuas garras


Como presos na prisão, Afagam o coração…
Tão inúteis as fanfarras Tão inúteis as fanfarras
Da Guerra do Roussilhão. Da Guerra do Roussilhão.

Tenentes de belas fardas, Pelas estradas reais:


Voz de mando ao batalhão, Olhos nas pedras do chão
Mas o peso das espingardas Se passam oficiais
Faz prender os pés ao chão… Só lhes fala a guarnição…

Guardam alguns uns retratos Na caruma dos pinhais


Ou cartas quási apagadas Tão verde desolação,
Que não merecem tais tratos Só te beijam os punhais
Mas ficam amachucadas. Ó tropa de ocupação.

Soldados com duas caras Parte o navio e as amarras


Sargentos sem coração, Lembram no cais solidão.
Cabeça espetada em varas Inúteis como fanfarras
No prumo da rendição. A Guerra do Roussilhão.

Sem agulhas de amizade: Lisboa, 9 de Maio de 1975


Só há camisas rasgadas,
Recusa-se intimidade
Às tropas aboletadas…

Bandeira rasgada em franjas,


Na mão de alferes mais tensa
E a Guerra das Laranjas
Que nos levou Olivença.

25
Cana Verde, de Verdade

Cana verde de verdade, Cana verde, cana verde


Flauta suspensa no vento, Ai! canção desesperada:
O corpo na puberdade: Quanto vento em nós se perde
Vida nadando ao relento… Sem uma vela enfunada!

Quando o vento se domina Balaia, 18 de Agosto de 1975


A calmia cria espelhos,
Teu corpo é vela latina
Se prendo o leme aos joelhos.

Cana verde que te abates


Nessa sombra de verdura,
Meus afagos calafates
No teu barco de ternura.

Beber a água da chuva


Sem esperar pelo degelo
Tendo apenas os meus gestos
A pentear-te o cabelo…

O sangue é seiva encarnada


Que às vezes corre de menos,
É por este quási nada
A razão por que morremos…

Linha da vida és um arco


Bem maior nas mãos abertas,
O teu sorriso é um barco
Que me leva às Descobertas…

26
Teatro Amador

Nosso papel — Como um socalco


Mal decorado… A renovar-se,
A nossa pele Nas sementeiras
O fato usado. Equilibradas
Os projectores D’uvas inteiras
Ferem a vista. Como pedradas! —
Tão amadores Nosso cordão
Mas tanto artista. Umbilical
Tudo o que conto Recordação
Tem assistência… Bem teatral:
Será Deus ponto Ele é que move
Cheio de paciência? Pano de Ferro
Ou Satanás Que bem se ouve
Junto à ribalta? Em cada berro.
(Tanto lhe faz O pó de talco
Se a voz nos falta…) Os cobertores,
Se mais atento, Morrem no palco
Nisto pensar, Como os actores…
Só oiço o vento Ano mais ano
A segredar… Mal se começa:
Estamos tão sós E cai o pano
Que damos pena: A meio da peça!
Só corpo e voz
A meio da cena Lisboa, 15 de Setembro de 1975
Mal ensaiados
Pelos sentidos,
Tão pateados
E contraídos…
Sobre este palco,
Sempre a mudar-se

27
Mão Fechada

A promessa apalavrada
Quem diria, quem diria…
A montanha escalavrada
Na medonha ventania.
(Parece terra lavrada
Esta espécie de poesia…)

E depois um quási nada


Réstia de maré vazia.
Parece terra esmagada
— Perfume de maresia —­­
A areia estava queimada
Pelo calor que fazia!

Só na tua mão fechada


A minha vida cabia,
Sem destino, aconchegada,
Mal sabia, mal sabia
Que a palma não tinha nada
Quando a tua mão abria.

Parede, 22 de Novembro de 1975

28
Melaço

Sem saber por quem se bate Bispo Negro: xeque-mate


Não se pode ser guerreiro. Silêncio conventual…
É o eco do combate Tudo o que morre em combate
De quem dispara primeiro. É de morte natural.

Sem saber quem em nós manda A morte avesso da vida


Não podemos ser heróis. (Que não se pode virar…)
É a luz que nos comanda Deve ela assim ser vivida
No rodar dos girassóis. Como se respira o ar.

Sem saber por quem se perde Coração boião de mel


Não ganhamos a batalha. Melaço de solidão…
Campo verde, campo verde: O preço da nossa pele
Tua cor é de quem ganha. Tem tão baixa cotação.

Sem saber por quem se bate Lisboa, 24 de Dezembro de 1975


Não se pode ser herói.
Tocam sinos a rebate!
Dão, dão, dão (dói, dói, dói, dói…)

Sem saber por quem se luta


Não se pode ser cobarde.
Flor da morte: flor-da-murta
Ao morrer o fim da tarde.

No combate combatemos
Contra a nossa liberdade,
Sem saber por quem morremos
Não sabemos a verdade.

29
Van Gogh

Os passos dos pássaros.


Os cantos dos cânticos
Os laços dos Lázaros
Na voz dos românticos…

Os lírios dos líricos.


Os danos sem dono.
Os passos verídicos
Nas noites sem sono.

Prata amarelada:
A praia deserta.
E nadava em nada
Com a boca aberta.

A fome sem fama.


Fogo sem calor.
O ramo sem rama
Aberto em flor.

Desconheço Ovídio,
Os Gregos os Godos,
Mas no suicídio
Encontrei-os todos!

Lisboa, 12 de Janeiro de 1976

30
Amor em Dia de Chuva

O teu rosto sorridente É como a tarde inundasse


— Mas chega a ser verdadeiro? — O suor da minha pele
Que altura tem a vertente Ou como o dia chorasse
Na neve do travesseiro? Por razões que não são dele.

O lençol será o leito Lisboa, 23 de Fevereiro de 1976


Dum rio que está a encher
No teu rosto satisfeito
Por tanta água a correr?

Também em água corrente


— E quem sabe de verdade! —
Não passa de afluente
O meu corpo em liberdade.

Só eu entendo o murmúrio
Dos teus lábios que me falam
De segredos do Dilúvio
Onde as cidades se calam.

Tua boca sem mordaça


Faz eco nos cobertores
E lá fora na vidraça
Há um rufar de tambores.

Rufando raiva ruídos


Remoques dos regimentos
Que afinal nem são ouvidos
Quando há fuzilamentos.

31
Escavação
1
A caminho de Pompeia

Água doce, amêndoa amarga, Mal se fazem escavações


Terra mole, duro granito. (Mare Nostrum, Terra Nostra!)
Se a nossa vista se alarga Tão duras recordações
Vai morrer no infinito. Quando a vida fica à mostra!

Tudo nos é limitado Os vulcões erguem o facho


Neste nosso paraíso, Desta nossa maldição,
Com o pão mal mastigado De nós ficarmos por baixo
Pois o tempo é tão preciso… Do que passa a ser o chão.

Somos bichos penteados Se a nossa vista se alarga:


Com fazendas sobre a pele, Vai morrer no infinito.
Mas se estamos desnudados Água doce, amêndoa amarga,
Nosso corpo sabe a mel. Homens feitos de granito…

Ferroadas e zumbidos Pompeia, 7 de Março de 1976


Ai! tempestades de areia:
As abelhas dos sentidos
Fazem de nós a colmeia.

Os dedos bichos de seda,


Afagando tudo em roda,
Amparando a nossa queda
Quando chega a nossa hora.

Gastamos gostos e gestos,


Desperdiçamos carícias
E depois nos nossos restos
Fica de tudo notícias…

35
2
Ponte dos Suspiros

Atrás os braços, Não se incomoda Frisos dourados,


Pulsos torcidos… Com esta gente. Ogivas, arcos,
Mais os baraços É rastejante Dados lançados
Mais os gemidos. Procura o mar Pelo São Marcos:
Dão-se os avisos Já é bastante Venezianos,
Aos demorados! Desaguar… Discretamente,
Os indecisos Água em delírio Duram os anos
São empurrados… E nada mais De toda a gente…
A extrema-unção Cumpre o martírio
Como garrote Dos seus canais. A nada foges:
Desce da mão Sobre os portais Tu não sabias
Dum sacerdote. Alastra em pasta Que nascem Doges
Sempre há quem corte A Lua a mais Todos os dias?
Uma conversa Já muito gasta.
Até na morte Palácios, praças, Veneza, 10 de Março de 1976
Nos pedem pressa… Pontes, colunas,
Um Sol servil Lemes, barcaças,
E rendilhado Só não há dunas.
Relembra Abril Passam os barcos,
Ao condenado. Passam as gôndolas
Iluminando E o São Marcos
O corredor Joga nas tômbolas:
Que num momento Todo o destino
Fica menor… Dos condenados
Cobre a distância Que a pente fino
Com sombra amena Quer bem passados…
— Como a infância Braços atados…
É tão pequena… — Ao sol à chuva:
Veneza em roda Leões alados
É uma serpente Leões sem juba…

36
3
Os Vidreiros de Murano

Passeiam junto dos fornos Têm vidraças partidas


Com medonha indiferença. Pelo vento e pelas bombas
Assopram patos e cornos, E gaivotas confundidas
Madonas de Florença… Por entre bandos de pombas.

Sopram também o Zodíaco, Têm cadeias nos pés


A fauna de pesadelo, Que o Tempo lhes soube atar
Declive demoníaco E conhecem as marés
Nas costas dalgum camelo… Sem terem de ver o mar…

Os vidreiros de Murano, Ajudantes do Demónio,


Num fim de Mundo sereno, Contra-luzes, clarões,
Bebem vidro todo o ano Com medulas de antimónio
Pelas taças de veneno… Cospem vidro dos pulmões!

Esculpem Virgens bizantinas, Veneza, 11 de Março de 1976


Centauros e centopeias,
Serpentes e serpentinas,
Vias-Lácteas, Cassiopeias…

Entre canais e rochedos


Nascem e morrem vidreiros,
Pois guardam bem os segredos
Como os antigos pedreiros.

Vasos de vinho e de cidra,


Perfumes revolucionários
E também cabeças de hidra
Que afogam nos aquários.

37
4
Rosa, Rosæ…

Nas hortênsias, numa acácia, No pó das estradas reais


Nas sombras da acetilene, As pegadas fazem leis,
Até nos Lobos-de-Alsácia Mais as lobas maternais
Ou num silvo de sirene… Qu’emprestam calor ao reis…

Na base dos monumentos, No passar dos legionários


Na patina das paredes, Ficou um mundo esmagado…
Ou nas velas sem os ventos No vapor dos balneários
Que se misturam nas redes… Fica o suor do Passado…

Nas folhas dos castanheiros Terás, Tibre, os mesmos anos


Ou na lixa das figueiras, Na margem direita e esquerda?
No chegar dos companheiros Nas cabeças dos romanos
A quem se acendem fogueiras… A pele é feita de pedra…

Também nos cubos de gelo Paris, 12 de Março de 1976


— Altares abaixo de zero —
Ou nos anéis do cabelo
Que partem dedos ao Nero…

Nas lanças das Legiões


Sobre escudos em viés
Ou nos dentes dos leões
Na cadência das galés…

Os Tribunos da Plebe,
Imperadores convertidos.
Os cedros fazendo sebe
Junto aos arcos abatidos…

38
5
Siderurgia

Não te admires O coração. São os contornos


Das bruxarias Justificamos Da nossa altura.
E dos faquires O nosso génio Sim: animais
E das magias… Pois respiramos D’instinto casto:
Os feiticeiros Oxigénio. As catedrais
Vivem em nós O ferro em brasa São nosso rasto…
Corpos inteiros: Nosso brasão
Dão-nos a voz. Dá-nos a casa Londres,
A força atómica A dimensão. 16 de Março de 1976
Por mais brutal Monstros selvagens
Dá-nos a tónica Omnipotentes:
Do natural. Que nas Barragens
Tão sideral Estamos presentes.
Siderurgia Deuses cativos,
Calor total Dentro de bilhas
Parece dia… Caem rios vivos
Somos os trágicos Nas armadilhas…
Das sinfonias, A matemática:
Somos os mágicos O Livro Santo
Das alquimias… É nossa táctica
Fazemos ouro É nosso encanto.
Mais que parece Anjos, demónios
Se o nosso choro Na invenção
Nos enriquece. E nos binómios
No fim do riso Da solução…
A gargalhada Nos contrafortes
Sem um aviso E nas vertentes
Alienada. Depois das mortes
Soluço, o berro Somos sementes…
A progressão Os altos fornos
Queimado a ferro São a moldura

39
Judas

Sem companheiros Contam-lhe os anjos


Vulto pascal. Todos os passos
Trinta dinheiros E os arcanjos
Por capital. Fixam-lhe os traços.

São trinta pedras Supliciado


Com que se arrasta. Noutra madeira
Trinta moedas Crucificado
Que nunca gasta. Numa figueira…

Passo inseguro, Treze rebeldes


Um ar ausente. Foram cear
O seu futuro Havia neles
Só foi presente. Dois a matar…

Tão necessário Lisboa, 29 de Maio de 1976


Foi o seu gesto,
Como o Calvário
E todo o resto…

Quis um império?
Nem pensou nele:
Como actor sério
Cumpre um papel!

Pedro sentiu
Que não fez tanto
Também traiu
Mas ficou santo…

41
Portugal 1976

Pão de quilo, caldo verde Um país, muitos países,


Com broa bem desfiada. Emigrantes e pedintes,
Sete palmos de oceano Galinholas e perdizes
Outro tanto de enseada As lagostas dos requintes…

Os navios a todo o pano O que dizes e não dizes,


E cheira a terra queimada… O boato e os ouvintes…

Os pés a pisarem uva O que fora e não fora


As mãos sem guardarem nada… No vinho que sabe bem
Tanta saudade de chuva E mais Nossa Senhora
E cheiro a terra molhada. Que dizem ser nossa Mãe.

Estes nervos sempre em franja Sarracenos em salmoura


A cabeça alvoriada Que tristeza que isto tem!
E o Sol uma laranja
Pela sede imaginada Pão de quilo, caldo verde
Com broa bem racionada…
Feijão-frade, mais a canja
E o sabor a limonada… Mas meu País não se perde
Tem largura duma estrada:
Gestos densos e marmóreos Casa branca, vila verde
E a força das pedreiras… Depois não fica mais nada…
Os cabos, os promontórios
Nas carícias marinheiras Balaia, 11 de Outubro de 1976

Os maços de «Provisórios»
Foram-se as marcas estrangeiras…

42
Solstício de Verão

As algas, os hipocampos, E o combate dos galos


Mais os ouriços-do-mar. Onde o sangue fica à solta?
Os faróis dos pirilampos — Só o correr dos cavalos
Que barcos estão a avisar? Não traz a morte por escolta… —

Solstício de Verão… Tudo são carnificinas


O chicote da nortada… É o mar o pregoeiro
Os cinco dedos da mão As sirenes são buzinas
Que conta querem errada? Que dão voz ao nevoeiro
— Se nos pára o coração (Ou o silvo de oficinas
Os números não valem nada — Onde o Mundo cabe inteiro?)

Ai! as angústias nocturnas, Os búzios nas neblinas


As alcovas, as alfombras São trabalho de pedreiro…
E os fornos e as furnas
Onde o Sol aquece as sombras E a noite a pôr de parte
— Onde o Sol aquece o pão Qualquer sonho que nos dá…
Que nenhuma boca come… E se vida houver em Marte
Solstício de Verão A morte também lá está?
A quem matas tu a fome? —
Solstício de Verão…
Os rochedos lembram escombros As traições mais as sevícias.
E cidades bizantinas; Os cinco dedos da mão
Na cor de mel dos teus ombros São chicotes nas carícias…
Há escavações e ruínas
Que conduzem aos assombros João de Orens, 14 de Agosto de 1976
Das pontes florentinas…

Porquê o cantar dos ralos


Que perfura tudo em volta?

43
Ramsés o Grande

Areia, água, medo da morte e de pedras quanto baste


(Receita dum faraó)

Ramsés, tão tranquilo, Tuas mãos aristocratas


No teu sono milenário: Roubam astros ao etéreo.
Lavas nas águas do Nilo As areias são as natas
Esses teus sonhos de calcário? As raízes do mistério
(Até puseste pirâmides (E tiveste cataratas
Nas costas dos dromedários…) Por degraus do teu império!)

Sonhas pedras, sobre pedras Vale dos Reis, Memphis ou Tánis:


Nesse teu medo da morte. Tanto medo sem tamanho!
Os chicotes são moedas Ao tresmalhar-se o Boi Ápis
Com que pagas o transporte… Ruminou um mundo estranho!
(Mas nem Karnak nem Tebas A morte é ponta do lápis
Mudaram a tua sorte!) Que faz o nosso desenho!

A morte é outra colónia Paris, 12 de Setembro de 1976


De desertos cirenaicos
Com muros da Babilónia
Em horizontes hebraicos.
(A povoar tua insónia
De papiros e mosaicos…)

Na tua clepsidra
Desagua o rio do tempo,
Mas tão feroz como a Hidra
Que devora o próprio vento.
(Quando há sede em vez de cidra
O Homem constrói um templo…)

44
Amor-Perfeito

Tanto amor semeia o vento Se Deus nos deu a comida


Nos gestos que desenhaste. E o Diabo o condimento
Almíscar, Âmbar Cinzento Do outro lado da vida
De Mástique quanto baste… Que nos serve de alimento?

Também pimenta esmagada Lisboa, 19 de Dezembro de 1976


E pedaços de Gengibre
E depois em cada unhada
Uma carícia de tigre…

Nos restos da Damiana


A pronúncia vem arcaica,
Outra receita profana
Nos Pimentos da Jamaica.

Na explosão da semente
O desejo é o rastilho,
Fica o coração dormente
Nos rituais do Tomilho.

Só as Passas de Corinto
Não servem na refeição
De requintes de absinto
E de sangue de dragão…

Que almofariz é teu corpo


Nos orgasmos infernais,
Como se a martelo e escopro
Te gravasse nos vitrais!

45
Trás-os-Montes

Trás-os-Montes, Alto Douro, E nas terras de Monforte


Tão longe do litoral, Vejo marcas de silícios.
Nem do mar se ouve o choro Senhora da Boa Morte
Nem os montes são de sal. Na beira dos precipícios…

As rochas não têm limos, Nossa Senhora do Pranto,


Mas a terra é ondulada: Vila Nova de Foz Côa,
Inda mal um monte vimos No granito do teu manto
Vem outro na enxurrada… Não há pedra que não doa!

Só há socalcos e fragas, Em estrada transmontana,


Aqui a noite é maior 12 de Fevereiro de 1977
Quando comigo naufragas
Nas marés do nosso amor.

O céu parece mais baixo,


Lembra o mar quando está calmo
(Quando parece um riacho
Que não tenha mais de um palmo).

Nos caminhos quem resguarda


É o medo que nos mura
Até os anjos da guarda
Têm medo desta altura…

Alto Douro, Trás-os-Montes,


Enrosca o Douro em novelo.
Nem nos sonhos que me contes
Há tão grande pesadelo.

46
Ronda da Noite

Trespassa o vento a mansarda Madressilva, rosmaninho,


Dizimando a escuridão, Mais coisas indispensáveis:
Como essa lima bastarda Catre com lençóis de linho
Que sonhamos na prisão. E sonhos inconfessáveis.

Muda o vento de caminho Nasce a manhã sem milagre,


Se sente vinhas na areia. Pois a noite é sempre a mesma,
Madressilva, rosmaninho É a esponja de vinagre
Nas paredes da cadeia. Que nos estendem na Quaresma.

No morrer das neblinas No ponto onde a noite acaba,


Que adensam a cerração Pode nascer uma rosa
Há limas de quatro quinas Ou pode tecer a baba
Que sonhamos na prisão. Uma aranha venenosa.

No perfume a pedreneira Lisboa, 27 de Maio de 1977


Sonhamos a explosão.
Como cresce a trepadeira
Pelos muros da prisão!

Grades e Lua redonda:


Um convite ao suicídio.
Ouvem-se os passos da ronda
Nos relógios do presídio.

E a chuva imita as vozes


Dos que ficaram lá fora,
Ao entrar nos algerozes
A garganta que a devora.

47
Canção Estival

Chove em Agosto
Sol em Dezembro!
Esse teu rosto
Donde é que lembro?

A Primavera
É exigente,
Amor de fera
Condescendente.

O roçar terno
De chama amiga
Traz o Inverno
Mais não obriga.

Sonho no sonho
É casa em ermo,
Só o Outono
É o meio-termo.

Chove em Agosto
Em água acordo.
Esse teu rosto
Donde o recordo?

Lisboa, 7 de Julho de 1977

48
Emilio Salgari

Irmos aos charcos das rãs Decepar as sardinheiras


E armar à passarada E as caudas das lagartixas.
Pelo fresco das manhãs Espiar os casinhotos
Na pasteleira encarnada… À beira dos precipícios,
Vermos no fundo dos poços Massacrar os gafanhotos
O reverso do luar, Inimigos dos egípcios.
Com a brancura dos ossos Pisar o rabo das cobras
De quem se deixa afogar. Em que sonhamos serpentes,
Apanharmos caracóis Escavarmos nas abóboras
Depois de grandes chuvadas, As feições mais repelentes.
Desfolhando os girassóis Subirmos aos campanários
Com dedos feitos nortadas. (Caça ao galo-catavento)
Fumarmos barbas de milho Ou sermos os legionários
E jogarmos à pedrada No deserto, em regimento.
E fazermos um chinquilho Fazermos uma trincheira
Dos potes da marmelada… Nas grades duma pocilga
Tomar banho nas ribeiras E escalar a trepadeira
Secando o corpo na roupa Que espreguiça a madressilva.
Ou inventar as maneiras Ouvir junto dos moinhos
De roubar colheres à sopa… Que também o barro chora
Sujar as mãos nas amoras, E nas Virgens dos Caminhos
Amassar a terra mole Não vermos Nossa Senhora.
Sem sabermos ver as horas Ver numa vaca leiteira
Que há nos relógios de sol. Perfil de rinoceronte.
Fazermos das caniçadas Julgarmos sempre a fronteira
Uma orquestra de flautas No outro lado do monte.
Cantando em noites estreladas Os caçadores de cabeças…
Os hinos dos astronautas. Peregrinos no Sinai…
Escalarmos as saibreiras Reféns, cativos dos persas…
Como afagássemos lixas. Fumando ópio em Xangai…

49
Tornamos a passar rifas Que vendem caro o seu mel,
(Talvez a sorte aconteça) Sermos os peles-vermelhas
— E o «Filtro dos Califas» Sem olhar à cor da pele…
A martelar-me a cabeça! — Ver azul de mitilene
Esconder nas medas de feno Ou oceano num charco
Os que são do nosso bando E a Lua acitilene
— Embalar desde pequeno No tecto do nosso quarto.
Os sonhos do contrabando. — Tanta coisa ignorada
Pormos penas no cabelo Como não tendo importância…
E com pinturas de guerra Ai! pasteleira encarnada
Montar as mulas em pêlo No portão da nossa infância!
Que se espojam pela terra.
Sem temermos as abelhas Sagres, 23 de Julho de 1977

50
Véspera de Natal

Doce de amora, Em contraluz


Canja, coentro Sem ilusões,
P’la noite fora Vê-se Jesus
E manhã dentro. Entre ladrões…

Os pratos novos: A névoa densa


Velhas terrinas… A neblina
O doce de ovos A casca imensa
E as tangerinas. Da tangerina…

Um cheiro a cedro Lisboa, 22 de Dezembro de 1977


Mais ao que for.
Ainda Pedro
Não é traidor…

O lume estala
E espalha incensos.
Um mundo fala
Nos olhos densos.

Noite tão alta


Tão ao de leve.
Quem aqui falta
Hoje aqui esteve…

O arroz doce
Como emboscada,
Enevoou-se
Na madrugada.

51
Espanha 1978

Quem estará do outro lado? Tens os rios e tens os ventos.


Não é tudo como dantes? Homens desfeitas a masso,
Sancho Pança, degolado, Por carrasco, à martelada,
Pela espada de Cervantes: Mas a terra de Picasso,
Afinal o que encontraste Unamuno e Torquemada!
Nas lições de Dom Quixote? De Cid o Campeador
Um povo, eterno, contraste E da Santa Inquisição
De carícias e chicote! Que do sangue apaga a cor
Terra de santos e sábios Pretextando a salvação…
E também de inquisidores Santa Teresa de Jesus
Que há pouco cortavam lábios Odiando os sarracenos…
Aos franco-atiradores… No ferro em brasa da Cruz
De Besteiros e Machado, Conta o homem de menos!
Santo Inácio, sem fronteiras, Ai! o inferno lendário
Que tinha o corpo manchado Que lembra os Países Baixos:
Pelo calor das Fogueiras… Duque de Alba sanguinário
Do vento do Escorial De armaduras e penachos…
Que sopra contra os vassalos… E o Cardeal de Toledo
Mas no fim é tudo igual — Primaz de todas as Espanhas —
Quando há touros e cavalos! Tem coração de rochedo
Das papoilas do Jarama Num Tejo de águas castanhas!
Dos que não eram soldados. As águias dos Pirenéus
Dos bravos do Guadarrama Teu retrato natural:
De Madrid dos sitiados… Falta terra e sobram céus
Não tem o sangue valor Ao seu orgulho ancestral.
Quando é tempo de matar…
O Destino é picador Os mouros que aqui andaram,
Que deixa um povo a sangrar! Tendo cristãos por amigos,
Do gume duma navalha Tantas mulheres violaram
Rasgas santos e talentos. Já ninguém fala em castigos…
Tocando as notas de Falla Nem só Lorca anda presente

52
No cessar-fogo de agora,
Num meio-tempo que consente
Pensar em paz, muito embora.
Sol e sombra sem mais nada
Prometendo alternativa
E Castela descarnada
É teu corpo em carne viva!
Teu corpo rasgado em rios
Procurando mares sangrentos…
El Greco de corpos esguios
Goya dos «Fuzilamentos»…
Ferra novilhos e fincas
Sob um sol que brilha a pino.
O ouro roubado aos Incas
Não dourou o teu destino…

Liberdade é mal que assombra


Loyolas petrificados…
— Quem estará hoje na sombra
A jogar por ti aos dados?
Sopra o vento ou são aragens
Na colheita prometida?
Quem desdobra os personagens
No palco da tua vida?
Inquisidor alma negra
Ou uma alma de promessa?
Quem será o contra-regra
Do acto que hoje começa?

Guadaletes, Calatravas,
As receitas do passado.
Ai! paella de palavras
E momentos misturados!

Madrid e Lisboa, 21-22 de Maio de 1978

53
Cassiopeia
1
Inferno

Câmaras ardentes
Promiscuidade:
Mortos e viventes
Em cumplicidade.

Os sobreviventes
— Em comunidade —
São eles utentes
Da fraternidade.

Tão surpreendentes
Pela novidade:
Os mortos recentes
Não vendem saudade.

Ficam como ausentes:


Imobilidade
— Embora presentes
Quási em majestade. —

São estrelas cadentes


Em velocidade:
Estando quási ausentes
E em proximidade…

57
2
Purgatório

O ferver dos ácidos


Que Mundo corrói?
Nos acordos tácitos
Que Paz se destrói?

Vinagre e azeite
Os extremos se tocam.
As plumas de enfeite
Que aves evocam?

O riscar do raio:
Farol do trovão,
Das chuvas de Maio
Ao aluvião…

Na força do vinho
Vem a solução
Abrindo um caminho
Alheio à Razão.

Passa a bebedeira
E regressa a vida
Tão mais verdadeira
Tão mais repetida…

58
3
Céu

Pelo firmamento
Ninguém se passeia?
Sem gradeamento
Vê-se a Cassiopeia…

Andar à deriva
E ao deus-dará
Onde a carne viva
Jamais sangrará.

É fundindo o aço
Que o fogo se dobra.
No fundo do Espaço
Que espaço é que sobra?

No céu as pegadas
São quási ilusões,
Semi-apagadas
Nas constelações…

No leque do vento
Que rosto se esconde?
Tudo é movimento
Ninguém nos responde!

Balaia, 17 de Agosto de 1978

59
Poder Secular
1
Camões

Ó meu «Velho Testamento», Devorar a madrugada


Minha Bíblia esfarrapada, Quando a comida faltasse
Aberta a todo o momento E perder-me, só, na estrada
Deixando a noite sem nada! Onde só eu me encontrasse.

Repouso da minha insónia Ter um castigo maior


— Mais fofo que o fofo chão — Das penas que tu expiavas:
Cativo na Babilónia, Morrendo aos poucos de amor
Em Babel e em Sião. No ódio que transpiravas!

Ah! refazer os teus passos


Nas marcas que não deixastes,
Nos anéis dos teus abraços
E nas bocas que beijastes!

Preso ao Tronco, da plebe,


(Nobreza que te sobrava)
E sentir a tua febre
Da paixão que te cegava.

Roçar a tua loucura


Mas só tocada ao de leve,
Deixar Leonor «bem segura»
Num sempre que fosse breve…

Sentir os duros porões,


Onde o dia não se sente;
Encher de ar puro os pulmões
Por vingança, tão somente…

63
2
Fernando Pessoa

Ó meu «Novo Testamento», É no sonho que despertas.


Meu livro com tanto uso. Como a Muralha da China
Sangue-frio do pensamento Das palavras que te cercas
Tão evidente e confuso… Vê-se a Terra pequenina.

Ó ritual primitivo, Galope do pensamento,


Renovado dia a dia, Campo aberto, tão vedado…
Trazendo um novo motivo O Eterno e o momento
Onde há pouco nada havia. Mas tudo bem misturado!

Janela aberta onde arde Paris, 7 de Setembro de 1979


A luz que a vista procura,
Quando pelo fim da tarde
Nenhuma estrada é segura.

Entre o ser e o não ser


Vai a ponte que se deita
Entre as margens do morrer
Ou da vida que se aceita.

E a ponta da loucura…
O granito do talento…
A folha que se procura
Entre as mil que tem o vento…

A semente rejeitada
Mas que vale uma seara.
A onda desenrolada
E que na praia não pára!

64
3
Cesário

Meu missal, em tão mau estado, E as ruas da cidade


De liturgia profana, Num rigor tão pombalino
De domingo celebrado Gemendo obscuridade
Como um dia de semana! De campo com sol a pino…

Será a missa cantada Gafanhotos, escaravelhos


Que nos pode dar ideia E Lua branca de dia
Da cidade transformada? (A leitura de Evangelhos
Numa ruela de aldeia? Dos ateus em romaria!)

Empregado de balcão Perder-me nas tuas ruas


Em teus poemas confusos De canastras e varinas
Crescem flores de latão De prédios e de charruas
De pregos e parafusos. Buíças com carabinas…

Choram noras? Vibram limas? Só sentir à minha volta


Dobram os sinos mais estranhos? A vida à tua maneira:
No rumor das tuas rimas Um muro de pedra solta
De chocalhos e rebanhos… Num tapume de madeira!

Mais a sombra das latadas, Paris, 9 de Agosto de 1979


A força das trepadeiras
E o prumo das calçadas
Na pólvora das caçadeiras…

Medas de feno e de palha


E quatro palmos de aveia,
Mais aquilo que nos malha
Nas ampulhetas de areia!

65
Certidão de Nascimento

No fim do beco No fim do beco


Havia um muro Não há portões!
E madressilva, apodrecendo…
Entrei na vida
No fim do beco Pouco seguro
O meu futuro Fruto maduro
Como um desenho Tronco já seco…
Ia fazendo.
No fim do beco
Quem lá entrava: Havia um muro…
Ou recuava
Ou como eu ia crescendo. Havia um muro
No fim do beco!
Tanto cresci
Que transbordei Paris, 10 de Setembro de 1979
Forcei entrada
E reneguei-me.

Entrei na vida?
Mas não vi nada…
Saí de mim
Desencontrei-me!

Havia Praças?
E mais cidade?
Havia estrelas
Constelações?
Havia tudo
Ou quási nada?

67
«Post Scriptum»

Por baixo das tílias


Há sombras, raízes.
Se escavarmos mais:
Palácios e casas
E lá mais no fundo:
Cidades, países,
Reis, imperatrizes
E formigas de asas…

Debaixo das tílias


Crescem os jacintos,
Os bicos de lacre
Mais os flamingos.
Debaixo das tílias
Mandam os instintos.
Debaixo das tílias
É sempre domingo!

Lisboa, 22 de Setembro de 1978

68
Contra-Relógio

O Nicolau Mas ninguém pára (Então com este vento


Leva o Ruy Belo O pelotão Pelas costas
Na pasteleira… Não tem idade. Não há meta volante
Vai pedalando, Meta volante? Que lhes baste!)
Cadenciado, Vai-se a montanha?
Sem velocidade. Não fica nada? Lisboa,
Contra-relógio 3 de Novembro de 1978
Levam poemas, E qualquer meta
Desconhecidos, Noutra cidade!
Na algibeira,
No macadame Por uma roda
Escorregadio Se perde a vida
Da Eternidade. Se ganha a morte.
Por um pescoço
Sua conversa Vai-se um cavalo
É de silêncio P’ro matadouro…
E sem respostas. Competição
Não dão sequer Em contraluz
Pela mudança De bom recorte
Que há na paisagem… E a geração
Já não se vai
Não há rebanhos, Atrás do choro…
Não há pastores,
Pelas encostas Tão insensíveis
E da Corrida A esta vida
Nenhum jornal Como às apostas
Faz reportagem… Nenhuma etapa mais
Há que os desgaste.
Passa o comboio
E a cancela já está fechada,

69
Mina de Sal

Meu Pai no grande silêncio


O que ouve desta vez?
Os cedros no meio do vento
E quem sabe? o mar talvez…

Se ele serve de semente,


A quatro palmos do chão,
Quem sabe lá se não sente
O direito à criação…

Mas não sente a Primavera


— Equinócio pontual —
É planta que não gera
Canteiro em mina de sal.

Meu Pai no grande silêncio


Tanta coisa que me diz:
Meu caule de pensamento
O que foi minha raiz!

Lisboa, 11 de Janeiro de 1979

70
Nível de Água

Entre o que ouso e não ouso O Inverno ruinoso…


O medo se reconhece, Um Verão que nos aquece…
Como as águas em repouso Somos águas em repouso
E o Sol às vezes aquece… Na memória que nos esquece.

Entre o gesto e o movimento Lisboa, 27 de Janeiro de 1979


Tanta pausa que se esconde
E às perguntas do vento
Só a folhagem responde…

Os cestos transbordam mosto


E o mosto bebedeira,
Se a morte tivesse rosto
Eram as rugas videira…

As cepas de enforcado
Querem levar vinho ao céu,
Num gesto desesperado
Duma raiz que cresceu.

As águas formam riachos,


Lagos, rios e oceanos
E as uvas nos seus cachos
Recebem nomes dos anos.

E de colheita em colheita
Envelhece o tempo em cascos
Como a cabeça direita
Que não se verga aos carrascos.

71
Cozido à Portuguesa

Pão e mel mais aguardente, Pão-de-ló, pastel de nata,


Leite de creme queimado, Doce de ovos, amarelo,
Caldo verde muito quente Ameaça de chibata
Um fio de azeite espelhado… Ou protecção dum castelo.

As vinhas arroxeadas, O cabrito em vinha de alhos,


Um resto a cheiro de enxofre, São Pedro, São Segismundo
As capelas bem caiadas E fugimos nos atalhos
São João e Santo Onofre… Que nos despejam no Mundo.

A pedra esculpindo santos Nas Senhoras dos Caminhos


Que nos abrem os portais, Até se benzem ladrões
Onde o escopro veste mantos Quando por entre azevinhos
Para o frio não ser de mais. A noite manda os trovões.

O bacalhau tem foral É povo ou missa campal


Para vir à nossa mesa, Esta gente em romaria
Toalhas de Portugal Que transborda Portugal
Nas receitas de incerteza. A cheirar a sacristia?

As amêndoas e os figos Senhora dos Continentes,


E também o cheiro a louro. É dela que precisamos,
Os eternos inimigos: Somos os tais penitentes
O espanhol roçando o mouro. Sem caminho que emigramos…

A azeitona enlatada Fica tudo como dantes,


E a calda de tomate, Nunca muda o remetente:
A fruta, cristalizada, A remessa de emigrantes
Posta fora de combate. Traz a morada da gente!

Lisboa, 15 de Fevereiro de 1979

72
Kremlin

O chão em escamas: Da cor das chamas


Peixe de gelo. Este castelo,
Tem cor das chamas O chão tem escamas
Este castelo… Peixe de gelo…

O mausoléu Moscovo, 5 de Setembro de 1979


E São Basílio
Longe do céu
No seu exílio…

Praça Vermelha
Lua encarnada
Como groselha
Engarrafada.

Longas muralhas
Também sangrentas
Como as navalhas
E águas barrentas…

Torres aos cantos


Como em xadrez:
Dão xeque aos santos
Da cor da grés.

Foram-se os reis
Nos turbilhões
E agora as leis
São dos peões…

73
Roleta Russa

Nem sequer a explosão


Só um tiro murmurado…
É um espasmo de colchão
No fim dum quarto alugado.

Casino de ocasião
Sem porteiro ou empregado,
Poente de saguão
De suor todo alagado.

A espingarda de pressão,
Que guardamos do passado,
A furar o coração
Dum presente recusado…

Tiro seco: é frustração


De assistente enregelado,
Palpite de ocasião
Por vezes mal apostado…

Uma bala é um senão


Dalgum baralho marcado…
Todo o homem é um leão
A fugir como um veado.

Lisboa, 13 de Novembro de 1979

74
Gelo

É parede de vidro na aparência,


Gelando o sangue e linfa do deus Baco.
Janela sob o céu da transparência
Revelando a paisagem do opaco…

Ara antiga, inútil artifício


De qualquer deus, gelando eternidade.
Derradeiro degrau dum sacrifício
Mal pisado, logo feito em humidade.

Ó lágrima de estátua jacente


Na ameaça dum choro prolongado,
Chorando por ninguém e toda a gente
Num soluço que de morno é tão gelado.

Lisboa, 17 de Junho de 1980

75
Auto-Retrato

Poeta de circunstância.
Poeta de ocasião.
Subsolo e substância
Da luz do seu saguão.

A provar a indigência
— Atestado de pobreza —,
Não poeta por ciência
Mas poeta por certeza.

Passa as palavras à lima,


Nos contornos da poesia.
Talvez um escravo da rima
Que recusa a alforria…

Mais dócil que revoltado,


Não recorre a pragmática,
É um poeta emigrado
Nos exílios da gramática.

Não divide as orações


E não sente o predicado
Ao nascerem-lhe as canções
Como vento libertado…

Num canto do Universo,


A viver sem estratagemas:
Dá um reino por um verso
Troca o céu por uns poemas…

Balaia, 17 de Agosto de 1960

76
Visitas Proibidas

É quando o soro goteja É quando o soro goteja


— Por uma fresta de nada — Na festa desenfreada:
Quando a vida é uma narceja A cabeça na bandeja,
Que a morte quer derrubada. Salomé embriagada…

Vão-se os anéis a inveja Lisboa, 7 de Novembro de 1980


E fica a noite abafada.
É quando o soro goteja
E a pele fica inundada…

É quando o soro goteja


Pela mica embaciada:
Quer se veja ou não se veja
A janela está fechada.

Um caroço de cereja
Na garganta estrangulada…
É quando o soro goteja
Numa colheita estragada.

É quando o soro goteja


E é bebida mais gelada:
Num desejo de cerveja,
Na saudade engarrafada.

A vida já não areja


A morte calafetada.
É quando o sangue goteja
E a gente não dá por nada.

77
Integração do Átomo
1
Monte de Tabor

Eu aguardo o jejum e o deserto, Eu espero o medo que há em isto tudo,


A vertente do Sermão da Montanha. Em deuses embrulhados como ofertas:
Eu espero por um deus sem lugar certo Perante um cliente surdo-mudo
Nas casas de xadrez feitas de lenha… Na loja que se fecha a horas certas.

Aguardo ainda o ramo de oliveira No céu de Espanha e de França,


Que Noé um dia prometeu, 3 e 4 de Setembro de 1981
Como se a vida fosse a passageira
Clandestina duma barca a meio do céu.

Interpreto o destino nas fogueiras,


Nos gelos, nas negras feitiçarias,
No budismo, no sal, nas pedreneiras,
Na lâmina afiada dos meus dias.

Aguardo as 12 Tábuas de Moisés


Por simples termo de comparação…
Ai! Monte de Tabor, ai! mundo aos pés
Com estrelas ocultadas pela mão…

Eu espero Barrabás na alternativa…


Também o Muro das Lamentações…
Em Meca, espero o sim e a negativa,
O pudor, a devassa, as confissões…

81
2
Cassiopeia

Não há limites. Linguagens siderais.


Equações. Binómios sem segredos.
Sonhamos zeros, que nunca são de mais
E contam-se os chineses pelos dedos.

Os astros são nossos ancestrais.


Há que aceitar isto sem enredos
— Se pensarmos, então de mais a mais:
Que se contam os chineses pelos dedos…

Rosa, rosæ dos Romanos, as vestais


(A memória tem raiz dos arvoredos),
Ó impérios, de outrora, aonde estais?
Já se contam os chineses pelos dedos!

Sempre poucos nas nossas bacanais,


Sempre muitos no pudor, nos nossos medos.
Bem no fundo uns nobres animais
A contarem os chineses pelos dedos.

No comer, no dormir: os rituais,


Água potável, o prumo dos rochedos.
No Espaço, afinal, todos iguais
Aos chineses que se contam pelos dedos.

Paris, 7 de Setembro de 1981

82
3
A Meia-Nau

Não à vindima! Sim ao vinho! Sim ao vinho! Não à colheita!


Não ao sangue! Sim à sangria! Sim à sangria, ao sangue não!
Não à estrada! Sim ao caminho! Sim à canção feita, desfeita,
Não à manhã! Sim ao meio-dia! Na lira aberta do coração!

Sim: ao meio-termo, meias palavras, Lisboa, 19 de Setembro de 1981


Às meias cores, às meias tintas…
Meias marés — sem marés bravas —
Às meias frases, pouco distintas.

À bandeira a meia-haste
— A morte em nós recomendável —,
Pensar nela um quanto baste,
Meio sorvo de água potável.

Meia vitória e meio ceptro,


Meia nação já dominada…
À meia-lua e ao meio metro
De chaminé iluminada.

Um quási nada. Um quási eterno,


Como um corpo equilibrado.
Verão em nós dizendo Inverno,
Som dum tiro bem calibrado…

Meia estação: sonhando Outono,


Meio-termo no calendário.
Meio sonho a meio do sono.
Almofadão feito calcário.

83
4
Átomo

O Espaço é todo feito de distância, O que era a multidão sem ter anónimos
De abismos, movimentos, incerteza. Embrenhados na própria solidão?
Nas galáxias da nossa ignorância A vida é toda feita de binómios
Quem vem reconhecer nossa tristeza? Tanta vez sem nenhuma solução!

A Eternidade é feita de minutos, Lisboa, 26 de Setembro de 1981


Partículas do Tempo em suspensão,
Em tubos de ensaio diminutos
Fora do nosso ângulo de visão…

Numerais, cardinais, tudo em novelo,


Iguais e desiguais: desunião.
O zero é melhor reconhecê-lo…
Mas o 1 é o começo do milhão…

O mar são gotas de água escravizadas.


A onda é o grito à liberdade.
Tudo é feito de pequenos nadas
Sem ninguém saber por que vontade.

É todo o fogo feito pelas chamas


Que se perdem em breve nas queimadas.
O peixe é numerado pelas escamas
Nas rotas que nos são ignoradas.

Infinito sem zero não existe,


O começo é semente à nossa imagem,
É lança levantada, bem em riste,
Riscando o nosso corpo de passagem…

84
Cavalo da Acrópole

Cavalo branco E nos teus olhos A transbordar,


Domado em pedra… Que são tão brancos. Quási sem peso
As tuas rédeas Tão bem tratado No teu andar…
São mãos de Fedra? — Granito comes! — Morres de fome
Quem vai cortando Ficas ferrado Mas vale a pena
O teu galope, P’la pedra-pomes. Matar-te a fome
Em ti vibrando Seca-te a boca Com um poema!
Golpe após golpe? De sede morres, Eu te segrego
Sombra ou vapor? Contra os milénios Eu te alimento,
Tal a brancura… É que tu corres. Cavalo grego
O teu senhor Corres areias Feito de tempo!
Não te segura? Pouco pisadas, Sede citrina…
Fez-te a martelo Nas tuas veias Dedos de Fedra
(Já não martela!) Adivinhadas… Na tua crina
Montou-te em pêlo Potro selvagem Feita de pedra!
Ou pôs-te sela? Donde fugido?
Já não te empinas Tudo em voragem Atenas, Cairo e Lisboa,
Sobre as traseiras, Tudo esculpido! 18-24 de Setembro de 1981
Esvoaçam crinas Terra batida
Nas dianteiras… À tua roda,
Fazes da Acrópole Terra esquecida
Um campo aberto Da alta escola.
Onde o teu trote Sem picadeiro
Sonha o deserto. Ou outro meio
Morres primeiro
Tens olhos vasos Que o teu volteio.
Cheios de noite… Samos, Éfeso,
Narina aberta Restos de mar,
Ao cheiro antigo… Peloponeso
Morrem-te os sonhos No teu olhar…
Nos teus flancos Tudo coeso

87
Tempo de Silêncio

Sinais dos tempos: um Tempo sem sinais.


Sinais contrários dos tempos que se vão.
Polindo as águas as faces dos cristais
Nascem frases onde os silêncios estão.

Os santos são em tudo naturais


Com tempo todo feito de oração.
Sinais contrários em tudo tão iguais,
Deixa o rosário calos pela mão…

Sinais dos tempos: um Tempo sem sinais.


Deserto de Sinai. Insolação.
Palavras pastoris nas pastorais,
Ovelhas tresmalhadas, solidão…

Conserva o céu as cores outonais


Dos primeiros dias da Criação.
Os deuses ao nascerem nos currais
Renegam os palácios pr’a onde vão.

Sinais dos tempos: um Tempo sem sinais,


Ó sentido dos sinais tentado em vão!
Ó silêncio das celas conventuais
Com palavras servidas por ração!

Lisboa, 3 de Outubro de 1981

88
Telex a Lech Walesa

Aqui no Ocidente sou de Esquerda


Mas no Leste seria dissidente.
A estátua lembra gente, lembra pedra,
Mas lembra mais pedra do que gente.

Porém aqui eu sou bem a meu modo,


Enquanto lá gostava só de o ser…
Aqui posso mostrar ao Mundo todo
As coisas que se pensam ao escrever!

Aqui no Ocidente sou de Esquerda


E lá tinha de o ser mesmo sem querer…
A vida não é estátua feita em pedra:
Temos de usar a fala p’ra viver.

Aqui quando a palavra não me ocorre


Não é que precise de a esconder.
O culto do silêncio é o que morre
Na palavra impedida de nascer.

Aqui no Ocidente sou de Esquerda


Já o fui em silêncio sem dizer…
Mas também o silêncio não se herda
Como um dia em Abril eu pude ver…

Paris, 18 de Outubro de 1981

89
Acordar em Hotel

O sal no saleiro. — Pelos corredores


A água no poço. Que nos manda o vinho —
Inverno e Janeiro Foi noite em claro,
Que pequeno-almoço! Feita de momentos.
Cheira a croissant, Agora, reparo
A jornal, a tinta… Nos teus movimentos…
Laranja e maçã Já tudo é Passado,
Como estão na quinta. É véspera distante…
Inverno em Janeiro, (Está o céu estrelado?)
Verão em Agosto, O Sol está brilhante?
O teu travesseiro E quando o lá fora
Desenhou teu rosto… Não serve de centro:
E os ovos quentes Todo o Mundo mora
Ficam estilhaçados, No que está cá dentro!
Mastigam teus dentes O sal no saleiro.
Meus lábios sangrados! Migalhas de pão.
No espelho da porta: Transborda Janeiro
A cama revolta, A recordação…
Imagem que corta
O mais que há em volta… Lisboa, 1 de Janeiro de 1982
É água na veiga,
O correr do banho.
O pão com manteiga
Cabe no desenho.
Teus seios abertos
Não esconde o lençol
São montes cobertos
Pela sombra e sol.
Sob os cobertores
Teu corpo adivinho

90
Saudação a Enrico Berlinguer

São como amarras que soltas Descobre a criança as pernas


Em tudo o que em ti descubro, P’ra ter o nome de gente!
Não pára o Mundo nas voltas Ninguém pára a evolução
Já tão longe fica Outubro. Natural do Universo.
Não pára o Tempo se é tempo Outra voz: outra canção,
É uma pedra arremessada Outro poeta: outro verso.
Que vai à frente do vento Cada Maio cria um Junho:
Correndo a História à pedrada. O Infinito por meta.
Passaram as Primaveras, Tudo passa o testemunho
Já se renderam Outonos, Nesta espécie de estafeta…
Houve depois outras guerras Bastam estátuas por sinais!
Mudaram Pátrias de donos… Ficam paradas na rua,
Houve pegadas na Lua, Estátuas são pontos finais
Onde há outros oceanos Na prosa que continua…
O Inverno não recua Tu não paraste no Tempo
E há outras folhas nos ramos. Nem o tempo queres parado:
Viver é seguir em frente O Futuro é movimento
(Avião: foi Passarola…), Que te desprende do Passado!
Torna-se o mar bem diferente
Em cada onda que enrola. Constantinopla, 16 de Fevereiro de 1982
Não é a vida das penumbras
Que constrói os ideais:
É sair das catacumbas
E erguer as catedrais!
É sair dentro do ovo
E ser águia majestosa…
Outro pingo de água novo
Fará nascer outra rosa.
Sai o Homem das cavernas
A criar outro ambiente.

91
Passagem de Nível sem Guarda
(Comboio de corda para a minha primeira neta…)

As minhas contradições Comboio expresso ou correio,


Vivem dentro do meu peito. Tudo depende do jeito
São a paz sem condições Do sacão que vem do meio
Dum exército desfeito. Dos movimentos que aceito.
Via-férrea que motiva É uma espécie de fantasma,
A agulha dos meus dias. Uiva na noite de breu.
A minha locomotiva Leva bem sangue em plasma
Que me transporta as poesias. Que já gente socorreu.
A velha composição Vive de inutilidades
Inda movida a vapor Das coisas deitadas fora,
Que pára em qualquer estação, Sem usar velocidades,
Num horário ao meu dispor… Chega, porém, sempre à hora.
Cresce a erva nos carris Passa logo a ser Passado
Mas comboios em dois sentidos… Quando da vista se escapa,
Leva caixotes, barris Ramerrame mastigado
Com mendigos escondidos. Em lugares fora do mapa.
Leva homens do capital, As carruagens em fila
Com suas pastas de couro… Quando a jornada é propícia.
O comboio vê-se mal Algum dia descarrila
Nos topos do miradouro. E o jornal nem dá notícia.
É um rasgão na paisagem As minhas contradições
Como uma estrela cadente. Seguem dentro do meu peito.
Mal se antevê a viagem: É um correr de vagões
Nada fica em nossa frente. Na ponte sem parapeito!
Comboio de mercadorias
Que leva tempo a passar Lisboa, 13 de Março de 1982
Que só lembra almotolias
No ranger do seu andar.

92
Nome Próprio Feminino
1
Camões

Quisera eu cantar a tua sorte.


Quisera eu pisar o que pisaste,
Mas a bússola de hoje dá o Norte
Das terras só do Sul por onde andaste.

Quisera eu rimar onde rimaste.


Quisera eu morrer a tua morte.
Quisera eu nadar onde nadaste
Nas rochas onde o mar faz o recorte.

Quisera eu salvar o que salvaste


Ao alcançar a praia mais distante…
A China fica perto, pois chegaste
E tens a Terra toda por amante.

Quisera perguntar, não respondeste,


Tanto te quero mostrar e nada vês.
O pouco que te damos… Tanto deste
Fizeste um Jau de cada português!

Lisboa, 9 de Maio de 1982

95
2
Jau

Quem ama o seu senhor não sente a fome,


Por ele estende a mão à caridade.
Um escravo só direito tem ao nome
Como santo que morre em castidade.

Dos versos nada vê e nada come…


Redondilhas a fugir pela cidade…
Nos becos infernais onde se some,
Mais além do seu vulto pouco cabe…

Fica porém enorme no ossário


— Jazigo imponente da escumalha —
­
Bom ladrão? Mau pedinte? Bom corsário
Da Armada Invencível da Canalha.

Lisboa, 9 de Maio de 1982

96
3
Natércia

Natércia, ou qualquer nome, não interessa,


Pois basta ser mulher sem ser mais nada…
Por vezes vem a Lua e não começa
A noite que se pensa começada…

Dinamene, talvez… ou qualquer vulto


Ou ventre que se beije numa alcova…
Sorriso bem aberto e bem oculto
Na promessa de noite e Lua Nova.

Minguante, talvez pois o Luar


Das sombras faz mulher, se lhe apetece…
Mariana é bem certo: lembra mar,
Partida onde a saudade já estremece.

Mas Leonor fica em terra e na verdura,


Certeza dum regresso demorado…
Mulher outra mulher e desventura,
Amor forjando amor já condenado!

Lisboa, 9 de Maio de 1982

97
São Paulo

Sim! Outrora fui carrasco, A minha filosofia:


Sem ter Terra Prometida. É a espada na bainha
Foi na Estrada de Damasco E depois é ver o dia,
Que mudou a minha vida. O dia que a noite tinha.

As almas mais ignotas Levei a voz ao Éfeso


Em mim buscaram abrigo: E a muitos outros lados.
Os Galatas, os zelotas Acabei tão indefeso
Que se cruzaram comigo! Eu que mandava em soldados…

Nadei nos lagos sagrados, Da Macedónia a Mileto


Atravessei sementeiras. Vai o passo dum mortal.
Vi Cristos apavorados O Mundo é só um coreto
No Monte das Oliveiras… Em jardim descomunal.

Entre o sonho e a verdade Balaia, 10 de Agosto de 1982


Minha vida decorreu.
Um soldado sem idade
Dentro em mim adormeceu.

Tanta gente decepada!


Quis tudo à minha maneira:
Transformei a minha espada
Numa rama de oliveira.

Nas estradas da Galileia


Ou nos montes de Corinto,
Escrevi cartas dando ideia
Das coisas que só eu sinto…

99
Algarve 1982

É o figo mal passado E o povo fica alterado


Aguardente de medronho Pelo chic das marinas…
É o não estar acordado Corre álcool desnaturado
E não ter direito ao sonho. Nas varizes das varinas!

É a sombra das figueiras Paris, 4 de Setembro de 1982


Rastejantes sem altura.
As amêndoas verdadeiras
Em toda a sua secura.

É a água que não há


E o balançar duma rede.
É o ter direito ao chá
Neste País cheio de sede.

É o nylon e a fibra,
Em vez da chita, presente.
É o dólar ou a libra
A moeda mais corrente?

Ainda se ouve falar


O Português nalgum lado?
(Ou é só a voz do mar
A ruminar o passado?)

A areia outrora tão alva


Tem outra tonalidade.
Só a gaivota se salva
E não perde a majestade.

100
Cega-Rega Marroquina

Tem Rif reféns O bolo o beijo O rei e a regra,


Castela castelos Sorvendo saudade. A letra e a lei,
Por vinte, vinténs! Real realejo A manhã alegra
Carrascos, cutelos… De notas notadas, O seio que eu sei…
O fim das figueiras: Em sol de solfejo Por vinte vinténs:
As fisgas os figos. Nocturnas nortadas. Carrascos, cutelos…
Névoas nas nogueiras A sina dos sinos, Tem Rif reféns
Antes dos antigos. De bronze batida, Castela: castelos…
Riso o ritual Detém os destinos
Sempre mais ou menos: Ao vencer-se a vida. Estrada de Chaquen
O fim é fatal Lâminas de luar, a Tetuã,
Seremos serenos! Afins, afogadas, 19 de Setembro de 1982

Animo: animais! Legando o lugar


Seremos sumidos… A manhãs manchadas.
E de mais a mais Planalto pleno
Vivemos vestidos… De várias vertigens…
Olaias, olivas, O amar ameno
Aves, arvoredo Tão vago das virgens…
E as vagas vivas Os passos, os poços,
Roçando o rochedo. As arcas arcaicas,
Largas levadiças Os fósseis os fossos
A meio das ameias. As prosas prosaicas.
Calcário, caliças O mar, as marés,
No vinho das veias. Ralos ao relento,
O cedro e o ceptro, Convém ao convés
Suor, sofrimento, Ventura de vento…
A mão e o metro Primo: a Primavera,
Como comprimento… Fugaz e fingida,
A boca o bocejo O Tempo tempera
Com continuidade, E come a comida…

101
O Luar é Azulado

A verdade a nosso lado


É necessário que minta.
O teu retrato apagado…
A saudade aviva a tinta.

Qualquer leão enjaulado


Dá-nos coragem indistinta.
Despovoa o povoado
A alcateia faminta.

Se o lobo está isolado


Dorme a sono solto a quinta.
Está a morte aqui ao lado
Sem que o nosso sonho a sinta.

Inocente degolado
Talvez um deus não consinta.
Caçador desalentado:
Poucos troféus traz à cinta.

O luar é azulado?
Não se conhece na tinta…
Só o céu o quer pintado
Sabe-se lá quem o pinta.

Estrada Badajoz-Córdova,
28 de Setembro de 1982

102
Este Ano em Jerusalém

«Este ano em Jerusalém» Até a noite gemer


É tão fácil de dizer A confissão mais guardada
Se neste tempo que vem Que é tão fácil de dizer
Ninguém viesse a morrer. Se o medo vem de mão dada.

Às vezes isto acontece Sonhamos pelas manhãs


Sem ter nada de notório, Com sermões e com montanhas.
Mas doutras tudo se esquece Vai-se o tempo das maçãs
Nalgum forno crematório. Volta o tempo das castanhas.

Nos sonhos há Galileias, A força que o sonho tem:


Rio Jordão a transbordar É Dom Quixote a lutar
(No labirinto das veias Com os moinhos de além
Há tantos braços de mar!) Onde não vamos chegar.

Muro das Lamentações: Paris, 15 de Outubro de 1982


É vendo bem qualquer rosto;
Salomés ou Salomões
Tudo finda no sol-posto…

Faremos autos-de-fé
Nas estradas de Sesmaria,
Iremos a Nazareth
Ver a Casa de Maria.

E também a Jericó
E a qualquer outro lugar.
Preciso: é sonhar sem dó
Até a noite sangrar.

103
Latifúndio

Vinde terra macerada, Lembramos a Criação


Vinde terra derretida. E de nunca o termos dito…
Sete palmos não são nada Sete palmos nada são
Mas metemos lá a vida. Mas são o nosso infinito.

Da vida pouco se sabe. Lisboa, 28 de Novembro de 1982


Sabe a sal ou sabe a mel?
Em sete palmos não cabe
O que não seja da pele!

Sete palmos mal medidos


Como tecido barato…
Onde cabem os sentidos
Nada mais cabe de facto?

Há labirintos, abismos,
Tudo nós temos cá dentro:
Há cicatrizes de sismos
De que somos epicentro…

Há oceanos e lagos,
Planícies e colinas.
Há horizontes tão vagos,
Montanhas com neblinas.

Lua Cheia, sol nascente


Preia-mar, maré vazia.
Nós lembramos no poente
Quando o Mundo arrefecia.

104
Última Caçada

A água vidrada A Águia Real


Abaixo de zero. É morta à paulada,
Caçar à pedrada No meio de arraial
É o que mais quero. De turba exaltada.

Já não voltam mais O Pêro Menino,


Os tempos felizes: Da falcoaria,
Armar aos pardais Neste desatino
Caçar codornizes. O que nos diria?

A caça a pé firme Sonhava um remédio?


E mais as ciladas. Alinhava ideias?
Por mais que se afirme: Morria de tédio
Já não há caçadas… Ou abria as veias!

Morrem falcoeiros. Lisboa, 1 de Janeiro de 1983


As águias se somem
E os perdigueiros
As perdizes comem.

Solta-se o furão
P’ra dentro do mato:
Esta a punição
Este o desacato!

Tudo é ilusão.
A ave não pousa?
É galgo ou falcão?
É lebre ou raposa?

105
Velhas Casas Cor-de-Rosa

Velhas casas cor-de-rosa, Hoje só vejo cimento,


Janelas de alvenaria. Os homens as avenidas…
Havia a Rua Formosa Tudo lembra movimento
Tinha gás ao fim do dia. Quando passa um fura-vidas.

Havia a Rua da Paz, É como estrela cadente,


Mais a Travessa da Hera, Deixa um rasto que se apaga,
No tempo que fica atrás Constelações que são gente
Ficar nele quem nos dera… Em que outra gente naufraga…

A quebrar o ramerrame O barco hoje já não silva,


Duma vida sem resvales, Chega ao Tejo e fica em seco.
Calçadas de macadame E cheirava a madressilva
Onde caíam cavalos. Pelos fundos do meu beco…

Croché, perseverança Eram tranças, trepadeiras,


Na casa da minha avó. Numa cabeça qualquer
Havia a Rua da Esperança, E o tossir das traineiras
Travessa do Fala-Só. Rebocando algum escaler.

O Tejo como a serpente O musgo cobria o muro…


A envolver a cidade, Deitavam sal nos passeios
Aceno de mão dormente A salgarem-me o futuro
Prometendo eternidade. Pois ninguém olhava a meios…

As casas dum rosa velho… Havia a Rua Formosa


A descoberta do sexo… Janelas de alvenaria.
Ai! se este rio fosse um espelho Velhas casas cor-de-rosa
Seria um espelho convexo! Onde o Tempo não cabia.

Lisboa, 17 de Janeiro de 1983

106
Poema em Construção

Frente a frente, com o papel em minha frente


(Só tu, amor, o nome soletravas…),
Um bafo de loucura a passar rente
No labirinto de ideias e palavras…

A poesia a desenhar-se lentamente


Nas linhas em que o corpo desenhavas.
E agora há saudade adjacente
Às palavras pontuais que segredavas…

A morte era quási um caso assente,


Como vela a extinguir-se que sopravas.
O poema: nasceu afluente
Desse braço de mar com que acenavas…

Como a morte aparente é mais concreta!


O poema descoberto: estátua erguida,
Onde a pedra esculpida é mais secreta
Do que a forma da figura conseguida.

Lisboa, 17 de Março de 1983

107
Os Insectos e os Outros

Mudou-se a palma da sina Como navalha de ponta


Nos afagos das urtigas. — Mal aberta, muito embora —
O negro é tinta-da-china Fecham-se os bichos-de-conta
No carreiro das formigas. A tudo o que vem de fora…

A marca dos escaravelhos Aranhas tecem nas teias


É medalha dos ateus, O tecido dum destino
Vai um povo de joelhos Que cativa centopeias
No voar dos louva-a-deus. Com patas em desatino…

As joaninhas vermelhas, As carochas nos excrementos,


Tão de negro ponteadas… Na sua força ignota,
O zangão ama as abelhas Vão deixando em fragmentos
À força das ferroadas. Leis da Física remota.

Licor de fogo nos campos Trespassam malvas e cardos


A segregar-se de luz: Por sobre a terra gretada:
No morse dos pirilampos Os zumbidos dos moscardos
Que mensagem se traduz? Como música sagrada.

O bolor nos rodapés, Deuses em voos secretos


Larva de bichos alados? Junto ao céu, equilibrados?
Por eles nas chaminés O mundo é só dos insectos
Cantam grilos desolados. Deserto dos vertebrados!

O casulo que anteceda São João das Lampas e Lisboa,


O voar da borboleta 6-7 de Julho de 1988
É feito com fios de seda Londres, 27 de Julho de 1988
Como manda a etiqueta…

108
Lápides Apagadas

Esta pedra tumular Sob as pedras, acordados?


Que já pesa enquanto há vida, Ou em sono justiceiro?
Mas no exacto lugar Apenas emparedados
Como uma folha caída… Sem direito a formigueiro!

Só aguarda a inscrição Balaia, 8 de Agosto de 1983


Que um dia lhe vão escrever
— Pobre ofício de escrivão
Que pouco tem a dizer… —

As pedras postas em monte…


Ou uma cruz solitária…
Qualquer coisa que nos conte
Como a vida é perdulária.

Também no fundo dos mares


— Quem é dono deste império? —
Existem destes lugares
Talhados p’ra cemitério…

Com que flores sonhou a alga,


Abertas em transparência?
A saudade como salga
As coisas que são ausência!

Pelos caminhos do céu


Também há lousas partidas?
Como a noite lembra o breu
E presenças já esquecidas!

109
Ex-Libris

Desertor, eu ando a monte, Pobre rafeiro danado


Perdido na multidão. Que se perdeu sem coleira!
Por muita história que conte Eu tenho o faro apurado
Eu não tenho opinião. Na tortura da poeira!

Tendo fome de anteontem Lisboa, 9 de Outubro de 1983


Tenho sede de inda agora.
Por mais caminhos que aponte
Eu não me quero ir embora.

Tenho o ócio das montanhas…


Quando a neve nada deixa…
Decoro santos e senhas
Nesta boca que se fecha.

Eu ando camuflado
Pela pele das Estações:
Pele de tambor já estalado
No passar dos batalhões.

Sou o sargento-ajudante,
Por vezes o despenseiro…
Todo eu mudo num instante
Como vento passageiro.

Tenho fome e tenho sono


Faça lá eu o que faça,
Sou como um cão sem ter dono
E que só viva da caça.

110
Auto-Retrato

Poeta não alinhado. Como gato de telhado,


Sem questões a demovê-lo. Barricada: a chaminé…
Como gato de telhado A mais não sou obrigado,
Faz da Lua o seu novelo… Cada qual é como é!

Sou um franco-atirador, Lisboa, 4 de Dezembro de 1983


Mas fora das barricadas.
Granadeiro ou caçador
Com armas descarregadas.

Poeta não espartilhado


Pela força da doutrina,
Como cavalo espantado
Que ultrapassa a própria crina.

Tenho as balas nos tinteiros


E baionetas refractárias,
Eu nunca fiz prisioneiros
Por razões humanitárias.

Poeta bem alinhado


Por cardos e malmequeres;
Um poema engatilhado
Onde só fala em mulheres.

Mas se acaso algum coelho


Atravessa a sementeira:
Quebro a espada no joelho,
Estendo o ramo de oliveira!

111
Última Tentação

Vendido por um ósculo


Qualquer Cristo se revolta
Se não encontra um apóstolo
Ao olhar em sua volta…

No desfecho só se aponta:
Um Deus prostrado ou altivo.
Mas bem no fundo só conta
O homem que ficar vivo!

Lisboa, 4 de Dezembro de 1983

112
Tocata e Fuga

Cravo temperado
Em cena laica,
O tablado
Harpa Judaica.

Mais o Fandango,
O Minuete,
Cantor de tango,
Voz de falsete.

O dó bemol,
A semifusa,
Clave de sol:
Olhos da musa…

O ré menor,
Uma colcheia,
O fá maior:
São grãos d’areia.

As notas pretas
Como rosário,
Que planetas
No Planetário!

Que rio tão farto


Que nos murmura
Os sons em parto
Na partitura!

Lisboa, 4 de Dezembro de 1983

113
Outro Natal
P’ro ano quem virá? E quem partiu
Quando o pano de ferro for içado?
O sino, se tocou, ninguém ouviu,
O bronze foi apenas beliscado…

Outro pinho, outra noite e outra idade,


O rosto permanece mas com estragos…
Na mesa, castiçal e castidade
E já se adivinham os Reis Magos.

Jerusalém, ao longe, fica enorme


Com seus telhados tão ensanguentados,
Herodes, tresloucado ainda dorme
Mas já sonha Inocentes degolados…

Renascido pobre, não tem amos,


É o Filho do Homem ou de Deus?
Terá depois domingos com seus ramos
E Salomés, apenas com seus véus…

O tempo é de silêncio nesta altura,


De neve que se quer imaginada…
Cada um tem Jesus que desfigura
À força desta noite não querer nada…

Lisboa, 19 de Dezembro de 1983

114
Via Appia

Loba faminta de Roma De Roma loba faminta,


Não tens afagos no pêlo. Pelos filhos doutros ventres,
Quem de ti um dia coma Tem teu leite a cor da tinta
Terá c’roa no cabelo… Das histórias em que tu entres.

À fronte dás as tiaras, No céu da Arábia, 26 de Agosto de 1983


Outras marcas de nobreza…
Perde-se o leite em searas
Se das tetas fazes mesa.

O latido que em ti vibre


Gela-nos sangue nas veias,
Pois lembra águas do Tibre
Que envenenam alcateias…

Sais aos atalhos, aos trilhos,


Tudo ao que a noite convida,
Depois devoras os filhos
Mas a monarcas dás vida.

Pisas a sombra dos dias,


Calendário de arvoredos.
De ti nascem dinastias
Que contam reis pelos dedos.

Desenhas a Geografia
Com tribunos e Tibérios?
Teu leite da tirania
Fez a nata dos impérios…

115
Marvão, Tantos de Tal

Em Espanha havia sol (e sol a pino!)


Porém aqui chovia sem parar,
Como a fronteira fosse só destino
Dos dois povos que estava a separar.

Ou sol e sombra apenas das touradas?


— Touros de morte ou não, não vem ao caso… —
Porém, horas depois: vidas trocadas
A Espanha era um dilúvio no Ocaso!

A Lua, amena, veio beijar a raia


Que há pouco o Sol e chuva baralhava.
Marvão, visto de Espanha, já é praia
Apenas isto a noite segredava…

Lisboa, 10 de Janeiro de 1984

116
Audição Única

Com um certo desacerto, Pianista boquiaberto


Duma primeira audição: Por ouvir uma ovação…
Este infindável concerto Resignado concerto
Enquanto há coração… Que só tem uma audição.

Continente descoberto Lisboa, Fevereiro de 1984;


Por recente aluvião, Londres, 29 de Julho de 1988
De chuva vinda de perto
Mas não caindo no chão…

Como fólio entreaberto


Dalgum livro de Razão,
Onde o número fique certo,
Pareça ainda que não…

É como Sol encoberto


Quando não manda a Estação:
Sentimos a vida perto
Mesmo ao alcance da mão!

É visível e concreto.
É o sim e negação.
É o presságio secreto
D’aviso à navegação…

É a flor do deserto,
Vertigem de saguão,
É como cântico aberto
A retalhar a canção…

117
Circus Maximus
1
Dança do Escalpe

Uma escada sem degraus Se pelo sonho transfiro


— Onde o passar não estremeça — O que vai dentro de mim,
Memória a noventa graus É da água que transpiro
A ferver-me na cabeça… Entre algum não e um sim!

Um mapa na epiderme Os sonhos são dominantes,


— Isenta de tatuagem —, São galgos em liberdade,
Trago em mim o Júlio Verne Os vasos comunicantes
Que me deforma a imagem. Entre mim e a verdade.

Estação de rádio arcaica Veneza, 12 de Fevereiro de 1984


Só emito em ondas médias
Na muralha pirenaica
Que m’afasta das tragédias!

Na cintura trago escalpes


Dos sonhos dos meus dez anos
E por vezes passo os Alpes
No roncar d’aeroplanos.

Levo o Emilio Salgari


Nesta minha trajectória,
Mais os sonhos que fervi
No caldeirão da memória…

Torno a massa lamacenta


Em fresca água potável,
Essência tão pura, isenta,
D’alguma causa notável…

121
2
Terra de Siena

Feras por pedra afagadas; Feito de sombras humanas


Nos claustros, os morcegos E desejo de ver mais,
— Tantas luzes apagadas Desenha estradas romanas
Sonham nos olhos dos cegos… — Nos caminhos actuais.

Será leoa ou hiena Florença-Siena, 17 de Fevereiro de 1984


Ou apenas uma loba,
Esta sombra de Siena
Que o luar quase nos rouba!

Algum deus greco ou latino


Que já perdeu o tamanho,
Por ser maior o Destino
Do que o seu próprio desenho?

Seja o que for, já não passa,


E o leite do luar
Deixa suspensa a ameaça
Dum castigo exemplar…

É um espaço quase etéreo


Qualquer metro à nossa volta
É um anel do Império
Com sonhos andando à solta…

Que flores floresceu Florença?


Que veias vão a Veneza?
Sem sabermos a diferença
É que temos a certeza.

122
3
Pedra de Carrara

Um Galata moribundo Passeou nas alamedas


Acabando sem glória As pernas empedernidas,
No chão que foi o seu mundo Mediu o trigo nas medas,
A páginas tantas da História… Chorou colheitas perdidas.

Nem moldura duma sebe Caído, sem uma amarra…


Serve de fundo ao pudor. Que rosto já sem certezas…
Que Tribuno da Plebe Ai! A Pedra de Carrara
Correrá em seu favor? Também tem destas fraquezas!

Estátua jacente, perfeita, Roma, 21 de Fevereiro de 1984


Duma figura indefesa
Onde a morte é luz eleita
Duma vida mal acesa.

Que sentido? Que sinónimo?


Que sangue na pedra escorre?
Morre só e morre anónimo
Como qualquer homem morre!

Fez amor e comeu uvas,


Mordeu passas de Corinto,
Viveu o sol e as chuvas,
Teve as angústias qu’eu sinto.

Lavou a pele nas nascentes,


Quis o corpo em carne viva,
Sentiu na língua outros dentes,
Outro gosto de saliva.

123
Obsessão

Que caminhos os dedos percorriam,


Atalhos, lamacentos e sem nexo.
Chegavam junto a ti, logo partiam
Como um raio de luz sem reflexo…

Nos lábios que as palavras não abriam


Deixavam-nos o rosto perplexo.
As unhas, as carícias que faziam
Na vegetação rasa do teu sexo…

Os braços, como asas que subiam,


Num voar tão simples e complexo,
Voando contra o vento não venciam
O cansaço que vem no amplexo.

Nos espelhos as imagens não cabiam,


Neste dia côncavo e convexo,
Como pedras num lago só caíam
Trazendo um círculo mais sempre em anexo.

Só os olhos, porém, nos desmentiam


O que pudesse haver com algum nexo.
Pesadamente, então, adormeciam
Cansados de ser sonho e de ser sexo.

Lisboa, 19 de Março de 1984;


Londres, 29 de Julho de 1988

125
Uma Gota de Sangue

Coração não pares, Coração não batas,


Há sangue lá fora, Corre devagar,
Há rios que são mares Vê lá se me matas
Quando chega a hora. Em frente do mar.

Há céu que nos sobra Lisboa, 14 de Abril de 1984


Nos olhos fechados.
O sino não dobra
Nos bronzes calados…

A seiva não esquece


A cor da verdura.
Coração estremece
Não guardes ternura.

Coração és lago,
Gota afluente,
Pesado, tão vago,
Bem dentro da gente.

És mundo lacustre
No Espaço sumido.
Desenho que ilustre
História sem sentido.

Canto de sereia
Sem direito a praia.
Dois palmos de areia
Onde o Sol desmaia.

126
Queda do Império dos Romanos

Havia a Estrada Romana O César quer ou não quer,


Ponte d’arcos abatidos Às vezes sem mesmo olhar
Com tanta sombra profana — Será tudo o que disser
A passar nos dois sentidos… A dança do polegar… —.

Havia memórias ermas Era a calma… Outra batalha…


Sem nenhum calor humano. A paz nem tinha domínios,
Havia templos e termas Era o esmagar da escumalha
E um aqueduto romano. Por Soberbos e Tarquínios.

Havia sol e nevões E se vão cuidar do Fogo


Na paisagem sempre estática As submissas Vestais,
E também declinações O Império abre-se logo,
No cutelo da Gramática. Tragando uma nação mais.

Havia a Rocha Tarpeia: E o peso dos garrotes


O castigo exemplar Era o pulso dos tiranos;
— Mais um elo da cadeia O fogo dos sacerdotes
Do gosto de escravizar… —. Só para os deuses romanos…

Na arena gladiadores Fica o Templo incandescente


Entre leões e panteras Amolecendo as vontades,
E as árias dos cantores Mas já havia outra gente
Quando lançados às feras. Sonhando outras divindades.

127
Do alto do Palatino,
Num olhar tudo se alcança,
Ser-se dono do destino
Dava alguma segurança…

Quando o veneno é bebido


Torna-se o aço em veludo;
Havia um Povo escondido
Por detrás do mesmo escudo…

Quando andam escravos a monte


O Tirano tudo espreita
E é sempre noite na ponte
Que o medo torna mais estreita…

Guincho, 30 de Abril de 1984;


Londres, 22 de Abril de 1984;
Londres, 19 de Julho de 1988

128
Domingo de Ramos

Gota de sangue na ara Vem o Domingo de Ramos


Nem sequer será indício, No Cordeiro castigado.
Para nós é coisa cara As palavras que gritamos
O gratuito sacrifício. Passam logo a ser Passado.

Pobre Cordeiro Pascal Bath e Londres, 23 de Abril de 1984


Que destino tão falhado,
P’ra cumprir o ritual
Lá o qu’remos tresmalhado.

A justiça ergueu a vara


Num capricho tutelar.
O bafo morno na ara
Deixa a vida a transpirar.

Se houvesse mais rebeldia,


Talvez até o Cordeiro
Vivesse mais algum dia
E morria o carniceiro…

Goteja o sangue na lã
Que ninguém já agasalha,
Fica mais quente a manhã
Se um cordeiro se tresmalha.

Vinho dos sacrificados,


Pão da boca d’inocentes,
Mais os gestos tresloucados
Que nos são afluentes.

129
Nicarágua

Na Nicarágua Que não tem peso. Há leis servis


Corre o rio Coco, Conquistadores: E índios loucos!
Tem morte e água, Os que chegaram. Na Nicarágua
De tudo um pouco… Libertadores: O Rio Escondido
Ferve cachões. Os que ficaram? Passa na água
Ensanguentado A Coca, o carro, Sem ser ouvido…
Pelos grilhões Casos vertentes…
Do El-Dorado… Córtez, Pizarro Oxford e Londres,
Povo minúsculo Não são dif’rentes! 24 de Abril de 1984;
Em lamaçal São a serpente Londres, 30 de Julho
de 1988
Vive do músculo Que desenrola
E lei braçal. A aguardente
Tudo carregam, Ou Coca-Cola…
Sonhos até… São uns senhores
Os que aqui chegam Dum tempo todo:
Só trazem Fé São opressores
E de mãos postas; De qualquer modo!
Deus: Quantos são? Os ameríndios:
Tem duas costas Americanos?
Esta nação. Ou estes índios
Dois oceanos São marcianos?
Como espartilho. Quem concebeu
Contam-se os anos Este mistério:
Nos grãos de milho. Tombar do céu
Tempo lendário Neste Hemisfério?
Sem emoções, Ó exilados
Mais um rosário Dum mundo antigo:
Feito a feijões… Ombros dobrados
Dorso dobrado, Como castigo!
Tão indefeso, Neste país
Num chão sagrado De rios e cocos

130
João Sem Terra

Se à terra fosse ligado Lancei a lança, discreto,


Quatro palmos me chegavam Como se faz nas ciladas;
— Sempre fui recém-chegado: Mordi silêncio secreto
Despedidas me negavam… — Dentro das bocas fechadas.

Eu fiz parte dum rebanho Era o Sol meu alimento


(Homens nómadas são gado) E a Lua o meu refresco.
E perdi-me num desenho Em casa sem pavimento
Que o Tempo tinha rasgado. Sempre pintada de fresco.

Que destino tão profético Praia de São Rafael,


Neste meu movimentar: 22 de Junho de 1984
Ter o Norte Magnético
Na luz da Estrela Polar.

Queria apenas ter fronteira


(Doce protecção dum muro…)
Não discutia a bandeira:
Sedentário e sem futuro!

E no ar que respirava,
Eu renegado e converso
Filho Pródigo aspirava:
Só ter direito ao regresso!

Sete foles, sete vidas,


Entre sete debandadas.
Não há esp’rança nas partidas
Se há frustrações nas chegadas…

131
Branco e Negro

Se acaso o caso ocorresse,


Como seria o ocaso?
Algum sol que arrefecesse
Como se o mar fosse um vaso…

Caso a caso, puro acaso


— D’algum caso me esquecesse! —
Passe a vida em cabo raso
Onde o mar nunca se erguesse.

O ocaso não é caso


Para o dia não voltar
(Qualquer noite tem um prazo
Que não pode prolongar.)

Se acaso em tempo me atraso


Nada deixa de ocorrer:
Cada Homem tem um caso
No seu modo de morrer…

Branco e negro nunca caso


— Seria caso o cinzento —
E a cinza tem um prazo,
Anda ao acaso no vento!

Lisboa, 27 de Junho de 1984

132
Sândalo

O teu lenço de bretanha


Só lembra espuma do mar,
Nos teus lábios cor de lenha
Onde há fogo a crepitar.

A tua estola de arminho


Lembra Inverno e agasalho,
Saem ladrões ao caminho
Se te penso num atalho…

Se te penso, no que penso,


Penso até que sou feliz…
Sonho a bainha do lenço
Tantas coisas que me diz…

Incenso, mirra e sândalo


(Quem os pudesse inspirar…)
Dormir contigo, que escândalo
Pois que temos de acordar!

Lisboa, 22 de Agosto de 1984

133
Noite e Nevoeiro

Sempre noite e nevoeiro, Sempre noite e nevoeiro!


Não fosse o espaço uma elipse, Os homens nunca se esqueçam:
Uma espécie de cinzeiro, Não passa dum carcereiro
Tabaco de Apocalipse… Qualquer deus que vos ofereçam!

Não há freios nas tragédias, Londres, 8 de Setembro de 1984


Loucos cavalos na estrada
Aos quais quebraram as rédeas
E que vão à desfilada…

Mas a noite é tão fugaz,


Num momento quase terno,
Dentro das Câmaras de Gás
Pintou Bosch novo Inferno…

Inclemente, transitório,
Vem depois o esquecimento,
Promessas de Purgatório
São as celas de cimento…

Coração dentro do peito


(Como em transparente frasco)
Cada qual anda sujeito
Aos caprichos dum carrasco.

Mas ao céu quem tem direito


Não será destas paragens?
Cavou o rio o seu leito
No aconchego das margens.

134
Santo Sepulcro

Quem procurais, não está: ressuscitou!


O Morto, Marta, é morto. É só chorar…
Ao de leve na treva suspirou
O vento que não pára de passar.

Porém, quem veio aqui não encontrou


O que talvez não fora procurar,
Saiu tão confundido como entrou:
O Corpo já mudara de lugar.

Que mão imprevidente não pesou


O peso dessa pedra tumular?
Ainda o selo em lacre não secou,
Já começa o segredo a transpirar…

Piedosa Mulher, o que sobrou


Do perfume que quiseste derramar?
Pilatos, inda mal as mãos lavou
E a água já se está a evaporar…

Como sempre do crime ali ficou


A prova que se quisera apagar…
O Morto, Marta, é morto e nem pensou
No corpo que ficava em Seu lugar…

Lisboa, 15 de Setembro de 1984

135
Tântalo

Chegaste como a onda chega à praia


Ou como a estrela quando já escurece,
Tal fruta que se espera que não caia
Quando o vento em redor tudo estremece.

Tal fruto que no ramo se contraia


Quando o vento de Inverno aparece.
Partiste como a onda foge à praia
Ou estrela da manhã quando amanhece.

Apenas pontual e nada mais


E somente te guardo na memória.
Eu peço que tu venhas e tu vais!
Ó meu desejo d’ave migratória!

Lisboa, 8 de Outubro de 1984

136
Outrora o Natal

Purpurina e azevinho O quente dos cobertores


Vindos doutra consoada A incomodar a pele…
Sobre a toalha de linho Os olhos viam pastores
O ano inteiro guardada… Com suas taças de mel…

Antigamente algum galo Como a manhã demorava


Cantava todo o relento. A vencer a gelosia!
E a Noite era intervalo O galo, porém, cantava
Entre o Eterno e o Momento… E o Sol trazia o dia…

Como canção que se cala Fios de prata, verde pinho,


Na voz que fica vazia: Degelo no algodão…
Era um mundo noutra escala Vinham os Reis a caminho
Onde a gente não cabia… Com camelos pela mão…

Tocava o sino da porta, Judas morria enforcado,


Era o vento que passava Mas a gente não sabia…
(Como faca que não corta, Herodes, ignorado,
O silêncio não cortava…) E Jesus nunca crescia!

Toda a conversa abafada Lisboa, 17 de Novembro de 1984


Em papel de fantasia,
Como a neve desejada
Que afinal não aparecia…

O burro do Ritual
Junto à vaca dormitava,
Um anjo descomunal
Uma trombeta empunhava.

137
Fermentação

Mal a noite se adivinha


Por detrás daquela sebe,
Logo o medo guarda a vinha
Nem a noite se apercebe…

Talhada de melancia
Ou gomo de tangerina:
Sobrava a lua do dia
Como fosse lamparina…

Bago a bago, uva a uva,


É caroço o sol a pino,
A neblina é a luva
Que esconde a mão do destino.

Como a noite fica minha,


Gravada nos meus sentidos:
Eu sou o guarda da vinha
Quando tiras os vestidos.

O bago da lua cheia


A fermentar no relento…
Uva negra em chão de areia
De relance dá cinzento.

Lisboa, 1 de Dezembro de 1984

138
Nebulosa em Espiral
1 — O Túmulo e a Rosa
i
A Neve e o Mar

Soam passos no asfalto:


Serão de quem se esperava?
Caiu a neve do alto
No chão que tudo aceitava.

Longe parecem tambores,


Mas ao perto é só passar,
Silêncio feito em rumores
— O Mundo tem corredores
Que levam rios p’ra o mar. —

Caiu a neve do alto,


Logo o mar a afogava…
Mas aqui, sobre o asfalto,
Como tomado de assalto:
Gelava tudo, gelava!

141
ii
O Túmulo e a Rosa

Quem pôs rosas tumulares Afagos de glaciares


Onde se queria o noivado? Num mundo recém-chegado.
São aras ou são altares, Quem põe rosas tumulares
Se há sangue no empedrado? Onde se quer o noivado?

Quem pôs louros da vitória


Nas cabeças dos vencidos?
Vistos de longe na História
Todos somos confundidos…

Vem aqui quem não chamamos,


Nunca vem quem tu quiseres.
Faz um Domingo de Ramos
Com jumento e malmequeres.

Abre o peito às flores bravias,


Entre papoilas e trevo.
Gasta-se o vento nos dias,
Crescem dunas no que escrevo.

Sete palmos duma cova:


Onde cabe a vida inteira…
Lua Cheia? Lua Nova?
Será como a noite a queira!

As estrelas incandescentes
Nunca gelam sobre o Pólo.
Quem degolou inocentes
Embalou filhos ao colo!

142
iii
O Sal e o Açúcar

É o sal que lembra a onda. A Via Láctea é redonda?


O açúcar lembra o rio. Elipse que não se abriu?
Onde a palavra se esconda E se o sal nos lembra a onda
É onde a frase se abriu. O açúcar lembra o rio…

O silêncio fecha a boca, Paris, 13 de Fevereiro de 1985


O sorriso a entreabre.
O medo mete na toca
Qualquer fera em liberdade.

Entre o que está e não está


Fica o desejo de estar.
Se a morte é lado de lá
Por que havemos de passar?

Água doce, açucarada,


Por ainda não ser sal,
Afinal por quase nada
Muda a água de sinal.

Logo a sombra lembra o sol;


O reverso da medalha…
Os pulmões, enquanto fole,
Puxam o fogo à fornalha…

Tudo acaba… O que começa


Não será só terminar?
Este puzzle, peça a peça,
Nunca se vai completar…

143
2 — Os Mundos Exaustos
iv
As Estrelas Assassinas

A juventude de Fausto Ai da gémea vencedora


Na milagrosa proveta Que p’ra nós é tão igual,
E talvez um mundo exausto, Pelo tempo que demora
Devorado num cometa… Da outra o fim do sinal!

Por um capricho de fêmeas, A moral que nos importa


Com ast’róides no regaço… Diz que o crime não compensa:
As estrelas que sejam gémeas Uma viva, a outra morta
Não cabem no mesmo Espaço! Mas ambas com luz suspensa.

Uma delas findará Paris, 14 de Fevereiro de 1985


— Qual delas? Tanto nos faz! —
E depois se apagará
Como algum bico de gás.

No seu instinto perverso


— Feminino e bem primário —
Quer estar só no Universo
Com seu vulto incendiário.

Passam anos aos milhões,


Mas continua a brilhar
Aos nossos olhos de anões,
Mesmo depois de acabar…

144
v
Prece

Seja Estrela da Manhã Sejam duplas ou extintas,


Ou alguma do Carneiro Qualquer delas eu desejo,
— Seja mesmo estrela-anã Pois só elas são distintas
P’ra caber no meu tinteiro! — No Passado que eu prevejo!

Mas dum deus de mãos abertas, Paris, 13 de Fevereiro de 1985;


Que mal o tempo segura, Londres, 27 de Julho de1988
Que me dê palavras certas
Como fruta bem madura,

P’ra que me nasçam poemas


Concisos e pontuais,
Frases grandes ou pequenas
De contornos siderais!

As estrelas a lembrar pregos,


Imprevidentes, na estrada,
Galáxias e Pontos Negros
Nesta aceitação do Nada!

Lagos de luz, rios de fogo,


No falar da nossa escala,
Num Futuro feito logo
Tendo o Presente por fala!

Constelações tão sardentas


Como cara feminina,
Boiando nas placentas
Dos partos de purpurina!

145
vi
O Pão e a Pedra

Como miolo de pão Feito de fogo o farelo


Duma farinha serôdia, Coze bem nosso segredo:
Todo o Espaço em explosão Deuses feitos a martelo
Fica bem dentro da côdea… Na pedra do nosso medo!

Pão-nosso de cada dia Paris, 14 de Fevereiro de 1985


Sempre fresco e bolorento,
Que por nossa cobardia
Não nos serve de alimento.

Pela franja das toalhas


Ficam pedaços sem nexo,
Estrelas são as migalhas
Entre dois actos de sexo.

Da cama à mesa: dois metros,


Eis o espaço que ocupamos,
Espaço feito de féretros
E de berços que embalamos…

Entre o dilúvio e a seca,


Entre a luz e escuridão,
Vamos a Roma ou a Meca
Passear a solidão…

Só o silêncio responde
A cada prece of’recida,
Cada homem em si esconde
Uma chegada e partida.

146
3 — Juízo Final
vii

Fecha o mundo p’ra balanço, Não há perdões nem benesses


Neste dia ameaçado: Neste castigo final,
Caso a caso, lanço a lanço, Conta-corrente de preces
Foi o Homem numerado. Em balança decimal…

Cro-Magnon, de Neandertal Onde estão os assassinos?


Ou dos buracos mais vários: Mesmo ao pé dos inocentes,
Por motivo natural E com risos sibilinos
Ninguém ficou nos ossários… Cortam a língua c’os dentes!

Quantos foram enforcados? A lepra aqui já não conta


Quantos morreram de enfarte? — Se na vida contaria! —
— Como reabilitados A letra de Deus aponta
Nem loucos formam à parte! — Mais nomes sem gafaria.

Os que morrem à nascença Os que morrem nas jangadas,


Também têm lugar certo? Sem terem a terra à vista…
Foi a Peste uma doença Os das paisagens geladas
Olhando o homem de perto… Também constam desta lista.

Nesse canto mais pequeno, Não verás homens em fúria:


Os homens transfigurados Tudo é resignação
Que por frasco de veneno Num rebanho de penúria
Se viram alimentados! Que encontrou a salvação!

Caso a caso, pelos dedos, Nem sequer do Purgatório


Faz Deus o Seu inventário: Se puderam socorrer:
Pensavam que eram rochedos… Foi somente obrigatório
Nem de barro refractário! Fechar os olhos… Morrer…

147
Poço fundo? Poço amargo?
Ai quem pudesse dizer!
Todo o Espaço era tão largo
E não puderam caber!

Mas chegaram aos seus portos


Os que já estão no Inferno?
Como pode contar mortos
Um Deus que se diz eterno!

Paris, 15 de Fevereiro de 1985

148
Fechado para Obras (Poéticas)

Renovado,
Independente:
Estou fechado
Actualmente.

Para obras demoradas,


Não estou atrás do balcão,
Faço palavras cruzadas
De começo de estação…

Não saldei a existência


Pois faz parte das mobílias
(Do tempo da Resistência
E de «Debaixo das Tílias»…)

Seja lá pelo que for:


A loja remodelada.
Ver o Sol é já supor
A Poesia renovada.

Fui plantado
Novamente.
Estou fechado
Na semente…

Londres, 19 de Fevereiro de 1985

151
A Noite dos Degolados

O nosso sonho é o gume Estamos sós? Acompanhados?


Dum punhal embainhado. Se o soubermos, que sabemos?
O céu é feito de lume, Somos anjos degolados
Nosso olhar fica queimado. Nas orações que dizemos.

Temos fome de distância, Lisboa, 24 de Abril de 1985


Mas quem nos dá de comer?
Quem nos dará importância
Neste Espaço sempre a arder?

Quem decora o nosso nome?


Quem nos conhece o sorriso?
Quem nos vem matar a fome
E as febres de Paraíso?

Quem nos põe o mel na sopa


E do suor faz orvalho?
Quem nos aconchega a roupa
Nesta enxerga de enxovalho?

Seja diabo ou um santo,


Seja um deus ou seja um mago:
Quem nos pode olvidar tanto
Na Estrada de Santiago?

Quem nos grita pr’onde vamos


Ou para onde não é de ir?
Quem será que nós chamamos
E que não nos está a ouvir?

152
Ponto Negro

Mundo: bola de bilhar Bola a bola, taco a taco,


— Cuja cor não vem ao caso —, É tudo conta-corrente:
Outras duas a rodar, Bola negra sai dum saco
Como luas em céu raso. Que traz a sorte da gente…

Tabelas adjacentes, Rápido Porto-Lisboa, 1-2 de Junho de 1985


Ângulos rectos na fachada
Que fixam estátuas jacentes
Olhando a bola encarnada.

Pano verde, verde pano,


Como uma campina aberta,
Onde às vezes, por engano,
Até na bola se acerta…

São três bolas, mas qual delas


Detém a sorte do jogo?
Como na vida, as tabelas
Modificam tudo logo!

Cai a luz, bem vertical,


Num feixe triangular
Que no pano põe sinal
Duma nódoa circular.

Bola branca, ponteada


Por ponto negro visível,
Como à cal viva abraçada
Uma formiga impassível…

153
Deus no Confessionário

Só eu sei ao que venho e ao que gasto! Trago estrelas, também já ferrugentas,


Da minha corte os reis foram banidos. Exaustas, de gelo arrefecidas.
Se eu trago nebulosas no meu rasto Construí o Universo e as ferramentas
Trago gelos das neves nos sentidos. Só de mim ficaram conhecidas.

Não é fácil o que venho aqui propor: Poderoso, porém, ninguém me chame,
A cada qual darei o Paraíso… Tão sozinho me quer a majestade!
A ferro e fogo darei o meu amor, Eterno? Para mim isso é vexame,
O Mundo arrasarei, se for preciso… Invejo a cada homem sua idade!

Os dilúvios serão minha medida Praia de São Rafael, 11 de Junho de 1985


Nas represas que prometo trazer cheias,
Mas que serão o sonho da bebida
Daqueles que se perdem nas areias.

Transbordarei a água gota a gota,


Boca a boca — que quero sempre muda —
Quando a vela do veleiro estiver rota
Mandarei o tufão em sua ajuda…

Não é fácil de aceitar o que proponho,


No entanto, é-vos vedada uma recusa.
Se a moeda com que pago for o sonho,
De tirano, afinal, ninguém me acusa…

A alta-tensão que trago nos meus nervos


Não é perigo de morte nem tem p’rigos,
César será servo dos meus servos
E carrascos jamais darão castigos.

154
Livro das Horas

Deixem-me morrer no meio dos livros


— Folha amarelecida pelo Tempo —
Venha, depois, alguém fechar-me os vidros,
Cuidados motivados pelo vento…

Venham também depois fechar-me os olhos,


Como às páginas dum livro interrompido
Por sono a meio da tarde, inesperado,
Que deixou a leitura sem sentido…

Que bom será morrer entre as erratas,


Sem chegar a saber bem a verdade…
Se o Espaço tem medidas bem exactas
Porque nos tiram tanto a liberdade?

Recordação dum livro duma escola,


Muito atrás, em sacola abandonada…
Só um som de Vivaldi e de viola
A escorrer pela tarde demorada.

Os poemas de amor, folhas dispersas


Nas ramagens que há no pensamento,
Batendo nas janelas bem abertas,
Abertas pelas mãos e pelo vento.

Livro aberto num banco de jardim,


Sob a sombra de algum cedro tutelar,
Deixado a meio, razão de ser o fim
Da leitura que não vai recomeçar…

155
Folha a folha, dedilhadas na memória,
Livro das horas aberto ao luar.
Vendo melhor: leitura transitória
Com palavras a tomarem-me o lugar…

Lisboa, 30 de Junho de 1985

156
Conta Errada

Eu de noite ouvi no vento


O barulho das pedradas,
O Eterno e o Momento
Só diferem nas palavras.

Por teu corpo sou sedento,


Vinagre mais limonadas.
Mas as palavras por dentro
Têm gavetas fechadas…

Cada nome tem assento


De pessoas baptizadas…
O Eterno é um momento
Como as palavras cruzadas.

O sol serve de alimento


À planta iluminada:
A seiva corre por dentro
Da loucura esverdeada…

O Eterno e o Momento
Não nos dizem quase nada:
Um milhão ou três por cento
Tanto faz, em conta errada.

Lisboa, 7 de Julho de 1985

157
Gaivota

Onda por acaso onde se enfeixe


Não chega, no entanto, a mergulhar,
Ave cuja carne sabe a peixe,
Numa asa leva a terra, na outra o mar.

Véu de noiva no rasto das traineiras


Que regressam de manhã ao seu abrigo.
Lenço branco, melhor, uma bandeira
Num aceno de amizade ao inimigo.

Imagem na retina que desfoca


Litoral, equilibrado, a planar;
No seu grito há o som de qualquer doca
Que saiba pôr travão a qualquer mar.

Imagem que se perde mal se vê


E se refaz depois correctamente…
Seus ovos são os seixos da maré,
Seus ninhos são os limos da corrente.

Atenta à tempestade, logo avança


À terra que precisa de avisar.
Suas asas não passam de balança
Onde a praia e a maré se vão pesar.

Costa da Caparica, 8 de Setembro de 1985

158
Colóquio dos Simples

Indagar a razão por que se gosta


É querer saber que nunca saberá!
Vendo bem, o que interessa uma resposta
Ao ouvido que nunca a escutará?

Amar é aceitar o ultimato


Que não vergue a vontade dos poetas.
Pano de ferro aberto no teatro
E poemas fechados nas gavetas!

Do gesto ao acto é passo de criança,


Remorso foi prazer já conseguido.
Ter nascido, afinal, já foi herança
Embora no orgasmo ter morrido!

Ai, amor quando os dados estão lançados


São os cubos a forma do destino.
Teus braços são os ramos desvairados
No vento que em mim sopra e não domino.

Que cantos d’aves há nos arvoredos!


Que paisagem nos nasce nos sentidos!
Raízes? São apenas os teus dedos
Quando nós somos anjos perseguidos!

Comboio Lisboa-Porto, 11 de Outubro de 1985;


Londres, 9 de Agosto de 1988

159
Multidão

Mate-se o cão à pancada! O açaimo e a corrente


Mesmo sem haver motivo. Não lhe dão a segurança:
A multidão saciada Basta haver no meio da gente
Só se o cão não ficar vivo. Qualquer sede de matança!

«Melhor amigo do homem»? Lisboa, 12 de Novembro de 1985


A frase morre na boca,
As razões que não se tomem
São motivo que se evoca…

Haja cão, não haja cão,


Há convite ao linchamento,
Às vezes pela razão
Dos uivos que traz o vento!

Hão-de ouvi-lo a ganir,


Mesmo sem tê-lo presente,
O essencial é banir
Sugestão posta na frente.

Qualquer cão será danado


Se a multidão ordenar.
Ah! Bicho! Mesmo calado
Dirão que estás a ladrar!

Nada vale ser medroso


E submisso entre as ervas:
Se alguém gritar: cão raivoso!
Todos lhe atiram as pedras!

160
Abstenção

À sede cedo, acedo, O nosso sangue coalha


Sem ser nada transcendente. Como estrelas nunca olhadas.
Eu a metro meço o medo Pilatos pede a toalha,
Como tecido corrente. Mas as mãos ficam molhadas…

Por entre tantas histórias Lisboa, 30 de Dezembro de 1985


Que decoro sem decoro,
Ouço vozes ilusórias
Que me vão cantando em coro.

A vida é feita de actos,


Como a peça mais intensa.
Qu’importam mãos de Pilatos
Se só adiam sentença?

Cada qual é réu ou rio


Cada ser será sereno,
Conforme as coisas que viu
Dentro do mundo pequeno.

Vão-se as águas em cachão,


Em cascata progressiva,
Cada qual canta a canção
Junto à corrente agressiva.

A Lua de diamante
Rasgou a noite de vidro,
O sonho ficou distante,
Transparente, empedernido.

161
28 de Maio de 1926 – Verão Quente de 1975

Por vezes na sonolência Das duas vezes, porém,


A noite traz-me ruídos Me segredava essa gente
Do tempo de resistência Que era para meu bem
Das paredes com ouvidos… Que punham grades na frente!

Seja frade inquisidor Lisboa, 6 de Janeiro de 1986


Ou tirano jacobino,
Não passa dum opressor
Quem nos comanda o destino!

Dizem que o tempo passou


E que tudo está esquecido…
Se a página já se voltou
Para quê o que foi lido?!

Se acaso nalgum momento


A falar nisso alguém torna:
É forçar o esquecimento
Como quem malha a bigorna!

Cópia exacta, dia a dia,


Conta-gotas da verdade…
É arma da tirania
O esquecer em liberdade!

Já duas vezes na vida


Enfrentei a opressão,
Como uma côdea roída
Que não tinha gosto a pão…

162
Miradouro

O rio é prata? Dourado?


Água que passa somente!
Quem o quis imaginado
Cortou-lhe a força à corrente.

A Lua é chuva de prata?


Da rainha foi enfeite?
A Lua é folha de lata,
A Lua é prato com leite…

Cada qual é como é,


Aí está a liberdade.
Cada qual vê o que vê,
Mas julga ver a verdade!

Lisboa, 9 de Janeiro de 1986

163
Sessões Contínuas

Ir ao cinema?
Que má ideia!
Haja uma cama
Que sublime
Este desejo
De Lua Cheia.
Rasga os bilhetes,
Conto-te o filme!

No intervalo
De cada entrega
Há rebuçados
— Subentendidos —
É uma guerra
Uma refrega:
Esta batalha
Só de sentidos!

Este desejo
De Lua Cheia
Haja manhã
Que o sublime.
Somos ecrã
E plateia.
Rasgo os bilhetes,
Conto-te o filme!

Lisboa, 21 de Janeiro de 1986

164
Cal Viva

Águas verdes, estagnadas


— Como se fossem verdade! —
Em lagoas apertadas
Em ancas da puberdade…

Talvez um fio qu’escorresse


Nestas águas em disfarce
Fosse lágrima e descesse
Pela cascata da face…

Mas é rosto tão sereno,


Pedra de cal mal esculpida
Onde a morte é um aceno
Como só no fim da vida…

Ó espelho de águas paradas


Que venceram a corrente,
Mas ficaram escravizadas
Ao renegar a nascente!

Acontece. E acontece
Somente o que tem de ser.
Tanta água que apodrece
E que devia correr!

Paris, 19 de Fevereiro de 1986

165
«O Tempo Está Próximo»

Do monte, no cimo, No entanto, agora, No momento exacto:


Contempla o deserto: Há povo a gritar, Num lenço de linho
«O Tempo está próximo»… Não chegou a hora Ficou um retrato.
Todo o fim está perto! De crucificar…
O silêncio invade Montava um jumento Morreu um cristão
De vozes o vento. Com jeito de corça: Descobrindo o peito…
Entrou na cidade Moinhos de vento Reconstituição
Montando um jumento… A darem-Lhe força. Dum crime perfeito!
Os reis, diz, seus amos Da palavra ao grito
— Rebeldes vassalos! — Só vai um instante; Praia de São Rafael,
Mas ’stendem-Lhe ramos Como o Infinito Quinta-feira Santa,
Só resta pisá-los… Não fica distante! 27 de Março de 1986

Forçou as muralhas, Nos gritos há fúrias


Já nada O detém, Que não são domadas…
Está preso nas malhas Ao longe as Centúrias
De Jerusalém… Aguardam formadas…
A voz abafou-a Entre companheiros
No pó dos caminhos… Que tremem de medo!
Já Lhe sonham a coroa Por trinta dinheiros
Cercada de espinhos. Desfaz-se um segredo…
É como alcatruz A candeia acesa…
Moendo água alheia, Já põem os pratos
Preparam-Lhe a cruz Por cima da mesa…
Acabada a ceia. Mal sonha Pilatos!
Nem sequer Caifás
Qualquer multidão Será quem comanda…
É degrau d’ossário Virá Barrabás
Que grita um perdão Até à varanda…
Depois dum calvário… Depois, no caminho,

166
Chegada

Se viesses nos medronhos Se tu viesses nas mondas


Que queimam na aguardente De crescentes e cortantes,
Talvez o fogo dos sonhos Levaria o mar nas ondas
Fosse em nós um caso assente… O Mundo que havia dantes.

Se viesses nas maçãs, Se tu viesses gritando


Ao de leve, perfumadas, O direito à dinamite,
As raízes das manhãs Só dirias, ao chegando:
Floriam noit’estreladas. Só eu sou o teu limite!

Se viesses na voz cava Se viesses do Futuro


(Murmúrios de cantochão), Morria em mim como herança
Espalhando ouriços de lava Todo esse medo do escuro
Nas vertentes dum vulcão… Que trago desde criança!

Se tu viesses no vento, Lisboa, 24 de Abril de 1986


Ou nas sombras do luar
(Quando a Lua num momento
Imita o Sol sem queimar…)

Se viesses volteando
Movimentos dum sem-fim,
Em folha solta, voando,
Outonos dentro de mim…

Se viesses nas romãs,


Rugosas, ensanguentadas,
Talvez as minhas manhãs
Dessem noites sossegadas…

167
Fado Amália

Ao nascer não tive assento: Sou a ovelha mais amada


Era gente a não notar… Do rebanho do pastor,
Mas se canto, até o vento Toda de lua banhada
Fica calado a escutar… Quando é noite em meu redor.

Não tinha anéis, mas a sorte Eu sou a água corrente


Deu-me o vento, deu-me o mar Sou a gota feita mar,
E deu-me bobos da corte Mas só dois palmos de gente
Que só me fazem chorar. S’ao espelho me vou olhar!

O frio é forro de lã Chaves, 27 de Maio de 1986


A quem o Destino aparta
Tinha a fome como irmã,
Hoje tenho mesa farta…

Já tive reis a meu lado


E minha sorte não louvo:
O que acontece é meu fado,
Sou apenas voz dum Povo.

Vejam lá a sina minha


— Que gracejos do Eterno —
Eu sou sempre a andorinha,
Seja Verão ou Inverno.

Sou a folha que se nota


Na manhã d’Outono, aberta,
Eu sou aquela gaivota
Prenúncio da descoberta…

168
18 de Julho de 1936, Dia de São Camilo

Só perguntavam: «Quem vive?»… Nesse regresso dos Mouros


Havia gente a matar! Do outro lado do mar,
Trazia a voz o calibre Vinha a vingança dos touros
De quem ia disparar! Que nascem p’ra se matar!

Vinha do fundo do Tempo Navalha de ponta em mola


Uma voz que se engatilha: Chicote de sete pontas:
Fazendo fuzil do vento Santo Inácio de Loyola
Em balas de manzanilha. Mandava ajustar as contas!

Era anis em taças frescas Era um novo Torquemada


Nesse dia feito lança. Que andasse na rua à solta
Eram as novas Goyescas E que por tudo e por nada
Seguidilhas de matança! Que matasse tudo em volta!

Não falavam os actores Coroa d’espinhos e picos,


Desta peça ensanguentada. Bigornas que a morte malha,
Não rufavam os tambores Eram chapéus de três bicos
Era tudo p’la calada! Dos pesadelos de Falla!

Sob as patas dos garranos Cinto voltando a fivela


Indefesos e quietos: Sobre uma cara indefesa…
Pólvora na cor dos ciganos Pobre terra de Castela
Morrendo d’olhos abertos! Que tens cor de lenha acesa!

Como se um recém-chegado Manzanilha e aguardente,


Trouxesse a morte pela mão: Mais um jarro de sangria…
Era um ódio adiado E a morte pela frente
Do tempo da Inquisição. Todos tinham nesse dia!

Afinal o que era aquilo: Ibiza, 15 de Julho de 1986


Cada qual adversário?
Que dia de São Camilo
Que trazia o calendário!

169
Passe a Palavra

Se alguém fala aqui por nós


Fica tanto por dizer.
Sempre alguém paga ao algoz
Que nos irá abater.

A vida é casca de noz,


É fio de sangue a correr.
Linha fugindo em retrós
Com que ninguém vai coser.

Range o moinho nas mós


Cantigas de Maldizer,
Vai falando assim por nós
Quem nos dará de comer…

Trazemos rios junto à foz


Nesta pele a embranquecer,
Salga o mar a nossa voz
D’água doce por beber…

Sempre alguém paga ao algoz,


Às vezes quase sem querer…
Mas que fale alguém por nós
Depois de a gente morrer!

Lisboa, 3 de Agosto de 1986

170
Os Robinsons do Espaço

O solo pátrio. Nos capitéis. Eu não me iludo


Folha d’acanto. Nas avenidas Pois ’stou em tudo
Passos no pátio Ramas despidas Com que sonhei…
Há flores no átrio — Sonham bordéis Cinco sentidos,
A cada canto… Gaiolas d’ouro Pressentimentos,
«Filhos do Solo», E pedras caras. Sonhos cumpridos
«Filhos do Reino» Zumbe um besouro? Mas resumidos
O desconsolo Ou será choro Nos pensamentos.
Vem desde o colo Das aves raras? Como o ditado
Vem desde o seio. Com seus turbantes Do meu colégio,
Leite materno, Passam moleques. Tão mal ’scutado,
Mais o cordão, Por uns instantes Executado
Binário eterno Bóiam nos tanques Por privilégio…
Fogo d’inferno Sombras de leques. As folhas secas,
Na transmissão. Braços marmóreos, Tão outonais,
(Escada de corda Colos ’sculpidos. Caem discretas.
A dar saída Há purgatórios Contas secretas
A quem acorda Sobre os zimbórios Dos digitais.
No ventre e morda Dos meus sentidos. Mal cai o pano
O pó da vida!) Erro de olfacto Muda a estação.
Salve Mãe-Pátria! Sempre que minto. Durante o ano
Salve Rainha! Nas flores, de facto, Toca o piano
A Via-Láctea, Eu sinto o tacto Do coração…
Tão acrobática, Das flores que pinto. Vão-se as areias,
Deu o que tinha? Vejo o que vejo Aluviões…
Folhas d’acanto, E vejo mais: E nas colmeias
Colunas dóricas. Pois no solfejo Cantam sereias.
Mármore branco Já antevejo Ou são histriões?
’stridente canto Cordas vocais. Lua sem fases
D’aves eufóricas. Se fico mudo, — Como era dantes —
Folhas ’sculpidas Eu já falei. E nos lilases

171
Fuga de gases
Asfixiantes.
Da nuvem oca
Nasce um Danúbio
E, gota a gota,
É bancarrota
Qualquer dilúvio.
Grandezas parcas,
Moleculares…
As novas Arcas
Não deixam marcas:
Vão pelos ares…
A descendência
Assegurada
Sem penitência
Só transparência
Toda estrelada!
Razão de fé?
Sobrevivência?
Quem foi Noé
Hoje não é,
Diz a Ciência!
Fosse o que fosse
Que aconteceu,
Alguém queimou-se
Na água doce
Vinda do Céu!
Assim queimados,
Vamos na leva,
Tão segregados
Os degredados
Filhos de Eva!

Lisboa, 8 de Setembro de 1986

172
Véspera Veneziana
1
Constante

O campo de feno,
Uva prateada.
O pó do veneno
Já não custa nada.
Flores não removem
O que já passou…
A Lua é o pólen
Que o vento levou.
Ficou o perfume
Da tua presença,
Adaga sem gume
Desta noite imensa.
Tolda-se o olhar,
Tolda-se o anis,
As estrelas no ar
São pontos de giz…
Muda de lugar
Tudo o que convém.
No fundo do mar
Há terra também…

Estrada Bergamo-Brescia,
21 de Setembro de 1986

175
2
Aquário

Há sempre sinal
De quem dá um passo.
Bola de cristal:
O Mundo no Espaço…
Quem faz a leitura
Do que nos virá?
Ai, quem nos segura
Também largará…
Tão imaginário
O Mundo suspenso:
Tão grande aquário
Tem o mar imenso…
Violino a solo
O som que desaba;
Tudo em cada Pólo
Começa e acaba.
Quem foi que pudera
Dizer, se é mentira:
Esta atmosfera
Que a gente respira!

Pádua, 22 de Setembro de 1986

176
3
Fresco

A Pomba anuncia
A Nova Verdade
À pobre Maria
Tão na puberdade!
São dramas, são actos,
É o vinho, o mosto.
É o sal dos factos,
Vinagre no gosto…
São choros e risos,
Transfigurações.
Também Paraísos
Para os Bons Ladrões…
Vai caindo areia
No vidro do Tempo.
A Última Ceia
Já é testamento.
Os Trinta Dinheiros
Já estão bem contados
E os companheiros
Estão apavorados…
Há pão amassado
Para os que não comem.
Tudo condensado
Na vida dum Homem!
A História Sagrada
(Caminho ignoto):
Banda desenhada
Por mãos de Giotto.

Pádua, 22 de Setembro de 1986

177
4
Lucros e Perdas

Como que esmagado, Sonho tão perfeito


Porém tão ausente… Mas tão sanguinário…
Eis-me regressado Como que lançado
A Veneza, em frente! Em conta-corrente,
Só sei de concreto: Vejo o saldo errado
Não quero ficar! Mas fico contente!
Embora, decerto,
Só pense em voltar… Veneza, 23 de Setembro de 1986
Se aqui permaneço
É em pesadelo,
Mas me reconheço
Nos sonhos de gelo.
Em tudo o que quis
Aqui encontrar
Eu fiz e refiz
O que hei-de sonhar!
A água te veste,
Não te lava os ossos…
O medo da peste
Pôs a cal nos poços.
A pedra lavada,
Tão enegrecida,
Tão seca e molhada
É morte na vida!
Tempo embalsamado
Por que rituais?
Sangue coalhado
Correndo em canais!
Sangue liquefeito
De São Januário?

178
5
Homo Faber

Ponta do fio da meada… Quando a nossa pele é estrume,


A gota que faz o mar… A quem damos alimento?
Tudo começa por nada Nem sempre o fogo foi lume
Numa lente de aumentar. Na longa noite do Tempo!

Também a areia que cai Paris, 29 de Setembro de 1986


Marca o tempo lentamente
E a vida assim se esvai
Em duna feita repente.

O fio da baba da seda


Fez o ovo do casulo
(Ter asas na alameda
Foi afinal esforço nulo!)

Tudo já foi momentâneo,


Agora tudo é Passado
E lê-se a História num crânio
Dum homem desenterrado.

No meio das escoriações,


Da Lua fica a pegada.
Desembarca em foguetões
O qu’utrora foi ossada!

Osso a osso, dente a dente,


Eis o puzzle que nós somos,
A vida passa tão rente
A tudo aquilo que fomos…

179
Insónia

Afago a fogo
Teu corpo inerte
E penso logo
Que vou perder-te…

A pedra quebra,
Estilhaçada,
Mas eu na treva
Não dou por nada…

A noite mura
Nosso abandono
Enquanto dura
O nosso sono.

És a escultura?
Pedra talhada
Nessa cintura
Por mim esmagada!

Ondas nas ancas,


O cais nas coxas,
Que noites brancas,
Que manhãs roxas!

Lisboa, 12 de Outubro de 1986

181
Cesário a Corpo Inteiro

Tiveste nome de cor, Há sorrisos nas sacadas,


De César um quase nada. Tudo tão subentendido,
A cidade em teu redor E conversas abafadas
Era uma quinta fechada. De visitante escondido.

Faltava-te o cheiro a estrume Assim vivem as mundanas,


No vento tão natural. Feitas senhoras na sala,
Só no espaço dum tapume Nestas paisagens humanas
O musgo dum edital… Tão feitas à nossa escala!

Se murchava algum lilás Passam trens, são os muares,


Tomava a rosa o lugar Que levam curas d’aldeia,
Ou não fosse a luz do gás Receitas alimentares
Um farrapo de luar… Entre uma missa e a ceia…

Se te faltavam papoulas Passam dandies e janotas


Havia sangue espalhado; Que a teu riso só dão azo
E as gaivotas eram rolas E nos frascos de compotas
Que tinham bico salgado. Vai ficando fruta a prazo.

Muda tudo de tamanho E nas montras dos ourives


A teus olhos desmedidos, Vais pesando a injustiça
Sob um céu de cor de estanho Desses bandos de petizes
Que te pesa nos sentidos. Carregados d’hortaliça!

Há arados e charruas, A rua tinha o tamanho


Até há medas de trigo, Dum poema desdobrado;
Na insónia dessas ruas A populaça um rebanho
Do sonho que vai contigo. Que já não quer ser guardado.

182
As igrejas, frente a frente,
São peças do mesmo quadro
Que te lembra de repente
A falta que faz um adro.

Num jardim inesperado,


Posto a meio do caminho,
Pensas tu já ter entrado
Na herdade dum vizinho…

Tudo muda num momento,


É paraíso alcançado…
Porém, o gradeamento
Logo te quer acordado!

É a sina dum poeta


Que não renega ao que nasce:
Com os nervos na paleta,
Faz do seu sangue guache.

Lisboa, 6 de Outubro de 1986

183
Os Ralos do Relento


1
Preciso de ti:
Como o segredo precisa do ouvido
E a sede precisa da garganta,
Como a frase precisa dum sentido
Se à noite, sem se ver, uma voz canta…

Preciso de ti:
Como a onda precisa do sal,
Como a altura precisa da montanha,
Como o barco precisa do sinal
Do farol, acendido em terra estranha.

2
Preciso de ti:
Como a treva precisa da escuridão,
Como do equilíbrio o acrobata.
Como da veia cava o coração,
Como os fios do luar precisam
prata.

3
Preciso de ti:
Como dos pratos a balança
Que equilibra a verdade por momentos,
Quando o fiel é a voz da confiança,
Parando, só por si, os movimentos.

184
4
Preciso de ti:
Como o verde precisa das plantas
E o vento da folhagem que estremece…
Se acaso a morte vem, a páginas tantas,
Serás apenas tu quem não me esquece.

5
Preciso de ti:
Ao sol estendido
Ou fazendo frente à multidão
— Segredo que transborda do ouvido
Sempre que se abre a porta ao
coração! —

6
Preciso de ti:
Como o peixe que na rede
Não queira encontrar uma saída…
De ti preciso a água,
Preciso a sede
E mais a morte,
Avesso desta vida!

7
Preciso de ti:
Como o galope precisa dos cavalos
Quando tudo em frente é Dimensão.
Como o silêncio
Que responde à voz dos ralos
Que deixam sem resposta
uma questão!

Lisboa, 28 de Novembro de 1986

185
Passagem do Ano

Que movimento, (Mede-me aos beijos


Brusco por vezes, Noites inteiras!)
No cata vento Vai-se a folhagem
Que roda os meses… Ficam os ramos
Ângulo escaleno — Que vassalagem
De vão d’escada Se paga aos anos! —
(Onde em pequeno Ramos e folhas
Não dei por nada…) (Outros assuntos)
Venha o que venha, Não têm escolhas,
Baste o que baste, Não morrem juntos!
Mas que sustenha Estala o verniz,
A flor na haste. Vai-se a resina,
Musgos ou fetos Não tem raiz
Ou trepadeiras, A nossa sina!
Mas fiquem certos Subjugados
Nas sementeiras… Passam os dias,
Que cantochão, Troncos vergados
Gregoriano: Nas ventanias…
Ter coração Mas que canções
Por mais um ano! Doces escutamos,
Mede-se aos palmos Quando os limões
O corpo inteiro. Caem dos ramos…
Não ouves salmos, Adrenalina
São os pinheiros! E mais não somos
Cubos de sal Que tangerina
São poliedros Aberta aos gomos!
Mas que coral
A voz dos cedros! Lisboa, 16 de Janeiro de 1987
Mas que solfejos
Nas oliveiras…

186
Profanação

Deixas a porta aberta. Basta isso!


A noite é escura e boa companheira…
Desejar, já por si, é compromisso
E tudo aqui me quer à tua beira.

Também o sonho vem, inesperado,


A leito nem sempre conhecido.
Teu quarto fique aberto e não fechado
Por destino há muito definido.

Bate a chuva nos vidros, surdamente,


Pedindo-te que lhe abras as janelas,
Como vindos do céu, secretamente,
Recados que lhe mandam as estrelas…

É a Lua recorte em parafina.


Que tesouras a deixam recortada?
Se o vento quer as ondas na cortina
Toda a noite é maré imaginada…

A noite é ritual tão repetido


A que o dia s’imola por feitiço.
Não falemos num deus desconhecido
Deixa-me a porta aberta, basta isso…

Lisboa, 19 de Janeiro de 1987

187
Quarta-Feira de Cinzas

Porque será que as uvas não dão sumo


Agora nestas vides d’enforcado?
Mas vendo bem, porém, até o fumo
Tinha com o fogo encontro combinado!

Segredos bem contidos, coriáceos,


Nos regressos do mundo migratório…
Cemitérios d’elefantes e cetáceos
Num enredo de desfecho obrigatório…

Os gatos dilaceraram Janeiro


No cio das crateras do luar,
Se acordo, também estás no travesseiro,
Afinal nada muda de lugar!

Das cinzas que o Inverno aqui deixou


Desenhos faz o vento pelo chão;
Auto-de-fé que o Tempo levantou
Que rebelde solstício de Verão!

Tudo assim aconteceu em sua altura,


Em peça de comédia ensaiada,
A morte é uma espada na cintura,
Uma vez só se vê desembainhada!

São os dias um barco no seu rumo


Com diário de bordo desbotado.
É por isso que as uvas não dão sumo
Agora nestas vides d’enforcado.

Lisboa, 4-5 de Março de 1987

188
Fechadura Yale

Havia a sombra que havia no chão


— Tão rastejante como óleo entornado —
Havia a certeza de haver corrimão
Em perfil de cobra em tronco enroscado.

Havia náufragos sobre um colchão


À deriva no mar encapelado,
E do tecto a luz dava a direcção
À sombra do óleo já tão ensombrado.

Batia o relógio contra o coração,


Ruídos da noite rangendo o sobrado…
Havia a sombra que havia no chão
Recordando o óleo ali derramado.

O mar temia outra serração,


Tapete? Ou foi ilha? Ou tudo inventado?
Havia a certeza de haver dimensão,
Coutada de amor: um quarto alugado!

189
2
Dois corpos na cama: brutal confusão!
O orgasmo tem mar nunca revelado.
Quem sonhar areia, vai vê-la no chão,
Quem sonhar o céu tem tecto negado.

A praia tem dunas, mas não tem limites,


Tem poças abertas na maré vazia;
O sonho põe ferros e põe os rebites
À ponte do sonho que atravessa a ria…
Cheira a erva fresca e neste perfume,
Corpo de mulher vem tão envolvido.
Cheira a terra em sangue o cheiro do estrume
Cheira à minha pele o que tens vestido.

Ai, como a vida está do outro lado,


No fundo da noite, semi-ocultada.
O frio da manhã… Eu mal acordado…
Cheira a pão no forno toda a madrugada!

190
3
Serás a escavação e o aterro,
O dilúvio e a seca misturados,
Como Adão e Eva no desterro
Ainda sem os corpos bem moldados…

Serás a tua queda e o zénite


A linha de chegada e de partida;
Serás a pedra aberta a dinamite
Ou estátua que ficou desconhecida.

Serás o segredo e a inconfidência,


Serás tu a loucura e a razão,
Serás tu motivo e consequência
Do vazio encoberto em tua mão…

Serás tudo o que seja e que não seja,


Equilíbrio e queda de acrobatas:
Na bola do Destino que graceja,
Enquanto um gato brinca com as patas!

Lisboa, 9 de Abril de 1987

191
Incógnita

Qual será a solução Ó Newton: bem na verdade


Dos segredos que me pedes? Ninguém a sério te leva,
Qual será a equação Se a força da gravidade
Quando em abraços me medes? Foi a maçã que deu Eva…
Qual será o carácter Venha lá o que vier,
Que nos deixa revelado Só o silêncio responde!
O triângulo da mulher Cada qual é carácter
Bem no ventre desenhado? Do enigma qu’em si esconde.
Face de prédio em gaveto Gravar um nome e amor
Visto da rua em viés: Nalgum tronco vale a pena:
O gosto do cianeto Nunca algum computador
Que nos põe o mundo aos pés. Há-de escrever um poema!
Os latinos caracteres O meu nome predilecto
Como são familiares. Como vem adulterado:
Dão-nos nomes das mulheres Cada qual tem dialecto
E baptizaram os mares… Para o nome desejado!

O que se escondia em Beta Eu quero a noite estrelada,


Vem em Alfa revelado. Milhões de sóis em redor
Quanta vez chegar à meta E qualquer raiz quadrada
Não é bem já ter chegado! Na haste duma flor…

Não compreendo o que quero. Fica nas cordas vocais


Vejo tudo resolvido, A chave da solução:
Pois até o próprio zero Bastaram cinco vogais
Tem valor estabelecido… Para a nossa solidão.

Não chegou a ser exótico Lisboa, 20 de Maio de 1987


O edital que, tão breve,
Alinhou em estilo gótico
Aquilo que a morte escreve.

192
Cofre de Segredo

Tu és a palavra-chave És o vale e a montanha,


Que abre o cofre de segredo O sopé e a vertente.
E também o voo da ave Água barrenta e castanha,
Que se inveja no degredo. A pureza da nascente.

Tu és o santo e a senha És o Norte e és o Sul,


Dos meus dias de combate. A floresta, o arbusto,
És a folha, sendo a lenha És o pedaço de azul
Da minha árvore d’abate. Que a noite apaga com custo.

És a estátua colossal És o mel e o vinagre,


Dos tempos do paganismo. O açúcar, o amargo,
Tu és o gosto do sal És a vela do milagre
Que se guarda do baptismo. Que deixa o Mundo mais largo.

Tu és o ouro que fica A revolta, a vassalagem,


Duma pedra feita lava, O direito e o avesso,
És a areia feita mica És o vento na folhagem
Onde a imagem estalava. Onde nos sonhos estremeço.

És a pedra da infância Canção que morre na boca


Com que enfrentamos o mundo. De ciganos e jograis.
És o perto e a distância A palavra que sufoca
Que tantas vezes confundo. Por ter ternura de mais!

És a lágrima teimosa Lisboa, 20 de Maio de 1987


Que vence qualquer pudor,
A teimosia da rosa
Que discute a sua cor.

193
Cotação do Dia

Tenho o valor de um tostão trocado.


Efígie discreta — que o tempo arrasta —
Porém, para ti eu valho um cruzado,
Pataca batida e já muito gasta…

Imagens de reis passam nas moedas,


Como água corrente a limpar o ouro…
Em todos os dias só tu me segredas
O valor do riso e o preço do choro…

Ceitis vicentinos, cabeças redondas,


Pardaus de Miranda, de cunhos ascetas.
Inflação p’ra nós: só se forem ondas
Que salgam poemas salvos por poetas…

Cotação do dia não é amargura,


A côdea de pão, seja dura ou mole…
— A carne do Rei também ficou dura
Em Alcácer-Quibir, três dias ao sol. —

Centavo perdido e logo trocado,


Em troco de pobre meio-tostão basta,
Amor: p’ra ti eu valho um cruzado,
Moeda poupada em vida tão gasta!

Lisboa, 28 de Junho de 1987

194
O Beijo de Judas

Estende a face da noite àquele beijo, De ti, Jerusalém, os teus pecados


Pois que a traição virá da madrugada. Farão uma cidade destruída,
A treva será tudo quanto vejo O sangue escorrerá dos teus telhados,
Bem no fundo da noite aconchegada? Tal fonte natural, cheia de vida.

A cama: terra dura, leito imundo, É chuva da manhã ou é perfume


Excremento de gado e oliveiras… Vertido por Mulheres Piedosas?
Mas «não é meu Reino deste Mundo», Que fogo a crepitar! Mas não é lume…
As estrelas são as minhas sementeiras. Os cardos no deserto lembram rosas…

O ósculo traz vinagre na saliva, As bocas dos romanos ficam mudas…


Veneno da serpente mais temida, Constantino, depois, foi convertido.
O medo serve apenas de evasiva Sem teu beijo, afinal, meu pobre Judas,
Quando a pena maior se chama vida. Nada disto teria acontecido!

Como a noite é diferente aos outros Onze… Praia da Marinha, 14 de Julho de 1987
Só Pedro terá hoje algo a dizer:
Negar, o que depois virá no bronze
Dos sinos por que tem de responder…

Foi Páscoa? Foi Cruz? Foi o Enterro?


A Pedra Tumular foi violada?
E tu, meu filho Pedro, guarda o ferro
A morte não precisa duma espada…

O Cordeiro Pascal aonde pasta?


Entre o Céu e a Terra? Noutro lado?
Também Herodes tem a adaga gasta
De ter tanto inocente degolado.

195
Ofícios Esquecidos

Fenícios desapar’cidos, Chegam ao porto das barcas


As nervosas mãos helénicas, Que trazem o salvamento
Nos ofícios esquecidos Os plebeus e monarcas,
Que já foram novas técnicas. Feitos irmãos de momento…

O que ontem foi moderno As tempestades solares


É hoje só do Passado. — Ó império sem altura! —
O Sol que funde o Eterno Nós temos glaciares
Deixa até o frio queimado. Quando desce a temperatura.

O grito é música sacra Nem sequer a lei do Pólo


Em coro silenciado, Para seus filhos sem lei!
Quando tua língua lacra Vão-se as crianças de colo
Meu sorriso angustiado. Só porque Herodes foi rei…

A Terra por dentro é oca Se estrelas fossem pegadas


Ou de rocha mais maciça? Quem seria o Povo Eleito?
Que catedral: uma boca, Crianças mal vigiadas
Dentes, santos de caliça… Por um deus num parapeito.

Esvair-se em sangue, morrer, Faz uma cruz dum madeiro


Soldar palavras em rima. P’ra depois te suspenderes.
Deste ofício de viver Sê tu próprio o engenheiro
Qual será a obra-prima? Do Calvário que escolheres.

Mas na Árvore de Jessé Guimarães, 24 de Setembro de 1987


— Que campo de expiação —
Não figura São José,
Sabe-se lá a razão!…

196
Papel-Moeda

O que diria Álvaro de Campos:


Fernando Pessoa impresso em nota de banco!

Pessoa a ser hoje disputado,


Mais num minuto
Do que nos milhões de livros
Que nunca viu impressos,
Embora as lombadas
Lhe exibam o nome
(Como lápides de cemitério
Sempre de leitura rápida…)

Que diria Álvaro de Campos?

O próprio Pessoa,
Por seu lado, talvez confessasse
Que por vezes ainda receia
Que seja isto tudo mais uma trama do Alves Reis,
O tal que já se serviu um dia do Vasco da Gama
Para trocar as voltas ao Banco Emissor
E ao fleumático Sir William Alfred Waterlow
Da firma impressora Waterlow and Sons
E que hoje dele se sirva
— Pois que já é figura nacional —
Para uma moscambilha qualquer…

Sim… Talvez confessasse…

Ricardo Reis
O do «Ouvi contar outrora quando a Pérsia»,

197
Com a sua indiferença de xadrezista
Reproduzirá mentalmente
O acontecimento
Como a multiplicação dos grãos de trigo
Pelas casas do tabuleiro
E acabará por achar também habitual
O constante desdobramento da tua universalidade
Tão natural
Que nem Lídia
Lhe notará nada no rosto…

Já Caeiro,
Por seu lado,
Dirá apenas, sem sentenciar seja o que for,
Que o Fernando,
Tornado outra vez gente,
Voltou à Terra
Não «rebolando
Pelas encostas do monte»,
Mas rolando, sim,
Pelos movimentos circulares duma rotativa
Que o reproduziu aos milhares
Em notas do Banco de Portugal,
Como por artes de caleidoscópio
Ou por jogo de espelhos paralelos,
Como se o Fernando
— Tão imprevisível que era —
Tivesse assumido num repente
Uma espécie de Milagre da Multiplicação dos pães
(Vá-se lá saber se até por artes ocultistas
Da Tia Anica…)

Mas seja como for, o que diria Álvaro de Campos


De mais este inédito

198
Tão originalmente tornado público?
Ou não será, porém, tudo isto
Simplesmente, na realidade,
Mais um passo de práticas ocultistas
Donde resultarão
Outros milhares de páginas
— Desta vez, porém, de livros de cheques — ?
E mais: não era apenas isto
Que Aleister Crowley («A Besta 666»)
Antevia já na linha de água
Que o papel-moeda exibia
Quando olhado a contraluz?

Será só mais um degrau


Da escadaria do inexplicável?
Mas sendo exactamente apenas isto,
O que diria Álvaro de Campos?
Já que Bernardo Soares,
Aproveitando-se da figura de Vicente Guedes,
Se limitará a fazer o lançamento do sucedido
Em conta-corrente, para depois,
Com a consciência dum dever cumprido,
Ir à Rua dos Douradores
Para o almoço diário
Nalgum restaurante
Desses que tenham o ar de «casa de pasto de vila sem comboios»,
Aceitando assim como natural
Que o seu meio-irmão ande agora
Nos guichés dos bancos
Entregue a essa espécie de jogo de cartas,
Que há no dar, no receber, no baralhar
E no partir
Desse baralho infernal

199
Que são os maços simétricos e cintados
Das notas de banco
Quando ainda cheiram a tinta
E não foram gastas por ninguém
— Como naipes virgens que o croupier desembrulha
Publicamente
Em reforço da credibilidade
Que os casinos têm sempre de exibir… —

Todavia, o que diria Álvaro de Campos?

Mas os criados do Martinho da Arcada


Ou da Brasileira do Chiado,
Esses, ao entregarem moedas em troco do novo papel,
Só pensarão que a certos fregueses
Se lhes deparam situações estranhas:
Que venha uma pessoa no jornal, ainda que vá…
Agora numa nota de cem escudos!…
Isso é só para santos e para os reis,
A esses nunca ninguém os viu vivos…
Mas, de mãos ligeiras,
Remexendo no saco à cintura
— Como bolsa marsupial —
Nos seus aventais
Prepararão já outros trocos
Com mais um sorriso de boas-vindas
Para um freguês de todos os dias, já quase família…

Talvez seja até com esta simplicidade


Que a coisa tenha de ser olhada.
Mas realmente como continua ainda o desdobramento da tua personalidade,
Agora nos trocos das notas de cem escudos
A que tu serves de caução!

200
Tua Mãe, por seu lado, pensará apenas
Que foste longe
E que aquilo do prémio da Rainha Vitória
Ganho no Cabo da Boa Esperança
Era já um aviso do Eterno,
Edital, meio solto, ao vento
No muro do Destino…

Para a Tia Anica


Será isto tudo vulgar,
Rotina das mesas de pé-de-galo,
Diálogos de Deus e do Diabo
Por interpostas pessoas,
Com pancadas de nós de dedos invisíveis
Vibrando na madeira familiar, tornada Desconhecido.
Sinais de Morse
Que no caso do sobrinho,
São pancadas de Molière
Anunciadoras do sucesso que tinha em frente,
Nessa apresentação do «Drama em Gente»
Que iria ser a tua vida…
(Já nos tempos de Cape-Town, para ela,
Não passava a Montanha da Mesa
Duma simples pé-de-galo,
Peça íntima do mobiliário
Na antecâmara do Eterno
Onde tu ias entrando
Com enorme à-vontade!)

No entanto, já o Alves da tabacaria,


Ao dar o troco
Junto à onça de Tabaco Francês

201
E ao livro de mortalhas Zig-Zag
(Sempre de venda simultânea)
Verá num relance
A cara conhecida no desenho da nota recente,
Mas nunca lhe passará pela cabeça
Seres tu, o poeta da janela ali a dois passos
Que estejas nela impresso,
De chapéu e óculos de aros finos
Com que «andas sempre ao sol e à chuva»…

Tudo isto estará muito certo,


Mas Álvaro de Campos o que diria?

Ao menos o Almada
Desenhou-te à mesa do café,
Como esperando que a Eternidade
Entrasse em qualquer momento
Nos Irmãos Unidos
E te levasse a passear
Pelas distâncias consteladas,
Que hoje são o teu Jardim da Estrela
(Aquele gradeamento,
Ali a dois passos da rua Coelho da Rocha,
Onde milagrosamente ainda se mantém de pé
Uma das casas que viveste por dentro…)
Pintou-te à mesa dum café
E não no Banco de Portugal,
Pois, conhecendo-te os fracos como poucos,
Sabia que tu não trocarias
Por uma barra de ouro-lei
Um poema que pudesses fazer
Sentado no Martinho
Ou no Café Montanha

202
Ou até, de pé, frente à cómoda alta
Como aquela que havia em tua casa
E onde um dia
Num galope do teu pensamento
Te surgiu o Mestre Caeiro
Inesperadamente mas com tanta naturalidade.

Marinetti
Que acabou mesmo por morrer académico,
Contra a tua opinião (via Campos),
Vingou-se agora bem de ti:
No seu juízo, esta nota bancária
É o aviso-recompensa da tua cabeça a prémio
Que só vale cem escudos
Que tal como a lira italiana,
São uma insignificância…

O Barão de Teive,
Consciente da pouca dimensão da sua obra,
Deve quedar-se silencioso,
Esperando que outros
Falem por si,
Como elemento dum coral
Que cante só de vez em quando
E sempre juntando a sua voz à do grupo.

Imprimiram-te de caneta em riste,


Como endossando um cheque,
Tu
Que afinal estás apenas simbolizando
Conceder um aval a mais um teu poema inédito
Agora descoberto…

203
Ah! «Se te querias matar»
Devias saber que estavas destinado
Ao risco de criares sem querer
Outro heterónimo
Sujeito a correcções do dia
E aos caprichos do dólar,
Do esterlino ou do rand (como te deve
Dizer alguma coisa, então, esta moeda!)

Que cotação terás neste momento


Na Bolsa de Tóquio?
Tu:
Simples correspondente comercial,
Hoje com o equivalente em ouro
Cada vez que reproduzem a tua imagem
Num pedaço de papel!

Tu:
O tímido que te confundias na multidão,
Exibes agora o teu rosto indiscretamente,
Como se em vez de te barbeares
Em frente do pedaço de espelho,
Pendurado na velha portada de madeira
Da janela ainda mais velha,
Te escanhoasses impudicamente
Em plena Rua do Arsenal,
À hora de maior movimento,
Servindo-te da vidraça duma montra
Para reflectir a tua imagem!

Como te obrigam a colaborar com os donos do Mundo


Que querem à viva força
Tornar familiares ao grande público

204
Os tímidos depois da morte,
Ao reproduzi-los
— Como cogumelos venenosos —
Em cédulas bancárias!
Que investimento diabólico
Faz o Capital dos vivos de ontem!
Seria antes tão simples, em suas vidas,
Ter feito de suas algibeiras um ninho de ouro
Donde, de quando em vez,
Em lugar do lenço caído
Saltassem também moedas,
Como um poema mais
Atirado à Eternidade,
Como folha de Outono
De cair tão natural,
Que ao sobrar do Verão
Faltará no Inverno
Para justificar a Primavera!

Também tu caíste bem, afinal, no domínio público…


Tu que eras do tempo dos tostões,
Dos reis e dos cruzados,
Pagas hoje na Bolsa
Os títulos e obrigações
Dos que nunca te lerão
Mas que te disputam o retrato
Por razões tão evidentes!
Ah! «O lar que nunca terias»
É hoje momentaneamente
A Casa da Moeda
Com teu retrato suspenso
Em parede anónima
Sem manchas de humidade

205
Mas tão desconfortável por dentro
Por pouco familiar que deve ser.
Editaram-te agora finalmente
Mas em dinheiro!…
Assim, queiras ou não,
Andarás nas mãos dos justos,
Dos ladrões,
Das prostitutas,
Dos viciados de jogo
E serás, por capricho do acaso,
O prémio do aluno aplicado
Que durante o ano escolar
Tenha sabido de cor
Os teus poemas nos dias de aula…
Nos enfadonhos dias de aula!

Que capricho há na morte das pessoas!

Com a tua figura


Será paga a Sorte Grande
E serão remunerados os tenores
No teatro em frente
Da casa onde nasceste
E onde «o cão, a bola e a batuta do maestro»
Se misturam na memória da tua infância
Esse cofre cujo segredo
Só o Destino conhecia!

Só na Alta Finança
Serás familiar
Mas nunca ao «Banqueiro Anarquista»
Pois que a qualquer «Esteves sem metafísica»
Nada dirás,

206
Uma vez que te meterá na carteira
Para logo te tirar de seguida,
Sem fazer de ti, ao menos por momentos,
Um retrato familiar
Que deva andar aconchegado ao nosso peito…

Que homem dividido que continuas a ser!


É como se cada um de nós tivesse o direito
A uma parte de ti,
Tu o despojo valioso da batalha,
Tu o produto do saque repartido
Tu a hóstia fragmentada
Em Comunhão Campal em dia de Páscoa.

Mas para que tudo isto tenha um sentido


Deve haver uma razão oculta
Que não devemos procurar
Como se tenha de respeitar
Um segredo inviolável
Ou aceitar um dogma.

Sim! Mas será precisamente por isso


Que Álvaro de Campos
Não poderá ficar calado por muito mais tempo…

Será assim que, na atracção do proibido,


Que nele funciona como um íman,
E com a sua rebeldia
De não aceitar o estabelecido
Que, quando já ninguém esperar ouvi-lo,
Dirá
Talvez

207
Na sua voz sem timbre,
Sempre tão fora do Tempo:

« — Eu
O homem que nunca existiu,
Cujas palavras trazem assim o peso do
Intemporal

— Eu
Que tenho como sexo o dia e a
noite,
Com os seus amores incestuosos
Nas suas entregas
Do fim da tarde e da madrugada…

— Eu
Que tão britanicamente me assumo
Tanto na Rua dos Bacalhoeiros
Como à entrada do Canal do Suez,
Sempre com o meu vestuário talhado pelo
Irreal…

— Eu
Que tenho como idade o zero absoluto,
Que fui parido por um pensamento,
Que rebentou a bolsa de águas das Ideias…

— Eu
Que tenho como cédula pessoal
O primeiro poema feito em meu nome
E como certidão de óbito o fim
Do último verso que escreveram por
mim…

208
— Eu
Que não hesitei em passar procuração
Para isto tudo!

— Eu
O abstracto
O invisível
O sobrenatural…

— Eu
Que tenho deixado que outro
Fale por mim
E me tenha abrigado
Nalgum desvão da sua personalidade,
Já de si tão partilhada por mais outros
(Como fatia de bolo-rei
Em noite de Natal!),
Mas que tenho ideias próprias
E sobretudo um acentuado
Sentido de amor-próprio…

— Eu
Que sou o Nada e o Absoluto
simultaneamente
Não posso calar nem sequer por mais
um minuto
O que penso disto tudo!

E
Assim
Direi
Mas tão-somente

209
— Pobre Fernando
Que «Livro do Desassocego»
Que «Floresta do Alheamento»
Que continuam a fazer da tua vida!

Como te lamento!

Pela minha parte,


Direi a Daisy
Que quando eu morrer
Não me enxugue o rosto
Pois que por vezes
A face dos grandes homens
Fica estampada no linho
Ou gravada em papel-moeda
E Daisy sabe
Que quando eu morrer
Quero ficar sozinho
Para sempre…

De mais a mais
Porque quando o carrasco fala a
nossa língua
Pode a morte ser intimidade
E é isso apenas o que mais
Desejo neste momento!»

Londres, Paris, Norte de Portugal e Lisboa,


Setembro-Outubro de 1987

210
Ração de Combate

Vou pelos campos de milho Com a alma em bandoleira,


— Que na guerra ninguém trata… — Mas de baioneta calada:
Levo o dedo no gatilho Faço da vida bandeira
E uma bala na culatra. Que o sangue quer encarnada!

Para o que der e vier: Lisboa, 10 de Novembro de 1987


Outro sabre na bainha…
Quando a Lua se esconder
A noite então será minha!

O Sol será sempre um p’rigo


Nestes dias de campanha
Devasso campos de trigo
Sem saber quem me acompanha…

Vai-se a água nos canais


— Lembram rios abraçados —
Já houve fogos reais
Deixando os campos queimados.

Só ouço o silvo das bombas


No silêncio em que medite.
Quem quiser um céu de pombas
Não pode querer dinamite.

A vida: Que xeque-mate


Neste xadrez da razia!
Levo rações de combate
Numa mochila vazia…

211
Bicho-de-Conta

Pus minha alma num barco, Em tanto sonho que embarco,


Era uma fusta ou galé? Cada qual é como é…
O horizonte é o arco Pus minha vida num barco.
De triunfo da maré. Era uma fusta ou galé?

Mãos doridas de remar Baleal, Peniche, Porto das Barcas,


Tão pouca coisa escreveram… 21 de Novembro de 1987
Pus o meu corpo no mar:
As ondas não o quiseram…

Em terra tudo o que escolho


Traz-me saudades do mar.
Eu «deitei solas de molho»,
Tendo embora de jantar…

Que vela foi teu vestido


No infinito, que escuna!
Quis o teu corpo estendido,
O vento fez dele duna…

Deitei pedras ao luar!


Deitei cartas sem sentido!
Eu deitei o corpo ao mar,
Mas nunca fui recebido…

É coisa de pouca monta


Tudo o que o mar não quiser.
A vida é bicho-de-conta
Que não ganha em se esconder…

212
As Torres do Silêncio
As Torres do Silêncio

(No seu rito fúnebre, os Parsis não sepultam nem cremam


os seus mortos que, assim, apodrecem ao ar livre.)

Torres do silêncio e esquecimento!


Abutres! Que figuras tumulares!
São o negro que alastra pelo vento
Nos guaches que transbordam pelos ares.

Tão indiferente que fica o Firmamento


Ao que se passa na pátria do luar,
Ante um deus diverso e friorento
Que se aquece com a morte em Malabar.

Será o mesmo noutro continente


Sem colinas ou cadáveres por contar…
A morte é sempre igual, discretamente,
Pois ela morrerá se não matar!

A caminho de Bombaim, 24 de Janeiro de 1987

215
Índia

Bóia um nenúfar Mas há o luar


É água parada E o Sol também,
Tambor a rufar Trocando o lugar
Na tarde abafada. Como lhes convém…

As bocas com sede Serpentes subtis,


Os livros em seda Pesados elefantes.
As pedras em rede Há ouro e rubis
Pela alameda. E mãos suplicantes.

O corpo é o coco, A vaca sagrada,


Sem chama sagrada… Nem por um momento
A vida tão pouco Não lhes lembra nada,
E a morte nada. Não é alimento!

Cada qual amante Jejum permanente


Pelas suas normas: Sem fins pacifistas.
É Shiva dançante A morte-corrente
Of’recendo as formas… Sem contabilistas!

O tempo se some Roídos em febres


P’las frestas dos dias, E pelo desjejum…
Janela de fome Palácio ou casebres
Que tem gelosias. Ou tecto nenhum!

Na boca o que entre E vão-se os arquivos,


É resignação As bibliotecas,
E não sente o ventre As folhas dos livros
O peso do pão. São as folhas secas…

Jaipur, 28 de Janeiro de 1987

216
Taj Mahal

A dor traduzida em
mármore.
O luto tornado em branco.
O amor transformado em
Tempo!

Agra, 30 de Janeiro de 1987

217
Khajuraho

Fazer amor em pedra, para um templo.


Ó sémen feito em saibro, empedernido!
Amar até morrer: é o exemplo…
Façamos pois, assim, o que é pedido!

Vitória incontestada dos sentidos,


A morte pouco é mais do que um sorriso,
Os gestos proibidos, permitidos,
Como se a vida fosse só um friso.

Ampulheta d’areia, empedernida,


Clepsidra de suor do barro humano!
Fazer amor assim é fazer vida
No templo do teu corpo que profano.

Agra, 30 de Janeiro de 1987

218
Fumos da Índia

Índia: morcego suspenso


No mapa da Ásia.

De dia sonolento
Ao Sol tórrido

De noite
Esvoaçando em liberdade,
Na nossa imaginação
E nos sonhos
Que dali trouxemos
E que nunca nos lembram
noite!
Índia: morcego pendurado
Na árvore do Mundo…

Khajuraho, 31 de Janeiro de 1987

219
Nas Margens do Ganges

Quem quisera especiarias Ó Ganges d’água barrenta:


Melhor seria não vir… És um rio? Quem o diria?!
Passam os anos, os dias, Para nós a água-benta
São as folhas a cair. Era a melhor especiaria!

Seca a árvore da Razão, Agra, 31 de Janeiro de 1987


Cai o ramo da Prudência:
Ir nos dias que se vão
Eis a nossa contingência…

É carta torna-viagem
Tudo aquilo a que já fomos.
Se mudamos de paisagem
Deixamos de ser quem somos?

Sonhámos ontem canela


Hoje temos sal à mesa…
Para nós, no mar, a vela
É o lenço da tristeza.

Ter gengibre por romã


Não podia ser verdade…
Para nós o amanhã
Já dá motivo à saudade.

Com as almas degredadas


Na lama vemos a prata.
O rio das águas sagradas
Dá sede que não se mata.

220
Entardecer no Ganges

Sangue a sangue e a morte de seguida,


Sem nada que se saiba de concreto.
De palavras é feita a nossa vida,
Como as dunas que preenchem o deserto.

Em escuro se apaga a escuridão,


Com palavras se gasta a nossa voz.
São as frases que nos dão a dimensão
Dos caminhos que há dentro de nós.

No rio, a deslizar, passa um parangue


Ao de leve, a roçar a água a medo…
Com o sangue se apaga a cor do sangue
Com folhagem se apaga o arvoredo…

Khajuraho, 1 de Fevereiro de 1987

221
O Medo

O medo da morte faz os deuses,


Com ele fazem ninho nas alturas.
Nossos olhos que os sonham tantas vezes
Mudam-lhes o poder e as figuras.

Toma Deus a forma mais diversa:


É Manitu ou Buda ou mesmo Shiva.
Porém o Deus romano não é persa
Pois Deus difere sempre na missiva…

Banhar-se gente no Ganges ou Jordão


É com água tentarmos a pureza…
Evapora-se a água em suspensão,
Mergulhámos somente em incerteza!

É longa a noite, o céu é tão distante


— Tão longe que ficou dos nossos gestos —
Só lembra abutre negro em voo rasante
Que venha disputar os nossos restos!

Teu corpo traz o Sol já no ocaso,


Teu corpo traz um Deus já resumido.
Dá forma a Deus, amor, não faças caso
Dos textos que lhe tiram o sentido!

Katmandu, 3 de Fevereiro de 1987

222
Numa Aldeia do Nepal

Passo um campo de mostarda, Futebol reinventado:


Pela estrada lamacenta. Um excremento faz de bola.
Terá um anjo da guarda Junto ao templo abandonado
Esta gente ferrugenta? Um anúncio à Coca-Cola!

Os rostos são cor de cobre Arredores de Katmandu,


Tom de lama ressequida. 4 de Fevereiro de 1987
Não há um sino que dobre
Por esta espécie de vida?

As mulheres dobam a lã,


Sentadas no duro chão,
Sem que a estrela da manhã
Lhes aqueça o coração.

Ambiente rotineiro,
P’ro guia cor de melaço.
Os porcos fazem chiqueiro
Das ruas por onde passo.

Um templo desmantelado,
Semifiguras macabras…
E Shiva é venerado
Por entre patos e cabras.

O rapazio quase alheio


Jogando num lamaçal
À bola, como em recreio
Duma aula matinal.

223
Pôr de Sol nos Himalaias

No tecto do Mundo
Como fosse um véu:
A neve confundo
Com nuvens do céu…

Que doce de creme


Gigante sedento
Cuja mão já treme
Por este alimento.

Diante o Poente,
Atrás: Evereste,
Que roupa diferente
Com que a terra veste.

Neve em cartolina
De corte bem raso:
Como em guilhotina
O Sol no ocaso.

Porém, amanhã,
Destino lendário:
Os montes de lã
Verão o contrário.

Aqui, dia a dia:


O Sol arrefece.
Que monotonia!
A vida acontece…

Katmandu, 6 de Fevereiro de 1987

224
O Palácio das Monções

O Rajá de Udaipur, Porém, o destino dá,


Anéis em dedos flácidos, Dos dias, a quantidade.
P’ra que a vida lhe perdure Mas o pobre do Rajá
Vivia em cinco palácios. Esquecera a mortalidade.

Ondulando, tal marés E como fosse mortal,


D’oceanos violentos: Entre pilhas de madeira
Mandou fazer, feito em grés, Também ardeu, afinal,
O seu Palácio dos Ventos. Enquanto quis a fogueira…

No cume dum precipício, As cinzas quando voavam,


Entre águias e falcões, Sobre o Ganges sonolento,
Quando a chuva dava início: Indiferentes desenhavam
O Palácio das Monções. Outro Palácio p’ro Vento!

Nos dias de tempo seco, Katmandu, 6 de Fevereiro de 1987


Em ambiente mais terno,
Vivia em salas com eco:
No seu Palácio d’Inverno.

Fez uma ilha e um lago,


Num movimento de mão.
O ouro faz qualquer mago:
E um Palácio de Verão…

Com o seu olhar dormente,


Em cochins de longas sestas,
Mandava entrar muita gente
No seu Palácio das Festas.

225
A Poesia

Como gota de água que transborda o rio, no momento certo, quando a seca já
fazia desesperar, vieste, companheira de todos os dias, de novo procurar-me, com
naturalidade, sem termos marcado encontro, como sempre acontece.
Tal nuvem que, por momentos, esconde o Sol, para alívio dos nómadas perdi-
dos em deserto escaldante.
Como lenço molhado que refresca a fronte febril.
Como aberta em tarde de chuva, que permite o atravessar duma rua.
És o milagre da paisagem, com mutações, para os olhos dos sedentários.
És o relógio com numeração romana no mostrador, como se o Tempo tivesse
parado em Roma e tudo até aqui fosse apenas previsão do futuro em antecipação
científica, de banda desenhada.
És: O vinagre e o mel.
O rochedo e a espuma.
A casca e o fruto.
Abel e Caim.
A paz e a guerra.
O choro e o riso.
O sol e a sombra.
A cara e o cunho da moeda.
A água e a evaporação.
O nada.
O átomo.
O absoluto
D. Quixote e Cid.
Job e Salomão.
A casa e o relento.
O gelo e o fogo.
«A árvore seca e a vela panda».
Cristo e Barrabás.
A chibata de cana e a cana do açúcar.

226
Tu que és, ainda, o primeiro dia da Criação e a certeza de que o último dia de
todos será a véspera de qualquer coisa.
Vieste de novo procurar-me, sem encontro ou local marcado, minha compa-
nheira de todos os dias. Com a naturalidade da criança vinda da escola e que abra
a porta de casa, sabendo que no dia seguinte será o primeiro dia de férias grandes.
É assim que tens o sabor do lápis Johann Faber n.º 2, roído na ponta e és o
perfume que as laranjas da infância deixavam nos dedos, entre as marcas de tinta
escolar que se tirava dum tinteiro e as manchas brancas do áspero giz que às vezes
emitia sons agudos, ao riscar a ardósia da parede da aula.
És, talvez, sobretudo, o adiar do medo da morte.
Tu que és, também, o sonho lunar e extra-sideral. Que és o ano-luz, bissexto,
para que tenhas mais demora entre nós.
Tu que és o muro de pedra solta, de palavras e frases. Que és sempre a próxima
onda; o levantar do remo para a remada seguinte. Que és a caravela de Quinhentos,
ainda antes de haver mapas.
Tu que és a carta celeste, em folha de cartolina que se desdobra infinitamente
mas que eu agora dobro e levo debaixo do braço para a caminhada que faço con-
tigo.
Tudo o que és, afinal, tudo o que nunca me teria ocorrido, se não tivesses
vindo, pontual e com naturalidade, procurar-me, no lugar certo e no momento
exacto.
Tu que és o chegar da carta que traz, sempre, um selo desconhecido que obriga
a olhá-lo primeiro, antes de lermos o remetente.
Tu que vieste, como gota de água de súbito caída duma estalactite e que de
repente tenha revelado que pode chover também debaixo da terra!

Entre Delhi e Goa, 8 de Fevereiro de 1987

227
Fortaleza dos Reis Magos

Goa:
Tuas praias,
Com rochosas arribas,
Em socalcos,
Com palmeiras em escadaria,
Lembram um presépio,
Onde não faltam, sequer,
os rebanhos

E onde seja possível,


A todo o momento,
A chegada dos Três Reis Magos,
Por quem todos nós
Esperamos, afinal,
a vida inteira!

Goa, 11 de Fevereiro de 1987

228
As Formigas na Neve

1
Os santos de pedra. Tu és de carne. Que diferença que há entre as divindades.

2
Do Oriente: o dia. O Poente arrasta a noite consigo. E neste vale de luz e es-
curidão, os ponteiros do relógio são a ponte suspensa.

3
Sempre que o sino tocava, as pombas fugiam em revoada, como se o campa-
nário, por obra dos anjos rebeldes, subitamente se tornasse numa carreira de tiro.

4
Com o cuidado que se leva a ave ferida, assim devia a vida levar-nos…

5
O Arco-íris é o guache dos deuses.

6
Uma flor, neste dia invernoso, ia à tona do rio. Promessa de Primavera ou ab-
dicação dos dias verdes, face à prepotência das correntes invernosas? Fosse como
fosse, eu vi uma flor à flor das águas e isso basta.

7
Com que silêncio caiu a neve durante a noite, envolvendo agora tudo em volta.
Que a chuva aprenda com ela a não tamborilar nas vidraças, lembrando o
avançar dum exército em guerra.
Que a trovoada a imite, não estilhaçando a calma do céu, como ribombar de
canhões em paisagem outrora calma.
Que o vento lhe siga as pisadas e não chicoteie o arvoredo, como cavalo-ma-
rinho do soldado que ocupa o metro quadrado que nos cabe para a sombra que o
nosso corpo projecta.

229
Que a gente aprenda com ela a não pesar nos nossos sonhos, onde egoistica-
mente queremos estar presentes.

8
A neve vem como a poeira no vento: espalhando-se em leque, como o abrir
de penas duma ave rara. Porém, ao contrário do pó, não magoa os olhos mas pára
todos os pensamentos de momento e o olhar fica quase magoado pela pouca utili-
dade que tem nessa altura.

9
A neve, depois de acabada, reincarna em água. Pode, levada ao extremo de
degelo, ser avalanche ou cascata. Pode, no outro extremo da escala, tornar-se em
vapor e ser nuvem. Com que degraus imensos de gelo decorre a ascensão e queda
da neve que parecia ser tão simples, ao cair sem ruído.

10
Os corações, gravados nos troncos das árvores, no Inverno escorrem água
como se de sangue se tratasse.
Os nomes próprios, esculpidos a canivete no arvoredo, albergam gotas
de água onde a identidade que querem representar fica afogada em lágrimas de
saudade…
A chaga aberta de resina dos pinheiros, sangrados em vida, escorre para taças
de traço rude, onde uma gota de neve somente já parece transbordar o vasilhame.
Porém, tudo agora, coberto de neve, é como se de súbito um manto de esque-
cimento tenha caído sobre o Mundo e sobre as marcas que o Homem teima em
deixar sobre todas as coisas, para inutilmente tentar perpetuar uma presença que é
tão passageira, afinal.

11
Que pintura rupestre faz o musgo no muro em ruínas… que medo da vida o
pintou?

12
Só o trevo, antes do nevão, gritava que era o arvoredo das formigas.

230
13
Tão pouca coisa cabe nos nossos olhos. Olhemos, assim, cada coisa de sua vez.
Cada momento na sua altura.
Cada lágrima a seu tempo.
Talvez assim as imagens sejam verdadeiras.

14
Sempre que o sino tocava, a neve que o revestia tombava do bronze, reme-
tendo-o para a sua nudez. Depois havia toda uma hora para de novo se tornar
branco. Pontualmente ia o sino mudando de cor, como se fosse um relógio de neve
em imitação a um relógio de sol. E a paisagem ficava feliz por dar por isso…

15
É o Infinito, o arco do triunfo dos que sonham.

16
Perante o Universo sem tamanho, a neve e as formigas só diferem na cor!

Índia, França e Inglaterra, Janeiro e Fevereiro de 1987

231
Embalagem Perdida

Porque me falas de morte Não passa de alma gémea:


Se de vida somos feitos? Pois sem morte não há vida!
Se somos bobos da corte Que mal nos faz a leucemia
Somos um Príncipe Consorte, Nesta embalagem perdida?
Que a luz da Lua recorte
Nos vitrais dos parapeitos. Somos restos de luar
Porque me falas de morte Vindos da noite passada.
Se de vida somos feitos? Tudo muda de lugar…
Somos a roupa a secar
Não venhas falar de ácidos Qu’alguém vai depois usar
Que corroem tua imagem. Ao senti-la bem lavada.
Fala-me em bustos clássicos Somos restos de luar
Que nos recantos plácidos Vindos da noite passada.
Parecem rostos flácidos
‘scondidos entre a folhagem. A onda que esconde a onda,
Não venhas falar de ácidos A noite que tapa o dia.
Que corroem tua imagem. A voz que canta na monda,
A foice semi-redonda
Que troféus que tem a caça Em meia-lua que esconda
Feitos de peles e de penas. A Lua-Cheia que enchia.
Também a vida esvoaça, A onda que esconde a onda
Na manhã de chumbo baça A noite que tapa o dia.
Sobre a névoa de mordaça
Onde morrem açucenas. É o sangue que prescreve
Que troféus que tem a caça O final duma sentença.
Feitos de peles e de penas! Como fosse um almocreve
Tantas voltas que descreve,
Que mal nos faz a leucemia A sangue o que ele nos escreve
Nesta embalagem perdida? Da morte até à nascença!
A morte também é fêmea, É o sangue que prescreve
Se às vezes é blasfémia O final duma sentença.

232
O que somos, afinal?
Ah! Quem pudesse sabê-lo!
Somos apenas sinal,
Reproduzido em espiral
Neste Espaço Sideral
Suspenso por um cabelo!
O que somos, afinal?
Ah! Quem pudesse dizê-lo!

Londres, 13 de Janeiro de 1988

233
Trinta Dinheiros

A Virgem Mãe Púlpito, Rogo,


Mordendo o pó, Cruzadas tantas
Sem ver ninguém Marcas de fogo
Parindo só! Das Guerras Santas!
Junto ao jumento Tanta cegueira
Um boi deitado, E submissão.
Se entra o vento Vem a fogueira
Fica abafado. Da Inquisição…
E este estábulo Mas, porém, antes
Feito em croquis: Vivem em tumbas
Dará retábulo Os emigrantes
De Rei David! Das catacumbas…
E vão-se as dores
Fecham-se as ancas. Nasce e divide
Vêm pastores A Humanidade.
De vestes brancas. Mas quem decide
(Bolos-de-Rei Bem na verdade?
De passas cruas: Lagos sagrados,
Serão anéis Imensidão…
Destas mãos nuas?) Os baptizados
Vieram anjos, No Rio Jordão…
Seres voadores, Que passa perto
E os arcanjos Em terra inculta,
Ameaçadores! Voz no deserto
Longos cabelos, Mas quem a escuta?
Os olhares vagos… Outra voz estranha
Vêm camelos À multidão
Com os Reis Magos. Se da Montanha
Parto ao luar Desce um Sermão…
— Como animais! — Monte Thabor, Boda em Caná,
A anunciar Vinho da cor
Coisas brutais. Que o sangue dá!

234
Na Cesareia Rei num momento:
Há outros amos, Entrou montado
Pois grava a areia Sobre um jumento
Os pés romanos. Desengonçado…
Lagos judeus
E fica aquém E uma canoa…
Do Santo Lenho: César ou Deus?
Jerusalém Ou rei sem coroa?
Que é um desenho. Quem nos dirige
Sua planta Na nossa queda
Crescer ao luar Tem a efígie
Cidade Santa Numa moeda;
Este lugar! Tudo resume
Calor na tarde A pagamentos…
Que o vento quebre? Mas Deus tem lume
O Judas arde Nos Mandamentos!
Tremendo em febre. Só um senhor
As oliveiras Podes servir:
Tão seculares Era melhor
São carpideiras Poder partir…
Se tu chorares. Morres ao ar
Nas trevas cobrem Vulto sagrado Como nasceste.
«Filho do Homem» Quem vai contar
Crucificado! Como cresceste?
Não há regresso Nasceste Deus
Já nesta altura… Entre animais
O suor espesso Estás nos museus
Cai na verdura. E nos vitrais!
Fica em relevo Que claridade
Gota perfeita Em vidro fosco
Já sonha o trevo Quando a verdade
Uma colheita! Nasce connosco!
Como convém:
Vai morrer só! Madrid, 15 de Março de 1988
Jerusalém e Jericó… Londres, 12 de Agosto de 1988

235
Duplo

Quem por mim escreve Corre nas veias


Pensa por mim? E não me cansa!
De mim se serve? Linha da vida
Mas com que fim? — E outras linhas —
Duplicidade Indefinida
Ou ilusão? Nestas mãos minhas.
Mas unidade Bicho-da-seda
No coração! Nos fios da mão:
Quem de mim viva Quem me conceda
Não me socorre, Compreensão.
Só me cativa Escrevo e da escrita
E em mim morre. Serei proscrito?
Se me desdigo Em mim quem grita
Logo se cala Dobra o meu grito!
Trago comigo Se me transponho
Quem por mim fala. Eu sou osmose
Viver a sós Baba de sonho
Que sonho vão, Metamorfose.
Eco da voz Desta maneira
Sem vibração… Está no que escrevo
Rimo ou não rimo Que trepadeira
Conforme entoo Feita de trevo
Não me domino Musgo rasante
E então voo. Em muro velho
Vive comigo Meu habitante
Familiar Como num espelho!
Fala contigo Que precipício
Em meu lugar. Onde me testo:
Paredes-meias Diz-me o início
Que vizinhança E eu escrevo o resto!

236
De mim se serve?
Serve-me a mim?
Quem por mim escreve
É escravo assim!

Madrid, 15 de Março de 1988


Avião Madrid-Paris, 16 de Março de 1988
Paris, 16-19 de Março de 1988
Londres, 11 de Agosto de 1988

237
Almocreve das Palavras

Meia verdade Desconhecidos. Histórias do mar


Pois mais não tenho. Como almocreve Em terra firme!
Estranho a cidade Pelos caminhos Maturidade?
Porque sou estranho. Nem sei quem escreve Sobra o engenho?
Romas e Parmas, Meus pergaminhos. Estranho a cidade
Mares de Sargaços, Trago o que trago. Porque sou estranho!
Não trago armas O que me deram?
Levanto os braços Depois naufrago Avião Madrid-Paris,
É Veranasi, No que disseram. 16 de Março de 1988;
Cidades Santas Vem o luar Paris, 16-19 de Março de 1988;
Tantos oásis Em quatro fases… Londres, 11 de Agosto de 1988
A páginas tantas… Vou ao lugar
Depois há Meca Onde me trazes.
Multidão junta Sombras de cobre
A boca seca Dum sol dourado
Tanta pergunta Se chego pobre
Mal sem remédios Parto abastado.
Neste meu mal Marco compasso,
Por entre prédios O andamento
Há vendaval. Passo e se passo
Fecham as asas Passei no vento.
As aves feridas Frio da manhã
Dentro das casas Sol ao meio-dia…
Desconhecidas. Sonhamos lã
Katmandu Na noite fria.
Ou seja Fez Cheira a avelã,
A alma a nu À melancia.
Mais uma vez. Numa sertã
Colher lilases Faz-se a sangria…
Apetecidos… Quem duvidar
No ar há gases Que me confirme:

238
Divisão das Espécies

Formiga em carreiro, Pois detesto a rede…


Pois que tem de ser… E temo as grilhetas
A fonte: o tinteiro Das asas pregadas
Onde vou beber… Dessas borboletas
Palavras distintas Bem coleccionadas.
Diferenciadas Quem fez o meu traço
Paletas de tintas Mas que desabono!
De cores carregadas. Sou folha com espaço
Peixe em liberdade Mas só no Outono!
Se nadar de bruços, Bicho do deserto
Louva-a-deus na tarde E duna distante
Voando aos soluços… D’areia coberto
Quem sabe se um verme, Por céu sufocante.
Um ralo ao luar Começo de ruga,
E talvez hiberne A cara engelhada…
Num urso polar. Talvez sanguessuga
Sou introvertido De água parada.
Por um reflexo Ave migradora
E tiro partido Voo em solidão
Só do outro sexo! Calada ou canora
Um monte-de-vénus Conforme a razão…
Que seara ao vento Quando o sol desponta,
Que barco de remos Manhã colorida:
Em mar sonolento. Sou bicho-de-conta
Já estarei ausente Desenrolo a vida!
Talvez amanhã… Não quero falcoeiro,
Hoje sou serpente Não pouso na mão.
E mordo a maçã! Quero o céu inteiro
Sou bicho da lenha Para sim ou não!
E morro de sede, Mas que espada nua
Não serei aranha De feitos e factos.

239
As fases da lua Mas tudo o que amo
Comandam-me os actos. Há quem o deteste.
Que versos que tanjo Só serei engano,
— Mas que notas vasas — Um erro de teste?
Eu seria um anjo Um bicho silvestre,
Se tivesse asas? Canto sem batuta,
Eu canto o que canto, Sou grilo campestre,
Basta um metro de ar. Paro se alguém escuta…
Assim, por enquanto Mas não espero louros
Posso respirar… Pois tudo me esquece,
Para que a Poesia Só suor nos poros
A mim não me deixe Se este tempo aquece…
Eu guelras teria Talvez a razão
E seria um peixe! De tudo o que há,
De modo nenhum A transposição
Em mim não esmorece Que a morte dará!
É sangue comum Seja como for,
Duma certa espécie! É este o meu fim…
De fraco músculo Seria pior
Onde nada encaixa, Se eu não fosse assim…
Serei um molusco
Feito de borracha. Paris, 17 de Março de 1988;
Ser incompleto, Londres, 11 de Agosto de 1988
Fracção ou quebrado,
Quem sabe, um insecto,
Um invertebrado…
Minha lei decreta
O ter coração.
Que espécie secreta
Quase em extinção!
Eu ou dou a cara
Ou sou refractário.
Serei ave rara
No nosso aviário?

240
Navegação Nocturna

O mastro da gata, Meias melancias…


O mastro maior. O mar de quem gosta
Quem ganha a regata? Faz vela e faz mastro.
Quem menos demore! Quero dar à costa
Coxins e falcaças, Como fosse lastro.
Badernas, botões. A noite é um barco.
As velas são escassas O sonho é o leme.
Se sopram tufões. Se no sono embarco
Mastro da mezena… Há por mim quem reme…
Tudo em ponto morto Quem ganha a regata?
Quando há quarentena Quem menos demore!
Adiando o porto. O mastro da gata,
Gatas e adriças, A Ursa Menor!
Arpéus e fateixas,
Ferros, dobradiças, Lisboa, 30 de Abril de 1988
Os nãos e as deixas…
As vergas e velas,
O vaivém do vento,
As ilhas de estrelas
Que há no Firmamento.
O estais do galope
E outros estais.
Rasgam envelope
Notícias fatais…
Os nós e as espias,
Brisa e sobressalto
E as acalmias
Cercando o mar alto.
Dormentes, escotilhas,
Os vaus, as vigias
E as sobrequilhas

241
London Sight-Seeing

Vi a estátua dum dragão Com o tempo corroído


E, de pedra, vi golfinhos Pelas chuvas, pelos ventos,
E, com a cor do estragão, Fica tudo resumido
Vi outros monstros marinhos. Às pedras dos monumentos.

Com raízes ao contrário Londres, 6 de Maio de 1988


Vi plantas aquosas,
No fundo deste aquário
De serpentes venenosas.

Vi reis feitos de basalto


E rainhas de granito.
Vi pegadas no asfalto?
Como o medo faz o mito!

Vi aves embalsamadas
De olhos embaciados
E estátuas decapitadas
De príncipes já exilados.

Vi o rio da despedida
Onde os lenços são bandeiras,
Ouvi a voz sem medida
Do choro das carpideiras.

Tomei o peso ao império


Que perdeu o seu suporte
Quando tomou um ar sério
O pobre bobo da corte!

242
Perdido por Cem

Conto até cem, amor. Não chego ao fim…


Os Romanos punham letras a contar…
Os números são um rio dentro de mim
Se te procuro, amor, sem te encontrar.

Desejei-te, meu amor, mais de cem vezes


Cem vezes te lembrei, ao acordar,
Como pode o ano ter só doze meses
Se mais de cem eu deixo por contar?!

Cem anos passam breves, tantas vezes.


Na História são os séculos a rodar.
Serpentes nos olhares cartagineses,
Elefantes que se deixaram esmagar.

Conto até cem, amor, sem respirar,


Voltando à superfície em cada vez.
O zero sempre deixo em meu lugar
Nas praias em que estou e que não vês.

Contarei até cem e volto ao zero


— É bom à nossa casa regressar! —
Filho pródigo sou! Assim me quero!
Embora sem ninguém p’ra me esperar!

Lisboa, 11 de Junho de 1988

243
Ursa Maior

Serei somente e sempre como eu sou


E não aquilo que outros de mim querem.
Sou búzio: choro o mar que em mim secou
Nos cedros canto o vento que me derem.

Nas estrelas sou distância, estando aqui.


Sou a voz do silêncio que discursa.
Que caminhos sem andar já percorri,
Eu, pobre peregrino da Grande Ursa…

Caminhos do Diabo ou do Céu?


Sou ilha só com sonhos em redor!
Desvendo a noite toda, feita breu,
Mas os nomes das estrelas sei de cor!

Os sonhos que de dia me alimentam


— Que farinha de pão mal amassado —:
A força da razão em mim exp’rimentam
Talvez por me encontrar bem acordado!

Sou dono de mim próprio e do destino.


Os sonhos, sendo um bem, são o pior…
Dom Quixote que vê no Sol a pino
Tudo o que a noite tem em seu redor!

Londres, 30 de Julho de 1988

244
Estrada de Damasco

Estava Cristo em pedra na parede,


Mas parecia que ainda respirava.
Dava dó, dava suor e dava sede
O Cristo que ali mesmo agonizava.

Que fizeram, Senhor, tuas ovelhas


Que em vez de ser rebanho são combate?
O Presépio, em ruínas, nem tem telhas
E o asno e o boi só servem para abate.

Teu sangue, de tão espesso, até lacra


A pedra como fosse flanela…
Será a tua voz música sacra
Saída, sei lá donde, na capela?

Jesus: Jerusalém o que nos esconde?


Judeia: tem caminhos sinuosos…
Procuro tua voz: ninguém responde
E deixas-me os meus dias duvidosos.

Porque adiamos nós o nosso encontro?


Será por ser ateu e em Ti não creia?
Será por eu ainda não estar pronto
P’ro vinho e para o pão da tua ceia?

O Dilúvio caberia num só frasco,


Tal é a sede enorme desta hora!
Cada um tem uma Estrada de Damasco
Onde Cristo o encontra ou ignora!

Londres, 31 de Julho de 1988

245
Veneno

Se nós morremos à míngua


Duma carícia qualquer,
O amor em qualquer língua
Traz um nome de mulher.

Já traz noite prometida


Em alcova de romance,
Já traz a Lua esbatida
Bem fora do nosso alcance.

É porta que fica aberta


À espera da nossa mão,
Quando somos pela certa
Qualquer sombra de ladrão.

O amor também é roubo


Quando há um travesseiro,
Vestimos a pele do lobo
E fazemos de cordeiro!

Se nós morremos à míngua


Dum olhar ou dum aceno:
Quanta vez a nossa língua
Muda o gosto do veneno.

Londres, 9 de Agosto de 1988

246
Dizer por Dizer

Dizes: desdizes
Só por dizer…
Se contradizes
Crescem raízes
Sem florescer…

Cores e matizes
Por preencher:
Os aprendizes
Gastam vernizes
Para aprender…

Tu não avises
Quem vai morrer,
Tudo o que pises
N’almofarizes
Não vai crescer…

Não hostilizes
Mesmo sem querer:
Só há juízes
No que tu dizes
Tu irás ver!

Contabilizes
O teu viver
E não há crises
Pois que tu vives
Teu «Deve-Haver»!

Londres, 13 de Agosto de 1988

247
A Última Caçada

A última bala A destruição Vamos liquidar


Já está na culatra, É o nosso lema Os ecologistas,
Já se baixa a fala… Venha a poluição A terra queimar
A última bala O mundo é prisão, E a água secar,
Tem de ser de prata. É ovo sem gema! Somos alquimistas!

Já ajoelhados Seca a floresta, Que estranha cultura


E de arma à cara, Em pleno abate Funde na retorta
Olhos tão vidrados A morte é a festa Que cor de tintura
E obcecados Tão pouco que resta Tem nossa pintura:
Só de quem dispara! Neste xeque-mate. Natureza-morta.

Minha geração Os nossos inícios É reformular


Renega Diana: São acidentados: Noção de Beleza,
Caçar sem razão, Só há desperdícios Depois afogar
Matar sem perdão Nos nossos indícios Nos poços de ar
Demente e profana. Já meio apagados. Toda a natureza!

Na morte se fecha É caçar baleias, Depois é queimada,


Como na coutada O urso polar, Arda o arvoredo,
Dispara a flecha Com paredes-meias Que não fique nada
Mas a caça deixa Serão as sereias Terra calcinada
Toda abandonada. Das histórias do mar… E quanto mais cedo!

Matar por matar Águia pirenaica… Ó rios poluídos:


Apenas por gosto… Também os castores… O lixo vos tape!
E sem plantar Com cultura arcaica Nós somos ruídos
Só saber queimar Tem força voltaica Só temos sentidos
Deixar fogo posto! Dos seus geradores! Nos gases dum escape!

248
Cheiro a alcatrão Relevo das vulvas Esta cega-rega
Inda fumegante, Mordente em elipse… No fundo dum poço
A nossa ração Estrangulam as luvas É a cabra-cega:
A alimentação Das ácidas chuvas: A lama já chega
Mais repugnante! É o Apocalipse! Até ao pescoço!

As nossas narinas, Vai ser a punhal, É tenor? Contralto?


Cofre de segredo, A ponta de lança Será orfeão?
São limas de quinas O ponto final Ardendo o asfalto
Onde as cocaínas É bala mortal — Que já foi basalto —
Se moem sem medo. Fiel da balança! Já não há mais chão…

O diesel dos expressos Vai ser a baioneta Vamos ocultar,


Que óleos pesados! Nossa arma branca Tu jamais esqueces,
Venenos-confessos Casa obsoleta, O sol e o luar
Viscosos e espessos A parede é preta Vamos exterminar
Por nós respirados! A porta não tranca. As últimas espécies!

Lixo nuclear Batalhas, refregas: Não há prisioneiros!


Levado em marmitas, Por mais poluição… Feridos? À coronhada!
Almoço e jantar Mas onde te entregas Somos bons negreiros
Nada vai sobrar É nas marés negras Formiga em carreiros
Para os parasitas! Banho de imersão. Faz caça danada!

Banhos de vapor, O caixão é fórmica As mães são bastardas,


Enxofre à mistura Dará mais nas vistas Os filhos perversos
Esgoto-corredor E a pilha atómica Cantem as ‘spingardas
Andando em redor Será filarmónica E enviem guardas
Da nossa cintura! Na mão dos artistas. A quem faça versos!

249
Mas que planeta
Da grande ameaça
E há quem já meta
O bebé-proveta
Dentro da vidraça!

O seu enxoval
É feito de vidro.
Bebé de cristal:
Se tu caíres mal
Ficarás partido!

Dobrar o joelho…
O gatilho lento…
Estilhaçar o espelho
Onde um escaravelho
Rebola um excremento!

Londres, 15 de Agosto de 1988

250
Lente de Aumentar

Só de noite o mundo é verdadeiro


No perfume das tílias e limões.
Nem o escravo se sente prisioneiro
Ao ter por tecto só constelações…

O céu é toda a força que nos resta


Nesta coutada de homens dominados:
Não passa duma grande floresta
Com Ursas e Centauros desenhados…

É uma Virgem, mais os pratos da Balança


E o Caçador sem lança e sem ter laço,
Enquanto outra galáxia já avança
— Saber-se lá porquê — por todo o Espaço…

Que deusas e pastores andam no céu…


Pastagens infinitas dão caçadas!
Balança da justiça? Mas sem réu
As grades estão há muito destroçadas.

Aquário talvez seja isto tudo,


As paredes de vidro são prisões!
E se houver Deus, meu Deus, ficará mudo
Como Cristo ao morrer entre ladrões!

Lisboa, 10 de Dezembro de 1988

251
Tecelões

Nossos nervos são um feixe, Nascemos nus, mas vestimos


Novelo de cordoaria… O enxoval das marés:
Nós temos olhos de peixe Tecelões d’algas e limos
Perfume da maresia… No berço d’algum convés!

Epiderme toda em escamas Lisboa, 11 de Dezembro de 1988


Sem que a pele se nos retraia
E fazemos nossas camas
Na areia de qualquer praia…

Um rochedo é uma almofada


Feita no linho da espuma,
O sono não dá por nada
Os limos são sumaúma!

O destino por fronteira


As unhas feitas anzol.
Na mesa de cabeceira
Temos a luz dum farol.

Velha serpente do mar


Ao nosso corpo se cola
E há sereias a cantar
Nos seixos que o mar enrola…

Arribas e precipícios
E marés em remoínhos.
Pescadores de sete ofícios
De espadartes e golfinhos…

252
Soldadinhos de Chumbo

Será ainda por ti que procuramos


Quando a morte um dia nos levar…
Vivemos. Se vivemos, perguntamos:
Quem nos pôs aqui, neste lugar?

Mas chegámos. As estrelas já cá estavam,


Talvez sem os nossos problemas,
Indiferentes, assim o céu queimavam
Sem saber que criavam teoremas.

Que palavras nos são assim veladas


À fala que a tudo nos responda?
Mais bocas haverá, mas estão fechadas,
Talvez a solução aí se esconda…

Serás ainda Tu que desejamos


Ter bem a nosso lado, vulnerável,
Perguntar-Te e saber se respiramos
O ar que a outros seja irrespirável.

Mas haverá ainda outra ramagem?


Se houver, que vento há a estremecê-la?
Se apenas houver chumbo na paisagem
Derrete no calor dalguma estrela!

Soldadinhos de chumbo em regimento


Que na concha da mão dum deus sereno,
Em constante fusão no firmamento
Moldou um batalhão que é tão pequeno!

Que sargento-ajudante nos conduz?


Que chaves há na mão do despenseiro?

253
Buracos negros há que comem luz
Tão negra como o fundo dos tinteiros!

Tanta pergunta há e não respondes!


Decerto não será por timidez…
Se tens a solução no que nos escondes
É golpe baixo em jogo de xadrez!

A falar com o medo: nós oramos…


Que bichos que nós somos, sendo gente!
É ainda por Ti que perguntamos
Se um dia Te disseres Inexistente!

Que sais em suspensão, que carbonatos,


Que abelhas, que cortiços doutro mel!
O Homem é a soma dos hidratos,
Os poros são os favos nesta pele!

Zangão, será o Deus que nos comanda,


Dez dedos, outros tantos mandamentos?
A Fé será a vela larga e panda,
Soprada, sem saber, mas por que ventos!

Se o Espaço fica ao fundo dalgum beco,


Chegar ao seu limite: decepção!
É voz! É tanta a voz e nenhum eco!
E se acaso a voz de Deus for o trovão?!

Será por Ti ainda que chamámos


Mesmo se fores mentira e sem razão.
Tu estavas já aqui quando chegámos
No medo que nos gela o coração.

Paris, 8 de Fevereiro de 1989


Londres, 9 de Julho de 1989

254
Relógio de Água

O mel das abelhas Relógio de areia…


E os escaravelhos… A clepsidra…
As casas são velhas Silvos de sereia
Se há telhados velhos! E os olhos da Hidra…

Olhar de aquário As fases da Lua…


No vidro do mar, O dobrar do sino…
Barro refractário E a espada nua
Arde sem estalar. Do nosso destino!

A esponja de fel Se Deus for Além


A boca nos abre, Em quem acredito?
Torre de Babel Se conto até cem
De gosto a vinagre. Que tempo debito?

Há um contador Tudo é tempo ou nada,


Que não qu’remos ver Que dias medonhos
Nesse mostrador A tua almofada
Que é um malmequer… Não sonha os meus sonhos!

Na raiz distante O ferreiro, a frágua,


Dalgum girassol: Os olhos enxutos
Relógio gigante O relógio d’água
Lembrando um farol. Afoga os minutos!

Relógios, raízes, O Tempo é ração


No Tempo a crescer… No nosso deserto
Há outros países Quando o coração
Ao anoitecer? É relógio aberto.

Lisboa, 9 de Março de 1989

255
Caracteres Ilegíveis

Decorreu um quase nada O T será o telheiro


Entre a colheita e o verde… O abrigo do portal?
O Z é curva da estrada Será o P o pinheiro
Onde o silêncio se perde… Decepado em vendaval?

Será o S serpente? Lembrará o B os seios


O zero seria o ovo? E colinas entre as casas?
E o V é a vertente Nós somos pombos-correios
De vale aberto de novo. A quem cortaram as asas!

O F a forca nos traz Se falas: noite rasgada,


Quando as tintas são mais pretas, É o campo que me lavras!
Por ordem de Satanás Abecedário é pegada
É o carrasco das letras! No deserto das palavras.

Corpo suspenso na corda: Paris, 4 de Abril de 1989


Letra I que nisto entre.
(O V também me recorda
O jardim que há no teu ventre…)

Na pedra, a letra perdura


O som do dobre do sino.
É o C a ferradura
Desse corcel do Destino.

Entre o gelo e a fogueira


Corre a vida, quem diria?
O H faz de barreira
Para a nossa correria.

256
Jantar de Família

Havia amêndoas torradas Cabiam todos em volta:


E as passas de Corinto, Recordação fotográfica.
As faces afogueadas Havia risos à solta
Por sombras do vinho tinto… E o tio que vinha d’África.

Como cheirava a canela A prenda do Bolo-rei


A tangerina e baunilha! E que acabava em batalha…
E nos vidros da janela (A fava da mesma lei
A fumo de cigarrilha… Mas reverso da medalha…)

Aguardente à sobremesa É lava o queijo da serra…


— Antes: sopa, peixe, carne — Sussurra-se um suicídio…
E uma gravura francesa Lembranças da Grande Guerra
Fala em Batalha do Marne. E também do Regicídio…

Havia a velha criada As claras em castelo


— Mais nova do que se pensa — Noite branca e submersa…
E roubos de marmelada: Dois anéis do teu cabelo
«O tesouro da despensa»… Mais dois dedos de conversa.

Leite de creme queimado, No dirás e não dirás


Por desenho em cicatriz, Gastam-se noites inteiras
Como fosse um condenado E dois sulcos de lilás
Marcado a flor-de-lis No outro dia: as olheiras…

Os gestos familiares Havia o tio predilecto


No tilintar dos talheres. E a prima desejada
Os primos já militares — Que, por destino secreto
As primas quase mulheres… Já era recém-casada! —

257
Família: paredes-meias,
Meias palavras na sala…
O mesmo sangue nas veias
As mesmas histórias na fala.

Entre o que era e não era


O sonho fundia em brasa
Nos umbrais da Primavera
Dos portais da minha casa!

O lugar do meu avô


É um trono de vaivém
E nele, se hoje estou,
Não o pedi a ninguém!

Sabe a leite condensado


A saudade por requinte!
Além de haver o Passado,
Havia o dia seguinte…

Lisboa, 23 de Maio de 1989

258
Peregrino Acidental

Eu hei-de ir à Terra Santa Irei à Faixa de Gaza


E ao Sepulcro Sagrado: Que é mapa de cartolina,
Catedral, dourada ou anta Pois não choro a minha casa
Cor de sangue carregado! Em algures na Palestina!

Rezar aos santos vulgares Vou de pedras na algibeira:


— Que os há por todo o lado! — Armas brancas de defesa,
Hei-de ir aos Santos Lugares O Destino por fronteira
E aos lugares de pecado. E a Fé por: incerteza.

Ir ao Poço de Jacob Ver José d’Arimateia


E ver se a Samaritana Num vulto doutro qualquer.
Mata a sede a quem vem só Ter perfumes da Judeia
Ou se a toda a caravana… Por Piedosa Mulher…

Tudo sem abstinência, Lázaro ressuscitado,


Tudo só pela Razão. De visão adormecida,
Ter Fé pela inteligência Ainda à morte ligado
E não pelo coração! Como a mãe nos liga à vida…

Sinal da cruz, sem um gesto, Ir à Gruta dos Pastores,


Que tudo seja secreto. Subir também ao Calvário
O hotel? O mais modesto (Mas à força de motores
Cinco estrelas por decreto! Dalgum carro utilitário…)

Ser cristão pelo Baptismo? Sem rumor de profecia:


Não chega o gosto do sal! Ao mais sagrado dos lagos.
Só há Fé por magnetismo, Ir à Casa de Maria
Só por morte natural! Aos caminhos dos Reis Magos.

259
A Vaca e Touro Sagrado… Hei-de ir à Terra Sagrada
Não verei do Norte a rena Onde areia é ouro fino.
Mas o corpo apedrejado Sentir a cruz carregada
De Maria Madalena… Sem maldizer meu destino!

Se há flores, também há cactos Ver Cristo aonde Ele está:


Numa santa convivência. Entre um beijo e um algoz…
Pressentir: Pôncio Pilatos (Quem nos diz se viverá
Como fosse abstinência… Apenas dentro de nós?)

Ir aos pomos da discórdia Com Jesus Crucificado


Bem na Terra Prometida: Em fundo nos meus poemas.
Ver a pomba da concórdia Irmão mais velho e amado
Numa oliveira abatida! Mas que morreu sem algemas!

Aos Muros de Jericó… Não aos dias de Jejum!


Restos da Última Ceia… Ao corpo flagelado!
Sentir as pedras, o pó Eu quero Deus e se houver um
Das estradas da Galileia. É Cristo ressuscitado!

Hei-de ir ver Jerusalém, Cada qual esconda o seu acto


Sentir correr o Jordão. De crer em Deus ou em nada:
E se Deus for mais além Seja a Fé anonimato
Quem me dará o perdão? Que nunca seja Cruzada!

Inquisição e Fogueira Londres, 14 e 15 de Julho de 1989


Nunca serviram de exemplo,
Foram só uma maneira
D’haver Vendilhões no Templo!

Silêncio, intolerância:
Receitas de obcecado.
Quem semeia ignorância
Colhe flores de pecado!

260
Marasmo

Sou sensação de mergulho Fico na tarde parada


— Sem haver profundidade — Tal sombra que se não olha…
Corpo feito pedregulho Sendo a água desejada,
Cativo da Gravidade. Sou a chuva que não molha…

Nas profundezas marinhas Lisboa, 23 de Agosto de 1989


Os olhos ficam abertos:
Vejo searas e vinhas
De vinhos não descobertos.

Sonho resina de Chipre


Nos troncos, sangue magenta,
Nado nas águas do Tibre
De cor de loba barrenta.

As gaivotas fazem ninhos


Mergulhando em precisão,
Que pesadelos marinhos
Povoam o coração!

Que sensação de vertigem


Ou de ar mal respirado,
Quando meus olhos atingem
Um cume semi-escalado.

Falcão subalimentado,
Andando ao sabor do vento,
Num céu sempre recusado
Ao que seja movimento.

261
Os Carrascos também Choram

Não quando as rosas demoram Sonhas gestos de carinho


Ou por não se ouvir o mar: Ao apertar o baraço.
Os carrascos também choram Há uma pedra no caminho
Todos temos de chorar! Sempre para o teu cansaço.

Se cantam galos n’aurora Tantos medos nos devoram


É só porque tem que ser Gente subalimentada!
E se o dia chega à hora Os carrascos por quem choram?
Nem sempre é amanhecer… Talvez por um quase-nada!

Levas garrotes nos braços Lisboa, 23 de Setembro de 1989


Quando segues de mãos postas.
Tu desenhas um abraço
Se apunhalas pelas costas…

É sempre o «fora ou não fora»,


«Teria de acontecer»…
Até a Nossa Senhora
Viu o seu Filho a morrer…

Qualquer onda é tempestade,


Gota d’orvalho é dilúvio,
Grão de areia majestade
Se lhe chamarem Vesúvio…

Tudo muda tarde ou cedo,


Qualquer deserto é alfombra,
O carrasco até tem medo
De pisar a própria sombra…

262
Ciclo Infernal
Outono-Inverno de 1989
Fundo da Garrafa
ou
Robinson e Sexta-Feira

Jerusalém ou deserto: Latitude a sudoeste


O embaraço da escolha? E qualquer meridiano
Ou livro semiaberto E a pele que um homem veste
Sem se saber em que folha! Tem o fim de qualquer pano…

Promessas de cinco cravos Há o silêncio nocturno,


Sonhos de ressurreição… A explosão da manhã,
Romagem de desagravos: Mais os anéis de Saturno
O recurso à confissão. Em volta duma avelã…

Há uma ilha deserta Viver à nossa maneira


No horizonte sumida. De cumprir nossas missões:
Janela semi-aberta Dar o choro à carpideira,
Para a terra prometida… Gargalhadas aos histriões!

Foram os sonhos d’infância, Londres, 18 de Outubro de 1989


As praias desabitadas
Que devolvem a distância
Das noites tão consteladas…

Bem no fundo da garrafa


A ilha sem geografia,
Em letra corrida e safa
D’infantil caligrafia.

Robinson é o que é:
Solidão por companheira,
Mas por vezes a maré
Traz o nosso Sexta-Feira.

265
O Choro e o Riso

Debaixo das tílias, debaixo dos cedros,


Debaixo da vida, debaixo das ervas,
Debaixo do céu — de que somos servos,
Como dele são as estrelas as servas… —

Desdobram a vida as estátuas jacentes


Nos gestos esboçados de quem já partiu,
Os choros e risos são afluentes
Em margens opostas deste mesmo rio.

Os cantos das aves são as homilías,


O Templo de Deus é nas nossas casas.
Debaixo dos cedros, debaixo das tílias,
Raízes aéreas são as nossas asas!

Debaixo das folhas a sombra descansa,


É sulco na terra? Cicatriz na cara?
Relógio de sol: o meio-dia avança
Onde alastra a sombra o tempo não pára…

Os cubos de sal mais os poliedros,


Iões, electrões, são tribos, famílias…
O choro alimenta a raiz dos cedros
Dos que vão saindo debaixo das tílias…

Londres, 20 de Outubro de 1989

266
Guarda da Vinha

Todos os sons são diferentes Pé firme: espero quem passa


A quem os traz bem escutados: Atrás dum muro ou dum buxo,
O rastejar das serpentes Para mim é tudo caça…
Não me enche de cuidados… Queimo o último cartucho!

Meio corpo dentro da cova Aves feridas, sangue, penas: —


Olhando a noite distante, Se há alguém a disparar.
Eu prefiro a Lua Nova Quem faz as leis e os lemas
Ou o Quarto Minguante… Também gosta de caçar.

Só não quero a Lua Cheia Até o sangue me pára


Que as raízes das videiras Eu sou estátua no momento:
Ao espreguiçarem na areia Quando meto a arma à cara
Parecem mulheres inteiras… À espera dum movimento.

Também o Quarto-Crescente Alvejo bem, bem no centro,


Ao fazer as luas curvas Se não matar, talvez fira…
Faz-me pensar qu’anda gente Como a vida cabe dentro
Em volta das minhas uvas! De qualquer ponto de mira!

Carrego balas de sal Caça grossa ou indefesa


— Não fosse eu guarda da vinha! — É tudo o mesmo retrato,
Seja vulto ou animal É legítima defesa
Mato tudo o que caminha… Que me cabe por contrato!

Mato tudo sem motivo Mato tudo o que estremece,


Só me basta disparar, Nem a noite me redime,
Como caçador furtivo Não é a forma da Espécie
Que mata só por matar. Que dá outro nome ao crime!

Londres, 31 de Outubro de 1989

267
Cela da Morte

A morte vinda na dança E a última vontade…


Não deixa ser o que é. O cigarro derradeiro…
Que banquete de vingança Nunca houve tanta bondade
Há nos véus de Salomé… No olhar do carcereiro…

Mas seja lá o que seja Tudo o que é bom nos acena


Toda a morte é natural. Em medonho ritual!
— É cabeça na bandeja Só por isto vale a pena
Por um capricho real… — Ter a Pena Capital!

Os tribunais e os foros Londres, 8 de Novembro de 1989


São tudo jogo da Bolsa:
Rebenta a pele pelos poros
Tentar sorte sem ter força!

Quem está na Cela da Morte


Não tem olhos estremunhados
E não há fala que corte
O silêncio aos condenados.

Chega o dia da matança:


Nem sai veneno dos frascos
Pois que hoje a morte avança
Pelos dedos dos carrascos…

268
Escorpião

Fecham-se os olhos de sono, Nasce Cristo sem Outono,


Às vezes por sugestão. Morre Jesus sem Verão:
Folha a folha despe Outono C’roas d’espinhos sem trono
Seu fato fim-de-estação. São os degraus da Paixão.

Pobres ramos, abandono, Londres, 8 de Novembro de 1989


Os troncos são o que são…
Não há frutos no Outono,
Sementes que os tempos dão…

Para o ano outro Outono


P’ra quem sobrar dos que irão…
Todo o cão procura o dono
Farejando a solidão.

O gigante e o gnomo
Mesma altura medirão
Se em quatro tábuas d’Outono
Lhes talharem o caixão…

As raízes no Outono
Têm calor do Verão.
Mandamentos? Um ao nono
— O décimo é conclusão —.

Às vezes não é do sono


Os sonhos que aos olhos dão.
Folha a folha, despe Outono
Seu fato fim-de-estação…

269
Oásis

O lençol é o luar desprevenido,


Semicaído aos pés da nossa cama.
Meus olhos são apenas teu vestido,
Teu corpo é o deserto que me chama.

Oásis! No teu ventre descoberto


Na sede que as pegadas dão ao rasto,
Mas pode o coração bater-me certo
Quando do trilho certo eu me afasto!

O norte dos teus olhos não me perde:


O rumo vem em tudo o que segredas.
O deserto tem colinas e tem verde
E nascem-me flores no meio das pedras!

Londres, 17 de Novembro de 1989

270
Passos Perdidos

Quero ir onde os rios não conseguirem


E às praias que a maré nunca alcançar,
Às estrelas que os vindouros descobrirem
No céu que muda tudo de lugar.

Quero as rosas que nunca florirem,


As chuvas que ameaçam não chegar
Nas asas das aves que se ferirem
Por dedos que não sabem disparar.

O galope dos cavalos indomáveis


Nos prados que as manhãs enchem de cheiros,
Os gestos de loucura incontroláveis
Que o vento dá aos ramos dos pinheiros!

Os lírios que de branco não murcharem


Serão orvalho, anéis, nos teus cabelos,
Os lagos que ao sol por fim secarem
Reflectem os meus sonhos de castelos.

Quero ir pelos caminhos que me derem


Um som melhor aos passos, tão perdidos,
Se ao eco dos meus passos responderem
As dúvidas que trago nos sentidos.

Porém, se por acaso me mentirem


Que preço do silêncio vou pagar!
Quero ir onde os rios não conseguirem
E às praias que a maré nunca alcançar.

271
Além de querer o céu, Ursa Maior,
As luas que há em Marte e em Urano:
Também a gota de água e de suor
Que no deserto é sempre um oceano…

Londres, 17 de Novembro de 1989

272
Missa do Galo

Aceita sempre tudo o que for dado


— É dado adquirido da razão… —
As rosas que servirem ao noivado
Também à campa rasa servirão…

Por menos foi Jesus crucificado


— Um cravo, bem cravado, em cada mão —
Uns dizem-No depois ressuscitado,
Os outros, a sorrir, dizem que não…

Porém, sorrir não foi nem é pecado:


Assiste a cada qual a solução…
É morto Cristo em cruz? Ou libertado?
Natal é Sexta-Feira de Paixão…

Londres, 21 de Novembro de 1989

273
Fontes Salgadas

Caem dentes das gengivas… Recorro a Deus e aos Santos,


O cabelo da cabeça… Alguém me irá responder?
Mas vou sonhando as ogivas Sou como rato sem cantos
Onde Cristo me apareça. De casa p’ra me esconder…

Já tenho rugas na cara, Sou peixe dentro da rede


Já tive melhor ouvido, De traineiras afundadas.
Mas ao vento na seara Sou como o escravo da sede
Dou hoje melhor sentido… Que só tem fontes salgadas.

Apurei o paladar, Londres, 24 de Novembro de 1989


Olho melhor os pedintes,
Sei de cor a cor do mar,
Melhorei os meus requintes.

Ando mais ao deus-dará,


Mas sinto-me acompanhado.
Alguém por mim contará
O que me traz confortado?

Estou na idade em que Deus


Vai exercendo os direitos…
Sei de cor a cor dos céus
De os olhar dos parapeitos.

A três passos do abismo?


Cortando a linha da meta?
Eu sinto o sal do Baptismo
Mas não sei por que profeta…

274
Miliciano

Oficial e faxina! Primeiro degrau: o soldado,


Tudo fizeram de mim, Pisado por toda a gente
Em noite tinta-da-china — O recruta em «arvorado»
Papel de lustro carmim… Já se julgava Tenente! —

Como em alto dum zimbório Pântano: caldo do rancho


Mas sem a cidade aos pés Onde a comida cabia.
Fui militar provisório É Dom Quixote e o Sancho
Mas de mochila em viés… Comandando a Companhia.

Regimento em regimento Dormi na Casa da Guarda,


Levei a guia de marcha. Humidade pelo chão.
Sapatos de polimento: A minha cama era a farda
As botas cheias de graxa. E o corpo era o colchão…

Seguindo um velho conselho É do tempo das cavernas


— Para evitar o percalço — Esse sono primitivo
Fiz do calçado o meu espelho De quem dorme nas casernas
Em tropa de pé descalço. Por não ter outro motivo.

Aos toques do clarim: Porta d’Armas: o começo


O primeiro na parada… Da minha peregrinação…
Alguém chamava por mim Tanto há que desconheço
Do «Silêncio» à «Alvorada»! Do que foi o batalhão…

Noites e noites na ronda Há alguém que em mim condena


Sob uma Lua amarela. O que nunca desertou?
Haverá voz que responda Entre o não vale, vale a pena
Aos gritos da sentinela? O vale que em mim se cavou!

Era o Sargento-Ajudante Londres, 25 de Novembro de 1989


O meu degrau anterior
Na escadaria rolante
De Inferior a Superior…

275
Banho Turco

Tortura de Tântalo Sangue em bandarilha


O calor previne… E touros do Lorca.
É névoa de pântano Um morto e um ferido
O ar da cabine… Já em comunhão
Noite e nevoeiro E mais Santo Isidro
E mil pensamentos; De estoque na mão…
Goteja em chuveiro A ninguém: asilo
Mas só por momentos. Ou portas abertas!
Tudo em movimento Pobre São Camilo:
Cavalos-vapor, Igrejas desertas…
Moinhos de vento
Moendo o suor… Desce a neblina
Naufrágio sem bóia Sobre o corpo inerte,
Longe a salvação: Mineiros em mina
A Espanha de Goya De grisu que verte?
Vem na serração. É um carrossel
Vapor a rodar…
Penso em São Camilo Vejo a tua pele
E em Santo Isidro Sem ela aqui estar.
— E margens do Nilo Como caso assente
Na porta de vidro. — Há muito estudado:
No denso vapor O teu corpo ausente
Derrete a vontade Vem para o meu lado.
Dentro do calor A névoa adivinha
Cheio d’humidade. Outra transparência:
Que Babel tamanha É cor da farinha
De todo o sotaque Sem ter consistência.
A Guerra de Espanha Goteja a vidraça,
Com mouros a saque. Escorrem paredes,
O Queipo em Sevilha É a vista baça
Bretanos: Maiorca. De peixes nas redes.

276
É clepsidra É névoa dos portos
Gotas de suor Que só dão degredos,
Os olhos da Hidra Seis milhões de mortos
Olhando em redor: Contados pelos dedos.
Remexe-se o tempo Nave angelicana
Como em caldeirão Com ninhos de pombas
De bruxo, que ao vento E raça ariana
Amassasse o pão… Debaixo das bombas!
Escada sem degraus Frases calcinadas
Plano inclinado, Quem as desenhou?
São mais de cem graus Palavras queimadas
Não há ar queimado. D’alguém que falou!
É calor silvestre, É luz que já foi
Silêncio dos lagos, — De estrela, decerto —:
Pintura rupestre O olho-de-boi
De traços tão vagos. Aceso no tecto!

Noite e nevoeiro Londres, 27 de Novembro de 1989


P’ra Raça danada,
Tendo por telheiro
Uma cruz gamada!
Filhos d’Israel
Mas sem Mar Vermelho
Aberto em túnel
Por Judeu mais velho!
Corpos ilusórios
Marcados a giz,
Fornos crematórios
De monstros nazis.

Papel vegetal
E romanas togas,
Noite de Cristal:
Ardem sinagogas!

277
Século Dezanove

Eu seria do Mindelo Fim ao tempo d’imigrado


Estaria dentro do Cerco, Mas vida por um cabelo…
A sede por pesadelo, Todo o sonho é conquistado
Trincheira: monte de esterco! Em areais de Mindelo!

Era D. Pedro o monarca Londres, 1 de Dezembro de 1989


Pelo qual me bateria.
Arcabuz fora da arca
E artes de montaria…

O medo antes da carga


— Como não fosse verdade —
Fosse a vida mais amarga
Mas sobrasse a liberdade!

Caçador fora da linha


Sem esperar qu’a ordem parta:
A dar vivas à Rainha
Que tinha jurado a Carta!

Como coração que sangra


Pela veia mais aberta:
Eu teria vindo d’Angra
Ao relento na coberta…

Mas não terminava o dia,


Pois há Maria da Fonte…
Às vezes a tirania
Não acaba em Évoramonte…

278
Missa Cantada

Depois da missa cantada É como a noite cerrada:


Só o silêncio responde… Aos ralos ninguém responde…
Qual a chave da charada Depois da missa escutada
Onde a Fé tão bem se esconde? Vejo Deus, mas não sei onde.

Precipícios e vielas Londres, 10 de Dezembro de 1989


E também ruas fechadas,
Mas no céu respondem estrelas
Às janelas escancaradas!

Dentro de nós, no entanto,


Há tanto que se esconder:
Um Demónio que foi Santo
De tanto se arrepender…

Crer em Deus só por receio


Pode ser uma atitude:
Diabo cortado ao meio
Talvez a nossa virtude!

Cada um, sua metade,


Assistindo por direito
À troca d’identidade
Mais ao gosto do seu jeito…

Como sinal de nascença


Cada um bem definido:
Fosse a Fé a recompensa
Como um bem, bem conseguido…

279
Estrela de Belém

De macadame ou de terra batida,


Cada um tem a estrada à sua frente.
Considerando o ponto de partida:
A Estrela de Natal é Ocidente!

A noite da procura é sempre fria,


A luz da Lua é Sol visto ao contrário…
Belém, porém, é outra geografia
Atalhos ao Presépio dão Calvário…

As estrelas são mensagens desiguais,


Palavras, dialecto desolado.
Não interessam os pontos cardeais
Se dizem que Deus nasce nalgum lado.

Londres, 13 de Dezembro de 1989

280
Erosão

Os braços são iguais. As mesmas pernas.


Os lábios são os mesmos, mas mais brancos.
Ó noite toda feita de lanternas
De abismos que cavei nos teus flancos.

Teus dentes batem bem contra os meus dentes,


As línguas: duas cobras que se enroscam,
Cascavéis venenosas e mordentes
Que ora se repelem ou se encostam!

Os olhos tão iguais ao que eram dantes


São sementes dos frutos que colhemos.
Náufragos que se julgam navegantes
À força destes braços serem remos.

Foi como pântano o colchão de arame,


Terreno das areias movediças…
Mas pobre do jogral que nunca ame
Num castelo sem pontes levadiças.

Que rugas que puseram no teu rosto,


É rasto que ficou das caravanas…
A sede é a saliva que sem gosto
Lembra o mar de sargaços e savanas.

Talvez seja polar o frio de agora


No espasmo que ficou desta batalha…
Os santos somos nós ou estão lá fora
Na pele feita de pedra ou de talha!

281
Nascemos com o mar na nossa frente,
A cama é a jangada dos desejos…
O sonho para nós foi: continente,
Parede toda feita de azulejos!

Londres, 13 de Dezembro de 1989

282
Raio Verde

Nos sonhos te refaço em bocados


Pacientemente, assim o sono ordena;
Se outrora percebi significados
Nem ao de leve sei quem hoje acena…

Incógnita é dormir sem estar cansado,


Deitando fora a vida que se perde,
Lastro tão preciso e desprezado
Balão a prometer-nos o Raio Verde.

Nos sonhos te refaço se adormeço,


De quem será a mão que mal me guia?
Se o vento está lá fora não estremeço
Como folha d’Outono em ventania…

Que mistério nos quer adormecidos


Ainda em vida e tanto por viver?
Conta-gotas de sangue, empedernidos
Os corações que deixam de bater…

Em sonhos te refaço quando acordo,


Que memórias e noites visitadas!
Porém, o pó do chão só eu o mordo
Para no sonho não deixar pegadas!

Londres, 13 de Dezembro de 1989

283
Pão e Circo

É álcool em serpentina O que o corpo traz impresso


Numa espécie de sem-fim… É a alma em carne viva.
É fumo, tinta-da-china Ai! Arena, sem regresso,
Sobre a neve de marfim… Sem qualquer alternativa!

Viver não passa de teima Se a morte passou ao lado:


Se o polegar for de Nero Não mudamos de figura,
Na arena que tudo queima: O polegar levantado
Vidas abaixo de zero… Não acaba a escravatura.

O olhar do legionário Tudo é adiamento


É espada que corta a fio, E nem o Nero sabia!
Se os graus estão ao contrário, É como a noite de vento
O calor é calafrio. Que a manhã não prometia…

A morte é sempre gelada O polegar para cima


— Como o olhar dos guerreiros — Às vezes não é o fim…
Passa a vida a fio de espada É fumo, tinta-da-china
P’ra não fazer prisioneiros. Sobre os corpos de marfim…

Por vezes: passo pesado Londres, 21 de Dezembro de 1989


Outras vezes ao de leve…
Abafa a voz no Senado
Aos Tribunos da Plebe…

Dita a lei que não quer lei


Do Tempo sempre a correr
— Quantas vezes me queimei
Só de pensar em morrer? —

284
Estreito de Corinto

Deito-te fumo nos olhos, Sempre que penso em Cartago


Sem sabor a nicotina. A memória meço aos palmos…
Teu rosto lembra-me ícones O teu silêncio é tão vago
Duma igreja bizantina… Feito de ventos e salmos.

A Fé é de quem nos dita A memória é uma insónia


Os termos da opressão; Onde só silêncio cabe,
Catedral feita mesquita Antioquia, Macedónia
Conforme a posse do chão… Mais tudo o que a terra sabe.

Fica Alá no meio dos arcos Se quebrares este silêncio


Traçados a Ocidente, Que se fecha em meu redor,
Pois nem sempre os mesmos barcos Queimo mirra, queimo incenso
Carregam a mesma gente… E passos no corredor…

O Labirinto de Creta O Farol de Alexandria


A ninguém deu a saída, Só ligava luz e treva,
Tinha uma porta secreta Tinha cor cinzenta e fria
Dentro dum poço caída Como os dias em que neva.
Como o tirano decreta:
Dava a morte de seguida… Quem viu suor viu o Nilo
E escravos em formigueiros
O teu vulto é pormenor — E também Vénus de Milo
De vitral semipartido ’Inda de braços inteiros!
Vindo da Ásia Menor
De culto desconhecido… Como touro tresmalhado
Sempre com morte na frente:
Imagem desaparecida Esta angústia do Passado
No desvão dalgum mosteiro Anda no Tempo Presente.
Mas figura conhecida
Retrato de corpo inteiro.

285
Animal de sacrifício No mapa do esquecimento
Preso à ara por correntes, Há muralhas de cidades…
À beira dum precipício Outrora já foi momento
Os homens não são diferentes… Que se perdeu nas idades!

Partem-se os lemes, as âncoras Meu solstício de Junho


Procuram terra no mar, Rasga estreitos em Corinto…
Azeites, vinhos nas ânforas Meus poemas em rascunho
Com a morte a transbordar. Nunca passados a limpo.

Caravana levantina Londres, 29 de Dezembro de 1989


Com camelos carregados
E estrelas de purpurina
Mostram caminhos sagrados.

Como por ferro queimado,


Em denúncia à condição,
Um judeu circuncidado
Bem depois de Salomão.

Há tantas lousas partidas


Que já nem deixam recados.
Deusas de pedra vestidas
Pela nudez dos pecados.

Derrama perfume o frasco


Ou bebida envenenada?
Curva em Estrada de Damasco
Pode ser uma emboscada.

Temos sorte das acácias:


De nascer e de murchar.
Vitórias de Samotrácias
Que se deixam desterrar!

286
Índice

Calendário 11
Mergulho no Passado 12
Faca 13
Também de noite 14
Os Rios Correm Inteiros 14
Calatrava 15
Vão-se As Águas sem Canção 16
Noite 17
À Poesia 18
Na Morte da Avó Adelaide 19
Zero 20
Ressaca 21
À Maneira de Dom Dinis 22
Pã no Seu Tempo 23
Pastoral do Ano 2000 24
Na Guerra do Roussilhão 25
Cana Verde, de Verdade 26
Teatro Amador 27
Mão Fechada 28
Melaço 29
Van Gogh 30
Amor em Dia de Chuva 31

Escavação
1 — A caminho de Pompeia 35
2 — Ponte dos Suspiros 36
3 — Os Vidreiros de Murano 37
4 — Rosa, Rosæ… 38
5 —Siderurgia 39

Judas 41
Portugal 1976 42
Solstício de Verão 43
Ramsés o Grande 44
Amor-Perfeito 45
Trás-os-Montes 46
Ronda da Noite 47
Canção Estival 48
Emilio Salgari 49
Véspera de Natal 51
Espanha 1978 52
Cassiopeia
1 — Inferno 57
2 — Purgatório 58
3 — Céu 59

Poder Secular
1 — Camões 63
2 —Fernando Pessoa 64
3 — Cesário 65

Certidão de Nascimento 67
«Post Scriptum» 68
Contra-Relógio 69
Mina de Sal 70
Nível de Água 71
Cozido à Portuguesa 72
Kremlin 73
Roleta Russa 74
Gelo 75
Auto-Retrato 76
Visitas Proibidas 77
Integração do Átomo
1 — Monte de Tabor 81
2 — Cassiopeia 82
3 — A Meia-Nau 83
4 — Átomo 84

Cavalo da Acrópole 87
Tempo de Silêncio 88
Telex a Lech Walesa 89
Acordar em Hotel 90
Saudação a Enrico Berlinguer 91
Passagem de Nível sem Guarda 92

Nome Próprio Feminino


1 — Camões 95
2 — Jau 96
3 — Natércia 97

São Paulo 99
Algarve 1982 100
Cega-Rega Marroquina 101
O Luar é Azulado 102
Este Ano em Jerusalém 103
Latifúndio 104
Última Caçada 105
Velhas Casas Cor-de-Rosa 106
Poema em Construção 107
Os Insectos e os Outros 108
Lápides Apagadas 109
Ex-Libris 110
Auto-Retrato 111
Última Tentação 112
Tocata e Fuga 113
Outro Natal 114
Via Appia 115
Marvão, Tantos de Tal 116
Audição Única 117

Circus Maximus
1 — Dança do Escalpe 121
2 — Terra de Siena 122
3 — Pedra de Carrara 123

Obsessão 125
Uma Gota de Sangue 126
Queda do Império dos Romanos 127
Domingo de Ramos 129
Nicarágua 130
João Sem Terra 131
Branco e Negro 132
Sândalo 133
Noite e Nevoeiro 134
Santo Sepulcro 135
Tântalo 136
Outrora o Natal 137
Fermentação 138

Nebulosa em Espiral
1 — O Túmulo e a Rosa
i — A Neve e o Mar 141
ii — O Túmulo e a Rosa 142
iii — O Sal e o Açúcar 143
2 — Os Mundos Exaustos
iv — As Estrelas Assassinas 144
v — Prece 145
vi — O Pão e a Pedra 146
3 — Juízo final 147

Fechado para Obras (Poéticas) 151


A Noite dos Degolados 152
Ponto Negro 153
Deus no Confessionário 154
Livro das Horas 155
Conta Errada 157
Gaivota 158
Colóquio dos Simples 159
Multidão 160
Abstenção 161
28 de Maio de 1926 – Verão Quente de 1975 162
Miradouro 163
Sessões Contínuas 164
Cal Viva 165
«O Tempo Está Próximo» 166
Chegada 167
Fado Amália 168
18 de Julho de 1936, Dia de São Camilo 169
Passe a Palavra 170
Os Robinsons do Espaço 171

Véspera Veneziana
1 — Constante 175
2 — Aquário 176
3 — Fresco 177
4 — Lucros e Perdas 178
5 — Homo Faber 179

Insónia 181
Cesário a Corpo Inteiro 182
Os Ralos do Relento 184
Passagem do Ano 186
Profanação 187
Quarta-Feira de Cinzas 188
Fechadura Yale 189
Incógnita 192
Cofre de Segredo 193
Cotação do Dia 194
O Beijo de Judas 195
Ofícios Esquecidos 196
Papel-Moeda 197
Ração de Combate 211
Bicho-de-Conta 212

As Torres do Silêncio
As Torres do Silêncio 215
Índia 216
Taj Mahal 217
Khajuraho 218
Fumos da Índia 219
Nas Margens do Ganges 220
Entardecer no Ganges 221
O Medo 222
Numa Aldeia do Nepal 223
Pôr de Sol nos Himalaias 224
O Palácio das Monções 225
A Poesia 226
Fortaleza dos Reis Magos 228
As Formigas na Neve 229
Embalagem Perdida 232
Trinta Dinheiros 234
Duplo 236
Almocreve das Palavras 238
Divisão das Espécies 239
Navegação Nocturna 241
London Sight-Seeing 242
Perdido por Cem 243
Ursa Maior 244
Estrada de Damasco 245
Veneno 246
Dizer por Dizer 247
A Última Caçada 248
Lente de Aumentar 251
Tecelões 252
Soldadinhos de Chumbo 253
Relógio de Água 255
Caracteres Ilegíveis 256
Jantar de Família 257
Peregrino Acidental 259
Marasmo 261
Os Carrascos também Choram 262

Ciclo Infernal
Fundo da Garrafa ou Robinson e Sexta-Feira 265
O Choro e o Riso 266
Guarda da Vinha 267
Cela da Morte 268
Escorpião 269
Oásis 270
Passos Perdidos 271
Missa do Galo 273
Fontes Salgadas 274
Miliciano 275
Banho Turco 276
Século Dezanove 278
Missa Cantada 279
Estrela de Belém 280
Erosão 281
Raio Verde 283
Pão e Circo 284
Estreito de Corinto 285
Nascido em Lisboa a 6 de Abril de 1930, Henrique
Jorge Segurado Pavão frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa,
tendo depois iniciado, em 1956, no jornal O Século, a sua actividade
de jornalista e de gestor de órgãos da imprensa; foi, de 1976 a 1992,
um dos jornalistas societários de O Jornal, onde desempenhou fun-
ções de administrador.
Em 1976 abriu a livraria Castil-Castilho, seguindo-se-lhe a Castil-
Alvalade, a Castil-Benfica, a Castil-América, a AZ-Olivais e a AZ-
Bom Sucesso, no Porto (as duas últimas em colaboração com o grupo
Valentim de Carvalho).
Estreou-se como poeta em Março de 1951 no jornal Rivages
— edição dos alunos do liceu Francês de Lisboa —, tendo poste-
riormente colaborado, com o nome de Henrique Jorge, em Távola
Redonda (no fascículo 15, de Dezembro de 1952, com quatro poe-
mas, e nos fascículos 19/20, de Julho de 1954, com dois poemas) e no
primeiro número de Graal (Abril-Maio de 1956), revista dirigida por
António Manuel Couto Viana.
Publicou, ainda como Henrique Jorge, Emigrantes do Céu (Lis-
boa, Edições Távola Redonda, 1953). Como Henrique Segurado, deu
à estampa Asa de Mosca (Lisboa, Ática, 1960) e Ressentimento Dum
Ocidental (Alfragide, Galeria Panorama, [1970]).
Em 1959, Asa de Mosca conquistou, ex-aequo com António
Ramos Rosa, o segundo prémio do concurso Fernando Pessoa orga-
nizado pela Editorial Ática. No mesmo ano, Henrique Segurado,
com um livro que nunca chegou a ser publicado, Dança do Escalpe,
recebeu ainda uma referência especial do júri que a Livraria Galaica
do Porto constituiu para um concurso de poesia.

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Tem colaboração dispersa em jornais e revistas como O Século,
Diário de Lisboa, República, Gazeta Musical e de Todas as Artes,
Jornal de Letras e Artes, J.L., Jornal de Letras, Artes e Ideias e Coló-
quio/Letras.
Está representado nas seguintes antologias: Poesia Portuguesa do
Pós-Guerra: 1945-1965, organização de Afonso Cautela e Serafim
Ferreira, Lisboa, Ulisseia, 1965; Poesia/70, organização de Egito
Gonçalves e Manuel Alberto Valente, Porto, Editorial Inova, 1971;
800 Anos de Poesia Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1973;
Portugal: A Terra e o Homem: Antologia de Textos de Escritores do
Século XX, organização de David Mourão-Ferreira, Lisboa, Funda-
ção Calouste Gulbenkian, [1978]; Natal na Poesia Portuguesa, orga-
nização de Luiz Forjaz Trigueiros, Lisboa, Dinalivro,1987; O Tejo
e a Margem Sul na Poesia Portuguesa, Seixal, Câmara Municipal do
Seixal, 1993; 100 Anos Federico García Lorca: Homenagem dos Poe-
tas Portugueses, coordenação de Ulisses Duarte, Lisboa, Universitá-
ria, 1998; De Palavra em punho — Antologia Poética da Resistência,
organização e apresentação de José Fanha, Porto, Editorial Campo
das Letras, 2004.

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