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fora de pauta no 10 / outubro de 2010

12.
04. 30.
nos moldes das ruas
processando a seletividade: A prática do estêncil: a contestação e a produção em crônica da morte anunciada
os modos, os meios e Luciane escala na arte de rua.
À base de cola e fita adesiva faz-se um costume

.16
A história e a jornada que leva - ou não - estudantes em Cachoeira do Sul.
carentes até os bancos das universidades.

se eu quiser fumar,
.06 eu fumo.
Uma questão de ser Free.
.34
quem quer ser um adivinha quem é!
milionário
Garotos sonham conquistar fortuna jogando futebol.
20. Uma pessoa, um ator, várias personagens.

fronteira de concreto

10. .24 38.


ciência, ciência... esse tal de rock enrow estica e puxa
onde estás? santa-mariense
Uma palhinha de quem gosta e de quem faz o

.39
rock daqui.

.11
relato banal de um 28. gregório de mattos guerra
seria humilhado
sujeito normal
dois ainda é pouco...
Relações a três na tela do cinema.

02 fora de pauta no 10 / outubro de 2010


Empenhados em manter nosso propósito de singulari-
zar pautas e propor diferentes enquadramentos interpreta-
tivos, a décima edição da Fora de Pauta fundiu-se ao gesto
jornalísticoe retoma a naturalidade e a multiplicidade da
vida cotidiana. O que buscamos é romper com a superficia-
lidade.
Nesta edição, nossa equipe deteve-se em mostrar si-
tuações próximas dos sujeitos comuns e das questões que
os cercam. Como retratamos no ensaio fotográfico sobre o
muro que divide a Vila Natal e a Vila Noal, dando expressão
à trama simbólica de mais uma fronteira de concreto que
constitui a convivência de nosso tempo; no comentário so-
bre a banalização das cirurgias corretivas e estéticas feitas
sem acompanhamento psicológico; na crônica que descreve
o cotidiano e a histórias dos passantes que circulam pela
Boca Maldita; na reportagem sobre uma prática urbana de
identidade visual, como é o estêncil, uma forma de expres-

Edição 10 / outubro de 2010


são disseminada pelo mundo e presente no espaço público
das ruas santa-marienses.
Em uma heterogeneidade de assuntos, adentramos no
espaço de produção cênica e artística para dar visibilidade à
construção das personagens na arte de representação; no es-
paço cinematográfico que versa sobre as relações a três, na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) esteira dos protagonistas do rock’n roll santa-mariense que
Centro de Ciências Sociais e Humanas (CCSH) se consagraram no cenário musical dos anos 90 e no artigo
Curso de Comunicação Social - Habilitação Jornalismo sobre a transformação do comportamento social a partir da
Laboratório de Jornalismo Impresso III publicidade de cigarros . Abordamos também a intimidade
Professor responsável: Caciane Souza de Medeiros de atos corriqueiros (e constrangedores) que fazemos, mas
Editor: Caciane Souza de Medeiros não contamos e as curiosidades de nossa região, como é o
Revisão de texto: Ananda Müller, Bianca Villanova, costume da divulgação pública e cotidiana dos falecimentos
Caren Rhoden, Gianlluca Simi, Larissa Drabeski, em Cachoeira do Sul.
Nathália Costa e Maiara Alvarez (8º sem.) Em outro viés, nossa equipe entra em campo para
Diagramação: Janayna Barros, João Moura, Lucia- problematizar o sonho de conquistar dinheiro e fama, no
na Minuzzi, Mariana Soares, Tiago Miotto universo futebolístico, idealizados por muitos garotos. Tam-
Revisão de diagramação: Michelle Falcão, Lara bém trouxemos à baila uma reflexão sobre a Ciência e seu
Machado e Maiara Alvarez papel na sociedade atual; além da reportagem sobre a rea-
Projeto gráfico: Facos Agência lidade dos cursinhos pré-vestibulares gratuitos, que tentam
Imagem de capa: Gianlluca Simi preparar estudantes sem condições financeiras a terem uma
Imagem de contra-capa: Lara Machado chance no competitivo mundo do ensino superior.
Tiragem: 250 Nesse contexto de inspiração e labuta, em meio à
Impressão: Imprensa Universitária
diversidade de pautas e ao trabalho em equipe, desejamos a
Data de fechamento: outubro de 2010
todos uma boa leitura!
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fora de pauta no 10/ outubro de 2010
processando a seletividade:
os modos, os meios e Luciane
Por: Ananda Müller e Jaqueline Araujo Ilustração: www.blancodesigns.com.br

O modo
cursos pré-vestibulares. custos e alimentação com valor reduzido, bolsas
O processo seletivo vestibular é conhecido A desigualdade social que separa o Bra- de trabalho e de iniciação científica, auxílio no
de longa data dos brasileiros. Aqueles que alme- sil em um mosaico de impossibilidades não se transporte público, entre outros, passaram a ser
jam espaço junto às universidades, principal- mostrou indiferente ao ensino superior. As clas- a ajuda providencial para quem almejava con-
mente públicas, deparam-se com o termo desde ses mais abastadas tornaram-se as detentoras cluir uma graduação. Contudo, algo foi deixado
muito cedo. A origem da palavra vem do latim não apenas do poder político e econômico, mas de lado. Voltemos ao cerne da questão: e quem
vestibulum, algo como “entrada”. A primeira também das escassas vagas nas parcas faculda- não possui, ainda assim, condições de conquis-
faculdade do País foi a Faculdade de Medicina des brasileiras da primeira metade do século 20. tar a tão almejada vaga no ensino superior? E
da Bahia (Fameb), inaugurada no dia 18 de feve- Com a expansão de oportunidades pelo interior aqueles que mesmo com auxílio como o Programa
reiro de 1808, exatos oito dias antes da chegada do Brasil, nas décadas da segunda metade dos Universidade para Todos (Prouni) - em que o go-
da família real portuguesa ao Brasil. A primeira últimos cem anos de nossa história, também a verno custeia vagas em universidades particula-
universidade foi a Escola Universitária Livre de escolaridade superior passou a crescer nas extre- res para cidadãos carentes - não conseguem, so-
Manaós, inaugurada em 17 de janeiro de 1909, no midades do País. A criação da UFSM em 1960 é um zinhos, driblar a grande densidade de candidatos
coração da Amazônia. A diferença básica entre exemplo, sendo a primeira universidade federal por vaga e assim conquistar um lugar no ensino
universidade e faculdade consiste no fato de a do interior do Brasil. superior?
primeira abarcar todas as áreas do conhecimen- Dentro desse contexto, a desigualdade
Os meios
to, enquanto a segunda atenta apenas a uma ou pelo interior da nação se refletiu também nas
poucas vertentes de estudo e pesquisa. universidades. Pobres, negros, indígenas e indi- É a partir desta vertente da exclusão social
Em 1911 foi instituído o processo vestibu- víduos oriundos das deterioradas escolas públicas que surgem os cursos Pré-Vestibulares Populares
lar, pelo então Ministro da Justiça e dos Negó- brasileiras não obtinham, salvo raras exceções, (PVPs). Uma vez que modificar o sistema falho de
cios, Rivadávia da Cunha Corrêa. Nos primórdios espaço dentro das faculdades. Ou, se conse- ingresso às universidades é difícil, moroso e trô-
dos processos seletivos as provas eram orais. Lín- guiam obter a vaga, careciam de meios de ma- pego, dar um “empurrão” para quem não pode se
gua portuguesa e língua estrangeira, bem como nutenção, sejam eles de moradia, de alimenta- submeter ao custeio dos preparatórios particu-
matemática, física e química compunham as se- ção ou de curso (a frequência pode ser gratuita, lares foi uma das soluções encontradas. É difícil
letivas. Determinadas partes do conteúdo do pri- mas os gastos em material para determinadas montar um histórico destes projetos, todavia, a
meiro período do curso pretendido também de- faculdades dispende de elevados recursos). Com maior parte nasce dentro das próprias universi-
veriam fazer parte dos domínios dos candidatos, o passar do tempo e de insistentes e solitárias dades. Em Santa Maria existem dois deles, ambos
o que os levava a recorrer a alternativas para reivindicações, os estudantes passaram a rece- ligados à UFSM: o Práxis, que iniciou suas ativi-
absorver conteúdos específicos, afastados da re- ber, em doses quase que homeopáticas, a tão dades no ano de 1999 e o Alternativa, que atua
alidade escolar. É nesse contexto que surgem os necessitada assistência estudantil. Moradia sem desde 2000. Para ser selecionado, o candidato

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deve comprovar carência, o que significa estar Luciane aos pés da imagem de Jesus Cristo seu “vício”,
dentro de uma parcela da população sem acesso numa esperança remota de amparo metafísico.
a determinados serviços. Com sua bolsa de todos os dias, encontra- Em frente à imagem do calvário do salvador dos
É dentro deste ínterim que a FDP foi a mos uma figura nada atípica. Simples. Sem luxos. cristãos, Luciane entrega sua própria via-crucis.
campo. Adentramos os portões do antigo hospital Sem grandes apelos dramáticos. Mas havia algo. A partir daquele dia decidiu recomeçar.
universitário, atual prédio de apoio didático co- E foi atrás desse algo que descobrimos uma entre Voltou ao colégio e sentiu como se o tempo não
munitário da UFSM. Nesse local funcionam tanto tantas histórias que marcam a caminhada de pro- tivesse passado. Descobriu o amor pela litera-
o Práxis como o Alternativa. Suas dependências jetos como estes. Luciane é a representante legal tura. Nos livros, os amigos e as situações que a
são divididas com alguns cursos de graduação e de todos os seus colegas. Quis o destino que em vida real não lhe dera. Formou-se no ensino fun-
com o espaço de ensaios da Orquestra Sinfônica um único indivíduo se refletissem boa parte das damental pelo sistema Educação para Jovens e
de Santa Maria, bem como com o serviço de fono- mazelas e das angústias de seus pares. Adultos (EJA). Tentou uma vaga no Colégio Po-
audiologia da UFSM. A vizinhança é inspiradora: Nasceu aos berros, como toda criança, litécnico, mas os portões fecharam-se antes de
o Instituto Médico Legal à direita e um conjunto ironicamente no Dia da Independência do Brasil. sua chegada: o ônibus quebrara no meio do cami-
de capelas velatórias à esquerda, sem esquecer, Fora abandonada, como outros tantos infantes. nho. Tentou em outros anos, sem sucesso. Com a
ao fundo, o Hospital de Caridade e suas inter- Adotada aos três meses por uma abastada família programação da Televisão Educativa (TVE), veio
da capital gaúcha, teve a sorte de poucos. A mais o interesse pela Geografia. E foi com a força que
mináveis obras. Junto ao hall de entrada, dois
jovem de três irmãos, a única não-sanguínea. Pai só possuem os que já viram o fim da estrada, que
elevadores, separados por um depósito de álcool
amoroso, mãe distante. Uma infância tranquila, Luciane voltou, e voltou com tudo, tentar a sorte
em gel curiosamente ornamentado com a cabeça
até que aos cinco anos de idade seu progenitor do no Alternativa.
de um boneco da linha Barbie. Os elevadores são
coração falece precocemente. Em pouco tempo a Hoje ela levanta todos os dias às sete da
compridos e estreitos, adequados ao transporte
mãe adotiva desfaz a fortuna da família e passa a manhã e prepara o café de seu filho mais novo,
de macas, uma vez que o prédio já foi um hospi-
destratar Luciane. Ela sai de casa. Aos 12 anos já que ainda mora com ela na pequena casa em pe-
tal. Do teto, pingam porções consideráveis de um
lavava fraldas ‘para fora’. As fezes alheias torna- tição de miséria no loteamento Pôr-do-Sol. Logo
líquido enferrujado. Um deles necessariamente
ram-se seu sustento. Aos 15 anos já não mantinha após, estuda e segue para a lida doméstica. Lavar
leva seus passageiros até o subsolo, e o outro, ao
mais contato com a família. Nesse período conhe- louça, cozer, passar e lavar roupa (à mão, pois
último andar, como uma espécie de chiste àque-
ceu seu primeiro namorado, um estudante do cur- não possui máquina para tal fim). Após as tare-
les que ainda insistem em utilizar os senis meios so de Química da Pontifícia Universidade Católica fas domésticas, a rua: livretos à mão, segue seu
de transportes do local. do Rio Grande do Sul (PUCRS). Com ele, além de rumo. O sustento seu e de seu filho provém das
Chegando, afinal, ao quarto andar, no uma nova vida, conheceu também as drogas. Os vendas que faz como representante de grandes
qual se localizam as coordenações de ambos os estudos cessaram na 7ª série, bem como boa par- empresas. À tardinha, as compras do dia e o re-
PVPs, o ambiente é tranquilo e amistoso. Risos, te do andamento de sua caminhada. torno a casa. Apronta-se, pega seus pertences e
a tensão por vezes camuflada dos vestibulandos Anos se passaram e Luciane viveu assim, vai rumo ao ponto de ônibus. Quarenta minutos,
e a alegria nem sempre verdadeira daqueles que inerte, presa a uma caravana que rodava em cír- aproximadamente, a separam do centro da ci-
estão incumbidos, voluntariamente e sem bônus culos. Certa feita, amigos a convidaram para uma dade. Dentro da sala de aula, é a mais próxima
algum, a lhes repassar todos os íons, células e festa na cidade de Santa Maria. Ela veio e nunca à mesa dos professores. A que mais pergunta. A
sintaxes da prova do vestibular. Com o pouco que mais foi embora. Conheceu seu primeiro marido, que mais questiona. Sai sempre mais cedo, pois o
lhes é destinado, os integrantes de todas as ra- pai de sua primeira filha. O marido faleceu re- ônibus não espera. Retorna ao lar quase à meia-
mificações dos ‘cursinhos’ fazem o melhor que pentinamente, mas Luciane não recebeu nenhum noite. Deita a cabeça no travesseiro com a sen-
podem para esquecer que ali se lida não apenas auxílio do governo. Casou mais duas vezes, teve sação de mais um dia no curso de sua história. E
com uma possibilidade, mas com uma gama de mais dois filhos. Hoje está sozinha. Decidiu mudar sonha com o dia em que sua casa, além de uma
problemas sociais, reunidos num balaio e relega- de vida aos 35 anos, quando conheceu a Igreja reforma, possa comportar a faixa de “Bixo Geo-
dos, muitas vezes, ao esquecimento público. Universal do Reino de Deus. Largou, literalmente, grafia UFSM”.

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quem quer
ser um
milionário? Por: Larissa Drabeski Ilustração: Rafael Balbueno

O sonho de conquistar uma fortuna jogando futebol


povoa a mente de muitos garotos. Mas os revezes do
caminho nem sempre são levados em conta.

Neymar, 19 anos, atacante do San- O status da profissão, no entanto, camufla percal-


tos, salário mensal fixo de 160 mil reais mais bô- ços reais: concorrência alta, lesões frequentes,
nus. Cristiano Ronaldo, 25 anos, jogador do Real falsas promessas de empresários, pouco apoio no
Madrid, atualmente o maior salário do futebol: início da carreira e um futuro incerto.
pouco mais de um milhão de euros mensais, sem
contabilizar o rendimento com campanhas publi- Muita estrela para pouca constelação
citárias. Jovens, ricos e famosos.
Histórias de jogadores com trajetórias Santa Maria é uma cidade de porte médio,
como as deles inspiram meninos de diferentes com cerca de 270 mil habitantes (dados do cen-
classes, lugares e idades, com um sonho em co- so IBGE 2007), e que comporta duas escolas de
mum: ser um astro do futebol. A possibilidade de futebol que disputam o campeonato estadual de
ficar milionário fazendo aquilo que mais gostam categorias de base: Esporte Clube Internacional
alimenta a imaginação de muitos brasileirinhos. de Santa Maria e Clube Novo Horizonte. Há quatro

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meses, o Riograndense Futebol Clube também ini- constantes durante os treinos: “Se alguém fizer Lesões no percurso
ciou o trabalho com as categorias de base. Todos mais lento do que eu sei que consegue, vai repe-
os aspirantes a atletas desses três times somam tir o exercício”, grita para os garotos. Como são Brinco na orelha. Corrente no pescoço.
430 meninos e os clubes santa-marienses empre- os únicos representantes de Santa Maria na ca- Uma mochila nas costas ou uma malinha debaixo
gam apenas 54 jogadores profissionais. tegoria mirim do estadual, os meninos precisam do braço. Logo aparece um com o pandeiro. Ao
Entretanto, os jovens atletas não querem aprender a lidar com a ansiedade e com o medo melhor estilo ‘boleiro’, os meninos de 15 e 16
fazer carreira em times pequenos. Eles sonham da derrota. A parte emocional também é focada anos se reúnem no início da tarde de domingo
em conquistar espaço em um grande clube bra- pelo técnico. Segundo ele, se um menino de 12 no bairro Perpétuo Socorro, em Santa Maria. Ali,
sileiro para, quem sabe, conseguir um bom con- anos estiver preparado para essa responsabilida- eles embarcam no ônibus que os leva ao distrito
trato na Europa. Se, a exemplo de Santa Maria, de, estará psicologicamente apto para a carreira de Arroio do Só, para disputar um amistoso pelas
0,16% da população brasileira desejar um futuro profissional. categorias de base do Riograndense.
semelhante, serão em torno de 304 mil brasileiros O trabalho tem dado bons resultados. A Os garotos têm um jogo duro pela frente.
que irão buscar espaço em um dos 20 clubes que categoria mirim do Novo Horizonte conseguiu, Suas habilidades e técnicas são colocadas em xe-
disputam a série A do Campeonato Brasileiro. este ano, pela primeira vez uma vitória sobre o que ao enfrentar adversários mais velhos e mais
A concorrência é uma das principais razões Grêmio de Porto Alegre. Ainda assim, o próprio fortes. O placar termina empatado em 2 a 2. Du-
pelas quais tantos garotos que se destacam nas técnico reconhece que as dificuldades da profis- rante o confronto, o zagueiro do Riograndense,
peladas com os amigos não conseguem chegar ao são farão muitos meninos ficarem pelo caminho: Barão, deixa o campo mais cedo, com um corte
futebol profissional. O ex-jogador e atual técnico “Dos 20 que estão aqui, só uns cinco vão se tornar na cabeça, resultado de uma cotovelada na dis-
das categorias de base do Inter-SM, Róbson Cen- profissionais”. puta pela bola.
turião, explica que para investir na carreira fute- Dentre os que precisaram desistir do so- Aos 16 anos, Julio Cezar do Canto Macha-
bolística é necessária uma autocrítica apurada: nho, está Gian Vargas Mota, 16 anos, volante. do, o Barão, acumula várias lesões no currículo.
“Vai chegar o momento em que eles estarão em Gian cresceu em Mostardas, cidade do litoral Muitas delas, ele afirma serem decorrentes de
uma linha divisória. Alguns terão que avaliar que gaúcho, e veio com a família para Santa Maria uma má alimentação, o que o levou a buscar aju-
realmente não têm condições de serem jogadores em busca de tratamento para seu irmão Gabriel, da de uma nutricionista para ter o cardápio ba-
de grandes clubes. Ou encaminham a vida para de quatro anos, que tem paralisia cerebral. Na lanceado. Mesmo com o cuidado nutricional, o jo-
outro lado, ou se contentam em ser jogador de região central do estado, ele viu a oportunidade gador sofreu uma lesão este ano, quando treinava
clube pequeno”. de jogar nas categorias de base do Inter-SM. Mas pelo Estância Velha, de Novo Hamburgo, e acabou
Para evitar que tenham que abrir mão do os treinamentos não duraram muito tempo. Gian saindo do clube. A volta do filho para Santa Maria,
sonho para buscar outra profissão, os meninos ge- dependia de ônibus para ir aos treinos diários, com a oportunidade de treinar em um time local,
ralmente apostam na dedicação. David Otto, 17 despesa que pesava no fim do mês. O investimen- foi um alívio para a família, que precisava arcar
anos, articulador, joga nas categorias de base do to na carreira representava uma dificuldade para com as despesas do filho morando fora de casa,
Novo Horizonte e conta seu segredo: “Tem que a família humilde que precisa concentrar esforços desde aluguel até a mensalidade do clube.
encarnar no futebol. Abrir mão de muitas coisas: no tratamento de Gabriel, o que obrigou Gian a Dispensar jogadores das categorias de base
balada, bebida e, às vezes, até da família, se for sair da escolinha. Ainda assim, Gian não se dá por lesionados é prática comum, principalmente dos
preciso morar fora”. vencido: “Se é teu sonho ser um jogador de fute- grandes clubes. Por terem mais estrutura e bom
O técnico da equipe sub-12 do Novo Hori- bol, não dá para desistir”. O pai, Lindeval, apoia nível orçamentário, clubes maiores atraem mui-
zonte, Guilherme Ruy, aposta na mesma receita. o desejo de Gian e mostra esperanças na carreira: tos meninos para fazer testes. Com várias opções
Defende o trabalho focando no rendimento desde “Quem não gostaria de realizar o sonho de um para cada posição, eles não dependem muito de
a iniciação dos meninos no esporte, que no caso filho? Bom de bola ele é, agora tem que contar um atleta específico. Em consequência disso, é
do Novo Horizonte é aos oito anos, nas quadras de com a sorte de ele estar na hora certa e no lugar mais fácil substituir um jogador machucado do
futsal. A disciplina e a dedicação são exigências certo”, conclui o pai. que bancar o seu tratamento.
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Jogador X empresário jogadores busca oportunidades em times de
outros estados. Mas Mauricio optou por abrir
A lesão também pode influenciar mão do futebol até o fim do ano e ficar em
na relação do jogador com o empresá- Santa Maria para concluir a faculdade de
rio, como explica o atacante Maurício Educação Física. “Sempre levei o estudo em
de Medeiros, 22 anos: “se o empresário paralelo. A carreira de futebol é prazerosa,
tem muitos jogadores e você se machu- mas não te dá segurança”, afirma Maurício.
ca, ele te deixa meio de lado”. A relação
entre jogador e empresário geralmente Nos campos do interior
é tumultuada. De um lado, o futuro cra-
que, a fonte de renda. De outro, o cara Maurício entrou para a equipe juvenil
dos bons contatos, que pode conduzir o do Inter-SM aos 15 anos e em 2007 chegou
menino ao estrelato. É uma dependên- ao time profissional. Já passou por outras
cia mútua, mas nem sempre ambos os equipes, como o Grêmio Esportivo Bagé e
lados ficam satisfeitos. “O empresário o Porto Alegre Futebol Clube e conhece as
tem que ser de confiança, quase da fa- desvantagens de jogar em um time do in-
mília. Mas é difícil ter um empresário terior. Além da pouca visibilidade na mídia,
que te ajude de verdade. É um mundo no caso de clubes que disputam a série B
sujo, porque nós somos dependentes de- do estadual, a estrutura é menor e os salá-
les” acrescenta Maurício. rios nem sempre são pagos em dia. O clube
No ano passado, o atacante rom- grande da capital é o objetivo de todos os
peu o contrato que tinha com um empre- atletas, mas muitas vezes é no interior que
sário desde 2008. Decepcionado com os eles encontram apoio. O meia Vitor Nunes
resultados da parceria, ele conta que, no de Oliveira, 16 anos, teve passagem pelos
início, o empresário buscou muitas opor- dois maiores clubes do estado, mas foi no
tunidades, “mas depois de um tempo, Riograndense que ele encontrou a oportuni-
ele não estava auxiliando muito”, expli- dade de crescer no futebol.
ca Maurício. E admite: “eu até apaguei O primeiro clube de Vitor foi o Grê-
o contato dele do meu celular”. Mesmo mio, no qual entrou por meio de um ‘penei-
com a experiência frustrante, ele afirma rão’ realizado em sua cidade natal, Restinga
que se hoje aparecesse um empresário Seca. Essa é a forma pela qual os garotos
apostando na sua carreira, ele aceitaria imaginam chegar aos grandes clubes. Mas
ajuda, mas depois de pesquisar bem seu o fato de estar em um clube com mais or-
histórico. çamento e infraestrutura não diminui as
Consciente das dificuldades da dificuldades impostas aos aspirantes a joga-
profissão de jogador, Maurício encontrou dores. Pelo contrário. A mãe Sirlei Oliveira
nos estudos uma segurança. Jogador do foi com Vitor para Porto Alegre e arrumou
Inter-SM na série A do Gauchão 2010, ele emprego na pensão que ele morava com
ficou sem contrato no segundo semestre, outros atletas do Grêmio. Ela conta que a
quando o time não disputa nenhum cam- experiência foi decepcionante: “o futebol
peonato. Nessa situação, a maioria dos é quase como uma máfia. Você vê teu filho

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e outros meninos se destacando e, de repente, ficou com um pouco receosa e começou a pressio- futuro no futebol”. Entretanto, o medo de não
eles perdem espaço para outros, que nem jogam ná-lo. Já a mãe conta que, por causa do contrato conseguir espaço ainda permanece. Para enfren-
tão bem, mas que foram indicados por jogadores com empresário, ele perdeu oportunidades em tar o receio, ele busca trabalhar forte para con-
famosos”. outros clubes. seguir aperfeiçoar suas qualidades. “Para jogar
Apesar da concorrência acirrada, foi trei- Este ano, Vitor conseguiu espaço no Rio- futebol precisa ter muita personalidade. Quando
nando no Grêmio que Vitor despertou a atenção grandense. Como sua família é de fora da cidade, você estiver frente a frente com um adversário,
de um empresário e, depois de duas semanas, no início dos treinos ele precisava se deslocar até tem que ter certeza de que é melhor que ele”.
foi levado para o rival, Inter. O contrato com o Santa Maria. Agora, ele foi convidado a morar no Vitor tenta seus trunfos para se destacar no
empresário representou um alívio financeiro para alojamento do clube, onde vai receber alimen- meio do futebol. O esporte conhecido por apaixo-
a família, uma vez que esse responsabilizava-se tação e usufruir das estruturas sem custo. Além nar multidões, tem se destacado pelas quantias
pelas despesas de Vitor. O jogador ficou em torno disso, o meia convive com a expectativa de ser milionárias que movimenta. A marca de um clube
de um ano e meio no colorado, quando machucou chamado para a equipe profissional. “Graças a brasileiro pode valer milhões, como a do Flamen-
o joelho por esforço excessivo na academia e per- Deus, o plano da direção é de me encaixar no go, estimada em R$ 568 milhões. De acordo com
deu espaço no clube. A recuperação foi bancada grupo este ano mesmo, assim que começarem as o site Futebol Finance, os doze clube mais valio-
pelo Centro de Treinamento da Associação Espor- preparações com o time profissional”. sos alcançam um valor total de R$ 3.242 milhões,
tiva Sobradinho, pelo qual disputou o Campeona- No início, Vitor conta que ficou assustado valor que deve duplicar até o mundial de 2014.
to Gaúcho de Futebol de Salão. com a concorrência e achou que futebol não era A disputa por uma porcentagem desse valor faz
Depois da lesão, o relacionamento com o para ele. Hoje, com mais experiência, mostra-se meninos trocaram a infância por um sonho profis-
empresário se complicou. Vitor diz que a família confiante: “tenho certeza de que tenho um belo sional. Quem vai levar uma fatia desse bolo?

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ciência, ciência... onde estás?
Por: Mariana Soares Ilustração: www.rosetem.com.br

O mundo diante de nós é mais do que ape- Ora, um dia a mídia divulga uma pesquisa dizendo Toda essa busca por um conhecimento ‘provável’
nas os fenômenos da natureza e os elementos que alimentos transgênicos são bons para a saú- e meticuloso é que permitiu à Ciência uma legiti-
geográficos do planeta Terra. É sim também um de, mas em outro eles são os vilões. Em uma se- mação tão grande como um campo de saber que
fruto de nossas relações com os outros seres, um mana, estudos informam que a grande quantida- traz transformações surpreendentes que afetam
resultado das construções simbólicas que criamos de de CO2 emitida pelas ações dos seres humanos a maneira de ver (e viver) o mundo. No entanto,
todos os dias para viver em sociedade. Torna-se é uma das maiores causas de poluição do ar. Já na isso não quer dizer que os mitos e as tradições
um misto das nossas subjetividades com os as- outra semana uma nota diz que o CO2 não é mais orais perderam lugar. Pelo contrário. Eles estão
pectos que limitam a natureza humana. Durante o ‘bad guy’ intitulado pela primeira pesquisa. E, por aí, na ‘boca do povo’, nas histórias de vida,
muito tempo o homem buscou resolver as inquie- quem sabe, em um mês sai uma pesquisa dizendo nas crônicas e nos contos de conversas de boteco.
tações das práticas sociais através da criação de que nossos atos dados à afetividade, como amor E eles deflagram as outras formas de ver a vida,
mitos e de histórias para explicar os aconteci- e ciúme, têm explicação científica, mas no mês que não apenas as grandes descobertas e os es-
mentos do cotidiano, os quais deram origem às seguinte nenhuma dessas considerações são le- tudos. Eles expõem – quem sabe, sem querer – a
tradições culturais transmitidas por muito tem- vadas em conta, pois descobriram que a Ciência natureza humana do saber científico, que ao ten-
po através da oralidade, e que com o passar do não pode explicar um campo tão subjetivo. Vá di- tar explicar o mundo, também produz várias con-
tempo deram lugar aos registros escritos. Mas e zer que você, leitor, também nunca pensou sobre trovérsias. Portanto, a Ciência não é definitiva,
o que acontece quando atingimos um outro tipo isso? Ah, e tem mais. Além de todas essas infor- mas sim um processo evolutivo constante. Só que
de conhecimento, que ultrapassa os costumes da mações, em nosso próprio convívio com as demais agora, finalmente, é sua vez de me perguntar:
tradição social? Ou seja, o que acontece quan- pessoas, surge aquele misticismo quanto ao saber bem, mas o que quer dizer tudo isso? E eu res-
do começamos a pensar as questões científicas? científico, como se ele fosse algo supremo, des- pondo com uma outra pergunta: sabe que eu não
Quais as mudanças que surgem no seio social com tinado ao fazer de uma parcela ínfima de todo o sei? Provavelmente tenha que ser assim. Um força
esse ‘novo’ saber? Estou ciente de que essa é planeta, os detentores do poder de mobilizar a se opondo a outra, mas ao mesmo tempo viven-
uma inquietação constante desde os mais antigos tudo e a todos. Diversos autores concordam que do juntas, trocando experiências. Inquietações à
estudos filosóficos romanos até as pesquisas que estas questões permeiam o status que a cienti- parte, a Ciência segue seu rumo e marca nossas
hoje tentam descobrir uma vacina para a AIDS. ficidade estabeleceu através dos séculos. Desde vidas. Mas a Ciência não vive dela mesma, ela
Penso mais ainda, ou melhor, sinto...Sinto que o Iluminismo, através da expansão do conheci- nasce e renasce junto com a nossa história, o nos-
essas inquietações têm se tornado mais latentes mento e da criação das universidades, a relação so tempo. Como diz Giovanni Sartori*, “Ninguém
nos últimos dois séculos, e em especial nesta úl- do homem com as práticas sociais tomou outra pode deter o processo tecnológico, mas nem por
tima década do século XXI. Afinal, estamos em dimensão. Começamos a pensar objetivamente isso devemos deixá-lo escapar do nosso controle e
uma época de pleno desenvolvimento do campo acerca de nossas tradições, buscando, através da nos submeter servilmente à rendição”.
técnico-científico, o qual se fortalece mais e mais reflexão, explicações para os fenômenos que nos
a cada dia. No entanto, pergunto: o que leva a Ci- atingem constantemente, como doenças, catás- *Giovanni Sartori é um dos maiores protagonistas do
ência a ser tão importante para o nosso cotidiano? trofes naturais e problemas de relacionamento. debate cultural italiano. Lecionou na Universidade de
Mas, para abarcar toda essa pesquisa, foi neces- Florença e na Universidade de Colúmbia. É autor de
Por que prezamos tanto o que dizem as pesquisas títulos como Democrazia: cosa è (1993) e Ingegneria
e os estudos? Será que eles todos dizem a verda- sária a criação de métodos, que com o tempo es-
Costituzionale Comparata (1995).
de? Diversas vezes paro e penso nessas questões. tabeleceram o rigor formal da pesquisa científica.
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fora de pauta no 10 / outubro de 2010
relato banal de um sujeito normal
Por: Bianca Villanova Ilustração: Caren Rhoden
Ah.... Faustão na televisão. Uma sucessão internet, concentra-se no trabalho.
de trabalhos a fazer e a mão preocupa-se so- No dia seguinte, não pode disfarçar as
mente em apertar os botões do controle remoto. olheiras, afinal teve que ‘trabalhar’ até às quatro
Apertar fundo e repetidas vezes, já que trocar a horas da madrugada! No elevador, confere mais
pilha não é uma opção. uma vez o penteado, os dentes, cutuca aquela es-
Os 15 minutinhos tornam-se mais de pinha. Um pé atrás do outro, ombros encurvados,
uma hora. É óbvio que não me interesso por copo de café na mão. Óculos no rosto inchado e
câmeras ligadas 24 horas por dia, mas só de olhos fundos. Enquanto suspira desanimado,
uma espiadinha rápida não faz mal, só por vê um semiconhecido se aproximar. Não diminui o
curiosidade. Então bate a fome. Vai até a ritmo, mas o outro pára. Inferno. Um rápido cum-
cozinha, abre a porta da geladeira e observa primento, acompanhado do “como vai a vida?”
o interior do eletrodoméstico. Volta para a TV. e logo segue a explicação dos tantos afazeres,
Cinco minutos depois, volta para a cozinha, e é sempre tanta coisa, tenho que ir, tenho que
fica novamente conferindo o conteúdo da gela- correr, mas a gente se fala, legal te encontrar!
deira. Nada. Moço, quanto tempo leva para trazer Sorriso de despedida, vira as costas e apressa o
um xis bacon? Olha ao redor, arruma a cama, or- passo.
ganiza a mesa e acha aquele livro que pegou em- Sobe no ônibus. Tira a carteira do bolso
prestado há três meses. Nessa semana, sem falta, de trás e aproveita para discretamente dar aque-
devolvo. Juro. São 9 da noite e os amigos ligam la coçadinha na nádega direita. Senta e, com a
para a última cerveja do fim de semana. Mas mão nos fundilhos, arrumar o conteúdo da cueca.
não, não pode, foi mal, mas tenho mesmo Pelo canto do olho percebe aquele vizinho pas-
que trabalhar! Melhor ficar em casa, vou sando pela roleta. Vira o pescoço num ângulo de
começar agorinha mesmo. Senta-se frente 90 graus, espiando a rua naquele ponto lá atrás.
ao computador. Opa, a Cláudia foi à festa Passado o perigo, relaxa e se acomoda e num ges-
na sexta, mas tá sozinha nas fotos? E o co- to veloz passa o dedo do nariz à parte de baixo do
mentário desse guri? Cara, a Cláudia não banco. Na próxima parada, surge no ônibus uma
namora mais? Mas que coisa... e como foi senhora. Passou a roleta, então não é tão idosa,
o fim de semana? No próximo saímos de mas as rugas e aparência frágil indicam que de-
novo, fechou! Uma hora da manhã. Abri veria levantar. Antes que ela o perceba, encosta
o Word, agora vai. Pisca a nova luzi- a cabeça no vidro, fecha os olhos, deixa o ônibus
nha laranja, ah, ela de novo não. Ao sumir:
menos já tava no ausente... Ama- “se eu quero e você quer, tomar banho de cha-
nhã digo que já estava dormin- péu, ou esperar Papai Noel, ou discutir Carlos
do e fica tudo certo. Entre um Gardel, então vá! Faz o que tu queres pois é tudo
twitt e outro, solitário até na da lei, da lei!”

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fora de pauta no 10 / outubro de 2010
nos moldes das ruas
Por: Tiago Miotto Fotos: Lara Machado e Tiago Miotto

A arte de rua vem sendo progressivamente aceita em diferentes meios – das galerias de arte à publicidade de grandes corpo-
rações. Em um processo natural para seus praticantes, a busca por técnicas distintas do grafite ‘tradicional’ segue causando
polêmica quando as experimentações acontecem em seu locus por excelência: as paredes da cidade. Riqueza de manifesta-
ções para uns, vandalismo para outros, o fato é que as ruas de Santa Maria são povoadas pelas mais distintas expressões, den-
tre as quais o estêncil – que utiliza moldes vazados para gravar marcas com spray – chama atenção por suas peculiaridades.

Che Guevara, Seu Madruga, Malcolm X, célebre em todo o mundo por suas obras de con- dem ser trabalhadas com calma”, conta Bueno*,
Hommer Simpson: basta caminhar pela cidade teúdo ácido e seus estênceis executados em lo- Latinos desde o princípio.
de Santa Maria para topar com estes ícones da cais irreverentes, como o contradito muro entre A Latinos é, na definição de Bueno, uma
cultura popular em gravuras de uma só cor (nor- Israel e Palestina. Contudo, o reconhecimento é família. Nasceu das diversas pretensões ligadas
malmente o preto) distribuídas amplamente pelo mais uma exceção do que uma regra. A maioria à arte que seus membros tinham em comum – a
mobiliário urbano. Por vezes, as gravuras que se dos adeptos da arte de rua tem na clandestinida- arte de rua entre elas. Mais do que isso, as mani-
repetem pela cidade contêm palavras de ordem de seu berço e seu refúgio. festações que foram parar na rua são o resultado
ou símbolos conhecidos: a imagem de um boneco da insatisfação com os valores americanizados
jogando a suástica nazista no lixo é tão expressi- O estêncil em Santa Maria que viam na sociedade. “O negócio é latino, san-
va quanto um Che Guevara com aspecto aborreci- gue quente, valorização do que é daqui. Por isso
do advertindo eu não sou mercadoria. As manifestações urbanas começaram a a utilização de ícones como o Seu Madruga, o Che
Essas imagens e muitas outras que podem aparecer em Santa Maria entre o fim dos anos 90 Guevara”.
ser encontradas em diferentes locais da cidade e o início dos anos 2000, mais ou menos quan- Uma ampla gama de estênceis da Latinos
são gravadas por meio de uma técnica específica: do outros elementos relacionados a esta cultura, resistiu ao tempo. Eles ainda podem ser vistos pe-
o estêncil (do inglês stencil), que utiliza moldes como o skate e o BMX (bicicleta), já estavam dis- las ruas de Santa Maria, muitos dos quais já imbri-
previamente recortados para deixar com tinta seminados na cidade. Rafael*, um dos primeiros a cados à paisagem da cidade. Um legado respeitá-
spray a marca desejada. Essa prática se apropria utilizar os muros da cidade como suporte, conta vel ou uma degradação persistente, dependendo
da arquitetura da cidade, juntamente com outras que o marco inicial não é algo bem delineado. “O do ponto de vista. Hoje, a maioria dos membros
formas de expressão urbanas – grafites, adesivos, que começou primeiro aqui foi o grafite. Depois, do grupo está envolvida em projetos pessoais e
colagens, tags e pichações. A própria denomina- à medida que o pessoal ia se informando, buscan- tem pouco tempo para as ruas. O que não sig-
ção dessas expressões como arte de rua não é do outras técnicas, as variações foram surgindo. nifica que a inspiração ou a inquietação tenham
aceita por todos, devido ao grande número de Aí, vieram os adesivos, o estêncil”. diminuído.
controvérsias que começam pela violação da pro- Nessa fase, surgiram diversas crews – como Uma parede lisa ainda instiga Matheus*,
priedade alheia e vão até o questionamento do os grafiteiros e pichadores chamam seus grupos –, outro dos Latinos. Ele hoje estuda publicidade e
valor estético de rabiscos inteligíveis apenas para algumas das quais são atuantes até hoje. Entre as pratica serigrafia em um ateliê nos fundos da casa
alguns, como é o caso das tags. crews pioneiras, o grupo Latinos foi um dos pri- afastada do centro. Lá, entre pinturas, pôsteres,
Nos últimos anos, alguns interventores ur- meiros e mais ativos na prática do estêncil. “Co- latas, tintas e o material próprio para serigrafia,
banos obtiveram projeção internacional e osten- meçamos a fazer estêncil porque era mais rápido, tem uma coleção de cadernos com desenhos an-
tam de forma irrevogável o status de artistas de e portanto menos arriscado, e também estetica- tigos e recordações dos “rolês”, como algumas

12 rua. O londrino sem rosto Banksy, por exemplo, é mente mais agradável. Além disso, as formas po- das primeiras máscaras recortadas em placas de
fora de pauta no 10 / outubro de 2010
raio-x. Hoje, dedica mais tempo ao design e à se- O conceito de agitação e propaganda sur- O movimento social de que Flávio faz par-
rigrafia, um processo que tem o estêncil em suas giu na União Soviética, como uma forma de difun- te acredita também que a prática da arte de rua
origens. “Eu gosto disso. Envolve tudo, me permi- dir as bandeiras da Revolução Russa e angariar o sirva como um meio de comunicação alternati-
te várias possibilidades, experiências. Acho que apoio do povo. Como grande parcela da população vo, para dar voz à parte da sociedade que não
na serigrafia, cada um tem o seu próprio proces- era analfabeta, a arte era uma forma de atingir costuma ter espaço nos meios formais. Por esse
so”, diz Matheus, enquanto instala uma tela re- as pessoas de uma maneira direta e eficaz. motivo, realizam oficinas de estêncil com outros
cém seca no aparelho de impressão. Com o estên- Seja por meio de panfletos, manifestações grupos e movimentos, para “difundir a técnica e
cil, explica, foi a mesma coisa, até aperfeiçoar a de rua, intervenções artísticas de qualquer tipo permitir que mais gente possa, com ela, se ex-
técnica e chegar ao raio-x como molde ideal. e até iniciativas mais sutis como a conversa, a pressar”.
Atualmente, um dos principais grupos a finalidade da agitação e propaganda é provocar a
povoar com estênceis as ruas de Santa Maria é reflexão das classes populares e politizar as mas- A técnica
um movimento social de juventude que prefere sas. Assim, apesar da proibição e do problema da
não se identificar. O estudante Flávio*, um dos repressão, a técnica do estêncil é bastante eficaz Embora a prática do estêncil como ma-
membros do movimento, explica que a utilização por seu caráter conciso e impactante. nifestação urbana e no contexto da arte de rua
da técnica surge em um contexto maior, de agi- Além disso, Flávio destaca que a arte de seja relativamente recente, a técnica de gravar
tação e propaganda. “Basicamente, o objetivo é rua serve também para gerar um debate sobre os imagens com o uso de moldes vazados não é exa-
causar uma sensação de estranhamento para as meios de produção cultural. “A maioria dos ar- tamente nova. Tristan Manco, artista e estudioso
pessoas que veem. Desnaturalizar, de certa for- tistas no Brasil não debate uma arte engajada, do assunto, traça em seu livro Stencil Graffiti um
ma, o que na sociedade está posto como natural, não se tem uma arte política. Assim, não é só um histórico da prática ao redor do mundo. Se gun-
inevitável”. debate político: é também um debate cultural”. do ele, há evidências de que o estêncil – ou um

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fora de pauta no 10 / outubro de 2010
parente próximo seu – possa ser uma das for- Nas ruas pular – ou da luta social – e palavras de ordem
mas mais antigas de expressão artística. Existem em estênceis se aproveita disso para chamar a
marcas de mais de 22 mil anos em que teria sido Os primeiros registros da utilização do atenção dos transeuntes e ainda tirar proveito
utilizada a tinta soprada ao redor da mão para estêncil como forma de expressão nas ruas são de seu caráter imperativo. Aí reside, também, a
gravar a sua impressão invertida nas paredes das oriundos do século XX. Durante a Segunda Guer- proximidade entre a arte do estêncil e a cultura
cavernas. Essas gravuras seriam as precursoras ra Mundial, os fascistas na Itália utilizavam a punk: além da assimilação do lema “Faça você
do estêncil. técnica para disseminar imagens de Mussolini no mesmo”, comum à arte de rua em geral, ocorre
A prática de gravar imagens por meio de espaço público. A maior parte das expressões, a apropriação e utilização de símbolos autoritá-
moldes também era comum na ornamentação contudo, costumava partir de pessoas que pro- rios para subvertê-los em seu conteúdo.
de imagens de Buda, na China, na decora- testavam contra o sistema vigente sem ter aces- O estêncil e a arte de rua em geral, mui-
ção das paredes internas de pirâmides so aos meios de comunicação formais. Foi assim tas vezes, servem de inspiração e instrumen-
egípcias e na Europa, a partir da Idade no caso dos Bascos, nos anos 70, e em diversos to para iniciativas diversas. Em atividades do
Média, no adorno de paredes, muros e momentos na América Latina, em que o estêncil Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
igrejas. Já no século XX, serviu como serviu como uma maneira alternativa de chamar Docência (Pibid), por exemplo, estudantes do
base para o desenvolvimento de outras a atenção da população. curso de História da UFSM realizam oficinas de
técnicas mais sofisticadas. Na França, A contemporânea arte de rua cresceu em estêncil com alunos do colégio estadual Padre
o pochoir utilizava máscaras para re- meados dos anos 90 nas grandes metrópoles,. Rômulo Zanchi. Para trabalhar a temática da
alizar pinturas à mão com guache, o Caracterizou-se pela incorporação de técnicas e democracia em atividades extraclasse e tentar
que dava às ilustrações o aspecto de estilos diversos ao grafite ‘tradicional’, origina- se aproximar mais da realidade e dos interesses
aquarela ou pintura a óleo. do nos subúrbios da Nova Iorque dos anos 60 e dos alunos, são oferecidas oficinas como teatro
Na década de 30, surge a 70. As novas expressões, além de utilizarem car- e arte de rua.
técnica da serigrafia, um pro- tazes, adesivos, pincéis, estênceis e tinta spray, “A ideia é discutir as questões relaciona-
cesso mais elaborado que traz fazem uso de técnicas de marketing e publicida- das ao conteúdo de aula por meios diferentes
a possibilidade de reproduzir de para atingir os transeuntes. Resgatam, ainda, do ensino formal, abordando a função do sujeito
peças artísticas em grande elementos da Pop art, como as experimentações histórico na intervenção política, social e cul-
quantidade. A praticidade que com a cultura de massa e a reprodução em gran- tural”, relata Rodrigo Suñe de Oliveira, um dos
a pintura por meio de másca- de escala feitas por Andy Warhol. acadêmicos do projeto. “A utilização de elemen-
ras propicia, ao mesmo tempo O autor Tristan Manco descreve as mani- tos da arte não formal e que normalmente é coi-
em que garante a uniformida- festações de rua como uma resposta barata e bida, como o estêncil, permite trabalhar a livre
de das reproduções em série, acessível ao crescimento das comunicações de expressão na prática e colocar a questão: até
faz com que o estêncil seja po- massa de alta tecnologia – inacessíveis a maior que ponto existe democracia de fato na comuni-
pularmente utilizado até hoje parte da população. cação humana?”
como técnica de decoração de Na arquitetura urbana, palavras e ícones O objetivo do projeto é trabalhar à mar-
ambientes, móveis, papeis de fazem parte da composição do ambiente, cha- gem da educação tradicional e construir com os
parede e para a pintura de pla- mam a atenção e têm um caráter autoritário – alunos material de suporte ao livro didático que
cas de sinalização, entre muitas basta pensar na mensagem “Pare” das placas de esteja mais conectado à realidade deles. Aí en-
outras. trânsito. A utilização de ícones da cultura po- tra a prática do estêncil e a criação de fanzines

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diversidade. A aplicação do estêncil, ao vivo, foi pensamentos que permite debates, confronta-
interessante pela praticidade, além de chamar ções, e não de imposições. Todos podem se ma-
a atenção das pessoas devido ao uso do spray”, nifestar no espaço público, desde que não preju-
explica Fábio Purper Machado, um dos membros diquem esse espaço”, afirma o vereador.
do (Des)Esperar. O projeto de lei, portanto, pretende ini-
bir essa forma de “vandalismo“ e reduzir a “po-
As controvérsias luição visual” na cidade. “Existem outras formas
de manifestação artística. Mas eu acho que de-
As várias formas de manifestação urbana veriam ser criados, então, espaços públicos para
guardam entre si diferenças técnicas, estéticas isso. Para que o jovem possa se manifestar, ter
e práticas. Enquanto o objetivo do pixo – que seu lugar. É até uma contradição que a cidade
subverte até o termo, com x mesmo – é espa- cultura, com sete universidades, não tenha um
lhar a marca da crew de forma compulsiva pela espaço deliberado para a juventude, para suas
por exemplo. Se as manifestações urbanas não urbe, com especial preferência pelos ‘picos’ di- ações e integração. Essa pichação, por exemplo,
são nem de longe uma unanimidade e abalam a fíceis ou arriscados, o estêncil costuma ter seu talvez seja até a falta disso”.
neutralidade das ruas, na escola, Rodrigo desta- foco na mensagem. Apesar das particularidades, Apesar da perceptível preocupação do
ca que a maior barreira é romper a lógica formal ao fazer uso indiscriminado de paredes, muros membro da casa legislativa municipal, atual-
já estabelecida. “Há uma abertura para esses e itens da arquitetura urbana, todas essas ex- mente não existe na Câmara nenhum projeto ou
projetos, mas a formação condicionada pela so- pressões trazem inerente a elas a contestação iniciativa voltado para a criação de espaços le-
ciedade e a apatia que se encontra na juventude a um dos valores mais básicos da sociedade: a gais para a arte de rua em Santa Maria.
de hoje que dificultam um pouco”. propriedade privada.
Artistas que não são exatamente “de rua” No momento, tramita na Câmara de Ve-
- no rigor do termo – mas que buscam alternati- readores de Santa Maria um projeto de lei mu-
vas às formas artísticas tradicionais e legitima- nicipal que pretende instituir na cidade um pro-
das também veem na adoção de práticas como grama antipichação. Para o autor do projeto, o
o estêncil uma possibilidade nova. É o caso do vereador João Carlos Maciel, a violação da pro-
coletivo (Des)Esperar, formado por estudantes priedade alheia é “uma afronta à sociedade”. O
do curso de Artes Visuais da UFSM. As ações do vereador acredita que esse tipo de atitude possa
grupo ocorrem em locais de circulação de públi- ser visto como uma forma de expressão, mas não
co e se caracterizam por utilizarem materiais de concorda com o uso de paredes públicas ou par-
baixo custo. ticulares sem autorização.
A intervenção Santa Maria da Boca da O projeto que toma como base leis muni-
Xícara, realizada em maio de 2010, elencou e cipais de mesma finalidade instaladas em outras
percorreu os quatro cantos da cidade, gravando cidades, como a de São Paulo, pretende coibir a
em estêncil no tecido – representando o líqui- pichação – termo que abrange no texto todas as
do que escorria da xícara – as paisagens santa- manifestações ilegais – por meio de multa, pres-
marienses. As gravuras foram feitas em locais tação de serviço para limpar muros pichados e
públicos, em meio aos transeuntes. “Escolhemos da participação da família nesse processo.
os quatro cantos da cidade de uma forma que João Carlos Maciel acredita que a arte de
acreditamos que represente Santa Maria e sua rua é impositiva. “A democracia é uma soma de

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* Para preservar a identidade dos entrevistados, foi utilizado apenas o seu primeiro nome.
se eu quiser fumar,
eu fumo.
Por: Caren Rhoden Imagens: Divulgação

A transformação de comportamento a partir da publicidade.

UMA QUESTÃO
Em Tudo sobre minha mãe, clássico de Al- das atrizes do cinema”. Sim, ainda era para os
modóvar de 1999, Marisa Paredes encena Huma homens, mas valores católicos e machistas não
Rojo, uma atriz reconhecida e cobiçada. Quando fariam progredir o mercado do cigarro. A mulher

DE SER FREE ela entra em um carro e acende seu cigarro, diz


que começou o vício por causa de Bette Davis -
moderna fuma, pois o ato a deixa mais inteligen-
te, dá força e poder. Aos homens, além de tudo,
queria ser igual a ela. Num tom e num ambiente dá masculinidade.
que lembram o de Bette Davis em A Malvada, de A Revolução Feminina alavancada pelo
1950, Huma Rojo fala o que muitas mulheres e Maio de 68 foi outro componente das campanhas.
homens pensaram e fizeram. A mulher liberta poderia, deveria fumar. Tragar a
A contribuição do cinema para o glamour sua liberdade. Ela havia conquistado o seu espa-
do cigarro é relevante. Ele – o cigarro - aparece, ço. De forma nenhuma as propagandas iam contra
ainda que apenas a fumaça, em muitas cenas do as vontades sociais. Olhando de fora, elas fala-
cinema hollywoodiano. Não apenas na década de vam o que se desejava ouvir.
50, mas com mais força aí, quando o público não
era somente o masculino da década de 20, mas As propagandas e a criação de marcas
também as mulheres e os jovens. A marca de ci-
garro Hollywood, surgida em 1931, usava slogans Em uma propaganda da Marlboro, o bebê
relacionados ao cinema: “Um Oscar de sabor”. diz “mãe, você realmente gosta do seu Marlboro!”
Nos anos 20, a propaganda de cigarro ti- e o exemplo materno, que deixa qualquer politi-
nha um objetivo: conquistar o público masculino. camente correto do século XXI pasmo, responde
Para isso, a sensualidade feminina foi isca. Nem estabelecendo um diálogo de cozinha: “Sim, você
se pensava nos comprometimentos à saúde, mas nunca sente que fumou demais. Esse é o milagre
em colocar nas caixas, jornais e revistas a figu- do Marlboro”. Não lembra a criancinha tapando o
ra de damas atraentes. Sobre a propaganda do nariz ou o feto no pote de vidro?
Comerciaes dos anos 20, Chrislene Carvalho dos Sobre a marca Marlboro, existem algumas
Santos (em artigo disponível na internet) escreve: análises não científicas que comparam o tamanho
“A imagem congela a cena de uma mulher com do “M” maiúsculo com a altura do “l” e do “b”,
cigarro na boca; as moças passam a identificar que, unidos e maiores (ainda que em letras mi-
o cigarro como um componente inseparável da núsculas), simbolizariam o falo. Faz sentido: fer-
imagem da mulher moderna, associada à imagem tilidade, virilidade e essas coisas. Mas também
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dizem que é puramente questão de pronúncia, ou clui que, desde a independência dos Estados Uni-
seja, para fortificar o “L”. dos, em 1776, têm ocorrido ciclos alternados, de
A sociedade em que essas propagandas aproximadamente 70 anos cada, de condenação
surtiam efeito e eram permitidas tinha outros extremada e de condescendência e até simpatia
valores. Ou melhor, aderia a outros valores e ao cigarro. De acordo com Musto, a atual onda
conheceu o efeito negativo do cigarro de forma começou por volta de 1980 e vai durar até a pri-
empírica. Cadeiras de cinema tinham embutido meira metade do século 21”. Essa nova fase é a
um cinzeiro. Bancários atendiam fumando. Salas de controle do consumo.
de aula, câmaras de vereadores esfumaçadas – é O Brasil de hoje, mesmo gastando muito
raro, no entanto ainda acontece. Bancos de ôni- com saúde, não abre mão dos altos impostos ar-
bus. Carros. Altos cinzeiros ornamentados para recadados com cada carteira de cigarros, ainda
amparar fumantes transitando legalmente pelas de preço baixo se comparada a outros países. Na
casas, restaurantes, hotéis... E, como diz o pes- França, por exemplo, uma carteira de Malboro é
soal por aí, “era chique fumar no Clube”. Ou no vendida por, mais ou menos, cinco euros, equiva-
hospital. A marca Camel, ainda, ligava-se à ideia lente a uns 12 reais.
elitista do médico que, depois de trabalhar mui- O tabaco é plantado por alguém e de al-
to, fumava seu cigarro. Se você quisesse ser im- guma forma que, por ser uma planta delicada,
portante como um médico, o que ligava você a utiliza um grande volume de agrotóxicos. Pelo
ele era o cigarro Camel. Alguns tratamentos de contato direto com as toxinas, quem planta pode
saúde eram feitos indicando ao paciente o con- sofrer de depressão irreversível. O índice de sui-
sumo de tabaco, considerando possíveis reações cídios em regiões de cultivo é alto, o que leva
positivas, medicinais. a crer na relação entre agrotóxicos e doença,
O imaginário cigarreiro é construído, en- porém não de modo comprovado. Por acaso, as
tão, desde o início do século XX. A propaganda mesmas empresas que vendem agrotóxicos, ven-
se efetivou socialmente e caracterizou, conforme dem medicamentos para os sintomas causados quências amplas, não se restringindo ao fumante
o período, uma prática antiquíssima, agora reno- pelo contato com as toxinas. O câncer atinge os o gasto em saúde.
vada: fumar. David Musto, professor de História cultivadores que, muitas vezes, não conhecem as A Alemanha nazista fez uma forte cam-
da Medicina da Universidade de Yale, nos Estados técnicas ambientalmente corretas (uso de pragas panha antitabagista entre os anos 30 e 40; o
Unidos, é citado em artigo de Gino Giacomini Fi- naturais para combater as prejudiciais ao cultivo, suficiente para que muitos tomem a proibição
lho e Mônica Pegurer Caprino: “Ele [Musto] con-
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por exemplo). Vemos algo incrustado e de conse- de hoje como um ato que impede a liberdade.

fora de pauta no 10 / outubro de 2010


Porém, os motivos são diferentes. A preocupação distribuição gratuita em estabelecimento de en-
de Hitler com a “raça pura” aprovou medidas sino ou local público;
como as que proibíam fumar em local público, V - o patrocínio de atividade cultural ou
reduziam a quantidade para mulheres e incenti- esportiva;
vavam investigações científicas sobre as conse- VI - a propaganda fixa ou móvel em está-
quências do consumo de tabaco. Isso não adian- dio, pista, palco ou local similar;
tou muito, pois o consumo do fumo aumentou até VII - a propaganda indireta contratada,
o fim da década de 30 e teve uma pequena queda também denominada merchandising, nos progra-
na de 40, já que, entre os soldados, o consumo mas produzidos no País após a publicação desta
era controlado. Médicos que faziam os estudos Lei, em qualquer horário;
e tinham conhecimento do câncer de pulmão se VIII - a comercialização em estabeleci-
suicidaram depois da morte de Hitler. Não havia mentos de ensino e de saúde.
lugar, pois a fetichização estadunidense era mais Desde 1989, advertências sobre os danos
forte. à saúde são colocadas em produtos da indústria
Qual é a liberdade? Como usamos o livre tabaqueira no Brasil. Os Estados Unidos já res-
arbítrio quando estamos inseridos em uma socie- tringiam a veiculação de propagandas em meios
dade? A consciência de nossos impulsos é peque- eletrônicos em 1969, pouco depois de, ao Brasil,
na. A princípio, fumamos por necessidade ou por chegarem os cigarros importados (a partir dos
vontade, longe de sermos induzidos por alguma anos 50). Em 1975, a Noruega proibiu definitiva-
propaganda ou por uma cultura recriada para o mente as propagandas - foi o primeiro a fazê-lo.
lucro, não é? Os próximos passos são dados em A proibição do patrocínio a eventos espor-
uma movimentação mundial. Quem queria ficar tivos e culturais rendeu polêmica. Os anúncios
fora do glamour, da força, da beleza, do sucesso? desapareceram nos países em que a lei antifumo
E hoje, que governo quer parecer despreocupado vigorava/vigora. Só no macacão dos pilotos de
com a saúde da sua população? Fórmula 1 da Ferrari, encontrávamos várias logos
O Brasil tomou suas medidas recentemen- da Marlboro. Hoje, são acusados por médicos de
te. Outros países também ou há mais tempo, aludir a marca fazendo uso das cores vermelho,
como os anteriormente citados. Nenhum mandou preto e branco e remeter a uma caixa de cigar-
fechar as empresas; restringiram as propagandas. ros através da faixa branca na altura do peito no
A Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, explica as macacão. Claro que negaram e trataram de, ao
proibições à venda e à propaganda do tabaco: menos, retirar o código de barras do carro.
I - a venda por via postal; As grandes empresas tentam a todo custo
II - a distribuição de qualquer tipo de manter-se à vista e parecem adotar táticas re-
amostra ou brinde; voltadas, visando definitivamente ao futuro dos
III - a propaganda por meio eletrônico, in- negócios e pretendendo omitir os danos. Fazem
clusive internet; com que a sensação de prazer supere índices ou
IV - a realização de visita promocional ou fotografias horrendas como as que estão atrás

18 fora de pauta no 10 / outubro de 2010


fumam. Houve uma queda de 43,4% no consumo são em estar fazendo algo, se não for fumando,
de cigarros no Brasil em 20 anos. Entre os jovens, leva a outras atividades e comer pode ser o terror
esse índice foi de 50%. Cerca de 10% dos jovens daquelas mulheres que foram convencidas pelo
são ex-fumantes, 53,9% das pessoas com 65 anos visual magérrimo das modelos da propaganda.
ou mais deixaram de fumar e 200 mil pessoas por Emagrecer fumando era legal. O cigarro eletrôni-
ano morrem no Brasil por causa do tabagismo. co beira o absurdo do desespero.
Os dados nacionais de tabagismo para este A estrutura desse cigarro à bateria recar-
ano, retirados do site Portal da Saúde, mostram regável, que acende até luzinha e faz fumaça,
uma queda do consumo, consequente, talvez, de leva câmara de vapor com resistência elétrica e
medidas anteriores como a que permitiu propa- microchip que controla o processo. Tem também
gandas de cigarro entre as 21 e às 6 horas apenas. um cartucho que contém nicotina em teores dife-
A proibição do fumo em lugares fechados reduz rentes. Aí é que está. O que o indivíduo fuma é
também os fumantes passivos que, segundo uma nicotina sem cheiro. Não existem pesquisas que
pesquisa, não são apenas os presenciais, pois ao forneçam um resultado preciso quanto ao nível
entrar em um ambiente em que alguém fumou, prejudicial desse brinquedo. O objetivo lançado
continuamos inalando componentes cancerígenos é fazer com que se pare aos poucos de fumar, na
resultantes de uma reação química entre a nico- linhagem daqueles adesivos de nicotina, porém
tina e o ácido nitroso do ambiente. São os fuman- aliado ao hábito prático, que é segurar entre os
das caixas de cigarro, escolhidas pelo teor de re- tes de terceira mão. dedos e soltar fumaça. O Brasil é um dos países
pulsa que causava em jovens que participaram da Parar de fumar, quando não é por motivos que proibiram e os Estados Unidos alegaram que
seleção das mesmas. graves, pode ser bastante engraçado. Comer ce- era cancerígeno. De cancerígeno, por enquanto,
Virginia Berger Tomasini, em seu Trabalho nourinhas fatiadas, por exemplo. Hitler mandava só daqueles que há em qualquer boteco. Esse ci-
de Conclusão de Curso em Publicidade e Propa- para os seus soldados comida a mais; a compul- garro eletrônico é chinês e encontrado em sites
ganda pela UFSM, escreve: “Ainda no Código de brasileiros, mesmo proibido.
Ética, a indução ao erro e ao vício é condenada. Entre a elite intelectual, a posição de fu-
Seguindo esses princípios, a propaganda de pro- mante já foi uma afirmação, um ato de perten-
dutos fumígenos é sempre antiética...”. cimento. Considerando que os ambientes eram
Os pontos de venda (conhecidos como liberados e a prática naturalizada, nada havia de
PDV) surgem como alternativa de melhor respos- estranho. Sartre mesmo era inseparável de seu
ta para os publicitários, onde eles podem utilizar tabaco. Ele e tantos outros homens e mulheres de
cartazes, pôsteres, painéis expositores (aqueles voz ativa traziam a liberdade de pensamento na
onde as caixas de cigarro aparecem enfileiradas) fumaça. E a liberdade acarreta responsabilidades.
e luminosos (normalmente com a propaganda de É a escolha que se faz para si e para tantos outros
uma marca). Ainda assim, não se pode deixar de que são afetados em uma cadeia relacional, tanto
lado as advertências que possuem um tamanho pessoal quanto econômica. Agora, podemos dizer,
mínimo a ser respeitado por lei. que não é mais uma aparente escolha. Ao menos
Estudos estimam que 16,1% dos brasileiros se você chegou até aqui no artigo.
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fronteira de concreto
Moradores preocupados com a sua segurança e de suas A relação com o concreto é inevitável – mais para um
propriedades. Famílias que necessitam se apropriar de um terre- lado que para o outro. Apelidado de ‘muro de Berlim’, hoje
no particular para construir seus lares. Existem os dois lados. E os moradores da Natal se acostumaram com o imponente vi-

Por: Lara Machado Fotos: Gianlluca Simi, Lara Machado e Tiago Miotto
existe um muro separando-os. É assim a convivência entre a Vila zinho. Alguns usam o muro a seu favor – seja para prender o
Noal e a Vila Natal desde o fim de 2006, quando uma parede pré- varal de roupas, seja como parede para a casa. Mas muitos
fabricada passou a delimitar a fronteira entre as vizinhanças. ainda não aceitam as razões dadas para a divisão: “Até no
No fim de 2004, algumas famílias ocuparam um terreno governo tem ladrão”, lembra o líder comunitário. A generali-
ocioso para ali construir suas casas e formar a Vila Natal. As gra- zação de casos isolados prejudica toda a comunidade. O posto
des, câmeras de segurança e outras parafernálias não foram sufi- de saúde, a escola e a quadra de esportes ficaram para o lado
cientes para deter a sensação de insegurança, aumentada com a de lá.
instalação dos novos vizinhos, de alguns residentes na Vila Noal. Até onde um grupo de pessoas pode interferir no direito
A solução tida como viável foi a barreira física e visual. As se- de ir e vir de outras tantas? Problemas de segurança pública,
gregações sociais se materializam em cerca de 300 metros de problemas sociais. O fato é que o diálogo entre os dois lados
comprimento e três de altura. teima em ser barrado por alguns muros. Concretos ou não.

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fora de pauta no 10 / outubro de 2010
esse tal de rock enrow
santa-mariense
Por: Luciana Minuzzi Fotos: Luciana Minuzzi, Marcelo Cabala, Arquivo Pylla e Arquivo Quintal de Clorofila

ontem e de hoje. O DCE, apelido da Boate do Di- Surge um vocalista em Zanzibar


retório Central de Estudantes da UFSM, mantido
pela entidade estudantil, funciona desde os anos Antes mesmo do DCE, os poucos que pro-
1980, estabelecido na Casa do Estudante Uni- duziam música levavam seus instrumentos com-
versitário I (CEU I). Toda sexta-feira é sagrado: prados ou feitos para o Zanzibar, lá o palco era
adoradores do rock batem o cartão por lá. No aberto para quem tivesse coragem. Por lá, passa-
salão de entrada, em uma sexta típica, dos mais ram Celso Streit, Alex Lappam, o artista plástico
contidos aos mais produzidos, circulam figuras de Geraldo Marques e vários outros que já tinham
Cabeludos aos montes, com seus jeans todos os tipos. suas bandas, especialmente de jazz, e costuma-
surrados, os braços levantados, cantavam a le- Morador da casa e frequentador do DCE há vam tocar nos bailinhos e lá se soltavam. Uma das
tra de uma música feita com guitarras pesadas seis anos, o estudante Conrado Meireles lamenta ‘crias’ do Zanzibar mora hoje em dia no que ele
roc k levado e vocais um tanto gritados. Essa parece ser uma que o espaço seja utilizado só na sexta-feira, por- denomina ‘casa do rock’. Se não é isso, é defini-
O s. Na que, segundo ele, o DCE “mantém um vanguardis-
às rua banda
cena comum de um show de rock, o lugar em que tivamente um espaço que respira o estilo. Até o
o palco foi montado é que não: bem na ‘boca’ mo do rock”. Enquanto no repertório tocava um gato da casa foi batizado em homenagem a Geddy
foto, a do Calçadão Salvador Isaia, no centro de Santa som clássico do The Who, as amigas Alith Moura Lee, do Rush. O lugar é o lar de Edson Kroth, mais
Fuga. Maria, em uma época em que era costumeiro o de Freitas e Maritza Schmidt, estudantes, obser- conhecido como Pylla.
rock fechar ruas e praças, quando a cidade não vavam o pouco espaço para as bandas indepen- Com ele, mora o sobrinho e pupilo Léo
era só o ‘Coração do Rio Grande do Sul’, mas a dentes e lembravam que a Catacumba – espaço Mayer, que, com apenas 15 anos, é guitarrista da
‘Seattle do Sul’. para shows dentro da boate – é um dos poucos atual banda do tio, a Carbono 14. Completam a
‘Cidade de passagem’ é também uma al- lugares em que músicos não tão famosos podem formação o baixista e professor de Léo, Cantídio
cunha de Santa Maria, pelo fluxo de estudantes tocar. La Maison,e o baterista Pablo Castro. O nome do
e militares. O que não está de passagem pela O estudante Marcelo Custela diz que já ro- grupo é uma referência ao apelido de ‘dinossau-
‘Cidade Cultura’ é o rock, que mesmo tendo se dou pelo Brasil e o DCE é ímpar. Mesmo assim, a ro do rock’, dado a Pylla pelos jornais de Santa
modificado, ainda persiste, assim como acon- cena ainda poderia ser melhor: “Se a galera fosse Maria. Nos shows, impressiona a vitalidade dos
tece no mundo todo. Muito mudou desde que mais pilhada, teria não só uma cena musical mais ‘dinossauros’ e o domínio da guitarra do precoce
as meninas berravam ao ver Elvis remexer rica, mas uma cena cultural”. Alith aponta o trio Léo, que não se intimida nas bases e nos solos, in-
os quadris no palco. Aqui não foi diferente. de sucesso que faz muita gente voltar sempre à terpretando clássicos do rock’n’roll. Quando Léo
Ou foi? Os jovens que, nos anos 90, circula- boate: “Cerveja barata, boa música e boas com- nem tinha dados os primeiros passos, Pylla decre-
vam pela Rua Dr. Bozano com seus vinis embaixo panhias”. Motivo maior que esse? Ademir Genero- tou “nasceu meu guitarrista”, sob os protestos do
do braço são os mesmos que colocam seus cotur- so, o Pink, diz o porquê de sempre voltar ao DCE pai do guri.
nos e amanhecem no DCE hoje? há mais de 10 anos: “Não sou amante, sou mari- Mesmo depois de 30 anos de carreira, Pylla
Entre altos e baixos do rock em Santa Ma- do, não, mais que isso, sou um gigolô do rock, por ainda conserva o cabelão ultrapassando os om-
ria, um lugar comporta e comportou roqueiros de isso tô aqui”. bros, jeans justos, jeito descolado de falar, ar de
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tínhamos as nossas bandas, mais o Rush, Deep co registro da dupla de folk psicodélico Di-
Purple, U2, um desfile de coisas boas e as bandas mitri e Negendre Arbo. Em 1978, os irmãos
daqui não ficavam pra trás”, diz Paulo Ricardo. começaram a tocar em Santa Maria com a
Entre as bandas que tocavam nas rádios e nos Quintal de Clorofila. Flauta e violão eram
shows estavam a Fuga, em que Pylla era vocalis- os instrumentos principais da banda,
ta, Nocet, Doce Veneno, Feeling, Ponto G, Dirty mas, no disco, serrotes, galões e telhas
Job, Serpent Rise. O comunicador buscava incluir compunham as canções, bem ao estilo
as bandas, nem que fosse por uma única vez, para Hermeto Pascoal, com a proposta de
que o povo soubesse o que estava sendo produzi- se contrapor ao tradicionalismo gaú-
do em Santa Maria. cho que dominava as rádios. “Éramos
poucos defendendo a bandeira de uma
O primeiro elo música livre (o mesmo estandarte do painel que
o grande Garriconde pintou na entrada do Centro
Entoadas até hoje, Saudade e Não Vou Fi- de Artes e Letras da UFSM)”, lembra Negendre.
car marcaram a geração da ‘Seattle do Sul’. As Os Arbo levaram a sua música pelo país
músicas estão na primeira coletânea produzida todo, e a cada parada a bagagem musical aumen-
fora do circuito da capital, com o nome de Elo tava. “Saímos como vikings em um Drakkar com
Banda Fuga. Pylla é o segunda a partir da esquerda.
Um, lançada em 1993 de forma independente, um reboque pendurado atrás”, conta Negendre.
totalmente autoral, reunindo as santa-marienses Influências latinas, medievais e africanas são só
uma geração pautada pelos shows super produ- Fuga, Nocet, Doce Veneno e Feeling. “O Elo Um alguns dos itens da mistura do Quintal de Cloro-
zidos, roupas características das bandas de Hard foi quando a gente sentiu que era forte e que es- fila. A inspiração vinha da natureza e da lisergia:
Rock, como Rush e The Who. Nada parecido com tava se armando um grande jogo na capital para “As drogas alucinógenas tiveram importância vi-
os ‘largadões de Seattle’ que tiveram seu ápice que o rock do interior não chegasse lá”, conta tal na história do rock de Santa Maria. Cogumelos,
nos anos 90, como Soundgarden, Pearl Jam, Nir- Pylla. O Elo Um teve um segundo volume, mais corpos cheios de sonho, dançando e tocando pan-
vana e Alice in Chains, contemporâneas à deno- voltado para covers. Paulo a e
deiros e flautas numa clareira. Melodias e letras h
minação de Santa Maria como a ‘Seattle do Sul’. Formavam a Fuga, além de Pylla nos vo- nasciam assim, escritas na areia de um riacho mi- Noron s Brum
Mesmo assim, a expressão pegou. Criador da fra- cais, Rafael Ritzel e Zezinho Cacciari nas guitar- núsculo de uma fazenda a caminho do rio Verde”. Viniciu show da
se, Paulo Ricardo Pedroso explica que a compara- ras, Gonçalo Coelho no baixo e Pipoca na bateria. A Quintal de Clorofila teve em um ronte.
ção foi feita porque as duas cidades eram campo Antes do Elo Um, a Fuga lançou o Crime ao Vivo, seu fim em 1998, mas os Rinoce
fértil para o bom rock, independente do estilo. em 1992, e, antes ainda, disco homônimo da ban- irmãos não pararam com a
Comunicador da Rádio Atlântida na épo- da, em 1989. Sem Medo, uma das faixas de Fuga, música.
ca, Paulo Ricardo foi também um dos responsá- teve um videoclipe dirigido pelo saudoso Sérgio
veis pela inclusão de muitas bandas da cidade na Assis Brasil, diretor de Manhã Transfigurada. Em Rock ponta de estoque
emissora e nos festivais organizados pela mesma. tempos de apogeu de bandas como Engenheiros
“A Avenida Presidente Vargas era palco, todos os do Hawaii e Nenhum de Nós, a Fuga se diferencia- O ‘Mistério dos
domingos, de grandes shows. A gente alugava um va com passagens instrumentais e arranjos com- Quintais’ foi lançado
palco, pagava um cachê pras bandas, colocava plexos. pela antiga loja de dis-
um camarim com tudo que eles poderiam querer O Elo Um não foi o marco inicial do rock na cos, K7s e CDs, Bobby
e o público ia lá gratuitamente”. Nesses shows, o cidade, é claro. Muito antes, bandas como Thanus Som, na Galeria Chami.
público chegava a três mil pessoas. e A Bruxa já davam as caras, e dez anos antes Como fez a Quintal de
“Enquanto as rádios de POA [Porto Alegre] da coletânea, em 1983, outro disco era lançado. Clorofila, muitas ou-
continuavam tocando Angélica, em Santa Maria, Mistério dos Quintais é o nome do primeiro e úni- tras lançaram seus tra-

fora de pauta no 10 / outubro de 2010


eles gastam um dinheirão pra tocar um monte de época do Elo Um. “Hoje a efervescência é outra”,
nada”. Para o comunicador Paulo Ricardo, o pro- ele diz. Como participante do Macondo Coletivo,
blema são as referências: “Olha a diferença das que integra o movimento Fora do Eixo - rede que
bandas que se copiava no passado e as de ago- une trabalhos de cultura alternativa independen-
ra”. te de produtores culturais do País - Noronha quer
A falta de contestação no rock é sentida atingir um âmbito maior com a sua música, pen-
pelo ex-Fuga Pylla: “Hoje, se o cara for reivin- sando no Brasil e fora dele. O vocalista se dedi-
dicar não ganha o dinheiro do pai pra comprar o ca desde 1993 a projetos musicais, já transitou
instrumento. Na nossa época, tinha cara que se pelo blues, e, agora na Rinoceronte, com Alemão
formava em eletrônica por correspondência pra Luiz Henrique na bateria e Vinícius Brum no baixo
poder construir o próprio instrumento”. E conti- e voz, faz um rock simples e ao mesmo tempo
nua: “Essas magias que não existem mais fazem pesado, cantado em português, com letras pró-
o rock deixar de ser o rock que era pra virar um prias, que resgata um rock com acordes pesados
balhos por lojas. Além de gravadoras e revendas, rock de boutique, do menino comportado, colo- característico do fim dos anos noventa em Santa
os estabelecimentos serviam como ponto de en- rido, cheirosinho, que vai falar sobre a calcinha Maria.
contro. Iniciada como um bar, a Excluzive era um que não conseguiu tirar, uma coisa muito supér- Como observador e participante do mer-
Léo anha
desses espaços de compra de novidades e troca flua, boba, muito lixo, ao passo em que estamos cado, Noronha crê num futuro próspero para as

acomp s shows de informações, administrada por Gilberto Rama- vivendo coisas no mundo que teriam que ser pos- bandas independentes: “Seja rock, pop, sertane-
o lho, o Betão, um dos pioneiros a vender Heavy
o tio n ono 14.
tas em pauta. Hoje tem muita gente que se pre- jo, vai ter um espaço bem maior do que hoje”.
Metal para a gurizada. Para trazer os lançamentos E acredita que os movimentos vão se reciclando:
b cisa brigar, mas a juventude parece ter medo. A
da Car e encomendas dos clientes, Betão precisava ir até juventude ficou muito superficial, querem uma “O diferencial é que nos 90 era rock autoral. Logo
Porto Alegre. Hoje, downloads e internet substi- coisa pra eles e não pra nós. Não é um coletivo”. após a dissolução desse movimento, rolou outro
tuíram os rituais antigos. “Não tem mais aquele Os novos roqueiros, como Léo, também com covers, que tá aí até hoje e mesmo assim,
clima de ir até a loja e trocar ideias pra criação. sentem falta de um ‘rock-protesto’ e critica a tem espaço pra banda autoral hoje, reduzido,
É muito diferente falar com um só pelo compu- linguagem ‘feliz’ do rock que tem sido apresenta- mas tem”. Não se sabe se por exigência dos em-
tador, do que com dez ao mesmo tempo. do pelas rádios de grande massa. “Falta interesse presários, do público, ou de outros fatores, mas
Hoje a coisa tá muito individualizada, cada em buscar outras coisas além do que tá nas rá- o cover está instituído na cidade. “A questão é
um curte um estilo e não há uma troca, uma dios. Hoje é fácil baixar um CD do Led Zeppelin, homenagear mesmo, tocar um som que gostamos
ajuda”, lamenta Betão. do Black Sabbath.” Sobre a cena que Léo herdou, muito e transmitir isso pro público”, diz a voca-
“Os apaixonados continuam. Tem Pylla pondera: “Tem uma alma criando ainda pra lista Aniele Freire, da Lady Insanna, que costuma
os ouvidores de som, que ouvem porque os não deixar morrer o que existiu, são poucos dos apresentar tributos à Janis Joplin. “Interpretar
outros estão ouvindo, e tem os curtidores, que ainda pegaram a formatação inicial do rock. Janis é uma responsabilidade enorme, compensa-
que vão procurar novidades, bandas menos Por outro lado, me sinto vivo quando vou ao te- da pela resposta do público”, segundo Aniele.
conhecidas”, classifica Betão. As dificuldades atro assistir grupos como Rinoceronte, de gente Já o movimento de festivais parece estar
de arrumar uma gravadora eram um modo de como éramos naquela época, que não espera crescendo. O festival de rock independente Ma-
selecionar o que era bom ou ruim, segundo Be- acontecer”. condo Circus, por exemplo, ocorrido em 2009,
tão. “O rock pra mim não morreu por insistên- reuniu um grande público para assistir gratuita-
cia de uns da antiga. Se depender dessa guri- Talking about my generation mente bandas de todos os lugares do País, inclu-
zada de hoje em dia, com raríssimas exceções, sive daqui. Os shows aconteciam no centro da
adiós rock’n’roll. Eles estão mais preocupados A Rinoceronte, citada por Pylla, tem Paulo cidade, em plena luz do dia, em meio ao cami-
Be com a tecnologia. Esquecem que os caras come- Noronha como vocalista e guitarrista. O músico nho de cada dia dos passantes na Praça Saldanha
coman tão çavam com uma guitarra e morriam com ela. Hoje faz parte da geração que assistia aos shows da Marinho, e seguiam pela madrugada adentro no
Excluz da a
os ano i ve d e fora de pauta no 10 / outubro de 2010
s oite sde
nta.
Macondo Lugar. já não estão mais na ativa. E mais: é possível ver abertura política de
Também há outros festivais, como Cesma in e ouvir os caras. Está no site de compartilhamen- agora e das pessoas
Blues e Grito Rock, já se concretizando na agenda to de vídeos Youtube Crime ao Vivo: um elo, uma serem menos con-
cultural dos santa-marienses, fundindo rock com era, documentário que retrata a ‘Santa Maria, servadoras, é uma
outras manifestações, como artes visuais e tea- Seattle do Sul’. O vídeo é resultado de um proje- adrenalina, mexe
tro, e ocupando lugares públicos e privados por to experimental do curso de Comunicação Social contigo, testa
toda cidade. “Temos boas bandas atuando de for- da Unijuí, idealizado e dirigido por Tiago Andrade tuas ânsias, tua ide-
ma significativa e atraindo a atenção do público dos Santos. Músicos, apoiadores, produtores, fa- ologia”.
de fora. Tudo isso é fruto de uma organização na lam sobre a importância do Elo Um para a época, O criador da ‘Seattle
cidade entre diversos atores sociais que traba- intercalados com trechos dos shows das bandas do Sul’, Paulo Ricardo, tenta
lham para fortalecer e divulgar os trabalhos da- que formaram a coletânea. definir uma expressão para a
qui”, analisa Fábio Wilke, vocalista da Ventores, Pylla é um dos poucos da época da ‘Se- cena atual: “Dá pra criar um
ores
banda que faz parte do nicho das autorais. attle do Sul’ que continua na ativa, outros dão conceito de que Santa Maria
A Vent a no
apost oral.
O estilo também está na tela dos cine- aulas, trabalham em estúdios, ou mudaram to- precisa voar de novo em ter-
clubes e em exposições, como a organizada pelo talmente de profissão. O vocalista, que já viveu mos de rock, de música, por- ut
integrante do Macondo Coletivo, Marcelo Cabala, o ‘sexo, drogas e rock’n’roll’, agora delega outra que eu tenho bastante medo som a
e a fotógrafa Estela Fonseca, que foi apresentada trindade para o rock “amor, liberdade musical e de como vai ser o futuro da
no Ciclo Mês do Rock no Cineclube Lanterninha saúde”. Uma fase ruim em 2000 fez com ele se música local. Minha filha
Aurélio e depois em outros pontos de Santa Maria. afastasse da música, mas se recuperou e lançou chegou a ir aos shows quando
“Eu posso dar o meu olhar para o momento, ter Bruxos Rosa em 2004. O segundo trabalho solo de pequena e tantos outros que
a liberdade de fazer arte em cima de outra arte Pylla, lançado em 2008, Pylla Canta 25 anos de sabem sobre a época ficam
e apoio dos músicos pra isso”, diz Cabala sobre o Rock Santa Maria, reúne dez faixas de bandas que até frustrados por não terem vivido aquilo. Para
porquê de registrar. marcaram a história do rock de Santa Maria entre isso voltar, é preciso uma mudança de menta-
Há dez anos acompanhando o rock santa- os anos 80 e 2000. A lista inclui Thanos, A Bruxa, lidade, apoio à cultura, o lado empresarial
mariense, Cabala analisa: “Em 2004 os lugares Fuga, Nocet, Feeling, 220 Volts, Black Rain, In- deveria dar mais asas, não só ao rock, mas a
diminuíram, o jornal não dava muito espaço, rá- seto Social, com a participação dos músicos que todos que fazem música boa na cidade”.
dio já tinha mudado o perfil. Logo depois abriu fazem ou faziam parte das bandas. O lançamento Mesmo que grande parte da agen-
o Macondo, em março de 2005, e muitas bandas do CD reviveu a tradição dos shows no Largo da da rock do fim de semana em Santa Ma-
viram ali um espaço. Só que ficou só lá e as ban- Locomotiva, na Avenida Presidente Vargas, reu- ria seja composta por tributos e covers,
das se acomodaram. A cena com o Macondo se nindo um público cativo. parece haver um restabelecimento dessa relação
fortaleceu por um lado e diminuiu por outro”. “Eu reconheço que ainda estou na estra- preciosa. Porém, a concretização do público can-
O momento é de se profissionalizar, gravar com da só por insistência, porque eu ainda tenho que tando junto às composições próprias
qualidade e ter uma boa divulgação, segundo Ca- fazer essa semente brotar [aponta para o Léo] e das bandas ainda levará algum tempo.
bala. Atribuída por muitos como a causadora do porque o povo me faz feliz. Como disse Bono Vox Há quem discorde e acredite que o rock
fim do ‘clima rock’, a internet é o principal meio do U2 e eu assino embaixo, a gente é feliz porque santa-mariense morreu. Cada um tem
de divulgação dessas novas bandas. “A lógica da faz rock e isso nos dá a possibilidade e a bela uma opinião, um gosto, uma ideia, e só
produção e mesmo a sobrevivência musical se dá sensação de mudar as coisas na nossa volta. Pelo dá para tirar a prova ouvindo. O rock feito
através da internet”, afirma Fábio. menos na nossa volta”. E fazer rock em Santa Ma- no ‘coração do Rio Grande do Sul’ não é só
ria é ainda mais peculiar para Pylla: “O rock origi- isso. Tem muitas outras histórias para con-
Onde estão os pioneiros?
nal tem a propensão de ser agitado, de protesto, tar e tantas se desenrolando. Só que, como
A vilã/heroína internet é um meio de en- e fazer isso em uma cidade religiosa como essa, diz Negendre, “se eu te contar todo o pro-

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contrar o trabalho de bandas de Santa Maria que com essa potência armada que temos, apesar da cesso calculo uns 300 anos de cadeia...”.

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dois ainda é pouco... Por: Felipe Severo Imagem: Divulgação

No início do século XX, Catherine amou protesto das minorias, a revolução sexual atinge melhor que fazer o casal de assaltantes de banco
dois amigos: um francês e um alemão, Jules e seu auge. ter um caso com o jovem que passa a acompa-
Jim. A I Guerra Mundial faria os dois lutarem um Esse movimento é retratado no filme Os nhá-los na viagem. Porém Warren Beatty, galã e
contra o outro, mas o tempo acabaria por baixar Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, di- produtor do filme, barrou a ideia por achar que
a poeira das bombas e fazer a paz reinar. Então, retor que viu a efervescência da Europa na épo- não cairia bem para a sua imagem fazer o papel
entre passeios de bicicleta, corridas na ponte e ca. No filme, o estadunidense Matthew, que fora de um “homossexual” e, em troca, aceitou que
muitas lágrimas, Catherine, Jules e Jim viveriam estudar em Paris, aproxima-se dos gêmeos fran- Clyde, seu personagem, fosse impotente.
juntos durante anos, sem que ela precisasse es- ceses Isabelle e Theo graças à paixão que todos A Nova Hollywood, embora tenha avança-
colher por algum deles. Catherine morreria sen- nutrem pelo cinema. Enquanto a revolução toma do em vários temas considerados tabus, deixou a
do “uma mulher para dois”. as ruas, os três se mantêm presos em um aparta- questão dos relacionamentos a três para trás. A
Em Jules e Jim, o diretor francês François mento, fazendo jogos sexuais que os tornam cada epidemia da AIDS que começou a assustar a todos
Truffaut mostrou pela primeira vez no grande ci- vez mais íntimos. Ao som de rock e ao gosto de vi- nos meados da década de 80, conhecida pelos se-
nema uma relação a três, ou na expressão fran- nho, os três caminham nus pela casa, tomam ba- tores conservadores da sociedade como “a peste
cesa, um ménage à trois. Ao dar o primeiro pas- nho juntos e discutem política e cinema. Porém, gay”, parece ter freado a revolução sexual em
so, o cineasta parece ter aberto a porta para essa enquanto os irmãos desejam a liberdade sexual vários âmbitos, entre eles a aceitação do ménage
temática que viria a receber um grande volume como uma maneira de contestação, Matthew só à trois como uma prática normal, visto que esta,
de obras décadas depois. deseja uma relação monogâmica com Isabelle. em grande parte das vezes, supõe um relaciona-
O clássico francês foi lançado em 1962 Entre Jules e Jim e Os Sonhadores, no mento bi ou homossexual.
quando começava a surgir a revolução sexual. entanto, foram poucos os grandes filmes que Em 1994, Andrew Fleming alcançou suces-
Além da criação da pílula anticoncepcional, as trouxeram a temática do relacionamento a três. so ao trazer novamente o tema à tona, com a
ideias do filósofo e sociólogo alemão Herbert Existiram tentativas, como a de Robert Benton comédia romântica Três formas de amar. Dois ra-
Marcuse, que associava diretamente a repressão e David Newman, escritores do primeiro roteiro pazes e uma moça que dividem um apartamento
sexual à manutenção de uma ordem social ex- de Bonnie e Clyde – Uma rajada de balas (1967), acabam por dividirem também a cama. Banhos
ploradora, estimularam a mudança de compor- filme que começou a Nova Hollywood, movimen- nus no riacho, seduções na biblioteca, conversas
tamentos. A livre expressão da sexualidade foi to que revolucionou a indústria cinematográfica ao telefone. Tudo parece perfeito, até o sexo fi-
uma das primeiras armas usadas pelos estudantes estadunidense. Os roteiristas estreantes, apaixo- nalmente entrar em cena.
de todo o mundo para lutar contra uma socieda- nados por Truffaut e Godard, queriam transfor- Depois desse filme, a temática parece ter
de na qual não acreditavam mais. Em 1968, ano mar suas ideias em um filme ao estilo da nouvelle voltado à moda. Nos últimos anos, muitos são os
marcado por grandes movimentos políticos e de vague francesa e pensaram que, para isso, nada filmes, surgidos nos mais diferentes países, que
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trazem um ménage à trois. É o caso do mexicano phe Honoré. Nele, o jornalista Ismael começa vi-
E sua mãe também, que conta a história de dois vendo um conturbado e divertido ménage à trois
rapazes e uma mulher casada, decidida a mudar com sua namorada Julie e sua colega de trabalho
sua vida, que partem em uma viagem à procura Alice. Ismael desconfia que as duas querem eli-
de uma praia que nem sabem se existe. Depois de miná-lo do jogo, Julie se recente dos momentos
muitas revelações e brigas, todos acabam ceden- em que os outros dois passam sozinhos à noite na
do e o que poderia ser só um fim de semana de redação e Alice se sente excluída por causa do
novas experiências sexuais acaba mudando para romantismo dos namorados. Num dos momentos
sempre a relação entre eles. mais engraçados do filme, Julie tenta explicar a
Se há algo que parece ser uma constante relação dos três para a sua mãe, que se mostra
nos filmes sobre esse tipo de relações é o ciúme. curiosa para saber como surgem as posições na
Há filmes em que ele praticamente se torna o hora do sexo. “Como dizem, já é difícil a dois”,
tema principal, como são os casos do francês Flor completa ela.
da Pele e do brasileiro Cidade Baixa, ambos de Outro destaque é Vicky Cristina Barcelo-
2005. No primeiro, um casal de namorados e seu na, do veterano Woody Allen. O romance entre as
novo companheiro só se dão bem até o momento duas mulheres que dão título ao filme e o pintor
em que os três transam sobre um tatame. No se- Juan Antonio só emplaca quando, após se esta-
gundo, a amizade de infância de dois habitantes belecer com Cristina, o artista recebe em casa
do Recôncavo baiano se rompe quando ambos se sua neurótica ex-mulher, Maria Elena, e os três
veem apaixonados por uma prostituta. passam a viver juntos.
Será que existe alguma relação a três li- A verdade é que o relacionamento ou sim-
vre de ciúmes? No cinema nacional, há pelo me- plesmente a transa a três é uma das fantasias
nos uma, a de Caramuru e das índias Paraguaçu sexuais mais comuns entre homens e mulheres.
e Moema, duas irmãs que faziam jus à alcunha A estranheza se vincula com a criação cultural
de gentis e que receberam o protagonista com do indivíduo. Seja pelo ciúme, seja pelo acaso
os braços (e não só os braços) abertos nas terras de uma correspondência perfeita, essa condição
recém inventadas. tripla é frágil e, falam essas películas, intensa.
Nos últimos anos, têm surgido ótimos fil- Para a corrida na ponte de Jules e Jim, união,
mes com o assunto. Um deles é o musical francês origem. Para a corrida final de Os sonhadores, a
As Canções de Amor, de 2007, do diretor Christo- turbulenta despedida.
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À base de cola e fita adesiva faz-se um
costume em Cachoeira do Sul.

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Quem caminha pelas ruas de Cachoeira do nhava percebeu e mostrou ao Seu Milton os papéis, Todas as funerárias locais oferecem, já a
Sul, cidade a 120 quilômetros de Santa Maria, topa, igualmente simples, brancos, com apenas letras partir do ‘pacote básico’ de funeral, o serviço de
vez ou outra, com cartazes simples, impressos em pretas e em tamanho grande, colados nas paredes confecção e colagem dos cartazes pela cidade.
folha de ofício colados nas paredes de locais mais da cidade espanhola. Estava ali, fincado no Antigo Nomes do falecido e dos familiares que convidam
centrais e tradicionais da cidade. Continente, um elo com a cidade gaúcha de onde para o velório, local e hora do funeral - informa-
À primeira vista, o visitante poderá estra- haviam partido. ções básicas que integram a mensagem disposta
nhar o costume, mas perguntar aos moradores As ‘participações de falecimento’ (talvez nas paredes da cidade.
pode não esclarecer. A verdade é que, para aque- por lá elas tenham outro nome) são tão comuns Com fita adesiva, muitas vezes são os pró-
les que moram na cidade, não há nada de diferen- aos habitantes de Cachoeira do Sul que nem lhes prios donos das funerárias que saem, assim que
te nos cartazes. ocorre se perguntar quando e como esse costume acionados pelas famílias, colando os convites em
Ninguém sabe como o costume começou. iniciou. pontos estratégicos da cidade: antigo Café Free-
Entre os mais antigos proprietários de funerárias Cachoeira do Sul costumava ser o ‘Império zar, Imobiliária Rodrigues, Padaria do Comércio,
locais a dúvida persiste. Informações desencon- do Arroz’ e, às margens do rio Jacuí, formou-se Clube Comercial, Rua Sete de Setembro e Rua Ju-
tradas dão conta de duas ou três funerárias que uma cidade inteira que, algumas décadas atrás, lho, muro da Galeteria Querência, Doce De Leite
podem ser as mais antigas da cidade. O Arquivo concentrava a produção de arroz nacional. Anos (antiga sorveteria Damasco), Churrascaria Urca,
Histórico também dá poucas pistas sobre o caso. mais tarde, a cidade sobrevive em espaço mais antigo Bar América, antigas Rodoviária e Ferrovi-
Nota-se que, seja como for, o hábito ultrapassa ge- modesto, com cerca de 80 mil habitantes e com ária e nas portas das igrejas.
rações. E, na verdade, a pouca informação sobre pouco daquilo que um dia foi um império. Apesar de não existir um registro formal
a tradição provém também da naturalidade como A ‘Princesa do Jacuí’, como outrora conhe- que comprove há quanto tempo existe o hábito das
ela é vista pelos habitantes de Cachoeira. Afinal, cida, reforça diariamente um costume que atra- ‘participações de falecimento’, é consenso entre
se os cartazes estão ali todos os dias, colados nas vessa décadas, se não séculos. Os moradores mais os moradores mais antigos que esse costume ante-
paredes, quem há de perceber algo de especial antigos ainda vivos fazem força na memória para ceda a década de 30 do século passado. Júlio Cé-
neles? lembrar de uma possível origem para o costume. sar Caspani, prefeito de Cachoeira do Sul entre os
Seu Milton, da Funerária Madre Tereza, per- Apesar do esforço, a maioria deles se lembra dos anos de 67 e 82, lembra-se que o hábito existe há
cebeu. Até porque os cartazes fazem parte de seu cartazes desde a infância. mais de 30 anos – porém, acredita que seja ainda
cotidiano. Diariamente é ele quem atende as fa- A chamada ‘participação de falecimento’ mais antigo. Na lembrança de Caspani, a primeira
mílias que, quase sempre, chegam à sua funerária ou ‘convite de enterro’ é um cartaz simples con- funerária a oferecer o serviço foi a Hausen, de Ol-
por motivos tristes. feccionado pelas funerárias locais. Mas, na cida- demar Hausen. O ex-prefeito recorda, inclusive,
Quando Seu Milton decidiu sair de férias, de, o costume leva as famílias a tomarem, como que Oldemar costumava ler em voz alta, aos que
encontrou nas paredes medievais de Toledo, cida- primeira providência depois do falecimento de al- passavam, o convite de enterro. Anos mais tarde,
de espanhola de 78 mil habitantes, uma semelhan- guém, uma rápida busca pelo serviço de impressão a funerária Hausen foi vendida e o dono passou a
ça com a sua Cachoeira. Um amigo que o acompa- do ‘convite’. ser José Albino Schuck.
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João Alves (“bota aí que eu tenho 75, que Alguns não conseguem lembrar de uma fu- ruas. Dentro de ‘poluição visual’, encaixavam-se
eu ainda não fiz 76 anos”) lembra-se de ver os nerária mais antiga que confeccionasse os convi- cartazes em excesso, panfletos, colagens diversas
convites colados nos postes e nas paredes des- tes de enterro, mas é de comum acordo que ela, – e até mesmo as ‘participações de falecimento’.
de os seus oito anos de idade. Recorda também em algum momento, já existiu. Os vereadores argumentavam que o ‘tira e bota’
que a Funerária Hausen costumava colar em um Os moradores Ariovaldo Alves (69) e Saul de cartazes acabava por estragar a pintura dos
quadrinho as suas ‘participações de falecimento’ da Silva (80) lembram que além dos convites de prédios, além de poluir visualmente a cidade.
– para depois colar em toda a cidade. Seu João enterro, a cidade também escutava o sino da No entanto, um hábito tão popular não
também lembra que é obrigação das funerárias, igreja tocar. “Agora isso é só com os alemães”, terminaria assim, na base do canetaço político.
logo após o enterro do memorado, retirar todos referindo-se à comunidade luterana da cidade, A população não demorou para se manifestar
os cartazes que foram colados antes. “Sempre que ainda cultiva o hábito de tocar o sino quando contra a medida. Ani Frey, uma das vereadoras
colaram em pontos estratégicos. Antes era até os um de seus membros falece. da época, conta que recebia telefonemas lhe pe-
trilhos [onde se localizava a antiga Ferroviária], O costume, que parece não ter data de iní- dindo para manter as ‘participações’ coladas nas
depois até o Trevisan [ponto central da cidade], cio, quase foi extinto no ano de 2006. Ignorando ruas. Foi ela quem encabeçou o movimento con-
depois até o Hotel União [quase na saída da cida- a tradição popular, a Câmara de Vereadores da tra a proibição dos cartazes. Além das ligações,
de]. Colavam também nas portas das Igrejas”! cidade decidiu por diminuir a poluição visual nas moradores e donos de empreendimentos locais
declararam na época que cederiam os espaços de
suas paredes para a colagem dos ‘convites’.
A intenção de proibir a colagem nas pa-
redes foi superada, e a legislação só passou a
proibir as colagens em postes de luz da cidade. A
vereadora Ani Frey celebrou a decisão em favor
da tradição da cidade: “um costume como o das
‘participações de falecimento’ faz parte da co-
municação local da comunidade, já está implan-
tado na rotina das pessoas”.
Acredita-se que algumas pessoas prefiram
as ‘participações de falecimento’ coladas pela
cidade não apenas em consequência do costume,
mas também pela economia da prática.
Qualquer máquina fotocopiadora é capaz
de imprimi-las a custo baixíssimo, o que bara-
teia o processo para as funerárias e, consequen-
temente, para os famílias. Além disso, o cliente
pode escolher os locais onde serão coladas as
‘participações’.
Érico Gomes, há mais de 20 anos no ofício e
dono da funerária Cachoeirense (a mais antiga da
cidade em funcionamento), lembra que o preço
alto cobrado pelos jornais faz com que as famílias

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optem pelas ‘participações’. Além de economizar já pode ser impresso e posto em circulação na
um bom dinheiro, muitos moradores, certamen- cidade.
te, olharão primeiro os cartazes espalhados pela Conforme os tempos vão passando, algu-
cidade antes de olhar os jornais. “É uma forma mas coisas vão e outras ficam. Entre a rapidez e a
de interagir com a comunidade sem pagar muito facilidade com que a rotina nos perpassa, é curio-
para sair no jornal”, como diz Seu Milton. so e, ao mesmo tempo, interessante pensar em
As pessoas que chegam às funerárias nor- como uma comunidade estabelece, desenvolve
malmente pedem as ‘participações de falecimen- e mantém seus próprios costumes, seus hábitos
to’. São raros os casos de familiares que não de- legítimos. “Eu não me lembro de ver em outro
sejam a ‘participação’ e, nestes casos, o normal lugar o costume igual ao nosso. Tenho compadres
é que mais nenhum recurso seja usado – tais como que têm funerárias e nenhum deles faz as ‘parti-
rádio ou jornal impresso. cipações de falecimento’”, diz Seu Érico.
“Lembro que desde a minha infância, ve- Seu Lídio Gehrke mora há mais de 40 anos
mos as ‘participações de falecimento’ coladas na cidade. “Eu acho que é um costume muito
pelas ruas”. Érico descreve que quando ele co- interessante que não deveria acabar nunca. Eu
meçou a trabalhar com esse serviço em Cachoeira moro há muito tempo no mesmo lugar, vou todos
do Sul, as ‘participações’ eram feitas nas tipo- os dias na Padaria do Comércio e depois vou atrás
grafias, durante a madrugada. Contava-se letra dos convites de enterro para saber quem faleceu.
por letra, e as máquinas iam confeccionando. Acho muito bom, pois gosto de saber. Vai que um
Depois de prontas, ainda eram revisadas – caso amigo meu falece, preciso saber...”
precisassem ser alteradas antes de ir para a rua. É correto afirmarmos que as novas gera-
Quando estavam erradas, com letras trocadas ou ções da cidade são capazes de manter a tradi-
faltando, precisavam ser refeitas e mais uma vez ção? Ou permanecemos com a ideia taxativa de
confeccionadas e impressas ‘à mão’. A tipografia que os jovens tendem mais a inovar do que a
que confeccionava na época de Seu Érico era a reproduzir um costume? Entre todos esses fatos
Tipografia do Comércio, que ficava bem no centro e argumentos, podemos compreender que é, de
da cidade. Depois que a Tipografia do Comércio certa forma, impossível prever com certeza o que
fechou, ficou mais complicado confeccionar as será da tradição. Mesmo que os tempos mudem
‘participações’ e, por algum tempo, o povo ficou e que a primeira atitude que as pessoas tomem
sem elas – até que o negócio foi retomado pela Ti- ao acordar seja abrir a janela do e-mail antes de
pografia Lopes. Tempos depois vieram as gráficas, abrir a janela da própria casa, um hábito, ou uma
massificando um pouco mais o processo. Mesmo tradição, é sempre uma característica da socie-
assim, Seu Milton diz que o tempo ainda era bem dade em que está inserido. Pode ser que as novas
grande entre o pedido de impressão e a entrega. gerações de Cachoeira do Sul utilizem outras tec-
“Hoje é uma facilidade“, comemora Seu nologias para se informar, ou mesmo para se co-
Érico. Atualmente as ‘participações’ são feitas municar, mas é como os exemplos mostram: mais
no computador. Os donos de funerária têm, in- importante do que manter a tradição, a interação
clusive, modelos prontos delas. Com poucas al- das comunidades é aquilo que as torna tão coe-
terações e, em questão de segundos, o material rentes e – hoje em dia – tão peculiares.

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adivinha quem é! Por: Gianlluca Simi

A partir da década de 1950, os antropólo- “Quem vê a personagem é o público”


gos começaram a abrir seus olhos para além das
descrições ocidentalizadas sobre povos exóticos e São 9h15min da manhã do dia 28 de se-
para além da relação entre as etnias e a circunfe- tembro quando eu entro na sala 1227 do prédio
rência da cabeça. Por nomes como Ruth Benedict do Centro de Artes e Letras (CAL) da UFSM. A sala
e Clifford Geertz, surge o culturalismo, para cujos é grande e praticamente vazia. Só seis das 24
seguidores o fator que mais interfere na forma- lâmpadas fluorescentes estão ligadas. Também
ção de um indivíduo é a cultura em que este está pudera: o sol já brilha há tempos do lado de fora
inserido. Basicamente, o que eles propuseram é e marca presença ao atravessar os vidros das 16
que qualquer corpo humano pode ser o casulo de janelas. O prédio, como a maioria na UFSM, é an-
muitas personalidades - tudo depende do lugar e tigo e nem tão bem cuidado, mas o chão daquela
do tempo. Somos, portanto, o resultado da cons- sala é novo, novíssimo. Tábuas polidas rejuvenes-
trução de caráter num corpo em que reside o po- cem o branco depressivo.
tencial para muitas outras existências. Pablo Canalles, professor de Artes Cêni-
Somos, de fato, uma mesma pessoa para cas da UFSM, conecta seu cartão de memória ao
toda a vida. Em contínuo desenvolvimento para aparelho de som e logo a cantora Maria Gadú se
si mesma - com certeza - dir-nos-ia Sartre, mas desmancha numa letra bem diferente e bem mais
sempre a mesma pessoa. Isso não quer dizer, no interessante do que o shimbalaiê-chiclete de ou-
entanto, que, durante nossas vidas, não possa- trora. “Estou com tudo a flutuar no rio, esperan-
mos brincar de sermos outra pessoa. A capacida- do a resposta ao que chamo de amor”, ela canta.
de de imaginar e de acreditar na fantasia é uma Apesar do ritmo calmo, o momento é de trabalho.
das habilidades do ser humano. Existimos por um À música, Juliet Castaldello e André Galarça, es-
só, mas podemos fingir ser outro alguém vez em tudantes do 8º semestre de Artes Cênicas, come-
quando. çam a se esticar: braços, pernas, mãos. Dão cam-
Um detetive particular, um caseiro de ho- balhotas para frente e para trás. Giram a cintura
tel ou um chefe da máfia irlandesa. Quem quere- apoiados nas mãos e nas pontas dos pés.
mos ser sem deixarmos de ser nós mesmos? Quem Dos movimentos lentos que acompanha-
consegue fazê-lo: ser quem não for enquanto é vam Maria Gadú, ficam só os bailarinos. São ago-
quem seja? Senhoras e senhores: eis o ator! ra corredores. O inglês Jamie Cullum embala as

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voltas com o som importado de Rihanna. Naquela
sala, até o som brinca de ser outro: Jamie Cullum
quase mascara a origem baladeira de Don’t stop
the music.
Palmas! Juliet e André não esperavam por
elas. Palmas! Agora entenderam: invertem o sen-
tido da corrida. Palmas e invertem. Mais palmas
e de novo. Pablo brinca, a diminuir o intervalo
entre os sons que fazem os joelhos dos corredores
se dobrar e direcionar a corrida para o outro lado.
Um cabo de vassoura amassado serve de obstácu-
lo. Juliet e André se tornam saltadores - de um
lado para outro, reagindo às mesmas palmas de
antes.
Deu, chega de corrida, voltam a ser bai-
larinos. Sob o som dos Beatles, fazem uma core-
ografia. Pablo junta-se a eles. Um passo para a
frente, um para trás, um para o lado e um quarto
passo que muda: palmas ou pisadas. Pablo can-
sou; abandonou os outros bailarinos e voltou a ser
só o diretor. André e Juliet agora estão no chão a
ofegar. Fecham os olhos e, deitados, não cessam
de cumprir as ordens de Pablo. Por agora, eles são
só corpos na areia imaginária que os sustenta. Pa-
blo incita a consciência do próprio corpo. “Come-
ça a construir[…]o movimento vem do centro[…]
orgânico[…]não se preocupem com o desenho do
corpo, mas com o que ele faz”.
A música nunca parou e o ritmo tribal de e André apresentarão dias 14 e 15 de novembro esqueceu de dizer “quer querê-lo porque quer
agora sacode os braços, as pernas e a cintura dos como “pré-requisito parcial para obtenção de a mim”. O ensaio continua e Pablo dita aonde a
bailarinos. Plano baixo, plano médio e plano alto. grau em bacharel em Artes Cênicas”. André vira mão deve ir. Ele é o diretor da peça, o orientador
Eles saracoteiam livres pela sala. Os movimentos Homem e Juliet, Mulher - suas personagens ainda do trabalho de André e Juliet. Às ordens de Pablo,
sempre seguem o ritmo da música. Aos poucos, os não têm nome. Homem e Mulher incitam o que deve ser visado - a
bailarinos e corredores vão se construindo atores. O ensaio começa. Juliet sobre a mesa. An- mão vai aqui e os olhos, lá; suspiro, tom de voz.
Ousam vociferar falas soltas do espetáculo que dré carrega Juliet. Mulher senta-se. André a abra- Juliet e André conduzirão o olhar da plateia.
ensaiarão. Até agora era aquecimento. ça. Homem lhe fala e Juliet ironiza. Mulher pede Um “assim”, sua posição, sua entonação e
A mesa verde que ficou no meio da sala rea- que Homem fale mais e André o diz - “mais”. seu tempo causam uma discussão. Faz de novo,
parece como mesa. Durante o aquecimento era só Quem é quem? tenta outra vez...de novo, de novo, de novo.
um detalhe natural. Pablo alcança uma saia e um Tempo. Pablo pede que parem, a fala não Não, não dá certo. “André, não é a psicologia da
par de luvas a Juliet. A André, um casaco. Pronto! está saindo direito. No meio de uma fala gigan- personagem, é a tua. Não é o Homem, é o André.
Lá está o casal protagonista da peça que Juliet tesca, cheia de ênclises e infinitivos, André se Quem vê a personagem é o público”.
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Brincar com as ações faz o ator então? ao que são no cotidiano. Ele constroi, como con-
Em português, ele atua; em francês, il ta Pablo, uma segunda natureza, sempre pronta
Hora do intervalo. Aline Ribeiro, colega de joue - brinca. O ator brinca com as ações. Brin- para ser a plataforma para um outro caráter, ou-
Juliet e de André, entra na sala. Precisava con- ca de se fazer outro, brinca de fazer ele mesmo. tra personagem.
versar com eles, mas não queria interromper o Sabe-se lá por qual razão uma pessoa decide que A peça “Matrimônio”, escrita pelo argenti-
ensaio - esperou duas horas do lado de fora. O sua existência não é suficiente e se põe a brincar, no Daniel Guebel, traz as duas personagens que
tempo passou e estão todos cansados. Pablo e Ju- a atuar vidas alheias, que, em sua maioria, nunca Juliet e André brincam de ser desde abril. As fo-
liet estão agora à janela. “A gente não encarna a existiram a não ser no momento da própria ence- lhas com o texto sobre a mesa de Pablo não tra-
personagem”, diz ela. Lá se foi a minha - ingênua nação. Juliet e André brincam que são casados, zem nada mais do que frases. O escrito em si não
- hipótese. Essa parece ser uma ideia comum a agem como se fossem. Eles nunca foram casados, mostra quem são Homem e Mulher, o que pensam,
quem observa o teatro de fora: o ator e a perso- mas, no momento em que representam Mulher e o que sentem, o que querem. Aí entra a análise
nagem numa relação esquizofrênica. Segundo Pa- Homem, fazem crer que são. ativa, explica Pablo, durante a qual os três des-
blo, o ator nunca deixa de ser ele mesmo para ser O ator é como o camaleão: muda suas co- construíram o que liam. O que Homem sente é
outra pessoa. O que ele faz é levar a personagem res, insere-se num contexto distinto como se a o que André brinca de sentir. Quando Mulher ri,
até o público. Enquanto ensaiava, por exemplo, ele fosse natural, mas nunca deixa de ser o mes- quem ri, de fato, é Juliet. A construção das per-
André não deixou de ser ele mesmo para se tor- mo camaleão. O ator existe para si enquanto sonagens é algo proposital. Se outras pessoas en-
nar o Homem - era o André todo o tempo. O que também para outros. Suas vidas não se resumem cenassem a mesma peça, Homem e Mulher seriam
outros.

“Stanislavski na veia!”

Toda área tem seus cânones. Para o teatro,


Constantin Stanislavski parece ser o maior deles.
Nascido em Moscou, em 1863, teve contato com
as artes desde a infância, por influência da fa-
mília. Em 1897, junto com Vladimir Dantchenco
- outro dramaturgo -, criou o Teatro de Arte de
Moscou. Stanislavski pensou muito o ofício do ator
e, a partir de suas obras sobre o tema, surgiu o
sistema stanislavski. O tal sistema nunca foi uma
criação oficial de Stanislavski, mas simplesmente
o conjunto das técnicas com as quais trabalhava.
Importadas pelos estadunidenses, essas técnicas
se tornaram uma instituição e, pelo mundo, até
hoje, é a metodologia mais usada na área.
Na UFSM, como diz a estudante de Artes
Cênicas Rafaela Costa, é “Stanislavski na veia”,
em referência à influência de seus escritos. Para
o dramaturgo russo, a atuação deveria ser uma
recriação do cotidiano. Cabia ao ator, portanto,

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observar pessoas e suas ações, pois só através “A ação é uma isca para o sentimento” O silêncio é grande, mas a concentração é
destas o ator conseguiria encenar. A atuação de- maior. Cada passo tem um porquê, cada olhar uma
veria ser orgânica, em oposição ao exagero plás- Dois dias depois, dia 30, às 14h17min, Lui- direção prevista. As personagens estão ali, à flor
tico que permeava o teatro da época de Stanisla- za de Rossi e Marcos Paiani, estudantes de Artes da pele, mas um pigarro, um olhar para o além ou
vski. Em seu livro “A construção da personagem”, Cênicas, juntam-se a André, Pablo e Juliet. Cin- um fala esquecida relembram que André e Juliet
fala-se de um ensaio em que ele pede a uma atriz co pessoas perambulam pelo Teatro Caixa Preta, por lá continuam. A cena acaba e é hora do in-
que se sente sobre as mãos para cantar até que em frente ao CAL. Retiram cortinas e as enrolam. tervalo. Felipe Martinez e Cauã Kubaski, também
a música saísse naturalmente e não cheia dos su- Hoje, o ensaio será completo. estudantes de Artes Cências, aprochegam-se a es-
postos vícios gesticulares que ensinavam os pro- Uma cortina de organza de 63 metros é piar o que acontece. Parece que todos os atores
fessores de música. Para Stanislavski, a atuação pendurada, gancho a gancho, até formar um se- são atraídos pelas atuações alheias.
está nas ações - simples, naturais, organicamente micírculo em torno do palco. Eis o princípio do Há uma tensão invisível entre o palco e a
corretas, livres. cenário. A equipe não está satisfeita com a di- plateia, mesmo que esta esteja vazia. Os assen-
Pablo enfatiza a importância, a seu ver, de ferença aparente entre o tecido do meio e o das tos parecem erguer os olhos para espiar o palco,
uma das chamadas leis do homem em ação, de laterais. Luiza testa as luzes: amarelo, verde, que, em vão, esconde-se até a coxia. Um não há
Stanislavski: a lei do desenvolvimento da vonta- branco. No escuro da plateia, as luzes sobre o sem o outro. Assim como num romance, só há a
de. Através dela, o ator não age como se fosse palco jogam com o tecido. Já não importa se o personagem se o leitor lá a perceber, no teatro,
outra pessoa, mas toma como seus os objetivos meio está diferente dos lados, a luz consertou não existe peça sem o consenso entre a plateia
da personagem. Isto é, ele não fala em nome da tudo. “Parece um plástico”, grita Juliet. O ensaio e os atores. Quem assiste sabe que, fora dali, a
personagem, mas em seu próprio nome naquelas começa, a trilha também. Márcio Gomes é estu- história contada não se repete tal qual; quem as-
circunstâncias. André é André, está Homem; Ju- dante de Música na UFSM e a ele cabe criar os siste sabe que aquilo é uma peça. Mas o jogo com
liet é Juliet, está Mulher. sons que arrematarão o desenrolar da peça. as ações é mais forte do que a dita realidade.
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estica e
Por: Janayna Barros Ilustração: Rafael Balbueno

Tira isso! Remenda aquilo!


puxa
“Não gosto de ser preconceituosa, tem tra- forto, pois, só assim, nessa terapia incomum tem-
Aumenta ali! Diminui aqui! Esculpe tamento para isso?” e “Tá muito pequena a minha se a chance de perceber que todos lutam com os
de cima a baixo! Tem muita gente autoestima, tem como aumentar isso no processo mesmos fantasmas.
por aí precisando, literalmente, fa- inverso: de dentro para fora?” O que torna esta questão intrigante e polê-
zer algum tipo de cirurgia, mas têm É possível que psiquiatras e psicólogos mica é pensar que a sociedade não perdoa quem
outras... que fazem o contrário e negam concordem comigo que alguns valores vêm sendo está acima do peso. Somos bombardeados com
o ditado popular “mente sã, corpo são”. deturpados sob a égide de uma forma perfeita, imagens de corpos esculturais (e diga-se de pas-
Essas pessoas estão mais para “mente impossível e torturante. Ter um corpo saudável é sagem, muitos deles totalmente modificados pelo
insana, corpo sabe-se lá com quan- realmente importante, mas estamos em uma era ‘tio do photoshop’). E, sinceramente, é horrível ver
tos remendos”. Tudo pelo padrão de de absurdos quando a questão gira em torno da alguém declarando que: quando se é gordo “você
beleza que domina a sociedade e vaidade e, muitas vezes, da paranóia em busca de está só existindo, você não está vivendo. E eu que-
é difundido pela mídia. um corpo ‘perfeito’. ro viver!”. Um radicalismo que beira à patologia,
Me pergunto, diaria- O mais incrível de tudo isso é que tem gen- pois está atrelado a um modo de ver o mundo e a si
mente, ao passar os olhos por te fazendo terapia de uma maneira, no mínimo, mesmo focado na aparência em demasia.
manchetes rotineiras que de- inusitada: via internet! Redes de relacionamento Posso dizer, com certeza, que quem tem
flagram: “Fulana coloca 550 como o Orkut, Facebook, MySpace e principalmen- problemas com seu peso, tem problemas psicológi-
mililitros de silicone em cada te o YouTube, viraram o divã do psicoterapeuta. cos (em especial de autoestima). Podem negá-los,
nádega”, “Beltrana coloca Não tá acreditando? As pessoas postam vídeos dos mas os tem e essa negação é parte do problema.
5,5 litros de silicone em cada mais variados, contando sua história, falando da Sendo assim, creio que os candidatos à intervenção
mama”, porque ninguém fala para sua experiência com algum tipo de cirurgia, fa- cirúrgica têm de passar por avaliação psicológica
elas: “Ah! Vá se tratar!” ou quem lam da sua trajetória antes, durante e depois da e por acompanhamento durante todo o processo.
sabe “Arranje um horário no psiquia- ‘faca’, mostram os resultados (em especial das ci- Nessas horas eu me pergunto, novamente, por que
tra!”. Falo isso, pois existem pessoas rurgias de redução de estômago). O espaço virtual as intervenções estéticas não pedem essas avalia-
que, ao invés de tratar sua psique e bus- também virou confessionário! Há casos recorrentes ções? Muitas delas causam impactos na autoestima
car a felicidade para além da forma física, de pessoas que cometem um ‘pecadinho’ e correm e na autoimagem e repercutem no convívio social
tratam logo de entrar ‘pra faca’, descon- para postar um vídeo na internet pedindo reden- desses pacientes. Mesmo no caso de cirurgias ur-
siderando, muitas vezes, a falta de preparo ção pelo pecado cometido. gentes, indicadas para casos em que o sobrepeso
psicológico e mesmo os riscos padrões deste Para quem faz, por exemplo, uma cirurgia causa risco de morte, como é o caso da cirurgia
tipo de procedimento cirúrgico. de redução estômago, os pecados são os culiná- de estômago, não há uma orientação incisiva para
“Não gosto desta gordurinha aqui, pre- rios: chocolates, sorvetes, frituras, enfim, tudo que o paciente receba acompanhamento psicoló-
ciso tirar isso doutor!” ou “Tá muito pequena aquilo que, em excesso, traz malefícios até mes- gico antes e depois do procedimento cirúrgico. Há
a minha bunda, então, aumenta!” mo para quem tem o corpo ‘em dia’. Posso dizer, uma banalização sobre as mudanças provocadas
Em meio a essa corrida desenfrea- por experiência própria, que ouvir alguém falan- pelas cirurgias, seja de que gênero for. Nem todos
da por um padrão estético, confesso que do: “Será que estou comendo as coisas certas? Será conseguem se adaptar ao novo corpo. Para aceitar
preferiria ouvir comentários menos vol- que estou comendo pouco? Será que deveria comer a transformação é preciso considerar a necessida-
tados ao ter (o corpo ideal) e mais fo- um pouco mais? Qual será a reação do meu corpo de de acompanhamento psicológico antes e depois
cados no ser: se eu comer doces?”... Traz um certo grau de con- da cirurgia.
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gregório de mattos guerra seria humilhado
Por: Bibiano Girard

Um gaiteiro a postos dedilha seu instru- vozes toma conta do lugar. Estamos, afinal, no único problema mesmo é acertar exatamente a
mento. Sentado ao lado, um bêbado o acompa- clima da Boca Maldita. data de fundação. Havia confusão entre os anos
nha na letra fazendo de uma garrafa de cerveja A Boca Maldita, também popularmente de 2002 e 2008. Contudo, os encontros diários
microfone imaginário. O músico segue a com- adotada como Beco da Cotovelada, é um espa- sem compromisso são realizados com certeza
posição gauchesca enquanto o companheiro de ço que utiliza desde os bancos do calçadão até desde a década de 1990. Há álbum de fotos dos
banco faz que enrola. Algumas idosas rapidamen- as adjacências no entorno do balcão da lanche- principais encontros (em algumas situações são
te viram o pescoço e espiam de soslaio qual o ria. Futebol é o assunto principal, já que por ali beneficentes), integrantes dos mais variados em-
furdunço do dia naquele que é conhecido como o se encontram jogadores profissionais de final de pregos, e ,como data de fundação, não poderia
local dos encontros santa-marienses: o calçadão semana, como Zeir, Joel e Branca de Neve. Os ter sido escolhido melhor dia: 12 de outubro.
da cidade. três conversam animados próximo ao gaiteiro en- É comum para todo morador local transi-
Há, contudo, um lugar em especial diante quanto os outros parceiros não chegam. tar pelo calçadão da cidade, já que ali se encon-
dos aproximados duzentos metros de calçada e A vida alheia e a própria vida. Encosta- tram grandes lojas e lotéricas, estas sempre com
comércio varejista desarranjado entre lojas de dos nas paredes da galeria, sentados nos bancos longas filas. E é comum também o santa-marien-
roupa, eletrônicos, CDs, lotéricas, produtos in- da calçada, em rodas de conversa, sozinhos, em se deparar-se com o aglomerado de senhores a
dígenas, bancas e sorveterias. Em um ponto, a dupla, em trio... O assunto faz o volume das re- conversar, rindo ou numa seriedade de reunião
banca e a sorveteria dividem o mesmo espaço, dondezas aumentar. Para o desconhecido, pode comunista. O jornal de um passa pelas mãos de
entre cotoveladas, filas desarrumadas e centenas parecer até briga, como diz seu Joel Silva. Com tantos outros. É a partir das quatro da tarde que
de produtos variáveis, como um copo de suco de porte atlético, pele negra e óculos apoiados no a Boca ferve, dizem as atendentes da lancheria
manga e vinte maços de cigarro. É ali, no rebo- nariz esguio, Joel ironiza um dos companheiros Luciane Ferreira e Edicleusa Lima Luz.
que de uma galeria, logo que o sol ilumina as sentados nas imediações: esse aqui é o Guiñazu, Luciane, entre a correria de buscar os
lajotas em xadrez de preto e branco que, dia- olha a cara do malandro – apertando com a mão salgados e levar até o cliente, conta que o me-
riamente, milhares de senhores, dos mais novos direita o maxilar do amigo (há que se discordar lhor da Boca Maldita é conversar com o pessoal.
(com 15 anos) até os mais velhos (ainda não te- do parentesco, mas até podem ser primos de Edicleusa, que convive com o ritmo do local há
mos dados do último censo) se encontram para ama de leite). nove anos, incomoda-se com apenas uma coisa,
o papo agradável sobre a vida. Pode ser sobre a Zeir, Joel e Branca de Neve descansavam o cigarro.
vida dos outros. serenados naquela tarde. Os óculos não são regra E é assim que se vai mais uma tarde na
É assim que com sol e sem chuva os inte- para se filiar ao grupo, mas os três levavam no Boca Maldita. Se o assunto vai além de futebol e
grantes variáveis daquela agremiação discutem, rosto o amuleto. Até pode não existir um estatu- política, o nome escolhido pelo radialista Antô-
entre chegadas e partidas, o que de melhor e to regulador de direitos e deveres dos participan- nio Tessis se encaixa bem. Nem mesmo Gregório
pior aconteceu no país nas últimas horas. Sim, o tes opinativos vociferantes do local, mas o grupo de Mattos Guerra, o poeta Boca do Inferno, teve
tempo noticioso é atual, pois no outro dia o gru- tem data de fundação e até uma publicação im- o privilégio de ter um recinto para se topar com
po coloca sem atrasos o colóquio em dia. O piso pressa não periódica. O nome do jornal respeita os coniventes de opinião. Na Boca Maldita é as-
quadriculado da galeria contrasta com a lajota o nome da casa e mostra para quem quiser ver sim: tu vais passar, vais achar que é briga, mas
cinza do calçadão. Um balcão em forma de “S” os acontecimentos mais importantes e as cam- não é, esclarece Zeir ao lado dos companheiros
lota com os senhores fazendo pedidos. O som das panhas realizadas pela mocidade intelectual. O de conversa.

fora de pauta no 10 / outubro de 2010 39

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