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empecilhos físicos. Não sentia frio. Sua audição não ouvia guinchar dos ratos, mas
estava pronta para identificar o menor ruído provocado pelo inimigo. Sua visão nem
reparava as ruas imundas, mas era capaz de reconhecer um vulto humano a dezenas de
jardas, mesmo durante a noite. Não estava com fome, mas seu paladar ansiava um
serão palco de uma guerra jamais vista, que defrontará dois mundos completamente
diferentes. Não, nessa guerra os heróis não são cavaleiros vestindo suas nobres
lógica.
Sales terá que usar de toda sua inteligência e pensamento lógico, evitando assim que
toda a região seja considerada sob o domínio do demônio. Em meio a suas investigações
ele descobre fatos que trazem a tona um passado muito distante e que poderiam colocar
bergazza_ak@yahoo.com.br
Capítulo I
Norte de Edimburgo, décimo sexto dia do segundo mês do ano de 1311 de nosso
senhor.
A tempestade de neve caia do céu escuro, sem lua naquela madrugada. O manto
branco de neve que cobria o solo contrastava com a escuridão da noite, que vez por
outra cedia na disputa com os clarões provocados pelos relâmpagos. O tamborilar das
gotas de água caindo sobre as finas folhas das coníferas e o farfalhar dos grandes flocos
de neve roçando os grandes pinheiros eram constantemente abafados pelo rosnar dos
trovões, que atingiam furiosos toda a cadeia de montanhas que cercava o pequeno vale.
O perfume saboroso da floresta, naquela madrugada escorria junto com a água que
descia pelos troncos grossos das árvores, deixando um tom desolador ao bosque.
tocas, esperando pelo confortante calor do astro rei. Um único resquício de vida pairava
idade percorria a pequena trilha formada entre as árvores até um pequeno feudo, bem ao
norte do vale.
hora teria um teto para se abrigar, e provavelmente uma roupa seca e uma boa caneca de
água morna.
Os raios caiam do céu como que raivosos pelo abandono de seu único
espectador, o vento gemia cortando o vale, as gotas d’água pareciam cada vez mais
surgiram nos galhos mais altos e logo tomaram conta de toda a árvore. As poucas gotas
de água que caiam junto com a neve não eram suficientes para apagar as labaredas, que
O homem estremeceu, sua mente não acreditava nas mensagens enviadas pela
sua visão. Neve, água, trovões, fogo! Se algum insano tivesse a ousadia de pintar um
quadro como aquilo que seus olhos presenciavam certamente teria seu corpo consumido
pensamentos. Seu objetivo agora era chegar ao feudo, não importa o que lhe custasse.
Não desistiria agora. Lançou-se numa corrida desembestada por entre as árvores, o fogo
Caiu por duas vezes, vítima da traiçoeira neve, que cobria com seu manto
escorregadio todo o solo da floresta, mas logo atingiu os portões. Suas mãos bateram
ávidas as negras tabuas do portão, mas não obteve resposta. Apenas seu grito foi capaz
de chamar a atenção de um guarda, que dormia em uma das duas torres que guardavam
a entrada do feudo.
Capítulo II
cabelos brancos conduzia o visitante pela porta que levava aos aposentos desconhecidos
mesmo não sendo a primeira vez que entrava na sede papal se espantava com a beleza e
claridade por toda a igreja, iluminando as pedras cinza escuro usadas na construção. No
altar uma grande cruz de madeira com a imagem de Jesus entalhada estava bem ao meio
da parede, e em sua frente uma grande mesa construída com a madeira mais rica do
A parte posterior da basílica, por onde era conduzido agora, era reservado para
os aposentos dos padres e bispos, e possuía até um luxuoso quarto, usado pelo papa
O velho frade parou diante de uma porta e com algum esforço escancarou-a,
deixando que a luz do corredor tomasse conta da sala, outrora privada dela pela grande
porta. Sales pode distinguir ao fundo do cômodo alguém sentado diante de uma mesa,
iluminado por uma vela. A sala parecia hermeticamente fechada, a não ser pela porta
por onde entrava agora, e não possuía nenhum móvel, a não ser uma mesa e duas
cadeiras.
homem.
Sales entrou na sala e pouco depois pode escutar o som da porta sendo fechada
as suas costas. A sala que pensava não poder ser mais escura foi totalmente tomada pelo
breu, seguiu o misero ponto de luz proporcionado pela vela com muito cuidado para não
Avignon.
- Que bom que atendeu meu chamado Padre Sales. Fico feliz em vê-lo. – Disse o
O Senhor sabe que já abandonei a santa igreja há algum tempo. Mas me diga, o que
- Vejo que não mudastes nada! Sabes que não é permitido o abandono da batina.
Sabes que com esta tua atitude deverias ser no mínimo excomungado da igreja. O mais
- Sabes que não podes fazer isso. Embora eu tenha largado da palavra de Deus,
meus conhecimentos são muito úteis para a igreja. Alem disso, sabes que tenho uma
condenação à fogueira.
- Tudo bem. Mas enfim, já sabia que havias abandonado a batina, e não foi por
isso que te chamei. Preciso de um favor teu. Um favor não, pois ele será bem
- Lhe digo, senhor bispo, que foi por isso que te diste que eu não poderia ser
- Assuntos que simples padres não podem resolver. Estamos com problemas
num feudo ao norte de Edimburgo. Nos últimos meses muitas pessoas foram
assassinadas, inclusive dois padres. Preciso que tu investigues a região antes de o
- Não acredite em bobagens! Tu bem sabes que a maioria destes casos são
apenas lendas. Eu lhe afirmo, seria mais fácil nos juntarmos de novo com a Igreja
Romana do que haver um demônio naquele feudo. Já estudei mais de cem casos iguais a
- Pois acho que terás teu segundo caso, SENHOR Sales. Tenho dois estudiosos
na região e eles me garantiram que, seja o que for que esta atuando no feudo, não é
humano.
- A Igreja deveria se preocupar mais com o que os homens podem fazer do que
com os demônios. Eu sei do que os homens são capazes, e lhe digo, as vezes acho que
nem mesmo demônios são capazes de realizar atos tão cruéis quanto os humanos. Mas,
mês estarei partindo. A viagem até Edimburgo é longa, dentro de três meses no máximo
estarei lá.
inquisidores para enviar ao local, acho que precisarei de alguns soldados também.
- Que assim seja. Agora, se me permite, tenho mais coisas a fazer. Que Deus o
abençoe reverendíssimo.
- Que ele ande contigo também, e que te proteja dos perigos que virão senhor
Sales.
do altar, e permaneceu ali durante um bom tempo, pedindo perdão a Deus por todos
seus pecados.
Capítulo III
O portão se erguia altivo entre as duas torres, parecendo não se importar com o
frio daquela noite. Sales estremeceu, só agora havia percebido o imenso frio que fazia,
sua roupa molhada o acentuava ainda mais, de modo que todo seu corpo tremia.
demoradamente o ex-padre.
- Quem és tu e o que fazes aqui a essas horas? – Perguntou o velho com a voz
- Sir. Sales de Constantina, senhor. Venho de uma viagem de dois meses e estou
ansioso por uma roupa seca e um prato de comida. – respondeu Sales, enquanto tremia
devido ao frio.
- E o que te faz pensar que o encontraras aqui? Volte para a floresta mendigo e
calor do sangue que percorria rapidamente suas veias. Seu coração batia acelerado. Seus
homem.
- Escute aqui velho! Estou a dois meses viajando, sem tomar banho, sem me
alimentar direito e passando frio. Há cinco dias fui assaltado e meu cavalo foi levado
por dois estranhos. Tudo isso somente para vir até este feudo imundo para salvar suas
almas inúteis. Vê? Sou da Igreja! – Disse Sales, mostrando a carta do bispo de Avignon
como a neve quando viu o carimbo do bispo de Avignon na carta mostrada a ele.
-Ande logo, pois já não tenho mais a mesma paciência de alguns anos atrás. -
respondeu secamente.
O local por onde caminhava agora realmente não podia ser chamado de feudo. O
burgo do local havia tomado conta de todo o espaço, tornando-o uma pequena cidade.
Muitas casas, disformes uma em relação à outra se erguiam logo após o portão, algumas
se levantavam altas e imponentes com no mínimo dois andares. Sales olhou para o céu.
A neve cessara e a tempestade agora se transformara numa leve garoa. O frio voltou ao
seu corpo, junto com o odor dos excrementos jogados pelas janelas das casas, ato muito
- Preciso de um abrigo para esta noite. Um local onde eu possa descansar até de
- São aquelas ali – disse apontando para duas casas – mas acho que não seria
coveni...
- Obrigado senhor, que Deus esteja contigo. – disse enquanto se dirigia para o
rapidamente até elas, tentando espantar o frio. Parou diante das duas casas, escolheu a
que parecia mais rica e bateu à porta. Nenhuma resposta. Os punhos de Sales voltaram a
golpear a porta, dessa vez mais bruscamente. Novamente nenhuma resposta. Olhou para
o ferrolho que segurava a porta e percebeu que não continha nenhum cadeado, eram
muito caros naquela época. Soltou o ferrolho e escancarou a porta, revirando seu
cinturão achou uma vela, na qual voltou até a rua principal para acendê-la em uma
tocha. O caminho percorrido na volta foi rápido, e suas mãos protegiam a frágil chama
da fina garoa.
totalmente amassada, igualmente a seus cabelos. O homem alto, porem franzino fitou-o
- Quem és tu e o que te faz pensar que podes invadir minha casa a essas horas da
alva? Em nome de Deus saia já de minha casa. – falou o homem, com voz ameaçadora.
- Não utilizes o nome de nosso senhor, TEU Deus em vão. Fui enviado pela
igreja de Avignon para trabalhos que tu e teu colega sois incapazes realizar. Preciso de
molhadas ao lado da lareira que esquentava a casa. Feito isso se deitou na cama de
Benedito não sabia o que fazer. Sabia que aquele homem era realmente da igreja
e que tinha sido enviado por Avignon. Apenas não podia imaginar onde o bispo pudera
arranjar alguém tão rude. Teve vontade de empurrá-lo para fora da cama, mas desistiu.
Em vez disso ajoelhou-se perto da lareira e rezou, pedindo a Deus perdão pelos seus
pensamentos maldosos.
Capítulo IV:
Benedito acabara de despertar se seu sono, cheio de dores. Levantou-se do chão frio,
onde havia passado toda a madrugada, e vasculhou toda casa em busca de seu
Avignon havia sumido. Melhor assim, pelo menos poderia continuar suas pesquisas sem
nenhum intruso dentro de casa. Comeu um pouco de pão, e logo se voltou para seus
Sales acordara cedo naquele dia, pretendia conversar com o burgomestre logo ao
raiar do sol, para não perder o precioso tempo da investigação. Cada minuto daquele dia
seria importante, pretendia terminar o serviço logo, para esfregar o mais rápido possível
na face da igreja que ela estava, mais uma vez, errada. Nada de demônios, nada de
cidade natal do investigador. Mesmo assim era bonita e muito bem mobiliada, com
móveis feitos de madeira maciça e quadros muito belos. Teve que esperar metade de
O ex-padre foi conduzido até uma porta ao lado direito da sala, onde ficava o
- Lhe garanto que não existe nenhum demônio neste lugar, muito menos o
próprio Satan.
- Não foi o que me disseram os estudiosos que temos aqui. Estão assustados.
- Não fale bobagens. Digo-lhe que em no máximo três dias terás o responsável
por esses atos preso em tua masmorra. Mas para isso preciso de tua autorização para
- À noite? Está maluco homem? É muito perigoso zanzar pela rua ao cair do sol.
existem tantas pessoas que ainda acreditam nisso. Os únicos seres que vagam pela noite
- Certo. Tens minha permissão para ver os corpos, assim como para vagar pelas
ruas durante a noite. Mas te digo que quando tu vir os corpos passarás a acreditar no
cão.
- Estão em uma sala da masmorra. Acompanho-te até o local, quero ver tua face
em um prédio logo ao lado do castelo. A maioria das salas da construção agora estavam
abarrotadas instrumentos dos mais variados tipos, desde armas até feixes de palha.
Apenas uma das salas da masmorra era usada para seu verdadeiro propósito.
Caminharam por toda a construção, até cegar á uma escada que conduzia ao subsolo, ali
Conde Solveig, o burgomestre, deu ordens para que todos ali permitissem a
entrada de Sales em todas as instalações da cidade. Logo os dois estavam na sala, junto
pano que o cobria totalmente. Os olhos do investigador percorreram todo o corpo nu.
Aparentava ser um homem de meia idade e cabelos escuros. Seu corpo estava
totalmente dilacerado por centenas de rasgos, que pareciam feitos pelas garras de algum
animal. Solveig foi até os outros corpos e fez o mesmo. Uma cena realmente macabra.
Cinco corpos, totalmente nus, com seus corpos marcados por centenas de cortes
agrupados paralelamente de três em três, dando a impressão que foram feitos por garras.
O sangue, já seco, cobria a maioria dos ferimentos. Apenas um não estava sujo pelo
- Não me chame mais assim, por favor. Essa palavra me traz más lembranças. –
Sales aparentava estar emocionado. – Ma... mas em fim, isso não são provas de nada.
- Algum problema?
- Não, nenhum. Perdão pelo descontrole. Mas como te dizia, esses corpos são
apenas mais uma prova de que esses assassinatos foram provocados por algum humano.
aprisionar durante toda a historia da humanidade. Achas, então, que ele sairia pelos
feudos do mundo, matando inocentes e deixando suas garras estampadas no corpo dos
infelizes? Alem disso, olhe para esses ferimentos. Tu achas que eles foram realmente
feitos por garras? Olhe a espessura deles! – O investigador cravou suas longas unhas em
um dos cadáveres, rasgando sua pele morta. – Vê? Essas sim são feridas provocadas por
garras. Estas outras parecem que foram feitas com um pedaço de metal, ou algo do
gênero.
desenvolvido? Não achou resposta para nenhuma das perguntas feitas pelo investigador.
demônio em pessoa, então temos algum humano que esta tomado por ele. Precisamos
- Chega disso! – Exaltou-se o ex-padre. – Por que vós não sois capazes de
perceber que o homem não é bom? Que ele pode matar, roubar, destruir famílias inteiras
sem estar possuído por nenhuma entidade? Por que culpam o demônio por pelos erros
dos homens? – Uma lagrima escorreu pelo rosto do investigador, indo cair encima de
um dos cadáveres. – Estou cheio disso. Preciso descansar, procuro-te mais tarde.
afloravam em sua mente. Estava triste. Estava magoado. Por que vivia num mundo de
tanta ignorância?
***
O sol já estava altivo quando Sales abandonou a masmorra. Sabia que teria que
suficiente para ajudá-lo. Caminhou até a casa onde havia passado a noite em busca de
um lugar onde tivesse paz. As casas do burgo, agora iluminadas pela luz da manha, se
mostravam ainda mais imundas. Camponeses e serviçais vagavam pela estrada até seu
vez. Benedito ao ouvir os passos do intruso na sua casa foi logo recebê-lo.
- Bom dia padre. Estava preocupado contigo, onde fostes tão cedo?
-Não me chame de padre. Chame-me apenas de Sales. Este é meu nome. – falou
o ex-padre. – Também queria pedir-te perdão pela minha invasão ontem à noite, mas
estava muito cansado. Esta manha estava a conversar com o burgomestre dessa
localidade.
- Claro. Sales. Então queres me dizer que não és padre? Poderia me dizer por
- Não preciso de seções de terapia, filho. Alias, nem sei por que estou lhe
contando isso. – Sales ainda estava visivelmente abalado devido a sua conversa com
Solveig. – Mas enfim, já que comecei a estória hei de terminá-la, acho que me fará bem.
Era véspera de Natal quando aconteceu. Eu era o filho mais novo do Duque de
Valois, um dos mais influentes vassalos do rei da França. Meu irmão mais velho, Brito
de Valois, estava se preparando para assumir o cargo de meu pai, que estava prestes a
morrer. Eu, como era o mais novo, fui enviado a um monastério franciscano para me
sagrar padre, e livrar minha família de todos os pecados cometidos por ela.
Foi uma dura mudança em minha vida. Estava acostumado com todas as
comodidades e regalias de ser o filho de um nobre, e de repente, havia sido enviado para
um mosteiro que pregava a pobreza absoluta. O único pertence que tinha era uma roupa
surrada e de tecido porco, a qual não podia retirar do meu corpo. Isto aconteceu quando
Passei mais doze anos da minha vida dentro daquele mosteiro, sem sair uma vez
sequer de suas dependências, sem ver qualquer outra pessoa a não ser os frades que
moravam comigo. Tive doze anos para aprender a escrever o latim, para estudar a bíblia
e para rezar. Era a única coisa que fazia. Embora a vida no mosteiro fosse muito
monótona éramos todos felizes. Creio que o ultimo dia feliz da minha vida foi o ultimo
Ao completar vinte e dois anos abandonei meus colegas frades e voltei para o
feudo de minha família. Encontrei-o completamente mudado, meu pai havia morrido, e
meu irmão havia assumido seu cargo. Passei dias chorando sobre a tumba de meu pai. A
tratamento, sobre os abusos de poder. Fui ter com meu irmão, mas ele me ignorou.
Assim como todo o feudo, ele também estava muito mudado, havia se tornado um
A partir desse momento tudo aconteceu muito rápido. A população estava cada
vez mais revoltada com a administração de meu irmão, e me culpavam por não
não suportavam mais pagar os altos tributos cobrados por Brito. Eu roguei a Deus que
raivosa a bradar infâmias contra minha família. A nobre cavalaria foi armada, mas os
três guerreiros do feudo não foram capazes de conter a rebelião. Vi toda minha família
ser morta, empolada e depois decapitada pelos camponeses, que se banhavam em seu
sangue, num ritual macabro. As mulheres, antes, eram violadas pelos lideres da revolta,
e logo após eram entregues para a diversão da população, muitas morreram devido ao
Fui o único sobrevivente, a maioria dos camponeses temia me matar, pois eu era
o enviado de Deus naquela região. Fugi. Corri como jamais havia corrido em toda
minha vida. Sem destino. Entre as casas dos assassinos da minha família eu corria e via
tocha incendiei a maior quantidade de casas que consegui. Alem do sangue, agora o
fogo também jorrava pelo feudo. Continuei minha corrida, mas logo estaquei. Estava
ali, o líder da revolta, deitado entre duas casas com minha irmã, violando seu corpo
como se fosse um animal. Os gritos e o choro da minha irmã entraram pelos meus
ouvidos assim como o ópio entra no corpo de uma pessoa. Limpou minha mente, deu-
me coragem. Saltei para cima daquele porco como um leão para abater sua presa. Tentei
derruba-lo com meus próprios punhos, mas não tive sucesso. Passei toda minha vida me
preocupando apenas com livros, enquanto aquele homem, provavelmente, teve sua vida
jejuava simplesmente pelo fato de não ter o que comer. A vida o havia tornado muito
mim, iria matar-me. Eu não podia mais escutar o choro de minha irmã. Arrastava-me no
chão, tentando fugir daquele monstro. Apenas não morri, pois naquele momento o mais
nobre cavaleiro do feudo, e talvez até de todo o reino, Sir Wilian de Breankwood
alucinante, fugindo do poderoso guerreiro que ostentava uma nobre armadura de placas
Corri para minha irmã, mas já era tarde. Peguei-a nos braços e senti a vida
esvaindo de seu corpo, beijei-lhe a testa e lhe dei a benção antes dEle levá-la. Roguei a
Deus pela vida de minha irmã, mas Ele novamente me abandonou, logo o corpo dela
abandonado. Corri para fora do feudo e nunca mais voltei ao local. De longe pude ver a
barbárie dos camponeses, alguns saudando a liberdade, outros ocupados para eliminar
as chamas. Num ultimo olhar para trás vi as cabeças de meus entes sobre os muros da
fortificação, mostrando que ali não havia mais um comando. Desde então dez anos se
passaram. Dez anos em que eu abandonei a ignorância e estudei tudo de mais estranho
Larguei a palavra de Deus. Ele não me ajudou naquele dia, e percebi que nunca
havia me ajudado. Tudo de bom que havia acontecido na minha vida tinha sido por meu
próprio esforço e esmero, assim como tudo de ruim havia sido por meu desleixo. Foi
isso que eu percebi e que me tornou tão cético. É isso que todos devem descobrir em si
fé. Quando toda população do mundo se der conta de toda a capacidade do homem
acredito que nosso mundo entrará numa era de grande avanço. É isso que eu espero, e é
- Agora entendo porque és tão cético. Mas te digo, Deus não abandona nenhum
de seus filhos. E agora acabo de me convencer disso. – Falou Benedito com uma voz
triste.
- E o que achas que Ele faz comigo? Ele deixou-me a própria sorte. Tive fé nEle,
rezei para Ele, mas Ele me abandonou. Não me diga que foi Deus quem botou aquele
cavaleiro no meu caminho, pois não irás me convencer disso. Sou certo de que tanto
como o demônio não é o responsável pelos atos de maldade provocados pelo homem,
Deus não é o responsável pelas coisas boas que fazemos. Tudo é uma questão de
escolha.
- Dizes que este fato se passou há dez anos, certo? E que o homem que salvou
sua vida foi Sir Wilian de Breankwood, correto? Pois lhe digo que como tu conheces o
- Como tombou em combate? Queres me dizer que ele morreu há quinze anos?
Isto é impossível, eu vi ele, vi seu brasão, sua armadura, sua espada, pelo que sei ele não
- Correto, Wilian não tinha filhos para repassar sua armadura. Armadura essa,
que logo após a morte do cavaleiro foi levada a Roma, onde está até agora.
- Como isto é possível? Tenho toda a certeza do mundo que aquele homem era
Wilian de Breankwood! Como poderia ele estar morto? Jamais me esquecerei da face
influenciar em nossas vidas, assim como em nossos destinos. Pois acho que não é
dias atrás teve a visita de uma mendigo que vinha da região do duque de Valois e que
-Que dissestes? Este mendigo devia morar no feudo quando aconteceu a revolta.
- Como sabes? Sim ele era um normando. – Balbuciou Sales com a voz tremula.
Segundo alguns conhecidos dele ele abandonou a região há dez anos, depois de uma
- Onde ele está? Preciso vê-lo, talvez ele saiba algo sobre os assassinos de minha
família.
- Não sinta. Encontrarei o infeliz e farei ele falar. Que se dane os assassinatos,
- Por suposto que sim, muitos temem sua insanidade. Se ele por os pés na rua
- Então ele só sairá na rua durante a noite. Isso se for esperto. Esta noite sairei e
buscarei por este homem. – Disse Sales, e, serrando os punhos. - Será hoje que vingarei
meu passado!
Capítulo VII
Durante três noites Sales fez vigias, porém sem obter nenhum resultado. Seus
hábitos se adaptaram a vida noturna. Dormia durante o dia e vagava pelas ruas durante a
alva. Nada. Passou a suspeitar que o homem houvesse abandoado o feudo devido ao
período de cativeiro, mesmo assim continuou sua busca, não haveria de desistir. Passou
dez anos de sua vida tentando se esquecer do passado, mas agora queria lembrá-lo,
***
Edimburgo. Qualquer um que olhasse distraído, durante a alva corrente, para o pequeno
burgo regido por Solveig não perceberia uma alma viva a perambular pelas ruas. Um
observador mais atento, porém, poderia ver um franzino homem vestindo seu robe preto
a andar, escondido pelas sombras noturnas. Estava ali em busca do passado. Buscava
O coração de Sales estava disparado naquela noite, seu corpo excluía todos os
empecilhos físicos. Não sentia frio. Sua audição não ouvia guinchar dos ratos, mas
estava pronta para identificar o menor ruído provocado pelo inimigo. Sua visão nem
reparava as ruas imundas, mas era capaz de reconhecer um vulto humano a dezenas de
jardas, mesmo durante a noite. Não estava com fome, mas seu paladar ansiava um sabor
nunca experimentado, o doce sabor do sangue. Sangue de seu inimigo. Iria encontrar o
pobre morador de seu antigo feudo, e ele iria contar-lhe onde encontrar o assassino de
sua família. Então a vingança poderia ser feita, e seu coração poderia voltar à paz.
Gritos.
Os pensamentos de Sales foram interrompidos repentinamente por uma série de
gritos vindos das proximidades. Como pôde ter se esquecido de seu real intuito naquele
uma vez a culpa recairia sobre Satan. Correu em direção aos gritos o mais rápido que
pode, resolveria aquele problema agora para depois poder se dedicar exclusivamente ao
seu passado. Conforme corria os gritos ficavam cada vez mais fortes, logo pode
perceber a silhueta do assassino. Vestia um manto negro como a noite e tinha longos
cabelos grisalhos caídos às costas. Aos seus pés um jovem agonizava, com seu corpo
sendo retalhado por uma espécie de faca, que continha três pontas paralelas. Ao
perceber os sons as suas costas o homem parou. Estava feliz, teria mais uma vitima.
estacaram. Estava ali. O corpo de Sales estremeceu. Jamais esqueceria aquele rosto
maldito. O homem por um momento também parou. Aquela face assustada em sua
frente lhe parecia familiar. O silencio pairava nas frias ruas do burgo. Dentro das casas,
O silencio foi abafado pelo gemido da mais nova vitima do assassino. Sales
ainda estava confuso. Uma grande peça pregada pelo destino, pensou ele. O mesmo
assassino de sua família agora era o assassino que ele buscava pura e simplesmente por
dinheiro. Um sorriso surgiu em sua face, lembrou-se da fortuna oferecida pela igreja
para resolver o caso. Sem saber estavam pagando para o investigador realizar o maior
mas desta vez o ex-padre estava preparado. Não era mais aquele rapazote no qual o
homem bateu facilmente. Havia crescido, a vida havia feito dele um homem forte
também.
Correu atrás do assassino. Correu muito. Enquanto via as casas passarem
velozes por sua visão periférica, resquícios do passado voltavam a sua mente. Ele, dez
anos mais novo, correndo também entre as casas do feudo, com os olhos encharcados
em lagrimas. Viu as casas em chamas e o sangue dos seus entes escorrendo pelo solo.
Mas desta vez era diferente, não era ele quem fugia. Agora ele perseguia o causador de
todos aqueles acontecimentos, iria fazer o maldito pagar pelo sofrimento de dez anos.
O tempo fora seu aliado. O homem que outrora era forte e robusto agora não
deixaram matar por um ser tão fraco. Não importava agora. Seriam vingados. Todos!
desespero.
estômago. – Olhe para ti infeliz, olhe para ti! Nem parece um assassino de famílias
agindo desse jeito! Pode berrar, pois este será só o começo. Pagaras por ter tirado de
- Eu te tirei a família? E vistes o que tua família tirou de mim? Primeiro teu
irmão me tirou a liberdade, me tirou a comida. Depois vens tu e me rouba a única coisa
que me restava, a sanidade. Um bruxo, isto é o que és. – Gritava o velho soluçando em
meio as lagrimas.
- Se há alguém que deveria ter perdido a sanidade este alguém seria eu! –
assistindo os atos de barbárie comandados por ti. Eu estava lá, eu vi tudo! – Falou Sales,
sofri. Não sabes o que é passar dez anos sem ter uma noite de sono tranqüilo. Não sabes
o que é receber toda noite a visita dEle, dizendo-me que não permitirá minha entrada
- Não sei o que estas a dizer lunático! Apenas queria saber por que não me
mataste logo? Porque me deixara sofrendo por ser o único sobrevivente, e para ficar
- Ainda não entendeste? Não te matei porque Ele não me deixou! Porque na hora
que iria acabar com tua raça ele mandou um dos protegidos dEle para te salvar. E aquele
mesmo que te salvou vem ter comigo todas as noites, para me informar que minha
entrada no céu não será permitida. – A voz baixa do homem voltou aos berros. – Tu
sabes o que é viver esperando à hora de ir para o inferno? Sabes o que é sentir que o
próprio demônio esta apenas esperando a tua morte para te levar ao castigo eterno?
- Ainda não entendestes? Acho que eras mais esperto dez anos atrás. Não estou a
falar de Wilian de Breankwood, estou a falar de Gabriel, o enviado de Deus. Aquele que
Sales estava estático, sua mente trabalhava o máximo possível para absorver as
informações passadas pelo assassino. O que mais o deixava intrigado é que não percebia
uma faísca sequer de mentira nos olhos do velho homem, alem disso a historia fazia
incrível sentido.
***
Há dez anos. Sales sequer agüentava o peso de seu corpo sobre suas pernas. A
dor física e a dor sentimental disputavam para saber quem causaria mais sofrimento no
jovem padre. Aos seus braços, o corpo nu de sua irmã repousava em segurança, seu
agressor já havia fugido. O padre beijou-lhe a testa suada e deu-lhe a benção. Não
suportava a idéia, mas sabia que a irmã logo abandonaria esse mundo e partiria de
Segurou-a firme em seus braços para esquentar seu corpo gelado. Os olhos da
bela mulher fecharam-se, mas antes que ela abandonasse completamente o corpo, com o
ultimo suspiro de vida, ainda foi capaz de balbuciar suas ultimas palavras.
***
Sales caiu de joelhos, com a face colada ao frio chão do burgo. Aos prantos
rogou perdão a Deus por todos os anos de ceticismo e ingratidão, afinal, ele não havia
sido abandonado. Deus havia enviado um de seus anjos para salva-lo. Tudo se
testemunho do assassino.
Sentiu novamente o calor de ter o coração tocado por Deus. A vingança não
acometia mais sua mente. Deus não o abandonara. Ele não havia permitido sua morte.
demoradamente o velho homem à sua frente, parecia que ele havia sido tomado pelo
mesmo sentimento de Sales. O velho estava diante dele, abaixado em meio a feixes de
- Parece que entendeste! Meu papel neste mundo termina aqui, podes acabar
comigo agora. – balbuciou o homem com voz tremula. – Embora não tenha conseguido
salvar a minha alma, consegui salvar a tua. Espero que Deus se lembre disso quando a
iria ter de usar toda sua força para aprisionar o homem e leva-lo até Avignon,
misericórdia fluiu pelo seu corpo. Fosse há horas atrás o velho homem já estaria com a
corpo de Sales.
- Não, não irei acabar contigo. Lhe digo homem, iras viver. Tens minha
levar-te a força?
- Entrego minha vida a ti a partir desse momento. Como te disse minha razão
***
com o calor do astro rei que tornava confortante o leve frio matinal. Sales despertou
certo que havia tido o sonho mais bizarro de sua vida. Seus pensamentos logo foram
abafados. Ao olhar para o lado viu Benedito vigiando um homem que dormia ao lado de
sua cama. As lembranças da noite passada voltaram a sua mente. Sentiu um conforto no
Durante todo o dia se preparou para partir. Ainda no começo da manhã foi ter
com Solveig, para informar-lhe que o assassino havia sido preso, e que seria enviado
para Avignon. O conde mal acreditava na história contada pelo investigador. Fosse ele,
já haveria de ter convocado a Santa Inquisição para caçar bruxos há muito tempo. Na
realidade, era o que pretendia fazer desde o inicio, mas foi convencido pelos estudiosos
pessoas tinham que antes investigar um caso para somente depois de não chegar a
nenhum resultado, acreditar no cão. Pelo menos desta vez havia funcionado, tinham
preocupou em ter uma refeição digna. Comeu pão, queijo e cereais, e bebeu do melhor
vinho do burgo. O sabor adocicado da velha bebida escarlate não se comparava aos
azedos vinhos de sua cidade, que iam para a mesa das tabernas logo após serem
estocadas nos tonéis, nem com o sabor adocicado, porém amargo do hidromel. Aquela
Dormiu durante toda à tarde, para recobrar as energias que seriam necessárias
para a viagem de volta a Avignon. Acordou somente no final da tarde, quando arrumou
os últimos pertences em cima do cavalo cedido por Solveig para a viagem de volta. Foi
mim. Mas agora tenho que partir. Devo cumprir para com a minha promessa com a
igreja. Devo informar-lhes que não há nenhum demônio neste feudo, assim como
entregar a eles esse infeliz. – falou, apontando para o velho homem que dormia
- Tens certeza que ficarás bem em viajar com um assassino por toda a Europa?
- Este homem não é mais um assassino há dez anos. Não faz mais mal a
ninguém!
- Esquecestes do que ele fez a todas aquelas pessoas desse feudo, ele matou seis
pessoas aqui!
- Lhe garanto que ele não estava em sã consciência quando fez aquilo. Ele só
- Que bom vê-lo de novo senhor Sales! O bispo estava ansioso pelo teu regresso.
pedra da basílica. E as imagens, como eram lindas! Eram tão reais que parecia que Deus
Chegou até a porta que levava a sala do bispo. Respirou fundo. Finalmente teria
mais uma conversa com o Bispo de Avignon. As grandes portas abriram-se sem
provocar nenhum ruído. Sales se espantou com a claridade do recinto em que estava.
Inúmeras velas iluminavam toda a sala, desde os lustres dependurados no teto, até as
- Finalmente vieste falar comigo senhor Sales. Fiquei sabendo de teu regresso há
aconteceram desde que parti. Para dizer a verdade nem sei por que vim até aqui, sei que
até já punistes o culpado pelo assassinato. Vi-o sendo queimado em praça publica essa
manhã.
- Essa era minha obrigação, tu sabes disso. Não poderia deixar um prostrado a
andar pelas ruas. Mesmo que tenhas provado que os assassinatos não foram realizados
pelo demônio, não tens como provar que o assassino não estava possuído por ele.
- Tu fazes o que tu queres com teus fieis. Minha missão esta cumprida. Provei
que não havia nenhum demônio na região, poupei muitos inocentes de serem mortos na
fogueira.
- E te confesso que isso causou um enorme prejuízo para a Santa Igreja. Toda a
equipe da inquisição já estava convocada e pronta para partir. Perdemos muito ouro
nesta jogada. Para não ter mais prejuízos mandei a equipe que iria para Edimburgo para
Paris, talvez eles achem algo de interessante lá. O que não falta naquela cidade é infiéis
- Ainda não entendo porque uma instituição, que se diz enviada por Deus,
- Chega! Não quero mais saber de suas desculpas. Lhe digo, encontrei com
Deus, e ele não é essa criatura vingativa que a igreja prega. Eu descobri um Deus de
amor durante minha viagem, e será esse Deus que guiará meus passos a partir de agora.
colocou-o em volta do pescoço. Deixava a sala, rumo a uma nova vida. Qualquer um
que vislumbrasse a cena veria um padre deixando os aposentos do bispo. Mas Sales
PADRE Sales.