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Introdução
Seu pai era um ator iídiche chamado Morris Zelig cuja atuação como “Puck” em
“Sonho de uma noite de verão” foi mal recebida. O segundo casamento de Zelig é
marcado por brigas constantes. Tanto que apesar de morarem perto de um boliche, é
o boliche que reclama do barulho. Na infância Leonard Zelig é intimidado por anti-
semitas. Seus pais nunca o defendem e o culpam por tudo, ficam contra ele.
Costumam puní-lo trancando-o no armário. Quando estão muito zangados entram no
armário com ele. Ao morrer, Morris Zelig diz ao filho: “Que a vida é um pesadelo
de sofrimento sem sentido”. E o único conselho que lhe dá é que seja econômico.
Apesar de o irmão Jack sofrer um colapso e a irmã Ruth se tornar ladra e alcoolatra,
Leonard Zelig parece se ajustar à vida. De alguma maneira parecia ter conseguido
vencer. E então surge de repente um comportamento cada vez mais estranho.
(ZELIG, 1983).
Quando submetido a sessões de hipnose por Eudora Flecther, Zelig admite, então, que
seu mimetismo é uma tática para se sentir seguro. Ele não quer ser excluído e, por isso, se
transforma na imagem da pessoa mais próxima para poder se misturar aos outros.
Ao longo das cenas, acompanhamos a transformação de Zelig em aristocrata, jogador
de beisebol, negro, índio, caucasiano, psiquiatra, obeso, chinês, remetendo-nos também a uma
representação do sujeito pós-moderno, convocado a ser “camaleão” e a assumir muitos papéis
em um mundo globalizado, ao passo que sofre profundamente de desamparo, perda de
sentidos e de identidade numa sociedade em constante transformação.
Penso que, para além da crítica social e política (cenas que remetem a regimes
totalitários associadas à alienação de si mesmo), Woddy Allen convoca-nos a refletir também
sobre aspectos subjetivos e existenciais, oferecendo-nos um personagem caricato e ao mesmo
tempo fonte de identificação para todos nós.
Hosle (2007) alega que no riso culto há certa identificação melancólica com o objeto
do riso. Que aquele que ri inteligentemente reconhece que a matéria da qual ele ri não é
diferente de si mesmo. O que há de cômico, ao mesmo tempo triste e humano em Zelig? O
que há em Zelig de todos nós, de nossos pacientes e amigos?
Ao assistir ao filme e escrever esse trabalho, lembrei-me de tantas pessoas, de
experiências próprias e da clínica, como, por exemplo, o relato angustiado e recente de uma
paciente adolescente que se questiona por que, diferente das amigas, ela não gosta de beber:
“Seria tão mais fácil pra mim, Raquel, se eu fosse igual a elas. Fico pensando que, se eu
gostasse de beber e ir às festas, não seria excluída assim por elas”. De maneira intensa,
convida-me a viver com ela esse cenário de questionamentos acerca de si e do outro, da dor
da diferença e da exclusão, e a necessidade primordial, universal e humana de ser amada e
aceita.
É claro que, no caso de Zelig, percebo um comprometimento maior, que me permite
supor uma grave perturbação da identidade e estruturação do ego, até conjecturando déficits
na matriz de identificação primária; será nessa direção que pretendo dar sequência a este
trabalho. Proponho, então, sem pretensões diagnósticas, pensar acerca do conceito de
identificação, com autorização do cineasta que, na voz e depoimento do historiador John
Morton Blum, diz: “E os freudianos se divertiam. Podiam interpretá-lo como quisessem. Era
tudo simbolismo. Mas não havia intelectual que chegasse a uma conclusão”. (ZELIG, 1983)
Brinquemos, então, com os simbolismos de Zelig e Eudora Flecther e aprendamos com eles
um pouco mais sobre a clínica e teoria psicanalítica, sobre nossos pacientes e nós mesmos.
1 Conceito de identificação
Ao pedir à psiquiatra que o segure, pois está caindo, Zelig me parece buscar um
contato com um objeto que contenha as ansiedades catastróficas dele, assim como o bebê, em
seu estágio inicial de “não integração”, busca na mãe um objeto sensório que una as partes de
sua personalidade.
Esther Bick (1991), a partir da observação, compreendeu dois estados mentais opostos
nos bebês: quer a sensação de achar-se existindo com certa coerência, quer o oposto, ou seja,
um sentimento de dissolução, descoordenação e aniquilamento. Para ela, ao nascer, o bebê
encontra-se como um astronauta lançado ao espaço sem um traje especial, e que assim fica
aterrorizado com a possibilidade de se liquefazer. Os cuidados maternos, principalmente
amamentação, colo, holding e experiências sensoriais, possibilitarão ao bebê não somente a
integração de seu próprio corpo, a partir das sensações do contorno da pele, mas, sobretudo, a
introjeção de uma função integradora do self. Isso porque, segundo Hinshelwood (1992),
diferente de Melanie Klein, Bick não pensava que o ego herdaria a capacidade cognitiva de
distinguir objetos separados de si próprios, mas que o bebê teria que lutar pela capacidade de
introjetar, e que essa capacidade seria uma conquista conjunta da dupla: mãe e bebê. Bick
(1991, p. 194) explica que:
Bick percebeu que o contato com a pele na interação mãe-bebê é o elemento mais
importante nesse relacionamento inicial e é determinante nas primeiras introjeções do ego. O
primeiro objeto é o que dá ao bebê a sensação de existir e, mais adiante, no desenvolvimento,
de ter uma identidade.
A autora entende ainda que o desenvolvimento defeituoso dessa função continente de
pele gera uma ausência de espaço interno comum no autismo. Se o objeto real (mãe) falha
nessa função continente, ou se o bebê o ataca excessivamente em fantasia, ele não consegue
introjetar o objeto continente. Isso leva ao desenvolvimento defeituoso dessa função de pele,
engendrando uma “segunda pele”, por meio da qual a dependência do objeto é substituída por
uma pseudoindependência. Esse fenômeno da “segunda pele” é conhecido como identificação
adesiva, no qual, em decorrência da ausência de um espaço para projetar, há uma adesão aos
objetos pela superfície, por imitação.
Antes de adentrar no conceito de identificação adesiva, volto a Zelig e em como posso
relacionar essa teoria psicanalítica ao simbolismo da narrativa. A falta de dados a respeito da
mãe de Zelig e, consequentemente, da relação primitiva dele com ela permite-me hipotetizar
déficits nessa relação inicial e, assim sendo, na formação de um espaço interno e externo bem
delimitados para a personagem, o que me parece mais claro na imagem em que ele se refere
aos pais zangados e presos com ele dentro de um armário: juntos, misturados e aprisionados
em um espaço terrorífico e sufocador.
Como ressalta Bick (1991) a falha nessa função continente pode se dar por meio do
objeto real (mãe) ou no ataque excessivo do bebê em suas fantasias. Em estados de hipnose,
Zelig relata um ciclo real ou alucinado de ataques crescentes : “Meu irmão me batia. Minha
irmã batia nele. Meu pai batia na minha irmã, no meu irmão e em mim. Minha mãe batia no
meu pai, em mim, no meu irmão e na minha irmã. Os vizinhos batiam na minha família.”
(ZELIG, 1983).
Fantasia ou não, o fato é que Zelig parece não possuir uma pele própria e, com esse
corpo-mente disforme, vai se adaptando, por imitação, inclusive física, às pessoas à sua volta.
Hinshelwood (1992) aponta uma semelhança entre o fenômeno de “segunda pele”
descrito por Bick e o fenômeno de “falso self” descrito por Winnicott. Na descrição dele, o
falso self é um conjunto de características da personalidade, frequentemente bastante rígidas,
que são experienciadas pelo indivíduo como não realmente fiéis a ele próprio, mas
desenvolvidas para ocultar a própria falta de senso dele de um eu verdadeiro. Aqui, lembro do
irônico fato de o pai de Zelig ser um ator, cuja atuação é mal recebida pela plateia,
remetendo--nos também ao fracasso do desempenho de papéis e características da
personalidade “atuadas” no falso self.
Nas palavras de Hinshelwood (1992, p. 410):
Camilla Biaggi Alvarenga (2015), no trabalho Aderir como forma de existir, tece uma
reflexão sobre o fenômeno da “identificação adesiva” estudado por Bick, Meltzer e
Etchegoyen, buscando aprofundar também acerca da prática clínica e do manejo com
pacientes que utilizam desse tipo de identificação em seu vínculo com o analista. Segundo ela,
como uma forma de lidarem com a angústia de separação, esses pacientes buscam um contato
com o analista como objeto sensório, necessitando mais de sua voz e companhia do que
necessariamente de seu discurso. São pacientes que não se mostram tão acessíveis à
investigação analista enquanto não se sentirem transferencialmente bem contidos pelo
analista. Nas palavras dela:
Isso, muitas vezes, implica ter que lançar mão de interpretações de mecanismos que
rapidamente se tornam evidentes, em prol de um fortalecimento do vínculo entre
analista e paciente. Desse modo, é fundamental a firmeza do setting-pele, o que
requer um lento e contínuo equilíbrio entre os processos de manter-se continente
para o paciente e de efetuar elaborações interpretativas que levem em conta o medo
de cair até morrer. (ALVARENGA, 2015, p. 138).
Percebo que o setting-pele é aqui utilizado como uma metáfora para a mente do
analista, que contém as angústias do paciente; contudo, penso também na importância e
significado do setting (espaço concreto) para esses pacientes. Lembro-me especialmente de
um paciente que, após a mudança concreta do setting (mudança do meu consultório para um
novo local e sala), chega na segunda sessão com uma aparência muito diferente da habitual:
os longos cabelos foram cortados, a barba foi aparada bem junto ao rosto e as roupas também
adquiriram mais cor. Ao notar meu semblante de surpresa ao vê-lo, ele me diz: “Consultório
novo, visual novo”.
No caso de Zelig, observo no filme uma cuidadosa descrição do espaço de tratamento,
nas falas do narrador o plano da psiquiatra Eudora Flecther era “[...] levá-lo para uma casa de
campo, preparar um ambiente neutro, longe da sociedade. Aqui ela irá trata-lo na esperança de
penetrar sua doença única. [...] O quarto branco é cuidadosamente arrumado para a serenidade
máxima.” (ZELIG, 1983). Quarto branco, metáfora de folha branca, espaço de escrita de
narrativas e projeções. Ademais, o fato de ser nomeado quarto e não sala, ou consultório, me
fez pensar no preparo de um quartinho para um bebê que vai chegar, lugar de serenidade e
cuidado com um ambiente em que se darão trocas muito íntimas. Trocas essas que não podem
ser descritas, escritas (como em algum momento é dito pela psiquiatra), tampouco vistas, mas
devem ser vivenciadas de fato. O que nos é confirmado pelo depoimento do psicanalista
Bruno Bettelheim no filme, ao dizer: “Para os dias de hoje as sessões do Quarto Branco
parecerão muito primitivas. Mas na verdade foram muito eficientes ao se desenvolverem
relações pessoais fortes entre médicos e pacientes.” (ZELIG, 1983)
As teorias psicológicas e psicanalíticas sofrem muitas mudanças ao longo do tempo;
contudo, esse filme parece salientar o que há de atemporal e ao mesmo tempo fundamental
em um tratamento: a profunda natureza da relação entre um médico e paciente, analista e
analisando. Nesse sentido, podemos aprender muito com Eudora Flecther, com seu ato de fé e
a aposta no tratamento de Zelig. Ela diz: “[...] não que eu pudesse curá-lo, mas se eu pudesse
tê-lo, com tempo e cautelosamente ser inovadora e criativa eu achava que poderia mudar sua
vida.” (ZELIG, 1983).
Considerações finais
Espero que a existência virtual de Zelig tenha enriquecido nossa reflexão acerca da
responsabilidade real do fazer psicanalítico. O filme termina com o narrador citando uma
frase do escritor Scott Fitzgerald: “Querendo ser aceito se contorceu desmedidamente... No
final, acabou sendo não a aprovação de muitos, mas o amor de uma mulher que mudou sua
vida.” Amor de Eudora, amor materno, amor...
Após percorrer tantos teóricos psicanalíticos, volto às raízes e me certifico do quanto o
pai da psicanálise foi feliz ao falar para Jung em uma de suas cartas que “A psicanálise é, em
essência, uma cura pelo amor.”
Referências
ALVARENGA, Camilla Biaggi. Aderir como forma de existir. In: PRYZANT, Evelyn (Org.).
Contruções IV: sonhando a formação. 1. ed. São Paulo: Associação Brasileira de Candidatos,
2015. p. 131-138.
BICK, Esther. A experiência da pele em relações de objeto arcaicas. In: SPILLIUS, Elizabeth
Bott (Org.). Melanie Klein hoje. Vol.1. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 194-198.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: v. 19: O ego e o Id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud: v. 4/5: A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. 15: Psicologia das
Massas e Análise do Eu e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: v. 11: Totem e tabu,
contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
HOSLE, Vittorio. Woody Allen: an essay on the nature of the comical. Indiana (EUA):
University of Notre Dame Press, 2007.
KLEIN, Melanie. Sobre a identificação. In: KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros
trabalhos (1946-1963). Tradução de Elias Mallet da Rocha et al. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
p. 169-204.
YACOWAR, Maurice. Loser Takes all. Nova York (EUA): Frederick Ungar Publishing,
1979.
ZELIG. Los Angeles (EUA): Orion Pictures, 1983. 1 DVD (79 min.): son., p&b.