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07/07/2020 A contagem dos mortos, por Saidiya Hartman

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A contagem dos mortos, por Saidiya Hartman


29.05.20 | Blog (https://bazardotempo.com.br/categoria/blog/), Pensar o tempo
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A contagem dos mortos

Saidiya Hartman

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07/07/2020 A contagem dos mortos, por Saidiya Hartman

Sento em minha escrivaninha fingindo que estou me preparando para a aula, relutantemente
cumprindo a demanda da universidade para continuar como se tudo permanecesse igual.
Meus alunos também estão lutando. Essa semana, dois deles perderam pais e pessoas queridas

para o vírus. Estou lendo “The black shoals” para um seminário de pós-graduação sobre a
história do confinamento. Uma frase se aloja em minhas entranhas: “A vida cotidiana é
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marcada por grotescos interlúdios com a morte de pessoas negras e indígenas nas ruas ou nas
planícies”. Tento passar dessa frase sobre o caráter cotidiano da catástrofe, a morte corriqueira
de negros e indígenas, na pandemia do covid-19. Como se navega através das escalas de morte?
Avaliam-se as distinções entre as centenas de milhares de crianças que morreram no Iraque,
como resultado do embargo americano, e as centenas de milhares que morrerão do
coronavírus? Muitos de nós vivem uma catástrofe rotineira, o estado de emergência cotidiano,
a distribuição social da morte cujo alvo são aqueles considerados descartáveis, remanescentes e
excedentes. Para aqueles normalmente privilegiados e protegidos, o terror do covid-19 é sua
violação e indiferença à distribuição usual da morte. No entanto, mesmo nesse caso, a
repartição do risco e o ônus da exposição mantêm uma fidelidade às distribuições de valor
estabelecidas.

Parece que até mesmo um patógeno discrimina, e os vulneráveis ficam ainda mais vulneráveis.
A saúde dos cuidadores, entregadores,  porteiros e zeladores, trabalhadores da construção civil
e de fábricas, babás, funcionários de almoxarifados, caixas – ou seja, os trabalhadores
essenciais de baixos-salários que suportam o peso da reprodução social, de atender e cumprir
nossas necessidades e desejos. Existem os riscos de viver quando se é pobre, quando se está
abandonado e encurralado nas grandes quadras dos conjuntos habitacionais, quando se está
preso em favelas, confinado em prisões e centros de detenção. Agora o mundo está confinado,
também. Os condenados da terra tentam sobreviver, mesmo que o abrigo em casa seja
impossível ou não apresente realmente proteção, já que a aglomeração, mais do que o
isolamento, é como normalmente vivemos e sobrevivemos. O doméstico também pode ser um
local de violência.

A linguagem da guerra definiu a pandemia. O jornal The New York Times observa: “Mais
mortes do que nas guerras da Coréia e do Vietnã juntas”, embora a implicação seja que apenas
as mortes de soldados americanos contam, não o número de mortos de três milhões de
vietnamitas. É um registro exclusivo de perdas. Depois, há as guerras escondidas pelo caráter
normalizante de sua descrição social e pelas formas de violência mascaradas pelas categorias
aparentemente neutra. Pelas “condições prevalecentes” que anunciam a existência cotidiana à
beira da catástrofe e do desastre esperado. As guerras conduzidas pelo Estado contra os
governados somem de vista.

Leio o artigo no The New England Journal of Medicine sobre a pandemia na Itália,
especificamente sobre o desafio de tratar a falência respiratória devido à escassez de
respiradores. A questão que o artigo tenta responder é: como os médicos decidem quem vive e
quem morre? O que determina quem vai ser cuidado e quem vai ser deixado à morte? Quais são
os protocolos? Os médicos evitam a pergunta porque os deixa desconfortáveis; é algo que eles
preferem não discutir porque vai apenas assustar o público. Qual esquema de valor determina
o racionamento da vida e a repartição da morte? O cálculo envolvido na distribuição social da
morte e no fazer e policiar a divisão entre vidas valorizadas e vidas descartáveis define o
próprio significado do capitalismo racial; morte prematura e violência gratuita tornam a vida
uma aspiração e uma impossibilidade.

Enquanto leio à procura de uma resposta que não está no artigo, escuto meu parceiro e minha
filha comemorando porque ela resolveu um problema matemático muito difícil sobre
parábolas e equações. A sala de jantar é agora uma sala de aula em casa. Uma parábola não é o
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mesmo que uma curva que prevê as taxas de infecção e mortes aceleradas. Uma parábola que
alcança o infinito soa como um poema, diferente da curva e seu perigo.

A pergunta que os médicos preferem evitar no artigo no The New England Journal of Medicine
me amedronta mais do que o vírus. Triagem é a resposta à crise, uma crise exacerbada nos
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Estados Unidos pelo estado “sem estado” e pelo capitalismo, pelo racismo e pelo nacionalismo
branco, por mentiras e mais mentiras, por má administração, por opção pela morte, pela falta
de um sistema universal de saúde. Na hierarquia vertical da vida, ocupo o degrau mais baixo. A
medicina tem uma história perniciosa de racismo. Mesmo quando os hospitais não estão
sobrecarregados e não há falta de equipamentos, eu não sou uma prioridade.

Como documentam estudos empíricos, o sistema de saúde é rotineiramente indiferente ao


sofrimento negro, duvidando da sensciência compartilhada dos corpos com dor, questionando
se o humano é uma categoria expansiva ou excludente, e mesmo se o corpo negro é percebido
como humano. Quem vive e quem morre? Temo a resposta para essa pergunta. Acho que sei
qual é.

_____________

Saidiya Hartman (1961) é escritora norte-americana e professora na Universidade de


Columbia. É autora de livros como Lose Your Mother: A Journey Along the Atlantic Slave Route
(2007) e Wayward Lives, Beautiful Experiments: Intimate Histories of Social Upheaval (2019),
este último vencedor do National Book Critics Circle Award.

Texto publicado no projeto Quarantine files, Los Angelos Review of Books, maio de 2020.
Tradução de Catarina Lins.

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