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Carta Amiga (e crítica) a Augustus Nicodemos Lopes.

Sobre seu livro “A Bíblia e seus Intérpretes”


Osvaldo Luiz Ribeiro
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e
seus Intérpretes. Uma breve história da
interpretação. São Paulo: Cultura Cristã,
2004. 284 p.
Caro Dr. Augustus Nicodemus Lopes
Toda a paz cristã repouse sobre seu coração, fundamentada na graça inabalável que
reputamos a Deus, na qual imergimos pela fé, da qual dependemos como do ar, e
pela qual, unicamente pela qual, creio, podemos esperar o perdão de nossos pecados,
todos sempre muitos e muito grandes, mas não maiores do que ela. Deus seja por
nós!
Recebi seu livro de presente do amigo em comum, Franklin Ferreira. Decidi
imediatamente iniciar a leitura. O que escrevo, agora, transparece minhas
observações sobre seu livro. Gostaria, sempre, de merecer o mesmo tratamento de
quantos lerem qualquer dos meus rabiscos, porque acredito que escrevemos tanto
para sermos lidos quanto para sabermos se temos bom senso. Em relação ao seu
livro, portanto, faço o que gostaria fosse sempre feito comigo.
Apresentar-me-ei a você como um, primeiro, biblista, e, depois, teólogo. Como
biblista, minha abordagem é histórico-social, e as ferramentas técnicas de acesso ao
texto constam das proposições do instrumental histórico-crítico. Enquanto teólogo,
minha reflexão é mediada pela Fenomenologia da Religião, inicialmente construída
pela leitura de Mircea Eliade (Tratado de História das Religiões e seus demais
“clássicos”). Minha formação é toda ela em Teologia: Graduação e Mestrado
concluídos pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, e Doutorados em curso
– um, livre, pelo mesmo Seminário, sob a orientação do Dr. Haroldo Reimer, e
outro, pela CAPES, na PUC-Rio, sob a orientação do Dr. Emanuel Bouzon. Minha
área é Antigo Testamento, mas me dedico, além disso, à Hermenêutica (“disciplina”
que, penso, deve logo mudar de nome). Isso posto, acrescento que todas as
agulhadas que seu livro dá no que você chama de “método histórico-crítico” foram
sentidas na minha pele, quanto ao que não há absolutamente nenhum problema,
porque eu mesmo dou agulhadas no método histórico-gramatical, que você chama
de gramatical-histórico.
Antes de tudo, afirmo que a Bíblia e a Teologia têm uma coisa em comum: se usadas
sem pretensão de privilégios em relação ao acesso ao Sagrado por parte do biblista ou
do teólogo, só podem ser manuseadas nos espaços do diálogo e da fraternidade.
Chamo a isso de “brincar”. Gosto de “brincar” com a leitura da Bíblia,
apaixonadamente, ludicamente, sempre como um menino, e também com a
Teologia. Por outro lado, se a Bíblia e a Teologia são usadas a partir da pretensão de
privilégios em relação ao acesso ao Sagrado, logo não há mais diálogo possível, senão
no sentido utópico de ser verificado quem sabe mais sobre o que Deus teria dito –
para o bem provido de bom par de olhos, o círculo vicioso não terá fim jamais.
Chamo a isso de “guerrear”. É em nome dessa faculdade de acesso privilegiado ao
Sagrado, e por conta dessa estratégia de decidir o que Deus disse pelo recurso de já se
saber desde sempre tudo quanto Deus dissera – mesmo antes da análise do que
supostamente teria sido o texto-registro daquele discurso – é que nossa História, a
História da Igreja Cristã, seja a de Jerusalém, sejam as primitivas, sejam as patrísticas,
seja a romana, sejam as orientais, seja a ocidental, seja a Católica Apostólica Romana,
sejam as reformadas, sejam quais forem, ostentam manchas vermelhas cuja cor deriva
do sangue que derramamos – incluo-me, porque, cada vez que repetimos os
mesmos gestos estruturais que estão por trás daqueles crimes, inscrevemos também
nossos nomes no livro da morte –, e tornaremos a derramar, é só as conjunturas
mostrarem-se favoráveis, e a corrupção do gênero humano, ou o descuido do
depósito da fé, indicarem serem necessárias medidas sempre mui santíssimas e bem-
intencionadas, nascidas, todas, sempre, no próprio coração de Deus, que cá entre nós
tem aqueles a quem são reveladas, e mãos a operarem seus propósitos, e se Deus
decidiu-se a não mandar mais o dilúvio, não disse nada quanto à Igreja não poder
produzi-lo, rubro... Não nos esqueçamos que é mercê justamente do advento da
mão da crítica secular no seio da Igreja que os dois últimos séculos não têm assistido
aos altos de fé, que, contudo, andam sempre loucos para prover o tema das conversas
pias da semana. E se houve e há religiosos da igreja – crentes e cristãos – que
contribuíram para a sanidade administrada contemporânea (veja que a insanidade
migra para outras esferas, sempre à busca das verdades e das carnes), não foi sem,
contudo, a inexorável intervenção humanista que a decência, a tolerância
(administrada), o respeito (administrado) armaram suas tendas entre os cristãos do
Ocidente, tanto quanto não foi sem os príncipes germânicos que a Reforma obteve
o que João Hus tentara cem anos antes: deu-se-lhe uma estátua lá na praça de Praga,
que ele trocaria, não a praça, mas a estátua, por três ou quatro príncipes que o
apoiassem, e à reforma dele...
Esse tom não o pretendo manter em minha Carta Amiga. Você, Nicodemus, deve
entender que faço essa introdução logo depois de ler sua afirmação de que o método
histórico-crítico é pernicioso à Igreja, e você há de convir que me subiu cá aos
gorgomilos uma sensação muito desagradável, e o tom e o conteúdo com que abro
essa Carta Amiga deve ser creditado aos efeitos dessa constrangedora sensação que
você provocou.
Permita-me, pois, dizer minhas opiniões sobre seu livro. Já confessei minha
plataforma de trabalho, e penso que, assim o fazendo, deixo claro que não parto do
pressuposto de que qualquer das minhas opiniões tenha a confirmação objetiva do
coração de Deus, tão pouco que sejam a expressão inquestionável da verdade
pressuposta das Escrituras – sem, contudo, descartar a possibilidade de que, por um
descuido da verdade, tenha ela decido pousar a cabeça nessas palavras loucas que cá
começo a esboçar. Submeti-me a seu texto. Aceite agora minha oferta de chá...
Crítico é, mas se pretende, também, amigo...
Trata-lo-ei por “você”, com o que não manifesto qualquer sentimento de
desrespeito à sua formação ou aos seus cargos. Falo aqui como um crente a outro.
I. Sobre a Parte I: A Necessidade de Interpretação da Bíblia (p. 7-29)
Seus 16 capítulos estão divididos em três partes. Escolhi a metodologia de comentar
seu texto pedaço a pedaço: pego o biscoito, molho no café com leite, como-o, e
escrevo o que penso do gosto que me proporciona ao paladar. Peço, desde já,
desculpas pelo tamanho do texto que produzi.
Sua Parte I é uma Introdução que lembra o livro de Roy B. Zuck, também um livro
sobre Hermenêutica, de também um autor confessional (mas o livro não está nas
suas referências bibliográficas, então deve ser um jeito histórico-gramatical de ser).
Fala-se da Bíblia como um livro humano e como um livro divino.
Começo programaticamente dizendo que concordo com você quando afirma que a
intenção dos autores dos textos bíblicos permanece nos textos deles, mesmo depois
de sua morte, a despeito da opinião contrária de estudiosos (p. 25), com cuja
afirmação acho que compramos os dois briga com uma série de outras aproximações
aos textos (também bíblicos), metodologicamente assumidas sob a perspectiva da
impropriedade dessa assertiva. Adiante aprofundamos a questão. Adianto, contudo,
desde logo, que, segundo acredito, não estejamos nunca em condições de afiançar
que a interpretação que fazemos é necessária e ineludivelmente unívoca em relação à
intenção do autor registrada no texto. A exegese sofre de uma essencial crise de
verificação, o que faz de uma Teologia “exegética” (Hans Küng) um conjunto de
proposições “possíveis” – e só. Destarte, se eu estiver correto, uma Teologia que se
apresente como portadora de (certa) dose de verdade “revelada” não pode ser nem se
apresentar como “exegética”, nem se basear na “intenção dos autores bíblicos”, salvo
se tomar a Tradição como expressão fideísta dela. Na prática, é o que todas as
expressões denominacionais fazem, sendo que apenas uma (ou duas) o assumem.
Discordo da afirmação de que o fato de que a Igreja venha “se mantendo viva e ativa
ao longo dos séculos” seja “prova” (é o termo que consta do texto) de que “o ponto
central da Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos” (p. 25). Discordo,
primeiro, porque a História da Igreja não é fruto da leitura da Bíblia pelos crentes,
mas da orientação hierárquica do clero, isso desde sua origem, e mesmo depois da
Reforma, e até hoje. O advento da imprensa, e o desenvolvimento da(s) igreja(s)
reformada(s), não conseguiram – se tentaram – que a História da Igreja passasse a ser
diferente. Ainda que o acesso ao texto bíblico fosse cada vez mais franqueado ao
público, a conseqüência dessa abertura foi a fragmentação do tecido eclesiástico em
tantos ambientes clericais quanto as igrejas criadas, porque, a rigor, cada igreja-
fragmento tornou-se um (outro) clero, fomentador ele (e também só ele) de uma
particular Teologia, a qual, e só ela, determinará, doravante, a leitura das Escrituras
naquele círculo-fragmento. Não, não há isso de “claro” a tal ponto que... O que há
são clarificações teológico-doutrinárias fundantes, as quais, depois de erigidas,
tornam-se norteadoras do trato bíblico. Discordo, ainda, pelo fato de que o que
agora se chama de “claro” consiste num consenso teológico-doutrinário traumático
obtido às duras penas em Nicéia, Capadócia, Calcedônia e outros ambientes clérico-
eclesiásticos, depois dos quais tanto mais esforço teve de, sempre, ser feito para a
manutenção do “consenso”. É tão somente a catequese que estabelece a aparência de
“unanimidade” aparentemente óbvia. O fato de que a Reforma e os fragmentos
eclesiásticos decorrentes dela acataram alguns concílios universais em suas
proposições teológico-doutrinárias, e não outros, mais uma vez deve indicar que
não se trata, absolutamente, de que a leitura da Bíblia seja, em seu ponto central,
“clara” – tão somente me parece uma questão de reflexos do “consenso” nicênico na
história dos seus efeitos administrados.
Discordo de você, tanto de sua avaliação do método histórico-crítico, quanto da
afirmação que faz de que “tal abordagem às Escrituras já se demonstra inadequada e
perniciosa para a Igreja” (p. 26). Não me parece que se possa atribuir ao método
histórico-crítico qualquer prejuízo à Igreja, senão, e se tanto, a uma determinada
forma de se tratar e ler a Bíblia que, ela sim, é responsável pelos crimes religiosos mais
bárbaros que se tem notícia desde a crucificação de Cristo, crimes usados por José
Saramago como argumentos que põe na boca de Jesus, tentando convencer a Deus
serem razão mais do que suficiente para que não houvesse cruz, conforme se lê em
seu Evangelho Segundo Jesus Cristo, cujo sentido, todos devem saber, traduz uma
leitura de um Nobel que se auto-apresenta como “ateu”, e que lê a História da Igreja
a partir justamente desses crimes, todos eles cometidos como fundamentados pela
cruz e pelo Filho, mercê de uma interpretação que os toma sempre a partir de um
determinado prisma. O método histórico-crítico tem 150 anos, e se depender dele
não haverá mais guerras de religião, porque são todas absurdas, indesculpáveis,
intoleráveis, mas todas começam, sempre, no mesmo ponto: os fiéis têm acesso
privilegiado ao Sagrado, e são seus “cavaleiros de capa e espada”, de sacrossantíssima
justiça e zelo. E o ponto é: qualquer afirmação que se pretenda privilegiada em
relação ao “Sagrado” tende a apresentar-se fundamentada no absoluto: dê-se poder a
ela e se verá do que é capaz... em nome de Deus. O método histórico-crítico abaixa
os olhos, e bater no peito não pode. Se alguém os há de levantar, não será a
pretensão humana de “saber” Deus e de apresentá-lo teológico-doutrinário-
dogmaticamente, sempre escrito em bulas e credos, mas a própria História, silêncio
de Deus. Naturalmente insuficiente para esclarecer as questões mais relevantes da
Bíblia Hebraica, e mesmo do Novo Testamento, o método histórico-crítico é,
contudo, incontornável, segundo já o dissera Julio Trebolle Barrera – que você não
cita –, Odete Mainville – que você não cita – Simian-Yofre – que você não cita... E,
se me for permitido, também eu.
Discordo da plataforma teológica de trabalho que você constrói na página 26-27,
nos itens “Distanciamento Natural” e “Distanciamento Espiritual”. Não são novidade
nem a sua nem a minha opinião. A sua é que, ou se é crente, ou não se entende a
Bíblia, afirmação que, por sua vez, tem por arrimo a afirmação de que “muitos (...)
intérpretes reconhecem a necessidade de transpor essa distância [natural] pela
iluminação do Espírito”. Deixe-me dizer que já pensei assim. Não mais. Por quê?
Porque é uma afirmação que nem mesmo na(s) igreja(s) tem respaldo. Milhares e
milhares de igrejas hoje falam tudo quanto querem da Bíblia, e todas, absolutamente
todas, afirmam que o que dizem, dizem justamente porque são “crentes” e porque
são “iluminadas pelo Espírito”. Além disso, outros crentes há que falam
alegadamente (como que) pelo Espírito, e tantas e quantas igrejas recusam essa fala,
porque seu conteúdo não é, como julgam, “adequada” à tradição, ao credo, ao
dogma. Você conhece a já recontada história da celeuma entre Erasmo, humanista e
católico, e Lutero, [humanista] e reformado. Hans Küng tem a dizer algo sobre isso
em seu livro Teologia em Diálogo, mas quero me referir a outro texto, de Richard
Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. Mas resumirei: Erasmo afirma
que uma Instituição não sobrevive ao princípio do livre-exame, porque vai
fragmentar-se – profético! Lutero contra-argumenta dizendo que não (estava
errado), que os crentes seriam (todos) iluminados pelo Espírito, com o que
chegariam – como “ele” – à verdade verdadeira das Escrituras. Erasmo contra-
contra-argumenta: cada um, lendo como quer, e dizendo o que quer, alegará estar
sob a iluminação do Espírito. Lutero estabelece a práxis reformada e evangélica que
nos caracteriza até hoje – o verdadeiro crente, esse, sim, ouvirá a voz do Espírito.
Ora, Nicodemus, sabemos que, logo depois dessas coisas, Lutero vai brigar, por conta
da interpretação da Bíblia, com x e com y, e que, por conta disso, surgirão as igrejas a
e b. O que está em jogo o tempo todo é quem vai interpretar a Bíblia da mesma
forma que o “líder” da Instituição interpreta. O líder da Instituição dá a saber aos
liderados a voz do Espírito. O que ele interpreta é a voz do Espírito. Se for um líder
integrado à denominação, a voz do Espírito, a “sua” própria voz, será alinhada com a
doutrina padrão. Se tomar ares renovados, o Espírito saberá corrigir a Tradição, e, ele,
abrir uma nova “comunidade”. Não foi por outra razão que Lutero, Zwinglio,
Calvino – e quantos houvesse – não podiam sentar no mesmo banco, porque faziam
– como fazemos – o Espírito dizer coisas diferentes sobre o mesmo texto, o que
deixaria pressuposto que, assim como algumas deusas hindus têm muitos braços a
fazer coisas diferentes ao mesmo tempo, o Espírito Santo teria muitas bocas a dizer
coisas diferentes ao mesmo tempo. Mas como não é definitivamente a partir do que
ineludivelmente diz o Espírito, mas, antes, a partir do que ostensivamente proclama
o “clero”, que as igrejas caminham, eis tantas igrejas quantas cabeças ordenadas. Para
mim, eis no que se resume o apelo para Iluminação e Regeneração: se pensarem
como eu, são iluminados e regenerados; se não, empedernidas criaturas do erro e da
sombra... Não, não posso concordar com sua plataforma de trabalho. Ela só
funciona dentro da igreja, e, ainda assim, sob rigoroso controle catequético e
administrativo, digamos assim, de jardinagem, como a arrancar ervas daninhas que
despontam do útero da terra...
Se você me perguntar se então não creio que o Espírito Santo ilumine a leitura da
Bíblia, o que é, no fundo, uma pergunta inquisitorial, já assim para preparar a
sentença, responderei que, sim, creio, mas que nunca, em tempo algum, nenhum
homem, nenhuma mulher, criança ou anjo, velho, bom da cabeça ou ruim dela,
teólogo ou não, analfabeto ou doutor em Teologia – ninguém, absolutamente
ninguém pode dizer, em sã consciência, como que diante do espelho, sozinho, que o
que entendeu da Bíblia foi o Espírito que lho “iluminou”, salvo por um ato
voluntarista, que a mim não diz respeito, e do qual me pelo de medo cair no seu
canto. Respiro como se Deus me carregasse a cada instante, mas nunca posso apontar
onde está sua mão. Leio como que se meus olhos dependessem do Espírito, mas
jamais identificarei a leitura e o resultado dela, pessoais elas, ou dogmáticas e
conciliares, com a “iluminação”. Nem apresentarei em púlpitos ou palestras, livros ou
lições, esse ensinamento, porque, mesmo que eu faça a restrição, subliminarmente,
convoco a passividade espiritualíssima do rebanho para calar-se, e ouvir, só ouvir, e
calar-se. Não: ler, interpretar e criticar, eis o que resta a fazer. O restante disso
fazem-nos melhor do que nós os católicos romanos, cujo Magistério da Igreja, cujo
endereço é www.vaticano.va, lá funciona como cá a boca de pastores, bispos,
reverendos e que tais, com a diferença de que lá se assume ser o Magistério da Igreja
que o diz, principalmente, desde o Vaticano I.
Discordo da abordagem da Bíblia sob a perspectiva da pergunta por sua pertinência à
verdade ou ao erro, conforme você expõe na página 28. Você mesmo recusou-se a
destrinchar o frango, e nos serviu apenas as asas, sempre mais fáceis de extrair,
quando, se sabe, o mais gostoso é o peito... Por exemplo, quando você diz que aceita
erros de copistas, mas não que os “autógrafos” os podiam conter, o que é que você
acaba fazendo? Primeiro, começa a usar a palavra “erro” sem a definir, de modo que
cada um entenderá da palavra “erro” o que puder – e quiser. Segundo, quando você
diz que “embora não tenhamos mais os autógrafos, pela providência divina podemos
recuperá-los quase que em sua totalidade”, além de essa ser uma afirmação
historicamente carente de fundamentação, e metodologicamente inverificável, não
sendo ainda, essencialmente, assunto de “fé”, mas de História (eu particularmente
estou disposto a concordar com ela, mas só porque sou exegeta e me interessa
concordar, mas a rigor não há garantias de que o texto da BHS consista em 1% ou em
99% dos autógrafos; há, quando muito, e com boa-vontade, grandes chances). Mas
o mais curioso é que sua afirmação estabelece a estranha sensação de que Deus faça
um esforço para produzir um texto sem erros, fazendo mesmo de homens, que
tanto respeitaria, de “canetas ambulantes”, mas nenhum para resguardá-lo da
falsificação de tantas outras “canetas autônomas e livres”... Não é por outra razão
que, desde os fariseus, nossos antepassados teórico-metodológicos em quase tudo,
sabe-se que Yahweh havia revelado no Sinai não só a Lei Escrita, mas principalmente
a Lei Oral – afinal de conta, o que acaba valendo mesmo é sempre a afirmação de
que a interpretação oficial seja aquela que é idêntica à proferida pelos fundadores.
Também acho que é por isso, porque percebem isso, que li outro dia na Internet, no
site de uma Igreja *** Fundamentalista, que o autógrafo inspirado era a King James
original...
Concordo com você quando você afirma que não sabemos tudo (p. 28-29). Mas aí
mesmo considero que você estragou também tudo, quando disse que “no entanto,
não podemos aceitar soluções que impliquem numa diminuição da autoridade das
Escrituras, sugerindo contradições ou erros”. Logo depois você diz assim: “é
preferível aguardar até que mais informações nos ajudem a achar soluções
compatíveis com a natureza das Escrituras e sua divina origem” (p. 29). Suspeito de
que o ponto não tenha sido focalizado, e, se foi, foi escamoteado. Digo isso, porque,
quando você diz “aguardar”, não está pressuposto que a gente fique de braços
cruzados. Claro! Está pressuposta a manutenção do status quo construído e mantido
à luz das pressuposições que você defende – que são legitimamente históricas,
confesso. No fundo, o que parece estar em jogo é um determinado sistema
teológico e doutrinário supostamente sustentado pela Bíblia – a rigor, sustentado
pela história dos seus efeitos, por uma determinada interpretação tradicional. Se a
Bíblia contém erros, é seu raciocínio, logo a Teologia e o sistema doutrinário da(s)
igreja(s) pregados como interpretação autorizada da Palavra de Deus estariam
contaminados pelo vírus da dúvida, do ceticismo. Não pode. Para que não haja a
mínima possibilidade de crise de veracidade na doutrina, na catequese, na Teologia,
na fé, no dogma – todos sinônimos – então a Bíblia tem de ser afirmada como
isenta de erros, ainda que alguns elementos dela me digam que minha afirmação não
está de todo de acordo com as evidências, ao que eu me proponho a deixar “essas”
evidências de lado – mas só essas – até que... Eu diria que o que está em jogo não é o
“até que”, mas o “enquanto isso”, porque você não deixa escapar a mínima
possibilidade de que tais evidências possam efetivamente mostrar que uma certa
forma de ler e lidar com a Bíblia seja, ao fim e ao cabo, uma forma derivada da
tradição, mas, antes, se recusa a admitir, porque então será a mesma coisa que dizer
que Lutero fundou uma filial de Roma, mas com letreiro disfarçado, e isso, quem
assumirá?
Discordo da maneira como você se refere à possibilidade de acesso ao Sagrado – não
são termos seus, são meus – implícita nos seus argumentos em “As Duas Naturezas
da Bíblia” (p. 23-29). E sugiro uma saída, se você puder concordar com minha
análise de seu discurso. Como alguém que faz Teologia a partir dos pressupostos da
Fenomenologia da Religião, digo-o de mim, fica perceptível, no seu discurso, um
pressuposto de acesso ontológico a Deus. A doutrina é uma forma de dizer algo
sobre Deus. Conseqüentemente, a Bíblia é um lugar onde se encontram depositadas
“informações” sobre Deus. Penso que seja essa já uma herança da tradição. Você não
aceita a possibilidade de que se possa, sinceramente, tomar a Bíblia como livro
divino-humano, mas sem tratar a dimensão divina como depósito de informações
ontológico-objetivas sobre “Deus”? Você não considera a possibilidade de que se
possa, sinceramente, tratar-se a Bíblia como livro divino-humano enquanto discurso
humano sobre Deus? Por que, afinal, a necessidade incontornável, no seu discurso,
de que se tenha que ter uma informação inquestionável, indiscutível, incontornável,
iniludível, insofismável sobre “Deus”? Será essa uma necessidade inerente à leitura da
Bíblia, ou a uma necessidade do trato “pastoral”, herdeiro de uma herança
tradicional? Tillich já disse em A Dinâmica da Fé, e eu concordo, que “Deus” é
símbolo para “Deus”, e você decerto entende o que isso significa, e significa que em
nenhum discurso sobre Deus – Teologia/doutrina/catequese/dogma – Deus mesmo
esteja, senão a sua representação histórico-condicionada, construída pela tradição e
regimentada pela catequese – servindo-nos de Mircea Eliade, com base em nossas
experiências e nos vestígios materiais da hierofania. Deus mesmo está acima de tudo
isso. Quando, pois, percebo que todo o seu raciocínio se baseia na afirmação de que:
a) temos um acesso imediato e não-simbólico a Deus; b) Deus está imediatamente e
não-simbolicamente, não-culturalmente, não-historicamente, não-
hermeneuticamente disponível na Bíblia; c) é relativamente fácil e possível entender
a Bíblia (com o que se está a dizer, é o que penso, Nicodemus, que seja relativamente
fácil ver como o que nós dizemos que está na Bíblia realmente esteja lá); quando
percebo essa fundamentação, logo compreendo que se trata de partir já com o leite
antes de ordenhá-lo, e tenho de repetir que considero esse o princípio do Vaticano,
válido, funciona há dois mil anos, mas nem por isso compatível com o primado
reformado do livre-exame das Escrituras, que teria como pressuposto, antes, ir à vaca
com o balde vazio. Pelo menos antes da Reforma virar Reforma, porque enquanto
era um clérigo em lutas contra a hierarquia, cuidava assim, mas depois que se tornou
ele mesmo hierarquia, como (quase) todas, cuidou de dar nova demão às paredes...
Deixe-me dizê-lo que não é necessariamente incontornável o pressuposto de que ou
se lê a Bíblia assim, como um depósito de informações sobre Deus, com as quais se
pode construir um castelo teológico e colocar dentro dele gentes a considerar aquele
o único castelo possível. Penso que seja plenamente possível tratar a Bíblia como
Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, considerar todas as suas afirmações como
culturalmente determinadas – com todas as implicações teórico-metodológicas
(teológicas, eclesiásticas, éticas) advindas dessa afirmação. Naturalmente teremos de
re-aprender a viver enquanto crentes e cristãos que somos; re-aprender a nos
aproximar dos homens e das mulheres que têm do Sagrado percepções diferentes da
nossa tradição; re-aprender a pensar sobre Deus, a falar sobre Deus. Deus, como eu o
concebo, não cabe em nenhuma formulação teológica, nem a minha, nem a sua,
nem a da Igreja. Devíamos assumir isso todas as vezes que ousássemos usar o nome
“Deus”. Em vez disso, esforçamo-nos para estabelecer metodologias que garantam
nossos discursos sobre Deus, que o superdeterminem, que o sobredeterminem, que
o legitimem – e, fazendo a ele, igualmente à nossa própria posição de poder. Chame
a isso do que quiser, mas a despeito da forma como considerar isso que digo, minha
confissão é a de que considero possível, sim, e legítimo, tratar a Bíblia como um livro
de Deus, e por isso mesmo humano, na forma, na alma, no conteúdo; um livro que,
mesmo quando fala de Deus, é do Deus conforme o concebem os homens que fala,
porque do Deus verdadeiro não há boca humana capaz de falar...
... salvo a do Cristo, mas você sabe que para essa boca divina falar no nosso nível,
cremos, desceu até nosso nível, e foi como homem que falou...
Penso que procurar qualquer apoio fundamental para declarar suficientemente
seguras nossas interpretações, nossas teologias, nossas doutrinas, através da
formulação de teorias e de sistemas de crenças supostamente baseados na segurança
do acesso a Deus, na objetividade ontológico-teológica da Bíblia é, na verdade,
transferir para os ouvintes, logo, para aqueles que estão sob meu “poder”, o meu
próprio horror ao vazio, à incerteza, ao amanhã, ao acaso e ao ocaso. Construir
segurança disfarçando a insegurança pode até funcionar, desde que eliminadas todas
as fissuras da parede, umas vezes com palavras, outras, com sangue...
É no silêncio, e só no silêncio, que Deus está. Quando qualquer um de nós abre a
boca, escuto um farfalhar de asas ligeiras, e pressinto Deus afastando-se, deixando
atrás de si o vento e o vazio tumultuoso das fundamentações político-sociais das
igrejas. Se não há como fugir disso, o mínimo que devíamos fazer é aprender a lidar
com isso, antes de construir um castelo sobre o vazio barulhento das doutrinas. Um
dia – vem ligeiro – estará claro do que são feitas, e, como elas, aqueles que nelas se
asseguram além do silêncio, para horror daqueles que lhes ensinaram que, assim,
estariam seguras...
II. Sobre a Parte 2: Os Primeiros Intérpretes do Antigo Testamento (p. 31-123)
Aqui você pretende descrever em linhas gerais episódios e personagens relevantes da
História da Interpretação do Antigo Testamento: “ele” por “ele” mesmo, pelos
rabinos, por Qumran, por Filo, por Flávio Josefo e pelos autores do Novo
Testamento.
Seu livro não me parece um livro sobre a Bíblia, efetivamente, mas um livro de como
fazer a Bíblia assumir uma posição de fundamento para a concepção histórico-
teológica da “historia da salvação” (p. 36). E, Nicodemos, sinceramente não sei por
que você chamou seu esforço de “investigação” (p. 33), se o resultado dela todos já
sabemos de antemão desde, pelo menos, a Patrística? Não é uma investigação, e você
sabe disso – é antes o esforço de defender a posição teológica permitida pelo método
que você insiste em chamar de gramatical-histórico diante das conseqüências para a
Teologia advindas das pesquisas com base nos instrumentais histórico-críticos. Além
disso, quando você classificar um teólogo como “liberal”, como Gerhard Von Rad,
deveria fazê-lo definindo o termo – aliás, você tem problemas com definições...
Você sabe que a maioria dos leitores não tem a mínima idéia do que seja a escola
liberal, e para muitos que conhecem o termo, ele é um simples título honorífico
pejorativo. Sua forma de empregá-lo corrobora esse estado de coisas, corroborando-
se também nele. Não é politicamente correto.
Na página 36 você classifica como “posição histórica, e ainda perfeitamente
defensável” a afirmação de que “os primeiros escritos canônicos de Israel foram os
cinco livros de Moisés, seguidos pelos escritos dos profetas, dos livros históricos e
poéticos”. Essa afirmação é uma confusão só, Nicodemus. Você está falando de quê?
Da ordem em que foram escritos: Moisés – profetas – históricos – poéticos? Ou você
está falando do processo de canonização? Se fala disto, não há grandes crises, mas aí
então você introduziu o assunto enviesado; se daquilo, não posso concordar. Você
disse que essa posição é histórica: devia ter explicado que é histórica não no sentido
de que foi assim, mas de que foi assumido por séculos que teria sido assim; e disse
que é defensável, mas devia ter dito que o é apenas dentro de um grupo que já parta
dessa certeza – malgrado toda a pesquisa veterotestamentária desde Spinoza (Bouzon
o considera “o pai da exegese moderna”), ou, em todo caso, Richard Simon
(considerado “pai da exegese moderna” e “pai da história moderna”). Na academia,
onde se pretende estudar o Tanak historicamente, nada mais assentado do que o fato
de que não existiu jamais uma grandeza chamada “cinco livros de Moisés” antes do
século V a.C. – o mais tardar. Seus leitores devem ser informados quanto a isso. Se eu
fosse seu leitor, e não tivesse eu mesmo as informações – e sou um exegeta da Bíblia
Hebraica – me sentiria desrespeitado com sua afirmação incompleta e tendenciosa.
Você até pode crer nela, mas devia dizer que se trata de uma opinião sua, contradita
não apenas pelos que você chama de “liberais”, mas por toda a pesquisa acadêmica da
Bíblia Hebraica que não se faça a partir do pressuposto da tradição como ponto de
chegada, de cristãos a judeus, tanto quanto pela “academia secular”.
Nicodemus, Nicodemus, suas afirmações constantes das páginas 36-37, entre o
título “Escrituras como Edifício Hermenêutico” e o Quadro 2, inclusive ele, não têm
lá muita sustentação exegética. Primeiro porque o conceito de Escritura, como você
o usa, dificilmente havia no período judaico pós-exílico, muito menos antes disso. O
conceito de “cânon” conforme você o cita é um sublimado do século I d.C.,
tradicionalmente ligado a Jâmnia, em todo caso, não anterior a 70 d.C. Que
eventualmente haja intertextualidade no próprio Tanak é evidente, mas não no
sentido de “citação” de Escritura, e muito menos no sentido de “confirmação”. Há
mesmo casos de textos que se desautorizam mutuamente. Mas a pérola dessas duas
páginas é o seu Quadro 2 – que nenhum pesquisador do Tanak aceitaria, e que,
mesmo para um pesquisador do Novo Testamento, não tem sustentação – não é
historicamente apropriada, nem pode ser resolvida pela “fé”.
Explico: o Tanak é uma literatura autônoma. Não depende do Novo Testamento – o
que não pode ser dito do Novo Testamento, que não só depende do Tanak, mas
também dos deuterocanônicos e dos apócrifos (isso se o queremos estudar, antes
que revisitar temas da tradição). O que o Primeiro Testamento tem a dizer, o diz e
até a última gota, já o disse por si mesmo, e deve ser ouvido mediante as técnicas da
exegese. O seu cabal entendimento, se possível, independe de qualquer outra
literatura futura, mesmo no caso de se tratar essa literatura de o Novo Testamento.
Nenhum exegeta do Antigo Testamento comprometido com exegese, e interessado
em investigação, aí sim, histórica, de seu sentido, aceitará um centímetro da posição
que você reserva para a Bíblia Hebraica. Lamento. E também o Tanak...
Além disso, você sabe que não há um Novo Testamento, como aquele que você
colocou no topo de sua compreensiva pirâmide. O Novo Testamento não constitui
uma unidade, nem suas concepções teológicas a pressupõem. Mesmo no campo
relevante da Cristologia, os exegetas indicam para a construção teológica de várias
cristologias diferentes nas proposições textuais. Nunca houve um “fechamento”
natural disso que você chama “A Pirâmide Hermenêutica das Escrituras”, que
considero uma abstração criativa sua, herdada de uma perspectiva uniformizante da
Teologia dogmática.
A saída? Mude NT naquele triângulo superior da sua pirâmide para “ Nicéia – 325 ano
domini”, e aí estaremos de acordo – desde claro, que você esteja de acordo em
afirmar que a fé cristã é nicênica, senão será outro livro, e outra Carta Amiga...
Não tenho espaço para analisar aqui seus modelos-provas de que a tradição esteja
certa em suas afirmações quanto ao Antigo Testamento (p. 38-46). Vou direto às
suas afirmações categóricas das páginas 46-47. “Atitude para com as Escrituras”: não,
não havia conceito de Escritura no Antigo Testamento, e mesmo o conceito de Lei
Divina relacionada aos livros de direito israelitas supostamente existentes a partir do
século VIII é um conceito tardio, posterior ao século VII, talvez desenvolvido
durante os séculos VI-V (Frank Crüsemann). “Propósito Aplicativo”: não, não eram
considerados eternamente válidos os escritos; a escrita, enquanto fenômeno, é que
era sempre considerada, mas rotineiramente superada dentro dela mesma, por
ininterruptas revisões, glosas, retificações. Felizmente eram israelitas (judeus) e não
teólogos confessionais, que não viam problema na disjunção – não eram
aristotélicos, ainda – e podiam conviver numa mesma narrativa com afirmações
contraditórias, e não vou enumerá-las aqui porque você as conhece a todas, eu creio,
e terá um tratamento diferente para elas. É a sua opinião contra a minha – o que
reduz tudo a um fator de consonância histórica e à disponibilidade de instrumental
de verificação (Darci Dusilek), ou é a verdade de Deus contra a opinião de um
homem? “Consciência de Autoridade”: superficial ao extremo, beirando o
indesculpável, sua análise nesse ponto. A profecia sequer é um fenômeno
minimamente compreendido, mas, para você, é (tratada como) ponto pacífico. Pelo
menos você deveria levar em conta o pressuposto restritivo do Deuteronômio de
que só deveria ser considerado pronunciamento de Yahweh aquilo que se cumprisse
– com o que, na prática, está se dizendo para não se dar a mínima bola para qualquer
fala que se apresente em nome de Yahweh, já que ela só se “cumpriria” séculos depois
–, e também o fato de que daí decorre que quem decide o que é e o que não é de
Yahweh não é mais quem fala, mas quem ouve, porque quem fala será julgado pelo
cumprimento do que falou, e um camponês não teria, sob esse raciocínio – pelo
menos sob a restrição da profecia levada a termo pelo Templo – nenhuma obrigação
de dar ouvidos à profecia. “Leitura Natural do Texto”: outra simplificação difícil de
ser superada, Nicodemus, porque nem mesmo se lia o Antigo Testamento naquela
época – ele era lido por uma minoria, a liderança do Templo, um punhado de sábios,
para uma massa de gente iletrada, que o quanto podia fazer era dar crédito a quanto
se lhe dizia e dava, a crer nas observações de Paul Veyne em “Acreditavam os Gregos
em seus Mitos?”. “Base para Desenvolvimento da Teologia Bíblica”: inverta sua fala, e
conversaremos melhor. Não é o Antigo Testamento quem dá base para o que você
está chamando de Teologia Bíblica: foi a tradição criada sobre as tradições judaicas
como um todo, Torá, Tanak, literatura judaica (apócrifos e deuterocanônicos), tudo
junto, numa amálgama cultural nem um pouco homogênea, mas com
concentrações aqui e ali, distâncias, aproximações, sublimados. O fato é que essas
tradições constituíam, elas, sim, a ótica cotidiana. O evento fundamental, contudo,
nem foram as Escrituras, mas o fato de que um grupo de judeus mergulhados nas
tradições judaicas apontou para Jesus de Nazaré como o Cristo, enquanto outro
grupo de judeus, bem maior, não o fez. O grupo que o fez, imediata e
automaticamente, atualizou as suas tradições na pessoa e na vida de Jesus,
redundantemente, teologicamente, apologeticamente, argumentativamente,
polemicamente, chegando mesmo a construir uma cadeira de argumentos-prova
escriturísticos por conta de seu embate com os irmãos judeus-não-cristãos. Não,
Nicodemus, não foi o Tanak quem determinou o Cristo, mas a fé cristã primitiva
que re-interpretou todo o Tanak à luz de sua maior experiência vital – a fé no
messias. Com isso, contudo, o Tanak não deixa de ser o Tanak, conquanto possa ter
servido e servir de base para re-interpretações de toda sorte, cristãs, judaicas e
esotéricas. “Midrash” não me parece anacronismo, não. Desde a literatura profética
até a Torah, já lá estão perceptivelmente os traços distintivos desse tratamento
metodológico a textos escritos. E foi sim, concordo com você, mas nesse sentido,
que, utilizando-se não só de midrash, mas principalmente da alegoria, todos, judeus-
cristãos responsáveis pela redação do Novo Testamento, e cristãos apologetas
posteriores – refiro-me a Justino, Ireneu e Tertuliano – atualizaram o “Antigo (?)
Testamento”, sendo que Justino não tinha nenhuma vergonha em assumir (não era
moderno!) que o fazia, chegando mesmo a dizer, segundo o teólogo confessional
Roy B. Zuck que, se o Antigo (?) Testamento não for alegorizado, não tem nada a
dizer aos cristãos – e ele só disse isso porque achava que estava falando do telhado
dos outros, porque quando chegar em Lutero, vai dizer que agora é outra história (e
não é).
III. Sobre o Capítulo 6 (p. 108-123)
Dou um longo salto em nosso diálogo, Nicodemus, porque tudo quanto eu teria a
divergir de sua opinião quanto à interpretação rabínica, de “Qumran” – que segundo
Norman Golb não é sequer uma “seita”, mas a biblioteca de Jerusalém, preservada
antes de 70 d.C. –, de Filo e de Josefo constitui-se em picuinha irrelevante diante da
questão maior que tenho percebido em seu livro: sua metralhadora voltada para a
face da crítica. Veja, por exemplo, essa sua fala: “a incredulidade impaciente de
muitos estudiosos críticos acaba por levá-los a rejeitar a autoridade do Novo
Testamento, propondo explicações que tornam seus autores em redatores
desajeitados ou teólogos incoerentes e manipuladores irresponsáveis das Escrituras
do Antigo Testamento” (p. 108). Eu acho que você não devia dizer uma coisa assim,
porque não serve para nada – de bom. Primeiro, porque você coloca toda a crítica
num só balaio de víboras, e as pisa a todas com sua bota de ferro – ou você acha que
seu leitor vai fazer a separação piedosa, se nem você a fez? Seu texto classifica o
mundo entre dois grupos – típica abordagem apocalíptica: os bons e os maus, os
confessionais-que-crêem-na-Bíblia e os críticos-que-cheiram-a-enxofre. Paciência,
amigo! Se a Igreja esfolou, empalou, afogou, queimou, você é responsável? Acho
que não. Se há um ou outro crítico que eventualmente se enquadre no que você
descreve, tem a crítica culpa disso? Acho que não. Então escreva sempre de um jeito
que isso fique claro, senão terei direito de achar que você não está interessado em
informar, mas em formatar... Além disso, que história é essa de “incredulidade
impaciente”? O contrário do que você louva como a paciência da confissão em,
mesmo diante das evidências, continuar a ladainha? Além do mais, se você estivesse
com a razão – e não está, segundo creio – deveria ser mais humano com os críticos,
do que os críticos com você. Dê o exemplo! E o exemplo que dá é de sempre
confrontar os críticos com Deus – pobre do leitor que tomar o partido da crítica!
Digo mais, acho que você deveria escolher o que quer fazer: se interpretar a Bíblia, ou
catequisar, porque você nem ninguém precisam da Bíblia para catequisar. Mas se o
interesse é em estudar a Bíblia, deveríamos antes de tudo admitir, honestamente, que
a primeira coisa que temos de fazer é partir do pressuposto de que podemos estar
errados. Sei o quanto é difícil, mas sem isso, qualquer tentativa de transparência é
ilusória, a pesquisa, desnecessária – menos para a apologia. Por que não chamou seu
livro de Apologia Hermenêutica da Tradição? Gostaria mais dele assim, porque mais
honesto, eu acho.
Quanto aos “Princípios Controladores da Hermenêutica Neotestamentária” (p. 115-
122), há coisas interessantes ali, debaixo da perspectiva macro-estrutural com que
você aborda a questão. Sim, Cristo é a chave, mas não, não há “uma” chave
cristológica, mas várias, com o que retornamos à necessidade, sim, incontornável,
sim, se queremos efetivamente conhecer o que o conjunto traditivo do Novo
Testamento tem a dizer, de ler os vários textos neotestamentários a partir de si
mesmos, e não da consubstancialmente teológico-doutrinária nicênica posterior.
Deixemos os textos falarem a partir de sua posição histórica, e teremos de dar conta
de novas complicações, muito além daquelas para as quais você tem se disposto a dar
tempo ao tempo para que sejam harmonizadas. Suspeito que você suspeite disso, e
lute contra isso... É o mínimo que esperaria de um teólogo confessional que se dá ao
trabalho de escrever sobre o tema: conhece a questão, mas quer contorná-la. É
assumir isso, e pronto.
Em “Os últimos Dias já Raiaram” (p. 117) está uma questão interessante. É preciso
uma consolidação de tempo relativamente longa para se poder fazer a afirmação que
você faz ali os cristãos fazerem lá: os judeus recusaram o messias. Efetivamente, só é
possível uma tal afirmação depois da catástrofe de 70 d.C., depois que fariseus
sobreviventes e cristãos sobreviventes decidem disputar quem é o verdadeiro “resto”,
e cada qual vai dizer até hoje que o é. Contudo, o acontecimento histórico deixa
latente a questão de que a Teologia se constrói como reflexo da própria história –
fosse outra a história, a história seria outra, assim como, fosse Paulo pregar na Índia,
ou na África, e não na Ásia Menor e na Europa, como o fez, o Cristianismo seria
outro, outros os cânticos, outra a Teologia, outra a apologia...
O conceito de tipologia (p. 118) mais faz mal do que bem, porque reduz o Antigo
Testamento a um baú de representações, de ainda-não, de vir a ser. Não gosto disso.
É uma metodologia apologética, legitimadora, mas não uma tentativa consciente –
como você diz deve ser a leitura da Bíblia – de ouvir o Antigo Testamento. Se os
cristãos primitivos entendiam que tinham que usar dessa forma o Antigo
Testamento, tudo bem, mas nós hoje já estamos razoavelmente grandinhos para
saber dar nomes às coisas, e se se quer ganhar o mundo para Cristo, deve-se começar
a ganhar o seu respeito – como, aliás, era o propósito dos apologetas patrísticos! –, e
não será com esse tipo de ferramenta que o Cristianismo se fará ouvir por quem tem
ouvidos para tanto...
IV. Sobre a Parte III: Os Intérpretes da Bíblia na História da Igreja Cristã (p. 125-253)
A Parte III consiste no restante do percurso – tomada a Bíblia como um conjunto,
como teria sido – sob a sua ótica, claro – a sua leitura durante a história? Você
começa o assunto pelas “escolas” de Alexandria e Antioquia (capítulo 7), segue pelos
pais latinos (8), pelos intérpretes medievais (9), pelos reformados (10), pelos
escolásticos e puritanos (11), caminha pela “Interpretação das Escrituras na
Modernidade” (12), descreve um como que advento da Pós-Modernidade no campo
bíblico-hermenêutico (13), arrisca afirmações sobre as “Vertentes Formadoras dos
Intérpretes Pós-Modernos” (14), trata deles (15), e arremata apresentando desafios
que entrevê para o intérprete da Bíblia (16). Estamos no coração do seu livro.
Você conclui a sua apresentação sobre a escola de Alexandria (p. 129-134) com duas
afirmações: o método desconsiderava o caráter histórico de determinadas passagens,
e não dispunha de controles adequados (p. 134). Concordo com essa última
afirmação, mas em termos. A rigor, o controle do método alegórico é a
interpretação que já existe antes da aplicação do método. O método alegórico
baseia-se na intentio lectoris, logo, a “verdade” já está de posse do leitor antes da
leitura, e, a rigor, o leitor controla, sim, a leitura, logo, o método. A crítica que você
fez à “alegoria” deve ser aplicada também à interpretação reformada, com o que
designo aqui a tradição oficial de interpretação da Bíblia a partir da Ortodoxia
Protestante. Trata-se, ainda aí, de alegoria – mas uma alegoria de chave-única, que
poderíamos chamar de chave cristológica: logo, uma alegoria cristológica, ou uma
interpretação alegórico-cristológica. Nesse tipo de metodologia, o controle é o
resultado pretendido – e que há efetivo controle do método a história das
comunidades desde então o demonstra, mais do que mil fórmulas...
No que diz respeito à distinção que você faz entre as escolas alexandrina e
antioqueana (p. 134-139), a rigor deveríamos considerar esse assunto como uma
questão de “grau”, tanto quanto é apenas uma questão de “grau” o critério
hermenêutico medieval e o da Reforma. Antioquia não defendia o sentido literal,
como você chega a tentar dizer – e o diz. Pode-se até dizer que ela reconhecia o
sentido literal, mas como uma espécie de sentido que lá estava, como as folhas de
uma árvore, mas que o importante não era esse sentido literal, mas a garantia
daquele “sentido profundo” de que os cristãos (agora) podiam se servir, como da
“sombra” da árvore. Esta metáfora é boa, porque se imagina que a sombra seja uma
projeção da árvore, uma projeção de sombra. O sentido “profundo”, o sentido
“teológico”, aquilo que se convencionou chamar de sensus plenior, a dizer que a um
sensus que não é plenior, e se não é plenior, coitado, até vá lá que exista, que esteja
lá, mas serve para quê? para nada, porque o que interessa é o sensus plenior...
Não, Nicodemus, não estou ainda em situação de acreditar na possibilidade de que
no século IV houvesse consciência histórica no nível que somente os
desdobramentos da Renascença  Reforma  Iluminismo concederão à
humanidade. Antioquia era ainda tão fomentadora de sentidos últimos, místicos,
mágicos, teológicos, vá lá, quanto Alexandria, e mesmo Lutero e toda a sua
enormíssima tradição protestante-evangélica (na qual me incluo) desde lá até cá.
Apenas nos ambientes acadêmicos que se tomam como tal está-se, aí sim,
interessado no sentido histórico (sem, contudo, mágicas que o ponham em nossas
mãos, malgrado arrogâncias e narizes que o pressuponham), porque ali não se
trabalha com a hipótese, histórica, de um sentido “profundo”...
...nem se poderia, porque o sentido profundo não “está” no texto, mas é colocado lá
mercê de dois fatores: coisas que acontecem depois do texto, e pessoas que
interpretam essas coisas que acontecem depois do texto, ligando-as ao texto,
retroagindo uma à outra, projetando uma na outra, passado no futuro, futuro no
passado. Tirem-se a coisa acontecida e a pessoa que interpreta a coisa, e o “sentido
profundo” deixa de existir, puf!, como uma bola de sabão se vai.
É por isso que a tradição católica não abre mão de seu discurso relacionado à
Tradição e ao Magistério, porque ela sabe que a fundamentação para o “sentido”
cristão da própria tradição está nela mesma. É difícil ouvir um discurso desses? Eu sei.
Mas fomos nós, protestantes, reformados, como alguns se gostam de chamar, que
dissemos – Bíblia! Agora nos cocemos com a coceira. O que não se pode é dizer
“Bíblia!”, apontando para a tradição – e pior, dizer “Bíblia!”, apontar a tradição, e
dizer que se está apontando para a Bíblia, ainda que num “sentido profundo”. Está
mais do que na hora – já passou o tempo – de os “reformados” levarem Lutero (o
primeiro) a sério, e assumirem Lutero (o segundo), como um destilado institucional
desandado. Essa distinção entre Alexandria e Antioquia está longe disso.
A forma como você menciona Tertuliano (p. 142) me causou verdadeira estranheza,
e penso que um de nós dois – talvez eu – devamos reconsiderar aquilo que julgamos
“saber” de Tertuliano. Você o descreve como alguém que não seguiu a “alegoria” –
mencionando, ainda, que ele havia considerado Gn 1 e 2 “históricos”. Deixando essa
questão da historicidade de Gn 1 e 2 de lado, convém lembrar que Tertuliano foi o
sistematizador do conceito jurídico da tradição na Igreja. Entendo que são três os
pilares da História da Interpretação da Igreja, sem nenhuma necessidade fundamental
de se distinguir entre “Alexandria” e “Antioquia”, já que, a rigor, e no geral, no que
“conta”, o pressuposto hermenêutico é o mesmo – fundamentar a tradição cristã na
leitura das Escrituras. Justino defendeu a alegoria, e a estabeleceu como método de
interpretação (A, de alegoria). Ireneu estabeleceu o papel central da tradição como
critério de verificação da ortodoxia da leitura e da interpretação das Escrituras (T, de
tradição). Tertuliano estabeleceu o critério do controle eclesiástico – lembre-se de
sua formação jurídica, por conta de que seus pais intentavam para ele uma carreira
diplomática (A, de autoridade). Roy B. Zuck deu-me a ponta do fio, e eu o puxei, e
cheguei a tricotar um suéter em que estão escritas as letras “A – T – A”: alegoria,
tradição, autoridade, como o tripé sobre o qual se ergueu a belíssima catedral
teológica neoplatônica em que consiste Nicéia e seus desdobramentos, mesmo a
Reforma. Sim, de fato Tertuliano começou uma “nova tradição” na Igreja, mas penso
que essa tradição foi a tradição “jurídica”, bom filho foi nosso moço.
Então, na página 143, num tópico que você chama de “Alegorias Ocasionais”, você
escreve: “algumas vezes os intérpretes alegorizavam o Antigo Testamento”. Eu quero
insistir, Nicodemus, que fazer uma separação entre “alegoria” como uma técnica
metodológica, de um lado, e a interpretação preferencial pelo histórico, “muito
embora conscientes dos diversos sentidos que se poderia atribuir a um único texto”
(p. 143), é fazer separação entre queijo prato e queijo minas. Tudo é queijo, vêm do
mesmo leite, são da mesma vaca. O simples fato de se estabelecer a saída pela via do
sentido “profundo” das Escrituras que é senão a manutenção, pretensamente
modernamente controlada, da teoria dos quatro sentidos medievais? Penso que o
espírito moderno do cristianismo “reformado” não tem como abrir mão da
consciência histórica – somos, afinal, os criadores da História, nós, protestantes, e
disso gosto muito, até a última gota –, e, ao mesmo tempo, não tem como abrir
mão da tradição teológica herdada, chame-se essa tradição de doutrina, dogma, fé
(como a chama já Judas, desde muito cedo), querigma, são muitos nomes para a
mesma fortaleza. E, porque o cristianismo reformado é reformado, e não católico,
não pode resolver isso pela assunção da tradição como critério, resultando o recurso
ao apelo a esse resquício medieval – disse medieval? – patrístico, de “sentidos”
profundos...
Como disse, está ainda por ser montada a igreja reformada...
Ah, sim, deixe-me ainda registrar o que penso sobre sua afirmação quanto a
Agostinho, que “desejava ardentemente ser fiel à intenção original das Escrituras, que
ele entendia ser aquele único sentido inspirado por Deus” (p. 143). Se nos ativermos
à literalidade da afirmação, eu a posso usar para mim mesmo. Contudo, de que
modo poderia eu, assim o fazendo, tomar os textos de Gênesis como os toma
Agostinho? Se eu tiver que conciliar o desejo dele com a prática exegético-teológica
dele, terei de admitir que era cedo demais para a época, e que o querer estava longe
do efetuar. Talvez somente com o advento da consciência histórica e dos princípios
de relatividade cultural e circunstancial, de condicionalidade discursiva, essas questões
fundamentais que as Ciências Humanas plasmaram em nossas retinas, estivéssemos
os homens e as mulheres prontos para iniciar a tarefa. E acho mesmo que ainda hoje
estamos sem todas as condições que, também acredito, acabarão advindo. Penso que
a História ainda é um bebê, e que logo chegará à adolescência. O mesmo se diga da
arqueologia, que, aliás, acaba de sair da casa paterna, e caminha agora com as próprias
pernas – tenta – pela Palestina. Quando as Ciências Humanas progredirem um pouco
mais além das próprias lutas intestinas em torno de qual delas deve mandar nas
outras, resolvida essa questão, que a Teologia ainda hoje não resolveu, então penso
que estaremos ainda em melhores condições do que Agostinho para expressar
também nosso desejo. Deram-se dois mil anos à dogmática! Dê-se o dízimo disso à
novel arqueologia, e também às pazes entre a metodologia histórico-social e a
exegese (isso se não for mesmo uma moda, como ouvi dizer esses dias!) e acho que
compreenderemos mais profundamente porque Bultmann tratou de tentar resolver
logo, e a seu jeito, as coisas – pena que à custa da História (no que, na prática, não
há muita diferença entre ele e Agostinho, malgrado tanto desejo...).
Você, por exemplo, Nicodemus, fala de “alegorias ocasionais” (p. 143-146). Não sei,
não, Nicodemus, mas acho que algumas das suas afirmações são feitas através da
transmutação dos conceitos. A meu ver, alegoria é todo procedimento de
substituição de referente. Dado um texto x, que, numa época y, tinha por referente
uma grandeza w, se agora eu tomo esse mesmo texto x (a rigor, a narrativa contida
nele), mas substituo o seu referente (independentemente de ter consciência ou não
de tal operação, e mesmo de ter condições de determinar o referente original), isso
que eu fiz é um exemplo de alegoria. Naturalmente num sentido amplo, mas
qualquer outro nome que se dê a tal procedimento não poderá apagar o fato de que
o referente não é mais o mesmo, lá era w, aqui é quem ou o que se queira. Quando
você descreve a chateação de Jerônimo com a suposta escamoteação dos textos “que
claramente se referiam à vinda de Jesus Cristo” por parte dos tradutores da
Septuaginta (p. 144), está pressuposta a afirmação de que o referente dos textos do
Tanak, quero dizer, os referentes históricos, genéticos, intencionais, são irrelevantes
– até vá lá que existam, que haja algo como isso de sentido histórico, como o
método histórico-gramatical ou gramatical-histórico concede benevolamente, mas
e daí? não acabam se tornando uma indulgência, quando pouco, e uma declaração
de “modernidade” por parte do método (como contornar a História!?), logo, uma
escamoteação também, já que o sentido, o verdadeiro, o que importa, está aqui,
comigo, e não lá, com eles, está na história dos efeitos da tradição, antes que no
conjunto narrativa-intenção-referente? No fundo, Nicodemus, a sensação que
tenho é a de que seu texto está escrito para convencer quem quer ser convencido, e
desde que quem o queira não precise mais de argumentos...
O apelo subentendido é à “fé”. Isso está pressuposto no caminho que você traça, nas
retas e nas curvas. Ocorre que um tipo de argumento-sombra como esse deve,
necessariamente, tratar a “fé” como “depósito de doutrina”. Eu sei, há precedente
neotestamentário, porque esse é rigorosamente o sentido de “fé” naquela deliciosa
carta de Judas (cf. v. 3.5.17 = “fé” dada definitivamente como memória das palavras
ditas anteriormente). Quero crer, contudo, Nicodemus, que você entende
perfeitamente que há sérios problemas em se tomar esse conceito de “fé” como a fé
“salvífica”, salvo se a doutrina for “sacramento”, e isso num momento em que a
própria Igreja Católica vê discutida a questão dos sacramentos (cf. Hans Küng em
“Teologia a Caminho”). A História e as ferramentas histórico-críticas não ferem em
nenhum grau a fé “salvífica”, Nicodemus – é o que penso –, mas deverão,
necessariamente, fincar o pé no meio do acampamento da fé-enquanto-doutrina, da
fé-enquanto-memória-das-palavras-ditas-anteriormente, a fé das catequeses (de
todas elas, desde as católico-romanas até as evangélico-neopentecostais, passando
decididamente pelas evangélico-tradicionais e protestantes reformadas: são todos
nomes, caixas, onde colocamos gentes diferentes e coisas iguais...), e, honesta e
corajosamente, perscrutar as fontes, o olho d’água, a nascente, porque as águas nas
quais nos banhamos é a água da história dos efeitos da tradição, malgrado a birra
protestante. É o preço que deveremos pagar, um dia, humildemente, pela arrogância
diante dos católicos, também eles, igualmente, mas assumidamente, tradicionais,
nadando alecremente na praia de Nicéia. Banhamos-nos também, com eles, mas
como que invisíveis águas-vivas, nessas mesmas águas – ocorre, contudo, que
mudamos a placa que dá nome à enseada: “Bíblia”. Ah, e nem vimos que um danado
foi lá e acrescentou “Bíblia”(as), esses moleques!
Na sua conclusão, você lamenta que se tenha dado (mais) atenção apenas à
afirmação de Agostinho de que “havia um sentido além do literal” na Bíblia, e que,
daí para o sentido quádruplo medieval foi juntar fogo à palha. Mas lamentar por que,
Nicodemus? O sentido-além-do-literal é, a rigor, o único que interessa. Num
ambiente que precisa dessa espécie de afirmação, não há qualquer serventia para o
sentido literal – é mesmo um calo no sapato. Contorna-se o calo com uma sandália
aberta; contornou-se aquele com o sentido “profundo”. Ora, Nicodemus, onde cabe
um cabem vários, porque esse texto assumidamente grávido de sentidos, por que
cargas d’água tem um só além do primeiro? Não, Nicodemus, se o texto vai ser lido
a partir da sua polissemia facultadora de mundos hermenêuticos, a cuja metodologia
Croatto dá o nome de eisegese, então quem faz acintosamente eisegese deve dizer
por que só um sentido “extra”, e não tantos outros. Por isso Ireneu e Tertuliano são
importantes: porque eles perceberam que Justino abrira a porteira – e reconheciam
que, se Justino não tivesse
aberto a porteira, isto é, se não houvesse defendido, praticado e justificado o método
alegórico de acesso ao Antigo Testamento, como bem viu seu colega Roy B. Zuck,
não haveria como defender – opinião dele(s), não minha – a pertinência “cristã” da
Bíblia Hebraica (= Antigo (?) Testamento). Contudo, abrir a porteira não deve ser,
entendiam, deixar todos os bois passarem. Ireneu, portanto, quer que passem apenas
os seus bois – Tradição. E se alguém achar que tem força suficiente para forçar a
porteira, Tertuliano já já vai mostrar para que serve o direito...
Justino, Ireneu e Tertuliano propugnaram um método que, em si mesmo, gera
incontáveis sentidos, a Alegoria, que gera tantos sentidos porque substitui o
referente histórico do texto, colocando nele quantos e quais queira. Mas acontece
que nenhum deles é exegeta – eles são apologetas: o que querem é defender a
ortodoxia da tradição – a qualquer custo. Logo, têm de dar um jeito de usar um
método geneticamente e programaticamente polissêmico para justificar uma “regra
de fé” tomada como pronta e acabada: Tradição. Só mesmo, Nicodemus, pela força
da Autoridade. Uma consciência crítica logo vê do que se trata...
Então eu digo o seguinte: defender um sentido profundo nas Escrituras é possível? É.
A que preço? Reconhecendo o fato de que a metodologia que produz um sentido
profundo produz quantos outros de que necessite; o fato de que, se a “regra de fé”,
justificada pela metodologia de fundamentação alegórica aplicada à tradição
veterotestamentária, apresenta-se como única, una, universal, não advém a sua
justificativa da metodologia que adota, e que outro pode usar para dizer o inverso,
mas de si mesma, de sua carga de autoridade auto-aplicada (ainda que apele ao
Cristo); que a teoria do sentido profundo só é mantida denodadamente no
protestantismo porque este não pode admitir para si mesmo que os católicos, afinal,
têm a melhor solução para quem quer viver no século XX e XXI como se no I – dar à
Tradição o peso que ela tem de ter para manter-se viva, se o que se quer é que ela se
mantenha viva. Viva, não, superviva, sobreviva, porque esse tipo de Tradição se nutre
da paralisia e do controle de seus próprios órgãos. 500 anos de protestantismo até
agora só produziram uma paródia escamoteada de catolicismo – e minha opinião
sincera, honesta (quem sabe errada) é que seu livro não ajuda em nada a resolver essa
crise histórico-antropológica doméstica.
Queremos a Tradição, mas queremos o discurso histórico. Para dizer de uma vez,
penso que os católicos ficaram com a Tradição. Quem ficou com a História? Nós? Os
protestantes (evangélicos e toda a cornucópia poliédrica no interior da qual se
debatem todas as ortodoxias iluminadas)? Não, Nicodemus. Nem nós nem os
católicos a quisemos. O que resulta em dizer que, se os católicos ficaram com a
Tradição, e nenhum dos dois com a História, com que foi que ficamos? Posso dizer?
Você não vai brigar comigo? Ficamos com a mesma coisa com que Bultmann
decidiu ficar, sem, contudo, assumir dele sua loucura consciente de abnegar
metodologicamente da terra, grão de nada a flutuar no nada mais profundo – mas
não é a terra a raiz do mito? E nosso estado é tal que não enxergamos nele nossa
própria imagem... E tal é esse estado de coisas que ainda há entre nós alguns que
pensam poder contraditá-lo com a mesma teologia querigmática, mas como se
fundamentados na história!
Quanto a mim, quero a História. E se ainda não a podemos ter, assumo a
condicionalidade incontornável da minha Tradição – com todos os riscos que isso
significa. E, assim, me restam duas atitudes, que chamem românticas, se quiserem: a)
saltar no escuro insondável do Sagrado, silêncio puro, e em silêncio [o único
fenômeno humano que afasta Deus é a palavra]; b) aproximar-me de tudo e de
todos como estruturalmente semelhantes a mim mesmo: por mais sedentos, por
mais “crentes”, por mais vaidosos de nossa espiritualidade, seres humanos nadando
em símbolos de símbolos, dos quais não há a mínima necessidade de se abrir mão,
porque fora dos símbolos não há outra forma de ter sede do insondável. Mesmo a
tradição, que é senão um mar de símbolos, que se assim tomados, marulham felizes
nas praias das nossas vidas? Boa tradição essa. Partamos dela. Se ela porto é, é de
partida – não de chegada...
Seu livro avança, e de repente já estamos na Idade Média, com os vitorinos e com
Rashi. Gosto desses nomes, ainda que, também eles (e nós) sejam filhos do seu
tempo. Mas há um quê na atitude, entende?, que me faz crer na possibilidade de que,
fossem filhos deste tempo, teriam muito a ensinar – a nós dois. Foram homens além
de seu tempo, como Spinoza. É claro que teremos de reconhecer que o brotamento
de homens assim, e das mulheres, sobre as quais a gente nem fez questão de lembrar,
deve-se ao fato do andamento das coisas – não de um evolucionismo (também [e
por isso] contido em algumas Teologias de “revelação progressiva”, que tão
perfeitamente juntam a minimalização do sentido histórico do Primeiro Testamento
à maximalização da interpretação nicênica da mensagem do Segundo [Darwin pôs
ovos onde a gente menos espera!]), mas das pressões internas do sistema fechado.
Desde que Deus escolheu escrever suas palavras, que ele sabia chegaria um dia em que
os leitores dela intuiriam o tempo, o devir, o condicionamento histórico
incontornável, a determinação, o conceito de cosmovisão, as operações da ideologia,
essas coisas todas muito modernas, e que parece já começavam a germinar lá pelos
idos dos séculos XI e XII. Poderia eu mesmo dizer – usando sua metodologia – que
para esse tempo a Bíblia foi escrita. Mas quê? Ela foi escrita para todos os tempos –
inclusive o nosso, que, pede, seja lida como a partir dele.
É um capítulo nostálgico, esse seu, o nono. E meu estado de espírito é tão que mal
posso esperar para virar a página, porque, na “Conclusão”, você escreve: “o
ressurgimento do interesse no final da Idade Média pela interpretação gramático-
histórica preparou, em certo sentido, a grande revolução hermenêutica que foi a
Reforma protestante. É o que vamos ver em seguida” (p. 157). Estou “doido” para ver
o que você tem a dizer sobre ela, e torço honestamente para que não seja o mesmo
que sobre ela o disse Roy B. Zuck, que, por conta do que diria da Reforma, e do que
teria significado o “agora sim, a coisa vai” daquele momento, baixou o porrete em
Justino, Ireneu e Tertuliano, denunciando a sua alegoria, porque, para ele, agora
aquilo era coisa do passado...
... e não é exatamente o que você diz, logo no começo, e eu quase desfaleço!? “O
domínio de séculos de interpretação alegórica é finalmente quebrado” (p. 159): ouço
até os sinos tocarem – será dor de cabeça?
Vamos lá. Você afirma: “resgate da posição central da Bíblia na fé e na prática da
Igreja” (p. 158). Você judia muito de mim, Nicodemus. Mas já disse o que penso
sobre essa afirmação sua, para a qual eu já estava preparado, e se fiz aquelas
pantomimas acima foi só para quebrar o gelo (ou para ser irônico mesmo?). Se você
me disser que fala do discurso reformado (extensivo a todos os familiares), aceito; se
da prática concreta, não. Dela já disse que a classifico como igualmente católica, e o
diálogo entre Erasmo e Lutero a que me referi dá conta disso. A Reforma só
substituiu a autoridade do clero que se fundamentava em si mesmo (apelando para a
Tradição) pela autoridade do clero que se diz fundamentada na Bíblia, quer dizer, na
iluminação do Espírito, quer dizer, na Teologia oficial, mesmo, respaldada, sempre,
como que pela Bíblia e pelo Espírito. Lutero devia estar tomado quando disse aquelas
coisas sobre livre-exame das Escrituras...
Deixe-me dizer com todas as letras, Nicodemus, que não sou contra a Tradição. Para
mim, sem tradição não há vida, caminho, estrada. Penso, contudo, que a Tradição
não seja uma múmia divina, seca e mofada, exposta à visitação pública. É antes o
próprio mar onde nadamos, cujas águas banharam, desde “Adão” até nós, todos os
seres humanos da História; águas antiqüíssimas, honradas, de cãs e cajado. Gosto
dela, nado nela, mas há mais rios desaguando águas nela do que pode dar conta
minha opção pelo ribeiro... Conto, pois, com a tradição. O que não posso (quem
sabe ainda?) aceitar é ver essa mesma Tradição ser transformada em norma, e tal
transformação ser escamoteada em nome de um suposto procedimento
metodológico hermenêutico, que apela a uma também suposta fundamentação
bíblica, a partir de um, aí, sim, explícito pressuposto de um sentido profundo nelas,
que somente quem toma, como tudo começou, essa mesma Tradição dessa mesma
forma, pode enxergar. É ou não é um círculo vicioso? Trata-se ou não se trata de
uma evidência evidente apenas para quem já comprou os óculos 3D? É por isso que
tão sublimemente funciona o argumento de quem é carente de “fé” (traduzindo:
quem não comprou os óculos 3d, quem não puxou o fio da meada, quem não se
acomodou no cavalinho azul do carrossel) não pode entender essas coisas. Pelo
menos nisso se tem razão – mas só na afirmação, e não no juízo de valor decorrente
dela...
Eu não quero mal a Lutero. Pelo contrário, sou grato a ele. Alguém tinha de fazer o
serviço, e só não foi Erasmo, segundo Hans Küng, porque teria fugido à luta, e, na
minha opinião, já disse, não foi um João Hus, porque não tinha lá seus príncipes –
mas também não, seus camponeses... Quero tomar tim-tim por tim-tim tudo
quanto Lutero estabeleceu como princípio da Reforma – o Lutero antes da igreja
luterana e a Reforma antes da Reforma. No que nos interessa aqui, nada melhor do
que o princípio do livre-exame das Escrituras. Quero agarrar-me a esse princípio com
a alma “protestante” que cuido ter, e quero agradecer a Lutero por ter dado a sorte
de ver-se em torno das reunidas condições para gritar para além do muro (ainda que
rapidamente tenha ele mesmo feito seu próprio curso de construção civil). Mas não
quero senões tradicionais, como a cristologia nicênica a título de chave-
hermenêutica. A(s) Cristologia(s) que posso assumir está(ão) no Segundo
Testamento (não no Primeiro, muito menos, a rigor, nos concílios, bons, mas para
refletir a partir deles, e, até, contra eles).
Vou devagar aqui, porque é terreno escorregadio e quente. Quanto você cita Lutero
a afirmar algo como “pregar a Escritura em seu sentido único” (p. 161), com uma
gota de bom-senso, talvez duas, que seja um copo, podemos ver logo que Lutero
fala de interpretação. O caminho é: opção doutrinária  narrativa bíblica  púlpito.
Lutero já sabe qual é a interpretação correta, e por isso pode pregar o “sentido único
da Escritura”. Mas é “único” no sentido de diferente do das “cobras”, para me remeter
à sua citação dele. Veja que, já aí, Lutero engole o mel que vomitara – princípio de
livre-exame, para que todos sejam livres para chegar ao “sentido único”? Sim, eu
postulo, também um único sentido para a Escritura – e esse único sentido só pode
estar em dois lugares, e em um único momento. O único momento é a fala, não a
escrita, porque a fala é fechamento e clausura de sentido, e a escrita, abertura e
polissemia; os dois únicos lugares são, ou o escritor enquanto fala, ou eu mesmo,
enquanto falo eu mesmo a partir da minha leitura do texto (= tradição). Minha
opção é pela fala do escritor sagrado; o preço que pago é seu silêncio tumular; o
método que uso é a desesperante tentativa histórico-social de recuperar essa fala, de
reconstruí-la, mercê de metodologias inventadas mesmo para tentar isso. Consigo lá
meus resultados, publico-os aqui e ali, mas nunca poderia, em sã consciência,
malgrado partir do pressuposto de que só haja um único sentido nas Escrituras – o
do autor sagrado, enquanto “fala” – que a minha interpretação, que a minha
publicação tenha, necessariamente, alcançado esse sentido único. É uma questão de
honestidade metodológica. Fosse, contudo, o lugar escolhido o meu próprio
pronunciamento hermenêutico, então eu poderia dizer mesmo, com presunção, que
esse é o único sentido, porque o sentido quem o cria sou eu, é meu, e, depois da
trindade patrística, é meu, só tem ele, e o de todos os demais é erro e sombra.
Assumir a História é assumir o silêncio absoluto e a fala relativa. Aceito os dois. E
pressinto que seja assim que Deus lida comigo...
Vemos, você e eu, a Reforma com olhos diferentes. E eu vou arriscar um palpite.
Você considera a Reforma uma pousada para a teologia que confessa, antes de parar
definitivamente na Escritura. Você, contudo, sabe que a Teologia é o que o método
é: “diga-me que método usas e eu direi qual a tua Teologia”. Você defende o
método histórico-gramatical, que, aceito, seja gramatical, mas, não aceito, não é
histórico. É no máximo um método que adotou palavras como “história”, “intenção
autoral”, “sentido histórico do texto”, mas só porque não tem escapatória, porque
“história” mesmo ele não quer, mas só o sentido profundo, o mesmo que Lutero já
adotou, plasmando em método sua experiência pessoal – no fim não é sempre assim,
e também aqui? Você é um pastor escrevendo, Nicodemus, mas um pastor
comprometido com uma escola teológica e com uma tradição doutrinária, com um
sistema eclesiástico e com uma cultura espiritual, e que acaba confundindo sua
vocação para o pastoreio das ovelhas com uma vocação para a apologia das idéias,
porque enfiou na cabeça que se pastoreia essa gente com a apologia das idéias. Você
não tem desculpa! Quem se mete a escrever sobre História da Interpretação (da
Bíblia) sabe que a mania de achar que ser crente é saber doutrina, nasceu na
Ortodoxia Protestante, quando os reformados, e quantos! cada um mais do que o
outro, resolveram a questão de afinal quem era mais reformado do que o outro,
concluindo que o era quem tivesse a doutrina mais lapidada, mais lustrosa, mais
redonda, sempre sabendo, nós (e eles?) que cada qual sempre dirá: “é a minha!”.
Não, para mim a Reforma não fez revolução, fez divisão e fragmentação, e, ainda
assim, de “poder”: povo católico, povo protestante, tire-se-lhe uma abreugrafia e
não saberemos identificar um do outro, salvo se um entrar com sua imagem de São
Jorge e, o outro, com seu livro. Tantas quantas sejam as igrejas protestantes, ainda
vivemos, todos nós, exatamente com a mesma estrutura católica, somada, algumas
vezes, mais ou menos acentuadamente, a arrogância individual, que lá, é só
eclesiástica. Mas como não podemos transbordar-nos de nós mesmos, nós, em cuja
boca mínima fala a única Teologia, a única doutrina, a única... a única...?
Indiscutivelmente! Como não nos damos conta?
Por que não queremos. Temos a doutrina pronta. Temos Deus nos púlpitos. Temos
as massas sob controle [?] (e é trágico-cômico ver que, quando um novo Amós se
levanta, logo funda outro Templo!). Temos o Espírito. Temos tudo. Que mais
queremos? Colocar, metodologicamente, tudo isso em suspeição? Permitir ao outro
perguntar, afinal, se não é minha vontade de crer e de poder que me faz manter tudo
isso inquestionavelmente imaculado, desde que não haja questionamento? Dar o
braço a torcer, e confessar que somos tão católicos quanto os católicos, cuja
Tradição fala mais alto? E já não arranjamos um jeito de demonstrar que tudo isso
nasce, divinamente dirigido, da fonte – não é o que você diz na página 167, no
segundo parágrafo de sua “Conclusão”?
Se o que você queria era uma apologia, Nicodemus, tem-na bem redigida. Mas não
precisava, porque o serviço já foi feito, e posso comprar Diálogo com Trifão ali
mesmo, na livraria, ou lê-lo na Internet. (e não me venha dizer que o que ele faz é
alegoria, e o que você faz, não...). Mas se você queria convencer a quem não
concorda com seus argumentos, de que eles têm, afinal, validade, aí acho que não
precisava ter escrito. Não convence. E, se além de se fazer convencer, de defender o
método histórico-gramatical (que seria um excelente método, se abrisse mão do
controle teológico – mas aí viraria, ora vejam! o método histórico-crítico, que você
condena), você queria demonstrar a invalidade, a desnecessidade, a perniciosidade,
do método histórico-crítico, salvo para seus ouvidos, fez ainda menos melhor
serviço. Saio de seu livro mais convencido de que meu maior inimigo sou eu mesmo,
e minha gana de me agarrar a meu próprio braço para salvar-me das ondas.
Sinto, às vezes, que tão pequenos somos, mínimos mesmo, meninos e meninas de
Jesus, bebês a dar os primeiros passos, o Pai se nos coloca ali, a dois passos de
distância, e tem ele os braços abertos, e diz “vem”. Damos até um primeiro passo,
“vamos”, mas ele dá um pra traz, e então, num movimento que para nós quantas
vezes está imperceptível, agarramo-nos ao sofá aqui do lado, ao pé da mesa, à
mesinha de centro... A diferença entre nós, essas crianças, e as crianças reais, é que
elas são marotas: fazem isso, olham pro Pai e sorriem. Nós, não, nós nos agarramos
ao pé da mesa e o chamamos de “papai”. A Teologia é o pé da mesa, Nicodemus, é
só um pé de mesa. O Pai deu um passo atrás, não vês?
Temos ainda tempo? Para os puritanos? Quero dizer, para um comentário seu? Ei-lo:
“um problema que aparecia às vezes na interpretação de alguns puritanos era o
permitir que sua exegese fosse controlada por um aspecto teológico dominante” (p.
178). Sim, mas diga-me que instância eclesiástica, que denominação, desde as
primeiras até as atuais, que não tenham caminhado por esse caminho? Pelo fato de
sermos “protestantes” já estamos culturalmente determinados por uma obrigação
teológica que nos vem de cima, como uma verdade incontrolável, que, contudo,
alguns controlam... Pelo fato, depois, de sermos batistas uns, presbiterianos, outros,
metodistas, aqueles, anglicanos esses, pentecostais uns, neo, outros, por essas simples
sobredeterminações de “fé”, onde é que a exegese é livre, meu amigo Nicodemus? Se
em 1962, Hans Küng podia dizer que a dogmática ainda nem sequer levara a sério a
exegese (e basta ler algumas dogmáticas para ver que até as assassinaram), não parece
que 40 anos mudaram a história, pelo contrário, acirram-se as posições radicais da
“fé”. A exegese ainda chegará a dizer à dogmática que não precisa temer, desde que
ela de fato ame a verdade... Não que a exegese a tenha, mas é justamente porque ela
sabe que não...
Deixo o capítulo frustrado. Queria ver a “revolução”, crer nela, mas só se à custa dos
próprios olhos. Ainda mais quando você considera que a “Igreja evangélica deve
retornar à doutrina fundamental da Reforma, Sola Scriptura” (p. 181), porque, para
melhor pensar sobre você, terei de admitir que não se deu conta de que a Reforma
apenas trocou a basílica pelo livro, mas que quem se senta em cada trono ainda são
os mesmos, e as aparências não enganam não...
Para deixar o capítulo, apenas dizer que aquela sua estratégia de reservar a
“iluminação” do Espírito para o(s) ponto(s) fundamental(is) da fé, deixando de lado
a compreensão das “matérias secundárias” (p. 181) foi genial. Digna dos melhores
profissionais de marketing da atualidade. É sua? Claro que, como sabemos, trabalhos
de marketing podem funcionar de duas maneiras: para vender tudo quanto se possa
imaginar, ou para análises críticas e premiações nos festivais. Não vou “comprar” o
produto que você vende – e que o IBOPE não me entreviste a respeito... Daria,
contudo, um troféu para essa sua peça.
Adentramos a modernidade: virá ar fresco daí? Passo bem pelas páginas 183 e 184,
ainda que não tenha deixado de notar que, ao lado dos nomes, você analisa as
atitudes: “alguns (...) não eram ateus” (p. 183), “não eram necessariamente
agnósticos” (p. 184). Colher de sopa ou de chá? Sigo sua estrutura: “rejeição de
relatos miraculosos” (p. 184), “distinção entre Fé e História” (p. 185), “erros nas
Escrituras” [não fui capaz de achar a referência bibliográfica de Semler e Hase] (p.
186), “exegese controlada pela razão” (p. 187), “mito” (p. 188), “separação dos Dois
Testamentos” (p. 188s) e “a influência dialética de Hegel” (p. 189). O seu “leitor
ideal” finalmente constatará que o método histórico-gramatical está certo, e o
histórico-crítico, posto que “liberal”, errado. Bom trabalho. Mas o leitor crítico não
se deixará desanimar, e continuará em dúvida...
Aí você entra na minha praia, com o que eu quero, de um lado, indicar para a
metodologia histórico-crítica, e de outro, dizer “do que eu gosto”. Quanto à crítica
das fontes, você ajuizou: “por causa de seu caráter altamente especulativo e pela falta
de unanimidade entre seus proponentes, a crítica das fontes está hoje largamente
desacreditada” (p. 192). Alto lá, Nicodemus! Você está fazendo o leitor confundir
“crítica das fontes” – metodologia – com “Hipótese Documentária” – resultado dela.
Wellhausen construiu um significativo castelo, que está ruindo justamente porque
não é dogma, e pode cair, sem medo nem culpa. E tudo quanto cai é melhor do que
o que não cai, na pesquisa, porque, do que cai, temos, então, a certeza de que não
estava bem de pé, mas do que está de pé, só sabemos que não sabemos se está errado,
e nada mais. Mas a crítica das fontes vai muito bem obrigado, e a exegese histórico-
crítica ainda se serve dela – abdicar dela é partir do pressuposto de que não há fontes,
o que só se saberá depois de se descobrir.
Você fala sobre a “Crítica da Forma” (p. 192s), mas não é desrespeitoso aí, como foi,
anteriormente, quando disse tratar-se de “esquartejamento” o que a pesquisa
apresentou sobre a composição de Isaías (p. 192). Então fala sobre a “Crítica da
Redação” (p. 193s) e, ué?! Acabou!? Já?! Puxa vida, eu que esperei tanto... Do jeito
que você apresentou o método no início da obra, advertindo sobre o seu caráter
pernicioso, preparei-me com couraça e capacete, massa e cavalo, para me defender:
esperava um dragão, uma besta horrível, daquelas que se podem ver nos jogos de
computador, mas qual?! Os montes entraram em trabalho de parto, e pariram um
rato! E feio! Mas fraco... Tirando aquele “esquartejamento” e aquela crítica enviesada
e escamoteada, e o ar de superioridade cristã com que o método foi analisado, nada
além do que se podia esperar. Mas tão pouca coisa dita. Nenhum esclarecimento
sério. Um punhado de parágrafos, e eis reduzida a maior construção hermenêutica
desde a Reforma, e a maior caixa de ferramenta histórico-metodológica já
desenvolvida, a uma pseudo-avaliação de quantas páginas? 12: 183-194. Pena.
Quanto a sua síntese a respeito do “Cristianismo Liberal” (p. 194), melhor entrevistar
um cristão liberal e saber dele mesmo suas pressuposições, porque numa lauda só
deve ser muito difícil dar todos os detalhes sobre uma expressão teológica de
envergadura tão ampla quanto a Teologia Liberal. Não desmereço seu esforço de
síntese, mas considero uma tarefa arriscada demais.
Quanto à conclusão das 12 páginas, fica por sua conta a afirmação de que não se
produziu um resultado satisfatório na tentativa de unir o racionalismo com a
exegese bíblica (p. 194). Minha opinião é justamente contrária à sua – penso que
nesses últimos 100 anos se caminhou mais do que nos 1900 anteriores, se com
“caminhar” queremos dizer produzir conhecimento histórico seguro sobre as
Escrituras. Mas é só o começo, e pode esperar que mal se começou a levantar as
pedras, a ver o que têm debaixo, e, aposte, elas serão levantadas, quer se goste disso
ou não. Eu gosto. E, se você não considerar absurdo de o dizer, digo-o: acho que
Deus também, porque penso que Deus não teria medo disso. Afinal, sejam as pedras,
sejam as mãos que as levantam, seja a curiosidade desses nervos, a tudo os fez Deus –
eu creio. Vamos levantar pedras, porque agora podemos...
Você acha também ruim o afastamento metodológico do “sobrenatural” do estudo
bíblico. Eu acho necessário, imprescindível, que assim seja. Pode-se orar para estudar
a Bíblia? Sim, e até é bom. Pode-se crer em Deus, para se ler a Bíblia? Sim, e até é
bom. Mas deve-se ler a Bíblia com a cartilha do catecismo do lado? Não, não se pode
– não se deve. Quer dizer, pelo menos não se o que você quer é estudar “a Bíblia”.
Você sabia, Nicodemus, que ali na UERJ, na Faculdade de Física, é, lá onde se estuda
física quântica e astronomia, essas coisas que, desde Einstein deixaram o mundo de
cabeça para baixo, uma monografia de bacharelato defendida versava sobre o
conceito de Deus em filósofos europeus dos séculos XVIII e XIX? Sabe por quê?
Porque a física descobriu que até os pensamentos cosmológicos mais avançados, as
teorias mais avançadas, todas elas refletem o conceito sobre o sagrado de uma época,
de uma pessoa. Não, Nicodemus, não se quer afastar o Sagrado da Bíblia, mas sim, e,
tomara, logo, a sua leitura a partir de uma determinada Teologia, uma determinada
Cristologia, uma determinada doutrina, tomada como “a” própria Bíblia, “a” própria
Palavra – numa palavra, o que não se quer é que, disfarçado de Deus, e usando tiques
de espiritualidade afetada, a dogmática volte a controlar a pesquisa bíblica, não
depois de às duras penas a exegese ter se emancipado. Dias chegam, contudo, em
que, em paz, a dogmática e a exegese vão sentar, as duas, juntas, à mesa, para
dialogar. É o que está tentando? Ou quer pôr a exegese a serviço da Teologia de
novo, para servir à mesa, que sentada a ela não lhe cairia bem a posição?
Voltemos ao seu texto: lá vem você a dizer que a exegese ataca a autoridade das
Escrituras. Não! O que fica sob suspeição é a autoridade da(s) “igreja(s)” – a sua, por
exemplo – de querer dizer que só uns e outros têm capacidade de interpretar a Bíblia,
com o que se quer dizer “chegar à mesma compreensão que você”. Não, isso não. A
exegese não tem compromisso com a dogmática, porque a dogmática é “pré-
histórica” (louváveis e parcos esforços se começam a fazer), e ainda não se
converteu. Mas eu lhe afianço, Nicodemus, que um exegeta gasta mais tempo sobre
a sua Bíblia do que qualquer dogmático. E isso ele faz por puro amor, pura paixão, e
eu esperava que você entendesse, mas suas palavras denunciam que não.
Você ainda entra na via de Agostinho para cercear que a exegese vá a Gênesis: ela não
pode, porque, segundo “Gênesis”... Ora, mas se ainda resta dizer do que Gênesis está
falando, como se pode dizer que a exegese não pode ir lá? Só fazendo o que você faz.
Não entendo. Quer dizer, entendo, mas não gosto disso que entendo. Teologia na
frente da exegese é nisso que dá. Se a Teologia estivesse mesmo interessada em
escavar a história, ela teria como perguntar a 1 Co 2,14 e 2 Co 10,5 (que você cita na
página 195, para sentenciar a crítica) do que é que, e como é que tais narrativas estão
falando? A Teologia que você usa converte-se em Deus, e você a lê no termo “Deus”
dessas passagens. A narrativa é um portal tridimensional para o céu. Paulo é pretexto.
Meu ouvido, acéfalo!
Ia você já ficando feliz na página 195: colocando escorpiões a brigar com escorpiões.
Pelo discurso, percebo que trará à cena o estruturalismo e a chamada “hermenêutica
filosófica”. Talvez tenha melhor jeito com elas do que com a exegese. Pago pra ver.
Pulo seus conceitos de pós-modernidade (p. 198s), porque aqui não há dois que se
entendem, mas fico com idéias que você usa, ainda que muito superficialmente
trabalhadas, como a “morte da razão” – não é morte, é reconhecimento da condição
integral humana não-disjuntiva (Edgar Morin); o “abandono da neutralidade” –
estamos no meio da crise, Nicodemus, mas já leste Relações de Força, de Carlo
Ginzburg? “A defesa do inclusivismo” – um calo no sapato, não? Você acredita que o
Microsoft Word não reconhece os termos “teóloga” e “inclusivismo”, mas reconhece
os termos “teólogo” e “exclusivismo”? Será um cristão ortodoxo, o Word? “Conceito
de politicamente correto” – e de novo a questão dos absolutos...
Você fala da “hermenêutica” moderna como se ela fosse uma unidade. Não é. Você
quer considerar a hermenêutica da pós-modernidade – não reconheço a
terminologia, só a uso – como a ressurreição da alegorese que atribui a Filo (p.
200). Mas você sabe que há correntes diferentes dentro da tradição hermenêutica do
século XX! Até sabe que existe a Teoria Literária e suas proposições irreconciliáveis –
intentio auctoris, operis, lectoris (p. 201). Você fala, aí, de “deslocamento de
sentido”, mas não é, são proposições díspares, cada qual afirmando-se como viável, e
cada qual, enquanto viável, suprimindo a outra. Não houve “deslocamento” da
intentio auctoris para a intentio lectoris, como você diz; o que houve foi uma
variedade de tomadas de posição – exegese (auctoris), estruturalismo (operis),
eisegese (lectoris).
Seu esquema constante da página 201 me parece equivocado. Dizer que a Reforma se
baseia na intentio auctoris é um pouco demais, e só perde em extravagância diante
da afirmação de que a metodologia (prefiro “o instrumental”) histórico-crítico tem
pacto com a intentio operis. Onde você parece ter razão, a meu ver, é quando coloca
o que você chama de Novas Hermenêuticas relacionando-se com a intentio lectoris.
A Reforma é, antes de tudo, e desde sempre, um acordo com a intentio lectoris, a
intenção do leitor. É a experiência cristã pessoal e mística, mediada pela Teologia
cristológica de Nicéia que se torna olho e boca da leitura reformada – ela e só ela,
que outra não há, e se há, é sombra e erro. O instrumental histórico-crítico não tem
nenhuma ligação teórica com a teoria da intenção do texto – essa nem Croatto
admitiria, porque, para ele, o máximo possível seria denunciar a exegese como
eisegese (= intentio lectoris). Você deveria ter colocado ali as correntes
estruturalistas da metade do século XX – não o método histórico-crítico.
Finalmente, concordamos – as hermenêuticas contemporâneas, se com esse termo
vamo-nos referir a uma série fragmentária de proposições que se sustentam na
afirmação teórico-filosófica dos corolários do princípio da incerteza, então, sim,
metodologicamente elas mesmas se apresentam como – e nisso merecem todo o
nosso apreço – comprometidas com a intentio lectoris, são honestas em o declarar, e
nenhuma delas assume um suposto discurso de base divina, nem sequer histórica,
mas são todas, antes, expressões conscientes de vontade de poder, e se apresentam
como tais, e têm direito, porque a algumas dessas expressões se coibiu a palavra
durante muito tempo.
Você tem razão quando denuncia que há uma certa confusão no meio da pesquisa
no que concerne à questão de se decidir pela possibilidade ou não de se chegar ao
conhecimento histórico. Eu mesmo tenho lido artigos em que não se sabe
exatamente em que pé se firma o articulista. Diria que há um medo de positivismo
rondando o cenário – e num Brasil universitário positivista desde o ventre isso é
compreensível. Lá fora, contudo, também se dança ora num pé, ora no outro – e se
são dois dançarinos, um a dançar samba, o outro, bolero, tudo bem, porque cada
um deve adotar os pressupostos que lhe parecem adequados – o que não parece
conveniente é o mesmo dançarino, na mesma dança, dançar com um pé, tango, e
com o outro, samba. Resta, contudo, considerar que não se trata de a pesquisa não
saber em que pé estão as coisas, mas de discernir, na pesquisa, espaços que trabalham
com a hipótese da possibilidade de reconstituição histórica minimamente
controlada, e espaços que deixaram de lado a tentativa.
Sua avaliação do trabalho de Brevard Childs merece nossa atenção (p. 201s). Você o
pega para boi de piranha, mas ainda assim pode haver luz aqui. É de fato um recuo da
crítica diante da confusão em torno das “fontes”, querer agarrar-se, agora, ao
“produto final”. Mas essa é a posição de um pequeno grupo, importante, é verdade, e
mesmo na Alemanha já se vão perfilando adeptos da recuada estratégica. Contam-se
como múltiplos desse, contudo, os outros grupos que continuam tentando avançar
no front, e tantos que se torna cada vez mais difícil tentar acompanhar a produção
exegética internacional. Você coloca a questão, válida para a estratégia do recuo de
Childs & Cia., como se fosse sintomática da exegese contemporânea – mas não é. A
pesquisa veterotestamentária alemã, canadense, inglesa, norte-européia, de Chicago,
e daqui e dali, onde nasceram espíritos independentes e fora do eixo central,
continua denodadamente a cumprir o papel que cabe aos desbravadores – de se
cansar à exaustão.
Também há certa perspicácia sua na análise do trabalho de Severino Croatto e de Boff
(p. 202). Contudo, há um velho Croatto (o de 1984, o de Hermenêutica Bíblica), e
o dos últimos trabalhos na RIBLA, aqui desde seu trabalho sobre releitura nos
profetas, até suas investigações sobre as inscrições de Kuntillet 'Ajrud, sem deixar de
lado suas contribuições indispensáveis à Fenomenologia da Religião. Eu mesmo
guardei minhas críticas ao Hermenêutica Bíblia, mas me desdobrei em elogios ao As
Linguagens da Experiência Religiosa. Sua morte em 26 de maio próximo foi um dia
triste para a América Latina e para a pesquisa bíblica internacional. Eu
particularmente tive um dia muito triste, na quarta-feira, quando fui informado.
Quanto a Boff, não é um biblista, mas um teólogo, e deixo para os teólogos
defenderem-no – se há defesa. Apenas poderia dizer que a década de 80 foi a década
Boff, e a de 90 ainda teve de aturar por um bocado de tempo.
Você conclui o capítulo, novamente, advertindo da ameaça – és mesmo um pastor
zeloso, resta saber de que. Suas palavras dizem que “existem sérios perigos (...) para a
vida das igrejas cristãs” (p. 203) advindas do avanço da hermenêutica da pós-
modernidade, porque elas tornam a “mensagem das Escrituras inacessível à Igreja” (p.
203). Não são as Escrituras, contudo, que devem se preocupar, mas a dogmática – e
não a católica, a protestante. Mas disso já falei mais do que devia...
E não é que você se confessa um pregador? E afirma: “o pregador pode, no máximo,
pregar apenas uma interpretação sua do texto, mas jamais a verdade divina” (p. 203),
como se isso fosse uma catástrofe, o day after, quando, para mim, nenhum pregador
jamais subiu a qualquer púlpito e jamais pregou qualquer outra coisa que não a sua
própria interpretação. O que somos, Nicodemus? Oráculos? O que são os templos,
Nicodemus? Delfos? Não, amigo, oráculo, só a Bíblia – e só se fechada: depois de
aberta, é hermenêutica mesmo. Delfos, só o Espírito, e em silêncio, porque, depois
de aberta a boca humana pela qual ele falaria, é só ruído. Saiamos da caverna, sim,
como Elias, mas como ele, cubramos a cabeça, antes que, como com Moisés, Deus
mesmo meta a mão no buraco e nos bote a olhar suas para as costas dele...
Você quer base objetiva (p. 203)! E tem-na: a Tradição! Faça como os católicos, mas
mesmo eles já têm seu Vaticano II, e o tempo urge... Logo logo o trem apita na
curva, Nicodemus, meu amigo, porque o tempo não pára. Atrasa. Tem já 500 anos
de atraso, mas azarões vêm correndo por fora. A fita azul, de quem será?
E para concluir e sair dessa página, porque não fazemos de conta que todos os
crentes são seus próprios sacerdotes, e não lhes deixamos escolher? Hum? Quando
converso com velhinhas repletas de cãs na cabeça em curso bíblicos, tem de ver seus
olhinhos... No fim da vida, livres (algumas) das condicionalidades institucionais-de-
CPF, sabendo-se já cúmplices de suas vidas, a caminho do lar, que fazem senão
morrer de rir de tudo isso, divertindo-se? Uma me disse uma vez: “Ih, meu filho... Li
tudo errado a vida toda”. E eu pensei – tivesse lido errado, como podia ter tanta
lucidez a essa altura?
Abre-se o capítulo 14 na página 206. Daí até o fim são mais dois capítulos: 70
páginas. Serão minha Babilônia? Mas vou caminhar por elas. Você pretende
estabelecer alguns pontos de fundamentação para explicar a situação atual da
hermenêutica, as vertentes, as exegeses – tudo isso (p. 206). Brincando com você, eu
chamaria seu capítulo de “Vamos aos culpados!”.
O primeiro deles você diz ser Schleiermacher (205-205). Não estou à altura de fazer
retoques em sua apresentação, senão sugerir que, na página 207, quando você afirma
que “Schleiermacher abriu caminho para a concepção liberal posterior de Jesus como
um homem divinamente inspirado”, talvez devesse ter informado, além disso, que se
trataria, na verdade, a estar você certo, da recuperação de uma das cristologias
presentes em o Novo Testamento, conforme se pode depreender da excelente
apresentação que Roque Frangiotti faz das cristologias das igrejas primitivas
depreensíveis do texto do Novo Testamento, bem como que essa questão era das
mais quentes em Nicéia, tendo levado à necessidade de Capadócia e Calcedônia, dada
a ausência absoluta de unanimidade espontânea na cristandade de então sobre o
tema. Se Schleiermacher retorna ao tema, não o cria, apenas o recupera da Tradição.
De Schleiermacher você salta para Bultmann (e gasta mais com ele do que com
aquele: p. 207-211), e eu não entendo o salto. Bultmann é antes fruto, do que raiz,
eu penso, e um fruto dos mais conscientes do seu próprio amor pelo kerygma, a
ponto de sacrificar a História por ele – como faz a Teologia “confessional”, eu penso,
sendo que ele confessa. Sua análise na página 211 não é original, e já teve quem a
respondesse. De minha parte, penso que a única crítica que me cabe fazer a Bultmann
é que ele não resolveu o problema central – o problema histórico. Ele o contornou.
Mas ele o contorna, para ao contrário do que você diz, ficar exatamente com o que
você afirma que ele despreza – a mensagem, e é só na mensagem proclamada que ele
entende seja possível falar seriamente sobre o conteúdo do kerygma, em se tratando
do homem/mulher modernos. Ele afirma que inúmeros pontos que você menciona
na crítica são míticos, e pretende que se possa acatá-los no kerygma, mas não na
História. Sua avaliação é a de que é na História que se tem de acatá-los, ou se
apostata. O problema é que você vai dizer, e pronto, vai ouvir você quem já desde
sempre o ouviu – mas se se sentar à mesa com quem está inteirado existencialmente
dos problemas levantados também por Bultmann, o máximo que você terá para falar
é que não “crêem”, e sairá encomendando suas almas. Seus argumentos, contudo,
não demoverão um centímetro da posição em que estão, porque você simplesmente
não tem argumentos além daqueles que tem uma criança cujo colega grandalhão da
escola quebrou a sua pipa: acusar de que quebraram sua pipa. Gostaria sinceramente
de saber como Jesus lidaria com Bultmann. A cena que mais me parece adequada
para incluí-lo, como paradigma, é a da mulher siro-fenícia, diante dos argumentos
da qual Jesus faz exatamente o que a Teologia confessional não está preparada para
fazer, mas só porque desde sempre não o quer – se quiser, arranja um jeito.
Você agradece ao meu colega, o Franklin Ferreira, pela colaboração no capítulo
sobre Barth. Não estou à altura de comentar seu texto, depois dessa mãozinha.
Franklin está fazendo uma resenha de seu livro para a Fides Reformata. Esperemos.
Esta nem sei se sai, muito menos onde. Mas certamente nossas opiniões a respeito de
seu livro serão diferentes, contrárias mesmo, porque Franklin responde pelo método
histórico-gramatical, e, eu, afeiçoei-me pelo método histórico-social, com o recurso
das ferramentas do método histórico-crítico. Somos amigos, os dois. Não nos
mordemos, ainda. Talvez consigamos provar um ao outro, e quem sabe aos alunos,
que é possível a convivência e a paz. Se ele e eu falharmos nessa tentativa, nossos
sonhos de uma fraternidade cristã estarão em palpos de aranha, e não teremos nada
mais a dizer a qualquer aluno que nos dê o prazer de nos ouvir.
Mas não me sossego. Seu texto diz que a revelação grita pela História – pela
historicidade (p. 215). Eu tenho de concordar, se é que você fala da mesma coisa que
eu. Mas eu não acredito que seja necessária uma revelação proposicional, salvo, claro,
para a sustentação de uma Teologia ontológica. Como minha Teologia é
fenomenológica, não careço de defender uma revelação proposicional, ainda que me
tenha custado elaborar a hipótese de uma revelação não-proposicional, cósmico-
histórica, que, trocando em miúdos, significaria o processo através do qual Deus
escolheu determinadas interpretações humanas para compor sua revelação. Uma
revelação humana (a Palavra) e uma revelação humana (o Filho) seriam um belo
par, não acha? Mas entendo que a Teologia ortodoxa (não a da Igreja Ortodoxa
[talvez], mas a da Teologia confessional evangélico-protestante que percebo na sua
fala) não esteja preparada para tanto, e só tenho a desejar que não seja julgado por
isso.
Suas duas últimas linhas nessa conclusão sobre Barth devem me fazer pensar, eu, que
gosto da corça do Sl 42, ainda que tenha ouvido dizer que brasileiro não saiba nem
que bicho é isso (toma-se o brasileiro por inepto?): “um encontro significativo com
as realidades divinas das quais o texto dá testemunho” (p. 215) – esse seria o acordo
entre Barth e Ricoeur. Mas elas, as linhas, ou serão Barth e Ricoeur?, nos levarão para
muito longe. Apenas deixar-me pressentir da sensação de que, afinal, no fundo, não
é ao Sagrado que todos buscamos? Se a única forma de o encontrar for a dogmática,
malditos séculos todos eles desde o XVI (ou será desde o X/XII?) que nos meteram
no sangue as plaquetas da História! Mas se, como penso, nem de longe a dogmática
tem o mapa da mina, o Sagrado não cabe, já disse, em Nicéia, nem em Dort; e se,
como gosto de crer, desde a Fenomenologia, desde Kant, Husserl, Otto e Eliade,
nessa ordem, daqui para lá, o Sagrado manifesta-se, escondendo-se, toca-nos, mas
como, entre si, os amantes, em Feitiço de Áquila, então, Nicodemus, abaixe as
armas, acabaram-se os tempos da cavalaria, Dom Quixote cansou-se da manta, e o
melhor a fazer é pôr O Queijo e os Vermes na cabeceira, ao lado da Bíblia...
Vou passar batido por Saussure (p. 215-217). Quanto ao estruturalismo, como
exegeta histórico-social, respondo a ele pela boca de Simian-Yofre, que faz uma
crítica ao estruturalismo em Metodologia do Antigo Testamento, que a Loyola
publicou; enquanto alguém que está tentando pensar, respondo a ele com Edgar
Morin, em O Método 4 (das obras mais impactantes que já li!); e penso nele a partir
do diálogo entre Etienne Charpentier e três estruturalistas, coisa interessantíssima de
ler, no apêndice de Introdução à Análise Estrutural, publicado pela Paulinas. Na área
da linguagem, gosto mais da Análise do Discurso, mas daquela em que o sujeito
ressurgiu do meio das estruturas determinantes da divindade-estrutura, e em que a
História, como em Stephen Jay Gould (Vida Maravilhosa) e Edgar Morin (O
Método), retorna ao mundo dos vivos, depois de um sono induzido... Uma Teologia
confessional que desistisse de afirmar-se como “histórica” talvez pudesse se aliar ao
estruturalismo...
Finalmente, você se dedica um pouco a Gadamer e Derrida (p. 217-222). Dois
verdadeiros monstros da hermenêutica contemporânea, você os expõe com mais
vagar do que a Saussure – talvez porque os “tema” mais, sei lá. Seja como for,
Gadamer seria um bom companheiro seu, se tomassem o Expresso Oriental juntos,
porque pode ser que a proposta de Gadamer seja, afinal, um dar de ombros e um
abraçar, então, a tradição, já que o pronunciamento objetivo sobre um texto é
incerto. Mas sua implicância com essa questão da história a que você teima em dizer
estar vinculado, o que temo não ser procedente, impede você de tentar comer
chucrute em boa companhia. Quanto a Derrida e a sua aventada ligação entre ele e a
“morte do autor” – situação essa em que tornaria a própria produção bibliográfica de
Derrida um delírio –, o biblista do Instituto Bíblico de Roma, Simian-Yofre, já deu
seu parecer, e eu o sigo, por enquanto. Mas também essa teoria deveria ser melhor
avaliada por você, porque a tradição nicênica pressuposta em seus argumentos – mas
não confessada – estaria assim melhor instalada na poltrona.
Olha lá, não disse? Você acaba de achar seu ponto de apoio: “não podemos deixar de
reconhecer o que existe de positivo na obra dos estudiosos mencionados acima,
como por exemplo, o resgate do papel das pressuposições do leitor na interpretação
de um texto, um ponto que já que era afirmado pelos Reformadores, quando
insistiram que era preciso que alguém tivesse, primeiramente, fé em Jesus Cristo, para
chegar ao conhecimento verdadeiro das Escrituras” (p. 222s). Olha aí, Nicodemus,
ficaram todos felizes – você, Lutero e a hermenêutica da impossibilidade de
recuperação da intenção histórica. E nem entendo porque logo depois você critica o
que considera “subjetivismo radical” deles – que outra coisa é a “conversão”
reformada? Quando já ia eu achando que você entrara no clima, lá vem você de
novo com sua insistência literal-gramatical-teológica-ontológica: “para nós, é
possível valorizar-se o papel das pressuposições corretas na leitura da Bíblia, sem
perder de vista a objetividade do sentido e da verdade” (o grifo é seu [p. 223]). Sim,
sim, Nicodemus, assumindo a intenção do leitor, tornando-se um católico – mas
não, como você diz, sendo “protestante” (salvo uma paródia), nem defendendo a
intentio auctoris. Inapelavelmente.
No capítulo 15, você traça algumas linhas sobre o estruturalismo (p. 226-228 –
percebi que nem você nem eu gostamos muito dele). Morrer, como você diz, ele
não morreu, mas arranjou um cantinho para si, como todos merecem ter, e não dá
mais as cartas. Um tantinho de tempo também você concede à “Crítica Narrativa” (p.
228-230). O problema com sua crítica, que eu até endossaria em tese, é que você
estraga tudo, quando afirma que essa metodologia não consegue entender que, nas
narrativas, “Deus é o personagem principal (...), os homens são meros coadjuvantes”
(p. 230). Não posso acatar sua crítica, a partir de sua afirmação, porque, nas
narrativas, Deus é um construto teológico, logo, hermenêutico. Se você me disser
aqui, cara a cara, que trata as descrições de Deus nas narrativas como prontuários
ontológicos, então, Nicodemus, não há nenhuma possibilidade de a gente chegar a
um acordo, porque, para mim, Deus não cabe ali. Que pelo menos a gente não se
morda – acho que é um pacto possível. Não taco pedra em você, quando você
passar, você não me amaldiçoa, e, quem sabe, quando estivermos juntos em algum
lugar, até possamos pagar um o almoço do outro...
Você cospe lá uns rabiscos poucos sobre a teoria do Reader Response (p. 230s), e,
então, faz uma crítica à hermenêutica da Teologia da Libertação. Você menciona
revistas – e faz bem, porque elas têm sido o instrumento de divulgação dos biblistas
ligados à Teologia da Libertação, mas não só deles. Não é verdade que a RIBLA seja
produzida por (só) estudiosos católicos – um número grande de protestantes
escrevem para ela, como o Dr. Haroldo Reimer, luterano, e a Dra. Ivone Richter
Reimer, mas também quantos outros, como a Dra. Nancy Cardoso Pereira,
metodista e, para minha alegria, até o batista, Dr. Ágabo Borges de Souza.
A Estudos Bíblicos também não é apenas católica ou luterana – eu mesmo já tive um
artigo recentemente publicado nela (n. 80), e sou batista, e, se por um lado tenho
profundo respeito pela Teologia da Libertação, profunda admiração pelo militantes
cristãos, católicos e protestantes, que compõem a fileira do rol desses teólogos e
dessas teólogas, por outro lado não me considero um Teólogo da Libertação, porque
me falta sair da cadeira, deixar de ser um mero projeto de exegeta e tornar-me um
pastor de gente, um defensor do pobre, mas qual? falta-me coragem! Acredite-me,
Nicodemus, que se tu e eu formos perguntar aos milhões de pobres auxiliados pela
Teologia da Libertação o que acham dela, sairei eu humilhado de minha inatividade
pastoral.
A América Latina não produziu nada tão grande, tão expressivo, tão considerável,
tão relevante, tão nobre, quanto a Teologia da Libertação. Você não deveria reduzir
seu comentário a um sumário de revistas, como se a Teologia da Libertação fosse
revistas! Devia ter orgulho, como brasileiro, como latino-americano, de fazer parte
da Igreja que produziu esse fenômeno. Além do que, devia atualizar-se na área,
porque desde há muito tempo a Teologia da Libertação, se ainda dedica-se
metodologicamente aos pobres concretos, mesmo a despeito das doutrinas abstratas,
também já ampliou o leque para abordagens tão amplas quanto ecologia, água,
negros, índios, crianças, idosos, mulheres. Gosto de pensar que Jesus Cristo sentir-
se-ia à vontade no meio desse povo, provavelmente mais do que na minha
biblioteca...
E com isso fico por aqui, informando que li seus comentários sobre hermenêutica
feminista (p. 232-234). Privo da amizade da Dra. Ivoni Richter Reimer, e achei feio
você a ter esquecido, e, sendo aluno da Dra. Teresa Cavalcanti (você a conhece?),
fiquei alegre em ler o nomezinho dela na sua página 234. Obrigado pelo carinho para
com ela. Se bem que as feministas não precisam que eu as defenda, porque mesmo
eu tenho que me redimir diante delas... Se eu representasse todos nós, cristãos
machos, pediria perdão em nosso nome. Mas mal represento a mim mesmo, porque
Bel é que dá a última palavra! O máximo que posso é dizer que têm elas um trabalho
ainda longo pela frente.
Seu texto termina com o “Desconstrucionismo” (p. 234-236), que você diz ser
incompatível com o conceito de divindade absoluta (p. 236) [divindade absoluta
onde, Nicodemus, na Teologia?] e com a “Hermenêutica da Suspeita”, onde você
coloca, de um lado, Ricoeur e, de outro, a trindade terrível – Marx, Nietzsche e
Freud. Mas isso já seriam outras tantas páginas...
Seu capítulo 16 anuncia os desafios para a interpretação da Bíblia (241-253). Colocará
confessionais, bons, diante de críticos, maus. Anunciará o fim (onde?) do método
histórico-crítico, com o que eu não concordo. Defenderá a possibilidade de
recuperação da intenção do autor – com o que eu concordo, apesar de que eu acho
que você não leva a sério o programa da intentio auctoris, porque você é teólogo, e
teólogo confessional-dogmático. Retornará ao tema da hermenêutica reformada,
ainda com discurso desviante (p. 250ss). Uma discussão rápida demais, eu diria, mas
você já antecipara suas conclusões quanto ao que tem a dizer aqui.
V. Sobre a Conclusão (p. 255-256)
Sua conclusão tem seis pontos (p. 255-256): 1) sempre se entendeu a Bíblia, virtude
destinada a alguns iluminados (e eu diria que, sim, exegese de verdade, só depois da
criação das ferramentas do método histórico-crítico; concluir que não, aqui, na
página 256, exigiria a demonstração do contrário nas 255 anteriores – e você ficou
devendo); 2) os intérpretes de todos os tempos estiveram sempre presos às mesmas
dificuldades – alegoria ou história? 3) A mudança nas ciências acarreta mudanças na
hermenêutica (se também, e por isso mesmo, na Teologia, quanto mais nela!); 4) o
risco dos reducionismos das metodologias – e você até deixa espaço para elogios a
todas; 5) risco de converter em muro o que é apenas uma porta, cuja chave não
temos (aqui você defende, e eu apoio, a possibilidade de recuperação do sentido
original de um texto [ainda que eu não acredite que se possa demonstrar que se
chegou lá]), e você considere que ela já está na sua mão; 6) desde Antioquia se
pratica o método histórico-gramatical, e, portanto, “esse é o método que
recomendamos e defendemos”.
Minha conclusão sobre seu livro você já sabe: não gostei dele. Não traz nenhuma
novidade – nem na sua perspectiva teológico-confessional, salvo uma burocrática
inclusão das hermenêuticas filosóficas. Se tirarmos isso, não há diferença, nunca,
entre nenhum dos autores confessionais, porque todos têm já a mesma moeda na
mão, e todas a querem vender, sempre, pelo mesmo preço.
Lamentei muito que gastasse tempo falando mal da crítica, porque isso não ajuda em
absolutamente nada o futuro das relações intestinas da igreja. O tempo todo é
sempre luta, conflito, confronto, e você não melhora as coisas. Fazer o que você fez
já teve dezenas que o fizessem, e você não precisava. Talvez pudesse gastar melhor
seu tempo refletindo sobre a possibilidade de confessionais e críticos viverem em paz,
sem precisarem um fazer do outro um reflexo de si mesmo. Ah, mas talvez você
considerasse isso um exemplo do que você chama o espírito pós-moderno do
“politicamente correto”.
Seu livro não fará a igreja dar um passo adiante – e, dependendo de quem o leia, e de
como seja lido, pode até ser que se ande para trás em alguns ambientes onde a crítica
vai sendo tolerada. É que, quando profetas se levantam, os escrúpulos de excitam, e o
caldo entorna.
Seu livro não criou nada de novo – nada na Teologia, nada na Exegese, nada da
Hermenêutica. E, o que me parece mais grave, faz uma leitura a meu ver equivocada
dos principais momentos da História da Interpretação da Bíblia. Seria interessante
alterar o nome da obra, e acrescentar em algum lugar: "apologia”.
Convido-o a refletir sobre todas as questões que levantei. Convido-o a pensar na paz
entre todos nós. E, para isso, a principal coisa que teremos cada um de nós de fazer é
esquecer definitivamente essa idéia maluca de ter o absoluto na mão. Somos
criaturas de Deus, para seu louvor, não para sua diversão...
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Caro Osvaldo ,

Recebi de fato a sua resenha. As críticas que você faz partem de pressupostos
diferentes dos meus quanto à natureza da inspiração bíblica, de revelação, etc.
Portanto, não há o que comentar. Vemos as coisas de forma diferente. Se
fôssemos discutir, teríamos de discutir a nível de pressuposições. No meu
livro digo claramente que o mesmo é escrito a partir do pressuposto da fé
reformada. Como você não é reformado, é claro que discorda dos
pressupostos e das conclusões.

Sim, no Congresso da Vida Nova reiterei todas as posições do livro e minhas


perspectivas sobre o método histórico-crítico.

Obrigado por desejar sucesso na venda do livro. Na verdade, ele tem ido
muito bem. Vários seminários já o adotaram como livro texto.

Fique à vontade para postar sua resenha em seu site.

Fraternalmente,

Augustus

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