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“O coração de Sales estava disparado naquela noite, seu corpo excluía todos os

empecilhos físicos. Não sentia frio. Sua audição não ouvia guinchar dos ratos, mas

estava pronta para identificar o menor ruído provocado pelo inimigo. Sua visão nem

reparava as ruas imundas, mas era capaz de reconhecer um vulto humano a dezenas de

jardas, mesmo durante a noite. Não estava com fome, mas seu paladar ansiava um

sabor nunca experimentado, o doce sabor do sangue.”

Idade das Trevas. Os verdes bosques que margeiam a cidade de Edimburgo

serão palco de uma guerra jamais vista, que defrontará dois mundos completamente

diferentes. Não, nessa guerra os heróis não são cavaleiros vestindo suas nobres

armaduras e empunhando grandes espadas. Nessa guerra um único homem se defrontara

com todo um mundo, um mundo de crença e ignorância. Suas armas... a razão e a

lógica.

Para resolver os mistérios que cercam um esquecido feudo do norte da Europa

Sales terá que usar de toda sua inteligência e pensamento lógico, evitando assim que

toda a região seja considerada sob o domínio do demônio. Em meio a suas investigações

ele descobre fatos que trazem a tona um passado muito distante e que poderiam colocar

em risco toda sua razão e ceticismo.

Qualquer sugestão, reclamação, idéia, ou qualquer coisa do tipo:

bergazza_ak@yahoo.com.br
Capítulo I

Norte de Edimburgo, décimo sexto dia do segundo mês do ano de 1311 de nosso

senhor.

A tempestade de neve caia do céu escuro, sem lua naquela madrugada. O manto

branco de neve que cobria o solo contrastava com a escuridão da noite, que vez por

outra cedia na disputa com os clarões provocados pelos relâmpagos. O tamborilar das

gotas de água caindo sobre as finas folhas das coníferas e o farfalhar dos grandes flocos

de neve roçando os grandes pinheiros eram constantemente abafados pelo rosnar dos

trovões, que atingiam furiosos toda a cadeia de montanhas que cercava o pequeno vale.

O perfume saboroso da floresta, naquela madrugada escorria junto com a água que

descia pelos troncos grossos das árvores, deixando um tom desolador ao bosque.

Todos os animais nativos daquele local agora dormiam escondidos em suas

tocas, esperando pelo confortante calor do astro rei. Um único resquício de vida pairava

pelo bosque. Sobrepujando o frio, a neve e a tempestade, um franzino homem de meia

idade percorria a pequena trilha formada entre as árvores até um pequeno feudo, bem ao

norte do vale.

Sua caminhada de semanas agora estava próxima do fim, os grandes portões da

fortificação já apareciam imponentes em meio às árvores. No máximo em um sexto de

hora teria um teto para se abrigar, e provavelmente uma roupa seca e uma boa caneca de

água morna.

Os raios caiam do céu como que raivosos pelo abandono de seu único

espectador, o vento gemia cortando o vale, as gotas d’água pareciam cada vez mais

pesadas. Com um clarão um trovão atingiu um pinheiro em frente ao homem. Chamas

surgiram nos galhos mais altos e logo tomaram conta de toda a árvore. As poucas gotas
de água que caiam junto com a neve não eram suficientes para apagar as labaredas, que

ardiam incessantemente. Línguas de fogo lambiam os céus dando a paisagem daquele

bosque, cada vez mais, um aspecto surreal.

O homem estremeceu, sua mente não acreditava nas mensagens enviadas pela

sua visão. Neve, água, trovões, fogo! Se algum insano tivesse a ousadia de pintar um

quadro como aquilo que seus olhos presenciavam certamente teria seu corpo consumido

pelas chamas, em um Auto de Fé promovido pela Santa Inquisição. Desviou seus

pensamentos. Seu objetivo agora era chegar ao feudo, não importa o que lhe custasse.

Não desistiria agora. Lançou-se numa corrida desembestada por entre as árvores, o fogo

e a neve, estava disposto a não parar até atingir os grandes portões.

Caiu por duas vezes, vítima da traiçoeira neve, que cobria com seu manto

escorregadio todo o solo da floresta, mas logo atingiu os portões. Suas mãos bateram

ávidas as negras tabuas do portão, mas não obteve resposta. Apenas seu grito foi capaz

de chamar a atenção de um guarda, que dormia em uma das duas torres que guardavam

a entrada do feudo.
Capítulo II

Alguns meses antes...

- Senhor Sales, o bispo lhe aguarda na diocese. Acompanhe-me, por favor.

Caminhando pela basílica de Avignon, o baixo frade de idade avançada e

cabelos brancos conduzia o visitante pela porta que levava aos aposentos desconhecidos

da basílica, onde somente religiosos podiam adentrar. Sales estava impressionado,

mesmo não sendo a primeira vez que entrava na sede papal se espantava com a beleza e

com a imensidão da construção. As grandes janelas deixavam a luz derramar sua

claridade por toda a igreja, iluminando as pedras cinza escuro usadas na construção. No

altar uma grande cruz de madeira com a imagem de Jesus entalhada estava bem ao meio

da parede, e em sua frente uma grande mesa construída com a madeira mais rica do

reino sustentava um exemplar da Bíblia em latim.

A parte posterior da basílica, por onde era conduzido agora, era reservado para

os aposentos dos padres e bispos, e possuía até um luxuoso quarto, usado pelo papa

quando necessário. Pelos corredores, muitas imagens de santos e quadros de passagens

bíblicas enfeitavam as paredes, iluminados por velas.

O velho frade parou diante de uma porta e com algum esforço escancarou-a,

deixando que a luz do corredor tomasse conta da sala, outrora privada dela pela grande

porta. Sales pode distinguir ao fundo do cômodo alguém sentado diante de uma mesa,

iluminado por uma vela. A sala parecia hermeticamente fechada, a não ser pela porta

por onde entrava agora, e não possuía nenhum móvel, a não ser uma mesa e duas

cadeiras.

- Entre, por favor. O bispo Benjamin esta lhe aguardando. - Informou-lhe o

homem.
Sales entrou na sala e pouco depois pode escutar o som da porta sendo fechada

as suas costas. A sala que pensava não poder ser mais escura foi totalmente tomada pelo

breu, seguiu o misero ponto de luz proporcionado pela vela com muito cuidado para não

tropeçar em algo. Logo estava sentado diante de Benjamin de Loureine, bispo de

Avignon.

- Que bom que atendeu meu chamado Padre Sales. Fico feliz em vê-lo. – Disse o

bispo num tom solene.

- Se me permite, gostaria que me chamasse de SENHOR Sales, reverendíssimo.

O Senhor sabe que já abandonei a santa igreja há algum tempo. Mas me diga, o que

quer comigo? – As palavras de Sales soavam com um tom de desprezo.

- Vejo que não mudastes nada! Sabes que não é permitido o abandono da batina.

Sabes que com esta tua atitude deverias ser no mínimo excomungado da igreja. O mais

comum seria condená-lo num Auto de fé por heresia.

- Sabes que não podes fazer isso. Embora eu tenha largado da palavra de Deus,

meus conhecimentos são muito úteis para a igreja. Alem disso, sabes que tenho uma

dezena de nobres me devendo favores, e que não hesitariam a se opor a minha

condenação à fogueira.

- Tudo bem. Mas enfim, já sabia que havias abandonado a batina, e não foi por

isso que te chamei. Preciso de um favor teu. Um favor não, pois ele será bem

remunerado, um serviço. O que me diz?

- Lhe digo, senhor bispo, que foi por isso que te diste que eu não poderia ser

condenado. A igreja sempre precisa de meus favores. Do que se trata?

- Assuntos que simples padres não podem resolver. Estamos com problemas

num feudo ao norte de Edimburgo. Nos últimos meses muitas pessoas foram
assassinadas, inclusive dois padres. Preciso que tu investigues a região antes de o

tribunal da Santa Inquisição ser enviado para lá.

- Investigar assassinatos? Porque não mandas um de teus estudiosos para lá?

Eles também têm capacidade investigar tais fatos.

- Teriam, se fosse um caso comum. Mas segundo a população local há um

demônio vivendo naquele feudo.

- Não acredite em bobagens! Tu bem sabes que a maioria destes casos são

apenas lendas. Eu lhe afirmo, seria mais fácil nos juntarmos de novo com a Igreja

Romana do que haver um demônio naquele feudo. Já estudei mais de cem casos iguais a

esse, e em apenas um fiquei realmente convencido que um demônio era o responsável

pelos fatos estranhos.

- Pois acho que terás teu segundo caso, SENHOR Sales. Tenho dois estudiosos

na região e eles me garantiram que, seja o que for que esta atuando no feudo, não é

humano.

- A Igreja deveria se preocupar mais com o que os homens podem fazer do que

com os demônios. Eu sei do que os homens são capazes, e lhe digo, as vezes acho que

nem mesmo demônios são capazes de realizar atos tão cruéis quanto os humanos. Mas,

enfim, aceito tua proposta, desde que o pagamento seja bom.

- Cinco mil florins lhe são suficiente?

- Por suposto que sim, me dê o mapa de como chegar ao local e dentro de um

mês estarei partindo. A viagem até Edimburgo é longa, dentro de três meses no máximo

estarei lá.

- Ótimo! Três messes. É o tempo que necessito para formar um grupo de

inquisidores para enviar ao local, acho que precisarei de alguns soldados também.
- Que assim seja. Agora, se me permite, tenho mais coisas a fazer. Que Deus o

abençoe reverendíssimo.

- Que ele ande contigo também, e que te proteja dos perigos que virão senhor

Sales.

A sala agora parecia bem menos escura. Sales abandonou-a, arrastando

ruidosamente a porta e deixando a luz novamente entrar pelo cômodo, percorreu

rapidamente os corredores internos da basílica. Antes de ir embora, ajoelhou-se diante

do altar, e permaneceu ali durante um bom tempo, pedindo perdão a Deus por todos

seus pecados.
Capítulo III

Quatro meses depois...

O portão se erguia altivo entre as duas torres, parecendo não se importar com o

frio daquela noite. Sales estremeceu, só agora havia percebido o imenso frio que fazia,

sua roupa molhada o acentuava ainda mais, de modo que todo seu corpo tremia.

Uma pequena portinhola se abriu no portão a ali um velho homem mirou

demoradamente o ex-padre.

- Quem és tu e o que fazes aqui a essas horas? – Perguntou o velho com a voz

mais ameaçadora que conseguiu fazer.

- Sir. Sales de Constantina, senhor. Venho de uma viagem de dois meses e estou

ansioso por uma roupa seca e um prato de comida. – respondeu Sales, enquanto tremia

devido ao frio.

- E o que te faz pensar que o encontraras aqui? Volte para a floresta mendigo e

me deixe dormir. – resmungou o velho homem se virando para voltar à torre.

As palavras daquele velho fizeram o Sales se enfurecer. O frio sumira devido ao

calor do sangue que percorria rapidamente suas veias. Seu coração batia acelerado. Seus

braços entraram ligeiros pela abertura do portão e seguraram o colarinho do velho

homem.

- Escute aqui velho! Estou a dois meses viajando, sem tomar banho, sem me

alimentar direito e passando frio. Há cinco dias fui assaltado e meu cavalo foi levado

por dois estranhos. Tudo isso somente para vir até este feudo imundo para salvar suas

almas inúteis. Vê? Sou da Igreja! – Disse Sales, mostrando a carta do bispo de Avignon

para o homem. – Depois de tudo isso tu vens me chamar de mendigo?


Os olhos do velho quase saltaram para fora do rosto. Sua face tornou-se pálida

como a neve quando viu o carimbo do bispo de Avignon na carta mostrada a ele.

- Mil perdões senhor. Um momento que já abrirei o portão.

-Ande logo, pois já não tenho mais a mesma paciência de alguns anos atrás. -

respondeu secamente.

Logo o portão se abriu.

O local por onde caminhava agora realmente não podia ser chamado de feudo. O

burgo do local havia tomado conta de todo o espaço, tornando-o uma pequena cidade.

Muitas casas, disformes uma em relação à outra se erguiam logo após o portão, algumas

se levantavam altas e imponentes com no mínimo dois andares. Sales olhou para o céu.

A neve cessara e a tempestade agora se transformara numa leve garoa. O frio voltou ao

seu corpo, junto com o odor dos excrementos jogados pelas janelas das casas, ato muito

comum nesse período. Virou-se para o velho guarda, em busca de informações.

- Preciso de um abrigo para esta noite. Um local onde eu possa descansar até de

manha, quando conversarei com o burgomestre.

- Senhor, estão todos dormindo a essas horas. Podes tentar...

- Onde fica a residência dos dois representantes da igreja neste local? –

perguntou Sales, interrompendo o homem.

- São aquelas ali – disse apontando para duas casas – mas acho que não seria

coveni...

- Obrigado senhor, que Deus esteja contigo. – disse enquanto se dirigia para o

local apontado, sem dar importância para os comentários do guarda.

As casas não ficavam a cem jardas do portão. O ex-padre caminhava

rapidamente até elas, tentando espantar o frio. Parou diante das duas casas, escolheu a

que parecia mais rica e bateu à porta. Nenhuma resposta. Os punhos de Sales voltaram a
golpear a porta, dessa vez mais bruscamente. Novamente nenhuma resposta. Olhou para

o ferrolho que segurava a porta e percebeu que não continha nenhum cadeado, eram

muito caros naquela época. Soltou o ferrolho e escancarou a porta, revirando seu

cinturão achou uma vela, na qual voltou até a rua principal para acendê-la em uma

tocha. O caminho percorrido na volta foi rápido, e suas mãos protegiam a frágil chama

da fina garoa.

Ao por os pés na porta se deparou com um homem vestindo uma batina

totalmente amassada, igualmente a seus cabelos. O homem alto, porem franzino fitou-o

de cima a baixo, como que selecionando as palavras que diria.

- Quem és tu e o que te faz pensar que podes invadir minha casa a essas horas da

alva? Em nome de Deus saia já de minha casa. – falou o homem, com voz ameaçadora.

- Não utilizes o nome de nosso senhor, TEU Deus em vão. Fui enviado pela

igreja de Avignon para trabalhos que tu e teu colega sois incapazes realizar. Preciso de

tua cama, devolvo-a ao amanhecer.

Enquanto pronunciava essas palavras Sales se despia, deixando suas roupas

molhadas ao lado da lareira que esquentava a casa. Feito isso se deitou na cama de

palha, sem dar a mínima atenção para o dono da casa.

Benedito não sabia o que fazer. Sabia que aquele homem era realmente da igreja

e que tinha sido enviado por Avignon. Apenas não podia imaginar onde o bispo pudera

arranjar alguém tão rude. Teve vontade de empurrá-lo para fora da cama, mas desistiu.

Em vez disso ajoelhou-se perto da lareira e rezou, pedindo a Deus perdão pelos seus

pensamentos maldosos.
Capítulo IV:

A luz da aurora jorrava pela pequena janela entalhada na parede de pedras.

Benedito acabara de despertar se seu sono, cheio de dores. Levantou-se do chão frio,

onde havia passado toda a madrugada, e vasculhou toda casa em busca de seu

inesperado hospede. Nada. Como havia aparecido, aparentemente, o enviado de

Avignon havia sumido. Melhor assim, pelo menos poderia continuar suas pesquisas sem

nenhum intruso dentro de casa. Comeu um pouco de pão, e logo se voltou para seus

livros, nos quais passaria todo o dia debruçado.

Sales acordara cedo naquele dia, pretendia conversar com o burgomestre logo ao

raiar do sol, para não perder o precioso tempo da investigação. Cada minuto daquele dia

seria importante, pretendia terminar o serviço logo, para esfregar o mais rápido possível

na face da igreja que ela estava, mais uma vez, errada. Nada de demônios, nada de

espíritos malignos. No máximo um insano se divertindo com a vida dos inocentes.

A sala de espera do castelo era pequena se comparada aos grandes salões da

cidade natal do investigador. Mesmo assim era bonita e muito bem mobiliada, com

móveis feitos de madeira maciça e quadros muito belos. Teve que esperar metade de

uma hora para ser finalmente atendido.

- Sir. Sales de Constantina, conde Solveig o aguarda. Acompanhe-me, por favor.

O ex-padre foi conduzido até uma porta ao lado direito da sala, onde ficava o

gabinete do burgomestre. Após abrir a porta o serviçal abandonou o local, deixando

Sales e o velho homem, baixo e de pele clara, sozinhos para conversar.

- Demoraste a chegar Sir. Sales. Fui informado que chegarias há um mês!


- Tive problemas, senhor. Mas estou disposto a resolver este impasse o mais

rápido possível. Logo prenderemos o responsável pelos assassinatos.

- E como pretendes prender o próprio Satan homem?

- Lhe garanto que não existe nenhum demônio neste lugar, muito menos o

próprio Satan.

- Não foi o que me disseram os estudiosos que temos aqui. Estão assustados.

Eles temem Satanás!

- Não fale bobagens. Digo-lhe que em no máximo três dias terás o responsável

por esses atos preso em tua masmorra. Mas para isso preciso de tua autorização para

investigar os corpos, assim como para andar à noite pelo feudo.

- À noite? Está maluco homem? É muito perigoso zanzar pela rua ao cair do sol.

Sabes que a noite é habitada por...

- Demônios? Espíritos Malignos? – Interrompeu Sales – Não acredito como

existem tantas pessoas que ainda acreditam nisso. Os únicos seres que vagam pela noite

são os assassinos e os estupradores, como queres prender-los se não permites que se

ande à noite pelas ruas?

- Certo. Tens minha permissão para ver os corpos, assim como para vagar pelas

ruas durante a noite. Mas te digo que quando tu vir os corpos passarás a acreditar no

cão.

- Veremos isso agora. Onde posso encontrá-los?

- Estão em uma sala da masmorra. Acompanho-te até o local, quero ver tua face

quando vir os corpos.

- Que assim seja.

Os dois abandonaram o gabinete, partindo em direção à masmorra, que ficava

em um prédio logo ao lado do castelo. A maioria das salas da construção agora estavam
abarrotadas instrumentos dos mais variados tipos, desde armas até feixes de palha.

Apenas uma das salas da masmorra era usada para seu verdadeiro propósito.

Caminharam por toda a construção, até cegar á uma escada que conduzia ao subsolo, ali

um guarda protegia a passagem.

Conde Solveig, o burgomestre, deu ordens para que todos ali permitissem a

entrada de Sales em todas as instalações da cidade. Logo os dois estavam na sala, junto

com cinco cadáveres cobertos por panos.

Com uma vara de madeira Solveig se dirigiu ao primeiro cadáver e retirou-lhe o

pano que o cobria totalmente. Os olhos do investigador percorreram todo o corpo nu.

Aparentava ser um homem de meia idade e cabelos escuros. Seu corpo estava

totalmente dilacerado por centenas de rasgos, que pareciam feitos pelas garras de algum

animal. Solveig foi até os outros corpos e fez o mesmo. Uma cena realmente macabra.

Cinco corpos, totalmente nus, com seus corpos marcados por centenas de cortes

agrupados paralelamente de três em três, dando a impressão que foram feitos por garras.

O sangue, já seco, cobria a maioria dos ferimentos. Apenas um não estava sujo pelo

liquido da vida, pois havia sido limpo para estudos.

- Que me diz agora padre? – Inquiriu Solveig sarcástico.

- Não me chame mais assim, por favor. Essa palavra me traz más lembranças. –

Sales aparentava estar emocionado. – Ma... mas em fim, isso não são provas de nada.

- Algum problema?

- Não, nenhum. Perdão pelo descontrole. Mas como te dizia, esses corpos são

apenas mais uma prova de que esses assassinatos foram provocados por algum humano.

– Disse Sales restabelecido. – Pense comigo Conde Solveig: Se o demônio realmente

existe, podemos considerá-lo um ser de extrema inteligência, pois não se deixou

aprisionar durante toda a historia da humanidade. Achas, então, que ele sairia pelos
feudos do mundo, matando inocentes e deixando suas garras estampadas no corpo dos

infelizes? Alem disso, olhe para esses ferimentos. Tu achas que eles foram realmente

feitos por garras? Olhe a espessura deles! – O investigador cravou suas longas unhas em

um dos cadáveres, rasgando sua pele morta. – Vê? Essas sim são feridas provocadas por

garras. Estas outras parecem que foram feitas com um pedaço de metal, ou algo do

gênero.

Solveig estava espantado, como alguém poderia ter um raciocínio tão

desenvolvido? Não achou resposta para nenhuma das perguntas feitas pelo investigador.

Mesmo assim ainda suspeitava do cão.

- Concordo contigo. Mas se esses assassinatos não foram realizados pelo

demônio em pessoa, então temos algum humano que esta tomado por ele. Precisamos

exorcizá-lo. Sabes o fazer?

- Chega disso! – Exaltou-se o ex-padre. – Por que vós não sois capazes de

perceber que o homem não é bom? Que ele pode matar, roubar, destruir famílias inteiras

sem estar possuído por nenhuma entidade? Por que culpam o demônio por pelos erros

dos homens? – Uma lagrima escorreu pelo rosto do investigador, indo cair encima de

um dos cadáveres. – Estou cheio disso. Preciso descansar, procuro-te mais tarde.

Sales abandonou a masmorra sem pronunciar mais uma palavra. Lembranças

afloravam em sua mente. Estava triste. Estava magoado. Por que vivia num mundo de

tanta ignorância?

***

O sol já estava altivo quando Sales abandonou a masmorra. Sabia que teria que

desvendar todo o mistério sozinho, nenhum morador daquele feudo raciocinava o

suficiente para ajudá-lo. Caminhou até a casa onde havia passado a noite em busca de

um lugar onde tivesse paz. As casas do burgo, agora iluminadas pela luz da manha, se
mostravam ainda mais imundas. Camponeses e serviçais vagavam pela estrada até seu

local de trabalho, enquanto pestilento se debatiam sobre as soleiras de algumas casas.

Em pouco tempo estava adentrando na residência de seu hospedeiro mais uma

vez. Benedito ao ouvir os passos do intruso na sua casa foi logo recebê-lo.

- Bom dia padre. Estava preocupado contigo, onde fostes tão cedo?

-Não me chame de padre. Chame-me apenas de Sales. Este é meu nome. – falou

o ex-padre. – Também queria pedir-te perdão pela minha invasão ontem à noite, mas

estava muito cansado. Esta manha estava a conversar com o burgomestre dessa

localidade.

- Claro. Sales. Então queres me dizer que não és padre? Poderia me dizer por

que a Santa Igreja o enviou, se não é padre?

- Na realidade já fui padre. Mas abandonei a profissão há muitos anos, junto

com Deus. Agora me dedico a apenas investigações do oculto.

- Abandonaste a Deus? Isto é um insulto! Por que o fizeste?

- Abandonei-o quando ele me abandonou. E abandonei junto com ele toda a

ignorância que ainda cerca todos vos.

- Deus não abandona nenhum de seus filhos. Conte-me o que aconteceu.

- Não preciso de seções de terapia, filho. Alias, nem sei por que estou lhe

contando isso. – Sales ainda estava visivelmente abalado devido a sua conversa com

Solveig. – Mas enfim, já que comecei a estória hei de terminá-la, acho que me fará bem.

Sente-se, pois é uma longa história, e só a contarei uma vez...


Capítulo V

Muitos anos atrás...

Era véspera de Natal quando aconteceu. Eu era o filho mais novo do Duque de

Valois, um dos mais influentes vassalos do rei da França. Meu irmão mais velho, Brito

de Valois, estava se preparando para assumir o cargo de meu pai, que estava prestes a

morrer. Eu, como era o mais novo, fui enviado a um monastério franciscano para me

sagrar padre, e livrar minha família de todos os pecados cometidos por ela.

Foi uma dura mudança em minha vida. Estava acostumado com todas as

comodidades e regalias de ser o filho de um nobre, e de repente, havia sido enviado para

um mosteiro que pregava a pobreza absoluta. O único pertence que tinha era uma roupa

surrada e de tecido porco, a qual não podia retirar do meu corpo. Isto aconteceu quando

eu completei dez anos de idade.

Passei mais doze anos da minha vida dentro daquele mosteiro, sem sair uma vez

sequer de suas dependências, sem ver qualquer outra pessoa a não ser os frades que

moravam comigo. Tive doze anos para aprender a escrever o latim, para estudar a bíblia

e para rezar. Era a única coisa que fazia. Embora a vida no mosteiro fosse muito

monótona éramos todos felizes. Creio que o ultimo dia feliz da minha vida foi o ultimo

dia que passei no mosteiro.

Ao completar vinte e dois anos abandonei meus colegas frades e voltei para o

feudo de minha família. Encontrei-o completamente mudado, meu pai havia morrido, e

meu irmão havia assumido seu cargo. Passei dias chorando sobre a tumba de meu pai. A

partir daquele dia nunca mais fui o mesmo.


Após alguns meses de meu regresso, já havia me estabelecido completamente na

paróquia do feudo. Passei a escutar as confissões e as reclamações do povo, havia me

tornado, além de um conselheiro espiritual, um porta voz do povo para a nobreza.

Ouvia a reclamação dos camponeses sobre os altos impostos, sobre o mau

tratamento, sobre os abusos de poder. Fui ter com meu irmão, mas ele me ignorou.

Assim como todo o feudo, ele também estava muito mudado, havia se tornado um

déspota, alguém que não se importava com a vida dos seus.

A partir desse momento tudo aconteceu muito rápido. A população estava cada

vez mais revoltada com a administração de meu irmão, e me culpavam por não

conseguir com ele as suas reivindicações. Estavam completamente descontrolados, e

não suportavam mais pagar os altos tributos cobrados por Brito. Eu roguei a Deus que

ele acalmasse os corações dos aldeões, mas Ele não me escutou.

No outro dia o pandemônio estava armado. Acordei com o som da população

raivosa a bradar infâmias contra minha família. A nobre cavalaria foi armada, mas os

três guerreiros do feudo não foram capazes de conter a rebelião. Vi toda minha família

ser morta, empolada e depois decapitada pelos camponeses, que se banhavam em seu

sangue, num ritual macabro. As mulheres, antes, eram violadas pelos lideres da revolta,

e logo após eram entregues para a diversão da população, muitas morreram devido ao

ato, e nem chegaram a sentir a dor de serem empoladas.

Fui o único sobrevivente, a maioria dos camponeses temia me matar, pois eu era

o enviado de Deus naquela região. Fugi. Corri como jamais havia corrido em toda

minha vida. Sem destino. Entre as casas dos assassinos da minha família eu corria e via

o sangue azul derramado no solo.

A tristeza levou-me ao frenesi, levou-me ao pecado. A vingança. Com uma

tocha incendiei a maior quantidade de casas que consegui. Alem do sangue, agora o
fogo também jorrava pelo feudo. Continuei minha corrida, mas logo estaquei. Estava

ali, o líder da revolta, deitado entre duas casas com minha irmã, violando seu corpo

como se fosse um animal. Os gritos e o choro da minha irmã entraram pelos meus

ouvidos assim como o ópio entra no corpo de uma pessoa. Limpou minha mente, deu-

me coragem. Saltei para cima daquele porco como um leão para abater sua presa. Tentei

derruba-lo com meus próprios punhos, mas não tive sucesso. Passei toda minha vida me

preocupando apenas com livros, enquanto aquele homem, provavelmente, teve sua vida

centrada no labuto e na dureza. Enquanto eu jejuava em homenagem a Cristo, ele

jejuava simplesmente pelo fato de não ter o que comer. A vida o havia tornado muito

mais forte do que eu.

Fui abatido, e rolei no chão enquanto o líder se levantava de olhos fixos em

mim, iria matar-me. Eu não podia mais escutar o choro de minha irmã. Arrastava-me no

chão, tentando fugir daquele monstro. Apenas não morri, pois naquele momento o mais

nobre cavaleiro do feudo, e talvez até de todo o reino, Sir Wilian de Breankwood

apareceu imponente atrás de mim. O assassino, temeroso, debandou em uma corrida

alucinante, fugindo do poderoso guerreiro que ostentava uma nobre armadura de placas

de bronze e uma grande espada desembainhada.

Corri para minha irmã, mas já era tarde. Peguei-a nos braços e senti a vida

esvaindo de seu corpo, beijei-lhe a testa e lhe dei a benção antes dEle levá-la. Roguei a

Deus pela vida de minha irmã, mas Ele novamente me abandonou, logo o corpo dela

desfaleceu em meus braços.

Virei-me para agradecer ao nobre cavaleiro, mas ele também tinha me

abandonado. Corri para fora do feudo e nunca mais voltei ao local. De longe pude ver a

barbárie dos camponeses, alguns saudando a liberdade, outros ocupados para eliminar

as chamas. Num ultimo olhar para trás vi as cabeças de meus entes sobre os muros da
fortificação, mostrando que ali não havia mais um comando. Desde então dez anos se

passaram. Dez anos em que eu abandonei a ignorância e estudei tudo de mais estranho

que acontecia por todo o mundo.

Larguei a palavra de Deus. Ele não me ajudou naquele dia, e percebi que nunca

havia me ajudado. Tudo de bom que havia acontecido na minha vida tinha sido por meu

próprio esforço e esmero, assim como tudo de ruim havia sido por meu desleixo. Foi

isso que eu percebi e que me tornou tão cético. É isso que todos devem descobrir em si

próprios. É esse conhecimento que leva á sabedoria e a razão.

Vivemos num mundo onde o único conhecimento levado em consideração é a

fé. Quando toda população do mundo se der conta de toda a capacidade do homem

acredito que nosso mundo entrará numa era de grande avanço. É isso que eu espero, e é

isso que eu tento mudar nesse tempo. Esse é meu desígnio.


Capítulo VI

- Agora entendo porque és tão cético. Mas te digo, Deus não abandona nenhum

de seus filhos. E agora acabo de me convencer disso. – Falou Benedito com uma voz

triste.

- E o que achas que Ele faz comigo? Ele deixou-me a própria sorte. Tive fé nEle,

rezei para Ele, mas Ele me abandonou. Não me diga que foi Deus quem botou aquele

cavaleiro no meu caminho, pois não irás me convencer disso. Sou certo de que tanto

como o demônio não é o responsável pelos atos de maldade provocados pelo homem,

Deus não é o responsável pelas coisas boas que fazemos. Tudo é uma questão de

escolha.

- Dizes que este fato se passou há dez anos, certo? E que o homem que salvou

sua vida foi Sir Wilian de Breankwood, correto? Pois lhe digo que como tu conheces o

oculto, eu conheço os documentos da história, e já li em muitos deles que o nobre

cavaleiro Wilian de Breankwood tombou em um combate nos reinos Nórdicos há

quinze anos atrás! Como poderia ele ter te salvado a vida?

- Como tombou em combate? Queres me dizer que ele morreu há quinze anos?

Isto é impossível, eu vi ele, vi seu brasão, sua armadura, sua espada, pelo que sei ele não

tinha filhos parra repassar esses bens.

- Correto, Wilian não tinha filhos para repassar sua armadura. Armadura essa,

que logo após a morte do cavaleiro foi levada a Roma, onde está até agora.

- Como isto é possível? Tenho toda a certeza do mundo que aquele homem era

Wilian de Breankwood! Como poderia ele estar morto? Jamais me esquecerei da face

dele, assim como a do assassino de minha irmã!


- Lhe garanto, ele já estava morto. E é por isso que digo que Deus pode

influenciar em nossas vidas, assim como em nossos destinos. Pois acho que não é

coincidência tu seres enviado para investigar assassinatos em um feudo que a alguns

dias atrás teve a visita de uma mendigo que vinha da região do duque de Valois e que

esta há dez anos vagando pela Europa.

-Que dissestes? Este mendigo devia morar no feudo quando aconteceu a revolta.

Talvez ele conheça o líder da rebelião.

- Seria capaz de reconhecer o assassino? Ele era um normando?

- Como sabes? Sim ele era um normando. – Balbuciou Sales com a voz tremula.

- Este homem era um normando que vinha da região do Duque de Valois.

Segundo alguns conhecidos dele ele abandonou a região há dez anos, depois de uma

visão, e após isso ficou completamente insano.

- Onde ele está? Preciso vê-lo, talvez ele saiba algo sobre os assassinos de minha

família.

- Estava aprisionado na masmorra, mas fugiu no dia em que chegaste, pela

manha. Sinto muito.

- Não sinta. Encontrarei o infeliz e farei ele falar. Que se dane os assassinatos,

buscarei o meu passado. Ele está sendo procurado?

- Por suposto que sim, muitos temem sua insanidade. Se ele por os pés na rua

será preso pela guarda real.

- Então ele só sairá na rua durante a noite. Isso se for esperto. Esta noite sairei e

buscarei por este homem. – Disse Sales, e, serrando os punhos. - Será hoje que vingarei

meu passado!
Capítulo VII

Durante três noites Sales fez vigias, porém sem obter nenhum resultado. Seus

hábitos se adaptaram a vida noturna. Dormia durante o dia e vagava pelas ruas durante a

alva. Nada. Passou a suspeitar que o homem houvesse abandoado o feudo devido ao

período de cativeiro, mesmo assim continuou sua busca, não haveria de desistir. Passou

dez anos de sua vida tentando se esquecer do passado, mas agora queria lembrá-lo,

queria vingá-lo. Passaria toda sua vida atrás do infeliz se preciso.

***

A lua nova luzia em seu máximo ao atingir o topo do céu da região de

Edimburgo. Qualquer um que olhasse distraído, durante a alva corrente, para o pequeno

burgo regido por Solveig não perceberia uma alma viva a perambular pelas ruas. Um

observador mais atento, porém, poderia ver um franzino homem vestindo seu robe preto

a andar, escondido pelas sombras noturnas. Estava ali em busca do passado. Buscava

respostas perdidas há muitos anos. Buscava vingança.

O coração de Sales estava disparado naquela noite, seu corpo excluía todos os

empecilhos físicos. Não sentia frio. Sua audição não ouvia guinchar dos ratos, mas

estava pronta para identificar o menor ruído provocado pelo inimigo. Sua visão nem

reparava as ruas imundas, mas era capaz de reconhecer um vulto humano a dezenas de

jardas, mesmo durante a noite. Não estava com fome, mas seu paladar ansiava um sabor

nunca experimentado, o doce sabor do sangue. Sangue de seu inimigo. Iria encontrar o

pobre morador de seu antigo feudo, e ele iria contar-lhe onde encontrar o assassino de

sua família. Então a vingança poderia ser feita, e seu coração poderia voltar à paz.

Gritos.
Os pensamentos de Sales foram interrompidos repentinamente por uma série de

gritos vindos das proximidades. Como pôde ter se esquecido de seu real intuito naquele

feudo? Provavelmente mais um assassinato estava acontecendo naquele burgo, e mais

uma vez a culpa recairia sobre Satan. Correu em direção aos gritos o mais rápido que

pode, resolveria aquele problema agora para depois poder se dedicar exclusivamente ao

seu passado. Conforme corria os gritos ficavam cada vez mais fortes, logo pode

perceber a silhueta do assassino. Vestia um manto negro como a noite e tinha longos

cabelos grisalhos caídos às costas. Aos seus pés um jovem agonizava, com seu corpo

sendo retalhado por uma espécie de faca, que continha três pontas paralelas. Ao

perceber os sons as suas costas o homem parou. Estava feliz, teria mais uma vitima.

O assassino virou-se. Os olhos dele e do investigador se cruzaram e ambos

estacaram. Estava ali. O corpo de Sales estremeceu. Jamais esqueceria aquele rosto

maldito. O homem por um momento também parou. Aquela face assustada em sua

frente lhe parecia familiar. O silencio pairava nas frias ruas do burgo. Dentro das casas,

toda a população dormia aguardando o novo nascer do sol.

O silencio foi abafado pelo gemido da mais nova vitima do assassino. Sales

ainda estava confuso. Uma grande peça pregada pelo destino, pensou ele. O mesmo

assassino de sua família agora era o assassino que ele buscava pura e simplesmente por

dinheiro. Um sorriso surgiu em sua face, lembrou-se da fortuna oferecida pela igreja

para resolver o caso. Sem saber estavam pagando para o investigador realizar o maior

sonho de sua vida.

Ao reconhecer Sales o assassino tentou fugir, esvaindo-se em meio às trevas,

mas desta vez o ex-padre estava preparado. Não era mais aquele rapazote no qual o

homem bateu facilmente. Havia crescido, a vida havia feito dele um homem forte

também.
Correu atrás do assassino. Correu muito. Enquanto via as casas passarem

velozes por sua visão periférica, resquícios do passado voltavam a sua mente. Ele, dez

anos mais novo, correndo também entre as casas do feudo, com os olhos encharcados

em lagrimas. Viu as casas em chamas e o sangue dos seus entes escorrendo pelo solo.

Mas desta vez era diferente, não era ele quem fugia. Agora ele perseguia o causador de

todos aqueles acontecimentos, iria fazer o maldito pagar pelo sofrimento de dez anos.

O tempo fora seu aliado. O homem que outrora era forte e robusto agora não

passava de um velho esguio e fraco. Ficou imaginando como muitas pessoas se

deixaram matar por um ser tão fraco. Não importava agora. Seriam vingados. Todos!

Em poucos instantes alcançou o velho, e com um potente empurrão derrubou-o

ao chão. O homem caído fitou-o, revelando em seu rosto a expressão de profundo

desespero.

- NÃO, TU DE NOVO NÃO ! – gritava o homem, totalmente descontrolado.

- Cale-se! – exaltou-se Sales, aplicando-lhe um forte chute na altura do

estômago. – Olhe para ti infeliz, olhe para ti! Nem parece um assassino de famílias

agindo desse jeito! Pode berrar, pois este será só o começo. Pagaras por ter tirado de

mim toda minha família.

- Eu te tirei a família? E vistes o que tua família tirou de mim? Primeiro teu

irmão me tirou a liberdade, me tirou a comida. Depois vens tu e me rouba a única coisa

que me restava, a sanidade. Um bruxo, isto é o que és. – Gritava o velho soluçando em

meio as lagrimas.

- Se há alguém que deveria ter perdido a sanidade este alguém seria eu! –

Gritava o investigador, também visivelmente abalado. – Fui eu quem mais sofri

assistindo os atos de barbárie comandados por ti. Eu estava lá, eu vi tudo! – Falou Sales,

rompendo-se me lagrimas também.


- Não sei o que sofrestes, mas te digo que com certeza não se compara ao que eu

sofri. Não sabes o que é passar dez anos sem ter uma noite de sono tranqüilo. Não sabes

o que é receber toda noite a visita dEle, dizendo-me que não permitirá minha entrada

nos céus! E ele diz que foi por tua culpa.

- Não sei o que estas a dizer lunático! Apenas queria saber por que não me

mataste logo? Porque me deixara sofrendo por ser o único sobrevivente, e para ficar

culpando-me pelo resto da vida?

- Ainda não entendeste? Não te matei porque Ele não me deixou! Porque na hora

que iria acabar com tua raça ele mandou um dos protegidos dEle para te salvar. E aquele

mesmo que te salvou vem ter comigo todas as noites, para me informar que minha

entrada no céu não será permitida. – A voz baixa do homem voltou aos berros. – Tu

sabes o que é viver esperando à hora de ir para o inferno? Sabes o que é sentir que o

próprio demônio esta apenas esperando a tua morte para te levar ao castigo eterno?

Sales estacou, o que aquele homem estava querendo dizer?

- Estas a falar de Wilian de Breankwood?

- Ainda não entendestes? Acho que eras mais esperto dez anos atrás. Não estou a

falar de Wilian de Breankwood, estou a falar de Gabriel, o enviado de Deus. Aquele que

não me deixou matar-te.

Sales estava estático, sua mente trabalhava o máximo possível para absorver as

informações passadas pelo assassino. O que mais o deixava intrigado é que não percebia

uma faísca sequer de mentira nos olhos do velho homem, alem disso a historia fazia

incrível sentido.

***

Há dez anos. Sales sequer agüentava o peso de seu corpo sobre suas pernas. A

dor física e a dor sentimental disputavam para saber quem causaria mais sofrimento no
jovem padre. Aos seus braços, o corpo nu de sua irmã repousava em segurança, seu

agressor já havia fugido. O padre beijou-lhe a testa suada e deu-lhe a benção. Não

suportava a idéia, mas sabia que a irmã logo abandonaria esse mundo e partiria de

encontro com o criador.

Segurou-a firme em seus braços para esquentar seu corpo gelado. Os olhos da

bela mulher fecharam-se, mas antes que ela abandonasse completamente o corpo, com o

ultimo suspiro de vida, ainda foi capaz de balbuciar suas ultimas palavras.

- Me... meu anjo... Gabriel!

***

Sales caiu de joelhos, com a face colada ao frio chão do burgo. Aos prantos

rogou perdão a Deus por todos os anos de ceticismo e ingratidão, afinal, ele não havia

sido abandonado. Deus havia enviado um de seus anjos para salva-lo. Tudo se

encaixava em sua mente agora. As últimas palavras da irmã, o cavaleiro morto, o

testemunho do assassino.

Sentiu novamente o calor de ter o coração tocado por Deus. A vingança não

acometia mais sua mente. Deus não o abandonara. Ele não havia permitido sua morte.

Como era bom redescobrir a fé e se sentir protegido novamente. Ergueu-se e fitou

demoradamente o velho homem à sua frente, parecia que ele havia sido tomado pelo

mesmo sentimento de Sales. O velho estava diante dele, abaixado em meio a feixes de

palha e com um grande sorriso na face.

- Parece que entendeste! Meu papel neste mundo termina aqui, podes acabar

comigo agora. – balbuciou o homem com voz tremula. – Embora não tenha conseguido

salvar a minha alma, consegui salvar a tua. Espero que Deus se lembre disso quando a

hora do juízo chegar.


O investigador se espantou. O que ele estava querendo dizer? Sales pensava que

iria ter de usar toda sua força para aprisionar o homem e leva-lo até Avignon,

entretanto, o homem se entregou sem a menor resistência. Um enorme sentimento de

misericórdia fluiu pelo seu corpo. Fosse há horas atrás o velho homem já estaria com a

cabeça separada do corpo. Nesse momento, porem, o Espírito Santo se apoderava do

corpo de Sales.

- Não, não irei acabar contigo. Lhe digo homem, iras viver. Tens minha

misericórdia. Vale saber se terás a misericórdia da igreja. Vens comigo ou precisarei

levar-te a força?

- Entrego minha vida a ti a partir desse momento. Como te disse minha razão

para continuar aqui acabou.

***

A alvorada raiou bela como jamais havia nascido. Os pássaros cantarolavam

com o calor do astro rei que tornava confortante o leve frio matinal. Sales despertou

certo que havia tido o sonho mais bizarro de sua vida. Seus pensamentos logo foram

abafados. Ao olhar para o lado viu Benedito vigiando um homem que dormia ao lado de

sua cama. As lembranças da noite passada voltaram a sua mente. Sentiu um conforto no

coração, não tinha mais a necessidade da vingança.

Durante todo o dia se preparou para partir. Ainda no começo da manhã foi ter

com Solveig, para informar-lhe que o assassino havia sido preso, e que seria enviado

para Avignon. O conde mal acreditava na história contada pelo investigador. Fosse ele,

já haveria de ter convocado a Santa Inquisição para caçar bruxos há muito tempo. Na

realidade, era o que pretendia fazer desde o inicio, mas foi convencido pelos estudiosos

do burgo a convocar um investigador. Não conseguia entender essa nova geração, as

pessoas tinham que antes investigar um caso para somente depois de não chegar a
nenhum resultado, acreditar no cão. Pelo menos desta vez havia funcionado, tinham

conseguido prender o assassino.

Voltou para a casa de Benedito e, depois de três dias comendo porcamente, se

preocupou em ter uma refeição digna. Comeu pão, queijo e cereais, e bebeu do melhor

vinho do burgo. O sabor adocicado da velha bebida escarlate não se comparava aos

azedos vinhos de sua cidade, que iam para a mesa das tabernas logo após serem

estocadas nos tonéis, nem com o sabor adocicado, porém amargo do hidromel. Aquela

era a bebida divina, o sangue de Cristo.

Dormiu durante toda à tarde, para recobrar as energias que seriam necessárias

para a viagem de volta a Avignon. Acordou somente no final da tarde, quando arrumou

os últimos pertences em cima do cavalo cedido por Solveig para a viagem de volta. Foi

até seu hospedeiro deu-lhe um forte abraço.

- Tu te mostraste um verdadeiro amigo. Agradeço-te por tudo o que fizeste por

mim. Mas agora tenho que partir. Devo cumprir para com a minha promessa com a

igreja. Devo informar-lhes que não há nenhum demônio neste feudo, assim como

entregar a eles esse infeliz. – falou, apontando para o velho homem que dormia

tranquilamente no chão frio.

- Tens certeza que ficarás bem em viajar com um assassino por toda a Europa?

- Este homem não é mais um assassino há dez anos. Não faz mais mal a

ninguém!

- Esquecestes do que ele fez a todas aquelas pessoas desse feudo, ele matou seis

pessoas aqui!

- Lhe garanto que ele não estava em sã consciência quando fez aquilo. Ele só

queria chamar minha atenção. E conseguiu.

- Espero que assim seja, amigo...


Capítulo VIII

Três meses depois...

- Que bom vê-lo de novo senhor Sales! O bispo estava ansioso pelo teu regresso.

Venha, te guio até ele. Quero ter o prazer de anunciá-lo.

- Se não se incomoda eu preferiria ir sozinho, já conheço o caminho. Mesmo

assim muito obrigado.

Os corredores da basílica de Avignon agora pareciam muito mais belos aos

olhos do investigador. Nunca havia percebido todos os detalhes entalhados na cúpula de

pedra da basílica. E as imagens, como eram lindas! Eram tão reais que parecia que Deus

havia dado uma alma a cada uma delas.

Chegou até a porta que levava a sala do bispo. Respirou fundo. Finalmente teria

mais uma conversa com o Bispo de Avignon. As grandes portas abriram-se sem

provocar nenhum ruído. Sales se espantou com a claridade do recinto em que estava.

Inúmeras velas iluminavam toda a sala, desde os lustres dependurados no teto, até as

mesas, todos estavam repletos delas.

Ao fundo do cômodo estava Benjamin de Loureine, entretido com sua solidão.

Ao perceber a volta de Sales não pode esconder o sorriso de sua face.

- Finalmente vieste falar comigo senhor Sales. Fiquei sabendo de teu regresso há

uma semana. O que te fez demorar tanto a me procurar? – inquiriu o bispo.

- Eu necessitava de um tempo para por em ordem minha mente. Muitas coisas

aconteceram desde que parti. Para dizer a verdade nem sei por que vim até aqui, sei que

até já punistes o culpado pelo assassinato. Vi-o sendo queimado em praça publica essa

manhã.
- Essa era minha obrigação, tu sabes disso. Não poderia deixar um prostrado a

andar pelas ruas. Mesmo que tenhas provado que os assassinatos não foram realizados

pelo demônio, não tens como provar que o assassino não estava possuído por ele.

- Tu fazes o que tu queres com teus fieis. Minha missão esta cumprida. Provei

que não havia nenhum demônio na região, poupei muitos inocentes de serem mortos na

fogueira.

- E te confesso que isso causou um enorme prejuízo para a Santa Igreja. Toda a

equipe da inquisição já estava convocada e pronta para partir. Perdemos muito ouro

nesta jogada. Para não ter mais prejuízos mandei a equipe que iria para Edimburgo para

Paris, talvez eles achem algo de interessante lá. O que não falta naquela cidade é infiéis

para serem queimados.

- Ainda não entendo porque uma instituição, que se diz enviada por Deus,

queima pessoas desta maneira!

- É simples senhor Sales, nossa...

- Chega! Não quero mais saber de suas desculpas. Lhe digo, encontrei com

Deus, e ele não é essa criatura vingativa que a igreja prega. Eu descobri um Deus de

amor durante minha viagem, e será esse Deus que guiará meus passos a partir de agora.

- Estas a desconfiar dos dogmas da Santa Igreja Católica senhor Sales?

-Estou a desconfiar de seu caráter senhor bispo! - exaltou-se Sales.

Falando isso o homem retirou do bolso de suas vestes um crucifixo de prata, e

colocou-o em volta do pescoço. Deixava a sala, rumo a uma nova vida. Qualquer um

que vislumbrasse a cena veria um padre deixando os aposentos do bispo. Mas Sales

sabia ser mais do que isto.

-A propósito, bastardo. - Disse Sales, virando-se novamente para Benjamin. –É

PADRE Sales.

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