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Para os amores da minha vida: minha mãe, Iolete Nu-

nes, meus irmãos, Eduardo Nunes e Maria Gabriela Nunes e


para meu eterno pai, Eduardo Paulo que, certamente, está
vibrando ao lado dos anjos por este meu sonho que se reali-
zou. Amo todos vocês!
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, quero agradecer a todos os meus amigos e


aqueles que acreditaram em mim desde o início, em especial,
Larissa Bessa e Mirella Arrais, que sempre foram as primei-
ras pessoas a lerem minhas prosas, me dando aquela moral e
bastante incentivo, juntamente com Vagner Salvatóry, para
que eu seguisse em frente escrevendo mais. A partir desses
incentivos, tive a ideia de criar as páginas da Pensamentos
Escritos nas redes sociais, onde pude publicar meus textos,
adquirir mais experiência, ganhar reconhecimento e receber
muitos pedidos para escrever um livro.
Agradeço de coração à minha querida irmã Maria Gabri-
ela Nunes, que está sempre me apoiando nos meus trabalhos e
me motivando passando aquela energia positiva. Além de
tudo, é a melhor irmã que uma pessoa poderia ter. Te amo,
maninha!
Agradeço também à Priscila Barros, Bianca Bueno, Ma-
riano Neto e João Lucas França, que dei o gostinho de ler o
início desta obra em troca da primeira impressão sobre ela.
Valeu pelas ótimas críticas, dicas e pontos de vista que me
fizeram colocar o trem nos trilhos para poder seguir o cami-
nho certo.
Meus agradecimentos ao meu amigo Elyonay Carvalho
por passar um pouco da sua experiência, me ensinando da
melhor forma a entrar no mundo dos escritores. Você é um
grande amigo!
Ao grande artista Rômulo Timóteo que conseguiu captar
toda a ideia da capa e colocá-la no papel. Parabéns, parceiro.
Com esse seu talento você irá bem longe.
Não poderia me esquecer da pessoa que me ajudou em
quase todas as etapas desse livro, a minha grande amiga astró-
loga, roqueira e administradora hiper divertida Esther Rodri-
gues que, além de tudo, me ajudou bastante com a Astrologia,
dando a este livro um toque único e mais que especial. Você
faz parte desta obra e, certamente, das que estão por vir. O
mundo precisa de mais pessoas como você!
E agradeço também a Você que confiou em mim e adquiriu
este livro na intenção de se divertir, se emocionar e aprender
um pouco mais. Espero que ele supere suas expectativas!
Obrigado a todos! Sem vocês nada disso seria possível!
Você não pode reviver o ontem
e o amanhã talvez não chegue.
Então aproveite o momento presente
para retirar dele todas suas alegrias.
“Carpe Diem”
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

PRÓLOGO

N
o meio da noite, um jovem rapaz corre desespe-
rado pelos becos escuros à procura de sua namo-
rada. Não se via ninguém por ali. Havia tantos
caminhos que parecia um labirinto sem fim. Ele estava perdido
sem saber por onde seguir, passando por vários lugares e não
encontrava nenhum rastro dela. Isaac Martinelli sabia que
Yasmin Endler estava correndo perigo, e isso o deixava mais
desesperado ainda.
— Yasmin! Yasmin! — gritava bem alto na esperança de
que ela pudesse ouvir — onde você está?! — o único som que
Isaac conseguia ouvir era o eco distante da sua própria voz.
Ele para, saca o celular do bolso e tenta ligar para ela. Nada.
A ligação cai na caixa postal. Tenta mais uma vez, e novamen-
te a mesma coisa: Caixa postal.
O rapaz volta a correr sem norte pelos becos escuros e frios.
Uma chuva fina caía sobre a sua cabeça. Então se ouve um
grito de desespero que corta o silêncio daquela noite.
No mesmo instante, Isaac para novamente e tenta descobrir
de onde veio o som na esperança de encontrá-la antes que o
pior aconteça. A adrenalina e o medo correm por todo seu cor-
po o fazendo não conseguir pensar direito e o deixando inquie-
to.
Outro grito cortou o silêncio, dessa vez ele ouve perfeita-
mente Yasmin chamando por seu nome. O garoto toma uma
direção, corre alguns metros e entra em um beco à esquerda,
seguindo em frente gritando por ela.
— Yasmin! — continua correndo desesperadamente.
— Isaac! — a voz responde ao seu chamado — Socorro!
Ele ouve passos de pessoas correndo e tenta acompanhá-los,
até que, em determinado momento, a correria cessa. Porém,
Martinelli continua até passar por uma viela e ver, periferica-

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José Vitor Nunes

mente, o vulto de duas pessoas. Tenta parar bruscamente para


voltar, mas acaba escorregando no chão molhado e batendo
forte com a cabeça.
Após a queda, o jovem fica meio tonto e tenta recuperar ra-
pidamente os sentidos. Levanta-se apressadamente e percebe
que havia um pouco de sangue escorrendo pelo seu rosto. Ele
não se importou, pois estava mais preocupado em salvar o
amor da sua vida de seja lá quem a perseguia.
Correu alguns passos no sentido contrário e viu ao longe du-
as pessoas em um beco sem saída. Era um homem alto e forte
que vestia calças jeans e um casaco preto com capuz sobre a
cabeça. Ele segurava uma arma na mão direita e andava a pas-
sos calmos em direção a uma jovem de longos cabelos casta-
nho-claros e pele clara que, de tanto medo, empurrava suas
costas contra o muro de tijolos cinza na tentativa de escapar de
quem a perseguia.
Isaac se manteve ali por alguns segundos. Paralisado. Não
sabia o que fazer para ajudar.
Enquanto isso, o estranho que a perseguia levantou sua arma
apontando-a para Yasmin e continuou a se aproximar dela.
— NÃO! — o jovem implorou e correu em direção a ele pa-
ra golpeá-lo pelas costas. Porém, o homem de casaco preto se
abaixou e o pegou pelo braço, arremessando-o por cima dos
seus ombros.
Isaac caiu no chão ao lado dos pés de Yasmin.
Com o rosto ensanguentado, olha para ela e ver o medo nos
olhos da garota como se ela já soubesse que o pior estava por
vir.
O homem para em frente à Yasmin com a arma apontada na
altura do seu abdome.
Do chão, Isaac não conseguia ver o rosto da montanha de
músculos que segurava a arma.
E então, sem hesitar, dispara contra a garota.

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PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 1
23 de março de 2017, Ilha do Rio Iolete.

O
som fez Isaac acordar em um susto. Seu desperta-
dor tocava com vigor naquela manhã. Ele suava frio
e respirava em ritmo acelerado com o coração dispa-
rado e tentando entender o que estava acontecendo.
Ficou sentado na cama lembrando-se do homem alto de casaco
preto com uma arma na mão que acabara de disparar contra
Yasmin.
Foi apenas um pesadelo, pensou Isaac entendendo aos pou-
cos o que estava acontecendo.
O celular ainda continuava tocando. Ao perceber, imediata-
mente tateou o chão e o apanhou debaixo de sua cama.
Desligou o despertador e olhou as horas. Eram exatamente
11h. Ele toma outro susto e levanta da cama em um salto.

De pé, ao lado da cama, uma frase vem à sua mente como se


Yasmin estivesse lhe falando: “Carpe diem”.
O rapaz reflete um pouco sobre ela e, em seguida, decide ir
logo direto para o banheiro tomar uma ducha fria para não per-
der a hora.

Após o banho, vai até a cozinha procurar algo para comer.


— Já está meio tarde para acordar, não acha? — indagou
sua mãe lavando os pratos sem se virar ao perceber sua chega-
da.
Já na casa dos quarenta, Sofia Martinelli ainda aparentava
ter seus trinta anos. Possuía o corpo esbelto, seus longos cabe-
los ainda se mantinham pretos e suas rugas no canto dos olhos
eram quase imperceptíveis.

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José Vitor Nunes

— Fiquei enrolado com uns trabalhos ontem à noite e acabei


dormindo tarde.
— É bom organizar melhor seu tempo, pois seu tio Frank
disse que você já pode começar a ir trabalhar com ele na loja a
partir de amanhã. — afirma se virando e olhando para Isaac,
que estava sentado na cadeira com o cotovelo apoiado na mesa
e segurando o queixo, pensativo.
Naquele momento, ao ver seu filho com o olhar distante,
percebera que algo de errado havia acontecido, e ela já imagi-
nara o que seria.
— O que houve? — Perguntou Sofia Martinelli percebendo
o semblante triste do garoto — Andou tendo pesadelos nova-
mente?
— Sim... — disse Isaac baixando a cabeça e olhando para a
mesa.
— Com Yasmin outra vez? — perguntou sua mãe como se
já soubesse exatamente tudo que ele havia sonhado.
— Exatamente como nas outras vezes. Nunca consigo salvá-
la.
— Filho, aconteceu. Você não pôde evitar. Você nem estava
lá. — disse Sofia passando a mão nos longos cabelos pretos
que ele herdara dela junto com os olhos castanho-escuros —
Não vai mudar isso.
Isaac apenas ouvia em silêncio lembrando-se de tudo que ti-
nha acontecido.
— Vamos trabalhar juntos, primão! — diz Samuel Greco se
aproximando com seu jeito alegre e exagerado de sempre, dan-
do um tapa nas costas de Isaac e o pegando de surpresa.
Samuel é apenas três meses mais velho que Isaac e, desde
pequenos, são melhores amigos. Quando crianças, eles costu-
mavam pular o muro que separava a casa de Isaac da de Samu-
el para passarem o dia brincando na casa do outro. Mesmo po-
dendo atravessar pelo portão, pular o muro era bem mais diver-
tido.

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PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Com o passar do tempo, eles deixaram de pular o muro e


começaram a usar os portões de entrada, trocando também as
espadas de plástico por guitarra, cavalinhos de cabos de vas-
soura por motocicletas de verdade, transformando o Guitar
Hero e o MX vs ATV em realidade. A paixão por Rock N’ Roll
e Motocross vieram de Frank Smith e Miguel Martinelli que
sempre foram grandes influências na vida dos garotos, sem
falar que, além da banda Rosa Metálica que eles integravam
quando eram jovens, Frank Smith é dono da única loja de arti-
gos de rock de Ilha do Rio Iolete, e Miguel Martinelli possui
uma oficina mecânica de moto peças que também vende moto-
cicletas usadas em Bela Vila.
Entretanto, eles se tornaram jovens um pouco diferentes.
Isaac, um rapaz de 1,75m, de longos cabelos negros e de corpo
malhado, sempre foi mais discreto, educado, atencioso e sem-
pre corre atrás do que quer. Já Samuel, com seus 1,80m de ma-
greza, é do tipo agitado, mulherengo, um tanto conformado e
não se preocupa muito com as consequências de certas atitudes.
Contudo, estão constantemente envolvidos nos mesmos proje-
tos e até nas mesmas encrencas, estudaram na mesma escola e
agora estudam na faculdade Coronel Eduardo Paulo. O amor de
família, o companheirismo e a amizade dos dois os tornam
mais que primos ou amigos, e sim, irmãos.
— Você também vai ficar no turno da manhã? — perguntou
Isaac mudando o assunto que estava conversando com sua mãe
e tentando disfarçar o semblante triste.
— Com certeza! À noite que não será. — brincou.
— Droga! Faz sentido. Terei que te aturar pela manhã tam-
bém.
Os dois riram
— Ótimo o Frank ter colocado vocês para trabalharem jun-
tos. — afirmou Sofia.
— Alguém teria que ensinar o Sam sobre as guitarras e não
deixá-lo vender um CD do Led Zeppelin achando que é do Pink
Floyd. — disse Isaac caçoando seu primo.

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José Vitor Nunes

— Ha-ha-ha. Muito engraçado. Você que não sabe a dife-


rença de um contrabaixo para uma guitarra.
— Sem exageros, Sam.
— Qual é mesmo o nome da loja do Frank? — perguntou
Sofia.
— Zona do Rock. — respondeu Samuel.
— É melhor vocês se apressarem no almoço para não chega-
rem atrasados à faculdade.
— O que tem para o rango, tia Sofia?
— Macarrão com queijo e presunto. Preparei algo um pouco
especial, já que a partir de amanhã vocês também terão que se
virar para fazerem suas próprias comidas.
— Relaxa, tia. O Isaac sabe preparar um pão com mortadela
delicioso! — olhou para Isaac e deu uma piscadela. Samuel
gostava de dar aquela piscadela.
— Pode deixar, vamos procurar umas receitas na internet.
Os dois riram novamente
— Seja como for, alimentem-se bem, isso é essencial.
— Ok, mãe. Pode deixar.

Após almoçarem apressadamente, eles se dirigiram ao quar-


to para organizarem suas coisas.
Ainda nas primeiras semanas de aula, era comum ver Samu-
el ansioso para ir logo à faculdade. Por outro lado, Isaac não
estava tão motivado assim, pois ainda não se acostumara com a
realidade de ter que mudar de cidade, se distanciar dos seus
pais, dos amigos de infância que passara tantos anos estudando
juntos para conhecer pessoas novas.
Samuel Greco se aprontou rápido. Estava vestindo uma ca-
miseta branca de gola V, calças jeans azuis justas nas pernas e
tênis preto. Os cabelos pretos como sempre espetados para ci-
ma e brilhando de gel.
Enquanto esperava Isaac se arrumar, conversavam...
— Cara, você viu aquelas gatinhas de enfermagem? — per-
gunta Samuel Greco com todo entusiasmo — Uma mais bonita

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PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
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que a outra. Tenho uma amiga que estuda com elas, Júlia Sin-
ger, que pode nos apresentar para algumas, sem falar que estou
com sorte na minha turma também.
— E lá tem enfermagem? — responde Isaac Martinelli —
Nem sei direito quais são as garotas que estudam comigo, ima-
gine as dos outros cursos. — brincou.
— Você precisa ter os olhos de águia como eu. Observar
todas ao seu redor e chegar chegando nas gatas, ta ligado? —
disse Samuel Greco tentando fazer um olhar sensual.
—To ligado... — respondeu Isaac sem prestar muita atenção
no que seu primo acabara de dizer, pois só conseguia pensar
em Yasmin. — É que ainda estou me adaptando a todas essas
mudanças que vieram acontecendo, sabe? — agora colocando
o par de All Star azul cano longo — Tem muita gente nova
para conhecer e ainda estou decorando os novos rostos, sem
falar que também nunca fui presunçoso como você.
— Eu te entendo. Você está sempre pensando em Yasmin
— falou Samuel como se estivesse lendo os pensamentos do
seu primo — , e sei que não vai esquecê-la. Mas a vida segue.
Ela nunca iria querer te ver triste — concluiu, tentando ajudar
de alguma forma.
— Você tem razão. Mas eu não estou triste. — disse Marti-
nelli amarrando os cadarços e olhando para Samuel com um
sorriso de canto.
— Carpe diem, lembra?— disse Greco retribuindo o sorriso
automaticamente.
— Carpe diem.
Houve um momento de silêncio.
—Tantas garotas dando sopa e você com um garfo. — falou
Samuel finalmente, tentando animar o ambiente — Mano, você
está mais fraco que moto de 50 cilindradas. Estou te fazendo
comer poeira.
— Quero ver você me alcançar nas trilhas depois da aula. —
abre o guarda-roupa e pega uma camiseta preta e justa do Guns
N' Roses que marca a linha do peitoral.

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José Vitor Nunes

— Você se acha o melhor piloto da região, não é mesmo?


— Você esqueceu que fui o campeão do Desafio Regional
de Motocross em Bela Vila na categoria sub dezessete? En-
quanto você quase ficou de fora do pódio conseguindo a tercei-
ra posição na última curva.
— Já se passaram quase dois anos. Este ano o troféu de pri-
meiro lugar será meu.
— Não tenha tanta certeza assim, jovem aprendiz.
— Isso é o que vamos ver! — exclamou Samuel — Vamos
agora ou você ainda vai passar a maquiagem?
— Vamos. Deixa só eu conferir se minhas coisas estão todas
aqui dentro da mochila.
— Cara, como você demora.
— Pronto. Está tudo aqui... menos... minhas chaves. — dis-
se olhando para os lados e tateando os bolsos. — Mãe! Você
viu as minhas ch...
— São aquelas ali? — Sofia apontou para a mesa do compu-
tador.
— Ah, são sim. Obrigado. Você mexeu nas minhas coisas?
Está tudo fora do lugar.
— Sim, arrumei aquela bagunça enquanto você dormia.
— Aquilo não era bagunça, é minha forma de organizar as
coisas — falou sorrindo para ela.
— Mantenha suas coisas organizadas.
— Está bem, mãe. — respondeu pondo-se em posição de
sentido como um soldado.
— Estarei voltando para Bela Vila hoje à tarde, então quan-
do você voltar, eu não estarei mais aqui.
— Ok. Boa viagem, mãe. Te amo — deu um abraço aperta-
do e um beijo no rosto dela.
— Obrigada, filho. Também te amo. Boa aula.
— Tchau, tia Sofia. — acenou de onde estava.
— Tchau, Sam. — retribuiu.

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— Vamos, Isaac, já estamos atrasados. — diz Samuel ligan-


do a sua moto, uma Honda CRF vermelha e branca, 230 cilin-
dradas com o número 00 no local do farol.
— Pode ir. Eu te alcanço. — Isaac afivelava calmamente
seu capacete e, em seguida, Também deu partida em sua CRF
verde e branca com o número 71 no local da lanterna dianteira
e nas laterais. — Está pronta, Magrelona? — deu dois tapinhas
no tanque da moto.
— Você adora essa moto barulhenta, é igualzinho ao seu
pai. — afirmou Sofia Martinelli.
O rapaz deu uma piscadela e um tchauzinho para sua mãe.
Os dois partiram juntos.

Isaac chegou primeiro a faculdade Coronel Eduardo Paulo e


procurou uma vaga no estacionamento. Logo em seguida, Sa-
muel chega e estaciona ao seu lado.
— Você nunca me vence. — disse Martinelli dando uma
conferida no cabelo pelo espelho retrovisor de uma moto ao
lado e sorrindo.
— Você teve sorte. — justificou Samuel Greco, que nunca
aceitava perder.
— Essa é sua explicação para não ter me alcançado nova-
mente?
— Vamos deixar de conversa fiada e ir logo para aula. Por
sua demora, já estamos atrasados.
— Aceite que sou melhor. Isso é fato. Se não fosse graças a
mim, que me interessei graças a meu pai, você nunca teria se
interessado por MX e nem mesmo teria comprado essa CRF
igual a minha. — deu uma risada e pendurou o capacete no
guidão de sua motocicleta.
Samuel Greco olhou para Isaac e também pendurou seu ca-
pacete, mas não disse nada.
Os dois seguiram em direção ao prédio da faculdade Coro-
nel Eduardo Paulo que mesmo depois de trinta anos desde o

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José Vitor Nunes

término de sua construção ainda se mantinha exatamente como


era desde a inauguração com pequenos azulejos marrons retan-
gulares cobrindo todas as paredes. O telhado é coberto por te-
lhas de barro vermelho. As únicas mudanças que haviam acon-
tecido até então foram apenas as árvores que circundavam todo
o prédio. Atualmente, elas se encontram bem maiores, com os
troncos mais grossos e as copas cheias de galhos bifurcados e
entrelaçando uns aos outros preenchidos por folhas verdes,
trazendo sombra e deixando o ambiente mais bonito e agradá-
vel.
— Quero minha revanche depois da aula. — disse Samuel
com a mão na maçaneta da porta da sala que havia um papel
escrito: SALA 3/ ARQUITETURA E URBANISMO. 1º PERÍODO.
— Então até mais tarde.
— Até. — entrou.
Isaac seguiu caminhando sozinho passando por mais dois
corredores até chegar à sua sala de aula. Por instinto, leu no-
vamente o papel informativo colado na porta que dizia: SALA 8/
ADMINISTRAÇÃO. 1º PERÍODO.
Não quis interromper o professor, então entrou sem dizer
nada e sentou-se na cadeira da frente que estava vazia ao lado
de Bernardo Rivière. Era comum sempre haver cadeiras da
frente vazias, já que os alunos da faculdade optavam em ocupar
primeiramente as que estavam postas na parte do fundo. Marti-
nelli achava aquilo uma maravilha, pois preferia fazer suas
anotações de perto do quadro.
Os colegas de classe ficaram olhando para ele que, mesmo
sem dizer nada, tirou a atenção da turma por um instante.
O professor continuava falando com entusiasmo. Fazia al-
gumas perguntas para os alunos e anotava algumas coisas no
quadro.
Davi Gaspar é um professor de Teorias da Administração I.
Tem uma baixa estatura e é barrigudo. Seus cabelos grisalhos e
meio encaracolados já com sinais de calvície o deixam com a
testa um pouco comprida. Os alunos o chamavam pelos corre-

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dores de Hobbit, por ele ser baixinho e caminhar engraçado.


Usava sempre camisa social e de mangas longas.
Com quase cinquenta anos, o professor se mostrava bem
disposto a ensinar seus alunos de uma forma descontraída.
Sempre se empolgava bastante na hora de passar os conteúdos,
viajando bastante nas explicações.
— Vocês estão aqui nesse momento por obra do destino? —
perguntou Gaspar com entusiasmo esperando alguém respon-
der.
Ninguém respondeu. Os alunos se entreolhavam.
— Ou chegar aqui foi pura coincidência? — agora encarava
os alunos um a um.
Todos se mantinham em silêncio sem entender aonde o pro-
fessor queria chegar.
— Você! — apontou para Isaac o pegando de surpresa. —
Qual é seu nome?
— Isaac Martinelli, senhor.
— Você está aqui por obra do destino? — inquiriu.
— Não... Acho que não. — balbuciou.
— Chegou aqui nessa sala por pura coincidência?
— Também não.
— Então por que está aqui? —Davi Gaspar perguntou com
um sorriso percebendo que estava chegando onde pretendia
chegar.
— Assim, professor... não me entenda mal... mas, tipo... foi
porque eu quis vir... — respondeu com medo de que o profes-
sor achasse que ele estivesse lhe passando um carão. — E se eu
não quisesse, minha mãe me obrigaria de qualquer jeito.
Todos na sala caíram em gargalhadas, inclusive o professor
Gaspar.
— É exatamente isso. — disse Davi ainda sorrindo —
Mesmo sua mãe lhe obrigando — brincou — você ainda quis
vir. Estar aqui é questão de escolha. De querer.
— Aaaah — todos da sala ressoaram em uníssono após fi-
nalmente entenderem onde o professor queria chegar.

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José Vitor Nunes

Isaac Martinelli se sentiu aliviado por Gaspar não ter lhe en-
tendido mal e por ter dado a resposta certa.
— O que você estaria fazendo nesse momento se não esti-
vesse aqui? — o professor continuou perguntando para Isaac
Martinelli.
— Não sei... Tantas coisas... Talvez ouvindo músicas, lendo
um livro, em alguma trilha por aí, tocando guitarra...
— Uhu! Guitarra! “É nós!” — gritou Estella Lewis do fun-
do da sala.
Todos a olharam, mas o professor continuou com a sua linha
de raciocínio.
— Você percebe a quantidade de coisas que poderia estar
fazendo se não estivesse aqui? — perguntou olhando nos seus
olhos. Sem esperá-lo responder, continuou — “Não me entenda
mal... mas, tipo...” não estou tentando te incentivar a largar a
faculdade. — disse em um tom humorado e arrancando garga-
lhadas dos alunos.
O professor Gaspar pegou seu pincel em cima da mesa e
começou a desenhar algo parecido com uma folha de coqueiro
ou uma pena e escreveu uma palavra ao lado do desenho.
— “Bifurcação”. — leu o que havia escrito no quadro —
Imaginem que essa folha de coqueiro seria o começo de suas
vidas, onde cada folhinha dessa — disse apontando com o pin-
cel para cada ponta do desenho que representava as folhas —
fosse uma escolha que você vai seguir, deixando todas as ou-
tras possibilidades de lado. No caso do desenho, escolher uma
folhinha e abandonar todas as outras. — deu uma pausa para
que os alunos conseguissem processar a ideia — Agora imagi-
nem que, na folhinha que você escolheu, surja outra folha intei-
ra de coqueiro e você escolhe mais uma folhinha, como fez
antes, e surge outra folha inteira nela... E assim sucessivamen-
te. Entenderam?
Alguns dos alunos disseram “sim”, outros ficaram meio
confusos tentando processar tudo aquilo que o professor Davi
Gaspar tinha acabado de dizer.

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— Tenho que concordar quando dizem que viajo um pouco


nas minhas explicações. — disse coçando a cabeça em um lo-
cal onde havia pouco cabelo — Para simplificar, só estou ten-
tando mostrar para todos vocês como passamos nossa vida in-
teira tomando decisões e deixando uma infinidade de possibili-
dades de lado que poderiam nos fazer tomar rumos completa-
mente diferentes. Bons ou ruins. Cada escolha é uma renúncia.
E como administradores vocês terão que saber tomar a decisão
correta, caso contrário, poderá levar uma empresa à falência.
— deu uma pausa e continuou — Se a empresa não está ven-
dendo, a culpa é do produto que é ruim? Vocês irão investir o
dinheiro da empresa com qualidade de produção? Ou o produto
é bom e a culpa é da equipe de marketing? Vocês irão investir
em marketing? Mas a culpa pode ser do gerente de vendas,
vocês vão demiti-lo e contratar outro?
Todos começaram a refletir por um momento
— Uma coisa é certa, a culpa não é das estrelas — houve
umas risadinhas discretas — , e vocês precisam fazer a escolha
correta. — suspirou — E para finalizar a aula, o que eu quis
mostrar para vocês também foi que, na vida, existem vários
caminhos e precisamos deixar uma gama deles e escolher ape-
nas um, que nos levará a vários outros caminhos, e o processo
se repete, surgindo novas escolhas. — deu uma pausa para res-
pirar e disse. — Vou deixar uma tarefa para casa.
Todos da sala lamentaram
— Ah não, professor... — disse Estella Lewis sentada ao
fundo da sala fazendo uma cara de tédio.
— Calma, meus queridos. São apenas duas coisas simples.
A primeira é uma reflexão sobre a aula de hoje. — explicou o
professor — Eu só quero que reflitam sobre todas as escolhas
mais importantes de suas vidas. Lembrem-se como vocês che-
garam até elas e como seria se vocês estivessem tomado uma
decisão diferente. Se seria bom ou ruim. Ao final de tudo, ten-
tem julgar os acontecimentos como escolhas, destino ou coin-
cidências. A segunda é voltada ao nosso campo de estudo.

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José Vitor Nunes

Quero que vocês pesquisem sobre as empresas que faliram por


decisões erroneamente tomadas.
— ah, ta... Está tudo escrito nos astros! — afirmou Estella
sorrindo.
— Então é isso, pessoal. — falou Davi pegando suas coisas
sobre a mesa — Tenham uma ótima tarde e até a próxima aula.
— retirou-se da sala com seu caminhado inconfundível. Alguns
alunos que estavam sentados ao fundo contiveram umas risadi-
nhas.
Após o professor sair, todos começaram a conversar ao
mesmo tempo.
Isaac Martinelli virou-se para seu amigo Bernardo Rivière e
estendeu a mão para cumprimentá-lo.
— E aí, beleza? — disse Isaac apertando a mão de Bernar-
do, que retribuía com a mesma intensidade.
— Beleza. — respondeu o rapaz por trás dos óculos grandes
e pretos.
— Oi, Capricas! — exclamou Estella Lewis sorridente e se
aproximando.
— Oi, Estrela. — responderam Isaac e Bernardo ao mesmo
tempo a chamando pelo apelido.
— Vocês são Capricas demais, respondem até ao mesmo
tempo. — brincou ela.
Estella Lewis é uma moça alta, magra e de uma cintura in-
vejada por qualquer mulher. Tem longos cabelos roxos e franja
pouco acima das sobrancelhas. Está sempre sorridente e de alto
astral.
Por ser astróloga, além de apelidar carinhosamente os seus
amigos pelo signo a qual eles pertencem, ela também usa a
Astrologia para explicar o comportamento de todas as pessoas
e a forma como elas se relacionam. Ela, assim como Isaac,
também adora rock, mas principalmente o rock dos anos 60 aos
anos 80. Usa sempre sombra e delineador nos olhos estilo Amy
Winehouse, calças boca-de-sino de cores chamativas e blusas

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De Repente Um Novo Começo

justas e curtas com estampas de bandas que, às vezes, deixam


um pouco da barriga esbelta à mostra.
Nos primeiros dias de aula, em uma cerimônia de boas-
vindas aos alunos novos da faculdade, Estella viu Isaac Marti-
nelli e Bernardo Rivière sentados um do lado do outro jogando
conversa fora enquanto a cerimônia não começava. Sem nunca
ter falando antes com nenhum dos dois, ela chegou até eles e
perguntou:
— Vocês são do signo de capricórnio, não são? — afirmou
com um tom de certeza como se já estivesse esperando um
“sim” dos dois.
— Eu sou. — respondeu Bernardo.
— Você é?! — perguntou Isaac, surpreso.
— Sim, e você?
— Eu também sou. — respondeu Martinelli achando estra-
nho como Estella sabia daquilo. Nem ele próprio sabia a data
de aniversário do novo amigo. — Que dia é seu aniversário?
— Dois de Janeiro. E o seu?
— Sete de Janeiro.
Enquanto eles conversavam tentando entender alguma coisa,
Estella apenas observava os dois, achando toda aquela confu-
são dos garotos muito engraçada.
— Como você sabia? — perguntou Isaac, curioso.
— Pela forma de vocês agirem. Os dois são tímidos e bem
discretos. São bem mais reservados.
Bernardo e Martinelli se entreolharam sem entender o que
isso tinha a ver com a data de nascimento deles.
— É basicamente isso. — continuou, percebendo que os ra-
pazes não estavam conseguindo processar a ideia — A Astro-
logia explica.
— Astrologia? Aquela coisa toda de planetas, estrelas e ete-
cetera? — perguntou Isaac não vendo explicação lógica nisso.
— Isso mesmo.
— Já ouvi falar, mas não acredito que seja verdade. Sou
muito cético em relação a isso. Prefiro acreditar nas coisas ci-

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José Vitor Nunes

entificamente comprovadas, tipo, a astronomia. — afirmou


com um sorriso. — Isso sim me deixa fascinado.
— Ser muito cético. Coisa de capricórnio. — afirmou Lewis
também sorrindo.
Enquanto isso, Bernardo apenas observava sem se manifes-
tar, também tentando entender tudo aquilo que acabara de ou-
vir.
O diretor geral da faculdade subiu ao palco e começou falar,
dando início à cerimônia de boas-vindas.
— Depois explico melhor para vocês como funciona tudo
isso. — disse Estella — Posso até fazer o Mapa Astral de vo-
cês.
— Mapa Astral? E tem isso? — Isaac não fazia a mínima
ideia do que seria aquilo.
— Tem sim! Bem... cada um de nós possui um posiciona-
mento para o sol, lua e os planetas. Temos as casas que mos-
tram os setores da nossa vida. Doze casas. — deu uma pausa e
olhou para o diretor falando ao palco — Como eu disse, depois
explico tudo direitinho para vocês entenderem melhor. Agora
vou me sentar no meu lugar — disse se levantando — Tchau.
— Tchau. — responderam juntos.
Estella Lewis deu alguns passos e sentou ao lado de sua
amiga na fileira atrás da que Isaac e Bernardo estavam.
— Interessante... — disse Rivière, finalmente.
Martinelli apenas olhou e assentiu com a cabeça, afirmando.
Agora os dois se concentravam no que o diretor estava fa-
lando.
Após a cerimônia, Bernardo Rivière e Isaac Martinelli en-
contraram Estella e a convidaram para ir jantar com eles no
restaurante da faculdade onde conversaram sobre Astrologia e
Lewis explicou da melhor forma como funciona o estudo dos
astros e como isso afeta a vida das pessoas. Mesmo depois de
tantas explicações, os rapazes ainda tinham dúvidas e se manti-
nham descrentes.

24
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Estella, na tentativa de provar a autenticidade da Astrologia,


pediu, além da data de nascimento, a hora e o local em que eles
nasceram para fazer o Mapa Astral e poder dizer mais sobre
eles sem mesmo conhecê-los muito bem.
Os rapazes acharam a ideia interessante e passaram todas as
informações necessárias. A jovem fez primeiramente o Mapa
de Isaac e começou a explicar:
— Capricórnio no seu solar é um signo do elemento terra,
de energia cardinal, a energia da iniciativa — dizia ela para
Isaac —, um signo centrado naquilo que quer; que não tem
pressa, considerado o "pai" do zodíaco por possuir o compor-
tamento correspondente a de um pai na vida real. Aquela coisa
de ser realista e buscar sempre métodos simplificados e pensa-
dos para conseguir o que almeja. — deu uma pausa e reparou
que Isaac estava vidrado no que ela falava, então continuou —
Falei aí um pouco do seu signo solar.
— Isso foi só esse tal de “solar”? — perguntou surpreso.
— Foi sim. — respondeu Estella sorrindo.
— E ainda tem mais o quê?
— Muitas coisas. Vou te explicar algumas.
— Continue...
— Bom, seu mercúrio, que é a sua maneira de se comunicar,
está em capricórnio. Estando em “caprica”, você passa a ser
reservado, falando apenas quando sentir-se seguro a exprimir o
que pensa. Seu vênus, como é o seu amor, está em peixes, fa-
zendo com que você aceite as pessoas de seu convívio do jeito
que elas são, tendo isso como um ser universal.
— Nem todo mundo, às vezes fica difícil de aturar alguns
chatos por aí. — corrigiu Isaac. Estella apenas sorrir, gostando
da forma como ele já estava levando a sério tudo aquilo.
— Vênus em peixes está exaltado — continuou ela —, isso
significa que é um ótimo posicionamento no que diz respeito
ao afeto. Marte, o planeta da guerra e ação: em aquário, diz
como você reage aos estímulos. Estando em aquário você passa

25
José Vitor Nunes

a ser uma pessoa calma, amante da liberdade para pensar e agir


com pensamentos vanguardistas, futurista...
— Sou um revolucionário hippie. — brincou ele, falando
baixinho virando-se para Bernardo, sem que ela notasse.
— Seu júpiter está em capricórnio também, fazendo com
que você tenha uma melancolia natural... — deu uma pausa e
perguntou: — Vocês estão conseguindo me entender?
— Estamos sim. — respondeu Martinelli em uma meia
mentira e meia verdade. Bernardo apenas acenou com a cabe-
ça, positivamente.
— Continuando... sua lua está em sagitário. Para mim e vá-
rios astrólogos, o aspecto da lua é o mais importante do Mapa,
pois ele indica seu emocional. Em sagitário é um bom posicio-
namento, já que você, mesmo em momentos de tristeza, sempre
vai achar uma piadinha; sempre vai ter aquela descontração.
Enfim, sempre vai existir aquela positividade por trás de seus
pensamentos, das situações pela qual você passa. — deu outra
pausa, tomou fôlego e continuou — Então, lua em sagitário
confere ao nativo, no seu caso, exagero de sentimentos, entusi-
asmo, ansiedade... — parou, olhou para cima, para o nada, na
tentativa de lembrar mais alguma coisa e disse por fim: — E é
isso. Bernardo, agora é a vez de falar sobre você. — virou-se
para ele — Seu sol está em capricórnio, isso implica dizer que
você é uma pessoa muito calculista, observadora, pé no chão,
possui instintos práticos, pensa muito no futuro e é muito liga-
do à responsabilidade. Sua lua está em aquário, fazendo com
que você tenha a mente aberta, seja excêntrico, e digamos... é
de boa, mas é louco. — eles riram — Diz também que você é
fofo e aberto a amizades. Como sua lua é do ar, você se torna
uma pessoa muito do mundo, gostando de estar entre amigos,
pois é bastante ligado a eles. Com o seu mercúrio em peixes,
que é a comunicação: como aprende, como entende... diz que
você fala de uma forma sensível, profunda. O seu Vênus em
peixes lhe torna uma pessoa muito sensível, adaptável a qual-
quer pessoa, romântico, idealizador, e que gosta de ajudar o
próximo. — os dois se mantinham vidrados no que a moça

26
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

dizia para não perderem nenhum detalhe —. O marte em es-


corpião: focado, ação constante, sabe o que quer. Tem energia
pra ir atrás dos objetivos. — deu outra pausa e perguntou por
fim: — Entenderam? Foi apenas uma explicação superficial. —
a frase “apenas uma explicação superficial” pareceu deixá-los
mais surpresos ainda, como se eles estivessem pensando: ainda
tem mais?.

Mesmo os dois sendo do mesmo signo, havia muitas dife-


renças entre eles, e isso Estella soube destacar com clareza.
Além de dizer vários aspectos da personalidade de cada um, ela
fez comparações entre semelhanças e as diferenças. Tudo aqui-
lo que Estella falava sobre os rapazes, cada detalhe, era verda-
de. Isso fez com que eles começassem a deixar o ceticismo um
pouco de lado. Porém, mesmo Lewis tendo acertado tudo, os
garotos ainda não se conformavam pelo fato de não existir um
método científico que provasse o porquê daquilo tudo fazer
sentido, e isso sempre os deixavam com um pé atrás.
— Calma, vou fazer vocês acreditarem. — disse Estella,
confiante — É só questão de tempo. Ainda é tudo novo para
vocês, por isso estão assim.
Os rapazes duvidavam da possibilidade disso acontecer. En-
tretanto, não questionaram.
A partir desse dia, Isaac a apelidou de Estrela, pois além da
fonética ser parecida com a de seu nome, tinha tudo a ver com
ela.

Thiago Lazzo também se aproximou para falar com seus


amigos. Estava de mãos dadas com Mirelly Müller, sua namo-
rada.
Thiago Lazzo, um rapaz esguio e de cabelo castanho-escuro,
conheceu Mirelly Müller, uma moça de graciosas curvas e
olhos castanhos, no cursinho preparatório para o vestibular no
ano anterior. Começaram a namorar há pouco mais de cinco
meses e, durante esse tempo, já terminaram e voltaram por du-

27
José Vitor Nunes

as vezes devido ao ciúme exagerado de Mirelly e o instinto de


liberdade de Thiago, não gostando muito de dar satisfações
sobre o que anda fazendo.
— E aí, pessoal? — disse Lazzo.
— Olá. — Mirelly acenando com a mão.
— Cheguem mais, pombinhos. — falou Estella puxando
duas cadeiras para que eles pudessem se sentar.
— Vamos dar uma volta por aí. Cansei de ficar sentado —
afirmou Thiago.
— Cansou de ficar sentado. Irônico. — disse Bernardo Ri-
vière sorrindo.
— É... Você entendeu.
— Então vamos. — falou Isaac levantando-se da cadeira.
Ao se levantar, o professor de matemática entra pela porta.
Isaac olha para seus amigos fazendo uma careta de triste e tor-
na a se sentar.
Eles contêm os risos.
— Parece que aqui eles não dão folga — disse Lewis no ou-
vido de Martinelli, agora sentada atrás dele.
— Pois é...

Após a aula, Isaac coloca seus fones de ouvido e sai cami-


nhando enquanto digita uma mensagem de texto para Samuel.
Mais a frente, ainda digitando a mensagem, ele se senta no
chão do corredor em frente à biblioteca.
Isaac Martinelli: Sam, já saí. Estou te esperando para a sua
revanche.
No mesmo instante Samuel Greco responde.
Samuel Greco: Hoje você está realmente com sorte.
Samuel Greco: Vou ter que ficar depois da aula para desen-
volver um projeto em grupo.
Isaac Martinelli: Você que está com sorte por se livrar de
outra derrota.

28
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac Martinelli: Kkkkkk


Samuel Greco: Calma, essa sua sorte vai acabar.
Samuel Greco: Vamos marcar minha revanche para outro
dia.
Isaac Martinelli: Ta ok.
Isaac Martinelli: Já estou indo para casa.
Isaac Martinelli: Boa sorte aí no trabalho.
Samuel Greco: Ta certo.
Samuel Greco: Valeu!
Samuel Greco: Aah, antes que eu me esqueça, o pessoal da
minha turma está organizando uma festinha neste final de se-
mana e estamos convidando a galera. Vamos?! Vai ser do CA-
RALHOOO!!
Isaac Martinelli: Sinistro! Vamos sim! Vou convidar todos
os AmendoWins para ir.
AmendoWins foi o nome dado por Sam ao grupo de amigos
da faculdade formado por ele próprio, Isaac, Bernardo, Thiago,
Estella e Mirelly, quando jogavam um campeonato de futebol
no videogame apostando saquinhos de amendoins. O vencedor
de cada partida ganhava um saquinho, e o vencedor do campe-
onato ganhava três. A cada partida, o jogador vitorioso sempre
comemorava gritando: “amendo, wins!”. A frase acabou pe-
gando e Greco teve a ideia de batizar o grupo formando uma
palavra. Todos acharam o nome divertido e concordaram.
Samuel Greco: Certo
Isaac Martinelli: Certo

Enquanto coloca o celular no bolso, cruza olhares com uma


garota que estava sentada à sua frente do outro lado do corre-
dor. Por um momento ele ficou paralisado. Martinelli teve a
impressão de que já conhecera aquela garota de algum lugar,
porém, o que mais lhe impressionara era que algo em seu olhar
lhe parecera bem familiar. Aqueles olhos verdes-esmeralda
levemente puxados e os traços suaves de seu rosto trouxeram-
lhe a sensação de estar encarando Yasmin.

29
José Vitor Nunes

Isaac, por instinto, desviou o olhar disfarçando sua reação


um pouco surpresa, mas percebeu que a garota ainda continua-
va a encará-lo.
Novamente olhou para ela, entretanto, dessa vez foi a moça
de olhos verdes que desviou o olhar.
Lembranças de Yasmin começam vir à tona, e o rapaz deci-
diu levantar-se e ir logo para sua casa.

No caminho, Isaac Martinelli não parava de pensar na garo-


ta. Apesar de ela ter longos cabelos pretos e ser aparentemente
mais alta que sua ex-namorada, seus olhos e seus traços suaves
do rosto lembravam-lhe os de Yasmin Endler e isso o deixava
um tanto admirado.

30
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 2

C
larice Ferrier chegara do Rio de Janeiro há dois dias
e ainda não tivera tempo de desfazer suas malas. Sua
viagem de três dias havia sido cansativa e após fi-
nalmente está em casa, a ansiedade de saber logo o
resultado da prova que fizera para concorrer a uma bolsa de
intercâmbio em Portugal só aumentava. Porém, para sua frus-
tração, a divulgação só seria feita em meados do mês de julho.

A jovem estava no segundo período do curso de Enferma-


gem e pretendia cursar o terceiro e o quarto no exterior, mas
para isso, precisaria estar entre os dois mil candidatos dos dez
mil que também optaram seguir destino a Portugal.

Como de costume, abriu sua caixa de e-mails para ver se os


professores haviam passado algum trabalho para casa. Feliz-
mente não continha nada até o momento.
Deitou-se na cama e deixou seu corpo relaxar. Nenhum tra-
balho para casa. Finalmente irei poder descansar, pensou ela.
Contudo, ao se virar, viu sua mala de viagem com uma pilha de
roupas desorganizadas por cima dela.
— Droga, preciso arrumar logo isso. — disse.
Levantou-se e começou a organizar toda aquela bagunça.

31
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 3

N
aquela mesma noite, já deitado em sua cama,
Isaac começa a refletir sobre a aula do professor
Davi Gaspar. Pega o notebook para fazer algumas
pesquisas sobre empresas que faliram, mas pen-
samentos antigos invadem sua mente e, inevitavelmente, lem-
bra-se de quando conversara com Yasmin Endler pela primeira
vez.
No dia de seu aniversário de catorze anos, seu pai lhe dera
uma Yamaha TT-R 125 cilindradas. Uma pequena moto off-
road que é própria para percorrer em locais fora da cidade. Ele
também o levou para a pista de Motocross de Bela Vila, mas
dessa vez não fora para assisti-lo competir, e sim para aprender
a pilotar junto com outros filhos de pilotos e amadores.
No meio de todos aqueles meninos, estava apenas uma me-
nina. Ela tinha a pele clara, olhos verdes-esmeralda, cabelos
castanho-claros e era filha de Thomás Endler, o melhor amigo
de seu pai.
Enquanto Miguel Martinelli ensinava as primeiras lições de
como pilotar para seu filho, por vez, ele se distraía e não parava
de olhar para Yasmin Endler, que estava vestindo calça e cami-
seta rosa com preta própria para o esporte e mostrava ter con-
trole sobre a sua moto.
No final da tarde, Thomás e Miguel conversavam enquanto
Isaac já pilotava sozinho.
Decidindo acelerar um pouco mais, o garoto mantém o con-
trole de sua moto, até que, de repente, em uma curva, ele der-
rapa e cai cerca de seis metros de Yasmin, que era a pessoa
mais próxima dele.
— Tudo bem com você? — pergunta ela descendo de sua
moto e estendendo o braço para ajudar Isaac a se levantar.

32
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Sim. Eu estou bem. — responde o rapazinho envergo-


nhado se levantando com a ajuda de Yasmin e, em seguida,
tirando o pó de sua roupa. — Obrigado.
— Você é filho de Miguel Martinelli?
— Sim. Isaac Martinelli. Prazer.
— Prazer. Yasmin Endler.
— Te vejo sempre na escola.
— Eu também te vejo sempre.
Houve um silencio constrangedor por alguns segundos até
que a garota volta a falar.
— Gostei da sua moto. Bem maneira.
— Obrigado, ganhei hoje e ela já foi presenteada com algu-
mas raladuras.
— Acontece. O importante é que está tudo bem com você.
— Isso mesmo.
Depois de uma breve conversa se conhecendo, sem que eles
mesmos percebessem, Yasmin estava contando algumas histó-
rias que seu pai lhe dissera. As aventuras que ele, Miguel e
Frank tiveram na adolescência.
Enquanto ela falava, Isaac admirava seus lindos olhos ver-
des-esmeralda levemente puxados e a forma como ela sorria ao
contar as histórias.
Aquela foi a primeira conversa que tiveram. Martinelli ima-
ginava que cair ao lado dela foi apenas uma coincidência, e que
talvez eles se conhecessem em outro momento, já que seus pais
eram melhores amigos e sempre frequentavam aquele local.
Entretanto, aquilo foi algo que mudou a vida dos dois.
Yasmin Endler e Isaac passaram a se falar na escola e aos
sábados quando se encontravam na pista de MX de Bela Vila.
Aos domingos, eles e outros amigos se reuniam na praça para
tocar violão e cantar suas músicas favoritas. Yasmin adorava
quando Isaac tocava e cantava a música Patience do Guns N’
Roses. Era a preferida dela, deixando por pouco décimos O
Teatro dos Vampiros da Legião Urbana em segundo lugar.

33
José Vitor Nunes

— Patience está na frente de O Teatro dos Vampiros por ze-


ro vírgula sete décimos. O Ranking está assim: em primeiro
lugar Patience com dez pontos e em segundo lugar O Teatro
dos Vampiros com nove vírgula três pontos — dizia ela quando
perguntavam quais eram as suas músicas preferidas. Isaac
amava aquele jeito organizado de Yasmin.
À medida que o tempo foi passando, os dois se tornaram
melhores amigos. Porém, Martinelli sempre sentiu algo a mais
por Yasmin, mas sentia-se inseguro em tentar dar um próximo
passo e acabar sendo um passo em falso.
Passara-se exatamente um ano desde aquela primeira con-
versa que os dois tiveram. Naquele dia, Isaac a convidou para
sair com uns amigos e comemorarem seu aniversário de quinze
anos.
Na volta, ele fora deixá-la em sua casa. Ao chegar, antes que
ela entrasse, Martinelli puxou um papel do bolso. Enquanto
desdobrava, sua mão tremia, ele suava frio e seu coração batia
acelerado. O jovem estava muito apreensivo, mas mesmo assim
começou a ler. Sua voz saiu tremula. Pigarreou e continuou.
— Seus olhos são lindos e, junto com o seu sorriso, refletem
uma inocência de garotinha perfeita, que por um momento me
faz esquecer toda a maldade do mundo e imaginar que tudo é
lindo e perfeito como você.
É como se a luz do sol brilhasse mais forte em cima de ti.
Um anjo na noite. E entre todas as meninas, você é a única que
eu consigo enxergar.
Sua beleza ofusca as demais garotas, fazendo com que toda
a minha atenção se volte para ti, e eu não consigo parar de te
observar.
Perco-me nas palavras quando quero te dizer o que eu sin-
to. Tenho medo de talvez não for recíproco, ou pior, acabar
fazendo você se distanciar de mim. E com medo desse afasta-
mento, prefiro não falar nada...
Passo horas pensando em um dia poder está a sós contigo e
dizer tudo; tudo que penso; tudo que quero; tudo que sonho.

34
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Todas as noites antes de dormir meus pensamentos vão lon-


ge, imaginando um futuro perfeito com uma garota que consi-
dero perfeita, e acabo dormindo e sonhando com você. Isso é o
mais próximo que consigo de chegar da perfeição. E quando
acordo, fico um pouco triste por tudo aquilo não ter sido ver-
dade, de não ter passado de imagens na minha cabeça, mas
ainda assim me sinto feliz por te ter; ter a emoção de beijar tua
boca, sentir o calor do teu corpo junto ao meu, sentir o perfu-
me dos seus cabelos, e mesmo não sendo real, ainda me sinto
feliz. E isso me faz tentar, e nunca pensar em desistir do que eu
quero... Ser feliz! E com você!
Isaac dobrou novamente a carta, entregou para Yasmin e
olhou timidamente nos olhos verdes-esmeralda dela, que esta-
vam marejados de lágrimas e disse:
— Yasmin Endler, namora comigo?
A moça deu um passo na direção do rapaz e o beijou. Um
beijo bem demorado como se ela também estivesse esperado
um ano inteiro para que aquele momento chegasse.

O jovem pegou uma pasta catálogo em seu guarda-roupa, ti-


rando-a cuidadosamente debaixo de suas roupas. Nela continha
tudo que ele escrevera para Endler durante os dois anos de na-
moro.
Na capa havia escrito à mão: Um Pouco Dos Meus Senti-
mentos e Pensamentos Que Consegui Expressar Em Palavras.
De: Isaac Martinelli/ Para: Yasmin Endler
Abriu e começou a reler o texto que entregara naquela noite.
Logo abaixo do texto, seguia para quem a carta havia sido es-
crita e também a data em que foi entregue. 07/01/2013. O dia
do pedido de namoro; o dia do primeiro beijo. A data em que
tudo começou e que exatamente há dois anos tudo terminaria.
No canto superior esquerdo do rosto do papel havia a assina-
tura de Isaac. Isaac Martinelli De Angelis
Aquele sete de janeiro, dia do primeiro beijo, sem dúvida
alguma foi um dos melhores dias da vida de Isaac. Sendo uma

35
José Vitor Nunes

escolha que ele não queria nem mesmo imaginar como seria se
tivesse feito diferente, ou melhor, se não tivesse feito aquilo.
Como Yasmin Endler dizia sempre, eles iriam se lembrar
daquela noite pelo resto de suas vidas, só que agora existiam
apenas as lembranças de Isaac. Ele nunca imaginara que aquele
pedaço de si um dia seria arrancado tão brutalmente e injusta-
mente, lhe causando uma dor horrível. Além disso, ele não
estava lá para ajudá-la e se sentia culpado por ela está no local
errado na hora errada.
Eu causei isso, pensou.
Martinelli fechou a pasta e devolveu ao seu lugar cuidado-
samente embaixo de suas roupas. Deitou-se na cama, afunda o
rosto no travesseiro e começa a chorar...

36
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 4

O
despertador toca nas exatas 5 horas da manhã. O
dia ainda estava clareando e a alvorada surgia ao
longe timidamente roxa e, mais acima, o céu ainda
estava negro e podiam-se ver as últimas estrelas
salpicando-o no fim daquela noite.
Isaac senta-se na cama e começa a se lembrar do pesadelo
que estava tendo. O homem com casaco preto... Yasmin Endler
levando um tiro... Já era a quarta vez nos últimos sete dias.
— Carpe diem — Falou baixinho para si, ouvindo a voz de
Yasmin em sua mente. Logo se levantou da cama e seguiu em
direção ao guarda-roupa. Abre e pega de dentro uma calça e
uma camiseta verde com branco de mangas compridas com o
número 71 estampado nas costas e vestiu. Depois colocou um
colete-protetor, cotoveleiras, joelheiras, botas, luvas e por fim o
capacete. Subiu na sua moto e então partiu.

Ilha do Rio Iolete é uma cidade com pouco mais de noventa


mil habitantes e possui esse nome por ser literalmente uma ilha
formada por um rio. O Rio Iolete surge ao norte e se divide em
Rio Iolete Leste, chamado de Ioleste, e vinte e dois quilômetros
a oeste está o Rio Iolete Oeste, chamado de Ioeste, que se jun-
tam cerca de trinta quilômetros ao sul, voltando a ser o Rio
Iolete.
Isaac estava há cinco quilômetros ao sul da ponte do Ioleste
em uma trilha de terra irregular que costumava frequentar sozi-
nho todas as manhãs. Ela possui extensão de treze quilômetros
e meio, havendo vários pequenos morros. Alguns proporcio-
nam saltos de dois metros de altura durante o percurso, serpen-
teando as árvores e terminando nas margens do Rio Iolete Les-
te.

37
José Vitor Nunes

Naquela mesma tarde de sexta-feira, já na faculdade, Marti-


nelli assistia à aula de Conceitos da Psicologia, uma das suas
preferidas. Apesar das quatro horas consecutivas, a professora
Elisa sempre conseguia torna-las bem descontraídas e proveito-
sas.
A PSICOLOGIA OU AS PSICOLOGIAS, escreveu a professora no
quadro e virou-se para a turma.
— Estou bonita hoje, meus amores? — perguntou empur-
rando os cachos negros que ficavam acima dos ombros com a
palma da mão.
— “Sim!” “Linda!” — exclamaram.
— Já têm dois pontos garantidos. — brincou.
Uma garota de longos cabelos pretos bateu à porta e a abriu.
— Com licença, professora. Posso entrar? — pediu ela.
Imediatamente Isaac a reconhecera. Era aquela mesma garo-
ta que vira no dia anterior, porém, não a reconhecera naquele
momento por vários fatores: ele havia tido apenas duas sema-
nas de aula, sua turma contém mais de cinquenta alunos, as
aulas de Conceitos da Psicologia ocorrem apenas às sextas-
feiras e sem falar que o rapaz sempre chega cerca de cinco mi-
nutos após o seu início e senta-se na primeira cadeira vazia que
encontra pela frente. Com tudo isso, ficara difícil para Marti-
nelli lembrar-se da jovem e observa-la em meio a toda aquela
gente.

— Claro, pode entrar. — respondeu a professora.


A moça caminhou em direção a Isaac e sentou-se na cadeira
vazia da fileira ao lado dele.
— Hoje iremos debater sobre: — apontou para o que estava
escrito no quadro — “A psicologia ou as psicologias”. For-
mem duplas para discutirem as respostas. Cada pergunta res-
pondida corretamente valerá zero vírgula vinte e cinco pontos.
Isaac e Clarice trocaram olhares.
— Pode ser? — perguntou Ferrier por fim.
— Pode sim. — balbuciou ele.

38
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Devido ao atraso, é justo que eu comece com vocês —


afirmou Elisa olhando para Isaac e Clarice —, não é, pessoal?
“Siiiiiiiimm!!” — exclamaram.
— Infelizmente você terá que sofrer as consequências por
ela. — gracejou.
— Sem problemas. — disse o garoto olhando para a moça
com um sorriso.
— Preparados para a primeira pergunta?
— Sim. — afirmou a jovem. Isaac assentiu com a cabeça.
A professora pegou uma folha de papel e começou a ler.
— “A psicologia é considerada uma ciência recente com
menos de duzentos anos de existência. Atualmente existem
duas perspectivas básicas da psicologia, a do Senso Comum e a
Psicologia Científica. Diferencie-as.”
A moça olhou para o rapaz e falou:
— Eu explico sobre a do Senso Comum e você sobre a Ci-
entífica, tudo bem?
— Como quiser. — respondeu observando-a. Algo no sem-
blante daquela moça lembrava-lhe Yasmin.
— A Psicologia do Senso Comum — começou ela. — é o
conjunto de conhecimentos intuitivo, espontâneo, adquiridos na
forma de tentativas e erros em nosso cotidiano, que não possui
um estudo específico para explicar tais fatos, por exemplo: é
aquela que usamos para convencer um cliente a comprar um
determinado produto; que você usa para convencer sua mãe a
lhe deixar sair...
A forma de como ela usava as mãos para explicar era o que
faltava para despertar em Isaac uma grande vontade de conhe-
cê-la, pois, por um momento, foi quase como se ele estivesse
vendo sua ex-namorada falando.
Clarice o olhou para avisar que já havia terminado sua parte.
— E a Psicologia Científica — pigarreou — é um conheci-
mento específico e estudado para a aplicação geral aos fatos e
serve como base aos estudos futuros da Psicologia Científica.
— explicou o jovem — Por exemplo: quando limitamos um

39
José Vitor Nunes

fato para ser estudado e nele aplicamos conceitos e teorias ge-


rais, como quando aquecemos os metais e chegamos à conclu-
são de que todos eles dilatam quando são aquecidos. Veja que
o estudo foi limitado para a análise apenas dos metais e, através
de observações das ocorrências, chega-se a uma teoria geral.
Da mesma forma acontece com a Psicologia Científica.
— Hum... muito bem. — disse Elisa — Seu nome é...? —
apontou com a caneta para Clarice.
— Clarice Ferrier.
Clarice Ferrier, repetiu Isaac mentalmente na tentativa de
gravar o nome da moça.
Elisa virou a página, deslizou a caneta no papel e rabiscou
algo.
— E o seu é...? — Olhou para o rapaz.
— Isaac Martinelli.
Fez o mesmo com a caneta e anotou.
— Vocês já têm zero vírgula vinte e cinco pontos. Parabéns.
— voltou para o papel com as perguntas — Qual dupla preten-
de ser a próxima a ganhar zero vírgula vinte e cinco pontos
extra?
Bernardo, que fazia dupla com Estella, levantou a mão.
— Certo. Lá vai. — começou a ler — “A vertente relacio-
nada à Modernidade acerca da história da Psicologia resultou
em três escolas psicológicas. Digam quais foram, caracterize
cada uma explicitando seu objeto de estudo e indique seus
principais representantes.”
— Foram elas: — iniciou Bernardo — o estruturalismo,
funcionalismo e associacionismo. O objeto de estudo do funci-
onalismo é a forma de funcionamento da consciência e como
ela reagiria a determinadas situações na medida em que o ho-
mem a usa para adaptar-se aos meios, importando-se a respon-
der “o que fazem os homens?” e “por que fazem?”. Foi estuda-
da por William James. Já o estruturalismo foi estudado por
Edward Titcherner e procura explicar a estruturação da consci-
ência, a conexão para entender o seu funcionamento, isto é, os

40
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

estados elementares da consciência como estrutura do sistema


nervoso central.
— E o associacionismo diz que o ser humano, como tam-
bém os animais, aprende por associação. Por exemplo: quando
se age de determinada forma e é recompensado, a tendência é
agir novamente de tal maneira. Pelo contrário, quando se age
de uma forma que se é punido, a tendência é de não repetir
mais tal atitude. — explicou Estella.
— Corretíssimo — comentou a professora — Seus nomes?

Após a aula, no final da tarde, Isaac Martinelli e Samuel


Greco caminhavam distraídos com os fones de ouvido pelos
corredores da faculdade quando sentem alguém lhes puxarem
pelos ombros. Ao se virarem, se deparam com Estella Lewis.

— Ei! — disse Estella chegando de surpresa. Ela estava


com um rapaz e vestia uma calça vermelha boca-de-sino e uma
blusa dos The Beatles que deixava os ombros à mostra. — Vo-
cês conhecem o Patrick? Ele é meu primo, cursa enfermagem e
é Caprica como você, Caprica Roqueiro.
— E aí. — disse Isaac estendendo a mão para cumprimenta-
lo. — Beleza?
— Beleza. — respondeu apertando-lhe a mão.
Sam fez o mesmo e o cumprimentou.
Patrick virou-se para Estella e disse:
— Estou indo para a clínica, a gente se ver depois. Até mais.
— Até.
Patrick acenou com a cabeça, deu um leve sorriso e saiu a
passos largos.
— Isaac, você convidou Estrela para a festinha da minha
turma nesse final de semana?
— Por que você não me convidou, Caprica Roqueiro? Estou
decepcionada com você. — disse dando um soquinho no om-
bro de Isaac.

41
José Vitor Nunes

— Calma, eu ainda não tive a oportunidade de lhe convidar


— justificou Martinelli — Então, vamos para a festinha da
turma do Sam nesse final de semana? Vai ser sinistro!
— Não sei, vou pensar. Ainda estou decepcionado com vo-
cê. — deu uma pausa — Pronto. Pensei. Vamos sim! — disse
sorrindo.
— Agora só me falta chamar o restante dos AmendoWins: o
Bernardo, o Thiago e a Mirelly.
— Certo, agora vou indo pegar o ônibus. — disse Estella.
— Espera, vamos acompanhar você até lá. — Falou Sam.
— Então vamos.

Enquanto eles iam caminhando até o ponto de ônibus con-


versando sobre algumas bandas de Ilha do Rio Iolete que estão
se organizando para fazerem um evento beneficente no próxi-
mo bimestre, acabaram sendo surpreendidos por uma cigana
que dizia ler mãos e prever o futuro.
— Posso ler a mão de vocês? — Perguntou a cigana enca-
rando os três. Ela era uma senhora que aparentava ter pouco
mais de cinquenta anos e estava com um lenço vermelho amar-
rado na cabeça. Vestia um longo vestido branco e várias pulsei-
ras de linhas com pedrinhas feitas à mão enfeitavam os braços.
— Que legal! Ler a minha. — disse Estella estendendo a
mão direita. A cigana a segurou e começou a falar.
Enquanto isso, Samuel Greco se afastou e pegou alguma
coisa de dentro da mochila.
— Vejo aqui que você vai ser chamada para fazer algo que
gosta muito. O convite será feito quando você menos esperar e
você não estará em um bom momento, então terá que decidir se
vai ou não fazer o que gosta. — disse a mulher de vestido
branco com um tom de certeza na voz.
— O que será? — questionou-se curiosa e um pouco assus-
tada. — O que eu gosto de fazer? — perguntou para si mesma
olhando para cima.

42
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Você saberá quando chegar o momento. — ela virou-se


para Isaac e apanhou sua mão esquerda sem que ele tivesse
escolha — Hum... Interessante... Vejo aqui que você vai amar
uma pessoa e vai perder uma pessoa que ama muito. Talvez
elas sejam uma pessoa só, a que você vai amar pode ser a que
você irá perder.
— Acho que a senhora deve estar lendo minha mão que
mostra o passado, pois isso já aconteceu comigo. — disse Isaac
com um sorriso nervoso e levemente triste.
— Não, vejo isso em seu futuro. — corrigiu a cigana com
uma certeza estranhamente assustadora.
Enquanto isso, Samuel se aproximou dos três com um falso
sorriso de bom moço no rosto e disse:
— Se você sabe mesmo ler mãos, senhora, então ler a mi-
nha. — falou educadamente e estendeu a mão esquerda fechada
para a mulher. Quando ela segurou e olhou para a mão do ra-
paz, ele a abriu. Escrito de caneta vermelha estava a palavra
“foda-se”. A mulher olha para Greco fuzilando-o com os olhos,
enquanto ele tenta, junto com os seus amigos, segurar as garga-
lhadas.
— Senhora, ele está só brincando. — interferiu Isaac segu-
rando o riso e sem saber o que dizer.
A mulher larga a mão de Samuel, encara os três com uma
expressão nada contente e sai sem dizer uma palavra. Eles se
entreolham e quando ela já está há alguns metros de distâncias,
caem em gargalhadas.
— O que foi aquilo, Sam? — perguntou Estella Lewis ainda
sorrindo.
— Quem aquela mulher pensa que é para chegar dizendo
um monte de bobagens e assustar meus amigos afirmando que
coisas trágicas irão acontecer? Eu precisava fazer alguma coisa
para animar o ambiente e mostrar que não nos importamos e
nem acreditamos nas coisas que ela diz sobre nosso futuro.
— Também não acredito nessa de ler mãos — disse Isaac
com desdém — acho uma grande mentira.

43
José Vitor Nunes

— Eu acredito um pouco — confessou Estella — Mas não


gostei do que ela disse, principalmente para o Caprica.
— Relaxa, Estrela, eu mesmo não dei importância para o
que ela falou.
— Olha ali — apontou Estella —, meu ônibus já está vindo.
— deu um abraço em cada um dos rapazes — Até amanhã e,
Isaac, não vai se esquecer de chamar o pessoal para a festinha
da turma do Sam.
— Ok. Não irei esquecer. Tchau.
— Tchau. — Estella entrou no ônibus e partiu.

44
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 5

A o chegar em sua casa, Isaac joga o capacete em cima


do sofá, abre a mochila e pega seu notebook de den-
tro. Acessa ao Facebook e procura por Clarice Fer-
rier na barra de pesquisa. Encontra alguns resultados, olha as
fotos uma a uma até encontra a garota dos olhos verdes-
esmeralda e clica na imagem.
A página redireciona para o perfil de Clarice e seguem-se
abaixo algumas informações sobre ela.
NASCEU EM: ILHA DO RIO IOLETE/ MORA EM: ILHA DO RIO IOLETE/
IDADE: 18 ANOS/ RELACIONAMENTO: SOLTEIRA/ ESTUDA NA: FACUL-
DADE CORONEL EDUARDO PAULO
Em seguida, começa a ver algumas fotos da garota. Uma fo-
tografia mais bonita que a outra. Ela tinha cerca de 1,70 me-
tros, mais ou menos 10 centímetros mais alta que Yasmin, po-
rém, não possuía pernas torneadas. Mesmo assim, não deixava
de ter um corpo lindo e a cintura fina como sua ex-namorada
também tinha.
Passou mais algumas fotos e viu três delas em frente à igreja
de Ilha do Rio Iolete com vários outros jovens e uma em frente
a uma enorme igreja que Isaac não conhecia. Ele continuou
passando outras fotos e numa delas a moça usava um nariz de
palhaço com algumas crianças em um hospital e, em seguida,
uma em que a jovem estava com várias cestas básicas de ali-
mentos. Logo abaixo a legenda dizia:
“Precisamos nos mobilizar e fazer algo em prol das crian-
ças que não têm onde morar e nem o que comer. Obrigado a
todos que fizeram parte dessa campanha e que nos ajudaram
com as doações. Grata por tudo. Que Deus vos abençoe.”
Cada foto que o rapaz via fazia com que sua vontade de co-
nhecer melhor aquela garota aumentasse ainda mais. Não ape-
nas por fazê-lo lembrar-se de Yasmin, mas também por ela
parecer uma moça muito especial.

45
José Vitor Nunes

Então enviou uma solicitação de amizade para, mais tarde,


quando ela aceitasse — se ela aceitasse — o convite de amiza-
de, ele pudesse mandar mensagem no chat para conhecê-la
melhor. Instantaneamente lembrou-se de mandar mensagem
para os AmendoWins convidando-os para a festinha da turma
do Sam.
Isaac Martinelli: Bernardo, vai ter uma festinha nesse final
de semana organizada pela turma do Sam e eu estou convi-
dando os AmendoWins. Vamos?
Bernardo Rivière: Quem já confirmou presença?
Isaac Martinelli: Eu, Estrela e Sam. Ainda vou convidar o
Thiago e a Mirelly.
Bernardo Rivière: Sei não, cara. Se eu for, vou perder uma
noite de Gunslinger, e eu tenho uma reputação a manter.
Isaac Martinelli: Gunslinger? Que diabos é isso?
Bernardo Rivière: Um jogo FPS online
Isaac Martinelli: FPS?
Bernardo Rivière: Frist-Person shooter. Conceituando: re-
fere-se aos jogos de tiro em primeira pessoa.
Isaac Martinelli: Tipo Counter-Strike?
Bernardo Rivière: Exatamente.
Isaac Martinelli: Deixa de ser geekie pelo menos um final
de semana e vamos nos divertir, sair com os amigos, conhecer
pessoas novas...
Bernardo Rivière: Conheço pessoas novas todos os dias no
Gunslinger. Mas tudo bem. Minha mãe reclama comigo porque
eu não saio de casa nos finais de semana, então darei esse
orgulho a ela.
Bernardo Rivière: Se a galera for, eu também irei.
Isaac Martinelli: Certo, agora vou falar com o Thiago e pe-
dir para ele falar com a Mirelly.
Bernardo Rivière: De boa. Flws, agora vou jogar.
Isaac Martinelli: Ok. Flws.
Após fechar a janela do bate-papo da conversa com Bernar-
do, Isaac abre uma nova, só que dessa vez com Thiago.

46
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac Martinelli: E aí, parceiro, vamos para a festinha que


a turma do Sam está organizando nesse final de semana? A
Estrela, o Bernardo, eu e o Sam (obviamente) já confirmamos
nossa presença, agora só falta você e a Mirelly.
Thiago Lazzo: Cara, acabamos de ter uma discussão, mas
foi besteira. Vou convidá-la, espera um pouco...
Isaac Martinelli: Tudo bem...
Depois de cerca de cinco minutos, Thiago volta a responder.
Thiago Lazzo: Opa, falei com Müller e ela disse que não es-
tá com ânimo para ir. :’-(
Isaac Martinelli: Ah, então você também não vai, não é?
Thiago Lazzo: Como é?! Claro que eu vou! Até aquele nerd
do Rivière que não sai do PC vai. Você acha que eu não iria?
E ainda perder a oportunidade de ver aquela criança inocente
bêbada? Nem morto! Kkkk
Thiago Lazzo: Müller que está sem ânimo, não eu.
Isaac Martinelli: kkkkkk. Mas será se a Mirelly não vai ficar
com raiva de você por ir sem ela?
Thiago Lazzo: Ah não, eu dou um jeito de explicar para a
Müller o motivo pelo qual não posso perder essa festa.
Isaac Martinelli: Então tudo bem. Já que você diz.
Isaac Martinelli: Outra coisa, são cinco pessoas com você,
então vamos todos no seu “possante”. Kkkkkk
Thiago Lazzo: Sem ironia com o Red Hot. Sei que ele tem
quase a idade do meu pai, mas é melhor que muito carro novo
por aí.
Isaac Martinelli: Já que você está dizendo, irei confiar. Só
espero que ele não nos deixe na mão. kkkkkkk
Thiago Lazzo: Não deixará, pode confiar. Hehe
Isaac Martinelli: Vou estudar um pouco, agora. Até mais!
Thiago Lazzo: Também irei fazer o mesmo. Até!

47
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 6

E
nquanto Clarice Ferrier e Júlia Singer estavam con-
versando distraidamente, um bipe de notificação é
emitido do computador de Clarice. De costas para
ele, a garota empurra os pés contra o chão, fazendo a
cadeira girar 180 graus sobre si para encarar o monitor. A men-
sagem no canto superior direito dizia: VOCÊ RECEBEU UMA SOLI-
CITAÇÃO DE AMIZADE DE ISAAC MARTINELLI. Ferrier esperava que
fosse algo vindo do Rio de Janeiro, mas, mesmo assim, ao ver
a mensagem, reconheceu o nome e a foto do garoto e clicou.
Uma página é carregada e o perfil do rapaz de corpo atlético
e de longos cabelos negros aparece na tela do computador.
— Quem é esse gato?! — quis saber Júlia.
— É o rapaz da turma de Conceitos da Psicologia.
— O que você está esperando? Aceita logo essa solicitação
e vamos ver as fotos desse bonitão!
Sem que Clarice pudesse fazer algo, Júlia se levantou da
cama em que estava sentada e, em seguida, sentou-se no colo
de sua amiga. Colocou a mão sobre o mouse do computador e
ela mesma aceitou a solicitação.
— Huuum... ele está solteiro. Um gato desse solteiro que-
rendo ser seu amigo não quer dizer outra coisa. Se eu fosse
você não desperdiçaria essa oportunidade. — disse sorrindo.
Indo agora ver as fotografias do rapaz, Júlia começou a pas-
sa-las e viram algumas de Isaac com Samuel tocando guitarra
em um lugar que parecia ser seu quarto, outras vestindo uma
roupa própria para pilotar sobre uma moto alta verde com
branca de número 71 e com o capacete embaixo do braço es-
querdo e erguendo um troféu com braço direito.
Passaram rapidamente mais algumas até que Júlia parou em
uma montagem com várias fotos de Martinelli com uma linda
garota de pele clara, longos cabelos castanho-claros e um corpo
divinamente escultural. Elas começaram a analisa-las de uma a

48
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

uma e viram nas imagens o jovem casal abraçado em um show


de rock, jogando videogame, assistindo a um filme sentados
numa cama e lavando duas motos, uma a de Isaac e outra rosa
com branca que elas deduziram ser da garota.
Aquela ultima foto continha uma legenda que dizia:
“Você esteve comigo nos melhores momentos da minha vi-
da, ou melhor, você tornou momentos da minha vida os melho-
res por simplesmente está comigo. A saudade só aumenta e o
meu amor por ti também. Te amo e te amarei eternamente
enquanto eu estiver aqui...
Para Yasmin Endler onde quer que esteja.”
Mais abaixo, havia alguns comentários que deveriam ser de
familiares, amigos e conhecidos dos dois e, como elas já ima-
ginavam, não havia nenhum comentário de Yasmin Endler.
As duas trocaram olhares por alguns segundos e finalmente
Júlia falou:
— Será que o que aconteceu com ela é o que estou pensan-
do?
— É o que está parecendo que aconteceu. Na vida estamos
sujeitos a isso, como todos nós sabemos. — disse Clarice colo-
cando uma mecha de cabelo atrás da orelha tentando buscar
algum tipo de conforto para si mesmo.
— Acho que já fazem alguns anos, pois nas fotos ele parece
ter de quinze a dezessete anos.
— Concordo.
— Reparando bem, até que ela lembra você um pouquinho.
Fora a cor do cabelo, ela tem os traços do rosto e os olhos um
pouco parecidos com os seus. — observou Júlia apertando os
olhos e fitando a foto mais de perto da tela do computador.
Clarice franziu a testa, sem entender, e fez o mesmo que Jú-
lia.
Houve novamente um silêncio por alguns instantes até que o
som do toque do celular de Júlia quebrou o clima fúnebre.
— alô? — disse ela atendendo ao telefone — Okay, já estou
indo... sim, está aqui comigo... Pode deixar que eu mando...

49
José Vitor Nunes

Está bem... Beijos. Também te amo. — e desliga o telefone. —


Era a minha mãe, disse para eu ir logo para casa porque já está
ficando tarde. Ela te mandou um beijo.
— Tudo bem, diga para ela que eu mandei outro.
— Certo — disse Júlia se levantando do colo de Clarice e
seguindo em direção à porta. Clarice faz o mesmo e acompa-
nha sua amiga. — Tchau, gata, até amanhã.
— Tchau. — elas se abraçam e, por fim, Júlia segue seu
caminho.

Clarice andou até sua cama e deixa seu corpo cair sobre o
colchão. Ela sente o lençol frio, então abraça o travesseiro com
força. Apanha uma bíblia ao lado e passa a última meia hora
lendo.
Após terminar a leitura, faz uma oração e, antes de tentar
cair no sono, pega o celular e olha a caixa de e-mails. Naquele
momento não havia nada de importante. Coloca o aparelho de
lado, fecha os olhos e dorme.

50
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 7

P
assavam-se pouco mais das 22h enquanto Isaac e
Samuel estavam se preparando para a festinha da
turma do Sam. Isaac vestia uma camiseta preta do
Linkin Park, uma jaqueta preta por cima, calças
jeans azul rasgada nos joelhos e terminava de amarrar os ca-
darços das suas botas enquanto Samuel estava com uma cami-
seta vermelha de manga longa, calça preta e calçava um par de
Nike esportivo.
— Você já avisou para o Thiago que estamos prontos? —
perguntou Greco dando uma última conferida no cabelo.
— Vou mandar uma mensagem no grupo dos AmendoWins
no Whatsapp os avisando.
Isaac Martinelli: Thiago, já estamos prontos. Chegaremos
aí em 20min.
Thiago Lazzo: Certo, estou apenas esperando por vocês.
Bernardo Rivière: Estou pronto há 20min. ¬¬
Isaac Martinelli: Já já estaremos aí, Bernardo.
Estella Lewis: Gente, não vai dar para eu ir :-(
Estella Lewis: Estou morrendo de cólica.
Isaac Martinelli: Está tão ruim assim? Não dar para aguen-
tar um pouco até passar?
Thiago Lazzo: Que é isso? Vamos! Você vai esquecer essa
dorzinha rapidinho quando chegar lá.
Estella Lewis: Você diz isso porque não é mulher. ¬¬
Bernardo Rivière: Também estou sentindo uma enorme dor
por está perdendo uma noite de Gunslinger.
Thiago Lazzo: Deixa de “nerdice”, seu nerd. Hoje vamos
lhe apresentar a vida real e você nunca mais irá jogar Second
Life. Kkkkkkk
Bernardo Rivière: Veremos...
Isaac Martinelli: Estrela, você não vai mesmo?

51
José Vitor Nunes

Estella Lewis: Não, irei ficar em casa deitada curtindo ser


mulher.
Estella Lewis: Deixa para a próxima.
Estella Lewis: Divirtam-se por mim!
Isaac Martinelli: Tudo bem, a gente entende...
Thiago Lazzo: Pode deixar que iremos nos divertir sem você
lá.
Bernardo Rivière: Não vai ser tão legal como se você esti-
vesse, mas vamos tentar nos divertir por você! :-*
Estella Lewis: Awn *-*
Estella Lewis: Aprenda a ser fofo como o Caprica Nerd,
Aquariano.
Thiago Lazzo: Estou vivendo e aprendendo com o Rivière
hehehe.
Isaac Martinelli: Okay, estou saindo de casa agora. Thiago,
vou deixar a Magrelona em sua casa.
Thiago Lazzo: Já é! Cola aqui em casa logo.
Isaac Martinelli: Faloooows!
Bernardo Rivière: Flws
Thiago Lazzo: Flwssss
Estella Lewis: Divirtam-se por mim! :-*

Quase vinte minutos depois, Samuel e Isaac estavam na casa


de Thiago. Deixaram suas motocicletas na garagem e caminha-
ram em direção ao Chevrolet Opala 69 vermelho estacionado
do lado de fora.
— Senhoras e senhores, apresento-lhes: Red Hot! — disse
Lazzo apontado com as mãos abertas para a seu possante ver-
melho.
— Sinceramente, o Red Hot está uma belezura. — comen-
tou Isaac sentando-se no banco do carona ao lado de Thiago.
— Sou um amante de carros antigos.

52
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Só espero que o Red não nos deixe na mão — acrescen-


tou Samuel ao entrar no carro fechando a porta com um baque.
— Pelo amor de Deus, Greco! Bata essa porta devagar! —
disse Thiago muito irritado — Porta de carro é como porta de
geladeira, não precisa de toda essa força.
— E por acaso eu já fechei uma geladeira por dentro?
Isaac não contém o riso e rir alto, respira, rir mais um pouco
e por fim diz:
— Ele fala a verdade, Thiago. Cresci com o Sam e nunca o
vi fechando uma geladeira por dentro. — comentou ainda sor-
rindo.
— Que fique avisado. — falou Lazzo com a expressão zan-
gada e com a voz firme. Então, gira a chave e o carro chacoa-
lha como um peixe fora d’água, mas o motor não dá partida.
Tenta mais uma vez, o carro treme por quatro segundos até
finalmente o motor funciona.
Os rapazes seguiram caminho.

Dez minutos mais tarde chegam à casa de Bernardo, que já


estava do lado de fora esperando os amigos usando seus óculos
grossos e vestindo uma camisa social branca e uma gravata
preta. O cabelo estava perfeitamente partido para o lado ainda
molhado que formava uma linha do couro cabeludo aparente.

— Cara, para onde você pensa que vai? Para uma entrevista
de emprego? — perguntou Martinelli após Bernardo entrar no
carro.
— Não sabia como vocês iriam, então resolvi colocar minha
roupa de festas.
— Que tipo de festas você costuma frequentar, cara? — quis
saber Samuel.
— Festas de formatura de familiares, festas de casamento de
familiares, festas de aniversário de familiares...
— Deixe-me dar um jeito nesse seu visual para ninguém rir
de você. — falou Isaac despenteando o cabelo de Rivière com

53
José Vitor Nunes

a mão. — Você também precisa de um ajuste nessa gravata. —


afrouxou a gravata deixando-a pendurada no pescoço de Ber-
nardo — E para finalizar, falta apenas desabotoar alguns botões
dessa sua camisa — então ele desabotoou os três primeiros
botões. — Pronto! Bem melhor agora! — de fato estava bem
melhor do que antes.
— Você o transformou no Putão das Novinhas — disse Thi-
ago rindo e olhando para Rivière pelo retrovisor interno.
— Por falar em Putão... Thiago, não acredito que Mirelly
concordou em deixar você ir a essa festa sem ela. — comentou
Isaac. — Porém, ela não disse nada no grupo enquanto combi-
návamos de nos encontrar.
— Ela está sem Whatsapp. — explicou Lazzo.
— Mas ela concordou em deixar você ir?
— Aah, com certeza! Quando “pedi” — disse ele largando o
volante e levantando os dedos em aspas — a ela para ir para a
festa e expliquei porque eu não poderia deixar de comparecer,
ela disse assim: “Claro que você pode ir! Vai lá! Vá sem mim e
aproveite para conhecer muitas garotas!” — falou forçando
uma vozinha chata e aguda — Então Müller desligou na minha
cara e eu encarei isso como um sim, obviamente.
— Cara, você sabe que isso não foi um “sim” e pode com-
plicar para o seu lado.
— Eu não confirmei que iria. Depois que ela bateu o telefo-
ne na minha cara nós ainda não nos falamos.
— Jesus! Que calor é esse? — reclamou Samuel — Liga o
ar-condicionado, Thiago.
— Liga você... — disse Thiago despreocupado.
— Onde? Daqui de trás?
— Está vendo essa manivela do lado da porta? Então, você a
gira no sentido horário que o vidro irá baixar e pronto. Está
ligado. Façam todos, por favor.
Sem ficarem surpreso pelo Red Hot não possuir ar-
condicionado, todos baixaram os vidros e seguiram viagem até
a casa de Manuela Letto, onde a festa estava rolando.

54
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Ao descerem do carro e caminharem em direção à casa de


Manuela, Thiago Lazzo recebe um telefonema de Mirelly Mül-
ler.
— Oi, amor — disse ao atender ao telefone.
— Onde você está? — perguntou Mirelly sem mais delon-
gas.
— Estou em casa, meu bem — mentiu.
— Hey, Thiago! Pensei que não viria mais! — gritou uma
garota da turma de Thiago acenando com a mão ao vê-lo. Ele
acenou de volta e deu um sorriso forçado.
— Isso é voz de mulher?! De onde vem esse barulho todo?!
Me explica, Thiago!
— Está bem. Eu estou na festinha da turma do Greco. Ex-
pliquei a você o motivo de eu não poder perder.
— Seus motivos idiotas não justificam nada! Você mentiu
para mim e ainda foi para essa festa mesmo sabendo que eu
não queria que fosse!
— Tecnicamente, você disse que eu poderia vir.
— Aah, dane-se, Thiago! Está tudo terminado entre nós! —
e novamente bateu o telefone na cara de Lazzo sem esperar
suas explicações.
Thiago virou-se para os amigos e perguntou:
— Vocês já ficaram bêbados alguma vez na vida?
Os três fizeram que não com a cabeça.
— Bem, quando um cara leva um fora da garota que gosta
ou fica solteiro, seus melhores amigos ficam bêbados junto
com ele. Vamos ficar loucões!
— Ele não é meu melhor amigo. — balbuciou Bernardo pa-
ra Isaac enquanto Thiago seguia festa adentro.

Como em toda festa de estudante, o que não falta são bebi-


das baratas. Sobre a mesa estavam várias garrafas de vodca,
uísque e refrigerantes. Thiago Lazzo pegou quatro copos e en-
cheu cada um deles com um quarto de vodca e três quartos de
refrigerante e entregou aos amigos.

55
José Vitor Nunes

— Bebam, seus Putos Virgens de Álcool.


— Esse negócio é do caralho! — disse Samuel depois de
experimentar a mistura.
— Que droga horrível é essa, Thiago?! — perguntou Ber-
nardo Rivière ao dar uma enorme golada da mistura.
— Isso, meu caro, é a vida real. — respondeu Lazzo pondo
o braço sobre os ombros de Rivière. — Aah, e para o bem de
vocês, bebam aos poucos e devagar.
Isaac, Bernardo e Samuel ouviram e seguiram o conselho do
amigo, dando um pequeno gole.

— “Festa estranha, com gente esquisita. Eu não ‘to’ legal,


não aguento mais birita”¹ — disse Isaac secando o segundo
copo já se sentindo mais feliz e leve.
Os quatro ficaram parados em um canto da casa por um
tempo vendo as pessoas dançarem, rirem atoa e beijarem na
boca como se não houvesse o amanhã. Então o efeito do álcool
foi se intensificando.
— Meus olhos de águia detectaram umas gatas, vou lá me
socializar. — falou Samuel Greco com a língua um pouco mo-
le. — Vocês deveriam fazer o mesmo. Bora curtir, negada! —
e saiu ziguezagueando pela casa.
— Dê-me aqui seus copos para eu encher. — diz Thiago
com os olhos baixos pegando os copos e indo em direção à
mesa.
— Olá! Você sabe dançar? — perguntou uma garota che-
gando por trás de Bernardo.
— Não muito. Meu recorde em Just Dance são duas estre-
las.
— Então hoje é seu dia de sorte. Vamos, eu te ensino alguns
passos. — disse a garota puxando Rivière pela gravata.

----------
¹ Trecho da música Eduardo e Mônica da Legião Urbana.

56
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Uma música eletrônica começa a tocar e Isaac arrisca alguns


passos da “dancinha do robô” com os braços e pernas simulan-
do as de um robô e deslizando os pés sobre o piso. Thiago che-
ga ao lado dele e os dois começam a fazer passos aleatórios não
necessariamente seguindo o ritmo da música. Martinelli dá
mais uma golada da mistura e ela parecia está mais fraca ou
talvez o seu paladar já não estava mais conseguindo decifrar a
intensidade dos sabores.
Thiago arrisca o Moonwalker, gira sob os calcanhares, perde
o equilíbrio e cai. Martinelli tenta ajuda-lo, mas acaba indo ao
chão junto com o amigo. Eles começam a rir sem parar, não se
importando com o que as pessoas ao redor estavam pensando.
Samuel Greco chega com uma garrafa de uísque em cada
mão e uma de vodca embaixo do braço e pergunta:
— Estão fazendo o que sentados aí, seus putos?! — gritou
ele euforicamente. Atrás dele, estavam oito caras marombas
acompanhados de algumas garotas. — Vamos beber!
— Bora beber porque amar está difícil! — falou Thiago pu-
xando uma garrafa de uísque da mão de Greco.
— Vocês já ouviram falar em Oito Segundos? Os caras do
time de futsal da faculdade acabaram de me ensinar esse jogui-
nho.
— Como funciona? — quis saber Thiago.
— Você só precisa virar para dentro de sua boca alguma
dessas garrafas por oito segundos sem parar.
— Isso é fácil! Isaac, você conta. Confio mais em você.
— Tudo bem.
Lazzo virou a garrafa na boca enquanto Isaac contava e o
time de futsal todo vibrava na torcida.
Um... — começou a contagem, enquanto a torcida gritava:
“Vai! Vai! Vai!” — Dois... — “Vai! Vai! Vai!” — Três... —
“Vai! Vai! Vai!” — Quatro... — então o rapaz afastou o litro e
cuspiu o ultimo gole em um jato de álcool no chão.
— Perdeu! Conseguiu só até o quatro! Matt, mostra para ele
como se faz. — então um homem alto e musculoso que vestia

57
José Vitor Nunes

uma camiseta vermelha do Manchester United se aproximou e


disse:
— Vou mostrar para vocês como um profissional faz. —
pegou o litro das mãos de Thiago e virou...

Enquanto isso, Bernardo se divertia mandando ver com al-


guns passos que aprendeu jogando videogame. A garota que
estava com ele o beijava no pescoço, bochechas até que, por
fim, tascou um beijo na boca do rapaz e ficaram ali se beijando
por alguns minutos. Ao terminar, a moça perguntou:
— Quer ir para o quarto comigo para eu te ensinar outras
coisas?
— Que tipo de coisas? Química? Física? Matemática?
— Biologia, seu bobinho.
— Não me interesso muito por biologia, prefiro cálculos.
— Pois vou fazer você se interessar agora mesmo. — então
ela o puxou novamente pela gravata e o levou até o quarto mais
próximo.

Depois de algumas horas, Bernardo Rivière sai do quarto


com a camisa completamente desabotoada mostrando o peito-
ral nada definido e a barriga magra, com a gravata preta amar-
rada na cabeça e tentando colocar o sapato sem parar de cami-
nhar.
Ele faz uma varredura com os olhos à procura dos seus ami-
gos e os veem sentados no chão. Thiago estava entre seus ami-
gos com a cabeça abaixada, com as pernas afastadas e abraçan-
do uma garrafa de uísque por acabar. Isaac estava à sua direita
com a cabeça em seu ombro e Samuel à esquerda com a cabeça
sobre o outro ombro de Lazzo.
Bernardo se aproxima e chuta a perna de Thiago para ele
acordar. Chuta uma... duas... e na terceira vez ele acorda, des-
pertando os seus amigos.
— Cara, o que houve? O que vocês estão fazendo sentados
aí?

58
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Amar está difícil, cara. — balbuciou Thiago voltando a


cochilar.
— Quê? Ei, acorda! — dá outro chute na perna de Lazzo.
— O que foi, cara? — pergunta com a voz pesada e sono-
lenta.
— Vamos embora. Não há quase ninguém aqui.
— Vamos. Já passou da hora. — diz Isaac se levantando
com dificuldades.
Eles saíram cambaleando até chegar ao carro de Thiago e
entram.
— É melhor eu dirigir. Estou totalmente sóbrio, eu acho. —
argumentou Rivière.
— Ninguém além de mim dirige Minha “Belejura”. — afir-
ma Thiago tentando colocar a chave na ignição. Tenta uma...
duas... três... e na quarta vez a chave cai de sua mão.
— Vamos lá, Thiago, toca o burro! — exclamou Isaac re-
costando-se no banco do carona.
Rivière olha para o lado e vê Samuel dormindo. Olha à sua
frente e vê Isaac e, ao lado dele, Thiago. Ambos dormindo
também.
— O melhor a fazer é dormir também e esperar até o ama-
nhecer. — disse Bernardo para si mesmo. Então se acomoda no
branco de trás e dorme.

Sete horas depois, às 10h da manhã, Isaac acorda com a ca-


miseta empapada de suor. Tirou a jaqueta e colocou sobre as
pernas. Sua boca estava seca, a cabeça latejava de dor e ele
ainda se sentia um pouco zonzo.
Chacoalhou Thiago até acordá-lo.
— O que foi que eu fiz? — perguntou Isaac
— Você bebeu e ficou bêbado. — respondeu Thiago com os
olhos ainda caindo de sono.
Samuel e Bernardo acordam com a conversa.

59
José Vitor Nunes

— “Bati a nave”, manos. Bebi até dormir — disse Samuel


— Estou morrendo de dor de cabeça e com enjoo, nunca mais
vou beber na minha vida! — virou-se rapidamente e vomitou
pela janela.
— Nem eu. — diz Isaac — Nunca mais!
— Eu não deveria ter te deixado beber tanto, primão. —
afirmou recuperando-se e limpando a boca com a manga da
camiseta.
— Você não conseguiu cuidar nem de si próprio, imagine de
nós dois.
— É verdade. Uma vez para nunca mais. — deu uma pausa,
olhou para o lado e perguntou: — Onde você estava, Bernardo?
Depois que saí, quando voltei, não vi mais você.
— Eu estava com uma garota.
— Você? Com uma garota? Estavam falando sobre jogos?
— Não. Biologia. Nós estávamos transando. — concluiu
Bernardo pondo as mãos atrás da cabeça e se acomodando no
banco do carro.
— Você?! Transando?! Na vida real?! — perguntou Thiago
surpreso. — E eu não peguei ninguém! É o fim do mundo, meu
Deus!
— Enquanto vocês estavam sentados no chão completamen-
te bêbados, eu estava deitado numa cama bem confortável com
uma linda garota.
— Acho que o toque que dei no visual dele deu um charme
especial. — observou Isaac.
— Estou vivendo e aprendendo com o Rivière, vulgo Putão
das Novinhas. — caçoou Thiago.
Todos riram.
— É, galera, como dizem: ao entrar na faculdade, os certi-
nhos irão beber, os evangélicos irão xingar e os virgens irão
transar. — comentou Martinelli.
— CARALHOO!! — gritou Samuel.
— O que foi, Sam? — perguntou Isaac.
— Como você disse, os evangélicos irão xingar.

60
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Mas você não é evangélico.


— Eu sei que não. — disse Samuel sorrindo.
— Como é mesmo o nome dela, Bernardo? — quis saber
Isaac.
— Raísa, Taísa, Maísa... Não me lembro.
— Droga, não acredito que fiz isso. — lamentou Thiago.
— O quê? Beber até dormir? — arriscou Bernardo.
— Pior. Olhem as mensagens que mandei para a Müller no
decorrer da noite.
Virou o celular para que todos vissem. Os três se aproxima-
ram do aparelho e começaram a ler as mensagens.
Thiago lazzo: Estoui solteiroo e to cuirtndoo
Thiago lazzo: uuhhhuuuu
Thiago lazzo:Perdeeiuu:-*
Thiago lazzo: Mweu amoir
Thiago lazzo: Me desculpaaz
Thiago lazzo: Eu não queriaq te deixar zangada..
Thiago lazzo: Eu te ammoorr

— Será se ela vai me desculpar e entender que era o álcool


falando? Pela escrita dá para notar claramente que eu estava
bêbado, não dá? — perguntou com um semblante preocupado.
— Você que a conhece bem melhor que a gente deve imagi-
nar. — disse Samuel. — O melhor a fazer é conversar com ela
e explicar tudo pessoalmente.
— É verdade. — concordou Thiago dando partida no motor,
fazendo o carro tremer e engasgar. Ele tentou de novo, mas
falha outra vez. Na terceira tentativa o carro balança por alguns
segundos e finalmente ganha vida. — Então vamos, tenho mui-
tas coisas para resolver.

61
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 8

P
assado o final de semana e com ele a ressaca dos
rapazes, Isaac chegara do treino de todas as manhãs
e já estava com Samuel na Zona do Rock desde às
7h:30min. organizando um carregamento de CDs
que havia acabado de chegar. Ele convencera seu primo que a
melhor forma de organizar os CDs seria primeiramente por
ordem alfabética dos artistas e depois pelo ano em que a banda
lançou o álbum. As pessoas costumam pedir pelo ano em que
eles foram lançados, pois é mais fácil do que aprender o nome
de cada um deles, argumentou Isaac.
— Conferindo... Avenged Sevenfold: primeiro álbum em
2001, o Sounding The Seventh Trumpet... — disse Samuel ob-
servando atentamente os nomes nas lombadas dos CDs na pra-
teleira.
— Confere... — confirmou Isaac olhando a ordem na inter-
net pelo celular.
— O segundo em 2003, o Waking The Fallen...
— Confere...
— Terceiro em 2005, o City Of Evil...
— Confere...
— Quarto em 2007, esse leva o nome da banda, Avenged
Sevenfold...
— Confere...
— O quinto em 2009, o Damonds In The Rough, e o DVD
Live In The LBC...
— Isso mesmo...
— O sexto em 2010, o Nightmare...
— Certo...
— E em 2013, o Hail To The King...
— Okay, tudo certo aqui. Próxima banda é Black Veil Bri-
des. — afirmou abrindo o bate-papo com Clarice Ferrier no

62
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Facebook. Era a terceira vez só naquela manhã que ele fazia


aquilo e já perdera as contas de quantas vezes nos últimos dias.
— Quem é essa garota?
— Como é?
— A do Chat. — disse — O primeiro álbum da Black Veil
Brides foi em 2010, o We Stitch These Wounds, confere? —
perguntou Samuel separando os CDs.
— Confere. — Isaac fechou o bate-papo rapidamente e
abriu o Google para pesquisar sobre a banda.
— Então, responda minha pergunta. Quem é essa gatinha?
— Ela é da turma de Conceitos da Psicologia. Fizemos uma
atividade em dupla, daí mandei a solicitação para eu... meio
que... agradece-la depois, sei lá.
A verdade era que Martinelli queria muito conhecer melhor
aquela moça, mas preferiu guardar aquilo só para si.
— Mande logo uma mensagem, quando ela visualizar, irá te
responder. Melhor do que ficar o tempo todo olhando para ver
se ela está online.
Martinelli se manteve calado. Desconfiado.
— O segundo foi o Set The World On Fire, em... — deu
uma pausa — 2011?
— Confere.
Samuel olha para seu primo, encarando-o.
— O que foi? — perguntou ele sem entender.
— Não ouviu o tio Frank lhe chamar? — disse Greco ten-
tando se concentrar nos sons do ambiente. Isaac fez o mesmo.
— Não ouvi nada.
— É melhor você ir logo à sala dele saber o que ele quer.
Martinelli virou-se e começou a caminhar.
— Ei! — exclamou Samuel — Deixe seu celular comigo pa-
ra eu ir vendo a ordem dos álbuns da Black Veil Brides.
O rapaz entregou o aparelho e seguiu caminho. Quando já
estava em uma distância segura, Greco abriu o bate-papo com
Clarice e mandou um “oi”.

63
José Vitor Nunes

— Você está ouvindo coisas, o tio Frank não me chamou.


— disse ao voltar.
— Ah não? Pelo menos agora poderá focar mais no traba-
lho. — devolveu o celular. Isaac não havia entendido até olhar
para a tela do aparelho e ver a mensagem enviada para Clarice.
— Só precisará deixar os dados móveis ligados para quando ela
responder, você ver instantaneamente. — levantou duas vezes a
sobrancelha rapidamente — O que seria de você sem mim? —
sorriu.
— Não deveria ter feito isso. — o rapaz o olhava com desa-
provação.
— Relaxa, não há nada de mais nisso. Nesse momento só
estou fazendo o que é melhor. — Greco vira-se para a pratelei-
ra e volta a ler o nome dos álbuns. — O terceiro em 2013,
Wretched And Divine: The Story Of The Wild Ones?
— Confere... — respondeu tentando ignorar aquilo.

Já no final da sua aula, o professor Davi Gaspar pediu para


que os alunos falassem sobre as pesquisas que eles fizeram
relacionadas às empresas que faliram devido à má administra-
ção. Após passar cerca de vinte minutos explicando minucio-
samente todos os detalhes que levaram a Real Entretenimento,
uma grande criadora de jogos de computadores à falência, Ber-
nardo Rivière passou a palavra para o professor e sentou-se de
volta em sua cadeira.
— Bom, nosso colega fez uma ótima abordagem sobre cada
fator que levou a empresa à falência. — disse Davi Gaspar —
Mais alguém quer aproveitar os cinco minutos que ainda nos
restam para citar outra empresa ou fazer algum comentário?...
— Silêncio. Os alunos se entreolharam. — Ninguém?... — deu
uma pausa esperando alguma resposta, e nada. Então resolveu
chamar alguém. — Isaac, você nos trouxe algo sobre uma
grande empresa?

64
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Sempre perguntam para mim, pensou o rapaz. Deve ser por


isso que a maioria prefere se sentar lá atrás.
— Não... Na verdade sim, mas não de uma grande empresa.
— disse Isaac se levantando — Eu preferi buscar algo mais
próximo da gente.
— Então, por favor, compartilhe com os seus colegas.
— Ok... Bem... Minha pesquisa é sobre a lanchonete Rei da
Ilha, que, para quem não sabe, até alguns anos atrás era uma
das maiores empresas de fast-food da cidade e tinha tudo para
crescer bastante. Porém, o grande problema foi a falta de plane-
jamento e a pressa dos sócios em disseminarem sua marca.
Eles começaram a crescer bastante aqui em Ilha do Rio Iolete e
acharam que seria da mesma forma nas cidades vizinhas, então
fizeram um grande investimento e construíram mais três filiais,
uma em cada cidade, inclusive na minha cidade natal, Bela
Vila, e, detalhe, eu não fui nem para a inauguração. — confes-
sou — Mas não foi por falta de interesse meu. Vou já explicar
para vocês o motivo de eu nunca ter ido para o “venha para o
rei, venha para o rei, o Rei da Ilha! Aqui é o único lugar em
que é o rei que te serve” tamtamtamtam tam tam. — disse
Martinelli cantando a musiquinha do slogan. Todos da sala
riram. — O primeiro grande erro — continuou — foi o inves-
timento exagerado em locais diferentes, que gerou o segundo
grande erro, que foi não procurar fazer pesquisas de mercado
para saberem se haveria uma demanda segura para os produtos
ofertados, e o terceiro grande erro foi a péssima divulgação dos
produtos e serviços da empresa, motivo para eu não ir à inau-
guração, pois não fiquei sabendo quando seria. Nem preciso
dizer o que aconteceu porque todos já sabem que a partir des-
sas falhas na administração, ocorreram vários outros problemas
em série e a promissora Rei da Ilha se viu obrigada a fechar as
portas e ninguém mais foi obrigado a ouvir aquela musiquinha
irritante que não saía da cabeça.
— Realmente aquela musiquinha me irritava. — comentou
o professor — A sua pesquisa foi muito interessante, Martinel-
li, e o fato de ser uma pequena empresa próxima de nós faz

65
José Vitor Nunes

com que venhamos perceber melhor que a boa administração é


necessária em qualquer lugar, até mesmo dentro de nossas ca-
sas. — concluiu — Nosso tempo já se esgotou, então até a pró-
xima aula, meus queridos. — pegou seus pincéis e livros de
cima da mesa e retirou-se com seu caminhado inconfundível.
— “venha para o rei, venha para o rei, o Rei da Ilha! Aqui é
o único lugar em que é o rei que te serve!” tamtamtamtam tam
tam! — cantarolou Estella pulando nas costas de Isaac e agar-
rando-o pelos ombros. — Cara, você me fez lembrar dessa mu-
siquinha chiclete, agora ela irá impregnar na minha cabeça no-
vamente.
— Eu precisava compartilhar com a galera, não poderia so-
frer sozinho. — brincou Isaac. — Me rebelei.
— Bad boy nível expert. — completou Estella.
— Nivel expert em qual jogo? — perguntou Bernardo se
aproximando.
— Você só pensa em jogos, Caprica Nerd? — inquiriu Es-
tella cruzando os braços e tentando fazer uma expressão séria
no rosto.
— Não, também penso em séries. — respondeu empurrando
os óculos com o indicador.
O celular de Isaac vibrou dentro do seu bolso e ele o puxa
rapidamente imaginando que seria Clarice respondendo o “oi”
que Samuel enviara mais cedo para ela em seu nome. Ao ler a
mensagem, ficou um pouco decepcionado.
Thiago Lazzo: Fala, amigo. Tranquilo?
Martinelli responde dizendo:
Isaac Martinelli: Tudo na paz. E por aí? Não veio para aula
hoje por quê?
Thiago Lazzo: Não estou me sentindo muito bem devido ao
término do meu namoro e ainda não tive coragem de falar com
a Müller para explicar o lance das mensagens, então achei
melhor não ir para a aula e não ter que encará-la cara-a-cara.
Isaac Martinelli: Te entendo, irmão. Mas você poderia ter
vindo, pois ela também não veio.

66
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Thiago Lazzo: Ela também não foi para a aula? :-O


Thiago Lazzo: Droga, devo tê-la magoado :’(
Thiago Lazzo: Preciso tirar coragem de algum lugar para
encarar essa situação como homem de verdade e resolver tudo
isso. E se ela ainda me quiser, podemos continuar de onde
paramos.
Isaac Martinelli: Nem sei como te ajudar nesse momento,
mas você deve conversar direitinho com ela o quanto antes.
Isaac Martinelli: Qualquer coisa que precisar, pode contar
comigo.
Thiago Lazzo: Certo. Obrigado, irmão :)
Isaac Martinelli: Por nada, parceiro.

— Conversei com o Thiago esses dias, ele não parece estar


nada bem. — disse Estella — Fiquei sabendo o que aconteceu
no final de semana. Estou triste por meus afilhados terem ter-
minado, mas torço para que eles se entendam e voltem, pois os
dois me prometeram ser madrinha de casamento deles e isso eu
irei cobrar! — afirmou Estella com convicção levantando o
braço esquerdo e apontando com o indicador para cima.
— É incrível como os opostos se atraem — comentou Isaac.
—, pois eles são tão diferentes.
— E são mesmo Caprica, já fiz o Mapa dos dois e eles pos-
suem alguns conflitos, tipo, o Thiago é do signo de aquário,
gosta de liberdade e tem o ascendente e o marte em aries, que
faz ele não pensar muito nas consequências dos seus atos e não
gostar muito de dar satisfações. — explicou Lewis. — Já a
Mirelly é de touro, que gosta muito de prender as pessoas, tem
mercúrio em escorpião, que a torna investigadora e faz com
que ela queira saber tudo que o Thiago está fazendo.
— Sinistro. — comentou Isaac.
— Interessante. — disse Bernardo. — Conceituando: Pesso-
as que possuem características diferentes assim estão sempre
em conflitos.

67
José Vitor Nunes

— Mas esses são apenas os pontos diferentes. Existem ou-


tros que fazem com que eles se interessem um pelo outro.
— É verdade, Thiago gosta de mulheres e Mirelly de ho-
mens, e isso faz com que eles se interessem um pelo outro. —
caçoou Isaac.
— Para, Caprica. — disse Estella sorrindo e dando um so-
quinho no obro de Martinelli.
— Pessoal, preciso ir — disse Rivière. —, tenho uma tropa
de noobs para liderar na próxima guerra.
— Em Gunslinger? — quis saber Isaac.
— Isso mesmo. Até que eles são bons, mas não se compa-
ram a mim.
— To ligado. Também preciso ir. Até mais, Estrela. — deu
um abraço nela e trocou um aperto de mãos com Bernardo.
— Tchau, Capricas!
— Tchau! — responderam juntos e partiram.

Toda aquela pressa de Bernardo para ir embora não era ape-


nas por ter uma tropa para liderar no Gunslinger. Ele escondia
algo que, até o momento, guardava só para si, e ninguém des-
confiava de absolutamente nada.

68
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 9

A pós um longo dia cansativo, Isaac deitou-se na cama


mais cedo e tentou relaxar. Ao se lembrar da mensa-
gem enviada por Samuel para Clarice, pega o celular
e checa seu bate-papo, mas até aquele momento ela não havia
sequer visualizado.
Naquele instante, lembranças de Yasmin vêm à tona em sua
mente, então ele liga o notebook e começa a ver algumas fotos
e vídeos antigos dos dois se divertindo.
No réveillon de 2014 para 2015, Isaac e Yasmin reuniram
seus familiares e amigos e alugaram um clube em Bela Vila
para comemorarem a virada do ano. A grande novidade da noi-
te, além de reunirem ambas as famílias que sempre comemora-
ram o réveillon separadas, foi a formação da banda improvisa-
da com Samuel na bateria, Yasmin no contrabaixo e vocal e
Isaac na guitarra e segunda voz.
Naquela noite todos estavam bem animados e os jovens to-
cavam dos clássicos do Pink Floyd ao metal do Metallica, pas-
sando pelas musicas apaixonantes do Nickelback, sem esquecer
também os hits da Legião Urbana, dentre várias outras bandas.
Chegada às 00h:00min., houve queima de fogos de artifício
que enfeitaram o céu noturno com explosões em vermelho,
verde, azul, amarelo, em uma chuva de brilhantes bolinhas de
fogo. Quando as explosões cessaram e todos já tinham se abra-
çado e desejado um feliz ano novo para cada um, Martinelli e
Yasmin foram até a cobertura de laje do clube, fugindo do ca-
lor humano para o frio da madrugada na intenção de terem um
momento a sós.
Sentados no chão, observavam as estrelas sob a luz cinza do
luar, e então Endler disse:
— Gostei dessa ideia de banda. Poderíamos leva-la adiante e
começarmos a fazer shows pelo mundo afora. — brincou ela.

69
José Vitor Nunes

— Você escreve muito bem, seria um ótimo letrista também, e


creio que conseguiríamos compor músicas maravilhosas como
os clássicos Patience e O Teatro dos Vampiros.
— Pensando bem, seria uma ótima ideia. — disse Isaac vi-
rando para olha-la nos olhos mais de perto. Ele amava aqueles
lindos olhos verdes-esmeralda. — Daí quando fôssemos à Pa-
ris, eu te levaria até a torre Eiffel, te entregaria uma linda prosa
falando do meu amor por você, o quão maravilhoso é estar con-
tigo e como seria mais perfeito ainda te ter por toda minha vi-
da, então finalmente eu te pediria em casamento. O que você
acha?
— Que lindo, Amor. — disse Yasmin dando um abraço bem
apertado nele e um beijo. — Mas você acabou de estragar a
surpresa.
Ele riu e beijou-a na testa. Segurou levemente seu queixo,
voltando a olha-la nos olhos e disse:
— Eu te amo.
— Eu também te amo e te amarei por toda minha vida. —
afirmou acariciando a bochecha de Isaac sem fazer ideia que
sua vida duraria por apenas mais sete dias.
— Fiz uma coisinha para você. — falou Isaac com um sorri-
so no rosto, puxando um papel dobrado do bolso do moletom e
entregando à Yasmin. Ela pegou o papel ansiosamente com um
sorriso largo no rosto, desdobrou e começou a ler o texto que o
rapaz escrevera.
Você é a Lua
Você é como a lua: gosto de ficar observando, me inspira,
te vejo todos os dias. Às vezes, algo sem forma definida, sem
brilho, que se desfaz facilmente, te encobre, fazendo com que
eu não consiga te ver. Porém, não ofusca sua luz que de qual-
quer forma chega até mim. E fico esperando porque sei que a
qualquer momento você vai aparecer e tomar toda minha aten-
ção. Mesmo eu observando por muito tempo todos os dias, é
incansável e impossível parar de te observar. E sempre digo:
nossa! Como ela é linda!

70
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Você é como a lua, parecendo está tão perto de alcançar,


mas ao mesmo tempo tão longe e impossível de chegar até ela.
E só depois de muito esforço e planejamento, posso esperar e
contar com a sorte para que um dia eu possa alcançar o tão
desejado brilho, sair do chão e perder o oxigênio por estar
próximo de ti.
Em qualquer lugar que eu esteja, sempre vou conseguir te
visualizar. Seja nos meus pensamentos, seja acima de mim,
todas as vezes quando eu olhar para a lua, vou me lembrar de
você. Irei ver o resplendor de lua cheia que só você tem. Ver
sua perfeita simetria.
A todo o momento haverá nuvens, algo passageiro que ten-
tará impedir que sua luz chegue ao meu alcance, mas não irei
desistir, pois sempre estarei esperando até as maiores tempes-
tades passarem para poder te ver reluzir novamente.
Posso passar horas só te admirando sem falar nada, apenas
vendo você brilhar, tomando toda minha atenção e me fazendo
esquecer... Já não me lembro mais...
Entre todos os astros, você é o que mais se destaca. E juntos
vamos poder dar voltas na terra todos os dias, e nunca me es-
quecerei o quão difícil foi chegar até você. Todos os dias “a
Marte”.
Aquele foi um grande passo para mim, e um gigantesco sal-
to para nós dois.

Após terminar de ler o texto com os olhos marejados de lá-


grimas, Yasmin dá um beijo bem demorado em Isaac e disse:
— Todas as vezes que te beijo, sinto aquela emoção e aque-
le friozinho na barriga que senti quando nos beijamos pela pri-
meira vez, porém, com uma sensação ainda melhor! Uma sen-
sação de segurança por saber que tenho você.
Martinelli abriu um sorriso e lhe abraçou.
Houve um silencio naquela noite fria e eles se mantiveram
abraçados por alguns minutos observando as estrelas e a lua
sem dizer sequer uma palavra até que, por fim, Isaac volta a
falar.

71
José Vitor Nunes

— Como passa rápido, já estamos com quase dois anos na-


morando.
— Pois é, dois maravilhosos anos. — afirmou ela com um
sorriso no rosto, voltando a abraça-lo. — E aí, como será o
nome da nossa banda?

Um bipe suave do celular de Martinelli o trouxe de volta ao


presente. Ainda lembrando-se daquela noite com Yasmin, ele
pega o celular com indiferença e olha para a tela. Uma barrinha
de notificações mostrava a seguinte mensagem: CLARICE FERRI-
ER: ooii :)
Sem pensar muito, sentou-se na cama e enviou outra mensa-
gem:
Isaac Martinelli: Você chega atrasada na aula e eu que não
tenho nada a ver com isso tive que “pagar o pato” também.
Acho que você me deve explicações sobre o atraso, garotinha.
kkkkkk.
Brincou o rapaz. Ela responde logo em seguida mantendo o
tom de humor:
Clarice Ferrier: Fui abduzida por alienígenas. Eles disse-
ram que estão atrás de um cara que eu talvez conheça. Não me
disseram o nome, mas me passaram algumas informações e
características. Sei que ele usa longos cabelos negros e é ca-
louro de Administração.
Isaac Martinelli: Ouvi falar mesmo que entrou um calouro
com essas características. Disseram-me que ele é perigoso.
Muito perigoso. Tenha cuidado.
Clarice Ferrier: Pois é melhor eu investigar e manter os
alienígenas informados.
Isaac Martinelli: Faça isso!! O mundo irá te agradecer. kkk
Isaac Martinelli: Ah, antes que eu me esqueça, queria dizer
que você se saiu muito bem na aula de Conceitos da Psicolo-
gia. Obrigado por me ajudar a conseguir aqueles pontos. Kkkk

72
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Clarice Ferrier: Ah, antes que eu me esqueça, você “pagou


o pato” também, mas não me diga que você não gostou daque-
le sabor 0,25 a mais. haha.
Isaac Martinelli: Estava delicioso!

Continuaram conversando e se conhecendo por cerca de


quinze minutos, falando sobre a Faculdade Coronel Eduardo
Paulo, sobre o que gostam de fazer, dentre várias outras coisas
sem muita importância, até que, em um determinado momento,
o rapaz falou:
Isaac Martinelli: Gostei dos seus olhos. Eles, os traços do
seu rosto e um pouco do seu jeito lembram-me os de uma pes-
soa que conheci. Isso fez com que você me parecesse bem fami-
liar. :)
Clarice Ferrier: *-* Isto é ótimo.
Clarice Ferrier: Falando em características que lembram
uma pessoa, você parece com o cara que os alienígenas
descr... Ai meu Deus!
Isaac Martinelli: Sim, sou eu quem eles procuram.
HAHAHAHAHAHA.
Clarice Ferrier: kkkkkkkk. Você é ótimo para conversar,
mas agora preciso ir dormir. Foi um prazer conhecer você.
Isaac Martinelli: Prazer, Clarice Ferrier ;) Até sexta.
Clarice Ferrier: Até. Boa noite. Fica com Deus!
Clarice Ferrier: Bjs :-*
Isaac Martinelli: Boa noite. Você também. Beijãozãozão :-*
Clarice Ferrier: :)
Isaac Martinelli: =)

Isaac deitou-se e ficou observando o pontinho verde abaixo


do nome de Clarice passar de Disponível para um pontinho
cinza com o nome Indisponível. Então ele voltou a deitar-se na
cama e começou a lembrar daquela primeira vez que ele vira
Clarice sentada no corredor.

73
José Vitor Nunes

— Eu trouxe pizza, primão! — gritou Samuel abrindo a por-


ta e entrando no quarto num piscar de olhos e se deparando
com Martinelli deitado. — Você já estava dormindo? Foi mal
aê...
— Não... não estava. — respondeu virando-se para Samuel.
— Ótimo, então vamos devorar aquela pizza antes que ela
esfrie.
— Ela respondeu a mensagem que você enviou em meu
nome. — afirmou Isaac com um leve sorriso no rosto, voltando
a sentar-se na cama.
— Quem? A pizza? — sacaneou — Fiz o que deveria ser
feito. — parou um pouco e decidiu falar logo de uma vez —
Para ser sincero, pelo que te conheço, acho que você não queria
apenas agradecê-la, pois estava agindo da mesma forma de
como agia quando estava conhecendo Yasmin, e nunca te vi
tão interessado assim em falar com uma garota desde que ela
morreu. Tenho certeza que esta garota tem algo especial para
fazer com que você queira tanto conhecê-la.
Martinelli refletiu um pouco sobre o que seu primo acabara
de dizer.
— Concordo. Ela deve ter mesmo...

Sam sentia uma felicidade crescendo dentro de si por ajudar


seu primo a dar este primeiro passo e desprender-se um pouco
do passado. O que ele não sabia era que o real motivo de Isaac
querer conhecer Clarice estava associado à Yasmin.

Aquele dia, de certa forma, havia sido bem proveitoso para


os dois. Então para fechar a noite com chave de ouro, Samuel
perguntou:
— Mas e aí, vamos comer ela ou não? — pigarreou — Me
refiro à pizza. — falou com um sorriso malicioso no rosto.

74
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 10

D
eitada na cama, Clarice termina de ler alguns pro-
vérbios e coloca a bíblia no criado-mudo ao lado.
Pegou o celular e conferiu os e-mails do dia — não
havia nada de tão importante —. Feito isto, aco-
modou-se na cama e começou a refletir sobre a conversa que
tivera com Isaac há poucos minutos. “Gostei dos seus olhos.
Eles, os traços do seu rosto e um pouco do seu jeito lembram-
me os de uma pessoa que conheci. Isso fez com que você me
parecesse bem familiar.”, recordou Clarice. Então, de repente,
a imagem da garota que ela vira na foto com Martinelli dias
antes em seu Facebook veio à sua mente.
Com o celular ainda na mão, pesquisou por Isaac na rede
social e encontrou várias fotos dele com a tal garota. Ela tinha
que concordar com Júlia, pois de fato elas eram um pouco pa-
recidas.

Clarice ficou olhando algumas fotos, analisando-as por um


tempo. Na medida em que olhava, não conseguia mais encon-
trar tantas semelhanças assim.

O relógio já marcava quase meia noite, então ela colocou o


celular de lado e tentou relaxar os músculos do corpo para fi-
nalmente dormir.

75
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 11

V
inte minutos antes do despertador tocar, Isaac acor-
dou e começou a se lembrar aos poucos do sonho
que tivera naquela noite. Diferente dos dias anterio-
res, nenhum pesadelo tinha-lhe arrancado do sono.
Porém, mais diferente ainda foi ter sonhado com Clarice numa
praça florida e sentados em um banco de madeira. Ele não con-
seguia se lembrar de como chegaram até aquele lugar tão lindo
e nem sobre o que estavam conversando ou fazendo ali. Contu-
do, sentiu-se feliz por não ter tido outro pesadelo horrível com
Yasmin.
Talvez o motivo de ter sonhado com Clarice seja devido aos
quatro últimos dias trocando algumas mensagens com a garota
que, apesar da conversa um tanto frequente, Isaac ainda não
sabia de muita coisa sobre ela e vice-versa. O que ele sabe so-
bre a moça, além das informações que vira no seu perfil na
internet, é que ela participa de um grupo de jovens, gosta muito
de ler, trabalha na livraria dos seus pais, localizada ao norte de
Ilha do Rio Iolete, cursa Enfermagem e está adiantando a dis-
ciplina Conceitos da Psicologia em sua turma. E o que ele dis-
sera para ela foi que também gosta de ler, mora na cidade há
quase um mês, é piloto amador de Motocross, curte rock n’ roll
e que trabalha na loja de seu tio, a Zona do Rock.

Após ter acordado, ele não conseguiu mais voltar a dormir e


ficou deitado até às 5h. Carpe Diem, lembrou-se. Então se le-
vantou, vestiu a roupa verde com branco, colocou os equipa-
mentos de segurança e foi para o treino na trilha que fica a leste
de Ilha do Rio Iolete, como costuma fazer todas as manhãs.

76
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Já no final da tarde, terminada a aula de Matemática, Isaac,


Bernardo e Estella combinaram de irem jantar juntos no restau-
rante da faculdade.
— Fiquei sabendo que você está conversando com uma ga-
rota de enfermagem, Caprica Roqueiro. — afirmou Estella
brincando com a comida.
— Deixe-me adivinha quem te contou... Samuel!
— Essa estava fácil. — sorriu.
— Não sei o que ele te disse, mas, acredite, ele exagerou.
Conheço aquele cara e ele deve ter dito para você mais ou me-
nos assim: “Hey Estella! Você já conhece a garota do Isaac?”
— falou tentando imitar a voz de Samuel.
— Foi mais ou menos assim mesmo. — concordou ela colo-
cando os talheres de lado na bandeja.
— Já chamou ela para sair? — quis saber Bernardo, empur-
rando os óculos no rosto com o indicador.
— Ainda não é o momento.
— Qual o signo dela? — perguntou Estella.
— Não sei, mas ela é do início do mês de julho. — respon-
deu dando uma garfada no frango assado.
— Caprica Roqueiro, ela é de câncer! — exclamou Estella
levantando-se da cadeira. Algumas pessoas ao redor olharam
para eles sem entender, como se estivessem pensando: “Quem
é aquela maluca?”
— E o quê que tem? — indagou Isaac um pouco envergo-
nhado, falando mais baixo que o normal.
— Vocês são complementares. — disse ela voltando a se
sentar. — Capricórnio é o signo complementar de câncer, isso
já faz com que vocês se sintam atraídos um pelo outro e que
vocês se darão muito bem. — explicou — Consiga para mim a
hora, data e local de nascimento dela. Farei o Mapa Astral e
veremos algumas compatibilidades e características.
— Tudo bem. Tentarei conseguir. Fiquei curioso em saber.
— levantou-se. — Vamos?
— Vamos. — responderam levantando-se também.

77
José Vitor Nunes

Saindo do restaurante, os rapazes acompanharam Estella até


o ponto de ônibus.
— Vocês irão ficar aqui à noite? — quis saber Estella.
— Vamos sim. O Bernardo vai me ensinar matemática.
— Então bons estudos. — desejou Estella dando um abraço
forte em cada um e, em seguida, entrando no ônibus. — Tchau
meus Capricas lindos!
— Até mais! — respondeu Bernardo.
— Tchau Estrela!

Enquanto seguiam a caminho da biblioteca, Bernardo disse:


— Cara, preciso de uma ajuda sua.
— Não sendo matemática, que não sei, nem com dinheiro,
que não tenho, eu ajudo sim. — brincou.
— Não é nada disso. — deu uma pausa e falou: — É com
uma garota. — disse revelando seu segredo que estava guar-
dando apenas para si havia algum tempo.
Isaac parou de caminhar e virou-se olhando para Bernardo,
surpreso.
— Com uma garota?
— Sim, com uma garota. — repetiu voltando a caminhar e
forçando Isaac a acompanha-lo. — Você pode?
— Acho que sim. — apressou o passo para acompanhar o
amigo. — Que tipo de ajuda?
— Quero chamar uma garota para sair, mas não sei como
faço isso, nem para onde leva-la, nem sobre o que conversar e
nem... várias coisas.
— Como vocês se conheceram?
— Sabe aquele jogo? Gunslinger? — Martinelli fez que sim
com a cabeça. — Então, eu a conheci pelo chat online. Foi
meio que, tipo, estávamos em uma conversa em grupo e um
cara perguntou onde cada um do grupo mora, daí eu disse: Ilha
do Rio Iolete. E ela falou: “Encontrei um conterrâneo! Eu tam-
bém sou de Ilha do Rio Iolete”. E a partir daí ela quis saber

78
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

mais e conversamos no chat privado. Sei algumas coisas sobre


ela. Sei que ela joga Gunslinger, gosta de matemática, cursa
Ciências da Computação e gosta de quadrinhos e séries, coisas
que eu também gosto. Percebi que temos muito em comum e
fiquei interessado em conhecê-la melhor.
— Interessante... “Estou vivendo e aprendendo com Rivière,
vulgo Putão das Novinhas” — caçoou, colocando uma mecha
de cabelo atrás da orelha. — Pelo visto, você já está bem adian-
tado. — sorriu. — Então deixe-me ver em que posso ajudar. —
pensou um pouco e perguntou: — Vocês já se conhecem há
quanto tempo?
— Cerca de um mês e meio.
— Um mês e meio?! E nunca contou nada a ninguém?
— Não, e eu nem te conhecia quando comecei a conversar
com ela. — justificou — No início estávamos nos conhecendo,
e agora que estou interessando em chama-la para sair, achei
que precisaria de ajuda. Até pesquisei na internet, mas nada de
tão interessante. — confessou Rivière.
— Hum... Entendo. Presumo que você e ela já possuem cer-
ta intimidade. — afirmou Isaac.
— Sim. De certa forma.
— Então já poderá chama-la para sair, só precisamos esco-
lher um local. — Martinelli torna a pensar por um momento e
fala: — Na minha opinião, você deve leva-la para um local
mais discreto, que não tenha tanta gente, que não seja muito
movimentado, para que vocês possam conversar mais tranqui-
lamente.
— Entendi. Mas que local seria esse?
— Pode ser uma sorveteria, acho que ela vai gostar. Qual
garota não gosta de sorvete e chocolate?
— Gostei da ideia. —refletiu um pouco e perguntou: —
Mas como faço para convidá-la para sair?
— Qual é o nome dela?
— Fernanda Heins.
— Me passa seu celular.

79
José Vitor Nunes

— Para quê você quer meu celular?


— Para fazer uma coisinha que aprendi com o Sam essa se-
mana. — explicou com um sorriso malicioso e deu uma pisca-
dela para Rivière. — Faça o que eu estou lhe pedindo. Pode
confiar em mim. Vai querer minha ajuda ou não? — Bernardo
hesitou por alguns segundos, mas acabou cedendo ao pedido.
Martinelli pega o celular e procura por Fernanda Heins na
agenda telefônica. Ao encontrar, ele seleciona a opção de envi-
ar SMS e escreve:
Olá, Fernanda, boa noite!
Estou te convidando para sair comigo nesse final de semana
para nos conhecermos pessoalmente. Te achei bem legal e in-
teressante, sem falar que temos muitos assuntos em comum
sobre os quais quero trocar uma ideia contigo.
Pensei em te levar para tomar um sorvete. E aí, topa?
Isaac Martinelli enviou a mensagem e devolveu o aparelho
para Bernardo.
— Pronto! — disse ele cruzando os braços e com um sem-
blante de satisfeito.
Rivière pegou o celular e leu a mensagem que seu amigo
acabara de mandar para Fernanda.
— SMS?! Cara, eu já havia usado os dados móveis para o
Whatsapp hoje!
— Quê?! — a vontade de Isaac era de dar um tapa no rosto
de Bernardo e xingá-lo devido a ingratidão, porém, ainda pre-
cisava da ajuda do amigo para aprender matemática.
— Espere um pouco... Nesse final de semana?! — exclamou
com um olhar assustado — Eu não estou preparado! Preciso
assistir a umas vídeo-aulas de como...
— Calma, maninho — interrompeu Martinelli — , não é na-
da de tão complicado assim. Estou aqui para te ajudar! Temos
um ou dois dias para planejar algumas coisas, caso você preci-
se. Vai dar tudo certo. Relaxa e confie em mim. — deu dois
tapinhas no ombro de Bernardo. — Agora vamos estudar e,
quando terminarmos, iremos esquematizar esse seu encontro.

80
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Tudo bem. Vamos lá.

A caminho da biblioteca, Isaac alertara para Bernardo que


um encontro como este é aconselhável que ele não use camisa
de botões e gravata, e que seria melhor ele procurar algo mais
simples e, no máximo, uma camiseta de gola polo.
— Vá procurando um lugar para nós — pediu Martinelli —,
vou dar uma passadinha no banheiro.
Seu amigo subiu as escadas enquanto Isaac passara direito.
Ao voltar e fazer o mesmo caminho que Bernardo fizera para o
segundo andar, onde ficava a biblioteca, Martinelli ver Clarice
bem na sua frente sentada distraidamente mexendo no celular e
resolve ir ao seu encontro.
— Olá, boa noite. — disse ele a cerca de um metro de dis-
tância. Ela o olhou e, instantaneamente, abre um lindo sorriso.
— Olá, Isaac, boa noite. — responde levantando-se da ca-
deira e dando um abraço apertado no rapaz.
— Tudo bem? — a pergunta veio automaticamente.
— Tudo sim, e com você? — indagou voltando a se sentar.
— Eu estou ótimo. — antes que houvesse aquele silêncio
constrangedor, perguntou: — Ficou à noite para estudar?
— Não, mas bem que eu queria. Estou esperando uma ami-
ga para irmos embora juntas. Moramos perto uma da outra. Ela
está fazendo uma prova. A Júlia Singer, talvez você a conheça.
— respondeu com um sorriso acolhedor.
Ela falava com a voz suave de forma tão natural e com um
jeito estranhamente familiar que fazia o rapaz sentir-se bem
confortável diante de sua presença. Contudo, aquele “estra-
nhamente” começara a lhe deixar um pouco apreensivo.
— Ah, sim. Conheço de vista, mas nunca falei com ela. —
afirmou o jovem sentando-se ao lado moça. — Vocês estudam
juntas, não é?
— Isso mesmo. — disse ajustando-se na cadeira de uma
forma que ficasse de frente para Isaac. — Combinamos de

81
José Vitor Nunes

quem terminasse primeiro a prova, esperaria a outra. Por isso


estou aqui há alguns minutos.
— Entendo. Gostou da prova? — perguntou ele na tentativa
de chegar a algum assunto interessante.
— Sim, gostei muito. — Clarice passou a mão nos longos
cabelos pretos. Ela possuía um charme tão natural que até um
simples mexer de cabelo acompanhado do sorriso espontâneo,
a deixava maravilhosamente encantadora, tornando impossível
para Isaac não reparar cada detalhe. — E você? Ficou para es-
tudar?
— Sim, pedi para o Bernardo me ensinar matemática, daí vi
você aqui e pensei: “acho que devo ir lá falar com ela”. Então
acabei vindo. — sorriu.
Martinelli a olha nos olhos sem dizer nada, apenas admiran-
do a sua perfeita simetria. Aquele olhar o deixava hipnotizado.
A garota o encara de volta por longos dois segundos, desviando
o olhar e baixando a cabeça, timidamente. Ele também faz o
mesmo para não deixá-la desconfortável.
— Me fale mais sobre aquele tal grupo de jovens que você
participa. — perguntou Isaac quebrando o clima.
— Jovens do Futuro. É um grupo de jovens que, além de
servir como pode a sociedade carente, nós integrantes nos reu-
nimos aos domingos à tarde para debatermos sobre problemas
da atualidade como aborto, drogas, pobreza, problemas sociais,
problemas pessoais e também sobre suas conquistas, assuntos
de adolescentes como sexo, escola, faculdade, sobre as coisas
boas que o mundo tem a oferecer no geral e, no final, fazemos
algumas orações. Em suma, falamos de tudo um pouco no que
se refere aos interesses dos jovens.
— Muito interessante. Na minha antiga escola existe um
grupo parecido. As reuniões são às sextas-feiras. Fui apenas
algumas vezes. — disse olhando para o nada, viajando rapida-
mente nas lembranças e revivendo um filme na mente das ve-
zes que ele frequentou as tais reuniões. Clarice o olhava fixa-

82
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

mente enquanto ele falava. — Há quanto tempo você começou


a frequentar? — perguntou virando-se para olhá-la.
— Já faz quatro anos desde que fundamos. Comecei aos
quinze e estou até hoje. Faço parte da organização, tipo, sou
coordenadora geral, organizo as reuniões, os eventos, visitas,
viagens, passeios, as arrecadações de alimentos, roupas, brin-
quedos, doações e etecetera, juntamente com uma equipe de
mais quatro pessoas. — pegou o celular e deu uma conferida
nas horas.
— Vi algumas fotos suas num hospital usando um nariz de
palhaço com algumas crianças e outras com algumas cestas
básicas. Eram de algum tipo evento que vocês organizaram?
— Eram sim, nos mobilizamos para arrecadar alimentos pa-
ra doar no natal. Fazemos isso todos os anos. E no hospital
pediátrico foi lindo! Fizemos apenas uma vez no começo deste
ano. Pretendemos organizar outro daqui a um mês e meio e
tentar tornar estas visitas trimestrais.
Cada minuto que Isaac estava passando com Clarice o fazia
perceber que ela é uma garota extremamente altruísta. As coi-
sas que ela já fez, que pretende fazer e o modo de como sorria
e falava com entusiasmo quando se referia a ajudar pessoas,
deixava bem claro que ela vivia para isso, o que continuava a
despertar a vontade do rapaz em conhecê-la cada vez mais.
— Isso é ótimo! — exclamou Martinelli. — Muito bonita a
atitude de vocês. Se precisarem, têm minha ajuda.
— Obrigada, com certeza ela será bem-vinda. — deu uma
pausa e falou: — Agora é minha vez de perguntar. — brincou
ela. — Quer dizer que você é piloto amador de Motocross?
— Sim, participei de alguns campeonatos em Bela Vila, mas
o mais importante e significante para mim foi ter vencido o
Desafio Regional na categoria sub dezessete. Este ano pretendo
participar do Desafio Regional Categoria Adulto duzentas e
trinta cilindradas. Desta vez eu irei enfrentar participantes aci-
ma de dezoito anos e pilotos muito experientes que participam

83
José Vitor Nunes

do campeonato desde antes de eu nascer. Conseguir vencer,


para mim, seria um sonho realizado.
— Nossa, será um desafio e tanto. Quando vai ser?
— Dia dez de setembro.
— Então você tem alguns meses para ir treinando.
— Treino todos os dias pela manhã antes de ir trabalhar.
Cinco quilômetros ao sul da ponte do Rio Iolete Leste há uma
trilha de terra que é perfeita para praticar um pouco. Melhor
ainda é termina-la nas margens do rio e ainda ver o nascer do
sol curtindo um friozinho.
— Amo ver o pôr do sol e o nascer do sol. — disse ela
olhando para cima, como se estivesse imaginando-se frente a
um.
— É maravilhoso. Costumo estudar astronomia de uma
forma superficial. Nada de cálculos — brincou —, apenas teo-
rias. Me amarro nesse tipo de coisa.
— Fantástico.
Ao longo do corredor, uma garota alta de longos cabelos
castanhos vem se aproximando dos dois.
— Boa noite. — diz ela sorrindo para Isaac.
— Boa noite. — respondeu ele retribuindo o sorriso.
— Isaac, essa é a minha amiga Júlia Singer. Júlia, esse é o
Isaac.
— Prazer. — disse ele levantando-se, trocando um aperto de
mãos com a garota e um abraço. — A conversa está ótima, mas
sei que vocês precisam ir para casa e eu preciso ir estudar, o
Bernardo está me esperando.
— Concordo. — Clarice levantou-se também. — Foi ótimo
conversar com você. Obrigada por me fazer companhia.
— Mesmo nessa correria do dia-a-dia ainda espero ter a
oportunidade de te encontrar mais vezes para conversar.
— Com toda certeza ainda iremos conversar bastante. —
afirmou ela. — Então é isso. Tchau. — pegou nas mãos de
Isaac e depois o abraçou por longos três segundos.

84
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Tchau. — responde com um sorriso e acenando com a


mão em despedida. Elas retribuíram.
Quando estavam dando meia-volta para ir, o garoto diz:
— Aah! Só mais uma coisa. Pode parecer estranho, mas...
por curiosidade... qual é a data, hora e local de seu nascimento?
— Clarice o olhou sem entender — É porque quando conheço
as pessoas, gosto de saber não apenas a data de aniversário,
mas também a hora e o local de nascimento — mentiu — coisa
minha. — deu um sorriso sem graça e coçou a sobrancelha.
O que diabos eu estou fazendo?, pensou.

Mais tarde, já em sua casa, Martinelli pegou o celular e tele-


fonou para Estella.
— “Venha para o rei, venha para o rei, o Rei da Ilha! Aqui
é o único lugar em que é o rei que te serve!” tamtamtamtam
tam tam! — disse Estella ao atender o celular. — Por sua culpa
essa musiquinha do demônio não sai mais da minha cabeça.
— Cuidado para não se lembrar da musiquinha dos Pôneis
Malditos também. — disse forçando uma gargalhada maléfica.
— Aah não! Por que você faz isso comigo? — indagou ela
fazendo uma voz dengosa.
— Porque gosto muito de ti! Por isso, mesmo parecendo um
idiota, fiz o que me pediu e consegui algumas informações para
você se divertir um pouco e esquecer a “musiquinha do demô-
nio”.
— Conseguiu a hora, data e local do nascimento de Clarice?
— Agora você lê pensamentos também? Meu Deus! Esta
garota é especial! — caçoou.
— Tenho mais poderes especiais do que você pode imagi-
nar. — brincou também forçando uma gargalhada maléfica —
Enfim... me passa logo as informações que estou curiosa para
ver o Mapa Astral dela e comparar com o seu.

85
José Vitor Nunes

Isaac deu todas as informações necessárias e esperou alguns


minutos, como Estella lhe pediu. Cerca de cinco minutos de-
pois, ela volta a falar.
— Caprica, vocês têm um Mapa perfeito! Coisa rara de ser
ver. Ouça-me bem, os signos solares de vocês são complemen-
tares, capricórnio mais câncer, um complementa o outro, como
eu já tinha dito no restaurante. A lua de vocês tem ótimos as-
pectos, sua lua em sagitário e a dela em aquário, ambos se
complementam pelo elemento ar mais fogo. O mercúrio de
vocês se complementa perfeitamente, o seu é “caprica” e o dela
é câncer. Hoje em dia eu vejo esse posicionamento como o
mais importante. Ele e o Marte. — observou ela — Estes foram
os principais motivos para o namoro de Thiago e Mirelly não
ter tido equilibro, pois mercúrio é a comunicação do casal, ou
seja, o de vocês é o melhor possível! — disse ela com entusi-
asmo — O vênus dela está em gêmeos, o que a faz alguém que
aprecie inteligência e demonstrações de intelectualidade. Seu
vênus está em peixes, isso te faz alguém que aceite as pessoas
como elas são .Também já te disse isso. Tem essa coisa muito
receptiva em você, universal, acolhedora. Deixe-me ver mais...
— deu uma pequena pausa e continuou — Ah! O seu aquário e
o de Clarice estão em gêmeos, ambos paraísos astrais. O júpiter
de vocês é perfeito também, em capricórnio, os dois em con-
junção. Posso te dizer que vocês têm tudo pra dar certo. —
afirmou ela com um tom confiante. A essa altura, Isaac já esta-
va começando a não entender mais nada, entretanto, pela forma
de como Estella falava, ele sabia que eram coisas boas. — Sol
mais sol: complementar. Lua mais lua: aspecto harmonioso.
marte mais marte, mercúrio mais mercúrio... uns dos 6 melho-
res posicionamentos. Não posso me esquecer da conjunção de
marte em aquário, o seu com a lua em aquário, e o dela tam-
bém, isso é perfeito!
Isaac estava sentindo uma felicidade passando pelo seu cor-
po e começou a se perguntar se deveria mesmo acreditar naqui-
lo tudo. Estranhamente, ele se deixava acreditar e desejava
mesmo que de fato fosse verdade.

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PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Os astros foram generosos com vocês. Aproveitem, não é


sempre que um casal se encontra e tem tantos aspectos assim,
positivos pra os dois. A compatibilidade é alta.
— Sério que você fez isso tudo em apenas cinco minutos?
— Sim, é muito simples, só basta olhar a posição dos plane-
tas e fazer as comparações.
— Imagino que seja bem fácil mesmo. — ironizou. — Você
poderia me falar agora apenas as informações de Clarice?
— Hum... sinto que convenci este cético à acreditar na As-
trologia.
— Ainda não. Não completamente. Primeiro quero saber tu-
do que a Astrologia diz sobre ela, daí quando eu conhecê-la
melhor, irei ter minhas certezas em relação a o que você falar.
— Tudo bem, Senhor Cético, preste bem atenção no que
vou falar sobre o que contém no Mapa Astral dela e escreva o
que irei dizer para, futuramente, chegar me dizendo: “você es-
tava certa”.
— Ok, manda...
— Como já disse, vocês dois possuem signos complementa-
res, sendo o seu, o pai e o dela, a mãe. Câncer possui a energia
feminina da proteção, afeto, aquela coisa mais sensível e pací-
fica; submissa. Cancerianas, por ser um signo regido pela lua,
como outros signos regidos pela lua, costumam ter um humor
inconstante. Vai ter dias que ela vai acordar mais triste e ou-
tros, bem feliz. Isso é coisa dos astros.
Eu achava que isso era coisa de mulher. Aquele período no
mês e tal... TPM..., pensou Isaac.
— Têm dias que acordamos mais felizes, motivados, e em
outros não. Acho que isto depende do dia-a-dia de cada pessoa.
— interveio ele.
— Só me escuta e anota. — ordenou ela. Martinelli apenas
ouviu sem questionar mais nada. — Continuando... É um signo
que leva tempo pra ganhar confiança, pois, assim como o seu
símbolo, o caranguejo, eles possuem aquela carapaça que pro-
tege a carne macia, que faz alusão à sua sensibilidade. Ela pos-

87
José Vitor Nunes

sui também o signo de câncer em mercúrio, então a comunica-


ção de vocês, assim como a atração à nível físico, são comple-
mentares.
Atração à nível físico, pensou Isaac, foi a primeira coisa que
me chamou atenção ao vê-la. Será que ela ter olhada para mim
quando nos vimos pela primeira vez foi devido a isso?, algu-
mas interrogações começavam a surgir na cabeça de Martinelli.
Bobagem, isso não tem nada a ver. Pessoas trocam olhares o
tempo todo.
— Toda sensibilidade — continuava Estrela sem parar de
falar — e medo de se entregar estão também na comunicação
dela. — finalmente deu uma pausa, porém, continuou sem es-
perar nenhum comentário de Isaac — Bem, a lua de Clarice
está em aquário e, como já falei, é um excelente posicionamen-
to à nível emocional, isso equilibra a natureza canceriana ape-
gada, pois aquário é o signo da liberdade, então fazendo com
que ela saiba lidar com a distância e tenha o humor diga se de
passagem. Lua em aquário, eu quero ter meus filhos com lua
em aquário. — confessou ela, sorrindo — O vênus dela está em
gêmeos, ele fala sobre o amor como sentimos, nesse caso, o
dela em gêmeos, signo ar, ver o amor mais como uma troca de
informações, diálogos, estímulos mentais, não obrigatoriamen-
te carinhos, e sim, ligação intelectual.
— Percebo que ela parecer ser uma pessoa que gosta muito
de conversar, sem falar que é bem humorada também. — co-
mentou Isaac.
— O Marte dela está em gêmeos também, no caso, ela pos-
sui a ação com um tom bem mais leve, mais pelo pensamento.
Ela precisa tomar cuidado com esse ponto, pois não poderá
somente pensar no que fazer, e sim, fazer! Em certas ocasiões,
pensar e pensar não é a melhor solução. O Saturno dela tam-
bém está em capricórnio, sendo uma pessoa com certa melan-
colia natural. — deu uma pausa, suspirou, e disse por fim: —
Pronto. Anotou tudo?
— Anotei tudo aqui na cabeça.

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PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Não se esqueça de nada disso, pois verá que é exatamen-


te isso que eu lhe disse.
— Espero que você esteja cem por cento certa. — desejou
Isaac olhando para a tela do celular que acabara de acender.
Era Bernardo lhe telefonando.
— Pode acreditar.
— Estrela, o Bernardo está me ligando. Vou ver o que ele
quer. Muito obrigado pelas informações.
— Certo. Precisando de mim é só GRITAAAAAR!
— To ligaaaaado! Até mais. Ah, só mais uma pergunta.
— Pergunte, Caprica.
— Conseguiu esquecer a “musiquinha do demônio”? “Ve-
nha para o rei, venha para o rei, o Rei da Ilha! Aqui é o único
lugar em que é o rei que te serve!” tamtamtamtam tam tam! —
desligou o telefone sem esperar Estella começar a brigar com
ele e atendeu a ligação de Bernardo.
— Ei, cara, tive uma ideia para o nosso plano. — disse Ri-
vière, empolgado.
— Conte-me.
— Quando eu estiver no encontro com a Fernanda, irei te
passar os detalhes por mensagem e você vai poder me dizer o
que fazer para eu não estragar tudo.
— É uma ideia interessante.
— E tem mais, você vai ficar disfarçado em um lugar não
tão distante para poder ver se estou me saindo bem, nada da-
quelas suas camisetas extravagantes de bandas.
— Nada de camisetas de bandas. — repetiu Isaac, sorrindo
— Estou gostando desse plano. Tem mais alguma coisa?
— Não, até agora é só isso mesmo.
— Tente ser “romântico à moda antiga” fazendo coisas sim-
ples que praticamente ninguém faz, por exemplo, puxar a ca-
deira para ela se sentar, essas coisas podem ajudar.
— Beleza, vou anotar aqui. Mais alguma ideia?
— Se eu tiver mais alguma, direi por mensagem.
— Ok, então até mais.

89
José Vitor Nunes

— Até.
Ao desligar o telefone, Isaac ouve Samuel gritar por trás da
porta do seu quarto:
— Primão!! — abre a porta e entra no quarto.
— O que houve? — perguntou um pouco assustado.
— Nada de mais, só tive uma ideia. — pelo jeito exagerado
de Samuel, já era de se esperar que não fosse nada de mais.
— Que ideia? — hoje as pessoas tiraram o dia para terem
ideias, pensou Martinelli.
— Sobre minha esquecida e nunca acontecida revanche.
— Eu nem me lembrava mais dela mesmo.
— Imaginei, por isso quero marcar logo uma data. — disse
Samuel sentando-se na cama de Isaac. — Vai ficar para um dia
depois do último dia de aula do período.
— Fechou, então. Mas por que daqui tanto dias, ou melhor,
meses?
— Um cara que estuda comigo, Eric, também curte Moto-
cross e me falou que na fazenda do pai dele tem uma pista bem
legal. Não tão grande como as de competição, mas dá para
treinar.
— Resolveu treinar agora?
— Sim, assumo que estou fora de ritmo, e encontrar um
bom local para treinar no final de semana me fará voltar à ati-
va. — explicou — Você pode ir conosco quando quiser.
— Uso os finais de semana para descanso e prefiro a trilha
que costumo frequentar, já faz parte da rotina. — sem falar no
nascer do sol, lembrou-se.
— Você que sabe. Se quiser ir treinar com a gente, será
bem-vindo.
— Certo. Valeu.
— Eu ganhando a revanche, o desempate será dia dez de se-
tembro no Desafio Regional.
— Esse desempate não vai acontecer, pois irei vencer a re-
vanche também. — brincou.

90
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Veremos! — disse Greco levantando-se e indo em dire-


ção à porta.
Com Samuel já fora do quarto, Martinelli se acomodou na
cama e começou a lembrar-se daquela conversa com Clarice,
do que ele estava sentindo, da forma como ela falava, sorria,
olhava para ele, o modo como tudo isso lhe tirava a concentra-
ção. De certo, além de uma sensação e de um sentimento que
ele não conseguia identificar e nem explicar, ele se sentia bem
por está com ela.
Pegou o celular, abriu um bloco de anotações e começou a
escrever. Ficou ali escrevendo, lendo, relendo, apagando, rees-
crevendo, e lendo novamente, pensando e relembrando de cada
detalhe daquele encontro.
Depois de quase quatro horas, estava pronto. Algo que ele
não fazia a mais de dois anos; algo que ele fizera apenas para
Yasmin... escrever.
Deu uma última lida mentalmente antes de escrever numa
folha de papel para deixar guardado junto com os textos que
fizera para sua ex-namorada.
Aquele Encontro
Quando te vi ali, sozinha, sentada naquele corredor, perce-
bi que aquela seria minha chance de conversar um pouco a sós
com você. Ao dar o primeiro passo em sua direção, meu cora-
ção acelerou, minha mente, no mesmo instante, não se sentiu
preparada e pensava em voltar, mas meu corpo não obedeceu.
Chegando lá, trocamos olhares e você me recebeu com um
abraço e um sorriso sincero de boas-vindas; e a partir daquele
momento me senti mais confortável, porém, um pouco estra-
nho. Era difícil manter-me concentrado diante de olhos tão
lindos de uma simetria elíptica fina, acompanhado por esse
sorriso encantador como dias floridos de primavera, que esti-
mulava em mim turbilhões de emoções e sensações passando
por cada centímetro quadrado do meu corpo, fazendo eu me

91
José Vitor Nunes

sentir mais vivo. Você foi como um prisma que refratou todos
os meus sentimentos que estavam juntos e neutros feito o bran-
co, de modo que eu não conseguisse controlar quais iriam
transparecer e de que forma me comportar.
Olhando para o nada era a melhor maneira de conseguir
manter o foco no que dizer, pois se fosse para ti, esqueceria
tudo e só iria querer te admirar; e enquanto eu falava, perife-
ricamente percebia seus lindos olhos mapeando cada detalhe
do meu rosto, como se aquele encontro fosse o último.
Ouvi notas de harpa saindo suavemente da sua boca, num
arranjo angelical que me levava às nuvens por meio de uma
brisa leve e fria junto com o toque de suas mãos nas minhas.
As horas passaram como o acender de uma lâmpada; e aquela
noite nos forçou a seguir caminhos diferentes após uma longa
conversa e trocas tímidas de olhares. Ao te abraçar novamen-
te, senti que seu corpo se conectava perfeitamente no meu, me
fazendo querer não te largar mais, pois ali me senti confortá-
vel.
Aquele encontro falou muito mais além das palavras; gestos
naturais e simples fizeram grande diferença pelas semelhanças
que nos aproximavam mais um do outro.
Agora me pego pensando em ti e em quando vou te ver de
novo; até lá, espero que você também esteja pensando o mes-
mo que eu.

Em seguida, escreveu em um papel, colocou a data, assinou


e guardou na pasta catálogo embaixo de suas roupas junto com
os textos que fizera para Yasmin. Apertou os fones de ouvido,
selecionou algumas músicas do Oasis para tocar e ficou acor-
dado por alguns minutos, até finalmente dormir.

92
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 12

O
encontro de Bernardo Rivière com Fernanda Heins
já estava em andamento. Isaac estava do outro lado
da rua sentado no banco da praça da igreja matriz
vestindo uma camiseta branca de gola V lisa sem
nenhuma estampa extravagante — como pedira Bernardo —
que encontrara perdida no fundo do guarda-roupa, uma calça
jeans azul-escuro, calçando um Nike preto cano longo e com
um boné bege na cabeça. Só não estava usando óculos escuros
porque já se passavam das 19h, e usa-los acabaria chamando
mais atenção do que se tornando em um disfarce. E nos filmes
antigos de investigação os “detetives secretos” usam sobretu-
do e chapéu nos seus disfarces. Bem discreto!, refletiu ele iro-
nizando quando procurava uma roupa que não chamasse muita
atenção.
Enquanto Isaac curtia tranquilamente o som de Engenheiros
do Hawaii nos seus fones de ouvido, Bernardo mexia impaci-
entemente a perna esquerda e suava muito dentro da camiseta
polo azul celeste que Martinelli o ajudara escolher. ( O diálogo
na escolha da camisa foi mais ou menos assim: Bernardo disse:
O que você acha dessa camisa? / Isaac: Está ótima. Veste lo-
go.)
Bernardo Rivière: Você não acha que ela está demorando?
Isaac Martinelli: Claro que não, você marcou para às
19h:30min. e agora que são 19h:10min., ou seja, contando
com a hora marcada e dando uma tolerância de 30min. de
atraso, você ainda precisará esperar cerca de 50min.
Bernardo Rivière: A hora parece não passar. Vou até aí pa-
ra conversarmos, assim posso me distrair um pouco.
Isaac Martinelli: Nem pensar! Isso poderia estragar todos
os nossos planos. Então nem cogite vir até aqui.

93
José Vitor Nunes

Bernardo Rivière: Tem razão. Então ficarei aqui pesqui-


sando na internet sobre primeiros encontros, o que devo fazer
e como e como devo me comportar diante disso.
Isaac Martinelli: Ótimo. Faça qualquer coisa para se dis-
trair e planeje o que você irá fazer. Se precisar de mim, é só
mandar uma mensagem.
Bernardo Rivière: Certo.

Exatos vinte minutos depois, uma moça de pele morena,


olhos castanho-claros, lindos cabelos cacheados e vestindo um
elegante vestido verde florido aproximou-se da mesa de Ber-
nardo. Ele instantaneamente levantou-se e puxou a cadeira para
a moça se sentar. — seguindo o conselho de Isaac — Ela deu
um sorriso simpático para o rapaz e sentou-se. Bernardo voltou
para sua cadeira e fez o mesmo.
— Moça, traga-nos o cardápio. — pediu acenando com a
mão para uma jovem que trabalhava na sorveteria. Ela foi até o
balcão, pegou dois cardápios e entregou um para Bernardo e
antes de entregar o outro para Fernanda, ela deu um sorriso
meigo e apontou para o numero três da lista que seguia por
flocos.
A moça da sorveteria olhou para Bernardo e ele disse:
— Chocolate. — falou nervosamente o primeiro sabor que
lhe veio à cabeça — Eu quero um sorvete sabor chocolate. —
ela assentiu afirmativamente com a cabeça e saiu.
Sem falar nada, eles ficaram se olhando e então Fernanda
deu um “tchauzinho” com a mão como se dissesse: “oi”.
— Oi. — Bernardo diz, retribuindo o gesto e precipitada-
mente fala: — Trouxe flores! Não era para eu falar agora. Era
para ser surpresa... ai meu Deus, que droga, estraguei a surpre-
sa... enfim, toma. — pegou as flores que estavam escondidas
sobre uma cadeira por debaixo da mesa e as ofereceu para Fer-
nanda com um sorriso nervoso. Ela apanhou as flores rindo do
nervosismo do rapaz e agradeceu com um gesto tentando aba-
far o riso.

94
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Para a felicidade de Bernardo — que suava apreensivo —, a


moça chegara com os sorvetes e os coloca sobre a mesa. Ele
dar logo uma grande colherada sem ter a preocupação de saber
primeiramente se o sorvete estava ou não gelado demais — o
que era obvio que sim —. Ao tirar a colher da boca, o sorvete
faz seus dentes doerem muito devido à sensibilidade. Instinti-
vamente, Rivière abre a boca sem separar os lábios, tapando-os
com a mão direita e começa a balançar a mão esquerda freneti-
camente como se estivesse querendo dizer “GELADO! GELA-
DO! GELADO!”. Enquanto isso, Fernanda Heins ria sem parar
até ele conseguir engolir toda colherada que pôs para dentro.
Ela olhou para ele, cavou uma pequena quantidade de sorvete,
levou à boca e curvou um pouco a cabeça para a direita, sem-
pre sorridente, como se dissesse: “é assim que se faz”.
— Um momento. — diz ele pegando o celular para enviar
uma mensagem para Isaac.
Bernardo Rivière: Cara, estou estragando tudo!
Isaac Martinelli: Você estava realmente com fome, hem? Eu
te disse para jantar antes de sair.
Bernardo Rivière: Não foi isso. E você não disse nada!
Isaac Martinelli: Ok, mas o que foi isso? Como posso te
ajudar?
Bernardo Rivière: Estou muito apreensivo, não consigo
pensar direito, não sei mais o que fazer, já entreguei as flo-
res... o que eu faço agora?
Isaac Martinelli: Converse com ela. =)
Bernardo Rivière: Como se fosse simples. Do jeito que es-
tou, vou acabar falando besteira.
Isaac Martinelli: Vocês conversam muito, já sabe quais as-
suntos lhe interessam. Tente. Imagine que você esteja falando
com ela pelo chat, só que com chamada de vídeo. ;)
Bernardo percebe Fernanda o olhando.
Bernardo Rivière: Está bem! Está bem! Vou ver o que con-
sigo fazer. Deseje-me boa sorte.
Isaac Martinelli: Vai na fé, mané! Boa sorte, amigão!

95
José Vitor Nunes

— Ooooooii... — diz Rivière cerrando os dentes, dando um


sorriso bobo e forçado — e aí, já está em qual nível no Guns-
linger?

Enquanto Isaac observava do banco da praça tudo o que es-


tava acontecendo, uma mão toca seu ombro. Ele tira o fone da
orelha esquerda e vira-se.
— Isaac? — diz uma voz feminina suave — Quase não te
reconheci.
— Oi... Cla... Clarice! — respondeu. Seu coração disparou e
ele não sabia o que falar.
— Por que o disfarce? — brincou ela.
— Disfarce? Que disfarce? — pergunta tentando em vão es-
conder a agitação.
— Essa suas roupas bem diferente do que você costuma
usar. Porém, o seu tênis lhe entregou. — caçoou.
— Aah, minhas roupas... resolvi mudar... diferente, né? —
titubeou, tirando o boné para coçar a cabeça que nem estava
coçando de fato, sem saber a quem dar atenção: se para Ber-
nardo ou Clarice.
— Estou só brincado com você, bobo. — diz percebendo a
estranheza do garoto.
— Você é uma graça... — riu desconcertado.

O celular de Isaac vibra ao chegar uma mensagem de Ber-


nardo que dizia:
Bernardo Rivière: Isaac! Preciso de ajuda rápidoooo!!
Ao terminar de ler, no momento em que iria responder, Cla-
rice o interrompe dizendo:
— Alguns amigos meus do Jovens do Futuro estão logo ali.
— afirma puxando o rapaz pela mão e o forçando a se levantar
do banco — Vamos lá! Vou apresenta-los a você.
— Não... é que na verdade eu est...

96
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Não precisa ter vergonha — interrompe ela novamente


antes que ele se explicasse —, você irá gostar deles e eles de
você. Venha! — puxou-o pela mão novamente e seguiram an-
dando.
Isaac e Bernardo cruzaram olhares tensos e tiverem aquela
típica conversa telepática masculina que dizia mais ou menos
assim:
Isaac: “Foi mau, cara, é a Clarice. Ela está me puxando.
Não sei o que fazer e nem como explicar para ela.”
E o olhar de Rivière respondera: “MEU DEUS, E AGORA?!
MEU DEUS, E AGORA?! MEU DEUS, E AGORA?! ALERTA
VERMELHO! ALERTA VERMELHO! ALERTA VERMELHO!”

O que eu faço, agora?, pensou Bernardo, desesperado. Não


estou entendendo o que ela quer me falar. Então, instantanea-
mente Bernardo lembrou-se do que Isaac acabara de dizer:
“Imagine que você esteja falando com ela pelo chat, só que
com chamada de vídeo”. Ele pega o celular e envia a seguinte
mensagem para Fernanda:
Bernardo Rivière: Você está tentando falar comigo por
meio de sinais?
Fernanda Heins: Se chama LIBRAS. Você não entende, né?
Ele a olha nos olhos bem na sua frente, volta a olhar para a
tela do celular e envia outra mensagem.
Bernardo Rivière: Não sei o que você está tentando fazer,
mas está me deixando confuso.
Fernanda Heins: Eu deveria lhe dizer antes... Mas fiquei
com medo de você desmarcar o encontro.
Voltando a olhar para ela, Bernardo percebe que Fernanda
não estava mais sorridente como estivera desde que chegara.
Bernardo Rivière: Você é linda, superinteressante e tudo
mais! Não tem o porquê de eu e nem qualquer outro cara des-
marcar um encontro contigo. Fiquei muito feliz por ter aceita-
do. Mas me diga o que você deveria ter me dito antes? Por que
você teve medo? Por favor, me fale.

97
José Vitor Nunes

Ela olha para Bernardo, baixa a cabeça e começa a digitar.


Fernanda Heins: Ok... eu sou surda e muda, me comunico
apenas por LIBRAS e escrita, como estamos fazendo agora.
Rivière olha para Fernanda e a garota faz um movimento
conjunto de cabeça, ombros, sobrancelha e comprime os lábios
como se dissesse: “É isso...”
Bernardo Rivière: Poderia ter me dito antes, pelo menos as-
sim eu poderia estudar um pouco e vir preparado. Evitaria
constrangimento.
Fernanda Heins: Como eu disse, fiquei com um pouco de
medo... receio, sei lá. Enfim... Me desculpa.
Bernardo Rivière: Tudo bem, não precisa se desculpar. Va-
mos tentar começar de novo.
Eles se encaram novamente, ambos agora sorridentes.

— Como eu já te disse, no Jovens do Futuro existem cinco


coordenadores. Eu e mais quatro. — Ferrier tornou a explicar
para Isaac — Estávamos na missa e, quando acabou, nos reu-
nimos para planejar alguns projetos.
— Hum... que ótimo! — exclamou Isaac gostando de cami-
nhar de mãos dadas com Clarice — É sobre as visitas ao hospi-
tal pediátrico a cada semestre?
— Sim, além de outros projetos. — se aproximando dos ou-
tros quatro coordenadores, Clarice solta a mão de Martinelli
para apresenta-lo a seus amigos. — Pessoal, este é o Isaac. Ele
cursa administração na Faculdade Coronel Eduardo Paulo. Nos
conhecemos lá. Isaac, esta é a Amália, Mercês, Agostinho e
Lourenço.
Martinelli teve a impressão de conhecê-los de algum lugar.
Cumprimentou cada um deles e ficou ao lado de sua colega.
— Clarice me contou um pouco sobre o trabalho que vocês
desenvolvem. Muito bacana a iniciativa, a força de vontade e,
mais bacana ainda, são os resultados que conseguem fazendo
esses tipos de serviços voluntários. Parabéns, vocês têm minha
admiração e meu respeito. — como uma lâmpada acendendo,

98
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

conseguiu se lembrar de onde viu aqueles rostos: numa foto no


Facebook de Clarice. Porém, preferiu não comentar, pois iria
parecer que ele a “espiava”; e de fato havia espiado. — Como
falei para Clarice, se precisarem de mais uma ajudinha, podem
contar comigo.
— Muito obrigada. — agradeceu Amália — Com toda cer-
teza sua ajuda será muito útil e bem-vinda!
— Quanto mais pessoas, melhor. — afirmou Agostinho.
— Aparece qualquer dia nas nossas reuniões — convidou
Mercês —, você irá gostar de ir e nós iremos gostar muito de
recebê-lo.
— Pode deixar. Quando eu puder, farei uma visita. — disse
Isaac. — Clarice, queria muito ficar mais um pouco conver-
sando com vocês, mas agora preciso ir. Estou esperando um
amigo e preciso voltar para me encontrar com ele.
— Mil desculpas por ter te tirado de lá. Não sabia que esta-
va esperando um amigo. — justificou.
— Tudo bem, não se preocupe. Tenho quase certeza de que
ele ainda não chegou.
— Então tchau. — disse Clarice dando um abraço em Isaac.
— Tchau. Até mais. — Isaac se aproximou e deu um beijo
no rosto dela. — Tchau, pessoal. Até qualquer dia. — despe-
diu-se e seguiu sozinho para onde estava.

Ao voltar, Isaac vê Bernardo dando um abraço em Fernan-


da. Eles trocam olhares cara-a-cara até que, por fim, Fernanda
toca seus lábios nos lábios do garoto, dando lhe um leve beijo.
Após se despedirem, Rivière avista Martinelli e vai ao seu
encontro.
— Não se pode abandonar um amigo em batalha!
— Cara, me desculpe, mas não pude evitar. O que eu deve-
ria dizer? Que não poderia ir com ela porque estava fazendo a
cobertura do seu encontro com uma garota e deveria estar dis-
ponível a qualquer emergência?

99
José Vitor Nunes

— Não... apenas... apenas não se pode abandonar um amigo


em batalha! — exclamou Bernardo, dando um soco no ombro
de Isaac — Você nunca seria um líder em Gunslinger.
— Ai! — gemeu Martinelli, segurando o ombro que Rivière
acabara de acertar — Certo. Tudo bem. Mas agora me diz co-
mo foi o encontro. Espero que tenha feito valer a pena.
— Foi ótimo, mesmo pelo fato de ela ser surda e muda e eu
estar completamente despreparado.
— Cara, e o que você fez?!
— Lembrei do seu conselho. Imaginei que fosse como em
um chat, mas com chamada de vídeo. Então enviei uma men-
sagem e conversamos dessa forma.
— Tendo isso em vista, você não tem o porquê de reclamar.
— afirmou Isaac acertando o ombro de Bernardo, que gemera
como ele — Te ajudei bastante!
— De certa forma, sim. Contando desde a mensagem convi-
dando-a para sair, a escolha da roupa... é, até que você foi bem
útil. Obrigado.
— Mas e aí, como vai ser daqui para frente?
— Vou ter que aprender LIBRAS para facilitar nossa comu-
nicação, sair mais vezes com ela, pedi-la em namoro, depois
pedi-la em casamento e, quem sabe, ter dois ou três filhos, um
cachorro, três peixes e uma tartaruga.
— Opa! Opa! Vá com calma, maninho. — Martinelli deu
dois tapinhas nas costas de Bernardo — Um passo de cada vez.
Primeiro: foque em aprender LIBRAS. Você tem um “HD”
bem potente em sua cabeça e uma ótima memória fotográfica,
creio que será moleza. Segundo: planeje o segundo encontro.
Terceiro, continue planejando o próximo passo.
— Certo. Vou estudar e planejar. E eu estava só brincando...
não pretendo ter peixes e nem uma tartaruga como animais de
estimação. — brincou Rivière.

100
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 13

I
naugurada no dia 10 de outubro de 1997, a Zona do
Rock é referência em Ilha do Rio Iolete por ser a
primeira e, até então, a única loja de artigos de rock
da cidade. Nela, é possível encontrar desde pulseiras
e braceletes, até as melhores guitarras que um roqueiro de res-
peito pode ter.
A fachada do estabelecimento contém duas enormes vitrines
onde, do lado direito, ostentam três cobiçadas guitarras: uma
Fender de modelo Strat preta com detalhes prateados, uma
Gibson modelo Les Paul laranja com detalhes brancos que
lembra a lendária guitarra do Slash, e uma Ibanez modelo So-
loist azul marinho com detalhes pretos. Logo atrás das guitarras
estão alguns manequins vestidos com camisetas de bandas,
jaquetas de couro e coletes jeans. Na vitrine do lado esquerdo
contém uma enorme bateria com três tambores, um deles com
pedaleira dupla; vários chimbais, 4 Toms, Surdos, Pratos de
Condução, Pratos de Ataque e etc. Entre as duas vitrines está as
portas de entrada, que também são de vidro. Logo acima das
vitrines está um letreiro de neon azul e vermelho com o nome
ZONA DO ROCK iluminando toda a fachada da loja.
A ideia de abrir uma loja especialmente para atrair e satisfa-
zer pessoas que apreciam um bom rock n’ roll surgiu de Frank
Smith quando ele tinha apenas 20 anos. O ex-guitarrista da
banda Rosa Metálica — que, equivocadamente, muitos acha-
vam que o nome da banda vinha da junção de Pink Floyd com
Metallica devido os integrantes serem grandes fãs das duas
bandas. Porém, era mais simples do que parecia. O nome da
banda veio devido à bicicleta rosa metálica que Frank tinha e
todos os integrantes usavam, principalmente quando era preci-
so buscar todos eles para ensaiar na garagem da casa de Tho-
más Endler, o baterista da banda na época — sempre precisou
se deslocar 270 quilômetros até a capital para comprar seus

101
José Vitor Nunes

instrumentos, tendo em vista que naquela época não existia a


facilidade da internet como existe hoje.
Revoltado, Frank decidiu guardar toda sua parte do cachê
recebido dos shows que ele fazia pela Rosa Metálica para, futu-
ramente, abrir uma pequena loja que vendesse pelo menos
CDs, pôsteres, colares, jaquetas e etc. Cinco anos mais tarde,
estava sendo inaugurada a pequena loja Zona do Rock que,
mesmo pequena, era possível encontrar de tudo um pouco.
Vinte anos depois, o já não mais esbelto jovem e agora gri-
salho e quase careca devido ao tempo, Frank Smith, possui a
única e relativamente grande loja só para roqueiros de Ilha do
Rio Iolete, onde trabalham um tatuador e três vendedores, sen-
do dois deles rapazes experientes no assunto que acabaram de
concluir mais uma venda de uma bateria e um contrabaixo para
dois jovens que pretendem formar uma nova banda na cidade.

— Trabalhamos em uma loja que vende tudo em relação a


rock, sabemos tocar, você canta e, mesmo assim, não temos
uma banda. Por quê? — questionou Samuel.
— Acho que porque você iria para a bateria, eu vocal e gui-
tarra e, mesmo assim, a banda ficaria precisando de um baixista
e um guitarrista base. — afirmou Isaac, lembrando-se da vez
quando Yasmin e ele conversaram sobre a ideia de formarem
uma banda. — É possível, mas meio complicado montar uma
banda de rock com apenas dois integrantes.
— Conheço algumas bandas de rock que fazem sucesso com
apenas dois integrantes. No nosso pequeno show no réveillon
de dois mil e catorze para dois mil e quinze éramos três. Preci-
samos de apenas mais um... — pensou um pouco e, logo em
seguida, olhou para Isaac com um sorriso largo no rosto, lem-
brando-se de algo — Cara! O Thiago sabe “arranhar” na gui-
tarra. Podemos colocar ele para tocar guitarra base e você fica
na guitarra solo e no vocal. O que acha?
— É uma ideia bastante instigante. — comentou Martinelli.
— O que está esperando? Ligue para ele!

102
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac pegou o celular em cima da mesa do computador. No


instante em que iria digitar o número de Thiago, hesitou.
— Está esperando o quê? — interrogou Samuel — Ligue
logo!
— Desde a semana passada Thiago anda agindo estranho.
Não atende as minhas ligações, não responde as minhas men-
sagens, mal o vejo na faculdade e, quando menos espero, ele já
foi embora antes mesmo de eu ir falar com ele. Acho que Thia-
go não deve estar bem devido ao término do namoro com a
Mirelly. Sinto-me culpado por ter sido eu quem o convidou
para a festa.
— Cara, que merda. — falou Sam sentando-se numa cadeira
ao lado. — Eu que pedi para você chamar a galera. Mas não
temos culpa de nada. Precisamos dar um jeito nisso e montar
nossa banda.
— Você está mais preocupado com a banda do que com o
nosso amigo que anda se isolando sem dar notícias e nem justi-
ficativas? — perguntou Isaac.
— Não. Claro que não. Isso também faz parte. Mas pode
deixar comigo, vou procurar saber como ele está e tentar resol-
ver tudo isso em nome da banda! — disse Greco levantando a
mão na intensão de trocar um high five com Isaac. No entanto,
seu primo estava distraído olhando algo no celular. Samuel se
levantou e, sem que ele percebesse, aproximou-se e espiou o
que rapaz estava fazendo. — Há quanto tempo você não con-
versa com ela? — quis saber.
— Ei! — exclamou Isaac ao perceber que Sam estava espi-
ando suas mensagens. — Isso é falta de educação. Você está
invadindo a minha privacidade novamente.
— Foi mau, cara, só estava tentando te trazer de volta à Ter-
ra. — justificou Greco, voltando a se sentar.
— Fazem dois dias. A última vez que a vi foi no sábado
quando eu acompanhava Bernardo em um encontro.
— Você esteve em um encontro com Bernardo?!

103
José Vitor Nunes

— Não! Ele foi encontrar uma garota e me pediu uma caro-


na. — de certa forma era verdade, mas não toda a verdade.
— Que papo é essa de que Bernardo esteve em um encontro
com uma garota? — inquiriu Samuel — Por que vocês não me
contaram?
— Fiquei sabendo um dia antes. Na verdade, fiz como você
fizera comigo: peguei o celular dele e a convidei para um en-
contro. E deu no que deu.
— De onde ele conhece essa garota?
— Daquele jogo de FPS que ele joga. Gunslinger.
— Era de se esperar que fosse. “Estou vivendo e aprenden-
do com o Rivière, vulgo Putão das Novinhas”. — caçoou —
Mas já que entramos no assunto, quer dizer que você encontrou
Clarice por lá?
— Isso mesmo, ela estava na missa e, quando terminou, me
viu sentado no banco da praça esperado por Bernardo. Então
me levou para conhecer seus amigos do grupo Jovens do Futu-
ro.
— Tem alguma gatinha? — deu duas rápidas levantadas de
sobrancelhas.
— Sim, mas não são para o seu bico.
— Cara, sou o genro que todo pai e mãe sonham em ter. —
gabou-se, colocando as mãos atrás da cabeça, se recostando na
cadeira e cruzando as pernas.
Isaac deu uma olhada nas horas. Eram exatamente 11h.
Olhou para Samuel e disse:
— Estou a fim de ler alguns livros, mas nunca tenho tempo
para ir comprá-los.
— Vá a alguma livraria enquanto há tempo. Seguro as pon-
tas aqui na loja.
— Clarice trabalha na livraria de seus pais, irei até lá e
aproveitarei para falar com ela.
— A fim de ler alguns livros... — refletiu Greco — Acho
que não é bem isso, danadinho.

104
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Um leve sorriso surgiu no rosto de Isaac e ele mandou aque-


la piscadela típica de Samuel.
— Não sei se o tio Frank se incomodaria em me deixar sair
assim. Então caso ele apareça, invente qualquer desculpa para
justificar minha saída.
— Pode deixar comigo, sou o mestre nessa arte. — mandou
uma piscadela de volta.
— Valeu.
Isaac pegou o capacete, saiu discretamente da loja, subiu em
sua moto e seguiu caminho rumo à livraria.

Cerca de 10 minutos mais tarde, ao norte de Ilha do Rio Io-


lete, o rapaz para sua moto em frente a uma livraria com quatro
portas de enrolar e, logo acima delas, um letreiro luminoso
destacava o nome LIVRARIA FERRIER, com os I’s em formato de
lombadas de livros e escrito dentro de cada um deles estava o
nome de um membro da família. No primeiro havia Mateus
Ferrier, no segundo, Rosy Ferrier e no terceiro, Clarice Ferrier.
Ele cruzou as portas de enrolar da livraria e logo avistou
Clarice — sorridente como sempre — atendendo a uma cliente.
Isaac caminha por entre as estantes de biografias procurando
um livro qualquer. Acabou se deparando com o livro de um
vocalista que ele sempre admirou: Chay Ben / Da Inocência de
Uma Criança à Ponta de Um Cigarro. Pegou o livro e come-
çou a analisa-lo. Em seguida, encontra outra biografia; esta de
um guitarrista que ele toma como inspiração, em que o título
era apenas o seu nome: Joseph Brian.
— Pelo visto você já encontrou o que procurava. — disse
Clarice atrás dele. Isaac nem havia notado sua chegada. — Em
que ainda posso ajudar?
— Encontrei sim. — respondeu Martinelli se referindo a ela,
e não aos livros.
— Quem são? — apontou para os livros.
— Rockstars.
— Foi o que pensei. — sorriu.

105
José Vitor Nunes

— Poderia me indicar algum livro que você gosta? — pediu


— Já li todos os que me interessavam e agora estou sem tempo
para estar fazendo leitura de sinopse a fim de encontrar algo
que me agrade.
— Claro que sim. Um momento. — virou-se e começou a
procurar um livro na estante ao lado. Não demorou muito para
encontrá-lo. — Gosto muito deste e provavelmente você nunca
leu.
Entregou para Isaac.
— Cartas Anônimas de Um Fugitivo — leu o título. —, de
Paul Alysson.
— Não é um livro muito conhecido, mas eu gosto dele.
Isaac analisou a capa. Nela havia uma carta escrita à mão
sendo queimada e, logo atrás, silhuetas de homens lado a lado
com o braço direito levantado em um ângulo de aproximada-
mente 45 graus, em um gesto de saudação a uma bandeira ver-
melha com o símbolo da suástica nazista dentro de um círculo
branco.
— Ambientado na Segunda Guerra Mundial? — perguntou
Martinelli.
— Exatamente.
Leu a sinopse e disse:
— Você sabe mesmo vender seu peixe. — brincou ele. —
Vou levar. Parece ser bem interessante.
— Não tenha dúvidas. É um ótimo livro, mas não vou dizer
o por quê. — disse cruzando os braços e encostando o ombro
na estante. Seu sorriso realçava um charme natural que fazia
Isaac sorrir involuntariamente. — Quando finalizar a leitura,
podemos fazer alguns comentários sobre ele.
— Ótima ideia. Vou tentar ler o mais rápido possível.
— Ao terminar, avise-me. — pediu Clarice.
— Pode deixar. Irei te avisar sim.
Um silêncio invadiu os dois e, por impulso, rapaz falou:
— Acho que devo ir. Já encontrei o que eu procurava. — na
verdade, ele pretendia ficar mais um pouco com Clarice. Po-

106
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

rém, de fato deveria ir e não queria atrapalhá-la. — Preciso dar


uma passada na loja do meu tio e depois ir para casa me vestir
para ir à faculdade.
— Entendo. Meu horário por hoje já está quase terminando.
Também vou para casa fazer o mesmo. — afirmou. — Talvez
nos encontremos na faculdade.
— Espero que sim.
— Então... carpe diem. — disse ela se despedindo de Isaac.
Martinelli instantaneamente lembrou-se de Yasmin e ficou
alguns segundos ali, paralisado, encarando a garota.
— Mais alguma coisa? — pergunta a moça quebrando o si-
lêncio.
— Onde pago os livros? — disse por fim.

Pouco mais ao sul, na Zona do Rock, Samuel estava contan-


do os minutos para terminar seu expediente e torcendo para que
seu tio não saísse do escritório antes de Isaac chegar. Entretan-
to, as coisas pareciam estar indo muito bem e, quando ele me-
nos espera, Frank Smith aproxima-se silenciosamente dele e
exclama:
— Fala, Sam!! — batendo com a mão aberta no balcão.
Greco toma um susto e dá um pulo para trás, arrancando pesa-
das gargalhadas do seu tio. — Calma, rapaz, vai para onde cor-
rendo assim? — caçoou — Cadê seu primo Isaac?
Frank gostava de fazer esse tipo de travessura. Ele era sem-
pre muito brincalhão. Apensar dos seus 45 anos, o pançudo
Frank Smith nunca perdera seu senso de humor e ainda conti-
nuava com as mesmas brincadeiras de quando tinha apenas
vinte anos. Ele também tentava manter o mesmo corte de cabe-
lo — apesar de hoje em dia possuir apenas cabelos grisalhos
nas laterais e na parte de trás até a metade da cabeça —, o
mesmo estilo de roupas que usava em 1995, quando era jovem,
e uma barba fechada.
— houve um probleminha e ele teve que sair. — inventou
Samuel.

107
José Vitor Nunes

— Que tipo de probleminha? — quis saber.


— Parece que o café da manhã não caiu muito bem. — Gre-
co insistiu na mentira que acabara de inventar.
Frank Smith deu outras pesadas gargalhadas e perguntou:
— Por que ele não usou o banheiro da loja?
— Acho que Isaac não queria fazer um estrago nele. Talvez
ficasse constrangido. — disse o que veio à sua mente — Então
me pediu para segurar as pontas aqui na loja enquanto ia para
casa dar uma aliviada e voltava já.
— Diga para ele que não precisa mais voltar por hoje. O ex-
pediente já está para terminar e sei com esse tipo de situação é
embaraçosa. — afirmou dando dois tapinhas na própria barriga.
— Vou lhe contar uma história parecida que aconteceu uma
vez comigo antes de um show há quase vinte e cinco anos. Foi
assim: nós íamos fazer o encerramento da noite...

Enquanto os dois suavam de rir das histórias de Frank —


que de início Sam não se interessava nada em saber, pois prefe-
ria ir logo para casa —, Isaac recebera uma mensagem de seu
primo avisando que seu tio dissera não haver mais necessida-
des de ele voltar para a loja naquele dia.
Martinelli saíra da livraria com os pensamentos a mil e fora
direto para sua casa na esperança de que houvesse um pouco de
tempo para começar a ler o livro que Clarice indicara antes de
se aprontar para ir à faculdade. Infelizmente o rapaz tivera que
conter a curiosidade e a ansiedade, pois não havia tempo de
sobra para a leitura naquela manhã.
Colocou os livros em cima do criado-mudo para ler à noite
quando retornasse e foi tomar banho.

Já embaixo do chuveiro, enquanto os pingos d’água toca-


vam o seu rosto, as imagens de Clarice Ferrier dizendo “carpe
diem” e a associação com as lembranças de Yasmin Endler
dizendo aquela mesma frase em suas últimas palavras em vida
não paravam de ressoar em sua mente.

108
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 14

A o chegar em casa, Isaac vai direto para seu quarto,


tira a mochila, a camiseta e joga tudo em cima de
sua cama. Pega o livro Cartas Anônimas de Um
Fugitivo de cima do criado-mudo e começa a ler.
O livro começa falando de Charles, um garoto alto, magro,
de cabelos negros e judeu de família rica. Ele perdera sua mãe
no parto. Seu pai, Joseph, lhe dera uma miniatura da torre Eif-
fel que o garoto levava sempre consigo.
Aos dezesseis anos ele muda de cidade e escola, onde acaba
conhecendo Evelyn, uma linda e educada garota de cabelos
loiros, olhos azuis e que possuía a mesma idade que ele. Os
dois acabam se apaixonando um pelo outro e começam a na-
morar. Porém, em abril de 1933 é promulgada, pelo Partido
Nazista, a lei restringindo o numero de alunos judeus das esco-
las e universidades alemãs.
Para continuarem mantendo contato, os dois passam a se en-
contrar em locais não públicos em momentos muito raros.
Em setembro de 1935 são anunciadas outras leis, conhecidas
como “Leis de Nuremberg”, tirando os direitos dos judeus, os
excluindo da cidadania alemã, proibindo de se casarem e a te-
rem relações sexuais com os alemães, tornando a comunicação
entre Charles e Evelyn quase inexistente.
Com as coisas indo de mal a pior para os judeus, após a
“arianização” e da noite de 9 de novembro de 1938, conhecida
com “A Noite dos Cristais”, levou Charles a viver em uma si-
tuação miserável e perder total contato com Evelyn.
Para piorar ainda mais situação dos dois, o pai de Evelyn, o
general Adam, comandava uma tropa que também estava fa-
zendo a segregação anti-semita no país.
Evelyn tinha dois irmãos mais novos: Bella, uma linda e
simpática garota de quatorze anos que se parecia muito com

109
José Vitor Nunes

ela, e Albert, um pequeno nazista de dez anos que queria ser


igual ao pai. Ele sentia muito orgulho da sua raça e ódio dos
que não fossem; andava sempre com um exemplar do Mein
Kampf (livro escrito por Adolf Hitler, no qual expressou suas
ideias antissemitas, racialistas e natural-socialistas, então ado-
tada pelo partido nazista), mesmo já tendo lido e relido, estu-
dando cada ideia minuciosamente.
Em determinado momento do livro, já com quase um ano
sem ter notícias de Evelyn e vice-versa, Charles acaba encon-
trando um antigo colega de classe chamado Tom, que trabalha-
va todas as manhãs na casa de Evelyn como jardineiro. Como
única alternativa de manter algum tipo de contato com sua
amada, pede para o rapaz entregar uma carta para ela sem que
ninguém soubesse. Depois de muita insistência, Tom acaba
sendo forçado a aceitar o pedido de Charles em nome da ami-
zade, levando a carta e entregando discretamente para Evelyn e
pedindo para que ela tenha todo o cuidado do mundo quando
fosse lê-la.
A carta possuía cinco laudas. Nela Charles contava as difi-
culdades que ele passara: o assassinato de seu pai, a solidão, os
dias de fome e de frio escondido dos soldados na tentativa de
sobreviver sempre mais um dia, as fugas de um local para outro
em busca de comida, o perigo constante de ser pego e etc. En-
tretanto, o jovem judeu não perdera a fé e nem a esperança,
dizendo que um dia eles ainda iriam fugir juntos para algum
lugar, se casarem, viverem juntos e construírem uma família.
No final da terceira folha de papel, Charles avisara que iria
tentar continuar mantendo contato com ela e pedira para que a
moça não tentasse encontra-lo, pois seria perigoso para os dois.
Pediu também para que ela queimasse todas as outras folhas e
deixasse apenas a última página como lembrança, que estava
escrito um texto metafórico para caso alguém o encontrasse e o
lesse, não saberia que havia sido escrito por ele e nem o que
realmente significava.
O texto falava não apenas das dificuldades que jovem judeu
enfrentava todos os dias como também falava do amor que

110
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

sentia por Evelyn e a esperança de um dia poderem viver em


paz por toda sua vida. Charles escreveu:
Perdido no Deserto
Estou perdido no deserto. Sozinho. Não consigo te encon-
trar em meio a tanta solidão. Diga-me, você ainda está por
perto? Salve-me, estou queimando por dentro!
Não sei por qual caminho seguir; não sei se existe um ata-
lho que encurte o tempo e a distância entre nós; não sei nem se
um dia ainda irei te encontrar, só sei que está ficando cada vez
mais difícil sobreviver nessa imensidão de nada; nada que
conspire ao meu favor; nada para iluminar a estrada que devo
seguir para chegar até você.
Estou lutando contra as serpentes que não param de me
perseguir, querendo me ver derrotado pelo seu veneno. Porém,
não fraquejo quando estou batalhando para te encontrar, e
não há antídoto melhor do que estar contigo, ele cura minha
alma, alimenta minha bondade e minha ganância de ficar junto
a ti.
Preciso estar contigo, contudo, onde encontrar o brilho dos
olhos mais lindos de uma garota tão pura? Que mesmo sem me
ver, me observa pelos olhos alheios; mesmo sem poder me ou-
vir, ouve pelas vozes estranhas que difamam minha imagem,
com a intenção de me tornando uma doença que precisa ser
exterminada. Os demônios conseguem cantar as canções ange-
licais, corrompidas, confundem sua cabeça fazendo com que
você confie neles e siga o que eles dizem ser certo. São todos
iguais, criam a falsa ilusão de que estão te ajudando, em con-
trapartida, fazem você trocar seus heróis por vilões, pessoas
por fantasmas. Enquanto os anjos se silenciam na esperança
de que você consiga ver com seus próprios olhos que a corda
está se arrebentando para o abismo e que seus protetores estão
desprotegidos, sendo ameaçados pelas criaturas desumanas.
Tudo à minha volta é igual, até o momento em que te vejo
acenando para mim; corro ao seu alcance e ao tentar chegar
até você, vejo que era apenas uma miragem, imagens que tal-

111
José Vitor Nunes

vez eu mesmo criei para reviver a emoção de te encontrar, e


isso me motiva a nunca desistir, mantendo viva a vontade de te
achar e me dando forças para continuar.
Preciso encontrar um lago e me asfixiar em você, porque tu
és a única capaz de saciar minha sede, pois meu tempo está
acabando e não o encontro nesse deserto. Estou tentando me
controlar, tendo que engolir a minha própria saliva para resis-
tir mais alguns minutos e me mantendo vivo com o seu sorriso.
Quando a noite cai, olho para o céu e vejo a lua, ela me faz
lembrar de você; e as constelações formam seu rosto. Aqui não
existe o calor dos seus braços para me aquecer, existe apenas
a brisa fria sempre tentando me matar um pouco mais. Não sei
mais onde estou, nem o que fazer, buscando de qualquer forma
o seu calor, apenas fechando os meus olhos para imaginar que
é seu corpo junto ao meu...
As tempestades de areia tentam levar meu último fio de es-
perança. E quando parece não existir mais forças e nem fé,
você manda uma chuva mantendo-me vivo, me fazendo lutar
contra as serpentes, a sede e os demônios na esperança de um
dia conseguir voltar pra casa e te encontrar, te abraçar e sen-
tir seu calor; sentarmos juntos à beira-mar, iluminados pela
luz da lua cheia até não haver mais o amanhã.
Após ler a carta, Evelyn não parava de chorar pensando no
sofrimento de Charles, em todas as dificuldades que ele estava
passando, no risco de vida que ele corria constantemente e, pior
de tudo: não poderia fazer absolutamente nada para ajudá-lo.
Além do mais, o seu próprio pai desejava vorazmente matar o
pobre judeu.

Ao se dar conta das horas (23h:45min), Isaac devolve o li-


vro ao criado-mudo, se acomoda na cama e dorme até a manhã
seguinte, em que segue a mesma rotina de sempre: treino-casa-
trabalho-casa-faculdade-casa.

112
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Chegando à sua casa no final do dia seguinte, ele pega no-


vamente o livro — que já estava com um terço lido — e volta a
ler de onde parou.

O desenrolar da estória continuava falando das dificuldades


e perigos constantes em que Charles estava passando e, parale-
lamente, das visitas semanais à casa de Evelyn de um soldado
de meia idade chamado Klaus, que levara sempre sua filha
Magda para brincar com Bella. E Peter, um jovem soldado que
tinha cerca de vinte anos e que ia especialmente para conversar
com Evelyn. Porém, ela não dava a mínima para o rapaz.
Já havia se passado três meses desde aquela primeira carta
que Charles mandara. Evelyn desejava muito que ele ainda
estivesse vivo, porém, não conseguia ter tantas esperanças as-
sim, até que certo dia Tom a chamara discretamente enquanto
cortava algumas plantas do jardim e lhe entregou alguns papéis
dobrados juntos para ela. A moça foi para seu quarto quase
correndo, trancou a porta e começou a ler.
A carta era de Charles. Nela havia escrito quase as mesmas
coisas da que escrevera há três meses: contava sobre as fugas, a
fome, o frio, a solidão e etc. Da mesma forma, ele pedira para
que a garota não o procurasse e queimasse as outras folhas de
papel, deixando apenas a última, que estava escrito o seguinte
texto:
Em Um Quarto Escuro
Quando os dias estiverem frios e você não tiver alguém que
sempre esteve por perto para te aquecer, lembre-se que eu
queimaria vivo por ti; acenderia a chama da paixão e levaria a
luz até você; te faria brilhar como uma tocha em meio a escu-
ridão agonizante, onde a maior fraqueza é não ter ninguém
por perto. Porém, fecho os olhos para a situação e, por medo
do fogo, jogo baldes de gelo na chama, mas nunca a deixo
apagar por completo. E sinto frio, mas nada vai fazer com que
eu me aqueça a não ser a minha própria iniciativa de abraçar
a tocha e deixar que a chama me conforte.

113
José Vitor Nunes

Enquanto os dias vão passando e o medo continua domi-


nando nossas mentes, eu também sinto frio. Fico amando nos
meus sonhos com o amor que a realidade não me permite vi-
ver; vivendo minha verdade imaginária onde você é só minha.
Apenas minha. Onde nada impeça que eu tenha a pessoa que
quero ao meu lado, te fazendo viver dias de princesa e noites
de rainha; cavalgando pelos campos verdes, sentindo o vento
fresco no rosto que leva todas as dúvidas e preocupações para
bem longe da gente, e a maior certeza é que no dia seguinte
ainda estaremos juntos. Então deitamos na grama fria embaixo
da macieira, você com o ouvido no meu peito e o braço cir-
cundando meu corpo, vendo o pôr do sol ao longe entre as
montanhas brancas de neve.
E quando me dou conta, já são mais de 3h da manhã e estou
sozinho no meu “quarto” com as luzes apagadas, pensando em
ti, sonhando acordado; e é nele onde viajo todo o mundo com
você, passando por todos os lugares e fazendo coisas que só o
amor seria capaz de explicar. E ao fechar meus olhos, vejo o
paraíso; de mãos dadas a ti, derrubamos os muros feitos de
medo, de insegurança e de preconceito, e em troca, construí-
mos os fortes alicerces da coragem, do amor e da felicidade.
Para Evelyn, ter recebido notícias de Charles, de certa for-
ma, foi bom, pois agora ela tinha certeza de que ele estava vivo
— pelo menos até aquele momento em que ele escrevera e en-
tregara a carta para Tom —. Por outro lado, saber que ele esta-
va passando por todo aquele sofrimento injustamente e ela não
poder fazer nada, era horrível, e isso a deixava extremamente
triste.
Da mesma forma que Charles, Evelyn também mantinha sua
fé e esperança de que um dia eles iriam ficar juntos, de terem
filhos e construírem uma linda família.

No terceiro dia de leitura, após longas horas de treino, traba-


lho e estudo, Isaac chegara à sua casa e fora ler as últimas pá-
ginas que ainda restavam de Cartas Anônimas de Um Fugitivo.

114
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Durante os três dias ele não vira Clarice nem para sequer co-
mentar sobre o que estava achando da obra. Então imaginou
que o melhor a fazer seria terminar de ler todo o livro e avisá-
la, como ela pediu, para que aí sim pudessem comentar.

O desfecho final era a parte mais interessante. O pequeno


nazista, Albert, encontra os textos que Charles escrevera para
Evelyn. Para piorar a situação, a garota não conseguira queimar
nenhuma das folhas de papel da última carta que o seu amado
lhe enviara.
Adam já sabia que Evelyn namorou um judeu há alguns
anos, porém, não imaginava que sua filha ainda mantinha con-
tato com o tal rapaz. Ele pegou as cartas e queimou todas na
frente dela.
Para colocar um basta de vez nessa situação, o general inter-
rogara todos os seus empregados, pois Evelyn não dissera o
nome de quem lhe passou as cartas do jovem judeu. Ele tam-
bém entrega a mão de sua filha em casamento a Peter.
Infelizmente, o pai de Evelyn conseguira descobrir quem era
o traidor que estava servindo de carteiro dentro de sua casa,
então simplesmente mandara mata o garoto para servir de lição
a todos. Entretanto, esta lição pareceu servir apenas para os
seus empregados, pois cerca de duas semanas após o ocorrido,
Adam pega sua filha, Bella, beijando Magda, a filha de Klaus,
no sofá da sala de sua casa. Já era de se esperar que o general
fosse surtar de vez. Ele toma a atitude de mandar Klaus para o
fronte de batalha e Magda para um campo de concentração por
a garota ser homossexual. Contudo, mantem segredo sobre sua
filha também ser, passando a pressioná-la psicologicamente o
tempo todo e dizendo também que mandou matar sua “amigui-
nha homossexual”.
A pequena e simpática Bella vivia trancada no seu quarto
deitada na cama chorando o dia toda. Ela se recusava a comer,
a sair e até mesmo a conversar com Evelyn, sua irmã e sua me-
lhor amiga.

115
José Vitor Nunes

Duas semanas depois, após todos já estarem na cama, Bella


se levanta, vai até o quarto de seus pais e pega a arma do seu
pai; leva até a sala, senta-se no sofá em que beijou Magda, abre
a boca e coloca a ponta no cano encostada no céu da boca. E
então dispara...
Sem sua irmã, sem seu amigo Tom, prometida a um soldado
que ela nem sequer conhecia direito, sem ter notícia de Charles
há quatro meses e com a notícia da nova infeliz criação nazista
dos guetos e a recente “Solução Final”, Evelyn levava a vida
em total angústia, sem nenhum prazer e se sentindo talvez co-
mo seu namorado — ou ex-namorado —, tentando apenas so-
breviver um dia após o outro. Mas numa certa noite, Evelyn
escuta um barulho na janela de vidro do seu quarto. À primeira
impressão dela era que fosse um pássaro ou algo do tipo, po-
rém, o barulho se repetia em cerca de vinte a trinta segundos.
Então ela levanta-se da cama, olha pela janela e avista um ra-
paz de cabelo comprido, extremamente magro, pálido, usando
roupas imundas e rasgadas e tremendo de frio. A moça não
consegue identificar quem era aquela pessoa. Ele chega mais
perto até que, finalmente, percebe que o rapaz lá fora era Char-
les.
Com muito cuidado, abre a janela e o ajuda a entrar. Dentro
do quarto, ele dá um rápido beijo em Evelyn e pede desespera-
damente para que a garota fugisse com ele.
— Você precisa vir comigo. — sussurrou Charles.
— Mas para aonde?
— Para qualquer lugar. Precisamos sair do país de alguma
forma.
— Eu não posso. E se alguém nos pegar?
— Estou há meses me escondendo. Sei onde podemos ficar.
— Eu li suas cartas. Esta não é a vida que queremos para
nós.
— Quando tudo isso acabar, podemos ficar juntos. As coisas
ainda poderão ser belas. Te pedirei em casamento em baixo da
Torre Eiffel, teremos filhos e sermos felizes... — insistiu Char-

116
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

les, tirando a miniatura de madeira que seu pai lhe dera e cha-
coalhando na frente dela.
— Quando isso vai acabar? — questionou ela. — Quando?!
Houve um momento de silêncio, então Charles argumentou:
— Eu arrisquei minha vida várias vezes para estar com você
na esperança de que um dia nossos planos se tornassem reali-
dade.
— O que você está me sugerindo é loucura. Não percebe
que é impossível ficarmos juntos? Olha como o mundo está. —
sem querer magoá-lo, ela continuou — Além do mais, fui pro-
metida por meu pai a outro homem.
As palavras cortaram o coração do rapaz como um cristal de
gelo.
— Como assim prometida a outro homem? — o jovem não
conseguia entender o que estava acontecendo, pois jurava que
Evelyn queria muito estar com ele, mesmo sendo preciso arris-
car sua vida. — Você se apaixonou por outro?
— Não! Não é isto. Eu te amo. Mas meu pai descobriu que
mantivemos contato. Fiz a idiotice de não queimar as cartas,
como você pediu. Ele descobriu também que era Tom que me
entregava suas cartas e o matou, dando minha mão a Peter, um
soldado do seu batalhão. — concluiu Evelyn com os olhos na-
vegando em lágrimas. — E minha irmã cometeu suicídio por
causa dele. — caiu em prantos.
Charles ficou em choque após todas aquelas informações e
se sentiu culpado pela morte de Tom. Ele sentou-se na cama
abraçando Evelyn na tentativa de fazê-la parar de chorar.
— Maldito! — gritou Adam, entrando no quarto com uma
arma na mão.
Charles salta para o chão, enquanto Adam tenta acompanha-
lo com a ponta de seu revólver. No momento em que ele ia
disparar, Evelyn pula em seu braço, derrubando a arma perto
do jovem judeu. O rapaz a apanha e aponta para o general.
— Parado! — exclamou Charles. — Ou eu disparo!

117
José Vitor Nunes

— Larga isso, seu judeu nojento! — ordenou Adam se


aproximando do rapaz que, sem hesitar, disparou contra ele.
O general cai ao chão com um tiro no peito.
— NÃO!!! — gritou Evelyn — Você matou meu pai! —
caiu de joelhos ao lado de Adam.
— Me desculpe. Eu... eu... — larga a arma no chão e come-
ça a chorar ao lado de Evelyn — Eu não queria ter feito isso.
Eu estava com medo. Ele iria me matar.
— Fuja daqui! — ordenou ela — Eles irão matar você!
— Você precisa vir comigo. Fiz tudo isso para estar com
você.
— Eu não consigo. Você precisar ir sem mim. Agora!
Era possível ouvir passos e uma gritaria vindo em direção ao
quarto de Evelyn.
— Eu te amo! — disse Charles dando um abraço e um beijo
em Evelyn.
Saltou pela janela e saiu em disparada pelas ruas escuras e
frias, deixando, sem perceber, sua miniatura da Torre Eiffel em
cima da cama da moça. Ao ver, ela pega e a esconde embaixo
do travesseiro antes que alguém a visse.

Após toda aquela cerimônia final, as últimas páginas são de


como a vida de Evelyn mudou tão drasticamente durante aque-
les anos; de como nada mais parecia fazer sentido e o que a
mantinha viva era fé e a esperança de um dia viver em um
mundo de paz, amor e felicidade. Esperança esta que ela
aprendera a ter com Charles.
“Será se ele ainda continua tendo a mesma fé e esperança
mesmo depois de tudo que aconteceu e que está acontecendo?
Será se ele ao menos está vivo?”. E o livro acaba com este
questionamento.

Isaac fecha o livro e pega o celular para ver as horas. Já se


passava das 01h:30min. da manhã. Provavelmente Clarice esta-
ria dormindo e ele não iria acordá-la com um telefonema.

118
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Talvez devido a algumas xícaras de café que bebera para ler


naquela noite o fizera não conseguir pregar os olhos e cair no
sono. A insônia deixava seu cérebro a mil. Talvez o efeito da
cafeína estivesse contribuindo juntamente com o a dopamina
criada pelo seu organismo. Parecia estar tão agitado e produ-
zindo energia que seria capaz de acender uma lâmpada. Ele
começou a se lembrar daquela última vez que vira Clarice e
ouvira dizendo: “Carpe diem”. Era impossível ouvir aquela
frase e não se lembrar de Yasmin, além do mais vindo de uma
garota que a lembrava tanto.
Recordou-se da conversa que tivera com Estella sobre a
ótima compatibilidade entre seu Mapa Astral e o de Clarice.
Não sabendo o porquê, mas ele se sentira feliz por seus Mapas
serem tão compatíveis assim, mesmo não acreditando fielmente
na Astrologia.

119
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 15

O
rapaz chegara cedo à aula de Conceitos da Psicolo-
gia. Sentou-se numa cadeira da frente, como de cos-
tume, e fizera uma varredura discretamente com os
olhos à procura de Clarice. Ele não havia telefonado
para a moça e esperava comentar sobre o livro quando a visse
pessoalmente.
Localizou a garota conversando com uma colega do outro
lado da sala na fila da parede.

A professora Elisa explicava o assunto sobre a Psicanálise e


Isaac anotava tudo que achava ser importante.
Passada duas horas de aula, Elisa disse por fim:
— Bom, pessoal, agora vamos dar uma pausa de — olhou
para o relógio — quinze minutos para vocês irem ao banheiro,
beberem água... E quando voltarmos, iremos falar sobre A
Descoberta do Inconsciente. — pegou o pincel e escreveu no
quadro: “Qual poderia ser a causa de os pacientes esquecerem
tantos fatos de sua vida interior e exterior...?. Freud. Colocou
o pincel sobre a mesa. — Até daqui a pouco.
Enquanto os alunos levantavam e saíam, Clarice caminhou
até Martinelli, que estava sentada com uma apostila sobre a
cadeira.
— Oi. — falou com um lindo sorriso no rosto.
— Oi. — respondeu se endireitando na cadeira.
— Então... está gostando de Cartas Anônimas de Um Fugi-
tivo?
— Sim. Já terminei, inclusive. Eu estava esperando te en-
contrar pela faculdade pra gente comentar sobre ele.
— Poderia ter me ligado. Passei meu número para você me
telefonar quando terminasse. — disse com um tom gentil.

120
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Pois é... mas podemos comentar agora. — afirmou des-


contraído — Você começa.
— Tudo bem. Vou começar comentando sobre o final do li-
vro. — deu uma pausa e sentou-se na cadeira ao lado e ficou de
frente para Isaac — Na minha opinião, eles deveriam ficar jun-
tos, pois depois de tanto esforço, de tudo que eles tiveram que
passar e, mesmo assim, não terminarem juntos foi maldade.
— É verdade. — concordou Isaac — Mas acho que não teria
como Charles e Evelyn manterem o relacionamento.
— Por que não?
— Eles não iriam conseguir fugir juntos e se esconderem
por tanto tempo assim. Talvez Evelyn imaginasse que alguém
acabasse o matando na tentativa de protegê-la. Esse foi um dos
motivos para ela resistir e não ter pulado logo pela janela
quando Charles apareceu, afinal, sua vida já estava uma droga
mesmo. — riu.
— Faz sentido. Mas, mesmo assim, depois de tudo que ele
fez por ela, arriscando a vida para que ficassem juntos... Sem
falar que Evelyn também queria isso, e na hora “H” a garota
prefere deixa-lo fugir sozinho. Charles passou por tudo aquilo e
se manteve vivo, ela poderia muito bem ter confiado nele.
— Sei não... — discordou Isaac — Eles iriam passar a vida
fugindo da morte ou ver o outro morrer. Com toda a certeza,
essa não era a vida que Evelyn sonhava passar com Charles.
Ao menos que eles dessem um jeito de fugir para América do
Sul.
— Ela poderia ter ido à busca dos seus sonhos, mesmo ten-
do que passar por todos aqueles perigos.
— A vida que teriam não seria a vida que Evelyn sonhava.
Seria arrisca demais por um sonho com possibilidades mínimas
de se realizar. Sem falar que Charles matou o pai dela, e isso a
deixou ainda mais confusa.
— Matou em sua defesa. Não que isso seja certo — expli-
cou-se —, mas ele não tinha muito o que fazer. Era matar ou

121
José Vitor Nunes

morrer. — concluiu — Tantas mortes e no final de tudo não


terminaram juntos...
— Muitas vezes é preciso encarar a dura realidade. Fazemos
muitos planos e sonhos para o futuro, mas às vezes pode haver
um pequeno detalhe que não esperávamos que poderá acabar
destruindo todos eles. — afirmou inevitavelmente lembrando-
se de Yasmin.
— Concordo. — Clarice pareceu perceber a quem ele se re-
feria, então mudou de assunto. — Uma coisa que me identifico
muito com Charles é a sua fé e esperança, pois mesmo havendo
poucas possibilidades de que tudo desse certo e acontecesse
como ele queria, o cara não desistiu dos seus sonhos e estava
sempre buscando formas de realizá-los, mantendo-se firme e
forte, apesar de tudo.
— Realmente ele era um cara muito persistente e nunca dei-
xou de ir atrás do que queria. Ele amava muito aquela garota.
— Amava sim...
— Também me identifico com ele. — afirmou Isaac.
— Pelos mesmos motivos que eu?
— Não exatamente... — deu uma pausa tentando encontrar
uma forma de explicar — São duas coisas: A primeira é que
me identifico com o fato de gostar da Torre Eiffel e com o cli-
chê do pedido de casamento à vista dela. E a segunda é que ele
gostava de escrever cartas para ela falando dos seus sentimen-
tos, desejos, sonhos... numa forma metafórica. Eu também gos-
to de fazer isso.
— Quer dizer que você escreve como ele?
— Sim, de certa forma há uma pequena semelhança.
— Que legal! — exclamou ela.
Martinelli pensou um pouco e perguntou:
— Quer ler algumas cartas que escrevi?
— Claro que sim! Admiro muito talentos desse tipo. Quan-
do irei poder ler?
— Trarei uma pasta para a faculdade com todos os textos
escritos, daí quando eu te encontrar, lhe entregarei.

122
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Combinado.

123
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 16

C
ara, vou chamar a galera toda para comemorar
— meu aniversário hoje à noite no Subway depois
da aula. — afirmou Samuel passando um es-
panador em uma caixa amplificadora.
— Comemorar seu aniversário? Você só completa ano em
novembro, e agora que estamos em junho. — indagou Isaac.
— É, eu sei...
— E por que comemorar faltando... — contou nos dedos —
cinco meses? — olhou para Sam sem entender.
— Lembra quando falei que iria dar um jeito de juntar Thia-
go e Mirelly novamente?
— Lembro sim.
— Então, vamos reunir os AmendoWins para sair e eles irão
resolver a situação esta noite. — disse com um ar de segurança.
— Como tem tanta certeza assim?
— Confie em mim, conheço aqueles dois. — deu uma pis-
cadela para Isaac.
— Já que você diz... só me resta esperar.
— Continue com isso — Greco jogou o espanador para
Martinelli — enquanto mando uma mensagem convidando a
todos.
— Vou convidar Clarice — disse Isaac.
— Tudo bem. Se quiser, pode pedir para ela chamar suas
amigas daquele grupo de jovens que você me falou. — deu
outra piscadela para seu primo.

Isaac Martinelli: Eu e meus amigos iremos sair hoje à noite


para comemorar o aniversário do Sam. Você pode ir com a
gente?
No mesmo instante, Clarice respondeu:
Clarice Ferrier: Para aonde? Que horas?

124
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac Martinelli: Para o Subway. Depois da aula.


Clarice Ferrier: Posso ir com vocês sim.
Isaac Martinelli: Então está combinado. Depois da aula te
mandarei uma mensagem de texto dizendo o local onde esta-
mos para nos encontrarmos.
Clarice Ferrier: Certo ;-)
Isaac Martinelli: :-)

Após a aula, Thiago, Samuel, Isaac, Mirelly, Estella e Ber-


nardo estavam no estacionamento da faculdade Coronel Eduar-
do Paulo com a porta do Red Hot de Thiago aberta tocando
uma música do Queen enquanto esperavam Fernanda e Clarice.
Martinelli já havia enviado uma mensagem para Ferrier avi-
sando onde era o local de encontro e ela dissera que já estava
chegando.

— Boa noite. — disse ao chegar.


Todos responderam com um “boa noite”, menos Bernardo,
que dissera penas “boa”.
— Estamos esperando a namorada de Bernardo. — explicou
Isaac sussurrando no ouvido de Clarice.
— Ok. — sussurrou de volta.
— Rivière, O Putão das Novinhas... — comentou Thiago,
chegando ao seu lado e dando dois tapinhas no ombro do ami-
go — Descobriu a vida real, jovem?
— Vê se não enche. — disse Rivière.
— Foi mal. — desculpou-se levantando as mãos em um ges-
to irônico e se afastou com um sorriso de satisfeito por provo-
car o amigo.

Por volta de dois minutos mais tarde, Fernanda chegou em


sua Honda Biz vermelha. Estacionou, foi até onde o grupo es-
tava reunido e acenou com a mão ao chegar.

125
José Vitor Nunes

Bernardo faz vários movimentos de mãos e braço, e Fernan-


da parecia entendê-lo perfeitamente.
— Eu sabia que você aprenderia LIBRAS rapidinho. — co-
mentou Isaac puxando as alças da mochila pendurada em seus
ombros, pressionando-a contra as costas.
— É mais fácil do que parece. — confessou Bernardo. —
Vou apresenta-la a vocês.

Depois de toda cerimônia, eles seguiram a caminho do


Subway. Thiago e Mirelly acabaram indo juntos no carro, pois
Bernardo estava na moto com Fernanda, Estella com Samuel e
Clarice com Isaac. Até aquele momento o plano de Sam ocor-
ria como planejado.
Ao chegarem, fizeram os pedidos e sentaram-se numa mesa
perto da TV, que estava sendo transmitida uma luta ao vivo de
UFC. Estella já havia iniciado a conversa falando sobre o Ma-
pa Astral de Fernanda e fazendo uma comparação minuciosa
com o de Bernardo.
— O seu sol em escorpião diz que você é uma pessoa muito
profunda, misteriosa, sentimental, sensível... — enquanto ela
falava, Bernardo traduzia para a língua de sinais, fazendo com
que Fernanda compreendesse tudo. — A sua lua está em aquá-
rio, e isso lhe torna ligada ao universo, que se preocupa em
ajudar o próximo, te tornando uma pessoa legal com todos. —
a garota parecia concordar com o que Estella dizia, assentindo
com a cabeça e com um sorriso largo no rosto. — O mercúrio
em escorpião faz de você uma pessoa muito inteligente em
relação ao sentimento, de forma que ligue a psique, a questão
de autoajuda e de entender o sentimento do próximo.
Isaac, por vez, não conseguia se concentrar muito no que
Estrela afirmava sobre Fernanda. Sua atenção começava a ficar
mais voltada para a luta do que para a conversa entre os ami-
gos.
— Vênus é o planeta do amor. Em escorpião ele faz você se
tornar uma pessoa muito profunda, possessiva. Potencializando

126
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

o ciúme. — a namorada de Riviére fez uma expressão surpresa


e tomou um gole do refrigerante insinuando que seria para
acalmar após a afirmação. Estella sorriu — Marte em leão:
orgulhosa, líder, que se destaca. E o ascendente em aries diz
que você está pronta pra tudo em termos de desafio.

O narrador da luta começou a falar com ainda mais entusi-


asmo após o homem de short azul acertar um cruzado de es-
querda em seu adversário que usava apenas uma cueca verme-
lha e sangrava bastante pelo supercílio aberto.
Àquela altura, Martinelli estava com os pensamentos distan-
tes, lembrando-se da primeira vez que assistiu UFC com Yas-
min. Ela ficara tão empolgada ao ver a luta que começara a
desafiá-lo para um confronto no tatame improvisado feito de
papelão na oficina de Miguel Martinelli.
— As regras são: não é permitido dedo no olho, arranhões,
puxões de cabelo, mordidas e nem qualquer tipo de ataque às
partes íntimas. — explicou Isaac.
— Está bem, está bem. — dizia Yasmin, ansiosa, dando pu-
linhos para se aquecer e com os punhos cerrados, fechando a
guarda.
— É permitido apenas torções na tentativa de imobilizar o
adversário. — continuou ele.
— Já entendi. Podemos começar?
— Espera, deixe-me alongar primeiro. — começou a esticar
os braços, pernas, estalar os dedos, pescoço...
— Aff... — bufou ela perdendo a paciência — Vamos co-
meçar logo isso.
— Ok. Eu sou o Victor Belfort. E você?
— Hum... José Aldo. — falou o primeiro nome que lhe veio
à cabeça.
— Você não poder ser o José Aldo, não seríamos da mesma
categoria. Estou numa categoria de peso superior. — explicou.
— Está com medo de perder, garotinha? — provocou ela.
— Então vamos. — posicionou-se para a luta. — Começou!

127
José Vitor Nunes

Yasmin partiu para cima de Isaac, que apenas se esquivava e


corria em círculos pelas laterais do tatame de papelão.
— Pare de fugir, seu molenga! — exclamou Yasmin.
— Olé! Olé! — gritava a cada vez que fugia de um golpe.
— Vem me pegar!
— Então é assim que vai ser? — disse ela parando no canto
oposto a Isaac — Quero ver você me pegar, agora. — desafiou.
— AAHH!!! — rugiu ele e avançou em sua direção.
Yasmin deu um grito agudo e fugiu em gargalhadas.
— Hey! Você não pode sair do tatame! — protestou.
— Você não explicou isto nas regras. — justificou com as
mãos para trás, se fazendo de desentendida.
— Volte para cá, mocinha.
A garota voltou, avançou para cima de Isaac, que a agarrou,
virou suas costas para ele, puxou seus dois braços para trás
pelos cotovelos e usou apenas o seu braço esquerdo cruzando
entre os dela fazendo uma trava e a prendendo.
— Agora tente não mijar nas calças. — sussurrou no ouvido
dela e começou a lhe fazer cócegas usando a mão direita.
Ela se rebatia para todos os lados tentando escapar. Seu ros-
to estava vermelho de tanto rir.
Numa tentativa de escapar, Yasmin pulou jogando seu corpo
para a esquerda, fazendo com que Martinelli se desequilibrasse
e caísse junto com ela para fora do tatame.
Quando os dois se levantaram, Isaac percebera que sua na-
morada estava com um sangramento na testa.
— Sua testa. — disse apontando.
— Acho que bati com a cabeça no chão.
— Acho que ganhei a luta. — brincou — Venha, vamos dar
um jeito nisso.
Aquela brincadeira rendera três pontos na testa de Yasmin e,
posteriormente, uma pequena cicatriz que só era notada quando
ela usava seus cabelos castanhos em rabo de cavalo.

128
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— ... como era mesmo o nome dela, Isaac? – perguntou Sa-


muel, o trazendo de volta ao presente.
— Nome? Nome de quem?
Todos riram
— Luta legal, hem, cara? — disse Thiago mais afirmando
do que perguntando, percebendo que os olhos do rapaz estavam
grudados na TV.
— Daquela amiga de Yasmin que tinha o cabelo roxo. —
explicou Sam
— Ah, Camila, eu acho...
— Isso! Camila! — exclamou Greco — O cabelo dela a
deixava muito sexy. Sinto-me atraído por cabelos roxos — deu
um sorriso presunçoso.
“Huuuuuuuum” foi o que todos disseram em uníssono, fa-
zendo o rosto de Estella corar.
— Vão se ferrar! — praguejou ela, sorrindo. Porém, parecia
ter gostado do comentário que Samuel fizera.

Ficaram ali conversando por mais dez minutos após todos já


terem terminado de comer seus lanches. Samuel Greco contou
algumas histórias constrangedoras dele e de Isaac da época em
que eram crianças, fazendo todos rirem e deixando Martinelli
um tanto envergonhado. Sam é o tipo de cara que gostava de
fazer as pessoas rirem a qualquer custo, mesmo que fosse pre-
ciso ele próprio ser a piada, o que não se importava nem um
pouquinho.

— Gente, já está na hora de eu ir — disse Clarice, levantan-


do-se —, não posso chegar muito tarde em casa. Foi ótimo
estar com vocês.
— Eu deixo você. — falou Isaac, levantando-se rapidamente
e pendurando a mochila no ombro.
— Não é preciso, Isaac. Minha casa é apenas há três ruas
daqui.

129
José Vitor Nunes

— Não vou deixar você ir andando sozinha. É perigoso. —


explicou, aproximando-se dela e lhe oferecendo um capacete.
— São apenas três ruas, não tem de se preocupar. — disse
ela com um sorriso.
— Eu insisto.
— Vá com ele, Clarice. — pediu Samuel com uma expres-
são esquisita. — Isaac tem razão, pode ser perigoso mesmo
sendo há apenas três ruas.
— Tudo bem. Já que insistem... — colocou uma mexa de
cabelo atrás da orelha. — Mas não precisava ter o trabalho.
— Não vai ser trabalho nenhum. — afirmou Isaac com um
sorriso simpático.
— Ok. Então vamos.

Pouco mais de três minutos, os dois estavam ao lado de um


poste com a iluminação inconstante em frente a uma casa bran-
ca de sobrado, protegida por um muro vermelho de 2,50 metros
de altura. Há alguns metros dali estava rolando algum tipo de
festinha particular.
— Antes que eu me esqueça... — o rapaz abriu a mochila —
trouxe isso para você, como eu havia prometido. — puxou uma
pasta catálogo preta e entregou à Clarice.
— Esta é... — balbuciou ela.
— São os textos que te falei.
— Ah, sim. Obrigada. E obrigada pela carona. Não precisa-
va ter o trabalho de vir até aqui.
— É perigoso andar sozinha por aí há essas horas da noite.
Tenho certo trauma em relação a isso, sabe? — confessou.
— Por quê? Já aconteceu algo com você?
— Não exatamente, mas... É que uma vez... — interrompeu-
se sem querer, como se automaticamente o que quisesse dizer
não saísse.
— Se não se sentir confortável em me contar, tudo bem. Eu
entendo.

130
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Não, tudo bem. Vou tentar te contar tudo. Talvez você


entenda minha preocupação em não deixa-la vir andando sozi-
nha. — Clarice assentiu levemente com a cabeça. — No dia
sete de janeiro de dois mil e quinze eu estava completando de-
zessete anos e, nesse mesmo dia, também era o meu aniversário
de dois anos de namoro com Yasmin Endler. Naquele dia,
chamei meus amigos para irem à minha casa comemorar e,
como de costume, eu sempre buscava Yasmin em sua casa para
conversar um pouco com os pais dela. Nossos pais são amigos
desde a adolescência. Porém, minha madrinha telefonou para
me dar os parabéns, e entramos em uma conversa que parecia
não ter fim. Então enviei uma mensagem de texto para Yasmin
pedindo que viesse me ajudar com algumas coisas antes que
meus amigos chegassem, pois já eram quase oito da noite e eu
não tivera tempo de preparar tudo, e não conseguiria terminar
sem a sua ajuda. — Clarice ouvia tudo com muita atenção — A
casa dela fica há quatro quadras da minha, então decidira ir
andando. Quando terminei de falar com minha madrinha, já
havia se passado quase vinte minutos e Yasmin ainda não tinha
chegado. Ela não demorava mais de cinco minutos para chegar
à minha casa, mesmo indo caminhando. Então telefonei para
seu celular e uma voz estranha atendeu, dizendo algo que não
entendi muito bem. Era uma voz familiar de uma mulher idosa
que eu não conseguia identificar porque ela chorava em deses-
pero. — um frio na espinha seguido de um arrepiou fez Isaac
estremecer. Foi o mesmo que ele sentira naquela noite ao aten-
der ao telefone. Pigarreou e continuou — Depois de alguns
segundos tentando processar aquela voz, eu disse: “Alô?”. E a
pessoa do outro lado da linha respondeu: “Isaac...”, foi quando
finalmente reconheci a voz da minha vizinha.

—... não sei como te dizer isso de uma forma que não te
deixe em desespero, mas... mas... houve um acidente com
Yasmin. — falou dona Tereza. Ao ouvir aquilo, Martinelli sen-
tiu o sangue esvair de seu corpo, e ele quase deixou o celular

131
José Vitor Nunes

cair no chão. Suas pernas ficaram frágeis, forçando-o a se esco-


rar no primeiro móvel à sua frente.
— O... o quê? O... onde? Co... como assim? — Martinelli
pôde ver pela janela uma ambulância passar a mil com o toque
das sirenes cortando o ar e quebrando o silêncio daquela noite.
— Apenas tente manter a calma, filho. — pediu ela.
Isaac largou o telefone e correu para fora de sua casa e ob-
servou para onde aquela ambulância estava indo.
Duas ruas à frente, ela parou ao lado de um aglomerado de
pessoas, e os enfermeiros desceram.
Martinelli correu em disparada com as lágrimas escorrendo
sobre seu rosto. Ao chegar, esbarrou em quem estava na sua
frente, tentando abrir espaço até ver uma linda garota caída ao
chão sobre uma poça de sangue que parecia sair de sua barriga.
Ele cai de joelhos ao lado dela.
— Yasmin! Yasmin! — gritou desesperado — Amor, fala
comigo! — ela abriu os olhos lentamente.
— Oi, amor. — disse em um sussurro quase inaudível.
O que aconteceu? — ela começou a fechar os olhos lenta-
mente — Não durma, meu amor. Fica comigo. — pediu deses-
perado chacoalhando-a pelos ombros.
Os enfermeiros o afastaram. Isaac tentou resistir, porém, seu
corpo estava fraco como o de um bebê recém-nascido, e ele
agora só conseguia chorar sem parar.
Ao ver sua namorada sendo levada na maca para a ambulân-
cia, o rapaz corre em direção a ela na tentativa de acompanhá-
la até o hospital, contudo, é barrado novamente.
Antes de fecharem as portas, Yasmin usa toda força que lhe
resta para dizer:
— Carpe Diem... — e fecha os olhos.
As portas da ambulância são fechadas.
Dois braços envolvem o garoto por trás dando-lhe um forte
abraço acolhedor e uma voz sussurra ao seu ouvido:
— Vai ficar tudo bem, filho. Vai ficar tudo bem. — diz Mi-
guel Martinelli na tentativa de acalmá-lo.

132
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

No dia sete de janeiro de dois mil e quinze, Yasmin Endler


leva um tiro ao resistir a uma tentativa de estupro enquanto
estava indo para a casa do seu namorado, que ficava há apenas
quatro quadras da sua, para comemorar o aniversário de dezes-
sete anos de idade dele e dois anos de namoro dos dois.
Mesmo depois de atirar, o assassino tentara tirar a suas rou-
pas e leva-la para um terreno baldio ao lado. Entretanto, o ba-
rulho do tiro fizera todos saírem de suas casas para ver o que
havia acontecido, e o monstro fugira correndo da cena do cri-
me.
Testemunhas disseram que o crime fora cometido por um
homem alto e musculoso que usava um casaco preto. Uma se-
mana depois ele fora reconhecido e preso. Isaac Martinelli pre-
feriu não saber quem havia tirado a vida de sua garota, pois não
queria manter um sentimento de vingança.

— Eu... eu sinto muito. — disse Clarice com os olhos mare-


jados de lágrimas.
— Obrigado. — ele enxugou uma lágrima que acabara de
escorrer sobre seu rosto e respirou bem fundo. — Está vendo
estes números? — apontou para o número 71 no local do farol
e nas laterais de sua moto — Escolhi este número para repre-
sentar a data sete de janeiro que, além do meu aniversário, foi
quando falei com Yasmin pela primeira vez, quando nos bei-
jamos e começamos a namorar. Mas também, infelizmente, foi
a data em que ela tivera que partir...
— Ela está ao lado de Deus, agora. — afirmou Clarice dan-
do um abraço em Isaac. — E lembre-se do que ela lhe falou:
Carpe Diem. Ou seja, aproveite o dia. Aproveite o tempo pre-
sente e tudo de bom que a vida lhe oferece e tem a lhe oferecer.
— É verdade. — concordou esfregando as costas das mãos
nos olhos para secar as lágrimas.

133
José Vitor Nunes

A festa ainda estava rolado há quatro casas após a de Clari-


ce. Naquele exato momento a música Always do Bon Jovi co-
meçou a tocar.
— Essa música é linda. — afirmou Isaac.
Clarice concentrou-se para ouvi-la.
— Me concede esta dança? — pediu ele, inclinando-se para
frente e estendendo a mão para ela com um sorriso simpático e
divertido.
— Sim. — sorriu e fez uma reverência. Colocou a pasta so-
bre o banco da moto e pegou a mão do rapaz.
Martinelli colocou as mãos na curva entre a cintura e o qua-
dril dela, e ela estava com as mãos sobre seus ombros. Seus
rostos estavam há um palmo um do outro e eles se olhavam nos
olhos com sorrisos tímidos nos lábios, seguindo o movimento
suave da música.
A luz do poste continuava inconstante, piscando sem parar.
“This Romeo is bleeding/ But you can’t see his blood”²
Temos até um jogo de luz. — brincou o rapaz, se referindo a
luz do poste.
— Minha rua é chique. — disse ela.
Os dois riram.
Olhando-a nos olhos — aqueles olhos um tanto familiares
que ainda o hipnotizavam — e ouvindo a letra daquela música,
Isaac sentia-se dividido entre as lembranças de Yasmin, aquele
amor que ainda insistia em prendê-lo, e o gostar que estava
sentindo por Clarice. Era tão confortável estar com ela e ao
mesmo tempo sentia um turbilhão de sentimentos confusos que
fizera Martinelli perceber que nunca mais havia se sentido tão
vivo desde que Yasmin se fora.
“[...] Tem chovido desde que você me deixou/ Agora estou
me afogando no dilúvio/ Você sabe que sempre fui um lutador/
Mas sem você, eu desisto/ Agora não posso cantar uma canção
de amor/ Como deve ser cantada/ Bem, acho que não sou mais
tão bom/ Mas, querida, sou apenas eu/ E eu te amarei, queri-
da, sempre/ Eu estarei lá até as estrelas deixarem de brilhar/

134
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Até os céus explodirem e as palavras não rimarem/ Sei que


quando eu morrer, você estará no meu pensamento/ E eu te
amarei sempre/ Agora as fotos que você deixou para trás/ São
apenas lembranças de uma vida diferente/ Algumas que nos
fizeram rir/ Algumas que nos fizeram chorar/ Uma que você fez
ter que dizer adeus/ O que não daria para passar meus dedos
por seus cabelos/ Tocar em seus lábios/ Abraça-la apertado
[...]”

Isaac abraçou Clarice e eles ficaram ali, dançando suave-


mente para a esquerda e para a direita sem mover os pés, se-
guindo o som da música assim como um barco segue balan-
çando devido ao movimento das ondas do mar.
“[...] Eu te amarei, querida, sempre/ E estarei ao seu lado
por toda a eternidade, sempre/ Se você me dissesse para cho-
rar por você, eu choraria/ Se você me dissesse para morrer por
você, eu morreria/ Olhe para o meu rosto/ Não há preço que
eu não pagaria/ Para dizer estas palavras a você/ Bem, não há
sorte nesses dados viciados/ Mas, querida, se você me der ape-
nas mais uma chance/ Podemos refazer nossos antigos sonhos
e antigas vidas/ Encontraremos um lugar onde o sol ainda bri-
lha/ Sim, eu te amarei, querida, sempre/ E estarei ao seu lado
por toda a eternidade, sempre/ Eu estarei lá até as estrelas
deixarem de brilhar/ Até os céus explodirem e as palavras não
rimarem/ E sei que quando eu morrer, você estará em meu
pensamento/ E eu te amarei, sempre.”
“E eu te amarei, sempre.”. Aquela última frase ficou eco-
ando na cabeça de Isaac.
A música acabou, mas eles ainda continuaram ali, abraça-
dos. Refletindo por alguns segundos.

----------
² Trecho e tradução da música Always, do Bon Jovi.

135
José Vitor Nunes

Uma pessoa aproximou-se deles aplaudindo. Afastaram-se


para ver quem era, e depararam-se com uma figura esguia ves-
tindo uma calça de pijama e uma camiseta azul da seleção bra-
sileira, calçando chinelos de couro.
— Boa noite. — desejou Lourenço ao chegar.
— Boa noite. — responderam.
— Bela noite para dançar um pouco. — continuou Lourenço
— Estou atrapalhando?
— Não, Não, a música já havia acabado. — explicou Isaac
apoiando-se na moto e entregando a pasta que estava em cima
do banco para Clarice.
— Gostei da música. — confessou Lourenço. — Parece que
a festinha ali está boa.
Martinelli olhava estranho para a calça de Lourenço, per-
guntando-se porque diabos ele estava se vestindo daquela ma-
neira.
— Ah, deixe-me explicar porque estou vestido assim. —
disse o rapaz ao perceber a confusão — Estava eu deitado na
minha cama, pronto para dormir, enquanto ouvia uma música
tocando. Então passaram-se algumas músicas e fui até a janela
para ver de onde vinha aquele som — apontou para a janela de
uma casa que ficava três casas a frente da de Clarice —, e foi aí
que vi vocês e resolvi vir até aqui para dar um “oi”.
— Acredite, não é a primeira vez que isto acontece. — ca-
çoou Clarice — Já estou até acostumada.

Ao longe, uma motocicleta veio rasgando o ar e tirando a


tranquilidade daquela noite e parou ao lado de Martinelli. Sa-
muel desligou o motor, tirou o capacete e disse:
— Cheguei!
— Nós vimos! — zombou Isaac.
Sam fez uma cara de desaprovação como se dissesse: “En-
graçadinho.”

136
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Acho que já está na hora de irmos. — afirmou Greco —


Bernardo foi com Fernanda, Mirelly com Thiago, e eu acabei
de deixar Estella.
— Certo, então vamos.
— Samuel, antes de irem, tenho duas perguntas para você.
— disse Clarice.
— Sou todo seu... digo, meus ouvidos são.
Isaac fez a mesma cara de desaprovação como se dissesse:
“Engraçadinho.”
— A primeira é: — continuou ela, ignorando o trocadilho
— Quantos anos você está completando mesmo?
— Hoje? Nenhum. — respondeu.
— Como assim? — questionou a garota, surpresa — Mas o
Isaac me falou que iríamos sair hoje para comemorar o seu
aniversário.
— Sim, isso é verdade. — concordou Sam.
— Você acabou de me dizer que hoje não é seu aniversário.
— protestou ela, cruzando os braços.
— Não, não é. — concordou novamente.
— E por que fomos comemorar hoje?
Martinelli deixou escapar algumas risadinhas, achando
aquela confusão de Clarice um tanto engraçada.
— Nunca se sabe o dia de amanhã. — brincou Greco.
— E quando é o seu aniversário mesmo?
— Apenas em novembro. A comemoração aconteceu hoje,
mas apenas em novembro completarei meus vinte anos. —
explicou.
— Acho que entendi. — concluiu, ainda confusa.
— E qual é a outra pergunta?
— Este número, zero-zero, em sua moto tem algum signifi-
cado? —apontou.
Ele analisa os números e responde:

137
José Vitor Nunes

— Na verdade não. O escolhi porque foi o único número le-


gal que encontrei que nenhum competidor de Bela Vila usava.
— deu um sorriso torto.
— Legal. — Clarice olhou para Isaac, que deu de ombros.
— Respondida as perguntas... vamos lá, primão? — pergun-
tou ligando sua moto.
— Vamos. — colocou o capacete e, em seguida, deu partida
no motor. — Tchau pessoal! — sua voz saiu abafada pelo ca-
pacete e pelo barulho dos dois motores ligados. — Até mais!
Lourenço e Clarice acenaram com a mão.
Os dois partiram disputando a dianteira, fazendo com que o
barulho das motocicletas acordasse todos que estivessem dor-
mindo por onde eles passassem.

Chegando em sua casa, Isaac mandou uma mensagem de


texto para avisar que chegara bem.
Isaac Martinelli: Em casa...
Clarice Ferrier: Nossa, que rápido!
Isaac Martinelli: Nem eu, nem Sam queríamos ficar para
trás, por isso chegamos rápido. Kkkkk
Clarice Ferrier: Percebi isso. Kkkk
Clarice Ferrier: Cuidado com isso, garoto.
Isaac Martinelli: Pode deixar. ;-)
Clarice Ferrier: Foi legal sair com vocês. Quando será a
próxima? :-)
Isaac Martinelli: Bom você ter perguntado. Estou planejan-
do chamar a galera para sair próximo final de semana para
um show de rock, e você está sendo a primeira convidada.
Clarice Ferrier: Nunca fui a um show de rock antes.
Isaac Martinelli: Para tudo tem uma primeira vez.
Clarice Ferrier: Sei não... é estranho kkkk
Isaac Martinelli: Estranho? Como assim, “estranho”?
Clarice Ferrier: Apenas “estranho” para mim. Kkkk

138
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac Martinelli: Vamos fazer um trato, você vai com a gen-


te, se não gostar, te levo de volta para sua casa e fica tudo
certo.
Clarice Ferrier: Hum... melhor deixar para quando vocês
forem sair para outro lugar.
Isaac Martinelli: Poxa, vai ser uma pena uma pessoa a me-
nos naquele show beneficente. :-(
Clarice Ferrier: Que show beneficente?
Isaac Martinelli: Este que estou te convidando para ir.
Clarice Ferrier: Será beneficente?
Isaac Martinelli: Sim, isso mesmo.
Clarice Ferrier: Boa jogada, mestre Martinelli.
Clarice Ferrier: Ok, aceitarei seu trato. Vou com vocês, ca-
so não goste, você irá me deixar quando eu pedir.
Isaac Martinelli: Fechado!
Clarice Ferrier: Fechado.

— PARADO, GARANHÃO!! — exclamou Samuel entran-


do como um raio esbarrando na porta do quarto de Isaac com o
ombro e segurando o celular apontando para ele como se fosse
uma arma. Martinelli dera um salto, assustado, deixando o seu
celular cair sobre a cama.
— FILHO DA P!!... — interrompeu-se antes de terminar. —
Não faça mais isso!
— Foi mal, não consegui resistir. — confessou em meio as
suas próprias gargalhadas — Você precisava ver sua cara, foi
hilário!
— há-há-há, engraçadinho. O que você quer desta vez?
— Então, deu certo o lance com Clarice? — perguntou jo-
gando-se sobre a cama de Martinelli.
— Sim, a deixei em sua residência com segurança.
— Você sabe ao que me refiro.
— Não, sei não. — disse Isaac.
— Sim, sabe sim. — protestou.

139
José Vitor Nunes

— Não sei não. — insistiu.


— Pegou a gata?
— Não, fui apenas deixa-la em casa.
— Fui apenas deixar Estella, e mesmo assim... — interrom-
peu-se e deu uma piscadela.
— Como é?! — indagou, surpreso — Você e Estrela... Co-
mo assim?!
— Ela está solteira... eu também... rolou um clima...
— Você não perde tempo mesmo, hem? — riu — Já falou
com ela depois que chegou?
— Ainda não.
— Acho melhor vocês conversarem, talvez ela esteja lhe es-
perando dizer alguma coisa.
— Tem razão, vou mandar uma mensagem para ela enquan-
to solto um barro.
Isaac o olhou com uma cara como se dissesse: “Você não
tem jeito mesmo.”
— O que foi? Até parece que você também não faz isso. —
Samuel levantou-se e caminhou em direção à porta, mas antes
de sair, virou-se para seu primo e comentou: — Cara, eu estava
observando Clarice lá na lanchonete. Ela me lembra muito
Yasmin. Principalmente quando vai explicar alguma coisa. —
riu.
— Também notei isso. — balbuciou.
Os dois trocaram olhares sem falarem nada.
— Ok, vou conversar com “minha gata” no meu “troninho”.
— disse Greco por fim e saiu do quarto.

Isaac deitou-se e permaneceu ali, pensativo, lembrando-se


da letra da música que dançara com Clarice naquela noite.
“Mas, querida, se você me der apenas mais uma chance/
Podemos refazer nossos antigos sonhos e antigas vidas”
Apenas mais uma chance, pensou, Podemos refazer nossos
antigos sonhos e antigas vidas.

140
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Aquele trecho fez ele se lembrar de todos os planos para o


futuro que fizera com Yasmin durante aqueles dois anos de
namoro. Todos aqueles sonhos que nunca iriam realizar.
Ficou deitado por vários minutos pensando naquilo, obser-
vando as estrelas pela janela do seu quarto, tentando formar
desenhos e criar constelações ligando-as mentalmente.
Agora olhando para a lua, o texto que escrevera para Yas-
min começou a ressoar em sua mente. Logo em seguida, lem-
brou-se da conversa que tivera com Estella sobre Astrologia e a
comparação do seu Mapa Astral com o de Clarice.
“A lua de vocês tem ótimos aspectos, sua lua em sagitário e
a dela em aquário, ambos se complementam pelo elemento ar
mais fogo”, dizia Estella. “Caprica, vocês têm um Mapa per-
feito! Coisa rara de ser ver. Ouça-me bem, os signos solares
de vocês são complementares, capricórnio mais câncer, um
complementa o outro... [...] Aproveitem, não é sempre que um
casal se encontra e tem tantos aspectos assim, positivos pra os
dois. A compatibilidade é alta.”

Isaac não levava o lance da Astrologia cem por cento a sé-


rio, entretanto, Estella parecia estar correta ao afirmar sobre a
compatibilidade positiva entre eles, pois os dois realmente es-
tavam se davam muito bem.
Quando estava com ela mais cedo, após a música ter acaba-
do, uma vontade de beija-la veio à tona, porém, antes que pu-
desse fazer isso, Loureço chegara, o fazendo pensar duas vezes
e mudar de ideia.
Martinelli percebera que há muito tempo não havia sentido
vontade beijar outra garota que não fosse Yasmin, e ele certa-
mente deveria refletir um pouco mais sobre isso.
Algo nessa garota o fazia pensar diferente. Algo nela o atra-
ía como um planeta é atraído por uma estrela. Naturalmente.
“Aproveitem, não é sempre que um casal se encontra e tem
tantos aspectos assim, positivos pra os dois. A compatibilidade
é alta.”, lembrou-se, imaginando que talvez fosse o que ele

141
José Vitor Nunes

deveria fazer: aproveitar a rara oportunidade. Pois tudo parecia


estar conspirando ao seu favor, exceto pelo fato de sentir-se
preso ao passado e na obrigação de manter-se fiel àquele amor
antigo. Por mais que ele soubesse que deveria se libertar das
lembranças e seguir em frente, não conseguia fazer aquilo.

142
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 17

C
larice deitou-se na cama com os cotovelos afundados
no colchão e a pasta catálogo entre eles. Antes de
abrir, leu o que estava escrito na capa: Um pouco dos
meus sentimentos e pensamentos que consegui expressar
em palavras. De: Isaac Martinelli/ Para: Yasmin Endler
Abriu e começou a ler o primeiro texto que ele havia escrito.
Meus Pensamentos. Logo abaixo estava a data que fora escrito,
para quem fora entregue, e no canto superior esquerdo do rosto
do papel havia a assinatura do rapaz.
Clarice continuou lendo os vários outros textos, seguindo a
ordem em que eles foram escritos até chegar ao último. Aquele
Encontro.
Ao ler aquele último texto, sentiu que havia algo em comum
com o dia que falara com Isaac enquanto esperava Júlia. Po-
rém, como na própria capa da pasta estava descrita, eles tinham
sido escritos para Yasmin.
Leu, releu, analisou, e mesmo assim continuava sentindo
que seria uma grande coincidência alguns detalhes descritos
naquele último texto.
Ficou alguns minutos sentada na cama, tentando imaginar
porque Isaac escreveria para ela e colocaria naquela pasta. Esta
possibilidade parecia estar fora de cogitação, pois não havia o
porquê de ele fazer aquilo.
Pensou em telefonar para Isaac e perguntar se ele escrevera
pensando nela, porém, esta seria uma péssima ideia.
— O que ele iria pensar? Que estou louca por fazer tal per-
gunta ou caidinha por ele.
Precisava pensar em outra maneira de descobrir. Algo que
fosse menos constrangedor.
De repente, uma luz veio à sua mente em um estalo.
— A data! Como não pensei nisso antes?

143
José Vitor Nunes

Pegou novamente a pasta e observou a data daquele último


texto: 22/04/2017. Aquilo parecia confirmar sua tese, mas não
conseguia acreditar de fato que o texto fora escrito para ela.
Uma onda de insegurança, ansiedade e felicidade invadiu o
seu corpo. Uma mistura de emoções que Clarice não conseguia
decifrar se era algo bom ou ruim.
A garota começou a folhear todos os textos, observando a
data em que cada um havia sido escrito.
O primeiro fora escrito no dia 07/01/2013, e os seguintes
seguiam uma ordem cronológica. Chegando ao penúltimo, Vo-
cê é a Lua, observou a data logo abaixo: 01/01/2015. Mais de
dois anos antes do último texto escrito.

Será qual o significado desse texto? Será se ele está gostan-


do de mim? Será se foi algo planejado? Escrever isto, deixar
junto com os outros e entregar para que eu pudesse ler?, pen-
sava ela. Talvez ele apenas escreva sobre tudo e escreveu so-
bre aquele dia. Talvez também tenha escrito sobre outros dias
e outras coisas. Mas se ele escrevesse tanto assim, não teria
demorado mais de dois anos para voltar a produzir algo. Tal-
vez ele tenha selecionado os que mais gosta para que eu pu-
desse ler apenas os melhores.
Talvez... Talvez... Talvez... A cabeça dela estava cheia de
perguntas e nenhuma resposta. Quanto mais pensava, mais con-
fusa ficava. Seus pensamentos iam e voltavam, mas nenhuma
resposta de fato se concretizava.
Na certa, a melhor maneira de ter total certeza e tirar todos
esses “talvez” seria perguntando para Isaac Martinelli, e isso
era o que Clarice Ferrier começava a pensar em fazer.

144
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 18

O
final de semana finalmente havia chegado e a pri-
meira banda já subia ao pequeno palco do Rock
Club para começar o show beneficente naquela noi-
te.
Rock Club é um pequeno clube ao sul da Ilha do Rio Iolete.
Possui capacidade para mil pessoas em um espaço bem acon-
chegante com estrutura simples de apenas uma área retangular,
contendo um bar logo na entrada e um palco com cerca de um
metro de altura ao fundo, coberto por telhas cinza de cimento e
um globo de luz ao centro.
Isaac vestia uma camiseta preta do Nirvana, calças jeans
preta, um bracelete de couro e uma bota marrom da West Co-
ast. Clarice usava um suéter preto, calças jeans branca e um All
Star preto.
Dos AmendoWins, apenas Samuel, Isaac e Estella puderam
ir ao evento, pois Thiago marcara de ir ao cinema com Mirelly
naquela mesma noite e Bernardo tinha toda uma tropa para
comandar online. Entretanto, além dos quatro estava Patrick, o
primo de Estella, reunido com os demais na frente do palco
esperando a banda iniciar.
Martinelli começara a se lembrar do primeiro show de rock
que havia ido com Yasmin. Eles tiveram que viajar 370 quilô-
metros de Bela Vila até à Capital para assistirem a Embrião
Humano, uma banda de hard rock muito conhecida no estado,
arrebentar no palco.
Yasmin era uma grande fã e não poderia ir sem estar vestin-
do sua blusa com o nome da banda estampado na frente e le-
vando o CD na esperança de conseguir alguns autógrafos.
Durante todo o show os dois se mantinham elétricos, gritan-
do, cantando, pulando, batendo cabeça e fazendo tudo o que
tinham direito. Yasmin arrastara Isaac até à frente do palco e

145
José Vitor Nunes

pedira para que ele a colocasse sobre seus ombros, com a in-
tenção de erguer o CD junto com um pincel para que algum
dos integrantes da banda o autografasse. O garoto fizera o que
ela pedira, colocando-a sobre seus ombros e tirando em cerca
de cinco em cinco minutos para descansar.
Apesar de todo o esforço, nenhum dos integrantes pareceu
notar que havia uma jovem sobre os ombros de um rapaz, er-
guendo um CD e um pincel no meio da multidão. Yasmin fica-
ra um pouco triste por não conseguir nenhum autógrafo, po-
rém, se divertira bastante, não deixando se abalar devido a isso
e não se cansava de repetir que aquele havia sido o melhor
show de sua vida, contando cada detalhe para seus amigos e
para seus pais quando voltara a Bela Vila.
Mesmo Martinelli tendo ficado com dores nas costas e nos
ombros por ter que colocar Yasmin algumas vezes sobre eles e
por também ter ficado com o pescoço doendo de tanto “bater
cabeça”, aquele também havia sido o melhor show de sua vida.
Dois anos depois ele guardara o CD e a blusa de Yasmin em
recordação àquela noite inesquecível.
A primeira banda da noite já estava em cima do palco, pron-
tos para dar inicio àquela noite.
— Quem está a fim de pular muito??!! — perguntou o voca-
lista.
A galera toda, cerca de 300 pessoas, gritou.
Isaac olhou para Clarice e apontou para ela com um sorriso
como se dissesse: “ela está”
O baterista iniciou o compasso batendo uma baqueta na ou-
tra. “tic, tic, tic, tic”. E as guitarras entraram em seguida junto
com o contrabaixo e um grito rasgado do vocalista completou a
agitação.
— Bora endoidar, caralhoooo!! — exclamou Estella pulan-
do na frente dos dois.
Martinelli entrou na animação, colocando o braço esquerdo
sobre o ombro de Estella, o direito sobre o de Clarice e come-
çou a pular, praticamente forçando a moça a pular junto com

146
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

ele. E foi o que ela fez, passando seu braço esquerdo pelas cos-
tas do rapaz, segurando no ombro esquerdo dele e passado o
outro braço da mesma forma em Samuel, que estava ao seu
lado. Naquele momento todo o grupinho de amigos já estava
pulando juntos.
A noite seguiu assim, entrando banda, saindo banda e toda
galera continuava animada, pulando, sorrindo e se divertindo
bastante com tudo aquilo. Entretanto, Clarice não conseguiu
manter o pique e acabou parando, sendo obrigada a diminuir o
ritmo para manter o fôlego.
— Agora essa vai para todos os casais apaixonados. — fa-
lou o vocalista da última banda que estava se apresentando
naquela noite. — E ela se chama: Always.
Samuel deu uma piscadela para Estella e foi ao seu encontro
puxando-a para dançar.
Martinelli olhou para Clarice com um sorriso e disse:
— Me concede esta dança outra vez? — pediu outra vez in-
clinando-se para frente e estendendo a mão para ela da mesma
forma que fizera na primeira vez.
— Sim. — ela sorriu e fez novamente a mesma reverência.
Patrick ficou entre os dois casais. Olhou para um, depois pa-
ra o outro e ergueu as sobrancelhas e os ombros como se dis-
sesse: “sobrei...”. E saiu à procura de alguém.
Os quatro riram.
— Você se parece com o Patrick. Ou melhor, ele te “lem-
bra” um pouco. — afirmou Clarice enquanto dançavam.
— Você acha? Não acho nada parecido. — riu descontraído.
— Sei lá, algo em vocês parece ser familiar. Porém, não
consigo identificar o que seja.
— Não estou entendendo mais nada.
— Parece ser algo na essência. Quando te vi pela primeira
vez achei você familiar, e com o tempo imaginei que talvez
fosse porque você me lembra o Patrick.
— Você já o conhecia?
— Sim, ele é monitor de Anatomia Aplicada à Enfermagem.

147
José Vitor Nunes

— Legal.
— Não sei explicar. Algo familiar em vocês me chama a
atenção, mas não sei o que e nem por que. — confessou.
De repente Isaac começou a se lembrar de quando Estella
apresentou Patrick para ele e para Sam. Vocês conhecem o Pa-
trick? Ele é meu primo, cursa enfermagem e é Caprica que
nem você, Caprica Roqueiro, dissera ela. E lembrou-se tam-
bém da vez em que ela dissera sobre signos complementares:
Capricórnio é o signo complementar de câncer, e isso já faz
com que vocês se sintam um atraído pelo outro, e que vocês se
darão muito bem.
— Acho eu que é devido aos nossos signos. — afirmou ele.
— Como? Signos? — perguntou confusa.
— Isso mesmo. Signos. Segundo a Astrologia, capricórnio e
câncer são signos complementares, e isto gera, de certa forma,
uma atração. A Estrela me falou. — explicou.
— Bem interessante, mas, a meu ver, não sei se é algo que
explica a semelhança entre vocês.
— Pode ser uma explicação. Vai de cada um escolher acre-
ditar ou não. — concluiu o rapaz.
— Você acredita?
Ele lembrou-se de quando Estella dissera que, segundo o
Mapa Astral deles, os dois possuem ótimos aspectos favoráveis
para um relacionamento.
— Às vezes sim. — confessou. Ou talvez seja apenas uma
forma de me convencer sobre algumas coisas, pensou.

Continuaram dançando suavemente.


“Mas, querida, se você me der apenas mais uma chance/
Podemos refazer nossos antigos sonhos e antigas vidas.”, dizia
a letra da música.
Refletindo sobre ela, Isaac percebe que esta nova fase da
sua vida pode ser um novo começo, e agora com Clarice. Uma
nova oportunidade de fazer o que não havia sido feito talvez

148
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

estivesse surgindo, e que ele deveria apenas se libertar do pas-


sado e seguir em frente um novo futuro.
Será se estou usando Clarice como uma forma de alimentar
meus sentimentos e tentar seguir em frente meus planos com
Yasmin? Vivendo uma ilusão de memórias e sonhos mortos?,
pensou.
O rapaz não sabia ao certo o que fazer, pois não conseguia
distinguir se sua vontade de estar com Clarice era uma tentativa
de começo ou de um recomeço; se estaria começando algo no-
vo com a nova garota ou se estava apenas tentando recomeçar
para viver o que não havia sido vivido com Yasmin.

— Li todos os seus textos. — afirmou Clarice, afastando-se


após a música ter acabado e quebrando os pensamentos do jo-
vem.
Ele demorou alguns segundos para processar e entender a
que ela se referia.
— Ótimo. Você gostou? — quis saber.
— Adorei todos. — disse com um sorriso sincero. — Você
costuma escrever com frequência? — interrogou na tentativa
de descobrir se aquele último texto havia sido escrito para ela.
— Para falar a verdade, não. Apenas quando estou inspira-
do, e para isso preciso de algo que me dê inspiração, claro. —
explicou com um tom brincalhão.
— Tipo o quê?
— Geralmente as pessoas, juntamente com algum aconteci-
mento que considero importante... Alguns lugares... Algo que
me fez bem e me faz sentir bem ao lembrar e que não sai do
meu pensamento. É geralmente isso.
— Estou entendendo. — disse ela quase com cem por cento
de certeza que aquele último texto havia sido de fato escrito
para ela. — Existem outros que você escreveu e não colocou na
pasta? Sério, porque se tiver, quero muito ler!
— Infelizmente, não. Apenas os que você leu. — respondeu.
— Fico muito feliz por ter gostado.

149
José Vitor Nunes

— Agora uma autoral. — falou o vocalista passando a cor-


reia do violão sobre o ombro

Uma hora depois, o show já havia acabado e Isaac estava em


frente à casa de Clarice esperando ela voltar com a pasta catá-
logo que continha todos os seus textos.
— E aqui está. — disse a garota entregando-lhe. — Obriga-
da por compartilha-los comigo. Eu adorei.
— Foi um prazer. — falou sentado na moto e colocando a
pasta por baixo da camisa. — Sobre o show... você gostou?
— Foi divertido, mas me deixou exausta. — passou o pulso
na testa insinuando estar secando o suor.
— Também estou muito exausto. É uma verdadeira ginásti-
ca. — disse — O pior virá nos dias seguintes: dores nas costas,
pernas, pescoços...
Os dois riram
— É verdade, já estou começando a sentir meu corpo dolo-
rido agora, quanto mais amanhã.
— Agora é hora de eu ir para casa relaxar um pouco deitado
na minha cama. — girou a chave na ignição, mas antes de dar a
partida, Clarice perguntou:
— O texto Aquele Encontro foi escrito para mim?! — sua
voz saiu mais nervosa do que esperava. — Me desculpe ter
perguntado isso, mas... nossa, estou morrendo de vergonha... É
como se você descrevesse a aquela vez que conversamos. Eu
liguei todos os pontos e percebi que a data coincide e você dis-
se que não escreve com frequência, só quando algo lhe inspira,
não sai dos seus pensamentos e sobre algum acontecimento
importante.
Isaac olhava para ela um pouco surpreso.
— Me desculpe novamente, mas eu não consigo entender o
porquê.
— Eu também queria entender o porquê. — balbuciou.
— Eu não deveria ter te perguntado. — lamentou.

150
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Tudo bem. E a resposta da sua pergunta é “sim”. Foi para


você e foi sobre aquele dia. — afirmou timidamente.
— Certo. Obrigada por me tirar essa dúvida. — agradeceu,
envergonhada. Mesmo ainda curiosa, quis encerrar o assunto.
Isaac assentiu com a cabeça.
— Vou indo nessa. Meus pés estão me matando.
Colocou o capacete e deu partida.
— Tchau. — a voz saiu quase inaudível.
Ela acenou em despedida.

No caminho, Martinelli refletiu sobre aquele texto e conclu-


iu que o motivo de toda aquela inspiração era simples e tinha
nome: Clarice Ferrier. E apenas essa.
Seu altruísmo, seu jeito simples e divertido de viver, sua
simpatia, seu sorriso... o encantavam cada dia mais, e, lá no
fundo, Isaac sentia uma sensação de que algo muito bom estar
por vir.

151
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 19

P
rimão, você ainda tem aquele vídeo que pro-
— duzimos com os nossos melhores momentos?
— perguntou Samuel para Isaac, referindo-se
a um vídeo com vários recortes de manobras
e saltos que mostrava a rotina de treino dos rapazes até chega-
rem ao pódio do Desafio Regional de Motocross de 2015. —
Quero mostra-lo para o Eric. — apontou para o jovem esguio
de cabelos espetados ao seu lado. Ele vestia uma camiseta re-
gata azul e uma bermuda preta.
— Tenho sim. — Isaac já assistira àquele vídeo incontáveis
vezes, pois quando começaram a gravar, Yasmin ainda estava
entre eles e participava dos treinos. Ela também queria docu-
mentar a vitória, caso conseguisse ficar entre os três primeiros.
— E também está disponível no YouTube. — dirigiu-se até o
computador de mesa e digitou: “Campeão do Desafio Regional
de Motocross 2015 em Bela Vila (jornada)” e clicou no pri-
meiro resultado que indicava ter oito minutos. Os dois rapazes
o acompanharam e ficaram um de cada lado de Martinelli, es-
perando o vídeo iniciar.
— Quando foi que você o publicou no YouTube? — inda-
gou Samuel.
— Assim que ficou pronto.
— E você não me disse nada por quê?
Martinelli deu de ombros.
O vídeo iniciava com um close em Isaac, Yasmin e Samuel
lado a lado segurando seus capacetes em baixo do braço es-
querdo e com expressões sérias. Logo em seguida a câmera
focava em Isaac da cintura para cima. Ele vestia sua roupa ver-
de com branco personalizada. Depois a câmera fechava em
Yasmin, que vestia rosa com branco e posteriormente o foco
era dirigido para Sam, que estava de Vermelho e branco.

152
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

A próxima cena era de Martinelli reduzindo a velocidade,


entrando numa curva à direita jogando terra e acelerando fundo
em direção a um morro de 2 metros de altura em média para
um salto. Ao saltar, desprende seu corpo da moto, ficando ere-
to, flutuando, colocando o peito dos pés na parte debaixo do
guidão por quase dois segundo e voltando rapidamente para a
posição inicial num pouso suave, tornando acelerar para o pró-
ximo salto.
A vez agora é de Yasmin, que entra perfeitamente numa
curva, acelera bruscamente e salta, jogando suas pernas para
trás e soltando os braços do guidão e posteriormente deixando
o braço esquerdo rente ao corpo e, com o outro, segura o punho
do acelerador, ficando com o corpo horizontal à motocicleta.
Seguindo o mesmo ritual, Greco parte vorazmente em dire-
ção a um morro, saltando e jogando as duas pernas para o lado
esquerdo da moto e simulando estar correndo sobre uma parede
vertical. Pousa e segue com ambição.
A próxima etapa do vídeo mostrava que nem sempre as coi-
sas davam certo, exibindo derrapadas, quedas, curvas malfeitas
chegando a passar batido por elas. Porém, os jovens riam e
zombeteavam entre si. Isaac aproximando-se da câmera apon-
tando para o cotovelo esquerdo ralado cerrando os dentes com
o semblante de bravura, com se estivesse dizendo: “Isto não
vai me para!”.
O progresso continuava e a cada cena notava-se a melhora
do desempenho de cada um. Eles arriscavam manobras mais
complicadas, curvas mais velozes e saltos mais altos. Entretan-
to, Yasmin aparecia apenas nos três primeiros minutos do ví-
deo.
— Quem é essa garota? — quis saber Eric.
— Yasmin Endler. — respondeu Samuel.
— Ela é muito boa. Qual foi sua colocação?
Isaac e Greco trocaram olhares.
— Ela não participou do torneio. — disse Martinelli.
— Por que não? — inquiriu o rapaz.

153
José Vitor Nunes

Isaac respirou fundo tentando encontrar palavras suaves pa-


ra responder àquela pergunta.
— Acabou falecendo no início de dois mil e quinze.
— Pô, cara, sinto muito. — lamentou ele, atônito.
— Tudo bem. — falou Martinelli calmamente. — Ela tinha
tudo para ser a campeã.
— Tinha sim.
Duas pessoas entraram na loja olhando para os lados procu-
rando alguma coisa em específico.
— Bernardo? Estella? — disse Isaac indo em direção a eles,
surpreso.
— Oi, Caprica Roqueiro. — respondeu Lewis.
— Não esperava que vocês aparecessem assim. — confes-
sou — Posso ajudar em algo?
— Sim. Eu procuro cordas para guitarra. — disse Estella.
— E eu um bom contrabaixo. — diz Bernardo.
— Espera aí, você sabe tocar contrabaixo ou pretende
aprender? — interrogou Martinelli.
— Sei. Pretendo elevar um pouco mais meu nível de apren-
dizado com um contrabaixo um pouco mais profissional.
— E eu procuro cordas para guitarra. — repetiu Estella.
— Me desculpe, Estrela. Também não sabia que você toca-
va.
— Sei “arranhar” um pouquinho. Toco só por passatempo.
Gosto mesmo é de ouvir quem realmente sabe tocar.
— Entendo. — virou-se para Bernardo — Então quer dizer
que você sabe mesmo tocar? Tenho algo a lhe propor.
Lewis bufou e foi procurar suas cordas sozinha.
— Sam! Venha aqui! — gritou Isaac.
Samuel deixou seu amigo assistindo ao vídeo e aproximou-
se do seu primo.
— O Bernardo sabe tocar contrabaixo. — continuou — Vo-
cê teve a mesma ideia que eu?
O rapaz abriu um largo sorriso.
— Sim!

154
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Vamos falar juntos no três. Um... dois... três... Vamos co-


loca-lo na banda!
— Vamos vender o contrabaixo mais caro! — exclamou
Samuel ao mesmo tempo.
Martinelli fez um olhar de desaprovação.
— Ah, e também podemos coloca-lo na banda! — disse rin-
do. — E não seja ridículo, cara. — caçoou seu primo.
— O que você acha, Bernardo?
— De qual banda vocês estão falando? — indagou, confuso.
— Da que estamos montando.
— Quais são os integrantes?
— Eu: vocal e guitarra solo. Sam: bateria. Você no contra-
baixo e Thiago na guitarra base. — explicou
— Gostei da ideia. Eu topo. — disse por fim.
— Isso! — exclamou Greco puxando o celular do bolso —
Agora só falta convidar o Thiago para a banda.
— Espera aí. Vocês já contavam com o Thiago sem que ao
menos ele soubesse da ideia de formar uma banda? — Bernar-
do inquiriu.
— Calma, rapazinho. Eu sei o que estou fazendo. — digitou
os números e telefonou para Lazzo. — E a magia começa ago-
ra...
Esperou alguns segundos até seu amigo atender no terceiro
toque.
— Fala, Greco! — disse Thiago ao atender — Como você
está?
— Eu estou bem, e você?
— Maravilha! — afirmou com entusiasmo — Melhor im-
possível.
— E qual é o motivo de tanta felicidade assim, meu camara-
da? — perguntou Sam como se já soubesse qual era.
— Eu e Müller voltamos.
— Sério? Você e Mirelly voltaram mesmo?! — disse bem
alto para que os seus amigos ouvissem.
— Que história é essa?! — exclamou Estella surgindo em
meio às prateleiras correndo em direção a os rapazes. — Eu

155
José Vitor Nunes

ouvi isso direito? — grudou o ouvido no aparelho que estava


na orelha de Samuel, na intenção de ouvir a conversa.
— Que ótimo, estou muito feliz por vocês... — continuou
Sam — Sei... Estou entendendo... Isso é bom... Certo... Que dê
tudo certo entre vocês... — revirou os olhos já ficando entedia-
do — Thiago, tenho uma proposta para você. É o seguinte:
estamos montando uma banda. Isaac no vocal e guitarra solo,
eu na bateria, Bernardo no contrabaixo e, se você estiver a fim,
se encaixará perfeitamente na guitarra base. O que acha?
— Eu topo. — disse do outro lado da linha sem delongas.
— Quando vai ser o primeiro ensaio?
— Vamos criar um grupo no Whatsapp para, primeiramente,
escolher o repertório. Feito isso, marcaremos o primeiro en-
saio.
— Ok. Então fechou.
— Até lá, parceiro de banda.
— Até. — desligou.
Sam virou-se para os amigos com um sorriso de canto.
— Eu disse que conhecia aqueles dois e sabia que meu pla-
no do aniversário adiantado daria certo. — gabou-se — Deu
certo até para mim. — mandou uma piscadela para Estella que
estava ao seu lado.
— Encontrei as cordas para minha guitarra. — disse Lewis
estendendo rapidamente um caixinha com as cordas na inten-
ção de tirar o foco dos amigos.
Eles riram.

156
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 20

B
olsas de intercâmbio. Leu Clarice ao abrir sua cai-
xa de e-mails. Prezado aluno, informamos que a
data para a divulgação dos resultados das bolsas
de intercâmbio está prevista para o dia 15 de julho e será pos-
sível conferi-los no nosso site (segue o link).
Após ler a mensagem, a garota coloca o celular de lado e
passa as mãos nos cabelos negros, os deixando escorrer por
entre os dedos. A espera por esses resultados estão me matan-
do, pensou. Em seguida, levantou-se da cama e foi se aprontar
para ir à missa naquele domingo de manhã.

De características góticas e com um leve tom de amarelo, a


igreja de Ilha do Rio Iolete foi fundada em 1900 e possui for-
mato de cruz. As portas de entrada ficam entre duas torres que
ostentam lindas janelas em arcos ogivais agudos apontados
para o alto. No interior da sua estrutura é perceptível o caminho
vertical suave das nervuras até se encontrarem no ponto mais
alto, formando a chave da abóbada. Todas as suas fachadas são
decoradas por enormes vitrais compostos por diversos pedaços
de vidros coloridos, formando desenhos com representações de
passagens bíblicas.
Ao lado do altar havia um grupo de vinte pessoas das mais
diversas idades formando um coral. Elas vestiam batas brancas
adornadas com um “V” vermelho que ia dos ombros até o um-
bigo, e o lado das costas seguia o mesmo formato. Dez delas
estavam de pé alinhadas lado a lado e as outras dez da mesma
forma, porém, um degrau atrás e acima.
Clarice era a primeira do degrau de cima contando da es-
querda para a direita. Isaac já avistara assim que se sentou no
banco de madeira que ficava na fila da direita. Deu uma confe-
rida no colarinho da camisa e colocou uma mecha de cabelo
atrás da orelha.

157
José Vitor Nunes

Por também ser de família católica e frequentar a missa to-


dos os domingos pela manhã com os seus pais, Martinelli havia
decorado todo o roteiro passo a passo, desde os Ritos Iniciais
até os Ritos Finais.

O som dos sinos ecoou pelo ar, indicando aos fiéis presentes
para que interrompessem suas orações particulares e se unis-
sem a Oração Oficial e Comum da Igreja. Em seguida, todos
ficaram de pé para o Canto de Entrada iniciado pelo coral de
Clarice. As pessoas cantavam e acompanhavam com os olhos a
tranquila caminhada do padre que liderava vários Coroinhas até
o altar. Entretanto, os olhos de Martinelli se mantinham foca-
dos na garota de cabelos negros que cantava à sua frente.
O sacerdote iniciou a Antífona de Entrada lendo um versícu-
lo bíblico e, posteriormente, saudou todos de pé. Após a sauda-
ção, os presentes disseram: “Bendito seja Deus que nos reuniu
no amor de Cristo”.
Por volta de uma hora e meia de muita leitura, cantos e ora-
ções, o padre despede-se dos fiéis dizendo: “ide em paz e que o
Senhor vos acompanhe”. E eles respondem: “Graças a Deus”.
Isaac aproximou-se de Ferrier, que conversava com uma
elegante mulher esbelta que vestia um longo vestido de cor
salmão e aparentava ter cerca de trinta e cinco ou quarenta anos
bem conservados. A garota percebeu sua chegada antes mesmo
de ele estar numa distância adequada para dizer algo, e lhe re-
cebeu com um sorriso simpático.
— Olá, Isaac. — disse ela
— Oi. — respondeu, sorridente.
— Mãe, este é Isaac, o garoto que me levou àquele show
beneficente. — afirmou a moça virando-se para a mulher ao
seu lado.
— Prazer em conhecê-lo, Isaac. Sou Rosy Ferrier. — ela es-
tendeu a mão e o rapaz a cumprimentou.
— Muito prazer. Isaac Martinelli.

158
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Você também estuda na Coronel Eduardo Paulo?


— Sim, curso o primeiro período de Administração.
— Muito bom. — deu uma pausa e acompanhou o padre
com os olhos que passava por detrás do jovem — Me desculpe,
mas se me dão licença, preciso falar com o padre sobre alguns
assuntos da paróquia. — abriu um sorriso encantador como o
de sua filha em um gesto educado.
— Tudo bem, senhora Ferrier. — retribuiu o sorriso — Não
se preocupe.
Rosy fez um leve movimento com a cabeça e afastou-se ca-
minhando em direção ao padre a passos largos.
— Minha mãe é uma figura.
— É uma mulher muito elegante. Agora eu sei de quem vo-
cê herdou esse lindo sorriso e todo esse garbo.
— Obrigada. — Clarice sentiu seu rosto corar. — Não sabia
que você frequentava esta igreja. Veio sozinho?
— Sim, quando acordei as seis, Sam estava indo dormir. Ele
passou toda a madrugada desenhando algumas plantas de um
apartamento. — explicou — E na verdade esta foi a primeira
vez que fui a uma missa em Ilha do Rio. Em Bela Vila sempre
ia às manhãs de domingo com os meus pais. Já fazia algum
tempo que eu não frequentava.
— Muito bem. É sempre bom ouvir a palavra de Deus.
— É sim. — concordou — E eu não sabia que você cantava
tão bem. — disse se referindo ao momento em que Clarice des-
ceu de onde estava e dirigiu-se a uma bancada de madeira para
cantar sozinha, com o coral servindo-lhe apenas como voz de
apoio.
— Canto desde os cinco anos e faço parte do coral desde os
doze. Tudo que sei sobre música aprendi com minha mãe, ela é
professora de canto do nosso coral da igreja.
— Jura?! Meu pai também me ensinou algumas coisas sobre
cantar. Graças a sua influência em tudo, acabei me tornando
uma — levantou os dedos em aspas — “cópia” dele enquanto
jovem. — confessou — Ele era vocalista e guitarrista numa

159
José Vitor Nunes

banda com seu irmão e alguns amigos. Porém, o dom de meu


pai não era exatamente cantar. — aquela afirmação tirou algu-
mas gargalhadas inesperadas de Clarice — Eu também canto
um pouco, mas geralmente apenas toco guitarra e faço o vocal
de apoio.
— Você também canta? — indagou, surpresa — Eu nunca
imaginei que você cantava. — deixou escapar uma risada boba.
— O que foi? Está me subestimando? — disse rindo.
— Não é isso. Só não consigo imaginar. — justificou.
— Então não precisa imaginar. Veja com os seus próprios
olhos e ouça com os seus próprios ouvidos. — caminhou em
direção ao microfone que estava sobre a bancada de madeira.
— É o que estou pensando? — Clarice estava com um olhar
desacreditado e um sorriso desafiador.
— Não mesmo. — falou dando meia-volta e sorrindo.
— Engraçadinho.
— Mas você pode ver amanhã à noite no primeiro ensaio da
minha banda.
— Há um minuto eu não sabia nem que você cantava e to-
cava, agora está me revelando que tem uma banda. Quantas
revelações em tão pouco tempo, hem? — brincou.
— E amanhã poderá descobrir muito mais, porque, pelo que
vejo, sua mãe está só lhe esperando. — apontou com os olhos
em direção à Rosy, que estava sozinha procurando algo dentro
da bolsa.
— E está mesmo. — concordou — Então até amanhã.
— Até. — deu um abraço e um beijo no rosto da garota —
E manda um abraço para sua mãe.
— Pode deixar.

Enquanto caminhava em direção à sua mãe, uma figura sur-


ge caminhando rapidamente até acompanha-la.
— Clarice — disse Lourenço —, já está indo embora?
— Já sim, minha mãe está me esperando.

160
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Precisamos confirmar com a galera que dia será nossa


reunião extra do Grupo de Jovens para tratar sobre a ida ao
Hospital Pediátrico. Foi sugerido que fosse amanhã ou quinta-
feira.
— Amanhã não vai dar, marquei com o Isaac de assistir ao
primeiro ensaio de sua banda. Além do mais, não organizei
nada para a reunião até agora. — justificou — Então neste ca-
so, deixaremos para nos reunir na quinta-feira.
— Ok. Quinta-feira, então. — concluiu.

161
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 21

I
saac e Samuel estavam passando o som da guitarra e
da bateria quando ouviram alguém batendo no por-
tão de entrada. Como não havia nenhum barulho de
carro antigo, Martinelli já imaginara que seria Clari-
ce. Ele foi até o portão e abriu.
— Perdi alguma coisa? — perguntou a garota, sorridente.
Ela vestia uma saia de seda verde-escura, uma blusa regata
branca e segurava sua bolsa carteira na mão direita.
— Ainda não começamos. Estamos passando o som dos ins-
trumentos e esperando Thiago, Estella e Bernardo chegarem.
— explicou — Entre. — fez um gesto com os braços apontan-
do o caminho.
A garagem onde seria o ensaio estava quase vazia, havendo
apenas as motocicletas e os instrumentos dos rapazes, um sofá
que Isaac colocara especialmente para as garotas se sentarem e,
ao fundo, uma estante de madeira com vários livros e, na últi-
ma prateleira, dois troféus enfeitados por uma medalha cada.
— Aqueles são os troféus do Desafio Regional? — apontou.
— São sim. — confirmou Isaac caminhando em direção a
eles e os tirando da estante. — Esse é o meu — entregou o que
levava seu nome escrito e antecedido pelo número 1º. No seu
topo havia uma miniatura de motocicleta e sobre ela um piloto,
os dois quase na horizontal efetuando uma manobra —, e esse
é o de Sam. — entregou-lhe o outro, que era idêntico ao seu,
porém, com o nome de Samuel antecedido pelo número 3º. —
E estas são as nossas medalhas. — estendeu as duas na altura
dos olhos de Clarice e as sacudiu.
— São lindos. Espero que consigam levar os desse ano tam-
bém.
— Estamos treinando duro para isso.

162
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Um barulho de carro surgiu ao longe ficando mais alto até


cessar em frente a casa dos garotos.
— Vão colocando todas essas tralhas em outro lugar porque
não irei deixar o Red Hot lá fora pegando sereno. — falou Thi-
ago se aproximando segurando sua guitarra, seguido por Estel-
la e Bernardo que carregava seu contrabaixo nas costas.
— É assim que pretendem iniciar o primeiro ensaio da nossa
banda? Chegando atrasados. — praguejou Greco — Até Clari-
ce que não faz parte da banda teve o cuidado de ser pontual e
vocês não. Marcamos para as vinte horas, não para as vinte e
vinte. Desse jeito nunca vamos conseguir tocar no Rock In Rio.
Já estou vendo que...
— Ouh, ouh, ouh, vá com calma aê — interrompeu Lazzo
— A culpa do atraso não foi nossa. Fomos bem cedo à casa de
Lewis e tivemos que esperar quarenta minutos para que ela se
maquiasse e ficasse pronta para você. — explicou — Então não
reclame.
— Eeeeeiii! — exclamou Estella — Não foi bem isso. E
também não demorei tanto tempo assim.
— Sendo assim, o atraso de vocês está perdoado. Mas só
dessa vez. — disse Samuel — O que estão esperando? Conec-
tem logo esses instrumentos!
— Sam parece está bem empolgado com essa história de
banda. — Isaac comentou baixinho para que apenas Clarice
ouvisse.
— Ele é bem rigoroso com o horário. A partir de hoje serei
rigorosa com os horários de chegada do pessoal às reuniões do
Jovens do Futuro. — brincou.
— Me desculpe, mas acho que você irá fracassar nessa mis-
são. Olha só sua cara, não é nada intimidadora. — caçoou.
Clarice deu um tapinha no ombro de Isaac, rindo.
— Tive uma ideia para não deixa-las esperando o início do
ensaio enquanto aqueles dois conectam os instrumentos. —
disse Martinelli — Sente-se no sofá com Estrela, pois o show
irá começar. — deu um leve sorriso e andou em direção a Sa-

163
José Vitor Nunes

muel, que batucava sua bateria. — Sam, vamos tocar uma das
músicas que escrevi enquanto aqueles dois não terminam.
— Ótima, estava mesmo precisando me aquecer. Qual delas
vamos tocar.
— Pode ser Começos e Finais. — disse passando a correia
da guitarra por cima da cabeça e, em seguida, ajustando a altu-
ra do microfone no pedestal. — Pronto. Vamos lá.
— Essa vai para a garota de cabelo roxo mais bonita dessa
garagem. — apontou com a baqueta para Estella e deu uma
piscadela.
— Terei que registrar esse momento. — falou Clarice pu-
xando seu celular de dentro da bolsa e, antes de começar a fil-
mar, disse: — Isaac, se se sair mal, irei te zoar pelo resto de sua
vida. — brincou.
— Guarde bem esse vídeo porque quando formos muito fa-
mosos, ele irá fazer sucesso no nosso documentário com o títu-
lo: O primeiro ensaio da banda... — interrompeu-se — Qual
será o nome da banda mesmo?
— Eu sugiro Legião Rural. — gracejou Thiago.
— Eu sugiro AJ/DJ — disse Bernardo —, Antes de Jesus/
Depois de Jesus.
— Caso você não saiba, AC/DC não significa Antes de
Cristo/ Depois de Cristo. Significa Anti Christ/ Devil’s Chil-
dren. — afirmou Lazzo
— Os dois estão errados — retrucou Greco —, o significado
de AC/DC é Alternating Current/ Direct Current. Tal nome foi
encontrado no motor de uma máquina de costura e os irmãos
Young acharam interessante e sentiram que ele simbolizaria a
energia da banda e o amor deles pela música.
— Mas a questão aqui não é saber o que significa AC/DC
— Isaac interferiu —, e sim escolher um nome original para a
nossa banda e que signifique algo para nós. — virou-se para
Samuel — Sam, você se lembra de como Yasmin ficou empol-
gada com a ideia de continuar com a banda após tocarmos no

164
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

réveillon? Nós até iríamos continuar, caso não tivesse aconte-


cido o que aconteceu.
— Eu me lembro sim.
— Então tendo isso em vista, esta banda se tornou nossa
missão: Continuar de onde paramos e realizar não só nosso
sonho de ter uma banda, mas também o de Yasmin!
— Isso!
— Essa é a nossa missão! Nosso legado! O legado do sécu-
lo! Do século vinte e um! — apontou para o céu e disse bem
alto: — Nosso LEGADO XXI!!
— Legado Vinte e Um!!! — todos exclamaram.
— Vamos lá, Sam, inicia logo esse caralho! — ordenou
Isaac.
Greco bateu as baquetas uma na outra três vezes, mas a lou-
cura que parecia estar prestes a iniciar devido a euforia do
momento foi substituída pelo ritmo lento da bateria juntamente
com o suave som da guitarra.
— Não é difícil começar/ Ir atrás do que queremos — inici-
ou Isaac com a voz barítono em notas medianas pouco agudas
—/ Buscar a felicidade/ Encontrar alguém que nos faça feliz/ E
encontramos.../ Mas e quando essa felicidade precisa ser inter-
rompida?/ Por algum motivo que eu desconheço/ Aí tudo co-
meça a ficar mais difícil/ Quando precisa ter um fim/ Finais
são difíceis.../ E tudo que passamos/ E tudo que vivemos/ Não
passará de lembranças/ E cartas perdidas no fundo da gaveta/
Que um dia já significaram alguma coisa./ Então me segure
enquanto eu estiver aqui — no refrão o garoto aumentou um
pouco o tom das notas vocais —/ Amanhã talvez já seja tarde
demais/ Vamos aproveitar o dia de hoje/ Que o amanhã pode
não existir/ E o final será difícil./ No começo é tudo mais sim-
ples/ Parece que não haverão problemas/ E tudo será perfeito/
Quando estamos juntos/ Esqueço todos os meus problemas./
Não deve ser diferente com você/ Afinal/ Eu e você nos torna-
mos um só/ Era o que você sempre me dizia/ O que dizia sem-
pre.../ E quando você precisou ir/ É como se uma parte de mim

165
José Vitor Nunes

tivesse sido arrancada/ E dói muito/ Sinto que está faltando


algo dentro de mim/ Sinto que está faltando você aqui comigo./
E tudo que passamos/ E tudo que vivemos/ Não passará de
lembranças/ E cartas perdidas no fundo da gaveta/ Que um dia
já significaram alguma coisa./ Então me segure enquanto eu
estiver aqui/ Amanhã talvez já seja tarde demais/ Vamos apro-
veitar o dia de hoje/ Que o amanhã pode não existir/ E o final
será difícil./ Vamos aproveitar/ O hoje/ Que o final/ Será difí-
cil/ Será difícil...
Todos aplaudiram quando a música terminou.
— Nossa! Arrasaram. — disse Clarice — Você se saiu per-
feitamente bem cantando, Isaac. Parabéns aos dois.
— Que música tocante. — confessou Estella — Vamos
aproveitar o dia de hoje. — correu até Samuel que estava sen-
tado e o abraçou por trás, beijando-o no rosto.
— Ainda falta encaixar os outros instrumentos nessa e em
várias outras músicas. — afirmou Martinelli — Mas com a
ajuda desses dois — apontou para Thiago e Bernardo —, logo
logo teremos um repertório completamente autoral.
— Então vamos começar agora mesmo. — Thiago falou ba-
tendo em todas as cordas da sua guitarra para baixo fazendo
com que o som da distorção ecoasse em toda a garagem.
Os rapazes prosseguiram o ensaio tocando algumas músicas
covers e depois partiram para a primeira missão da banda: criar
suas próprias músicas.
— Isaac, meu pai está me esperando lá fora. — disse Ferrier
— Foi ótimo estar presente no primeiro ensaio da sua banda.
Estou com um pressentimento de que vocês irão fazer muito
sucesso rapidinho.
— Obrigado. Espero que sim. E obrigado por ter vindo, vo-
cê sempre será bem-vinda em todos os ensaios.
— Ah, Antes que eu me esqueça, quinta-feira terá reunião
do Jovens do Futuro na minha casa. Compareça, se puder.
— Ok. Estarei lá.
Despediram-se. Clarice entrou no carro e partiu.

166
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 22

O
grupo de jovens católicos chamado Jovens do Futu-
ro foi criado por Clarice, Lourenço, Amália, Mercês
e Agostinho em meados de 2013. Atualmente conta
com mais vinte jovens com idade entre 14 e 23 anos
que estão a serviço da sociedade, principalmente àqueles com
mais necessidades.
Isaac Martinelli chegara cedo e escolhera aleatoriamente
uma cadeira do círculo. Aos poucos, pessoas chegavam em
grupinhos de amigos e se acomodavam no recinto.
— Bom, pessoal, primeiramente boa noite. — começou Cla-
rice. Todos responderam em uníssono. — Antes de começar de
fato, quero-lhes apresentar meu amigo Isaac que está vindo
pela primeira vez. — apontou para o rapaz — Seja bem-vindo,
Isaac.
— Obrigado. — respondeu assentindo com a cabeça.
— Hoje nossa reunião, como sabem, é sobre as visitas ao
Hospital Pediátrico. Discutiremos qual será sua periodicidade,
quais distrações iremos levar para as crianças, e etecetera. —
explicou — Além de irmos vestidos de palhaço, tive uma ideia
de doar alguns livros. Conversei com meus pais e eles acharam
super legal, então resolveram doar um livro infantil para cada
criança. Não é, meus amores? — virou-se para Rosy e Mateus
Ferrier que estavam assistindo à reunião detrás de uma janela
que ficava de frente para Isaac. Os dois sorriram e assentiram
afirmativamente. — Muito obrigada pela ajuda. — agradeceu
aos pais — Alguém tem mais alguma sugestão?
— Aproveitando os livros doados, vocês podem se dividir
em grupos para lerem para as crianças e, por fim, fazerem a
doação. Creio que muitas ainda não tiveram a oportunidade de
aprender a ler. — sugeriu Martinelli.

167
José Vitor Nunes

— Ótima ideia. Anotada, Isaac. — escreveu — E eu sugiro


para você substituir na frase “vocês podem se dividir em gru-
pos” por “podemos nos dividir em grupos”. Sinta-se um de nós.
— Certo. Podemos nos dividir em grupos. — sorriu.
— Isso aí. — retribuiu o sorriso — Estou gostando muito
das ideias que temos até agora.
— Podemos também levar alguns jogos de tabuleiro como
dama, ensiná-los a jogar xadrez... — disse uma garota de pele
morena — Coisas desse tipo.
— Boa. — afirmou Ferrier escrevendo em um caderninho
— Já está anotada. Alguém mais?
— No intervalo entre cada visita, iremos arrecadar brinque-
dos — disse um rapaz —, daí quando tivermos uma quantidade
suficiente para que nenhuma criança fique sem, distribuiremos
para os pimpolhos.
— Muito boa, Mike. Anotada. Próxima...
Os jovens se entreolharam por alguns segundos esperando
mais alguém falar algo.
— Podemos levar um violão e cantar para elas. — falou
Martinelli — Posso levar o meu e Clarice canta.
— Será um prazer. — afirmou a moça olhando-o nos olhos
e com um sorriso meigo no rosto. — E... anotado. Alguém
mais...?

Ficaram trocando ideias por quarenta minutos e decidiram


que as visitas seriam feitas a cada três meses, sendo que a pri-
meira já seria a três semanas.
Mercês fizera uma publicação no Facebook e no Instagram
pedindo para que as pessoas doassem brinquedos. Todos os
membros do Jovens do Futuro já estavam compartilhando, in-
clusive Isaac.
Terminada a reunião sobre as visitas, deram as mãos e fize-
ram uma oração juntos. Ao final de tudo, algumas pessoas ain-
da ficaram ali conversando e botando o papo em dias, outras
saíam aos poucos seguindo caminho.

168
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Mateus e Rosy andaram em direção a Isaac.


— Olá... — falou Rosy dando uma pausa para tentar se lem-
brar — Isaac. Tudo bem?
— Sim. Tudo ótimo.
— Este é meu marido: Mateus Ferrier — apresentou-lhe o
homem alto do seu lado. Ele usava óculos, estava com os cabe-
los bem penteados para o lado e vestia um suéter que combina-
va com suas calças e sapatos sociais.
— Prazer em conhecê-lo, rapaz. — estendeu a mão para
cumprimentá-lo.
— Prazer, Sr. Ferrier. — apertou-lhe a mão.
— Gostei da ideia de Clarice cantar para as crianças. —
confessou Rosy — São duas coisas que ela ama: cantar e crian-
ças. Comecei a ensiná-la música com apenas cinco aninhos.
Aos doze a coloquei no coral da igreja.
— Clarice me contou. Disse-me também que a senhora é
professora de canto do coral, e, pelo visto, é uma ótima profes-
sora, tendo em vista que sua filha canta muito bem.
— Obrigada. Quando se faz algo com amor, sempre sai ben-
feito.
— O que estão falando sobre mim? — perguntou Clarice se
aproximando dos três.
— Estávamos falando sobre você cantar para as crianças
enquanto eu lhe esperava para me despedir antes de ir. — ex-
plicou Isaac.
— Que bom que esperou. Queria mesmo falar com você.
— Bom conhecê-lo, Isaac. — disse Mateus fazendo um ges-
to militar com o dedo indicador e médio na altura da testa —
Amor, sua novela já deve estar para começar. — dirigiu a pala-
vra à Rosy — Vamos?
— Vamos. Sei que você adora aquela novela mais do que
eu. — sorriu — Venha mais vezes aos encontros, Isaac. Você
será sempre bem-vindo.
— Muito obrigado, Sr. Ferrier. Estarei aqui nas próximas
reuniões.

169
José Vitor Nunes

— Certo.
Despediram-se e deixaram os jovens conversando a sós.
— Mostrei o vídeo do ensaio da banda para Júlia. Ela amou.
Pediu-me para perguntar se poderia ir a algum qualquer dia
desses.
— Claro que pode. Fico lisonjeado. E, por falar nisso, con-
seguimos encaixar os instrumentos que faltavam nas músicas
que já tínhamos escritas e fizemos outras novas.
— Isso é ótimo! — exclamou.
— Vá ao ensaio amanhã e leve Júlia. Quero que ouçam.
— Com toda certeza iremos.
— Se quiserem, podemos leva-las para o ensaio depois da
aula.
— Então fica combinado para depois da aula. — concluiu.
— Ok. Até lá. — disse Isaac, despedindo-se.
— Até.

170
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 23

S
amuel batucava em seu caderno com uma caneta e
um lápis enquanto o professor de Introdução à Ar-
quitetura ministrava a aula. Faltando dez minutos
para as 18h, Greco conseguiu ouvir com clareza ape-
nas as duas últimas palavras que o professor falara:
— ... até amanhã.
O garoto guardou seus materiais, levantou-se da cadeira
apressadamente e saiu da sala antes de todos os seus colegas.
Caminhou até a entrada do restaurante da faculdade e esperou
um minuto até que seus amigos chegassem.
— Vamos jantar logo, não posso me esquecer da batida que
me veio à mente quando estava na aula. — disse Sam um pou-
co agitado.
Os AmendoWins sentaram-se todos na mesma mesa. Além
deles, estavam naquela mesa Clarice e Júlia. Todos conversa-
vam sobre os mais diversos assuntos enquanto jantavam. Entre-
tanto, Samuel Greco parecia não estar ouvido nada sobre o que
falavam, pois se mantinha concentrado em seu novo batuque.
Sentado na cadeira e com o olhar distante, imaginando-se
diante de uma bateria, o rapaz batia com os indicadores na me-
sa de mármore, fazendo um barulho com a boca a cada batida e
balançando a cabeça, acompanhando o ritmo.
Ao chegar a sua casa, correu para o instrumento, sentou-se
no banco, pegou as baquetas e começou a bater com entusias-
mo. Todos olhavam para ele, ouvindo atenciosamente ao som
sem falarem nenhuma palavra.
Quando terminou, perguntou com um sorriso de orelha a
orelha.
— O que acharam?

171
José Vitor Nunes

— Uma merda. — disse Thiago sem mais delongas, fazendo


o sorriso do rapaz desaparecer e ser substituído por uma ex-
pressão nada contente.
— Uma merda?! Isso vai fazer mais sucesso do que We Will
Rock You do Queen!
— Só se existisse apenas essa batida no mundo. — caçoou.
— Então faça algo melhor e traga para nós. — desafiou.
— Na verdade esse seu som não está totalmente desprezível
— afirmou aproximando-se de Samuel —, mas precisa de al-
gumas mudanças e ajustes. Deixe-me fazer algumas melhoras.
— estendeu a mão para o rapaz lhe entregar as baquetas.
— Faça-as, “Joey Jordison”. — ironizou, colocando com
forças as baquetas na mão de Thiago e levantando-se.
O jovem se sentou, esticou os braços para se alongar, esta-
lou os dedos e começou a tocar. Todos que estavam presentes
naquela garagem ficaram boquiabertos com as habilidades do
rapaz que tocava com maestria.
— Onde aprendeu a tocar tão bem assim?! — Isaac pergun-
tou, surpreso, quando Thiago terminara.
— Há alguns anos antes de nos mudarmos para Ilha do Rio.
— Você toca muito bem! Por que parou?
— Quando nos mudamos, meu pai me disse que não havia
espaço para minha bateria no carro da mudança — explicou —,
então me deu uma guitarra em troca e acabei descobrindo mi-
nha verdadeira paixão. — olhou para Sam — Conseguiu pegar,
Greco? — jogou as baquetas para o amigo, que conseguiu
agarrar apenas uma. — Pelo visto, não. — zombou.
Samuel ignorou a pergunta e o comentário, pegou a baqueta
do chão e caminho até sua bateria sem dizer uma palavra.
— Vamos começar logo o ensaio. — falou Bernardo.
Enquanto os rapazes tocavam, Júlia, Mirelly, Estella e Cla-
rice ouviam bem animadas. Júlia Singer não parava de pular,
dançar e de fazer comentários para Clarice do tipo: “eles são
bons”, “eles são muito bons”, “estou gostando muito dessa
banda”, “as músicas deles são maravilhosas”.

172
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— E essa se chama — anunciou Martinelli —: Começos e


Finais.
— Já aprendi toda a letra de tanto assistir àquele vídeo. —
confessou Clarice.
— Sério que você já aprendeu? — o rapaz estava um tanto
surpreso — Então venha cantá-la comigo. — propôs com um
sorriso no rosto por saber que Clarice já havia aprendido.
— Não, po... — Júlia empurrou-lhe em direção a Isaac.
— Você vai cantar sim. — ordenou ela.
— Tudo bem... Tudo bem. — falou arrumando os cabelos.
Ficou de frente para o microfone e ao lado de Isaac.
— Pronta? — ela assentiu com a cabeça afirmativamente —
Sam, puxa. — Greco bateu as baquetas uma na outra e iniciou.
A garota começou a cantar e, naturalmente, cada um cantava
uma estrofe da música dividindo o mesmo microfone. Às ve-
zes, Isaac fazia uma segunda voz para dar um apoio à voz de
Ferrier. Aquela dupla parecia preencher os poucos vazios que o
outro acabava deixando, fazendo com que a música fluísse com
naturalidade e escorresse suavemente de suas bocas para os
ouvidos dos que estavam presentes. Chegando ao refrão, divi-
diram o microfone cantando ao mesmo tempo com os lábios
bem próximos um do outro. Olhando-a bem de perto, Martinel-
li notara que ela não se parecia tanto assim com Yasmin como
naquela primeira vez que a viu. Nem seu rosto, nem seu sorri-
so, nem seu cabelo, ou altura, ou sua voz. Seus olhos eram um
pouco mais escuros do que os de sua ex-namorada e menos
puxados, seus cabelos são negros, sua voz mais limpa. Naquele
momento o rapaz percebera que elas eram um tanto diferentes.
Era fato que de início ele se interessara em conhecê-la devido a
algumas semelhanças com Yasmin e por ela fazê-lo sentir no-
vamente algumas sensações que, até então, só havia sentido
com sua ex-namorada, mas se em algum momento ele chegara
a gostar de Clarice, é porque algo nessa garota lhe chamava
atenção e a tornara unicamente especial. Não apenas algo físi-
co, mas também algo mais além. Metafísico.

173
José Vitor Nunes

Algo novo estava surgindo, e ele só precisa conseguir per-


ceber e assumir para si mesmo o seu verdadeiro sentimento
pela garota.
Lembrou-se da aula do professor Davi Gaspar e questionou-
se: Escolhas, destino ou coincidência?
Várias das explicações astrológicas que Estella lhe dissera
também começaram a rondar sua mente: “Atração à nível físi-
co”, signos complementares, posição dos astros... Algumas
coisas pareciam estar começando a fazer sentido.
— Caralho! Isso foi demais! — exclamou Greco.
— Isaac, sinto muito em lhe dizer — começou Thiago —,
mas você está fora da banda. — brincou.
— Pessoal, pessoal — disse Bernardo balançando os braços
no alto —, Clarice pode ser nossa vocalista e Isaac fica no back
vocal.
— Perfeito! — Isaac virou-se para a garota — você topa?
— Obrigada pelo convite, mas essa banda é de vocês.
— Sim, e queremos que seja sua também. — argumentou
Rivière.
— Não posso, é algo de vocês, que vocês se identificam, um
estilo próprio. — argumentou ela — Se eu fizesse parte disso,
tiraria essa essência, suas características únicas.
— Não, Clarice, isso não tem nada a ver. — falou Martinelli
— Você não viu como nos saímos bem?
— Tem sim. Não é algo que nasci para fazer.
— Corta essa, Ferrier. — disse Thiago — Você canta muito
bem. Seria um grande diferencial na nossa banda.
— Já estou envolvida em muitos projetos, não teria tempo
para os ensaios e tudo mais. — explicou — Mas muito obriga-
da pelo convite.
— Vamos fazer o seguinte: — propôs Isaac — Você pensa
mais um pouco sobre a ideia e depois nos dar uma resposta,
pode ser?
— Pode ser. Mas vou logo dizendo que já estou bem decidi-
da.

174
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Tudo bem, mas pense nisso. Saiba que você já é uma


AmendoWins.
— Isso mesmo, falta apenas o batizado. — observou Thia-
go.
— Batizado? Como assim?
— É um campeonato de videogame — explicou Sam — o
vencedor de cada partida ganha um saquinho de amendoim, e o
campeão do campeonato ganha três. Uma observação — levan-
tou o dedo para explicar — Bernardo só se tornou um Amen-
doWins porque era o dono do videogame. — provocou.
— Mas com o tempo mostrou merecer essa nomeação —
completou Thiago —, pois acabou se tornando: Rivière, O Pu-
tão das Novinhas.
Os rapazes riram, excerto Bernardo.
— Bate aqui! — Sam levantou a mão e Thiago a acertou.
— Muito engraçado — disse Bernardo —, estou me mijan-
do aqui.
— Enfim. — interrompeu Martinelli — Clarice, pense com
carinho sobre a nossa proposta.
— Ok, irei pensar.
— Por falar em proposta — Júlia deu um passo à frente —,
Também queria lhes propor algo.
— Manda ver. — falou Greco.
— Gostei muito da banda de vocês e pensei, tipo, meu ani-
versário é daqui a três semanas, dia quinze de julho, e seria
legal ter música ao vivo tocando para a galera. — explicou —
Então queria que a... — parou para tentar se lembrar do nome.
— Legado XXI — disse Bernardo.
— Isso! Que a Legado XXI tocasse na minha festa.
— Seria um prazer! — exclamou Isaac.
— Ótimo!... Maravilha!... Perfeito!... — disseram os outros.
— Vocês topam?
— Claro... Com certeza... Absolutamente... Sem dúvidas.

175
José Vitor Nunes

— Galera — disse Martinelli virando-se para os integrantes


—, temos três semanas para nos prepararmos para a Missão
Dois. — estendeu a mão direita para frente. Todos se aproxi-
maram formando um círculo e cada um colocou sua mão por
cima da do último — 1... 2... 3...
— LEGADO Vinte e Um!!! — gritaram explodindo as
mãos para cima.

176
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 24
Sábado, 1 de julho de 2017

M
au amanhecera e Clarice já havia acordado. Era
de costume para a garota acordar antes das sete
da manhã, porém, ela parecia ter ouvido algum
barulho vindo de fora do quarto que lhe fizera
acordar. Pegou o celular para ver as horas. 6h:15min. Em se-
guida, levantou-se e caminhou em direção ao banheiro do seu
quarto, lavou o rosto e escovou os dentes.
Quando descia as escadas a caminho da cozinha, avistou um
grupo com cerca de quinze pessoas na sala principal. Ao vê-la,
todas gritaram juntas: “surpresa!!”.
Espantada pela visita inesperada àquela hora, Clarice olhou
para suas roupas, ela estava vestindo apenas um baby doll lilás
de cetim e seus cabelos estavam despenteados. Sem falar uma
palavra, a moça apenas subiu de volta as escadas correndo em
direção ao seu quarto.
Cerca de quinze minutos depois a garota volta, agora estava
vestindo um elegante vestido azul-claro de seda, de banho to-
mado e de cabelos penteados.
— De quem foi a brilhante ideia de me fazer uma surpresa
dessas em plena seis e quinze da manhã de um sábado? — in-
quiriu.
— Nossa. — disse Amália apontando para Mercês.
— Pensei que gostassem de mim. — brincou.
Desceu as escadas e abraçou seus colegas do grupo de jo-
vens um a um.
— Preparamos um café da manhã para você com suas comi-
das preferidas. — falou Mercês.
Após o café, passaram a manhã toda conversando e tomando
banho de piscina em sua casa. Como era de se esperar, devido à
insistência dos amigos, Rosy e Mateus Ferrier contaram as his-

177
José Vitor Nunes

tórias mais engraçadas de Clarice que, para sua sorte, eram


poucas e quase nada constrangedoras.
Em um segundo momento, os jovens se reuniram para dis-
cursarem sobre a moça, mostrando o quão era admirada e ama-
da por todos.
— Clarice sempre teve o coração enorme — dizia seu pai —
, lembro-me do dia em que ela encontrou um passarinho com a
asa quebrada e trouxe para casa dizendo que o encontrou aban-
donado e que a partir de então seria sua mãe. — houve alguns
“oun” e “que lindo”, vindo de seus amigos — Ela tinha apenas
sete anos. Levamos o passarinho ao veterinário e cuidamos
dele por um tempo. Certo dia Clarice acordou e o passarinho
havia ido embora. Aquilo a deixou bem triste, mas explicamos
para ela que a natureza era o seu lugar. Contudo, o que mais
me marcou naquele dia foi o que ela nos disse. — pigarreou —
Clarice nos falou que iria cuidar de todos que precisassem de
ajuda, dos animais, das crianças, dos adultos e idosos. Hoje
vejo que minha filhinha está crescida, e conseguiu reunir vários
jovens desta cidade de coração tão bom quanto o dela para ser-
vir aos mais necessitados sem esperar receber nada em troca.
— enxugou uma lágrima que brotava no canto do seu olho —
Filha — pegou nas suas mãos — Você é o nosso orgulho. Nós
te amamos muito! — deu-lhe um abraço apertado.
Todos aplaudiram, emocionados.
— Obrigada, papai. — secou as lágrimas — Também amo
muito vocês. E cada um de vocês é extremamente especial para
mim. Principalmente reunidos formando esse grupo tão lindo
que é a minha vida. — limpou a garganta e falou — Agora
peguem a bola e formem os times porque vamos jogar queima-
da!

Isaac recebe uma notificação do Facebook dizendo: CLARICE


FERRIER E OUTRAS DUAS PESSOAS FAZEM ANIVERSÁRIO HOJE.
Imediatamente procurou por Clarice na agenda telefônica e
telefonou. Esperou alguns segundos até a ligação cair. Ela deve
estar ocupada, pensou. Então resolveu esperá-la retornar.

178
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Três horas depois, às 14h07min., o celular toca. Era a moça.


— Oi, Isaac, me desculpe, agora que estou vendo sua cha-
mada. — explicou no momento em que o rapaz atendeu.
— Tudo bem. Liguei para te desejar um feliz aniversário,
muita saúde e que você continue sendo essa garota maravilho-
sa. Não sou muito bom com mensagens de aniversário. — jus-
tificou coçando a nuca.
— Obrigada. — disse rindo — Também não sou nada boa
com esse tipo de coisa.
— Queria lhe convidar para sair em comemoração ao seu
aniversário, caso esteja com a agenda livre. Lembrei-me de
algo que você disse gostar.
— Hum... gosto de tantas coisas. O que seria?
— Será uma surpresa, creio que você irá gostar.
— Pelo menos você me avisou que será uma surpresa. —
gracejou — Que horas você sugere?
— Posso lhe pegar às dezesseis.
Clarice checou as horas e disse:
— Ok, então fica combinado para às dezesseis. Estarei te
esperando. Até lá.
— Até. — desligou.

No horário marcado, Isaac passara na casa de Clarice e a le-


vara à praça próxima ao cais a três quilômetros a sudoeste da
ponte de Ilha do Rio Iolete. Comprou dois sorvetes e sentou-se
ao lado da jovem em um banco de madeira que ficava de frente
a um canteiro florido.
— Lembrei-me de uma conversa nossa que você me falou
que amava ver o pôr do sol. — Martinelli disse — Daí tive a
ideia de te trazer até aqui. Na minha opinião não existe outro
lugar nessa cidade com o pôr do sol mais belo.
— De fato, aqui é o lugar mais bonito de onde ele pode ser
observado. Só precisamos esperar mais um pouco até o sol
começar a se pôr.

179
José Vitor Nunes

— Eu não tenho pressa. — sorriu para ela — Então, você


pensou na ideia de cantar na Legado XXI?
— Pensei sim, e não mudei minha opinião em relação a isso.
— forçou um sorriso cerrando os dentes.
— Por que não? — questionou — Você canta tão bem! Se-
ria perfeita para a banda.
— Nunca esteve nos meus planos cantar em uma banda de
rock. — justificou enfiando a pazinha no sorvete e levando à
boca. — Você também canta muito bem, não há o que melho-
rar.
— Precisamos de alguém que tenha um pouco mais de téc-
nica vocal; com mais experiente. — argumentou.
— Que tal você cantar no coral da igreja e ganhar uma expe-
riência a mais? — sugeriu levando outra pazinha à boca.
— Nunca esteve nos meus planos cantar em um coral de
igreja.
Os dois riram.
— Agora você está começando a me entender.

Enquanto conversavam, uma menininha com aproximada-


mente cinco anos de idade os espiava por detrás da árvore ao
lado. Ela estava com os cabelos despenteados e aparentava não
tomar banho há alguns dias.
— Ei. psiu. Mocinha, venha aqui. — chamou Clarice.
A garotinha balançou a cabeça freneticamente e um gesto
negativo, com a língua de fora e um sorriso sapeca.
— Venha aqui, eu tenho um sorvete para lhe dar. — persua-
diu — Você gosta de sorvete?
A menina se aproximou e disse:
— Nunca comi.
— Ele será seu se você me responder duas perguntas, está
bem?
Ela assentindo afirmativamente em rápidos movimentos
com a cabeça.
— Lá vai a primeira. Como é seu nome?

180
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Maria. — respondeu com um sorriso meigo estendendo a


mão para que Clarice lhe entregasse o sorvete.
— Calma, ainda falta mais uma pergunta. Onde estão seus
pais?
— Minha mãe está ali. — apontou para uma mulher que
vestia roupas aos farrapos sentada em um banco há alguns me-
tros.
— Pronto, agora o sorvete é seu. — o entregou para a crian-
ça. — Como se diz ao receber?
A garotinha balançou a cabeça, negativamente.
— Se diz “obrigada”. — explicou.
— Obrigada. — repetiu.
— Vá lá dividi-lo com sua mãe.
— Tome — ofereceu Isaac —, leve o meu para ela.
Maria agarrou o sorvete e quando se virava para sair corren-
do, Clarice interveio.
— Como se diz ao receber?
— Obrigada.
Ferrier sorriu e a pequena Maria saiu correndo em direção a
sua mãe.
— Amo a inocência de uma criança. — confessou Clarice
— Se eu pudesse, levaria todas para minha casa e cuidaria de-
las.
— Vê-las assim parte o coração.
— É uma pena que o abrigo para moradores de rua já esteja
lotado. O que me resta fazer é apenas reunir os Jovens e tentar
arrecadar alimentos, roupas, remédios e etecetera para os mais
necessitados. Graças a Deus existem várias pessoas que estão
sempre nos apoiando nessas causas.
— Graças a Deus. — disse Isaac, pensativo.
Os dois se mantiveram calados por alguns segundos.
— Sobre o que estávamos falando mesmo? — perguntou
Clarice, quebrando o silêncio.
— Sobre as pessoas necessitadas.

181
José Vitor Nunes

— Não, isso eu me lembro. Me refiro a antes disso.


— Ah, estávamos falando sobre os nossos planos.
— Isso! — deslizou o dedo médio contra a almofada da
mão, fazendo um pequeno estalo.
— Como já te disse na igreja, o meu pai é uma influência
masculina tão forte na minha vida que sempre quis ser como
ele. — afirmou Martinelli — Tomei os seus sonhos de adoles-
cente como meus: ter uma banda conhecida, ser um ótimo pilo-
to e ganhar alguns prêmios como profissional, tornar sua ofici-
na a maior e melhor da região e que preste os mais variados
serviços... — acomodou-se no banco de madeira e começou a
observar o canteiro de flores à sua frente — Estou me esfor-
çando para conseguir tudo isso.
— Muito bem. Você se inspirou nele, são seus sonhos tam-
bém. Algo que você quer, e não o que ele quer que você seja.
— disse Clarice — Imagine quão difícil seria se seu pai lhe —
fez com os dedos em aspas — “obrigasse” a realizar um sonho
que não é seu. Por mais difícil que fosse talvez você tentaria
realizá-los apenas para dar esse orgulho a ele.
— É verdade. — concordou olhando para a garota. Ao fun-
do, o sol começara a ser pôr. — Olha lá. — gesticulou com a
cabeça para que ela se virasse.
— Muito lindo. — comentou maravilhada ao ver o sol bri-
lhante pairando sobre a água que refletiam seus raios. O céu
passara de azul para um laranja-avermelhado. — Não me canso
de ver isso. A natureza é perfeita.
Ficaram observando até que ele desaparecesse completa-
mente. O laranja-avermelhado dera lugar ao negro, e as primei-
ras estrelas começavam a surgir no céu noturno.
— Olha. Está vendo ali? — Clarice apontou para três estre-
las enfileiradas na perpendicular — São as minhas estrelas. —
disse sorrindo para Isaac.
— São lindas como a dona.
Ferrier pareceu gostar do comentário, porém, não soube o
que responder.

182
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Martinelli olhou no fundo dos olhos da garota e pegou em


suas mãos. Elas estavam frias. Com a mão direita livre, ele
deslizou o polegar sobre a testa de Clarice, afastando uma me-
cha de cabelo para trás de sua orelha. Sentiu a moça apertando
suavemente sua mão esquerda como se estivesse dizendo “sim”
inconscientemente ao beijo que o rapaz estava prestes a lhe dar.
Isaac se aproximou lentamente e Clarice foi ao seu encontro.
Naquele momento as estrelas brilhavam mais forte no céu.

Chegando a sua casa, Martinelli abrira a mensagem que


acabara de receber.
Clarice Ferrier: Amei o passeio <3
Isaac Martinelli: Eu também. S2
Isaac Martinelli: Poderíamos marcar de ver o nascer do
sol. Vejo todos os dias quando vou aos meus treinos. ^-^
Clarice Ferrier: Não precisa esperar meu próximo aniver-
sário para me levar. Kkkkk
Isaac Martinelli: kkkk. Podemos marcar para qualquer dia
desses.
Clarice Ferrier: Sim!!
Isaac Martinelli: Avisarei quando for possível. Prometo que
não irá demorar. :)
Clarice Ferrier: Certo :-)

Isaac deitou-se no sofá, guardou o celular no bolso e come-


çou a se recordar das vezes que saía com os amigos e ficava
deitado na grama da praça com a cabeça de Yasmin sobre seu
peito. Permaneciam por vários minutos sem dizer uma palavra,
apenas observando as estrelas ou as nuvens e fazendo planos
para o futuro. Percebeu que nunca havia visto o nascer do sol
com sua ex-namorada, apesar de eles já terem planejado várias
vezes, nunca conseguiram concretizar.

183
José Vitor Nunes

Aquilo pareceu estranho para Martinelli, pois ele agora co-


meçara a se sentir mal em estar planejando realizar seu desejo e
de Yasmin com outra garota.

184
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 25
Sábado, 15 de julho de 2017

R
ESULTADOS DISPONÍVEIS, foi o que Clarice leu ao
abrir sua caixa de e-mails. Instantaneamente seu
coração disparou e ela clicou na mensagem sem
conseguir manter a ansiedade. Leu o que havia
escrito:
Você já pode visualizar o resultado do exame para bolsas
de intercâmbio no nosso site.
Abaixo seguia um link em anexo. A garota clicou e foi dire-
cionada para o site. Procurou até encontrar “Resultados Inter-
câmbio 2017” e clicou. Um arquivo em formato PDF baixou
automaticamente.
Ao abrir a lista, procurou por Portugal e pela Universidade
de Algarve e, logo em seguida, procurou pelo seu nome.
Não precisou perder tempo procurando, pois havia apenas
três bolsas para a Universidade de Algarve e o seu nome apare-
cera logo em primeiro lugar.
— Consegui!! — gritou ela — Consegui! Consegui!
Desceu as escadas apressadamente e correu em direção aos
seus pais que estavam na cozinha.
— Eu consegui! Eu ganhei a bolsa para fazer intercâmbio
em Portugal!
Mateus e Rosy Ferrier pararam o que estavam fazendo para
darem um forte abraço na garota.
— Nós sabíamos que você iria conseguir. — disse seu pai
beijando-a na testa.
— Parabéns, filha. — Falou Rosy com um largo sorriso no
rosto — Quando suas aulas irão começar?

185
José Vitor Nunes

— Um momento. — Clarice pegou o celular e pesquisou no


site da universidade a data de início das aulas — Dia primeiro
de outubro.
— Temos apenas pouco mais de dois meses com nosso be-
bê, Mateus.
— Nosso bebezinho está crescendo, Rosy, e quer ficar por
um ano longe da gente. — brincou seu pai.
— Deixa de besteira, papai. É claro que não quero ficar lon-
ge de vocês. E os senhores poderiam ir comigo.
— Não podemos simplesmente deixar alguém tomando con-
ta da livraria e irmos. Precisamos estar aqui. — disse sua mãe
— Mas bem que queríamos passar um ano conhecendo Portu-
gal e toda Europa.
— Já estou ficando com saudade de vocês. — deu um abra-
ço apertado nos dois.

O celular começou a tocar. Era Agostinho.


— Boas notícias, chefinha!
— Primeiro a minha! Eu vou estudar por um ano em Portu-
gal!
— Sério?! — exclamou.
— Sério!
— Parabéns, Clarice. Todos nós sabíamos que você iria
conseguir essa bolsa.
— Obrigado. Sempre foi um sonho. — afirmou — Me des-
culpe interromper, é que estou muito feliz. Quais são mesmo as
boas notícias que você tem para me dar?
— Tudo bem. Sabe aquela campanha para arrecadar brin-
quedos para as crianças? Foi um sucesso!
— Nossa, que maravilha. Hoje o dia começou muito bem.
Passe-me os dados.
— Pelas contagens, cem por cento das crianças irão receber
brinquedos e ainda sobrará setenta e cinco por cento de brin-
quedos em relação à quantidade de crianças — explicou o ra-
paz do outro lado da linha—, ou seja, precisamos de apenas

186
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

vinte e cinco por cento da quantidade de crianças na próxima


campanha para suprir todas elas novamente. Margem de erros
de dois por cento para mais ou para menos.
— Entendi... — arqueou a sobrancelha e coçou atrás da ore-
lha. — Então quer dizer que está tudo ok, não é?
— Melhor, improvável.
— Ótimo. Nos reuniremos hoje em frente ao hospital às
quatorze horas.
— Certo. — desligou.

O Hospital Pediátrico Iolete continha crianças de zero a dez


anos internadas por motivos diversos. Por mais que houvesse
constantes visitas de familiares e amigos, era necessária algu-
ma distração a mais para deixar a vida dos pequeninos mais
colorida.
Como combinado, todos os membros do Jovens do Futuro
estavam reunidos no local às quatorze horas.
Dividiram-se em grupos de cinco, pintaram os rostos e al-
guns colocaram nariz de palhaço.
— Nunca pensei que um dia iria passar batom e esse pó
branco no meu rosto. — comentou Isaac.
— Agora só falta colocar esses brilhos nessa sobrancelha e...
— afirmou Clarice terminando de maquiar seu amigo — Pron-
to!
— Você está com fome? — perguntou o rapaz.
— Não, por quê?
— Porque estou pronto para fazer “palha assada”. — res-
pondeu com uma risada boba.
Clarice forçou uma gargalhada irônica.
— Preciso praticar mais algumas piadas. — concluiu ele.
— Você se sairá bem. — deu dois tapinhas nas costas de
Martinelli — Vamos. — caminhou na frente. Isaac, Lourenço e
mais duas garotas que formavam seu grupo a seguiram.

187
José Vitor Nunes

Os grupos se dividiram e entraram em quartos diferentes. Os


jovens se apresentaram com tia Clarice, tio Isaac, tio Lourenço,
tia Isabel e tia Tainara. Em seguida, distribuíram chapéus de
festa, livros e brinquedos para as crianças. Fizeram brincadei-
ras, ensinaram alguns joguinhos, ajudaram a montar quebra-
cabeça, leram para aquelas que não sabiam ler, ajudaram as que
tinham dificuldades e cantaram juntos músicas infantis bem
conhecidas. Colaram nas paredes figuras de personagens de
desenhos que todas elas adoravam, trazendo mais cor e vida ao
ambiente.
Era notório como as crianças transbordavam de alegria pre-
senciando àquilo tudo. Aquele momento lhes fazia esquecer
um pouco das suas enfermidades e aproveitarem à única, mara-
vilhosa e efêmera infância.
— Nada é mais belo do que um sorriso sincero e o olhar
inocente de uma criança. — comentou Ferrier olhando para
Isaac com um largo sorriso no rosto — Nada é mais gratifican-
te do que fazer uma criança feliz.
O garoto tinha de concordar, pois além dos sorrisos since-
ros, olhares inocentes e gargalhadas que traziam vida ao ambi-
ente, para Isaac, nada era mais belo do que o sorriso sincero e o
olhar inocente de Clarice Ferrier por ver todas aquelas crianças
tão felizes.

— Missão completa. — falou Lourenço ao saírem do último


quarto — Uma tarde bem divertida, mas confesso que meu
corpo está pedindo uma massagem em uma cama bem confor-
tável.
— Confesso que não é só o seu. — afirmou Tainara.
— Eu ainda tenho que me aprontar para uma apresentação
da banda mais tarde no aniversário de Júlia. — disse Martinelli
passando um lenço úmido no rosto para retirar a maquiagem —
Meu corpo não vai sentir uma cama confortável tão cedo.

188
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Enquanto destrancava a porta de sua casa, seu telefone co-


meça a tocar. Martinelli sacou o aparelho do bolso, leu o nome
no identificador de chamadas e atendeu.
— Oi, mamãe, tudo bem?
— Comigo sim, filho — respondeu Sofia do outro lado da
linha —, e como andam as coisas por aí?
— Muito bem, apesar de eu estar um pouco cansado da visi-
ta ao Hospital Pediátrico, que lhe falei, e de não poder descan-
sar agora devido a nossa primeira apresentação da banda, está
tudo ocorrendo como planejado.
— Que ótimo. Tenha um bom show hoje.
— Obrigado.
— E como está o Samuel?
— Bem. Deve estar no quarto rasgando alguma calça para
hoje à noite ou costurando um lençol em uma jaqueta para criar
uma capa. — brincou. — Sabe o quanto ele gosta de inovar no
visual. — Ela riu. — Cadê o papai? Essa apresentação é muito
importante para mim, quero ouvir alguns conselhos dele.
— No momento ele está dormindo. — deu uma pausa —
Não queria lhe deixar preocupado esta noite, mas o Miguel
amanheceu um pouco mal. Ele estava com febre alta, mas ago-
ra parece ter diminuído um pouco.
— O que há com ele?
— Não sabemos exatamente. Sabe como seu pai é; não quis
ir ao hospital se consultar. Mas fique tranquilo, estou cuidando
dele e, logo-logo, ele estará bom.
— Ok. — disse — Agora vou me aprontar para mais tarde.
— Tudo bem, filho. Tchau.
— Tchau. Te amo.
— Também te amo. — desligou.

Martinelli abriu a porta e caminhou para dentro da casa.


— Eu ouvi o que você falou sobre mim! — exclamou Sa-
muel de dentro do seu quarto.

189
José Vitor Nunes

— Corrija-me se não estiver inventando alguma roupa para


o show de hoje. — disse indo em direção ao quarto de seu pri-
mo — Posso entrar?
— Um momento... — esperou cerca de dez segundos —
Pode entrar.
Ao abrir a porta, se depara com Greco vestindo um paletó
azul coberto por strass.
— Eu sabia!
— E aí? Como estou? Você gostou? — girou sobre os cal-
canhares e parou de frente a seu primo com os braços abertos.
— Você está parecendo um globo de luz brilhando desse jei-
to. — riu.
— Passei horas colando esses troços para você me dizer is-
so?
— Foi mau, Elton John. — caçoou.
— Vou considerar isso como um elogio.
Martinelli deu de ombros.

Clarice chegara à sua casa e sentara no sofá. Esticou as per-


nas e acomodou suas costas no encosto, deixando os braços
relaxados enquanto puxou o ar lentamente para dentro dos
pulmões e o deixou escapar rapidamente. Logo em seguida,
amarrou os cabelos em um coque atrás da cabeça e sentiu um
frescor na nuca. Deu um leve sorriso ao se lembrar que conse-
guira a bolsa de estudo.
Fechou os olhos e, sem querer, acabou pegando no sono.
Não fosse o toque de seu celular, cochilaria ali por mais de
cinco minutos.
— Oi, amiga. — falou Júlia.
— Oi.
— Já está pronta? Estou indo à sua casa.
— Pronta para o quê?
— Para a minha festa. O que mais poderia ser?

190
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Hoje o meu dia foi bem agitado, estou tão cansada que
talvez seja melhor...
— Nada disso — interrompeu —, você não irá perder o ani-
versário de dezenove anos de sua melhor amiga. Onde está a
consideração? Sem falar que a banda do seu amigo vai tocar
pela primeira vez e também devemos comemorar juntas a sua
conquista. Vamos aproveitar enquanto você ainda está aqui no
Brasil.
— Tem razão. Devo aproveitar cada dia com meus amigos.
— ficou de pé — Passe aqui em casa daqui a quarenta minutos.
— Gostei de ver! — exclamou Júlia do outro lado da linha
— Espere... Quarenta minutos?! — Clarice já havia desligado.

Quase um mês e meio atrás, Samuel e Isaac estavam presen-


tes no Rock Club prestigiando algumas bandas locais. Contudo,
hoje era o dia de eles serem prestigiados ao tocarem em uma
festinha particular e realizarem o primeiro show da Legado
XXI. Aos poucos, o sonho dos rapazes ia ganhando vida.
Subiram ao palco para montar os equipamentos.
— Cara, como essa roupa me faz suar. — reclamou Greco
— Acho melhor tirá-la antes do show. — tirou seu paletó azul
brilhoso e colocou sobre uma cadeira.
— É o preço que se paga para estar na moda. — zombou
Isaac.
Martinelli usava uma camiseta preta do Iron Maiden por
baixo de um colete jeans, uma calça um pouco rasgada na altu-
ra dos joelhos e All Star. Bernardo não abandonara sua camisa
branca de botões com sua gravata preta e calça social, e Thiago
vestia uma camiseta dos Mamonas Assassinas e um short.
Com tudo pronto para iniciar o show, Samuel colocou seu
paletó, sentou-se no banco e iniciou batendo as baquetas para
dar o compasso da música.
— Legado Vinte e Um! — gritou Isaac.

191
José Vitor Nunes

A primeira daquela noite foi Sweet Child O’ Mine do Guns


N’ Roses, que já fez com que todos ali presentes saíssem do
chão e começassem a pular e cantar juntos. Aquilo fez com que
a tensão dos garotos caísse e a confiança subisse para que eles
tocassem sem medo a primeira música autoral da noite.
— Agora uma autoral — anunciou Isaac —, que se chama
Além Do Que Os Olhos Podem Ver. — a banda deu início e
ele soltou a voz — Estar com você é sonhar/ Sem precisar
dormir/ É brigar contra o relógio para estar com você/ Para
não ter que partir — com os olhos fechados, lembranças suas
com Yasmin começaram a passar em sua cabeça como os me-
lhores momentos de um filme romântico —/ É viver o amor
que fomos feitos para sentir/ Sem ter medo de sentir/ É desco-
brir a diferença de viver/ E de sobreviver/ É lembrar que o
amanhã será belo/ Porque tenho você em minha vida/ É mos-
trar que o impossível se tornou possível/ E sempre acredita-
mos/ É perceber/ Que alma gêmea existe/ E que a perfeição/
Está dentro de quem sente/ É provar que a vida foi feita para
ser feliz/ E que um abraço/ Diz mais que mil “eu te amo”/ E
que amar estar além do que os olhos podem ver!/ Amor, você
faz parte de mim!

Seguiram tocando músicas autorais e covers. Isaac avistara


Clarice, Júlia, Mirelly, Estella e Fernanda juntas entre os outros
convidados.
Passando da metade do show, os rapazes deram uma pausa e
Martinelli afastou-se do microfone para propor algo aos inte-
grantes.
— Pessoal, a próxima música é Começos e Finais. O que
vocês acham de eu convidar Clarice para subir aqui e cantar
comigo como fizemos naquele ensaio?
— Ótima ideia! — exclamou Bernardo — Mas acho difícil
ela aceitar o convite.
— Podemos tentar. — falou Thiago.
Isaac assentiu com a cabeça e se aproximou do microfone.

192
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Galera, para essa próxima música eu queria convidar


uma pessoa querida para vir cantar aqui comigo.
— Ai, meu Deus, não acredito que ele vai fazer isso comigo.
— disse Clarice tentando se esgueirar entre os convidados.
Porém, Júlia a segurou pelo pulso.
O rapaz olhou em direção às garotas e disse:
— É você mesma, Clarice Ferrier. Suba ao palco, por favor.
A moça tentou se esconder, mas Júlia não permitiu.
— Olha ela aqui! — gritou apontando para Ferrier — Vai!
Vai! Vai! — começou, fazendo com que todos ali presente in-
sistissem também.
Não adiantava mais se esconder. A única alternativa da ga-
rota seria subir ao palco e passar cerca de cinco minutos can-
tando a bendita música que, na real, ela até que gostava.
— Está bem! Está bem! — cedeu ao convite — Eu vou.
— Aaaaêêêêê!! — gritaram e aplaudiram
Ela serpenteou as entre as pessoas até o palco. Subiu e falou
para Isaac:
— Vai ter volta.
Ele sorriu.
— Pronta?
A moça confirmou com a cabeça.
Martinelli enxugou o suor da testa com a munhequeira e
começou a tocar.
O ritmo lento aos poucos contagiava os jovens que estavam
presentes, criando um clima agradável e propício à troca de
afeto e beijos.
Alguns casais surgiam, fazendo surgir também um leve sor-
riso no rosto de Isaac.
É incrível o poder da música, pensou o rapaz. É incrível
como ela aflora os sentimentos.
Olhou para Clarice e ela retribuiu o sorriso, o encarando
com seus lindos olhos verdes-esmeralda.

193
José Vitor Nunes

Martinelli observou os casais e desejou naquele momento


poder estar lá em baixo beijando a bela garota que cantava a
sua frente.

Terminando a canção, o jovem deu um abraço bem apertado


em Ferrier e um leve beijo em sua testa.
— Uma salva de palmas para Clarice Ferrier! — a galera
aplaudiu e ela fez uma reverência — Obrigado.
Desceu do palco e voltou para onde estava.
— Arrasou, amiga! — gritou Júlia e assoviou.
Os garotos tocaram por mais trinta minutos e, quando termi-
naram, um DJ entrou em ação para continuar a festa.

— Missão dois: concluída. — falou Thiago se aproximando


das meninas.
— Clarice, você deveria repensar em fazer parte da banda.
— pediu Sam — Sério, você já é uma AmendoWin, falta ape-
nas ser batizada.
— Obrigada, fico feliz por tudo: pelo convite, por ser uma
AmendoWin — sorriu —, mas ficarei devendo em ser uma
integrante da banda. Gostei muito de ter cantado com vocês,
entretanto, esse sonho que estão realizando não pertence a
mim.
— Com licença — disse um homem bem vestido e animado
se aproximando —, olá! Prazer! — cumprimento os jovens de
um por um parecendo até um candidato a vereador querendo
conquistar alguns votos. — Sou Pedro Laycer, mas conhecido
como Play. Sou produtor de eventos musicais e muito amigo
do pai de Júlia, por isso por acaso tive a sorte de estar aqui hoje
nessa grande apresentação.
Os garotos se entreolharam.
— Queria lhes parabenizar pelo ótimo show, vocês arreben-
taram! — ele falava agitando os baços com muito entusiasmo
— Obrigado. — agradeceram.

194
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— A banda conseguiu animar a galera e tocar nos sentimen-


tos das pessoas, e procuro bandas assim, com ótimas letras e
melodias que emocionam. E você... — apontou para Ferrier
tentando se lembrar do nome — Clarice! Você canta maravi-
lhosamente bem. Nenhum deles nunca lhe convidou para ser
um membro da banda?
— Obrigada. Era o que estavam fazendo pela enésima vez,
mas sempre recusei os convites. Já estou envolvida em muitos
outros projetos. — explicou ela, sorridente.
— Não deveria perder essa oportunidade, pois esta banda
tem futuro. — deu dois tapas nas costas de Isaac mais forte do
que o garoto esperava — Mas vamos logo ao que importa.
Como lhes disse, sou produtor de eventos musicais, e irei trazer
uma grande banda de rock para a cidade no dia dez de outubro.
— explicou — Vocês devem conhecer a Embrião Humano, não
é?
— Embrião Humano?! — exclamou Martinelli — Sou super
fã daqueles caras! — comentou o jovem com muita animação
— Não irei perder esse show por nada!
— Espero que não, pois estou à procura de uma banda de
rock local para fazer a abertura do show. Estive no evento be-
neficente que teve aqui no clube. Apesar de ter gostado de al-
gumas bandas, a de você é mais completa pelas músicas auto-
rais, pela energia, pelos arranjos...
Os rapazes se entreolharam, boquiabertos.
— Espera, espera. — pediu Bernardo — Eu entendi direito?
Aonde você quer chegar?
— É isso mesmo o que vocês estão imaginando. Quero que
a Legado Vinte e Um faça a abertura do show da Embrião Hu-
mano no dia dez de outubro. E aí, topam?
— “Claro! Sem dúvidas! Com certeza!” — exclamaram.
— Ótimo. — puxou um cartão de visita do bolso da camisa
e entregou para Rivière — Entraremos em contato para fechar
contrato. Qualquer dúvida é só telefonar para algum dos núme-
ros desse cartão.

195
José Vitor Nunes

— Certo. — disse Thiago.


— Então é isso. Conversaremos depois. Tenham uma boa
festa e até mais.
— Até. — responderam.
Ficaram sem palavras até Pedro Laycer sair, então Isaac dis-
se por fim:
— Cara, dá para acreditar?! A Embrião Humano, velho! —
ficou de frente para Bernardo, pôs as mãos sobre seus ombros e
começou a sacudi-lo — A Embrião Humano!
Rivière empurrou de volta os óculos que escorregara sobre o
nariz com o indicador.
— A parada está ficando séria, mano. — comentou Samuel
— Vamos ficar famosos!
— E ricos! — completou Thiago levantando a mão para
Greco — High five! — e o rapaz a acertou.
— Parece que estou vivendo um sonho. — falou Martinelli.
— Amigos, — virou-se para os integrantes —, essa é a nossa
Missão Três. — estendeu a mão direita para frente. Todos se
aproximaram formando um círculo e colocaram sua mão por
cima da do último, como fizeram ao anunciarem a Missão Dois
— Um... Dois... Três...
— LEGADO VINTE E UM!!! — gritaram o que já havia se
tornado o grito de guerra da banda, explodindo as mãos para
cima.

Os rapazes estavam curtindo a festa com as garotas enquan-


to Isaac sentara-se em uma cadeira e refletia sobre aquela pro-
posta. O jovem ainda não conseguia acreditar que aquilo de
fato era verdade.
Começou a se lembrar de Yasmin dizendo que aquele show
da Embrião Humano fora o melhor da sua vida, mesmo não
tendo conseguido os autógrafos que tanto desejara obter.
Suspirou e disse baixinho para si mesmo:
— Yasmin, queria que estivesse aqui presenciando tudo is-
so. Você ficaria tão feliz...

196
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Oi. — falou Clarice se aproximando por trás sem que ele


percebesse. Ela pareceu não ter ouvido ou notado que Martinel-
li conversava sozinho.
— Oi. — girou um pouco o corpo rapidamente, olhando pa-
ra trás.
— Está fazendo o que sentado aí sozinho?
— Nada de mais. Apenas refletindo sobre tudo isso, sabe?
— ele apoiou o cotovelo na mesa e começou a afagar o queixo
com o polegar. Seu olhar ficara distante fitando as estrelas —
Em relação a Legado Vinte e Um está acontecendo tudo tão
depressa e de uma forma tão boa que parece mágica.
— Imagino como você deve estar transbordando de felici-
dade nesse momento. — puxou uma cadeira e sentou-se de
frente ao rapaz — Parabéns. Me orgulho de vocês. Esse será
um salto e tanto para a sua banda.
— Obrigado. — refletiu um pouco e falou — É interessante
como as coisas acontecem. Se você não tivesse me filmado
cantando para talvez me zoar depois — brincou, mas falando
sério —, Júlia nunca teria me visto cantar e não se interessaria
em assistir a um ensaio. Ou se você apenas não tivesse mostra-
do o vídeo a ela, ou ter mostrado e ela simplesmente não ter
gostado da música, ou se o aniversário de Júlia já estivesse
passado, ou se apenas aquele produtor não estivesse aqui para
nos ver tocando...
Clarice riu.
— Ou se você não tivesse tido a necessidade de ir à missa, o
que acabou fazendo com que você me visse cantar, o que nos
levou a ter uma conversa sobre isso e você me dizer que tem
uma banda e me convidar para ir ao ensaio.
Isaac começou a lembrar-se que o motivo de ele ter ido à
missa naquele domingo foi para ver Clarice, e se seguisse essa
linha de raciocínio, realizar o sonho de abrir um show de uma
de suas bandas favoritas só irá acontecer primeiramente graças
a ela.

197
José Vitor Nunes

Como Davi Gaspar explicou, cada escolha leva a uma gama


de novos caminhos, e cada um dessas escolhas é de essencial
importância na hora de se chegar a um objetivo. Talvez nada
aconteça por acaso, ou talvez apenas suas escolhas não sejam
por acaso. Mas o mais importante disso tudo é que o destino
estava sendo generoso com Isaac, ou talvez o garoto apenas
tenha feito as escolhas certas racionalmente, e algumas acertara
por acaso.
— Obrigado. — disse Isaac. Ela lhe abriu um lindo sorriso.
— Você já está sabendo que irei morar em Portugal por um
ano?
— Não, por que você irá morar lá por todo esse tempo? —
quis saber, surpreso.
— Há três meses fiz uma prova para concorrer a uma bolsa
de intercâmbio e, adivinhe só, eu consegui!
— Parabéns, isso é tão... tão... tão bom! — falou. Isaac ain-
da estava processando a informação de que ela iria passar um
ano longe dele.
— Obrigada. Esse intercâmbio é um sonho que estou reali-
zando desde já, porém, a saudade já aperta no peito por saber
que irei passar um ano longe da minha família e dos meus ami-
gos.
— Nem me fale. Este é o lado ruim disso. — comentou o
rapaz. Clarice apenas confirmou com a cabeça.
— Nossa, o período de aulas já termina nessa sexta-feira. —
lembrou Ferrier — Daqui a alguns dias eu já estarei pegando
meu voo. Espero que em Portugal passe rápido assim também.
— É verdade. — concordou — Quando você partirá?
— Por volta do dia vinte e cinco de setembro, pois as aulas
na Universidade de Algarve iniciarão no dia primeiro de outu-
bro.
— Hum... — ficou pensativo — Tive uma ideia!
— Diz.
— Lembra-se que prometi levá-la para ver o nascer do sol?
— Sim, sim.

198
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Escolha um dia que você possa ir comigo.


Ela pensou por um instante e disse:
— Sábado.
— Perfeito, eu e a galera combinamos de fazer uma despe-
dida para as férias na minha casa sábado pela manhã. Como de
costume, vamos jogar videogame. Posso te levar para lá após o
nascer do sol para realizarmos seu batizado. — sorriu. — Então
ficará assim: Sábado, às quatro e meia passo em sua casa, te
levo a um lindo lugar para prestigiar um belo nascer do sol e de
lá vamos para o seu batizado em minha casa.
— Combinado.
— Agora vamos procurar o pessoal? — propôs Martinelli se
levantando.
Ferrier assentiu e ficou de pé. O rapaz fez o mesmo, levan-
tando-se e oferecendo a mão para a garota.
Ela aceitou e os dois saíram de mãos dadas à procura de
seus amigos.

199
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 26

O
dia ainda estava por amanhecer quando Isaac Mar-
tinelli parara em frente a casa de Clarice Ferrier às
quatro e trinta da manhã. Nem precisou descer da
sua motocicleta para chamá-la, pois o barulho do
motor já denunciara sua chegada.
Permaneceu sentado sobre a moto com uma mochila nas
costas e esfregando as mãos para aquecê-las enquanto a moça
destrancava o portão de entrada.
— Bom dia! — disse ela sorridente, caminhando em sua di-
reção, vestindo uma calça jeans preta, botas marrons de camur-
ça que subiam até a metade da perna, uma blusa fina branca de
mangas longas e uma jaqueta jeans desbotada por cima dela.
— Bom dia. — respondeu dando lhe um abraço e entregan-
do-lhe um capacete.
Isaac já se acostumara com o frio matinal e, além do mais,
gostava de senti-lo. Ele vestia apenas sua camiseta de treino
verde com branca, uma calça qualquer e um par All Star.

Seguindo viagem, encontravam-se a cinco quilômetros ao


sul da ponte do Ioleste na trilha que costumava frequentar todas
as manhãs.
Demorara o dobro de tempo para chegar às margens do Rio
Iolete Leste, mas, como havia calculado, a alvorada surgia no
horizonte timidamente quase imperceptível, e as estrelas ainda
salpicavam o céu noturno.
— Não está com frio? — quis saber Clarice cruzando os
braços para prender o calor ao seu corpo enquanto entrava na
fina nuvem de neblina que pairava sobre a as margens do rio,
caminhando para perto da água.
— Sim — respondeu abrindo a mochila —, mas gosto de
senti-lo.

200
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Se eu soubesse que faria tanto frio, traria um cobertor. —


ela fitava seu reflexo na água escura e tão parada que parecia
até estar congelada. Passou suavemente a ponta da bota sobre
ela, fazendo seu reflexo dançar por sobre as pequenas ondas
que se formaram.
Óbvio que não está congelada, pensou.
— Eu sabia, por isso trouxe dois. — afirmou Martinelli.
A jovem se virou e o viu os tirando de dentro da mochila.
Ele colocou um enorme cobertor sobre o capim úmido pelo
sereno e jogou o outro para a garota que fez o mesmo, colo-
cando-o no chão, deitando-se no lado direito do cobertor e pu-
xando o esquerdo para cobri-la.
Isaac tinha a intenção de por um sobre o chão e compartilhar
o outro com Clarice, mas a moça parecia não ter notado. Então
ele pôs o seu ao lado dela e fez o mesmo. Deitou-se e sentiu o
capim úmido molhar o cobertor e sua camiseta.

Deitados observando as estrelas, Isaac recordava que já fize-


ra aquilo várias e várias vezes, mais nunca com uma garota que
não fosse Yasmin e nunca esperando o nascer do sol.
— “Quando a noite cai, olho para o céu e vejo a lua, ela me
faz lembrar de você; e as constelações formam seu rosto.” —
disse o rapaz olhando para ela com um leve sorriso surgindo.
— Citando Cartas Anônimas de Um Fugitivo. — virou-se e
o encarou de perto — Gostei. — colocou a mão para fora do
lençol e a estendeu para Martinelli acertá-la. Ele bateu e segu-
rou.
— Está bem gelada. — afirmou levando a mão esquerda
junto para aquecê-la.
— Está vendo aquelas estrelas? — apontou. O rapaz ficou
confuso sem saber quais exatamente ela se referia. — Aquela...
Aquela... Aquela e aquelas outras quatro próximas a elas?
— Ah, sim! Estou vendo. — confirmou sem ter certeza.
— Sabe qual constelação elas formam?

201
José Vitor Nunes

— Escorpião? — chutou dizendo o nome da primeira cons-


telação que lhe veio à mente.
— Não, elas formam a Constelação de Ferrier. — soltou
uma gargalhada boba.
Ele riu.
— E eu imaginando que você mandava bem na astronomia.
— Sério! Aquela constelação forma meu rosto! — brincou
— E pode formar qualquer coisa que eu imaginar. Porém, não
consigo visualizar a Constelação de Escorpião, Sagitário... Por
mais que eu saiba a localização das estrelas, não consigo en-
xergar desenho nenhum. — confessou.
— Eu também não consigo.
— Mas as minhas Três Marias eu as vejo todas as noites.
— O Cruzeiro do Sul também é bem fácil de identificar.
— É sim...
— Falando em estrelas e constelações, me lembrei de algu-
mas coisas sobre astrologia que aprendi com Estrela. — ela o
observava fixamente. O garoto soltou a mão esquerda da de
Clarice para inclinar o corpo, mas continuou segurando a mão
dela com a sua direita — Ela me falou um pouco sobre o signo
de capricórnio, o de câncer e outras coisas, mas como o seu é
de câncer, falarei um pouco do que ainda me lembro sobre ele,
fazendo algumas análises também.
Ferrier assentiu.
— Segundo a Astrologia, pessoas do signo de Câncer pos-
suem certa energia de afeto e proteção, algo que pode ser com-
parado com aquele cuidado que uma mãe tem com seu filho.
Costumam ter o humor inconstante, algo que eu acho muito
relativo, pois nem sempre acordamos em um dia bom. Claro
que haverá dias de mais estresse ou melancolia, mas enfim...
“segundo a astrologia”, essa inconstância no humor é coisa dos
astros.
— Também acho que isso seja muito relativo ao que a pes-
soa está vivenciando.

202
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Justamente. — disse ele — Continuando... é um signo


que leva tempo pra ganhar confiança; que tem uma sensibilida-
de e medo de se entregar, de contar todos os segredos, de dizer
que está gostando de alguém — aquela afirmação fez Clarice
levantar levemente a sobrancelha direita —, de se declarar...
Coisas do tipo. — deu uma pausa, tentando se lembrar de mais
alguma coisa — Cancerianos conseguem lidar muito bem com
a distância em termos de sentir saudades de alguém. Veem o
amor mais como uma troca de informações, diálogos, estímulos
mentais, e não obrigatoriamente carinhos e troca de afeto.
Também pensam muito no que fazer, mas às vezes acabam
pensando tanto e não fazendo nada. — deu outra pausa — Tu-
do isso “segundo a astrologia” — e segundo o Mapa Astral
dela, o que ele preferiu não comentar.
— Devo admitir que muitas dessas coisas têm a ver comigo,
mas discordo do humor inconstante ser propriedade de pessoas
do signo de Câncer, pois acredito que acontece com todo mun-
do. Discordo também do amor como uma troca de informa-
ções, diálogos e estímulos mentais, pois o amor é bem mais
que isso.
— E eu concordo com você. Vejo a astrologia como um jo-
go aleatório de informações genéricas, ou seja, sempre haverá
algo em comum que irá faz as pessoas pensarem: ei, eu sou
desse jeito mesmo!
— Isso parece mesmo dar certo. Então analisando os fatos,
podemos dizer que a astrologia é um conjunto de característi-
cas que todos sempre têm em algum momento, por menor que
sejam. Essas características são direcionadas a um conjunto de
pessoas, fazendo com que todas sempre se identifiquem com
algo e, de pouquinho em pouquinho, elas acabam sendo leva-
das a acharem que tudo aquilo tem a ver consigo, o que, na
nossa lógica, nos leva a afirmar que a astrologia se resume a
uma questão de probabilidade matemática e também a um jogo
psicológico.
Martinelli soltou a mão da garota para aplaudi-la.

203
José Vitor Nunes

— Bingo! — exclamou ele — Chegamos a uma conclusão


que faz todo sentindo, o que quer dizer que nossa ótima comu-
nicação não tem nada a ver com a questão de termos signos
complementares, ou... talvez chegamos à mesma conclusão
porque temos signos complementares e nossa comunicação é
perfeita, “segundo a astrologia”. — brincou.
Ela riu.
— E a atração à nível físico — continuou — também não
posso negar que existe, e não é apenas isso, você me deixa ma-
ravilhado com esse seu jeito meigo — disse ele olhando-a nos
olhos com uma voz suave e firme —, sua determinação, seu
altruísmo. Esse seu sorriso simpático me encanta, seu olhar me
apaixona, seus abraços me confortam, sua presença me alegra.
— Clarice o observava, surpresa — Você acalma minha mente,
mas ao mesmo tempo faz meu coração disparar.
Isaac apoiou os cotovelos no chão, fazendo com que seu
corpo pairasse sobre o dela. Sentiu seus membros formigarem e
o coração disparar à medida que seus lábios se aproximavam
lentamente dos lábios de Clarice até se tocarem.
Deitados ali, Isaac não percebera como, mas já compartilha-
va do mesmo cobertor e estava por cima de Clarice. Ela podia
sentir o calor e os músculos do abdome de Martinelli tocando
no seu. O rapaz passou a beijá-la no rosto, descendo para o
pescoço e voltando a beijá-la novamente nos lábios. Passou sua
mão direita nos cabelos de Ferrier e a esquerda subia por sua
perna, indo em direção à sua barriga e levantando calmamente
sua blusa.
Clarice pôs as mãos na cintura do rapaz e as subiu para as
costas por dentro de sua camisa, sentindo cada músculo de
Isaac tensionado.
Quando Martinelli subiu mais sua mão até chegar ao sutiã
da garota, ela desceu com as unhas arranhando suas costas em
uma reação instintiva de prazer, porém, instantaneamente vol-
tou à consciência, afastando seus lábios dos do rapaz e dizendo
a seguinte frase:

204
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Melhor não...
— Ok. Me desculpa... — balbuciou Martinelli se afastando
— Eu... Eu...
— Tudo bem. — sussurrou ela.
O garoto voltou a deitar-se em seu lugar.

Permaneceram em silêncio por um longo tempo, apenas ob-


servando as estrelas e ouvindo o cantar dos grilos.

Toda sensibilidade e medo de se entregar estão também na


comunicação dela, Isaac lembrou-se que Estella havia lhe dito
há muito tempo. Será se devo acreditar nisso?. Soltou um sus-
piro, achando todo esse lance de astrologia uma grande boba-
gem.

Às exatas 5h:43min., um terço do sol havia aparecido no ho-


rizonte, trazendo consigo uma linha alaranjada que se espalha-
va por suas laterais até se perder em algum lugar. Logo acima
dela, uma faixa um pouco mais espessa passava do alaranjado e
se transformava gradativamente em amarelo. Subindo mais, era
possível ver um azul celeste se escurecendo até se confundir
com o negro céu noturno salpicado de estrelas.
— Isso é mágico. — comentou Ferrier.
— O nascer do sol me faz refletir um pouco. — disse o ra-
paz sentando-se com os joelhos encostados no peito e fitando o
horizonte — O início de cada dia é um ótimo momento para
pensar sobre o que iremos fazer no decorrer das vinte e quatro
horas. Ele tenta nos ensinar como devemos iniciar o dia, mos-
trando isso de uma forma tão simples, calma, elegante e encan-
tadora.
Ferrier apenas o ouviu, pensativa, observando o céu sendo
iluminado aos poucos e revelando as nuvens que pairavam so-
bre eles.
— Aquela nuvem forma a cabeça de um cavalo. — disse a
moça apontando.

205
José Vitor Nunes

Martinelli seguiu com os olhos para onde seu dedo aponta-


va.
— Está parecendo mais com um pé de meia.
— Não mesmo. É a cabeça de um cavalo. — insistiu ela.
— É um pé de meia com o desenho de uma cabeça de cava-
lo. — concluiu o rapaz olhando para Clarice com um meio sor-
riso. Ela pareceu concordar.
— Aquela se parece com um elefante. — apontou.
— Elefante? Ela não tem nada a ver com um elefante.
— Claro que sim. Ali fica a cabeça, ali a tromba e, para trás,
o resto do corpo.
— Devo discordar com você, pois não se parece nada com
um elefante.
— Como você não consegue ver o formato de um elefante?
Onde está sua imaginação? — brincou ela — Então me diz
com o quê você acha que ela se parece?
— Hum... — pensou por um momento — Com a silhueta de
um coelho terminado de comer uma cenoura.
— A silhueta de um coelho terminando de comer uma ce-
noura? — repetiu ela, confusa, sem conseguir visualizar.
— Como você não consegue ver a silhueta de um coelho
terminando de comer uma cenoura? Onde está sua imagina-
ção? — caçoou.
Eles riram.
— Seis e vinte. — disse Isaac olhando as horas no celular
— Hora do café da manhã. — abriu a mochila e retirou de den-
tro uma garrafa térmica com café e leite já misturado e alguns
recipientes que continham pães, queijo e presunto.
— Você veio mais preparado do eu imaginava. — comentou
Clarice — O que mais tem nessa mochila?
— Isto! — retirou rapidamente uma faca de mesa — Caso
apareça alguma onça. — falou — Brincadeira. É para cortar o
pão.
A garota revirou os olhos e sorriu.
— Também trouxe copos.

206
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Ficaram por cerca de trinta minutos discutindo sobre o for-


mato das nuvens enquanto comiam. Ao terminarem, seguiram a
caminho da casa de Isaac para se encontrarem com os Amen-
doWins.

Como o CD do futebol já rodando dentro do aparelho de vi-


deogame, Samuel e Thiago faziam um sorteio para saberem
quem enfrentaria quem no minicampeonato.
Por coincidência, do lado esquerdo das chaves ficaram ape-
nas os rapazes. Bernardo e Thiago disputavam pela primeira
vaga, Isaac e Samuel pela segunda. Do lado direito, Estella
enfrentaria Mirelly e Clarice enfrentaria Fernanda.
A primeira partida foi muito acirrada. Bernardo marcara
dois gols nos primeiros vinte e cinco minutos, porém, Thiago
conseguira empatar nos quarenta e três do primeiro tempo. O
segundo tempo seguiu sem gols, entretanto, a disputa se manti-
nha quente com vários lances de perigo a cada minuto. Logo
nos primeiros cinco minutos de prorrogação, Bernardo fizera
outro gol e manteve seu time recuado até o fim da partida, con-
seguindo um resultado de 3x2 e uma vaga na semifinal.
— Amendo?!... — gritou Bernardo — Wins! — todos ex-
clamaram ao mesmo tempo.
A segunda partida foi entre Isaac e Samuel. Não chegou a
ser disputada como a primeira. Sam abrira o placar no primeiro
tempo e conseguira ampliar no segundo, vencendo seu primo
por 2x0.
— Amendo?!... — vociferou — Wins! — clamaram.
Seguiu-se a sequência de partidas menos emocionantes, com
a vitória de Estella por 1x0 e o jogo monótono entre Clarice e
Fernanda que seguiu sem gols até à disputa de pênaltis.
— E a partida será disputada nos pênaltis! — exclamou Sa-
muel imitando um narrador de futebol e segurando um pente
para simular um microfone.

207
José Vitor Nunes

Ferrier já estava pronta para iniciar as cobranças. Ela se in-


clinava para a esquerda tentando esconder o joystick de sua
amiga com a intenção de que ela não visse em qual lado seria o
chute.
— Ajeitou a bola com carinho para a primeira cobrança... —
narrava o rapaz — concentrou... partiu... bateeeeeeeeeeu!!! —
todos ficaram de pé — Para foooooora!!!
Uuuuuhh, lamentaram. Aquele jogo começava a ficar emo-
cionante.
— É lá! É lá! Bateeeeeu!! Alta demais...
A expectativa para o primeiro gol crescia a cada instante.
Na terceira cobranças de Clarice, veio o milagre.
— Beijou a bola. Escolheu o canto. Bateeeeeeu!! — o golei-
ro se jogou para o lado esquerdo, contudo, o chute foi rasteiro e
no meio — Gooooooooooooooooool!!!
Todos começaram a pular e gritar em comemoração abra-
çando as garotas. Alguém, sem perceber, acabou esbarrando no
fio do joystick, puxando o videogame da estante, arrancando-o
da tomada e o levando ao chão.
O baque os deixou paralisados.
— Temos um empate! — anunciou Isaac — E duas novas
AmendoWins!
Continuaram a comemoração pulando, abraçando as garotas
e clamando: Amendo?! Wins! Amendo?! Wins! Amendo?!
Wins!
— Vamos logo comer esses amendoins — propôs Thiago —
Estou cheio de fome.

Depois da despedida de final de período com os amigos,


Isaac se deitara para tirar um cochilo. Acordara às 15h com
Samuel aos berros e acendendo a luz do quarto.
— Para de fingir que está dormindo!
— Sai daqui! — jogou o travesseiro em seu primo — Me
deixa dormir.

208
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— O grande dia chegou! — jogou de volta o travesseiro.


— Grande dia de quê? — perguntou apertando os olhos de-
vido à claridade.
— Da minha revanche. Você achou que eu havia esquecido?
— Ah, claro. Eu não me lembrava mais.
— Está esperando o quê? Levanta logo daí e vamos procurar
uma trilha que nem você e nem eu conhecemos para ninguém
sair com vantagem.
— Ótimo, estou a fim de novos desafios. Já não aguento
mais correr sempre na mesma trilha. — confessou — Mas você
tem mesmo certeza que quer me tirar dessa cama só para te
fazer comer poeira?
— Isso é o que veremos. — deu uma piscadela.
O celular de Martinelli começou a tocar.
— Alô? — falou ao atender.
— Oi, filho, tudo bem? — perguntou Sofia.
— Estou bem. E a senhora?
— Bem, mas telefonei para avisar que seu pai foi internado.
Thomás e Ires Endler vieram conosco e estão me fazendo com-
panhia.
— O que o papai tem? — quis saber Martinelli um pouco
angustiado.
— Seu pai estava com febre alta, sentindo fraqueza no corpo
e não está se alimentando como deveria. Ainda não sabemos a
causa disto, pois o médico ainda irá consulta-lo e medicá-lo.
— Espero que não seja nada grave...
— Estamos torcendo para que não seja. — pigarreou e mu-
dou de assunto — Que dia você virá para Bela Vila?
— Amanhã.
— Ótimo. Estamos morrendo de saudade.
— Eu também estou.
— Bem, filho, agora terei que desligar. Não sabemos por
quanto tempo iremos ficar aqui no hospital, então precisamos
providenciar algumas coisas.

209
José Vitor Nunes

— Tudo bem. Manda um abraço para o papai e para o se-


nhor e senhora Endler.
— Pode deixar. — disse ela — Até mais, filho. Te amo.
— Também te amo.
Isaac virou-se para Samuel com o olhar preocupado.
— O que houve, primão?
— Meu pai foi internado. Até agora não se sabe o que ele
tem. — passou a mão nos cabelos e os deixou escorrer entre os
dedos — Pressinto que estão me escondendo algo, pois eu sei
que o papai odeia estar em hospitais, e odeia mais ainda ter que
ficar internado.
— Relaxa, cara. Não deve ser nada sério. — Greco também
estava preocupado, porém, deveria passar uma força para o
primo e tentar distrai-lo — O tio Miguel é forte. Ele vai ficar
bom rapidinho. Você vai ver.
— Espero que sim.
— Então vá tomar um banho porque quero te cobrir de poei-
ra. — deu dois tapinhas no ombro de Isaac.

Seguindo a estrada ao norte do Iolete Leste, os garotos avis-


taram um senhor magro que aparentava ter em torno de sessen-
ta anos em uma bicicleta e o abordaram. Ele usava um chapéu
de palha, camisa com os botões abertos até o peito, calças sujas
de areia e barba branca por fazer. Na bicicleta, estavam amar-
radas uma inchada e uma bolsa velha.
— Com licença, senhor. — disse Martinelli — Você sabe se
existe por aqui alguma estrada de terra que dá acesso ao rio?
— Estrada, estrada “num” tem não — ele falava com um so-
taque diferente das pessoas da cidade — Mas tem uns carreiro
que eu acho que dá pra passar de “mota”.
Greco abafou uns risinhos.
— Ótimo. — falou Isaac — Onde fica?
— Óh, “cê” pode ir aqui “diretão” — apontou fazendo um
movimento com o braço —, aí “cê” vai vê uma cerca desse

210
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

lado. Aí “cê” pode seguir abeirando nela até achar uma entra-
dinha de terra. Aí “cê” pode seguir ela que vai parar lá no “ri”.
— Muito obrigado, “sinhô”. — Samuel agradeceu imitando
o homem — “Cê” ajudou a gente muito.
O homem assentiu com a cabeça e eles saíram em disparada
seguindo as suas orientações.

— Nenhum de nós dois já pilotou aqui. — disse Isaac pa-


rando sua motocicleta na entrada da estrada que ia se estreitan-
do mais à frente —, ou seja, ninguém está em vantagem.
— Exatamente. — Sam parou ao lado de seu primo — Va-
mos logo, estou esperando por essa revanche há meses!
Martinelli o olhou com um olhar pretencioso e um sorriso de
canto.
— Vamos! — alinharam as motocicletas e começaram a
contagem.
— Um! Dois! Três!
Sam disparou na frente enquanto seu primo ficou parado
propositalmente por dois segundos, o que o deixou para trás há
uma distância considerável. Então arrancou levantando poeira
para acompanhá-lo.

Frank Smith estava em seu escritório fazendo a contabilida-


de das vendas e organizando alguns papéis quando seu telefone
tocou em cima da sua mesa ao lado do computador. Ele aten-
deu no segundo toque.
— Alô?
— Frank?! — disse Sofia do outro lado da linha com a voz
estranhamente nervosa de quem estivera chorando em desespe-
ro.
— Sim, sou eu. — respondeu. A voz de sua cunhada fez seu
corpo gelar.

211
José Vitor Nunes

— Traga Isaac para Bela Vila agora... — engoliu o soluço


entre choros — aconteceu algo terrível!

212
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 27

E
m seu quarto, Clarice não parava de pensar em Isaac
e na sua mão deslizando por seu corpo. A moça não
conseguira raciocinar direito naquele momento, pois
aquilo parecia tão certo, mas ao mesmo tempo tão
errado.
Martinelli é seu amigo, mas ultimamente ela não conseguia
distinguir o que sentia por ele, pois era um tipo diferente de
sentimento que ela nunca sentira por ninguém. Era uma vonta-
de de estar sempre perto do rapaz, conversando, abraçando...
Quando Isaac a beijava no rosto, fazia com que os pelos de
sua nuca arrepiassem.
Começara a imaginar como seria se estivesse deixado acon-
tecer; como se sentiria estando na presença dele; como ficaria a
amizade dos dois, dentre várias outras coisas.
Sua vontade agora era de ter o poder de voltar no tempo e
deixar rolar para saber o que de fato aconteceria. Caso houves-
se algo desagradável, voltaria novamente no tempo e faria o
que fez: não ter feito.

Em todos esses anos, Clarice Ferrier nunca sentira algo as-


sim por ninguém, e sentir isto agora, faltando tão pouco tempo
para sua viagem a Portugal, parecia fazer com que sua vida
estivesse prestes a tomar rumos completamente diferentes do
que ela planejava.
Pegou o celular, abriu a galeria de fotos e começou a ver al-
gumas fotografias com Martinelli no show beneficente, no pôr
do sol, na visita ao hospital e no nascer do sol daquele dia.
Colocou a música Always do Bon Jovi em um volume agra-
dável para tocar e apagou as luzes do quarto, deixando apenas
o brilho do celular iluminando seu rosto enquanto fitava uma
fotografia dos dois na tela.

213
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 28

B
ela Vila é uma pequena cidade que fica há 370
quilômetros da Capital. Com cerca de trinta mil
habitantes, a cidade evolui e cresce de forma lenta,
tendo o seu Marco Zero a igreja matriz, que foi de
onde Bela Vila começou a se expandir, tornando-a geografica-
mente o centro da cidade.
No centro da igreja, e tecnicamente no centro da cidade, ha-
via um caixão de madeira bem envernizado e algumas pessoas
vestindo preto ao redor dele.
Isaac Martinelli preferiu ficar sozinho por alguns minutos
em um banco ao fundo na tentativa de, em algum momento,
poder acordar daquele pesadelo. A ficha não caía, e mais uma
vez ele se perguntava o porquê de tudo aquilo está acontecendo
novamente.
O rapaz puxou um lenço do bolso de dentro do terno e secou
uma lágrima dos olhos inchados e escurecidos pelas olheiras
que surgiram após passar a noite anterior acordado e chorado
sem parar.
Um homem senta ao seu lado e passa o braço por cima dos
seus ombros, dando lhe um abraço acolhedor. Isaac descansa a
cabeça sobre o peito dele e diz:
— Somos tão frágeis. Uma hora estamos cheio de vida, e
um segundo depois já não há mais vida.
— Somos mais fortes e ao mesmo tempo mais frágeis do
que você imagina, filho — disse Miguel Martinelli.
O garoto agarrou-lhe pela cintura, fechou os olhos e aquelas
lembranças vieram à tona em sua mente.

— Um! Dois! Três!

214
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac deu dois segundos de vantagem para seu primo sem


que ele soubesse, com a intenção de aumentar o grau de difi-
culdade daquela disputa.
A estrada era muito estreita, cheia de pedras, buracos fundos
e cumprido que formavam grandes fendas, fazendo com que
qualquer descuido, na melhor das hipóteses, haveria uma queda
na certa, e na pior, o piloto poderia ser arremessado contra as
árvores que pareciam espremer a pequena passagem.
Para Martinelli a dificuldade era ainda maior, pois a poeira
levantada pela moto de Samuel dificultava bastante a sua visi-
bilidade. Qualquer pedra, buraco, árvore ou galho poderia leva-
lo ao chão.
Greco acelerava fundo e desviava dos obstáculos com maes-
tria. Isaac fazia o mesmo na tentativa de ultrapassá-lo.
O caminho aos poucos foi ficando mais largo e com menos
obstáculos à medida que um aclive surgia em um trecho com
cerca de quinhentos metros. Samuel acelerou ainda mais e voo
em um salto, desaparecendo da visão de seu primo no momen-
to do pouso.
Um estrondo de plástico, ferro e madeira se quebrando eco-
ou no momento em que o barulho do motor da motocicleta de
Greco desapareceu misteriosamente.
Martinelli pisou no freio antes de chegar ao final do peque-
no morro. Parado lá em cima, viu seu primo caído por entre
uma cerca de arame farpado ao lado de sua moto. Ambos esta-
vam cobertos de poeira.
Isaac voltou a acelerar a moto para se aproximar de Sam.
Deu um cavalo-de-pau, saltou de cima dela e a deixou cair.
— Sam?! Sam?! — berrou enquanto corria em direção ao
sem primo. Caiu de joelhos ao lado dele e pôde vê-lo rebatendo
as pernas e movimentando o corpo freneticamente. Os olhos
esbugalhados transpareciam o medo, a angústia e a dor do ra-
paz que segurava o pescoço com as duas mãos na tentativa de
estancar o rio de sangue que saía de dentro do seu corpo. O
tempo pareceu desacelerar naquele momento e Isaac sentira ter

215
José Vitor Nunes

saído da realidade. Sem saber o que fazer, pôs suas mãos por
cima das de Greco. — Vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem!
— repetia instintivamente sem ao menos perceber que estava
falando.
Samuel diminuiu aos poucos os movimentos agonizantes até
parar. Seu olhar começara a ficar mais relaxado e perdia o fo-
co, trazendo-lhe uma expressão vazia. Martinelli sentira as
mãos de seu primo perdendo a força.
— Fica comigo, primão! — pedia em gritos de desespero
que cortavam e rasgavam o ar. — Fica comigo, por favor! —
seu rosto já estava coberto de lágrimas que pingavam sobre a
poça de sangue formada no chão e sobre a camisa de Sam em-
papada de vermelho.
O rapaz puxou o celular do bolso e discou o número da
emergência. A cada número teclado, suas digitais eram pinta-
das na tela do aparelho que ficara completamente melado de
sangue do seu primo.

— Vamos nos sentar lá na frente junto com a família. —


disse seu pai passando a mão nas suas costas e o trazendo de
volta ao presente — O padre já irá iniciar.
Levantaram com dificuldade e caminharam pelo espaço dei-
xado entre as fileiras de cadeiras que iam da porta principal da
igreja até o altar.
Mesmo com a cabeça baixa na tentativa de esconder as lá-
grimas, Martinelli conseguia perceber os olhares de dezenas de
pessoas voltados para eles.
Aproximaram-se do primeiro banco localizado logo atrás do
caixão de Samuel e se juntaram à Cláudia Greco, Marcelo Gre-
co, Frank e Sofia. Isaac sentou-se ao lado de sua mãe e seu pai
sentou-se ao seu lado.
O jovem não conseguia ouvir nada do que o padre falava.
Seus pensamentos faziam uma viagem desde sua infância com
Sam até àquele dia. Lembrava-se do jeito sempre alegre e exa-

216
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

gerado dele, aquela piscadela característica, as coisas em co-


mum, a convivência dos dois, os momentos bons e ruins que
passaram juntos. Quando Yasmin se fora, era com Samuel que
Isaac mais conversava; era ele que passava a força que Marti-
nelli necessitava; que o confortava, pois o rapaz não queria
preocupar ainda mais seus pais e, mesmo assim, Greco lhe en-
tendia, pois convivia o tempo todo com aquele casal, comparti-
lhavam das mesmas aventuras e de sonhos em comum. E agora
o que restara para Isaac novamente foram apenas as lembran-
ças, desejos e sonhos. Martinelli nunca mais irá ouvir aquelas
gargalhadas, a porta abrindo e Sam entrando em seu quarto
como um raio para lhe contar alguma ideia tão banal, mas que
ele não poderia esperar nem mais um segundo, pois sempre
necessitara contar tudo para seu primo em primeira mão. Nun-
ca mais irá sorrir de uma roupa criada por ele, e que, em sua
cabeça, vai cair na boca do povo e virar moda. Nada de camise-
ta com uma capa ou um paletó coberto de strass.
É difícil se deparar com o fim. Tudo o que você não dava à
mínima atenção passa a ser tão significante a partir do momen-
to em que se cai na real de que nunca mais irá presenciar aquilo
novamente. E, naquele momento, todas aquelas coisas parecem
se tornar uma necessidade.
Finais são difíceis.
Isaac lembrava-se que dissera que o desempate no Desafio
Regional nunca iria acontecer, pois ele iria ganhar a revanche
também. Lembrou-se do dia da comemoração de aniversário de
Greco, de quando Clarice perguntara por que comemorar tão
antecipadamente assim, e ele dissera: “nunca se sabe o dia de
amanhã”. Todos aqueles pensamentos eram apenas uma forma
de tentar dar uma explicação a o que havia acontecido. As pes-
soas buscam explicação em tudo, até nas coisas mais naturais
da vida. Porém, um fato intrigante disso tudo foi a afirmação
de uma cigana que lhe dissera: “você vai perder uma pessoa
que ama muito”. Aquela era uma afirmação muito relativa,
entretanto, deixava Martinelli extremamente assustado. Esco-
lhas, destino ou coincidência, pensou ele. Existia apenas uma

217
José Vitor Nunes

certeza, o que acontecera não havia sido uma escolha de Samu-


el.

Alguns familiares subiam ao altar e falavam um pouco sobre


o jovem rapaz que partira. Isaac queria apenas ir para sua casa,
deitar em sua cama e ficar um pouco sozinho, contudo, sua
mãe lhe convencera a dizer suas últimas palavras na presença
vazia do seu primo.
O rapaz caminhou em direção à bancada de madeira, pas-
sando pelo esquife aberto de Greco sem olhá-lo, entretanto,
perifericamente o viu estirado lá dentro, vestindo uma camisa
branca e com uma gaze enrolada no pescoço que escondia os
pontos do local onde a cerca lhe cortara. Seu rosto estava páli-
do e os lábios sem cor.
Pegou o microfone, limpou a garganta e começou a falar.
— Nem preciso dizer como é difícil perder pessoas que tan-
to amamos — olhou à sua volta e se perguntou se toda aquela
gente realmente conhecia Sam —, é uma dor imensurável. Sa-
muel era para mim o irmão que eu nunca tive por ser filho úni-
co. Desde que me entendo como gente, ele sempre esteve co-
migo em todos os momentos, dos mais felizes aos mais tristes,
dos de fúria por brigas bobas aos de tranquilidade. Irmãos são
assim, se odeiam por cinto minutos, então voltam a se amar. Eu
também estive com ele nos diversos momentos de sua vida...
até o seu último. — fechou os olhos e respirou fundo para con-
ter as lágrimas — Um filme está passando por minha cabeça;
das nossas disputas de qual aviãozinho de papel voava mais
alto ou mais longe, de quem conseguia fazer uma pedrinha
pular mais vezes na água antes de afundar... “tente com esse
caco de telha. Faça-o girar mais rápido, que assim ele quicará
mais vezes.”, Sam instruía-me. Ninguém além de mim irá saber
o quanto esse cara me fez crescer. No que sou bom hoje, devo
muito isso a ele, pois nas nossas disputas sadias, Sam sempre
me ensinava algo para aperfeiçoar meus conhecimentos, mi-
nhas técnicas, e essa troca de ajuda nos trouxe várias conquis-

218
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

tas e sonhos realizados. Infelizmente não terei mais esse parcei-


ro que sempre me fez bem. — tomou coragem e olhou para seu
primo no meio da igreja antes de concluir — Só queria agrade-
cer tudo que você fez por mim, irmão. Te amo pra caralho. —
deixou o microfone sobre a bancada e caminhou em direção ao
banco onde seus pais estavam, mas antes, deu dois tapinhas no
ombro de Samuel enquanto passava por ele.

Ao chegarem ao cemitério, Martinelli pegou de dentro do


porta-luvas do carro a camiseta vermelha com detalhes brancos
que Greco sempre usava nos treinos. Alguém a havia lavado e
tirado todo o sangue que nela continha.
Enquanto todos faziam uma última oração de corpo presen-
te, Isaac olhava para a camiseta e a apertava com força.
Caminhou para perto do esquife que descia lentamente até
tocar o chão da vala.
As primeiras pás de areia começaram a cobrir a madeira lá
no fundo, e o rapaz observava a camiseta em sua mão, mas não
conseguia soltá-la e deixá-la cair para cobrir o caixão e ficar
perto de seu dono.
Dois dedos tocaram suavemente seu ombro. Ele virou-se e
viu sua mãe pedindo-lhe para que se afastasse da poeira que
começava a pairar. O rapaz deu meia-volta e seguiu em direção
ao carro de seu pai que se encontrava no estacionamento para
devolver a camiseta ao porta-luvas.
Um carro vermelho antigo bem familiar estava estacionado
no sentido oposto do estacionamento ao lado de uma van. Era
possível ver apenas alguns metros de sua dianteira.
— É o Red Hot? — perguntou-se baixinho e foi até lá para
conferir.
Chegando lá, avistou quatro garotas e dois rapazes entre o
carro vermelho e a van.
— Pessoal? — disse Isaac.

219
José Vitor Nunes

Os olhos marejados de Estella foram de encontro aos seus.


O rapaz andou em direção a ela e deu-lhe um abraço apertado e
os dois caíram em prantos.
Bernardo, Thiago, Mirelly, Clarice e Fernanda os acolheram
em um abraço coletivo.
Cerca de dois minutos depois quando todos estavam mais
calmos, Martinelli disse:
— Não sabia que estavam aqui.
— Viemos assim que soubemos o horário da missa. — falou
Thiago.
— Como ficaram sabendo do acidente?
— Seu tio Smith me mandou uma mensagem de texto por
volta das oito horas da noite dando a notícia, então peguei o
carro, fui à casa de Müller, Rivière, Heins e de Ferrier e fomos
todos juntos à casa de Lewis dar a infeliz notícia. — apertou os
lábios em um gesto de lamentação.
Agora eu sei por que o tio Frank pediu meu celular quando
estávamos vindo para Bela Vila, pensou.
Isaac olhou para Estrela, que o olhava de volta com os olhos
inchados e semblante triste.
— Mantivemos contato. Ele me disse o horário da missa e
viemos assim que pudemos. — concluiu Lazzo.
— E o que fazem sozinhos aqui no estacionamento?
— Não conseguiria me despedir assim de Sam. — explicou
Estella — Já não conseguia vê-lo na igreja dentro daquele...
Imagine sendo... — voltou a chorar. Clarice ofereceu-lhe o
ombro. — Ontem na nossa despedida em sua casa — voltou a
falar entre soluços e lágrimas — ele me disse coisas tão boni-
tas... Falou que nunca havia sentido por ninguém o que estava
sentindo por mim, e que finalmente encontrara a garota certa, a
que ele se imaginava no futuro morando na cobertura de um
prédio em Londres que ele mesmo iria desenhar. Eu, ele e mais
oito filhos. — abriu um leve sorriso — Sam disse que me ama-
va e que essas férias iriam ser longas, e não via a hora de elas
acabarem para voltar para Ilha do Rio e ficar pertinho de mim.

220
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— deu uma pausa, respirou e disse: — “Amanhã talvez já seja


tarde demais. Vamos aproveitar o dia de hoje. Que o amanhã
pode não existir. E o final será difícil.”
Ficaram em silêncio por alguns segundos.
— Samuel amava muito você. — afirmou Isaac — Você foi
a única garota que ele amou de verdade.
— Ele me amava muito. Amava... — pousou a cabeça no
ombro de Clarice, escondendo o rosto e a abraçando pela cintu-
ra.

O barulho do motor de algumas motocicletas começou a


ecoar no ar até ficar ensurdecedor. Dez jovens em cima de mo-
tocicletas, assim como a de Martinelli e Greco, alinhadas na
entrada do cemitério, aceleravam com vigor em homenagem a
Samuel.
Era comum entre os pilotos de Bela Vila fazer esse gesto em
homenagem, pois entre eles era uma forma de demonstrar res-
peito quando algum deles partia, e Isaac sabia muito bem disso.
Essa mesma homenagem havia acontecido à última vez dois
anos atrás quando Yasmin se fora.
O barulho se estendeu por um minuto, deixando o ambiente
com cheiro de gasolina queimada e uma fina nuvem de fumaça
branca pairando.
— E que comece o show... — falou Martinelli com um sor-
riso cansado surgindo no canto da boca.
Um reboque com enormes caixas de som foi colocado na
frente das motocicletas e a música Highway To Hell do AC/DC
começou a tocar. Aquela era a canção preferida de Greco, que,
naquele momento, não agradou muito alguns familiares devido
ao que a letra dela se tratava.
Isaac a achou agradável, pois diferente da música Patience
do Guns N’ Roses, a preferida de Yasmin, ela não era lenta, o
que, naquela época, acabou lhe deixando mais triste ainda. A
que tocava no momento fez o rapaz lembrar-se e sentir um
pouco da energia de seu primo, principalmente o quão enlou-

221
José Vitor Nunes

quecido e agitado ele ficava quando ela era reproduzida em


alguma festa. O garoto pulava, rodava, cantava, batia cabeça...
tudo ao mesmo tempo.
Encostaram-se na traseira do Red Hot e apenas ouviram,
pensativos.
Isaac mais uma vez se perguntava se existia vida após a
morte, ou se a vida era apenas como a chama de uma vela que,
quando se apaga, simplesmente apaga. Desaparece.

Três dias depois do acidente...

Aquelas férias estavam sendo as piores de Isaac. O garoto


nunca se sentira tão solitário como estava se sentindo naqueles
últimos dias. Dos seus colegas de Bela Vila, apenas Luigi Ci-
anci, um dos seus melhores amigos que conhecera há quase dez
anos, estava na cidade. Entretanto, o rapaz trabalhava o dia
todo e só tivera tempo de fazer uma visita até então.
Martinelli pegou o celular e olhou os contatos na lista tele-
fônica. Bernardo, Clarice, Estella, Mirelly, Thiago... Voltou
para o nome de Clarice e tocou em “chamar”.
— Alô — disse ela ao atender.
— Oi. Como você está?
— Estou bem. E você?
— Sabe como é... levando... — respondeu em um tom suave
— Sinto falta dos AmendoWins aqui para jogar conversa fora e
me distrair um pouco.
— Entendo. Também estamos com saudade. — deu uma
pausa — Queríamos lhe fazer uma pequena surpresa, mas vou
contar logo, pois sei que isso vai te alegrar um pouco. Estou
organizando uma pequena caravana com os AmendoWins e
com a galera do grupo de jovens para irmos todos juntos à mis-
sa de sétimo dia do Sam.
— Que ótimo! — exclamou — Vai ser tão bom poder ver
todos vocês. Conte-me como está o andamento.

222
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Bom, de início já alugamos um micro-ônibus para nos


levar... [...] ...

Sete dias depois do acidente...

Na cabeça do rapaz, os dias passaram tão lentamente que


pareciam fazer trinta dias que não via os amigos. Mas agora,
sentados no banco da praça com eles, o jovem gostava apenas
de ouvi-los falar, pois, além do mais, Martinelli não tinha nada
de interessante a dizer.
Infelizmente toda aquela gente que viera de Ilha do Rio Iole-
te precisara partir na mesma tarde.

Quarenta e dois dias depois do acidente...

Um dia antes de voltar para Ilha do Rio Iolete, Isaac fora à


oficina de seu pai como fazia todos os dias desde a segunda
semana após o acidente. Ele ajudava Miguel a administrar os
negócios, controlando o estoque, fluxo de caixa e até mesmo se
ousando a aprender algo a mais sobre mecânica.
Naquela tarde quando entrara no estabelecimento, vira de
cara uma Honda CRF vermelha e branca.
— É a moto de Sam? — perguntou para seu pai caminhando
ao redor dela e observando cada detalhe.
— Sim, Frank a trouxe hoje pela manhã. — respondeu Mi-
guel indo para trás do balcão e procurando algo. — Troquei
todas as carenagens do lado esquerdo, tinha algumas... — se
abaixou para pegar alguma coisa — raladuras.
— Trocou? Por quê? — indagou um pouco confuso — Ela
vai ficar guardada na garagem apenas pegando poeira.
— Troquei por esse motivo. — virou para o rapaz uma placa
com o nome “vende-se” escrito.
— “vende-se”?! Como assim, “vende-se”?! — andou em di-
reção a seu pai — O Sam amava essa moto.

223
José Vitor Nunes

— Ele a amava muito mesmo, e sempre foi muito ciumento


em relação a ela, mas os pais dele não. Cláudia e Marcelo não
quiseram nem ver a motocicleta que levou o filho deles. —
explicou. — A decisão é deles, e respeito isso. Estou fazendo
apenas o que me pediram.
— Aquela moto era o xodó de Sam. Ele a zelava mais do
que qualquer outra coisa. — argumentou — Mais do que sua
bateria, guitarra ou...
— Filho. — o interrompeu — Sei que você está passando
por um momento difícil. Todos nós estamos. Mas entenda seus
tios. Eles querem apenas se livrar de uma coisa para que não
precisem todos os dias olhar para ela e lembrar que foi aquilo
que levou o filho deles embora.
Isaac se manteve calado. Pensativo.
— Toma. — estendeu a placa para o rapaz e fez um movi-
mento de cabeça apontando para a motocicleta.
— Sério? Eu? — arqueou as sobrancelhas — Não irei fazer
isso com Sam. Aah, não irei mesmo.
— Tudo bem. — caminhou em direção a ela e pendurou a
placa no guidão. — Pronto. Agora só esperar um comprador.
— Espero que não apareça nenhum interessado. — sussur-
rou.
— Disse algo? — perguntou Miguel virando se para Isaac.
— Não... não disse nada. — fez uma cara de desentendido.
— Ouça, filho, sei que você não irá largar o Motocross e eu
não irei lhe pedir e nem tentar convencê-lo a isso, apesar da
insistência de sua mãe. — aproximou-se do jovem — Mas te
peço uma coisa — olhou bem no fundo dos olhos de Isaac —:
tenha muito cuidado. Não se aventure em pistas que não co-
nhece, não ultrapasse o limite de velocidade quando perceber
que é perigoso. Sei que você possui certa experiência, mas todo
cuidado é pouco. Não foi só você que chegou a perdeu um
grande amigo dessa forma. — pegou nos ombros do filho e
ainda o olhando nos olhos, disse: — Poderia ter sido você. —
deu-lhe um abraço bem apertado.

224
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Ficaram ali, abraçados.


Isaac começara a refletir sobre tudo aquilo, pois de fato po-
deria ter sido ele. E se eu não tivesse lhe dado os dois segundos
de vantagem?. Aqueles pensamentos começavam a perturbá-lo,
e uma espécie de culpa começava a crescer dentro de si.
Abraçou seu pai com mais força, deixando escorrer uma lá-
grima do seu olho.

225
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 29

O
ito dias antes das aulas retornarem, Isaac voltara a
Ilha do Rio Iolete a pedido de seu tio Frank. Para o
rapaz não havia o menor problema, pelo contrário,
ao menos agora iria estar mais próximos dos amigos
e poderia finalmente matar a saudade de cada um deles. E foi o
que fez naquela noite, convidou todos para sua casa e passaram
a noite jogando conversa fora.

Como costumava fazer antes de ir ao trabalho, Martinelli


pegou sua CRF, saiu vinte minutos mais cedo e pilotou calma-
mente até as margens do rio. Aquela estava sendo a primeira
vez que ele pilotava desde o acidente. Sentou-se na areia úmida
para observar o nascer do sol e refletiu sobre aquele dia e como
seriam seus próximos em diante.

O primeiro dia de trabalho fora um pouco solitário sem Sa-


muel para conversar e animar o ambiente. Porém, nada se
comparava voltar para casa e passar o dia sozinho.

Martinelli entrou no quarto de seu primo e deparou-se, pela


primeira vez, com tudo organizando, e desejou muitíssimo ver
toda aquela bagunça que costumava ter antigamente. Abriu o
guarda-roupa e viu todas as roupas de Sam, menos uma peça.
A que estava em sua mão. Dobrou cuidadosamente aquela ca-
miseta de treino vermelha com detalhes brancos que ele hesitou
em jogar por sobre o caixão.

Foi até a garagem e pegou o capacete do rapaz ao lado do


seu troféu do Desafio Regional. Esfregou a barra de sua cami-
seta nos arranhões, mas eles ainda continuavam ali, registrando
o que havia acontecido. No forro preto era possível ver algu-
mas manchas de sangue seco, e então Isaac começara a enten-

226
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

der o motivo de seus tios quererem tanto vender aquela moto-


cicleta.
Pôs o capacete de volta à estante, foi até a sala principal,
deitou-se no sofá e ficou por alguns minutos tentando pegar no
sono. Dormir talvez o livrasse um pouco daquele pesadelo.
Mas não conseguiu.
Não aguentando mais aqueles pensamentos perturbadores,
telefonou para Clarice e a convidou para sair.
Dentre os seus amigos, Ferrier possuía maior empatia e con-
seguia, de certa forma, dar-lhe o consolo que ele precisava na-
quele momento. Além do mais, o rapaz desejava também um
momento a sós com a garota.

Sentados no banco da praça, Clarice procurava qualquer ou-


tro assunto que não fosse relacionado a Samuel, pois sabia que
Isaac lhe chamara para sair justamente para esquecer um pouco
de tudo o que havia acontecido no último mês.
— Não vejo a hora de as aulas retornarem. — comentou
Martinelli — Estou para não suportar mais ter de ficar todas as
tardes sem nada de interessante para fazer.
— É verdade. — concordou — Sem falar que é sempre bom
reencontrar com os amigos da faculdade depois de pouco mais
de um mês de férias.
— Lembra-se de como nos conhecemos? — perguntou o ga-
roto com um sorriso no rosto.
— Sim, naquela aula de Conceitos da Psicologia. Nem se
passava por minha cabeça que um dia iríamos estar aqui con-
versando.
— E tudo isso graças ao seu atraso, pois se estivesse chega-
do mais cedo, não iria formar dupla comigo.
— É verdade. — disse pensativa — O destino tem dessas
coisas.
— Não sei se você irá se lembrar, mas um dia antes daquela
aula, já havíamos cruzado olhares...

227
José Vitor Nunes

— No corredor da biblioteca. — disse antes que ele comple-


tasse a frase.
— Isso.
— Pensei que você não notara que era eu naquela aula.
— Foi o que eu pensei em relação a você.
Os dois riram.
— Você disse: “o destino tem dessas coisas”. Acredita em
destino? — o rapaz quis saber.
— Em partes, sim.
— Explique-me melhor, por favor.
— Tudo bem. — colocou uma mecha de cabelo atrás da ore-
lha — Deus nos deu o livre arbítrio, e isso faz com que sejamos
responsáveis pelos nossos atos. Mas por outro lado, acredito
que Deus coloca algumas coisas no nosso caminho, e cabe a
nós decidirmos o que fazer perante cada situação. Por exemplo:
nossos caminhos se cruzaram, e isso pode ter sido o destino.
Porém, nosso livre arbítrio nos dá a opção de escolher o que
fazer, e eu sempre procuro escolher o que me faz bem.
— Muito bem. — aplaudiu — Eu nunca havia pensado des-
sa forma.
— E você? Acredita em destino?
— Não sei muito bem no que acredito. Às vezes acho que
acreditar em destino quer dizer que ele também seja cruel, até
mesmo com as pessoas de bom coração. E se eu for levar em
consideração o seu conceito de destino, as conclusões que irei
tirar é de que algumas pessoas que eu amava muito fizeram
escolhas erradas, mesmo o destino lhes dando uma opção me-
lhor. — Yasmin estaria viva se não tivesse sido minha namo-
rada, pensou.
— Acredite, sempre procuramos escolher o que nos faz
bem, esperando que fique tudo bem.
— É verdade...
— O melhor a fazer é simplesmente viver sem se perguntar
o porquê das coisas.

228
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Martinelli refletiu sobre isso, pois se perguntando constan-


temente o motivo de tudo que acontecia.
— Quero lhe confessar uma coisa. — disse o garoto.
— Estou te ouvindo.
— Antes daquela aula de Conceitos da Psicologia, mais es-
pecificamente naquele dia quando a vi sentada em frente à bi-
blioteca, algo em você me chamou atenção. Não sei se foi ape-
nas atração física, mas senti dentro de mim um encanto à pri-
meira vista. Uma vontade de te conhecer melhor, de saber
quem era você; saber seu nome. Esse encanto só cresceu quan-
do conversamos pessoalmente pela primeira vez. Depois da-
quele dia, percebi que poderia confiar em ti e que és bem mais
do que eu esperava. — ele a olhava nos olhos e se aproximava
aos poucos — E a cada dia que passa, sinto mais verdade, mais
ligações entre a gente e mais vontade de estar contigo. E muitas
vezes me pergunto, "por que ela faz eu me sentir assim? Por
que me sinto tão confortável ao lado dela? Por que confio tanto
nela? Por quê?". Entretanto, por que me perguntar tanto, já que
nos damos tão bem? Já que está tudo tão bem? — Clarice ape-
nas ouvia tudo com uma expressão um tanto surpresa — Tudo
em você me encanta. Você é linda fisicamente e "metafisica-
mente", ou melhor, possui uma linda personalidade, o jeito
meigo de tratar todo mundo bem, ser atenciosa e se preocupar
com todos. — ele pegou na mão da jovem e continuou falando
— Vieram novos dias e novas conversas, e a cada dia eu ia
gostando mais de estar contigo. Confesso que penso em você
do momento em que acordo até a hora que vou dormir. Fico
pensando em quando vou te ver novamente; ver a sinceridade
em seu sorriso; em quando vou poder dar aquele abraço aperta-
do, sentir seu coraçãozinho bater; sentir o perfume do seu cabe-
lo; sentir teu corpo junto ao meu... Mas o que eu mais quero
agora é sentir o gosto do teu beijo. — fechou os olhos e levou
seus lábios de encontro aos dela mais uma vez.

229
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 30

D
eitada em sua cama, Clarice relembrava das pala-
vras que Isaac lhe disse e daquele beijo que lhe
dera. Seu coração disparara, suas mãos suaram frio
e o tempo pareceu ter parado por alguns segundos.
Foi um tipo de sensação que ela nunca havia sentido antes.
Após o beijo, um sentimento estranho começou a lhe inva-
dir, deixando transparecer seu nervosismo.

Em seu quarto, com as luzes apagadas, Ferrier sentia-se


mais arrependida a cada minuto que se passava. Não pelo beijo,
pois ela também gostava muito de sentir os lábios do rapaz
tocando os seus, mas por sua frequência e pelos problemas que
aquilo poderia lhes acarretar futuramente.
Agora a moça se via em um grande impasse, pois faltava
menos de um mês para sua viagem a Portugal e ela sabia o
quanto Isaac gostava dela e percebera também que aquele sen-
timento era recíproco, porém, guardava isso só para si pelo fato
de ainda não ter total certeza, uma vez que ainda era algo muito
novo para ela.
Por mais que gostasse de Martinelli, não poderia simples-
mente abandonar seu sonho e descartar todo o esforço feito
durante tanto tempo por um sentimento ainda confuso.
Começou a pensar em tudo que deixaria para trás a partir do
momento em que entrasse no avião a caminho de Portugal: o
grupo de jovens que tanto precisava dela e que ela se esforçou
bastante para que eles chegassem onde estão; a saudade que
iria sentir de seus pais e vice-versa; os amigos que estavam
sempre lhe fazendo companhia e que poderia contar para tudo.
O medo de sentir-se sozinha começava perturbar sua mente.
A única coisa que conseguia pensar agora era que estaria em
um lugar desconhecido sem nenhum conhecido.

230
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Puxou o lençol até os ombros e fechou os olhos para dormir,


mas não conseguia parar de pensar como seria morar no exteri-
or por um ano longe de todas aquelas pessoas que tanto amava.

231
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 31

I
saac marcara um reunião no Subway com Bernardo e
Thiago para discutirem sobre os assuntos da banda,
que estava desfalcada sem Samuel. Eles precisavam
chegar a alguma conclusão o mais rápido possível,
pois faltava apenas um mês para o show da Embrião Humana.
Martinelli chegara primeiro que seus amigos. Deixou sua
moto estacionada, entrou na lanchonete e sentou-se sozinho em
uma mesa vazia.
Enquanto esperava, refletia sobre falar ou não para Bernardo
e Thiago do seu envolvimento com Clarice que, até então, não
comentara com ninguém.
Contudo, o rapaz não queria criar nenhum tipo de expectati-
va, pois Clarice já estava prestes a partir para Portugal e, de-
pois daquele último dia, a moça parecia evita-lo.

Bernardo entrara pela porta e já avistara Martinelli. Cami-


nhou até ele e sentou-se na cadeira em frente ao amigo.
— Thiago ainda não chegou? — indagou.
Isaac curvou a boca para baixo e olhou para os lados como
se dissesse: “Não o vejo aqui.”
— Aquele bastardo me apressara dizendo que estavam espe-
rando apenas por mim. — praguejou Rivière.
Martinelli riu da indignação do rapaz.
— Thiago e suas “zoações” com você.
— Também não irei espera-lo para pedir meu lanche. —
afirmou se levantando — Você deveria fazer o mesmo. Sinto
que ele vai demorar.
— Não se preocupe. Estou sem fome.
O jovem deu de ombros e foi até o atendente para fazer seu
pedido.

232
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Quinze minutos depois, quando Bernardo dava as últimas


mordidas no seu sanduíche, Isaac ouviu um barulho familiar.
Virou-se e viu Thiago pela janela de vidro estacionando o Red
Hot ao lado da sua motocicleta. O rapaz entrou e sentou-se ao
lado de Rivière.
— Chegou cedo, amigão. — disse com um sorriso malicioso
no rosto e deu dois tapinhas nas coisas do garoto, que apenas o
olhou torto.
— Então, vamos direto ao ponto. — falou Martinelli —
Temos um mês para o show e precisamos de um baterista. A
pergunta é: Aonde encontrar?
— Bem na sua frente. — respondeu Thiago. Isaac demorou
um segundo para processar a informação.
— Se colocarmos você para tocar bateria, quem ficará res-
ponsável por sua guitarra?
— Rivière. Não precisamos de um baixista. Afinal, quem
precisa? — caçoou o amigo.
— Esta não seria uma solução. — concluiu Martinelli —
Cara, como vamos fazer isso acontecer? — colocou os cotove-
los sobre a mesa e emaranhou os dedos das mãos nos cabelos,
soltando o ar dos pulmões.
— Existe uma forma bem simples que nos ajudaria encon-
trar um novo baterista — afirmou Bernardo —, mas precisa-
mos contar com um pouco de sorte.
— Qual forma?
— Se nós colocarmos um anúncio na internet informando
que precisamos de um baterista para a abertura do show da
Embrião Humano, talvez conseguiremos um em alguns dias.
— Mas quanto tempo poderá demorar para que alguém ve-
ja? — indagou Thiago — Temos apenas um mês, e precisamos
ensaiar todas as músicas.
— Você tem uma sugestão melhor? — Bernardo o encarou.
Os rapazes se entreolharam.

233
José Vitor Nunes

— Vou pôr um anúncio na página do Facebook da banda e


fazer um link patrocinado para ajudar a impulsioná-lo. — disse
Martinelli por fim.
— Anuncia que está procurando por um baterista ou guitar-
rista. Caso encontremos um guitarrista, eu assumo a bateria. —
propôs Lazzo.
— Ótimo. Colocarei isso. — deu um suspiro de alívio —
Finalmente as coisas estão fluindo.
— Mudando de assunto enquanto esperamos alguma respos-
ta... — falou Bernardo — Isaac, amanhã é o dia do Desafio
Regional e você não nos disse nada sobre ainda participar ou
não da competição.
— Pensei muito sobre o assunto e não estou animado para
participar da disputa, mas cheguei à conclusão de que farei isso
por Sam. Quando Yasmin se foi, levantei o troféu por ela. Des-
sa vez farei isso pelo meu irmão.
— É isso aí, garoto! — exclamou Thiago — Nunca desista.
— Não irei.

Vinte minutos depois, Martinelli e Lazzo terminavam de


lanchar.
— Não estou gostando daquele cara ao telefone encostado
no Red Hot. — comentou Thiago — Se ele riscar aquela pintu-
ra eu vou...
— Algum comentário no post Isaac? — perguntou Rivière o
interrompendo.
O rapaz deu uma checada. Só havia algumas curtidas, mas
nenhum comentário.
— Nada. — disse.
— Quanto tempo isso vai demorar, cara? — balbuciou Thi-
ago — Acho que não será tão rápido assim para alguém sim-
plesmente aparecer e se oferecer, por mais que seja uma ótima
oferta de tocar na abertura de um grande show.
— Deveríamos ampliar isso. — sugeriu Bernardo — Vamos
todos compartilhar este anúncio.

234
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Pegou o celular e compartilhou. Lazzo fez o mesmo.


— Olha as calças daquele cara. — comentou Thiago nova-
mente — Aqueles botões de metal no meu carro... Estou pen-
sando em ir pedir para que ele se afas...
— Vou pedir para... Estella!! — exclamou Martinelli —
Como poderíamos ter esquecido esse detalhe.
Os rapazes o olhavam se entender.
— Tudo bem, peça para ela compartilhar, então. — falou
Thiago observando o cara ao telefone.
— Não é isso. Lembram-se de quando Estrela disse que sa-
bia tocar um pouco de guitarra? Talvez ela consiga pegar todas
as músicas a tempo; e tempo é o que não temos para simples-
mente esperar alguém de boa vontade se oferecer a tocar na
nossa banda.
Uma luz de esperança pareceu iluminar o ambiente.
— Está esperando o quê? Liga logo para ela! — ordenou
Rivière.
Isaac sacou o celular e discou os números. O telefone tocou
uma... duas... e na quinta vez Lewis atendeu.
— Oi, Caprica. — disse ela.
— Estella, precisamos de você na banda! Você será nossa
nova guitarrista base.
— O quê? Eu? Não estou entendendo nada.
— Uma vez você nos falou que toca guitarra, e com o des-
falque na banda, iremos colocar Thiago na bateria e...
— Martinelli... — chamou Lazzo.
— Espera aí, Thiago... e você na guit...
— Martinelli... — interrompeu novamente — Aquele cara...
— Vai lá e peça para ele se afastar do seu carro. Como eu
estava dizendo, Estrela...
— Mas ele não está mais no meu... PORRA!!!
Os rapazes fitaram Lazzo, assustados. Ele apontava para fo-
ra onde seu carro estava estacionado.

235
José Vitor Nunes

Isaac viu o cara do telefone que tanto incomodava seu ami-


go em cima de sua moto com o motor misteriosamente ligado.
Ele deu meia-volta e saiu em disparada.
O garoto ficou paralisado por dois segundos tentando pro-
cessar aquilo. Então logo se levantou e gritou:
— Peeeeega ladrãããããoo!!! — saltou por cima das cadei-
ras, ziguezagueou as mesas e as pessoas que estavam presentes
na lanchonete e correu para o estacionamento em direção ao
Red Hot. Seus amigos o seguiram. — Abre! Abre! Abre! —
gritava para Thiago abrir o carro — Entra! Entra! Entra! —
com todos dentro do carro, ele ainda continuava gritando frene-
ticamente — Liga! Liga! Liga!
Lazzo pôs a chave na ignição e girou. O carro tremeu feito
um peixe estrebuchando em terra firme. Girou outra vez, mas
ele continuou apenas tremendo.
— Qual é, cara?! Liga logo esse carro! — exclamou Isaac.
— Estou tentando! Estou tentando!
Girou mais uma vez... e mais outra até que finalmente o mo-
tor deu a partida.
— Isso! — vibrou Martinelli.
Thiago engatou a marcha ré, pisou fundo no acelerador e
saiu cantando pneu. Freou bruscamente e puxou o volante para
a direita, fazendo a dianteira do Red Hot deslizar e ficar de
frente à saída do estacionamento. Pôs na primeira e arrancou
novamente. Entrou na avenida fazendo uma curva para a es-
querda e jogando todos para o lado oposto. Seguiu em dispara-
da.
Para maior desespero de Isaac, eles haviam perdido o ladrão
de vista. O rapaz baixou a cabeça tapando os olhos enquanto
Lazzo reduzia a velocidade.
— Não acredito que roubaram minha moto. — lamentou —
Este só pode ser um sinal do universo me dizendo que não de-
vo participar do Desafio Regional.
— Tecnicamente foi um furto, pois você não teve contato
com o assaltante... — explicou Bernardo.

236
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Thiago o fuzilou com os olhos como se dissesse: “Cala a


boca. Agora não é hora de corrigi-lo”.
— Vou te levar à delegacia para fazermos um Boletim de
Ocorrência.
Dobrou à direita e seguiu.

Após terem feito o Boletim de Ocorrência, Lazzo levou o


amigo de volta para sua casa e ouvia suas lamentações.
—Desisto. Assim não dá. — dizia Martinelli — Por que as
coisas sempre têm que dar errado? Quando estamos prestes a
resolver um problema, me aparece outro.
— Calma, parceiro, eles vão recuperar sua moto a tempo. —
Bernardo não acreditava que os policiais conseguiriam encon-
trá-la faltando menos de vinte e quatro horas para o Desafio
Regional. Porém, precisava confortar o amigo.
— Universo, por que você está contra mim?! — olhava para
o céu e inquiria em um tom zangado — O que eu fiz de errado?
— Cara, as coisas simplesmente acontecem. — afirmou
Lazzo.
— Preciso tomar um banho para acalmar e tentar dormir um
pouco. — puxou o ar o mais fundo o possível e soltou lenta-
mente — Muito obrigado pela ajuda. Só nos resta torcer para
que eles encontrem minha Magrelona.
— Vá tomar seu banho e relaxar um pouco. Enquanto isso,
vamos passar na casa de Estrela para explicar tudo sobre a
ideia de colocá-la na banda. — disse Thiago — Há essas horas
ela deve estar um pouco confusa sem saber o que aconteceu.
Martinelli olhou para seu celular e viu cinco chamadas per-
didas da garota.
— Está mesmo. — virou a tela para os rapazes.
— Não se preocupe, vamos resolver a parada da banda.
— Certo. Obrigado, parceiros.
— Mandaremos notícias. — Rivière entrou no carro e se-
guiu com Lazzo rumo à casa de Estella.

237
José Vitor Nunes

Deitado, Isaac não conseguia parar de pensar em todas as


coisas que aconteceram ultimamente. Pensou em telefonar para
Clarice. Ela saberia o que dizer para confortá-lo um pouco.
Apenas o simples fato de conversar com ela já o fazia se sentir
bem. Mas achou melhor não, pois as coisas entre os dois esta-
vam estranhas nos últimos dias, como se garota estivesse ten-
tando algum tipo de desapego e se preparando para a jornada
de um ano em Portugal.

Olhou para o celular esperando alguma ligação que viesse


com boas notícias. A polícia avisando que recuperaram sua
moto, seus amigos lhe informando que Estella concordou em
ser a nova guitarrista da banda ou até mesmo algum trote di-
zendo que ele acabara de ganhar um milhão de reais. Qualquer
notícia de fundo positivo seria bem-vinda.
— Treinamos tanto para tudo acabar assim... — sussurrou
baixinho para si — Queria que você estivesse aqui para me
dizer o que fazer. Acredito que teria alguma ideia, por mais
mirabolante que fosse iria me animar um pouco. Mas infeliz-
mente não está mais aqu...
Em um click, Martinelli se lembrou de que Samuel não es-
tava mais presente, porém, havia algo que ele deixara.
Levantou-se da cama em um salto e telefonou para seu pai.
— Atende... Atende... — repetia impaciente — Pai! — ex-
clamou quando ele atendeu. Sem esperar que Miguel dissesse
alguma coisa, o garoto já foi logo perguntando — Você conse-
guiu vender a moto de Sam?
— Não. Por quê? Você encontrou algum comprador?
— Graças a Deus! — comemorou o rapaz.
— Por que você parece tão agitado? — perguntou seu pai
sem entender.
— Furtaram a minha moto há algumas horas. Eu estava ten-
tando ser otimista esperando receber algum telefonema dos

238
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

polícias avisando que eles a haviam recuperado para, aí sim,


contar o que aconteceu, mas até agora não recebi nada.
— E como isso aconteceu?

Explicou tudo o que aconteceu para seu pai e lhe avisou que
retornaria para Bela Vila no dia seguinte pela manhã para par-
ticipar do campeonato.

Minutos após conversar com Miguel, o rapaz recebera mais


uma boa notícia: Estella concordara por livre e espontânea
pressão de que tentaria ajudar os amigos naquele show.
Os garotos resolveram também como ficaria a rotina de en-
saios da banda, de segunda à domingo, das 19h:30min. às
23h30min., pois não havia tempo a perder.

Aquele dia fora muito agitado para Martinelli. Mesmo tendo


sua moto furtada, o jovem ainda se sentia aliviado por parte das
coisas estarem finalmente tomando os rumos que ele desejava,
apensar de ser de uma forma meio torta.
Foi até a varanda e observou o céu estrelado. Não importava
o que acontecia, o céu sempre se mantinha lindo.
— Ei, Universo — disse ele —, achou que eu iria desistir?
Chupa essa, otário. — mostrou o dedo do meio — E amanhã
irei levantar aquele troféu do Desafio Regional. Escreve aí. —
riu de si mesmo.

239
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 32

Domingo, 10 de setembro de 2017.

H
á vinte e cinco anos surgia de um grupo de quinze
rapazes a ideia de criar uma competição anual de
motocross em Bela Vila. Inicialmente, batizaram-
na de Desafio Municipal de Motocross, e, aos
poucos, o evento que não passava de apenas uma diversão en-
tre amigos começou a chamar a atenção de empresários, prin-
cipalmente os do ramo de moto-peças, que aproveitavam o
torneio para divulgar suas marcas. Posteriormente, grandes
empresas nacionalmente conhecidas fizeram o mesmo, divul-
gando seus produtos e premiando os melhores competidores.
Devido ao grande sucesso que se estendeu à várias cidades
vizinhas, atraindo cada vez mais competidores e torcedores
anualmente, o evento passou a se chamar Desafio Regional de
Motocross.
No decorrer dos anos a competição sofreu várias alterações.
Hoje em dia a disputa da Categoria Adulto duzentas e trinta
cilindradas é dividida em três corridas com nove pilotos dife-
rentes em cada uma delas. Os três melhores de cada uma se
classificam para a grande final.
Isaac observava apenas dois nomes: Run, pentacampeão do
desafio, e Tartaruga, que ganhou nos dois últimos anos e era o
favorito a levantar o troféu de campeão deste ano. Por sorte, o
jovem não iria competir com nenhum deles na primeira etapa,
o que lhe dava a chance de poder assistir e analisar cada curva
dos seus adversários.

Dois telões transmitiam as corridas através das câmeras es-


palhadas por toda a pista.

240
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Como era de se esperar, Tartaruga finalizou a primeira cor-


rida na melhor colocação e já estava classificado para a final.
Martinelli precisava ficar pelo menos entre os três primeiros
para continuar sonhando em levantar o troféu de campeão.

— Vá com calma — dizia seu pai —, observe cada piloto e


os principais trechos da pista.
— Certo... — Isaac o ouvia atentamente.
— Tome cuidado para não danificar a motocicleta e acabar
sendo desclassificado.
— Pode deixar...
— Boa sorte, filhão. — Miguel deu-lhe um abraço apertado.
— Obrigado, pai.
O rapaz subiu na moto vermelha que pertencera a Samuel.
— Você vai comigo. — amarrou a camiseta de seu primo no
guidão — O pódio nos espera. — afivelou o capacete e pôs o
protetor ocular.
Todos os nove pilotos estavam posicionados lado a lado. No
soar da buzina, o Desafio Regional de Motocross de dois mil e
dezessete começaria para todos eles.
O barulho cortou o silêncio. Neste momento todas as moto-
cicletas saíram em disparada e começaram a se afunilar para
entrarem na primeira curva. Isaac já conseguira tomar à dian-
teira e agora se concentrava para observar e nomear cada prin-
cipal trecho da pista.
A Curva do Lago foi considerada importante porque seguia
de uma pequena reta com alguns morros que, com a velocidade
adequada, proporcionaria alguns segundos de vantagens. A
Coluna do Camelo eram duas elevações semelhantes que pos-
suíam a mesma altura, mas o mais importante daquele trecho
era que, poucos metros ao final da segunda elevação, havia
uma curva para a esquerda. A Curva Quarenta e Cinco forma
um ângulo de aproximadamente quarenta e cinco graus, e por
isso deve-se ter muito cuidado para não sobrar nela. O “S” con-
tinha algumas costelas entre a primeira e a segunda curva. O

241
José Vitor Nunes

Areão era uma parte crítica que levantava muita poeira, o que
dificultava a visibilidade e a respiração.
Em alguns trechos a pista estava um pouco úmida, o que fa-
zia com que os pneus das motos arremessassem lama em quem
viesse atrás. Isaac não tivera esse problema, pois liderou por
trinta minutos até completar todas as voltas e terminar em pri-
meiro colocado.
Martinelli respirou um pouco aliviado. Entretanto, o nervo-
sismo começou a tomar de conta do seu corpo quando assistia a
Run deixando seus adversários para trás com toda facilidade,
os fazendo parecerem iniciantes. Ele dominara todo aquele
percurso, parecendo seguir exatamente o mesmo traçado de
cada volta, como se estivesse calculado cada centímetro e des-
coberto por onde passar suas rodas.

Todos já sabiam a lista dos nove pilotos que disputariam a


final do Desafio Regional. Eram eles: Run, com o número se-
tenta e seis, Isaac, número setenta e um, Tartaruga com o nú-
mero zero oito, e os pilotos número zero nove, vinte e três,
dezessete, cinquenta e quatro, dezesseis e trinta e sete.
Com todos eles em seus postos, Martinelli cruzou olhar com
Tartaruga, que estava dois pilotos à sua direita. O rapaz nem
quis olhar para sua esquerda, pois Run se colocava logo ao seu
lado. Concentrou-se e fitou a estrada à sua frente.
O narrador anunciou os nomes dos finalistas. Houve bastan-
te vibração ao chamado de Run e Tartaruga. Bandeiras e faixas
com seus números, nomes e rostos espalhadas pelas arquiban-
cadas tremeluziam.
Mesmo tendo apresentado um bom resultado, Isaac começa-
ra a ficar intimidado, pois era apenas um novato na categoria
mais disputada da região.

O primeiro sinal foi dado e todos eles ficaram concentrados


para o soar da largada. Alguns aceleravam com vigor, e Marti-

242
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

nelli começou a se perguntar se aquilo seria alguma forma de


atrapalhar os outros pilotos a ouvir o som da buzina.
O barulho que indicava o sinal de largada foi coberto pelo
ronco dos motores. Todos os competidores saíram em dispara-
da, exceto Isaac que acabou estancando o motor da sua moto.
Rapidamente o rapaz deu um coice no pedal da moto com
toda sua força da perna direita. Por sorte ela voltou a funcionar
logo de primeira e ele acelerou com determinação.
Entrou na primeira curva, na segunda, terceira... Mas ainda
continuava a uma distância considerável do oitavo colocado.
Quase no final da segunda volta, ultrapassou o número cin-
quenta e quatro e já se encostava no sétimo colocado, que le-
vantava poeira do Areão. Ele prendeu a respiração por um
momento até saírem daquele trecho. O piloto número dezesseis
tentava ultrapassar o vinte e três, disputando lado a lado e os
dois juntos jogava lama em Martinelli, sujando seus protetores
oculares e atrapalhando um pouco sua visibilidade.
Chegando à Curva Quarenta e Cinco, os quatro competido-
res à sua frente reduziram a velocidade enquanto Isaac acelera-
va e deixava para frear em última hora. Entrou fazendo uma
manobra que lhe deu mais quatro posições acima. Agora esta-
vam à sua frente apenas Run, Tartaruga e o número dezessete.
Ficou em quarto colocado por várias voltas, entrando com
cuidado na Curva do Lago e tentando encontrar a velocidade
perfeita de cada morro que se seguia após ela. Dominara a Co-
luna do Camelo, usava sempre a mesma técnica na Curva do
Quarenta e Cinco, o que lhe fazia aproximar-se um pouco mais
do dezessete. Passava pelas costelas do “S” e pelo Areão.
Após um deslize no Areão, dezessete acabou perdendo a
terceira posição para Martinelli.
Faltando apenas cinco voltas, a classificação na ordem do
primeiro ao quarto colocado estava: Tartaruga, Run, Isaac e o
piloto número dezessete.
A disputa entre Tartaruga e Run fizera com que Martinelli
se aproximasse um pouco mais dos dois. No “S” eles acabaram

243
José Vitor Nunes

se atrapalhando e Isaac finalmente conseguiu tomar a dianteira


naquela corrida. Contudo, Tartaruga não saía da cola do rapaz.
Run vinha logo em seguida.
Com apenas duas voltas para o final da corrida, o mais jo-
vem piloto a disputar na Categoria Adulto daquele ano surpre-
endia a todos com o seu desempenho.
O rapaz acelerou até o último momento para entrar na Curva
do Quarenta e Cinco. Jogou a traseira e acelerou. Entretanto,
Tartaruga vinha a toda velocidade e não conseguiu frear, acer-
tando a roda traseira do rapaz e voando de sua motocicleta para
fora da pista. Isaac ziguezagueou por alguns metros tentando
manter o equilíbrio e reduziu um pouco a velocidade até se
recompor. Quando voltou a acelerar, sentiu a moto balançando
um pouco a traseira e percebeu que a roda havia amassado com
a batida. Por sorte, o dano não fora tão grave, mas aquilo pode-
ria lhe atrapalhar e Run já estava em sua cola.
Tartaruga subiu na sua moto e voltou para a pista na tentati-
va de ainda disputar alguma posição no pódio, contudo, já es-
tava em último e as probabilidades de isso acontecer eram bem
pequenas.
A motocicleta de Isaac balançava ainda mais no Areão, o
que acabou facilitando para Run fazer a ultrapassagem.
Na última volta, Martinelli pôs tudo a perder acelerando
fundo e se mantendo na cola de Run. Ele seguia os mesmos
rastros do piloto à sua frente. Voavam juntos a cada salto e
encostava um pouco mais a cada curva. Passou pelo lago, a
Curva do Camelo, o Quarenta e Cinco sempre na cola do nú-
mero setenta e seis. Isaac apertou mais fundo ainda na última
reta antes do Areão para tentar a ultrapassagem, mas a moto
que pegara emprestado vibrava bastante devido a irregularida-
de da roda traseira. Run fizera o mesmo e acelerou, mantendo a
dianteira até cruzar a linha de chegada, seguido por Martinelli e
em terceiro lugar vinha o piloto número dezessete.
A torcida brandia nas arquibancadas ao final daquela corrida
tão emocionante e imprevisível. Tartaruga que era o favorito

244
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

acabara ficando na última posição e um novato quase fora


campeão.

Isaac desceu da motocicleta, tirou o capacete e pôs sobre o


assento. Seus pais se aproximaram e deram-lhe um abraço co-
letivo.
— Parabéns, filho. — disse seu Miguel — Você é o nosso
orgulho.
— Obrigado. — respondeu — Merecíamos a primeira colo-
cação — referia-se a ele e a moto de Sam.
— Todos nós vimos que você foi o melhor deste ano. Saiu
em último e acabou ficando em primeiro. — afirmou seu pai —
Teria sido campeão se não fosse aquela batida.
— Exatamente, eu teria sido campeão se não fosse aquele
cabeça dura do Tartaruga. — praguejou o rapaz.
— Não foi a intenção dele te acertar, Isaac. — explicou So-
fia — Tartaruga também queria um lugar ao pódio. Liderou a
corrida por um bom tempo e esteve sempre nas melhores colo-
cações e, olha só, acabou sendo o último colocado.
— Ele também merecia estar junto a vocês. — concluiu Mi-
guel.
O garoto refletiu por alguns segundos, mas não disse uma
palavra.
— Isaac Martinelli, certo? — disse um cara vestindo um
macacão preto com laranja e um número setenta e seis estam-
pado na barriga.
— Certo. — confirmou — E você é o Run.
— Eu mesmo. — fez um movimento com a cabeça — Que-
ria lhe parabenizar pela grande corrida. Você surpreendeu a
todos com o seu desempenho. Fiquei impressionado pela forma
que você dominou tão rapidamente os principais trechos da
pista. Eu treino aqui há anos e tive que dar muitas voltas para
conseguir domina-los.
— Obrigado. Observei você pilotando, isso também me aju-
dou bastante.

245
José Vitor Nunes

— Você tem grande potencial. Ainda vai me dar muito tra-


balho. — brincou.
— No próximo ano terei minha revanche. — riu.
— Vou me preparar bastante até lá.
Atenção. Os campeões Run, Isaac Martinelli e Robb, com-
pareçam à cabine de transmissão. Em cinco minutos teremos
as premiações e entrega dos troféus., anunciou o narrador.
— Vamos? — chamou Run.
— Pode ir à frente, eu te ultrapasso. — brincou Martinelli.
Eles riram.
— Tudo bem, mas cuidado nas curvas. — caçoou.
O cara de macacão preto seguiu caminho. Isaac voltou-se
para a motocicleta que pertencera a Samuel e desamarrou a
camisa do seu primo que ele havia amarrado no guidão.

O pódio com três lugares fora colocado em cima do palco


montado para o show de algumas bandas naquela noite.
Martinelli olhava para todas aquelas pessoas olhando para
eles e aplaudindo. Perguntou-se se Samuel e Yasmin estavam
vendo aquela sua nova conquista de algum lugar.
Essa é para vocês, disse em seus pensamentos.
Três lindas mulheres entregaram os troféus e puseram as
medalhas no pescoço de cada um dos campeões. Eles os ergue-
ram e vibraram aquela conquista. Os torcedores vibravam jun-
tos.
Isaac desenrolou a camiseta de Sam e tentou segura-la de
uma forma que fosse possível ver o número 00 estampado do
lado das costas. Porém, se atrapalhou todo, pois segurava o seu
troféu na mão direita e a camiseta na esquerda. Tentou estica-la
com a boca, mas, mesmo assim, o número não estava bem visí-
vel.
Run percebera aquela confusão do rapaz ao seu lado e reco-
nheceu aquela camiseta vermelha. Todos os pilotos souberam
do acidente fatal com Samuel. O campeão daquele ano enten-

246
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

dera que o garoto queria homenageá-lo. Pegou em uma das


mangas e ergueu, ajudando a esticá-la de uma forma que o nú-
mero pudesse ser visto por todos.

Mesmo não tendo ficado em primeiro lugar, Isaac sentia que


fizera o seu dever de casa conseguindo uma ótima colocação e
homenageando seu primo lá de cima, que era o lugar onde ele
deveria estar: no pódio dos campeões do Desafio Regional.

247
José Vitor Nunes

CAPÍTULO 33
Segunda-feira, 11 de setembro de 2017.

E
m seu quarto, às 2h:37min, Clarice e sua mãe arru-
mavam as malas apressadamente para viajarem. Rosy
encontrara duas passagens para Portugal com sessen-
ta por cento de desconto em uma promoção relâmpa-
go. Ela aproveitou a oportunidade e decidiu compra-las sem
pensar duas vezes, já que faltavam apenas dezenove dias para
que as aulas de sua filha começassem.
A garota não estava muito contente com aquilo, pois teria
que partir às pressas em menos de cinco horas para a capital
naquela manhã e pegaria o voo agendado para às 19h. O pior
de tudo isso é que iria seguir viagem sem ao menos conseguir
avisar aos seus amigos. Mesmo odiando despedidas, ela dese-
java dar um abraço apertado em cada um deles para tentar se
sentir um pouco confortável durante aquele um ano que ficaria
distante de todos.
Clarice pegou o celular e enviou uma mensagem ao grupo
Jovens do Futuro e dos AmendoWins dando-lhes a notícia,
porém, ninguém a visualizara. Em seguida, decidiu telefonar
para Júlia e Lourenço e acordá-los, pois eram os únicos amigos
que moravam quase ao lado e que ela poderia ver antes de par-
tir. Pediu para que fossem à sua casa dar-lhes um abraço e con-
versar um pouco enquanto a ajudava com as malas.
Clarice não parava de pensar no fato de que iria sumir assim
e passar um ano fora, despedindo-se apenas de sua melhor
amiga e Lourenço, deixando para trás tudo que construiu em
Ilha do Rio Iolete. Aquilo lhe deixava angustiada, e a vontade
de desistir da viagem e o medo de ficar sozinha no exterior
apenas crescia.

248
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

CAPÍTULO 34
Segunda-feira, 12h:22min.

I
saac acordou com o toque do seu celular no início
daquela tarde. Sentia seus ouvidos ensurdecidos
devido à festa de comemoração ao Desafio Regional
que ficou até o amanhecer juntos com os outros pilo-
tos. Ele tateou o chão até encontrar o aparelho e percebeu que
não era o toque do despertador, mas sim o de chamadas. Aper-
tou os olhos e fitou o display para ver quem lhe telefonava.
Observou a tela por alguns segundos tentando identificar aque-
le número. Não o reconheceu, porém, atendeu mesmo assim.
— Alô?
— O senhor é o Isaac Martinelli? — perguntou o homem da
voz grave do outro lado da linha.
— Sim, sou eu. — respondeu inclinando-se na cama até fi-
car sentado.
— Senhor Martinelli, eu sou o Walter, delegado de polícia
de Ilha do Rio Iolete. Viemos lhe informar que sua motocicleta
foi encontrada abandonada há quinze quilômetros da ponte
oeste por um morador da região que nos contatou. Você já po-
de vir e retirá-la aqui mesmo na delegacia.
— Ótimo! — exclamou — Maravilha! Irei assim que puder.
Muitíssimo obrigado.
— Por nada. Estamos à disposição. Tenha um bom dia.
— Você também.
Isaac suspirou aliviado com aquela notícia.
Levantou-se e foi correndo contar para seus pais.

Após almoçar, lembrou-se que, dos seus amigos de Ilha do


Rio, o único que não havia lhe perguntado sobre o Desafio Re-
gional fora Clarice, então resolveu telefonar para ela.

249
José Vitor Nunes

— Oi, Isaac. — falou a moça ao atender.


— Oi. Tudo bem com você?
— Sim. E com você?
— Estou ótimo.
— Como foi o Desafio Regional? — quis saber a garota.
— Após uma corrida muito emocionante de erro na largada,
várias ultrapassagens, um cara acertando e amassando a roda
da minha moto... Consegui a segunda colocação.
— Uau! Parabéns. Pelo visto foi uma corrida muito emocio-
nante mesmo.
— Amanhã estarei em Ilha do Rio, quero que você veja o
troféu que ganhei. É maior do que pensei e bem mais trabalha-
do.
— Você não viu a mensagem que mandei ao grupo dos
AmendoWins? — seu tom de voz estava um pouco melancóli-
co.
— Não. Quando? Por quê? — perguntou confuso.
— Você se lembra de que vou fazer intercâmbio em Portu-
gal?
— Sim. Claro que me lembro. — respondeu — Suas aulas
irão começar mês que vem.
— Então, minha mãe encontrou hoje pela madrugada duas
passagens com um ótimo preço e resolveu comprá-las — ex-
plicou —, e essas passagens estão agendadas para daqui há
cerca de... — deu uma pausa — Cinco horas e meia.
— Cinco horas e meia?! Como assim! Mas... mas nem nos
despedimos.
— Estou muito mal por isso. Consegui me despedir apenas
de Júlia e de Lourenço. Mesmo que eu lhe telefonasse, não
seria possível, pois você está em Bela Vila.
— Onde você está agora?
— Na capital. Logo estarei a caminho do aeroporto.
Martinelli ficou em silêncio por um momento.
— Você disse que seu voo sai daqui há cerca de cinco horas
e meia, não foi?

250
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Sim.
Ficou novamente em silêncio fazendo alguns cálculos men-
talmente.
— Me espere no aeroporto — disse por fim —, irei te dar
um abraço de despedida.
— Mas... Isaac, você... — o rapaz já tinha desligado, pois
não havia tempo a perder com explicações.

13h:32min.

Após desligar, discou rapidamente os números do telefone


de Thiago.
— Ei, Thiago! Preciso de um favor urgente!
— Como é que é? O que houve? — inquiriu sem entender.
— Vá à delegacia, pegue minha moto e me encontre no en-
troncamento. — disse sem mais delongas.
— Sua moto? Conseguiram recuperá-la?
— Sim! E preciso dela para ir à capital.
— À capital? O que você precisa fazer na capital que requer
tanta urgência assim?
Isaac suspirou impaciente com todas aquelas perguntas de
Lazzo.
— Clarice estará indo para Portugal em menos de cinco ho-
ras e meia para passar um ano. — explicou rapidamente —
Preciso ao menos me despedir.
— Não estou entendendo nada. — perguntou confuso — Ela
não nos avisou que viajaria hoje.
— Foi de última hora. Dê uma olhada no grupo Amen-
doWins que você vai... Enfim! — exclamou já um tanto irrita-
do — Pode me fazer esse favor?
— Claro. Posso sim. — deu uma pausa — Também quero
me despedir de Ferrier. Vou com você.
— Não vai dar, pois irá acabar me atrasando.
— Mas...

251
José Vitor Nunes

— Pegue a Magrelona na delegacia — interrompeu o amigo


—, encha o tanque e me encontre no entroncamento. — desli-
gou.
Martinelli correu ao seu guarda-roupa e pegou uma jaqueta
de couro. Vestiu e puxou o zíper até o pescoço. Colocou uma
calça por cima do short que estava vestindo, pôs as botas, pe-
gou a carteira, celular, capacete e correu até a sala principal.
Pegou as chaves da moto, foi até a garagem, deu partida e saiu
disparado.

Devido as condições da motocicleta, Isaac não poderia ar-


riscar pilotar a uma velocidade acima de 80km/h. Sendo um
tanto otimista, sua velocidade média seria de 70km/h, o que,
pelos seus cálculos, chegaria ao entroncamento em aproxima-
damente uma hora e vinte e seis minutos. Seus amigos prova-
velmente iriam interroga-lo, o que poderia fazer com que ele
perdesse cerca de cinco minutos de conversa. Então chegou a
conclusão de que, se mantivesse uma velocidade média de
100km/h de onde seus amigos estariam até a capital, chegaria
ao aeroporto em quatro horas e treze minutos, às 17h53min.,
uma hora e sete minutos antes do voo de Ferrier. Porém, o ra-
paz ainda precisava torcer para que, quando chegasse ao aero-
porto, a jovem não estivesse na sala de embarque.
Mesmo tendo feito todos os cálculos no limite de velocidade
e tempo, as probabilidades de conseguir encontrar Clarice eram
muito baixas.
Para manter as esperanças de ainda poder ver sua amiga, ele
precisava, de alguma forma, diminuir o tempo de sua viagem.
Apertou os olhos, acelerou e se concentrou na pista, pilotan-
do sempre do lado esquerdo, ultrapassando todos os veículos e
ignorando todas as placas de proibida ultrapassagens.

14h:00min.

252
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Thiago Lazzo estaciona seu Opala vermelho atrás de Ber-


nardo, que estava ao lado da bomba de gasolina.
— Comum ou aditivada? — perguntou o frentista.
— Comum. — respondeu Rivière. — Pode completar.
O homem passou um cartão no leitor magnético, sacou a
mangueira e inseriu no tanque da motocicleta.
Thiago saiu do Red Hot e caminhou em direção ao seu ami-
go.
— Estou lhe dizendo — disse ao se aproximar —, você será
preso se lhe pegarem dirigindo alcoolizado. — caçoou.
Quando foram buscar a moto de Isaac na delegacia, os rapa-
zes se depararam com o tanque vazio. A alternativa mais rápida
que encontraram foi sugar o álcool do Red Hot. Contudo, Thia-
go se recusou a fazer aquilo, o que acabou sobrando para Ber-
nardo. O garoto sugou com tanta força que suas bochechas
encheram de combustível. Ele cuspiu e colocou rapidamente a
ponta da mangueira dentro de uma garrafa PET. Em seguida,
despejou tudo dentro do tanque da Magrelona.
— Aquele bastardo deveria ter ao menos deixado um pouco
de gasolina antes de abandonar a moto. — praguejou Rivière.
— Talvez tenha sido por isso que ele abandonou a moto. —
supôs Lazzo.
— trinta e cinco reais. — falou o frentista.
— Pague o cara, Thiago. — Bernardo deu partida na moto e
ficou encarando o amigo. — Vamos. Não temos tempo para
sua avareza.
— Mas eu não tenho dinheiro aqui. Pensei que você tivesse.
— Eu?! Você que me fez sair às pressas de casa sem enten-
de quase nada.
Lazzo o encarou e fez um gesto como se dissesse: “Vamos
fugir!”
Seu amigo pareceu entender o recado, assentindo discreta-
mente com a cabeça. Seus olhos estavam esbugalhados e de-
nunciavam seu medo.
— Deixe-me ver se coloquei minha carteira no Red Hot.

253
José Vitor Nunes

Quando o Thiago entrou no carro e deu partida, Rivière ace-


lerou a moto. Ela deu dois saltos e estancou, se deslocando
menos de um metro e freando de uma vez.
O homem pulou na chave e a arrancou da ignição.
— Você não irá há lugar nenhum enquanto não pagar o que
deve! — ele estava com o olhar fumegante.
— Porra, Rivière! — exclamou de dentro do carro esticando
o braço esquerdo e o pescoço para fora.
— Vá logo buscar a droga do dinheiro! — praguejou Ber-
nardo.

14h:36min.

Há uma hora no aeroporto, Clarice procurava por alguma


distração. A correria havia sido tão grande que a garota esque-
cera-se de colocar um livro para ler na viagem. Ótimo, várias
horas sem nada de interessante para fazer.
— Está ansiosa para a viagem? — perguntou sua mãe senta-
da ao seu lado.
— Hum... mais ou menos. — respondeu desanimada.
— Pensei que você estaria mais empolgada para ir a Portu-
gal.
— Eu estou empolgada, mas é que sair desse jeito me dei-
xou um pouco desanimada. — explicou ela apoiando a cabeça
no ombro de Rosy — Nem pude me despedir dos meus amigos,
não saí com o papai, não orientei o pessoal do grupo de jo-
vens... — uma lágrima escorreu no seu rosto e ela tentou enxu-
gar rapidamente para que sua mãe não a visse.
— Calma, filha. Você poderá conversar com todo mundo
quando chegarmos. — afagou os cabelos da garota — No meu
tempo não havia toda essa tecnologia para encurtar as distân-
cias e nos fazer sentir pertinho um do outro.
— Eu queria ao menos um abraço de cada um. — disse bai-
xinho. E também apenas mais um beijo, pensou.

254
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Sua mãe lhe deu um abraço, o que fez Clarice perceber que
não existe nada mais aconchegante do que um abraço de sua
mãe ou de seu pai. Os seus portos seguros.
A jovem pegou o celular de dentro da bolsa e disse:
— Vamos ver o que está passando na TV.
O jornal local noticiava que uma carreta carregada de sacos
de arroz havia tombado na estrada há dez quilômetros da capi-
tal, bloqueando a passagem dos veículos. A moça sentiu-se
angustiada com aquele noticiário. Trocou de canal, mas ne-
nhum dos outros conectavam. Viam-se apenas chuviscos.
Desligou a TV e abriu o reprodutor de músicas. Pegou os
fones de ouvido de dentro da bolsa e ofereceu um lado à sua
mãe. Ela aceitou.
— Gosto muito dessa música. — disse Clarice — Acredito
que a senhora também irá gostar. — deu play na canção Always
do Bom Jovi. Passou o braço pela cintura de sua mãe em um
meio abraço, fechou os olhos e concentrou-se no que ouvia.

15h:10min.

— Mas como você é burro, Rivière. — praguejava Thiago


enquanto esperavam Isaac no entroncamento — Iríamos dar o
fora daquele posto e depois Martinelli pagava aquele cara.
— Vai... — deu uma pausa — Se... — deu outra pausa —
Fo... — um barulho de motor acelerado surgia ao longe e os
dois se afastaram do carro que estava no acostamento e cami-
nharam até a pista para tentar ver alguma coisa.
Uma pessoa em uma motocicleta vermelha apontou na curva
e se aproximava como uma bala.
— Será se é Isaac? — perguntou-se Rivière.
Thiago se manteve calado e apenas observava semicerrando
os olhos.
À medida que a distância entre eles e aquela pessoa se en-
curtava, tornou-se fácil ter a certeza de que se tratava de Isaac.

255
José Vitor Nunes

O rapaz reduziu a velocidade até parar. Desceu da moto, ti-


rou o capacete e passou os dedos nos cabelos suados.
Seus amigos se aproximaram dele.
— Devo essa a vocês, parceiros. — falou Martinelli.
— Sim. Trinta e cinco reais, para ser mais exato. — disse
Lazzo.
— Como é?
— Esquece...
— Agora preciso ir. — correu rumo a Magrelona.
— Espere aí. — pediu Bernardo ficando entre ele e a moto
— Você não pode sair assim desse jeito.
— Claro que posso. — deu um passo para a esquerda. Ri-
vière deu um passo na mesma direção, bloqueando seu cami-
nho — Não antes de uma explicação.
— Explicação? Thiago não lhe explicou o motivo?
— Sim, mas aquilo não me convenceu.
— Clarice é minha amiga e está indo para Portugal de últi-
ma hora e irá passar um ano lá. Um ano! E não teve tempo nem
de se despedir dos amigos. — argumentou — Imagine como
ela deve estar se sentindo.
— Isso está me convencendo. — falou Lazzo se aproximan-
do dos dois — Porém, a pergunta é: como você está se sentin-
do?
Isaac o encarou.
— O que faz “você” — apontou o dedo indicador no peito
do rapaz — percorrer tantos quilômetros assim se aventurando
em uma viagem que talvez nem chegue a tempo de vê-la? —
continuou — Como está se sentindo, Martinelli?
Isaac instantaneamente mudou a expressão do seu rosto de
agitação para triste, como se aquela máscara que estava presa
antes simplesmente houvesse caído. Virou as costas, caminhou
em direção ao Red Hot e sentou-se no capô.
— Quando cheguei de férias em Ilha do Rio — começou ele
— me senti extremamente sozinho naquela casa sem a presen-
ça de Sam. Queria tanto que ele ainda estivesse ali comigo por

256
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

pelo menos mais um minuto, para que eu pudesse dar-lhe um


último abraço. Estive no último momento dele e Yasmin estava
a caminho da minha casa em seu último momento, porém, não
pude fazer nada por eles. — seus olhos começavam a ficar ma-
rejados de lágrimas — Então naquele dia chamei Clarice para
sair, pois sabia que ela faria eu me sentir bem. E foi o que
aconteceu. Beijá-la naquela noite me fez sentir que aquilo po-
deria ser um novo começo. Amigos e família é tudo de mais
sagrado que temos; é o que realmente nos faz bem. Então, a
partir daquele dia, refleti e cheguei à conclusão de que o que eu
pudesse fazer por vocês, para que se sintam bem, eu farei.
Acreditem, um simples abraço pode mudar tudo. Pode te re-
construir quando estás em ruínas. Sabe qual é o mau de conhe-
cer pessoas que te fazem bem? É que, às vezes, você acaba se
tornando dependente delas, e ficar distante te faz mal.
— Desencoste do meu carro — disse Thiago com uma cara
séria —, está riscando a pintura.
Quando Martinelli ficou de pé, Lazzo deu-lhe um abraço
apertado e afagou as costas do amigo.
— Estamos aqui por você, irmão. — sussurrou ele — Nós te
amamos.
— Tome — disse Bernardo se aproximando —, isto perten-
ce a você. — estendeu a chave da moto.
Martinelli o agradeceu com um abraço.
— Entendem porque preciso fazer isso?
— Está esperando o quê? — perguntou Lazzo — Vamos lo-
go!
— Amendo?! — exclamou Isaac correndo em direção a
Magrelona.
— Wins! — gritaram. Lazzo entrou em seu carro e Rivière
subiu na moto de Sam.

16h41min.

257
José Vitor Nunes

Martinelli já havia percorrido cento e trinta quilômetros e o


tanque de sua motocicleta estava quase vazio. Porém, ele não
se preocupava com combustível, pois sabia que havia um posto
há menos de um quilômetro e sua preocupação agora era em
arquitetar um plano para fazer tudo que precisasse no menor
tempo possível.
Deixar a moto abastecendo, correr até o banheiro, comprar
uma garrafinha de água e voltar para a estrada.

Isaac entrou no posto como um piloto de Fórmula 1 entra no


pitstop.
Desceu da moto, tirou o capacete e correu até um homem
uniformizado.
— Complete o tanque daquela moto, por favor — apontou e
entregou a chave. — Onde fica o banheiro masculino.
— Ali na frente. — indicou o caminho onde havia duas por-
tas há cerca de cinquenta metros.
— Obrigado. — disse e correu a toda velocidade.
Entrou no banheiro, jogou o capacete em cima da pia, e se-
guiu em direção ao mictório. Ao terminar, lavou as mãos e
jogou água no rosto.
Puxou o celular e olhou as horas.
— Droga, droga, droga... — praguejou e saiu correndo rumo
à lojinha do posto. Foi até a geladeira e pegou uma garrafa de
água de 250ml.
— Quatro reais. — disse a mulher do caixa.
— Quê?! — olhou surpreso. Contudo, não havia tem a per-
der reclamando de preços, então colocou o dinheiro sobre o
balcão e saiu abrindo a garrafa e tentando beber a água.
Secou o recipiente e o jogou no lixo. Foi até sua moto, pa-
gou o homem e saiu empinando o pneu.

16h50min.

258
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— Vou até desligar o motor senão o tanque não vai encher


nunca. — falou Thiago para o frentista do posto.
— Você deveria trocá-lo por um carro um ponto zero. —
sugeriu Bernardo.
— Por um desses carrinhos de latinha que fabricam hoje em
dia? Não mesmo.
O garoto deu de ombros.
— Deveríamos deixar a moto de Sam aqui, pois assim eco-
nomizaríamos tempo e dinheiro. — afirmou Rivière.
— É verdade.
— Vou estacioná-la ao lado daquelas outras motos.
Pilotou até a lateral da loja onde havia alguns outros veícu-
los estacionados, deixou a motocicleta e voltou até Thiago.
— Um cara em uma moto como aquela passou por aqui? —
perguntou para o frentista.
— Sim, por volta de dez minutos.
— Valeu. — entrou no carro — Talvez agora possamos o
acompanhar. — disse a Lazzo — Aperte o cinto, pois o vovô
aqui ainda consegue puxar cento e sessenta.
Girou a chave, fazendo o carro tremer por inteiro até o mo-
tor funcionar.

18h00min.

Martinelli reduziu até parar ao ver a pista coberta de grãos


de arroz, uma fila de carros parados na estrada e uma carreta
tombada impedindo a passagem.

— Droga. Era só o que me faltava. — praguejou.


Desceu da moto e pendurou o capacete no guidão.
Caminhou a passos largos para ver em qual situação se en-
contrava na esperança de que poderia haver algum espaço pelo
qual ele pudesse passar e seguir viagem.
— Por favor, mantenha distância. — disse-lhe um guarda.

259
José Vitor Nunes

— Será se não há como eu passar com minha moto? Preciso


urgentemente chegar à capital.
— Só será possível daqui a vinte minutos, em média.
— Vinte minutos?! Não tenho todo esse tempo.
— Se quiser continuar, terá que esperar. Isso é para sua pró-
pria segurança.

O rapaz voltava para sua motocicleta quando, de dentro de


uma pick-up, um homem de meia idade que usava um bigode
branco e boné desgastado na cabeça perguntou:
— Qual a situação lá na frente, meu querido?
— O guarda falou que o caminho estará liberado daqui há
cerca de vinte minutos.
— Finalmente. Estou há horas esperando abrirem passagem.
— disse — E olha que minha casa fica a menos de três quilô-
metros daqui. Se esse caminhão estivesse tombado um pouqui-
nho mais para lá... — deu uma risadinha.
— Esse tempo parece uma eternidade quando se está com
muita pressa. — comentou — Não existe nenhuma outra rota
alternativa?
— Não, apenas uma estradinha antiga que dá acesso a al-
gumas fazendas, mas ultimamente não se passa com carros por
lá, pois a vegetação tomou boa parte do caminho nas laterais.
Um fio de esperança começou a surgir.
— Essa estrada dá acesso a capital? — perguntou.
— Sim, há uma saída cinco quilômetros à frente.
— Como faço para encontrá-la?
— Você só precisa voltar mais ou menos um quilômetro e
meio, então irá encontrar uma entrada à sua esquerda e só pre-
cisará seguir. Mas como eu disse, não há como passar de carro
por ela.
— Não tem problema. Muito obrigado! — saiu correndo em
direção a Magrelona, pôs o capacete, deu partida, meia-volta e
acelerou fundo.

260
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Martinelli parou na entrada estreita da estrada. Imediata-


mente vieram-lhe à mente lembranças daquela última corrida
com Samuel e a voz de seu pai pegando em seus ombros, o
olhando nos olhos e dizendo: “te peço uma coisa: tenha muito
cuidado. Não se aventure em pistas que não conhece, não ul-
trapasse o limite de velocidade quando perceber que é perigo-
so. Sei que você possui certa experiência, mas todo cuidado é
pouco. Não foi só você que chegou a perdeu um grande amigo
dessa forma. Poderia ter sido você”.
Sem pensar muito, apenas acelerou.
Os finos galhos nas laterais chocavam-se contra seus braços,
barriga e pernas, mas era preciso mais do que aquilo para parar
o garoto.
Inclinou-se na motocicleta e deixou seus joelhos semidobra-
dos para diminuir a vibração sob seu corpo naquele terreno
irregular.
Os anos se aventurando em trilhas nunca lhe pareceram tão
úteis como naquele momento.

18h10min.

Clarice dormia encostada no ombro de sua mão quando ela


lhe acordara mostrando-lhe as horas no televisor.
— É melhor irmos à sala de embarque. — disse Rosy.
— Preciso ir logo ao banheiro. — levantou-se.
— Mas você pode ir a algum lá em cima. — argumentou.
— Não irei demorar. — virou-se e caminhou a passos largos
antes que sua mãe lhe dissesse mais alguma coisa.

Enquanto caminhava, Ferrier observava as pessoas ao seu


redor na esperança de avistar Martinelli.
Procurou o banheiro feminino mais distante e entrou. Puxou
os cabelos pretos para trás e os amarrou em um rabo de cavalo.

261
José Vitor Nunes

Abriu a torneira, pôs as duas mãos em concha, deixou encher e


jogou a água no rosto.
Ficou se encarando no espelho. Aquelas últimas dezesseis
horas haviam sido exaustivas. Seu rosto estava com um sem-
blante cansado com olheiras que denunciavam ainda mais que
ela precisava de uma boa noite de sono. Eu preciso mesmo fa-
zer essa viagem? Logo hoje, logo dessa forma?, perguntou-se.
Faltando menos de uma hora para o seu avião decolar, as
dúvidas sobre ter que passar um ano longe dos amigos e da
família para passar um ano em Portugal perturbavam lhe mais
ainda a cabeça, e a moça se perguntava se valeria mesmo a
pena todo aquele sacrifício.
Antes de voltar para onde sua mãe a esperava, Clarice resol-
veu dar uma passadinha no estacionamento do aeroporto e pro-
curar pela motocicleta de Isaac ou pelo Red Hot, pois acredita-
va que, provavelmente, Martinelli viria com todos os Amen-
doWins para se despedirem. Porém, havia tantos carros que
parecia impossível encontrar.
Partir sabendo que Isaac saíra de Bela Vila para despedir-se
dela piorava ainda mais sua situação.
Uma vontade de sentar-se ali e começar a chorar encheu o
seu peito, contudo, a garota respirou fundo e conseguiu conter
as lágrimas.
Voltou cerca de dez minutos depois.
— Filha, por que a demora? Eu estava preocupada.
— Tive dificuldades para encontrar o banheiro. — mentiu.
— Precisamos estar na sala de embarque antes do horário
marcado para o voo. — pegou a mala de mão encostada no
banco — Vamos?
Clarice se manteve parada.
— Mamãe... Não estou me sentindo bem em ter que fazer
esta viagem.

18h:20min.

262
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

Isaac largou sua moto no estacionamento perto do portão


que dava acesso ao terminal um. Sentia uma fadiga nas pernas,
mas mesmo assim correu com todas as forças que ainda lhe
restavam por entre as pessoas à procura de Clarice, porém, não
a via por ali. Havia tanta gente que parecia um formigueiro sem
fim. Ele estava perdido sem saber por onde seguir, passando
por vários lugares e não encontrava nenhum rastro dela. Isaac
Martinelli sabia que Clarice Ferrier estava prestes a partir, e
isso o deixava mais desesperado ainda.
Pensou em gritá-la, contudo, já bastava está correndo lou-
camente entre aquelas pessoas que o encaravam. Assustadas.
Ele para, saca o celular do bolso e tenta ligar para ela. Nada.
A ligação cai na caixa postal. Tenta mais uma vez, e novamen-
te a mesma coisa... Caixa postal.
O rapaz voltou a correr sem norte por entre a multidão
quando uma voz vinda dos autofalantes do terminal disse: “Úl-
tima chamada para o voo com destino a Portugal. Senhores
passageiros, por favor, compareçam ao portão ‘C’ cento e
nove.”.
Isaac torceu para que Clarice ainda estivesse naquele termi-
nal. Sem perder tempo, continuou correndo a procura do portão
que dava acesso à sala de embarque na esperança de encontrá-
la. A adrenalina e o medo correm por todo seu corpo, o fazendo
não conseguir pensar direto e o deixando inquieto.
O garoto toma uma direção, corre alguns metros e vê, peri-
fericamente, o vulto de uma garota de cabelos pretos amarrados
em um rabo de cavalo e tenta parar bruscamente para voltar,
mas acaba escorregando e batendo forte com a cabeça no chão.
Aquela situação trouxe-lhe uma sensação de déjà vu.
Após a queda, o jovem fica meio tonto e tenta recuperar ra-
pidamente os sentidos. Levanta-se apressadamente e percebe
que havia um pouco de sangue escorrendo pelo seu rosto. Ele
não se importou, pois estava mais preocupado em dar um abra-
ço de despedida em Clarice Ferrier.
Foi em direção à garota e exclamou:

263
José Vitor Nunes

— Clarice!! — a moça virou-se.


Para sua decepção, aquela não era a jovem que ele procura-
va.
Encarou a garota por dois segundo, então fitou um televisor
que indicava os horários dos voos e percebeu que já não havia
mais o porquê de continuar procurando por sua amiga, pois
provavelmente ela estava em algum lugar onde ele não teria
acesso.
Isaac se manteve ali. Paralisado. Não sabia mais o que fazer.
Sentiu uma gota de sangue escorrendo de sua testa. Passou a
mão para tirar o excesso.

Após ter lavado o ferimento e enxugado bem com um peda-


ço de papel higiênico até estancar o sangramento, Martinelli
voltou para o estacionamento onde deixara sua moto poucos
minutos atrás.
Sentou-se na Magrelona, baixou a cabeça e começou a pen-
sar. Apesar de saber que Clarice voltaria após um ano, Isaac
sentia-se decepcionado em imaginar que havia fracassado mais
uma vez com alguém que ama.
Lembrou-se do comentário que sua amiga fizera sobre o fi-
nal do livro Cartas Anônimas de Um Fugitivo: “Na minha opi-
nião, eles deveriam ficar juntos, pois depois de tanto esforço e
de tudo que eles tiveram que passar e, mesmo assim, não ter-
minarem juntos foi maldade.”. Martinelli naquele momento
associava aquele comentário com todo o esforço daquele dia e
o que passara com Ferrier desde que a conhecera.
— Deveríamos ficar juntos. — sussurrou.

Uma mão tocou seu ombro e uma voz disse:


— Isaac...
Ao se virar, deparou-se com os seus amigos de pé. Por suas
expressões faciais ele percebeu que não havia o que explicar,
pois os rapazes pareciam saber de tudo só por vê-lo sentado ali.

264
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

— O que houve com a sua testa? — perguntou Bernardo.


O garoto parecia um pouco desorientado.
— Como é?
— A sua testa. — apontou.
— Ah, minha testa. Eu... eu caí. — respondeu.
— Como foi isso. — indagou Thiago.
— Eu estava correndo procurando por Clarice e acabei es-
corregando e caindo de cara no chão. — explicou.
— Conseguiu se despedir dela? — quis saber Lazzo por fim.
Martinelli balançou a cabeça negativamente.
Seus amigos perceberam a decepção no rosto do rapaz.
— Vamos procurar uma farmácia para comprar um band-
aid e por nesse ferimento. — falou Bernardo.
Os jovens seguiram em direção ao Red Hot enquanto Isaac
colocava seu capacete.
No bolso de sua calça, sentiu o celular vibrar. Pelo modo de
como o aparelho vibrou ele já sabia que se tratava de uma men-
sagem de texto. Sacou do bolso e leu o nome da pessoa que
havia lhe enviado: Clarice Ferrier.
O coração do rapaz disparou e imediatamente ele abriu a
mensagem. Nela havia escrito:
Clarice Ferrier: Eu voltarei. Você me espera? (:

18h35min.

— Me desculpe — disse a aeromoça para Clarice —, mas


você precisa desligar o celular.
— Tudo bem, já estou desligando. — abriu um sorriso can-
sado e guardou o aparelho dentro da sua bolsa.

O avião tremia bastante enquanto percorria a pista de uma


forma que parecia empurrar Ferrier contra a sua poltrona. Ele
inclinou-se, distanciando-se rapidamente do chão e alcançando

265
José Vitor Nunes

as nuvens até ficar novamente na horizontal. Àquela altura o


ambiente estava tranquilo e ouvia-se apenas o barulho das tur-
binas do avião. Clarice olhou pela janela e viu os prédios pe-
queninos. A cidade era ainda mais linda lá de cima.
Olhou para sua mãe. Rosy abriu um sorriso satisfeito e ela
retribuiu com outro sorriso.
Acomodou-se na poltrona e fechou os olhos. Naquele mo-
mento ela queria apenas descansar um pouco e ter a certeza de
que estava fazendo a coisa certa.

266
PRISIONEIRO DAS LEMBRANÇAS
De Repente Um Novo Começo

EPÍLOGO
Terça-feira, 10 de outubro de 2017.

O
show irá começar em cinco minutos. — disse
— um homem que fazia parte da organização do
evento naquela noite.
— Ok. — Isaac assentiu com a cabeça, sentado no sofá do
camarim com Bernardo, Estella e Thiago e segurando uma blu-
sa preta da Embrião Humano que pertencera à Yasmin.
Sua ex-namorada fizera o que pôde na tentativa de que os
integrantes da banda autografassem aquela blusa quando fora
com Isaac prestigiar um show.
Naquele momento, Martinelli olhava para ela e lia a assina-
tura de cada integrante. Finalmente conseguira o que, para En-
dler, seria um sonho realizado.
Um leve sorriso brotou no rosto do rapaz e ele amarrou a
blusa na cabeça.
O último mês do grupo de amigo foi quase que inteiramente
focado na rotina de ensaios para o show daquela noite.
Estella surpreendera a todos com tamanha dedicação e faci-
lidade de aprender tudo sem precisar repetir duas vezes. Ela se
mantinha sempre muito focada naquele objetivo e não se can-
sava de dizer que fazia aquilo por Samuel.
Faltando poucos minutos para subirem ao palco e fazer jus
de todo o esforço das últimas semanas, era notável que a apre-
ensão tomava conta do ambiente.
Thiago batia levemente com as baquetas em sua própria co-
xa, Bernardo balançava a perna freneticamente, Estella fazia
algum tipo de respiração suave para controlar o nervosismo e
Isaac se mantinha pensativo desde que entrara naquele cama-
rim.
— É hora do show. — disse o homem da organização.
Os jovens se entreolharam.

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José Vitor Nunes

Lazzo se levantou primeiro e disse:


— Vamos lá galera. — todos ficaram de pé — Amendo?!
— Wins! — exclamara.
Martinelli pegou o celular de cima da mesa, digitou uma
mensagem e enviou.
Isaac Martinelli: É agoraaaa!!!
Clarice Ferrier: Boa sorte! =D
Isaac Martinelli: Obrigado.
Fechou os olhos, pensou em Yasmin e disse para si mesmo
nos seus pensamentos: Meu amor, esse show é para você. Sem-
pre foi o nosso sonho. Apesar de qualquer coisa, você sempre
estará no meu coração “e eu te amarei, querida, sempre. Eu
estarei lá até as estrelas deixarem de brilhar. Até os céus ex-
plodirem e as palavras não rimarem.”

Olhou para o aparelho em sua mão e começou a digitar no-


vamente.
Isaac Martinelli: Clarice?
Clarice Ferrier: Oi.
As lembranças nunca serão apagadas, refletiu. O amor
sempre existirá. As pessoas são diferentes, mas o sentimento é
de amor. Agora é um novo começo. Carpe Diem...
Isaac Martinelli: Eu te amo <3

Deixou o celular em cima da mesa de centro e acompanhou


os amigos com um largo sorriso no rosto e se sentindo renova-
do. Aquele era o início de uma nova história.

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