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IDENTIFICAÇÃO EM ZELIG

Raquel Lopes Rios1

[...] um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te


rodeia e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica tua mãe, as nossas pessoas, um
desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o
indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes [...] Parece como uma coisa
qualquer. (MÃE, 2014, p. 15).

Introdução

Zelig, obra cinematográfica produzida em 1983 pelo escritor e cineasta norte-


-americano Woody Allen, é um maravilhoso trabalho de fotografia, roteiro, interpretação e
cenografia que questiona vários aspectos da sociedade e do comportamento humano: ciência,
psicologia, política, religião; devido a isso, é considerada uma obra de arte de referência para
várias áreas do conhecimento. O humor com conteúdo reflexivo e questionador é uma marca
registrada desse cineasta, que diz: “O melhor humor é intelectual sem tentar ser” (WOODY
ALLEN apud YACOWAR, 1979, p. 3).
Nesse filme, Woody Allen brinda-nos com a construção de um pseudodocumentário,
criando e organizando elementos de ilusão e também depoimentos de pessoas reais, o
psicólogo Bruno Bettelheim, os escritores Susan Sontag e Saul Bellow, como provas
irrefutáveis da existência de alguém que nunca existiu. Penso que a forma dessa obra já me
diz sobre seu conteúdo reflexivo acerca do “parecer ser”, da imitação, da mimetização e ainda
a mistura de cenas em preto e branco com depoimentos coloridos mais atuais, mesclando
histórias passadas ao presente e remetendo também à atualidade dos temas em questão.
O pano de fundo da narrativa são os “loucos anos 20”, com o florescimento da
sociedade de massas por meio da incipiente indústria de celebridades, dos modismos, de
Hollywood, do Jazz e de toda uma cultura marcada pelo culto às fortes emoções. Nada muito
diferente dos dias de hoje, não?
É nesse cenário que nos deparamos com Leonard Zelig, um homem que
provavelmente seria um anônimo na história se não fosse a estranha capacidade de se
transformar (física e psicologicamente) nas pessoas que o cercam. É o “homem camaleão”
que intriga médicos, neurologistas e psiquiatras que não chegam a um diagnóstico: secreção
1
Psicóloga e candidata em Formação da Sociedade Psicanalítica Brasileira de Minas Gerais (SPBMG)
Mestre em Literatura de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas). raquel.lopesrios@gmail.com.
glandular, origem neurológica, intoxicação alimentar, desalinhamento vertebral, entre tantas
outras determinações patológicas. Enquanto a comunidade de médicos submete Zelig às mais
bizarras experiências envolvendo descargas elétricas e drogas (aqui, provavelmente uma
crítica do cineasta à ciência que transforma o indivíduo em “coisa”, objeto de estudo ou de
consumo), a psiquiatra Eudora Flecther acredita na natureza psíquica da anomalia e luta para
tratar esse paciente. Na fala do narrador do filme: “Só Eudora Flecther se importa com
Leonard Zelig como ser humano” (ZELIG, 1983).
A psiquiatra vai montando o quebra-cabeça, e ficamos sabendo um pouco da história
desse homem nas falas do narrador:

Seu pai era um ator iídiche chamado Morris Zelig cuja atuação como “Puck” em
“Sonho de uma noite de verão” foi mal recebida. O segundo casamento de Zelig é
marcado por brigas constantes. Tanto que apesar de morarem perto de um boliche, é
o boliche que reclama do barulho. Na infância Leonard Zelig é intimidado por anti-
semitas. Seus pais nunca o defendem e o culpam por tudo, ficam contra ele.
Costumam puní-lo trancando-o no armário. Quando estão muito zangados entram no
armário com ele. Ao morrer, Morris Zelig diz ao filho: “Que a vida é um pesadelo
de sofrimento sem sentido”. E o único conselho que lhe dá é que seja econômico.
Apesar de o irmão Jack sofrer um colapso e a irmã Ruth se tornar ladra e alcoolatra,
Leonard Zelig parece se ajustar à vida. De alguma maneira parecia ter conseguido
vencer. E então surge de repente um comportamento cada vez mais estranho.
(ZELIG, 1983).

Quando submetido a sessões de hipnose por Eudora Flecther, Zelig admite, então, que
seu mimetismo é uma tática para se sentir seguro. Ele não quer ser excluído e, por isso, se
transforma na imagem da pessoa mais próxima para poder se misturar aos outros.
Ao longo das cenas, acompanhamos a transformação de Zelig em aristocrata, jogador
de beisebol, negro, índio, caucasiano, psiquiatra, obeso, chinês, remetendo-nos também a uma
representação do sujeito pós-moderno, convocado a ser “camaleão” e a assumir muitos papéis
em um mundo globalizado, ao passo que sofre profundamente de desamparo, perda de
sentidos e de identidade numa sociedade em constante transformação.
Penso que, para além da crítica social e política (cenas que remetem a regimes
totalitários associadas à alienação de si mesmo), Woddy Allen convoca-nos a refletir também
sobre aspectos subjetivos e existenciais, oferecendo-nos um personagem caricato e ao mesmo
tempo fonte de identificação para todos nós.
Hosle (2007) alega que no riso culto há certa identificação melancólica com o objeto
do riso. Que aquele que ri inteligentemente reconhece que a matéria da qual ele ri não é
diferente de si mesmo. O que há de cômico, ao mesmo tempo triste e humano em Zelig? O
que há em Zelig de todos nós, de nossos pacientes e amigos?
Ao assistir ao filme e escrever esse trabalho, lembrei-me de tantas pessoas, de
experiências próprias e da clínica, como, por exemplo, o relato angustiado e recente de uma
paciente adolescente que se questiona por que, diferente das amigas, ela não gosta de beber:
“Seria tão mais fácil pra mim, Raquel, se eu fosse igual a elas. Fico pensando que, se eu
gostasse de beber e ir às festas, não seria excluída assim por elas”. De maneira intensa,
convida-me a viver com ela esse cenário de questionamentos acerca de si e do outro, da dor
da diferença e da exclusão, e a necessidade primordial, universal e humana de ser amada e
aceita.
É claro que, no caso de Zelig, percebo um comprometimento maior, que me permite
supor uma grave perturbação da identidade e estruturação do ego, até conjecturando déficits
na matriz de identificação primária; será nessa direção que pretendo dar sequência a este
trabalho. Proponho, então, sem pretensões diagnósticas, pensar acerca do conceito de
identificação, com autorização do cineasta que, na voz e depoimento do historiador John
Morton Blum, diz: “E os freudianos se divertiam. Podiam interpretá-lo como quisessem. Era
tudo simbolismo. Mas não havia intelectual que chegasse a uma conclusão”. (ZELIG, 1983)
Brinquemos, então, com os simbolismos de Zelig e Eudora Flecther e aprendamos com eles
um pouco mais sobre a clínica e teoria psicanalítica, sobre nossos pacientes e nós mesmos.

1 Conceito de identificação

O termo identificação é utilizado na linguagem comum, filosófica, sociológica e seu


emprego no vocabulário da psicanálise também é vasto. Para este trabalho, irei adotar a
definição de Laplanche e Pontalis (2001), para os quais a identificação é “[...] o processo
psicológico pelo qual o sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e
se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade
constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações.” (p. 226).
Na obra freudiana, o conceito de identificação foi primeiramente invocado no estudo
dos sintomas histéricos, conhecidos como fatos de imitação, em que Freud aponta para a
existência de um elemento inconsciente comum entre eles : “[...] a identificação não constitui
uma simples imitação, mas uma assimilação baseada numa alegação etiológica semelhante;
ela expressa uma semelhança e decorre de um elemento comum que permanece no
inconsciente”. (FREUD, 1996b, p. 184, grifo no original).
Posteriormente, esse conceito foi sendo enriquecido em outras obras de Freud, como
Totem e tabu e Luto e melancolia, nas quais o pai da psicanálise mostra a noção de
incorporação oral associada à identificação.
Em Sobre o narcisismo, uma introdução, Freud esboça a dialética que se liga à escolha
narcísica de objeto para a identificação: o objeto escolhido segundo o modelo da própria
pessoa, sendo o sujeito constituído de acordo com o modelo de seus objetos anteriores (pais,
pessoas do meio etc.).
Os efeitos do complexo de Édipo sobre a estruturação do sujeito também são descritos
em termos de identificação, “[...] os investimentos nos pais são abandonados e substituídos
por identificações.” (FREUD, 1996a, p. 196).
Mas será no capítulo VII de Psicologia de grupo e análise do ego que Freud apresenta
sua formulação mais completa a respeito da identificação, distinguindo três modalidades:

[...] primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um


objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal
libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir
a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos
instintos sexuais. Quanto mais significativo esse algo em comum, mais bem-
sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim ao início de
uma nova ligação. (FREUD, 2011, p. 65).

A importância da noção de identificação é crescente na obra freudiana, principalmente


após a elaboração da segunda teoria do aparelho psíquico, na qual: “[...] as instâncias da
pessoa já não são descritas em termos de sistemas em que se inscrevem imagens, recordações,
conteúdos psíquicos, mas como resquícios, sob diversas modalidades, das relações de objeto.”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 228).
O pai da psicanálise reconhece que está longe de haver esgotado a complexidade do
fenômeno identificatório, e felizmente seus seguidores dão prosseguimento ao estudo desse
tema, esboçando principalmente teorias em que a identificação se dá antes da relação com o
objeto.
Melanie Klein (1991), na obra Inveja, gratidão e outros trabalhos, especificamente no
capítulo Sobre a identificação, explora novos aspectos da identificação, como a identificação
projetiva e a mudança da identidade do sujeito, pela intrusão do objeto. Para ilustrar tal
fenômeno, a autora utiliza a novela de Julian Green e a história do personagem Fabian. Fabian
é um jovem funcionário que está infeliz e insatisfeito consigo mesmo, especialmente com sua
aparência. Ressentido com a morte do pai e indignado com os destinos da vida, ele faz um
pacto com o Diabo, que o seduz com a falsa promessa de felicidade e de poder mágico para se
transformar em outras pessoas. Ele ensina a Fabian a fórmula secreta para transformar-se em
quem quiser; essa fórmula inclui o dizer próprio nome de Fabian, sendo importante que ele
consiga se lembrar sempre da fórmula e do nome dele. Contudo, à medida que vai se
transformando em outros, descobre desvantagens e vai se esquecendo da própria vida, seus
aspectos mais íntimos, inclusive do próprio nome. A história adquire, então, um caminho
inverso e o personagem passa a sofrer pela perda de identidade própria, almejando fortemente
voltar a ser ele mesmo.
A história de Fabian guarda semelhanças com Zelig; embora muitas pessoas deem
depoimentos sobre ele, acompanhamos suas metamorfoses sem sabermos de fato quem ele é.
Quando a psiquiatra Eudora Flecther resolve apostar em um novo manejo de tratamento,
passando-se por ele e agindo como um espelho que reflete a necessidade de adaptação ao
outro em decorrência de um sofrimento e vazio interno, ele parece entrar em um processo de
desorganização e colapso. A cena é intensa, e o diálogo entre os dois é precioso:

Eudora Flecther: Do que estou sofrendo?


Zelig: Como posso saber? Não sou médico!
Eudora Flecther: Não é?
Zelig: Não. Eu sou?
Eudora Flecther: Quem é você?
Zelig: Como assim, quem sou eu? Não sei.
Eudora Flecther: Leonard Zelig?
Zelig: Sim, claro. Quem é ele?
Eudora Flecther: Você!
Zelig: Não, não sou ninguém. Não sou nada! Me segure... Estou
caindo... (ZELIG, 1983).

Ao pedir à psiquiatra que o segure, pois está caindo, Zelig me parece buscar um
contato com um objeto que contenha as ansiedades catastróficas dele, assim como o bebê, em
seu estágio inicial de “não integração”, busca na mãe um objeto sensório que una as partes de
sua personalidade.
Esther Bick (1991), a partir da observação, compreendeu dois estados mentais opostos
nos bebês: quer a sensação de achar-se existindo com certa coerência, quer o oposto, ou seja,
um sentimento de dissolução, descoordenação e aniquilamento. Para ela, ao nascer, o bebê
encontra-se como um astronauta lançado ao espaço sem um traje especial, e que assim fica
aterrorizado com a possibilidade de se liquefazer. Os cuidados maternos, principalmente
amamentação, colo, holding e experiências sensoriais, possibilitarão ao bebê não somente a
integração de seu próprio corpo, a partir das sensações do contorno da pele, mas, sobretudo, a
introjeção de uma função integradora do self. Isso porque, segundo Hinshelwood (1992),
diferente de Melanie Klein, Bick não pensava que o ego herdaria a capacidade cognitiva de
distinguir objetos separados de si próprios, mas que o bebê teria que lutar pela capacidade de
introjetar, e que essa capacidade seria uma conquista conjunta da dupla: mãe e bebê. Bick
(1991, p. 194) explica que:

[...] até que as funções continentes tenham sido introjetadas, o conceito de um


espaço dentro do self não pode surgir. A introjeção, isto é, a construção de um objeto
num espaço interno fica, portanto, prejudicada. Na sua ausência, a função de
identificação projetiva continuará necessariamente inquebrantável, e manifestar-se-
ão todas as confusões de identidade consequentes a ela.

Bick percebeu que o contato com a pele na interação mãe-bebê é o elemento mais
importante nesse relacionamento inicial e é determinante nas primeiras introjeções do ego. O
primeiro objeto é o que dá ao bebê a sensação de existir e, mais adiante, no desenvolvimento,
de ter uma identidade.
A autora entende ainda que o desenvolvimento defeituoso dessa função continente de
pele gera uma ausência de espaço interno comum no autismo. Se o objeto real (mãe) falha
nessa função continente, ou se o bebê o ataca excessivamente em fantasia, ele não consegue
introjetar o objeto continente. Isso leva ao desenvolvimento defeituoso dessa função de pele,
engendrando uma “segunda pele”, por meio da qual a dependência do objeto é substituída por
uma pseudoindependência. Esse fenômeno da “segunda pele” é conhecido como identificação
adesiva, no qual, em decorrência da ausência de um espaço para projetar, há uma adesão aos
objetos pela superfície, por imitação.
Antes de adentrar no conceito de identificação adesiva, volto a Zelig e em como posso
relacionar essa teoria psicanalítica ao simbolismo da narrativa. A falta de dados a respeito da
mãe de Zelig e, consequentemente, da relação primitiva dele com ela permite-me hipotetizar
déficits nessa relação inicial e, assim sendo, na formação de um espaço interno e externo bem
delimitados para a personagem, o que me parece mais claro na imagem em que ele se refere
aos pais zangados e presos com ele dentro de um armário: juntos, misturados e aprisionados
em um espaço terrorífico e sufocador.
Como ressalta Bick (1991) a falha nessa função continente pode se dar por meio do
objeto real (mãe) ou no ataque excessivo do bebê em suas fantasias. Em estados de hipnose,
Zelig relata um ciclo real ou alucinado de ataques crescentes : “Meu irmão me batia. Minha
irmã batia nele. Meu pai batia na minha irmã, no meu irmão e em mim. Minha mãe batia no
meu pai, em mim, no meu irmão e na minha irmã. Os vizinhos batiam na minha família.”
(ZELIG, 1983).
Fantasia ou não, o fato é que Zelig parece não possuir uma pele própria e, com esse
corpo-mente disforme, vai se adaptando, por imitação, inclusive física, às pessoas à sua volta.
Hinshelwood (1992) aponta uma semelhança entre o fenômeno de “segunda pele”
descrito por Bick e o fenômeno de “falso self” descrito por Winnicott. Na descrição dele, o
falso self é um conjunto de características da personalidade, frequentemente bastante rígidas,
que são experienciadas pelo indivíduo como não realmente fiéis a ele próprio, mas
desenvolvidas para ocultar a própria falta de senso dele de um eu verdadeiro. Aqui, lembro do
irônico fato de o pai de Zelig ser um ator, cuja atuação é mal recebida pela plateia,
remetendo--nos também ao fracasso do desempenho de papéis e características da
personalidade “atuadas” no falso self.
Nas palavras de Hinshelwood (1992, p. 410):

Esta falta subjacente de identidade acha-se relacionada à experiência de


aniquilamento. Segundo a opinião de Winnicott, essa experiência provém de um
experienciar prematuro de um objeto externo como separado. Na visão de Bick, a
mesma experiência de aniquilamento provém da experiência deficiente de um objeto
externo que pode ajudar o bebê por manter unida a personalidade dele. As
expressões “segunda pele” e “self falso” originam-se de antecedentes teóricos
bastante diferentes e, dessa maneira, apontam para implicações diferentes para a
prática clínica.

Camilla Biaggi Alvarenga (2015), no trabalho Aderir como forma de existir, tece uma
reflexão sobre o fenômeno da “identificação adesiva” estudado por Bick, Meltzer e
Etchegoyen, buscando aprofundar também acerca da prática clínica e do manejo com
pacientes que utilizam desse tipo de identificação em seu vínculo com o analista. Segundo ela,
como uma forma de lidarem com a angústia de separação, esses pacientes buscam um contato
com o analista como objeto sensório, necessitando mais de sua voz e companhia do que
necessariamente de seu discurso. São pacientes que não se mostram tão acessíveis à
investigação analista enquanto não se sentirem transferencialmente bem contidos pelo
analista. Nas palavras dela:

Isso, muitas vezes, implica ter que lançar mão de interpretações de mecanismos que
rapidamente se tornam evidentes, em prol de um fortalecimento do vínculo entre
analista e paciente. Desse modo, é fundamental a firmeza do setting-pele, o que
requer um lento e contínuo equilíbrio entre os processos de manter-se continente
para o paciente e de efetuar elaborações interpretativas que levem em conta o medo
de cair até morrer. (ALVARENGA, 2015, p. 138).
Percebo que o setting-pele é aqui utilizado como uma metáfora para a mente do
analista, que contém as angústias do paciente; contudo, penso também na importância e
significado do setting (espaço concreto) para esses pacientes. Lembro-me especialmente de
um paciente que, após a mudança concreta do setting (mudança do meu consultório para um
novo local e sala), chega na segunda sessão com uma aparência muito diferente da habitual:
os longos cabelos foram cortados, a barba foi aparada bem junto ao rosto e as roupas também
adquiriram mais cor. Ao notar meu semblante de surpresa ao vê-lo, ele me diz: “Consultório
novo, visual novo”.
No caso de Zelig, observo no filme uma cuidadosa descrição do espaço de tratamento,
nas falas do narrador o plano da psiquiatra Eudora Flecther era “[...] levá-lo para uma casa de
campo, preparar um ambiente neutro, longe da sociedade. Aqui ela irá trata-lo na esperança de
penetrar sua doença única. [...] O quarto branco é cuidadosamente arrumado para a serenidade
máxima.” (ZELIG, 1983). Quarto branco, metáfora de folha branca, espaço de escrita de
narrativas e projeções. Ademais, o fato de ser nomeado quarto e não sala, ou consultório, me
fez pensar no preparo de um quartinho para um bebê que vai chegar, lugar de serenidade e
cuidado com um ambiente em que se darão trocas muito íntimas. Trocas essas que não podem
ser descritas, escritas (como em algum momento é dito pela psiquiatra), tampouco vistas, mas
devem ser vivenciadas de fato. O que nos é confirmado pelo depoimento do psicanalista
Bruno Bettelheim no filme, ao dizer: “Para os dias de hoje as sessões do Quarto Branco
parecerão muito primitivas. Mas na verdade foram muito eficientes ao se desenvolverem
relações pessoais fortes entre médicos e pacientes.” (ZELIG, 1983)
As teorias psicológicas e psicanalíticas sofrem muitas mudanças ao longo do tempo;
contudo, esse filme parece salientar o que há de atemporal e ao mesmo tempo fundamental
em um tratamento: a profunda natureza da relação entre um médico e paciente, analista e
analisando. Nesse sentido, podemos aprender muito com Eudora Flecther, com seu ato de fé e
a aposta no tratamento de Zelig. Ela diz: “[...] não que eu pudesse curá-lo, mas se eu pudesse
tê-lo, com tempo e cautelosamente ser inovadora e criativa eu achava que poderia mudar sua
vida.” (ZELIG, 1983).

Considerações finais

Tempo, criatividade, vínculo... Ingredientes essenciais para promover uma


transformação. De maneiras distintas, não se tratam também disso as teorias psicanalíticas?
Independente da linha teórica que mais nos identificamos, sentimos que com cada paciente
devemos ser capazes de criar uma linguagem comum, um “novo método”, que requer
paciência, tolerância, sensibilidade e fé na psicanálise. Requer uma crença de que, apesar das
deficiências primárias, sejam do ambiente, sejam do mundo interno do paciente, existem
outras chances e vivências capazes de promover novos tipos de relação e identificações.
Assim como nos mostra o filme, vivemos atualmente em um mundo em que a
informação é cada vez mais rápida, a realidade é marcada pelo imediatismo, pela efemeridade
das relações pessoais, pelo espetáculo das redes sociais digitais e por uma lógica de consumo
que valoriza o parecer ter em detrimento do ser, o que evidentemente influencia a
subjetivação do sujeito e, consequentemente, traz mudanças nas sintomatologias que nos são
apresentadas na clínica. Diferente da clínica freudiana, na maioria das vezes reconhecida
pelos sintomas histéricos, chegam a nossos consultórios hoje pacientes que carecem de uma
vida simbólica, que padecem de “depressões sem tristeza”, integrando a chamada “clínica do
vazio”, que incluem pacientes com traços autistas, doenças psicossomáticas, adições,
dificuldade de vinculação, neuroses narcísicas, entre outros casos. Em sua maioria,
convocam-nos a viver com eles “o pesadelo da vida sem sentido”, como achava e
provavelmente vivenciava Morris Zelig. Esse quadro impõe-nos a necessidade de sempre
questionar e ampliar a técnica psicanalítica para acolher essa nova subjetividade que emerge.
Nas palavras de Marc Augé citado por Costa (2008, p. 98-99):

É função central do analista hoje ir construindo com cada um deles um setting


possível para que a análise possa se constituir. E não mais no sentido clássico, isto é,
visando trabalhar as resistências para que ele venha, um dia, a ser igual ao clássico,
mas, sim, trabalhando para que o espaço virtual e sem fronteiras possa ser
transformado num lugar. Lugar de intimidade, lugar de trocas, lugar de narrativa.
Lugar de existência real, não virtual.

Espero que a existência virtual de Zelig tenha enriquecido nossa reflexão acerca da
responsabilidade real do fazer psicanalítico. O filme termina com o narrador citando uma
frase do escritor Scott Fitzgerald: “Querendo ser aceito se contorceu desmedidamente... No
final, acabou sendo não a aprovação de muitos, mas o amor de uma mulher que mudou sua
vida.” Amor de Eudora, amor materno, amor...
Após percorrer tantos teóricos psicanalíticos, volto às raízes e me certifico do quanto o
pai da psicanálise foi feliz ao falar para Jung em uma de suas cartas que “A psicanálise é, em
essência, uma cura pelo amor.”
Referências

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Contruções IV: sonhando a formação. 1. ed. São Paulo: Associação Brasileira de Candidatos,
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COSTA, Gley Pacheco. Psicopatologia psicanalítica contemporânea: clínica do desvalimento.


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FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. 15: Psicologia das
Massas e Análise do Eu e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. 11: Totem e tabu,
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Letras, 2011.

HINSHELWOOD, Robert Douglas. Dicionário do pensamento kleiniano. Tradução de J. O.


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HOSLE, Vittorio. Woody Allen: an essay on the nature of the comical. Indiana (EUA):
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KLEIN, Melanie. Sobre a identificação. In: KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros
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Fontes, 2001.

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ZELIG. Los Angeles (EUA): Orion Pictures, 1983. 1 DVD (79 min.): son., p&b.

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