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Análise
Crítica da
Narrativa
LUIZ GONZAGA MOTTA

EDITORA

UnB
Capítulo 2

Retorno da narrativa: a busca do significado


Há cerca de um século, e mais particularmente nas últimas cinco
décadas, assistimos ao que alguns filósofos chamam de pro ou virada
linguística {the linguistic turn): a filosofia abandonou gradualmente o seu
antigo objeto, a metafísica, e deu uma guinada rumo à linguagem, fazendo
dela o seu objeto principal. Não tenho a pretensão de fazer aqui um
resumo completo dessa guinada. Quero neste capítulo conjeturar sobre
essa virada linguística a fim de justificar a aquisição recente, no mundo
intelectual e profissional, de uma consciência maior sobre a importância
da linguagem na experiência e conhecimento humanos, ocorrida nas
últimas décadas. No âmbito da guinada rumo à linguagem poderemos
compreender melhor o movimento de retorno das narrativas à ordem
do dia, e situar esse movimento no contexto da buscapelo significado, que
se tornou o objeto maior da filosofia contemporânea. Essa conjectura
terá de passar brevemente por diferentes áreas do conhecimento, como
a antropologia, as teorias da linguagem e teoria literária, as ciências
cognitivas e outras. Esse percurso ajudará a reflexão a respeito das razões
do retorno da narrativa ao centro da discussão sobre a construção de
sentidos, ou ainda a respeito do papel das narrativas na apresentação,
representação e instituição narrativa (ou imaginária) da realidade social.

O giro linguístico concedeu à linguagem um papel fundamental


na experiência humana. A linguagem passou a ser considerada
intrínseca ao próprio pensamento. Toda nossa atividade mental é
palavra ou busca a palavra, diz o raciocínio. Pensamento e linguagem
(ou conhecimento e expressão) passaram a ser considerados uma só
coisa. A linguagem deixou de ser um mero veículo, pois não há
pensamento sem linguagem, apenas pensamento na linguagem
(CHILLÓN, 1999, p. 23-25). A experiência, prossegue o argumento,
é sempre pensada e sentida linguisticamente. Pensar, compreender,
comunicar passou a ser quase sinônimo de abstrair e categorizar
linguisticamente, transubstanciar em palavras e em enunciados as
percepções provenientes da realidade externa pelos sujeitos, e as
sensações e emoções provindas da realidade interna e experimentadas
pelos sujeitos.1 "Conhecemos o mundo sempre de modo tentativo à
medida que o designamos com palavras e o construímos sintaticamente
em enunciados, à medida que o empalavramos" (DUCH, 1998, p. 458).

Para avançar a reflexão acerca da importância da linguagem na


experiência humana, quero examinar mais de perto as palavras do citado
antropólogo catalão Uuís Duch. Explica ele que o mundo só adquire
sentido na medida em que o traduzimos linguisticamente. O homem, ser
que fala, animal loquem, capaz de falar, é um ser condenado: depende da
mediação da linguagem para conhecer o mundo. Nós, seres humanos,
prossegue o autor, dependemos da linguagem para conhecer, nomear
e expressar tudo: empalavramos seguidamente o mundo recriando
a realidade. Não existe vida humana à margem da palavra, conclui
ele: a linguagem é a experiência humana essencial, torna o ser humano.
Empalavramos o mundo porque essa é a forma humana de conhecer.

Para o autor, exercer o oficio de homem equivale a dar consistência


verbal à realidade. Viver, resume, é um ajfair linguístico: o homem só
pode conhecer, conjecturar, assombrar-se, duvidar ou questionar
a realidade mediante a linguagem (DUCH, 1998). A linguagem é o
instrumento privilegiado pelo qual o homem se nega a aceitar o mundo
tal como ele é. Conforme o crítico franco-saxão George Steiner, citado
por Duch: a palavra nos liberta do silêncio da matéria. Ou ainda na
frase lapidar do poeta mexicano Octávio Paz, também citada por ele:
a palavra é uma ponte mediante a qual o homem trata de conhecer a
distância que o separa da realidade exterior.

1 Seguindo W . von Hulboldt e F. Nietzsche, Albert Chillon (1999) alega que não existe

uma realidade objetiva nem uma verdade, e nem por isso devemos cair no niilismo. Existem
múltiplas realidades e experiências que conformam sentidos para cada um e que são
compartilhadas com os demais, a partir das quais construímos intersubjetivamente nossas
verdades, afirmação com a qual estou de acordo.
As ideias fundadoras do giro linguístico ocorreram
simultaneamente às mudanças de paradigmas em outras áreas do
conhecimento, que concorreram no mesmo período para reforçar
a busca pelo sentido das coisas, fenômenos e relações humanas. Na
antropologia foram influentes as ideias do antropólogo norte-americano
Cliford Geertz (1989), fundador da antropologia interpretativa (ou
antropologia hermenêutica). Para ele, fazer etnografia é uma atividade
muito parecida com a tarefa do crítico literário: é fazer uma leitura
ou interpretação dos significados das estruturas conceituais complexas.
A cultura, segundo Geertz, consiste em estruturas de significado
socialmente estabelecidas às quais as pessoas respondem, e a análise
cultural é, ou deveria ser, uma adivinhação do significado.

De acordo com Geertz, a cultura não deve ser compreendida como


um conjunto de padrões concretos para governar o comportamento,
mas como um conjunto de mecanismos de controle - receitas, regras,
instruções (um fundo acumulado de significantes) que os homens
utilizam para fazer uma construção dos acontecimentos através dos
quais vivem. "Sem os homens certamente não haveria cultura, mas de
forma semelhante e muito significativa, sem cultura não haveria homem"
(GEERTZ, 1989, p. 21). O próprio autor define essa vertente como
antropologia interpretativa e alguns autores chamam a ampla adesão que
houve a este novo paradigma de giro antropológico, por analogia ao giro
linguístico. Os acontecimentos gerados por essa guinada linguística da
antropologia são bastante semelhantes àqueles produzidos pela nova
historiam, historiografia, como vimos no capitulo anterior. Ou seja, parece
ter acontecido um giro profundo de paradigmas nas ciências sociais em
geral, rumo à linguagem e aos processos cognitivos.

Penso que as ideias de Geertz se encontram também, em


alguns pontos, com aquelas do influente sociólogo canadense Erving
Goffman a respeito da realidade cultural. Para Goffman (2009)
a normalidade é construída pelo contraste com o negativo: o falso
revela o autêntico, a normalidade é reconstruída e regulamentada
no sucessivo confronto com a anormalidade (este contraste foi
discutido no capítulo anterior). As pessoas atuam nas microrrelações
sociais como se houvesse entre elas acordos substanciais, efetivos
e verificáveis, e projetam cooperativamente definições de situações
para estabelecer entre elas consensos operativos comuns (o autor
chama esse processo de estabilização social de pa% do rei). A versão de
cada um sobre a realidade se integra na definição de realidade daquela
relação específica e, ao mesmo tempo, liga-se a estruturas sociais mais
amplas, constituindo o senso comum.

As pessoas trazem para essas relações os jrames culturais, premissas


organizativas que reconstroem definições das situações, decifram e
dão sentido ao fluxo dos acontecimentos, conforme o pensamento de
Goffman. Os Jrames permitem definir situações de interação e também
definir a estrutura da experiência que os indivíduos têm da vida social.
Na verdade, não se define só a significação dos episódios da vida
cotidiana: define-se também o tipo de implicação requerido por ela.
Definir uma situação, diz ele, implica também estabelecer os modos
apropriados de participar dela: não se trata só de dar um sentido ao
que se está passando, mas também de estar dentro dos acontecimentos,
estar espontaneamente implicado no que está ocorrendo.2 Goffman,
os demais autores citados e tantos outros contribuem assim para
adensar as ideias dos giros linguístico, antropológico e historiográfico,
desenvolvendo suas aplicações no âmbito da sociedade e da cultura.

Nesta brevíssima tentativa de recuperar algumas mudanças


significativas dos paradigmas das ciências sociais nas últimas décadas,
até chegar ao que denominei no título deste capítulo de retorno da
narrativa e busca do significado, é necessário concluir com algumas palavras
sobre a sistematização a respeito do lugar do homem no processo de
2Goffman apud Wolf (2000, p. 44). Wolf diz, seguindo Goffman, que a reflexividade do
Jrame faz com que a descrição de um encontro social seja parte essencial da possibilidade de
reconhecer esse encontro como unidade social descritível;."o funcionamento dos frames faz
algo mais que distinguir várias realidades sociais: fundamenta-as e ao mesmo tempo realiza
a possibilidade de torná-las descritíveis".
conhecimento elaborada por P. Berger e T. Luckmann no influente
livro A. construção social da realidade (1994, original de 1966). Berger e
Luckmann foram influenciados pelas ideias fundadoras do sociólogo
austríaco Alfred Schutz (SCHUTZ, 1995; SCHUTZ; LUCKMANN,
2001), que migrou para os Estados Unidos em 1939 fugindo da Guerra.
Também aqui não pretendo fazer uma revisão integral das formulações
desses autores. Ciente dos riscos dessa opção, me limitarei a uma breve
síntese das ideias deles, pinçando as formulações que me parecem
pertinentes ao raciocínio que sigo.

Berger e Luckmann partem das perguntas o que é real e como


o homem comum conhece sua realidade concreta e cotidiana para elaborar um
teoria relativista empírica do conhecimento social: aglomerações específicas
da realidade e do conhecimento que se referem a contextos sociais
específicos. Eles propõem uma sociologia do conhecimento que trata da
multiplicidade empírica do conhecer, e também dos modos gerais pelos
quais as realidades são admitidas como conhecidas (1994, p. 13). Destacando
o caráter intencional da consciência, os autores dizem que a vida cotidiana
apresenta-se como uma realidade intersubjetivamente interpretada pelos
homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em
que forma um mundo coerente e ordenado, reafirmado como mundo
real. Assim, a realidade da vida cotidiana, ou senso comum, é esse
conhecimento que constitui o tecido de significados, sem o qual nenhuma
sociedade pode existir (p. 30).

A realidade da vida cotidiana (senso comum partilhado) é


admitida pela sociedade como sendo a realidade: ela está aí como
facticidade evidente por si mesma, compulsória, real, proclama-se a si
mesma.3 Essa convicção sobre o que é real e o que é a realidade é tão
determinada e pressuposta, dizem os autores, que qualquer suspensão
temporária dessa certeza (uma dúvida religiosa ou estética), qualquer saída
dessa convicção torna-se um campo finito e delimitado de significação
diante das certezas confirmadas do cotidiano. Mas a ordem social
3 Processo, segundo eles, realizado através da linguagem.
existe unicamente como produto da atividade humana e as instituições
por ela produzidas (hábitos, costumes, papéis, especializações, regras,
leis) tornam-se reais, enraizadas na cultura transmitida e retransmitida,
tornam-se o mundo\ " O mundo institucional é a atividade humana
objetivada".

As operações de objetivação da realidade são relativas às


numerosas variações socioculturais, mas é o homem como ser aberto
para o ambiente quem constrói a sua própria natureza, produz a si
mesmo. O produto do homem reage sobre o produtor. A exteriorização
e a objetivação são momentos de um processo dialético contínuo.
A autopromoção do homem é sempre e necessariamente um
empreendimento social, em conjunto, intersubjetivo. Homo sapiens,
homo soáus. "A sociedade é um produto humano. A sociedade é uma
realidade objetiva. O homem é um produto social" concluem.

Para Berger e Luckmann o conhecimento constitui a


dinâmica motivadora da conduta institucionalizada. Ele define e
constrói os papéis, reifica a apreensão dos fenômenos humanos
como se fossem naturais, cósmicos, dizem os autores. Socialmente
objetivado como conhecimento, isto é, como um corpo de verdades
universalmente válidas sobre a realidade, qualquer desvio toma
caráter de afastamento da realidade institucionalizada (1994, p.
93). Desse modo, o particular torna-se o mundo tout court. O que a
sociedade admite como conhecimento vem a ser coextensivo com o
cognoscível: tudo aquilo que ainda não é conhecido chegará a ser
conhecido no futuro. O conhecimento institucionalizado situa-se,
assim, no coração da sociedade e media a interiorização, fornece a
estrutura dentro da qual tudo aquilo que ainda não é conhecido
chegará a ser conhecido no futuro. Torna-se o coração da dialética
fundamental da sociedade: programa os canais pelos quais a
exteriorização produz o mundo objetivo. Objetiva esse mundo por
meio da linguagem e do aparelho cognoscitivo.
Corroborando e fortalecendo o que foi dito acima a respeito
de outras áreas das ciências sociais, a sociologia do conhecimento
desses dois influentes autores reafirma, portanto, que o homem e sua
sociedade são produtos do próprio homem, de seu empalavramento
sucessivo do mundo: a realidade cotidiana, ou o senso comum
compartilhado, é um tecido de significados e relatos intersubjetivos,
produto da ação, vontade, pensamento e comunicação entre os
próprios homens. Fica evidente agora que o retorno da narrativa é
parte do retorno da linguagem ao centro do pensamento filosófico,
antropológico e cognitivo, produto da recuperação da ideia da
linguagem como objeto primordial de mediação entre o homem e
o mundo exterior a ele, intersubjetivamente institucionalizado através
das inúmeras narrativas humanas, do mar de estórias onde o homem
navega sempre.

Procurei neste capítulo, ainda que muito brevemente, situar o


retorno das narrativas no interior do giro linguístico e antropológico, e
da guinada rumo à linguagem e à interpretação. Este retorno acontece
em sociologia, antropologia e história, na busca geral do significado
que se intensificou em todas as ciências cognitivas. Cresceu nas
últimas décadas a consciência de que a linguagem é a mediadora entre
o homem e o mundo, mediadora das nossas experiências, do nosso
conhecimento sobre a realidade, das representações que construímos,
das sucessivas apresentações discursivas que fazemos dos fenômenos
materiais e sociais, de que a linguagem é o veículo de instituição
e constituição do mundo humano e a narrativa é a sua principal
forma expressiva. O retorno da narrativa se dá, portanto, no interior
desse novo paradigma hermenêutico-interpretativo.

Como diz L. Duch (1998), não existe vida humana à margem


da palavra. O ser humano depende decididamente da linguagem
para conhecer e acercar-se ao mundo. A linguagem é a experiência
humana essencial: faz o ser tornar-se humano. Nós empalavramos
seguidamente o mundo porque essa é a forma humana de conhecer.
É a partir deste pressuposto que desenvolvo todo o raciocínio ao
longo deste livro, porque acredito que a narrativa é uma forma de
sucessivo empalavramento dramatizado da realidade imediata para
ajudar o homem e as coletividades a se situarem no mundo e na
história.
Exercer o ofício de homem equivale a dar consistência verbal à
realidade, acrescenta Lluís Duch. Eu diria mais: equivale a empalavrar
o mundo em sucessivas estórias contadas e recontadas. Para reforçar e
finalizar este capítulo, repito uma vez mais as palavras do antropólogo
catalão: viver é um affair linguístico. O homem só pode conhecer,
conjecturar, assombrar-se, duvidar ou questionar a realidade mediante
a linguagem, mediante suas narrações. A linguagem é o instrumento
privilegiado através do qual o homem se nega a aceitar o mundo tal
qual ele é, lançando-se na incrível aventura contra a barbárie, contra
a selvagem e caótica realidade, contra as indeterminações. Nossas
experiências, nossa existência, a aventura humana toda são, na
verdade, um longo trajeto hermenêutico. Somos, como relembra o
sociólogo francês Gilbert Durant (1997), viajantes de nosso próprio
percurso hermenêutico.

70 I ANAUSE CRÍTICA DA NARRATIVA


Capítulo 3

A teoria da narrativa - narratologia


O que é narrar? Narrar é relatar eventos de interesse humano enunàados
em um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Implica, portanto,
narratividade, uma sucessão de estados de transformação responsável
pelo sentido. A palavra chave é sucessão. Ela introduz a questão da
sequenciação, ou desenvolvimento temporal. A narratividade coloca
imediatamente a ideia de prosseguimento-interrupção ou a dialética
da continuidade-descontinuidade, já vista em páginas anteriores.
A sucessão encadeia unidades narrativas em uma estrutura profunda
(uma dinâmica funcional e sequencial): uma complicação que
solicita uma resolução. Segundo Ricoeur (1994), há uma analogia
entre contar uma história e o caráter necessariamente temporal da
experiência humana. A experiência do tempo estrutura-se em ações
sucessivas cujo desenvolvimento numa intriga coesa se traduz numa
espécie de dialética entre sucessividade e síntese. Narrar é, portanto,
relatarprocessos de mudança, processos de alteração e de sucessão interrelacio
Pressupõe a existência de uma lógica narrativa própria, que nos
demanda uma gramática narrativa universal.

O narrar funde suas raízes na nossa ancestral herança cultural


de relatar estórias. Os seres humanos têm uma predisposição cultural,
primitiva e inata, para organizar e compreender a realidade de modo
narrativo, como diz Bruner (1998). A narrativa põe naturalmente os
acontecimentos em perspectiva, une pontos* ordena antecedentes e
consequentes, relaciona coisas, cria o passado, o presente e o futuro,
encaixa significados parciais em sucessões temporais, explicações e
significações estáveis. Faz o agenciamento dos fatos no processo de
tessitura da intriga como um sistema, ou composição em um todo
diegético que tem princípio, meio e final, no dizer de Paul Ricoeur.
Antropólogos e psicólogos culturais têm enfatizado que a viabilidade de
uma cultura radica em sua capacidade para resolver conflitos, explicar
as diferenças e renegociar significados comunitários. Essa negociação
é possível graças ao aparato narrativo de que dispomos para fazer
frente simultaneamente à canonicidade (normas) e à excepcionalidade
(desvios, diferenças), como vimos no primeiro capítulo.

Os acontecimentos relatados pelas narrativas (realistas


ou imaginárias) são performati^ados por personagens, atores que
representam seres humanos concretos ou imaginários, e realizam
coisas que os humanos também realizam (antropomorfismo natural
da narrativa). A construção de personagens e ações na narrativa é
uma representação de condutas humanas que fornecem ao narrador
a matéria-prima e os modelos. Ao narrar, alguém está explorando na
sua imaginação possíveis desenvolvimentos (reais ou ficcionais) das
condutas e comportamentos humanos, que os teóricos chamam de
atividade mimética (ou imitação).

Mimese é uma expressão que entrou no âmbito da narratologia


pelos escritos dos filósofos gregos Platão e Aristóteles. Originalmente, o
conceito significa imitação, recriação ou representação do mundo por
meio de algum tipo de configuração. Mas, ao configurar, o homem vai
além do objeto representado, acrescenta algo e, neste ato, apropria-se
do mundo. No dizer de Gebauer e Wulf (2004), na mimese o homem
"refaz o mundo uma vez mais". Ocorrendo de maneira criativa, a
mimese gera expressões estéticas (as artes). Mas os processos miméticos
têm também uma dimensão antropológica, uma relação com o saber
prático e a ação social. Os processos miméticos são imprescindíveis para
a relação do homem com a natureza, a cultura e a sociedade, dizem
os autores: por meio deles, o homem se adapta ao mundo porque lhe
possibilitam "apanhar o mundo exterior em seu interior" (2004, p. 38).
No capítulo sobre metodologia, adiante, discutirei o processo de captar
progressivamente os fenômenos até chegar a sua essência.

Paul Ricoeur (1994) observa que a mimese (imitação) narrativa


é uma metáfora da realidade, refere-se à realidade não para copiá-
la, mas para lhe outorgar uma nova leitura, um novo significado.
Os significados provêm não só dos processos de recriação mimética,
mas também da relação inversa, da identificação virtual que ocorre
em toda narrativa, da transposição catártica que as pessoas fazem
das estórias narradas para as suas próprias experiências.1 Quando
escutamos (oralidade, canção, rádio), quando assistimos (teatro, filme,
telenovela, telejornal) ou quando lemos uma estória (jornal, revistas,
livro) estamos na estória, e recriamos a sua significação a partir da
relação que fazemos com os nossos próprios valores e nossa memória
cultural. Essa transmutação entre o mundo da estória narrada e o
mundo da vida não parece ter-se modificado no ambiente virtual
das narrativas atuais, mesmo das narrativas voláteis na internet. As
estórias virtuais, ainda que guardem distintas características, seguem
envolvendo os receptores e eles prosseguem recriando na imaginação
suas próprias significações a partir do que ouvem, leem ou veem nos
blogs ou redes sociais, embora em moldes diferentes.

Os ouvintes de uma narrativa não captam apenas as sequências


dos acontecimentos representados (a trama ou enredo). Captam
também aspectos ocultos ou virtuais das personagens e das ações que
requerem novos pensamentos de parte de cada um, requerem uma
recriação virtual das situações e comportamentos, da moral e da ética
pressupostos ou sugeridos pelas estórias (a fábula, o mito, a ideologia,
as metanarrativas, enfim). Referência e significação guardam, assim,
uma relação de contiguidade.

A narrativa, entretanto, constitui-se como sentido não porque os


fatos narrados sejam verdadeiros ou falsos, mas porque ela possui uma
estrutura interna de conexão que determina a sua configuração integral.
Não é de se surpreender, portanto, que maneiras opostas de relatar
fatos, como a história e a literatura, utilizem ambas a forma narrativa,
como já discuti. Na verdade, cada uma dessas formas imita a outra: a

1 0 termo catarse significa purificação, purgação. Foi inicialmente utilizado por Aristóteles na
Poética (2000) para designar os efeitos produzidos no espectador pela tragédia, especialmente
a compaixão e dor.
imaginação imita a vida e a vida imita a ficção. Os processos miméticos,
como observam os citados Gebauer e Wulf (2004), ocorrem em um
nível abaixo das fronteiras de demarcação entre arte, ciência e vida.

Quem narra evoca eventos conhecidos, seja porque os inventa,


seja porque os tenha vivido ou presenciado diretamente (atitude de
alteridade). Revela, assim, uma tendência para a exteriorização temporal,
para uma atitude de distanciamento autônomo. Mas sempre de forma
verossímil, como se os houvesse presenciado. Narrar é uma técnica de
enunciação dramática da realidade, de modo a envolver o ouvinte na
estória narrada. Narrar não é, portanto, apenas contar ingenuamente
uma história, é uma atitude argumentativa, um dispositivo de linguagem
persuasivo, sedutor e envolvente. Narrar é uma atitude - quem narra
quer produzir certos efeitos de sentido através da narração.

Como vimos antes, o psicólogo Jerome Bruner (1998)


argumenta que as estórias verídicas ou imaginadas, contadas e
recontadas por uma sociedade, outorgam implicitamente significados
às condutas canónicas e às condutas excepcionais (desviantes) das
personagens das estórias (protagonistas e antagonistas). Segundo ele,
a função das estórias é encontrar um estado intencional que torne
compreensíveis os desvios dos padrões culturais canónicos, como
já vimos. Assim, as narrações mediam entre o mundo canónico da
cultura e o mundo mais idiossincrático das crenças, dos deuses e das
esperanças pessoais. Fazem com que o excepcional seja compreensível,
reiteram as normas sem serem didáticas. Por exemplo, as biografias
e autobiografias (narrativas do eu) fazem com que as formas
ficcionais proporcionem linhas estruturais mediante as quais se
organizam as vidas reais. Vê-se, portanto, que contar estórias (através
das telenovelas, do jornalismo, do cinema, da literatura) não é úma
atividade unicamente estética, desprovida de intencionalidades.
É um dispositivo argumentativo de linguagem para convencer,
provocar efeitos, mudar o estado de espírito de quem ouve, lê ou vê
uma história. Os relatos em forma de depoimentos das testemunhas
no tribunal do júri são um exemplo da evidência argumentativa das
narrativas. As testemunhas recontam os fatos em sínteses compreensivas
para convencer o júri (contra ou a favor). Por isso a análise de uma
narrativa requer tanto a compreensão de sua configuração interna, a fim
de observar as estratégias, artimanhas e astúcias argumentativas utilizadas
pelo narrador para lograr os efeitos pretendidos. Isso será abordado com
mais detalhes na parte sobre metodologia.

O que é narratologia? A narratologia é a teoria da narrativa e os


métodos eprocedimentos empregados na análise das narrativas humanas. E, por
um campo de estudo e um método de análise das práticas culturais.
A análise da narrativa é uma técnica de pesquisa relativamente nova,
embora suas raízes provenham da Grécia antiga. A Poética de Aristóteles
(2000), às vezes editada com o título Arte Poética, texto relativo às lições
do filósofo grego no Liceu, foi escrita por volta do ano 335 A.C.
como apontamentos de classe. É a mais antiga reflexão que se conhece
sobre a configuração de uma narrativa. Continha originalmente dois
volumes, mas só o primeiro foi preservado no idioma árabe, de onde
foi traduzido ao latim, chegando posteriormente até nós. A primeira
edição em língua latina só aparece em 1503. A partir daí, divulgada
pelos humanistas italianos, passa a ter enorme influência nas obras e
estudos sobre as artes, literatura e teatro.

Texto obrigatório para qualquer iniciante, a Poética de Aristóteles


percorre questões fundantes da narratologia. Ao longo dos séculos,
a obra persiste como texto fundamental para a discussão sobre a
realidade representada (mimese ou imitação do real, já discutida),
sobre as partes constitutivas da tragédia, a unidade da ação imitada
(princípio, meio e final das estórias), as personagens, caracteres
e heróis, os efeitos provocados pela tragédia (catarse, comoção,
purgação, purificação) e outras tantas questões ainda hoje retomadas
como pontos de partida das querelas conceituais, metodológicas e
prático-operacionais sobre a narrativa. Alguns críticos restringem as
discussões da Poética a questões sobre o trágico, configuração nas artes
cênicas e dramaturgia. Mas autores mais contemporâneos insistem
em situá-la na discussão mais ampla sobre o papel do ficcional
(como produção discursiva em geral, não só ficção) na construção
geral do imaginário social. É bastante citada a passagem da Poética,
capítulo IX (p. 28) segundo a qual "a poesia encerra mais filosofia e
elevação do que a história; pois aquela enuncia verdades gerais; esta
relata fatos particulares", sugerindo que narrativas realistas como a
história ou a jornalística, por exemplo, são mais específicas e locais
que as narrativas ficcionais, por sua vez mais gerais e universais.

Só muitos séculos depois da Poética de Aristóteles, em 1928, o


russo Vladimir I. Propp publica a primeira edição de seu livro Morfologia
do conto maravilhoso (1984), que vai ter uma forte influência nas análises da
narrativa posteriores. O livro permaneceu ignorado na União Soviética
pelo stalinismo (embora Propp se proclamasse marxista) e só foi
redescoberto pelo antropólogo francês Levy Strauss em suas análises dos
mitos religiosos dos indígenas, três décadas depois, a partir da tradução
inglesa de 1958 da obra, nos Estados Unidos. Em 1959 o livro é reeditado
na União Soviética e a tradução ao português sai em 1984. Recapitulo
brevemente a história destes dois livros porque eles constituem as obras
fundadoras, ou a pré-história da narratologia moderna.

Propp desenvolveu seus procedimentos de análise estudando as


narrativas dos contos maravilhosos (contos infantis) europeus. Portanto,
ele não trabalhou com a literatura, mas com o que hoje definimos como
cultura popular. Para Propp, morfologia significava o estudo das formas,
que ele compara com a morfologia botânica, estudo das partes constituintes
de uma planta e de suas relações com as outras partes. A obra de Propp
é considerada fundadora da narratologia moderna por causa do esforço
dele para conferir status científico à crítica literária (até então de caráter
humanista e intuitivo). Ele tenta pontuar a forma comum e constante das
estórias populares maravilhosas. A partir da sistematização de Propp essa
morfologia passou a ser considerada uma estrutura universal dos contos
(e por decorrência, também das narrativas).
A partir de sua aplicação na antropologia, o formalismo de Propp
exerceu uma forte influência sobre os estudos linguísticos e literários,
especialmente sobre o estruturalismo consolidado na metade do século
passado na França. O modelo estruturalista torna-se então, como
reconhece Lopes (1997), o paradigma epistemológico mais forte das
ciências humanas em todo o século XX, rivalizando nesse aspecto com
o funcionalismo e o marxismo. Apesar de a obra de Propp fazer parte da
pré-história dos estudos da narrativa, os estudiosos ressaltam a enorme
importância teórica e metodológica que ela "aportou, para além e acima de
suas eventuais imperfeições" (LOPES, 1997, p. 238).

Embora o próprio Propp tenha negado ser estruturalista e


ter mantido polêmicas em vida para afirmar-se como formalista
(comprando uma briga com Levy Strauss a este respeito), é inegável
sua influência na linguística e na teoria literária estruturalista posterior,
como reconhece um dos estruturalistas mais paradigmáticos: "A relação
entre uma e outra é incontestável [...] encontram-se nos estruturalistas
marcas de uma influência formalista tanto nos princípios gerais quanto
em certas técnicas de análise" (TODOROV, 1970, p. 28).

Se nos ativemos à análise estruturalista de cunho mais literário (a


primeira área a desenvolver processos sistemáticos para a interpretação das
narrativas), seu marco mais significativo situa-se no ano de 1966, quando
é publicado na França um número especial da revista Communications
sobre a análise estrutural da narrativa, traduzida ao português em
1971, contendo inúmeros artigos sobre o assunto escritos por teóricos
importantes do nascente estruturalismo, como o próprio Roland Barthes
(1971), organizador do volume, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, A. J .
Greimas, Umberto Eco, Gerard Genette, Christian Metz e outros. Esse
conjunto de artigos visava, como diz Barthes no capítulo introdutório,
buscar um modelo narrativo único, comum a todo discurso narrativo,
uma estrutura acessívelà análise, apesar da variedade da narrativa como fato
universal, um modelo hipotético de descrição (uma teoria, enfim). Poucos anos
depois da publicação da revista, o búlgaro-francês T. Todorov (1970),
uma dasfigurasmais proeminentes do estruturalismo linguístico, cunhou
o termo narratologia para designar a teoria e análise da narrativa a partir
de um estudo sobre a estrutura dos contos de Boccacio, publicado em
1969 (Grammaire du Décamervn), onde ele buscava também construir uma
gramática universal da narrativa.

Assim, a análise da narrativa nasce vinculada ao movimento


linguístico conhecido como formalismo russo e ao estruturalismo
antropológico e literário francês. As raízes desses movimentos estão
fundamentadas no esforço dos críticos literários do início do século
passado que rejeitavam o caráter retórico e especulativo da crítica
literária historicista e humanista de até então. Eles buscavam o
espeãficamente literário através da observação empírica e sistemática dos
textos. Além do formalismo russo, a nova crítica anglo-saxã percorreu
este trajeto. O formalismo russo e a nova crítica, movimentos distantes
e seguindo caminhos próprios, pretendiam ambos estabelecer as bases
para uma teoria científica da crítica literária.

A narratologia nasce no interior desse esforço dos analistas em


decompor as partes componentes das estórias narradas e estabelecer uma
gramática ou sintaxe narrativa única. Sofre, assim, muitas influências
dessas ideias e movimentos precursores nos anos subsequentes. Mas a
narratologia gradualmente se desvincula dessas correntes e, nas duas
últimas décadas, principalmente, passa a abranger uma gama muito
mais ampla de campos e de análises acadêmicas. Hoje, além da teoria
literária (onde ela mais se desenvolveu), a narratologia é utilizada na
antropologia, na teoria dos atos discursivos (speech acts), na história,
na pragmática, na teoria cognitiva, nas teorias da comunicação e
em tantas outras áreas do conhecimento, transformando-se em umà
teoria interpretativa da cultura.

Diferentemente do estruturalismo, a narratologia como a


concebo neste livro é um ramo das ciências humanas que estuda os sistemas
narrativos no seio das sociedades. Essa distinção, se ainda não está clara
para o leitor, com certeza se tornará cristalina nas páginas seguintes.
Essa nova narratologia, à qual me filio, dedica-se ao estudo dos processos
de relações humanas que produzem sentidos através de expressões narrativ
sejam elas factuais (jornalismo, história, biografias, manifestações orais,
por exemplo) ou ficcionais (romances, contos, cinema, telenovelas,
mitos). Procura entender como os sujeitos sociais constroem
intersubjetivamente seus significados pela apreensão, representação e
expressão narrativa da realidade. A produção cultural de sentidos é,
portanto, um fator prévio que implica e engloba essa nova narratologia.

Assim, a nova narratologia não se reduz mais às expressões


ficcionais, não é um ramo da teoria literária. Inclui todas as produções
do ser humano cuja qualidade essencial é o relato de uma sucessão de
estados de transformação e cujo princípio organizador do discurso é o
contar. Como princípio produtor de sentidos, interessa à historiografia,
ciências políticas, antropologia, direito, comunicação e outras ciências.
Dessa maneira, a narratologia atribui às narrações uma posição de
centralidade nas intersubjetivas relações humanas, capaz assim de dar
conta da realidade física e cultural do ser humano.

Alguns psicólogos afirmam que nossa tendência para organizar


a experiência de forma narrativa é um impulso humano anterior à
aquisição da linguagem mesma, investida de canonicidade, conforme
realçamos antes: temos uma predisposição primitiva e inata para
a organização narrativa da realidade (BRUNER, 1998). A nossa
biografia, por exemplo, não é apenas uma autopercepção do nosso eu. Ser
um eu com passado e futuro não é ser um agente independente, mas
estar imerso em relações, em um processo ininterrupto em marcha,
em sequências globais dirigidas a metas, que diferenciam o eu dos
outros (GERGEN, 1996).

Desde essa perspectiva original, a atitude narrativa antecede os


acontecimentos: o contar êprecedido de umapré-estrutura narrativa que estabel
uma meta, algo a explicar, um estado a alcançar. Para Gergen (1996), sonhamo
narrando, imaginamos narrando, relembramos narrando, acreditamos,
duvidamos, construímos, conversamos, aprendemos, amamos e
odiamos narrando porque queremos alcançar algum objetivo com
as nossas narrativas, alguma meta, ainda que distante e mesmo
inconsciente, em alguns casos. Nossas vidas são acontecimentos
narrativos, as exposições narrativas estão incrustadas na ação social.
Essa nova perspectiva, com a qual concordo, põe as narrativas na cultura,
na sua significação cultural e antropológica. Melhor dizendo, enfatiza a determinação
cultural das narrativas.

A narratologia que defendo parte do pressuposto de que a


organização dramática dos discursos em sequências encadeadas ocorre
espontaneamente, e é intuitivamente reconhecida pelos seres humanos. As
narrativas são fatos culturais (não apenas literários). Em suas expressões
linguísticas, os humanos se expressam construindo blocos semanticamente
coesos que dão tessitura às estórias. Essa espontaneidade e a intuição
narrativa revelam que a narração é um fato universal e transcultural,
comum a todas as culturas: é uma substância comum e inquestionável de todos os
seres humanos (a fatalidade de narrar, no dizer de alguns).

A partir daí, a narratologia se revela não como um ramo das


ciências da linguagem, nem como um desdobramento da teoria
literária, mas como uma forma de análise e de campo de estudo
antropológico, porque remete à cultura da sociedade e não apenas
às suas expressões ficcionais. A narratologia pode ser utilizada não
somente para a crítica de romances, filmes, contos e novelas, como
ocorre predominantemente ainda hoje, mas como um procedimento
analítico para compreender os mitos, asfábulas, os valores subjetivos, as ideologias,
a cultura política inteira de uma sociedade. A análise da narrativa passa a
lidar com a questão da construção dos significados, servindo para
observar os valores canónicos de uma cultura e os seus desvios.

A narratologia desloca-se da teoria literária (ainda que preservando


muitos conceitos dela decorrentes) para tornar-se um procedimento
de análise social geral. Além de colocar a comunicação narrativa no seu
contexto interacional e pragmático, essa compreensão da narratologia a
remete à filosofia da linguagem, às teorias da recepção estética e dos mundos
possíveis, à psicanálise, aos processos cognitivos, à retórica, à psicologia
social, à historiografia. A narratologia adquire um caráter multidisciplinar. Ela
perde o seu caráter de análise imanente, limitada ao texto, e cresce para situar-
se ao nível das relações culturais, dos atos defala em contexto, aos usos pragmáticos da
linguagem em situações e sociedades culturalmente localizadas.

O cerne da narratologia que estou sugerindo é a observação


da lógica narrativa como um fato cultural em contexto e em uma
situação de comunicação. A narração produz sentidos, articula noções,
integra o objetivo e o subjetivo em significações canónicas. A partir
dessa constatação, passa a ser importante observar a lógica narrativa
em atos de linguagem socialmente situados, em seus usos práticos e
cotidianos. Aspectos da lógica narrativa podem e devem ser observados
no interior das narrativas, mas lembrando que eles ocorrem em uma
situação de comunicação específica, em uma sociedade ou contexto
cultural concreto, em função de estratégias, estratagemas e astúcias
argumentativas particulares.

A lógica narrativa é o agrupamento de unidades que se coesionam


sintaticamente ao serem articuladas em sequências e intrigas dramáticas.
Mas elas se organizam assim por razões das estratégias discursivas dos
indivíduos e grupos envolvidos nos atos comunicativos. Organizadas
narrativamente, as intrigas produzem significados, interpretações
da realidade, proporcionam inteligibilidade à natureza e às relações
humanas. Mas são os sujeitos que fazem isso, conforme suas intenções
e desejos. Ao estabelecer sequências dramáticas de continuidade (ou
descontinuidade), eles integram ações no passado, presente e futuro,
dotando-as de sequenciação, criando o tempo do relato no relato, mas
fazem isso em razão de seus interesses comunicativos. Agem, assim,
em decorrência das circunstâncias situacionais e históricas. O relato
perspectiva os estados e as ações em momentos históricos (mudanças
evolutivas), mas isso obedece a interesses e desejos dos sujeitos
narradores e narratários, em uma correlação comunicativa e de poder.
A análise busca verificar como se produz sentido através de expressões
narrativas. Mas faz isso para entender como os sujeitos coconstroem
significados em uma situação de correlação, de diálogo ou de força,
de troca argumentativa das interpretações possíveis, e muitas vezes até
divergentes, da realidade social.

Ou seja, os discursos narrativos se constroem através de


estratégias comunicativas (atitudes organizadoras do discurso) e
recorrem a operações e a opções (modos) linguísticos e extralinguísticos
táticos para realizar certas intenções e objetivos. A organização
narrativa do discurso, ainda que espontânea e intuitiva, não é aleatória:
realiza-se em contextos pragmáticos e políticos e produz certos efeitos
(consciente ou inconscientemente desejados). Quando um narrador
qualquer configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz
necessariamente uma força ilocutiva eperlocutiva (para utilizar expressões
dos filósofos ingleses J. Austin e J. Searle) responsável pelos efeitos que
vai gerar no seu destinatário.

A comunicação narrativa gera, assim, certo tipo de relação entre os


interlocutores e pressupõe, além de um código comum e uma empatia
mínima entre òs interlocutores, um universo compartido, uma cultura
comum. A comunicação narrativa pressupõe, portanto, uma estratégia
textual que interfere na organização do discurso e que o estrutura na
forma de sequências encadeadas de certa maneira, e em uma retórica
própria para dar conta da finalidade desejada. Implica competência e
utilização de recursos, códigos, articulações sintáticas e pragmáticas: o
narrador investe na organização narrativa do seu discurso e solicita uma
determinada interpretação por parte do seu destinatário. A partir desse
entendimento (ou divergência), nos damos conta de que as narrativas
não são apenas, nem principalmente, puras representações da realidade,
mas formas de organizar nossas ações em função de estratégias culturais
em contexto. As narrativas e narrações são dispositivos discursivos que
utilizamos socialmente, em contexto, de acordo com nossas pretensões.
Narrativas e narrações são formas de exercício de poder e de hegemonia
nos distintos lugares e situações de comunicação. Os discursos narrativos
literários, históricos, jornalísticos, científicos, jurídicos, publicitários e
outros participam dos jogos de linguagem e dos jogos de poder. Analisar
as narrativas se transforma em observação de ações e performances
socioculturais, mais que de relatos isolados.

No capítulo anterior falamos de narrativas e construção


da realidade. Mas é preciso voltar ao tema aqui. As narrativas são
representações, construções discursivas sobre a realidade humana.
São representações mentais linguisticamente organizadas a partir de
nossas experiências de vida. Sejam elas fictícias ou fáticas, são sempre
construções de sentido sobre o mundo real ou imaginado. Se a narrativa
relata uma estória inventada por alguém, um conto, um romance, uma
telenovela, uma história em quadrinhos, por exemplo, é uma ficção,
uma construção sobre um universo imaginado que não existe (embora
verossímil). Se a narrativa relata uma história verdadeira acontecida no
mundo real, uma reportagem sobre uma ocorrência em nossa cidade,
a biografia de um político, a descrição de um episódio histórico, por
exemplo, é igualmente uma construção discursiva sobre as coisas do
mundo, uma versão entre tantas outras possíveis sobre os episódios ou
as pessoas reais. Já discuti essa questão no capítulo anterior. Quero com
essas afirmações realçar mais uma vez que as narrativas são sempre
construções discursivas, sejam fáticas ou fictícias.

Isso significa que o mundo cultural passa a existir na medida em que


nósfalamos sobre ele, nós o relatamos e construímos. Mas não quer dizer que
mundo físico e social não exista, ou só exista nos discursos. Quer apenas
dizer que a realidade física e social se introduz nas práticas humanas por
meio de categorias e descrições que formam parte das práticas humanas
da linguagem. Ou seja, o mundo não está previamente classificado e
categorizado por deus ou pela natureza de uma maneira tal que todos
nos vemos constrangidos a aceitar, tal ou qual (POTTER, 1998). São os
homens que classificam, através de algum tipo de linguagem e moldura, o
mundo no qual os seres humanos vivem. O mundo passa a existir para os
seres humanos na medida em que as pessoas falam sobre ele, o discutem
e descrevem, o classificam e demarcam, na medida em que organizam
representações mentais a respeito dele e, por razões cognitivas ou políticas,
atribuem credibilidade e legitimidade a essas representações.

Os discursos sobre o mundo, incluindo as narrativas, são práticas


discursivas de construção do mundo. O mundo físico e o mundo
das relações sociais são o referente imprescindível para a criação de
significados, mas a referencialidade é uma atribuição da linguagem, não do
referente. Os indivíduos não experimentam suas condições sociais de
existência, mas as constituem significativamente. A experiência não é fruto do
impacto da realidade sobre a subjetividade, mas resultado da apreensão
discursiva da realidade. As experiências por si mesmas não prescrevem
condutas: só o fazem ao seiem consideradas, pensadas, dotadas ou
privadas de relevância. A própria experiência é um acontecimento
linguístico que não ocorre à margem de significados (CABRERA, 2001).

De um ponto de vista epistemológico, o argumento principal


que desenvolvo aqui sobre as narrativas como construção sustenta que
a esfera física não é uma entidade de caráter objetivo, nem as ações
sociais estão determinadas com independência da consciência. Ao
contrário, sustenta que as narrativas sobre o mundo (físico, histórico ou
ficcional) são discursos sobre o mundo, percepções e descrições sobre
o mundo, não o mundo em si. Nossa maneira de descrever e de contar
o mundo físico e humano revela sempre percepções particulares destes
mundos, formas particulares de perceber e de contá-los.

De um ponto de vista cognitivo, o argumento que estou


seguindo afirma que não ocorre nunca um conhecimento direto de um
determinado fenómeno: conhecer não é reproduzir nem representar o
mundo, mas criá-lo. Dificilmente se poderá apreender o real sem uma
teoria. O real, para ser qualificado como real, deve ser conhecido de algum
modo. E para conhecer necessitamos de alguma linguagem, a linguagem
é a priori. Algo passa a ser real desde o momento em que se encontra
em certa relação conosco. O que constitui a realidade é o sentido de
nossa experiência e não a estrutura ontológica dos objetos. Em outras
palavras, a realidade é uma questão epistemológica, não ontológica
(MÈLICH, 1998). As nossas experiências de mundo sempre têm lugar
através de uma mediação. No mundo da vida cotidiana a mediação não é
teórica (ao contrário da ciência), mas natural e intersubjetiva: não só está
pontuado apenas por objetos e coisas, mas por semelhantes com quem
estabelecemos relações de diálogo ou de conflito. Ser humano significa
viver num mundo que está ordenado, que tem e faz sentido, embora esse
sentido tenha sido construído por relações de poder e hegemonias.

É importante observar que não apenas construímos o mundo


ao descrevê-lo, mas antes ainda, construímos o mundo ao observá-lo e
percebê-lo. A percepção, o próprio ato de perceber é um ato de interpretar:
isolar, selecionar, concentrar a atenção, priorizar são já partes constitutivas
da nossa construção de mundo. O que se apresenta como objeto é
resultado de uma coordenação organizada de certos sinais sensomotri^es
(SCHMIDT, 1997): os observadores não podem falar de um objeto em si
ou de um objeto como tal - podem unicamente descrever linguisticamente
um objeto. O mundo que experimentamos é como é porque nós o
fizemos assim. Como observadores, podemos ter um mundo real, mas
conscientes de que se trata de nossa própria construção. A realidade é
sempre um modelo (ainda que contraditório) de mundo, mas sempre
um modelo, uma construção, tanto na ficção como na história.

A noção de discurso assume um papel importante nessa


perspectiva (assim como a noção de narrativa) porque o interesse volta-
se para a palavra humana, para as significações e as interpretações,
para os atos de fala como práticas sociais. A retórica também ganha
importância como forma de argumentação nas práticas discursivas e
narrativas. Os recursos retóricos, no sentido amplo e mais recente do
termo (uso de metáforas, hipérboles, sinonímias, por exemplo), são
estrategicamente utilizados pelos sujeitos falantes a fim de convencer
seus interlocutores de que aquilo que dizem nos seus atos de fala é
convincente. Os diversos discursos são proferidos regularmente por
indivíduos e por grupos sociais em suas relações sociais corriqueiras e
competem entre si para serem aceitos como mais convincentes. Alguns
autores (LYOTARD, 1998; POTTER, 1998) utilizam a metáfora da
guerra para enfatizar os jogos de linguagem, o uso de recursos retóricos
e a competição entre os diferentes discursos sociais, sendo as narrativas
uma das formas desses discursos e jogos de linguagem.

As construções discursivas conformam um corpo relativamente


coerente, mas também contraditório, conflitivo, cambiante e ajustável,
mediante o qual os indivíduos apreendem e conceituam a realidade
física e cultural em cada situação histórica. Essas construções
conformam uma rede conceituai mais ou menos estável que nomeia,
identifica, classifica, ordena, representa e regula as práticas culturais,
e outorga significados ao contexto social. Os significados não estão,
portanto, previamente inscritos na realidade, mas dependem do corpo
de categorias aplicadas em cada caso. Alguns autores utilizam o termo
metanarrativas para designar as tramas causais que proporcionam marcos
conceituais de fundo e dão significado aos acontecimentos individuais,
transformando-os em episódios significativos. Essas metanarrativas
desenvolvem apropriações seletivas da ilimitada série de acontecimentos
sociais e determinam como serão processados e hierarquizados os
acontecimentos estruturadores das relações e instituições sociais
(SOMMERS, 1992).

Esse debate filosófico não pode ser apresentado aqui em


toda a sua riqueza e complexidade. Alguns de seus aspectos foram
mencionados nas páginas precedentes. Há discussões importantes em
curso na filosofia, nas ciências sociais e cognitivas, e o debate sobre a
construção discursiva da sociedade prossegue em diversas disciplinas,
como a história, a teoria literária, a antropologia, a psicologia, a
comunicação. Enfatizei alguns aspectos apenas para deixar mais
claro como as narrativas, enquanto construções discursivas, atuam na
constituição da realidade social.

86 I ANALISE CRÍTICA DA NARRATIVA


Em resumo, a perspectiva que sigo argumenta que o corpo de
categorias e conceitos mediante os quais os indivíduos apreendem e
ordenam significativamente a realidade cultural não é um reflexo
subjetivo de uma estrutura social objetiva, mas uma esfera social
específica dotada de uma lógica própria. Em toda situação histórica
existe um sistema estabelecido de regras de significação que medeia
ativamente entre os indivíduos e a realidade social. (CABRERA,
2001). Os conceitos e categorias que dão origem às práticas e
relações sociais conformam uma complexa e contraditória rede
cuja natureza não é objetiva nem subjetiva, mas tem lugar através
de mecanismos intersubjetivos específicos. Formam uma estrutura
relacional independente que se desenvolve e muda conforme processos
próprios.

A narratologia, como teoria e método que estuda a construção


de sentidos nas relações humanas narrativas, apoia-se em pressupostos
epistemológicos que a inserem nas teorias interpretativas da sociedade
(hermenêutica). Essas teorias surgiram nas últimas décadas no interior
de um movimento que hoje está sendo reconhecido como giro linguístico
da filosofia, como já observei. Este giro faz parte de um movimento
intelectual amplo e diversificado que se posicionou criticamente em
relação aos paradigmas positivistas nas ciências humanas, cujas origens
estão no racionalismo que se instalou nas ciências em geral desde os
últimos três séculos como uma cosmovisão da idade moderna.

Essa cosmovisão racionalista enfatiza a razão e a ciência como


guias dos homens, únicos meios para explicar o mundo. Coloca ênfase
na necessidade de observar a realidade e as relações humanas desde
uma posição externa, empírica e objetiva. Gradualmente, instalou-
se uma fé cega na racionalidade das ciências em geral. Nas ciências
humanas instalou-se o argumento de que os fenômenos sociais são
expressivos por si mesmos e podem ser mensurados através das
mesmas formas racionais das ciências físicas como fenômenos externos
ao analista.
Essa cosmovisão sofreu uma contundente crítica nas últimas
décadas, que erodiram seus fundamentos principais. Não posso
fazer aqui uma revisão das críticas ao paradigma empirista, pois isso
demandaria um enorme esforço e espaço. Inúmeros autores em diversas
áreas dedicaram amplos argumentos e milhares de artigos e livros sobre
a impossibilidade de os homens tomarem a realidade como expressiva
por si própria, como algo externo à observação humana. Eu mesmo
disse muito sobre isso nos capítulos precedentes e não preciso revisar
mais uma vez todos esses argumentos. A crítica ao empirismo revelou
a teoria de sociedade que sustenta e posiciona a nova narratologia
entre as ciências interpretativas, no interior do movimento ao qual nos
referimos como giro linguístico.

Mídia e a comunicação narrativa - Na contemporaneidade,


quando a humanidade consolida cada vez mais um conhecimento
indireto do mundo através das diversas linguagens (verbal, gestual,
visual, sonora, eletrônica, digital) e de novos meios tecnológicos cada
vez mais sofisticados, a representação e instituição do mundo pela mídia
adquiriram uma importância ainda mais fundamental. E a construção
e constituição do mundo na forma narrativa através da mídia, uma
relevância ainda mais estratégica. Compreender os processos cognitivos
e gnosiológicos por meio das criativas e inovadoras formas narrativas
que abundam na mídia tornou-se hoje um desafio instigante para
profissionais e analistas.

A narrativa traduz o conhecimento objetivo e subjetivo do


mundo (o conhecimento da natureza física, das relações humanas,
das identidades e personalidades, das crenças, dos valores, dos mitos)
em relatos. Isso quer dizer que a forma narrativa de contar as coisas
está impregnada pela narratividade, isto é, a qualidade de descrever
algo enunciado em uma sucessão de estados de transformação. Toda
e qualquer narrativa é a enunciação de uma sucessão de estados de
transformação. É a enunciação dos estados de transformação que
organiza o discurso narrativo de uma determinada maneira, conforme
anteriormente explicado, produz certas significações e dá sentido às
coisas e aos nossos atos. A partir dos enunciados narrativos colocamos
as coisas em relação umas com as outras, em uma ordem e perspectiva,
em um desenrolar lógico e cronológico. E assim que compreendemos a
maioria das coisas do mundo. Mas, quais são os enunciados narrativos
predominantes na mídia, e que efeitos de sentido produzem?

As narrativas podem ser, como já vimos, factuais e imaginárias,


permanecendo ambas narrativas. As narrativas factuais, por um lado,
procuram estabelecer relações lógicas e cronológicas das coisas físicas
e das relações humanas reais ou fáticas. As narrativas ficcionais, por
outro, procuram estabelecer relações lógicas e cronológicas das coisas
imaginadas ou fictícias. Ambas, entretanto, são atividades miméticas
(imitativas) das ações humanas, metáforas da vida, e guardam com o
referente empírico uma relação mais ou menos íntima, dependendo da
intenção de verdade de cada uma delas.

A historiografia e o jornalismo são exemplos da narrativa


objetiva, relatos que pretendem se aproximar do real. Os narradores
da história e do jornalismo procuram, por estratégias e artimanhas
próprias (veremos isso em detalhes no capítulo sobre metodologia),
manter a objetividade do relato, representar fielmente o real: procuram
contar desde uma visão externa dos fatos, para provocar a falsa imagem
que os fatos falam por si mesmos. Os contos populares, os mitos e a
literatura são exemplos de narrativas fictícias, fundadas na imaginação,
sem o compromisso de representar fielmente o real (o mundo do
como se). Os narradores dos mitos e da literatura não se atêm aos
fatos nem procuram ser fiéis à realidade. Ao contrário, criam suas
narrativas, remetem em maior ou menor grau à fantasia, e não evitam
contaminá-las com seus próprios valores morais, éticos e estéticos.
Nesse caso, não são os fatos que falam, é um narrador quem media
mais explicitamente entre a realidade e a audiência. Embora a literatura
ou o cinema, por exemplo, necessitem contar ficcionalmente estórias
minimamente verossímeis para obter a verossimilhança, certo grau
de conformidade com normas verdadeiras, a fim de obter credibilidade:
"um texto fictício tem maior ou menor verossimilhança (oferece maior
ou menor ilusão) dependendo do grau em que se corresponde com aquilo
que se presume seja a realidade verdadeira" (PRINCE, 1987, p. 102).
Para fazer sentido e conseguir os efeitos desejados pelo narrador, a
literatura necessita ancorar os fatos no real. Mesmo a literatura fantástica,
que relata casos absurdos, necessita reafirmar o real para remeter seus
leitores ao mundo irreal, a fim de provocar os efeitos de espanto ou
assombro (MOTTA, 2006). O grau de verossimilhança ou de fantasia
de um conto, romance ou telenovela depende da intencionalidade
do autor e da estratégia narrativa que ele adota para confirmar essa
intencionalidade: alguns contos ou telenovelas podem ser mais
realistas, outros, mais fantásticos. Podem ainda explorar um terreno
híbrido como o realismo fantástico da literatura latino-americana e de
algumas telenovelas brasileiras. Por outro lado, a historiografia realista
também relata e gera inevitavelmente subjetividades quando destaca o
papel de um herói nacional, quando relata a vitória heróica de certo
segmento social frente a outro em uma batalha ou movimento social,
por exemplo. Os relatos históricos ou jornalísticos estão impregnados
de subjetividades, mesmo quando fazem um esforço para dessubjetivar-se
Essa discussão foi feita com detalhes na parte sobre a historiografia, no
primeiro capítulo deste livro.

A partir das observações acima é fácil constatar que as narrativas


midiáticas podem ser tanto fáticas (notícias, reportagens, entrevistas,
documentários, transmissões ao vivo, entre outros) quanto fictícias
(filmes, telenovelas, videoclipes musicais, anúncios narrativos, por
exemplo). Podem ser híbridas em muitos casos, como nos programas
de auditório, entrevistas ou comerciais que necessitam remeter o
consumidor ao seu mundo real para realizar o efeito de sedução e
convencimento, assim como outras narrativas midiáticas.

Os relatos veiculados pela mídia exploram estrategicamente o


fático e o imaginário buscando ganhar a adesão do ouvinte, telespectador
ou internauta, procurando envolvê-lo e provocar certos efeitos de
sentido. Exploram o fático para causar o efeito de real (a objetividade e
a veracidade) e o fictício para causar efeitos emocionais (subjetividades,
emocionalidades). Tudo depende da intenção do narrador midiático
e das estratégias dele. É preciso analisar cada caso para constatar se
a narrativa midiática é predominantemente fática, fictícia ou híbrida,
verificar a intencionalidade do narrador manifesta no texto, e os efeitos
pretendidos. Na parte deste livro sobre procedimentos operacionais
de uma análise o leitor encontrará dicas para identificar no texto as
intenções de seu narrador, tanto as fáticas quanto as fictícias.

O mais importante aqui é observar que a forma narrativa está


muito mais presente na mídia do que se imagina. Os jornalistas,
produtores, diretores e editores de TV e de cinema, os roteiristas e
publicitários sabem que os homens e mulheres vivem narrativamente o
seu mundo, que eles e elas constroem temporalmente suas experiências.
E exploram com astúcia, premeditação e profissionalismo o discurso
narrativo, para causar efeitos de sentido. Fazem isso tanto quando o
efeito pretendido é o efeito de real como quando o efeito desejado
é a emoção. Mesmo em um anúncio gráfico onde só há a fotografia
de um homem ou de uma mulher em uma situação estática (quando
aparentemente não há um estado explícito de transformação), por
exemplo, o efeito pretendido pode ser remeter a audiência a um mundo
possível, onde as coisas se passam de uma forma idealizada. Ou seja,
o anúncio de uma única foto publicitária realça aspectos da vida das
pessoas, de como elas são e de como deveriam ser, procura remeter a
imaginação para as vidas individuais, para as estórias e biografias de
cada um, criando desejos a partir de imaginários pessoais, remetendo
a narrativas imaginárias. Mesmo quando a imagem revela o flagrante
de um só momento e nenhum estado de mudança aparente, a foto
pode insinuar mudança, estimular estórias ao redor do tema. Basta
descobrir os indícios e as marcas do texto (da foto) que estimulam uma
estória, e a narrativa saltará aos olhos. O que estamos sugerindo é que
o analista procure na mídia estórias (narrativas) onde aparentemente
elas não parecem estar presentes. Ele se surpreenderá ao notar como o
discurso narrativo permeia inúmeros tipos de mensagem em todos os
meios de comunicação, inclusive nas mensagens curtas e herméticas
da internet.

Essas considerações são importantes para cada analista se dar


conta de que a narratologia midiática é diferente da narratologia
literária. Na análise da mídia precisamos colocar o foco no processo
de comunicação narrativa, na atitude e na posição do narrador, em
suas intencionalidades e estratégias, seu papel mediador, nos dêiticos
e implicaturas, nos efeitos de sentido possíveis e em outros aspectos
do processo integral de comunicação narrativa - e não apenas com
o produto, como faz a narratologia literária cujo foco permanece
ainda na obra e nas suas estruturas imanentes. Procedimentos desta
análise são sugeridos nos capítulos sobre metodologia, a seguir. O analista
precisa levar em conta as condições de produção do narrador,
a narração como ato de fala em contexto, a retórica utilizada,
os jogos de linguagem, a dialética entre as intenções do narrador e os
reconhecimentos dos destinatários, a narratividade encoberta ou
descoberta, as ações potenciais do destinatário (a audiência) no seu
ato de leitura e interpretação do texto (ISER, 1999a), a experiência
estética da recepção, o jogo de cocriação de sentidos (JAUSS, 2002) e
outros fatores do ato comunicativo.

Só considerando a narrativa como o nexo de uma relação


comunicativa entre narrador e destinatário o analista será capaz de chegar
à questão das intencionalidades, da interpretação e da confirmação
(ou não) dos efeitos pretendidos, e descortinar uma compreensão
integral do processo. Assim, ele será capaz de utilizar a análise da
narrativa não apenas como um instrumento de crítica e erudição,
mas como um instrumento capaz de descortinar os metassignificados
culturais e ideológicos produzidos pela mídia em cada sociedade e
em cada situação histórica concreta. Repito: interessa ao analista da
comunicação narrativa não somente a narrativa em si, mas o processo
de comunicação e enunciação, as relações de poder entre o narrador e o
destinatário, as intencionalidades implícitas ou explícitas. Não somente
o conteúdo isolado, ainda que a análise recaia predominantemente
sobre o enunciado ou dela parta.

Remeto o leitor interessado nesses temas à leitura de meu livro


Notícias do Fantástico —jogos de linguagem na comunicaçãojornalística (MOTTA,
2006). Nessa obra, explico em detalhes as técnicas e procedimentos da
análise pragmática de um ato comunicativo jornalístico e realizo análises
empíricas que podem servir de orientação ao interessado em estudar o
jogo entre os efeitos pretendidos, os mundos possíveis que o texto do
enunciado suscita, e os resultados logrados pela retórica empregada.
No estudo, utilizando os ensinamentos do já citado H. Paul Grice,
meu interesse privilegia a performance conversaáonal dos interlocutores,
os sentidos induzidos decorrentes da retórica utilizada, as metáforas,
ironias, hipérboles e outras figuras de linguagem. Chego à conclusão
de que há um sugestivo e paradoxal jogo cognitivo de coconstrução de
sentidos na comunicação jornalística, pois as notícias repassam instruções
de uso para muito além do relato dos conteúdos literais.
Capítulo 4

Narrativa jornalística e história do presente


Tempo e intriga nojornalismo - O que é uma narrativa jornalística?
0 que a caracteriza? No jornalismo, a narrativa se configura muitas
vezes em uma única reportagem ou em uma notícia tipo fait divers
(notícias de interesse humano, relatos de dramas e tragédias pessoais,
fatos insólitos, lugares pitorescos), cuja estrutura fechada se assemelha
à do conto (MOTTA, 2006). Nesse gênero de reportagem, tipo soft
news, o jornal e seus editores concedem ao repórter uma liberdade
maior para criar, relatar e contar em uma linguagem quase literária
ou quase ficcional. O repórter se desvencilha então dos rigores
da linguagem enxuta e objetivada, do compromisso de se manter
próximo ao referente empírico, e ganha liberdade para imaginar,
criar e sugerir no texto efeitos estéticos de sentido. Em alguns casos,
ganha até mesmo liberdade para relatar na primeira pessoa. O texto
desse gênero de reportagem afasta-se do jornalismo duro do dia a dia,
adquire maior dramaticidade, uma estrutura semelhante à do conto,
e pode ser estudado conforme qualquer outra narrativa de ficção,
porque sua intenção é menos produzir efeitos de veracidade que
efeitos estéticos próprios da ficção.1 Este tipo de narrativa jornalística
apresenta problemas próximos aos da análise literária, e não traz desafios
operacionais diferentes dela. Seus procedimentos serão semelhantes
aos da análise das narrativas da ficção, embora eu os tenha analisado
anteriormente como uma paradoxal coconstrução da realidade.2

1 Barthes (2009) diz que os fait diver são informações totais que contêm em si todo o seu

saber e que não é preciso conhecer nada para consumir um fait divers. Ele não remeteria
formalmente a nada além dele próprio. No nível da leitura, diz Barthes, tudo é dado no
fait diver. suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seu desenlace, um ser total que não
remeteria formalmente a nada. Por isso, prossegue o autor, ele aparentaria ser um conto,
uma estrutura fechada. Cito o autor porque seu resumo define bem a semelhança narrativa
entre o fait diver e o conto. Mas identifico neste argumento um excesso de imanentismo, do
qual discordo em várias passagens deste livro.
2 Em uma análise pragmática de dezenas de fait diver publicados nos jornais de referência

brasileiros cheguei à conclusão que há um sugestivo jogo de coconstrução de sentidos nos


Entretanto, o relato jornalístico por excelência é de outro tipo e
gênero. A grande maioria das notícias do dia a dia é redigida em terceira
pessoa, numa linguagem descritiva, direta e objetivada. Se o analista
quiser tomar este tipo de notícia como narrativa, enfrentará desafios
conceituais e metodológicos mais complexos. O texto dessas notícias é
enxugado de qualquer manifestação subjetiva e mantém uma proximidade
definitiva com o referente empírico. A intenção é produzir o efeito
de realidade, a veracidade. São as chamadas hard nem das editorias de
política, economia, internacional, cidades, por exemplo, escritas em
linguagem descritiva clara, direta, enxuta, que se quer objetiva.

A expressão mais visível desse estilo duro é o chamado lide


jornalístico, onde o repórter relata em linguagem direta o quê, quem,
onde, quando, como c o porquê do incidente reportado. O desafio do
analista para identificar o narrativo nesse texto duro, fragmentado e
inconcluso é muito maior porque o texto é seco, não tem a pretensão
de encadear sequências integrais nem de compor uma intriga no
sentido integral do termo. Da mesma maneira, não é fácil analisá-lo
como narrativa, jornalistas não contam estórias, reproduzem fielmente
a realidade como um espelho, diz o jargão da profissão. Em princípio,
não há nenhuma semelhança entre esse estilo duro e as expressões
narrativas poéticas, como os contos, filmes ou romances. Se as hard nem
não admitem subjetividade ou fantasia, são fragmentadas e inconclusas,
como, quando e por que considerá-las narrativas?

A meu ver, a lógica narrativa só se revelará nas duras e cruas


notícias do dia a dia se observarmos como elas lidam com o tempo
e o organizam. O tempo no relato jornalístico é difuso, anárquico,
invertido. Por isso, a lógica e a sintaxe narrativas só despontarão se
pudermos reconfigurar os relatos como unidades temáticas, intrigas

atos de fala jornalísticos (MOTTA, 2006). A análise demonstrou que, além de repassar
informações banais, esse tipo de notícia repassa outras instruções de uso
aos receptores: ativam
excedentes de significação para muito além da informação.. Essas notícias são atos realizativos
porque desencadeiam nos interlocutores performances cognitivas e metacognitivas de
exploração permanente entre o verossímil e o inverossímil, o absurdo e o normal, etc.
que contenham princípio, meio e final de uma estória única (como aliás
fazem, de maneira natural, os leitores, ouvintes e telespectadores nos atos
de recepção). Reunindo informações dispersas sobre um mesmo tema ou
assunto (que podem estar separadas por intervalos de dias, semanas ou
meses no noticiário), o analista junta as pontas, encontra os conectivos
e encadeamentos narrativos, os antecedentes e consequentes, recompõe
a serialidade, a sequência e a continuidade da intriga, como o leitor faz
corriqueiramente. O analista precisa reordenar temporalmente a estória,
configurar a cronologia do enredo que no jornalismo costuma apresentar-
se invertida: a estória começa muitas vezes pelo final, quando o incidente
é reportado, e só depois as causas e antecedentes são trazidos a público.
Recompor a serialidade é reorganizar o tempo narrativo no relato difuso
e confuso do jornalismo, que não produz uma definição dos limites
de cada estória. O analisa precisa identificar os conflitos, posicionar as
personagens, descortinar o clímax e o desenlace da intriga.

As notícias quase sempre começam pelo final da estória, quando


um fato surpreendente vem à tona in media res, outros fatos relacionados
pipocam difusamente sem ordem aparente, sem começo nem final
claros. Para encontrar a lógica narrativa nas hard nem, o primeiro
procedimento é tornar o difuso tempo jornalístico um tempo narrativo
ordenado, a fim de que as confusas informações sobre um episódio se
revelem então como uma síntese, uma estória cronológica dramática.
Portanto, é preciso reordenar inicialmente a difusa cronologia
jornalística porque ela não obedece à mesma ordem lógica de um
conto ou filme (comandados por narradores oniscientes, onipotentes,
direcionados para um desenlace).

A experiência do tempo jornalístico é mais desordenada e


confusa, menos cronológica que a experiência do tempo natural. Por
isso precisa ser domada pelo pensamento narrativo. A observação de
Benedito Nunes (2003) a respeito das diversas experiências do tempo
ajuda a entender a questão. Ele observa que a experiência do movimento
exterior das coisas prepondera no conceito de tempo físico, natural ou
cósmico, ao qual o homem agrega os princípios causais (causas e efeitos).
Daí a irreversibilidade do tempo físico, que tem inevitavelmente uma
direção. Já a sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito
de tempo psicológico ou tempo vivido, que é impreciso, variável e
subjetivo. Na narrativa, diz ele, a ordem temporal e a ordem causal se
distinguem, mas dificilmente se dissociam. Citando E. M. Forster (2005)
ele observa que, na narrativa, a ordem causal está para a temporal em
um grau maior de complexidade. A estória ou enredo (acontecimentos
dispostos em sua sequência) corresponderiam às relações temporais.
O elemento causal está implícito na relação temporal inseparável
dos mundos possíveis projetados. Para se convencer da razão deste
argumento, basta pensar os momentos de lacunas temporais, tempos
vazios, que o leitor precisa preencher para estabelecer uma solução de
continuidade às narrativas.

É preciso, portanto, reordenar a selvagem cronologia


jornalística, encontrar os antecedentes, identificar e reposicionar as
personagens, seus papéis e funções no desenrolar dos episódios; enfim,
domar pela força da ordem narrativa o selvagem tempo jornalístico.
Evidentemente, só após recompor as sequências e configurar o
aconteámento-intriga completo somos capazes de definir qual é o tema
da estória em questão. Mas a recorrente presença de personagens,
conflitos e cenários de um assunto nas páginas e telas confere a eles
certa unidade e continuidade, e nos autoriza a unir as partes, recompor
o acontecimento-intriga temático, como o leitor faz. Com essa retessitura
intriga aparecerá uma ordem narrativa lógica, como em um enredo.
Aparecem o significado orgânico de cada episódio, os conflitos
estruturantes, os papéis dos agentes, heróis, vilões, adjuvantes. Surge
uma representação (mimese) mais tangível que fará surgir também a
moral da estória (as metanarrativas de fundo). A estória jornalística
se revela então na sua totalidade. Os acontecimentos-intriga, oriundo
do duro jornalismo do dia a dia caracterizam, a meu ver, a narrativa
noticiosa por excelência, apagando a dura referencialidade e revelando
uma poéticajornalística.
A reconfiguração do acontecimento-intriga tem o mágico poder
de tecer a totalidade da estória e realizar a função de integração e de
mediação da intriga, como observa Ricoeur. Mediação entre eventos
dispersos e entre agentes heterogêneos (meios, fins, circunstâncias, por
exemplo). O tecer da intriga, diz Ricoeur (1994, p.103-104), combina uma
dimensão cronológica (episódica) com uma dimensão configurante, o
agenciamento dos fatos que constitui a unidade ou sistema, síntese do
heterogêneo. Seguir uma estória, completa ele, é avançar no meio de
contingências sob a conduta de uma espera que encontra sua realização
na conclusão. A conclusão é o final da intriga, é a síntese entre o
tempo narrativo linear e a dimensão configurante que transforma a
sucessão de eventos em uma totalidade significativa (temática).3 Nada
mais adequado para justificar a necessidade metodológica inicial, no caso
da narrativa jornalística, de reunir os fragmentos dispersos das notícias
isoladas em uma unidade temática coerente, passo a meu ver constituinte
já da análise em si. Sem uma intriga não há estória, sem estória não há
narração, e sem narração, a análise da narrativa não é possível.

Mas não se trata de reorganizar cronologicamente os eventos


noticiosos dispersos e recompor os fragmentos difusos das notícias
em uma estória serializada apenas, embora esse procedimento seja
determinante. A recomposição das notícias em uma nova síntese ou
acontecimento dramático (ou ainda acontecimento-intriga) gera um produ
cultural novo e diferente, remete agora a uma antropologia da notícia
que se dedica à compreensão da realidade imediata no transcurso cultural
de uma sociedade. Ao realizar essa recomposição do acontecimento-
intriga, passamos a compreender a mimese jornalística não apenas
como atividade de representação realista difusa do real fático, mas
como uma atividade produtora de sentidos culturais, uma mimese
histórica instituidora da realidade, formadora e constituidora do

3 Ricoeur (1994, p. 106) mostra que a configuração da intriga impõe aos sucessivos episódios
o sentido do pontofinal(o fim da estória), a totalidade da qual uma nova qualidade do tempo
emerge, como se escoando do passado em direção ao futuro, como na metáfora da flecha do
tempo: "é como se a recapitulação invertesse a ordem dita 'natural' do tempo".
pensamento contemporâneo em todas as dimensões dessa afirmação.
A análise da narrativa jornalística é um meio caminho entre a análise
da narrativa literária (ficcional) e a análise da narrativa histórica (fática),
integrando elementos dessas duas vertentes em uma síntese narrativa
nova e singular, que precisa dar conta da complexidade semiótica da
comunicação jornalística (ver o capítulo sobre metodologia neste livro).

O pressuposto aqui, além dos que assumi nas páginas anteriores,


é que os leitores ou ouvintes (público ou audiência) constroem
cognitivamente significados a partir de informações provenientes
do texto da notícia, mas também de informações do contexto e
de suas próprias experiências, memória e cultura. Fato importante,
considerando as lacunas de sentido e a inconclusão da fragmentada
narrativa jornalística. No jornalismo não existe ordem clara nem fixa
entre a informação nova que entra e as informações internas que o
próprio sujeito ativa no ato. A construção de representações mentais
é flexível, mas o objetivo é ser o mais eficar^possível na construção da
coerência narrativa. O leitor procede assim: ele procura, a todo
momento, dar maior coerência à estória que lê, vê ou escuta. Uma
estória sobre um incidente qualquer é compreendida por meio
de um processo no qual o leitor constrói uma interpretação de
maneira integrada com as intenções originais do narrador-jornalista
ao narrar, e a sua própria experiência e memória. A coerência é
obtida pela fusão de horizontes, sucessivas conexões significativas
que o leitor faz procurando ligações entre os fatos relatados com
os seus próprios mundos possíveis culturalmente referenciados, num
processo de correferência. A ordenação e os conectivos utilizados
nessas ligações provêm da memória local, mas principalmente
da memória de longo prazo que fornece ao leitor- os modelos e
molduras para ele fazer associações espontâneas e intuitivas no
ato de recepção. Assim, o leitor vai fazendo inferências através
das macroproposições do relato e constituindo uma explicação
teórica, vai construindo as sequências até chegar à trama ou enredo
da estória (VAN DIJK, 2000, p. 9-35).
O pesquisador catalão Albert Chillon (1999) chama de tematização
esse processo cognitivo dejuntarfragmentos em um só tema. E de tematologia o
estudo da capacidade dos indivíduos em transformar partes desordenadas
da atmosfera cognitiva circunvizinha dos meios de comunicação em núcleos
temáticos básicos. Segundo ele, os meios geram uma atmosfera composta
por alguns temas (topoi, loci), motivos, alegorias ou tipos primordiais,
uma paisagem hierárquica sobre o que é necessário conhecer para estar
em dia. Pertenceriam à tematologia os estudos sobre os mecanismos de
construção da realidade, da construção comunicativa de visões de mundo
mediante a focalização da atenção dos públicos em um conjunto de
fatos sugeridos pela indústria cultural (agenda setting, newsmaking e outras
correntes de estudo). Nessa linha, sugere ele, estudos comparativos dos
conteúdos do jornalismo com os dos mitos literários tipo Don Juan,
Édipo, Sísifo, Fausto, Carmen, ou com figuras-tipo como do avaro, do
adúltero e do duplo, ou ainda de temas arquetípicos como o amor, a
morte, a iniciação, o destino, etc. podem ser muito produtivos. Vejo
nesta sugestão um reforço para os argumentos aqui desenvolvidos.

Em outra obra, onde comenta a comunicação jornalística,


van Dijk reforça a ideia do tema como macroproposição geral do texto,
tornando o modelo ainda mais interessante para a narratologia
jornalística (VAN DIJK, 1996, p. 59-68). Para ele, o tema é uma
macroproposição subjetiva e estrategicamente deduzida, que ultrapassa
as sequências mediante macroprocessos de conhecimento baseados no
conhecimento de mundo, nas crenças e nos interesses pessoais. Um
tema desse tipo é parte de uma estrutura semântica hierárquica e
programática, definindo subjetivamente qual é a informação mais
importante, a substância do texto. Os interlocutores podem se referir
aos temas de diversas maneiras, de modo que quem escuta ou lê
pode efetuar rápidas conjecturas sobre o tema principal. Assim, os
temas funcionam como um atalho e um controle semântico global
sobre o entendimento local no micronível dos processos narrativos.
Como e com que precisão os temas se organizam na estrutura
temática totalizadora, pergunta o autor? Teoricamente, responde
ele, pressupondo que uma macroproposição de nível mais alto se deriva
de uma sequência de macroproposições de nível menor. Isso significa
que a macroproposição está sempre dialeticamente relacionada com as
microproposições das quais procede.

Assim, respondo à questão inicial desta seção: o que é a narrativa


jornalística, como ela se caracteriza? A narrativa jornalística pode estar
em reportagens mais ou menos literárias (sofinews), em que o repórter
tem maior liberdade para criar. Esse tipo de narrativa jornalística não
apresenta problemas para o analista, porque se assemelha às narrativas
da tradição, como o conto e a fábula, e sua análise poderá seguir passos
semelhantes à análise desse tipo de expressão narrativa. O problema
está em identificar a lógica narrativa nas difusas e dispersas notícias
duras (hardnews) da política, economia, internacional, por exemplo, que
compõem o grosso do material jornalístico.

Minha resposta se orienta para essas notícias, nas quais identificar


a sintaxe narrativa é um processo mais complexo. Aí, sim, os desafios
são grandes porque a lógica narrativa não se revela à primeira vista. A saída,
como indiquei, está em verificar inicialmente como essas notícias lidam
com o tempo, o desorganizam e o invertem. O analista precisa partir,
portanto, de uma reorganização do tempo narrativo desde a lógica
da composição da estória e a imposição da ordem que a intriga requer,
a fim de compreender como as fáticas notícias diárias se aproximam
da ficção, tornam-se contos, fábulas e mitos da contemporaneidade,
impregnando de subjetividade o que antes parecia pura objetividade.

Insisto: só recompondo as fragmentadas notícias fáticas como


uma intriga temática e coerente o analista poderá realizar uma
análise da narrativa jornalística enquanto um processo de coprodução ,de
sentidos. Depois de ter a intriga recomposta na mão, o analista será
então capaz de seguir adiante e compreender criticamente o processo
de comunicação narrativo jornalístico, suas ideologias, fábulas, mitos.
Só depois de remontar o acontecimento-intriga ele poderá analisar
as relações de poder entre os sujeitos interlocutores, a performance
comunicativa de cada um deles, observar a posição e os enquadramentos
do narrador (a perspectiva, os pontos de vista, por exemplo), identificar
o papel e a posição das personagens nos conflitos da estória, os jogos de
linguagem do jornalismo (como ironias ou metáforas), o uso e abuso dos
dêiticos e seus significados, as implicações, os subentendidos, os efeitos
de sentido. Seguindo as sugestões preliminares do capítulo anterior,
ele poderá compreender a comunicação narrativa jornalística como
um processo entre sujeitos interlocutores e observar as interpretações
de mundos possíveis, a experiência estética da recepção jornalística
onde esvaece o mundo fático e manifesta-se o mundo subjetivo das
ideologias, mitos e modelos de mundo.

Tempo e atualidade: a narrativajornalística como história do presente -


A compreensão da narrativa jornalística da forma como acabei de
propor remete à questão da história do presente. Por sua inerente
coetaneidade, onde se condensam o mundo imediato da vida e o mundo
do discurso sobre ele, as análises pragmáticas da narrativa jornalística
aqui sugeridas, de cunho cultural e antropológico, vão necessariamente
se encontrar com aquilo que alguns historiadores chamam de história
do presente. Mencionei anteriormente o valor do conceito de história
do presente para a análise da narrativa jornalística que aqui sugiro.
Aos céticos que perguntam por que fazer uma análise da narrativa
jornalística, respondo inicialmente que ela pode reconstituir a essência
da história do presente. Se o presente de fato se adensou e se expandiu,
como afirmam tantos historiadores, cresce a necessidade de analisar
a narrativa jornalística como instituinte e constituinte desse fugidio
presente. Até porque o jornalismo é a narrativa hegemónica sobre todas
as outras na construção da verdade imediata e do senso comum.

História do presente seria uma contradição em termos: só podemos


perceber a história que se passou a partir de certo distanciamento
temporal. Refutando essa assertiva para constituir-se como um ramo
da historiografia, a história do presente parte do pressuposto de que
percebemos e construímos o sentido do presente como uma história do
passado, como uma continuidade entre o que está acontecendo com o que
acabou de acontecer. Como se o presente passasse ininterruptamente para
o passado, de onde podemos perceber melhor o presente. Uma história
imediata, que não para de se mover, negando-se à acomodação.4 O desejo
de compreender como essa coetaneidade é apreendida cognitivamente
e reproduzida ideologicamente aumenta a responsabilidade de quem
realiza análises da narrativa jornalística. Nas últimas décadas, com
o progresso das tecnologias da informação e o advento dos meios de
comunicação eletrônicos e digitais, a nossa capacidade de observar cada
vez mais longe, mais distante, mais adiante e mais atrás, a percepção do
nosso presente cotidiano se expandiu, se aqueceu e se adensou: o presente
adquiriu um sentido histórico (de passado), fez crescer a consciência
histórica. Mais que antes, passamos a viver simultaneamente a história e
sua mimese, a vida e sua simultânea representação compondo instantes
em que realidade e ficção se distinguem cada vez menos.

Outro aspecto relacionado ao aquecimento do presente cotidiano,


e que justificaria o emprego da expressão, é que passamos a viver sob
o signo do acontecimento (o excepcional, o surpreendente) e de seus
ecos (a cobertura jornalística). Não apenas o acontecimento objetivo da
história positivista, marcada por guerras, batalhas, mortes de heróis que
distinguiam as grandes mudanças (e seguem distinguindo), como dizem
os historiadores. Para o analista da narrativa jornalística especialmente, o
acontecimento enquanto significação no seu sentido cultural e histórico.
Com o advento das novas tecnologias da informação, o jornalismo
ganhou um status ainda mais contundente como historiador do
presente, historiador de uma história falada e escrita pelos jornalistas e
seus colaboradores, crua, sangrenta, bruta, mal-acabada e mal-articulada,
sem refinamento, mas uma história com h.

4 Se quisermos ser preciosistas e rigorosos, imputaríamos ao jornalismo a configuração


da história imediata, uma história mais coetânea, selvagem e crua, ainda indomada,
relacionada às disputas políticas imediatas. E à historiografia que se dedica ao presente
expandido da contemporaneidade (dimensão temporal mínima que permita a consolidação
de representações mais tangíveis), a configuração da história do presente propriamente.
Como diz o historiador Jean de Lacoulture [S.d.]: se em algum
lugar pulsa o coração da história contemporânea, não é nos arquivos
silenciosos, mas no barulho das redações. Formador do acontecimento,
o jornalista é o historiador e o antropólogo natural da atualidade. É o
jornalismo que faz os acontecimentos do presente inteligíveis, faz os
incidentes tomarem a forma de sequências, faz as novidades adquirirem
significação minimante coerente e consistente, ainda que relativamente
provisória. Até porque a lógica do acontecimento é dupla: surge pela
ruptura e pelo conhecimento, necessita tanto da diferença quanto
do barulho que faz. Para tornar-se um acontecimento, um incidente
qualquer precisa tanto das forças de mudança próprias das narrativas
dramáticas quanto das potências da informação. Como diz Lacoulture: a
pesquisa do acontecimento precisa tanto da investigação das harmonias
e desarmonias quanto da repercussão de seus ecos. É nesses termos que
concebo a narrativa jornalística e a sua análise: partir do difuso, confuso
e desordenado tempo jornalístico para reorganizá-lo em uma narrativa
minimamente coerente, que dê conta da contraditória coprodução de
sentidos na atualidade, e que possa revelar o lugar cultural e ideológico
das estórias coetâneas que nos contamos sem cessar.

Os historiadores que se dedicam à história do presente refutam


a divisão passado-presente, originária da historiografia positivista que
fundou a história científica sobre essa distinção, como se o presente
só pertencesse à política, não à história. Como se fosse impositivo
negar-se à atualidade a dignidade da história. Não é essa a perspectiva
dos historiadores do presente, embora ela seja uma história quase
inalcançável, que se realiza sobre a instantaneidade do ao vivo, ou in
presentia, que não espera a canonicidade dos fatos e se elabora sobre
arquivos vivos (os homens e suas instituições políticas em ação).

Nem os historiadores do presente nem os analistas da


narrativa jornalística aqui proposta podem ignorar suas limitações e
constrangimentos analíticos, obviamente. Onde e como encontrar
os contornos de uma estória que continua a se mover, negando-se à
acomodação? Onde a narrativa se abre, onde está o epílogo? Onde se
fixa o acontecimento histórico: na memória histórica ou na memória
coletiva viva? Pode o analista do presente esperar a canonização
dos fatos para poder examiná-los integralmente? Como obter um
afastamento que garanta o distanciamento das paixões? Podemos
dar crédito às biografias pessoais? A proximidade do acontecimento
significa infidelidade à história? Por outro lado, um distanciamento
maior garantiria isenção? Como ir além dos acontecimentos midiáticos
coetâneos e encontrar fontes alternativas para fazer uma história mais
diversificada e plural do presente? Nenhum destes impedimentos
impede, porém, a busca da compreensão do presente coetâneo, vivo,
intenso do homem moderno.

Em relação a essas muitas perguntas e a outras, o historiador do


presente faz algumas vezes um voo quase cego. Mas tanto o historiador
como recapitulador dos fatos quanto o jornalista como narrador do
imediato precisam estar cientes de que seus atos discursivos modificam o
próprio transcurso do acontecimento em tela. Nesse sentido, o historiador
do presente (muitas vezes o próprio jornalista, como demonstra o grande
número de livros sobre a história escritos recentemente por jornalistas) é
ao mesmo tempo criador e reflexo dos acontecimentos, recompilador e
produtor de efeitos. A análise da narrativa jornalística adquire, na direção
dessas considerações, um trajeto revelador e iluminador da cegueira
jornalística. Quem sabe até para corrigir rumos, ao mesmo tempo em
que oferece ao historiador maior segurança epistemológica?

Dessa maneira, as análises da narrativa jornalística são realizadas para


compreender como se integram os sentidos fragmentados das notícias do
dia a dia. De que maneira elas se transformam, por meio de colaborações
ou de enfrentamentos entre os atores sociais envolvidos, em representações
unitárias mais ou menos tangíveis (estórias, contos, fábulas, ideologias em
ação). Até onde repetem motivos mitológicòs, psicanalíticos e simbólicos,
recorrem a temas da cultura popular para juntar o que a dinâmica da atividade
jornalística separa?
O primeiro passo, como já se disse, é reunir em uma coerência
de nível superior (níveis hierárquicos mais altos) as micrcproposições de
sequências menores dispersas. O analista precisa operar com rigor para
remontar as conexões, recuperar o anterior e reuni-lo ao posterior, tecer
os fios e recuperar as expansões para trás (flashbacks) e para adiante
(flashforwarct) da estória antes relatada de maneira difusa. Só a análise
da narrativa permite isso, permite integrar as unidades e episódios em
acontecimentos dramáticos unitários, e assim orientar a compreensão
do contínuo/descontínuo. Na linguagem de Greimas (1971), recriar as
isotopias que integram o heterogêneo em um todo homogêneo. Ou, no
dizer de Barthes et ai. (1971), identificar o encaixamento estrutural dos
elementos mediatos e imediatos. Assim, a análise da narrativa jornalística
permite recuperar a sequência horizontal do suceder lógico-temporal da
história, mas permite também fazer uma leitura vertical entre os sentidos
unitários das sequências com as suas significações mais profundas.

Os incidentes relatados dia após dia pelo jornalismo estão imersos


em metanarrativas maiores que recobrem de novos sentidos, que sem
uma análise rigorosa permanecem fragmentados, confusos, difusos.
Com a análise, a realidade imediata adquire novos clímax, suspenses,
desenlaces de estórias sucessivas que se encaixam em novos episódios
sucedâneos, constituindo uma obra, o acontecimento-intriga já explicado.
A análise, conforme sugeri, faz surgir também as metanarrativas de
fundo que recobrem esses acontecimentos dramáticos (ver capítulo
sobre metodologia de análise adiante). Os procedimentos da análise
pressupõem que é através desse processo gestáltico de reunião das partes
que a audiência constrói a realidade imediata, o presente. Revela que o
valorativo penetra no descritivo. A vida relatada se transforma enfim
em arte (em narrativa dramática) e a arte se converte no veículo através
do qual a realidade se torna integralmente manifesta e compreensível.

Falei o suficiente sobre a recomposição da intriga unitária, que


repõe as ações e incidentes esparsos do jornalismo em uma síntese
integradora. Mas esse procedimento traz questões ainda não mencionadas.
Por exemplo, conceitos operacionais da teoria literária podem ser úteis
quando aplicados à intriga temática sugerida. Essa aplicação proporcionará
ao analista identificar dimensões antes encobertas ou difusas. Apesar de
seu caráter imanentista, a teoria literária (análise da narrativa ficcional)
tem já um longo caminho percorrido e pode oferecer conceitos e
procedimentos metodológicos produtivos. A aplicação de conceitos como
ação, encadeamento, sequência, encaixe, analepse (flashback), prolepse
(flashfoivard), conflito, intriga, episódio, ritmo, suspense, desfecho e outros
oriundos da narratologia literária pode ser útil para revelar aspectos antes
nebulosos: quem é o narrador jornalístico, como ele organizou sua estratégia
narrativa noticiosa em função de efeitos de sentido pretendidos (efeitos
de veracidade ou efeitos estéticos), por exemplo. O caráter argumentativo
da narrativa jornalística, a disputa pelo poder discursivo, os jogos de
linguagem e outros aspectos saltarão aos olhos e a configuração da história
do presente ganhará coloridos ideológicos novos.

Outro exemplo ainda não enfatizado: o analista poderá também


recorrer aos ensinamentos dos roteiristas, cujos conceitos de storyline,
roteiro, script, fio da história e outros podem ser úteis ao desdobramento
da análise. O aproveitamento da narratologia hollywoodiana é citado em
outras partes deste livro e pode ser útil para revelar o caráter argumentativo
das intrigas jornalísticas. O analista poderá recorrer ainda à historiografia,
sobretudo à historiografia mais recente que trabalha com o discurso
como prática social de construção de significados, a fim de entender
de que maneira os acontecimentos se transformam em episódios e em
metanarrativas que se cristalizam em aconteámentos-intriga, marcos sociais e
cognitivos que ancoram o presente.

O analista terá necessariamente de recorrer ao texto das notícias


como ponto de partida, nas suas manifestações verbais, visuais e sonoras,
seja ele impresso, televisivo, eletrônico ou de outro suporte. Mas é bom
relembrar que embora tenhamos de partir necessariamente do texto
enquanto produto de uma atividade discursiva (de uma ação mimética
que produz representação), a opção que recomendo ao longo deste livro
- e particularmente aqui - é pela análise da relação comunicativa entre
sujeitos sociais vivos e ativos, que atuam discursivamente em contexto,
conforme enfatizo no parágrafo que encerra a análise da narrativa
midiática, e esclareço com mais detalhes no capítulo sobre metodologia.

Jogos de poder e estratégias narrativas no jornalismo - A partir da


perspectiva da narratologia que aqui proponho, o analista da narrativa
jornalística deve considerar a relação entre os interlocutores desse
gênero de comunicação em sua totalidade e especificidade, conforme
chamamos a atenção acima e detalhamos nos capítulos sobre
metodologia. Precisa levar em conta que há pelo menos três narradores
(ou vozes) sobrepostos na comunicação jornalística: 1) o veículo
(jornal, revista, telejornal ou jornal on-linè)\ 2) o jornalista (repórteres,
editores, ilustradores, apresentadores); 3) a personagem (vozes que se
manifestam nas reportagens, quase sempre em confronto uma com
a outra). No decorrer do processo de enunciação de cada assunto
reportado, esses três narradores levam a cabo uma negociação simbólica
e política com os outros narradores pelo poder de voz.

Na produção da narrativa jornalística, esses três narradores vivem


entre eles uma relação mais tensa que harmônica, e as forças envolvidas
nessa disputa pelo poder simbólico se refletirá na configuração final da
estória a ser publicada. O analista precisa considerar adisputados narradores
entre si na tarefa de mediação, e a dos dois primeiros com as suas fontes
na configuração da representação dos incidentes. Estudar as estratégias
dessas fontes para obter visibilidade, a negociação entre os atores sociais
em conflito para aparecer favoravelmente na intriga jornalística, o papel
do jornalista-narrador como mediador, as determinações da sua cultura
profissional, as estratégias comerciais e interesses do narrador-jornal (ou
telejornal), a configuração que o narrador-jornalista faz dos episódios,
a síntese temática que vai surgindo à medida que, dia a dia, as notícias
sobre um determinado assunto compõem os acontecimentos-intriga,
os efeitos de retardamento do desfecho, de criação de expectativas e
suspenses estrategicamente introduzidos pelo narrador, por exemplo. Na
parte sobre metodologia, adiante, oferecemos indicações mais precisas a
respeito das exigências desta análise.

O noticiário diário é um produto disputado pelos interesses


dos atores sociais envolvidos no conflito relatado (veículo, jornalistas,
personagens). Cada um deles tem interesses diferentes na divulgação
da estória. Esses atores sociais agem estrategicamente, às vezes
colaborando uns com os outros, às vezes se colocando em posições
antagônicas. O relato jornalístico é o produto possível entre pontos
de vista alternativos na correlação das forças que se confrontam
permanentemente nas páginas e telas: elas disputam o poder de voz.
Disputam a sedução, a visibilidade, o posicionamento favorável na
estória, a perspectiva ou ângulo através do qual a estória será contada
(ponto de vista), os enquadramentos, entre outros. Por isso, na análise
da narrativa jornalística, é importante observar de que maneira o
relato traduz essa correlação de forças entre os narradores interessados
e entre as fontes, futuras personagens da estória.

Por outro lado, o analista precisa também levar em consideração


a apropriação cognitiva que os sujeitos receptores fazem das estórias
pretensamente .objetivas narradas nas notícias, a experiência de
realidade a que as notícias costumam remeter, as experiências
catárticas que contraditoriamente as notícias ativam, as visões de
mundo implicitamente transferidas, a experiência estética que
transtorna portanto a recepção objetiva em outra de ordem subjetiva:
a interpretação ética, política e ideológica das informações objetivas
pelos sujeitos receptores (a audiência) nos atos de leitura, a recorrência
que os leitores fazem da memória de curto e de longo prazos no
processo interpretativo para auxiliar na configuração dos episódios
noticiados, e assim por diante.

Algumas narrativas jornalísticas atuais adquiriram o hábito


pedagógico de situar a estória contada por meio deflashbacks(intitulados
nas páginas e telas por expressões como para saber mais, para conhecer os
fatos, entenda a notícia). O uso recente de infográficos, tabelas, links e outro
recursos gráficos e audiovisuais situa retrospectivamente os fatos atuais
para o leitor, telespectador ou internauta. Novos recursos de linguagem
noticiosa que permitiram situar as causas, antecedentes e consequentes
das ocorrências, construindo emparceria com o leitor o todo orgânico, o
acontecimento-intriga.

Entretanto, é também uma característica do texto jornalístico


deixar lacunas, espaços vazios de sentidos que adiam o desenrolar
da intriga para o dia seguinte. Tanto porque nem sempre todas as
informações estão disponíveis quanto porque interessa às vezes
aos veículos liberar as informações a conta-gotas, a fim de manter
taticamente a audiência cativa. Criam expectativas que serão resolvidas
pelo noticiário dos dias subsequentes. Assim, as estórias jornalísticas se
expandem cronologicamente para frente e para trás, desde a lógica da
narração do presente, tornando particularmente intrigante e desafiadora
a análise delas como estratégia narrativa. Para o analista, conforme
observado anteriormente, será preciso reordenar cronologicamente a
intriga desde uma reconfiguração temporal até compor uma estória
integral, com princípio, meio e final. Só assim ele poderá destacar o
conflito ou conflitos estruturantes, episódios, papéis das personagens,
e proceder a uma análise da narrativa completa.

Em minhas análises tenho observado que a sintaxe da narrativa


noticiosa se constrói por meio do uso frequente de advérbios de tempo
ou de preposições adverbiadas. Sugiro ao analista observar a frequência
do uso de advérbios como antes, ontem, hoje, amanhã, durante, agora, até
desde, já, ainda, então, logo, só, depois, imediatamente, rapidamente, anterio
posteriormente e outros que revelam os conectivos temporais. Observe
também o constante uso de expressões adverbiais temporais do
tipo até agora, de repente, em seguida, só então, de novo, outra ve% até que
substantivos adverbiados e dos adjetivos temporais do tipo nas próximas
horas, no domingo, semana passada, próxima semana, mês passado, próximo m
Eles são fundamentais para se conectar as partes da estória, recompor
a ordem temporal delas. O uso prolixo de advérbios de tempo pelos
jornalistas visa fixar os acontecimentos no calendário em retroação e
progressão, e referenciar o discurso narrativo ancorando-o no real. Essas
expressões não indicam apenas a mudança cronológica de estados, mas
um encadeamento lógico narrativo, na medida em que pressupõem
um conteúdo de subordinação, o ponto de partida e o de chegada.
Na narrativa jornalística é importante situar temporalmente o evento:
o lide e o corpo da matéria reiteram sempre quando as circunstâncias
anteriores ocorreram e/ou quando as posteriores poderão vir a ocorrer.
Ou seja, a ancoragem temporal funciona também como uma estratégia
de referenciação da composição porque o narrador quer fazer crer que
a sequência dos fatos fala por si.

É preciso observar também com atenção o uso do tempo dos


verbos, relacionando sempie a lontaminação da estória pelo discurso. Os
tempos verbais são pistas esclarecedoras da tessitura da história e são
fundamentais na construção da sintaxe narrativa jornalística. O tempo
pretérito perfeito do indicativo é o mais utilizado, porque exprime uma
certeza, um fato completamente acabado. Os verbos utilizados podem
indicar discursos (por exemplo, disse, falou, confessou, confirmou,
declarou, revelou), ou realizações (matou, deu, tomou, mudou, assaltou,
naufragou, votou, apresentou, vendeu, caiu, desapareceu, entre outros),
e colocam o presente no passado imediato. O uso desse tempo
verbal indica a integralização de ações ou de sequências da narrativa.
Frequentemente são acompanhados de palavras ou expressões que
designam as circunstâncias de tempo, modo ou intensidade do ocorrido.
Preste atenção: a expressão de certeza, que os verbos utilizados no
pretérito perfeito confirmam, é um ardil do discurso referencial,
pertence à narrativa, não à natureza dos fenómenos.

Por outro lado, na linguagem jornalística, o momento presente


que tende para o futuro vem preferencialmente na voz passiva (está à
venda, está sendo construído, deverá ser publicado, poderá ser feito, vai
publicar, por exemplo). O presente do indicativo (o presidente chega
amanhã, o documento sai quinta-feira) aparece também para indicar o
futuro. Locuções formadas pelos verbos ir, ter e haver estão sendo cada
vez mais utilizadas para indicar o futuro do presente, algo que ainda vai
se realizar, mas é quase certo. Ou exprimindo suposições (o governo
vai mudar, a declaração vai sair, só dois times vão chegar às finais).
Ocorrem ocasionalmente verbos ou expressões verbais indicando
suspensão de sentidos ou sentido inacabado. Podem vir no mais-que-
perfeito do indicativo (vendera, votara, dissera), no futuro do pretérito
simples ou composto (suspenderiam, recolheriam, teria morrido,
haveria concluído, teria dito) ou no pretérito imperfeito (permanecia
doente, passava pelo Congresso quando... etc.). Cada um desses
tempos verbais traz traços particulares de sentido e de encadeamento
semântico que é preciso observar. Seria exaustivo recordar aqui todas
as situações de continuidade narrativa ou de progressão referencial
dependentes do uso de certos tempos verbais. O analista precisa ter
cuidado especial com os tempos verbais e observar até onde o seu uso
revela certa intenção comunicativa.

Tenho também observado que outra tática para construir os


fios da intriga jornalística (a sintaxe lógica) é a da criação de relações
hipotéticas, tanto em relação ao passado quanto em relação ao futuro.
Essas relações hipotéticas são estados subjetivos de dúvida, de
ressalvas, de suspensão temporária de definições. Outras vezes, são
estados subjetivos de certeza por adesão temporária a uma afirmação
ou evidência observada, mas que pode vir a modificar-se. Instala-se
na narrativa jornalística um suspense sobre as alternativas possíveis
para os eventos ocorridos - ou para o seu desenvolvimento posterior
- que causa apreensão no leitor, telespectador ou internauta, e estimula
a criação de mundos possíveis (possibilidades alternativas que virão
preencher as lacunas de sentido). Observe que esses estados de dúvida
ou certeza são efeitos subjetivos do emprego de estratégias discursivas
intencionais, conscientes ou inconscientes, de parte do narrador.

Na narrativa jornalística parecem ocorrer alguns jogos de


linguagem que alternam certezas absolutas com certezas hipotéticas.
Certas expressões frequentes estabelecem relações hipotéticas que
projetam as ações do presente para o passado condicional (teria
ocorrido, poderia ter se encontrado, teria dito). Outras expressões
projetam hipóteses para o futuro condicional (as coisas parecem, tudo
leva a crer, a situação é confusa, há suspeita de que, se isto vier a ocorrer,
pode ocorrer, fulano está preocupado com). Essas expressões deixam
a alternativa entre algo que pode ou não ocorrer, que pode ou não
ter ocorrido: mantêm a significação causal aberta, criam o suspense e
remetem o pensamento do leitor, telespectador ou internauta para trás
ou para frente, por adiantamento ou por adiamento. Ao mesmo tempo,
reforçam o contato do leitor com os fatos, porque estimulam a dúvida
e a ambiguidade, gerando tensão, nervosismo, ansiedade, fundamentais
para a sedução narrativa.

Ainda sobre o uso de verbos como pista para identificar


estratégias de encadeamento de sentidos narrativos, vale observar que
alguns verbos particulares exprimem por si próprios um sentido de
continuidade, ou possibilidade de continuidade. Seu uso indica uma
sucessão possível, de certo estado a outro. Estamos aqui no domínio
do léxico. Escribano (2001) observa que a possibilidade mais frequente
é a formula "verbo poder + infinitivo de outro verbo". Mediante esta
construção, o jornalista mostra a possibilidade de algo ou alguém
lograr alguma coisa sobre a qual ele não tem certeza absoluta. Durante
os períodos eleitorais, enfrentamentos internacionais ou desenlaces
políticos futuros, essa fórmula aparece mais frequentemente porque
permite comunicar o porvir sem que o jornalista se comprometa (pode
ganhar, pode bombardear, pode demitir). Comunica-se explicitamente
parte do conteúdo e deixa-se nas entrelinhas o sentido pressuposto
total. Há alguns verbos de uso muito frequente nas notícias que
produzem imediatamente esse efeito, dependendo do seu emprego na
frase (prever, desejar, manter, começar, intensificar, assegurar, seguir,
prosseguir, recuperar, reduzir, preparar, reforçar, retomar, retirar,
ultimar, rever, suspeitar, tomar partido, ehtre outros). A presença
desses verbos cria por si própria o sentido de continuidade, mesmo
na ausência das referências anteriores, como nos títulos. É preciso
não perder de vista que essa continuidade é relativa às sequências
maiores, que por sua vez dependem do sentido integral da estória.

Não podemos esgotar nesta seção os procedimentos possíveis


para a análise de uma comunicação narrativa noticiosa. Cada análise
pode levar em conta algumas das sugestões acima, dependendo da
pergunta de pesquisa. Mas será sempre necessário verificar de quem
são as vozes que predominam no texto e o uso estratégico, por elas,
de cada expressão, do léxico, advérbios, tempos verbais, etc. Assim,
a serialidade lógico-temporal (a anterioridade, o antes), a atualidade
(o momento de risco, ruptura ou discordância) e a posterioridade (o
depois, o que fica em aberto, as expectativas levantadas) devem ser
sempre relacionadas aos sujeitos falantes e às suas intenções no jogo
comunicativo. As vozes que se manifestam precisam ser identificadas e
medidas em termos de espaço ou tempo, e relacionadas às estratégias
discursivas dos atores sociais envolvidos no conflito noticiado.

Espero que a opção conceituai e epistemológica aqui sugerida para


a análise da narrativa jornalística se torne mais clara ao longo de todo este
livro. Muitos procedimentos aqui indicados são completados por sugestões
na parte sobre a metodologia. Relembro apenas que a lógica narrativa só
irá se revelar nas duras notícias do dia a dia se observarmos como elas
lidam e organizam o tempo. O tempo no relato noticioso é anárquico e
muitas vezes invertido. Para recuperar a lógica e a sintaxe narrativas que
estão por trás dessa aparência difusa teremos de reconfigurar os relatos
como unidades temáticas, intrigas que contenham princípio, meio e final,
a fim de reconstruir uma estória integral. Sugiro isso porque acredito que
é assim que o leitor, ouvinte, telespectador ou internauta procede em
seu ato de recepção, quando o sentido é refigurado em sua integralidade.
Reunindo todas as informações dispersas nas diversas notícias a respeito
de um assunto único, o analista junta as pontas, recompõe a serialidade,
reorganiza a cronologia da intriga e tem então em suas mãos a obra, o
objeto de sua análise.
Para concluir esta seção, relembro que os incidentes relatados dia
após dia pelo jornalismo estão imersos em metanarrativas maiores que
podem também ser reveladas pela análise e descortinar novos sentidos
das estórias, antes difusos ou submersos. A partir da reconfiguração
das fragmentadas ações e informações, novos clímax, novos desfechos
de estórias se encaixam, novos episódios sucedâneos são revelados e
constituem o que chamamos de aconteümento-intriga. A reconfiguração
das intrigas faz surgir, portanto, também as metanarrativas de fundo
que recobrem esses acontecimentos dramáticos. Através do processo
gestáltico de reunião das partes, o analista será capaz de perceber e
interpretar a realidade completa. Poderá observar que o valorativo
penetra no descritivo, a ética se infiltra na estética: a vida se transforma
em arte (em narrativa dramática) e a arte se converte em um veículo
por meio do qual a realidade se torna manifesta e compreensível.
É dessa maneira que lemos as notícias diárias, que interpretamos e
reconstruímos diariamente o mundo através das notícias, e deve ser
dessa maneira que o analista recompõe compreensivelmente a estória.
Parte 2: Metodologia de análise pragmática
E Q U I P E EDITORIAL

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Motta, Luiz Gonzaga.


M921 Análise crítica da narrativa / Luiz Gonzaga Motta. -
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.

2 5 4 p . ; 2 2 cm.

ISBN 978-85-230-1073-7

1. Narratologia. 2. Teoria da narrativa. 3. Enunciação narrativa.


4. Atos de feia. 5. Estratégias narrativas. 6. Tessitura da intriga. 7.
Efeitos de sentidos. 8. Análise pragmática da narrativa. 9. Vozes
narrativas. II. Título.
C D U 82.01

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