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contagem dos mortos, por Saidiya Hartman
Saidiya Hartman
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07/07/2020 A contagem dos mortos, por Saidiya Hartman
Sento em minha escrivaninha fingindo que estou me preparando para a aula, relutantemente
cumprindo a demanda da universidade para continuar como se tudo permanecesse igual.
Meus alunos também estão lutando. Essa semana, dois deles perderam pais e pessoas queridas
para o vírus. Estou lendo “The black shoals” para um seminário de pós-graduação sobre a
história do confinamento. Uma frase se aloja em minhas entranhas: “A vida cotidiana é
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marcada por grotescos interlúdios com a morte de pessoas negras e indígenas nas ruas ou nas
planícies”. Tento passar dessa frase sobre o caráter cotidiano da catástrofe, a morte corriqueira
de negros e indígenas, na pandemia do covid-19. Como se navega através das escalas de morte?
Avaliam-se as distinções entre as centenas de milhares de crianças que morreram no Iraque,
como resultado do embargo americano, e as centenas de milhares que morrerão do
coronavírus? Muitos de nós vivem uma catástrofe rotineira, o estado de emergência cotidiano,
a distribuição social da morte cujo alvo são aqueles considerados descartáveis, remanescentes e
excedentes. Para aqueles normalmente privilegiados e protegidos, o terror do covid-19 é sua
violação e indiferença à distribuição usual da morte. No entanto, mesmo nesse caso, a
repartição do risco e o ônus da exposição mantêm uma fidelidade às distribuições de valor
estabelecidas.
Parece que até mesmo um patógeno discrimina, e os vulneráveis ficam ainda mais vulneráveis.
A saúde dos cuidadores, entregadores, porteiros e zeladores, trabalhadores da construção civil
e de fábricas, babás, funcionários de almoxarifados, caixas – ou seja, os trabalhadores
essenciais de baixos-salários que suportam o peso da reprodução social, de atender e cumprir
nossas necessidades e desejos. Existem os riscos de viver quando se é pobre, quando se está
abandonado e encurralado nas grandes quadras dos conjuntos habitacionais, quando se está
preso em favelas, confinado em prisões e centros de detenção. Agora o mundo está confinado,
também. Os condenados da terra tentam sobreviver, mesmo que o abrigo em casa seja
impossível ou não apresente realmente proteção, já que a aglomeração, mais do que o
isolamento, é como normalmente vivemos e sobrevivemos. O doméstico também pode ser um
local de violência.
A linguagem da guerra definiu a pandemia. O jornal The New York Times observa: “Mais
mortes do que nas guerras da Coréia e do Vietnã juntas”, embora a implicação seja que apenas
as mortes de soldados americanos contam, não o número de mortos de três milhões de
vietnamitas. É um registro exclusivo de perdas. Depois, há as guerras escondidas pelo caráter
normalizante de sua descrição social e pelas formas de violência mascaradas pelas categorias
aparentemente neutra. Pelas “condições prevalecentes” que anunciam a existência cotidiana à
beira da catástrofe e do desastre esperado. As guerras conduzidas pelo Estado contra os
governados somem de vista.
Leio o artigo no The New England Journal of Medicine sobre a pandemia na Itália,
especificamente sobre o desafio de tratar a falência respiratória devido à escassez de
respiradores. A questão que o artigo tenta responder é: como os médicos decidem quem vive e
quem morre? O que determina quem vai ser cuidado e quem vai ser deixado à morte? Quais são
os protocolos? Os médicos evitam a pergunta porque os deixa desconfortáveis; é algo que eles
preferem não discutir porque vai apenas assustar o público. Qual esquema de valor determina
o racionamento da vida e a repartição da morte? O cálculo envolvido na distribuição social da
morte e no fazer e policiar a divisão entre vidas valorizadas e vidas descartáveis define o
próprio significado do capitalismo racial; morte prematura e violência gratuita tornam a vida
uma aspiração e uma impossibilidade.
Enquanto leio à procura de uma resposta que não está no artigo, escuto meu parceiro e minha
filha comemorando porque ela resolveu um problema matemático muito difícil sobre
parábolas e equações. A sala de jantar é agora uma sala de aula em casa. Uma parábola não é o
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07/07/2020 A contagem dos mortos, por Saidiya Hartman
mesmo que uma curva que prevê as taxas de infecção e mortes aceleradas. Uma parábola que
alcança o infinito soa como um poema, diferente da curva e seu perigo.
A pergunta que os médicos preferem evitar no artigo no The New England Journal of Medicine
me amedronta mais do que o vírus. Triagem é a resposta à crise, uma crise exacerbada nos
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Estados Unidos pelo estado “sem estado” e pelo capitalismo, pelo racismo e pelo nacionalismo
branco, por mentiras e mais mentiras, por má administração, por opção pela morte, pela falta
de um sistema universal de saúde. Na hierarquia vertical da vida, ocupo o degrau mais baixo. A
medicina tem uma história perniciosa de racismo. Mesmo quando os hospitais não estão
sobrecarregados e não há falta de equipamentos, eu não sou uma prioridade.
_____________
Texto publicado no projeto Quarantine files, Los Angelos Review of Books, maio de 2020.
Tradução de Catarina Lins.
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